mapa
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
NEAI
Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Amazonas (Ppgas/Ufam), o Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai) é uma instância destinada a congregar professores, estudantes e pesquisadores que se dediquem ao desenvolvimento
de pesquisas em diferentes temas e problemas relacionados às sociedades indígenas e demais povos tradicionais da Amazônia.
http://www.neai.ufam.edu.br
OPAN
A Operação Amazônia Nativa (Opan) é uma organização não governamental sediada em Cuiabá,
Mato Grosso. Fundada em 1969, desenvolve projetos de trabalho junto aos povos indígenas nas
regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Seu objetivo é apoiar os povos indígenas, colaborando
para a valorização e o fortalecimento de seus modos de organização social e expressão cultural,
das formas de proteção dos seus territórios e patrimônio, e favorecendo a autonomia e consolidação
dos direitos constitucionalmente reconhecidos a estas.
http://www.amazonianativa.org.br/
Visão Mundial
A Visão Mundial (VM) é uma organização não governamental cristã, brasileira, de promoção do
desenvolvimento local, de justiça e assistência social, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com crianças, famílias e comunidades para que alcancem seu potencial pleno. Trabalha lado
a lado com populações mais vulneráveis socialmente, para servir a todas as pessoas, sem distinção
de religião, raça, etnia ou gênero apoiando a sua organização para melhorar suas condições de
vida, estimulando o protagonismo das comunidades com reconhecimento e fortalecimento de suas
capacidades e direitos.
http://www.visaomundial.org.br
IEB
O Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) é uma associação civil brasileira sem fins
lucrativos, voltada para a capacitação e formação de pessoas ligadas à conservação ambiental,
tendo como eixos a capacitação técnica, institucional e política. Criada em 1998 e sediada em
Brasília-DF, a instituição se destaca por uma atuação que estabelece pontes entre a conservação
dos recursos naturais e as dimensões econômicas, sociais e culturais da sustentabilidade, buscando
fortalecer as comunidades locais. Os programas e projetos atendem indivíduos que atuam com a
conservação ambiental e o desenvolvimento sustentável, em suas diversas interfaces, com foco no
bioma amazônico. Dentre esse público destacam-se: comunidades extrativistas, assentados, populações indígenas, profissionais e estudantes da área ambiental.
http://www.iieb.org.br
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Álbum Purus
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
2011
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Copyright © 2011 Universidade Federal do Amazonas
Reitora
Márcia Perales Mendes Silva
Capa e Projeto gráfico
Priscila de Araújo Noronha Santos
Editora
Iraildes Caldas Torres
Editoração eletrônica
Priscila de Araújo Noronha Santos
Revisão Técnica
Cinara Cardoso
Foto da capa
Menino suruaha
Foto de Lucas Climaco Matos - Frente
de Proteção Etnoambiental Purus/Funai
Setembro de 2009
Revisão Português
Sérgio Souza
Benayas Inácio Pereira
Ficha Catalográfica
A345
Álbum Purus / Organização de Gilton Mendes dos Santos.
– Manaus: EDUA, 2011.
338 p.
ISBN 978-85-7401-548-4
1. Rio Purus – Amazônia 2. Diversidade sociocultural – Rio Purus – Amazônia. 3. Etnologia – Rio Purus – Amazônia
I. Mendes dos Santos, Gilton (Org.).
CDU 316.324:39 (282.281)
Ficha Catalográfica elaborada por Suely Oliveira Moraes – CRB 11/365
Edua
Editora da Universidade Federal do Amazonas
Av. Gal. Rodrigo Otávio Jordão-3000, Japiim 2, Manaus – Am
Telefax: (0xx) 92 3305-5410/ e-mail: [email protected]
Esta publicação contou com o apoio da
Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior / Capes.
6
Esta publicação foi também realizada com o
apoio do povo americano por meio da Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (Usaid). O conteúdo desta publicação é de responsabilidade de seus autores
e não necessariamente reflete as opiniões da
Usaid ou do Governo dos Estados Unidos.
Álbum Purus
Dedicamos esta coletânea a
Günter Kroemer, pelos seus estudos e
pela sua vida dedicada aos povos do Purus.
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
Prefácio
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Quando a história acontece
nos rios
Márcio Souza
Uma grande ideia reunir estudos, relatos de viagens
e ensaios sobre o rio Purus. Há bastante estudos sobre o
rio Amazonas, sobre o Negro, o Araguaia, o Madeira e o
Tocantins, mas faltava o grande rio Purus. Via de penetração
colonial e artéria jugular do Ciclo da Borracha, o rio Purus
foi um palco rico de confrontos, de dramas humanos. Na
verdade, a ideia deste Álbum Purus é tão boa, tão simples
que podemos nos perguntar porque não foi pensada antes.
E mais, todos os nossos rios mereciam o seu álbum, pois é
através deles que nossa história vai sendo processada.
Os rios tecem a sociedade humana na Amazônia.
Não foi por outro motivo que o antropólogo John Hemming
nominou seu livro sobre a história do grande vale com o
título de “Uma Árvore de Rios”. E foram os rios que deram
mobilidade às sociedades humanas no processo de ocupação
desde o período neolítico. É por isso que a expressão “povos
da floresta” é de um ridículo extremo, denunciando a origem
adventícia do rótulo. Na verdade, na Amazônia há os povos dos
rios, os ribeirinhos. Poucos são os aglomerados humanos na
terra firme, em meio à floresta. Na verdade, são tão reduzidos
que pode se dizer que hoje a maior parte da presença humana
em meio à selva é representada por madeireiros clandestinos
derrubando árvores.
Neste álbum, organizado pelo antropólogo Gilton
Mendes dos Santos, há muitas visões sobre o Purus. De
certo modo há um elo entre o destino das gentes daquele
rio com os descaminhos do processo de desenvolvimento da
Amazônia. No período de intenso extrativismo, e que ainda
não cessou completamente, o Purus experimentou um forte
impacto com a invasão da economia do látex. O resultado
foi a dilaceração de etnias, com massacres e expulsão de suas
terras tradicionais, e a instalação de um regime de trabalho
10
Álbum Purus
brutal. É o que nos mostram os ensaio de Davi Leal, “Cenários da Fronteira: o
rio Purus e o pensamento social na Amazônia”, bem como a seleção de textos de
Euclides da Cunha pelo professor Renan Freitas Pinto. Ambos os trabalhos, ao
confrontar as impressões contemporâneas de Euclides da Cunha, abrem um espaço
de compreensão para os trabalhos seguintes, especialmente “Cultura e Mercado
na Amazônia da Borracha”, de Almir Diniz, e “Retrato do sistema de aviamento
no Purus – notas preliminares”, de Gilton Mendes dos Santos. A perspectiva das
populações tradicionais no rio Purus fica muito bem servida pelos ensaios da
segunda parte do livro, que debate a ocupação da terra e os conflitos gerados pelas
diversas inserções da região na divisão internacional do trabalho. Aqui nesta parte
vemos que está ocorrendo uma agudização dos choques sociais originados pelo
extrativismo. No Purus o processo de “modernização” tem sido violento, à margem
da lei, demonstrando uma total ausência do Estado. E os estudiosos vão encontrar
aqui um material crítico para combater o cinismo de certo desenvolvimentismo
camuflado de sustentável.
No que diz respeito às etnias que originalmente habitavam aquele espaço
geográfico, este Álbum Purus reúne ensaios esclarecedores sobre o protagonismo
dessas culturas milenares. E é aqui neste segmento do livro que vemos o quanto a
nossa região foi vítima de modelos econômicos destrutivos ao extremo, deixando
um rastro de exaustão e desespero. Fico imaginando o quanto de horror e resistência
encontraríamos numa coleção de álbuns de nossos rios.
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
Sumário
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
17 Introdução
Gilton Mendes dos Santos
21 VIAGENS, VIAJANTES E A EMPRESA
EXTRATIVISTA
25 Cenários da Fronteira: o rio Purus e o pensamento social
na Amazônia
Davi Avelino Leal
38 Anotações sobre o rio Purus, de Euclides da Cunha
Renan Freitas Pinto
51 Cultura e Mercado na Amazônia da borracha
Almir Diniz de Carvalho Júnior
73 Um retrato do sistema de aviamento no Purus – notas
preliminares
Gilton Mendes dos Santos
82 Um estudo a partir dos Postos Indígenas Marienê,
Manauacá e Rio Gregório:
os casos Jamamadi, Kulina e Paumari
Angélica Maia Vieira | Ingrid Daiane Pedrosa de Souza
Jucélya Suellen Pereira da Silva | Liliane Souza de Souza
109 TERRITORIALIDADES, RECURSOS NATURAIS
E CONFLITOS
113 Panorama contemporâneo do Purus Indígena
Miguel Aparício
131 Dois destinos para o Purus: Desenvolvimentismo,
socioambientalismo e emergência dos povos tradicionais
no sul do Amazonas
Thereza Menezes
153 Novas configurações territoriais no Purus indígena
e extrativista
Marcelo Horta Messias Franco
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Álbum Purus
167 Rio, floresta e gente no baixo Purus: Saber e uso da
biodiversidade na RDS Piagaçu-Purus
André Pinassi Antunes | Bruno Garcia Luize
Claudia Pereira de Deus | Roselis Mazurek,
Eduardo Venticinque | Lúcia Helena Rapp Py-Daniel
José Gurgel Rabello Neto | Fabiano Waldez
Fabricio Hernandes Tinto | Eduardo Von Mühlen
Boris Marioni | Adriana Terra | Felipe Rossoni
Hermógenes Neto | Fabio Röhe | Ana Gouvêa Bocchini
196 Entre o patrão e o manejo: O dilema dos Paumari
do rio Tapauá
Gustavo Falsetti V. Silveira
Renata Corrêa Apoloni
206 Os Paumari dos rios Tapauá e Cuniuá
Oiara Bonilla
229 ETNOLOGIA E ETNOGRAFIAS
233 Organização social Jamamadi, Kulina e Deni
no complexo médio Purus/Juruá
Clayton de Souza Rodrigues
251 Aspectos do parentesco Arawá
Marcelo Pedro Florido
270 Os Apurinã: Tese e dissertações
Stela Azevedo de Abreu
282 O nome do pai: A centralidade da figura paterna
entre os Jarawara
Fabiana Maizza
296 Contrastes entre semejantes y extranõs
Jadawa versus waduna: cosmovisión suruaha de nuestro
desorden
Miguel Aparício
333 SOBRE OS AUTORES
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
Introdução
O Purus é um dos rios mais fascinantes da Amazônia, seja por sua história
natural, seja por sua paisagem humana. Sobre ele e seus habitantes já nos dão notícia
os primeiros cronistas que navegaram pelo Amazonas no século 16, e, tempos
depois, entre os anos 1861 e 1862, com mais detalhes, os exploradores nomeados
pela Província, Manoel Urbano da Encarnação e o engenheiro Silva Coutinho.
Até este momento, temos um rio habitado quase que exclusivamente por povos
indígenas.
O Purus é o cenário da poética e dramática descrição de Euclides da Cunha,
que o revelou em seu complexo hidrográfico e geomorfológico, mas também em
sua condição humana, marcada pela autosservidão nos seringais. Este rio serviu-lhe
de ambiente-modelo para a defesa de sua tese sobre a influência irremediável da
brutalidade da selva sobre seus habitantes. Por ele o autor enxergou uma Amazônia
em estágio embrionário, onde o homem chegara cedo demais, antes mesmo de sua
conclusão, sem ser esperado nem querido.
Destacando-se no cenário amazônico, o Purus já estava, nos tempos de
Euclides da Cunha, completamente tomado, em toda a sua extensão e em ambas
as margens, pelas vorazes hordas de coletores da borracha e outros produtos de
interesse mercantil.
Quando a Amazônia perde o monopólio da oferta mundial da borracha
e o sistema de aviamento começa a sentir os tremores do colapso, o Purus é
apresentado como uma alternativa de renovação do esquema extrativista: seus lagos,
florestas e habitantes ocupam as cenas das primeiras imagens cinematográficas da
Amazônia – produzidas pelo “cineasta da floresta” Silvino Santos, a serviço da
empresa exportadora J. G. Araújo – que serviram de propaganda para revelar as
novas espécies e produtos da floresta, a exemplo da castanha, do peixe-boi, do
pirarucu, da tartaruga e outros “bichos de casco”.
Os seringais, com seus barracões e armazéns localizados ao longo do rio
Purus, arrebanharam e concentraram seringueiros e índios da região, muitos deles
em franca parceria entre empresa extrativista e o próprio Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), adotando, os próprios postos, o esquema da dívida.
Os vários grupos indígenas que aí habitavam adotaram as mais diferentes
estratégias diante das frentes de expansão extrativista. Alguns foram aniquilados pelas
enfermidades ou brutalidades dos exploradores, outros se afastaram e refugiaram
para o interior da floresta e margens dos pequenos rios e igarapés, muitos outros
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
foram forçados ou atraídos para o interior dos seringais. O rescaldo do “Ciclo da
Borracha” levou a novas redefinições sociais e territoriais no Purus: fragmentação
dos grupos indígenas, migrações, miscigenação, formação e reconfiguração de
comunidades, grupos e cidades.
Embora a espinha dorsal do aviamento tenha sido quebrada, e o poder
econômico da borracha perdido sua posição, os patrões continuaram mantendo seus
seringais e explorando os seringueiros, sobre quem exerciam efeitos devastadores.
Mantinham ainda o domínio das terras, benfeitorias e, estrategicamente, a “renda da
produção” dos seringueiros, isto é, parte de toda a coleta anual do látex.
O sistema de aviamento, em toda a sua história de formação, marcou
profundamente a vida econômica e social desses povos e comunidades: esculpiu
um modelo muito particular de relação (assimétrica) entre credores e devedores,
patrões e fregueses, presentes nos dias de hoje sob nova roupagem e com outros
personagens em cena. Novos comerciantes, regatões ou marreteiros, passaram a
atuar, inicialmente abastecidos pelos seringalistas e depois por sua conta, num Purus
debilitado, mas continuamente rico em recursos naturais. Longe de uma condição
de vilões, como os vemos hoje, estes atores aparecem como simulacro de um
esforço solidário, construindo relações de amizade e compadrio, de solidariedade
e cumplicidade com aqueles que sentiram na pele as agruras do grande sistema e,
surgiram como os últimos paladinos de um modelo profundamente arraigado na
Amazônia, mantendo as populações dos antigos seringais e aldeias em contato com
o mundo dos bens industrializados e da civilização.
O Purus continuou sob pressão. Para além do ouro negro, seus habitantes,
seus lagos, florestas e terras continuaram sofrendo com as forças devastadoras da
exploração e da expropriação. Somente com a mobilização dos seringueiros a partir
da década de 1990 a região, a exemplo de outras da Amazônia, passou a viver um
novo momento histórico, em que seus avatares, povos e comunidades começam
a reivindicar a posse legítima e anciã do território historicamente ocupado, a
demarcação oficial de terras indígenas, a criação de reservas extrativistas e unidades
de conservação.
Quem vê o mapa da Bacia do Purus é logo chamado a atenção por uma
constelação de povos localizados no seu médio curso. Há nessa região uma
diversidade étnica onde se conta mais de uma dezena de grupos indígenas, além
de um grande número de comunidades tradicionais, vivendo aí há mais de uma
centena de anos e tendo elaborado sofisticadas formas de sobrevivência, adaptação
e criatividade neste universo de florestas e rios.
Soma-se a esta alta diversidade sociocultural uma marcante presença de
povos falantes da família linguística Arawá, que, para além da língua, partilham
outros importantes ingredientes sociais e cosmológicos comuns, a exemplo de um
complexo e histórico sistema de trocas, suas intrigantes unidades sociais, a extensão
18
Álbum Purus
das noções de consanguinidade e afinidade, as teorias sobre outrem e a relação entre
humanos e não humanos. Encontramos ainda na região um fenômeno cada dia mais
crescente na Amazônia: a presença dos índios, não como citadinos imiscuídos num
mundo planificado das cidades, mas numa presença distinta e coletiva, quase sempre
articulada ao contexto das comunidades e aldeias – realidade que nos leva a pensar
no conceito e nos limites socioterritoriais de Terra Indígena. Tais características e
questões, no entanto, ainda estão insuficientemente apreendidas e exploradas pela
etnologia da região.
O Purus dos últimos dez anos tem sido vítima de um processo em marcha
de destruição, de conflitos e de violência contra seus habitantes, ponta de lança de
um modelo de pecuarização e implantação de monocultivos agrícolas na Amazônia.
Este esquema desenvolvimentista, que assolou os biomas naturais (Cerrado, Floresta
Tropical e Pantanal) dos Estados de Mato Grosso, Rondônia, Acre e Pará, agora
avança pelo sul do Amazonas, pressionando as áreas protegidas e o território dos
povos e comunidades, causando esbulho e comprometimento dos seus recursos
naturais.
Por outro lado, encontramos aqui, em sentido reverso, certa força de
empuxo, uma resistência marcada pelo interesse na manutenção de um modelo
há muito em prática no interior da Amazônia, caracterizado não apenas por um
“modus operandi” de conservação ambiental, mas por uma história ecológica
de ação antropogênica positiva e, sobretudo, pela “visão de mundo” animista e
integradora do cosmos.
Desse modo, o atual Purus passa a ser o ricochete das tantas projeções
feitas no passado por Euclides da Cunha, um de seus maiores propagadores: aí não
se instalou o grande projeto civilizador, e aqueles que soçobrariam a este – seus
povos nativos –, ocultos e silenciados pela pena do erudito escritor, agora roubam
a cena, nos brindando com um modelo de vida e modos de conceber a Amazônia
tão necessários nos tempos atuais.
São estas imagens, de fotografias sobrepostas e atravessadas, que compõem
o instigante álbum de paisagens humana e natural deste rio tão apropriadamente
chamado de poroso nos comoventes versos da “canção Purus” dos índios Piro do
Peru.
É deste cenário que tratam os textos desta coletânea. Ela é um percurso por este
universo de problemas e questões suscitadas pelos trabalhos apresentados e debatidos
no seminário Purus Indígena: natureza, cultura, história e etnologia promovido pelo
Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai) do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (Ppgas/Ufam), realizado na
cidade de Manaus no período de 22 a 24 de abril de 2010.
Para além de uma discussão estritamente acadêmica, o seminário buscou
promover o encontro entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento
19
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
que atuam na Bacia do Purus e identificar temas e questões que articulem novas
pesquisas em etnologia e diferentes modelos de intervenção no campo da
sociodiversidade. Isto é, uma iniciativa de diálogo entre pesquisadores, da Ufam e
de outras instituições, indigenistas envolvidos no Projeto Aldeias – executado pelo
Consórcio formado pela ONG Operação Amazônia Nativa (Opan) e Visão Mundial
– representantes do Instituto de pesquisas Piagaçu Purus e do Instituto de Educação
do Brasil (IEB), bem como alguns representantes de organizações locais do Médio
Purus. Este evento atendeu ainda a um dos eixos componentes do Projeto Paisagens
Ameríndias: habilidades, mobilidades e socialidade nos rios e cidades da Amazônia,
um programa de cooperação acadêmica (Procad) firmado entre os PPG’ s da Ufam
e da Universidade de São Paulo (USP), financiado pela Capes.
Os textos aqui reunidos apresentam os resultados de pesquisas, ações e
reflexões em diferentes níveis e áreas das Ciências Humanas e Naturais. Como
notará o leitor, vários deles estão apenas (necessário neste momento) “tateando o
Purus”, na promessa de um investimento maior em um futuro breve.
Vale lembrar, porém, que a obra não tem o objetivo tão somente de
somar-se às estratégias de visibilidade ao que está sendo feito e pensado sobre
o Purus e suas populações, mas principalmente estimular e buscar um diálogo
com os próprios “intelectuais da floresta”, os detentores e produtores de certos
conhecimentos, distintos em forma e conteúdo, daqueles apreendidos pela Ciência.
E, para isso, talvez, o primeiro passo seja conhecer um pouco melhor estes povos e
seu contexto.
Gilton Mendes dos Santos
Organizador
20
Álbum Purus
viagens,
empresa
viajantes e a
extrativista
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
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Manoel Urbano da Encarnação
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Álbum Purus
o rio
Cenários da fronteira:
Purus e o pensamento social na Amazônia
Davi Avelino Leal
Introdução
O presente texto tem como objetivo analisar a relação
entre o discurso fundador de Euclides da Cunha sobre a
Amazônia, a experiência no rio Purus e o pensamento social
que problematizou a Amazônia durante o século 20.
Embora Euclides da Cunha esteja em continuidade com
muitas das teses do final do século 19, ele agrega à discussão
sobre raça a questão da nacionalidade e do progresso para
pensar a Amazônia. É a partir dessa perspectiva que Euclides
da Cunha é considerado um dos primeiros leitores nacionais
da realidade amazônica a adotar um ponto de vista científico.
O rio Purus e a expansão extrativista de borracha no final
do século 19
O avanço da fronteira extrativista sobre os rios da Amazônia
a partir da segunda metade do século 19 foi um fator
preponderante para a exploração de novas áreas produtoras
de borracha natural. Nessa “marcha para o oeste” o contato/
conflito com os povos indígenas que habitavam os altos cursos
dos rios foi inevitável.
Os rios Purus, Juruá e Madeira foram os mais impactados
nesse processo. A boa qualidade da hevea brasilis atraiu o
interesse de arrivistas locais, nacionais e estrangeiros e exigiu
um grande esforço visando à mobilização de mão de obra
para atuar nos seringais.
Duas foram as estratégias usadas: a mobilização da mão-deobra indígena e o deslocamento compulsório de nordestinos,
sobretudo cearenses, para trabalhar nos seringais.
25
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
O sistema de aviamento tem no controle do crédito a própria chave de
dominação dos povos indígenas e não indígenas que eram imobilizados na relação
de trabalho nos seringais da Amazônia. Teoricamente, cada extrator de goma elástica
era considerado livre, no entanto a construção de uma dívida que dificilmente seria
paga impossibilitava o seringueiro de, na prática, se livrar do seu patrão imediato.
Essa forma de trabalho compulsório era comum, ainda que com pequenas
variações em alguns seringais, não só na Amazônia brasileira, mas em seringais de
várias áreas da América do Sul.
No caso do rio Purus, que nos interessa diretamente, a historiografia
tradicional preocupou-se apenas em destacar a presença dos chamados primeiros
desbravadores do rio, dando ênfase ao prático Manoel Urbano da Encarnação, como
se a história de ocupação do rio iniciasse com a chegada do outro não indígena.
Na busca das origens, o discurso oficial elegeu Manoel Urbano da Encarnação
como grande símbolo de conquista do Purus. Tal abordagem, porém, ajudou a
obscurecer a real participação de Manoel Urbano, reconhecido prático que ajudara
vários cientistas e administradores locais nas expedições ao Purus. Este era de fato
um mediador entre dois mundos. Conhecedor não só dos cursos do Purus e seus
afluentes, mas dos vários povos indígenas, Manoel Urbano também conviveu com
os grandes nomes de ciência da época e realizou tarefas importantes para o poder
provincial.
De qualquer forma, não deixa ser importante perceber o quanto a presença
de Manoel Urbano, do engenheiro militar major João Martins da Silva Coutinho que
elaborou o relatório de 1861, da expedição científica de Chandless e do geógrafo e
professor militar Antônio Pereira Labre que foram elementos cruciais para definição
do que seria e quais as potencialidades da “região”1 do rio Purus.
Para esses autores, dois argumentos se apresentam como legítimos para
se pensar não só, mas, sobretudo, o Purus. Estes são os da prevalência do espaço
geográfico e do meio ambiente como definidores das características essencialmente
regionais. Nas lutas pelo poder de divisão, os geógrafos, e aqui sem dúvida Chandless
é o principal nome, conseguiram impor sua definição enfatizando os fenômenos
físicos e limitando a análise dos conteúdos internos do espaço, naturalizando-os
(BOURDIEU, 2002, p. 108).
A preocupação do reconhecido geógrafo inglês quanto a sua expedição
de reconhecimento das cabeceiras do Purus, era de estabelecer as coordenadas
astronômicas e as condições de navegabilidade dos principais rios, ou seja, a
construção de um inventário do espaço e da natureza.
1 Seria interessante percebermos até que ponto esses cientistas, engenheiros, burocratas, milita–
res e práticos que estiveram no Purus a partir na segunda metade do século 19 lutaram e
contribuíram para uma definição legítima da ideia de região nos termos apontados por Bourdieu,
2002.
26
Álbum Purus
Davi Avelino Leal
A necessidade de esquadrinhamento do espaço amazônico tornara-se um
imperativo da expansão gumífera. Os saberes práticos e teóricos de engenheiros
militares, engenheiros agrônomos, geógrafos e cartógrafos foram acionados como
elementos imprescindíveis pelo controle político governamental.
Essa rede que articula riqueza, território e população (Foucault, 2008)
e acrescentaria a preocupação com o censo e o mapa (Anderson, 2005) está na
base de um regime de técnicas de governo arquitetado durante o período imperial
brasileiro.
É dentro desse contexto, já no início do século 20 que irá se inserir a vinda do
engenheiro militar Euclides da Cunha. Escritor famoso e jornalista experimentado,
membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico,
Euclides da Cunha entrara para a história literária do Brasil com a publicação do livro
Os Sertões (1903) mostrando como a política republicana da ordem e do progresso
havia construído um cenário de guerra e terror no sertão baiano.
Autor de formação positivista e engenheiro militar de carreira, atuara como
jornalista do Estado de São Paulo (de vertente republicana), nos sertões baianos. A
experiência de Canudos modificara a visão de Euclides da Cunha sobre o governo
republicano e sobre os chamados sertanejos.
Os seguidores de Antônio Conselheiro não eram como o governo divulgava;
inimigos da pátria e muito menos bandidos sem escrúpulos. População humilde e
humilhada, os sertanejos representavam todas as contradições: o litoral e o sertão.
Após esta experiência trágica e reveladora, Euclides da Cunha passa a nutrir
um interesse cada vez maior de conhecer a Amazônia. Sua ambição, ao contrário da
maior parte dos escritores de seu tempo, não era pela Europa, mas pelo interior do
Brasil. Como nos mostra Leandro Tocantins, ao analisar algumas cartas enviadas por
Euclides a amigos falando do sonho de fazer uma viagem ao Acre (TOCANTINS,
1966, p. 21).
Articulado por amigos e viabilizado pelo ministro Barão do Rio Branco,
Euclides da Cunha é nomeado chefe da comissão brasileira que comporia a comissão
mista Brasil/Peru para reconhecimento dos limites e fronteiras.
Antes dessa experiência in loco, Euclides da Cunha já havia escrito um artigo
intitulado Conflito Inevitável, em que analisava, à luz da sociologia política, as incursões
dos peruanos no rio Purus.
O principal documento dessa expedição é o relatório entregue ao Ministério
das Relações Exteriores e publicado pela Imprensa Nacional em 1906. Este relatório
encontra-se nas obras completas de Euclides da Cunha (1966).
O documento revela a perspectiva de Euclides da Cunha sobre a Amazônia.
Dividido em sete seções, o relatório esclarece os motivos e as condições da viagem,
Cenários da Fronteira:
o rio
Purus e o pensamento social na Amazônia
27
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
os integrantes das comissões brasileiras e peruanas e a viagem de subida do rio com
identificação dos principais afluentes do Purus.
Os tópicos subsequentes exploram as condições climáticas, os caracteres
físicos da região e seus povoadores, a história e a geografia da região, bem como o
povoamento, fechando com uma análise das condições de navegabilidade do rio.
Alguns pontos podem ser destacados para análise. O primeiro e mais
importante deles é a permanência de Euclides da Cunha dentro do quadro natural
e biológico de leitura da realidade. Embora alguns textos estejam permeados pela
denúncia da situação trágica dos seringueiros do Alto Purus, o substrato arqueológico,
o solo comum, para usarmos uma expressão de Foucault, são as determinações da
geografia e da biologia.
Dentro desse contexto, os agentes sociais são analisados a partir de uma
posição passiva diante da realidade que os cerca. É o caso do seringueiro que se
vinga de sua situação construindo um espantalho de si próprio (Judas Asvero).
Os povos indígenas são silenciados, como se fosse natural o processo
de incorporação desses sujeitos à sociedade nacional, transformando-os em
trabalhadores nacionais. No relatório sobre o Purus os índios são citados em
meia página. São os Mura, os Jamamadi, os Hipurina, os Campa, os Pana, Pamari,
Manateneri. Não são poucos os povos citados em alguns parágrafos, no entanto, o
relatório relativamente extenso silencia sobre esses povos do Purus.
Como ressalta o professor Renan Freitas Pinto, a visão modernizadora
de Euclides da Cunha enxerga nos povos indígenas empecilhos, obstáculos ao
progresso (FREITAS PINTO, 2010, p. 14).
Apesar da experiência trágica de Canudos, Euclides da Cunha permanecia
aferrado à ideia de progresso, daí que uma das maiores preocupações da viagem era
justamente com as condições de navegabilidade do rio Purus, quais as potencialidades
econômicas da região (definida, sobretudo, do ponto de vista geográfico), a
necessidade de melhorar trechos do rio e principalmente manter uma navegação
regular até as cabeceiras do rio.
As reflexões de Euclides da Cunha estão em continuidade com muitas das
ideias formuladas no final do século 19 para se pensar a Amazônia, e irão fornecer
um quadro conceitual e uma maneira específica de perceber a Amazônia que irá
perdurar até a segunda metade do século 20.
Dizer isso de Euclides da Cunha não é desmerecer sua forma de abordagem,
pelo contrário, é mostrar até que ponto ele incorporou uma perspectiva e conseguiu
impor um modelo analítico utilizado por autores das mais diversas correntes
teóricas.
No entanto, tal esquema interpretativo também possui os seus limites e suas
contradiçoes, produzindo assim silêncios e invisibilidades. O objetivo a partir daqui
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Álbum Purus
Davi Avelino Leal
é explorar como a perspectiva euclidiana foi incorporada pelo pensamento social
que problematizou a Amazônia no século 20.
Euclides da Cunha, o pensamento social e o suposto homem amazônico
Durante quase todo o século 20, o pensamento social na Amazônia, no
que tange sua abordagem social, tem se caracterizado pela marca dos estudos de
Euclides da Cunha. O autor de Os Sertões e À Margem da História, considerado, por
muitos, como um dos primeiros a interpretar cientificamente a sociedade brasileira,
contribuiu sensivelmente para a formação do pensamento social brasileiro.
Seguindo as indicações de Péricles de Moraes (1959), autor de Os Intérpretes
da Amazônia, e Selda Vale da Costa, autora da tese Labirintos do Saber: Nunes Pereira e
as Culturas Amazônicas (1997), Euclides da Cunha é um autor que, de fato, influenciou
todo um campo de pensamento na Amazônia.
Um dos pontos possíveis de perceber a importância de Euclides da Cunha
na reflexão da grande parte de autores que problematizaram a Amazônia é com
relação ao chamado “homem amazônico”.
Esse “homem amazônico” é caracterizado como o seringueiro “mestiço”
que desbrava os sertões. A mestiçagem para Euclides da Cunha não seria algo
totalmente negativo como pregava Gobineau.
Retomando a discussão das raças do final do século 19 e introduzindo a
problemática da nação, Euclides da Cunha acredita que a mestiçagem e o processo
de branqueamento da população estão na raiz da formação do Estado brasileiro.
A preocupação de Euclides da Cunha em compreender como está formado
o Estado brasileiro o leva a entender a multiplicidade étnica da nação. Nesse sentido,
os nordestinos seriam o elo entre o norte e o restante do País; sendo que o elemento
indígena, transformado em trabalhador nacional, ficaria de fora por ser considerado
uma raça inferior não integrada ao objetivo de construção de um Estado nacional
forte. Segundo Ventura,
Mesmo partindo do pressuposto da inferioridade das raças não
brancas e dos prejuízos da mestiçagem, Euclides negou a primazia
evolutiva das populações litorâneas e inverteu a oposição entre
litoral e sertão. Ao afirmar o caráter específico da miscigenação
sertaneja, expandiu a ideia de nação e valorizou o País do interior
em vez do litoral, em contato com o exterior. Nos sertões se
localizariam os contornos de uma cultura nacional, original
quanto aos padrões metropolitanos de civilização (VENTURA,
1991, p. 55).
Cenários da Fronteira:
o rio
Purus e o pensamento social na Amazônia
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Para a Amazônia, a dualidade se mostra nas imagens construídas entre o
Paraíso Perdido e o Inferno Verde. Esse antagonismo seria próprio do sertão, sendo que
este é entendido como nos explica Custódia Sena:
A etimologia da palavra sertão – sertaão, certão – usada pelos
primeiros navegantes portugueses para designar o interior da
África e do Brasil, em oposição ao mar e ao litoral, aponta
para um lugar distante, vazio, isolado, inóspito, desconhecido,
e subsequente, rude, atrasado, decadente e inferior. A
essa desvalorização simbólica dos espaços do sertão, viria
a se juntar, ainda nos primeiros momentos do processo de
construção do território brasileiro, a dimensão positiva de
vazio a ser conquistado e ocupado, referente de grandeza do
nosso patrimônio geográfico. Mais contemporaneamente, a
definição de sertão passa a medir o descompasso entre formas
de organização social e da cultura expresso na noção de atraso,
enquanto que a dimensão positiva incorpora a fronteira interna
como lugar de encontro do impulso civilizador com os valores
autênticos de nacionalidade. É com esse sentido que ganham
força mobilizadora, por exemplo, as utopias nacionalistas e os
valores civilizatórios e os valores de civilidade (SENA, 2003,
p. 117-118).
Nesse sertão, a natureza é considerada a geradora de conflitos, a selva
amazônica aparece como a determinante das relações sociais (GONDIM, 1994),
sendo pensada como um cárcere de ferro, onde os seringueiros se transformam
passivamente em Judas Asvero. Segundo Gerson Albuquerque:
Em Euclides da Cunha, o trabalhador extrativista aparece como
um “degredado que se degrada”, confirmando um olhar que o
condiciona à inércia, à petrificação da subserviência frente ao
meio ambiente amazônico e ao patrão do seringal. Desprovido
da sua condição de sujeito, o seringueiro é visto como um ser
deslocado no tempo e no espaço, abandonado a um auto-flagelo,
um judas descendo o rio, um agrupamento social à margem da
história (ALBUQUERQUE, 2001, p. 25).
Essa marca euclidiana está presente em muitos autores que pensaram
a Amazônia a partir da década de 1930. A própria organização e estrutura dos
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Álbum Purus
Davi Avelino Leal
trabalhos sobre a Amazônia seguem essa lógica. Os trabalhos iniciam com uma
abordagem do quadro natural, a terra, os aspectos nosológicos e fisiográficos para,
então, abordar o homem e a cultura.
Nesse modelo teórico o homem só pode ser pensado como elemento
passivo do processo, o qual está determinado pela natureza. Essa ideia de homem
passivo e isolado está muito próxima à imagem de um primitivismo que a civilização
precisa conquistar, pois esse mesmo homem é o que tem de mais autêntico em
nossa nacionalidade.
Segundo Renan Freitas Pinto (2006), em A Viagem das Ideias, havia a
concepção de que a história humana é uma parte da história natural. Tal ideia já está
presente nos escritos de Buffon sobre a região. Segundo Renan,
Buffon, portanto, caracteriza a Amazônia como um experimento
da natureza ainda em formação, mas apresentando condições
desfavoráveis ao pleno desenvolvimento das formas de vida
naturais e humanas. Essas ideias se propagaram e foram
em alguma medida adotadas por autores até o presente e
contribuindo para cimentar as ideias mais correntes do senso
comum da região (FREITAS PINTO, 2006, p. 20).
É impossível não perceber a proximidade com as considerações de Euclides
da Cunha sobre a região, logo, o autor de Os Sertões, ao comentar suas impressões
gerais sobre a Amazônia, explicita a ideia:
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a
uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso
impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando
a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso
salão. E encontrou uma opulenta desordem [...] Depois há o
incoercível da fatalidade física. Aquela natureza soberana e
brutal, em pleno expandir de suas energias, é uma adversária do
homem (CUNHA, 2003, p. 34-48).
Ao nos debruçarmos sobre alguns trabalhos da historiografia regional e
do pensamento social amazônico percebemos que estas características presentes
em Euclides da Cunha ocupam um lugar central na engrenagem do pensamento
amazônico. Em Amazônia: A Terra e o Homem, de Cláudio Araújo Lima, obra da
década de 1930, o autor procura fazer uma leitura sociológica das relações de
trabalho e da economia amazônica no contexto do período da borracha.
Cenários da Fronteira:
o rio
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Segundo Araújo Lima, havia dois tipos de seringueiros: o seringueiro
proprietário, também conhecido como patrão, e o seringueiro extrator; por isso,
nesse contexto, existiam apenas duas classes: a dos que mandavam e a dos que
obedeciam. Vejamos o que diz o autor:
não havia, pois, uma aristocracia de sangue nem de cultura,
mas tão somente o êxito de uma casta privilegiada, poderosa
e dominadora – a dos patrões, à qual se subordinavam os
escravizados ao trabalho insano, nos centros de extração do leite
de seringueira (ARAÚJO LIMA, 1945, p. 156).
Por essa citação, entende-se que, apesar de reconhecer a exploração do
seringueiro no seu trabalho insano, ele, o seringueiro, continua sendo encarado
como um ser passivo, incapacitado para responder aos mandos do patrão, um infeliz
condenado à sua condição.
Outro importante trabalho, embora pouco citado, sobre a vida dos
seringueiros, na região amazônica, é o clássico O Seringal e o Seringueiro de Arthur
Cézar Ferreira Reis. O estudo de Reis, de natureza socioantropológica, tem como
objetivo contribuir com a historiografia para o melhor entendimento da questão.
Por um lado o trabalho de Reis é um convite para pensar alguns aspectos,
no tocante à indicação de que é preciso fazer uma releitura mais cultural da vivência
nos seringais, principalmente se quisermos fugir do que já existe. Por outro lado,
fica nítido como Arthur Reis, que prefaciou uma das edições de Amazônia: um paraíso
perdido, permanece atrelado ao modelo fornecido por Euclides.
O autor de O Seringal e o Seringueiro atribui ao meio natural todos os
infortúnios nos seringais e, o homem nunca é responsabilizado pelas atrocidades
que comete, sendo sempre culpa do meio ambiente ou das estruturas que sufocam
os agentes sociais. A dimensão do conflito, da exploração da mão de obra, ocupa
um plano secundário. A ênfase recai ora em um certo “vínculo de solidariedade”
que existia no seringal, aspecto que não deixa de ter sua validade, ora na estrutura
do aviamento, que onerava o chamado aviador, o seringalista e, “lamentavelmente”,
o seringueiro. Vejamos o que menciona o autor:
Tais relações, no entanto, devem ser explicadas pela barbária
do meio-natureza e do meio-sociedade em formação. Porque,
se o aviador e o seringalista exploram o seringueiro, este não se
comporta melhor. Vinga-se com as armas de que dispõe e de
acordo com o primarismo de sua inteligência, das coisas e dos
homens. Assim é que negocia às escondidas a produção de sua
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Álbum Purus
Davi Avelino Leal
safra, lesando o seringalista, entrega-se à madraçaria diminuindo
a produção ou extraindo o látex por processo proibido para
aumentar a purgação a dispor de safra maior que lhe garantirá
saldo-credor (REIS, 1997, p. 178).
Arthur Reis reconhece que o seringueiro não aceita passivamente a
exploração a qual está submetido, embora deixe claro que a resistência dá-se de
acordo com o primarismo de inteligência do seringueiro. Em outra passagem da
obra podemos notar com maior nitidez a perspectiva do autor:
[...] ora, é preciso compreendê-lo [patrão] no meio social de onde
veio e em que vive. Lidando com homens, só com homens,
dominados pela angústia do isolamento na floresta, não pode,
absolutamente, ser um tipo de salão, de gestos maneirosos,
revelando educação aprimorada. O respeito que impõe, a direção
que precisa dar aos negócios do seringal exigi-lhe ação pronta,
enérgica e explica a aspereza. Tem de ser dinâmico, rude, talvez
tirânico. Qualquer fraqueza, qualquer indecisão pode levar a
um desastre. O senhorio que exerce precisa ser mantido sem
hesitações. Lança mão de recursos bárbaros, muitas vezes para
poder conter o desenfreio natural do ambiente duro, é verdade
(REIS, 1997, p. 223).
Nas palavras de Reis, é natural que o patrão proceda desta forma, o ambiente
social e natural duro não só justifica tal postura como a torna necessária. Esta crítica
historiográfica não diminui a importância histórica da obra de Arthur Reis para a
historiografia amazonense (FREIRE, 2004); porém, concordando com a reflexão
crítica de Mauro Coelho que nos diz em sua obra:
Arthur Cézar Ferreira Reis adotou, em larga medida, uma
postura crédula diante dos textos do período, tomando muitas
vezes o dito pelo feito. As fontes foram entendidas como reflexo
do vivido. Seu procedimento analítico percebeu os elementos
de ligação entre os diversos fenômenos como sendo aqueles
apontados pelos textos. A ideia de um contexto, de uma lógica
subjacente, de uma determinação organizadora dos fenômenos
mesmos, a visão dos registros documentais como uma construção
deliberada dos grupos sociais aos quais pertenciam seus autores não
é presente, em muitos dos seus escritos (COELHO, 2001, p. 169).
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o rio
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Mauro Coelho tem razão ao afirmar que muitas vezes Arthur Reis tomou
o dito pelo feito, ainda mais quando sua postura analítica está fundamentada na
descrição dos “grandes feitos dos grandes homens”, com fortes doses de história
administrativa, pautada em acontecimentos, ligada, estritamente, a documentos
oficiais, onde as perguntas quem? onde? e quando? garantiriam a objetividade do
historiador. Isso, porém, se deve muito mais à escolha de determinada postura
teórica, seguida de forma coerente, em detrimento do que a simples constatação de
que o autor servia aos interesses da elite local.
Outro autor importante neste cenário historiográfico é Leandro Tocantins,
que em Amazônia: natureza, homem e tempo, apresenta argumentos que não são tão
diferenciados dos apresentados por Artur Reis. Mais uma vez a natureza condiciona
o homem e suas atrocidades, tornando a exploração da borracha em uma
neosservidão:
[...] o seringueiro assim como um homem bionicamente verde.
Ecologicamente situado, mas socialmente perdido: em seus
direitos humanos, em toda dignidade de ser homem. Perdido
pela natureza autocrata, pelo patrão prepotente, patrão envolto
pela agressividade do meio, cumprindo as normas inflexíveis de
um sistema social monstruosamente arquitetado. Sistema que a
própria natureza condicionou: abriu caminhos para implantar-se
uma neoescravidão (TOCANTINS, 1982, p. 104).
Em Amazônia: Formação Social e Cultural, Samuel Benchimol (1999) observa
os seringueiros, ainda na condição de “brabos”, como meros expectadores de sua
situação, passivo diante de tudo e de todos:
[...] os brabos eram entregues à sua própria sorte, condenados a
sobreviver como pudessem, nos centros, nas colocações e nos
tapiris. Ou ficavam amontoados e ociosos nos barracões do
patrão, à espera inquieta do verão que não chegava para o início
do fabrico, as dívidas crescendo, a maleita os dizimando, pouco
a pouco extinguindo a chama da esperança e a vontade a luta
(BENCHIMOL, 1999, p. 149).
Não pretendemos esgotar a leitura destes autores, ligados fortemente à
tradição euclidiana, nem acreditamos que os trabalhos de Euclides foram os únicos
a fundamentarem estas obras. É preciso, porém, que se diga que essa postura
determinou, durante quase seis décadas, os trabalhos da historiografia regional.
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Álbum Purus
Davi Avelino Leal
Nesse sentido, Euclides da Cunha pode ser considerado um autor-chave,
um fundador de discursividade sobre a Amazônia, muito embora suas fontes
(Buffon, Hegel, Rodrigues Ferreira) sejam desconhecidas e ignoradas pelos autores
que utilizam a obra de Euclides da Cunha (FREITAS PINTO, 2010, p.8).
Esse desconhecimento das bases teóricas não significa ausência de teoria,
pois ela é incorporada no discurso como algo “naturalizável” e autoevidente, como
destaca Geraldo Mártires Coelho:
Com efeito, a historiografia que se produziu até recentemente,
seguiu bem de perto o modelo oitocentista criado pelo Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro. Pesquisadores e historiadores
regionais, ou autodidatas ou formados em áreas do saber
que não a história, seguiram os passos dos pais fundadores
da historiografia brasileira contemporânea. Atrelados a uma
leitura essencialmente política e factual do processo histórico
regional, ligeiramente matizada por uma inspiração positivista
maltrabalhada, construíram uma narrativa deslocada de sua
realidade maior. Uma crônica oficializada do poder e da
conquista, de governadores e generais, de portentados e de
bispos, extremamente regionalizada e localizada. Uma crônica
portanto reveladora do olhar hierarquizado que organizou a
sociedade de forma extremamente demarcada. Natural, pois,
que nesse tipo de historiografia, índios e negros, por exemplo,
figurem quase sempre de forma acessória, que ingenuinamente
trabalhados, que fortemente discriminados, o que acaba sendo
faces de uma mesma moeda, a de uma sociedade e sua cultura
virtualmente ausentes (COELHO, 1994, p. 182).
A partir da década de setenta, a historiografia brasileira começa a
passar por profundas transformações. A explosão de teses e dissertações, nas
universidades, contribuiu grandemente para a revisão de pressupostos que haviam
orientado, durante muito tempo, as pesquisas historiográficas. As contribuições da
historiografia francesa dos annales e a perspectiva aberta pela história social inglesa
foram retomadas, a partir de uma contextualização, pela historiografia nacional.
Cenários da Fronteira:
o rio
Purus e o pensamento social na Amazônia
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Cenários da Fronteira:
o rio
Purus e o pensamento social na Amazônia
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Anotações sobre o rio Purus de Euclides da Cunha
Renan Freitas Pinto
O sentimento mais forte que nos envolve ao buscarmos
empreender uma leitura mais cuidadosa e intencionalmente
mais crítica dos autores que se tornaram reconhecidos como
intérpretes da Amazônia, é que suas obras estão, de um modo
geral, marcadas por limitações que poderíamos caracterizar
inicialmente como seu traço, digamos, comum, ou seja, uma
relativa pobreza em termos de seu diálogo com as mais
representativas correntes de pensamento e movimento de
ideias que marcam fortemente o debate e a luta intelectual de
seus respectivos tempos.
Há, portanto, um reconhecimento cada vez mais
patente de que as obras desses autores revelam, constante e
sistematicamente, limitações e mesmo ausências teóricas que
se tornam comprometedoras, reforçando, às vezes de modo
profundo, o perfil provinciano e anacrônico desses autores.
E isso ocorre frequentemente quando buscamos identificar
em suas obras quais as interlocuções que estão acontecendo,
quais os seus pontos de partida teóricos e ideológicos e de
que maneira esses elementos estão oferecendo suporte aos
seus posicionamentos. E é o próprio Euclides da Cunha
que nos adverte para o fato de que, apesar da independência
proclamada, na verdade, “vivemos em pleno colonato
espiritual, quase um século após a autonomia política. Desde
a construção das frases ao seriar das ideias, respeitamos em
excesso os preceitos das culturas exóticas”.
Isso porque estamos convencidos de que, por trás
da obra de cada um desses autores deve existir um corpo
de crenças e de convicções que terminam por fornecer uma
perspectiva de compreensão do mundo, assim como às
vezes se manifesta uma combinação de traços de visões de
mundo, diferentes e mesmo antagônicas, que o autor articula
e retraça.
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Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
Essa situação denuncia, em primeiro lugar, um atraso teórico e mesmo um
relativo vazio teórico que é muito frequente na obra de autores representativos da
cultura brasileira, cuja formação era fundamentalmente produto do autodidatismo
e do diletantismo, de um lado e, de outro, de suas afiliações a correntes filosóficas e
políticas carregadas de conteúdos valorativos, quase sempre maldigeridas.
Outra questão daí decorrente que também não pode ser negligenciada nessas
leituras, habitualmente assimiladas aos fragmentos, é o fato de que essas obras,
nessas circunstâncias, terminaram por criar ou fortalecer tradições de pensamento
que se tornaram ingredientes de nossos modos de representar a formação social e
cultural brasileira e também dos modos de nos autorrepresentarmos a partir quase
sempre de matrizes deslocadas de seus conteúdos originais.
Pensamento brasileiro e tradição racista
O exemplo mais notório que certamente tem, em boa parte, origem nesses
autores é a tradição racista que eles ajudaram a semear. Para isso, podemos nos
limitar ao próprio exemplo de Euclides da Cunha e da forma como ele se refere
à formação do povo brasileiro, aos tipos humanos que integram as camadas e os
setores “de baixo”, como, por exemplo, “raça inferior”, “selvagem bronco”, “subraças”. O próprio uso de termos depreciativos como: negro, mulato, índio, mestiço,
miscigenado, caboclo, ribeirinho, pardo, cafuzo e mameluco, denunciam um modo
racista e discriminador de lidar com os temas relacionados com a questão da
formação sociocultural da sociedade brasileira.
Referindo-se ao processo inicial da formação da população do Brasil colônia,
destaca a falta de regras morais capazes de conter “a mancebia com as caboclas”
que logo descambou “em franca devassidão, de que nem o clero se isentava”.
E, em lugar de ficarmos justificando que esse modo odioso de pensar é uma
característica de sua geração, que devemos atentar para o anacronismo de julgarmos
as ideias correspondentes a uma determinada época ou lugar, com os nossos modos
de pensar atuais, ou ainda de que o modo de pensar desses autores expressam
forçosamente um modo datado de mencionar os elementos constituintes das
sociedades saídas da condição colonial e outros argumentos do gênero, deveríamos
insistir mais na ideia de que esses modos de pensar e de interpretar nossa formação
social, tiveram um papel decisivo, norteador mesmo, na propagação, em ampla e
profunda escala, das ideias racistas e igualmente do modo intolerante e estigmatizador
de tratar os setores sociais ligados ao que se tratava como sub-raças, ou seja, o que
não era de origem, quem sabe, não mestiça, pretensamente europeia ou branca.
Essas denominações pareciam indicar que aqueles que as usavam se encontravam
em posição tal, que viam os outros lá do alto.
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
E, considerando, por exemplo, o enorme prestígio que Euclides da Cunha
conquistou e continua conquistando, não podemos desprender de sua obra e de
seu modo de pensar o Brasil, essa herança que é também positivista, darwinista,
evolucionista, elitista, que ele se permite fundir com convicções pretendidamente
socialistas, que certamente estão presentes de modo constante também em seu
pensamento, sendo o exemplo mais forte nesse sentido a publicação do programa
de “O Proletário” com a Mensagem aos Trabalhadores, redigida em 21 princípios,
entre os quais, como ilustração, podemos destacar:
- Proibição do trabalho das crianças de qualquer dos sexos até a idade
de 14 ou l5 anos;
- Substituição das forças armadas pelo povo armado;
- Justiça gratuita para todos;
- Emancipação da mulher, reconhecendo-se-lhes iguais direitos e iguais
deveres aos do homem, inclusive o de votar e ser votadas;
- Impostos diretos e pesadíssimos sobre a renda.
A esses princípios visando o fortalecimento da classe trabalhadora “pela
exata distribuição da justiça e pela abolição dos privilégios oriundo, quer do
nascimento, quer da fortuna, quer da força, Euclides da Cunha redige mensagem
com o objetivo de sugerir que sejam amplamente divulgados, a partir daquele 1.º
de maio, “os princípios essenciais do programa socialista” entre todas as classes
sociais.1
Consideramos necessário destacar do conjunto dos escritos de Euclides da
Cunha essas e outras referências às suas convicções socialistas para compreendermos
de forma mais clara o seu interesse pela questão social que está fortemente
marcada em Os Sertões e ao conjunto de escritos que produziu sobre a situação dos
trabalhadores seringueiros e caucheiros e igualmente a dos grupos subalternos em
condições bastante diferenciadas em toda a Amazônia. Sobretudo para percebermos
com maior clareza o que poderíamos reconhecer como uma visão contraditória e
mesmo paradoxal, como buscaremos indicar ao longo do presente ensaio. Uma
dessas contradições refere-se à defesa de um futuro socialista para o povo brasileiro
e os modos preconceituosos com os quais caracteriza precisamente as camadas dos
trabalhadores e grupos étnicos do Norte e do Nordeste.
É assim que, quando se refere à mestiçagem, considera a mistura de muitas raças,
“na maioria dos casos, prejudicial”, acrescentando que “a mestiçagem extremada é
1 Euclides da Cunha, Obra Completa, vol. I, p.528-529.
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Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
um retrocesso”. E logo mais adiante adverte que “o mestiço – traço de união entre
raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares – é,
quase sempre, um desequilibrado”.2
Se a disseminação dos estudos universitários especializados não chegou
a substituir plenamente esse traço identificador das interpretações do Brasil por
parte desses autores, mas certamente inaugurou uma nova situação de diálogo mais
estreito e mais direto com as correntes de pensamento da contemporaneidade,
reduzindo de forma crescente o amadorismo e ausência do trabalho investigativo
sistemático, dessa forma ensaiando um novo padrão de trabalho intelectual.
A Amazônia em Os Sertões
A leitura de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, a rigor, já está em Os
Sertões e isso já possui uma importância especial, no sentido de que sua percepção
do atraso da formação brasileira envolvia de modo mais intenso e contrastante as
regiões Norte e Nordeste. A abordagem da Amazônia é também constitutiva daquilo
que nos habituamos a chamar da Questão Região-Nação e aparece igualmente em
outros textos avulsos que produziu para abordar essa questão que está sempre
relacionada com as formas assumidas por nosso atraso cultural e científico.
Para nos fixarmos na constatação de que sua abordagem sobre a Amazônia
já está fortemente em Os Sertões, é ilustrativa a referência a passagens em que se
reporta ao clima do Pará, do qual aponta algumas de suas singularidades, entre elas
a sua constância que faz com que, durante um só dia, se complete o ciclo de todas
as estações, sendo também baixíssimas as oscilações de temperatura durante todo
o ano, fazendo com que “a vida se equilibre numa constância imperturbável”.3 E,
logo adiante, descreve, como em muitas outras passagens, a inutilidade do esforço
humano em vencer os obstáculos dessa paisagem descontrolada e hostil. Assim,
tanto as enchentes que representam uma parada na vida,
preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda então, com
estoicismo raro, a fatalidade incoercível, o termo daquele
inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o
verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali
se agitam, do único modo compatível com a natureza que
se demasia em manifestações díspares tornando impossível
a continuidade de quaisquer esforços.
2 Idem, Obra Completa, v. II, p. 166-167.
3 Idem, v. II, p. 166.
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
41
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
E prosseguindo em sua caracterização negativa desses sertões mais ao norte,
escreve que “o calor úmido das paragens amazonenses, por ex., deprime e exaure.4
Euclides da Cunha, referindo ao efeito desagregador das condições físicas
presentes na Amazônia, relaciona-as com o princípio da seleção natural que:
em tal meio opera-se à custa de compromissos graves com
as funções centrais do cérebro, numa progressão inversa
prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o
físico, firmando inexoravelmente a vitória das expansões
instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem,
como consequências únicas, a máxima energia orgânica, a
mínima fortaleza moral.
Euclides da Cunha termina em reiterar, complementando-as com outras
noções desfavoráveis ao estabelecimento do homem nas regiões tropicais, as ideias
expostas por inúmeros autores em boa parte, hoje relativamente esquecidos, mas
também de autores de amplo reconhecimento como Buffon, Hegel e Alexandre
Rodrigues Ferreira, em relação ao efeito destruidor, tanto no plano físico quanto
no plano moral, exercido por essas regiões sobre o homem, sendo os nativos
racialmente inferiores por serem fruto dessas condições dominantes e esmagadoras.
Vale a pena transcrever o seguinte trecho, bastante ilustrativo da presença dessas
ideias em sua percepção das regiões brasileiras ditas atrasadas: “A aclimação traduz
uma evolução regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe
transmite à descendência até à extinção total”.5
E logo adiante menciona a experiência do português que em contato com
essas condições, ao fim de pouco tempo, tem alterados os seus caracteres físicos e
morais, para finalmente ser dominado pela raça inferior.
Dessa forma, percebe na formação brasileira duas sociedades que se
constituem em oposição, de todo indiferentes ao modo de ser, uma da outra. De
um lado, a parcela de origem mais predominantemente europeia, que se fixou
mais intensamente no Brasil meridional e aí desenvolveu práticas econômicas mais
racionais e mais dinâmicas, e do outro, a parcela caracterizada pelo primitivismo,
rusticidade e arcaísmo de seus modos de vida e de relações predatórias com o seu
meio, fixando padrões de atraso e de afastamento dos elementos de progresso que
se afirmam como desigualdades entre as regiões Norte e Sul.
4 Idem, v. II, p 146.
5 Idem, Obra Completa, v. II, p. 148.
42
Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
Está presente, portanto, na obra de Euclides da Cunha, combinada com
outras, a tese hegeliana dos povos sem história, daqueles povos que em razão de
vários fatores, dentre eles o da severidade extrema das condições naturais que
torna praticamente impossível o desenvolvimento de forças produtivas capazes de
sustentar o surgimento e a fixação dos traços indispensáveis ao surgimento de uma
sociedade civil, como serão a instituição do trabalho livre e consequentemente do
mercado e da emergência das liberdades civis, necessárias para garantir o ambiente
contratual dessa sociedade. Esses traços, na época em que Euclides da Cunha
empreendia sua investigação e depois suas observações diretas na Amazônia, estavam
ainda ausentes no interior de uma sociedade que se construía à margem desses
componentes, portanto, à margem da história, no sentido em que esta é desenhada
no monumental projeto da revolução burguesa que encontra no pensamento de
Hegel uma das suas expressões mais completas.
Imaginando ainda, a propósito de Os Sertões, que Euclides da Cunha tivesse
realizado como declaradamente pretendia, obra de dimensão semelhante para
vingar a Amazônia, podemos nos dar a liberdade de imaginar que ele construiria
um plano para essa obra que seria comparável ao roteiro que encontramos em sua
obra sobre, na verdade, não o Nordeste brasileiro, mas um certo Nordeste que ele
ali nos oferece por meio de Os Sertões, em recorte brutal, expressionista.
Assim iniciaria também por descrever em capítulo dedicado à Terra e a
todos os aspectos geológicos, hidrográficos, topográficos e climáticos, a morfologia
e distribuição geográfica da vegetação, dos rios e das populações em sua constituição
típica. Faria como aconteceu em Os Sertões, seguidas comparações com outras
paisagens, como recurso capaz de fixar os traços inconfundíveis da hilea. Da mesma
forma que caracterizou parte do Nordeste como cenário das secas e do clima
agreste, certamente iria se prolongar nas caracterizações diferenciadas, a partir do
clima típico da rain forest.
No capítulo V de Os Sertões, Euclides da Cunha nos surpreende com uma
referência textual a Hegel, qual seja, Uma categoria Geográfica que Hegel não citou (p. 127),
provavelmente mencionando as Lições de Filosofia da História, obra na qual Hegel se
ocupa entre as demais, das diferentes regiões do Novo Mundo. Ele, entretanto, não
oferece mais detalhes quanto a referência à obra do filósofo, mas chama a atenção
o fato de estar reproduzindo, tanto em relação ao Nordeste quanto à Amazônia,
ideias que estão presentes no pensamento de Hegel sobre os povos desprovidos
de história ou a caminho de construírem sua história, como era o caso de suas
referências aos Estados Unidos da América do Norte.
A propósito da ocupação da Amazônia, Euclides da Cunha nos adverte para
que não esqueçamos que o homem atua como “agente geológico notável” (p. 130)
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
43
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
e que na região em questão tudo começou “por um desastroso legado indígena”
pois a agricultura tivera como elemento fundamental o fogo e consequentemente
a destruição.
As ideias de Euclides da Cunha, do mesmo modo que as de outros intérpretes
do Brasil e da Amazônia, devem ser reexaminadas e portanto redescobertas a partir
de novos fundamentos interpretativos sugeridos por pensadores que, na atualidade,
fornecem a direção de vários caminhos a serem trilhados, sobretudo recorrendo
às possibilidades da hermenêutica, ou seja, do desvendamento, da tradução, do
desencobrimento, do conflito das interpretações, para lembrarmos algumas de suas
operações.
E a respeito desses filósofos, uma pergunta deve nos inquietar. A pergunta
é: Como enfrentarmos hoje, sem o reconhecimento das diferentes contribuições
que eles trouxeram, as nossas tarefas de busca, de conhecimento e de reflexão,
de descobertas de novos caminhos e modos de interrogação, sem colocarmos em
nossos percursos de busca as ideias desses criadores do pensamento contemporâneo
entre os quais não devemos esquecer os nomes de Husserl, Heidegger, Gadamer,
Ricoeur, Bachelard, Adorno, Horkheimer, Habermas, entre outros?
Esses autores foram os responsáveis pela grande virada que sofreu o
campo interpretativo, melhor seria dizer, hermenêutico, e seus mais distintos e
surpreendentes caminhos. Nesse campo hermenêutico vêm sendo articulados
diversos pontos de partida e diversos caminhos assinalados por diferentes tradições
epistemológicas e de método entre as quais cabe lembrar as novas abordagens no
campo da história, a linguística, a teoria social crítica, a teoria da ação comunicativa,
a psicanálise, a fenomenologia e a análise do discurso e das narrativas, para citar as
principais.
Portanto, o que aqui propugnamos como a necessidade de relermos a obra e
o pensamento de Euclides Cunha, na verdade significa a necessidade de buscarmos
incluir na interpretação de nossos autores emblemáticos um novo instrumental, esse
conjunto bastante diversificado de ferramentas metodológicas que nos estimulam a
voltar a ler autores sob novos prismas teóricos, alargando, assim, consideravelmente
nossas possibilidades de redescobrirmos essas obras, desvelando-as, traduzindo-as
sob a perspectiva teórica desses autores.
Anotações sobre o Purus
O rio Purus assumiu na obra de Euclides da Cunha uma posição destacada,
pois foi transformado numa espécie de representação, não apenas do sistema fluvial
amazônico em sua totalidade e diversidade, mas nos papéis sempre ambivalentes
44
Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
que os rios desempenham para o mundo da vida na Amazônia, ora permitindo
a penetração de todos espaços cortados pela imensa malha de afluentes de todas
extensões imagináveis e funcionando como o caminho natural para as populações,
para o transporte da produção econômica, da fonte do principal alimento regional
representado pela conhecida variedade de peixes, entre os vários elementos
favoráveis. Mas os rios da Amazônia, na margem dos quais estavam fixados os
povos indígenas, facilitaram grandemente o desmantelamento e destruição dessas
sociedades. Outros aspectos vistos como negativos devem ser lembrados e entre
eles as consequências de enchentes e vazantes que podem ser a escassez de peixe, a
destruição de plantações e as dificuldades de acesso à navegação.
A navegabilidade
Quanto ao aspecto da navegabilidade do Purus, o rio apresenta-se, segundo
Euclides da Cunha, não apenas como um dos mais navegáveis, mas como
apresentando certas vantagens que já haviam sido observadas por vários viajantes
e conhecedores do vale amazônico, entre eles o padre João Daniel, mencionado
com destaque, juntamente com Chandless e Bates. Portanto, são mencionadas por
Euclides da Cunha algumas situações relacionadas com o Purus como a presença
de furos e mesmo de passagens por trilhas, ambos usados para encurtar viagem,
evitando grandes volteios.
A navegação que se intensificou no período mais ativo do extrativismo da
borracha foi um dos pontos da fixação de aglomerados humanos, de vilas e cidades,
ao longo de todo o curso do rio. Chama a atenção em seus apontamentos de viagem
que havia seringais no Purus que, em virtude do adensamento dos movimentos
demográficos e da valorização econômica da extração da hevea, se constituíam em
verdadeiras pequenas cidades, pelo número de casas, barracões, igrejas e demais
edificações que o autor enumera em relação a seringais que se tornaram tão
conhecidos como as vilas e cidades.
Certamente sua contribuição para que os rios passassem a ser vistos como
as estradas naturais que tiveram papel privilegiado na ocupação, povoamento,
fluxo econômico de riquezas, meio de existência material e simbólica da sociedade
regional está em grande medida reconhecido na passagem de Os sertões que dedica
à função histórica do rio São Francisco, que teria, no caso da região Nordeste,
desempenhado o papel de caminho facilitador dos avanços dos sujeitos da expansão
territorial colonial, mas certamente em conexão com as outras possibilidades
de movimentação quer pelo litoral, quer mesmo por terra, mesmo quando se
apresentavam dificuldades para esses deslocamentos. Se pensarmos no papel que
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
45
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
os rios tiveram na ocupação da Amazônia, esse papel foi praticamente único, pois se
sobrepunha a qualquer outra possibilidade de ocupação e fixação humana dos novos
agentes coloniais, pois deve ser considerado o fato de que, historicamente foram
os rios que conduziram os povoamentos e movimentos demográficos indígenas,
anteriores aos empreendimentos portugueses e espanhóis de dominação e mesmo
de dizimação desses povos, movimentos esses que foram grandemente facilitados
pela grande malha fluvial que se espalhava por todo o vale amazônico, o que nos
possibilita atribuir aos seus rios papéis ambivalentes.
Nosso objetivo, portanto, é assinalar, a partir da leitura de seus textos que
se referem especificamente ao Purus, os pontos que avaliamos como os mais
significativos de sua representação desse rio da Amazônia que ele mesmo considerou
o mais rico do vale amazônico.
Assim pressupomos que as anotações que estamos pondo em destaque
devam ser lidas como a busca de uma síntese das ideias condutoras de Euclides
da Cunha para representar o significado que possuía o Purus para a ocupação e a
economia do Amazonas.
A realização da viagem ao longo do rio Purus encontra poucos motivos para
justificá-la da forma em que foi empreendida. Na verdade revela um desconhecimento
muito mais grave do que é revelado. Uma viagem que teve mais consequências
desastrosas e fiascos do que resultados proveitosos. Os próprios conhecimentos
que Euclides da Cunha revela em relação ao Purus, ele os obteve mais de suas
incansáveis e desordenadas leituras sobre a Amazônia do que de sua observação
direta, que foi muito curta e fortemente prejudicada pelas atribulações da viagem
como a falta de víveres, o tormento infligido pelos carapanãs, mutucas e outras
pragas infernais, enfermidades, intensa umidade e calor arrasador e até mesmo um
naufrágio. Nas condições em que foi empreendida a viagem, ou seja, contra todas
as indicações possíveis, é fácil supor que as informações coletadas e as observações
diretas ficaram muito reduzidas e prejudicadas e, em razão de todos esses aspectos,
nos perguntamos se essa viagem não teve um quê de insano.
As duas principais fontes
Euclides da Cunha, de fato, se valeu, sobretudo, das informações sobre o
rio Purus que encontrou em William Chandless e em Manoel Urbano, de quem
ele menciona em várias passagens de suas anotações várias referências cuja função
principal é evidenciar o conhecimento das duas fontes privilegiadas, mas também
destacar o que marca a diferença entre os tipos de conhecimento que cada um
deles desenvolvera, ou seja, o pesquisador inglês William Chandless, como o
46
Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
representante típico do homem de ciência e que portanto, trouxe para a Amazônia
uma contribuição científica que se desdobrou em várias frentes de investigação.
Manoel Urbano é apresentado como um natural da terra que se dedicou a conhecer
o vale do Purus, valendo-se de sua experiência como “um mestiço inteligente e
bravo que inegavelmente guiou os primeiros passos do grande explorador”6:
Estávamos finalmente, no ponto do grande rio de onde
avançaríamos para lugares nunca cientificamente explorados.
De fato William Chandless, com a sua prodigiosa tenacidade,
chegara até ali...
[...] Tratava-se, realmente, de longo trecho do Purus, por certo
bem conhecido de todos os caucheiros daquelas bandas, mas não
apresentando ainda à ciência geográfica, como o revela a mesma
circunstância de termos deparado ali o primeiro, e talvez o único
erro do ilustre Chandless no traçar o Cavaljani, como rumo de
todo falso de leste para oeste.
Sabe-se por esse tipo de anotação que Euclides da Cunha utilizou a carta
desenhada por William Chandless, fazendo nela algumas correções.
Reconhece que:
A geografia do Purus durante longos anos ficou inscrita nas linhas traçadas
por Chandless em 1867. E suas referências à qualidade dos apontamentos do
explorador inglês aparecem em vários outros momentos.
Um desses apontamentos que nos desperta a curiosidade refere-se a um
caucheiro peruano chamado Carlos Fitzcarraldo que, em 1890, descobriu um
varadouro que lhe permitiu, depois de muitas extraordinárias dificuldades, atravessar
do Ucaiale para o Madre de Dios.7
Os povos indígenas do Purus
A percepção que Euclides da Cunha tem da presença dos povos indígenas
é informada por sua visão de um pensador comprometido com as mudanças cuja
referência dominante é da modernidade, da necessidade de introduzir nas regiões
atrasadas do Brasil os fatores capazes de transformá-las em espaços das conquistas
da ciência e da técnica. A presença dos povos indígenas, portanto, é um obstáculo
6 Idem, Obra Completa, v. I, p. 705.
7 Idem, Obra Completa, v. I, p. 714-715.
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
47
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
para essas mudanças. Há uma incompatibilidade entre a permanência do estágio
primitivo, natural, em que vivem esses povos e as necessidades de mudança que
exigirão as inovações necessárias para se criarem novas bases econômicas para a
agricultura e a exploração dos recursos naturais em seu sentido mais abrangente.
Serve de exemplo para ilustrar o modo como Euclides da Cunha percebia
a situação do Brasil em face de suas populações indígenas e rurais a referência que
abaixo é feita do papel das estradas de ferro. Percebia aí um quadro de dificuldades
que deveriam ser suplantadas. Considera que as gentes sertanejas, com seus hábitos
antigos pouco contribuirão para que possamos vencer em curto tempo todo nosso
atraso e para isso usa o exemplo de seu desinteresse pelo progresso, mencionando a
locomotiva como um de seus mais fortes símbolos: “a locomotiva veloz, golfandolhes de improviso em pleno seio todas as exigências de um estado social superior,
não as atrairá”. E acrescenta, em relação ao papel das emigrações para atingirmos
esse estado social superior, que ao mesmo tempo coincidiria com as necessidades
dos países da Europa em se livrarem de seu excesso populacional.8
Portanto, o que existe nos apontamentos de Euclides da Cunha sobre o
Purus em relação às suas populações não são exatamente referências, pois ele prefere
remetê-las a outros autores que efetivamente se ocuparam da questão. É assim que
menciona a contribuição de Manoel Urbano, que se empenhou ao empreender o
primeiro trabalho de reconhecimento com dados seguros sobre o Purus e três de
seus principais afluentes, levantou simultaneamente informações “das várias tribos
que os povoavam”. Tanto é que essas informações surpreenderam, logo depois a
William Chandless, por sua exatidão, merecendo poucos reparos ulteriores.
Anota sobre Manoel Urbano da Encarnação o seguinte trecho esclarecedor
de seus vínculos étnicos com a população local, o que lhe facilitou sobremodo seu
trabalho de fundador de povoados, além de seu papel de mediador entre “as gentes
novas que buscavam aquele rio e as tribos bravias que lhe ocupavam as margens”:9
Estas tribos fervilhavam nas duas orlas do Purus.
Os muras, da foz ao Paranná-pixuna, aldeados em Beruri, no lago
Hiapuá.
[...]
Da foz do Jacaré a Huitanaã espalhavam-se os pamaris e juberis sob
o nome geral de puru-purus. Habilíssimos fabricantes de ubás
e incomparáveis remadores, viviam exclusivamente da pesca de
tartarugas e piraras, de onde lhes provinha a moléstia singular
8 Idem, Obra Completa, v. I, p. 498-499.
9 Idem, Obra Completa, v. I, p. 721.
48
Álbum Purus
Renan Freitas Pinto
que lhes salpintava a pele de numerosas manchas brancas. Os
robustos e bravos hipurinãs amalocavam-se do Paciá ao Iaco, em
amplos barracões circulares contendo, às vezes, cem pessoas às
ordens de um tuxaua. Dali para cima os canamaris e maneteneris, à
parte os pamanás e jamamadis, escondidos nas selvas.
Quem hoje sobe ao Purus não os vê mais como os viram Silva
Coutinho, Chandless e Manoel Urbano.10
Retomando a ideia de que tivesse Euclides da Cunha concluído a obra que
projetara sobre a Amazônia que, em sua visão, seria sua forma de contribuir para a
vingança dos seringueiros, caucheiros, representando todos quantos viveram para se
escravizar, seria possível imaginar que o equivalente à raça forte do sertanejo e aos tipos
díspares do jagunço e do gaúcho, teria de contrapor a imagem de tipos produzidos
pelos próprios nordestinos que sustentaram com seu trabalho e sua fixação nas
estradas de seringa, o reconhecimento, nele também, dos traços de um forte, como
de fato assim o fez. Igualmente abordaria, como fez em Os Sertões, a complexidade
do problema etnológico no Brasil do extremo Norte, aí representando os indígenas
como contingentes de sobreviventes que deveriam ser incorporados na produção
econômica e na convivência social do mundo caboclo que estava em construção. Ao
que tudo indica, não via Euclides da Cunha outro destino para os povos indígenas,
de quem, aliás, na verdade, não se ocupou detidamente, como procuramos indicar,
limitando-se a se referir às etnias, aos grupos tribais e a remanescentes isolados,
como sobreviventes da ocupação externa, em sua plena força.
Certamente a solução para a prosperidade e a modernização da Amazônia
estaria, como é possível ler em diferentes momentos da obra do autor, associada à
ocupação de seu território por brasileiros provenientes de outras regiões e também
por estrangeiros que contribuiriam para realizar a obra de engenharia social
idealizada por tantos autores que se ocuparam da Amazônia e que traçaram para os
povos nativos e locais o destino de prosseguirem se miscigenando com os que estão
se fixando e buscando “o calor úmido” dessas paragens.
Como observação final sobre estas breves anotações de Euclides da Cunha
a respeito da Amazônia e em especial, nas quais assinala com a dramaticidade e a
ênfase de seu estilo, o papel do Purus para a ocupação e o povoamento dessa parte
do Brasil com que o autor de Os Sertões se identificava intensamente. A Amazônia
o transformou em um de seus principais paradigmas de conhecimento e de
interpretação, o que se evidencia em praticamente tudo quanto se escreveu sobre
ela, tanto nas narrativas científicas quanto nas dos ficcionistas, até o presente.
10 Idem, Obra Completa, v.I p. 721.
Anotações sobre o Rio Purus de Euclides da Cunha
49
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Referências
EUCLIDES DA CUNHA. Obra Completa em II vols. Rio de Janeiro: Companhia José
Aguilar Editora, 1966.
50
Álbum Purus
Viagens, viajantes e a empresa extrativista
Cultura e mercado na Amazônia da borracha
Almir Diniz de Carvalho Júnior
Um dos períodos mais visitados pela historiografia
amazônica foi o chamado apogeu da Economia Gumífera.
Esta historiografia consagrou um momento da economia
da Amazônia como marca de inteligibilidade da sua própria
identidade histórica dos finais do século 19 ao início do século
20, estabelecendo também a história econômica como o tipo
de abordagem preferencial utilizada. Este tipo de abordagem
tornou-se hegemônica, décadas atrás, na historiografia
brasileira e, em consequência, também na historiografia
amazônica. Um movimento paralelo, no entanto, tomava corpo
e buscava contrastar a esta visão de história econômica, com
todas as suas características estruturais e homogeneizadoras,
uma história social que tentava desenhar, em contornos ainda
pouco definidos, toda uma complexa rede de relações sociais
que se estabeleciam no âmbito interno das relações mercantis
amazônicas.1
1 Vários trabalhos se debruçaram sobre o tema da economia gumífera. Eles buscaram entender o apogeu e
a derrocada desta economia que foi tão efêmera quanto significativa para a região Norte do País. Alguns
optaram pela compreensão do processo econômico e de suas características peculiares, dentre eles
destacam-se: SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T.A. Queiroz
Editor, 1980; WEINSTEIN, Bárbara. A Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência (1850-1920). São
Paulo: Hucitec-Edusp, São Paulo, 1993; DEAN, Warren. A Luta pela Borracha no Brasil – um estudo de
história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989; CAPELATO, Maria Helena e PRADO, Maria Lígia. A Borracha
na Economia Brasileira da Primeira República. In: FAUSTO, Boris. (org.). História Geral da Civilização
Portuguesa. Vol. 8. São Paulo: Difel, 1975. Outros adentraram nas peculiaridades de fases diversas deste
movimento, destacando o segundo momento do vigor desta economia no período da Segunda Guerra
Mundial, quais sejam: GONÇALVES, Adelaide; COSTA, Pedro Eymar Barbosa (org.). Mais Borracha para a
Vitória. Fortaleza: Mauac/Nudoc; Brasília: Ideal Gráfica, 2008; CORRÊA, Luiz de Miranda. A Borracha da
Amazônia e a II Guerra Mundial. Manaus: Edições do Governo do Estado, 1987. Por outro lado, outros
trabalhos buscavam um olhar mais detido sobre os processos sociais do período: DAOU, Ana Maria. A Belle
Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000; DIAS, Edinéa Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus, 1999. Recentemente, este momento da história da Amazônia continua
sendo visitado, mas com um outro olhar em que as questões relacionadas aos movimentos sociais e ao
trabalho ganharam a dimensão principal. Aos poucos, alguns trabalhos ainda mais recentes têm discutido
o impacto do modelo civilizar ocidental na “Manaus da borracha”. Destaco o recente trabalho de PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. O Espelho francês na “Paris das Selvas”. In: VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Regina
de (org.). Franceses no Brasil – séculos XIX-XX. São Paulo: Unesp, 2009.
Cultura e Mercado na Amazönia da Borracha
51
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Esse movimento caminhava em direção a um marxismo mais oxigenado
que via dimensões sociais presentes nas realidades econômicas, mas ainda vinculada
à ordem da lógica econômica muito presente no modelo de história econômicosocial que tornou a historiografia francesa da segunda metade do século 20 o
modelo hegemônico utilizado em boa parte do mundo e, em particular, por grande
parte da então nova historiografia brasileira.2 Seguindo estas novas orientações, mas
ainda fortemente ancorada num modelo de historiografia que analisava e criticava a
implantação do capitalismo no Brasil, na Amazônia começava a vingar uma tentativa
de penetrar mais profundamente num outro conjunto de possíveis histórias que
estavam encobertas pelas análises econômicas ortodoxas que viam a paisagem
amazônica como o palco em que se estabeleciam, na ótica do capitalismo mundial
que se espraiava, relações de confronto entre modelos socioeconômicos tradicionais
– pré-capitalistas – e modelos capitalistas já consolidados. A Amazônia então fazia
parte do capitalismo periférico que sofria, na análise de uma historiografia marxista e
economicista, as consequências de sua inexorável submissão à lógica do capitalismo
mundial com a implantação de “relações de produção” modernizadoras, à revelia
de seu panorama específico.
Esta nova historiografia se alimentava, em parte, de algumas mudanças que
tiveram lugar nas abordagens econômicas da realidade social. A teoria econômica
clássica havia sofrido reformulações. As mudanças mais significativas foram
propostas, ainda na década de 1940, por Karl Polanyi. Articulava-se, no âmbito
da “antropologia econômica”, respostas diversas a uma visão eminentemente
economicistas.
Húngaro, emigrado para Inglaterra na década de 1930, Karl Polanyi
começava a buscar construir modelos teóricos diferentes daqueles consagrados
pela teoria clássica econômica. Muito provavelmente, como lembra Peter Burke,
em razão de seu interesse pelas ideias de Malinowski, Radcliffe-Brown, entre outros
que apresentavam ao mundo as “sociedades etnográficas”, Polanyi buscou construir
2 Além da influência de Fernand Braudel, historiador francês que foi um dos diretores da influente revista
Les Annales e que praticamente instituiu um método que foi seguido por boa parte de seus sucessores,
ver também os três volumes intitulados, respectivamente: História: novos problemas; História: novas
abordagens; História, novos objetos. Estes três volumes foram organizados pelos historiadores franceses
Jacque Le Goff e Pierre Nora, pertencentes a uma nova geração da chamada Escola dos Annales, e publicado em 1974 na França. No Brasil, foi publicado pela Editora Livraria Francisco Alves em 1988. Esta
obra influenciou muito os historiadores brasileiros. Uma renovação na abordagem da história econômica
também fazia parte destas preocupações e se somava a outras abordagens, quais sejam: a religião, a
literatura, a arte, as ciências, a política. Por outro lado, apresentava também espaço para novos objetos:
o clima, o inconsciente, o mito, as mentalidades, a língua, o livro, o corpo, o filme, entre outros. Os
problemas também se tornaram outros: o quantitativo, a história conceitual, os povos “sem história”,
a aculturação, a história social etc. Para uma informação sobre o impacto da historiografia francesa e
seus principais características, sugiro os livros: A História Nova (1993), de Jacques Le Goff e A Escola dos
Annales (1992), do historiador inglês Peter Burke.
52
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
um modelo que possibilitasse compreender as sociedades não mercantis existentes
no mundo até o século 19. Chamou estas economias de tipo embedded, ou seja,
encaixadas nas relações sociais. Nesse sentido, afirmava que os comportamentos
econômicos correspondiam às motivações mais sociais do que econômicas. Polanyi
defendia alguns princípios do processo econômico, quais sejam: de reciprocidade,
redistribuição e de trocas de mercado.3
As ideias de Karl Polanyi se inspiravam no pensamento de Marcel Mauss
que, em seu Ensaio sobre a Dádiva, que será posteriormente aqui considerado sob
outra dimensão, defendia uma lógica própria nos processos econômicos utilizados
pelas sociedades “não modernas”. Para ele, estas formas arcaicas de trocas tinham
grande importância social e religiosa e estavam vinculadas a algumas leis, quais
sejam: a obrigação de dar, a obrigação de receber e a obrigação de retribuir. Peter
Burke, historiador britânico (Burke, 2002), considera que Karl Polanyi ampliou a
generalização de Mauss. Acredito que, abordada sob outro olhar, o obra de Marcel
Mauss torna-se fonte inspiradora inesgotável para outras reflexões que inclusive
fogem à perspectiva propriamente econômica pensada por Polanyi.
Estas considerações iniciais não pretendem construir uma análise desta
historiografia sobre a Amazônia e, mais especificamente, sobre as reflexões
produzidas tendo por tema a economia da borracha. Pretende, mais modestamente,
construir um pequeno panorama genérico inicial de um contexto historiográfico
vigente nas décadas finais do século 20 na historiografia local quando da produção
de algumas reflexões, agora revisitadas e ressignificadas, sobre a história da empresa
J.G. Araújo no âmbito desta economia gumífera.
Esta empresa tornou-se emblemática por algumas características muito
peculiares. Foi uma empresa criada nas décadas finais do século 19 e que conseguiu
sobreviver à chamada “grande crise” que se abateu sob a região amazônica quando
da derrocada da economia da borracha a partir de 1910. Ela ultrapassou este
período e conseguiu estabelecer-se até a década de 1980, quando finalmente fechou
suas portas. Por outro lado, era uma empresa familiar. Seus proprietários, diretores
e sócios eram principalmente membros de uma família de portugueses emigrados
para a Amazônia ainda na década de 1860. Eram os Araújo que, dentre outras
coisas, instituíram um império econômico que ia desde o comércio de produtos
importados, exportação de gêneros (principalmente a borracha, mas não somente
este), uma rede de transporte fluvial, fábrica de beneficiamento da goma elástica,
entre diversas outras atividades.
3 Peter Burke em História e Teoria Social (2002) oferece uma análise interessante sobre os vínculos entre
Karl Polanyi e Marcel Mauss. Além disso, discute a repercussão do conceito de “reciprocidade” derivado
de Mauss entre os historiadores.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
53
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Este ensaio busca fazer uma viagem ao passado de um artigo de minha autoria
escrito há uma década e meia (Carvalho Júnior, 1994), portanto escrito no
contexto do panorama acima assinalado, na tentativa de recolocar algumas questões
por ele abordadas relacionando-as a um novo conjunto de reflexões que hoje têm
relevância, mas que na época talvez sequer fizessem sentido. Por outro lado, estas
questões vêm ao encontro do que propõe esta reflexão maior que orienta os textos
desta coletânea, i. e., as relações entre os povos indígenas do rio Purus ao longo
da história com as populações amazônicas, em particular com os proprietários e
funcionários das empresas aviadoras no período da economia gumífera.
Sabemos que os textos são datados. Aquele não poderia ser diferente. Ele
possui uma identidade histórica. Por outro lado, como nos lembra Roger Chartier,
a leitura também é datada.4 Nesse sentido, a sua releitura pode descobrir relações
e conexões invisíveis ao leitor e escritor do período. Portanto, o objetivo desta
pequena viagem é, armado com novo conjunto de questões, revisitar o esboço da
história da empresa J. G. Araújo construída naquele pequeno artigo na tentativa de,
nos seus meandros, descobrir possibilidades que auxiliem a pensar a participação
das populações indígenas no sistema de “aviamento”: um dos pilares do sistema
mercantil implantado na Amazônia brasileira quando da eclosão da demanda pela
borracha na economia mundial. Ao mesmo tempo, busca pensar alguns aspectos
estudados pela história econômica no contexto do sistema de aviamento por outra
ótica. Esta ótica está ancorada num novo tempo, ligado às outras questões, portanto,
muito menos econômica e, ao contrário disto, muito mais cultural.
A empresa nos arquivos
Aos poucos, os pesquisadores foram dando conta de que a compreensão do
que significou este período da Economia da Borracha para a história da Amazônia não
podia se concretizar somente por meio de uma análise que considerasse as estruturas
econômicas e as práticas mercantis. Usando como exemplo o sistema de aviamento,
fundamento das relações mercantis no mundo amazônico daquele período, ficava
cada vez mais claro que este sistema era muito mais complexo do que se poderia
imaginar. Nos meandros deste sistema, se articulavam relações sociais que a lógica
econômica não conseguia explicar de todo. No entanto, ainda que fossem práticas e
relações que não se coadunavam com as relações capitalistas típicas do período (que
4 Roger Chartier, historiador francês, em Práticas de Leitura (1996) e outros trabalhos vem se dedicando
ao estudo das condições de produção e recepção do livro, principalmente na Europa ocidental. Seus
trabalhos têm revelado que a relação com os livros é uma prática cultural incluindo as suas formas de
leitura.
54
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
considerava também o tempo de forma homogênea), construía-se uma tentativa de
classificação destas práticas ainda nesta mesma lógica econômica.
Nesse sentido, buscava-se dar conta de uma situação incômoda. O
papel dos portugueses na economia amazônica deitava por terra a ideia de um
sistema econômico mundial homogeneizado. Assim, buscou-se caracterizar sua
participação neste sistema mundial considerando a especialidade de suas práticas
mercantis. Defendia-se que, na divisão dos mercados, caberia a eles a porção dos
mercados internos em razão de seu conhecimento das práticas de “distribuição”
e do conhecimento dos padrões linguísticos, consequência dos longos anos de
implantação de seu domínio político e econômico nestas terras (Weinstein,
1993; Santos, 1980). Dessa forma, caracterizava-se um verdadeiro “sistema
ibérico” que, em face do sistema mundial capitalista, era marcado pela persistência
de estruturas anteriores, verdadeiros padrões coloniais. Toda esta análise formava,
na ótica de uma leitura de história econômica e também de linhagem marxista,
um juízo de valor negativo, quando muito chamando de tradição o que se lia nas
entrelinhas como atraso.
No interior dos arquivos, os dados se repetiam. Nas relações mercantis,
formas de relações de trabalho e relações de compadrio se misturavam. As práticas
de recrutamento de mão de obra das firmas exportadoras e aviadoras se utilizavam de
padrões consolidados, para não dizer “tradicionais” ibéricos, mais especificamente
portugueses. Outros modelos de firmas aviadoras, com práticas mais “modernas”,
tentavam sem sucesso se implantar neste mercado, mas faliam invariavelmente. A
rede de submissão por dívida, verdadeira escravidão sutil, não somente era tolerada
como desejada por boa parte dos aviados. Como entender situação tão complexa?
Era necessário empreender um mergulho nos meandros deste microcosmo.
Nas décadas finais do século 20, as abordagens de história cultural não estavam
ainda consolidadas, principalmente no Brasil e, em particular, na Amazônia. Por
outro lado, a história social já impunha uma mudança de ótica. Um incômodo
crescente diante de análises que apenas reificavam modelos teóricos sem considerar
a dimensão e complexidade dos resultados das pesquisas, permitia algumas
mudanças de abordagem. Ainda assim, era necessário “ultrapassar” um outro
padrão de “verdade”: o método quantitativo da história serial. O caminho escolhido
por muitos para construir novas abordagens foi o de usar a história serial numa
tentativa de encontrar as lógicas internas inerentes àquele sistema. No entanto, o
artigo que analisamos não escolheu esta trilha, mas ficou a meio caminho entre o
que poderíamos chamar de análise social considerando dimensões culturais numa
perspectiva qualitativa, sem abrir completamente mão de dados quantitativos.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
55
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A firma Araújo Rozas e Irmão, antecessora da firma J. G. Araújo, foi o
objeto escolhido para penetrar mais profundamente naquele universo mercantil.
De posse daquelas reflexões, nos permitimos construir algumas novas questões
como guias desta nova leitura. Quais seriam as características básicas dos padrões
culturais que articulavam aquele sistema mercantil? Como o sistema de aviamento
pode ser visto como um processo capaz de permitir a articulação entre culturas
tão diversificadas que conviviam havia séculos no interior da Amazônia? Como as
populações indígenas participavam deste sistema?
As questões são ambiciosas. Muito mais do que permite este pequeno ensaio,
mas gostaria de empreender uma tentativa de resposta às duas primeiras e deixar
a terceira como possibilidade em aberto, ainda que considere algumas tentativas
preliminares de respostas. Deixo, portanto, em aberto esta questão à espera de novas
pesquisas. Talvez, no âmbito do microcosmo do rio Purus – objeto desta coletânea
–, elas possivelmente obtenham alguma resposta. Fica o desafio.
A herança da tradição
Acima está parte do título do artigo que revisito. Está nele representada,
de certa forma, a síntese daquele pequeno percurso de pesquisa. A hipótese
apresentada logo nos primeiros parágrafos indicava que “mudanças nos processos
produtivos e nas relações de produção” em grandes regiões da América Latina não
foram tão radicais e persistiram, “sempre, estruturas anteriores”. Esta hipótese foi
compartilhada de um livro de 1977 de Bárbara e Stanley Stein, cujo título, A Herança
Colonial da América Latina, já sintetizava a ideia (Stein, 1977, p. 118). Esta mesma
linha de raciocínio era seguida por Bárbara Weinstein (Weinstein, 1993) que
indicava na Amazônia a persistência de uma rede de trocas não muito diferente
das estruturas socioeconômicas do período colonial. De posse destas referências,
o artigo tentava buscar o que no estudo daquele microcosmo da empresa Araújo
Rozas e Irmão poderia indicar a persistência das tais estruturas coloniais.
Em 1877 surgia a empresa que dois anos após apresentava-se ao mercado
com o nome de Araújo Rozas e Irmão. Dois eram os proprietários, os irmãos
Joaquim Gonçalves de Araújo e José Gonçalves de Araújo Rozas. Ambos eram
portugueses. A história da família Araújo em Manaus era mais longa. Começou com
a vinda de Bernardo Gonçalves Araújo, em 1863, de Portugal, aos dezessete anos de
idade (Carvalho Júnior, 1994, p. 236). Logo, outros membros da família iriam
seguir o mesmo caminho. Bernardo chamou seu irmão José Gonçalves de Araújo
da região de Estela, pertencente ao Conselho de Póvoa de Varzim, em Portugal.
56
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
Em 1871 chegava José Gonçalves de Araújo com apenas quinze anos de idade.
Logo após sua chegada, partiu para uma viagem no Alto rio Negro e, em 1877,
associou-se ao seu irmão criando a referida firma. Na época, em Manaus, a colônia
portuguesa era grande, assim como já era também grande o número de Araújos.
Cinco da mesma família figuram numa notícia do jornal Amazonas de janeiro de
1877. Entre eles estavam tanto comerciantes e comerciantes/proprietários quanto
caixeiros. A hierarquia se mostra clara. No topo da pirâmide estava o comerciante
e proprietário e, na base, o caixeiro. Normalmente era um cargo exercido por um
jovem que almejava alcançar tempos depois o “status” de comerciante e, por fim,
de comerciante e proprietário. Tudo era feito no contexto familiar. O termo “fazer a
América” era comum naquele período. A situação econômica era difícil em Portugal.
O Brasil significava uma real oportunidade de mudança nos padrões de vida. Muitos
se lançaram na aventura da Amazônia, mas sempre capitaneados por um parente
mais velho e mais experiente, que trazido antes por outro parente já tinha tomado
conhecimento das vicissitudes da terra e, por que não dizer, das complexas culturas
amazônicas.
O sentido coletivo do processo era evidente. O caminho individual não
poderia ser trilhado fora dos vínculos de família. Ao lançar-se nos confins do
rio Negro, o jovem Joaquim Gonçalves iniciava um conjunto de novas alianças
comerciais. Certamente foi construir sua rede de relações que correspondia, esta
sim, ao capital mais importante para um jovem empreendedor na época: garantir
sua rede de aviados, uma base para os futuros negócios com os barracões ao longo
daqueles rios nos diversos seringais que se multiplicavam a cada dia no interior
da região. Ao longo do seu período de aprendizado, seus ganhos como caixeiro
ficavam em poder da família. Esta, no entanto, garantia a devolução do cabedal no
momento de constituição de sua firma. Assim foi feito.
Existe uma dimensão importante a ser considerada quando observamos o
significado de ser “caixeiro” para o imigrante português na Amazônia do final do
19. Não há ainda pesquisas específicas sobre este tema para a região, mas o potencial
é grande para quem se aventurar nesta direção. Um trabalho que pode servir de
incentivo a este tipo de iniciativa, embora tenha por base os caixeiros em Portugal, é
o de Jorge Fernandes Alves que, no seu livro Os Brasileiros – emigração e retorno no porto
oitocentista (1994), estuda a corrente migratória que se deslocava do distrito do Porto
para o Brasil no século 19 e também o impacto do seu retorno a Portugal. Nesse
livro, faz uma reflexão importante sobre o papel destes trabalhadores no âmbito do
mundo comercial lusitano e, principalmente, como imigrados para o Brasil no final
do século 19.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
57
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Os caixeiros, segundo esse autor, eram submetidos a trabalhos duros e
não raramente eram obrigados a se utilizarem de sua força física. Por outro lado,
observa o seu papel de correspondente do patrão nas localidades mais longínquas
“...distribuindo-lhes a mercadoria recebida e, como o capital reproduzido, enviar-lhes
outros produtos, na volta, para venda, através da cobrança de pequenas percentagens
ou comissões”(Alves, 1994, p. 77). Estes caixeiros eram enviados para o Brasil
pelas casas de comércio. Outrossim, esclarece como este processo de envio dos
caixeiros era feito por meio da: “... recomendação dos jovens imigrantes para os
familiares, amigos e compadres para o Brasil, era, de resto, uma prática comum,
mostrando a importância das redes de solidariedade neste contexto”. (Alves,
1994, p. 78). Os vínculos familiares ditavam a construção destas redes mercantis.
Eram “recomendados” a diversos parentes: tios, primos, irmão, pai. Houve na
Amazônia uma pequena adaptação deste padrão, mas nada que o desvirtuasse.
Nesse sentido, o processo utilizado pelos Araújo era já prática comum
dos portugueses ao construírem suas redes mercantis e, por que não dizer, de
solidariedade, acionando seus vínculos familiares. Isto requer de quem analise
este processo um olhar mais apurado para identificar os significados destas redes
mercantis e de solidariedades que parecem ir muito além de um interesse pragmático
de acúmulo de capital por parte de um capitalismo mundial emergente.
Retornando ao caso da empresa dos Araújo, o processo de controle do crédito
parecia iniciar-se na própria firma, estendendo-se pelos barracões e alcançando
os seringueiros. A ideia de crédito, numa sociedade em que não havia um meio
circulante abundante, tampouco instituições financeiras capazes de fazer frente
à nova situação econômica, ligava-se, muito provavelmente, ao valor da palavra
empenhada e ao compromisso em saldar as dívidas contraídas. O sistema de trocas
imperava. O escambo era base das trocas mercantis. Produtos manufaturados eram
trocados por produtos extrativos, em particular a borracha em forma de bolotas. A
rede se fechava, a confiança era elemento fundamental no sistema. Quem estivesse
fora da dívida estava fora do comércio. Em outras palavras, estava fora do acesso ao
sal, açúcar, óleo, combustível (querosene, basicamente), instrumentos de trabalho,
tecidos, remédios e a uma infinidade de itens diversos.
Entre 1879 e 1886, diferente do balanço dos primeiros anos, quando quase
nenhuma localidade do interior foi encontrada, é possível observar, somente no
rio Negro, 16 localidades incorporadas às relações comerciais da empresa. Outras
regiões também contavam na lista comercial da firma: rio Solimões (15 localidades),
rio Madeira (4 localidades), rio Purus (4 localidades), rio Branco (6 localidades),
rio Maués-Açu (1 localidade); Venezuela (2 localidades). A rede de caixeiros que
percorria os rios parece ter sido fundamental para a construção destas relações.
(Carvalho Júnior, 1994, p. 238).
58
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
A firma teve várias fases e vários nomes. No seu início, atuou no comércio
varejista fornecendo, aos contatos comerciais do interior, mercadorias manufaturadas.
Com o tempo, foi acumulando capital e transformou-se de uma empresa importadora
de secos e molhados, que tinha como suporte algumas empresas de parentes em
Lisboa, numa empresa também exportadora de produtos regionais. No início do
século 20, mantinha transações com os principais portos do mundo: Nova York,
Paris, Liverpool, Lisboa, Porto, Manchester, Hamburgo e Gênova. Ela sempre
diversificou seus itens de exportação. A borracha foi o produto principal, mas
outros como: piaçava, óleos vegetais, madeira, castanhas etc., não deixavam de ser
comercializados. Atuou no processo de distribuição adquirindo barcos e vapores
nos quais transportava suas mercadorias. Modernizou suas instalações e passou a
beneficiar os produtos exportados. Participou de feiras internacionais mostrando
seus produtos por meio de filmes produzidos pelo cineasta Silvino Santos, contratado
pela empresa para este fim. De certa forma, modernizou-se na tradição.
Ao mesmo tempo que se modernizava, reforçava o sistema de aviamento.
Consagrava os vínculos de amizade e compadrio como parâmetros para constituir
seus representantes ao longo dos rios amazônicos. Tornou-se procuradora de
diversos deles. Chegava a receber seus salários, a pagar suas dívidas e a descontar o
valor dos produtos enviados. Assim, passava a ter controle sobre o meio circulante
que era escasso. (Carvalho Júnior, 1994, p. 239).
Bárbara Weinstein concorda que, muito mais importante que o comércio da
borracha, a acumulação, construída pelo sistema de aviador/aviado, era o fundamento
do processo de ganho de capital. A escravidão por dívida, – recurso “antigo”
na visão de um capitalismo em expansão, sustentou a fortuna desta e de outras
empresas. Estratégias novas e antigas fundiram-se criando uma resposta “híbrida”
daqueles comerciantes portugueses nos trópicos. A adaptação e a capacidade de se
apropriarem da tradição parecem ter sido a saída que possibilitou sua permanência
no mercado apesar da crise da economia da borracha a partir de 1910.
Novas questões para tema antigo
A primeira das questões propostas é: Quais seriam as características básicas
dos padrões culturais que articulavam aquele sistema mercantil? Antes de respondêla, vale um parêntese sobre a concepção aqui defendida de que as ações são mais
fruto de conformações culturais, de práticas sociais articuladas simbolicamente, do
que de determinações econômicas.
Parto de uma abordagem da Nova História Cultural para tratar de um tema
um tanto espinhoso, já que é tema a princípio estranho a este tipo de tratamento.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
59
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Mas a viagem no tempo para o historiador sempre causa algum estranhamento.
Nesse caso, revisito um tema e um texto que constituem minha alteridade alicerçada
num outro patamar temporal. Portanto, o estranhamento também ocorreu.5
Aquele estranhamento foi menos pela diferença que pela semelhança de
questões. No texto, defendia: “A influência das relações de parentesco no sistema
mercantil do Amazonas terá de merecer uma maior atenção para que se possa
verificar se, realmente, tem possibilidade de ganhar um caráter de ‘modelo’ neste
ambiente complexo de relações mercantis” (Carvalho Júnior, 1994, p. 239).
Mais adiante concluía: “[...] a modernização da estrutura econômica na Amazônia
não proporcionou mudanças profundas – as fachadas do novo foram ilusórias”
(Carvalho Júnior, 1994, p. 241).
Embora as semelhanças possam existir, as diferenças também são fortes.
A persistência das práticas induzia a pensar na força destas tradições. Por outro
lado, se naquele momento isto significava um atraso no processo de modernização
das relações de produção e implantação de um sistema capitalista, condição
inerente ao seu desenvolvimento ou a sua superação – operando aqui tanto pela
concepção burguesa quanto pela concepção marxista –, hoje a perspectiva mudou
radicalmente.
Operando com a concepção de que a construção do mundo é fruto
de representações coletivas do real alimentadas pelos referenciais simbólicos
partilhados e, ao mesmo tempo, contraditórios – o jogo das relações de poder
é muito mais complexo. A chave para a compreensão das ações e para a forma
pela qual elas se transformarão em relações de dominação tem de necessariamente
passar pela dominação simbólica que conjuga tanto representações quanto práticas
(Chartier, 2002; Bourdieu, 2004).
Nesse sentido, apresento possibilidades de resposta. Primeiro, é importante destacar que no universo da dívida pertencer ao sistema era menos em
razão da necessidade de acesso às mercadorias do que a necessidade de também
5 A historiadora americana Lynn Hunt, num livro organizado por ela (A Nova História Cultural, São Paulo:
Martins Fontes, 1995), caracterizou uma nova tendência da historiografia ocidental atual que chamou de
Nova História Cultural. Conseguiu um conjunto grande de contribuições somando diversos historiadores,
de franceses a anglo-saxões — alguns de renome internacional, e análises sobre intelectuais que partilhariam do mesmo tipo de abordagem. Por outro lado, alguns outros historiadores vêm se dedicando também
a pensar um conjunto de diversos trabalhos sob a perspectiva de um novo tipo de “História Cultural” ressaltando sua diferenciação em relação à outra já consagrada de mesmo nome — são eles, em particular,
Peter Burke (2005), Roger Chartier (1990; 2002), entre outros. Tal diferenciação se dá, principalmente,
quanto à concepção do conceito de cultura. Este conceito é visto por esta nova tendência numa dimensão
muito mais ampla, mais próxima de como a concebeu a antropologia nas últimas décadas, ainda que hoje
seja considerado por muitos antropólogos como um conceito problemático. Esta sensibilidade “antropológica” tem proporcionado aos historiadores travarem um diálogo mais profundo com os antropólogos,
considerando, sobretudo, a dimensão simbólica no âmbito das práticas sociais.
60
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
ter acesso ao que elas representavam. Pertencer a este sistema era participar do
jogo das relações sociais. Estar fora dele era abdicar destas mesmas relações. Estou
considerando aqui as relações sociais que envolvem diversas comunidades com
referências simbólicas também distintas.
As redes de relações de trocas sempre conduziram o processo das relações
culturais, mas na Amazônia este processo carregou desde os tempos coloniais a
necessidade de junção de campos semânticos distintos. As conexões de sentido e
os processos de resignificação foram sempre exercidos pelos que se aventuravam
neste universo “mestiço”. A mescla cultural era a tônica do processo de comércio
e de comunicação.6
Ao penetrar os rios amazônicos os jovens portugueses caixeiros dos
armazéns da cidade de Manaus e Belém não apenas subiam os rios, mas alcançavam
outros universos de referência e com eles tinham de tratar. Suportavam longas e
tediosas viagens. Enfrentavam mosquitos, cobras e todas as intempéries de uma
floresta equatorial. Tinham, ao mesmo tempo, de dialogar com pessoas que fugiam
ao perfil daquelas a que estavam acostumadas. Era necessário penetrar no imaginário
dos homens da floresta que eram diversos: mestiços, índios, portugueses e outros
europeus já “enraizados” – todos habitantes daquele planeta aquático.
Ingleses e americanos tentaram sem sucesso abrir seringais neste mundo
amazônico. Alguns defendiam a necessidade de importação de chineses como mão
de obra, pois os amazônidas eram difíceis e incontroláveis. Os portugueses sabiam
disto, assim como outros que por aqui se embrenharam. O sistema de aviamento
foi uma adaptação das antigas formas de comércio que por aqui os patrícios
lusos exercitaram por séculos. As canoas com drogas do sertão singravam os rios
durante os séculos 17 e 18 trocando objetos europeus e manufaturados pelos
produtos de extração ou por escravos. O negócio se manteve anos a fio obedecendo
a esta lógica dramática.
6 Tenho trabalhado com esta concepção dos vínculos entre universos culturais distintos há algum tempo.
Em particular, trabalhei em minha tese de doutorado com o que chamo de rede de conexões de sentido
no âmbito do processo de conversão para o cristianismo das populações indígenas coloniais na Amazônia.
Este processo de cristianização, pelo que pude constatar em minhas pesquisas, caracterizou-se por ser de
extrema complexidade e por produzir ressignificações e apropriações inusitadas por parte dos que chamei
de “índios cristãos”. As fontes mais ricas que pesquisei para chegar a estas constatações foram fontes
inquisitoriais nas quais muitos destes indígenas cristianizados eram acusados de heresia em razão de sua
forma muito pouco ortodoxa de professar aquela nova fé. Ver: CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios
Cristãos — a conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769). Tese de doutorado. Campinas:
Unicamp, 2005. Para uma síntese do capítulo que trata das formas de inserção e apropriação destes sujeitos históricos (indígenas), particularmente as lideranças indígenas dos séculos 17 e 18, ver também: CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Líderes indígenas no mundo cristão colonial In: Canoa do Tempo – revista
do Programa de Pós-Graduação em História, v. 1, Manaus: Edua/Fapeam, 2007, p. 123-150.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A capacidade de deslocamento dos nativos não permitia o controle da mão
de obra de forma tradicional. Alguns “desciam” dos rios por “convencimento”, por
receio ou como escravos e se tornavam cristãos nas missões das ordens religiosas
ou escravos nas propriedades dos colonos. Estes produziam para as aldeias, para
as vilas coloniais e para seus senhores. Mas mesmo estes eram difíceis de governar,
como registra o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, no final do século 18, ao
considerar que os “domésticos” eram os mais infiéis. Outros povos, no entanto,
mantinham-se distantes, mas não o suficiente que os tornasse completamente
isolados – mantinham relações de troca e negócios de forma semelhante, ainda
que desiguais às exercidas no final do século 19 e início do 20, período que aqui
tratamos.7
É certo que os rios tinham outros habitantes. Pessoas vindas do Nordeste
traziam em sua bagagem outros referenciais tornando ainda mais denso o caldo
cultural que aqui se formava. Inúmeras vozes harmonizadas pelo ritmo da floresta
e pela necessidade de sobrevivência. O sistema de trocas permaneceu intocado.
As relações comerciais obedeciam à antiga lógica da colônia. Os comerciantes
portugueses estavam bem adaptados a esta lógica. Dessa forma, ganharam os
mercados através da rede de aviados que souberam construir.
Portanto, respondendo à primeira questão: as características dos padrões
culturais que norteavam este sistema mercantil baseavam-se, em última instância,
num modelo criado no âmbito do mundo colonial amazônico, mas tendo por base
formas tradicionais do sistema de trocas do mundo indígena amazônico. Ao mesmo
tempo, o sistema de aviamento obedecia tanto a necessidades econômicas quanto a
necessidades simbólicas. Pertencer àquele sistema parece que representava possuir
um “capital simbólico”— lembrando Bourdieu ( 2004) — sem o qual se estaria fora
dele e fora daquele mundo híbrido – o único que congregava diferentes campos
semânticos num mesmo espaço de comunicação. Ousando na metáfora, seria como
sair do cosmos e mergulhar no caos.
7 Sobre este assunto, indico minha dissertação de mestrado e alguns artigos onde tratei especificamente
da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira e, em particular, das formas de representação dos
índios produzidas pelos textos que escreveu e pelos desenhos de seus riscadores. Observei que o processo
de representação destas populações, ainda que tenha se caracterizado pela “projeção” dos referenciais
europeus sobre os homens e a natureza “selvagem”, segundo os parâmetros da chamada Filosofia Natural, também revelou elementos importantes sobre as práticas dos “tapuios” — índios domesticados e
civilizados daquele mundo colonial. Ver: CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Do índio imaginado ao índio
inexistente – a construção da imagem do índio na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira,
Campinas: Unicamp, dissertação de mestrado, 2000; ver também do mesmo autor: O Índio Inexistente
(representação dos “índios” na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira) In: Terra das Águas,
vol. I, n. 2, Brasília: Paralelo 15, Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Marco Zero,1999, p.117136; e Registro da Diferença – a invenção do ‘tapuia’ nos desenhos da Expedição Filosófica de Alexandre
Rodrigues Ferreira (1783-1792) In: Revista Pós-História, n.10, Assis: Unesp, 2002, p. 61-86.
62
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
A segunda questão complementa a primeira, qual seja: Como o sistema de
aviamento pode ser visto como um processo capaz de permitir a articulação entre
culturas tão diversificadas que conviviam havia séculos no interior da Amazônia?
A resposta, depois do que se argumentou, parece óbvia. Isto aconteceu por ser um
sistema que fazia sentido para o caldeirão cultural que teimava em estabelecer um
idioma comum apesar de pertencerem a tantos e tão diversos modelos de cultura.
A empresa portuguesa, por exemplo, era uma empresa de família. O
individualismo burguês convivia com uma tradição e lógica coletiva na construção
do capital da família. Irmãos, tios, primos, sobrinhos estabeleciam relações e
“faziam a América” em conjunto. Todos se ajudavam e construíam uma herança
familiar comum. Como observado anteriormente, construíam verdadeiras redes
de solidariedade. Nesse sentido, não me parece que fosse para eles estranho se
relacionarem com pessoas ao longo dos rios com as quais construíam relações de
compadrio e confiança. É comum observar nas cartas trocadas entre os donos
da empresa e seus aviados o tom coloquial e até mesmo afetivo registrado nelas.
Isto não pode encobrir o processo de acumulação que se dava por meio de uma
exploração dos valores cobrados pelas mercadorias. Mas se existia exploração por
um lado, por outro muitas vezes ela era até mesmo tolerada sem muita revolta
quando não havia exagero.
De ambas as partes, entre aviados e aviadores, havia cobranças. Estes
últimos reclamavam que os produtos extrativos, em particular a borracha, estava
misturada com outros materiais, ou seja, era impura e de menor qualidade. Aqueles
reclamavam da qualidade das mercadorias embarcadas nos vapores e barcos e de
seus preços exorbitantes. No mais, se toleravam.
É importante que se faça uma gradação na paisagem sugerida pelo
modelo de conflito. Aviadores e aviados não eram blocos monolíticos que não
se intercambiavam. Se assim o fossem, não haveria possibilidade de articulação,
senão diferenças irreconciliáveis. Para compreender estes padrões de articulação
é importante pensar como o processo de compadrio se configura como sistema.
Segundo Peter Burke (2008, p. 104), quando as normas burocráticas são frágeis e a
solidariedade vertical forte, a sociedade tem por base o sistema de apadrinhamento.
Pode-se defini-lo como um sistema político que tem por base relacionamentos
pessoais entre indivíduos desiguais. Existe uma relação de troca em que cada parte
tem algo a oferecer para a outra. Os afilhados oferecem apoio político aos padrinhos
que se concretizam por: gestos de submissão, linguagem respeitosa, presentes
etc. Os padrinhos oferecem, por sua vez, hospitalidade, empregos e proteção aos
afilhados.
Guardadas as especificidades do sistema de aviamento, é possível notar
semelhanças nas formas de relação. A hierarquia é clara, a verticalidade visível e as
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
63
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
redes de “solidariedade” estão na base do processo. O crédito era fornecido com
base na confiança; o fornecimento do produto acontecia como uma obrigação da
palavra empenhada. A dita “escravidão por dívida” era, de certa forma, consentida.
Esta constatação não diminui de nenhuma forma a exploração, mas seu significado
ganha contornos complexos quando se penetra no interior do sistema. Por outro
lado, na base da pirâmide os seringueiros, nordestinos em sua grande maioria,
dependiam dos produtos fornecidos pelo “patrão”. Era necessário pertencer ao
sistema para ter acesso a eles. Era também necessário vincular-se a um patrão numa
relação de mútua confiança. Estranhos à região e aos costumes, aos poucos foram
construindo possibilidades de adaptação. O seu vínculo com o sistema de aviamento
parece ter sido a única possibilidade de sobreviverem e de construírem também
uma perspectiva de futuro – um dia ter o próprio seringal. O que, como sabemos,
na grande maioria das vezes, não aconteceu.
Warren Dean no seu livro A luta pela borracha no Brasil (1989) observa que a
condições de vida no sistema de coleta era miserável e perigosa. Citando Euclides
de Cunha, destaca que, segundo o literato e jornalista brasileiro, a organização deste
tipo de trabalho – a coleta pelos seringueiros – era criminosa. No entanto, logo a
seguir escreve que tal forma de organização, registrada por alguns dos observadores
da época que usa como fonte, “era a única que os seringueiros aceitariam”.
Complementa dizendo:
Embora aliciados para o comércio da borracha mediante
apresentações fraudulentas, os migrantes nordestinos às vezes
utilizavam suas economias ou os adiantamentos feitos pelos
patrões para ir para casa, em férias, mas logo voltavam novamente
para a selva, inclusive para o mesmo seringal. Possivelmente os
seringueiros encaravam os adiantamentos que o patrão lhes
fornecia não como um ônus imposto à força, mas como um
abono. O patrão tinha boas razões para reduzir ao mínimo
esse custo da transação: o seringueiro, que podia muito bem
descer o rio no meio da noite, não estava objetivamente preso a
nenhuma obrigação de reembolsar o patrão. O fato de em geral
reembolsá-lo da mesma forma como o patrão geralmente fazia
com o aviador sugere que via alguma vantagem mútua nessa
relação. (Dean, 1989, p. 73).
Alheios a tudo, as grandes casas exportadoras apenas buscavam os produtos
na cidade e os comercializavam com os grandes portos. Em sua maioria eram de
capital europeu, mais especificamente inglês. Como visto, de pequeno armazém de
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Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
secos e molhados, os Araújo, tornaram-se também casa exportadora de peso. Se
as grandes casas exportadoras conviviam com este padrão era porque viam nele a
única forma de funcionamento do sistema. Os Araújo tornaram-se neste meio um
caso à parte. Construíram seu capital no e em razão do sistema de aviamento. De
qualquer forma, o sistema se manteve em funcionamento até que o capitalismo
modernizado, com técnicas de produção mais avançadas e processos de adaptação
mais velozes tirasse da Amazônia, como sabemos, a primazia da produção da goma
elástica.
A resposta foi dada. Os vínculos com o sistema de aviamento eram comuns
aos vários setores daquela sociedade. Mas cada um deles se articulava e obedecia
a padrões de configuração diversos. O que Warren Dean viu como “vantagem
mútua” na relação não é uma artimanha discursiva para encobrir a exploração. São,
na realidade, padrões de percepção, formas de significação que induzem a pensar na
complexidade destas práticas e nos vínculos a padrões culturais que apenas vemos
o esboço. No próximo item, exploraremos um pouco mais os desdobramentos da
resposta que aqui assinalamos.
Os indígenas e o aviamento
Partimos agora para a tentativa de construir algumas possíveis respostas à
nossa última questão: Como as populações indígenas participavam deste sistema?
Ela transforma-se, no final, numa questão quase retórica. Não será respondida de
todo, mas pretendo sugerir algumas possibilidades de reflexão. Chamo atenção ao
desafio que ela impõe e sugiro alguns pressupostos.
Em primeiro lugar, esclareço que ainda não existem pesquisas, no que se refere
a esta empresa, que possam consubstanciar reflexões. Mas existem alguns indícios.
Aqui exercito um pouco do paradigma indiciário proposto pelo historiador italiano
Carlo Ginzburg.8 Nessa ótica, o desafio para as pesquisas a serem propostas, por
historiadores e antropólogos – mais afeitos a estes temas e abordagens – é exercitar
também uma forma de olhar diversa da que normalmente se estabelece.
8 O historiador italiano Carlo Ginzburg, numa obra já clássica: Mitos, emblemas e sinais (1990), mais especificamente no capítulo “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”, apresenta a ideia de um método
em que associa diversos autores, quais sejam: Morelli, Holmes e Freud. Neste método, busca considerar
o universo dos resíduos, dos dados marginais, numa tentativa de, por meio de pistas ou sintomas (Freud),
indícios (usando Sherlock Holmes) ou signos pictóricos (Morelli), interpretar os “fatos” históricos. Ginzburg contrasta este seu “método indiciário” à ciência de Galileu caracterizada pelo emprego da matemática e da ciência experimental. Para ele, a história sempre se manteve como uma ciência social ligada
irremediavelmente ao “concreto”. Assim como o conhecimento de outras ciências, tal qual a medicina,
o conhecimento histórico analisa os sintomas, os sinais. Ela é, portanto, um conhecimento indireto,
indiciário e conjectural.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
65
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A história indígena no Brasil ganhou bastante fôlego a partir dos anos de 1990
no final do século 20 em razão de ter comprovado a existência de extenso material
de pesquisa documental sobre os índios no Brasil. O Núcleo de História Indígena
e do Indigenismo da USP desenvolveu uma ampla pesquisa em nível nacional com
o objetivo de constituir um grande inventário de fontes para a história indígena
no Brasil. Este inventário comprovou, como se supunha, um enorme cabedal de
fontes que continham o registro da participação ativa de personagens indígenas ao
longo da história do Brasil. Esta descoberta de fontes gerou uma profusão de novas
pesquisas ampliando consideravelmente as formas de representação dos índios
na história do Brasil e a sua participação efetiva nesta mesma história. De mero
coadjuvantes, tornaram-se, em muitos caos, protagonistas.9
Por outro lado, embora em algumas destas fontes se observe de pronto
os índios, nomeados como tais, em outras estas nomeações não eram tão visíveis.
Portanto, era necessário um olhar mais apurado, assim como o rompimento com
modelos tradicionais de identificação destes personagens abandonando, de vez,
uma visão essencialista das identidades indígenas. Os “índios” lá estavam, faltava
apenas um olhar mais cuidadoso para torná-los visíveis.
No caso em questão: a participação indígena no sistema de aviamento,
mesmo sem pesquisa anterior, o pressuposto é de que participaram deste sistema
como sempre o fizeram no caso das relações mercantis desde os tempos coloniais.
Se não estão nomeados como tais, resta perseguir os indícios e, certamente, lá
estarão. Um destes indícios diz respeito à própria lógica do sistema de aviamento
que se instalava na Amazônia. Esta lógica era a da troca e, consequentemente, da
reciprocidade.
Aqui lançamos mão mais uma vez de Marcel Mauss, no entanto, numa
perspectiva diversa da que foi feita por Karl Polanyi, anteriormente citada. Mauss
9 O historiador John Manoel Monteiro foi o responsável pela organização no âmbito nacional de um guia de
fontes para a história indígena e do indigenismo nos arquivos brasileiros. Vários destes guias foram produzidos. Todos eles listados na publicação, organizada por John Monteiro: Guia de fontes para a história
indígena e do indigenismo em Arquivos Brasileiros – acervos das capitais. São Paulo: NHII/USP; Fapesp,
1994. Ao longo dos últimos anos, diversos trabalhos sobre a participação dos índios na história do Brasil
têm sido produzidos muito em razão destes guias. Teses, dissertações, artigos têm sido apresentados de
forma sistemática nos Grupos Temáticos organizados sobre este tema pelo professor John Monteiro e outros historiadores nos encontros bianuais da ANPUH — Associação Nacional dos Professores Universitários
de História. Atualmente, é possível encontrar uma grande quantidade de trabalhos sobre o tema no site:
www.ifch.unicamp.br/ihb/. Existe também outro livro que já se tornou clássico por tratar este tema,
qual seja: CUNHA, Manoela Carneiro da. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. Em que pese tratar de tema igual e ser fruto também de diálogo no âmbito do Núcleo de
História Indígena e do Indigenismo — NHII/USP, este livro, organizado pela antropóloga Manoela Carneiro
da Cunha, ainda não apresenta nas suas páginas a participação de um número significativo de historiadores. No entanto, abriu possibilidades enormes de tratamento do tema e inspirou outro grande número
de trabalhos.
66
Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
tem inspirado historiadores há muito tempo. É famosa sua contribuição para os
que estudam a história das religiões e a história da magia. Mais recentemente, suas
ideias têm alimentado boa parte da Nova História Cultural a partir da sua releitura
por Roger Chartier. O que interessa neste caso, no entanto, é visitar algumas ideias
de sua obra, considerada a mais brilhante por Claude Levi-Strauss, o Ensaio sob a
Dádiva (2001[1950]). É nela que ele configura e introduz o conceito de fato social
total. Esta concepção, como o próprio Levi-Strauss destaca, concebe a realidade
social integrada num sistema. Esta concepção já clássica, usada para este contexto,
não deixa de ser revigorante.10
Portanto, considerando esta ideia, uma questão que vem à tona é o que
efetivamente significava o sistema de aviamento para as populações amazônicas.
Não estaria na estrutura deste sistema a noção de reciprocidade pensada por Marcel
Mauss? Sendo afirmativa esta resposta, teremos necessariamente que concluir que
a própria lógica do sistema está contida na lógica nativa adaptada no decorrer de
séculos de convivência entre, principalmente, portugueses e populações indígenas.
Assim sendo, mesmo que muitas vezes não nomeadas no registro do
cotidiano do funcionamento do sistema, por meio das cartas e documentos
da firma J. G. Araújo – o caso em questão –, as populações indígenas se fazem
protagonistas, pois as condições de possibilidade do funcionamento deste sistema
só foram possíveis na medida em que obedeceram aos parâmetros estruturais da
sua configuração secular.
Para ilustrar esta afirmação e comparar com a forma de funcionamento do
sistema de aviamento na Amazônia, cito um trecho inspirador da obra de Mauss:
Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, não
se observam nunca, por assim dizer, simples trocas de bens, de
riquezas e de produtos no decurso de um mercado passado entre
os indivíduos. Em primeiro lugar, não se trata de indivíduos,
trata-se de colectividades que se obrigam mutuamente, trocam e
contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais:
clãs, tribos, famílias, que se atacam e se opõem, quer em grupos
desafiando-se diretamente, quer por intermédio dos seus chefes,
quer de ambas estas duas maneiras simultaneamente. Além
disso, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
10 Sobre este tema ver Roger Chartier: O mundo com representação In: À Beira da Falésia: a história entre
incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002. Sobre a importância do pensamento de Marcel Mauss para a antropologia, ver: LEVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel
Mauss In: Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
67
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de
mais, amabilidades, festins, ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras cujo mercado não é senão um dos
seus momentos e em que a circulação das riquezas mais não é
do que um dos termos de um contrato muito mais geral e muito
mais permanente (Mauss, 2001, p. 55-56).
Embora no caso em questão – o sistema de aviamento –, o caráter mercantil
“moderno” estivesse presente, o que certamente nos impede de considerarmos
estas relações como não “individuais”, de outra forma, também não podem
ser consideradas relações tipicamente capitalistas, como vimos anteriormente.
O “sistema ibérico” era uma ponte entre a “tradição” ibérica pré-capitalista e o
capitalismo que aos poucos tomava uma dimensão mundial. Questões relacionadas
às relações de solidariedade constituíam elementos conformadores destas práticas.
O individualismo burguês não havia ainda atingido seu patamar mais característico.
Portanto, se constituía uma ponte entre uma forma ibérica lusitana de pensar o
mercado e uma forma amazônica (raiz por indígena) para conceber os processos de
troca – leia-se reciprocidade.
Retomando o universo dos indícios, outra possibilidade se apresenta.
Acredito que nas cartas trocadas entre aviador e aviados – leia-se a firma J. G.
Araújo e seus “clientes”, é possível observá-los. Talvez não da forma desejada, ou
seja, explícitos, muito embora em alguns casos assim ocorra. Como exemplo, podese citar o registro dos tipos de produtos trocados nas relações mercantis o que
pode indicar uma possibilidade de encontrar a participação destas populações neste
sistema, ainda que de forma marginal.
Por outro lado, na grande chave identitária do “seringueiro”, é possível
encontrar “mestiços culturais” que conviviam com universos culturais plurais, mas
que construíam sentido eminentemente “indígena” — usando com certa liberdade
este termo híbrido. Portanto, para além das identidades étnicas, uma profusão de
características pode revelar que estes índios estavam lá, transfigurados em nomes
cristãos muitas vezes, mas definitivamente fazendo parte de um universo diverso do
ocidente europeu.11
11 Sobre o conceito de mestiçagem cultural e outros conceitos que foram produzidos na tentativa de analisar os processos de interação, mistura, conflito e encontros culturais ver: BURKE, Peter. Hibridismo
Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, tradução de Leila Souza Mendes, 2003.
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Álbum Purus
Almir Diniz de Carvalho Júnior
Fechando pressupostos, abrindo questões
Na rede de rios que operava a empresa J. G. Araújo, muito provavelmente é
possível encontrar, estabelecendo relações com nordestinos trazidos para o trabalho
na seringa, quantidades significativas de populações indígenas. É possível que
trabalhassem à margem do sistema fornecendo víveres ou outros artigos diversos.
Por outro lado, é ainda possível que tenham eles próprios se tornado seringueiros
ao fornecerem borracha em troca, talvez, de vínculos de reciprocidades. Tudo aqui
são hipóteses que necessitam ser confirmadas. No entanto, como já mencionado
anteriormente, um olhar cuidadoso à procura dos indícios, dos elementos singulares
– os que destoam das homogeneidades, podem vir a surpreender.
O que se sabe do pouco que já se pesquisou é que os conflitos eram uma
tônica comum. O domínio que os patrões, donos de seringais, construíram na
Amazônia passava pelo controle das terras às margens dos rios. Em outras palavras,
o controle das árvores de seringas nativas. Em muitos casos, verdadeiras guerras
por território se estabeleciam. No mais, é mergulhar num campo obscuro.
Defendo que os vínculos entre campos semânticos distintos, entre padrões
culturais diversos, naquele momento histórico específico, confluíram e formaram
um território de comunicação. O capitalismo stricto sensu não penetrou na selva
amazônica, mas algumas de suas práticas foram adaptadas e ganharam novos
significados num contexto complexo de relações. O objetivo de acúmulo de capital
estava naturalmente presente, mas a forma que este processo de acumulação
se efetivou aliou relações de solidariedade, vínculos de compadrio, formas de
reciprocidade e relações de endividamento. Creio que neste universo múltiplo
as populações indígenas também tinham o seu lugar. Resta, por meio das novas
pesquisas, sair em busca destes fantasmas.
Cultura e Mercado na Amazônia da Borracha
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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72
Álbum Purus
Viagens, viajantes e a empresa extrativista
Um retrato do sistema de aviamento no Purus:
notas preliminares
Gilton Mendes dos Santos
Em seu detalhado Relatório de Exploração do Rio
Purus, encaminhado ao presidente da Província, o engenheiro
militar João Martins da Silva Coutinho (1862) traça um nítido
panorama das condições ambientais e sociais do Purus. Dentre
os vários objetivos de sua expedição investigatória (geológica,
hidrológica, astronômica, econômica etc.) tem destaque
aquele referente aos habitantes da região, em particular os
povos indígenas. Embora tenha navegado apenas parte de
sua extensão, temos em seu texto um dos primeiros e mais
completos relatos sobre o Purus do século 19.
Silva Coutinho não deixa de sublinhar o baixo contingente
populacional, de brasileiros moradores e trabalhadores envolvidos
na coleta das drogas do sertão – produtos marcantes da economia
amazônica no período –, chamando a atenção para os frequentes
e intensos deslocamentos dessa mão de obra em função desses
produtos. Ressentindo-se da ausência de significativo povoamento
na região, registra:
Do Amazonas tem entrado 210 pessoas, e lá se achão
estabelecidas e empregadas geralmente na extracção das
drogas. Muitos fabricantes sobem o Purús pelo verão,
mas retirão-se logo que chega o inverno. Existem 240
casas cobertas de palha, espalhadas desde o Berury até
o sitio da Boa-Vista, na extensão de 23,77 milhas. Todas
ellas estão, propriamente fallando, encravadas no mato
(Silva Coutinho, 1862, p. 93).
Se, por um lado, o número de trabalhadores nacionais
no Purus é inexpressivo, por outro, a presença indígena é nada
menos que marcante nos relatos e comentários do militar.
Um retrato do sistema de aviamento no Purus...
73
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Num item de seu relatório, intitulado Índios, o autor anota nominalmente
os povos que encontrou ou dos quais teve notícia durante sua viagem. Enumera e
informa a respeito de dezoito tribos habitantes das margens do curso principal do
rio Purus, cuja população chega aos cinco mil indivíduos. Acrescenta, por fim, que
há muitas outras vivendo pelos vários afluentes do Purus, podendo alcançar a cifra
de oito mil índios. Segundo seu levantamento, as tribos mencionadas e descritas são:
Mura, Pammary, Catauixi, Caripuna, Cipó, Mamury, Uaipuçá, Catuquina, Cruphaty,
Tará, Parú, Hypuriná, Pammaná, Quaruná, Jubery, Hyamamady, Canamary e
Manetenery.
Já no final do século 19, a paisagem humana do Purus apresentava-se
completamente diferente daquela encontrada por Silva Coutinho no início dos anos
sessenta. Mostrando agora um Purus excessivamente povoado, Euclides da Cunha
vai chamar a atenção para o intenso processo imigratório que se instalou na região
a partir da segunda metade do século 19, sobre a qual sublinhou: “uma das mais
enérgicas não já da nossa terra senão de toda a América do Sul”.
Em seu Relatório de 1905 assim descreve o processo migratório na região:
Já naquele tempo se estendiam pelas duas margens do Purus
(não contando as do Ituxi, do Pauini, do Inauini, as do Acre, do
Iaco, etc.) mais de 400 seringais, além de uma cidade, Lábrea,
erigida em comarca pela lei provincial de 14 de maio de 1881, e
uma pequena vila, Canotama (Cunha, 1960; 1905, p. 83).
Descreveu, ainda que sumariamente, as condições estruturais de mais de duas
dezenas destes seringais, enumerando suas construções e localização, lembrando
que mais de um quarto de toda a extensão do Purus estava completamente povoada
de brasileiros, “os admiráveis caboclos cearences que revelaram a Amazônia”.
Euclides da Cunha deu pouca ou nenhuma atenção aos índios. Em seu capítulo
denominado Povoamento – da foz às cabeceiras, onde se esperava que traçasse um
quadro dos habitantes nativos do Purus, limitou-se a algumas parcas informações
legadas por seus antecessores. Tratando-os como lembranças do passado, em vias
de completa absorção pelas novas frentes de ocupação, assim lembrou, numa rápida
passagem, depois de breves comentários sobre as mudanças encontradas entre os
Jamamadi, Apurinã (hipuriñas) e Canamari: “Estas tribos fervilhavam nas duas orlas
do Purus”. Em seguida, além destes, faz menção nostálgica aos Paumari (pamaris)/
Juberis, Pamanás e Maneteneris, e completa: “é que cederam lugar a uma imigração
intensiva, ou foram absorvidos por ela”.
74
Álbum Purus
Gilton Mendes dos Santos
A atuação da empresa J. G. Araújo no Purus1
Sabemos que a empresa J. G. Araújo manteve atuação sistemática nas águas
do Purus desde a segunda metade do século 19, estendendo-se pelo menos até o ano
de 1956 (cf. Carvalho Júnior, nesta coletânea). A seu serviço as embarcações
singravam os rios, animadas pelo comércio extrativista, e abasteciam os armazéns e
seus clientes seringalistas em toda a Amazônia.
Várias foram as embarcações, sob diferentes tipos, que partiam de Manaus
a serviço da empresa J. G. Araújo. A referida pesquisa encontrou um livro de
“Movimentação de Embarcações” com destino ao Purus ao longo de toda a década
de 1940. As embarcações mencionadas são: Vapor Aripuanã, Lancha Eline, Batelão
Júpiter, Alvarenga Beta, Lancha Içá, Motor Baré, Alvarenga Tapuya, Batelão Látex,
Batelão Vencedor, Alvarenga Madeirinha, Lancha Ítala, Batelão Rio Autaz e Motor
Vista Alegre.
As viagens eram descritas com detalhes pelo “Diários de Navegação”, um
registro cotidiano com informações sumárias e objetivas: data, hora e local da partida,
os destinos da viagem, trechos navegados, locais de paragem e abastecimento de
lenha (“porto de lenha”) e alguns acontecimentos dignos de nota, pelo comandante
da embarcação. Dos nove diários encontrados pela pesquisa, cinco referem-se
àquelas realizadas em direção ao Purus pelas embarcações Tartaruga II (janeiro de
1949), Tartaruga III (maio de 1951), Caubé/Cauby (agosto de 1947), Júpiter (194554?) e Eline (1946?).
Outro documento importante sobre a movimentação da empresa nas
águas do Purus são os “Relatórios de Navegação”. Trata-se de registros com dados
sumários, destacando campos como: datas de saída, nome do comandante, tonelagem
dos produtos, embarcações de reboque, data de entrada nas cidades de destino e
um campo de observação. Na documentação disponível foram encontrados dois
relatórios referentes às seguintes lanchas e anos de viagem: Júpiter (1946-1954),
Eline (1946, 1947 e 1956), Antônio Carlos (1946), Baré (1948), Aripuanã (1946,
1947), Brasil (1948, 1947, 1948, 1950, 1951, 1952), Martins (1949), Tartaruga III
(1947) e Cometa (1951 e 1952).
1 O conteúdo deste item está baseado numa pesquisa de Pibic, realizada por alunos de graduação (curso de
Ciências Sociais) do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai/Ppgas/Ufam) e conduzida durante o
período de julho de 2008 a maio de 2009. São eles: Angélica Maia Vieira, Ingrid Daiane Pedrosa de Souza,
Liliane Souza e Souza, Rancejânio Guimarães, Alex Sander Pereira Regis e Jucélya Suellen Pereira da
Silva. O referido levantamento resultou em vários relatórios de Iniciação Científica – conf.
Um retrato do sistema de aviamento no Purus...
75
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Os bens industrializados levados aos seringais são os mais diversos, aparecendo
entre eles: biscoitos, vassoura, fósforo, sabão, leite, tabaco, querosene, açúcar, arroz,
sal, feijão, cachaça, louça, ferragens, pólvora, chumbo, banha, manteiga, trigo, etc.
Dentre aqueles provenientes do Purus para Manaus, em troca com os produtos e
bens industrializados, destacam-se a borracha, o pirarucu, a madeira e couros de
animais.
Esses produtos eram registrados nos chamados “Livros de Carga”.
Estes livros discriminavam as mercadorias transportadas pelas embarcações
(enviadas e recebidas) assinalando: procedência, destino, carregador, recebedor,
marca, quantidade, volume, gêneros, frete. A pesquisa encontrou três Livros de
Carga referentes às lanchas Júpiter, Eline e Lygia. Os deslocamentos dessa última
aconteceram entre os anos 1931, 1932, 1934 e 1938. As viagens da lancha Júpiter
foram realizadas nos anos 1945 a 1954, mas apenas duas no ano de 1948 levaram
produtos com procedência do Purus (Ano Bom e Boca do Acre). As viagens da
lancha Eline para a região do Purus referem-se ao ano de 1946. A carga do mês de
abril com procedência de Sena Madureira com destino a Manaus registra, além da
borracha e da castanha, 155 kg de couro de veado, 137 kg de couro de caititu, 55
kg de couro de queixada, 11 kg de couro de onça-pintada e maracajá e 347 kg de
“couros diversos”.
Um produto da floresta abundante nas terras firmes do Purus e bastante
comercializado pela empresa J. G. Araújo foi a castanha-do-brasil (Bertholetia excelsa).
Para seu controle existiram registros específicos, os chamados “Livros de Castanha”.
Trata-se de recibos numerados, com timbre da empresa, trazendo informações
específicas sobre a compra do produto: nome do vendedor, vapor de carregamento,
nome do rio de origem, data da entrada do produto, quantidade vendida, tipo da
castanha (miúda, média ou grande), local, data e assinatura do vendedor. A pesquisa
levantou 24 recibos de compra e venda referentes ao rio Purus, datados entre os
meses de novembro de 1932, janeiro a novembro de 1934 e janeiro a abril de 1935.
A quantidade (aproximada) de castanha comercializada nesse período (15 meses)
soma-se 9.500 hectolitros, isto é, 950 toneladas. As embarcações responsáveis pelo
transporte dessa castanha foram: Rio Mar, Sapucaia, Republicano, São Salvador,
Envira, Ítala, Ayapuá, Distrito Federal, Cotinha, Geórgia, Eline e Belém.
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Álbum Purus
Gilton Mendes dos Santos
Foto: Vapor Júpiter, uma das embarcações da empresa J.G. Araújo que navegavam pelas águas do Purus.
A empresa e as cartas
A chamada Carta Comercial era o principal meio de comunicação entre
a empresa e seus clientes espalhados entre rios e igarapés da Amazônia. Ela, sem
dúvida, vivificava o sistema de aviamento, informando, cobrando, desculpandose e reclamando. A carta funcionava como o elo entre as duas pontas do sistema
comercial, a ligação entre o fornecedor de matéria-prima da floresta e a empresa
mantenedora dos barracões, cujos bens industrializados – única e mais importante
moeda de troca – eram manejados, estocados e repassados aos seringueiros. O
teor das cartas é bastante diversificado, girando em torno dos débitos e créditos e
também das renegociações de dívidas e pedidos dos clientes de pagamento a outros
credores pela empresa e ainda de pedidos de novas mercadorias para abastecimento
dos seringais. As cartas detinham, enfim, o poder de procuração: aos empresários
eram solicitadas e confiadas as mais diversas transações comerciais, a compra de
produtos e solicitação de serviços, repasses de valores a terceiros, depósito em conta
etc. Vale dizer ainda que as cartas quase nunca encerram um assunto nelas mesmas,
revelam uma comunicação em andamento, uma continuidade de negociações
iniciadas anteriormente – o que aponta para uma investigação em conjunto das
correspondências trocadas entre os seringalistas e a empresa J.G. Araújo.
Um retrato do sistema de aviamento no Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Foto de uma carta (cf. arquivo)
78
Álbum Purus
Gilton Mendes dos Santos
Identificadas ao longo dos muitos anos de atuação da empresa no Purus,
as cartas trocadas com os fregueses (talvez nem todos) carregavam uma marca
d’água com a insígnia amisade, todas elas escritas e assinadas de próprio punho pelos
empresários donos da empresa, sob as diferentes razões sociais que esta adquiriu em
sua história de vida. As oitenta e nove cartas encontradas na documentação foram
trocadas entre a firma, a partir de Manaus, e os clientes de diferentes localidades do
Purus (confira tabela abaixo).
Localidades do Purus que comercializam com a empresa seringalista J.G.Araújo
e seus respectivos clientes.
Localidade
Ayapuá
Berurí
Boca do Acre
Boca do rio Purus
Cachoeira
Canhoé/ Caioé
Filipinas
Lábrea
Livre-nos Deus /Alto Purus
Maripuá
Mucury
Natal
Pauini/ Pauhinny
Santa Bárbara
São João de Arimam/ Arimã
São Romão/ Baixo Purus
Sena Madureira
Vila da Lábrea
Clientes
Antônio Fábio de Lemos Rodrigues
Guilherme Oliveira
A. Leite & Cia./ Luís Góes
(Aristides Coelho, Júlio Américo)/
Mamed Serejo e Mamond Amed.
Benjamin Afonso
Manoel José de Campos /
Eduardo Vieira e Regallo Braga
Maria Bessa Oliveira /
Manoel Oliveira Heba
Henrique Figueiredo
Abbas Mousse / José Anacleto Zuany
e José Raimundo Saraiva
José Nunes de Souza Mattos
Abner de Sena
Alfred David
Custódio J. Oliveira
Maria Pereira de Carvalho
Manoel Antônio da Cunha
Luís Corrêa Lobato /
João Baptista de Aquino
Nilo Pinheiro / Adora Abdon
Maximino Ladeira
Vicente Leopoldina Mendonça
Fonte: Arquivos J.G. Araújo, Museu Amazônico
Um retrato do sistema de aviamento no Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Se considerarmos o cenário de ocupação do Purus, conforme descrito
por Euclides da Cunha no começo do século 20, notaremos que a empresa J. G.
Araújo, fortemente atuante na região, atendia um número espantoso de seringais
e clientes. O que se mostra na tabela acima, portanto, é apenas uma mostra do
alcance comercial da J. G. Araújo, uma vez que, vale destacar, nenhum documento
foi encontrado nos arquivos entre as décadas de 1910 e 1920, período de maior
movimento da atividade comercial extrativista na Amazônia. Essa ausência se
justifica, provavelmente, pela indisponibilidade de acesso de boa parte do material
da empresa ainda sem tratamento e catalogação – fora, portanto, do alcance da
pesquisa.
Esse quadro sociocomercial do Purus – assinalado entre os anos 1880 até
metade do século seguinte, fortemente marcado pela ocupação de seringueiros e
seringalistas – contraposto à densa ocupação indígena registrado por Silva Coutinho
em meados do século 19, nos informa em letras garrafais a intervenção sofrida na
região. Isto é, a chegada das frentes extrativistas, o domínio da empresa seringalista
e a dinâmica do sistema extrativista, a exemplo de outros lugares na Amazônia,
fizeram deslocar, subssumir e desaparecer vários dos povos indígenas habitantes
do Purus. A dispersão e fragmentação dos grupos Arawá na região do seu médio
curso pode, talvez, ser entendida à luz do reflexo do empreendimento extrativista,
conforme pudemos, ainda que em leves traços, mostrar nestas páginas.
A sobreposição dos registros e informações referentes ao período de atuação
paralela entre a empresa extrativista e o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nos
faz entrever o recrutamento e as diferentes formas de participação dos grupos e
coletivos indígenas no esquema de aviamento no Purus, conforme nos mostra
Vieira et al (2010) e Schiel (1999), nesta coletânea.
80
Álbum Purus
Gilton Mendes dos Santos
Referências
COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório da exploração do rio Purús. In:
RELATÓRIO DA REPARTIÇÃO DOS NEGÓCIOS DA AGRICULTURA
COMMERCIO e Obras Públicas (1864), apresentado à Assembleia Geral Legislativa
na 3.a sessão da 12.a Legislatura, em 15 de maio de 1865. Anexo 0:5-96.
CUNHA, Euclides da. O rio Purus. Rio de Janeiro: SPVEA, 1960. p. 95. (Coleção
Pedro Teixeira).
GUIMARÃES, Rancejânio. O Sistema de Aviamento no Médio Purus e a participação
dos Jarawara. In: RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/Ufam, 2009.
RÉGIS, Alex Sander. Sociabilidade e envolvimento dos Paumari no Sistema de
Aviamento no Médio Purus. In: RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/Ufam, 2009.
SCHIEL, Juliana. Entre Patrões e Civilizadores: os Apurinã e a política indigenista
no médio rio Purus na primeira metade do século XX. Dissertação (Mestrado) IFCH-Unicamp, 1999.
SILVA, Jucélya. A atuação do SPI no Purus. In: RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/
Ufam, 2009.
SOUZA, Ingrid. Os Jamamadi e o sistema de aviamento na Amazônia. In:
RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/UFAM, 2009.
SOUZA, Liliane. A participação dos Kulina no Sistema de Aviamento no PurusJuruá. In: RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/Ufam, 2009.
VIEIRA, Angélica. Os índios Paumari e o Sistema de Aviamento no Médio Purus.
In: RELATÓRIO DE PIBIC, ICHL/Ufam, 2009.
Um retrato do sistema de aviamento no Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê,
Manauacá e Rio Gregório — os casos Jamamadi, Kulina e Paumari
Angélica Maia Vieira
Ingrid Daiane Pedrosa de Souza
Jucélya Suellen Pereira da Silva
Liliane Souza de Souza
Através da documentação do Serviço de Proteção aos
Índios (SPI)1 , partindo do estudo de seus Postos, pretendemos
aqui fazer uma análise da ação deste órgão junto às populações
indígenas do Purus; tomando estes três povos como exemplo,
Jamamadi, Paumari e Kulina.
O material utilizado para esta análise foi compulsado por
nós em pesquisas anteriores de Iniciação Científica realizadas
nos anos de 2008 e 2009.2 O objetivo geral dessas pesquisas foi
identificar e analisar a participação dos referidos grupos no sistema
de aviamento predominante na Amazônia durante o chamado “Ciclo
da Borracha”.
Priorizou-se compreender o modo como tais povos
iam sendo amparados pelo órgão indigenista, haja vista sua
inserção nos esquemas extrativistas e implicações posteriores.
Assim, dentre os resultados alcançados, foi possível construir
um corpus inteligível sobre cada grupo indígena enfocado.
É importante ressaltar, ainda, que além das fontes
primárias elencadas acima, trabalhos como o de Günter
Kroemer (1985), Juliana Schiel (1999), Carlos Augusto da Rocha
Freire (2007) e Joaquim Melo (2007), foram significativos para
elaboração deste texto.
1 Foram analisados 21 microfilmes (adquiridos pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena e sob a guarda
do Museu Amazônico da Ufam) dentre os quais apenas três contêm informações sobre os povos da região
em foco.
2 O material sobre os grupos-alvo desta pesquisa foi levantado por Ingrid Daiane, Liliane Souza e Angélica
Vieira; com exceção de Jucélya Suellen, que inicialmente procurou focalizar seu estudo no material
disponível sobre os Deni. Um vez não tendo encontrando referências diretas a este grupo, readaptou sua
pesquisa para o estudo dos Postos Indígenas Marienê e Manauacá. Outra fonte de documentos cotejada
pela pesquisa foram os arquivos disponíveis da empresa J. G. Araújo (cartas, livros de carga, fichas de
compra de castanha etc.). Obviamente, as de posse do Museu Amazônico da Ufam, relativamente higienizada e catalogada.
82
Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Embora munidos de tal documentação, iniciamos este estudo pedindo
indulgência do leitor em relação às limitações de ‘tempo e espaço’: tanto em relação
à análise dos dados obtidos durante a pesquisa, quanto à forma de exposição das
informações num texto condensado em forma de artigo. Vale enfatizar, mais uma
vez, que tal análise é fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica, isto é, e por isso
mesmo, o começo de uma pesquisa que requer continuidade e aprofundamentos
teórico-metodológicos futuros.
Visando incorporar as populações indígenas do País na denominada “massa
cívica” brasileira, o SPI adota como estratégia o “poder tutelar”. A inserção dos
povos indígenas, por conseguinte, será na categoria “trabalhador nacional”; isto
porque, ainda em conformidade com os ideais, acredita ser esta a maneira mais
adequada de obter resultados imediatos. Não de modo diferente será conduzido o
agenciamento dos arawá do Purus.
Instituído em 1910, o até então Serviço de Proteção aos Índios e Localização
de Trabalhadores Nacionais (Spiltn), transformado em Serviço de Proteção aos
Índios em 1918 e extinto em 1967, atua em regiões da Amazônia, e do Brasil como
um todo, a partir de seus conhecidos Postos Indígenas. Por isso nosso ponto de partida
são os três postos instalados na região dos médios rios Purus e Juruá: Marienê,
Manauacá e rio Gregório.
Os postos indígenas
A implantação de Postos Indígenas (PIs) pela Inspetoria do Amazonas e Acre
configura-se como uma tática utilizada pelo SPI para alcançar seu objetivo na
região amazônica. De acordo com Melo (2007), estes postos serviam de aparato na
prestação de serviço disponibilizados às populações indígenas. Nessa mesma linha,
defende e denuncia Kroemer (1985) sobre a intenção dos postos:
Os postos indígenas constituem o melhor, senão o único meio
de se chegar ao fim desejado de pacificação, localização e
proteção completa dos índios disseminados pelos sertões. De
outra maneira, não se podia mostrar os instintos de amizade
e proteção aos índios, patriotas perseguidos e massacrados
pela cupidez e impatriotismo dos abocanhadores de latifúndio.
(Kroemer, 1985, p. 92-93).
De acordo com o Decreto n.º 736, de 1936, que regulamenta a criação dos
PIs, estes se categorizavam em Postos de Atração, Vigilância e Pacificação e Postos de
Assistência, Nacionalização e Educação. Ao primeiro cabia
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
a obrigação de proteger os indígenas de ataques e proteger suas
terras contra invasões; atrair por meios brandos as tribos arredias
ou hostis e não permitir nenhuma violência física contra os
indígenas, ainda que as hostilidades partissem deles; não permitir
a imposição de religião, serviços, ensino e aprendizagem que
eles não aceitem; prestar todo o auxílio necessário aos índios
atraídos e pacificados; afastar do contato dos indígenas pessoas
que sejam portadoras de moléstias e fazer respeitar a família
indígena (Melo, 2007, p. 53).
Os Postos de Assistência, Nacionalização e Educação incumbiram-se da obrigação
de agrupar os índios de uma ou mais etnias em um mesmo lugar. Nesses postos,
essas populações seriam as responsáveis pelas atividades pecuárias e pela organização
das lavouras.
Para o caso da Inspetoria do Amazonas e Acre, de acordo com documento
encontrado pela pesquisa (microfilme 340), temos uma lista que distribui os PIs
em: Posto Indígena de Atração, Fronteira e Assistência, Criação e Alfabetização. Neste rol,
os PIs Marienê, Manauacá, ambos com sede no Purus, e o rio Gregório, no Juruá,
encontram-se identificados como Posto de Fronteira e Assistência (PIN). Em outro
documento, porém (microfilme 032), essas mesmas unidades aparecem como Postos
de Nacionalização e Assistência.
Partindo dos subsídios encontrados nos microfilmes 340 e 032, nota-se que
o principal objetivo destes postos era congregar as diversas populações indígenas
que habitavam o Purus, independentemente de grupo étnico, todos deveriam ser
agrupados e ensinados ao ofício da agricultura, funilaria e outros serviços em geral.
Posto indígena Marienê ou Pedro Dantas
Conhecido também como Posto do Seruini ou Pedro Dantas, este posto se
localizava no rio Seruhiny, no município de Lábrea.
84
Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Avenida do Posto Marienê.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322, planilha 054.
Fundado em 1913, logo no início da crise econômica da borracha na região
amazônica, foi diante dos conflitos entre seringalistas e índios, mais precisamente
com os Apurinã, que se criou o PI Marienê. No entanto, um ano após sua fundação
(1914), o PI foi extinto e em 1919 foi restituído.
Conduzido pelo encarregado Leonardo Sólon em 1927, o PI Marienê atendia
principalmente o povo Apurinã, uma das mais numerosas tribos da região do Purus.
Segundo o Relatório deste mesmo ano, o PI se tornaria em breve um aprazível povoado
indígena.3
Segundo Kroemer, o PI Marienê se configurava como
[...] um centro de atividade e labor que muito engrandece a
nossa obra naquela região no Purus, sendo apenas para lembrar
que devido ao seu afastamento da margem do Purus não seja
permitido a quantos viajam por aquele rio apreciar os serviços
que esta inspetoria ali mantém (Kroemer, 1985, p. 94).
De acordo com registros encontrados no microfilme 322, planilha 052,4
residia no Manauacá 85 silvícolas, somando mulheres e crianças; e nas adjacências
do posto, ultrapassava o total de 300 silvícolas.
3 Relatório de Inspetoria, 1927. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – Maic. Serviço de Proteção
aos Índios — Inspetoria do Amazonas e Acre.
4 Relatório de Inspetoria, 1927. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – Maic. Serviço de Proteção
aos Índios — Inspetoria do Amazonas e Acre.
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Posto Marienê. Homens, Mulheres e crianças Apurinã.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322, planilha 054.
No fim do ano de 1926, o Posto Marienê havia construído duas novas barracas
e restaurado a cobertura da casa de farinha, onde haviam sido consumidos 190 feixes
de palha de caranahy. O posto possuía também uma escola, 13 barracas de madeira
de lei, uma avenida que media um quilômetro de extensão e cem de largura.
O Marienê era um grande centro de atividades. A produção industrial de
que dispunha o posto era composta, no que se refere à agricultura, pelos seguintes
produtos: milho, açúcar, mel de cana, arroz, farinha, goma, banana, pupunha,
graviola, laranja, abacate, manga, entre outras. Tinham também uma horta, nela
cultivavam couve, cebolinha, tomate, alface, nabo, rabanete, coentro e fava, e
também inúmeras fruteiras.
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Posto Marienê. Índios Apurinã trabalhando na pecuária e na lavoura.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322, planilha 054.
A agricultura desenvolvida na sede do posto pode ser identificada a partir
dos números encontrados abaixo:
Roça
120.000 covas
Cana-de-Açúcar
10.000 covas
Bananeiras
1.500 covas
Abacaxi
500 covas
Arroz plantado
40 litros
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A fabricação e beneficiamento de produtos de lavoura deram os seguintes
resultados ao posto:
Farinha
350 paneiros
Açúcar
600 quilos
Arroz com casca
4.000 litros
Milho
150 sacos
Apesar da prosperidade do posto, as crises passadas pelo órgão indigenista
afetavam as atividades desenvolvidas por ele, já que os recursos passados aos PIs já
não eram mais possíveis.
Além das crises, outro fator que dificultava o bom andamento do posto
era a sua localização. Seu acesso era difícil e demorado, resultando em atraso dos
materiais solicitados pelos delegados, e consequentemente ineficiência no atendimento
aos índios.
Saindo de Manaus até Caçaduá, no meio do Purus, município de Lábrea,
a viagem durava dez dias se fosse feita em vapor e quinze se feita por lancha, no
inverno. No verão os vapores gastavam de doze a catorze dias enquanto as lanchas
de dezoito a vinte dias. Chegando a Caçaduá seguia-se por terra, perto de quatro
horas a pé, até chegar ao lugar Santo Antônio, de onde se tomava uma canoa sobe
o rio, chegando ao PI em três ou cinco dias, levando em consideração o número de
remadores, o peso deles e da própria canoa.5
Diante de todas essas dificuldades, a densa decadência em que se encontrava
este Posto, se agravou com a saída de Sólon. A quantidade de índios atendidos pelo
posto foi reduzida, e eles se encontravam foragidos, na gestão do inspetor Fiúza.
Em 1922, por exemplo, constam noventa e cinco pessoas no Posto e noventa
e cinco morando nos arredores. Já em 1941, época da decadência do Marienê,
nenhum indígena vivia no posto e vinte e cinco destes se encontravam nos seus
arredores (cf. Schiel, 1999).
Em 1950, o Posto Indígena Marienê foi dado como paralisado ou fechado
e as terras “vendidas à firma Manasa, por Inácio Abrahim, genro do então inspetor
dos índios, major João de Barros Veloso da Silveira” (Schiel, 1999).
5 Informações extraídas de relatório contido no Microfilme 001.
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Posto Indígena Manauacá
A princípio, esclarecemos que as informações aqui disponíveis sobre o
Posto Manauacá seguirão a ordem dos dois relatórios encontrados no microfilme
032, planilhas 051 e 052.
Fundado em 1921, o PI Manauacá tinha por função atrair diversos indígenas
do povo Jamamadi que ficaram dispersos, quando do fechamento em 1914, do posto
fundado pelo então ajudante Bento de Lemos no rio Inauhiny (Melo, 2007).
Avenida da sede do Posto Manauacá.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322, planilha 054.
Sob a vigilância e proteção desse Posto, situado em “esplêndido
e aprazível local”, no rio Tuhiny, afluente do Purus, continuam,
sem alteração, os índios Jamamadys.6
De residência fixada na localidade contam-se noventa e cinco
índios (1927), sendo que nas imediações do posto estão
agrupados, em várias malocas, centenas de indivíduos dessa
numerosa tribo. Vivem satisfeitos e prazerosamente se entregam
ao serviço, dirigido pelo pessoal do posto, cooperando, assim,
para o desenvolvimento desse núcleo indígena, que, na verdade,
prospera a olhos nus.
6 Relatório do Inspetor, 1927. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – Maic. Serviço de Proteção
aos Índios — Inspetoria do Amazonas e Acre — microfilme 322, planilha 052.
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Grupo de Índios Jamamadi — Posto no Rio Tuhiny.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322.
Segundo Lemos (s.d.), os índios Jamamadi habitavam as terras da margem
esquerda do rio Purus na grande extensão que vai do Tapauá ao Inauhiny. O
Pauhiny fica entre os dois rios, e em cada um deles lançam-se muitos outros rios
e inumeráveis igarapés. Havendo em todas as terras firmes banhadas por essa
grandiosa rede hidrográfica malocas de índios Jamamadi.
No Inauhiny os Jamamadi dividem-se em diversos grupos ou tribos, sob
as seguintes denominações: Macuhidenin, Ivédenin, Sivacudenin, Demadenin,
Tamacuhidenin, Zuvazuvadenin e Eréquédenin. As três primeiras habitam as
terras centrais da margem esquerda do Inauhiny, desde a foz até o Inuriam. As três
seguintes, as terras centrais da margem direita do mesmo rio, desde a foz até o S.
Francisco. A sétima, desde este afluente até o Aramá, ou seja, o próprio Inauhiny,
que perde este nome para receber aquele, da foz do Inuriam para cima.
Habitam o Alto Aramá e o Alto Inuriam os Catuquinas que os Jamamadi
muito temem e com quem evitam ter encontros. São estes índios apontados como
malvados e ferozes, principalmente pelos caucheiros peruanos que ainda não
puderam exterminá-los.
No período que Lemos realizava sua viagem na região do Inauhiny, sucedeuse um ocorrido: os caucheiros peruanos, que exploravam demasiadamente a região,
assaltaram de surpresa uma maloca Jamamadi de nome Santo Antônio. Prenderam
todos os que ali se encontravam, perto de sessenta índios Jamamadi. Levados
para um cauchal, os Jamamadi foram mantidos em cárcere privado, não recebiam
alimentação e eram vítimas de todo tipo de violência, muitos não aguentaram a
circunstância e vieram a falecer durante a viagem.
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Manauacá era um núcleo indígena que contribuía e prestava assistência
aos índios, atenuando as suas necessidades de vida por meio do fornecimento, em
pequenas quantidades, de gêneros de produção industrial e agrícolas, como também
instrumentos indispensáveis aos serviços da lavoura.7
Posto indígena do Tuiní. Índio Jamamadi trabalhando com o gado.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929. Microfilme 342, Fotograma 152.
O Posto Manauacá objetivava zelar pela integridade das populações que ali
se encontravam. Sua função estava para além de uma prestação de serviço, pois o
encarregado do posto zelava pela sorte daqueles que habitavam malocas distantes,
na zona que se estendia do Tuhiny até as margens do rio Inauhiny, não permitindo
que Jamamadi e Apurinã fossem explorados ou manietados na sua liberdade pelos
aventureiros que faziam dos índios escravos nas estradas de seringais.
Enquanto isto, os empregados da inspetoria, ali destacados para a nobre
e patriótica cruzada da completa pacificação dos povos da Amazônia, iam em
constantes viagens pelas malocas dispersas, procurando convencer os mais arredios
das vantagens de virem todos para o posto, onde melhor poderiam ser atendidos
em suas necessidades ou socorridos em sua doenças.
De acordo com a documentação concernente ao Manauacá, os índios
participavam ativamente da produção, fazendo do posto um centro de labor, de
operosidade, onde as tribos ali acolhidas, dia a dia, desmentem a falsa afirmativa de que o nativo
é indolente e cheio de vícios.
7 Relatório do Inspetor, 1924. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio — Maic. Serviço de Proteção
aos Índios — Inspetoria do Amazonas e Acre — Microfilme 322, planilha 051.
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Posto Indígena Manauacá.
Acima: índio Jamamadi de volta de uma caçada.
Ao lado: índia Jamamadi costurando roupas.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929,
Microfilme 322.
Logo, dentro de pouco tempo, Manauacá se tornaria o centro de uma
vultosa população Jamamadi, oferecendo o “agradável aspecto de um vilarejo
prospero e feliz, onde os defortunados patrícios gozariam sua velhice com um
regular conforto”.
Assim, Manauacá crescia a todo vapor. No ano a que se refere estas
informações (1927), o Posto já havia aberto um novo roçado, numa área de trezentas
braças em quadro, destinado exclusivamente para a plantação de milho e arroz, já
estando afetuado o platio de duzentos quilos do primeiro e cinquenta do segundo.
A colheita descrita no relatório sobre o Manauacá apresenta a seguinte cifra:
92
Castanha
30 barricas
Farinha
337 paneiros
Açúcar
1.200 quilos
Arroz
6.000 litros
Milho
400 sacas
Farinha
350 paneiros
Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
A castanha colhida na produção do Posto Manauacá foi empregada
na aquisição de vários objetos de que necessitavam os índios, tendo sido os
demais produtos consumidos entre o pessoal do posto e os índios, fornecidos
equitativamente, por todas as malocas, de acordo com as necessidades emergentes.
Os serviços voltados para as atividades de criação encontravam-se ainda
restritos à criação de porcos e galinhas. Assim, Manauacá já tinha 32 cabeças de
porcos e perto de 400 galinhas grandes e pequenas.
Posto Manauacá. Galinheiro construído no Posto Indígena.
Fonte: SPI, relatório anual da IR1 de 1929, Microfilme 322, planilha 054.
Segundo o mesmo relatório (1927), o posto tentava concluir a construção
de uma casa de farinha, que media dez palmos de comprimento por 60 de largura,
estando as obras, entretanto, bem adiantadas. No mais, o Posto já contava com dez
barracas de madeira de lei e já haviam construído a “linda avenida das mangueiras”,
com setecentos metros de extensão por cem de largura.
Para o transporte de mercadorias e produtos da lavoura foi construído no
próprio posto um batelão com capacidade para três toneladas de carga, prestando
os melhores serviços e grande economia à administração do Manauacá.
Quanto às plantações, Manauacá apresentava a seguinte cifra:
Pupunheira
100 pés
Mangueira
35 pés
Cajueiro
2.000 pés
Laranjeira
25 pés
Bananeira
6.000 covas
Abacaxi
200 covas
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A fim de dividir o campo de criação do de plantação, foi levantada uma cerca
de pau a pique com três fios de arame farpado, numa extensão de 400 metros.
Buscando concluir as várias obras já iniciadas no posto, o SPI dispunha no
depósito em Manauacá, entre outros materiais, dez dúzias de tábuas de cedro, vinte e
dois esteios de acariquara e itaúba, dez barrotas, sete atracadores com 60 palmos de
comprimento e muitas outras peças, como frechais, cumieiras, pernas-mancas, etc.
Desse modo, pode-se dizer que a prosperidade do PI Manauacá só foi possível
mediante ao trabalho materializado pelas populações indígenas nas atividades
produtivas de que disponibilizava o posto. Os relatórios sobre Manauacá nos revelam
que os indígenas viviam satisfeitos, cooperando, assim, para o desenvolvimento desse
núcleo indígena que prosperava a olhos nus.
No entanto, com uma aparente prosperidade, em 1931, com a redução de
verbas, o serviço oferecido pelos postos indígenas foi reduzido aos milhares. Por
conta dessa redução, tanto o PI Manauacá quanto o Marienê contavam apenas com
um encarregado e um trabalhador.
De acordo com Lage (Relatório da 1.ª inspetoria referente ao ano de 1951),
por volta de 1945, o Posto Indígena Manauacá foi desativado, sendo reaberto
juntamente com o Posto Jatapu (localizado no rio Jatapu e Tuini) em 1951, em
razão do vasto campo extrativista.
Ainda de acordo com este inspetor, o Posto Manauacá apresentava ampla
importância nos serviços que o SPI pretendia proporcionar, uma vez que estes postos
contavam com um abastecido campo extrativo, principalmente o “Manauacá”, cuja
área era repleta de amplas quantidades de seringais e castanhais, além de outros
produtos. Ele salienta que o “braço indígena” foi a alavanca que estimulou o setor
agrícola, e com o fechamento do Posto Manauacá, as populações que antes eram
assistidas por este foram migrando para os seringais circunvizinhos.
No entanto, como o Manauacá era um grande centro agrícola, buscou-se em
1951 reativá-lo, não com o intuito de prestar assistência às populações que ficaram
desassistidas, mas com a finalidade de agrupá-los novamente para o cumprimento
das atividades agrícolas.
Posto indígena Rio Gregório
Segundo Melo (2007), o Posto Indígena Rio Gregório foi instalado no médio
Juruá em 1925 com o encargo de dar assistência aos índios Canamary, Bendiapá,
Jaminaua, Cachináua e Curina.
Considerado o maior centro agrícola do Médio Juruá (Lemos, 1929,
Monteiro de Souza, 1985), o posto abastecia grande parte da população
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
local, além de prover instrumentos de lavoura aos povos ali situados, os quais
encontravam na agricultura os recursos necessários para sua subsistência.
Este posto era sediado na vila de São Felippe e para se chegar até ele, segundo
consta na documentação, era preciso obedecer às seguintes orientações:
[...] no Municipio de São Felippe – vai-se de Manáos em vapor
até a Villa de São Felippe, no rio Juruá, em 12 dias, no inverno,
e de 16 dias, no verão. De São Felippe, vai-se ao logar Rivaliza,
próximo a foz de Gregório, em chatas a vapor ou lanchas, de 3 a
4 dias. De Rivaliza???, uma hora até a foz do Gregório, sobe-se
este rio em canôa e chega-se no posto em 4 ou 6 dias (Microfilme
001, fotograma 702).
Nesse registro notamos que a localidade “Rivaliza” surge apenas como ponto
de referência para que se cheguasse ao PI, mas, segundo Belarmino Mendonça
(1907), esse ponto referencial tratava-se de um dos 174 seringais localizados no
Médio Juruá no início do século 20.
Em seu relatório de 1924, Bento de Lemos retrata as medidas práticas acerca
dos PIs e faz a seguinte consideração:
[...] O do rio Gregório terá a missão de proteger os índios Curina
que vivem nas malocas “Riozinho” e “Massapé”, dos centros
do seringal “Santo Amaro”, e os índios Bendiapás, Canamarys
e Curinas que habitam as malocas “Canundé”, “Atalaia” e Ajubi,
nos fundos do seringal “Rivaliza” (BEnto de Lemos, 1924).
Como podemos observar, a ênfase dada por Lemos reitera a observação
de Mendonça sobre Rivaliza ser um seringal. Mas o que nos chama a atenção é a
citação de Lemos quanto ao fato de o Posto Indígena Rio Gregório ser engendrado
“nos fundos” desta localidade. Monteiro de Souza (1985) afirma que o Posto Rio
Gregório abrangia, na verdade, o território do seringal Ceará. Embora as afirmações
sejam controversas, podemos observar que ambas tratam da existência do PI em
terras sob domínio de seringalistas.
Isso causa certa dualidade, visto que a própria administração do posto
estimulava os silvícolas ao trabalho agrícola, deixando assim o serviço da indústria
extrativista e o deplorável estado de miséria e exploração em que se achavam
(Lemos, 1924). Não raro são encontradas ambiguidades em vários momentos
do discurso empregado pelo inspetor Bento de Lemos. Se por um lado os índios
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
são “incentivados” ao trabalho agrícola, em várias outras citações encontradas nos
relatos vemos o favorecimento do trabalho extrativista. Voltaremos a este assunto
mais adiante.
As referências sobre a produção do PI Rio Gregório são sempre constantes
nos relatórios do SPI. As citações são diversas e vão desde os produtos cultivados,
sua quantidade e seu processo de fabricação:
[...] Em abril fez-se o plantio de 10 litros de feijão e derrubou-se
um roçado de 200 metros de comprimento por 300 de largura,
cuja broca se iniciara em março, atacando-se também a colheita
do arroz, tendo o pessoal do posto, por falta de utensílios
próprios, ido fazer farinha no seringal ‘Atalaia’, para aproveitar a
mandioca (Bento de Lemos, 1927).
Entre as atividades desenvolvidas no Posto Rio Gregório passou a incidir,
ainda, a produção industrial. Isso pode ter ocorrido como reflexo do crescimento
dele, o qual passa a transformar matéria-prima em outros produtos, como é o caso
do mel e rapadura, provenientes da cana-de-açúcar.
Assim, exemplificando estas produções, observemos os dados de 1929:
Açúcar
2.938 kg
Rapadura de ½ kg
440 kg
Mel de cana
446 litros
Farinha
204 alqueires
Arroz
25 alqueires
Banana
6.950 cachos
Macaxeira
2.531 paneiros
Tabaco
4. ½ arrobas
Café
1 arroba
No mesmo ano, Bento de Lemos reafirma o potencial econômico do Posto
Rio Gregório e acrescenta que a relação mantida entre este e os índios da região
era pacífica e satisfatória (Lemos, 1929). Os índios eram sempre relatados como
contentes diante da “assistência e proteção”, bem como mediante os benefícios
recebidos pelo trabalho executado:
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
Este anno, aproveitando o enthusiasmo dos indios pelo serviço
de extração da gomma elastica, em que se empregaram o anno
passado com real proveito, ordenei ao Encarregado que fizesse
explorações nas terras ocupadas pelos aborigenes, afim de ver
se econtravam seringaes nativos onde pudessem os mesmo
trabalhar sem serem incomodados pelos civilizados. (Bento
de Lemos, 1929).
O entusiasmo dos índios era a justificativa utilizada pelo inspetor para
realizar novas investidas em terras indígenas em busca da hevea brasiliensis. Mesmo
os índios que se encontravam fora da custódia dos seringalistas, não habitantes dos
seringais, praticavam o extrativismo acompanhado pelo SPI:
Um grupo de Curinas, Canamaris e Bediapás internou-se pela
mata, buscando attingir as terras ocupadas pelos seus ascendentes
do ‘divortum aquarum’8 do Juruá com o Javary, subindo com
a exploração pelo rio Iteacoary que desagua no Javary. Sabiam
elles que a arvore da borracha era comum naquella região por
isso para lá se encaminharam na certeza do êxito completo.
Valendo-se do fato de estes habitarem regiões propícias a esta atividade, o
órgão poderia ao mesmo tempo expandir seus domínios sobre as terras e utilizar o
conhecimento e a mão de obra nativa, sem necessariamente incorporá-los ao posto.
Embora todos os produtos cultivados no PI Rio Gregório não fossem
divididos entre o PI e os seringalistas, estes eram vendidos aos donos dos seringais
a um preço muito aquém do que de fato correspondia o seu valor comercial.
Ou seja, levanta-se a hipótese de que existia uma parceria entre seringalistas
e o SPI, pois se o seringalista proporcionava ao órgão oficial o espaço físico, e
o Posto Indígena, por sua vez, tinha de subsidiar os comerciantes com algo
rentável, que em contexto de aviamento foi a mão de obra indígena com o seu
potencial de conhecimentos sobre a região.
Nota-se, ainda, que Lemos refere-se, lançando mão de imagens fotográficas,
ao Rio Gregório como um dos PIs mais bem-sucedidos e eficientes no que tange
aos objetivos propostos pelo Serviço. Vejamos algumas de suas imagens:
8 Divisor de águas.
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Aspecto do Posto do rio Gregório — Rio Juruá (1928).
Fonte: MELO (2007) v. II, Anexos, p. 245.
Plantação na sede do posto do rio Gregório — Rio Juruá (1928).
Fonte: MELO (2007), v. II, Anexos, p. 248.
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Álbum Purus
Angélica Maia Vieira, et al.
A partir das imagens acima reproduzidas, nota-se que muitos dos povos
indígenas do rio Juruá realizaram constantes peregrinações na região, muitos
migravam para o rio Purus, como bem atesta Schultz e Chiara:
Existem grandes mobilidades entre os índios da bacia do Purus
e do Alto Juruá, principalmente em seus afluentes Envira e
Tarauacá, atravessam todos os anos as matas pelos varadouros.
(Schultz e Chiara, 1955, p. 26).
Nota-se, portanto, que um dos motivos que causaram a mobilidade entre os
Kulina é resultado das constantes fugas realizadas por eles. Visto que, em face da
economia extrativista, os Kulina passaram a praticar mobilidades pelas bacias do
Juruá/Purus como forma de ir para longe de toda a cadeia que o sistema de aviamento
imputava.
Segundo relatos do SPI, os Kulina, juntamente com os Chipinauas, não
habitavam lugar certo, andando por vários pontos do rio Juruá. Em 1912, o
funcionário do SPI, Dagoberto Silva, referindo-se a novas colocações do órgão
indigenista, expõe esse fato. A transcrição a seguir mostra o interesse e esforço na
fixação, pelo SPI, dos índios Kulina e Chipinauas:
O lugar mais apropriado para esse fim é onde está a maloca
Cova da onça, entre os rios Amoaca e Nilo [...] pela salubridade
do solo e pela capacidade de desenvolvimento de uma grande
povoação, como também por ser o ponto mais preferido por
eles. [...] Será um magnífico ponto de atração para os índios
Chipinauas e Curinas que não habitam lugar certo, percorrendo
diversas zonas, desde o Breu ao rio Jordão, afluente do
Tarauacá e aqueles as cabeceiras do igarapé Valpararaíso [...]
(Dagoberto Silva, 1912. Microfilme 334).
A partir da transcrição acima nota-se que, sendo os Kulina participantes desta
mobilidade, o SPI intentava causar neste povo uma vida mais estável. A pretendida
finalidade, porém, foi alcançada a partir de 1930. Neste ano eles já adotavam uma
vida baseada na agricultura, tanto que, numa aldeia situada no rio Riozindo do
Penedo, calculava-se 207 Kulina, todos envolvidos na fabricação de farinha.
Portanto, pode-se dizer que a mobilidade praticada pelos Kulina encontra-se
intimamente relacionada à aproximação deste povo com a economia da borracha.
Usamos o termo aproximação pelo fato de que muitas desses deslocamentos serem
resultado da fuga desses índios para longe do domínio dos seringalistas. Vale lembrar
Um estudo a partir dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
que estes estimulavam a prática das “correrias de índios”, que consistiam na violenta
caçada aos índios para seu envolvimento no processo extrativista, por intermédio
de captura e matanças por meio de armas de fogo e qualquer outro material que os
ajudasse a capturá-los (Zwetsch, 1984).
Outro agente motivador da mobilidade dos Kulina era o próprio SPI: notase pela documentação compulsada que ele estimulou claramente os índios à adoção
dos moldes de vida da sociedade nacional, aos quais eles eram refratários.
Ponderamos então que todo o processo de mobilidade Kulina se deu a partir
do Sistema de Aviamento cujo envolvimento foi o marco de maior impacto na cultura
e história deste povo, pois anterior a este acontecimento eles habitavam apenas o rio
Juruá, habitando atualmente o rio Purus, sendo possível, ainda, encontrar aldeias
Kulina no Peru.
No rio Gregório, os Kulina trabalhavam na produção de açúcar, rapadura
e mel, como também plantavam macaxeira, mandioca, cana, e possuíam várias
árvores frutíferas, entre elas; laranjeiras, mangueiras e abacateiros, além de criarem
gados que eram usados na tração das máquinas de ferro.
As atividades de processamento da mandioca ficavam a cargo das mulheres
Kulina, como pode se observar na imagem a seguir:
Mulheres Kulina preparando mandioca (1928)
Fonte: MELO (2007), v. II, Anexos, p. 246.
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Nota-se nas fotografias do acervo do SPI, que a maioria das vezes os índios
aparecem desnudos e sempre na presença da bandeira nacional ou de um funcionário
do órgão oficial, passando sempre a ideia de nacionalismo. A foto a seguir evidencia
muito bem essa ideia.
O Kulina do Alto Juruá.
Fonte: Microfilme 342, fotograma de n.º 164.
Segundo Souza Lima (1992), a estratégia do SPI de exposição dos índios
com roupas era exatamente uma forma de difundir a ideia de “nacionalidade” ou de
o ideal nacionalista ter chegado aos índios por meio do órgão indigenista oficial.
Por outro lado, vemos que os relatórios do SPI, de modo geral, narram os
índios trabalhando na lavoura, na plantação de açúcar, de feijão, banana, mandioca,
café e outros produtos. Isso também aparece como um gesto de civilidade e
“progresso” que os índios estavam vivendo, deixando sua cultura, seu estilo de vida,
seus costumes e a forma com que se habituavam aos novos moldes da civilização.
Todo esse aprendizado era adquirido nos postos indígenas: os índios eram reunidos
aos milhares em um único lugar, liberando assim suas terras para os interesses do
capital extrativista. Dessa forma, no Purus, tanto os índios Paumari quanto os índios
Jamamadi e Kulina tiveram de se adaptar ao novo modelo de ocupação territorial e
vida social imposto pela “economia da borracha”.
Esta afirmação pode ser observada no relatório do engenheiro Bento de
Lemos, de 1929, chefe da Inspetoria do Amazonas e Acre, que diz que índios estavam
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
satisfeitos com os trabalhos realizados pelo SPI, lembrando que estes levantavam
barracas para morar, estavam abandonando o regime de habitações coletivas, e que
as crianças aprendiam com facilidade as canções patrióticas. Desse modo, nota-se
que a representação do SPI acerca das populações indígenas adotava um discurso
progressista, pois tencionava transformar as populações indígenas em trabalhadores
nacionais, lhes garantindo conhecimento e habilidade para cooperarem na grande
obra de desbravamento do vasto hinterland brasileiro e assim promoverem o progresso
da região que habitavam.
Os documentos registrados nos microfilmes 001, 032 e 322 descrevem
as atividades agrícolas dos postos indígenas Marienê, Manauacá e Rio Gregório,
mostrando que o SPI intentava estabelecer uma espécie de patronato-agrícola,9 onde
os índios se tornariam cultivadores, produtores de lavoura, mas que não usufruiriam
de seus benefícios ou lucros. De acordo com Freire (2007, p. 34), a criação do
patronato-agrícola seria resultado, na pacificação, do encerramento das hostilidades
entre as diversas hordas indígenas, resultando na concludente fraternização de
tuxauas.
Assim, percebendo a habilidade dos índios para os ofícios em geral, Lemos
requereu o envio de educadores de funilaria e carpintaria para os postos indígenas. A
escolha da funilaria se justifica à medida que, estando próximos da área de seringais,
era necessário produzir artefatos utilizados pelos seringueiros, tais como tigelas para
colheita do leite, baldes, bacia, escadinhas etc.
Os Paumari: um caso à parte
Diferentemente dos outros povos do Purus, os Paumari não foram
submetidos a nenhum posto indígena. Isto pode ser justificado pelo relatório
produzido por Santana de Barros, em 1930, que será explorado no decorrer deste
tópico.
Apesar de toda dificuldade, o SPI tentava fundar um posto nas mediações
do rio Tamanduá, onde residiam os índios Mamory, Catuquinas e Paumari.
Com o objetivo de levar assistência às tribos situadas para além da jurisdição
dos Postos Indígenas do Tuini e Seruini, como também fiscalizar a atuação dos
delegados do Baixo Rio Purus, o SPI envia uma comissão ao rio Tapauá e seus
afluentes, em visita aos índios Mamory, Catuquinas, Paumari (Purupurus) e a outras
tribos que por ali se encontravam.
9 Utiliza-se aqui o termo cunhado por Rocha Freire em seu livro O SPI na Amazônia: Política indigenista e
conflitos regionais (1910-1932), RJ, 2007.
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Rio Tapauá — Grupo de índios Paumari localizados no lago do Tamanduá.
Fonte: Relatório de Santana de Barros, 1930. Serviço de Proteção aos Índios.
Chefiada pelo auxiliar Santana de Barros, esta viagem de assistência contava
ainda com a presença do engenheiro agrônomo Admar Thurí e do fotógrafo
Anastácio Queiroz. De acordo com o relatório, esta viagem foi levada a efeito no
período compreendido entre 18 de março a 24 de abril de 1930, sendo coroada
como a “viagem de melhor êxito”.
Durante a viagem, a diretoria do SPI notou que havia a necessidade de criação
de um posto indígena na região do Tapauá, a fim de se tornar efetiva a assistência in
loco dessa inspetoria aos silvícolas que viviam na pobreza e sem assistência alguma,
estando expostos a toda a sorte de exploração.
A intenção de fundar um posto no Tapauá, que auxiliasse os índios Mamory,
Catuquinas e Paumari, só não se realizou porque o órgão passava por uma crise
financeira, e o repasse de seus recursos foi interrompido.
De acordo com a documentação, Santana de Barros chega ao aldeamento
dos Paumari, situado na margem direita do rio Tapauá, no lugar Tamanduá,
onde visita as uadurus – jangadas ou barracas flutuantes – para depois realizar o
recenseamento da tribo, onde há uma população de 55 índios, dos quais 20 são
homens, 21 mulheres e 14 crianças.
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Rio Tapauá — Índios Paumari em suas ubás e em segundo plano suas barracas flutuantes.
Fonte: Relatório de Santana de Barros, 1930.
De acordo com o auxiliar Santana de Barros, o aldeamento de Tamanduá
consta de vários uadurus e um barracão situado num roçado pertencente a todos
os índios. Esse barracão serve de moradia ao índio Martins e sua família, servindo
também como casa de farinha.
Rio Tapauá — Casa de farinha dos índios Paumari do lago do Tamanduá.
Fonte: Relatório de Santana de Barros, 1930. Serviço de Proteção aos Índios.
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Existem também nesse barracão seis espingardas de cartucho calibre 16,
diversas malas de lona com roupa, uma máquina de costura, um grande forno de
cobre e muitos utensílios de pesca. Indagados sobre sua procedência, os Paumari
relataram que esses objetos foram comprados do comerciante Manoel Dias Barbosa,
em troca de produtos da lavoura, da pesca de pirarucu, peixe-boi e tartaruga.
Santana de Barros relata ainda que os Paumari eram uma tribo errante e
decadente, que sempre habitou o baixo rio Purus, morando nas praias durante a seca
e em jangadas no tempo da cheia; falavam adequadamente o português, sabiam
contar e eram equitiophagos, literalmente comedores de peixes; usavam ubás, talhavam
e costuravam e teciam muito bem paneiros, abanos e outros utensílios.
Rio Tapauá — Índios Paumari no lago do Tamanduá, em seus flutuantes.
Fonte: Relatório de Santana de Barros, 1930.
O relatório de Santana de Barros diz que os Paumari eram discriminados
por outras tribos, e considerados leprosos pelos civilizados. Registra que: “somente
na casa do comerciante Manoel Dias Barbosa o índio paumari se senta à mesa e
come em comum com os civilizados”.
Ainda de acordo com Santana de Barros, os Paumari, por despeito,
transmitiam sua doença, puru-puru, às pessoas que lhe eram desafetas. Sobre tal
“doença” faz a seguinte conjectura:
Há na região várias pessoas civilizadas que são malhadas, talvez
devido à alimentação, ao contato ou mesmo a transmissão de
uma bactéria que se encontra na cinza dos fogões abandonados.
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Parece que nisso há algum fundo de verdade, pois o dr. Carlos
Chagas, que estudava esta moléstia, classificou-a de Sporotrichose.
Os Paumari, por sua vez, não concordavam com a versão dos civilizados
sobre sua suposta “doença”. Segundo Santana de Barros, eles diziam que eram
malhados porque “a mancha é sinal característico de sua tribo, e que se é uma
doença, está no sangue e não há como escapar à lei da hereditariedade”.
Regressando de sua viagem, o auxiliar do SPI foi se encontrar com o delegado
da inspetoria, Adelino da Cunha Parente – na verdade um índio, não identificado,
apadrinhado de um comerciante da região – de quem solicitou a contagem dos índios
com quem tal comerciante negociava. Em tais registros encontrou documentadas as
transações comerciais efetuadas pelos índios sem saldo para as partes.
Por fim, Adelino Parente confessou ao auxiliar do SPI que conhecia apenas
uma das quatro malocas dos índios Jamamadi e que não queria ficar como delegado
dos índios dos rios Tapauá e Cuniuá, pois desconhecia a região e tinha grande medo
de “ficar malhado” pelo contato com os índios aí residentes. Insistiu, por outro
lado, que desejaria ser delegado dos índios do rio Piranhas, que se encontravam
longe dos “índios pintados”.
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Angélica Maia Vieira, et al.
Referências
ALTMANN, L. O “Manaco” Kulina e a Economia Capitalista. São Paulo: PUC, 1988.
23p. (Trabalho semestral para a Cadeira de Antropologia).
BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – Maic. Relatório do Inspetor,
1924. Serviço de Proteção aos Índios – Inspetoria do Amazonas e Acre. Brasília,
1924.
_______. Relatório do Inspetor, 1927. Serviço de Proteção aos Índios – Inspetoria do
Amazonas e Acre. Brasília, 1927.
_______. Relatório do Inspetor, 1929. Serviço de Proteção aos Índios – Inspetoria do
Amazonas e Acre. Brasília, 1929.
_______. Relatório de Santana de Barros, 1930. Serviço de Proteção aos Índios –
Inspetoria do Amazonas e Acre. Brasília, 1930.
FREIRE, Carlos Augusto Rocha. O SPI na Amazônia: política indigenista e conflitos
regionais (1910-1932). Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2007. 116 p.
MELO, Joaquim. A Política Indigenista no Amazonas e o Serviço de Proteção aos Índios: 19121930. 2007. Dissertação (Mestrado) - em sociologia – Programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura da Amazônia, Universidade Federal do Amazonas, Manaus,
233 p.
MENDONÇA, Berlamindo. Reconhecimento do Rio Juruá. 2. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; Acre: Fundação Cultural do Acre, 1905.
MONTEIRO DE SOUZA, R. Os Kulina do Médio Juruá. Relatório etnográfico.
Operação Amazônia Nativa – Opan. [S. l: s. n.], 1985.
SCHULTZ, H.; CHIARA, W. Informações sobre os índios do Alto Rio Purus.
Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. 9, 1955.
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Álbum Purus
Territorialidades,
Recursos naturais e
Conflitos
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Álbum Purus
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Álbum Purus
Territorialidade, Recursos Naturais e Conflitos
Panorama contemporâneo do Purus indígena
Miguel Aparicio
Após o declínio definitivo do modelo seringalista, os
povos indígenas do rio Purus iniciam a partir da década de
‘90 um itinerário mais favorável de reconhecimento das suas
terras tradicionais e de acesso a políticas públicas que ensaiam
uma perspectiva de especificidade e diferença, construída
desde as bases da Constituição Federal de 1988. Ao mesmo
tempo, a consolidação do socioambientalismo brasileiro
após a ECO-92 impulsiona na Amazônia um panorama de
intervenções em que a conservação da biodiversidade integra
cada vez melhor a defesa e reconhecimento dos denominados
“povos da floresta”, como sujeitos políticos portadores de um
patrimônio de conhecimentos definitivos para a proteção do
bioma amazônico.
Por outro lado, uma vez que o sistema econômico de
aviamento manifestou sintomas definitivos de falência, e que
a agenda governamental de procedimentos de demarcação
de terras na bacia do Purus completou suas tarefas mais
importantes, os povos indígenas começam a debater os dilemas
de uma nova encruzilhada: entre as economias tradicionais e
os novos mercados, entre a proteção dos territórios garantidos
e as preocupações da gestão dos recursos naturais presentes
neles. Junto a isto, outros processos caracterizam o novo
cenário do Purus indígena: a crise da organização formal após
um processo criativo de articulação; a irrupção do seringueiro
como novo sujeito político regional, com direitos e conquistas
territoriais inéditas; a presença de novos atores portadores do
discurso da promoção da sociobiodiversidade;1 a consolidação
1 O presente panorama se projeta, de forma especial, desde a perspectiva dos projetos socioambientais
de gestão territorial em terras indígenas. O autor coordena atualmente, na Opan, o Projeto Aldeias —
Conservação na Amazônia Indígena (Consórcio Opan/Visão Mundial, financiado por Usaid), um programa
de ações de apoio à gestão de recursos naturais nas terras indígenas Deni, Paumari do Rio Cuniuá, Paumari do Lago Paricá, Paumari do Manissuã, Katukina do Biá; de fortalecimento de organizações indígenas
locais/regionais e advocacy em contexto indígena; e de proteção etnoambiental de povos isolados e de
recente contato (TI Hi Merimã, TI Zuruaha), em parceria com a Funai/CGIIRC.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
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da cidade como “território indígena”; e o panorama global de valorização das
florestas, derivado do alerta planetário pela mudança do clima, com incidências cada
vez mais próximas nos âmbitos indígenas locais da bacia do Purus.
Um olhar sobre a trajetória do Médio Purus indígena
O universo indígena da bacia do rio Purus2 se configura basicamente a partir
de um “Corredor Arawa”, que se prolonga no interflúvio Juruá-Purus desde os
Deni até os Paumari do lago Manissuã, e de um “Corredor Apurinã”, que se situa
numa espécie de paralelo ao sul do anterior, desde igarapé Capana até Tauamirim.
Outras sociedades indígenas fazem parte da “paisagem cultural” do Purus, e têm
interagido historicamente com os grupos de língua Arawa e com os Apurinã: os
povos de língua Katukina/Kanamari (principalmente os Kanamari do rio Juruá, os
Katukina do rio Cuniuá e os Katawixi do rio Mari, atualmente isolados) e os Juma,
grupo kagwahiva do igarapé Içuã, afluente do rio Mucuim.3
Os povos Deni, Jarawara, Banawa, Jamamadi, Suruaha, Hi Merimã, Mamori,
Paumari, Kanamanti, Kamadeni e Kulina integram a família linguística Arawa. Os
Arawa se situam no sudoeste do Amazonas, em parte do Acre e no departamento
peruano de Ucayali, mas o hinterland entre as bacias do Juruá e do Purus constitui o
seu principal espaço de ocupação histórica. A expansão seringalista se configurou
como o vetor principal de transformações sociais, políticas e territoriais, e dos
conflitos que modelaram à vida contemporânea destas sociedades indígenas. Os
Arawa compartem, de modo geral, características próprias das sociedades das terras
baixas da América do Sul:4 natureza atomizada destas sociedades; individualismo
dos seus membros; limites imprecisos das divisões “grupais” ou “subgrupais”;
unidade aldeã tradicional consistente numa ampla maloca, geralmente de formato
cônico; economia baseada na agricultura de roça e queima – com plantio de
2 Damos aqui ênfase especial à região do Médio Purus, que, de forma ampla se estende desde o entorno
de Boca do Acre até o entorno da cidade de Tapauá, aproximadamente entre a foz do rio Acre e a foz do
igarapé Tauamirim.
3 Realizei meu trabalho de campo entre os Suruaha no período 1995-2001, com ações também na TI Deni
(rio Cuniuá) entre 1999-2001. Pela minha trajetória pessoal na região do Purus, concederei um maior
destaque neste artigo a componentes etnográficos relativos a povos da família linguística Arawa, sem
pretender por isso desconsiderar outros componentes. Obviamente, a análise do universo Apurinã tornase imprescindível para a compreensão dos processos indígenas na bacia do rio Purus. A este respeito,
cfr. SCHIEL, Juliana. Entre patrões e civilizadores: os Apurinã e a política indigenista no meio rio Purus
na primeira metade do século XX. Campinas: Unicamp, 2000 (Dissertação de Mestrado); Tronco Velho:
histórias Apurinã. Unicamp, Campinas: 2004 (Tese de Doutorado).
4 Sobre algumas das características apontadas, cfr. RIVIÈRE, Peter. O indivíduo e a sociedade na Guiana.
Edusp, São Paulo: 2001, p. 21-36; DESCOLA, Ph. “Amazonia”. In: BONTE, Pierre; IZARD, Michel. Diccionario de Etnología y Antropología. Madrid: Ed. Akal, p. 55-58.
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Miguel Aparicio
mandioca, tabaco, algodão, urucum e timbó, entre outros –, coleta silvestre, caça
com curare e pesca com timbó; divisão do trabalho por gênero; xamanismo com
práticas de feitiçaria; transitoriedade da aldeia e da liderança política; organização
social articulada a partir da família nuclear; sistema de parentesco de terminologia
dravidiana, com aliança prescritiva entre “primos cruzados” e prática residencial
com relativa tendência uxorilocal.
Convencionalmente, os Arawa foram considerados como uma subdivisão da
família linguística Aruak: este foi o ponto de vista de Ehrenreich, Nimuendajú, Rivet,
Tastevin, Métraux. Pesquisas contemporâneas, porém, apontam a independência
do conjunto Arawa, como complexo diferenciado do conjunto Aruak.5 Seguindo a
acertada metáfora do caleidoscópio de Rivière, como “um modo de representar a
variação e o invariável que ocorre na região de uma maneira dinâmica”,6 o conjunto
Arawa constitui um dos “estilos” amazônicos, por uma parte com características
comuns e, por outra, traços específicos no que se refere à configuração social e à
configuração cosmológica e simbólica. Trata-se, em definitiva, de um “circuito”
sociocultural diferenciado, estabelecido territorialmente em torno ao eixo JuruáPurus, mas em cuja dinâmica agiram como componentes essenciais o conjunto
Apurinã e o conjunto Katukina/Kanamari/Katawixi.
Uma das peculiaridades mais relevantes do circuito Arawa é o seu
desenvolvimento social fundamentado em subgrupos nomeados, coletivos com
maior ou menor autonomia que definem as dinâmicas de “identidade desde a
alteridade”. Nesse sentido, o modelo de diferenciação conceitual nativo relativiza
as distâncias relacionais segundo a maior ou menor aproximação pautada pelos
intercâmbios sociais e rituais, e pelas circunstâncias históricas. Podemos afirmar que
os Arawa constroem uma perspectiva social e histórica que diverge amplamente das
nossas fronteiras de alteridade ― as categorias convencionais de “povo”, “etnia”,
“tribo” se revelam, nesse sentido, inadequadas. Como afirma Gordon, “os subgrupos
nomeados arawa não dizem respeito a ― ou representam ― qualquer grupamento
empírico pré-existente. Ao contrário, eles são conceitualmente imaginados para
criar figuras da alteridade. A invenção dos subgrupos é, no fim das contas, mais
5 Para uma análise minuciosa das pesquisas mais recentes sobre a questão Arawa, cfr. GORDON, Flávio.
“A família linguística Arawá”; “Arqueologia e História”; “Sociologia Arawá”, em Os Kulina do Sudoeste
Amazônico. História e Socialidade. Rio de Janeiro: Universidade Federal de Rio de Janeiro, 2006 (Tese
de Mestrado), p. 5-67.
“O grau de divergência interna máxima do grupo Arawa seria, segundo Swadesh (1959), de 32 séculos
mínimos”: FABRE, Alain. “Arawa”, em Diccionario etnolingüístico y guía bibliográfica de los pueblos indígenas sudamericanos. Disponível em: <http://butler.cc.tut.fi/~fabre/BookInternetVersio/Dic=Araw%E1.
pdf>.Acesso em:2004.
6 RIVIÈRE, Peter op. cit., p. 10
Panorama contemporâneo do Purus indígena
115
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
importante que os subgrupos em si mesmos”.7 É possível que no passado os
subgrupos Arawa tenham sido configurados como unidades territoriais específicas, de
caráter autônomo e preferentemente endogâmico. Estas sociedades se organizaram
historicamente em unidades aldeãs, constituindo subgrupos nomeados autônomos.
A aldeia tornou-se, provavelmente, mais relevante do que a “etnia”, com limites
imprecisos entre as unidades subgrupais. Estamos perante uma espécie de continuum
cultural que transitou fundamentalmente no interflúvio Purus-Juruá. A aldeia e
a liderança política são instituições transitórias. O modelo de xamanismo focado
sobre práticas de feitiçaria regulava a viabilidade ou conflito dos intercâmbios. A
cosmologia se organiza entre o mundo jadawa e waduna,8 os próprios e os estranhos,
a segurança e o perigo, a semelhança e a diferença.
A base deste dinamismo subgrupal dos Arawa parece fundamentar-se não
tanto na definição ‘sociológica’ ou ‘classificatória’ de coletividades diferenciadas,
mas parece corresponder a um fluxo social de fronteiras imprecisas que serviam
para modelar os intercâmbios (rituais, econômicos, matrimoniais) e as migrações.
Tais intercâmbios produziram movimentos constantes de aproximação ― por
exemplo, com ocasião das festas rituais ― e de distanciamento ― como se expressa
nos conflitos de feitiçaria ―, num processo de construção permanente das redes de
alteridade e troca. Com o impacto seringueiro e o subsequente abalo demográfico
e redimensionamento da organização social, os subgrupos viveram processos de
reunificação e coexistência com outros subgrupos em aldeias mais viáveis; em
ocasiões, se produziram alianças e inclusive perda da relevância distintiva.
Numa perspectiva integral da bacia do rio Purus, é pertinente imaginar,
portanto, uma rede intensa de intercâmbios Arawa/Apurinã/Katukina como
constitutiva histórica dos fluxos sociais regionais, que funcionava em nível ritual,
econômico e de ‘aliança vs. conflito’ entre as aldeias. Estas sociedades compartilharam
modelos de organização social e política e padrões de economia florestal, e ao longo
da história intercambiaram inclusive elementos das suas cosmovisões e das suas
narrativas. Efetivamente, a crise histórica da dinâmica extrativista marcou de modo
definitivo o destino destes grupos indígenas. O impacto de massacres armados e
epidemias, a perda de territórios tradicionais, o declínio populacional, a morte de
lideranças, a crise do xamanismo: todos estes fatores provocaram uma quebra drástica
dos circuitos de intercâmbio existentes entre as aldeias do rio Purus e de seus afluentes.
Cabe destacar a heterogeneidade das respostas indígenas diante do fenômeno
7 GORDON, Flávio. op. cit., p. 41-42.
8 Cfr. APARÍCIO, Miguel. Los Suruaha: Universos míticos y miradas etnográficas. Quito:Universidad Politécnica Salesiana, 2008 (Monografia de Licenciatura), p. 89 ss.
116
Álbum Purus
Miguel Aparicio
seringalista: isolamento (Hi Merimã, Katawixi), surgimento do suicídio ritual
(Suruaha), extermínio (Katukina do Cuniuá, Mamori), participação na dinâmica do
seringal (Jarawara, Deni, Paumari, Apurinã). No cenário atual, nos defrontamos
com uma reconstituição criativa e recriativa dos circuitos de intercâmbio, onde a
assimetria do seringalismo foi de alguma maneira “pacificada” por esta formação
reticular indígena, que reconstruiu seus procedimentos de troca, elaborou releituras
constantes dos seus sistemas de economia florestal e, desde diversos aspectos,
integrou também o universo dos jara.9 Com efeito, ao mesmo tempo em que os
sistemas tradicionais de gestão do território subsistem com relativo vigor, o modelo
do aviamento determinou notoriamente as dinâmicas contemporâneas de troca e
de socialidade. Os rituais de intercâmbio se aviventam numa dinâmica de novas
interseções e permeabilidades,10 onde convergem processos heterogêneos elaborados
“desde dentro” (desde as próprias cosmovisões arawa, apurinã, katukina...) e “além
dos seus limites” (nas novas fronteiras constituídas pelo comparecimento categórico
dos jara).
Um olhar sobre as encruzilhadas contemporâneas
Ao longo dos anos 90, os povos indígenas do Purus vivem – depois da
decadência do seringalismo – um processo intenso de luta pelo reconhecimento
de seus direitos territoriais, sustentado pelas novas garantias constitucionais e
favorecido pela implementação do Pptal.11 A maior parte das terras indígenas da
bacia do Purus são demarcadas e homologadas entre 1991 (TIs Caititu, Tauamirim,
Zuruaha...) e 2004 (Deni, Igarapé Mucuim...; Hi Merimã em 2005). Com direitos
fundiários reconhecidos, os povos indígenas fortalecem sua interlocução com
o Estado, que projeta uma intervenção mais explícita por meio das políticas de
assistência educacional e sanitária: após as demarcações, ganham protagonismo
na cena política indigenista o estabelecimento das escolas públicas indígenas e
implementação do Programa Estadual de Educação Escolar Indígena “Pira Yawara”
(SEDUC, 1997), e a instauração do Distrito Sanitário Especial Indígena do Médio
Purus (FUNASA, 1999). O movimento indígena regional, após o fortalecimento
9 Denominação para os regionais (não indígenas) em diversas línguas da família Arawa.
10 ROSALDO, Renato. Cultura y verdad. La reconstrucción del análisis social. Quito: Abya Yala, 2000, p. 41.
11 O Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal — Pptal fez parte
do Programa Piloto para a Conservação das Florestas Tropicais do Brasil — PPG7, criado para proteger
as florestas tropicais e conservar a biodiversidade, promovendo um maior conhecimento das atividades
sustentáveis da Floresta Tropical. O Pptal foi decisivo no avanço das demarcações das terras indígenas
amazônicas e no desenvolvimento de metodologias de vigilância territorial e diagnóstico etnoecológico.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
117
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
vivido com a pauta da demarcação dos territórios tradicionais, assume formatos de
organização indígena institucionalizada, e foca suas prioridades na interação com
estas políticas públicas. Nesse contexto, cria-se em 1995 a Opimp – Organização
dos Povos Indígenas do Médio Purus, com apoio da Coiab e das organizações
indigenistas Cimi e Opan.
Ao “outro lado da fronteira” demarcatória das terras indígenas acontece
um fenômeno que contribui com notável relevância na reconfiguração territorial
da região do Médio Purus. O Governo Federal promulga em 2000 a Lei 9.985,
que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc. Lábrea
começa a ganhar protagonismo no “ranking” dos municípios com maior índice
de desmatamento na Amazônia, e surge entre 2003 e 2004 como o município com
maior aumento de área desmatada (175,07 km2, em 2003, para 328,97 km2 em 2004),
seguido por Canutama. A região do Médio Purus/sul do Amazonas entra como
área crítica no arco do desmatamento da Amazônia.
Em reação a este processo, o Governo Federal cria novas unidades de
conservação: Flona Balata-Tufari (2005), Flona Iquiri (2008), Parna Mapinguari
(2008), a Reserva Extrativista do Médio Purus e a Reserva Extrativista do Ituxi
(ambas também em 2008).12 Dessa forma, reconhecem-se direitos fundiários
historicamente negados às populações extrativistas, grupo social que, junto com os
povos indígenas, tinha se caracterizado desde o século 19 por um grau extremo de
vulnerabilidade, de exclusão social e de impossibilidade de acesso à plena cidadania.
As garantias fundiárias para as populações tradicionais projetam a insurgência
dos seringueiros, dos extrativistas, como novo sujeito político, com protagonismo
inusitado na rede sociopolítica e no “universo de cidadania” do rio Purus. O
processo contemporâneo não consiste apenas na formação de um novo mosaico
espacial na cartografia do Médio Purus, e sim, num novo mosaico de emergência
da sociodiversidade regional, que alcança assim uma conquista sem precedentes no
que diz respeito a direitos territoriais.
Contudo, o novo mapa social do Purus não corresponde, em termos
políticos, ao que em parâmetros amazônicos se denomina “Aliança dos Povos
da Floresta”. É verdade que, historicamente, o processo de ocupação seringalista
pôs as populações indígenas nativas e os contingentes de migrantes nordestinos
seringueiros em patamares análogos de subalternidade e vulnerabilidade. Mas o
12 No presente ano de 2010, há um interesse central do Governo Federal sobre a área de influência da BR319, que projeta a criação de novas unidades de conservação: Até outubro deste ano, 11 unidades de
conservação federais situadas no centro-sul do Amazonas, na área de influência da BR-319, terão seus
limites demarcados e sinalizações instaladas. Resultado de uma parceria entre o Exército, o DNIT e o
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a demarcação vai abranger, ao todo,
27 unidades de conservação (Assessoria de Comunicação do ICMBio, 15/5/2010). Acesso em: <http://
nosuldoamazonas.blogspot.com/2010_05_01_archive.html>.
118
Álbum Purus
Miguel Aparicio
marco de violência e conflito que caracterizou o processo de ocupação do Purus
deixou marcas profundas na conformação das relações sociais contemporâneas
entre índios e extrativistas. O poder econômico tradicional (seringalistas, políticos
do modelo “coronel de barranco”, grilagem e setor madeireiro ilegal) sofreu um
impacto inegável, que fragilizou seu “status” na nova situação de comparecimento
das instituições do Estado e de avanços na efetivação da cidadania para as populações
regionais. A nova ordem social e política, porém, não produziu automaticamente
harmonia entre os setores indígenas e tradicionais. Este desafio precisa ser ainda
construído tanto na esfera da convivência entre aldeias indígenas e comunidades
extrativistas quanto na esfera das organizações políticas que as representam, e
inclusive das instituições governamentais que as apoiam. Na cena contemporânea
da reconfiguração territorial da região, há uma tendência ao aumento da disputa
pelos recursos naturais entre índios e extrativistas, bem como à proliferação de
conflitos fundiários entre as terras indígenas e as unidades de conservação.13 Sem
uma intervenção socioambiental que promova uma agenda positiva, a entropia do
processo conduz à tensão social.
É claro que, apesar de tudo, existem avanços muito relevantes na construção
da governança regional. A presença das instituições do Estado democrático (muito
precária até época recente) cresceu paralelamente a um processo ágil de organização
da sociedade civil do Purus. Certamente o movimento indígena tem exercido um
pioneirismo destacável no que se refere à construção de processos organizativos, e
experimentou um fortalecimento crucial na fase das demarcações e homologações
dos territórios indígenas. Mas a experiência de gestão das políticas públicas, vivida
ao longo dos anos 2000 (de modo particular no convênio estabelecido entre Opimp
e Funasa na gestão do DSEI Médio Purus), foi desestruturante: conduziu ao colapso
da organização indígena e revelou a incapacidade das instituições governamentais
para efetivar o atendimento sanitário das comunidades indígenas.14 Ao mesmo
tempo, ficou manifesta a ambiguidade de um modelo em que a organização indígena
13 A Diretoria de Proteção Territorial da Funai, com recursos do DNIT para manejo de impactos na área de
abrangência da BR-319, está atualmente realizando a revisão de diversas terras indígenas, no leste da
bacia do Purus e no oeste da bacia do rio Madeira. Certamente vão se evidenciar a curto prazo processos de sobreposição entre terras indígenas e unidades de conservação, fator que poderá levantar novos
conflitos fundiários entre indígenas e extrativistas.
14 Inicialmente, “assumir o DSEI representou para a Opimp pronta ascensão social para algumas de suas
principais lideranças, uma verdadeira virada de mesa no nível das relações políticas e interétnicas
dentro dos municípios de Lábrea, Canutama e Tapauá; a superação da imagem do índio como freguês
do patrão para ocupar o posto de comprador e empregador, assinando anualmente convênios nas cifras
de um a dois milhões de reais”: HORTA MESSIAS, Marcelo. “Subsistema de saúde indígena e o desmonte
das organizações indígenas no sul do Amazonas, em http://nosuldoamazonas.blogspot.com/2009/02/
subsistema-de-saude-indigena-e-o.html. Cfr. este artigo como análise do processo que conduziu ao colapso da Opimp, e a sua extinção como instituição formal. Também: GARNELO L.; SAMPAIO S. As bases
socioculturais do controle social em saúde indígena. Problemas e questões da Região Norte do Brasil,
Cadernos de Saúde Pública, 2003.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
119
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
precisava ser instância de controle social e, simultaneamente, gestora da política
pública. Após esta experiência negativa, que fragilizou a organização, o movimento
indígena se projetou em processos heterogêneos, mais vinculados a processos
localizados (novas organizações indígenas em Tapauá e em Pauini; associações
locais na TI Paumari do lago Marahã e na TI Apurinã do Caititu...) ou a grupos
e setores específicos (as mulheres indígenas fundam a Amimp, os professores
indígenas, agentes indígenas de saúde e estudantes indígenas de Lábrea constituem
suas respectivas organizações). Em abril de 2010, o movimento indígena empreende
um processo reorganizativo, ainda em vias de consolidação, e funda a Federação
dos Povos e Organizações Indígenas do Médio Purus, a partir de uma assembleia
realizada na aldeia apurinã de Nova Esperança.15
Nas reservas extrativistas se concretiza de forma análoga um processo
organizativo, com o surgimento da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas
do Médio Purus (na Resex Médio Purus) e da Associação dos Produtores
Agroextrativistas da Assembleia de Deus do Rio Ituxi – Apadrit (na Resex
Ituxi), fortalecida pela atuação regional do Conselho Nacional dos Seringueiros –
15 APARÍCIO, Miguel. Disponível em: <http://www.amazonianativa.org.br/noticia.php?id=32:>. “Lideranças
indígenas dos povos apurinã, paumari, jarawara, jamamadi, banawa, deni, mamori, kamadeni e katukina
reuniram-se na Assembleia do Movimento Indígena realizada na aldeia apurinã de Nova Esperança (TI Caititu, a 5 km da cidade de Lábrea, AM) nos dias 21-23 de maio de 2010. A assembleia contou com o apoio
de parceiros como o Consórcio Aldeias (Opan/VM), Secretaria de Estado para os Povos Indígenas (Governo
do Amazonas), Coiab, Cimi, Funai, Funasa, entre outros. Marcos Apurinã, coordenador da Coiab, Jecinaldo Barbosa e Márcio Meira, presidente da Funai, participaram em diversos momentos desta assembleia.
O objetivo principal do Encontro foi a reconstrução da organização indígena regional, fragilizada após a
quebra da Opimp: os impasses de gestão do convênio com a Funasa na atenção à saúde indígena no DSEI
Médio Purus provocaram a paralisação da organização indígena desde 2005, que concluiu na extinção formal da histórica OPIMP. Uma comissão indígena foi trabalhando nos últimos meses no escopo de fortalecer
o processo de reorganização do movimento [...].
A expectativa de algumas regiões e etnias, especialmente os apurinã de Tapauá, os banawa da cidade de
Canutama e os apurinã e kamadeni de Pauini, manifestava certo descrédito em relação à formação de
uma organização de tipo centralizado, focada em uma coordenação institucional estabelecida desde a cidade de Lábrea. Para harmonizar as tensões “periféricas” com a necessidade de uma articulação indígena
regional, e para possibilitar a heterogeneidade de processos organizativos existente nos últimos anos, foi
consolidando-se um modelo descentralizado, que acabou obtendo a adesão da plenária indígena.
Outro aspecto relevante nesta assembleia foi a insurgência de povos considerados praticamente extintos, como os Mamori e os Katukina, e o protagonismo crescente do movimento indígena nas cidades
do Purus. Além de Lábrea e Tapauá, houve um destaque especial para as vozes indígenas da cidade de
Canutama, onde os Banawa, Apurinã, Paumari e Katukina contradizem a versão oficial de “município
sem presença indígena”, com forte reivindicação de reconhecimento indígena e demandas como, por
exemplo, a implantação de educação escolar indígena na cidade, ou atenção sanitária diferenciada.
Os debates entre as 200 lideranças indígenas presentes conduziram finalmente à fundação da Federação
das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), que será dirigida por uma coordenação geral integrada por quatro coordenadores regionais e quatro coordenadores executivos, além
do conselho fiscal [...]. No encerramento, foi aprovado o novo Estatuto da Federação, que dará suporte
legal ao novo processo organizativo. Para a Funai e os diversos órgãos públicos federais, estaduais e
municipais, assim como para as organizações da sociedade civil, a Focimp se estabelece agora como
interlocutor prioritário na construção de agendas nas terras indígenas do Médio Purus”.
120
Álbum Purus
Miguel Aparicio
CNS, da gerência regional do ICMBio e da parceria com ONGs socioambientalistas
que introduzem novos programas de apoio.16 Esta institucionalidade emergente,
consolidada de modo progressivo tanto no nível governamental quanto no nível dos
movimentos sociais, constitui sem dúvida um fator positivo na gestão dos conflitos17
e das tensões interétnicas que incidem no panorama territorial da região. De modo
concomitante, possibilita a construção de uma governança global amazônica: cada
vez mais vinculada a processos geopolíticos amplos que influenciam o ordenamento
social e territorial da bacia do Purus, mas ao mesmo tempo cada vez mais permeada
por processos de tomada de decisão e de participação efetiva de stakeholders, atores,
comunidades e organizações locais.
Há uma dinâmica, porém, singularmente significativa no que se refere ao
movimento indígena, vivida diretamente no âmbito das aldeias: a territorialidade está
oficialmente reconhecida, mas os dilemas sobre a gestão das terras e os recursos se
tornam urgentes, complexos, prioritários. Uma conversa que mantive em 2001 com
Sivirivi, liderança Deni, expressa com evidência surpreendente o paradoxo da nova
situação. No momento exato em que os Deni (como a maioria dos povos indígenas
da região) começam a enxergar o sucesso do processo de reconhecimento dos seus
territórios, e em que as pressões e ameaças mais graves procedentes da atividade
madeireira ilegal são neutralizadas, ele declara desde as florestas do alto Cuniuá: –
“Daqui para frente, meu porto é Lábrea”.
Esta é, no meu ponto de vista, a grande encruzilhada dos povos indígenas
do Purus na atualidade: na perspectiva indígena, a garantia das terras tornou-se
necessária, mas revelou-se insuficiente. Hoje em dia, os povos indígenas manifestam
uma demanda marcante por apoio eficaz na gestão dos recursos naturais disponíveis
nas suas florestas. A territorialidade contemporânea emerge com uma dinâmica
de nova economia florestal, e o histórico fluxo dos circuitos de intercâmbio e
troca ressurge com o comparecimento das cidades como territórios indígenas.
Enquanto o Estado e as suas políticas indigenistas fortalecem um movimento
centrípeto (terras demarcadas e políticas de assistência específicas para os povos
indígenas), o movimento indígena do médio Purus sinaliza uma tendência centrífuga
de “restabelecimento dos intercâmbios”, indigenização das cidades e persistência
16 Como o Consórcio Fortis, programa de Fortalecimento Institucional do Sul do Amazonas, promovido pelo
Instituto Internacional de Educação do Brasil junto à Associação Kanindé e a Conservação Estratégica
(CSF Brasil): http://www.iieb.org.br/site_index.php/comunidade/exibe/120.
17 A polêmica Operação Matrinxã, promovida pelo ICMBio em março de 2010 para neutralizar ações de
pesca e atividade madeireira ilegais em Lábrea, manifestou uma nova dinâmica em que os conflitos regionais são transferidos agora ao cenário institucional. Associações extrativistas e ICMBio se confrontam
com os setores políticos e madeireiros municipais apoiados por representantes do Legislativo estadual
do Amazonas. Disponível em: <http://nosuldoamazonas.blogspot.com/2010_05_01_archive.html>.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
na demanda de geração de renda, participação na economia monetária e atividade
nos mercados dos jara: frente à casa e a roça de Sivirivi Deni, fixadas em uma terra já
demarcada, está a sua embarcação, que tem como novo porto a cidade de Lábrea.
Há uma centralidade do eixo da economia em todo este processo indígena.
De modo geral, observa-se nos povos da bacia do Purus a permanência e consistência
dos padrões tradicionais de gestão de recursos florestais (no esquema típico caça –
pesca – agricultura de roça – coleta silvestre). A economia de subsistência garante
segurança alimentar, controle territorial e um sistema de produção, distribuição
e consumo caracterizado pela abundância e pela destinação dos excedentes para
finalidades coletivas rituais. Existem, em maior ou menor grau, as restrições ao
equilíbrio produtivo oriundas da herança do sistema de aviamento, que produz
constantemente modalidades de readaptação às conjunturas regionais. Mas coexistem
outras componentes econômicas prioritárias, já plenamente inseridas no cotidiano
das aldeias, e que com frequência são desconsideradas ou “evitadas” pelos olhares
etnográficos, indigenistas ou das políticas públicas. Atualmente, a economia de uma
aldeia indígena do Purus (onde se planta a roça de mandioca, se praticam a caça e a
pesca artesanal e se desenvolvem atividades extrativistas) se constrói também:
a) a partir dos benefícios do sistema nacional de previdência social (aposentadorias), dos programas públicos de transferência de renda (Bolsa
Família) e da remuneração dos novos profissionais indígenas nas políticas
de assistência (agentes indígenas de saúde, agentes indígenas de saneamento,
professores indígenas em escolas municipais ou estaduais...);
b) a partir de usos extrativistas e de práticas comerciais que ocasionalmente
entram em conflito com a legislação ambiental: comércio de quelônios, de
caça silvestre, arrendamentos de lagos para pesca predatória, extração de
madeira sem manejo florestal sustentável etc.
c) a partir da participação indígena crescente nas economias informais urbanas
da região (Pauini, Lábrea, Canutama, Tapauá).
Estas dinâmicas, com diferentes velocidades e graus de incidência, compõem
certamente a arquitetura da nova economia indígena do Purus. Junto a elas, convém
destacar um processo que define novas coordenadas socioeconômicas e políticas, e
que pode ser denominado, com bastante pertinência, como rondonização de Lábrea e
do sul do Amazonas. Tradicionalmente, Lábrea foi um município de perfil extrativista,
de alguma maneira um paradigma convencional entre os municípios remotos do
Amazonas, com alto nível de dependência do regime de aviamento, baixos indicadores
de desenvolvimento socioeconômico e com um regime extrativista dependente de
122
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Manaus, como centro comercial de referência (no esquema do seringalismo, na
produção pesqueira, na movimentação das empresas madeireiras, nas atividades
comerciais básicas e no fornecimento de mercadorias e produtos industrializados).
O avanço da fronteira agropecuária procedente de Rondônia e a maior facilidade
de conexão com Porto Velho provocaram o surgimento de uma nova dinâmica
não tão somente comercial, mas de fluxos sociais e de padrões econômicos. Há
alguns anos, na convivência cotidiana com a população de Lábrea, eram comuns
na maioria das famílias os relatos de experiências em Manaus (viagens de recreio à
procura de atendimento sanitário de melhor qualidade, para visitar familiares que já
tinham migrado à metrópole, ou para buscar um futuro educacional para os filhos...).
O destino desejado se situava “para baixo”, descendo as águas do rio Purus em
direção ao polo de Manaus. A construção e futura pavimentação da BR-230 LábreaHumaitá (subtrecho do entroncamento com a BR-319) estabelece uma conexão
cada vez mais acessível com a capital de Rondônia. Nos últimos anos, aumentou
de maneira muito expressiva o fluxo de extrativistas e indígenas (principalmente
Apurinã e Paumari) que buscam acesso a melhores serviços em Porto Velho, e que
acabam inclusive por fixar suas residências nesta cidade. O padrão extrativista de
ocupação fundiária muda progressivamente em favor de um padrão agropecuário,
que implica uma dinâmica socioeconômica diferenciada. A entrada de Lábrea e
Canutama no arco do desmatamento da Amazônia não estabelece apenas uma
mudança de paisagem, mas uma mudança de fluxos sociais. O sul do Amazonas
passa, efetivamente, por um processo de rondonização, que poderá ser mais ou menos
“manejado” em função da capacidade do Estado na implementação efetiva de
novas estratégias e políticas de sustentabilidade. O dilema de Lábrea oscila entre um
panorama “ruralista” ou um panorama “socioambiental”: é esta outra das chaves da
encruzilhada contemporânea que a região do sul do Amazonas experimenta, e que
abrange de forma muito direta também as populações indígenas.
Toda esta conjuntura convive com uma percepção, cada vez mais amadurecida
entre o movimento indígena, de demanda por uma política de valorização da floresta,
que proporcione às populações locais (indígenas e extrativistas) condições efetivas
de viabilidade na gestão dos territórios. Num recente seminário sobre “Interfaces
entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação” (Lábrea, 21-23 outubro de
2009),18 João Baiano (liderança apurinã da TI Caititu) declarou:
– Eu fico observando o urubu e o serviço que ele faz para nós
e para as nossas florestas. Ele é como um funcionário público
18 O seminário foi promovido pelo Projeto Aldeias (Consórcio Opan/Visão Mundial) em parceria com os
movimentos indígena e extrativista, com a Coiab, CNS, Seind/AM e organizações socioambientalistas
atuantes na região. Cfr. http://amazonianativa.org.br/noticia.php?id=18.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
123
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
que não recebe. Nós também somos como o urubu: cuidamos
da natureza, isso faz bem para todo mundo, mas ninguém nos
paga por isso.
É, no meu ponto de vista, uma das melhores definições que encontrei sobre
pagamento de serviços ambientais, surgida espontaneamente a partir da leitura que
uma liderança indígena regional aplica sobre o processo de transformações que
atravessa esta região amazônica. Os impasses estabelecidos na região requerem, de
forma urgente, a construção de soluções que integrem não tão somente a viabilidade
e sustentabilidade econômica ou ambiental, mas também a compatibilidade com a
diversidade de perspectivas e cosmovisões das sociedades do rio Purus.
Um olhar sobre os desafios, tendências e oportunidades
A calha do rio Purus convencionalmente tem sido considerada como uma
área de “vazio científico” (e, especificamente, também como uma região de “vazio
etnográfico”), ao tempo em que cada vez mais é olhada como uma região prioritária
em parâmetros de conservação da biodiversidade. Perante o alerta planetário pela
mudança de clima e pela necessidade de preservação das florestas, deparamo-nos
com uma área amazônica de interesse crescente.
Em perspectiva nativa, as florestas são florestas espirituais. Humanos,
animais, árvores, espíritos..., todos os seres da floresta compartilham um espaço
físico e mítico. Na cosmovisão das sociedades indígenas do Purus existe um
princípio de isonomia e continuidade social entre cultura e natureza: “a condição
original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade”.19
Este paradigma indígena de “olhar-sobre-o-mundo” fundamentou a construção
de sistemas de manejo tradicional que conseguiram sustentar grandes extensões
de floresta em pé. As práticas indígenas foram práticas viáveis, e a interação com
as dinâmicas predatórias da economia seringalista e, atualmente, da agropecuária,
introduziu novos dilemas de gestão florestal sobre os quais discutimos neste texto.
Nesse sentido, parece que, para o “design” de novas soluções, a participação indígena
na economia monetária não pode ser excludente e assimiladora em relação às suas
economias de subsistência. Como afirma Viveiros de Castro, diante de um modelo
ocidental de desenvolvimento e consumo crescente, de recriação de necessidades e
sentido “ambientalista” da escassez de recursos, os povos indígenas propõem uma
19 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana 2(2)119,
1996.
124
Álbum Purus
Miguel Aparicio
cosmovisão baseada na pragmática da suficiência,20 na circulação livre da diferença
e na economia da abundância e do excedente ritual. Para isso, a proteção dos
territórios, a valorização das florestas e dos conhecimentos tradicionais dos povos
que nelas habitam, e a construção de políticas sustentáveis de gestão dos recursos
da biodiversidade se situam como tendências necessárias em favor das práticas
indígenas de economia florestal.
A partir de uma perspectiva de valorização da floresta e de valorização da
sociodiversidade regional, parece oportuno promover uma dinâmica econômica
que recrie o caráter reticular do sistema de intercâmbio e troca, próprio dos
circuitos indígenas históricos na bacia do Purus. O estabelecimento de “comércios
e mercados” com fluxos multidirecionais atende a expectativas econômicas, mas
também a expectativas sociais e, inclusive, rituais e simbólicas.21
Em relação aos novos e tão debatidos processos e mecanismos de
compensação por serviços ambientais, cada vez com mais veemência as lideranças
e as organizações indígenas – mesmo distantes dos fóruns globais de discussão
e articulação sobre mudanças climáticas – desenvolvem suas demandas de
protagonismo e de reconhecimento da sua contribuição na conservação das florestas
e da sua biodiversidade, fundados nos seus sistemas de conhecimentos e nos seus
modelos de gestão de recursos naturais. Não se trata de “carbonizar” a visão sobre
florestas, nem de implantar novas versões de “exportação de cosmovisões”, e sim,
de identificar e desenvolver mecanismos que reconheçam os povos indígenas como
únicos titulares sobre as florestas localizadas em seus territórios,22 portadores de
direitos de posse permanente sobre suas terras e de uso exclusivo dos recursos naturais
do solo, rios e lagos presentes nelas. Efetivamente, a distância entre Copenhague e
uma aldeia paumari do rio Cuniuá pode ser ampla, mas o desafio planetário sobre
a mudança de clima requer com prioridade a participação dos atores indígenas na
tomada de decisões sobre as florestas, bem como na promoção de uma economia
florestal que garanta a conservação dos recursos naturais de forma compatível com
o fortalecimento dos circuitos indígenas de troca, tanto nos fluxos internos quanto
nos fluxos externos de intercâmbio. Estas estratégias deverão pôr em relevo
a eficácia dos serviços culturais indígenas na perspectiva da mitigação climática.
Lembremos do “urubu de João Baiano” e de como as perspectivas indígenas têm
20 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, “Diversidade socioambiental”. Disponível em: <http://www.prapensar.
org/modules/news/article.php?storyid=245>.
21 Cfr., nesse sentido, a análise de Bonilla, segundo a qual as relações de predação entre os Paumari são
reinventadas e apreendidas seja como troca, seja como dom, e instauram no plano simbólico uma
dinâmica de comercialização das relações entre os sujeitos sociais: BONILLA, Oiara, O bom patrão e o
inimigo voraz: predação e comércio na cosmologia paumari, em Mana 11(1): p. 41-66, 2005.
22 TELLES DO VALLE, Raul S.; MAGAMI YAMADA, Erika. Brasil: Titularidade indígena sobre créditos de carbono gerados por atividades florestais em terras indígenas. Brasília: Instituto Socioambiental, 2009. 40 p.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
125
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
capacidade plena de formulação de soluções viáveis para a construção de novos
sistemas de gestão das florestas.
Parece pertinente concluir, tanto para o movimento indígena quanto para
as organizações parceiras que o apoiam na identificação de novas “janelas de
oportunidade” (agências governamentais, organizações indigenistas e socioambientalistas, pesquisadores e universidades), que são estes os desafios mais instigantes no
contexto do Purus indígena contemporâneo:
1. A construção de mecanismos de gestão territorial que possibilitem
aos povos indígenas viabilidade econômica, ritual e simbólica, no seu
vínculo primordial com as terras tradicionais;
2. O fortalecimento das organizações indígenas, como instâncias
legítimas de articulação, interlocução política e tomada de decisão,
perante os processos de construção de governança florestal amazônica
e de “design” de políticas territoriais, econômicas etc;
3. A promoção de articulações que evidenciem a contribuição dos
sistemas locais de conhecimento tradicional e gestão florestal indígena
no cenário global de mitigação das mudanças do clima;
4. A emergência das cidades amazônicas como territórios indígenas,
constituídas como âmbitos de reconfiguração das relações de alteridade
e troca.
Este último processo ganhou uma visibilidade especial, por exemplo, na
recente assembleia do movimento indígena do Médio Purus (maio de 2010), onde
representantes indígenas de cidades adquiriram um protagonismo inusitado em
assembleias anteriores. Chamou a atenção da plenária a emergência de lideranças
indígenas de etnias consideradas praticamente como desaparecidas: os Katukina e
os Mamori, originários do rio Cuniuá, afluente do rio Tapauá.23 Nos últimos anos
23 Os Katukina do igarapé Coatá e os Mamori do rio Cuniuá sofreram drasticamente o impacto do avanço
extrativista, de maneira que nos anos 40 praticamente chegaram ao desaparecimento. Alguns indivíduos sobreviveram, sendo acolhidos nas aldeias paumari do rio Tapauá, onde permanecem até hoje.
Atualmente constata-se um fenômeno crescente de emergência dos Katukina e Mamori em Canutama
e em algumas comunidades da várzea do Purus, cujas dimensões precisarão de trabalho de campo específico. Sobre as incidências da frente expansiva nestas etnias: Começou uma briga entre os katukina
e mamori, por volta de 1940, desencadeada pela morte do índio Kida, que era katukina, morto por um
índio mamori. Mas sendo um caso particular, os katukina continuavam convidando os outros para morarem junto com eles em Firmino, pois o grupo contava com poucas mulheres. Cartaxo se intrometeu
no assunto e armou os katukina. Então, raptaram quatro mulheres de nome Bacara, Barihana, Pasitu e
Onadia. Quando os mamori vieram buscar suas mulheres, os katukina abriram fogo. O tuxaua Marrecão
foi morto numa praia que até hoje tem seu nome. Apenas alguns índios mamori e katukina sobreviveram. Quase todos morreram devido a um surto de gripe alguns anos depois: Gunter KROEMER, Relatório
da Viagem à Área Deni, Cimi 1995; id., Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Paulo: Ed. Loyola, 1985,
p. 96-97; y CIMI, Índios novos. Relatório sobre o contato com os Índios do Coxodoá, Região do Purus,
Amazonas. Archivo CIMI, Lábrea, AM, 1980, p. 5.
126
Álbum Purus
Miguel Aparicio
houve uma intensificação do trânsito de índios das aldeias no Purus nas cidades,
que atinge pessoas de etnias que habitualmente não frequentavam as zonas urbanas
(como os Deni do rio Cuniuá); atualmente, além das viagens constantes (com
motivo do recebimento de salários, benefícios sociais e aposentadorias, ou para
aquisição de produtos industrializados e realização de trocas comerciais), aumenta
de forma incessante o estabelecimento de indígenas nas cidades do Purus (Pauini,
Lábrea, Canutama, Tapauá), nas capitais (Manaus e Porto Velho) e na zona rural, em
comunidades ribeirinhas do rio Purus. Em Lábrea, por exemplo, prolifera a criação
de pequenas aldeias nas imediações da cidade – dinâmica facilitada pela vizinhança
física entre o perímetro urbano e a TI Caititu. Canutama apresenta uma dinâmica
paradigmática nesse sentido: considerado convencionalmente pelas autoridades
regionais como “município sem presença indígena”24 no Médio Purus, hoje vive
um processo intenso de afirmação indígena na cidade e em comunidades rurais
da várzea do Purus. Lideranças indígenas da cidade estão elaborando cadastros
municipais que, na data atual, incluem 600 índios das etnias Banawa, Katukina,
Mamori, Paumari, Apurinã e Jamamadi.25 Processos análogos se verificam nas
outras cidades, mas atualmente não existem diagnósticos precisos que mostrem a
dimensão exata deste fluxo indígena urbano na bacia do Purus.
É arriscado estabelecer hipóteses sem ter realizadas pesquisas de campo
sistemáticas. Contudo, dá a impressão de que nos deparamos perante um processo
de emergência indígena regional, que transborda as territorialidades oficiais e que
aponta um cenário relativo de indigenização das cidades. É possível que o paradigma
socialeconômico-ritual dos circuitos indígenas do Purus esteja superando, dentro
de coordenadas contemporâneas, o dualismo histórico do regime seringalista,
baseado na assimetria entre patrão e seringueiro (ou em outras assimetrias com
implicações sociopolíticas e econômicas análogas: barracão/seringal, várzea/terra
firme, “branco”/índio, cidade/aldeia etc.). No cenário regional, parece desenvolver-
24 Dentro dos limites municipais de Canutama atualmente se situam a terra indígena Juma (homologada em
2004, sem população indígena no território) e parte da terra indígena Banawa (declarada em 2004).
25 Em entrevista pessoal, Ana Maria Banawa, liderança banawa de Canutama, atual coordenadora regional
da Focimp, referiu em maio de 2010 algumas informações a este respeito: residem na cidade 40 pessoas
da etnia Katukina e 42 pessoas da etnia Banawa. O grupo mais numeroso na zona urbana está constituído
pelos Paumari, e há também um número expressivo de Apurinã. Na zona rural, há duas famílias banawa
residindo em Santo Antônio de Apituã, sete na comunidade Monte Sião (ambas na várzea do Purus), duas
na comunidade Macacoã (igarapé Mamoriá) e um número indefinido de famílias na cidades de Tapauá
e Manaus (bairro Novo Israel). Foi aberto uma varadouro que liga a única aldeia da TI Banawa com a
comunidade de Canutama, estabelecendo um fluxo permanente entre os indivíduos que moram na terra
indígena e os que se estabeleceram em Canutama. Ana Maria me apresentou também um cadastro de 82
apurinã procedentes de São Luís do Mamoriá, e hoje residindo na comunidade Belo Monte (rio Purus), no
município de Canutama. Ela trabalha atualmente na Secretaria de Educação Municipal, e está articulando com a prefeitura e as lideranças indígenas da cidade a criação de uma escola indígena municipal.
Panorama contemporâneo do Purus indígena
127
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
se uma dinâmica alternativa, descentrada ou multicentrada, onde se estabelecem
múltiplas conexões e circuitos de intercâmbio e reciprocidade entre diversos grupos
sociais: entre os apurinã do Caititu e os apurinã de Porto Velho; entre os paumari do
Marahã e os paumari do Paricá; entre os deni do rio Cuniuá e os deni de Manaus;
entre os banawa da TI Banawa e aqueles que residem em Canutama; entre as diversas
sociedades indígenas entre si. Mas também entre o universo indígena e o universo
jara, dinamizados por um processo de aproximações e diferenciações, de alianças e
disputas territoriais, de recomposição permanente das alteridades.
As narrativas regionais expressam com frequência histórias de pacificações, em
que a frente extrativista empreendeu expedições diversas para “amansar os índios
brabos”. Hoje é possível verificar um fenômeno recíproco, em que de alguma forma
as sociedades indígenas “domesticam” o Purus e a sua diversidade social, tornando
mais densos e complexos os fluxos históricos de intercâmbio. O mundo social e
simbólico do Purus se reinventa, uma vez que a mudança de perspectiva não constitui
apenas uma “variação de posição”, e sim, uma nova representação do universo.
128
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Referências
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Panorama contemporâneo do Purus indígena
129
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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_______. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana
2(2)119, 1996.
130
Álbum Purus
Territorialidade, Recursos Naturais e Conflitos
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo,
socioambientalismo e emergência dos povos tradicionais
no
Sul do Amazonas
Thereza Menezes
O rio Purus está situado no sudoeste do Amazonas,
banhando uma região que tem sido cenário das mais variadas
experiências de desenvolvimento para a Amazônia. No
mosaico histórico do vale do Purus estão combinados a
diversificada presença indígena, o grande impacto da empresa
seringalista e da construção de rodovias para integrar a
Amazônia ao Brasil e as ondas de migração proveniente do
Nordeste que permitiram a constituição de novos grupos e
categorias sociais como extrativistas e ribeirinhos.
Desde a década de noventa vem se delineando na
região a marcante presença de dois vetores de redefinição do
perfil político-territorial da região, manifestos, por um lado, na
forte presença do socioambientalismo, expresso na difusão de
ONGs e na explosão de territorialidades legitimadas seja pela
presença e mobilização de povos e práticas tradicionais. Por
outro lado, percebe-se o avanço da fronteira do desmatamento,
expresso na dinamização de empreendimentos agropecuários
e hidrelétricos e que se inscrevem nas novas estratégias
empresariais articuladas para tornar a região do Purus uma
faixa de produção de commodities como pecuária, grãos, madeira
e energia.
O objetivo deste artigo é descrever e analisar este
espaço de possibilidades (Bourdieu, 1997, p. 63) e refletir
sobre seus efeitos sociais, tomando como foco o Município de
Lábrea, no sul do Amazonas. Minha pesquisa na área região do
Purus inscreve-se na tentativa de pensar conjuntamente o vale
do rio Madeira e Purus como fronteiras de desenvolvimento a
partir dos exames dos efeitos sociais de empreendimentos do
Governo Federal como o Complexo Hidrelétrico do Madeira
e a repavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Porto
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
131
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Velho).1 O âmbito desta investigação realizei surveys entre 2007 e 2009, com
investimento em pesquisa mais prolongada direcionado ao Município de Lábrea.
O vale do Purus possui uma longa história de ocupação de variados grupos
indígenas. Mesmo após a chegada dos europeus, até o século 19 o Purus era um rio
pouco explorado, representado como uma linha no mapa paralela ao rio Madeira.
Durante os séculos 17 e 18 houve uma onda pouco incisiva de exploração conduzida
pelos comerciantes de “drogas do sertão” na região do Médio e Baixo Purus,
realizada mediante exploração de trabalho indígena (Reis, 1997). Até o início do
século 19verificaram-se apenas algumas tentativas frustradas de missões jesuítas
e poucas expedições de reconhecimento. A partir de meados do século 19, este
cenário sofre profundas mudanças motivadas pela invenção e industrialização do
processo de vulcanização da borracha e, consequentemente, a explosão da demanda
pelo produto.
A exploração de ricas áreas de seringais como o Médio e Alto Purus
são incentivadas pelo governo brasileiro, fator que redundou na dinamização
da navegação na região, visto a necessidade de abastecimento de mão de obra e
suprimentos para as áreas de seringais e de escoamento da borracha extraída. A
migração em massa de trabalhadores nordestinos vitimados pelas grandes secas na
década de 1870, seduzidos pela perspectiva de riqueza rápida na floresta amazônica,
foi a solução adotada para a exploração dos seringais, transformando regiões como
Lábrea em uma das maiores produtoras de seringa do Amazonas.
A constituição do sistema de seringal ao longo do Purus resultou em violentos
conflitos com indígenas. Como as árvores de seringa apresentam-se dispersamente
conectadas por estradas, os seringais abrangem grandes áreas obrigando a distribuição
de seringueiros floresta adentro. Esta particularidade expunha os seringueiros aos
embates com indígenas e o desfecho desses encontros foram, em geral, assassinatos
ou refúgio dos índios em áreas cada vez mais isoladas e distantes dos seringais ou
a incorporação do trabalho indígena à empresa seringalista. Entre trabalhadores
migrantes e suas famílias, muitos também pereceram com as doenças que ainda
hoje assolam a região como a malária ou nos embates com indígenas.
Para além do conflito, o sistema do seringal produziu também um padrão de
relação social caracterizado pelo aviamento, onde o seringueiro recebe mercadorias
1 Refiro-me a minha participação coordenando desde 2008 junto com o antropólogo Alfredo Wagner Berno
de Almeida o projeto Transformações Socioeconômicas no Rio Madeira. Análise crítica para fins de monitoramento de políticas governamentais, financiado na primeira fase pelo International Rivers NetworkIRN e na segunda fase pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil — IEB. O âmbito desta pesquisa
foi realizado em parceria com o pesquisador Mason Mathews (Universidade da Flórida) um mapeamento
social das comunidades extrativistas do rio Ituxi (Lábrea), apoiado pelo Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia (PNCSA), coordenado por Alfredo Wagner Berno de Almeida e financiado pela Fundação
Ford.
132
Álbum Purus
Thereza Menezes
do barracão, pertencente ao patrão, saldando as dívidas contraídas com borracha
ou outros produtos de valor extraídos da floresta como castanha, por exemplo: a
rigidez do sistema de aviamento pelo uso da violência e ameaça de expulsão obedecia
à lógica dos preços do mercado internacional, ou seja, quanto mais altos os preços
da borracha, menor margem de manobra de negociação tinha o seringueiro que era
constrangido a vender a borracha somente para o seu patrão em condições por ele
determinadas.
Em geral, o sistema de aviamento era pouco monetarizado, caracterizado
pelo endividamento permanente em função dos preços extorsivos das mercadorias
negociadas em troca da produção de borracha e com pouca abertura para a
concorrência de outros comerciantes ou regatões, os quais poderiam ter sua
atividade restringida, controlada ou impedida pelos seringalistas. É possível afirmar
que residia no controle estrito do fluxo de trocas um eixo central deste processo de
dominação, porém este sistema era também legitimado pela dominação tradicional
manifesta na pessoalidade das relações (Weber, 1964) e expressa na centralidade
das relações diádicas (Foster, 1961), de compadrio e na ajuda emergencial aos
“clientes”. O poder do patrão respaldava-se na assunção por este da posição-chave
de mediador entre o isolamento do seringal e o acesso aos serviços essenciais
acessíveis nos núcleos urbanos. Ao reiterar quotidianamente esta função diante de
seus clientes, era lhe imputado por estes o título do “bom patrão”, reproduzindo-se
a crença na legitimidade ao sistema.
Se entre meados do século 19 e a década de 1980, o rio Purus e seus afluentes
estiveram profundamente ligados à empresa seringalista, observou-se entre o fim
da década de 1980 e ao longo dos 1990 uma significativa mudança. A partir deste
período alteram-se profundamente as regras do jogo entre Estado e atividade
seringalista, sendo suspensa pelo Governo Federal a tradicional política de proteção
à atividade que vigorara até então. Sem as facilidades de crédito ou garantias de preço
no mercado internacional, grande parte dos patrões não conseguiu dar continuidade
a seus empreendimentos, conduzindo a atividade ao completo colapso. Incapazes
de obter créditos, na maior parte dos casos os patrões abandonam ou venderam
as áreas que exploravam ou arrendaram seus seringais para exploração de recursos
alternativos a exemplo da castanha, afastando-se posteriormente para centros
urbanos.
Com o fim dos seringais um número expressivo de seus trabalhadores também
abandona estas áreas em direção a cidades como Lábrea, Porto Velho, Manaus ou
Rio Branco ou deslocam-se para a margem dos rios em busca de maiores facilidades
de comercialização da produção extrativa ou agrícola advinda de seus plantios nas
praias surgidas na vazante e estação seca. A opção por permanecer em comunidades
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
133
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
quase sempre muito distantes (mais de um dia de barco da sede municipal) é
frequentemente explicada pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de trabalhar
na cidade. A cidade é vista por extrativistas como um espaço de ansiedade,2 onde
se teme a longa permanência visto que toda ação é mediada pelo uso de dinheiro,
algo estranho ao habitus (Bourdieu, 1994, p. 42) cuja gênese reside na empresa
seringalista onde o dinheiro é apenas um dentre vários instrumentos de troca.
Esta realidade urbana é sempre contraposta à vida nas comunidades existentes ao
longo dos rios Purus, Ituxi e afluentes onde, apesar da ausência ou precariedade de
serviços básicos de saúde, educação, comunicação e transporte, pode-se garantir
a sobrevivência da família usando o capital de conhecimento acumulado sobre o
meio ambiente por meio da pesca, caça, extrativismo e plantio de roça e práticas de
ajuda mútua.
Além do longo período de permanência da empresa seringalista, a região
do Purus inscreve-se em um outro marcante momento da história da Amazônia. O
município de Lábrea é o último trecho da rodovia Transamazônica, que se inicia em
João Pessoa (PB). A via surgiu como uma promessa de promover o povoamento
épico da Amazônia novamente pelo deslocamento de nordestinos castigados pela
seca. A ideia de a Amazônia resolver o problema do excesso populacional, pobreza
e pouca disponibilidade de terras férteis e sem dono do Nordeste brasileiro não
era nada original, visto que as migrações datadas de meados do século 19 para a
dinamização da empresa seringalista também estavam associadas a esta ideia, bem
como a construção da ferrovia Madeira-Mamoré.
Por outro lado, a Transamazônica justificava-se a partir da retórica da
segurança nacional, onde, como observava o ministro Andreaza em 1970, era
preciso “fazer a estrada e chegar aos grotões mais distantes ou o estrangeiro chegaria
primeiro”. Com recursos disponíveis para a empreitada resultantes da transferência de
recursos retirados da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene)
e da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e direcionado
para o Ministério dos Transportes, centenas de engenheiros e milhares de operários
foram enviados para abrir a estrada. Os índios que viviam nos arredores mais uma
vez foram forçados a se refugiar ainda mais no interior da floresta.
Entre 1970 e 1973, com a promessa do governo de distribuir terras e criar
agrovilas, perto de 40 mil pessoas migraram para colonizar a Amazônia nos primeiros
anos. No entanto, não foram criados nem 20 agrovilas ao longo de toda a rodovia
2 É muito frequente a menção por parte de extrativistas e agricultores que residem nas comunidades ribeirinhas de Lábrea sobre a contabilidade da ida à cidade, onde se sabe com exatidão quanto custa ir à
cidade em litros de combustível e quanto custa cada dia na cidade de Lábrea, bem como a comparação
indignada com o fato de estarem pagando preços absurdos na cidade por alimentos que no seu cotidiano
se obtém apenas com o uso do trabalho.
134
Álbum Purus
Thereza Menezes
Transamazônica e em 1974, quando a estrada foi inaugurada com apenas 10%
de seu trecho asfaltado, o Incra tinha distribuído terras para apenas 900 famílias,
deixando outras 5 mil abandonadas em condições precárias ao longo das margens
da rodovia.
A opção pelo desenvolvimento calcado na abertura de estradas durante o
período de ditadura militar, somada à construção de barragens, instalação de fazendas
e a abertura de novas áreas de garimpo na região amazônica teve como um de seus
mais importantes efeitos o progressivo deslocamento de indígenas, seringueiros e
ribeirinhos. Esses segmentos sociais tiveram sua existência ignorada por estas políticas
públicas, visto que, não tendo uma identidade reconhecida e valorizada, constituíam
apenas obstáculos ao progresso. A solução adotada perante esta população foi o
controle de natalidade e a modernização, a introdução de tecnologias, o incentivo às
obras. Enfim, a saída para a Amazônia era a transformação da natureza combinada à
transformação das pessoas que lá habitavam (Almeida, 2004).
Com o fim do governo militar, novas iniciativas de promover o desenvolvimento na Amazônia a partir da sua integração ao território produtivo do País
ressurgem nos dois mandatos do governo FHC e Lula. Políticas econômicas que
deram ênfase para a exportação de commodities agrícolas facilitaram a ampliação
das culturas de arroz e soja, bem como favoreceram a pecuarização da Amazônia.
Este tipo de investimento tem se traduzido em uma acentuada pressão sobre terras
tradicionalmente ocupadas3 por populações tradicionais da Amazônia, obrigando
os deslocamentos compulsórios e desorganizando economias extrativas, já muito
fragilizadas pela falta de uma política federal para o extrativismo e a morosidade
e burocratização do reconhecimento formal de Terras Indígenas, comunidades
remanescentes de quilombos, Resex (Almeida, 2005, p. 38).
Com o governo Lula, assistimos também a um largo investimento na
recuperação da malha de infraestrutura de transportes facilitando o escoamento
produtivo da região por meio de obras como a repavimentação da BR-319 e
estruturação e implantação da Hidrovia do Madeira e porto de Itacoatiara.4 Estas
iniciativas permitiram ao Grupo Maggi, por exemplo, um aumento de 60% das
margens de lucro da cultura da soja entre Rondônia e Amazonas em comparação
com o período em que o escoamento da produção era realizado pelos portos de
Santos e Paranaguá.
Como resultante deste processo de incentivos, dados do Anuário Estatístico
do Amazonas (2004) e Conab (Brasil, 2005) apontam para um salto considerável
3 Segundo denominação da Convenção n.o 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
4 Destaca-se a concessão em 2009 do licenciamento ambiental prévio para a pavimentação de 100 km da
BR-317 entre Lábrea e Boca do Acre.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
135
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
tanto na produção quanto no avanço da área cultivada nos municípios do sul do
Estado do Amazônia, indicando que em 1998 foram colhidas 796 toneladas de
soja em 587 hectares de área plantada; ao passo que na safra de 2004-2005 a área
plantada somava 2,1 mil hectares e a produção de 5,4 mil toneladas.
O crescimento de áreas desmatadas na porção sul amazônica cresceu
paralelamente à expansão da fronteira agropecuária nesta região. Segundo o Sistema
de Proteção da Amazônia (Sipam), as taxas de desmatamento no sul do Estado do
Amazonas aumentaram em 2004 aproximadamente 16% saltando de 6.926 km2
para 8.238 km2. Os dados indicavam que o desmatamento estava ocorrendo para
além de antigas áreas desmatada, e avançando em direção da vegetação primária da
floresta e, principalmente, para os campos naturais.
Atualmente o próprio Estado, no Plano Amazonas Sustentável (2008) admite
a existência de três frentes de expansão de soja na Amazônia sendo uma delas o
“corredor do madeira”,5 área que abrange a área de influência direta e indireta da
hidrovia do rio Madeira, eixo de escoamento da soja proveniente de Mato Grosso
e indutor de frentes novas que já apontam para o avanço dos desmatamento no sul
do Amazonas e aproximam-na de frentes de expansão mais antigas situada a leste
da rodovia Rio Branco-Boca do Acre.
No sul de Lábrea há numerosas áreas, algumas com até 3.000 ha de avanço
da pecuária, bem como no trecho entre Humaitá e Lábrea, onde se detecta tanto ao
longo da BR-230 (Transamazônica) quanto na várzea do rio Purus a presença de
grandes pecuaristas expulsando comunidades extrativistas e produtores familiares.
Ao sul de Manicoré, cooperativas e empresas privadas provenientes de Mato Grosso
e Rondônia vêm grilando terras para expandir o plantio de soja. No entanto, a mais
recentemente, veloz e tecnificada frente provém do sul de Canutama e Humaitá,
na área de abrangência da rodovia Manaus-Porto Velho, onde fazendeiros do Sul
do País estão se apropriando rapidamente de terras e para implantação da cultura
mecanizada da soja.
Ainda que a soja venha expandindo-se rapidamente, é a pecuária extensiva
de baixa produtividade e a exploração de madeira que geralmente abrem espaço
para a cultura de grãos, constituindo atividades características dos vales do Madeira
e Purus. O processo mais frequente de implantação destas atividades inicia-se com o
desmatamento de áreas e posterior plantio de pasto para garantir a titulação da terra
ou para prevenir futuras ocupações. A pastagem configurou-se como o mecanismo
mais barato de ocupar terras desmatadas, possibilitando lucro substancial quando a
terra é revendida.
5 As outras duas frentes estão situadas no Pará: Cunha do Tapajós (Terras cortadas pela estrada CuiabáSantarém) e Terra do Meio.
136
Álbum Purus
Thereza Menezes
O avanço da criação de gado na Amazônia está intimamente relacionado
ao crescimento sem precedentes da pecuária brasileira nos últimos anos, tornando
o Brasil o maior exportador mundial em 2005. Em 2006, as exportações brasileiras
ultrapassaram os US$ 2,2 bilhões e a pecuária passou a integrar a lista dos dez
principais itens de exportação do País. A partir de 2003, o aumento da produção
brasileira concentrou-se na Amazônia, especialmente no Pará e registrou-se a
transferência de grandes rebanhos do restante do País para a região.
Entre as razões da dinamização da pecuária na região estariam: as assimetrias
do preço da terra no Brasil que tornam a terra amazônica muito mais barata em
comparação com outras regiões brasileiras, o deslocamento da pecuária do Sudeste
e Centro-Oeste para a abertura de espaço para outras atividades produtivas, os
expressivos investimentos em abatedouros e a remoção das barreiras da febre aftosa
na Amazônia.
A pecuária voltada à venda para frigoríficos é o setor mais pungente em
Lábrea. Destacam-se especialmente criadores do sul do município instalados nos
ramais que formam as chamadas “espinhas de peixe” a partir da BR-364 tais como
Mendes Júnior, Jequitibá e Linha 01 (Vista Alegre do Abunã). A Comissão Especial
do Sul do Amazonas6 calculou que entre 350 e 600 mil cabeças de gado nelore estão
sendo criados nesta região, sendo que o rebanho de todo o Amazonas é estimado
em 1,2 milhão.
A existência de madeira de lei na região sul do Amazonas é outro fator que
tem acelerado o desmatamento de certas áreas nos últimos anos. O Município de
Lábrea, por exemplo, ostentou o título de campeão do Amazonas de desmatamento,
tendo aumentado em 87% a área desmatada entre os anos de 2003 e 2004 em
função do desmatamento ilegal de suas florestas de cedro e mogno, especialmente
no entorno das BR-364 (Porto Velho-Rio Branco) e BR-230 (Transamazônica).
Há no sul de Lábrea 43 serrarias implantadas em municípios situados na fronteira
com Rondônia, espalhadas ao longo da BR-164 que liga Porto Velho a Rio Branco,
particularmente em Vista Alegre do Abunã (RO), mas também em Nova Califórnia
(RO), Extrema, Vista Alegre do Abunã (RO) e Acrelândia (AC). Apenas duas
serrarias encontram-se dentro do Município de Lábrea, fato explicado pela grande
tolerância dos órgãos públicos do Estado vizinho do Amazonas com a atividade
madeireira, que torna estratégico levar a madeira extraída em Lábrea para serrarias
do lado da fronteira de Rondônia.
Deve-se salientar ainda a frequente relação entre desmatamento e trabalho
escravo na região. Em 2008, uma operação da Polícia Federal encontrou na fazenda
6 Comissão criada por decreto do governador do Estado para apurar as situações de conflito existentes na
região do sul de Lábrea.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
137
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Alto da Serra situada no sul de Lábrea, na área conhecida como Ramal do Boi, perto
de 50 pessoas no meio da mata sem comida, alojamento ou pagamentos. Elas haviam
sido agenciadas para desmatar 5 mil hectares de floresta para a criação de gado por
um consórcio de fazendeiros do Acre empenhados em transformar grandes áreas de
Lábrea em pastos por meio de trabalho escravo7 (Hashizume, 2009).
Em meados de 2009, dados do Ipaam revelavam a existência de 85 planos
de manejo protocolados relativos a Lábrea. Destes apenas um estava devidamente
licenciado e entre o restante havia 60 não licenciados, 21 com licença vencida, um
com licença cancelada e outro com licença suspensa. Cinco destes planos eram
comunitários e o restante empresariais (Relatório, 2009). Dados da Comissão
Especial do Sul do Amazonas indicam que são retirados mensalmente perto de mil
e quatrocentos metros cúbicos de madeira de boa qualidade, inclusive castanheiras
(A Crítica, 2008).
As mudanças no comércio internacional de madeiras explicam em parte este
grande crescimento da extração de madeira. A diminuição das florestas tropicais do
sudeste asiático e da África Central vem tendo entre suas consequências a redução da
oferta e elevação internacional dos preços das madeiras nobres, tornando cada vez
mais lucrativo o mercado de madeiras. As companhias multinacionais madeireiras
vêm se deslocando para a Amazônia brasileira, provocando o avanço da fronteira
madeireira na região, sobretudo no Pará e Amazonas.
Segundo dados do Greenpeace (1999), entre a década de 1980 e fim da
década de 1990, a madeira amazônica saltou de 14% para 85% do total da produção
nacional. A atividade vem se desenvolvendo de forma predatória, visto que cerca
de 80% da madeira é extraída de forma ilegal e, na maior parte dos casos, os planos
de manejo florestais são usados exclusivamente para a satisfação de requerimentos
legais. Os benefícios da atividade madeireira para os povos tradicionais são baixos,
visto que a indústria com frequência oferece péssima remuneração e o acesso aos
lucros do comércio internacional é dominado por empresas estrangeiras.
As grandes extensões de terra grilada também chamam a atenção no sul do
Amazonas, somando-se quase 8 milhões de hectares de ocupação irregular de terra.
Em função das investigações realizadas pela chamada CPI da Grilagem, realizada
em 2001, uma área de 600 mil hectares registrada irregularmente em Lábrea
voltaram a ser da união por decisão do Conselho Nacional de Justiça. Segundo
levantamentos do Incra, 48 milhões de hectares de terra em 17 municípios do sul
7 Este não é um caso isolado, outra fiscalização realizada em outubro de 2008 pela SRTE/AM e pelo MPT
na região de fronteira do Amazonas com o Acre e com Rondônia libertou 42 trabalhadores da Fazenda
Mococa, da fazenda América e, mais uma vez, da fazenda Guaxaba, onde nove pessoas estavam sendo
exploradas como escravas.
138
Álbum Purus
Thereza Menezes
Amazonas estavam nas mãos de grileiros. O Município de Canutama, por exemplo,
chegou a ter cinco vezes mais registros de terra do que a área total do município.
A CPI da Grilagem lançou luz sobre a caótica situação fundiária do sul
do Amazonas ao investigar o grileiro Falb Farias, que sustentava ser dono de 6,8
milhões de hectares em cinco municípios do Amazonas (Boca do Acre, Canutama,
Tapauá, Lábrea e Pauini), correspondente a 4,37% do Estado do Amazonas. A
área foi obtida por meio de sucessivas retificações no tamanho das áreas obtidas
no cartório de Lábrea, que transformou registros de 150,25 hectares de glebas do
seringal Maripuá situado em Pauini em áreas de 369.262,04 hectares. O mesmo
processo foi empregado na transformação da gleba Inahiní com área de 1.524,60
hectares, situada em Boca do Acre, em uma área com 311.783,52 hectares por
intermédio da abertura de nova matrícula no registro de imóveis de Lábrea.
Por esse sistema de grilagem, Falb Farias e seus aliados ocuparam irregularmente 1,2 milhão de hectares dos 6,3 milhões de hectares do município de Lábrea.
Em Canutama, o grupo registrou 40,99% da extensão do município que possui 2,4
milhões de hectares. Em Tapauá, que tem área de 9,6 milhões de hectares, Farias se
dizia proprietário de 2,3 milhões de hectares. Após a CPI da Grilagem, o Governo
Federal cancelou os títulos de propriedade de Falb Farias, mas muitas destas terras
continuam disponíveis para a investida de outros grileiros.
No extremo sul do Município de Lábrea, próximo à vila de Nova Califórnia,
na estrada Porto Velho-Rio Branco, a CPI da Grilagem apontou a situação do
Ramal dos Baianos. O ramal se encontra em área propícia à agricultura mecanizada
e pastagens em razão dos solos bem drenados e planos, onde predomina uma
vegetação formada em grande parte de castanheiras da qual sobrevivem centenas
de extrativistas residentes no rio Ituxi. Os moradores afirmavam que, desde 2002,
um grileiro proveniente da Bahia construiu um ramal principal com 84 km e 250
km de estradas secundárias ilegais e vinha negociando terras no entorno das vias,
atividade que provocou perto de 15 mil hectares de desmatamentos de acordo com
o Ibama.
Duas outras áreas críticas em relação à prática da grilagem no sul do Amazonas
estão na rodovia Transamazônica, a primeira é a rodovia do Estanho, localizada
no km 150 da Transamazônica, a partir de Humaitá. A área tem grande ocupação
de produtores de soja que instalaram na região importante aparato de produção
e armazenamento de grãos e utilizam o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural
(CCIR) para obtenção de créditos de bancos e agência de fomento para ampliar as
áreas de cultivo de soja. A segunda área crítica é o km 180 da Transamazônica, no
Município de Manicoré, a área é considerada o maior centro de comércio de terras
públicas do Brasil.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
139
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A partir da BR-319, uma estrada ilegal de mais ou menos de 70 km, que fica
a 18 km de Porto Velho dá acesso aos campos naturais na cabeceira do rio Punicici.
Segundo extrativistas de castanha desta região, a estrada ilegal foi construída por
grileiros e produtores de soja em busca de áreas de campos naturais planas e com
pouca vegetação que permitem cultivar soja em apenas um ano.
A exploração do potencial hidrelétrico dos rios (especialmente o rio Madeira,
rio Purus e o rio Ituxi) assinala outra dimensão do alargamento das possibilidades
de exploração dos recursos naturais do sul do Amazonas, a situação de Lábrea é
emblemática neste sentido. Em 2005, funcionários do grupo Grupo Cassol foram
surpreendidos ao iniciarem a dinamitação de cachoeiras para a construção de uma
usina hidrelétrica no rio Ituxi, situado ao sul de Lábrea. O projeto do grupo era
construir uma hidrelétrica, destinada a gerar 100 megawatts de energia.
O Grupo Cassol iniciou suas atividades no Amazonas em 1977, nos
setores madeireiro e agropecuário e atualmente dedica-se ao setor de geração
e comercialização de energia elétrica, possuindo atualmente cinco pequenas
hidrelétricas. Ivo Cassol, governador de Rondônia, declarou ter comprado 3 mil
hectares de terra no rio Ituxi e teria, supostamente, autorização do Ministério das
Minas e Energia para fazer o inventário hidrelétrico da área. O investimento em
pequenas usinas hidrelétricas ou transformação da biomassa, ou seja, a utilização de
matéria que já esteve viva em forma animal ou vegetal, como geradora de energia é
uma tendência cada vez mais presente entre grandes produtores rurais que procuram
racionalizar o uso de recursos naturais de suas propriedades visando a reduzir os
custos produtivos.8
Tentando conter a investida do agronegócio no sul do Amazonas e as
políticas desenvolvimentistas do governo voltadas para o Amazonas, a vertente
ambientalista presente no aparato estatal busca impedir, coibir ou controlar a vertente
desenvolvimentista pelas medidas preventivas, mitigadoras ou compensatórias
impostas como mecanismos de controle ambiental a municípios com altos índices
de irregularidades na apropriação fundiária e desmatamento. Esta configuração vem
permitindo uma reconfiguração do mapa territorial do sul do Amazonas em virtude
da difusão de novos estatutos territoriais e permitindo o surgimento nesta região de
novos atores políticos.
8 Analiso este processo de adoção do uso de biomassa do bagaço da cana (cogeração) e implantação de
pequenas usinas hidrelétricas para produção de energia em usinas sucroalcooleiras em Pernambuco. No
texto, demonstro como a minimização do custo produtivo que está na origem deste tipo de investimento
tornava-se um recurso de prestígio empresarial, convertendo a imagem da indústria canavieira de atividade altamente impactante para ambientalmente sustentável com vistas a dinamizar a exportação de
açúcar (Menezes, 2008).
140
Álbum Purus
Thereza Menezes
A retórica burocrática proferida pelos escritórios locais do Incra, Instituto
Chico Mendes e Funai explica a cartografia que vem se construindo retoricamente
como um atestado da valorização ambiental e dos povos tradicionais pelo governo.
No entanto, o espaço de possibilidade para que este reconhecimento acontecesse
esteve vinculado à quantidade de pressão de grileiros sobre as terras no sul do
Amazonas entre 2003 e 2005, período em que foi maciçamente denunciado pela
imprensa nacional e internacional a grilagem e o descontrole sobre o avanço do
desmatamento na região decorrentes do rápido avanço do cultivo de soja e ampliação
da criação de gado. Por outro lado, a recuperação da BR-319 vem tornando os
municípios do entorno da estrada, principalmente Beruri, Tapauá, Canutama,
e Lábrea, objeto de ação prioritária para a criação de projetos de assentamento,
Unidades de Conservação, Reservas Extrativistas visando à conter a ocupação
irregular nas margens da rodovia.
Lábrea possui 16 terras indígenas, quatro unidades de conservação e
quatro projetos de assentamentos. Apesar de apresentarem históricos prévios
diversos de mobilização por sua criação, estes territórios tiveram frequentemente
como grande propulsor para sua efetivação a proteção e garantia de preservação
do patrimônio biológico considerado em risco iminente ou diante da ameaça de
projetos promovidos, seja pelo Estado, seja por fazendeiros.
Estes novos estatutos territoriais são concebidos pelos agentes do Estado
como barreiras à fragmentação fundiária e aos usos ambientalmente incorretos
da terra. Ainda que secundariamente, a multiplicação destes territórios deve-se a
uma perspectiva de vigilância e investimento comercial no longo conhecimento
das populações nativas a respeito deste patrimônio, configurando-se como uma
aposta na futura exploração da biodiversidade destas áreas. A estratégia de proteção
territorial se expressa no recente alargamento das áreas de unidades de conservação
estaduais no Amazonas. Em 2002, o Amazonas possuía 7,4 milhões de hectares de
unidades de conservação estaduais e ao final de 2005 estas áreas já tinham alcançado
15,6 milhões.
No sul do Amazonas, particularmente, o governo está empenhado na criação
de um novo mosaico de unidades de conservação com aproximados 2 milhões de
hectares em terras estaduais sob ameaça de grilagem e desmatamento. A Reserva
Extrativista do Ituxi, criada em junho de 2008, foi proposta durante os debates
sobre a Área sob Limitação Administrativa Provisória (Alap) da BR-319 (obra do
PAC), em julho de 2006. Com esta área o governo completou um grande mosaico
previsto para minimizar os impactos da pavimentação da BR-319 (Porto VelhoManaus). Em maio de 2008, tinham sido criados com este fim o Parque Nacional
do Jari (812 mil/ha), a Floresta Nacional de Iquiri (1,5 milhão/ha) e a Resex do
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
141
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Médio Purus (604 mil/ha). Outras áreas criadas anteriormente foram ampliadas,
entre elas a Floresta Nacional de Balata-Tufari, que inicialmente possuía 276 mil
hectares e atualmente tem área de pouco mais de um milhão de hectares.
A ênfase na criação de unidades de conservação teria excluído o extremo
sul de Lábrea da criação de novas UCs, optando por investir em novas unidades na
área de recuperação da BR-319, vista como prioritária graças à previsão de grandes
impactos. Segundo o superintendente do Ibama, Henrique Pereira, do ponto de
vista ambiental a área desmatada de Lábrea no extremo sul de Lábrea “já era” [sic].
A sugestão do órgão foi a criação de reservas ao redor da frente de desmatamento,
como os parques nacionais de Ituxi, Mapinguari e as reservas extrativistas de Ituxi
e do Purus.
Para a chamada área que “já era” [sic], ou seja, degradada ambientalmente
ou sob forte pressão da grilagem, madeireiros e posseiros, a opção tem sido o
investimento em assentamentos rurais, especialmente em locais com conflitos
violentos entre fazendeiros e posseiros ou extrativistas, e que envolvem morte ou
ameaças aos ocupantes, caso do Projeto de Assentamento Gedeão e Projeto de
Assentamento Florestal Curuquetê.
A distribuição de terras em Lábrea já expressa claramente este contexto
de transformações em curso a partir da década de 90 e que vem se traduzindo na
conformação de um novo perfil fundiário da região apresentado na tabela abaixo
referente à distribuição de unidades de conservação, terras indígenas e projetos de
assentamento.
Unidade de Conservação (UC)
Resex Médio Purus
Flona Iquiri
Resex do Ituxi
Parna Mapinguary
Área total (ha)
604.290,25
551.704, 73
1.476.073,00
1.476.073,00
776.940,00
776.940,00
1.572.422,00
890.713,00
Total
3.695.430,00 (54%)
Fonte: Incra-AM, ICMbio, Funai.
142
Área em Lábrea
(ha)
Álbum Purus
Thereza Menezes
Terras Indígenas
Área total (ha)
Área em Lábrea
(há)
Alto Sepatini
26.096,00
26.096,00
Apurinã do Igarapé Mucuim
73.000,00
73.000,00
Hi Merimã
678.365,00
82.149,00
Jarawara/Jamamadi/Kanamati
390.233,00
147.000,00
Paumari do Rio Ituxi
7.572,00
7.572,00
São Pedro do Sepatini
27.644,00
27.644,00
Seruini/Mariene
144.97,00
97.105,00
Tumiã
124.357,00
124.357,00
Kaxarari
147.000,00
98.021,00
Boca do Acre
26.600,00
17.800,00
Apurinã — km 124 da BR-317
42.244,00
33.024,00
308.063,00
308.063,00
1.531.303,00
74.875,00
Acimã
40.686,00
40.686,00
Banawa
195.700,00
1.750,00
Caetitu
Deni
1.277.909,00
(19 %)
Total
Fonte: Incra-AM, ICMbio, Funai.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
143
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Projetos de Assentamentos
Criação
Famílias
Área (ha)
Projeto de Assentamento
Monte
1992
1.000
113.000,00
Projeto de Assentamento
Paciá (PA)
1999
135
5.222,00
Projeto de Assentamento
Umari (PA)
1996
146
9,017,00
Projeto de
Desenvolvimento
Sustentável Gedeão (PDS)
2007
127
12.000,00
Projeto de Assentamento
Florestal Curuquetê (PAF)
Fase de estudos
preliminares.
Área vistoriada
em agosto de
2009 e Relatório
de Viabilidade
Ambiental
divulgado em
outubro de 2009.
100
40.948,2583
Fonte: Incra-AM.
O processo que permitiu a criação destes espaços explica apenas em parte pela
política de controle do avanço desenvolvimentista promovidas pelo Estado. Muitos
destes novos territórios são alvo de atuação prévia de mediadores empenhados na
defesa dos direitos indígenas ou das comunidades de extrativistas e agricultores
ou na proteção aos ecossistemas ameaçados da região. Outra situação encontrada
relaciona-se com a pressão pela criação de estatutos territoriais como mecanismo
de garantir acesso a recursos naturais cujo acesso é restringido em função das novas
fronteiras, ou seja, novos estatutos territoriais produzem o privilégio de uso de
recursos naturais para alguns grupos sociais a despeito de outros. Em Lábrea é
comum o questionamento por parte de pescadores ou extrativistas, por exemplo,
sobre o privilégio que as terras indígenas concederam aos índios no que tange ao
controle de recursos pesqueiros ou de castanhais. E reagindo contra este privilégio
144
Álbum Purus
Thereza Menezes
são propostas a criação de outras novas unidades territoriais legitimadas no uso
tradicional supostamente ameaçado dos pescadores ou extrativistas.
É justamente contexto de conflito seja com Estado, fazendeiros ou outros
grupos sociais que vem permitindo o aparecimento de formas associativas expressas
nos chamados novos movimentos sociais. Estes movimentos são estabelecidos
na solidariedade entre sujeitos que se envolvem na construção de unidades de
mobilização associadas a uma política de identidades fundada em modalidades de
existência coletiva e em correspondência com territorialidades particulares. Estas
territorialidades passam a ser concebidas como garantias à reprodução social de
grupamentos sociais permitindo a politização da natureza, do uso de recursos naturais
de autodefinições de uso local presentes na vida cotidiana tal qual, castanheiro,
peconheiro, quebradeiras de coco, extrativistas e as mais variadas denominações
étnicas indígenas (Almeida, 2008).
A ruptura com designações homogeneizantes como camponês, trabalhador
rural, “nativos”, que obliteravam diferenças de várias naturezas entre os grupos sociais
tem possibilitado mudanças na capacidade de mobilização diante do Estado e no
padrão de relações políticas que vem permitindo o aparecimento de novas parcerias
à medida que as defesas de territórios estão sendo socialmente construídas.
Em Lábrea e Boca do Acre, três recentes reservas extrativistas surgiram
em contextos de embate, respectivamente, a Reserva Extrativista do Médio Purus,
Reserva Extrativista do Ituxi, criadas em 2008, e Reserva Extrativista Arapixi, criada
em 2006. A reconstituição das trajetórias particulares da criação de cada uma destas
Resex sugere que o surgimento e expansão de novos estatutos territoriais no sul do
Amazonas não se inscrevem apenas em uma lógica geopolítica desenvolvimentista
ou mitigadora de efeitos de projetos a ela correlatos, mas obedecem às vicissitudes
das configurações das relações sociais locais, a presença de mediadores e de suas
redes de relações capazes de traduzir em forma de processo de territorialização
demandas e conflitos específicos de cada localidade.
Na reconstituição dos diversos processos que resultaram na criação
destas Resexs verifica-se discursivamente a conversão de um problema social em
ambiental que produz um vetor de mobilização permanente e possibilita a atuação
de mecanismos de regulação do Estado. Do lado do Estado, a ampliação das
fronteiras sob controle de seus diversos órgãos significa também a conquista pela
esfera estatal de controle sobre áreas que eram previamente ou controladas pelo
poder privado ou ocupavam um ponto cego territorial em função da inexistência
de presença estatal, áreas representadas, vez por outra, como alvos do medo do
domínio estrangeiro sobre a Amazônia.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
145
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Em um universo social caracterizado pelas grandes distâncias e dificuldade
de acesso à informação e comunicação como o sul do Amazonas, a explosão de
reivindicação de territorialidades e identidades verificadas a partir da década de
90 não seria possível sem a presença de mediadores. São estes que informam
da existência dos novos estatutos, agenciam a demanda por eles e colaboram na
capacitação para gestão administrativa e financeira das diversas associações criadas
na região, que se tornam involuntariamente cogestoras dos novos territórios
Em razão do grande número de novos territórios e demandas por criação,
expansão, controle e gestão, vemos em Lábrea, por exemplo, um vasto conjunto
de organizações devotadas a estes diversos papéis. Atuam no município apoiando
comunidades, organizações e associações formadas por povos tradicionais,
por exemplo, a CPT (Comissão Pastoral da Terra), Cimi (Conselho Indigenista
Missionário), CNS (Conselho Nacional de Seringueiros), GTA (Grupo de Trabalho
Amazônico), IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil) , Opan (Operação
Amazônia Nativa)/Visão Mundial-Projeto Aldeias.
A forma associação é uma imposição para o reconhecimento jurídico, etapa
imprescindível para a gestão de projetos e políticas públicas por estas organizações.
No campo indígena, houve nos últimos vinte anos um grande avanço numérico
das organizações indígenas, e este crescimento deveu-se em parte a apropriação de
práticas aprendidas no contato com os parceiros não governamentais. Segundo Silva
(2002), as organizações indígenas, e poderíamos acrescentar também as associações
de outros povos tradicionais, visa à constituir um instrumento de representação
política para a reivindicação de direitos territoriais e serviços de assistência
(saúde e educação), e a necessidade de instrumento para buscar recursos para o
desenvolvimento de projetos de apoio à produção, geração de renda, recuperação
de áreas degradadas etc.
A experiência de gestão nem sempre é positiva para as organizações. Em
Lábrea, a Organização dos Povos Indígena do Médio Purus (Opimp), fundada em
1995, assumiu em 1999 a gestão do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEIMédio Purus) — Funasa. Segundo Franco (2009), este momento representou a
“superação da imagem do índio como freguês do patrão”, visto que este passou a
“ocupar o posto de comprador e empregador, assinando anualmente convênios nas
cifras de um a dois milhões de reais”.
Em razão de problemas de gestão de recursos relacionados à falta de
organização e compromisso do Estado com a causa indígena, bem como apoio
técnico, político e administrativo, a Opimp endividou-se e sofreu múltiplas
146
Álbum Purus
Thereza Menezes
condenações na Justiça Trabalhista. Desde 2005 a organização estava paralisada
por este impasse e acometida por crescente desgaste político que redundou em sua
extinção. Em maio de 2010, o movimento indígena reage a esta situação, reunindo-se
em assembleia e fundando a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas
do Médio Purus (Focimp).
Em função de situações como a da Opimp o foco da ação de organizações
socioambientais atuantes em Lábrea como o consórcio Opan–Visão Mundial9
reunidos no Projeto Aldeias, financiado pela Usaid10 tem recaído fundamentalmente
no apoio à conservação da biodiversidade por meio do apoio à gestão ou manejo de
recursos naturais pelos povos indígenas, buscando combinar concepções científicas
com o conhecimento tradicional e suas formas diferenciadas de relação com o meio
ambiente.
A potencialização da capacidade autônoma de gestão das organizações
tem sido considerada a chave para a proteção da integridade das terras indígenas,
salientando-se que este investimento das organizações socioambientais está
concentrado nas terras indígenas consideradas estratégicas por sua alta importância
biológica ameaçadas por “atividades ilegais de extração de recursos naturais e
influências modernas que suplantam negativamente suas práticas tradicionais” (site
OPAN, 2009). A meta central do consórcio formado pelo Projeto Aldeias, por
exemplo, é a conservação e vigilância dos recursos naturais, que preservados são
garantias de sustentabilidade dos povos indígenas, mas para se alcançar tal fim é
preciso fortalecer as organizações indígenas que devem funcionar como suportes
para difusão, treinamento e planejamento da gestão ambiental.
Entre os povos tradicionais não indígenas percebe-se uma forte presença
de entidades com vinculação religiosa entre os mediadores. A Comissão Pastoral
9 A Visão Mundial é uma ONG cristã criada em 1950 e presente em aproximadamente cem países. Os projetos promovidos pela organização são nas áreas temáticas: saúde, educação, desenvolvimento comunitário, agroecologia, desenvolvimento econômico, promoção da justiça e direitos humanos. A Operação
Amazônia Nativa (Opan) é uma organização da sociedade civil do direito privado, sem fins lucrativos,
sediada na cidade de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, Brasil. Fundada em 1969, desenvolve desde então
Projetos de Trabalho junto aos povos indígenas nas regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil.
10 A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) é um órgão independente do
governo federal dos EUA com sede em Washington e responsável por programas de assistência econômica
e humanitária em todo o mundo. A Usaid surgiu em 1961 e oferece assistência técnica com ênfase em
atividades de desenvolvimento econômico e social de longo alcance nas áreas de educação e saúde,
reforma da administração pública e da justiça social. A Usaid executa sua missão por meio de parcerias
com pessoas e governos dos países onde atua, juntamente com organizações privadas e não governamentais, além de empresas, fundações, instituições acadêmicas, outras agências dos Estados Unidos e
doadores bilaterais e multilaterais.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
147
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
da Terra — CPT11 tornou-se uma das mais atuantes entidades na mediação
de posseiros e extrativistas em Lábrea por meio da localização de conflitos,
organização e mobilização das “comunidades” e mediação. A CPT, especialmente
o escritório associado à Prelazia de Lábrea, teve participação ativa na mobilização
para criação de vários territórios situados no sul do município como as Resex
Ituxi, Resex do Médio Purus (extrativistas) e Projetos de Assentamento Gedeão
(PDS) e Curuquetê (PAF).
Em três destes casos a intervenção da CPT se deu em razão da existência
de conflitos que envolviam ameaças e o sentimento de profunda insegurança dos
residentes por parte de fazendeiros, madeireiros e grileiros em áreas de avanço
de desmatamento que os levaram a denunciar e buscar apoio de mediadores que
apoiaram as suas demandas pela criação de territorialidades específicas sobretudo
pela visibilidade do conflito na imprensa, assessoria jurídica e proteção da integridade
física das lideranças do movimento e associações.
A CPT não é, no entanto, a única entidade a apoiar povos tradicionais
não indigenas. Em Lábrea atuam, por exemplo, Grupo de Trabalho Amazônico
(GTA),12 o Conselho Nacional de Seringueiro (CNS)13 e o consórcio Fortis14
(Fortalecimento Institucional no Sul do Amazonas) liderado pelo IEB,15 que
congrega como parceiros o Imazon, a Associação de Defesa Etnoambiental
Kanindé e a Conservação Estratégica (CSF Brasil). O Fortis busca a capacitação
institucional visando o aumento da governança ambiental na região, atuando
também na proteção à integridade dos territórios indígenas e promovendo ações de
consultorias e capacitações para organizações locais.
Deve-se notar a existência de uma retórica de concorrência entre os
mediadores (governamentais e não governamentais) de povos tradicionais indígenas
e não indígenas pela representação destes grupos em Lábrea, situação por vezes
11 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Fundada em plena ditadura
militar, como resposta à grave situação de expropriação dos trabalhadores rurais, posseiros e peões da
Amazônia, que foram os primeiros a receber atenção da CPT.
12 O GTA foi fundado em 1992 e reúne 602 entidades filiadas e está estruturado em nove Estados da Amazônia Legal. Fazem parte da Rede GTA organizações não governamentais e movimentos sociais representantes de diversos segmentos.
13 O Conselho Nacional das Populações Extrativistas (o antigo Conselho Nacional dos Seringueiros — CNS)
é uma organização de âmbito nacional que representa trabalhadores agroextrativistas organizados em
associações, cooperativas e sindicatos de todos os Estados da Amazônia.
14 O Fortis atua em sete municípios do sudeste do Estado do Amazonas: Boca do Acre, Lábrea, Canutama,
Humaitá, Apuí, Novo Aripuanã e Manicoré.
15 O Instituto Internacional de Educação do Brasil é uma organização civil, criada em 1998 e voltada para
a capacitação de pessoas ligadas à conservação ambiental.
148
Álbum Purus
Thereza Menezes
estimulada pela disputa de recursos para projetos voltados à governança territorial
na Amazônia. A multiplicação de fronteiras e estatutos territoriais também tem
impactado o universo de relações sociais, produzindo disputas entre grupos
sociais com e sem territorialidades específicas. Um pescador em Lábrea definia sua
insatisfação com o controle de áreas de pesca em terras agora indígenas afirmando
que “o mundo inteiro está derrubando muros, enquanto o Amazonas não para de
construí-los”.
A produção de novos estatutos territoriais também vem produzindo
conflitos e desestruturando formas prévias de gestão territorial como acordos
de pesca ou outras modalidades de normatização tradicionais de manejo e uso
de recursos naturais entre ribeirinhos, pescadores e índios. Ao acompanhar o
georreferenciamento realizado sob orientação do Incra do Assentamento Gedeão
no sul de Lábrea, presenciei o desespero de vários posseiros que afirmavam ter
comprado “verbalmente” parcelas havia muitos anos e desmatado para plantio
de roça, segundo eles, conforme “o costume do local”. Com a chegada do Incra
descobriram não só que estavam excluídos do cadastro como foram duramente
multados pelo Ibama por crime ambiental.
Este texto buscou situar os dois principais vetores que apontam para duas
distintas direções para a construção do perfil da região do Purus pós-seringalista.
Em uma direção delineia-se a empresa desenvolvimentista representada pelo
avanço da fronteira agropecuária por meio de impulsos oriundos de Rondônia e
Acre estimulado por políticas públicas que estimulam a invasão de terras no Sul do
Amazonas pela pavimentação de estradas, usinas hidrelétricas e hidrovias. Buscando
controlar os efeitos das políticas de desenvolvimento que vem apoiando, o Estado
está produzindo um cinturão de novos estatutos territoriais voltados à proteção
ambiental.
Na outra direção percebe-se o surgimento do vetor socioambiental, manifesto
no aparecimento de novos (e tradicionais) atores na cena do Purus devotados a
estimular a política de identidades em curso na região e a criação de novos territórios
fora do raio de ação do domínio privado, passíveis de tornarem-se alvo de sua
esfera de influência, a partir da qual objetiva-se capacitar para responsabilizar os
povos tradicionais pela vigilância e gestão ambiental de uma das áreas de maior
biodiversidade e mais ameaçadas da Amazônia.
Dois destinos para o Purus: desenvolvimentismo, ...
149
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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152
Álbum Purus
Territorialidade, Recursos Naturais e Conflitos
Novas configurações territoriais no purus
indígena e extrativista
Marcelo Horta Messias Franco
Lábrea, no sul do Estado do Amazonas é um município
com enorme extensão territorial. São 68.229 km2, possuindo
uma população de 39.393 habitantes (IBGE, 2009). A cidade
foi fundada no ano de 1881, em posição estratégica na calha do
Purus pelo “coronel da borracha” Antônio Pereira Labre. Era
o período áureo da exploração da borracha nativa, proveniente
das centenas de barracões localizados nos afluentes e seringais
rio Purus acima. Certamente foi este o período em que
os indígenas do Purus sofreram com maior intensidade o
processo de devastação cultural e populacional com perdas
irreparáveis.
A localização de Lábrea no km 0 da rodovia BR230,
a Transamazônica, que liga a sede municipal à cidade de
Humaitá (AM), ajuda a conferir importância geográfica ao
município no contexto regional. A cidade de Lábrea está a
pouco mais de 400 km da capital do Estado de Rondônia,1
sofrendo assim cada vez mais a influência da rodovia, muito
embora esta seja quase intransponível em período de inverno
amazônico. Em relação à capital do Estado do Amazonas,
os barcos de passageiros ou “recreios” e as balsas levam em
média de quatro a cinco dias percorrendo o sinuoso rio Purus.2
Lábrea fica distante a 703 km (linha reta) de Manaus, sendo
a hidrovia um eixo vital na vida econômica do município,
mesmo após a abertura da rodovia na década de setenta pelo
governo militar.
Marcado por um baixo índice de desenvolvimento
humano (IDH) e grande desigualdade social (61,04% sobrevive
1 Em linha reta são apenas 197 km entre Lábrea e a capital do Estado de Rondônia.
2 Esse tempo se torna maior no período da vazante, durante o chamado verão amazônico, quando o rio
Purus baixa drasticamente o seu volume.
Novas configurações
territoriais no
Purus...
153
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
com renda mensal abaixo de um salário mínimo),3 Lábrea viu se alternarem no
poder político, ao longo de mais de cem anos, desde os coronéis seringalistas do
século 19, aos prósperos comerciantes do presente, e mesmo latifundiários e grileiros
de terras,4 confirmando assim a tese do “poderio econômico aliado ao poderio
político” de proprietários privados de grandes porções de terras, permanecendo por
gerações no comando, enquanto a classe popular permaneceu alheia, submissa, e
desinformada, muito embora com direito ao voto, mas fazendo o jogo do chamado
“coronelismo”:
[...] o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma
troca de proveitos entre o poder público, progressivamente
fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais,
notadamente senhores de terras [...] Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isto se explica justamente em
função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois
o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja
situação de dependência ainda é incontestável (LEAL,
1975, p. 40).
Este padrão de exploração se reproduziu na Amazônia do século 20 durante
os ciclos da borracha. Conhecidos como “coronéis de barranco”, até hoje lembrados
(e não raro respeitados) pelos remanescentes da segunda leva de seringueiros
nordestinos,5 esses “patrões” exerciam o domínio sobre imensas porções de terras,
denominadas seringais, onde se distribuíam os seringueiros nas respectivas estradas
de seringa, independentemente da presença indígena, que quando não incorporada
ao sistema, ou permaneceu no isolamento ou foi massacrada violentamente ou,
ainda, pereceu contagiada por doenças exóticas. O coronel amazônico é dessa
forma o patrão seringalista, “senhor das terras e das gentes”, que submetia os seus
“fregueses” a um sistema de compromissos e dependência por dívidas impagáveis.
Com a crise no mercado da borracha brasileira e a consequente decadência do
regime de exploração da mão de obra seringueira, eis que emergem novos atores
sociais questionando o regime de aviamento e dependência que insistiu em perdurar,
mesmo como esvaziamento dos seringais e a maior presença do Estado.
3 Dados do IBGE — 2009; em 2000 a porcentagem de pobres era de 79,5% da população, segundo dados da
Seplan/AM;
4 Mustafá Said, ex-prefeito da cidade, foi destaque nacional da CPI da Grilagem.
5 Anos 1940, os “soldados da borracha”.
154
Álbum Purus
Marcelo Horta Messias Franco
O avanço da chamada “fronteira agropecuária”, na década de 2000/2010
trouxe culturas entre elas a soja e a pecuária incentivadas por oferta de terras a
preços baixos somados à retomada de políticas públicas em prol de grandes
projetos de infraestrutura como o asfaltamento da BR-319, a construção das usinas
hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira, entre outras, culminaram
com o aparecimento de Lábrea na lista elaborada pelo Ministério do Meio
Ambiente entre os 36 municípios que mais desmatam no Brasil. Tal estatística
fez com que o governo brasileiro incluísse esses municípios em um programa
de regularização fundiária, entre outras políticas públicas6 de geração de renda e
cidadania com a intenção de ajudá-los sair da lista de municípios desmatadores.
Desmatamento do sul do Município de Lábrea (2001)
Desmatamento do sul do Município de Lábrea (2006)
Figura 1. Avanço do desmatamento no Município de Lábrea. Fonte — Imazon / Consórcio Fortis.
Como se pode observar na figura 1, o desmatamento no Município de
Lábrea ocorreu mais na porção sul, principalmente nas regiões que limitam com
os municípios de Boca do Acre (Amazonas) e Porto Velho (região da Ponta
do Abunã, RO), justamente na área influenciada pela rodovia BR-364. A sede
municipal de Lábrea, na porção sul, na margem do rio Purus, exerce aparentemente
pouca governança sobre aquela região, o que não significa dizer, todavia, que a
administração municipal ignora tudo o que acontece na região sul de Lábrea e muito
menos que não há retirada de madeira ilegal nas proximidades da sede.
6 Programas “Arco Verde” e “Terra Legal”, Decreto n.0 7.008/09.
Novas configurações
territoriais no
Purus...
155
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Emergência dos movimentos sociais no município de Lábrea
A atuação marcante dos movimentos sociais em Lábrea no contexto do
processo de criação de Unidades de Conservação de Uso Sustentável é um fato
que confirmou a importância do trabalho dessas entidades por décadas em prol
do protagonismo da classe extrativista, principalmente nos anos que se seguiram a
etapa de redemocratização do Estado brasileiro:
Os extrativistas formam um dos muitos grupos de ‘populações
tradicionais’ brasileiros, que incluem ainda indígenas, ribeirinhos
e pescadores, entre outros. Apesar desta designação, sua tradição
é bastante recente, uma vez que o grupo praticamente não
existia até o final do século 19. Ainda assim, eles se tornaram
um ícone na luta dos direitos das populações tradicionais e,
de certa forma, do próprio movimento ambientalista brasileiro
(TONI, 2004).
Dentre os movimentos com expressão regional com atuação direta na
região do Médio Purus podemos destacar: o Conselho Nacional das Populações
Extrativistas,7 o Grupo de Trabalho Amazônico8 e a Comissão Pastoral da Terra,9.
Essas três entidades, com sede em Lábrea, compõem o coletivo do Fortis, programa
de Fortalecimento Institucional desenvolvido por um consórcio de organizações
não-governamentais, desde o ano de 2007, coordenado pelo Instituto Internacional
de Educação do Brasil, o IEB:
O consórcio Fortis é um programa de fortalecimento institucional
voltado para as organizações da sociedade civil, órgãos públicos
e agentes privados que trabalham em favor da conservação e
uso sustentável dos recursos naturais da região sul do Estado
do Amazonas.10
7 CNS — Conselho Nacional dos Seringueiros, fundado em 1985 por ocasião do I Encontro Nacional de
Seringueiros da Amazônia de 11 a 17 de outubro de 1985, em Brasília, na UNB, tendo como um dos coordenadores do evento o seringueiro e líder sindical Chico Mendes.
8 Formada no âmbito da Rio-92, o GTA é uma rede de entidades e associações da sociedade civil, criada
para promover a participação das comunidades da Amazônia brasileira nas políticas oficiais para a região.
9 Órgão vinculado à CNBB e também de amplitude nacional.
10 IEB, Consórcio Fortis — www.iieb.org.br.
156
Álbum Purus
Marcelo Horta Messias Franco
A Prelazia de Lábrea que, abrange os municípios de Pauini, Lábrea,
Canutama e Tapauá, coordena as pastorais sociais, entre elas a Pastoral da Terra e
a Pastoral Indigenista. Dessa forma, ela ajudou a organizar, por meio do trabalho
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as primeiras associações, assembleias
extrativistas e indígenas. Entidades como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
e Operação Amazônia Nativa (Opan),11 atuavam dentro da estrutura da prelazia, já
na década de setenta, davam assistência aos povos indígenas da calha do Purus.
Uma organização autônoma desses povos viria a surgir duas décadas mais tarde, a
Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus (Opimp), registrada oficialmente
no ano de 1995 (FRANCO, 2010).
Também nos anos 1970 a Igreja Católica, por meio de sua ação social,
apoiou a organização dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), ajudando a dar
sustentação aos movimentos sociais que mais tarde iriam se desenvolver localmente
em todo o País. De fato, nos anos 1990 houve uma explosão de criação de diversas
associações e organizações formais da sociedade civil em todo o Brasil. e com
rebatimentos no contexto de Lábrea. No Médio Purus, além da Opimp e diversas
outras associações formadas por indígenas, extrativistas, assentados e outros grupos
sociais, podemos destacar o nascimento da Apadrit – Associação dos Produtores
Agroextrativistas da Assembleia de Deus do Rio Ituxi, fundada por um grupo da
Igreja Evangélica Assembleia de Deus no ano de 1997. Esta organização denunciava
as intensas pressões de latifundiários e madeireiros que adrentavam pela região sul
do município e demandava urgentemente medidas que assegurassem a situação
fundiária das comunidades ao longo do rio Ituxi12 e, ao mesmo tempo, a integridade
da floresta amazônica e dos recursos naturais explorados pelos comunitários. A
Apadrit passou, então, a somar esforços com outras associações de comunidades
do rio Purus e com o apoio de entidades como o CNS, a CPT e o próprio Ibama na
solicitação ao Governo Federal pela criação de reservas extrativistas.
Terras indígenas e unidades de conservação federais
no Município de Lábrea
As primeiras terras indígenas no Médio Purus começaram a ser demarcadas
no início da década de 1990 pelo órgão indigenista oficial como materialização do
direito assegurado pela Constituição de 1988, em cuja elaboração o movimento
indígena organizado teve atuação decisiva. O processo de desocupação dos
11 Chamava-se Operação Anchieta, na década de setenta, quando ainda era vinculada ao Cimi.
12 Afluente do rio Purus pela margem direita.
Novas configurações
territoriais no
Purus...
157
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
territórios indígenas do Purus se deu não sem atritos com os antigos “donos”
dos seringais e com a população ribeirinha, em muitos casos literalmente expulsa
de suas localidades por não apresentarem nenhum documento de posse de terra.
Os conflitos pela utilização dos recursos naturais abundantes em toda a várzea
do Purus subsistem e, na época das demarcações, se acirrou o sentimento antiindígena pelo fato de naquelas terras se localizarem lagos com grande potencial
pesqueiro, castanhais explorados ou arrendados por pretensos donos descendentes
dos antigos seringalistas. Tais conflitos iriam se repetir mais tarde com a criação das
Reservas Extrativistas do Médio Purus e do Ituxi.
Como se pode ver na tabela a seguir, as terras indígenas no Município de
Lábrea somam 19% do total de sua área e a maioria delas foi demarcada entre os
anos de 1991 ao ano 2000.
Ano de
Criação
Área total
(ha)
Alto Sepatini
1997
26.096,00
26.096,00
Apurinã do Igarapé Mucuim
2004
73.000,00
73.000,00
Hi Merimã
2005
678.365,00
82.149,00
Jarawara/Jamamadi/Kanamati
1998
390.233,00
147.000,00
Paumari do Rio Ituxi
1998
7.572,00
7.572,00
São Pedro do Sepatini
1997
27.644,00
27.644,00
Seruini/Mariene
2000
144.97,00
97.105,00
Tumiã
1997
124.357,00
124.357,00
Kaxarari
1992
147.000,00
98.021,00
Boca do Acre
1991
26.600,00
17.800,00
Apurinã — km 124 da BR-317
1991
42.244,00
33.024,00
Caetitu
1991
308.063,00
308.063,00
Paumari do lag. Marahã
2003
118.767,00
118.767,00
Deni
2004
1.531.303,00
74.875,00
Acimã
1997
40.686,00
40.686,00
Banawa
2004
195.700,00
1.750,00
1.277.909,00
Terra Indígena
Total
Área em Lábrea
(ha)
(19,0 %)
Tabela 1. Terras Indígenas dentro do município de Lábrea (dados Incra e Funai).
158
Álbum Purus
Marcelo Horta Messias Franco
As Unidades de Conservação federais só vieram a ser criadas no final da
primeira década do ano 2000, apesar de demandadas pelas populações tradicionais
desde o ano de 2001:
Em janeiro de 2001, o Ibama recebeu uma solicitação para a
criação de uma Unidade de Conservação de uso sustentável
(proposta de Resex do Médio Purus), pela Associação dos
Produtores da Reserva Extrativista de Lábrea (Apremp). Entre
os motivos que justificam o pedido, encontram-se: insegurança
provocada nos ribeirinhos, diante da aquisição de grandes lotes
de terra por proprietários de fora do Amazonas; grande potencial
para o agroextrativismo da região; ação criminosa de firmas
pesqueiras, madeireiras e garimpeiros; ações desenvolvidas
pelas organizações de base locais para promover a melhoria da
qualidade de vida das comunidades ribeirinhas (LIMA, 2006).
No ano de 2008, além das duas Resex solicitadas pelas associações extrativistas,
o governo federal criou mais duas unidades de conservação no município de Lábrea,
sendo um Parque Nacional (Parna) e uma Floresta Nacional (Flona).
Unidade de Conservação
(UC)
Ano de criação
Área total (ha)
Resex Médio Purus
2008
604.290,25
551.704, 73
Flona Iquiri
2008
1.476.073,00
1.476.073,00
Resex do Ituxi
2008
776.940,00
776.940,00
Parna Mapinguary
2008
1.572.422,00
890.713,00
Área em Lábrea (ha)
3.695.430,00
(54%)
Total
Tabela 2. Unidades de Conservação federais dentro do município de Lábrea (dados Incra e ICMBio).
A criação dessas quatro UCs federais se deu no contexto do PAC – Programa
de Aceleração do Crescimento do governo Lula, o qual previa a pavimentação
da rodovia BR-319 ligando as cidades de Porto Velho a Manaus. No ano de
Novas configurações
territoriais no
Purus...
159
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
2006 o Ministério do Meio Ambiente delimitou uma Alap (Área sob Limitação
Administrativa Provisória) prevendo a criação das unidades de conservação na
região de influência da estrada.
Legenda
Limite municipal
Sede Municipal
rodovias-ramais
Hidrografia
FLONA Batata-Tufan
RESEX Médio Purus
FLONA Iquiri
PARNA Mapinguari
RESEX Ituxi
Terra indígena
Figura 2. Configuração territorial do município de Lábrea com as Terras Indígenas e Unidades de
Conservação (mapa IBAMA/MMA).
Figura 2. Configuração territorial do Município de Lábrea com as terras indígenas e unidades
de conservação (mapa Ibama/MMA).
A criação do Parna Mapinguari e da Flona do Iquiri, ambos abarcando a
região sul do Município de Lábrea, área crítica de desmatamento e grilagens de
terras públicas, ajudou a frear todo esse processo que chegava a partir do Estado de
Rondônia e do município de Boca do Acre, onde a pecuária extensiva chegou com
força associada à pavimentação da BR-364 nos anos oitenta:
Fica criado o Parque Nacional Mapinguari, no Estado do
Amazonas, nos municípios de Canutama e Lábrea, com o objetivo
de preservar ecossistemas naturais de grande relevância ecológica
e beleza cênica, com destaque para importantes encraves de
savana do interflúvio Purus-Madeira, possibilitando a realização
160
Álbum Purus
Marcelo Horta Messias Franco
de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de
educação ambiental, de recreação em contato com a natureza e
de turismo ecológico” (Decreto Presidencial de 5 de
junho de 2008, Art. 1.º ). Essa nova configuração territorial, que protege o sul de Lábrea e forma
ao norte do município um mosaico de áreas protegidas, veio a contemplar o
conjunto das populações tradicionais residentes no interior, ou seja, os indígenas
e extrativistas de Lábrea.13 Ela não agradou por sua vez o Poder Executivo local
e parte do Legislativo estadual, os quais se posicionaram claramente contrários à
criação das reservas extrativistas, notadamente da Reserva Extrativista do Médio
Purus, que passou a ser representada oficialmente a partir do ano de 2005 pela
Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus (Atamp), entidade
que a partir desse ano passou a reivindicar insistentemente pela criação da unidade.
Sendo assim, os discursos passaram a se polarizar em torno dos que são “contra”
e os que são “a favor” das unidades de conservação. Numa guerra de informação
e contra-informação, a população urbana de Lábrea é frequentemente levada a
crer que as Resex seriam também áreas de proteção integral,14 o que invibializaria
atividades produtivas. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
passou a ser visto como um órgão inibidor de certos interesses locais, a partir das
suas ações de fiscalização deflagradas a partir de denúncias feitas pelos moradores
das Resex.
De fato, o impacto social da criação das UCs federais em Lábrea tem sido
semelhante ao que aconteceu no contexto da demarcação das terras indígenas
na década de noventa, também com sentimentos de repúdio dos moradores da
sede municipal aos moradores das áreas protegidas. Como o arranjo institucional
posto a partir da nova realidade territorial vislumbrada pela região do Médio
Purus é muito recente, não se pode ainda mensurar a qualidade das mudanças que
trará. O Decreto Presidencial n.º 7.056, assinado em 28 de dezembro de 2009,
que trata da reestruturação da Funai, eleva Lábrea à condição de Coordenação
Regional do órgão indigenista oficial, ou seja, o Purus passará a contar com
um número no mínimo três vezes maior de funcionários públicos e agentes de
fiscalização. Também o Instituto Chico Mendes, criado pela Lei n.0 11.516, de 28 de
13 Às Unidades de Conservação (UCs) federais, criadas dentro dos limites do município de Lábrea, se somam duas UCs estaduais rio Purus abaixo, dentro do Município de Canutama, a Resex Estadual de Canutama e a Floresta Estadual de Canutama, beneficiando as comunidades ribeirinhas Purus abaixo.
14 Reza no Artigo 2.º do decreto presidencial de 8 de maio de 2008 que: “a Reserva Extrativista do Médio
Purus tem por objetivo proteger os meios de vida e garantir a utilização e a conservação dos recursos
naturais renováveis tradicionalmente utilizados pelas comunidades.”
Novas configurações
territoriais no
Purus...
161
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
agosto de 2007, dissociando o ICMbio do Ibama, fixa escritório na sede de
Lábrea e realiza concurso público para a contratação de analistas ambientais, em
média três analistas por unidade de conservação. São perspectivas otimistas que,
se somadas aos esforços das entidades não governamentais que por todos esses
anos formaram um verdadeiro grupo de resistência a todo tipo de violação dos
direitos socioambientais ocorridos, têm como consubstanciar em um novo modelo
de desenvolvimento para a região. O desafio que está posto é o do diálogo entre
toda essa gama de instituições que se fazem presentes na região com obetivos
em comum, cada um empregando pessoas com seus respectivos pontos de vista,
trabalhando sobretudo pela mudança de mentalidade da sociedade local, marcada
por um modelo viciado de relações sociais onde a exploração da miséria humana
foi o marco fundador.
Considerações finais
Neste capítulo tentei sintetizar as ideias apresentadas durante o seminário
“Purus indígena: natureza, cultura, história e etnologia”, realizado por iniciativa do
Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Universidade Federal do Amazonas
(Neai/Ufam) na cidade de Manaus, entre os dias 22 a 24 de abril de 2010. Na
ocasião tive a oportunidade de contar com a presença ilustre de duas lideranças de
significativa importância do movimento social de Lábrea, as quais destacaram a fase
atribulada que está vivendo a região nesse contexto de redefinição territorial. Foi
defendido na ocasião o protagonismo dos movimentos sociais durante o processo
de criação das Unidades de Conservação, sobretudo das Resex Médio Purus e Ituxi, e
da relevância da aplicação de uma legislação avançada que vem para contribuir para o
desenvolvimento em bases sustentáveis de uma região antes vulnerável a uma lógica
do desmatamento e grilagem. Importante foi ressaltar a atuação das organizações
não governamentais entre elas, Instituto Internacional de Educação do Brasil, a
Visão Mundial e Opan, especificamente a partir da atuação dos consórcios Fortis e
Aldeias investindo recursos financeiros e humanos na região. Iniciativas pioneiras
como o seminário realizado pela Opan no ano de 2009, intitulado “Interface entre
Unidades de Conservação e Terras Indígenas”, ou o trabalho do consórcio Fortis
na articulação de uma grande rede regional de base e a promoção de inúmeras
atividades de formação de lideranças e técnicos locais, prestigiando, contudo, o
trabalho das entidades de base que tradicionalmente atuam no sul do Amazonas,
ilustram a relevância da contribuição de seu trabalho para a construção de um ideal
de sociedade mais justa, do ponto de vista social e ambiental.
A apresentação, ao final, de um slide que constava uma matéria de jornal
intitulada Deputados querem pedir redivisão das reservas em Lábrea instigou a atenção
162
Álbum Purus
Marcelo Horta Messias Franco
de todos ao explicitar um posicionamento político segundo o qual: com 77% das
terras do município transformadas em reservas controladas pelos órgãos federais o desenvolvimento
do município ficará travado. Na opinião dos presentes ficou claro que uma nova
configuração territorial no Purus mais do que nunca põe em xeque uma “velha
configuração” social e política remanescente de épocas passadas e que sem dúvida
está fadada ao fracasso.
Novas configurações
territoriais no
Purus...
163
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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166
Álbum Purus
Territorialidade, Recursos Naturais e Conflitos
Rio, floresta e gente no baixo Purus: saber e uso
da biodiversidade na RDS Piagaçu-Purus
André Pinassi Antunes | Bruno Garcia Luize
Claudia Pereira de Deus | Roselis Mazurek,
Eduardo Venticinque | Lúcia Helena Rapp Py-Daniel
José Gurgel Rabello Neto | Fabiano Waldez
Fabricio Hernandes Tinto | Eduardo Von Mühlen
Boris Marioni | Adriana Terra | Felipe Rossoni
Hermógenes Neto | Fabio Röhe | Ana Gouvêa Bocchini
Grandes e caudalosos rios carregam em seu leito a
vida. Civilizações humanas de vulto, portentosas paisagens e
abundância de recursos são características que nos vêm à mente
quando pensamos em grandes rios. O ecossistema amazônico
em si é bem definido pela presença de enormes e variados rios.
O rio Purus é um desses gigantes. Seu gigantismo não vem
apenas daqueles “de dezesseis palmos de altura”, mas de toda
sua magnitude física, biológica e de sua brava gente. O nível da
água do rio Purus em seu baixo curso pode alcançar amplitudes
de mais de 12 m e o pulso de inundação ocorre anualmente
entre os meses de abril e agosto. Tal mudança no nível da
água do Purus inunda a planície em suas margens estendendo
suas águas até 30 km da calha principal. Neste ambiente está
localizada a Reserva de Desenvolvimento Sustentável PiagaçuPurus, com aproximadamente 800 mil hectares legalmente
protegidos, que circundam duas terras indígenas, Ayapuá
e Itixi-Mitari. As populações humanas ribeirinhas vêm se
adaptando ali há centenas de anos, utilizando seus recursos
naturais, aprendendo e transmitindo o conhecimento da flora
e fauna, indispensáveis ao seu modo de vida. Frutos, sementes,
exsudados, cascas, folhas, fibras e raízes, cipós, trepadeiras,
arbustos, ervas, madeiras, peixes, quelônios, jacarés, aves
e mamíferos, uma infinidade de elementos da flora e fauna
amazônica que são essenciais para a sobrevivência desses
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
167
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
povos. O processo do conhecimento tradicional acerca destes recursos e a imensa
biodiversidade desta região ainda serão objetos de pesquisas por mais centenas de
anos para as populações humanas externas a esta intrigante realidade.
Histórico do conhecimento da região
As narrativas sobre a grandeza de recursos naturais no rio Purus principiaram
logo nos primeiros registros documentais sobre ele, quando ainda era conhecido
pelo nome de Cuchiguara. Em 1641, o padre Christoval de Acuña (apud Cunha,
2003; Papavero et al., 2002) escreveu:
É navegável ainda que em partes com algumas pedras; tem muito
pescado, grande quantidade de tartarugas, abundância demais e
mandioca e tudo o necessário para facilitar sua entrada.
Contudo, o acesso a estas riquezas confrontava-se com a presença de índios
bravios no vale do Purus, como os Curiquerés, gigantes de dezesseis palmos de altura,
muito valentes que andam nus.
Posteriormente, salvo os breves comentários de comerciantes que negociavam
com os índios as “drogas do sertão”, ou de coletores de ovos de tartarugas a região
permaneceu por mais de duzentos anos na obscuridade literária (Ferrarini,
2009). Estas descrições possivelmente devem ter sido responsáveis por aguçar ainda
mais o imaginário dos cronistas precedentes e, além disso, evitar sua navegação
durante o planejamento das rotas traçadas pelos importantes naturalistas que
percorreram a região no século 19, entre eles J. B. von Spix, C. P. von Martius, H.
W. Bates e A. R. Wallace, que apenas se referiram a ele, tornando-o, naquela época,
seguramente, um dos mais negligenciados entre os principais tributários pesquisados
do rio Solimões / Amazonas.
Temerário às descrições precedentes, escreveu o naturalista da Baviera,
Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), ao passar pela boca do rio Purus
em 1919 sobre as etnias que ali habitavam: Amamati, Catauixi e Purupuru: “todos
ainda em estado de absoluta selvageria e conhecidos por suas perfídias. Eles colhem
aqui abundantes plantas medicinais, o cacau e salsaparrilha, e permutam com as
expedições que frequentam o rio, onde as duas partes contratantes se apresentam
de armas na mão”, e finaliza da seguinte forma: “ninguém se aventura ainda a
fundar missões no Purus” (Spix; Martius, 1831). Descreveu ainda uma doença
de pele que acometia tais indígenas, que os caracterizava como malhados ou
pinipinima-tapuias, e hipoteticamente atribuiu tais moléstias à vida quase anfíbia
que eles levavam, à sua má alimentação e, também, ao costume de se untarem
168
Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
frequentemente com gordura de jacaré ou do peixe-boi (Spix e Martius, 1831).
Mais tarde, estas dermatoses chamariam a atenção de um dos principais escritores
que já percorreram as águas do Purus; Euclides da Cunha, que as atribuiu à dieta
composta basicamente pela pirarara e tartarugas (Cunha, 2003).
Em meados do século 19 iniciaram-se as expedições exploratórias que
deram origem aos povoamentos dos desbravadores vindos principalmente do
Nordeste e que enriqueceram as informações sobre o vale puruense (Cunha,
2003; Tocantins, 1961). A família Mello chegou ao lago Ayapuá, atualmente
localizado nos limites da TI Ayapuá e da RDS Piagaçu-Purus, possivelmente em
1852, com a vinda do negociante pernambucano Manoel Nicolau de Mello, que ali
se estabelecera e dedicara-se à salga do pirarucu e à extração da castanha, mantendo
feitorias locais para o comércio fluvial (Bittencourt, 1966). Mantinham-se,
porém, as divagações e fantasias sobre o vale e principalmente as cabeceiras do
Purus. Por fim, foram enviadas expedições pelo governo que tinham por objetivo
descobrir possíveis rotas que facilitassem o comércio da Amazônia central com o
alto curso do rio Madeira e também de desvendar os mistérios das cabeceiras do
Purus (Cunha, 2003; Tocantins, 1961).
Rapidamente o rio Purus tornou-se foco da exploração de recursos
(Ferrarini, sem data). Durante o Ciclo da Borracha, entre 1877 e 1912, quando
a Amazônia chegou a produzir 40% das divisas nacionais, a economia do interior da
região se baseava na extração da borracha, que era responsável por mais de 95% dos
lucros, e da castanha, cacau, couros e peles silvestres, piaçaba, guaraná, pirarucu,
entre outros, ou as trocas destes por estivas industrializadas vindas de regiões do Sul
do País e de outros países. Nesse período, o vale puruense foi o principal produtor
destas mercadorias e com a defasagem dos lucros advindos da crise no Ciclo da
borracha, passou a explorar sobremaneira tais recursos secundários (Loureiro,
1986). Curiosamente, antes de criada qualquer área protegida no Brasil, uma região
de 28.000 km2 localizada nos altos rio Purus e Juruá, foi apontada pelos precursores
da conservação do Brasil e configurou em 1911 a Reserva Florestal do Território de
Acre, mas que de fato foi ignorada (Rylands; Brandon, 2005).
No Baixo Rio Purus, por volta da década de 1900, a região denominada
Ipiranga era conhecida por abastecer os vapores de tartarugas e pirarucus (Ribeiro,
2008). A ocupação da região foi fundamental por facilitar e atrair pesquisadores
principalmente para os arredores do grande lago Ayapuá. Na década de 1920, a
região chamou a atenção do cineasta Silvino Santos, que filmou neste lago parte de
“O Paiz das Amazonas” e revelou a abundância de pirarucus, peixes-bois e jacarés.
Abundância esta que Nunes Pereira, escritor e representante da Divisão de Caça e
Pesca do governo, delata prejudicada em sua série de publicações entre 1941 a 1944,
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
169
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
mencionando naquela época ameaçada de extinção, mas que a elevada abundância
ainda não deixava de enternecê-lo.
As pesquisas com objetivo biológico no Purus, especialmente no baixo
curso, tiveram início do século 20: a flora da região do vale do rio Purus foi descrita
pelo botânico suíço Jacques Huber (1867-1914) (Huber, 1906); e a zoóloga alemã
Marie Emilie Snethlage (1868-1929) realizou os primeiros estudos sobre a avifauna
da região (Snethlage, 1908a, 1908b). Curiosamente, ambos os pesquisadores
atuaram como diretores do Museu Paraense Emílio Goeldi, respectivamente em 1907
e 1914, sucedendo o naturalista suíço Émil August Goeldi (1859-1917) que ocupou
a mesma função até 1906. Em 1910, o fisiologista francês dr. Charles Richet (18501935), Nobel de medicina em 1913, realizou coleta de aves aquáticas na região do lago
Ayapuá (Bittencourt, 1966). Também, a presença do coletor e taxidermista
guianense Wilhelm Ehrhardt no Brasil, entre 1897 e 1935, promoveu a formação de
uma coleção de anfíbios e répteis, depositada no museu alemão Für Naturkunde em
Berlim, que inclui exemplares provenientes do lago Ayapuá (Gutsche et al., 2007)
e também de primatas, depositados no Field Museum of Natural History e coletados
nas regiões do Ayapuá, Arumã e Itaboca (Hershkovitz, 1977, 1983, 1987).
Uma das primeiras informações geradas, sobre a ictiofauna do rio Purus foram os
resultados de La Monte (1935), que, com foco nos peixes voltados ao consumo
humano, relatou a presença de 48 espécies em sua calha principal. O Museu de
Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP) e do Museu de História Natural
do Smithsonian Institute realizaram entre 1974 e 1975 uma expedição que percorreu
toda a calha brasileira do rio Purus a fim de estudar répteis e anfíbios (Heyer,
1976, 1977).
Nunes Pereira foi o primeiro a revelar mais detalhadamente a magnitude
dos ecossistemas do Baixo Rio Purus. Com foco fundamentalmente na pesca,
citou os principais lagos do Baixo Rio Purus, dos quais destacavam-se o Arapapá,
Preto, Santana, Paru, Calado, Miriti, Cururu, Jacaré, Munducuru, Caviana, Pupunha,
Paratari, Beruri, Castanho-Miri, Surara, Jari e Ayapuá. Considerando a alta abundância
e importância econômica na época, um detalhamento maior foi dado à pesca do
pirarucu Arapaima gigas, do peixe-boi-da-amazônia Trichechus inunguis e da tartarugada-amazônia Podocnemis expansa. As demais espécies de peixes comercializadas no
rio Purus eram a pescada, tucunaré, tambaqui, jatuarana, sardinha, cavala, mapará,
pirapitinga, mandubé, aracu, maria-do-ó, sarapó, mandis, acarás e cascudos. O
tambaqui e a pescada atingiam preços mais altos, mas os demais peixes, fossem
eles de escama ou de couro, eram vendidos em cambada a preços irrisórios. Os
apetrechos de pesca para estas espécies eram difundidos por toda a Amazônia,
sejam eles: a tarrafa, o espinhel, a linhada, a flecha e o cacuri, o que demonstrava
170
Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
que naquela época o emprego das grandes redes de pesca ainda não era um método
disseminado, mesmo porque sua difusão adveio das fibras sintéticas, criadas mais
tarde.
O pirarucu seco era o principal produto pesqueiro local e já apresentava
indícios de diminuição populacional, em razão do elevado número de feitoria e
castanhais locais e frequentes remessas a Manaus, Manacapuru, Belém, Acre e Peru.
A safra do pirarucu no lago Ayapuá, que era calculada em 10.000 arrobas, estava
em 1940 em torno de 3.000 a 4.000 arrobas. Além do Ayapuá, os principais locais
onde ocorriam sua pesca eram os lagos Beruri, Ipiranga, São Tomé, Estopa, Cana,
Itapuru, Arumã, Abufari e o rio Tapauá. Com a crise da borracha, a pesca comercial
no lago foi fortemente acrescida, reduzindo os estoques pesqueiros na região, o que
levou muitos pescadores inserirem-se na atividade da colheita de castanha por ser
mais lucrativa.
Sobre o peixe-boi escreveu Nunes Pereira em 1944:
O Purus, com zonas ecológicas que o homem ainda não
aniquilou, tem lagos como o Jari e inúmeros outros onde o peixeboi pode ser encontrado em lotes, mas se não se puser cobro à
matança desordenada [...] em breve a espécie dali desaparecerá,
como o dugong desapareceu das costas da América do Norte.
(NUNES-PEREIRA, 1944, p. 169.).
Além do lago Jari, por diversas vezes referido por Nunes-Pereira, pela alta
abundância do peixe-boi, tal como é atualmente conhecido pelos pescadores locais,
o autor se refere ainda ao lago Ayapuá e Piraiaoara, graças aos extensos matupás,
cacaias e restingas que lhes forneciam proteção e alimento. A mixira, processo de
cozimento da carne do peixe-boi ou eventualmente de peixes miúdos na banha
do próprio animal e acondicionamento em latões, era consumida no local, em
seringais, em castanhais, ou ainda em Manaus. O couro era secado e salgado no
local, remetido para os curtumes de Manaus e posteriormente exportado.
Ao final do estudo, Nunes Pereira concluiu o Plano do Serviço de Caça
e Pesca que o Governo do Estado do Amazonas pretendia criar e ressaltou a
necessidade de criação de parques e reservas no rio Purus, pois, segundo ele, a
maioria dos lagos do Purus não tinha naquela época a mesma importância que lhes
era dada no passado, embora as espécies ainda fossem vultosas, havendo assim a
necessidade de um maior controle na região. Curiosamente, muitos dos problemas
encontrados na região há 60 anos são, em maior ou menor grau, ainda válidos nos
dias atuais.
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
171
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Os subsídios para a criação destas reservas foram: alta diversidade da fauna
aquática, com abundância de espécies de alto valor econômico, entre eles, o pirarucu,
o peixe-boi e a tartaruga-da-amazônia, que além de fornecer alimento à população
ribeirinha, poderiam ser industrializadas, desde que seguisse medidas de controle de
qualidade, ausentes na região. Propôs ainda uma série de medidas conservacionistas
para estas espécies, tais como locais estratégicos de proteção, tamanho mínimo de
captura, períodos de defeso, restrições de aparelhos de pesca, sugerindo penas aos
descumprimentos e uma maior fiscalização nos centros comerciais, como Manaus,
Belém e Acre. Mas admite também a dificuldade de implementação, pois medidas
de proibição da pesca anteriormente propostas pela própria divisão do governo
estavam fadadas ao descumprimento, pela dificuldade de fiscalização em toda a
extensão da região, à importância destas espécies para a alimentação e fontes de
renda das populações do interior da região, assim como à redução de lucros de
sedes municipais e de capitais. Conclui ainda que a comercialização dos produtos
pesqueiros realizada por proprietários locais, dono de feitorias e por regatões
prejudicava o pescador local.
Em 1969 o escritor e cineasta Líbero Luxardo percorreu o rio Purus de Belém
até o município de Boca do Acre. A respeito do comércio, descreve a importância do
papel do regatão, que realizava viagens para o rio Purus a cada dois meses, levando
consigo artefatos de verdadeira tentação pelos ribeirinhos, e que eram trocados por
borracha, sorva, castanha, peles de animais, tartarugas, tracajás, tambaquis e pirarucus
secos e frescos. Cita e descreve variados métodos de pesca, difundidos na época,
entre eles o arpão, o arco e flecha, as linhadas com anzol e a tarrafa, confeccionadas
com enviras ou de fibras de tucum, a armadilha de telas em forma de funil chamada
de sacaitiru, o pindá, o bicheiro, entre outros, além de práticas como o arrendamento
de lagos. Comenta ainda sobre o uso da malhadeira e de arrastão, quando em Boca
do Acre conheceu um comerciante libanês dedicado à pesca que, residente ali havia
18 anos, contou ter sido o pioneiro no uso da malhadeira de fios de nylon naquele
rio, e que montou no município uma fábrica de gelo.
O aumento na demanda comercial pelo pescado, sobretudo há perto de
40 anos, causou fortes distúrbios sociais e econômicos na Amazônia, pois os
ribeirinhos que dependiam da pesca principalmente para a subsistência ou comércio
em pequena escala se viram ameaçados pelas grandes embarcações da frota
pesqueira (Almeida, 2006). Atualmente o rio Purus é o principal tributário do rio
Amazonas para o abastecimento do pescado desembarcado em Manaus (Batista;
Petrere, 2003). Com uma população de cerca de 1.700.000 habitantes (IBGE,
2009), a capital amazonense é o maior centro consumidor de pescado da Amazônia,
com estimativas de desembarque que variam entre 22 a 35 mil toneladas por ano
172
Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
(Santos et al., 2006). No final da década de 1970, 52 pesqueiros no rio Purus
eram utilizados para abastecer o pescado consumido em Manaus, desde a sua foz ao
município de Canutama, respectivamente a 217 e 1.360 km de distância da capital
(Petrere, 1978). Contudo, nesta época a representação do rio Purus não chegava
a 15%, comparativamente aos demais tributário do rio Amazonas (Petrere, 1983),
e passou a contribuir, após os anos 90, com 30% do pescado desembarcado em
Manaus pela frota pesqueira (Batista; Petrere, 2003). Segundo Walzenir
Falcão (na época presidente da Federação de Pesca), esse número alcança a 60%
(Deus et al., 2003), sendo o rio Purus o destino de 30 a 48% das viagens realizadas
pela frota pesqueira (Batista; Petrere, 2003; Cardoso et al., 2004).
A necessidade de preservação e controle da biodiversidade e dos recursos
naturais foi fundamental para a criação de áreas protegidas na região do baixo rio
Purus. Criada em 1982, a Reserva Biológica do Abufari teve como objetivo principal
preservar as extensas praias/tabuleiros utilizados pela tartaruga-da-amazônia para a
reprodução e que historicamente vinham sofrendo com a exploração desordenada.
Posteriormente, a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus
— RDS PP — em 2003, próxima à foz no rio Solimões, destinou-se a preservar a
biodiversidade e os recursos naturais e assegurar a melhoria nas condições de vida
de suas populações. Com a constante atuação da organização não governamental
Instituto Piagaçu, desde a criação da RDS, esta unidade de conservação passou a ser
pesquisada sistematicamente, gerando um grande volume de informações acerca de
sua diversidade, recursos naturais e populações locais.
Os resultados apresentados neste capítulo são frutos de pesquisas, monitoramentos e ações de gestão participativas realizadas desde 2002 até o presente
momento em um apoio mútuo entre o Instituto Piagaçu, moradores locais e
demais colaboradores, além também da sistematização das informações acerca da
diversidade e uso de recursos da região do Baixo Rio Purus. Informações mais
detalhadas podem ser obtidas no Plano de Gestão da Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Piagaçu-Purus, elaborado pelo Instituto Piagaçu em parceria com
a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do
Amazonas.
Os ambientes e a biodiversidade
Em relação à flora, apesar de sua importância para as populações locais,
a região é pouco conhecida pela ciência em função do grande vazio de coletas
botânicas e que potencialmente pode guardar espécies a serem descobertas e
descritas pela ciência (Hopkins, 2007). O baixo rio Purus próximo à sua foz no
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
rio Solimões possui em sua maior parte o solo coberto por florestas onde estão
representadas três principais fitofisionomias: várzea, igapó e terra firme. Cerca de
45% da área da RDS Piagaçu-Purus está localizada em terreno de várzea e igapó, que
constitui um ambiente terrestre e aquático coincidente com a planície nas margens
dos grandes rios de águas brancas e negras da bacia amazônica. A várzea na RDS
Piagaçu-Purus está sob a influência da enchente dos rios Purus e Solimões, possui
alta heterogeneidade de ambientes e caracteriza-se por uma grande quantidade de
canais, paranás, lagos, chavascais e floresta de várzea.
Ainda não existem levantamentos florísticos suficientes para avaliar as
predições de novas descobertas de espécies de plantas e a flora do interflúvio PurusJuruá permanece muito pouco estudada. Haugaasen e Peres (2006) amostraram
5.444 árvores em nove hectares de florestas de terra firme, várzeas e igapós e
mostraram que a maior diversidade de espécies de árvores encontra-se nas florestas
não alagáveis. Luíze e colaboradores (2010) amostraram 2.951 árvores em 5 ha
de florestas de várzea e encontraram locais onde a cada cem árvores observadas
existiam perto de 60 espécies diferentes. As florestas de várzea se desenvolvem em
terrenos com substratos geologicamente mais recentes em relação aos da floresta
de terra firme. O terreno da várzea é mais fértil em razão dos sedimentos que são
trazidos pelas águas barrentas ou brancas dos rios Solimões e Purus, e a floresta
tem uma alta produtividade, sustentando grandes grupos de animais terrestres e,
na enchente, enormes cardumes de peixes. No entanto, as florestas de várzea e
igapó possuem menor diversidade de espécies vegetais em relação à floresta de terra
firme adjacente. A migração para terrenos mais elevados realizada pelos animais
terrestres durante o período das enchentes possibilita a utilização de recursos mais
variados para estas espécies. Por outro lado, as florestas de várzea e igapó possuem
uma grande diversidade de ambientes e tipos vegetacionais. As variações nos tipos
florestais são percebidas pelos moradores locais que utilizam os terrenos alagáveis
e as terras firmes dependendo da estação do ano. As espécies características na
floresta de várzea são: sumaúma Ceiba pentandra, assacu Hura crepitans, macacarecuia
Couroupita subsessilis, ucuuba Virola surinamensis, seringa-barriguda Hevea spruceana e
muiratinga Maquira coriacea, entre as palmeiras estão o jauari Astrocaryum jauari e o
açaí Euterpe oleraceae.
Ainda que a diversidade biológica do Baixo Rio Purus esteja longe de ser
inteiramente mapeada, alguns avanços foram dados nos últimos anos. Atualmente
quase 900 espécies de vertebrados foram registradas na região, especialmente na RDS
Piagaçu-Purus. Os vertebrados compreendem um grupo especialmente importante,
tanto pela função que exercem na natureza quanto socialmente, pois alguns animais
representam quase a totalidade da fonte proteica na alimentação das populações
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
humanas no interior da Amazônia. Ressalta-se ainda o interesse conservacionista
despertado por diversas espécies que figuram entre aquelas ameaçadas de extinção,
seja na lista vermelha internacional (IUCN – União Internacional para a Conservação
da Natureza) quanto na nacional (MMA – Ministério do Meio Ambiente).
Para alguns grupos faunísticos foram empregados mais esforços de pesquisas
de campo na RDS Piagaçu-Purus e entorno. Este é o caso da ictiofauna (peixes),
no qual já foram registradas 400 espécies, das quais mais de 80 foram localmente
reconhecidas por seu interesse econômico para as comunidades de várzea na região
norte da reserva, seja para a subsistência ou para comércio. Também, estudos mais
aprofundados focaram a herpetofauna, que conta com 98 espécies de anfíbios
(sapos, pererecas e cobras-cegas) e 71 espécies de cobras e lagartos (Heyer, 1976,
1977; Gordo, 2003; Waldez et al,. 2006; Waldez; Vogt, 2007, 2009).
Acidentes com serpentes são uma importante causa de morbidez e mortalidade para
comunitários ribeirinhos do Baixo Purus e pelo menos seis espécies peçonhentas
são reconhecidas para a saúde pública, sendo que a surucucurana Bothrops atrox
e a surucucu-pico-de-jaca Lachesis muta foram as espécies mais envolvidas em
acidentes na região (Waldez; Vogt, 2009). Dentre os répteis, há também quatro
crocodilianos (jacarés) e dez de quelônios (tartarugas, tracajás e jabotis, chamados em
um contexto geral de bichos-de-casco entre as populações locais) (Balensiefer
et al., 2007). Outros grupos, entretanto, necessitam de estudos de campo com objetivo
taxonômico, para inventariar as espécies locais e melhor reconhecê-las, e assim avaliar
a real diversidade de aves e mamíferos da região. Mais de 530 espécies de aves são
esperadas para a RDS Piagaçu-Purus segundo estimativas (Cohn-Haft, 2003,
com. pes.) e estudos de campo (Cintra et al., 2005; Haugaasen; Peres,
2008), das quais 15 espécies delas são migratórias do hemisfério norte e utilizam a
área especialmente para a alimentação, durante o inverno boreal – entre o final de
agosto a março (Sick, 1997). Foram registradas ainda, 59 espécies de mamíferos
de médio e grande porte (Kasecker, 2006; Santos, 2009) e 53 de quirópteros
(morcegos) (P. Bobrowiec, 2009, com. pes.).
As populações humanas e economia
A população local é oriunda principalmente da miscigenação de índios Mura
e Apurinã com imigrantes advindos do Ceará, Pernambuco e Acre. Historicamente,
desde a década de 1850, estavam reunidos com o frei Pedro de Ceriana, os índios Mura,
Purupuru, Paumari, Jamamadi, Catuquina, Apolina, entre outros, na primeira missão
indígena fundada no rio Purus, em seu baixo curso, chamada de São Luís Gonzaga
(Cunha, 2003; Ferrarini, sem data). A região do lago Ayapuá, principalmente
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
ocupada pelos Muras e que já era frequentada pelos coletores das “drogas da selva”
desde o início do século 19, em 1852, por meio do estabelecimento do pernambucano
Manoel Nicolau de Mello, constituiu um dos primeiros núcleos de povoamento não
indígenas, voltado para exploração sistemática dos recursos naturais na região, em
especial o pirarucu salgado e a castanha-do-brasil (Bittencourt, 1966).
A Terra Indígena Ayapuá, circundada pela RDS Piagaçu-Purus, engloba cerca
de 80 % do lago Ayapuá e nela vivem aproximadamente 400 índios distribuídos em
seis aldeias. Apresentam um alto grau de miscigenação, principalmente com imigrantes
nordestinos que vieram para a região para trabalhar nos seringais do rio Purus.
A história recente do povo Mura no lago Ayapuá se mistura com a da população
ribeirinha que ocupa hoje a RDS Piagaçu-Purus. Ambos viveram por décadas sob o
domínio da família Mello, que controlava o comércio em regime de aviamento, para
exploração de castanha e pescado, e exercia com tirania o poder sobre a vida dos
moradores locais. Seu Pedrosa, residente na TI Lago Ayapuá, ilustra as condições
neste período: “[...] Nóis era subjugado pelos Mello. A gente não tinha direito de
plantar nada, nem de arrancar uma vara da mata sem a permissão deles [...]”.
Os Muras têm na pesca e na extração de castanha as suas principais atividades
econômicas desenvolvidas, respectivamente, na época seca (agosto e setembro) e na
época de chuva (dezembro a maio) (Mazurek, 2008). Estes dois produtos são
comercializados com regatões, recreios e compradores avulsos. Os índios recebem
dinheiro pela venda da castanha que varia entre 15 e 25 reais a caixa de 12,5 kg.
A produção é bastante variável de uma família para outra, entre dez e 190 caixas,
rendendo em média 850 reais por safra. O peixe é trocado por mercadorias com
os barcos recreios e regatões, mas em condições geralmente desfavoráveis aos
pescadores, que reclamam dos preços baixos pagos e da falta de alternativas de
escoamento e venda. A maioria dos pescadores entrevistados pelo Instituto Piagaçu
possui dívidas. Existem acordos entre alguns indígenas com proprietários de barcos
comerciais para pescar na área da TI Lago Ayapuá, pelo arrendamento de “lanços”,
prática ilegal de pesca. Estes arrendamentos, no entanto, geram conflitos entre as
aldeias porque a maioria dos índios não concorda com tal prática, uma vez que
poucos são beneficiados, além de receberem pouco em relação ao total que os
pescadores externos retiram da área.
A criação da TI Itixi-Mitari, homologada em 2007, englobou as duas terras
indígenas preexistentes, TI Terra Vermelha e TI Joari. De acordo com o relatório
Circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Itixi Mitari
(FUNAI/2003), esta terra pertence aos Apurinã, originários principalmente do rio
Pauini e das TIs Tauá Mirim e Igarapé São João, no município de Tapauá, para
onde migraram do alto Purus na década de 1950 motivados por experiências com
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
a sociedade não indígena, quando passaram a integrar o ciclo econômico regional
(Funai). Atualmente alguns Apurinãs estão morando em pelo menos três aldeias nos
limites da RDS. A TI Itixi-Mitari é formada por uma população de aproximadamente
300 pessoas, com predominância de indivíduos jovens entre um e 19 anos (47%),
pouquíssimos idosos (6) e um número ligeiramente superior de homens (153) em
relação às mulheres (135). Distribuem-se em sete aldeias que variam entre 15 e 79
pessoas, localizadas geralmente nas margens de lagos internos que deságuam no rio
Purus. Suas principais atividades produtivas são a pesca, a agricultura (mandioca)
e a extração de castanha-do-brasil, além da caça de animais silvestres. Pescam para
consumo e venda, principalmente em lagos, tanto com canoas, utilizando o timbó
ou tingui (que plantam nas roças), quanto com barcos com motores de centro e
redes, adquiridos pelo arrendamento de “lanços” para barcos da frota pesqueira.
Vendem seus produtos a regatões que, por outro lado, os fornece gelo no sistema
de aviamento, prática que frequentemente acarreta no endividamento do pescador.
As aldeias localizadas na antiga TI Terra Vermelha (Sacado e S. Sebastião) vendem a
sua produção no município de Manacapuru. A extração de castanha-do-brasil junto
com a pesca representam as atividades de maior geração de renda. Os castanhais
são divididos e explorados por grupos de famílias Apurinãs, mas existem conflitos
com ribeirinhos locais, principalmente na região do lago Itaboca, que almejam
exclusividade do uso dos castanhais. Os Apurinãs criam galinhas e porcos, plantam
mandioca, macaxeira, banana, cará, milho, abacaxi, abóbora e mamão em roças que
não excedem dois hectares. A farinha e a banana são trocadas por açúcar, café, sal e
querosene com os barcos comerciais. A caça ocorre principalmente no período da
cheia e em áreas de cabeceiras e nascentes.
Os povoados não indígenas mais antigos da RDS Piagaçu-Purus datam
do início do século 20, de acordo com os relatos dos moradores e, de maneira
geral, relacionam-se com a disponibilidade e exploração de recursos naturais
comercialmente importantes naquele período. O tempo de estabelecimento das
comunidades varia entre dois e 98 anos, sendo que comunidades de um a 20 anos
de fundação são as mais frequentes. Fundada em 1911, a vila de Itapuru é a mais
antiga da reserva. Sua principal atividade econômica naquele tempo era a produção
de lenha, o principal combustível para as embarcações a vapor. Entre 1911 e 1934,
a seringa e a pesca figuraram como as razões mais importantes para as pessoas se
estabelecerem na região, seguidas da castanha-do-brasil, juta e malva, estas duas
últimas adquirindo uma importância maior a partir dos anos quarenta. A pesca e a
castanha-do-brasil sempre foram recursos importantes para o comércio ao longo
das décadas de ocupação da região e permanecem como principal razão da fixação
dos povoamentos mais recentes da reserva junto com a agricultura.
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Atualmente, a população ribeirinha não indígena da RDS Piagaçu-Purus
e áreas de entorno é estimada em 4.000 pessoas, distribuídas em 57 comunidades.
Existe uma predominância de crianças entre 1-12 anos (45,8%) e de adultos entre
19 e 40 anos (26%) para ambos os sexos, havendo uma proporção maior de homens
(53%) que mulheres (47%). Jovens com idades entre 13 e 18 representam 13% e
sua relativa baixa proporção pode estar relacionada à necessidade de buscar as sedes
municipais para continuarem os estudos de ensino médio, pouco disponíveis em
comunidades no interior do Estado. Cerca de 90% dos adultos possuem registro
de nascimento, porém 38% não possuem RG, CPF ou título de eleitor. Em 41
comunidades analisadas, há 36 escolas, sendo que é comum as dependências serem
sedes comunitárias ou alguma residência. O nível de escolaridade da maioria da
população é até a quarta série e o analfabetismo é em torno de 30%. Em relação
à infraestrutura na área da saúde, estas 41 comunidades contam com apenas sete
postos de saúde e 20 agentes de saúde. É comum a realização de partos por parteiras
locais, presentes em pelo menos 24 comunidades. A malária foi a doença mais
frequente entre as comunidades entrevistadas.
Todas as comunidades da RDS Piagaçu-Purus consideram a pesca a atividade
econômica mais importante, seguida pela agricultura, pela extração de castanhado-brasil, excluindo-se a extração ilegal de madeira. A extração de castanha-dobrasil ocorre principalmente na região dos lagos Ayapuá e Uauaçu, no norte da
reserva. As atividades assalariadas referem-se principalmente aos agentes de saúde e
professores locais. Existem ainda outros benefícios, como o seguro defeso e bolsasauxílio fornecidas por órgãos governamentais.
Pesca
Na Amazônia, os peixes são fortemente influenciados pela dinâmica das
águas e seu regime hidrológico, resultando em migrações sazonais para alimentação
e reprodução. Isto implica em uma grande necessidade do conhecimento por parte
do pescador, tanto do comportamento das espécies e suas relações com o meio
quanto das condições climáticas, para que a pescaria tenha êxito (Barthem;
Goulding, 2007). A pesca de subsistência, por ser multiespecífica, é a que requer
o maior emprego do conhecimento tradicional, tanto na confecção dos aparelhos de
pesca quanto na escolha das áreas e técnicas de pesca, sendo a atividade que emprega
o maior número de apetrechos. Normalmente, o pescador do Baixo Rio Purus sai
de casa para pescar quase que diariamente nos primeiros momentos da manhã,
levando consigo uma tramalha (monofilamento) ou malhadeira (multifilamento),
um caniço, uma linha de mão, o arco e flecha e/ou um arpão. À noite, a pescaria
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
de zagaia com facho (lanterna) é eventualmente realizada em noites sem luar. O
emprego destes apetrechos está totalmente relacionado às espécies- alvo, ao tipo de
ambiente e período do ano. Uma espingarda também pode estar incluída entre os
apetrechos, para o caso eventual de encontrar uma caça ou uma onça indesejada.
As principais espécies consumidas são os peixes de escama, entre eles, os tucunarés
Cichla monoculus, carás Cichlidae, jaraquis Semaprochilodus spp., pacus Mylossoma
duriventre, matrinxãs Brycon amazonicus, aracus Anostomidae, aruanãs Osteoglossum
bicirrhosum, pescadas Plagioscion squamosissimus, roelos (juvenil do tambaqui) Colossoma
macropomum, piranhas Pygocentrus nattereri e Serrasalmus spp., sardinhas Triportheus
spp., branquinhas Curimatidae, bodós Liposarcus pardalis, pirarucus Arapaima gigas ou
eventualmente o surubim Pseudoplatystoma fasciatum e o caparari P. tigrinum, este dois
últimos, os peixes-lisos mais apreciados.
Em comunidades de várzea são capturados em média por um ou dois
pescadores entre cinco a seis quilogramas de pescado por dia, o que representa a
garantia de alimentação cotidiana de cada família. Como no restante da Amazônia,
aonde o consumo de pescado é um dos maiores do mundo e que pode em algumas
regiões atingir mais de 500 g diários por pessoa (Cerdeira et al., 1997; Fabré e
Alonso, 1998), estimativas iniciais na RDS Piagaçu-Purus mostram que o consumo
de pescado se mantém entre os mais altos índices registrados, apresentando uma
média de 500 a 600 g em comunidades dos lagos Ayapuá e Uauaçu, ambos de terra
firme (Isaac et al., 2008) e em uma comunidade de várzea no paraná do Caua. Isto
resulta em um montante que se aproxima de 730 toneladas de pescado consumidos
anualmente na reserva.
A maioria dos apetrechos de pesca tradicionais não oferece a produtividade
necessária para a pesca comercial, mas para a subsistência ainda se mostra
muito eficiente. Entretanto, o uso de aparelhos industrializados, principalmente
as tramalhas, tem sido cada vez mais frequente na pesca de subsistência, sendo
hoje o principal aparelho utilizado. Esta substituição de aparelhos tradicionais se
constitui numa ameaça ao próprio conhecimento das populações, pois a confecção
e as técnicas de uso deles podem não ser repassadas às gerações seguintes. Além
disso, os aparelhos tradicionais são geralmente destinados a algumas espécies e
com tamanho determinado. Esta característica torna o uso e a regulamentação dos
aparelhos tradicionais em boas ferramentas de manejo, pois são adequadas aos
princípios de uma reserva de uso sustentável, onde o conhecimento tradicional
deve ser valorizado e empregado no uso responsável dos recursos.
Mesmo com a pesca sendo uma das principais atividades econômicas das
famílias moradoras da RDS Piagaçu-Purus, muitos pescadores ainda não possuem
carteira de pescador e nem são cadastrados nas colônias e/ou associações de seus
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
municípios. A pesca ribeirinha, quando exercida com a finalidade de comercialização,
implica no aumento do poder de pesca e, para isso, os pescadores utilizam
apetrechos ou até mesmo embarcações mais especializadas, que permitem maior
captura e acondicionamento do pescado pelas câmaras para o gelo. Ao utilizarem
embarcações maiores surgem as tão comuns pescarias em parcerias ou relações de
patrão-empregado, em que normalmente o patrão é o dono da embarcação. Nestas
atividades são comuns viagens para cabeceiras de lagos de terra firme ou lagos de
várzea com duração de alguns dias até duas semanas, ou eventualmente até um
mês quando o pescado é salgado. As pescas são preparadas “armadas” de modo
diferenciado de acordo com a heterogeneidade ambiental, proporcionada por lagos
de terra firme e de várzea, pelo canal do rio Purus, igapós, macrófitas flutuantes,
cabeceiras, paranás, furos e igarapés de terra firme, ou também de acordo com o
tipo de comercialização e vias de escoamento onde se pretende entregar o produto
das pescarias. Tanto pescadores moradores das comunidades quanto pescadores
externos participam dessas campanhas pelo interior da reserva.
A pesca para a salga – quando o produto da pesca é conservado na forma
salgado/seco – é difundida em algumas comunidades da RDS Piagaçu-Purus.
Sua principal vantagem é o maior tempo de armazenamento e facilidade para ser
transportado. Pode haver, porém, redução de até 60% do peso e 20% do tamanho
em relação àquele conservado em gelo. Este tipo de comércio ocorre principalmente
devido a presença de barcos vindos de Coari e do Pará que compram especificamente
a produção de peixes salgado. A produção é geralmente concentrada por poucos
“moradores compradores”, que são comerciantes locais que compram a produção
dos pescadores e a revendem para os barcos comerciais de fora. Na região do lago
Jari, este tipo de comercialização é em grande parte voltada para os peixes lisos,
pertencentes à família Pimelodidae, denominados localmente por “feras”. Na região
dos lagos Ayapuá e Uauaçu, e várzeas do Itapuru, Caua e Cuiuanã, o comércio do
peixe salgado estabeleceu-se em 2001 e 2002, e é quase que exclusivamente realizada
para aruanã branco Osteoglossum bicirrhosum. Durante o verão de 2005, cem toneladas
de aruanã foram comercializadas, o que corresponderia a 267 toneladas se o peixe
fosse comercializado in natura.
A pesca comercial praticada pelos ribeirinhos, quando utiliza o gelo em caixas
isotérmicas (geralmente com capacidades de 175 litros) para acondicionamento e
conservação do pescado, é conhecida como a “pesca da caixinha”. Esta prática,
que representa a maior parte da pesca comercial ribeirinha na RDS-PP, chega a
ser a única forma de inserção dos ribeirinhos na cadeia produtiva do pescado. O
escoamento da maior parte da produção é feito por meio dos barcos recreios, que
pela regularidade de suas viagens e rotas definidas, mantêm relações comerciais
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Álbum Purus
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mais estreitas com várias famílias ribeirinhas, caracterizando uma relação patrão/
empregado em certos casos. O pescador adquire seus insumos básicos para a pescaria
ou gêneros de primeira necessidade por intermédio do aviamento, troca direta
pelo pescado, ou mesmo pela compra. É comum a intervenção dos “moradores
compradores”. Eventualmente, barcos de pesca de colônias de pescadores dos
municípios vizinhos também compram o pescado dos moradores e comercializam
nos grandes centros. Uma terceira forma de escoamento deste pescado, e que tem
se tornado mais frequente, é por meio de grandes frigoríficos, dos municípios
vizinhos, que negociam a compra da produção de um lago ou mesmo de uma
temporada de pesca de uma comunidade, visando algumas poucas espécies, como
o tucunaré, aruanã, mapará e peixes lisos.
Em geral, as campanhas de “pesca de caixinha” duram cerca de uma semana
– tempo previsto de viagem do barco recreio — e se caracterizam por serem
realizadas em parcerias, geralmente em dupla de pescadores, levando em média
quatro caixas de isopor (175 litros) com gelo e cerca de quatro a oito tramalhas
(malhas variando entre 45 a 70 mm – nós adjacentes). O monitoramento do
escoamento do pescado da RDS Piagaçu-Purus por barcos recreios, realizado entre
2006 e 2007, demonstrou que a maior produção ocorre na época de vazante e seca,
compreendida entre os meses de setembro e dezembro, e uma queda na atividade a
partir de fevereiro. Neste período, os maiores volumes registrados (mais de 80% do
peso total) referem-se ao tambaqui, pescada, tucunaré, aruanã, jaraquis e carás. Os
valores pagos aos pescadores variaram por época do ano, por espécie e, em alguns
casos, pelo tamanho dos indivíduos, e são pagos por quilograma, principalmente.
Os tambaquis foram os que atingiram valores maiores, entre R$ 1,00 a 7,00, o
pirarucu R$ 2,00 a 5,00 e os peixes lisos R$ 1,00 a 3,50. Os demais valores pagos
pelos peixes variaram desde R$ 0,20 para o quilograma do jaraqui até R$ 2,00 pelo
quilo do tucunaré, da pescada e do cuiú-cuiú.
A biometria das amostras de peixes mostrou que um volume muito grande
das espécies comercializadas estava abaixo de tamanhos considerados suficientes
para comercialização, ou seja, abaixo dos tamanhos mínimos de captura estabelecidos
pela legislação vigente ou abaixo de tamanhos médios de primeira maturação
gonadal (observados em literatura); são elas: o tambaqui, o surubim, o caparari,
o pirarucu – que apesar de a legislação específica para o Estado do Amazonas
proibir sua pesca, exceto para áreas manejadas e criadouros, ainda é normalmente
comercializada no Estado e na RDS Piagaçu-Purus. Abaixo do tamanho da primeira
maturação gonadal, estão os jaraquis e a matrinxã. Esta captura de indivíduos abaixo
dos tamanhos mínimos permitidos pode ser explicada pelo uso predominante
de tramalhas. Como a seletividade destes aparelhos é muito baixa, há um efeito
multiespecífico, capturando várias espécies e de diversos tamanhos. Sendo assim,
Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
a mesma malha que, por exemplo, captura os tucunarés e aruanãs grandes, captura
também os tambaquis e pirarucus pequenos, dificultando o manejo adequado para
cada espécie.
Após a criação da RDS Piagaçu-Purus, novas formas de arranjos comerciais
têm sido incentivadas, buscando-se os chamados manejos e negócios sustentáveis,
que buscam uma exploração e comercialização controladas e uma divisão mais
equitativa dos lucros. Um dos exemplos é a iniciativa do Instituto Piagaçu, em
colaboração com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, juntamente com
três comunidades (Uixi, Evaristo e Pinheiros) da cabeceira do lago Ayapuá no
projeto “acará-disco: conservação e manejo participativo de peixes ornamentais”.
Este trabalho teve início a partir de discussões sobre potenciais alternativas de renda
e após quatro anos de pesquisas, sobre o histórico e descrição da pesca e bioecologia
de espécies, houve uma primeira experiência piloto de pesca e comercialização
do acará-disco Symphysodon aequifasciatus — uma das espécies mais conhecidas no
mundo da aquariofilia ­— com resultados extremamente satisfatórios. Apesar de a
pesca ornamental não ser amplamente difundida na região do Baixo Rio Purus, esta
é uma das alternativas potenciais de renda para algumas comunidades da RDS-PP.
Caso semelhante é o manejo do pirarucu, que conta com quase quatro anos de
trabalho de conscientização, formação comunitária, contagens anuais e vigilância
dos lagos de manejo e têm gerado muita perspectiva entre os moradores, sejam
elas negativas, positivas ou duvidosas, mas provavelmente deve cumprir importante
etapa no ano de 2010, por meio da comercialização da primeira cota de pirarucus
manejados do baixo rio Purus.
A pesca comercial realizada por pescadores externos à RDS Piagaçu-Purus
é representada pelos barcos da frota pesqueira das Colônias de Pesca e Associações
de Pescadores de Manaus, Manacapuru, Beruri, Anori, Tapauá, Codajás e Iranduba,
e pelos pescadores das comunidades do entorno da reserva, incluindo municípios
vizinhos, que visitam esporadicamente a área. A grande maioria das embarcações
de pesca da frota pesqueira comercial visa os estoques de peixes migradores,
como jaraqui, pacu, curimatã, matrinxã e aracu, utilizando aparelhos de pesca tipo
“redinha”, específicos para a captura dos cardumes. Estes barcos possuem caixas
de gelo com capacidade que varia de dez a 80 toneladas, e utilizam redinhas com
dimensões dentre 25 a 220 m de comprimento e 12 m 40 m de altura, com tamanhos
de malha entre 30 a 60 mm entre nós opostos (Batista, 2006).
Caça
A fauna silvestre é largamente utilizada como fonte de proteína animal
pelos moradores locais. Ao menos 54 espécies de vertebrados são de interesse
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
cinegético para a subsistência das populações, 28 de mamíferos, 18 de aves e
oito de répteis. As caçadas ocorrem em ambientes terrestres e aquáticos e pode
ocorrer intencionalmente ou durante encontros ocasionais quando realizadas outras
atividades. Os métodos empregados são: a pé, a pé com auxílio de cães, de canoa e de
espera, esta última realizada especialmente em “barreiros”. A espingarda cartucheira
(calibre 12 a 36) é o aparelho mais utilizado pelos caçadores, embora sejam usados
também o arco e flechas e o terçado. Grande parte da munição é preparada pelos
próprios caçadores, que obtêm o chumbo, a pólvora e a espoleta principalmente
pelas pequenas embarcações comerciais ou com comerciantes locais.
Nas comunidades de terra firme, 51 espécies são caçadas e os mamíferos são
o grupo preponderante, seguido das aves e répteis. A diversidade das espécies-alvo
diminui nas comunidades de várzea, 26 espécies, e o grupo mais frequente é o das
aves, sucedendo mamíferos e répteis. Dentre os mamíferos, os ungulados (queixada
Tayassu pecari, veado-vermelho Mazama americana, caititu Pecari tajacu, anta Tapirus
terrestris e o veado-roxo Mazama nemorivaga) são os mais caçados. Roedores de médio
e grande porte também são frequentemente abatidos, especialmente a paca Cuniculus
paca e a cutia Dasyprocta fuliginosa, enquanto que em algumas comunidades de várzea
o principal é a capivara Hydrochoerus hydrochaeris. Os primatas mais consumidos são o
macaco-barrigudo Lagothrix cana e o macaco-prego Cebus apella nas comunidades de
terra firme e a guariba Alouatta puruensis nas comunidades de várzea. Os cingulados
caçados são representados principalmente pelo tatu-bola Dasypus novemcinctus,
tatu-canastra Priodontes maximus e o tatu-peba Dasypus kappleri. Eventualmente são
consumidos felinos: por ex. a onça-pintada Panthera onca, o maracajá-açu Leopardus
pardalis e o maracajá-peludo Leopardus wiedii, embora onças sejam frequentemente
mortas pela sua má reputação entre os moradores. O peixe-boi, mamífero aquático
que já foi a base da alimentação indígena e ribeirinha por séculos, e que teve a região
do baixo Purus como importante abastecedora da exploração comercial da espécie,
apesar de ter a carne muito apreciada, apresentou redução da caça nos últimos
tempos, porém ainda é difundida na região do lago Jari, principalmente durante a
estação seca.
As aves terrestres mais importantes para a subsistência são o mutum Pauxi
tuberosa, espécie mais consumida, seguida pelo jacu Penelope jacquacu, pelo nhambugalinha Tinamus major e o jacamim Psophia crepitans. Dentre as aves aquáticas, as
principais espécies são o pato-do-mato Cairina moschata, a mais frequentemente
consumida, o mergulhão Phalacrocorax brasilianus, a marreca Dendrocygna autumnalis e
em menor escala o maguari Ardea cocoi.
Os quelônios são os répteis mais utilizados para a subsistência em todas
as comunidades estudadas. O tracajá Podocnemis unifilis é a espécie mais utilizada,
seguida pelos jabutis Chelonoidis spp. e pelo cabeçudo Peltocephalus dumerilianus. A
tartaruga-da-amazônia Podocnemis expansa e a iaçá Podocnemis sextuberculata também
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
são utilizadas, porém numa frequência bem menor. Outras espécies, a lalá Phrynops
raniceps, o matá-matá Chelus fimbriatus são raramente consumidas. Os métodos
de captura dependem muito do tipo de ambiente, de qual será a espécie- alvo e
pode ocorrer diretamente de forma manual em seu hábitat, por meio de anzóis,
malhadeiras e jaticás. Ovos de tracajá são procurados para o consumo. Iniciativas
de preservação das praias de desova do tracajá têm sido realizadas por moradores
de uma comunidade ribeirinha na cabeceira do lago Ayapuá.
A caça e o comércio ilegal de carne de mamíferos terrestres, de aves e de
quelônios também são amplamente praticados por moradores locais e externos
à reserva. O comércio ocorre com moradores compradores, que concentram a
produção e revendem a regatões. Os regatões por sua vez abastecem as cidades
de Beruri, Anori, Manacapuru e Manaus. O preço médio pago a um caçador é
de R$ 2,50 por quilo de carne, valor inferior ao comercializado em Manaus pelos
proprietários de barco ou demais intermediários, onde atinge até R$ 8,00/kg para o
consumidor final. Neste cenário destacam-se principalmente a paca e os ungulados,
que são os mais visados pelos caçadores comerciais.
Os quelônios são comercializados preferencialmente vivos, sendo que
durante a época reprodutiva (agosto a novembro) seus ovos também são retirados
dos ninhos e vendidos. Esta pressão de caça está concentrada principalmente
na tartaruga-da-amazônia Podocnemis expansa, no tracajá P. unifilis, na iaçá P.
sextuberculata e em menor escala no cabeçudo Peltocephalus dumerilianus. Os animais
são comercializados por unidade e os preços praticados variam conforme a espécie,
o sexo e o tamanho dos indivíduos, variando entre R$ 3,00 para um macho de P.
dumerilianus e R$ 200,00 uma fêmea de P. expansa.
A caça do jacaré-açu Melanosuchus niger e jacaretinga Caiman crocodilus
para a subsistência é pouco expressiva, porém a região do Baixo Purus é
atualmente a maior produtora ilegal de carne de jacaré do mundo e famílias
inteiras dependem desta atividade como principal ou exclusiva forma de renda
(Da Silveira, 2003). O monitoramento da atividade em 15 meses realizado
entre 2005 e 2007 revelou que 58 toneladas foram comercializadas na reserva.
Os principais apetrechos utilizados nas caçadas de jacaré são o arpão ou o anzol
de espera, chamado de curumim. A manta de carne de jacaré seco-salgada e
com osso é comercializada por quilograma, independente da espécie, tamanho e
sexo do jacaré. Os compradores de carne de jacarés na RDS Piagaçu-Purus são
comerciantes paraenses, vindos do estuário Marajoara que visitam regularmente
o baixo interflúvio dos rios Solimões e Purus. Compradores das comunidades
contratam pescadores residentes para capturarem os jacarés e pagam entre R$
1,00 e 1,50 por quilo da carne, concentrando a produção que é revendida em
seguida aos compradores paraenses por valores entre R$ 1,50 e 1,70.
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
A caça de boto-vermelho Inia geoffrensis para fins comerciais também é
praticada em menor escala. Esta caça se destina principalmente para utilização de
sua carne como isca de piracatinga Calophysus macropterus, um bagre sem grande
valor comercial no Brasil, mas muito apreciado no mercado colombiano (Da
Silveira e Viana, 2003). Esta caça é praticada tanto pelos próprios pescadores
de piracatinga, que capturam os botos no rio Purus e utilizam a isca para pescar no
rio Solimões, quanto por pessoas alheias a esta pesca, que matam os animais e os
revendem aos comerciantes de Manaus ou Manacapuru por R$ 80,00 a R$ 100,00
um boto adulto. Estima-se que é necessário um quilo de boto para capturar um
kg de piracatinga, peixe este que não custa mais do que R$ 3,00/kg no mercado
colombiano e que recentemente pode ser encontrado por R$ 7,00 em mercados
frigoríficos de Manaus.
Extrativismo florestal
O extrativismo de produtos florestais é uma atividade econômica recorrente
entre as populações da região do Baixo Purus. Atualmente esta região ainda
permanece com grandes extensões de contínuos florestais e o conhecimento das
espécies e produtos que a floresta oferece é um saber transmitido entre gerações.
Em um levantamento realizado com uma pequena amostra de moradores da RDS
Piagaçu-Purus, foram registrados 127 espécies vegetais com variadas utilidades. Ao
menos 47 dessas espécies foram identificadas como as principais para os moradores
locais e são utilizadas na medicina, na alimentação, para a confecção de utensílios e
apetrechos e construção de casas.
Os frutos representam importante fonte de alimento, sendo representados
por 31 espécies frutíferas amazônicas, destacando o açaí, uixi, piquiá, bacaba,
patauá, bacuri, buriti, ingá, tucumã, mari, araçá e o cacau. O uso de sementes foi
registrado para três espécies de terra firme, sendo a castanha-do-brasil Bertholletia
excelsa a mais importante em termos de alimentação local e também como produto
para comercialização. Além das sementes, os moradores aproveitam os ouriços
que são denominados regionalmente de quengos e os utilizam para fazer carvão.
A castanha-de-cutia Couepia edulis é uma espécie bem valorizada pelos moradores
locais inclusive com relatos de ela possuir um tipo leite (semente ralada) de qualidade
superior à qualidade do leite da castanha-do-brasil. No entanto, esta espécie é menos
explorada e possivelmente possui populações pequenas, que não possibilitam
produção equivalente à castanha-do-brasil. Outras sementes são utilizadas para a
extração de óleo de uso medicinal, entre elas, a andiroba Carapa guianensis.
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
As cascas das árvores possuem principalmente utilidade medicinal e
16 espécies se destacam por esses fins. As mais exploradas são a carapanaúba
Aspidosperma nitidum, uixi Endopleura uchi, sucuuba Himatanthus sucuuba, jatobá Hymenea
parvifolia, chichuá Maytenus guianensis e o taperebá Spondia lutea. O uso das cinzas
da casca queimada e triturada do caraipé Licania sp. misturada ao barro argiloso
confere característica refratária à argila utilizada na confecção de fogareiros, muito
comuns nas residências. As folhas de palmeiras foram indicadas para cobertura de
casas e para isso são empregadas as folhas mais jovens do babaçu Orbigyia phalerata,
conhecidas como palha branca, as de bacaba Oenocarpus minor e do ubim Geonoma
deversa. Entre as espécies vegetais utilizadas para a obtenção de fibras destacam-se
aquelas extraídas para a confecção de peneiras, a exemplo do tipiti, utilizada na
fabricação de farinha de mandioca, como é o caso do arumã Ischnosiphon polyphyllus.
Entre os cipós extraídos da floresta empregados na confecção de artesanatos,
utilizam-se o cipó ambé Philodendron sp. e cipó titica Heteropsis flexuosa.
Como extração de produtos naturais de origem animal as comunidades
utilizam-se do mel de jandaíra (Meliponidae) como fonte de alimentação e
medicamento. A extração ocorre de forma rudimentar e em algumas casas pode
se observar pedaços de troncos de árvores com cortiços, como são conhecidos os
troncos onde a colmeia se instalou.
Existem muitos castanhais nativos na região do Baixo Purus e a cidade de
Beruri é conhecida no Estado do Amazonas como a capital da castanha-do-Brasil.
Sua comercialização tem importância histórica para a economia da região e figura
entre os principais produtos de extrativismo. A atividade de coleta dos frutos nos
castanhais inicia-se nas primeiras semanas de dezembro e se prolonga até os meses
de março e abril (Bentes, 2007).
A produção de castanha-do-brasil é medida popularmente em caixas, que
equivalem a 40 litros cada caixa (duas latas de 20 litros). As amêndoas apresentam
variação de tamanho e, para encher uma caixa de castanha, são necessários em
média 104 ouriços. Muitos castanhais da RDS Piagaçu-Purus estão localizados
em áreas particulares ou de posse antiga por alguns moradores. Historicamente,
esses castanhais têm sido explorados pelos coletores locais sob a administração dos
proprietários, arrendatários ou posseiros, que definem a forma de trabalho em suas
áreas e a forma de pagamento pelo trabalho. As formas de trabalho na coleta sempre
foram caracterizadas pelo uso privado ou coletivo dos castanhais. As áreas de uso
privado são chamadas de estradas, ou colocações (termo oriundo do trabalho nos
seringais), e é trabalhada de acordo com uma relação contratual com o responsável
pela terra, que coloca até duas pessoas para coletar em suas áreas. As áreas de uso
público são chamadas de condomínios, que são trabalhadas por todos os coletores
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Álbum Purus
André Pinassi Antunes et al.
da comunidade (Bentes et al., 2007). Nas colocações, parte da produção fica nas
mãos do administrador – o patrão – por uma espécie de aluguel da área. Existem
coletores que entregam três a cada cinco caixas produzidas. Nos condomínios o
pagamento é realizado por todas as caixas entregues ao comerciante e o coletor é
livre para vender sua produção a quem se dispuser a pagar o melhor preço.
A criação da RDS Piagaçu-Purus deu início a diálogos para a construção
de instrumentos formais para a regulamentação da exploração dos castanhais
denominados “Acordos de Uso de Castanhais”. A iniciativa dos acordos nasceu dentro
das próprias comunidades na tentativa de se resolver conflitos com os proprietários
recorrentes em todas as safras. Os acordos, portanto, traduzem-se como um código
de boa conduta no processo produtivo da castanha, auxiliando os envolvidos a
garantirem os seus direitos por meio da boa condução dos seus deveres. Esses
acordos são realizados anualmente e vêm se tornando um instrumento temporário e
apaziguador para coletores e proprietários de terra até que a regularização fundiária
possa ser concluída na reserva. A extração de castanha-do-brasil em terras privadas
fragiliza a autonomia e limita possibilidades de melhoria no rendimento da atividade
para as comunidades. Faz-se necessário estimular a melhoria de práticas de extração
de produtos naturais por meio de treinamentos e orientações técnicas que assegurem
melhoria na qualidade de produção e serviços.
Extração madeireira
A extração madeireira na região é realizada predominantemente de forma
ilegal. A extração comercial ocorre em aproximadamente 40 comunidades da RDS
Piagaçu-Purus. A extração para fins comerciais e de subsistência se dá nos ambientes
de floresta alagada de várzea e igapó, e em ambientes de terra firme. Em alguns
casos, o mesmo comunitário extrator trabalha em ambos os tipos de ambientes.
Entre as principais madeiras extraídas estão espécies de terra firme (maçaranduba,
itaúba, cedro, angelim e joão-mole) e as de várzea (jacareúba, louro, acariquara,
assacu, sumaúma). Nas comunidades onde se registraram moradores ligados à
extração de madeira, 58% delas assumiram que a maçaranduba e a jacareúba são as
espécies mais procuradas.
Apesar de a atividade madeireira ocorrer durante todo o ano, ela é mais
intensa no período de cheia pela facilidade de escoamento das toras por meio de
construção de jangadas. A derrubada das árvores se dá entre os meses de outubro
a dezembro, quando são feitas as estradas de arraste. As toras permanecem no
local de extração até a chegada das águas, por volta do mês de fevereiro, quando
são rebocadas para local próximo da comunidade. Na comunidade são arranjadas
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
para transporte na forma de jangada, com um travessão de madeira tachi ou
embaúba, ganchos, arames e cordas. A jangada com a madeira é rebocada por uma
embarcação ou então as toras descem flutuando pelo rio. A retirada de madeira
em toras dos ambientes alagados tem um impacto indireto adicional na flora, pois
implica na extração de outras espécies florestais destes ambientes para a construção
das jangadas, como o caso da seringa-barriguda, que serve como boias durante o
transporte pela calha dos rios.
Uma análise do número e volume de toras extraídas em duas comunidades
de várzea em uma das áreas de maior extração de madeira no norte da reserva foi
feita entre abril e julho de 2005. Foram extraídas 6.805 toras (15.788,79 m3), de
67 espécies diferentes. A seringa-barriguda foi a espécie mais extraída, seguida do
assacu, munguba, arapari e fava.
As espécies arbóreas mais utilizadas nas comunidades para construção
são oriundas principalmente de áreas de várzea. Foram registradas 24 espécies
madeireiras utilizadas para a construção de residências, centros comunitários,
escolas e outras instalações que requereram peças de madeira em prancha ou esteio.
Espécies específicas são utilizadas para a confecção de remos e canoas, como a
itaúba, carapanaúba e itaubarana; e jacareúba e cedrinho para a construção de canoas.
Os moradores citam a itaúba como a espécie mais comprometida pela extração
desordenada. Essa espécie já foi muito retirada para a construção de embarcações e
hoje é citada como a espécie florestal madeireira mais ameaçada nos ambientes de
terra firme, junto com o angelim e o cedro.
Nos ambientes de várzea, segundo os moradores, as espécies mais ameaçadas
são a jacareúba a samaúma e o assacu. A samaúma é uma espécie cujo estoque
aparenta estar comprometido já há algum tempo, notando-se falta de indivíduos
adultos nas margens dos corpos d’água, como sugerem as informações dos
moradores. O mesmo é observado com o assacu, que graças às grandes dimensões
e a característica de flutuar é uma espécie muito utilizada como fundação para casas
flutuantes. A jacareúba foi a primeira espécie florestal brasileira a ser contemplada
em lei. Já no período colonial existia uma preocupação quanto à exploração massiva
desta espécie de alto valor madeireiro e atualmente, mesmo em áreas mais isoladas
da Amazônia, existe a ameaça a suas populações em razão da sobreexploração.
Esta ameaça inclusive é apontada pelos moradores locais, demonstrando a
preocupação em se perder uma espécie de alto valor econômico e de usos múltiplos.
A maçaranduba, citada também como uma espécie bastante explorada, aparenta ser
bem menos ameaçada do que a jacareúba, provavelmente pelas melhores condições
de estoque.
As populações residentes na RDS Piagaçu-Purus, embora habitem uma
região de abundantes recursos naturais, passam por muitos dos problemas comuns
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às populações rurais na Amazônia, mesmo estando relativamente próximas das
sedes municipais. Tais dificuldades abrangem desde a falta de acesso aos serviços
básicos de educação e saúde e falta de transporte, relações desiguais no comércio de
produtos extrativistas e conflitos fundiários até a precariedade na organização social.
Os municípios de Beruri e Anori aos quais pertence a maioria da população da RDSPP figuram entre piores no ranking da exclusão social no Brasil (Pochmann;
Amorim, 2003).
A pesca, a agricultura e a extração de castanha são as atividades econômicas
correntes mais importantes para as comunidades da RDS Piagaçu-Purus. Tais
recursos são, de forma geral, abundantes na região. Apesar disto, o que os moradores
recebem ao comercializar tais recursos está muito aquém do rendimento potencial
da atual escala de extração. Isto decorre de vários fatores de uma teia complexa
de relações socioeconômicas estabelecida, entre os diferentes agentes envolvidos,
cujas consequências afetam negativamente tanto as pessoas que extraem quanto os
recursos extraídos. A dependência econômica dos moradores a poucos compradores
pode gerar uma escalada crescente de exploração de recursos para cobrir os gastos
da população da reserva.
Dentre as urgentes necessidades que a região possui são apontadas
pelo Instituto Piagaçu como prioritárias: maior articulação com as prefeituras
dos municípios que fazem parte da reserva e secretarias de Estado; valorizar os
conhecimentos locais sobre uso de plantas medicinais e a atividade das parteiras,
incluindo instrumentalização delas; estabelecer programas de alfabetização para
adultos e de educação ambiental para o desenvolvimento sustentável nas escolas
formando agentes multiplicadores e, por fim, fortalecer a organização social das
comunidades.
A caminhada é longa e com estas e outras pesquisas realizadas na RDS
Piagaçu-Purus, juntamente com a publicação do Plano de Gestão e o funcionamento
do Conselho Gestor (criado em 2009, com representação de moradores, instituições
governamentais e não-governamentais), esta Unidade de Conservação procura
alcançar os almejados objetivos de uma RDS: “conservação da biodiversidade e
melhoria da qualidade de vida das populações tradicionais por meio do uso sustentável
dos recursos naturais” (Sistema Estadual de Unidades de Conservação).
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Rio, floresta e gente no baixo rio Purus...
195
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Entre o patrão e o manejo:
Paumari do Rio Tapauá
o dilema dos
Gustavo Falsetti V. Silveira
Renata Corrêa Apoloni
Os Paumari
Os Paumari estão localizados a sudoeste do Estado do
Amazonas, em lagos e margens do Médio Rio Purus e de seus
afluentes, habitando atualmente duas regiões distintas: uma
abrangida pelo Município de Lábrea, onde estão localizadas
as terras indígenas Marahã e Ituxi, às margens dos rios Purus
e Ituxi; e outra abrangida pelo Município de Tapauá, onde
estão localizadas as terras indígenas do lago Manissuã e do
Lago Paricá, às margens do rio Tapauá e a Terra Indígena
do Cuniuá, às margens do rio Cuniuá e Tapauá. Atualmente,
os Paumari do Tapauá têm uma população aproximada de
duzentas pessoas (Bonilla, 2009), que habitam cinco
aldeias: Manissuã, na TI Paumari do lago Manissuã, com uma
área de 22.970 ha; Abaquadi e Terra Nova, na TI Paumari do
lago Paricá, com uma área de 15.792 ha; e Xila e Açaí, na TI
Paumari do Cuniuá, com uma área de 42.828 ha.
196
Álbum Purus
Gustavo Falsetti V. Silveira et al.
Em destaque (círculo) as TIs Paumari do rio Tapauá e as cidades de Tapauá e Lábrea (triângulos).
Fonte: Site Funai, 2010.
A oficialização da demarcação na TI Paumari do Cuniuá ocorreu no ano
de 1997; no ano seguinte ocorreu a oficialização da TI Paumari do lago Paricá e
do Lago Manissuã, que teve uma revisão de limites oficializada em 2003. Por uma
opção dos indígenas, as três terras contíguas foram demarcadas separadamente, o
que deixou alguns espaços vazios entre as terras, provocando uma pressão sobre os
recursos naturais das terras indígenas.
Os Paumari ocupam e utilizam preferencialmente ambientes aquáticos:
lagos, áreas de várzea, praias e rios. Essa característica influi em sua dinâmica
espacial, notavelmente determinada pelo ciclo das águas – enchente ou vazante
– e pela ocupação dos ambientes mais próximos às águas. Na região do Tapauá, a
maioria dos Paumari tem uma habitação flutuante, que é localizada em um lago e
frequentada no período de verão amazônico; e uma habitação de palafita (ao estilo
regional, com cobertura de palha ou alumínio), e localizada em terra firme, utilizada
no período de inverno amazônico. Assim, têm como principal atividade a pesca,
sendo conhecidos como exímios pescadores, incluindo a diferenciada realização da
pesca de mergulho para a captura de quelônios – pouco utilizada atualmente.
Entre o patrão e o manejo...
197
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
A caça, em menor escala, constitui uma atividade importante para a
economia doméstica do grupo, tanto para a alimentação quanto esporadicamente
para o comércio. As espécies de caça consumidas pelos Paumari são: anta, jaboti
(raramente), veado-roxo, veado-capoeira, quati, queixada, caititu, cutia, paca,
macaco-guariba, macaco-aranha (ou macaco-preto), macaco-prego, preguiçabentinho, preguiça-real, tamanduaí, mambira, tatu-canastra, tatu-bola, tatu-rabode-couro, onça-pintada, onça-vermelha, onça-preta, gatão-maracajá, jaguatirica,
cachorro-do-mato, mutum, jacu, nambu, pato-do-mato, marreca, mergulhão, arara,
tucano e jacamim.
Também coletam uma série de frutas silvestres, entre as quais, o açaí, patauá,
abacaba, uxi, buriti e pupunha, além de variadas frutas encontradas nos igapós;
cipós e enviras para a construção de casas, embarcações; e a fabricação de diversos
objetos. Um dos principais produtos coletados e também importante fonte de renda
é a castanha-do-brasil.
Os Paumari praticam a agricultura, cultivando diversas variedades de
mandioca, macaxeira, banana, cará, cana, abacaxi, ananás e diversas frutíferas como
goiaba, caju e limão. Têm como base alimentar a farinha de mandioca, cuja produção
serve tanto para a alimentação quanto o excedente para a venda. Essa produção é
realizada em diversas épocas do ano. Outros produtos da mandioca que utilizam
e ocasionalmente vendem são: a goma, utilizada para a tapioca e para o beiju; e a
farinha de tapioca.
Em geral, cada família possui seu roçado, onde os trabalhos são divididos da
seguinte maneira: aos homens cabem a broca e derrubada da floresta, a queimada,
abertura de covas para o plantio, enquanto as mulheres plantam e colhem. Os
roçados em geral medem um hectare e são utilizados em média por três anos, sendo
posteriormente utilizados para a coleta de frutos tal qual a goiaba, abacaxi, caju. Esse
sistema permite o descanso da terra para a posterior utilização. As mulheres se dedicam
à confecção de fogões e assadeiras de barro, além da produção de carvão vegetal;
produtos esses que são muito utilizados por eles e também comercializados.
Os Paumari falam uma língua pertencente à família linguística Arawa, assim
quanto os povos Banawa, Jamamadi, Jarawara, Deni e Suruaha. Com variações entre
as diferentes regiões que habitam, falam o português para se comunicar entre si,
associando estruturas frasais em português com vocabulário paumari, ininteligível
para aqueles que não têm o domínio da língua paumari (Bonilla, 2005).
Nas regiões próximas à cidade de Lábrea, a alfabetização de muitos Paumari
ocorreu por meio de materiais produzidos por missionárias da SIL (Summer
Institute of Linguistics), que estudaram a língua, desde os anos 60. Entre os Paumari
do Tapauá, o português é a principal língua falada, e em geral os falantes da língua
198
Álbum Purus
Gustavo Falsetti V. Silveira et al.
paumari são os mais velhos, os que participaram de algum processo de educação
promovido pelos missionários, ou os que vieram da região de Lábrea.
Os Paumari se autodenominam Pamoari; utilizando esse termo para se
distinguir de outras nações. Eles não utilizam pronome pessoal na primeira pessoa
do plural para se auto designar, nem um termo significando “gente” ou “humano”.
O termo pamoari recobre dois sentidos; Paumari como coletivo, e o de freguês
no contexto da relação comercial. Também é usado para formar uma expressão
que indica a qualidade potencial de humanidade de um ser ou objeto, algo como a
pamoaritude ou pamoaridade (Bonilla, 2005).
A colonização da região do Médio Purus foi feita inicialmente pela frente
extrativista da borracha, que teve dois grandes ciclos, no início e em meados do século
20, e estabeleceu novas práticas comerciais e de subsistência; e é nesse período que
os Paumari são contatados. Nesse contexto histórico, os Paumari não optaram por
resistência armada, como outros grupos indígenas da região; nem por migrações
para outras regiões, como os territórios de terra firme que foram controlados por
outras etnias, como, por exemplo, os Apurinã, Jamamadi e os Deni (Schröder,
2002). Com o declínio e praticamente o fim das atividades seringalistas, iniciou-se
o processo de exploração de madeira e pesca, que ainda hoje são as maiores fontes
de subsistência da região.
Segundo as informações históricas, etnográficas e ambientais, pode-se
perceber que os Paumari desenvolveram estratégias específicas para se adaptar
ao ambiente social não indígena. Dado seu conhecimento tradicional da pesca,
se dedicaram a atividades comerciais de venda de quelônios e peixes ao mercado
regional, flexibilizando suas relações com os comerciantes aliada à sua dinâmica
de ocupação territorial, marcada por diversificação e alta mobilidade. Foram suas
estratégias bem-sucedidas de sobrevivência física e cultural (Schröder, 2002).
Bonilla (2005) aprofundou o estudo antropológico sobre a estratégia Paumari
de relação com o outro, e sua relação com a organização social e cosmológica.
A dinâmica de sujeição, do sistema “patrão-empregado”, imposta pelas frentes
extrativistas na região, foi de certa maneira digerida e invertida pelo sistema relacional
paumari. Na relação com o patrão, este é aquele que garante aos empregados o
acesso a bens, alimentação e cuidados, em troca de serviço e produção. Assim,
“estar servindo alguém” é estar sob sua proteção e ser alimentado direta ou
indiretamente por ele. Na cosmologia paumari são recorrentes as histórias em que
o meio de conhecer e de controlar a agressividade do inimigo é sendo socializado,
de preferência pacificamente, por ele. Segundo a autora, em uma possível leitura
dessa relação social, o outro, que poderia ser visto como um predador em potencial,
é transformado na figura do “patrão domesticador” pelos Paumari, que se auto-
Entre o patrão e o manejo...
199
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
colocam em uma posição de presa domesticável, obrigando o outro a adotar a
posição de pacificador domesticador. Dessa maneira, essa capacidade de submissão
pode ser vista como uma estratégia predatória, garantindo assim que o outro, em
posição de dominação, apiede-se deles e os “adote”. Essa estratégia garante a
neutralização do perigo predatório, permitindo controlar a situação nas relações
estabelecidas, e garantindo assim sua sobrevivência pacífica (Bonilla, 2005).
Interação com propostas indigenistas: proteção territorial e conservação
Entre os anos 2000-2003, as terras indígenas paumari do rio Tapauá
receberam o apoio de projetos de proteção territorial e vigilância, executados pela
Opan no âmbito do Programa PPTAL. Contudo, nos anos sucessivos as pressões
sobre as terras indígenas aumentaram, e com a ausência de qualquer tipo de apoio,
por parte dos órgãos competentes, tanto na fiscalização quanto nas atividades
econômicas sustentáveis e no escoamento da produção, os indígenas mantiveram
os arrendamentos dos lagos para barcos pesqueiros e a venda de quelônios, na
busca de atender suas necessidades econômicas. Perante esta situação, os Paumari
foram consolidando uma demanda de apoio na potencialização da sua capacidade
pesqueira. A partir de 2008, foi implementado um modelo de intervenção baseado
no apoio à gestão dos recursos naturais – que consiste prioritariamente em ações
de manejo sustentável da pesca – e no fortalecimento organizacional.l Novas
ferramentas participativas de etnomapeamento, avaliação ecológica, diagnóstico
socioambiental e construção de planos de gestão territorial estão sendo propostas,
buscando o diálogo com as cosmovisões indígenas locais na procura de alternativas
e soluções para as demandas dos Paumari.
Nesta linha, realizou-se um diagnóstico da situação pesqueira nas terras
indígenas, no qual foi identificada a atual situação de sobrepesca, além da possibilidade
1 O programa atual, executado nas terras Paumari pelos autores deste texto, se insere no marco do Projeto Aldeias — Conservação na Amazônia Indígena, consórcio Opan/Visão Mundial com apoio financeiro
de Usaid. O projeto se desenvolve no Estado do Amazonas, junto aos povos Paumari, Deni do rio Xeruã e
Katukina do rio Biá; inclui também um conjunto de ações de proteção etnoambiental das terras indígenas
Zuruaha e Hi Merimã, em parceria com a Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai. Esse projeto
teve início em outubro de 2008, tem a duração de três anos; e está dividido em dois eixos: a) Melhoria da
conservação da biodiversidade e do manejo de recursos naturais em cinco terras indígenas no Amazonas,
por meio de ações de monitoramento territorial e vigilância, mapeamento etnográfico, avaliação ecológica, e desenvolvimento de diagnósticos socioambientais e de projetos piloto para o desenvolvimento
econômico sustentável, principalmente na área de pesca sustentável; b) Fortalecimento da organização
indígena, com ações de treinamento em promoção de direitos indígenas, programas de troca de experiências e intercâmbios entre lideranças indígenas, construção de capacidade e desenvolvimento organizacional, fortalecimento de alianças já existentes entre organizações indígenas amazônicas e suporte à
criação de novas alianças, e treinamento em planejamento para conservação e gestão ambiental.
200
Álbum Purus
Gustavo Falsetti V. Silveira et al.
de extinção comercial local do pirarucu e peixes “de couro” (pirarara, surubim, filhote,
entre outros). Esse diagnóstico é a base para a construção do processo de manejo
pesqueiro, além de apoiar a discussão e reflexão junto aos Paumari sobre a realidade
dos recursos pesqueiros da região e das possíveis alternativas as quais o projeto se
propõe a construir. O Estudo para Elaboração de um Plano de Manejo Pesqueiro das Terras
Indígenas Paumari,2 diagnosticou a seguinte situação pesqueira nas terras paumari:
Em todas as terras indígenas Paumari da região do rio Tapauá foram
constantes os relatos de que há intensa exploração do pirarucu, sem nenhum tipo
de seleção de tamanho de captura. Este pode ser um indício de que esta espécie
pode estar sob efeito de sobrepesca de crescimento e também de recrutamento,
o que biologicamente significa que os estoques sofrem risco de depleção e uma
possível extinção comercial, em nível local. Entretanto, foi possível observar em
alguns relatos que há a presença de juvenis desta espécie, mas os indígenas não
souberam informar da presença de casais com filhos. Estas informações nos levam
a crer que existem algumas áreas onde deve estar ocorrendo a reprodução desta
espécie, mas que não estão sobre efeito de pesca.
Quelônios do tipo tracajá e a tartaruga foram identificados como recursos
abundantes nas terras Paumari e isso contribui para tornar estas áreas vulneráveis à
ação de pescadores de municípios como Tapauá, Canutama e Lábrea, que realizam
tanto a captura de quelônios em período de desova quanto também com o uso
de uma técnica de pesca ilegal conhecida localmente como capassaco. Além de
pirarucu e quelônios, há intensa captura de jacaretinga (Caiman crocodilus) e jacaré-açu
(Melanosuchus niger), cuja carne é comercializada com patrões locais que revendem
este produto, a carne seca de jacaré, a grandes patrões regionais vindos de Belém do
Pará. Junto com a carne de jacarés há a comercialização de peixe seco, que constitui
a base das pescarias comerciais realizadas pelo povo Paumari do rio Tapauá e
Cuniuá. Neste grupo de peixe seco estão inclusos os peixes lisos e os de escama,
denominados catrevagem (tucunaré, cará, aruanã), cujo preço de comercialização é
similar ao preço de carne de jacaré, algo em torno de R$ 1,00 a 2,00. Poucos índios
Paumari relataram a utilização de dinheiro nas atividades comerciais realizadas com
os patrões de pesca.
É possível afirmar que a situação dos estoques de pirarucu é preocupante e
carece de uma intervenção mais efetiva; neste caso, por meio do projeto manejo de
lagos. Para isto se propõe a implantação de um sistema de monitoramento pesqueiro
2 Produzido por Juarez Carlos Brito Pezzuti, Jackson Pantoja Lima, Adna Albuquerque de Almeida e Saide
Pereira Barbosa, para o Projeto Aldeias (Opan/VM).
Entre o patrão e o manejo...
201
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
em todas as aldeias Paumari, bem como se propõe um diagnóstico dos estoques de
acará-disco, espécie de peixe ornamental abundante na região, que constitui uma
possível alternativa para a população indígena Paumari no curto e médio prazo,
haja vista que os próprios indígenas reconhecem que os estoques de pirarucu estão
bastante reduzidos.
O “dilema” Paumari
Por habitarem uma região de grande diversidade de recursos naturais,
os Paumari se inseriram dentro do sistema de aviamento dos diversos ciclos de
exploração extrativistas que ocorreram na região do Purus. Os recursos pesqueiros,
utilizados tanto para a alimentação quanto para a geração de renda, vêm diminuindo
consideravelmente, e os Paumari atualmente enfrentam o desafio na busca de uma
alternativa econômica para a pesca que possa garantir a continuidade dessa atividade
entre eles.
O dilema dos Paumari, dentro de uma proposta de manejo pesqueiro e
gestão territorial, pode ser compreendido como a questão de como reorganizarão
suas alianças, uma vez que o processo de manejo gera mudanças na forma de se
relacionarem, econômica e socialmente, com os patrões.
Os Paumari mantêm, até os dias de hoje, um forte vínculo social e comercial
com os “patrões” (comerciantes e peixeiros) que constantemente visitam suas áreas.
Esses comerciantes, com relações sociais muito fortes estabelecidas com eles – em
alguns casos apadrinhando-os – são os mesmos que atendem a sua demanda por
produtos industrializados e realizam trocas comerciais por produtos pesqueiros
ilegais, e que vem pressionando e provocando a superexploração dos recursos das
terras indígenas.3 A superexploração dos recursos pesqueiros se dá principalmente
pelos arrendamentos de lagos concedidos pelos Paumari a barcos pesqueiros
profissionais, principalmente vindos da cidade de Manaus, e que praticam a pesca
predatória, além de realizarem essa atividade ilegalmente, por estarem em Terras
indígenas.
Na região do Tapauá a presença da Funai e do Ibama são praticamente
inexistentes. Com a falta de apoio desses órgãos, a pressão sobre os recursos das
terras indígenas e das regiões vizinhas são constantes. Essa ausência de fiscalização
garante a manutenção da pesca e do comércio ilegal de produtos pesqueiros
(quelônios, pesca predatória, inclusive na época do defeso) na região, realizados por
esses comerciantes locais e barcos pesqueiros comerciais vindos de cidades de Lábrea,
Tapauá, Canutama e Manaus. A constante presença de atores externos nas terras
3 Ver Bonilla nesta edição.
202
Álbum Purus
Gustavo Falsetti V. Silveira et al.
indígenas desestimula os Paumari das ações do projeto, sugerindo que não obterão
sucesso com o manejo pesqueiro, além de que o projeto poderia comprometer suas
relações comerciais. Isso pode ser compreendido, pois esses atores imaginam que as
atividades do projeto possam comprometer as ações desenvolvidas por eles, que em
sua maioria são ilegais, além da falta de alternativas econômicas que eles também
vivenciam.
No início do processo de construção do manejo de recursos pesqueiros, as
dúvidas em relação ao novo modelo eram constantes, com a retomada das mesmas
questões em todos os trabalhos. As dúvidas eram decorrentes das conversas com os
regionais, entre as visitas da equipe à área, e as “contrainformações”; a reticência dos
Paumari com uma proposta que não estava tão clara e materializada como gostariam,
por exemplo, na forma de um barco – mas sim, uma proposta de longo prazo e a
ser construída com eles; e, por fim, parte das dúvidas era relativa à manutenção dos
vínculos sociais e comerciais que mantêm com os patrões e como eles ficariam.
Um dos pontos principais para o desenvolvimento do projeto é o entendimento gradual de que a proposta de manejo não significa uma quebra de vínculo
com os patrões, mas sim, uma mudança na forma de se relacionar com eles. As
respostas dos Paumari em relação a isso estão aparecendo. Em uma das estadas
da equipe em área, a liderança de uma das aldeias pediu o apoio para conversar
com o encarregado do barco de pesca que se encontrava na aldeia tentando fazer
um acordo com os indígenas para pescar nos lagos da TI. Segundo a liderança, os
indígenas estavam interessados em tentar trabalhar com a proposta do manejo, mas
não sabiam como falar não ao peixeiro, uma vez que os lagos solicitados pelo peixeiro
são os mesmos reservados para o manejo. Em uma reunião da equipe indigenista
com os moradores, essa mesma liderança explicou aos demais a situação e convidou
o encarregado do barco para a reunião; a equipe então explicou sobre o projeto e
falou das alternativas comerciais que poderiam ser construídas entre os Paumari e
o peixeiro, como por exemplo, comprando futuramente um peixe manejado, e que
poderiam vender com tranquilidade e dentro da legalidade. Nessa mesma reunião
a comunidade se posicionou contra a proposta de arrendamento dos lagos por um
período de pelo menos dois anos. É claro, na abordagem e na tentativa de diálogo
da equipe, que as ações com os atores locais não devem ser no sentido de retirá-los
desses locais, mas sim, trabalhar na perspectiva de poder integrá-los a uma nova
dinâmica. Essa perspectiva é de longo prazo e envolve certamente um planejamento
e apoio governamental na fiscalização, no ordenamento pesqueiro e incentivo a
pesquisas de conservação ambiental da região, além do apoio a alternativas de
produção e escoamento pesqueiro.
Entre o patrão e o manejo...
203
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Outra atividade que apresentou resultados positivos foi a realização de
uma oficina de metodologia organizacional, que abordou as principais dúvidas
apresentadas pelos indígenas quanto à organização da sociedade, quanto aos
órgãos do governo, do terceiro setor e setor privado; histórico e trabalho de
ONGs, destacando o tipo de apoio oferecido e como são elaborados e executados
projetos.
O “dilema” aqui apresentado não é uma questão vivenciada unicamente pelo
povo Paumari, o contexto e as alternativas regionais ao uso e comércio dos recursos
naturais são uma dificuldade concreta para toda a população da região dos rios Tapauá
e Cuniuá, uma vez que há uma forte pressão sobre os estoques pesqueiros, a falta de
fiscalização e poucas alternativas legais de comercialização. Incentivos a alternativas
econômicas sustentáveis, numa ação conjunta do governo e de organizações que
trabalham na região, podem contribuir para a garantia da sobrevivência física e
cultural dessas populações, assim como a conservação ambiental dessas áreas. Para
isso, ocorre consolidar modelos eficazes de gestão territorial.
204
Álbum Purus
Gustavo Falsetti V. Silveira et al.
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205
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Os Paumari dos Rios Tapauá e Cuniuá
Oiara Bonilla
Este artigo origina-se em um relatório de assessoria
antropológica redigido para o Projeto Aldeias (Operação
Amazônia Nativa/Visão Mundial) após uma breve viagem
de mapeamento etnográfico realizada ao longo de vinte dias,
durante o mês de novembro de 2009.1 A viagem tinha como
objetivo a elaboração do etnomapeamento das terras indígenas
Paumari contempladas pelo projeto: Terra Indígena do Lago
Manissuã, Terra Indígena do Lago Paricá, Terra Indígena
do Rio Cuniuá. O trabalho consistiu em um levantamento
detalhado da população e de suas relações internas e externas,
i.e. com outros índios, ribeirinhos, comerciantes, pescadores,
funcionários, visitantes ou mesmo com a própria equipe
do projeto. Este artigo tenta sistematizar estes dados, e não
pretende ser exaustivo ou atingir objetivos analíticos ou
comparativos.
Considerando a curta duração da viagem e a focalização
da pesquisa nos objetivos almejados pelo projeto, o trabalho
de campo ficou limitado a uma primeira aproximação de cada
uma das aldeias. O resultado é portanto parcial, e para usar
uma comparação simples, assemelha-se a uma fotografia
tomada em alta velocidade. Ela permite ter uma noção da
forma, das cores e da dinâmica do que se está fotografando.
1 Trata-se de um projeto de três anos que visa a conservação, a vigilância e a implementação de soluções
de manejo da biodiversidade nas Terras Indígenas Paumari (do Tapauá e Cuniuá), Katukina do rio Bia e
Deni. O projeto é gerenciado pelo consórcio entre a Opan (Operação Amazônia Nativa) e a VM (Visão
Mundial), e é financiado pela Usaid. Os propósitos, a metodologia, os objetivos e métodos do projeto são
largamente descritos e analisados neste volume por Aparício e Apoloni & Silveira. No caso dos Paumari,
o plano de manejo é dedicado ao pirarucu e à pesca. Este texto é resultado do trabalho de assessoria
realizado para a OPAN e o Projeto Aldeias em novembro de 2010. A apresentação do mesmo e minha participação ao Seminario que originou esta publicação foi possibilitado por minha bolsa de pós-doutorado
(PAPD) da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).
206
Álbum Purus
Oiara Bonilla
Neste primeiro levantamento realizado para o Projeto Aldeias minha principal
preocupação era definir os contornos sociológicos do grupo nessa região e pensálos em relação à dinâmica relacional do grupo, já descrita em outros trabalhos.2
Quando iniciei a viagem, as preocupações da equipe giravam, principalmente, em
torno de uma questão: a compreensão (ou incompreensão), por parte dos Paumari,
do sentido e das implicações das questões da vigilância territorial e do manejo da
biodiversidade em suas terras. Os Paumari manifestavam um certo receio diante
das propostas do projeto. Além disso, as lideranças das aldeias Açaí e Xila – as
mais distantes e isoladas – haviam recusado, de forma mais ou menos explícita,
as propostas do manejo, argumentando que já haviam passado acordos prévios
com barcos de pesca. A questão principal, para o projeto, era tentar entender essas
reticências assim como procurar compreender a lógica que rege as relações entre
os Paumari e os “invasores” (pescadores, comerciantes etc.). Para isso, era preciso
começar a delinear os contornos dessas relações e a dinâmica que as conecta com
essa multiplicidade de agentes que se colocam como seus interlocutores, invasores,
ou empregadores.
A ordem de exposição dos dados respeita a ordem cronológica em que
foram colhidas as informações, e a descrição recorre a figuras ou personagens que
ocupam posições de destaque nas aldeias, seja por seu papel crucial em relação a
questões do próprio projeto, seja por seu “status” de liderança ou por sua posição
atípica na aldeia ou no conjunto das aldeias paumari da região.3
Terra indígena do lago Manissuã: aldeia Manissuã
Chegando ao lago Manissuã, avistam-se doze casas flutuantes atracadas, em
forma de semicírculo, à proximidade das margens do lago. As casas são construídas
sobre toras de madeira (do tipo conhecido na região como “boeiro”) seguindo
a forma regional retangular, cobertas de palha branca, telhas de alumínio ou de
amianto. Os moradores do lago também possuem casas de palafitas na terra firme
que ocupam durante o inverno amazônico ou em momentos específicos como, por
2 É preciso especificar que realizei pesquisa de doutoramento junto aos Paumari do lago Marahã e do Rio
Ituxi de 2000 a 2002 e que continuo trabalhando com este grupo até os dias de hoje.
3 Peço desculpas ao leitor familiarizado com a antropologia e, principalmente, com a etnologia da região,
se apresento aqui unicamente dados descritivos e não traço as conexões, não faço as comparações, nem
discuto as questões da disciplina que deveriam ser tratadas. Trata-se de uma escolha consciente de minha parte, pois esses dados etnográficos ainda são, a meu ver, insuficientes para serem discutidos com
profundidade, apesar de apontarem para várias questões já conhecidas e amplamente analisadas. Isso
certamente será fruto de um trabalho posterior.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
207
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
exemplo, quando precisam torrar farinha de mandioca. A aldeia é habitada por 70
pessoas aproximadamente, em sua grande maioria jovens. A composição etária da
população do Manissuã poderia servir de modelo para as outras aldeias paumari da
região, pois todas apresentam as mesmas características. No caso do Manissuã, 48%
da população tem abaixo de 15 anos, sendo que se contam apenas quatro pessoas
maiores de 50 anos.
Assim que chegamos à aldeia Manissuã, a questão do poder e do lugar da chefia
surgiu como um ponto importante para a compreensão do que estava se passando
na área. Hoje em dia, todas as aldeias são representadas por uma “liderança” ou
um “cacique” – sendo este designado coletivamente como tal para desempenhar o
papel de interlocutor com o exterior (índios ou não índios). É importante esclarecer
que essas lideranças não fazem obrigatoriamente parte de uma dinâmica interna
de tomada de decisão. As decisões que dizem respeito ao cotidiano, às atividades
sazonais, aos problemas familiares ou, até certo ponto, aldeões, são tomadas pelo
“cabeça” de cada uma das unidades domésticas que habitam uma casa ou um
conjunto de casas adjacentes. Esse “cabeça” corresponde geralmente ao que nós
chamamos de “pai de família”, mas pode ser também o irmão mais velho de um
conjunto de germanos que vivem em habitações adjacentes, ou o homem mais
velho de uma família extensa.4 As grandes pescarias, as caçadas, a organização de
rituais ou de viagens longas são habitualmente empreendidas por esses “cabeças”
de famílias nucleares ou extensas. Há portanto, vários níveis de representatividade
em um mesmo conjunto aldeão tal como ele está configurado hoje em dia.
Assim, a representatividade da liderança oficial da aldeia Manissuã, no sentido
de representatividade do conjunto da comunidade, é relativa, principalmente no que
diz respeito à organização de atividades específicas. Isso ficou muito claro no dia
em que foi programada a pintura das placas de demarcação, feitas para suprir a falta
de placas da Funai para marcar os limites da terra. O líder convocou todos aqueles
que pôde, mas pouquíssimos responderam ao seu apelo. Ficou evidente que seu
chamado se assemelhou mais a um convite do que a uma ordem ou a um apelo
à colaboração. No fim das contas, só apareceu quem quis e quem pôde. Assim,
durante a manhã, vários homens, mulheres e jovens compareceram em momentos
distintos. Poucos foram aqueles que permaneceram no local durante toda a
manhã. A maioria contribuiu de forma momentânea, e se dispersou rapidamente,
voltando às suas atividades cotidianas, sem que o representante nem ninguém
possa remediar a essa situação. No fim da tarde, todos estavam reunidos jogando
bola do outro lado do lago, enquanto as placas mal haviam sido começadas, para
4 O termo em paumari para essa posição é ka’da’di, cabeça ou líder.
208
Álbum Purus
Oiara Bonilla
grande desespero da equipe do projeto. Essa falta relativa de poder de coerção dos
líderes ou da chefia indígena em geral, seja ela tradicional ou não, já foi amplamente
discutida pela etnologia e mereceria talvez ser repensada em função dos contextos
contemporâneos da política indígena.
O que me parece interessante notar aqui é a superposição dessas figuras de
lideranças oficiais, i.e., escolhidas segundo a lógica representacional e, geralmente,
destinadas a representar o grupo “para fora”, e as figuras de chefes tradicionais, tais
como esses “cabeças” de grupos domésticos paumari5. Essa sobreposição apareceu
no contexto de uma reunião organizada pela equipe, justamente para esclarecer
dúvidas sobre o projeto e debater algumas questões jurídicas (como direito à terra,
a definição da terra indígena, o que é vigilância etc.). A reunião se transformou em
poucos minutos em uma disputa oratória entre a jovem liderança da aldeia e o seu
irmão mais velho. Muito combativo, o líder falou por quarenta longos minutos
sem deixar que ninguém o interrompesse e fazendo uma digressão sobre o sentido
de “ser um lutador” (i.e, uma pessoa combativa que luta por seus direitos) em um
tom (acompanhado de performance corporal) que oscilava entre a oratória de um
líder evangélico e a de um político eleitoral. Finalmente, cedeu a palavra ao seu
irmão mais velho que explicitamente se colocou em uma postura muito parecida,
apresentando seu ponto de vista e suas dúvidas sobre o projeto. Esse debate entre
os dois irmãos tinha, ao menos em grande parte, o objetivo de demonstrar à equipe
a capacidade que tinham de se tornar interlocutores privilegiados da equipe do
projeto. Um pouco desnorteados diante dessas demonstrações, os membros da
equipe tentaram, várias vezes e em vão, voltar aos propósitos da reunião. Foi após
mais de uma hora de discursos que ressurgiram as “dúvidas” e as “exigências de seus
direitos” por parte dos demais presentes, que se referiam assim principalmente à
insatisfação em relação as demandas implícitas formuladas para a equipe do projeto
(quase que exclusivamente demandas em bens materiais) que, segundo eles, não
haviam sido atendidas. Mas isso só foi possível depois que a última palavra foi dada
ao pai dos dois oradores.
Finalmente, a palavra foi dada ao seu Luiz, pai dos dois oradores, ele
próprio “cabeça” da família extensa aos quais os dois irmãos pertencem. Em sua
fala, demonstrou maior autocontrole, assim como um domínio da oratória (sendo
mais direto, mais breve, menos redundante e mobilizando argumentos históricos e
simbólicos de peso) e concluiu evocando as dificuldades que havia vivido durante a
fase de demarcação das terras e a sua tristeza em constatar que “algumas pessoas”
5 Sobre o lugar do chefe da unidade doméstica no contexto da sociologia arawá, ver o artigo de Maizza
nesta mesma publicação.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
209
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
não participam das ações e reuniões de um projeto que pretende dar continuidade à
demarcação (referindo-se assim à questão da vigilância). Essas “pessoas” às quais o
pai do líder se referiu, são sua filha e seu genro Katukina. Terminou então falando
dos “pajés assassinos” que mataram seus pais e reafirmando que não aceitaria nunca
mais pajés em sua aldeia.
Apesar da falta aparente de conexão entre essa fala e o tema da reunião,
há vários elementos importantes aqui. Em primeiro lugar, o discurso de seu Luiz
transmite uma mensagem aos filhos, afirmando implicitamente que apesar de sua
idade (ou justamente por causa dela), ele ainda tem ascendência sobre sua família
extensa e, portanto, sobre eles dois. Ele é quem tem a última palavra. Em segundo
lugar, o discurso contém uma mensagem destinada à equipe e à antropóloga, quando
ele associa, por um lado positivamente, a antropologia ao processo de demarcação,
e, por outro lado negativamente, o apreço afirmado por esses agentes à “cultura
antiga”, à feitiçaria e ao xamanismo.6 E finalmente, por meio da mensagem direta
lançada à sua filha e ao seu genro, ele se refere claramente a um problema interno
entre os Paumari da aldeia e esse afim Katukina que ocupa uma posição ambígua
na comunidade (sendo constantemente acusado de desonestidade, e de se colocar
em uma posição marginal).7 É importante dizer que os grupos locais Paumari são
idealmente endógamos e que os casamentos com outras etnias são sempre alvo de
críticas e especulações maldosas.
Parece-me interessante voltar à questão dos “pajés” e à afirmação feita pelo
seu Luiz. Esse é o outro tema que surgiu imediatamente após a nossa chegada
ao Manissuã. Ao interrogar as pessoas sobre sua idade, seus parentes e sobre a
população em geral, surgiam imediatamente comentários e discussões em voz
baixa sobre quem havia matado quem no passado. Além disso, uma das primeiras
coisas que os Paumari da região esclarecem de entrada é que “todos os pajés foram
mortos” e que as atividades destes, no passado, “matando até os próprios parentes”,
impediam que se “produzisse mais gente”. É importante notar que apesar de os
pajés serem culpados pelas grandes perdas populacionais do passado, os Paumari
também evocam as ações de feiticeiros não índios (geralmente ribeirinhos) que
6 Sobre essa associação entre os temas de predileção da antropologia, a valorização da “cultura” feita
pelas ONGs e a questão da rejeição da “cultura antiga” pelos Paumari evangélicos, ver Bonilla, 2007,
2009.
7 Os Paumari do Manissuã culpam esse casal pela saída de missionários evangélicos da área. Alguns acusam a mulher paumari de ter ateado fogo na casa dos missionários, enquanto outros dizem que isso foi
resultado de um ataque de “índios bravos” (talvez referindo-se de forma indireta ao marido dela, que é
Katukina). Atribuem essa ação à inveja que o casal é suposto ter manifestado ao ver que os evangélicos
recebiam muitas mercadorias dos missionários (não consegui saber ao certo de que missão se tratava).
210
Álbum Purus
Oiara Bonilla
contra-atacavam os xamãs paumari, revidando ataques destes. Assim, o passado
recente é lembrado como um tempo marcado pelas agressões xamânicas que,
aos olhos dos Paumari, seriam responsáveis pela dizimação de grande parte da
população.
Nota-se que a extrema juventude da população atual sugere que as baixas
populacionais sofridas pelo grupo foram de fato drásticas. Hoje, os Paumari dizem
que não praticam mais os rituais porque são “crentes” (i.e., evangélicos) e que
portanto, recusam o modo de vida do passado. Mas outra razão levantada, mesmo
que com menos frequência e mais discrição, é que, não havendo mais especialistas,
i.e., xamãs e pessoas de idade que se lembrem e possam transmitir o conhecimento
xamânico e ritual para as novas gerações, não é mais possível realizar rituais, que,
assim como grande parte das atividades xamânicas que a eles estão ligadas, só
podem ser realizados por um conjunto de xamãs acompanhado de cantoras. Para
isso também é indispensável conhecer os cantos rituais.
A origem diversa da população é outro ponto interessante que parece
sustentar a ideia da importância das baixas demográficas do grupo na primeira
metade do século 20. De fato, praticamente todos reivindicam uma origem externa
evocando antepassados (pais, avós e bisavós) Juberi e Mamuri. Isso sugere que esses
povos configuravam-se como subgrupos paumari ou como grupos estreitamente
relacionados a estes, que acabaram se unindo (possivelmente por falta de opções
matrimoniais). Para além das relações matrimoniais, foi-me relatado um ataque
feito a barcos de comerciantes não índios por guerreiros Paumari e Juberi em uma
praia chamada Praia da Mercadoria. Alianças matrimoniais e guerreiras ligavam
provavelmente esses povos. Segundo dona Odete, cuja mãe era Mamuri, estes últimos
moravam em grandes malocas e eram originários do Alto Rio Cuniuá. Habitavam
um rio chamado Curari, acima do rio Piranha, onde viveriam hoje índios Katukina,
casados com Mamuri. A mesma informante afirma que os Paumari entendem a
língua mamuri.
O mesmo se diz dos Juberi, mas sabe-se que estes falavam uma variação da
língua paumari (Bonilla, 2007). Seu Agostinho é filho de Juberi, como muitos
outros Paumari dessa região (e da região do Marahã). Diz ele que no lugar chamado
Tamanduá (Majaniha, em Paumari) havia uma grande aldeia Juberi, onde hoje
encontram-se inúmeras sepulturas e muitos pés de castanha. Nota-se que os locais
de sepultamento paumari estão sempre associados a castanheiras e açaizais, antigos
roçados onde subsistem árvores frutíferas.
Seu Luiz afirma ser Mamuri. Teria sido levado bem pequeno por brancos
para a cidade de Tapauá. Criado por lá, ele teria voltado para a aldeia para se casar,
com sua esposa Paumari, filha de Juberi. Pouco se sabe sobre esses dois povos que
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
211
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
ora aparecem como reais, nesta região do Tapauá, ora aparecem como evocações
quase atemporais, como na região do Marahã. Nesta última, os Juberi são descritos
como grandes guerreiros, muito ágeis, de ordinário comparados a um “exército”
que atuava como defensores dos Paumari em um passado remoto (op. cit., 2007).
Dois temas me parecem importantes para a compreensão da configuração
social paumari na região. Primeiro, a questão do evangelismo como alternativa a um
passado marcado por uma mortalidade extremamente forte causada pelos massacres
e pelas epidemias no início do século na região (até os anos 1960-70) e atribuída
pela maioria da população à feitiçaria. Quando os Paumari do Manissuã insistem
que não querem voltar a fazer rituais porque suas festas, hoje em dia, consistem
em “louvar o Senhor”, deve-se levar a sério o que dizem. Alegando isso, estão
afirmando e assumindo um ponto de vista sobre sua história, estão contando e
explicando que eles estão se transformando, vivendo uma mudança (como viveram
outras no passado). Não cabe aqui especular sobre a pertinência, a importância ou
impropriedade da presença de missões cristãs em áreas indígenas; cabe apenas tentar
entender o que se passa quando os Paumari afirmam reiteradamente a mesma coisa
(neste caso, que são crentes e não querem mais os “pajés” ou a “cultura antiga”).
Os Paumari também atribuem a perda da língua nativa (nessa região do TapauáCuniuá) às baixas demográficas que sofreram, o que não é descabido seja do ponto
de vista demográfico, seja do ponto de vista sociocosmológico.8
O segundo tema importante é o tema da relação com os não índios. A
história de seu Luiz é, podemos afirmá-lo, típica da trajetória da pessoa masculina
paumari. Se nos referirmos à construção da pessoa, é imprescindível lembrar que
todo homem paumari deve passar um tempo de sua infância ou adolescência na
companhia dos brancos, aprendendo sua língua, seus modos, fazendo-se literalmente
adotar/domesticar por estes (Bonilla, 2005). Após esse tempo com os brancos
(que pode variar de uns meses a vários anos), os homens voltam para se casar
na aldeia. Essa forma de adoção voluntária dos Paumari pelos brancos torna-se
possível por meio da relação de empregamento para um patrão (em um seringal
no passado, na cidade, cortando madeira ou quebrando castanha, e hoje em dia
empregando-se em algum barco de pesca ou de comerciante).
Esses barcos de pesca, os chamados “peixeiros”, provenientes das cidades
amazônicas, pescam nos lagos, igarapés e rios da região (incluindo áreas indígenas
ou de proteção ambiental). É de se notar que os Paumari conhecem a grande maioria
dos donos desses barcos ou dos seus encarregados. Os encarregados dos barcos
8 Sobre a relação entre a língua, o xamanismo e a mitologia, ver Bonilla, 2007.
212
Álbum Purus
Oiara Bonilla
são empregados de confiança do dono, responsáveis pelo barco. Muitas vezes,
quando uma embarcação tem um encarregado, significa que seu dono possui uma
frota de barcos, i.e., mais de um barco circulando pelos rios amazônicos à procura
de diferentes tipos de peixes destinados a abastecer o mercado, essencialmente
regional.
Em uma conversa informal, pude registrar uma dezena de nomes de
peixeiros que frequentam as terras Paumari do Tapauá e do Cuniuá como um todo.
Em quase todos os casos, os Paumari têm uma história para contar sobre quem
esteve trabalhando nele, ou ainda está:
Nesses barcos, os donos preferem empregar o pessoal escolhido, do interior. Porque a molecada da cidade não tem
responsabilidade. Tem que saber remendar rede também. Eu
ganhava melhor que alguns empregados que vinham da cidade
porque trabalhava melhor. Às vezes eles chamam a gente para
trabalhar, às vezes é a gente que pede para ir aprender as coisas
de fora, conhecer Manaus (N.P. 14/11/09).
É importante frisar que os Paumari podem pedir para trabalhar com tal
ou qual peixeiro ou podem simplesmente responder a um convite. O sistema de
pagamento é conhecido como pagamento por “vale” ou “abono”, uma das variantes
do aviamento antigo, comum na região. Os empregados de um barco pegam o
dinheiro adiantado, antes de iniciar a viagem. Com isso podem fazer suas compras,
deixar algum “rancho” para a família, comprar material ou bens para a viagem. Na
volta, “tiram o saldo” em função da “feira” (i.e. do preço do peixe no mercado
na hora do desembarque). Caso embarcarem na aldeia, os Paumari não recebem
“abono” ou “vale” (que só é dado na cidade) e vão “tirar” diretamente o “saldo”
na chegada, sempre em função da “feira”. O encarregado do barco é o responsável
pela boa condução da viagem e por qualquer acidente ou imprevisto que possa
ocorrer durante a pescaria. É outro motivo pelo qual eles escolhem com cuidado os
empregados para uma viagem.
Em caso de doença o encarregado do barco é responsável pelos empregados.
Quando o Davi pegou febre tifoide, por exemplo, o encarregado
mandou ele para Tapauá para ele se tratar na Casai.9 Essa parte
fica por conta deles mesmo.
9 Casa de Saúde do Índio.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
213
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Eu comecei a trabalhar no peixeiro com 15 anos e fiquei uns
cinco meses fora. Aí voltei e arranjei família. O N. (dono de
barco) me deu o apelido de Tapauá. A gente é quase como
irmão, então fica chato dizer para ele que não pode entrar aqui.
Eu o conheci na época em que trabalhava no peixe. Então a
gente libera para ele entrar aqui, mas avisa para eles como é que
é a coisa. Aí, também depende se a gente conhece a pessoa ou
não, se não conhece então é diferente (N.P. 14/11/09).
Há uma diferença entre os peixeiros e os comerciantes ou “patrõezinhos”.
Às vezes os encarregados (ou eventualmente os donos) dos barcos de pesca deixam
algum “rancho” (alimentos) em troca de uma autorização informal de pesca. Os
Paumari têm consciência de que essa contrapartida é irrisória em relação ao lucro
que eles obtêm na cidade com o fruto das pescarias. Já os comerciantes, chamados
regatões ou “patrõezinhos” (kariva, em Paumari), aviam mercadorias e alimentos em
contrapartida ao que os Paumari chamam de “produção”, i.e., produtos extraídos
do meio ambiente: peixes, quelônios, carne de caça, peles, óleos vegetais, castanhas
e atualmente também de produtos artesanais utilitários (cestos, paneiros, tipitis,
abanos e fogões ou fornos portáteis de barro) fabricados pelas mulheres. Esses
comerciantes fazem constantes idas e voltas entre as cidades da região e as áreas
indígenas (assim como vilas e habitações de ribeirinhos), eles são como um laço
incessantemente tramado entre o “centro” (a floresta) e as cidades (o mercado).10
Nas terras Paumari da região há também ribeirinhos que, instalados há muito
tempo na área, recusam a se retirar do local. O caso mais complicado é a de um
posseiro e de sua família extensa que se negam a sair da T.I. do Lago Manissuã. Esse
posseiro era “compadre de fogueira” do falecido pai de Dário (habitante da Aldeia
Manissuã). O batismo de fogueira é realizado durante as festas de São João e Santo
Antônio.11 Relações de parentesco simbólicas ou reais também unem habitantes
Paumari da aldeia Manissuã e habitantes não índios das cidades. Assim, o prefeito
da Foz do Tapauá é irmão da mãe de Dário. Esse mesmo prefeito foi patrão dos
Paumari, e agora é vereador.
10 Isso é um fato comum na Amazônia, não se trata de uma particularidade indígena e muito menos Paumari. Ela simplesmente ocupa um lugar de destaque na dinâmica relacional do grupo.
11 Trata-se de um batismo entre adultos, ambos apertam-se as mãos por cima de uma fogueira, formalizando assim uma relação de compadrio. Em outros casos, trata-se do batismo de uma criança, que une
seus pais e padrinhos por meio de compadrio. A relação de compadrio de fogueira é comparável à do
compadrio clássico.
214
Álbum Purus
Oiara Bonilla
Terra indígena do lago Paricá
Aldeia Abakavadi
A aldeia Abakavadi é formada pelo grupo doméstico de seu Evangelista. São
duas casas habitadas no total, construídas sobre palafitas à proximidade da beira do
rio. A aldeia é permanente e os roçados ficam logo atrás das moradias. As irmãs
de seu Evangelista são ambas casadas e moram na aldeia Manissuã. A população
também é extremamente jovem, para um total de 18 pessoas, 11 têm menos de 15
anos e a média de idade é de 14 anos. Seu Evangelista é o mais velho do grupo e
tem uma história interessante, no que diz respeito tanto às atitudes paumari diante
do falecimento e luto quanto das relações entre as diferentes regiões habitadas por
eles.
Após o falecimento de sua esposa, seu Evangelista decidiu subir o Purus para
visitar seus parentes longínquos da região do Marahã.12 Na aldeia Crispim, casou-se
com uma mulher, separada, mãe de duas filhas adultas e avó de vários netos. Viveu
por lá por vários anos, mas o casamento não deu certo e ele decidiu voltar para a
casa. Ele afirma que por lá aprendeu a língua paumari e se tornou xamã. Virou xamã
frequentando os rituais (no Marahã) e aprendeu a língua com os parentes de lá, que
são todos falantes. Seu domínio da língua foi objeto de uma demonstração pública,
durante uma reunião organizada na aldeia Terra Nova, no final da viagem da equipe.
Ao tomar a palavra, seu Evangelista dirigiu-se a todos exclusivamente em Paumari,
sabendo perfeitamente que a língua utilizada nas reuniões é o português (tanto pela
maioria dos Paumari da região, que não falam mais a língua, quanto pelos membros
da equipe). Entre os participantes, apenas seu genro, outro rapaz do Marahã e a
antropóloga poderiam entender sua fala.13 Essa associação entre a aquisição do
conhecimento xamânico e o domínio lingüístico pode parecer casual, mas ela é
recorrente e foi explorada em um trabalho anterior (Bonilla, 2007).
Outra figura interessante é a do genro de Evangelista. Izac é filho de mãe
Paumari e pai ribeirinho, nascido e criado na região do Marahã. Ele foi alfabetizado
na escola da missão evangélica do Marahã, que foi fundada e dirigida por várias
décadas pelas missionárias da SIL (Sociedade Internacional de Linguística). Ele
12 Quando um parente próximo falece, é comum que se abandone a casa onde o defunto vivia, ou que se
empreenda uma viagem longa, em uma espécie de exílio de luto. Isso acontece também em casos de
traição ou de separação de um casal já consolidado.
13 Os Paumari da região do Tapauá não falam mais a língua e os mais novos, i.e., a grande maioria da população, tampouco a entende. Apenas algumas pessoas mais velhas dizem ter lembrança de ter falado a
língua quando criança e certamente teriam entendido grande parte do discurso de Sr. Evangelista. Mas
neste caso, a assistência era formada exclusivamente de pessoas mais novas, que se apresentam como
não falantes.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
demonstra um enorme interesse pela função de professor e, além do fato de ser
falante fluente da língua paumari, tem um posicionamento ativo no que diz respeito
à transmissão do conhecimento, adotando nitidamente uma postura de jovem
liderança.
É importante observar que na região do Tapauá, ao contrário do que se passa
com pessoas originárias de outras etnias, como Apurinã ou Katukina, os homens
procedentes da região do Marahã gozam de um certo prestígio que parece estar
ligado à fluência na língua e, talvez indiretamente, ao conhecimento das práticas
xamânicas/rituais. No caso das mulheres, é mais difícil avaliar a pertinência dessa
ideia, já que a única mulher do Marahã que vive nessa região é casada com um
homem que tem uma posição ambígua na aldeia Manissuã (em parte por ser um
grande consumidor de bebida alcoólica).
Aldeia Terra Nova
Nessa época do ano essa aldeia é composta por quatro casas flutuantes e
uma casa de palafitas. Durante o inverno (estação chuvosa), os habitantes deslocamse para a aldeia da terra firme. A população da aldeia é composta pelas famílias de
um grupo de germanos: quatro irmãs e um irmão, seus cônjugues, filhos e afins
respectivos. Essa aldeia não foge à regra, metade de sua população tem menos de
15 anos, e sua média de idade é de 17 anos.
Durante a reunião realizada pela equipe para discutir as novas ações e
esclarecer algumas dúvidas sobre o projeto, surgiram mais elementos que completam
o quadro das relações que ligam os Paumari aos invasores. Surge então uma espécie
de contradição entre o que os Paumari afirmam e a realidade na qual estão inseridos
e com a qual a equipe se depara quando chega nas áreas.14 Se por um lado afirmam
clara e explicitamente que as invasões já não são toleráveis porque o peixe está
acabando, surgem ao mesmo tempo inúmeras dúvidas sobre o projeto em si, suas
consequências, seus resultados e o que significa exatamente o termo “manejo”.
Essas dúvidas resultam, em parte, de um trabalho de desinformação feito pelos
próprios invasores, mas também estão ligadas a um sentimento de insegurança dos
Paumari em relação às possíveis consequências do projeto: o desaparecimento de
comerciantes e peixeiros, o rompimento de relações centenárias com uma rede
relacional densa e dinâmica que une brancos urbanos, brancos ribeirinhos, Paumari
urbanos, Paumari das aldeias, Apurinã, Katukina, Banawá, lideranças políticas e
14 Em todas as áreas visitadas foram avistados barcos de pesca ou de comerciantes que geralmente se
ocultavam ou saíam das terras indígenas quando o barco do projeto aparecia.
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Álbum Purus
Oiara Bonilla
autoridades das cidades próximas etc. Um circuito constituído por uma multiplicidade
de vínculos de parentesco real ou fictício, de dívidas efetivas ou simbólicas mas que
vinculam as comunidades e seus habitantes entre si, englobando-se e englobando o
mundo complexo e virtualmente hostil dos Outros.
Além dessas inquietudes, também existe o medo às represálias. Isso foi
claramente posto pelos moradores da aldeia Terra Nova. A ausência de fiscalização
por parte da Funai e do Ibama na região faz com que o poder de ação dos Paumari
seja muito reduzido. Quando constatam uma invasão, os Paumari não podem
recorrer a nenhuma instância governamental (pois não há posto indígena da Funai
na região, nem fiscalização suficiente do Ibama). O máximo que podem fazer é
avisar o intruso que está cometendo uma infração. J. L. relatou assim um episódio
em que foi conversar com um homem chamado Moreno – que entrara em um
lago da área para pescar. Este o recebeu com a mão na espingarda, mas acabou
respeitando o aviso, levantou a rede e pediu autorização para remendá-la no local,
saindo da área dois dias depois.
Terra indígena do rio Cuniuá
As duas aldeias situadas na Terra Indígena do Rio Cuniuá apresentam
configurações particulares no conjunto das aldeias Paumari aqui contempladas.
Ambas parecem ocupar uma posição um tanto quanto anômala de um conjunto
disperso, porém, homogêneo de aldeias, seja do ponto de vista sociológico quanto do
ponto de vista político. Outro ponto importante aqui é que estas são as duas aldeias
que se recusam, por motivos ligeiramente diferentes, a participar do projeto.
Aldeia Açaí
Quando chegamos à aldeia Açaí, situada na terceira terra contemplada pelo
projeto, o primeiro contato da equipe com a comunidade se deu na forma de um
pedido de gasolina formulado pela filha da dona Rosinha, liderança da aldeia, para
fazer funcionar o motor de luz e a TV.
A população da aldeia Açaí foge ao padrão observado nas outras aldeias,
do ponto de vista de sua composição. A população é constituída quase que
exclusivamente pela família extensa da dona Rosinha, o que compreende seu marido,
seu Manoel, filho de mãe cearense e pai Apurinã, de seus sete filhos e filhas, genros,
noras e netos. A maioria dos filhos de dona Rosinha casaram-se com brancos ou
Apurinã. Apesar das aparências – disposição das casas da aldeia em fileira na beira
do lago, estética das habitações – a aldeia Açaí apresenta uma espécie de paradoxo
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
para o observador. Se por uma lado ela lembra mais uma comunidade ribeirinha do
que uma aldeia Paumari (visual das habitações, disposição das casas, composição da
população), por outro, seus moradores são muito mais reticentes e reservados do
que nas outras aldeias. As características demográficas são as mesmas que as das
demais aldeias das três terras indígenas. Não foi possível aqui coletar as idades de
todos os habitantes o que torna os cálculos estatísticos muito aproximativos.15
Outra particularidade das aldeias do rio Cuniuá é o fato de a liderança ser
exercida por mulheres. No caso da aldeia Açaí, a liderança é exercida por dona
Rosinha, mulher de uns 70 anos de idade. Dona Rosinha exerce os dois tipos de
liderança, é “cacique” da aldeia, representando a comunidade frente ao exterior, e
também é “cabeça” de seu grupo doméstico, já que dela depende o empreendimento
das atividades produtivas da aldeia. Seu esposo não se encontrava na aldeia quando
estávamos lá, “eles sempre está no mato”, disseram-nos.
Essa posição de liderança de dona Rosinha foi confirmada por informantes
e pelos membros da equipe. Ela é a interlocutora privilegiada de todo visitante.
Quando há um problema na coletividade, ela é quem toma as medidas necessárias
para resolvê-lo. Isso ficou claro quando ela expulsou alguns jovens de outras aldeias
que estavam bebendo cachaça no porto da aldeia, bebida que havia sido vendida por
um regatão que tinha passado por lá poucas horas antes. Outro fato notável é que
ela tem um empregado, que me foi descrito pelos Paumari do Marahã (o professor
e sua esposa) como sendo “escravo” de seu filho. Trata-se de um jovem rapaz,
branco, que mora em sua casa e, em contrapartida, é responsável pela manutenção
desta, e que assiste também seu Manoel e seus filhos nas pescarias, no conserto dos
motores, fazendo pequenos serviços. Isso me parece um fato bastante inusitado no
contexto Paumari tal como o conheci de uns anos para cá e certamente deverá ser
descrito e analisado com mais cuidado.
No que diz respeito às relações econômicas, os habitantes da aldeia Açaí não
fogem à regra regional. Os homens pescam para o consumo familiar e comercializam
os excedentes, coletam produtos naturais para a comercialização, endividam-se com
regatões para obter mercadorias e alimentos industrializados ou semi-industrializados
(farinha de mandioca principalmente). Os rapazes costumam trabalhar um tempo
15 A dificuldade em coletar dados precisos sobre a população do Açaí está ligada à desconfiança manifestada pelos seus habitantes. Nas outras aldeias, beneficiei-me da ajuda de pessoas que eu conhecia
previamente, que me auxiliaram na coleta dos dados e me apresentaram ao restante dos habitantes.
Neste caso, o fato de conhecer o professor e sua esposa, ambos do Marahã, não pareceu fazer nenhuma
diferença para o restante da população e ficou muito claro que não cabiam ali perguntas demasiadamente detalhadas. Considerando que ficaríamos pouco tempo nessa aldeia, preferi não insistir e deixar para
completar os dados demográficos na próxima visita. Resta à saber se a desconfiança manifestada pela
população está ligada à pouca receptividade do projeto ou se é mesmo uma característica mais geral.
218
Álbum Purus
Oiara Bonilla
para um patrão, preferencialmente um dono ou um encarregado de barco de pesca.
Atualmente, dois netos de dona Rosinha estão embarcados em barcos de pesca. O
isolamento da aldeia Açaí e a distância que a separa da cidade de Foz do Tapauá
acentuam a dependência para com os comerciantes.16 Assim, dona Rosinha contounos que ela fabrica continuamente fogões de barro com a ajuda da filha. Vende sua
produção quase que exclusivamente a comerciantes, mas também a comercializa
diretamente na cidade, quando tem de baixar por algum motivo de saúde ou para
receber sua aposentadoria (em Foz do Tapauá e na cidade de Tapauá).
A comunidade da aldeia Açaí tem acordos de pesca com peixeiros.
Atualmente, dona Rosinha afirma não poder participar mais ativamente no projeto
por estar ligada a um acordo comercial de vários anos com um pescador. Este
teria presenteado recentemente a comunidade com um radiotransmissor novo.17
Ao longo de uma conversa informal com a equipe, dona Rosinha fez uma série de
reivindicações em relação a invasores que pescam nos lagos e exploram castanhais
que ficam dentro da terra indígena. Reivindicou também uma parcela de terra que
teria ficado fora dos limites da demarcação atual, onde estariam enterrados todos os
seus filhos que nasceram mortos. Sobre o passado, dona Rosinha conta com mais
facilidade:
Quando eu era pequena aqui tinha muita gente, muita gente
mesmo. Tinha pajé, eles faziam as festas deles aqui, mas também
tinha muita doença, como gripe e sarampo. Eu me lembro das
pessoas doentes, de duas ou três pessoas morrendo todo dia, era
criança, era velho, era rapaz, moça. Não fui presa, não. Minha
mãe me botou dois dias debaixo do mosquiteiro depois que me
formei, só. Porque não tinha mais pajé. O último pajé que teve
aqui era o Eurico, sogro do Evangelista (R., 18/11/09).
Outro fato interessante é que dona Rosinha manifestou grande interesse
pelas cartilhas na língua paumari (cartilhas de alfabetização feitas pela missão
evangélica e usadas na região do Marahã). Quando dissemos que o professor
poderia de fato utilizar as cartilhas para alfabetizar as crianças na escola, ela explicou
que sua intenção era solicitar as cartilhas para seus filhos, pois segundo ela “eles
querem aprender a língua”, desconsiderando completamente a possibilidade de as
16 Ao mesmo tempo, essa distância é também sociológica, trazida para dentro da própria aldeia, do próprio
parentesco, por meio dos casamentos com estrangeiros (brancos ou outros índios).
17 Durante a nossa viagem, esse radiotransmissor era o único em funcionamento em todas as aldeias Paumari da região. Nenhuma das radiofonias da Funasa estava em estado de funcionamento.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
219
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
cartilhas serem usadas na escola. Essa posição de liderança feminina pode dar a
impressão, à primeira vista, de que ela trabalha exclusivamente para o interesse
de sua família restrita (excluindo parentes longínquos e afins reais). Mas o que me
parece importante observar aqui é que a língua está começando a desempenhar um
papel político que ela não desempenhava ainda pouco tempo atrás. Tornando-se
um instrumento de autenticidade étnica, a língua paumari torna-se indispensável
para desempenhar papéis de representatividade ou liderança em contextos políticos
interétnicos ou mesmo internos. Voltaremos sobre essa questão.
Aldeia Xila
A aldeia Xila apresenta algumas similaridades com a aldeia Açaí. Situada na
mesma terra indígena, ela está construída ao longo do rio Cuniuá, em uma fileira
de casas paralela ao curso do rio. A população é constituída pela família extensa
de dona Raimunda e de seu Venâncio, ribeirinho, seus filhos, filhas, genros, noras
e netos. Das 34 pessoas da aldeia, 20 pessoas têm abaixo de 15 anos e apenas três
pessoas têm mais de 50 anos.
A liderança aqui também é oficialmente exercida por uma mulher, dona
Raimunda, apesar de que esse papel parece bem mais compartilhado entre ela e seu
marido do que no caso da aldeia Açaí. A aldeia Xila, constituída por uma mesma
família e seus aliados, se encontra profundamente dividida devido um problema
político interno que opõe justamente seu Venâncio ao seu genro, ou melhor, seu
Venâncio ao genro de dona Raimunda, já que se trata de um homem casado com a
filha mais velha de dona Raimunda e de seu primeiro marido, Altino, que hoje mora
na cidade de Tapauá.
Dona Raimunda é filha de mãe Paumari e de pai branco, morador da beira
do Purus, e foi criada por Procópio, um homem Paumari. O lugar onde está hoje
situada a aldeia do Açaí era uma comunidade ribeirinha. O igarapé “pertencia”
a um regatão que, após o falecimento de sua tia, propôs que Procópio ocupasse
o lugar. Foi assim que este se instalou à proximidade do que é hoje a aldeia Xila.
Dona Raimunda e seu Venâncio vivem na casa mais afastada da aldeia, com seus
seis filhos não casados e com Mariana, mãe de dona Raimunda. Mariana é uma
senhora idosa que precisa de cuidados especiais, pois não pode se locomover nem
se alimentar sozinha.
Ao contrário do que se passa na aldeia Açaí, as conversas no Xila são mais
fluidas mesmo se a questão da divisão interna (entre seu Venâncio e seu genro)
deixava todos visivelmente constrangidos. É necessário, porém, especificar que
as filhas mais velhas de Venâncio e Raimunda são ambas casadas com regatões.
220
Álbum Purus
Oiara Bonilla
As duas são casadas com regatões, dois irmãos que comerciam em todas as áreas
Paumari do Tapauá e Cuniuá.
Este foi o único local onde estivemos em que se ouviu falar de xamanismo
e feitiçaria no presente. Evocou-se a capacidade de se transformar em onça de uma
mulher da aldeia, o que é geralmente uma faculdade exclusiva dos xamãs.18 Por
outro lado, seu Venâncio também é um especialista religioso, exercendo a função de
rezador nessa área, atendendo índios e não índios.
Edvaldo, o genro de seu Venâncio, é um homem de 47 anos, branco,
originário de Coari. Ele trabalhava em um barco de pesca e acabou casando-se
com a filha mais velha de dona Raimunda, com quem teve sete filhos. Edvaldo
reivindica hoje a condição de líder da comunidade, baseando-se em uma afirmação
que o chefe de posto da Funai de Lábrea teria feito há vários anos (ele teria pedido
a Edvaldo para representar a sua aldeia durante uma reunião).
A rixa opõe essencialmente Edvaldo (e de forma indireta e não muito clara
a sua esposa) ao resto da aldeia (i.e., seus sogros e cunhados/as). Berenice, esposa
de Edvaldo, e filha mais velha de dona Raimunda (e de Altino) e é neta de Eurico,
o último pajé da região, já falecido (citado por dona Rosinha). Berenice ainda tem
outros sete irmãos, por parte de seu pai, que se casou com uma mulher não indígena
de Tapauá. Altino também é cunhado de Evangelista (da aldeia Abakavadi), i.e.,
irmão da falecida esposa deste último. Berenice ganhou seus filhos com a ajuda de
uma parteira não indígena, que é sogra de um morador branco que vive em uma
fazenda do outro lado do rio Tapauá, na divisa com a Terra Indígena do Lago Paricá.
Trata-se de uma senhora de uns 70 anos, que é rezadora (e tem fama de feiticeira).
Ela vive atrás do local conhecido como Juriti. Dizem os habitantes da aldeia Xila
que muitos Paumari recorrem a ela quanto têm problemas de saúde ou precisam
de parteira. Dora, filha de seu Evangelista, atual esposa de Valdomir Apurinã, foi
casada com um filho do Carlinhos.
* * *
Dois pontos me parecem importantes aqui em relação aos objetivos de
conservação, proteção e desenvolvimento sustentável almejado pelo Projeto Aldeias.
A primeira questão é a das relações dos Paumari com esses agentes econômicos
“externos” que são, por um lado, os peixeiros (barcos de pesca), e por outro, os
18 Para os Paumari, o xamanismo não é uma atividade exclusivamente masculina, mesmo os casos de xamanismo feminino são raros. Pode ser interessante pensar isso em relação a essas posições de liderança
feminina nessa região. No Marahã, os boatos de feitiçaria feminina sempre provinham do Tapauá.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
221
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
regatões ou patrõezinhos (comerciantes). Esses agentes promovem a predação
do pirarucu e de outras espécies animais, tal qual os quelônios, outros peixes ou
grandes mamíferos (anta, porco ou mesmo peixe-boi). Os Paumari, eternamente
endividados com os patrões comerciantes, passam grande parte de seu tempo
coletando produtos naturais, caçando, pescando e processando esses produtos para
tentar saldar dívidas muitas vezes “insaldáveis”. Assim, boa parte de seu trabalho
é sistematicamente apropriada por estes patrões. É também o caso de produtos de
sua fabricação, tais como canoas, remos, fogões, que acabam sendo requeridos em
troca de parte de suas dívidas.
Mas como vimos ao longo do texto, a relação com os comerciantes não se
limita a um problema de saldo ou de troca de bens por produtos extrativos.19 Essas
relações não se resumem a um problema econômico. Trata-se, na grande maioria
das vezes, de uma relação antiga entre a população de uma aldeia e um provedor
de bens (e por vezes de cuidados) sobre o qual essa população sabe que pode
contar, no sentido de que ele sempre voltará para cobrar suas dívidas, e sempre
com mais mercadorias. A meu ver, isso explica em grande parte as dificuldades de
início sentidas pela equipe do projeto para explicar a própria proposta de manejo
e vigilância. Mas isso também pode explicar a necessidade claramente manifestada
pelos Paumari de se endividar, mesmo que simbolicamente, com seus interlocutores,
pois essa é a melhor forma de garantir sua volta. Quem não se endivida com outrem,
não o vê mais. Quem não avia generosamente, não volta. Cobrar e ser cobrado é,
evidentemente, uma forma de atualização da relação.
Essas relações são consolidadas de geração em geração, por meio de alianças
matrimoniais que unem filhos de uns com filhos de outros, jovens moças Paumari
com rapazes filhos de comerciantes, que passam a comerciar nas áreas com a
grande vantagem (e desvantagem) de serem parentes: cunhados, genros etc. Dessa
forma, os comerciantes não garantem apenas um acesso privilegiado a um mercado,
mas também perpetuam a relação. Assim, os Paumari permitem a reprodução dos
vínculos com esses agentes, assegurando o abastecimento em bens materiais e
alimentos, até as mais longínquas aldeias. Não creio que seja por acaso que as duas
aldeias mais distantes e mais isoladas sejam as mais reticentes em relação a um
projeto de autossustentabilidade que poderia libertá-las da dependência em relação
a comerciantes e peixeiros. Desse modo, é razoável pensar que não é por acaso que
duas mulheres do Xila são casadas com regatões ou que vários habitantes do Açaí
trabalham de forma permanente em barcos de pesca.
O segundo ponto diz respeito a outras relações que ainda têm de ser
contempladas: as que ligam os Paumari a comerciantes nas cidades próximas.
19 Sobre o “dilema paumari”, ver Apoloni e Silveira, neste volume.
222
Álbum Purus
Oiara Bonilla
Quando os Paumari das aldeias vão à cidade, mobilizam essa rede e têm para quem
vender e, portanto, a quem recorrer, pedir, cobrar. Essas relações sejam elas reais (de
casamento, filiação etc.), simbólicas (de compadrio católico, compadrio de fogueira,
germanidade evangélica etc.) ou exclusivamente comerciais, tecem conexões entre
cidades, rios e aldeias sem começo ou fim que dificilmente podem ser desfeitas por
um só lado.
Apesar de a relação não ser exatamente a mesma, o que liga os Paumari
aos peixeiros, donos ou encarregados de barcos de pesca, não é muito diferente.
Os Paumari não precisam se endividar (no sentido clássico do termo), já que os
peixeiros exploram diretamente seus recursos e extraem das áreas indígenas seus
produtos (toneladas de peixe e quelônios). Desse ponto de vista, poderia até ser
mais interessante economicamente (apesar de não sustentável do ponto de vista
ambiental) do que o sistema de aviamento praticado pelos comerciantes, se a
relação comercial fosse honesta e simétrica e, portanto, se os Paumari recebessem
o valor justo do arrendamento de suas águas e do lucro das vendas. Mas mais do
que os bens de consumo propriamente ditos, o que parece crucial para os Paumari é
manter a dinâmica da rede relacional na qual estão inseridos, para deixar em aberto
a possibilidade da experiência extrema do mundo dos brancos.20
Os peixeiros representam a possibilidade de viver plenamente uma vida de
branco durante um tempo limitado: trabalhando, comendo, falando, dormindo,
dançando, bebendo, fumando, pescando, cozinhando, contando histórias e vivendo
experiências de branco e com os brancos. Isso poderia explicar por que o hábito
dos rapazes de se empregar por vários meses em um barco de pesca, ao menos
uma vez na vida, tornou-se uma passagem quase obrigatória antes de se casar.21
Antigamente, o ritual de iniciação masculina garantia que os jovens homens
fossem hábeis caçadores e pescadores de quelônios. Passavam por uma série de
provas destinadas a preparar seus corpos a essas tarefas predatórias, mas também
recebiam ensinamentos xamânicos destinados a aprimorar seu conhecimento da
sobrenatureza. Nota-se também que é durante esse tipo de viagens que os xamãs
capturam e adotam alguns tipos de espíritos-auxiliares.
Sabemos hoje que viver junto, comer a mesma comida e aprender a falar a
mesma língua são formas indissociáveis da concepção da fabricação do parentesco
20 Na aldeia Açaí, uma moça acabava de voltar de Manaus onde havia sido empregada como doméstica por
uma professora enquanto na aldeia Terra Nova assistimos à partida de outra moça que seria empregada
em Foz do Tapauá por um comerciante. Trata-se de uma prática comum em toda a região amazônica,
mas é interessante notar que para os Paumari essa prática é constitutiva da dinâmica sociológica e cosmopolítica (ver também Bonilla, 2005, 2007, sobre o tema da adoção/empregamento).
21 Sobre o empregamento como rito de passagem, ver Bonilla, 2005, 2007.
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
223
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
e da transformação ameríndios.22 É possível pensar que os Paumari temam que
as figuras mediadoras do comerciante e do peixeiro desapareçam, sendo que hoje
parecem indispensáveis à vitalidade social do grupo. Por um lado, porque os vínculos
que os ligam são muitas vezes de parentesco, mas também porque rios, cidades,
mercados são parte plena de sua cosmografia. O cosmos paumari não pára no
limite das áreas, ele abrange as cidades e os portos de Coari, Manacapuru, Manaus,
Lábrea ou Tapauá, e até Brasília.23 Os seres que povoam esse cosmos – brancos,
índios, animais, espíritos alimentares, espíritos auxiliares etc. – circulam, visitam,
desaparecem, reaparecem, assim como podem ser capturados, domesticados,
devorados ou consanguinizados em uma dimensão espacial que não respeita limites,
fiscalizações ou sistemas ecológicos, e talvez essa seja a maior dificuldade tanto para
a compreensão de um projeto (que inclui manejo de certas espécies em espaços
específicos e vigilância de território, conceito que mereceria um trabalho de análise
em si) por parte dos interessados quanto para a aplicação de um projeto que lide
com essa problemática.
Seguindo essa lógica, devemos nos perguntar se para os Paumari a proposta
de substituição dos peixeiros e dos comerciantes não pode estar sendo interpretada
por eles como uma condenação ao insulamento sociológico, uma tentativa de isolálos da possibilidade de conhecimento dos outros que teria como consequência, entre
as coisas já citadas, o rompimento de relações que lhes dão acesso à mobilidade e
portanto ao conhecimento do mundo dos Brancos.24 A questão do manejo como
alternativa à exploração econômica é um argumento que parece fazer sentido para
os Paumari quando se trata de falar em pesca, em venda de produção, em lucros
atingíveis com produção própria, em autonomia etc. Mas sua pertinência acaba
quando ele põe em risco a possibilidade da relação e a inserção nas redes regionais
de intercâmbio mais amplas.
A configuração socioespacial dos Paumari na região do Tapauá-Cuniuá e as
características de cada aldeia me parece, até certo ponto, ser um reflexo dessa ideia. De
fato, constatamos que as aldeias mais próximas às cidades são as que explicitamente
22 Refiro-me aqui a uma ampla discussão da etnologia regional sobre a construção do parentesco por meio
da comensalidade e da proximidade física, e sobre a concepção de transformação como processo de
mudança corporal (Vilaça, 1999; Gow,1991; 1997; Viveiros de Castro, 2002a; 2002b, entre outros).
23 Essa ideia é amplamente desenvolvida para todo o contexto ameríndio por Viveiros de Castro (1999).
24 Parece-me fundamental observar aqui que há um gosto pelo desconhecido e pelo perigo nessas empreitadas feitas pelos rapazes que embarcam com empregados de comerciantes ou de pescadores, ou
pelas moças que aceitam ser levadas para Manaus para trabalhar. Não se trata apenas de submissão ou
necessidade econômica, creio que é importante pensar esse fato também como estratégia de conhecimento e de exploração do desconhecido, o que sempre compreende um grande gosto pela aventura e
pela exposição ao perigo.
224
Álbum Purus
Oiara Bonilla
estão mais abertas às propostas do Projeto Aldeias. Mas quanto mais nos afastamos
da boca do rio Tapauá, mais as aldeias vão se parecendo espacial e demograficamente
a comunidades ribeirinhas. O exemplo claro dessa ideia é a aldeia Açaí que se recusa
a participar do projeto, afirmando sua opção pelos acordos de pesca. Quanto
mais difícil – i.e., menos direta e mais distante (geográfica e sociologicamente) – a
participação na rede de relações, maior a preocupação em manter esses vínculos e
em reproduzir seus esquemas internamente (seja por intermédio do casamento com
estrangeiros, seja por meio da recusa da língua, seja por acordos de pesca para obter
bens que asseguram esse vínculo, e assim por diante). Essa inversão geográfico-social
(quanto mais distante dos brancos/mais sociologicamente “branco”; quanto mais
próximo dos brancos/mais sociologicamente “Paumari”) talvez possa apontar para
uma possível explicação da posição particular ocupada pelas mulheres em posição
de lideranças nas duas aldeias mais afastadas, mas isso é apenas uma suposição sem
grande valor analítico, que precisaria ser melhor descrita e analisada mais adiante.
De certa forma, o interesse dos mais novos pelas técnicas audiovisuais e
pela recuperação da língua paumari também demonstram quanto é importante o
processo de conhecimento e aprendizado. Os jovens Paumari dessa região, por meio
das oficinas de vídeo (organizadas no âmbito do próprio projeto) e da insistência
dos membros da equipe na importância da língua, detectaram que se tratava de
dois meios de conhecimento-chave para lidar com esses novos atores surgidos mais
recentemente na região (ONGs, indigenistas, ecologistas, antropólogos etc.). O
vídeo é uma técnica nova, que precisa ser apropriada rapidamente. A língua, por
sua vez, se era antigamente motivo de vergonha para muitos quando tinham que
se relacionar com comerciantes, ribeirinhos e outros brancos que a consideravam
como “gíria” no melhor dos casos, ou como sons inarticulados na maioria das vezes,
tornou-se em pouco tempo um emblema cultural entre outros, e provavelmente mais
poderoso que os outros. De fato, fica claro que alguns jovens Paumari hoje em dia,
principalmente aqueles que se relacionam mais diretamente com as organizações, as
ONGs e a cidade em geral (principalmente professores indígenas, agentes indígenas
de saúde, lideranças), começam a sentir vergonha de não saber falar a língua. A
língua paumari está se tornando um valor simbólico aos olhos dos brancos (como
símbolo de identidade, de cultura, de “autenticidade indígena”) e, dessa forma, os
próprios Paumari estão redefinindo sua relação com ela.
Assim, parece-me importante frisar que a inserção e a participação
dos Paumari nessa ampla rede regional não se resume apenas a uma questão de
dominação estritamente econômica ou mesmo política, e não quero dizer por isso
que não haja dominação e exploração nesse contexto, muito pelo contrário. O que
procurei mostrar é que se trata, antes de mais nada, de uma cosmologia indígena
Os Paumari dos
rios
Tapauá e Cuniuá
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
viva, em movimento e em transformação, que inclui seus interlocutores como parte
integrante de seu mundo e que não se concebe em nenhum momento como apenas
parte de um mundo de outros (o nosso). Para os Paumari, os peixeiros e os patrões,
antes de serem agentes econômicos ou dominadores de quem quer que seja, são seres
que habitam e atuam em sua sociocosmologia, iguais aos Apurinã, os jaguares, os
pirarucus ou os espíritos-auxiliares dos xamãs. O mundo dos brancos não é apenas
um mundo desejado, como nós gostamos de imaginar, ele é simplesmente mais um
desdobramento do mundo a ser incessantemente explorado e experimentado.
226
Álbum Purus
Oiara Bonilla
Referências
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cosmologia paumari. Mana, 11 (1): p. 41-66, 2005.
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rios
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Álbum Purus
etnologia e
etnografias
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tas. Pegava u
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se transfortia nela e esta
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oas; foi pegand
mava nas pess
E como a
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230
Álbum Purus
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231
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Álbum Purus
Etnologia e etnografias
Organização social Jamamadi, Kulina e Deni no complexo
médio Purus/Juruá
Clayton de Souza Rodrigues
Os grupos Arawá como objeto de investigação
A organização social Arawá tem espaço privilegiado
neste trabalho, pelo fato de ser uma das máximas dos povos
da região. O contato com as obras sobre eles, cada vez mais
indicavam uma necessidade de averiguação desse tema. Há
de fato um emaranhado de informações e ideias sobre suas
unidades sociais.
Organizar e sistematizar as informações disponíveis
me possibilitou, porém, montar um roteiro de observação
acerca dos chamados subgrupos1 Arawá. Este é um pontochave neste capítulo.
A discussão sobre os subgrupos nos povos Arawá
representa um dos principais “mistérios” desse complexo
cultural. Para refletir melhor sobre isto, elegemos três
povos Arawá, cujas pesquisas proporcionam informações
importantes sobre sua organização social.
O objetivo central foi a realização de um balanço
dos trabalhos realizados sobre os Jamamadi, Kulina e Deni,
os quais dispõem de informações valiosas a respeito de
sua organização social, e que por esse motivo tornaram-se
fundamentais à nossa reflexão.
As pesquisas sobre esses três povos forneceram
dados importantíssimos sobre a problemática de discussões
sobre os subgrupos. Por meio desses trabalhos identificou-se
quais subgrupos constituem cada povo, e em certa altura em
1 Autores como Flávio Gordon (2006) e Lúcia Rangel (1994) denominam de subgrupos, as unidades sociais
existentes nos povos Arawá da região do Médio Purus/Juruá. São denominados subgrupos por não corresponderem ao conceito de clãs, como em outros povos. Os subgrupos são como conjuntos de tipos de
gentes, que mais tarde foram reunidos constituindo os povos dessa região.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
que momento da história, inclusive com um fator muito interessante, a associação
destes subgrupos às localizações geográficas ao largo da região.
Os respectivos trabalhos também fornecem algumas reflexões sobre a
relação subgrupo/organização social entre os povos Arawá. Serão apresentados
os autores utilizados para a sistematização das informações sobre aspectos da
organização social de cada um dos três povos.
Para tratar da organização social Arawá procurei base nas discussões
e reflexões de Joanna Overing (1973; 1974; 1979) sobre sua teoria acerca da
organização social nas Guianas, outra paisagem etnográfica brasileira. A escolha
pelas reflexões de Overing foi motivada pelo do trabalho de Flávio Gordon (2006).
Já nesse trabalho o autor foca a importância de buscar “modelos” utilizados para
analisar organização social em povos indígenas amazônicos.
Na década de 1980, a partir da trilha aberta por Maybury-Lewis, Rivière
(1969) e Overing (1975), desenvolveram uma série de estudos sobre algumas
sociedades indígenas da região das Guianas. Esses trabalhos se caracterizaram
como pioneiros. Paralelamente aos estudos no Brasil Central, os trabalhos de
Rivière (1969) e Overing (1975) foram apontando outros materiais etnográficos
contrastantes dos verificados nas sociedades centro-brasileiras e, surgia aí uma nova
paisagem etnográfica, onde a pauta era a aparente “fluidez” e “instabilidade” dos
coletivos guianenses.
Minha pesquisa, por dedicar um capítulo inteiro sobre organização social
dos povos dessa região, se utiliza nesse momento de indicação teórica verificada
em trabalhos anteriores sobre essa mesma região. Pensar o modelo das Guianas a
partir de Rivière (1969) e Overing (1975) como uma forma de olhar mais coerente
para analisar as organizações sociais Arawá parece um ponto de partida válido.
Embora, fosse necessário de fato, buscar um modelo próprio se possível para isso.
Mas as proximidades são em tese visíveis entre as Guianas e o Médio Purus/Juruá,
principalmente pelo fato dos subgrupos. Numa leitura preliminar parece possível
aproximar a ideia dos subgrupos do Médio Purus/Juruá com os grupos domésticos
das Guianas, isso foi observado nos trabalhos de Rangel (1996) e Gordon (2006).
Mas minha preocupação aqui também é pensar a viabilidade metodologia
e teórica para essa possibilidade. Autores como Oiara Bonilla (2005) parecem
tender mais para uma busca de um novo modelo para esta região. Em seminário2
realizado em Manaus no período de 22 a 24 de abril de 2010, Bonilla afirmou ser
mais interessante partir do ponto “zero”, caso seja interesse de uma pesquisa futura
2 Seminário realizado pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai) PPGAS/Ufam, com o apoio
de instituições como: Opan, Visão Mundial, denominado Purus Indígena. Natureza, Cultura, História e
Etnologia.
234
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
minha analisar as unidades sociais Arawá (subgrupos). De acordo com ela, a região
necessita de um esforço epistemológico na busca de novas formas de abordagens
para seus objetos de pesquisa potenciais, estão inseridas aí a organização social e a
cosmologia.
Até o momento me parece coerente utilizar como base teórica o modelo
das Guianas, procurando nos povos do complexo Médio Purus/Juruá as conexões
ou desconexões acerca da organização social desses coletivos indígenas guianenses.
Penso eu que um esforço em comparar ou mesmo tentar utilizar esse modelo nos
Arawá resultaria em uma reflexão que viria a dar suporte para a possibilidade de
sua utilização ou mesmo a necessidade da criação de outra teoria sobre os povos
do Médio Purus/Juruá. Essa deve ser uma das preocupações de quem desejar se
“aventurar” na pesquisa sobre a organização desses povos. Indícios são mostrados
pelos pesquisadores que produziram etnografias sobre povos Arawá de que há uma
possibilidade de relação entre a teoria das Guianas e o que se observa entre os
Arawá, por exemplo. Fica o aceno para uma tentativa de olhar esses povos sob a
ótica das Guianas.
Após apresentar a organização e principais discussões em cada trabalho,
realizei pequenos balanços sobre as principais ideias, concordâncias, discordâncias
e trarei algumas hipóteses sobre o material pesquisado.
Isso será realizado da seguinte forma: apresentar cada povo, com os principais
trabalhos sobre eles, as principais ideias desenvolvidas pelos autores e a importância
de seus trabalhos para os objetivos desta pesquisa. Sendo assim, o primeiro bloco
trata dos povos Arawá, seguido de um segundo, que por sua vez trata dos povos
não Arawá da região.
Os Jamamadi
O principal trabalho sobre este povo é o de Lúcia Rangel (1994).
Exclusivamente sobre os subgrupos, ou melhor, grupos nominados como denomina
a autora, já que é o que interessa a presente pesquisa, Rangel nos possibilita criar
quadros com a relação de grupos nominados identificados nos povos Jamamadi,
Kulina e Deni.
Nessa pesquisa, ao trabalhar a etno-história da região, a autora desenvolve
algumas suposições e hipóteses acerca da divisão desses grupos nominados na
região:
É bastante difícil fazer afirmações a respeito do passado e
identificar o padrão de organização social original desses povos.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
235
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Koop e Lingenfelter presumem que, no passado, as aldeias Deni
eram grande agrupamentos familiares compostos de um núcleo
de agnatos masculinos, suas esposas, filhas, genros e, algumas
vezes, outros parentes (1994, p. 98-99).
Para ela, ainda
Os grupos de denominação são compostos por um conjunto
de pessoas aparentadas, onde as relações de afinidade balizam
os laços mais fortes entre as famílias que os compõem. São
endogâmicos, constituídos por chefias políticas independentes
e realizam, cada um deles, o conjunto global das instituições e
relações sociais. Os vínculos entre os grupos de denominação,
como se verá no último capítulo, pautam-se por dois mecanismos:
o de aproximação, mais relacionado com a contiguidade espacial,
e o de distanciamento, que gera a diferenciação sociocultural
entre eles (RANGEL, p. 98).
Partindo desse pressuposto, o estudo sobre estes grupos (subgrupos), em
Rangel, acaba em refletir numa problemática na realidade social destes povos.
Onde questões como afinidade e consanguinidade estão em volga e necessitam de
esclarecimentos científicos especializados.
Rangel então identifica os seguintes subgrupos Jamamadi: Anopideni,
Aptorideni, Havadeni, Iuaseredeni, Makoideni, Sirorideni, Sivakoedeni, Tamakorideni,
Tanodeni, Zoazoadeni e Zomahimadi:
em relatório apresentado à Funai, em 1978, Eduardo Viveiros de
Castro mostra que os Kulina possuem uma divisão por grupos
com denominativos semelhantes aos Deni e aos Jamamadi. Desse
modo Tsinamá (cotia), Anupi (garça), Mamoré (matrinchã), Poo
(macaxeira), Tanu (japu), Dzumahi (onça) são alguns dos muitos
denominativos dos grupos Kulina (p. 95).
Rangel também informa que existem entre as tais unidades sociais diferenças
linguísticas. Um exemplo é que para os Sivakoedeni, madiha significa “gente”, já
para os Tanodeni, gente é ioasere. Ela suspeita de que num passado essas diferenças
tivessem mais importância, tanto que hoje cartilhas e jornais Kulina circulam sem
dificuldade entre os Jamamadi.
O indício desse compartilhamento de grupos nominados é mostrado pela
autora quando ela explicita-os, como, por exemplo, os madiha dos Kulina, os djapá
236
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
dos Katukina, os paumari dos Paumari e os deni dos Deni e dos Jamamadi, e afirma
haver aí uma “questão nebulosa” para a etnologia.
No trabalho de Rangel sobre os Jamamadi, foi possível observar a existência
de casamento de mulher Jamamadi com homem Kanamari, de mulher Jamamadi
com homem também Jamamadi. Porém:
A descendência se dá em linha paterna (patrilinearidade). Quanto
às alianças matrimoniais, tradicionalmente é dada preferência
aos casamentos com primos cruzados (filhos da irmã do pai
ou filhos do irmão da mãe). Este padrão básico foi conservado
até hoje, mas as exceções a esta regra estão se multiplicando em
algumas comunidades, talvez devido à influência missionária.
[...]
A regra de residência pós-nupcial é morar com a família da
mulher (uxorilocalidade), combinada com a obrigação do genro
de prestar serviços ao sogro. Depois do nascimento do primeiro
filho, existe a possibilidade de optar por uma nova residência.
Há ainda uma regra tradicional segundo a qual o primeiro
filho é criado pela avó materna, enquanto os filhos nascidos
posteriormente são criados pela avó paterna (SCHRÖDER,
2002, op. cit RANGEL, 1994).
E ainda, segundo Schröder, os casamentos entre os Jamamadi na sua maioria
eram estáveis, porém o comportamento sexual que antes era muito liberal passou
a ser alterado com o advento do cristianismo, tornando-se mais conservador em
razão do doutrinamento religioso.
Schröder afirma também que uma das grandes causas da mobilidade
populacional dos Jamamadi esteve relacionada diretamente com a impossibilidade
de controle do arabani (feitiço) que os estavam matando incessantemente, o que
causou uma depopulação considerável e processos migratórios significativos.
Os Kulina
Este é um dos povos Arawá que possui um número considerável de trabalhos,
sendo o principal para esta pesquisa o de Flávio Gordon (2006). Outros autores
que também pesquisaram sobre este povo são: Victor Py-Daniel (2005); Domingos
Silva (1997); Donald Pollock (1985); Eduardo Viveiros de Castro (1978). Por este
motivo, é mais um “caso” a ser apresentado e analisado acerca da organização social
do complexo cultural do médio Purus/Juruá. Algumas destas obras não servirão de
base para nossa discussão.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
237
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Na pesquisa de Gordon (2006), uma das mais recentes sobre os Kulina,
encontramos algumas informações importantes sobre a ocupação da região do
médio Purus/Juruá.
Conforme Gordon, de 1843 a 1847, Castelnau encontrou na boca do rio
Tapauá os índios Sipó. Há 20 dias tinha avistado uma maloca dos índios Purupuru
(antepassados dos Paumari) e subindo o rio foi encontrando mais agrupamentos
Paumari. Já próximo ao Xeruã, afluente do Juruá, Castelnau encontrou os Kulina.
Dessa forma, percebe-se a territorialidade destes grupos no mesmo rio, no
caso o rio Tapauá, afluente da margem esquerda do rio Purus.
Temos neste trecho acima um exemplo de como Gordon organiza os
dados sobre os Arawá dessa região. Um ponto que tem a ver com os “mistérios”
da organização social desses povos é também sua mobilidade, pois em alguns
trabalhos, como estes que analisamos no momento, é possível associar certo grupo
a certa localidade.
Mas o que de mais interessante esse autor traz é a discussão acerca da
nomenclatura a ser utilizada para a organização das unidades sociais dos povos
Arawá.
A preocupação de Gordon é, no entanto, com os tipos de pessoas e não os
tais grupos que parecem se formar, pois a ideia em seu trabalho é a de qualificação
dessas unidades sociais, de que gente se fala e não de um grupo de certas gentes.
Para isso, toma o termo Madiha como ponto de reflexão, termo esse descrito
por Eduardo Viveiros de Castro (1978) e utilizado também no trabalho de Rangel
(1994), como citação nessa discussão sobre a classificação das unidades sociais
Arawá:
Madiha é um conceito Kulina que opera em vários níveis de
contraste. Ele pode significar, conforme o contexto: (a) ‘gente’, os
seres humanos; (b) ‘caboclo’, i. e., índio, em oposição aos Kariá,
‘cariús’, brancos (que se dividem em cariús mesmo, os brasileiros,
e os peruanos); (c) ‘Kulina’, em oposição aos Kaxinawa, Kampa,
Ainahari (Yamamadi e Kanamari), Mastanawa etc.; (d) ‘parente’,
no contexto típico de ‘uka madihá’ – ‘meu parente’, em oposição
a ‘madihá waa’, ‘outra gente’, ‘não-parente’. Entre os níveis (c) e
(d) e mais próximo ao (d), está o uso de madihá como ‘nação’.
‘Nação’ é a palavra portuguesa que os Kulina usam para traduzir
madihá enquanto subcategoria de identidade Kulina, nomeada
a partir de um animal ou planta, e tendencialmente associada a
um local geográfico.
238
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
[...] Por outro lado, os Kulina alfabetizados assinam, após seu
prenome brasileiro, o nome do madihá, acrescido do sufixo deni,
um coletivizador; por exemplo, ‘Agnelo Dzumahideni’, ‘Agnelo
da nação da onça’. Este outro uso do nome madihá sublinha...
a pertinência do indivíduo a um grupo de parentes, a uma
parentela. As pessoas de mesmo madihá são wemwkuté, ‘irmãos
ou parentes’. Afirmam ainda os Kulina que os madihá, hoje
‘misturados’, seriam antigamente endógamos; seriam também
mais nitidamente circunscritos a locais específicos. ... Duas
outras observações Kulina merecem destaque: os Yamamadi
e os Kanamari (suponho que os Kanamari de língua aruaque,
não os Catuquina) também se dividem em madihá; os madihá
Kulina falam dialeto ligeiramente diferentes (VIVEIROS DE
CASTRO, 1978, p.18-19).
Segundo Gordon, Tastevin em sua época de pesquisa informou existirem 12
subgrupos Kulina no rio Gregório:
Tastevin esteve com este segundo grupo de Kulina em 1924,
tendo registrado os seguintes madiha, subgrupos nomeados ou,
nas palavras dos autores, “clãs” (ibid.): os dzuwihi madiha madiha
(‘gente’ macaco-prego), nas cabeceiras do Eiru: os tsinam’a
madinha (‘gente’ cotia), os badu madiha (‘gente’, veado), os kamanui
madinha (‘gente’ paca), os tusipa madiha (‘gente’ pássaro-jacamim),
os dapu madiha (‘gente’jacu), os anubdze madiha (‘gente’ caititu) e
os biru madiha (?); no igarapé Baú, afluente da margem direita
do Juruá: os ete madiha (‘gente’ cachorro), os tukudzu-madiha
(‘gente’ caiman) e os haritsi madiha (‘gente’, batata-doce); no
igarapé São Salvador, tributário do Acurauá (afluente esquerdo
do Tarauacá): os hadu madiha (‘gente’ taboca); no igarapé Cuatá,
afluente da margem direita do Gregório: os hawa madiha (‘gente’
palmeira patauá); no entorno do rio Massapê, afluente direito do
Gregório, há um madiha cujo nome é de origem Pano, os haruminawa (Ibid, p. 74 op. cit. p. 33).
Como demonstrado, o trabalho desse autor traz diversas informações
históricas que nos possibilitam refletir sobre questões dos subgrupos Arawá,
como localidade, ocorrência e compartilhamento deles por vários povos. Como ele
mesmo afirma, a socialidade no Purus está ligada a questões geográficas e sociais e
não linguísticas (p. 29).
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
239
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Quando passa a refletir sobre a sociologia Arawá em seu trabalho, considera
como primeira monografia propriamente dita sobre um povo Arawá a pesquisa de
Koop e Lingenfelter (1983). Gordon conseguiu relatos de Denis mais velhos que
se lembravam de algumas ocupações acima do rio Mamoriá. Segundo estes autores,
havia uma grande recorrência de união de vários grupos domésticos (subgrupos)
formando pequenas e instáveis aldeias, dado o contato com regionais.
Um exemplo de “separação” de subgrupos Deni que Gordon traz em seu
trabalho é o seguinte: tempos atrás varashedeni e os kunivadeni moravam juntos no rio
Xeruã, mas no momento de sua pesquisa isso parecia ter mudado:
Desta forma, os nomes dos povos Arawá conhecidos atualmente
– Deni, Kulina, Jamamadi etc. — não são autodesignações. Eles
são frequentemente dados por outros grupos, e dizem respeito a
uma série de grupos locais anteriormente dispersos e localizados,
grupos estes que, a partir do século XIX, passaram a se misturar
e concentrar em aldeias principais (2006, p. 46).
Segundo Gordon, sobre os Deni, Koop e Lingenfelter afirmam:
os Deni constituem uma tribo unicamente pelo fato de possuírem
uma língua em comum. Os Deni de cada região têm um nome
específico através do qual se identificam; por exemplo, os
Upavadeni são os Deni do rio Upavana (Mamoriá), e os Dimadeni
são os da região onde o rio Mamoriá deságua no Purus. Dois
outros grupos locais são os Kamadeni e os Tamakurideni, que
procedem de regiões contíguas, nas nascentes do Mamoriá [...]. As
epidemias, como o sarampo etc. têm reduzido substancialmente
as populações locais, nos últimos quarenta anos, de modo que os
sobreviventes, frequentemente, têm-se reunido e formado novas
comunidades (1983, p. 1; op. cit. 2006, p. 51).
Após exemplificar uma forma de ocupação Arawá, no caso os Deni, o autor
discorre sobre uma forma de organização mais geral na região, existente no passado.
Segundo ele, os Jamamadi habitavam aldeias compostas por apenas uma grande
maloca, sendo provável que fosse assim também entre os Deni e os Kulina, onde
em cada maloca abrigava-se um único subgrupo.
Nos subgrupos Jamamadi são as relações de afinidade que balizam os laços
mais fortes entre as famílias que os compõem, segundo Rangel. Já entre os Deni
segundo Koop & Lingenfelter, é o contrário, são os grupos familiares que irão
produzir as relações de afinidade. Ainda sobre os Jamamadi diz Gordon:
240
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
Em suma, eles seriam exemplos típicos do modelo guianense dos
grupos locais (cf. Overing, 1975; Rivière, 1984): endogamia mais
autonomia política. [...] Para Rangel, os subgrupos são mesmo
“a base da organização social dos Jamamadi (1994, p. 91 op. cit.
2006, p. 53).
Sobre a possível relação modelo das Guianas e o médio Purus/Juruá exposto
na apresentação deste capítulo, discutirei melhor em nossas considerações finais.
Mas verifiquemos outras colaborações desse autor para o estudo destes
povos. Para ele, os subgrupos Arawá são um paradigma, principalmente sua relação
com a organização social. Para uns, não tem relação (Koop; Lingenfelter)
e para outros, sim (Rangel, p. 61.).
Segundo Domingos da Silva (2003), em seu texto na Enciclopédia dos
Povos Indígenas do Brasil no site do ISA,3 as relações de parentesco, os grupos
de descendência e os mecanismos de reciprocidade interagem como uma rede
de comunicações, onde as várias esferas do social estão relacionadas por um
denominador comum: é o manaco (o sistema de reciprocidade Kulina, também
traduzido como troca) que orienta ou mesmo define as opções matrimoniais e as
alianças políticas.
Viveiros de Castro (1978) também atesta em seu trabalho sobre os Kulina
do Alto Purus que o processo de organização desse povo passou de pequenos
grupos domésticos, geograficamente localizados, para a construção de grandes
aldeias, inclusive com formatos mais parecidos com os regionais, ou seja, no caso
de aldeias com mais de uma fileira de casas.
Em seu trabalho, são observadas também algumas possibilidades de afinidade
entre certos Madiha (subgrupos). Segundo ele, seriam miticamente “Pitsí e Kurubu
amigos”, sugerindo que se casavam entre si e o que de fato acontece. Mas de acordo
com Viveiros de Castro, os Madiha não determinam casamento. Discorre também
que em alguns relatos fala-se de que antigamente os Kulina fossem endogâmicos,
assim como a afirmação de que certos Madiha falam dialetos levemente diferentes,
e que, por sua vez, a cada grupo local correspondia um Madiha.
Sobre as relações de casamento, Silva (2003) afirma:
As relações de parentesco, os grupos de descendência (o sib)
e os mecanismos de reciprocidade interagem como uma rede
de comunicações, de forma que as várias esferas do social
3 Acessar sítio http://pib.socioambiental.org/pt.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
241
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
estão relacionadas por um denominador comum: é o manaco (o
sistema de reciprocidade Kulina, também traduzido como troca)
que orienta, senão define, as opções matrimoniais e as alianças
políticas. [...]
Nos termos desse sistema, todos os homens e mulheres foram
criados pelos heróis mitológicos Tamaco e Quira, inclusive os
brancos, mas somente os Kulina são gente: Madija. Dentre essas
gentes madija, pode-se citar os Madija ssaco (gente da traíra),
Madija ccorobo (gente do peixe jejum), entre outros, totalizando
em torno de 76 tipos conhecidos de Madija, sendo que cada
epônimo caracteriza os membros do grupo de descendência a
ele associados. Os Madija ssaco, por exemplo, são considerados
introspectivos, como acredita-se que seja o comportamento
ssaco. [...]
São os primos cruzados bilaterais os preferidos para o casamento,
normalmente de um sib aliado, ou seja, que não tenha caso de
conflito por motivo de dori (feitiço). Há, inclusive, uma expressão
kulina para os primos cruzados, ohuini, que significa aquele que
é prometido.
A partir das informações de Silva, há talvez uma associação entre subgrupo
(madiha) Kulina e a relação de afinidade/casamento preferencial. Mesmo que não
pareça clara, esta preferência e sua utilização, existem apontes que nos levam a
refletir sobre esta possibilidade.
Tanto em Viveiros de Castro quanto em Silva o processo de reorganização
social Kulina causou ou propiciou um rearranjo das relações matrimoniais, sejam
elas preferenciais ou não. Parece-me que no caso Kulina, até mesmo pelo número
populacional desse povo, ainda é possível observar relações antigas de afinidade
historicamente construídas entre alguns Madiha. O que, por exemplo, entre os
subgrupos Deni ou Jamamadi, de maneira geral, já não seja mais possível.
Passemos então ao último caso Arawá.
Os Deni
Os trabalhos a serem utilizados para a discussão sobre a organização social
dos Deni serão os de Adriana Azevedo (2007); Günter Kroemer (1997) e de Rodrigo
Chaves (2001).
Segundo Kroemer, a denominação Deni aparece pela primeira vez no
relatório do SPI, em 1942. Em 1979, a equipe da Pastoral Indígena de Lábrea
242
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
notificou sete “clãs” entre os Deni do rio Cuniuá. Ainda segundo este autor, talvez
por influência do SIL (Summer Institute of Linguistic) os Deni se autodenominam
Madiha-Deni, e os Jamamadi Bupanava-Deni e os Zuruahá são chamados MakukuDeni pelos próprios Deni.
No trabalho de Kroemer (1997) sobre a identificação dos subgrupos Deni
temos as seguintes ocorrências e suas localizações:
Ano
Instituição
Subgrupos identificados
Localização
1979
Pastoral Indigenista de
Lábrea
Kuniva-Deni, Vasara-Deni, BukureDeni, Hava-Deni, Bupanava-Deni,
Tamakuri-Deni e Katu-Deni
Rio Cuniuá
1985
Equipe Cimi-Acre e
Secretariado Nacional
do Cimi
Savakué-Deni, Tanu-Deni, ZumahiDeni, Anupi-Deni, Zoazoa-Deni, SiruriDeni e Apituri-Deni
Rio Inauini, grupo
Santo Antônio –
Igarapé Kapana
1985
Equipe Cimi-Acre e
Secretariado Nacional
do Cimi
Makui-Deni, Tamakuri-Deni, DimáDeni, Tarazurá-Deni
Rio Teuini
1985
Equipe para
delimitação da Área
Indígena Deni (Funai,
Iteram e Pastoral
Indigenista de Tefé e
Lábrea)
Kuniva-Deni, Varasa-Deni, MakuiDeni, Hava-Deni, Bukuri-Deni e MinuDeni
Rio Xeruã
Organização: Clayton Rodrigues (2010).
Já no trabalho de Rodrigo Chaves, pelo fato de se tratar de um relatório para
identificação da terra indígena Deni, traz dados muito simplificados com relação
aos subgrupos encontrados neste povo, são de acordo com ele 13 (ver no quadro
de subgrupos dos povos Arawá.
Os trabalhos que nos fornecem informações sobre a organização social
do povo Deni demonstram um modelo “ideal” funcional, mas também abre a
possibilidade da manipulação, tendo em vista outros contextos, os quais não
correspondem aos modelos “reais” via de regra.
Por meio destas informações é possível iniciarmos nossa reflexão sobre
estes três povos e lencados como representantes dos povos Arawá no que se refere
à organização social, do ponto de vista prioritário a situação dos subgrupos dentro
de cada cultura.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
243
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Os trabalhos de Rangel (1994) e Gordon (2006) são os que possuem mais
informações que nos possibilitam pensar esta região como um complexo cultural.
Geralmente estes autores não trabalham seus objetos de pesquisa “isolados” dos
povos vizinhos aos povos que eles pesquisam.
Existe um esforço bastante visível por parte destes autores em realizar
mesmo que preliminarmente relações entre os povos deste complexo cultural. A
própria escolha destes três povos, Jamamadi, Kulina e Deni, foi reforçada pelo fato
de os trabalhos sobre eles sempre os relacionarem. De modo que suas proximidades
culturais e sociais são explícitas.
Quando observei o que se diz dos subgrupos nos Jamamadi, por quem
iniciei esta discussão, logo se percebeu que há similaridades entre os Arawá de
maneira mais geral. São várias as hipóteses sobre a questão de suas denominações,
principalmente como resultado do contato com a frente econômica nacional e das
intervenções das missões religiosas que ali atuaram ou ainda atuam.
Como visto no trabalho de Rangel (1994), é inevitável a não associação entre
os Deni e Kulina. Apesar de compartilharem alguns de seus subgrupos, a exemplo:
Havadeni e Tamakurideni recorrentes entre Jamamadi e Deni, Anupideni e Tanudeni
recorrentes entre Jamamadi e Kulina e Hawadeni (Kulina) recorrentes entre Deni e
Jamamadi sucessivamente.
Estes indícios de compartilhamento de unidades sociais no mínimo nos
inspiram confiar, ou mesmo pretender entendê-los como fontes indicativas das
redes sociais existentes naquela região no passado e atualmente.
Tanto Rangel quanto Gordon descrevem em seus trabalhos a relação de
subgrupo/localidade, onde muitos destes subgrupos se referiam a certas localidades,
como rios e igarapés, ou até mesmo localidades dentro de um mesmo rio, assim
como os trabalhos relacionados somente aos Deni.
A primeira possibilidade que nos vem à cabeça é que, de fato, estas
unidades sociais no passado não correspondiam às denominações atuais. Como
afirma Gordon, os Jamamadi representam melhor o modelo guianense de grupos
domésticos localizados e autônomos. Isto também nos abre uma outra questão a
ser refletida: a possibilidade de se pensar um modelo de organização social como o
guianense, desenvolvido por Joanna Overing.
As evidências de que certos subgrupos foram separados e associados como
“povos” distintos, são eminentes nesses trabalhos. Rangel e Gordon levantam
estas possibilidades de, no passado, existirem ao invés de povos indígenas, grupos
domésticos localizados e autônomos do ponto de vista da autodeterminação. Como
diz Gordon, tratar-se-iam de tipos de gentes e não de tipos de grupos. Assim, parece
que essas unidades sociais foram incorporadas a um novo sistema de organização
244
Álbum Purus
Clayton de Souza Rodrigues
social, onde antes existiam grupos domésticos e atualmente existem povos que são
na verdade o resultado da junção de vários desses subgrupos. Além da relação entre
subgrupos e ocupações territoriais culturalmente4 confirmadas, existe também a
questão das diferenças linguísticas dentro de um mesmo povo, principalmente entre
os Kulina, onde a língua varia muito, até mesmo pelo tamanho da população deste
povo. Já no caso Deni pareceu mais fácil reunir os subgrupos que hoje formam este
povo, como foi afirmado neste trabalho por Gordon que os Deni formam um povo
principalmente por possuir uma unidade linguística preponderante.
Imaginando que alguns subgrupos foram separados e hoje formam um
conjunto de subgrupos que resulta num povo, verificou-se isso principalmente entre
os povos Jamamadi, Kulina e Deni, a partir das etnografias analisadas. Podendose estender essa ideia entre outros povos, inclusive, dos Jarawara, Banawá-Yafi e
Zuruwaha.
De um modo geral, os trabalhos sobre os Arawá dão margem para uma
regularidade em termos de organização de unidades sociais. De acordo com minha
pesquisa, somente os Paumari são mais distantes dessas possibilidades de subgrupos,
já que Oiara Bonilla (2007) afirma inúmeras vezes que entre eles não existem essas
unidades, como existem em todos os outros Arawá.
A dinâmica existente nesses povos hoje se insere numa ordem organizacional
contextualizada. As migrações, as fragmentações juntamente com as intervenções
dos agentes externos na região (frentes missionárias, Estado, ONGs) acabaram por
formatar novos cenários sociais. Subgrupos que historicamente não propunham
casamentos, hoje já o fazem, outros que antes ocupavam territórios distintos, hoje
já dividem territórios comuns, não parentes no passado, hoje já são reconhecidos
como parentes, ou seja, houve de fato um processo de descaracterização do esquema
das unidades sociais dessa região. E, hoje, cabe à etnologia investigar quais foram e
quais são esses processos e seus resultados nessas sociedades.
Nenhum dos autores que utilizei em minha análise se propõe a um
entendimento sistemático dessas problemáticas sociais nos Arawá; cabe à nossa
pesquisa oferecer uma sistematização dessas problematizações, buscando apresentálas como fecundos objetos de investigação aos etnólogos interessados em investigálas a fundo.
Os dados que foram encontrados na pesquisa resultaram na organização de
um quadro com todos os subgrupos dos povos Deni, Jamamadi, Kulina e Zuruwaha
que constam os trabalhos analisados. Esse quadro ilustra a diversidade dessas unidades
sociais e pode apontar para um objeto a ser investigado com minúcia e dedicação.
4 Refiro-me aos dados encontrados nas etnografias que situam historicamente as unidades sociais e povos.
Organizaçao social jamamadi, kulina e deni...
245
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Aparentemente pode se tratar de recorrência de subgrupos em povos diferentes. Isso
não quer dizer que de fato se trate disso. Grafias de quatro subgrupos distribuídos
entre Deni, Jamamadi e Kulina são muito próximas, mas que pelo desconhecimento
das línguas desses povos não posso afirmar que se trate dos mesmos subgrupos
em povos distintos. Isso, contudo, demonstra que a complexidade da organização
social desses povos deve ser estudada imediatamente.
No quadro abaixo as linhas em cinza indicam os subgrupos com grafias
muito próximas em povos diferentes.
246
Álbum Purus
Quadro de Subgrupos de povos Arawá
POVOS
SUBGRUPOS
Seruvá Kudé Deni (Xeruã)
Upanavá Deni
Bukuré Deni
Kunivá Deni
Varasá Deni
Minu Deni
Katu Deni
Havá Deni (Deni)/Havadeni (Jamamadi)
Tamakuri Deni (Deni)/
Tamakorideni (Jamamadi)
Mei Vessé Deni
Makui Deni
Zumahé Deni
Putavi Deni
Tsinamádeni
Anupideni (Kulina)/
Anopideni (Jamamadi)
Mamorédeni
Poodeni
Tanudeni (Kulina)/Tanodeni (Jamamadi)
Dzumahideni
Dzuwihideni
Badudeni
Kamanuideni
Tusipadeni
Birudeni
Haritsideni
Hadudeni
Haruminawa (Pano)
Tukudzudeni
Dapudeni
Anubdzdeni
Sivakoédeni (Aldeia Santo Antônio)
Maokoideni
Tarozazadeni
Sirorideni
Aptorideni
Zoazoadeni
Zomahimadi
Masanidawa
Jokihidawa
Sarokwawadawa
Idahindawa
Kurubidawa
Tabusurudawa
Kandanidawa
Suruaha made
Aijanema made
Adamidawa
DENI
X
X
X
X
X
X
X
X
JAMAMADI
X
KULINA
ZURUWAHÁ
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Fontes: Rangel (1994); Gordon (2006); Viveiros de Castro (1978); Suaréz (2009). Organização: Clayton
Rodrigues (2010).
247
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Além de dados acerca do levantamento de tais subgrupos, foi possível
no decorrer de toda a pesquisa identificar que os autores sempre se referiram aos
subgrupos Arawá ou não Arawá como unidades sociais geograficamente localizadas
e denominadas, muitas vezes, a partir do lugar de residência. Esses dados nas
etnografias pesquisadas possibilitaram a confecção de um mapa ilustrativo localizando
os povos e os subgrupos desses povos (Kulina, Deni, Jamamadi e Zuruwaha) nos
rios e igarapés da região, ilustrando por meio de uma cartografia a espacialidade
dessas ocupações. O mapa mostra inclusive de que épocas se tratam as localizações,
já que uma característica dos povos dessa região também é a migração contínua.
Mapa ilustrativo de localização dos subgrupos Arawá nos rios e igarapés
da região do Médio Purus/Juruá
Subgrupos do povo Kulina
Subgrupos do povo Deni
Dados do final dos anos 1900 início dos anos 2000
RIO E IRU
Dzuwihi Madiha
IGARAPÉ BAÚ
Anubdze madiha
Badu madiha
Biru madiha
Dapu madiha
Kamanui madiha
Tsninam’a madiha
Tusipa madiha
248
IGARAPÉ SÃO SALVADOR
Ete Madiha
Haritsi madiha
Tukudzu madiha
IGARAPÉ CUATÁ
Hadu madiha
RIO MASSAPÉ
Hawa madiha
Harumi nawa (pano)
RIO XERUÃ
Bukuré Deni
Havá Deni
Katú Deni
Kunivá Deni
Makui Deni
Manú Deni
Putavi Deni (um representante)
Vanasâ Deni
Zumahé Deni (um representante)
RIO CUNUÁ
Bukuré Deni
Havá Deni
Katú Deni
Kunivá Deni
Mei Vessé Deni
Manú Deni
Tamakari Deni
Uparavá Deni
Varasá Deni
Subgrupos do Povo
Jamamadi
IGARAPÉ CAPANA
Anopideni
Dados de 1994 e 2006
Aptorideni
Sinorideni
IGARAPÉ SANTO ANTÔNIO
Tabadeni
Sivakodeni
Zoazoadeni
Zomahimad
RIO TEUINI (Margem direita)
Havadni
RIO MAMORIÁ
Maokoideni
Abadeni
Tamakorideni
Atokenadeni
Tarozazadeni
Maokoideni
Sapodeni
RIO TEUINI
Tabadeni
Dimadeni
Varadeni
Zomahimad
Zoazoadeni
Álbum Purus
Os subgrupos do Povo Zuruwaha
estão unidos numa mesma aldeia
IGARAPÉ DO PRETÃO (JOKIHI)
(AFLUENTE DO CUNIUÁ)
Adamidawa
Aijanema made
Dowihadawa
Idahindawa
Jokihidawa
Kandanidawa
Kurubidawa
Masanidawa
Sarokyawadawa
Suruaha made
Tabusurudawa
Clayton de Souza Rodrigues
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250
Álbum Purus
Aspectos do parentesco Arawá
Marcelo Pedro Florido
A partir de uma pesquisa de caráter bibliográfico,
propomos discutir aqui dois pontos principais a respeito das
populações arawá localizadas na região do médio curso do
rio Purus e do rio Juruá: a questão das unidades sociais e
alguns aspectos do parentesco. A seleção de casos enfocados
é algo arbitrária, já que partimos de um recorte linguístico,
e algo compulsória, pois somos limitados pelas informações
etnográficas existentes.
Nosso foco principal neste artigo recai sobre os Kulina
e os Deni, que apresentam maior quantidade de informações
disponíveis e que, portanto, serão tomados como fio condutor.
A partir da consideração dos parentescos destes seria possível
traçar paralelos entre os outros sistemas da região, tarefa a que
não chegaremos neste artigo.
As unidades sociais
Inicialmente iremos realizar algumas considerações
de caráter mais sociológico. Tal procedimento visa compreender
quais seriam as unidades de análise possíveis para a região.
A partir desta consideração será possível compreender que
os recortes na região devem ser melhor considerados pelas
futuras pesquisas.
Do ponto de vista linguístico, na região do médio
curso dos rios Purus e Juruá encontram-se representadas
as famílias linguísticas arawá, composta pelas línguas deni,
paumari, jamamadi, jarawara, kulina, zuruahá e banawayafi; família arawak, representada pela língua apurinã e,
katukina, com o katukina, katawixi e kanamari. De um ponto
de vista sociológico, não é possível afirmar que as línguas
correspondam a unidades sociais, isto é, até onde sabemos
251
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
não há uma unidade informada pelo compartilhamento de um mesmo idioma.
Embora alguns casos, como o dos Zuruhá que habitam em apenas uma aldeia,
possam ser tomados como uma unidade, o mesmo não parece ser válido para
aqueles que se distribuem em diferentes comunidades.
Vejamos, por exemplo, o contexto Deni. Segundo Chaves (2000), eles
dividem-se em dois núcleos populacionais: um que o autor chama de Ocidental,
localizado no rio Xeruã, afluente do Juruá, e que é composto atualmente por quatro
aldeias, e outro, com seis aldeias, chamado de Oriental, que está no rio Cuniuá
afluente do Tapauá, que deságua no Purus. Não existem ligações fluviais entre os
dois, o que contribui para a existência de poucas relações e visitas entre os dois
contingentes. Os Deni do Xeruã possuem, inclusive, uma associação indígena da
qual não participam as comunidades do Cuniuá. Não encontramos assim uma
associação entre uma língua e um povo. As poucas informações disponíveis já
apontam para a existência de um descolamento entre o compartilhamento de um
idioma e a mobilização social, isto é, uma diferença entre aqueles que formariam
uma comunidade de falantes e os que se integram em unidades compostas por mais
de uma aldeia.
As fontes históricas fornecem indicativos de que em meados do século 19
existiria uma rede de trocas que não se limitava às fronteiras linguísticas. O explorador
Silva Coutinho em seu relatório de 1862, ao se referir aos trabalhos realizados pelos
Katawixi (1862, p. 73) afirma: “As mulheres primão na fabricação das panellas e
igaçabas, e, ajudadas pelos homens, preparão a tinta do carajurú, que dão em troca
dos instrumentos da pesca aos Pammarys, e de enfeites de pennas aos Hypurinás”.
Esse relato aponta a existência de um intercâmbio entre as populações Katawixi,
Paumari e Apurinã, falantes de línguas de diferentes famílias linguísticas.1
Os diferentes pesquisadores, indigenistas, missionários, etc. que nos últimos
trinta anos escreveram sobre as populações da região, não fornecem informações
sobre essas relações intercomunitárias. Podemos supor que a expansão da frente
extrativista da borracha ao longo do século 19 e início do 20 tenha levado a
desestabilização dessa rede de comércio, porém, se considerarmos os dados
demográficos de 2009 do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena
(Siasi) disponíveis no site da Fundação Nacional de Saúde (Funasa),2 veremos
que ainda subsiste uma rede de relações intercomunitárias que ultrapassa os limites
do idioma.
1 As primeiras classificações das línguas da região, baseadas, em grande medida, nas listas de vocabulário
coletadas pelos primeiros viajantes da região, consideravam que as línguas atualmente classificadas na
família linguística arawá fossem aparentadas das arawak. Rodrigues (1994[1986]) argumenta que isso se
devia à falta de bons estudos, suas semelhanças devendo-se aos empréstimos linguísticos. Discussões
sobre as classificações das línguas arawá e arawak podem ser vistas em Gordon (2006) e Florido (2008).
2 http://www.funasa.gov.br/internet/desai/sistemaSiasiDemografiaIndigena.asp (1.0/5/2010).
252
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
Os dados demográficos apontam a existência de uma série de casamentos
entre pessoas falantes de diferentes línguas. Há alguns Deni casados em aldeias nas
quais predominam outras populações: os Apurinã, Paumari, Kulina ou Kanamari;
alguns Kulina em aldeias de predomínio Deni e Kanamari; Paumari em aldeias
Apurinã; Jamamadi em Jarawara etc. Infelizmente, a bibliografia sobre a região
não aborda a questão dessas alianças, nem das visitações e interações que elas
acarretam ou das quais são consequências. Temos, contudo, uma clara indicação de
as interações presentes no século 19 ainda se mantêm até os dias atuais.
Adriana Huber Azevedo (2007), em sua monografia sobre os Deni, aborda
de forma tangencial esta problemática, discorrendo sobre o movimento indígena e
a Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus (Opimp), organização fundada
em 1995 que tinha por “objetivo principal fortalecer a luta dos povos indígenas [...]
pelos seus direitos constitucionais, e contribuir com a reafirmação de sua identidade
étnica”. (2007, p. 71). A autora afirma que, no contexto das reuniões, os Deni se
referem aos Apurinã como parentes, mas que isto não se verifica no cotidiano da
aldeia. Vemos que há a possibilidade de o parentesco ser considerado para além das
fronteiras da língua, porém não sabemos qual o seu sentido. Se pensarmos que entre
as populações indígenas do Purus as generalizações de Viveiros de Castro (1993,
1996, 2002) são aplicáveis, este uso do parentesco poderia estar relacionado com a
afirmação de um tipo de relação, estabelecida no contexto do movimento indígena,
que seria diferenciada do fundo virtual de afinidade, isto é, considerar como parente
aqueles com quem se constrói uma relação de não inimizade.
Um último ponto que poderíamos abordar em meio a estas breves
considerações sociológicas diz respeito aos grupos nomeados. A literatura disponível
sobre as populações da região aponta que as pessoas se dividiriam em espécies
de grupos (às vezes chamados de subgrupos), cuja denominação seria formada a
partir de um termo, comumente nome de planta ou animal, acrescido de um sufixo
polissêmico, que agiria como um coletivizador e teria dentre seus significados o
de gente. A sua existência é reportada para a quase totalidade das populações da
família arawá, estando presente entre os Deni (sufixo – deni Chaves 2000), os
Zuruahá (– dawa Kroemer, 1994), os Jamamadi (– dení Rangel, 1994) e os
Kulina (– madihá Lorrain, 1994). Estes últimos apresentam um volume maior
de descrições a respeito dessas unidades, que estariam associadas com práticas
endogâmicas no passado (Viveiros de Castro, 1978, Pollock 1985,
Lorrain, 1994). Bonilla (2005) afirma, por outro lado, que não há nenhum traço
da sua presença entre os Paumari, exceto no plano cosmológico, já que os animais
seriam divididos de uma forma semelhante. A ausência desse tipo de divisão entre
os Paumari poderia indicar que essa é uma característica da área do Médio Purus
Aspectos do parentesco Arawá
253
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
e não da família linguística, pois seria possível encontrar algo semelhante entre os
Kanamari (Reesink, 1993) e os Apurinã (Facundes, 2000).
As informações existentes não permitem entender melhor a questão desses
subgrupos. Embora pareça corresponder a uma forma nativa de dividir a realidade
social, não fica claro quais são as formas envolvidas nessa divisão. Gordon (2006), a
partir de uma interpretação da bibliografia existente, argumenta que essas unidades
não seriam grupos propriamente ditos, mas apontariam para uma multiplicidade
intensiva, que somente em alguns casos seria atualizada na forma de grupos instáveis.
Haveria, na interpretação deste autor, como que um fundo de socialidade que só
ocasionalmente seria atualizado, pelo estabelecimento de cortes no continuum. Não se
trata de um mecanismo relacionado com a morfologia social, mas um mecanismo de
extrair e exteriorizar diferenças internas e infinitas, transformando-as em diferenças
externas e finitas e, portanto, instrumentalizáveis.
Mesmo que concordemos que os subgrupos não parecem corresponder a
grupos ao modo estrutural-funcionalista, acreditamos ser necessária a realização de
uma investigação aprofundada sobre o tema. Se este modo de classificar o universo
dos humanos é, como indica o caso Paumari, extensível ao recorte de todo o
cosmos, ele estaria relacionado a uma forma nativa de conceitualizar coletivos cuja
natureza ainda não foi compreendida. Se não formam unidades sociocentradas, isto
é, se não são grupos dessas sociedades, fica a questão de se entender a identificação
de cada pessoa a uma dessas identidades, já que se comparadas diferentes fontes
de informações, elas apresentam variações em seu número e nas denominações
encontradas.
Como mostramos ao longo desta seção, a região do Médio Purus e Juruá
apresenta uma configuração social ainda por ser entendida. Tanto as relações interquanto intragrupais, ainda não foram suficientemente investigadas. Passaremos
então a tecer algumas considerações sobre alguns aspectos do parentesco dos povos
da região. Não iremos utilizar os diferentes autores de forma complementar, isto
é, não vamos considerar que a partir de uma identidade linguística entre as aldeias
em que estiveram, seus dados digam respeito a uma mesma população concreta.
Focaremos a análise em apenas alguns dos autores disponíveis, os que apresentam
mais informações.
O parentesco no Médio Purus e Juruá
Segundo as informações fornecidas por diferentes autores, podemos
considerar que os sistemas de parentesco das populações da região do Purus e Juruá
são variantes do paradigma dravidiano. Suas configurações parecem se adequar ao
254
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
modelo de dravidiano concêntrico, que Eduardo Viveiros de Castro (1993) afirma
estar na base dos sistemas de parentesco amazônicos.
De maneira geral as populações da área, embora não tenhamos informações
a respeito de todas, apresentam as seguintes características em seus sistemas de
parentescos: terminologia de parentesco dravidiana; influência da distância sobre
a lógica classificatória; regra de casamento de primos cruzados; regime de troca
multibilateral e o englobamento da afinidade pela consanguinidade no plano local e
o englobamento da consanguinidade pela afinidade no global, isto é, o predomínio
da consanguinidade em nível local e da afinidade em nível global.
Os Deni, Kulina, Paumari e Jarawara3 apresentam terminologias de
parentesco de tipo dravidiano, ou seja, possuem classificações de parentesco com
fusão bifurcada isogeracional e cálculo de cruzamento dravidiano. Suas configurações
possuem, porém, algumas especificidades que as distinguem do paradigma dravidiano
clássico definido por Dumont (1975 [1953]). Antes de tratarmos das terminologias
específicas, vamos apresentar as características gerais que elas apresentam.
O termo fusão bifurcada, que foi definido por Lowie (1928) em sua tipologia
dos sistemas de parentesco, indica que há fusão dos parentes lineares e colaterais de
mesmo sexo em G+14 e diferenciação dos colaterais de sexo oposto. Isto quer dizer
que apresentam as seguintes equações terminológicas:
F = FB ≠ MB
M = MZ ≠ FZ
Estas equivalências mostram que os pais de Ego são considerados da mesma
forma que seus irmãos de mesmo sexo, assim o pai e o seu irmão, a mãe e a sua irmã
são considerados como um mesmo tipo de parente, ou seja, possuem uma mesma
relação.
Além destas feições em G+1, encontramos também algumas equações
características das terminologias dravidianas em G0. As classificações para primos
3 Informações sobre o parentesco Jarawara podem ser obtidos na tese de Maizza (2009), sobre o Paumari
no artigo de Odmark & Landin (1985) e na tese de Bonilla (2007).
4 Adotamos ao longo deste texto a notação convencionada por Viveiros de Castro (1993). Tomando como
ponto uma dada pessoa, EGO, G+1 indica seus parentes da primeira geração ascendente, G+2 a da
segunda, G-1 indica a primeira geração descendente, G-2 a segunda, G0 indica a geração de Ego. Nas
notações das posições de parentes, F = pai, M = mãe, B = irmão, Z = irmã, S = filho, D = filha, Ch = filhos
sem distinção de sexo. Termos compostos devem ser lidos da direita para a esquerda, assim FB = irmão
do pai, MBCh = filhos do irmão da mãe etc.
Aspectos do parentesco Arawá
255
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
cruzados e paralelos apresentam equivalências relacionadas com as encontradas em
G+1. Temos, assim, uma lógica classificatória que apresenta as seguintes equações:
FCh = FBCh ≠ MBCh
MCh = MZCh ≠ FZCh
Isto indica que os filhos de irmãos de mesmo sexo que os pais de Ego,
isto é, os primos paralelos, são considerados da mesma forma que os irmãos, já
os filhos de irmãos de sexo oposto aos dos pais, isto é, os primos cruzados, são
distinguidos. Essa bipartição dos parentes entre primos paralelos e primos cruzados
não é exclusiva dos sistemas dravidianos, sendo compartilhada pelos iroqueses. A
diferença se encontra no cálculo de cruzamento para as pessoas mais afastadas,
como os primos de segundo grau.
A lógica do cálculo classificatório pode ser resumida como na tabela abaixo5
que mostra, a partir de dois irmãos em G+2 como serão classificados os primos de
segundo grau em G0 de acordo com as relações de mesmo sexo ou sexo oposto
envolvidas na relação.
Cálculo de Cruzamento dravidiano
G+2
=
=
≠
≠
G+1
=
≠
=
≠
G0
//
X
X
//
Se atentarmos para as últimas colunas vemos que o cruzamento no regime
dravidiano possui um sentido matrimonial. Dois irmãos de sexo oposto em G+2
produzem filhos que se forem de mesmo sexo terão descendentes cruzados entre
si, mas se forem de sexo oposto terão descendentes paralelos. Podemos considerar
que isso indica que os primos cruzados, se forem de sexo diferente, podem casar,
ou seja, podem gerar as mesmas pessoas que, portanto, são paralelas entre si. Disto
5 Os símbolos = e ≠ significam identidade e diferença sexual, isto é, o sexo relativo de dois germanos em
G+2 e de seus filhos em G+1. A última linha da tabela indica o “status” de cruzado ou paralelo dos primos
de segundo grau. A primeira coluna da tabela indicaria então que dois irmãos de mesmo sexo, cujos filhos
são de mesmo sexo, resultam em primos de segundo grau que são considerados paralelos.
256
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
resulta, portanto, que podemos considerar que os parentes são bipartidos nas
categorias de afins e consanguíneos, os primeiros sendo os cruzados e os últimos
os paralelos.
Para Dumont (1975 [1953]), as terminologias dravidianas seriam a expressão
da regra de casamento de primos cruzados. Tal formulação pode dar a impressão
de uma determinação da terminologia pela regra, porém, entre elas há uma relação
complexa que não poderá aqui ser discutida a fundo. Indicamos, porém, que segundo
as informações disponíveis, esta regra de casamento estaria presente nas populações
aqui evocadas e que possuem sistemas de parentesco variantes do dravidiano.
Essas características que viemos expondo até o momento corresponderiam
ao modelo dravidiano definido por Dumont para o contexto sul-indiano, os casos
de que tratamos aqui, contudo, não correspondem perfeitamente a ele. Algumas
especificidades estão presentes e fogem deste padrão, mas, como veremos,
excetuando-se a influência concêntrica dos sistemas amazônicos, isto é, as
interferências das distâncias genealógicas e/ou sociopolíticas, a lógica subjacente se
mantém.
Deni
Possuímos informações sobre o parentesco Deni em Koop; Lingenfelter
(1980), cujos dados referem-se à aldeia do Marrecão na região do Cuniuá, em
Chaves (2000), que percorreu diversas aldeias durante o processo de demarcação.
Sua terminologia de parentesco é fornecida pelos primeiros.
Aspectos do parentesco Arawá
257
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Terminologia Deni - Koop & Lingenfelter
G+2
G+1
G0
G-1
FF, MF
FM, MM
atuvi
atizu
F
F, FB
M
M, MZ
MB, WF, HF
FZ, WM, HM
ime’i
abi
ime’eni
ami
hedi, kuku (voc)
mashudini, ashu (voc)
eB, FBSe, MZSe
azu
eZ, MZDe
adi
yB, FBSy, MZSy
khabu
yZ, FBDy, MZDy
karipeni
♂FZS, ♂MBS
vabumi
♂FZD, ♂MBD, ♀FZS, ♀MBS
avini
♀FZD, ♀MBD
karadi
H
W
makhi
panadi
S
D
bedi
bedini
S, ♀ZS, ♂BS
da’u
D, ♀ZD, ♂BD
tu
♀BS, ♂ZS
hirubadi
♀BD, ♂ZD
hirumadini
SS, SD, DS, DD
hinudini
G-2
Notamos que, diferentemente do que afirmamos anteriormente como
padrão, ao invés de existirem apenas dois termos de parentesco por geração
(deixando-se de lado as diferenças de sexo), que indicaria uma identidade imediata
de parentes paralelos e consanguíneos e de parentes cruzados e afins, existem
258
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
formas de separar os consanguíneos lineares dos colaterais, os parentes cruzados e
os afins efetivos. Vejamos isso mais detalhadamente.
A forma de diferenciar parentes lineares e colaterais (F ≠ FB) coexiste com
uma equação que identifica essas pessoas. Como chama a atenção Silva (1995),
essas características são decorrência da feição concêntrica dos sistemas amazônicos,
no qual se encontram distinções terminológicas de natureza concêntrica. Viveiros
de Castro (1996) argumenta que nesses sistemas não ocorre apenas uma distinção
simples entre parentes parelelos e cruzados, consanguíneos e afins, mas um
gradiente de separação social, em que a referência genealógicas é não trivial. O
caso Deni, bem quanto o Kulina, que será abaixo considerado, não diferente do
que apresenta esse mesmo autor quando afirma que nos sistemas amazônicos, a
diferenciação terminológica e/ou normativa entre parentes
‘próximos’ ou ‘verdadeiros’ e parentes ‘distantes’ ou ‘classificatórios’ [...] manifesta a presença de um componente
genealógico e/ou socioespacial a interferir estruturalmente
na sintaxe binária do paradigma dravidiano (Viveiros de
Castro, 2002, p. 121).
A terminologia Deni apresenta também termos específicos para os
cônjuges, marcando uma diferença entre estes e os primos cruzados, que seriam
os cônjuges em potencial. Tal característica pode ser explicada pelo predomínio da
consanguinidade sobre a afinidade no plano local, o estabelecimento desta diferença
para marcar a relação conjugal corresponderia à marcação de uma relação efetivada
que retira os envolvidos de uma relação anterior, a de afinidade, potencialmente
perigosa, podendo ser entendida como indicando uma consanguinização. Como
argumenta Viveiros de Castro (2002), a afinidade é uma relação posta para fora do
cotidiano, pois ela carrega consigo perigos, sendo o inimigo o protótipo da relação,
oposto aos parentes, logo ao se estabelecer uma união matrimonial, ao se aproximar
de um afim, ele seria tornado diferente dos outros o perigo inerente da relação
sendo afastado e marcado.
De qualquer maneira, Viveiros de Castro (1996) afirma que não é a presença
ou ausência de termos de afinidade efetiva, mas o desrespeito à separação paralelo/
afim relevante para essas terminologias. Como afirma Koop e Lingenfelter (1980),
existe entre os Deni a regra de casamentos de primos cruzados bilaterais, existindo
também a preferência pela troca de irmãs. O casamento, contudo, só se efetiva entre
pessoas distantes, o que seria condizente tanto com a equivalência entre cruzados e
afins quanto com a manutenção da consanguinidade no plano local.
A interferência da distância sobre a grade terminológica pode ser percebida
também na terminologia vocativa, na qual aparecem algumas equações oblíquas.
Os irmãos mais novos são classificados como filhos. Os parentes afins da geração
Aspectos do parentesco Arawá
259
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
acima de Ego são chamados da mesma forma que os da geração abaixo quando são
mais jovens que ele, sendo o inverso também encontrado, afins mais velhos de G
-1 são chamados pelos mesmos termos que os afins de G +1. Isto pode ocorrer em
função dos cuidados: aqueles que cuidaram de Ego ou do seu cônjuge, ou foram
por eles cuidados. Não existem, porém, informações a esse respeito.
Uma última característica relevante sobre o parentesco Deni diz respeito à
distorção da contagem de parentes. Segundo Koop & Lingenfelter (1980), a aplicação
dos termos de parentesco é diferente se considerarmos os colaterais paternos e
maternos, sendo contados mais parentes pelo lado paterno que pelo materno.
Traçando a relação pelos homens, seriam considerados como consanguíneo os
“irmãos” de um homem até o terceiro grau de colateralidade e os “irmãos” do pai
até o terceiro grau de colateralidade (FFFBSS). Os filhos destes (FFFBSSS), que
seriam teoricamente consanguíneos de quarto grau de colateralidade em relação
a Ego são, entretanto, classificados como afins de G+1, podendo então ocorrer o
casamento entre Ego e a filha do seu “irmão” de quarto grau genealógico, ou entre
seus filhos. Embora esse distanciamento seja contado genealogicamente, ele está,
segundo os autores, subordinado a propósitos sociológicos.
Do lado materno, a contagem dos parentes como consanguíneos abarcaria,
na geração de Ego, os primos paralelos de primeiro grau e os meio-irmãos maternos.
Para parentes “quase-agnáticos”, como os filhos de FMZS e FMBS, a classificação
em consanguíneos ou afins não se relaciona com a regra básica dravidiana6 e sim,
com a proximidade ou distância social. Vemos então que a utilização dos termos de
parentesco está subordinada ao cálculo sociológico da distância entre os parentes,
sendo que há uma tendência a maior proximidade socioespacial-política com os
patrilaterais.
Essa distorção agnática na contagem do parentesco poderia ser tida como
relacionada com a formação de aglomerados de casas aparentadas por linha
masculina, surgidos a partir do estabelecimento de grupos de irmãos em residências
próximas umas das outras. Koop & Ligenfelter (1980) afirmam que esses conjuntos
podem ser considerados como unidades que trocam mulheres. A sua formação
seria, consequentemente, condicionada ao não casamento dos seus membros, que
estabeleceriam laços de afinidade com os outros aglomerados, isto é, o grupo de
casas manteria entre si uma relação de consanguinidade próxima. Embora essas
parentelas sejam formadas por laços agnáticos, as informações não permitem
afirmar se os casamentos ocorrem mais de um lado do que de outro.
6
Pelo cálculo de cruzamento dravidiano, tal como mostrado por Lounsbury (1968 [1964]), o primeiro
seria necessariamente um consanguíneo e o segundo um afim terminológico.
260
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
Kulina
Informações sobre o parentesco de agrupamentos falantes da língua Kulina
estão presentes em Townsend & Adams (1973), Viveiros de Castro (1978), Lorrain
(1994) e Pollock (1985). Os dados de Viveiros de Castro foram obtidos em quatro
aldeias localizadas no Purus: Capitão Chico, Tavaré, Santo Amaro e principalmente
Maronaua. Esta última foi também onde Pollock realizou sua pesquisa. Lorrain, por
sua vez, realizou sua pesquisa entre os Kulina de Terra Nova.
Tal qual os Deni, esses autores afirmam que as comunidades Kulina possuem
regra de casamento com a prima cruzada bilateral.7 Lorrain (1994) afirma, contudo,
que diferente dos Deni, entre os Kulina existiria a preferência pelo casamento entre
parentes próximos,8 favorecendo a proximidade espacial e a repetição das alianças
com o mesmo agrupamento, a mesma aldeia e frequentemente as mesmas casas.
Segundo essa autora, esse costume seria aquilo comumente encontrado, mas não
existiria uma regra explícita de casamento endogâmico,9 uma prescrição para marry
close tal como existe entre os Piaroa (Overing Kaplan, 1975).
A proximidade, segundo Lorrain (1994), seria mantida, porque os irmãos de
sexo oposto podem casar com dois irmãos, isto é, pode ocorrer o casamento de dois
grupos de irmãos, que então combinam o casamento de seus filhos, perpetuando
assim a proximidade entre eles. Tal argumento, contudo, contradiz a afirmação de
Townsend e Adams de que “[t]he frequency of trial marriages of short duration
between first cousins suggests that parents tend to arrange such marriages with
little enduring success” (Townsend; Adams 1973, p. 3). Se há um esforço para
manter os casamentos entre parentes próximos, a distância é manejada para além
de um limite mínimo,10 já que os casamentos entre parentes muito próximos não
seriam permanentes.
Apesar de essas afirmações a respeito de uma proximidade dos casamentos,
Lorrain (1994) aponta que a maioria dos matrimônios ocorre efetivamente entre
primos cruzados classificatórios: se são apenas classificatórios a proximidade entre
eles deve ser mais sociológica ou geográfica do que genealógica. Pollock (1985)
7 De acordo com Lorrain (1994), os casamentos oblíquos de tipo amital (FZ-BS) e avuncular (MB-ZD) são
tolerados.
8 A autora não especifica se essa proximidade é genealógica, social ou geográfica.
9 Pollock (1985) aponta que existe a preferência pela endogamia de madiha, que ele acredita que eles
são subgrupos Kulina.
10 Lembramos aqui que o casamento com a prima cruzada é uma formulação baseada no limite. A prima
cruzada é o limite mínimo dos parentes cruzados, não sendo o protótipo da classe ou algo do gênero.
Acreditamos que esta formulação esteja condicionada ao nosso modo de compreender o parentesco,
baseado quase que exclusivamente em laços genealógicos, tipos em nosso campo conceitual como biológicos, logo naturais e verdadeiros para além e aquém das considerações culturais.
Aspectos do parentesco Arawá
261
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
afirma que observou poucos casamentos com (para Ego ♂) MBD e FZD reais, mas
em nenhum dos casos essas posições genealógicas coincidiam. Townsend e Adams
(1973) argumentam que dos 36 casamentos que existiam em San Bernardo, apenas
dois eram com primos cruzados genealógicos; entretanto, eles afirmam que muitos
casamentos desse tipo ocorrem, mas são logo desfeitos para o estabelecimento de
outras uniões.
Provavelmente os casamentos se configuram de forma a perpetuar as
relações entre os agrupamentos populacionais que se formam a partir da cisão das
aldeias. A realização desses casamentos estaria colaborando para a manutenção de
uma relação de parentesco entre aqueles parentes que são afastados com a cisão,
impedindo que a afinidade, isto é, a relação potencialmente conflituosa surja,
operando no sentido de manter a consanguinização impedindo o surgimento de
conflitos ou da guerra. Essas alianças agiriam no sentido de promover a manutenção
de laços de parentesco intercomunitários existentes anteriormente à cisão.
Existem quatro versões da terminologia de parentesco disponíveis: a de
Townsend e Adams11 (1973), a de Viveiros de Castro (1978), que foi coletada em 1978
junto às aldeias do Purus, a de Pollock (1985) obtida na aldeia Maronaua e a de Lorrain
(1994) que foi conseguida nos anos 199012 na região do Juruá. Existem pequenas
diferenças entre as quatro, porém todas se mostram condizentes com o paradigma
dravidiano. Vamos considerar aqui aquelas fornecidas por Viveiros de Castro (1978) e
Lorrain (1994), já que as outras duas não se afastam significativamente delas.
11 Adams foi do SIL, tendo encontros com os Kulina por vinte e cinco anos, infelizmente a sua etnografia
deixa grandes lacunas. Sua terminologia de parentesco, no que difere da de Viveiros de Castro, parece apresentar um erro. No texto, ela parece deduzir mais do que observar a terminologia. Isso já foi
apontado por Pollock (1985); ela afirma, por exemplo, que ohuaha do termo abi ohuaha (FB) quer dizer
irmão, então afirma que ele seria usado para irmão (B = ohuaha). Como veremos esse termo ohuaha (na
grafia deles) é um marcador de distância.
12 Lorrain não faz menção explicita, seja ao período em que realizou trabalho de campo, ou aos lugares
visitados. A indicação de que seus dados são de Terra Nova se baseia nos seus agradecimentos, onde
menciona os Kulina de Terra Nova que a teriam acolhido.
262
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
Terminologias Kulina:
Viveiros de Castro (1978)13
G+2
FF, MF
FM, MM
idê
ini
Lorrain (1994)
FF, MF
FM, MM
MMB, FMB
FFZ, MFZ
idi
ini
ohuini (jadahui)14♀
huabo ♂
ohuini (jadani) ♂
caradini ♀
G +1
F
FB
M
MZ
MB
FZ
G0
eB, FBSe, MZSe
eZ, FBZe, MZDe
yB, FBSy, MZSy
yZ, FBDy, MZDy
B, Z
FZS, MBS
atu (voc)
átsi (voc)
tatê (voc)
mátsi (voc)
ukuté
♂ wabô
eB, FBSe, MZSe
eZ, FBZe, MZDe
yB, FBSy, MZSy
yZ, FBDy, MZDy
B, Z
FZS, MBS
ato
asi
tati
massi
ocote
♂ huabo
♂FZD, ♂MBD,
♀FZS, ♀MBS,
H16, W
FZD, MBD
owini
♂FZD, ♂MBD,
♀FZS, ♀MBS
ohuini
♀ karadé
FZD, MBD
♀ caradini
S, D
uhakamá
♀ZS, ♂BS
♀ZD, ♂BD
♀BS, ♂ZS
uhakamá waa
uhakamá onihi
ohidubadê
♀BD, ♂ZD
ohinumadini
S
D
♀ZS, ♂BS
♀ZD, ♂BD
♀BS, ♂ZS
♀BS, ♂ZS
♀BD, ♂ZD
♀BD, ♂ZD
neppe
jata
neppe ohuaha
jata onihi
ojidobadi
tati
ojinomadini
massi
SS, SD, DS, DD
ohinudini
SS, SD, DS, DD
ojinodini
♂ZSD, ♂ZDD,
♀BSS, ♀BDS
ohuini (dsati)
♂ZSS, ♂ZDS,
♀BSD, ♀BDD
huabo
caradini
G -1
G -2
abi
abi waa15
ami
ami onihi
koko
atsô
F
F
M
MZ
MB
FZ
abi
babi ohuaha
ami
ami onihi
coco
asso
13 Deixando de lado as diferenças nas grafias, essa é a mesma terminologia apresentada por Pollock (1985).
A única exceção é que, nessa última, os termos de referência para parentes paralelos em G-1 estão ausentes, só aparecendo as formas vocativas, nepe no lugar de ehédeni e hata no lugar de ebédeni. Essas
formas vocativas também são mencionadas por Viveiros de Castro.
14 Os sufixos jadani, jadahui indicariam que se trata de alguém mais velho e o dsati que é alguém mais
novo.
15 Viveiros de Castro afirma que waa e onihi significam outros e outra, respectivamente. Assim abi waa
seria literalmente “pai outro” e ami ohini seria “mãe outra”.
16 Viveiros de Castro afirma que esse termo é usado após o casamento e existe também a possibilidade de
usar tecnônimos, porém seu texto é confuso. Ele diz: “O termo owini designa os cônjuges potenciais
Aspectos do parentesco Arawá
263
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Deixando de lado as diferenças nas grafias, as principais variações entre
as duas versões são que Viveiros de Castro apresenta um único termo para os
consanguíneos em G-1, que não leva em conta a diferença de sexo. A versão
de Lorrain, além de apresentar o sexo de Alter como parâmetro relevante, não
apresenta termos para os cônjuges efetivos. A terminologia da autora apresenta
também algumas equações oblíquas, um mesmo termo abarcando posições de
parentesco de diferentes gerações. Eles aglutinam parentes de G0 e G-1, como
mostrado nas equações:
♀BS = ♂ZS = yB = tati
♀BD =♂ZD = yZ = massi
Elas mostram que os irmãos tendem a chamar os filhos de seus irmãos de
sexo oposto da mesma maneira como se referem aos irmãos mais jovens.
A principal diferença encontrada entre as duas versões parece ser que em
Lorrain os termos para afins de sexo oposto de G0 são estendidos para afins de
G+2 e G-2, o que não acontece na terminologia de Viveiros de Castro, na qual
a distinção consanguíneo - afim é neutralizada em G+2 e G-2, tal como ocorre
entre os Deni. Para Lorrain, o uso de termos de afinidade nas gerações distais é o
reflexo do sistema de nominação. O nome é transmitido entre parentes de geração
alternada, assim os nomes dos cônjuges e cunhados de Ego correspondem aos
de seus avós e dos netos de seus afins efetivos. Essa identidade entre as gerações
alternas é reforçada pelo tabu em se referir aos afins de sexo oposto pelo termo
de parentesco ohuini. Esse termo possui conotação sexual e nunca é usado ao se
referir a uma pessoa; nessa ocasião emprega-se o nome pessoal que, pela regra de
transmissão, é compartilhado com aquele que a nomeou (G+2) e que por ela foi
nomeado (G-2).
A regra de casamento de primos cruzados levaria a identidade genealógica de
certas posições de parentesco em G+2. Em decorrência das uniões anteriores, que
corresponderiam ao casamento de primos genealógicos, teríamos que FMB=MF,
FFZ=MM, MMB=FF e MFZ=FM, mas, como já afirmamos, a ocorrência de
uniões de pessoas com essa ligação genealógica é rara. Mesmo que haja identidade
16 de Ego, que, entre outras especificações, inclui seus primos cruzados. Este termo é usado mesmo após
o casamento dos assim relacionados. Os cônjuges efetivos dos outros são referidos também por tecnônimos, como “X bedi imeni”, “a mãe dos filhos de X”, forma essa que também é usada para o cônjuge
de Ego” (Viveiros de Castro 1978, p. 74). Townsend e Adams (1973) discordam dessa visão de Viveiros
de Castro, para eles os homens e mulheres continuam a usar esse termo para se referir a cônjuges potenciais que tenham se casado com outra pessoa. Os cônjuges efetivos se refeririam um ao outro por
tecnônimos. Para Lorrain (1994), os cônjuges se tratariam pelo nome após o casamento.
264
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
classificatória, Lorrain (1994) afirma que as relações de afinidade e consanguinidade
reais predominam sobre a classificatória. A afinidade em G+2 e G-1 seria marcada
nas pessoas ligadas por relações genealógicas diretas com o cônjuge de Ego, isto é,
seus avós reais e os netos de seus irmãos ou irmãs.
Lorrain afirma que os adultos geralmente recordam os nomes dos parentes
de G+3 e algumas vezes de G+4. Assim, a união entre parentes próximos, que ela
afirma ser a regra, só pode ser genealógica se for entre os descendentes colaterais
de um ancestral em G+3 ou G+4.17 Ela nos diz que as uniões entre primos reais
são raras e as equações oblíquas nos usos dos termos de parentesco reforçam a
necessidade do afastamento genealógico entre os cônjuges. Para Ego feminino
temos que BS=yB (tati) e BD=yZ (massi), enquanto que para Ego masculino
temos ZS=yB e ZD=yZ, o que, segundo a autora, implica que para Ego feminino
B=F=FB e para Ego masculino Z=M=MZ. Essas equações aproximam aqueles
parentes que estão no limitar da consanguinidade-afinidade – com quem é tolerado
o casamento (♂ZD e ♀BS) ou cujos filhos são cônjuges preferenciais – da categoria
de consanguíneo próximo.
Outra característica da terminologia é atestada pelo uso de termos específicos
para parentes consanguíneos lineares, sendo que os colaterais em G+1 e G-1 são
referidos pelo termo para os lineares mais o sufixo de afastamento (ohuaha e onihi
[grafia de Lorrain]). Essa marca de distinção introduz graus de afastamento na
terminologia consanguínea e tem seu reflexo na terminologia afim na distinção dos
lineares do cônjuge em G+2 e G-2 como afins. Mais uma vez estamos diante de
um sistema dravidiano concêntrico, no qual, no plano cotidiano, a consanguinidade
engloba a afinidade. Isso é atestado, inclusive, por uma afirmação de Lorrain, que
diz que os afins próximos são considerados como cognatos.
Como mostramos acima, os sistemas de parentesco dos Deni e Kulina
parecem corresponder a variações do dravidiano concêntrico, que Viveiros de
Castro (1993) argumenta ser o padrão normal amazônico. Não podemos avançar
muito em considerações a respeito da adequação das generalizações do parentesco
amazônico para a região do Purus e Juruá, mas os indicativos iniciais são de que
esses casos não parecem destoar da paisagem comumente encontrada.
As terminologias de parentesco apresentam configurações que possuem
uma base dravidiana influenciada ou distorcida por um coeficiente de distância e pela
cosanguinização dos parentes próximos e a afinização dos distantes. Há equações
terminológicas, principalmente em seus usos vocativos, que neutralizam a oposição
17 É interessante notar que, no caso Deni, os descendentes de G+3 estão no limiar da transformação de
consanguíneos genealógicos em afins terminológicos, como são os descendentes colaterais de um ancestral G+4 da mesma geração de Ego.
Aspectos do parentesco Arawá
265
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
entre consanguíneos e afins para parentes socialmente próximos, pois a necessidade
de se referir a uma pessoa está relacionada ao convívio com ela.
Esses sistemas apresentam também a possibilidade de transformar
consanguíneos distantes em afins efetivos, isto é, a distância, que enfraquece os
vínculos de parentesco, torna casáveis parentes que em um regime dravidiano binário
seriam interditados ao casamento. Esta feição pode corresponder a consanguinização
da afinidade no plano local, já que o afastamento seria acompanhado da possibilidade
de que esses parentes se tornem não parentes, ou mesmo inimigos. Se como aponta
Fausto (2002) o parentesco deve ser construído pelo convívio, comensalidade etc.,
a forma de manter o parentesco daqueles distantes é tornar as relações próximas, o
que pode ser efetivado pelo casamento.
Isto não indica, contudo, que a distância seja o único elemento a ser
considerado nesses sistemas. Como já afirmava Dreyfus (1993), os sistemas
amazônicos não são sem regras, como alguns autores afirmam, mas possuem
estruturas sensíveis à história, ou seja, são as formas como as relações se processam
que vão determinar o lugar na estrutura que os parentes ocupam.
266
Álbum Purus
Marcelo Pedro Florido
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Aspecto do parentesco Arawá
269
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Apurinã: tese e dissertações
Stela Azevedo de Abreu
Analisaremos aqui duas dissertações de mestrado e
uma tese de doutorado sobre os Apurinã (Arawak). Em 1981,
a dissertação em Antropologia, “A Descida do Rio Purus: uma
experiência de contato interétnico”, de Marco Antônio Lazarin,
é defendida na Universidade de Brasília, sob a orientação de
Roberto Cardoso de Oliveira. Em 1999, a dissertação em
Antropologia, “Entre Patrões e Civilizadores: os Apurinã e
a política indigenista no médio rio Purus na primeira metade
do século XX”, de Juliana Schiel, é defendida na Universidade
de Campinas, sob a orientação de Nádia Farage. Em 2004, a
tese em Ciências Sociais, “Tronco Velho: histórias Apurinã”,
também de Juliana Schiel, é defendida na Universidade de
Campinas, sob a orientação de Mauro Almeida.
A Descida do Rio Purus: uma experiência de contato interétnico,
de Marco Antônio Lazarin.
A pesquisa de M. Lazarin inseriu-se no projeto “Índios
Citadinos: Identidade e Etnicidade em Manaus”, desenvolvido
no âmbito do Programa do Trópico Úmido (CNPq).
Entretanto, a pesquisa foi realizada na cidade de Manacapuru
(AM); apenas a primeira etapa se deu em Manaus durante
um mês. Na capital, Lazarin trabalhava em equipe com Jorge
Romano e Leonardo Fígole, que pesquisavam respectivamente
os Sateré-Maué e os indígenas descidos do alto rio Negro.
Observou-se então que Manaus não foi o destino último da
descida dos Apurinã. A cidade de Manacapuru foi escolhida em
detrimento de Manaus, dada a impossibilidade de se plantar,
na capital, um roçado de mandioca, para eles imprescindível.
Assim sendo, o trabalho de campo estendeu-se por três meses
e meio, dividido em três etapas, nos anos de 1980 e 1981. A
partir da coleta de histórias de vida, o autor obteve 15 horas
270
Álbum Purus
Stela Azevedo de Abreu
de gravação em língua portuguesa, material que exigiria, segundo ele mesmo, um
tempo muito mais extenso do que o disponível para sua adequada sistematização.
No primeiro capítulo, o autor apresenta a área Juruá-Purus nas palavras de Darcy
Ribeiro (1977, p. 43): “nenhuma outra apresenta [...] tantas dificuldades para o
etnólogo e para o linguista”, dada a precariedade das informações legadas pelos
que a percorreram. Diante desse fato, o autor é cuidadoso em avaliar a extensão do
desconhecimento. Elenca as raras e fragmentárias notícias disponíveis sobre a área
do Purus, remontando aos anos de 1637-1639, 1753-1759, 1767, 1787, 1818-1820,
sem obter menção aos Apurinã. Para este período anterior à colonização efetiva
e sistemática, que se daria somente a partir de 1850, em função da exploração da
seringa, o autor baseia-se sobretudo nas obras de Castello Branco (1941), Leandro
Tocantins (1961) e Euclides da Cunha (1906). A seguir, o autor investiga o período
que se inicia em meados do século 19, por meio das expedições exploratórias
encomendadas pela administração do Amazonas e outras. A primeira referência aos
Apurinã é encontrada, na segunda expedição, em 1852, chefiada por Serafim da Silva
Salgado. Aí eles surgem em aliança com os Canamari num conflito contra os Cocama.
Lazarin não esclarece, porém, que os chamados Cocama eram os Maneteneri, povo
muito próximo linguisticamente aos Apurinã, como o faz o geógrafo Chandless
(1867). Tampouco apresenta o etnônimo Apurinás, uma vez que não se baseia na
fonte original, como a primeira forma de referência. Lendo-a, por intermédio da
tese de Moreira Neto (1971), acaba por mencioná-los como sendo Ipurinã.
Já a fonte principal em meados do século 19 é considerada ser o geógrafo
inglês W. Chandless, que realizaria, em 1864, uma expedição de cunho científico.
Muito embora Lazarin não deixe de mencionar Manoel Urbano, encarregado de
índios nomeado em 1853 e explorador das “drogas dos sertões”, isto é, cacau,
copaíba, manteiga de tartaruga e borracha. Para essas fontes, os Apurinã consistem
na mais numerosa, guerreira e formidável tribo do rio Purus.
Lazarin arrola, para a área do Purus, os Encarregados de Índios nomeados
em 1853 e situa as Diretorias de Índios e as três breves missões implantadas. Conclui
que, à diferença de outras áreas da Amazônia, o papel das Missões e o dos Diretórios
de Índios como mecanismos de relacionamento interétnico foram insignificantes
no Purus. Aí o recrutamento da mão de obra indígena se deu por outras vias.
Sugere que o estado de guerra em que viviam os Apurinã deve ser entendido
como uma não sujeição do povo como mão de obra para os patrões e como uma
forma nativa de busca por mercadorias, e que deve ser contextualizado ainda
dentro da disputa de terras, posto que os Apurinã ocupavam grande extensão de
terras altamente cobiçadas pelos brancos. Desaponta-nos ao arrolar etnônimos
relacionados aos Apurinã apenas em nota de rodapé, reduzindo-os ainda a diferentes
Apurinã: tese e dissertações
271
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
formas de grafia, sem nenhuma tentativa de análise linguística. São os seguintes:
ipuriná, hypurina, jupurina, tupurinã, canguite, kangite, kangiti, kankiti, kankete,
kangutu.
Demora-se mais sobre o modelo caboclo de seringal e sobre o modelo de
apogeu de seringal, formulados por João Pacheco de Oliveira (1979), a dedicação
exclusiva ao trabalho no seringal sendo marca distintiva do segundo modelo. A
sobrevivência física e étnica dos Apurinã é, segundo Lazarin, ameaçada sob este
segundo modelo, posto que os índios não se submetem à função exclusiva de
seringueiro, tal como o fazem os imigrantes nordestinos.
O segundo capítulo se abre com um quadro da descida para Manacapuru,
em que se fixam os períodos e o número dos grupos domésticos focalizados.
Entre 1966-1975, 1975-1981 e 1979-1981, têm-se respectivamente os seguintes
grupos domésticos: 5, 12 e 10, totalizando 111 indivíduos. O ponto de partida
desses grupos era o seringal São Luiz Mamoriá no Médio Purus, situado entre as
cidades de Pauini e Lábrea, onde as condições de vida ainda que não deterioradas
geravam o que Lazarin chama “relative deprivation”, em face da possibilidade de os
Apurinã se aproximarem dos centros fornecedores de mercadorias e consumidores
da produção nativa, em melhores condições de barganha. O período inaugural
da descida do Purus remonta, porém, para aqueles que partiam do rio Mamoriá,
ao final da década de 50. Lazarin menciona ainda pontos de partida anteriores,
como a cabeceira do rio Iaco e o Posto Indígena Marienê, e, para esses, períodos
também anteriores, como a década de 40. Além disso, um destino intermediário
desponta com importância: as terras do então recém-criado município de Tapauá,
tradicionalmente habitadas por um grande número de grupos indígenas, dentre
os quais não se contavam os Apurinã. Lazarin encontra referência à descida dos
Apurinã do Alto Purus para Tapauá, a partir de 1955, no livro de Ferrarini (1980);
e em relação àqueles oriundos do rio Mamoriá, baseia-se em fontes orais, como
o depoimento do ex-procurador-geral da Justiça, Geraldo Pinheiro, bem como
os relatos repetidamente feitos pelos Apurinã de Manacapuru. Destacam-se aí os
conflitos surgidos como vingança das mortes atribuídas a atos de feitiçaria em 1962
e em 1978. Os Apurinã envolvidos no primeiro conflito, contra os brancos, foram
alocados pelo prefeito, a grande distância da cidade, no igarapé Tauamirim; sendo
os mesmos que, em 1978, realizaram vingança contra os Apurinã próximos à cidade
de Tapauá, na aldeia São João. Os que desceram em direção a Manacapuru passam
a considerar os que ficaram, em particular os Apurinã do Tauamirim, como índios
selvagens. Manipulando identidades, procuravam, quando em passagem pela cidade
de Tapauá, se distinguir dos Apurinã.
272
Álbum Purus
Stela Azevedo de Abreu
Em Manacapuru, buscavam terras cujos proprietários não lhes impusessem
uma relação entre patrão e freguês. O autor encontra três situações distintas. Em
um caso, os Apurinã passam a tomar conta de terras cuja propriedade estava
ameaçada por posseiros e por isso lhes era emprestada para que fizessem livremente
as plantações e a posterior comercialização. Em uma segunda situação, a terra foi
doada pelo proprietário aos Apurinã. E em um terceiro caso, a terra havia sido
titulada pelo Incra. Raras eram as práticas de trabalhos externos, como a colheita
da juta e a queima de carvão, e mais raro ainda os trabalhos externos permanentes,
isto é, não periódicos. O autor encontra apenas um casal empregado numa serraria;
e dois grupos domésticos, constituídos pelo casamento de mulheres apurinã com
brancos, que realizavam só trabalhos externos.
Quanto ao parentesco, Lazarin afirma que as metades xiaporenyry e
miritimanyty originalmente exogâmicas passaram a ser, na cidade, mais um “símbolo
de ascendência”. E que a identidade Apurinã era quase sempre velada, diziam-se
inicialmente “caboclos do Purus”; em Manaus, uma mulher Apurinã se apresentou
no início como peruana. Há afirmações de Lazarin que nos causam espanto,
como a de que a ideologia étnica dominante atual, sobre a recusa dos índios em se
subordinarem aos patrões, é absorvida nos próprios mitos de origem, onde se conta
que os Apurinã não obedeceram às ordens do herói Tzurá e não cooperaram entre
si. Propõe, por fim, uma comparação dos Apurinã com os Kaxinauá do Alto Juruá
em virtude de semelhanças históricas.
Entre Patrões e Civilizadores:
os Apurinã e a política indigenista no Médio Rio Purus
na primeira metade do século XX, de Juliana Schiel.
A pesquisa de J. Schiel surgiu de uma solicitação feita pela UNI – União
das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas – e pelos Apurinã, no final
de 1994. Pediram-lhe que escrevesse as histórias dos Apurinã. À época, J. Schiel
atuava como assessora de saúde da UNI. A pesquisa iniciou-se como um registro da
memória oral. Entretanto, a dissertação busca entender o modo pelo qual o Posto
Indígena Marienê foi apropriado pela lógica social Apurinã. As principais fontes de
pesquisa foram os documentos do SPI e os do Tribunal Especial.
No primeiro capítulo, a autora traça um pano de fundo a partir da economia
da borracha. Inicia-o com o debate entre a visão de autores contemporâneos como
Almeida (1992) e Weinstein [1993 (1983)], que afirmam que os conflitos entre
seringueiros, seringalistas e aviadores não se davam em torno do sistema de aviamento
em si, mas em torno do abuso nos lucros, e a visão dos clássicos como Euclides da
Apurinã: tese e dissertações
273
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Cunha, que se opõe ao sistema de dívidas em si, um dos fundamentos da economia
da borracha. A autora busca uma conciliação entre ambos, afirmando que o caráter
opressivo e violento do sistema não é negado pelos autores contemporâneos.
Segundo a autora, pode-se ter uma imagem razoavelmente nítida da
brutalidade com que o seringal atingiu a região Apurinã, isto é, do rio Paciá ao
Iaco, por meio das observações de Serafim Salgado (1853), Silva Coutinho (1863),
Chandless (1866), Euclides da Cunha (1906) e dos documentos do SPI. Assim, os
massacres, a escravidão e a expulsão de suas terras ainda que não sejam fartamente
documentados podem ser estimados e retraçados pela memória oral.
Salienta que desde o início do reconhecimento oficial do Purus, nas
décadas de 50 e 60 do século 19, a reinvindicação de missões para os indígenas foi
recorrente. A concepção do missionamento então veiculada, tinha como finalidade
uma conversão ao trabalho. O explorador Silva Coutinho e o seringalista Antônio
Labre empenharam-se em particular nesse sentido. Em 1875, Labre chega a fundar
uma missão no rio Ituxi. Embora a documentação a respeito das missões no Purus
seja muito escassa, a autora arrola as várias tentativas de missionamento que se tem
notícia, baseando-se em G. Kröemer (1985). A autora vê os projetos de Labre como
um ensaio do que o SPI, à época Spiltn, viria a realizar mais tarde por meio dos
Postos Indígenas Marienê e Tuini.
Aponta como fonte principal de informação sobre os Apurinã, Manoel
Urbano, e o considera figura paradigmática da exploração do Purus. Ele foi o
informante do geógrafo W. Chandless e o de Silva Coutinho para os assuntos
etnográficos em particular. E seu filho, Brás da Encarnação, era, por sua vez,
intérprete da língua apurinã.
No segundo capítulo, a autora examina o ideário e a história do SPI (LTN) –
Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais — e, em
particular, o Posto Indígena Marienê. Baseando-se nas obras de D. Ribeiro (1977),
Gagliardi (1989), Leite (1989) e Souza Lima (1985, 1995), afirma que o ideário
consistia em um projeto de tutela, que combatia as “tutelas indevidas” quando um
juiz considerava o grupo fora da jurisdição do SPI, podendo nomear um tutor para
os menores de idade, que passavam a ser submetidos a trabalhos forçados, bem
como as diversas formas diretas de exploração que se exerciam sobre os índios.
Dentre os ideais do SPI, destacavam-se o respeito, a proteção e, sobretudo, a
transformação dos índios em trabalhadores. A autora focaliza o momento de crise
institucional do órgão na década de 30. Tem-se aí um divisor de águas para o SPI: a
passagem de uma primeira fase ativa e combativa para uma fase de burocratização e
estagnação do órgão. Em relação à inspetoria do Amazonas destaca a disputa entre
as elites locais e o SPI por terras e pela mão de obra indígena.
274
Álbum Purus
Stela Azevedo de Abreu
O Posto Indígena Marienê foi fundado, em 1913, no rio Seruini. Era o
início da crise da borracha na região. E, na região circunvizinha, isto é, entre os
rios Seruini, Tumiã e Sepatini, desenrolava-se um grave conflito entre os Apurinã
e os seringueiros. O fato chegou à imprensa no Rio de Janeiro, onde se noticiou
um massacre de índios. Ao passo que a imprensa regional falava apenas da morte
de brancos. Após o massacre, o posto Marienê foi criado com vistas à pacificação
e proteção dos Apurinã, ainda que não fossem um povo sem contato. Com apenas
um ano de duração, o posto foi fechado sob pressão dos seringalistas. Em 1920, foi
reinaugurado na outra margem do rio Seruini, em meio a uma epidemia de “febre
biliosa” e gripe. O posto chegou a constituir um exemplo de sucesso na década de
20 e início de 30, sendo um dos mais prósperos. A produção era tal que fornecia
açúcar, cereais e outros gêneros para a região. E atuava contra o abuso dos patrões,
seja contra o uso forçado da mão de obra indígena, seja contra a disputa de terras,
na circunvizinhança do posto. Abrigava cerca de cem índios e, no seus arredores,
atendia-se a uma população de até 1.500 índios.
Segundo a autora, havia entre o posto e o vizinho seringal Caçaduá, de
propriedade do delegado de índios, uma separação apenas tênue. Assim sendo,
avança a hipótese de que o próprio posto adotava o sistema de aviamento ou sistema
de dívidas, antes mesmo da sua decadência a partir da década de 40. E vê na figura
do encarregado um intermediário comercial que atuava para além das fronteiras do
Posto, numa rede de relações centralizada no posto.
No terceiro capítulo, a autora busca entender as relações entre o posto
Marienê e a sociologia dos Apurinã. Coloca a hipótese de que o posto constituiu
um elo na cadeia de guerras e alianças que constroem os grupos locais Apurinã, a
partir da observação de que a rivalidade entre eles impedia o acesso de alguns ao
posto. Assim, a sociologia Apurinã marcava a trajetória do posto, entrelaçando-se
à política do SPI de apaziguar, para além do posto, os conflitos dos Apurinã entre
si mesmos. Encerrado o posto, a aldeia do Marienê o sucedeu. Décadas mais tarde,
seus moradores reivindicavam para si, na disputa de poder com os demais grupos
locais, uma autoridade sobre eles, com base no antigo posto. Assim, guardavam
para si o acesso às castanheiras da época do SPI e o trunfo político legado pelo
órgão. Uma comparação com os Yanomam é proposta a partir da apropriação, por
um determinado grupo, de um serviço de assistência destinado a vários grupos.
Isso provocou um aumento do número de casamentos com tal grupo, “donos de
brancos”, que passam a ser o centro de uma rede. J. Schiel aventa a hipótese de que
o mesmo pode ter ocorrido no Posto Marienê.
Apurinã: tese e dissertações
275
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Tronco velho: histórias Apurinã,
de Juliana Schiel.
A pesquisa que dá origem a esta tese de doutorado foi, segundo a autora,
uma coprodução intelectual. Participaram dela cinco pesquisadores Apurinã, que
conduziram as perguntas e as gravações, juntamente com J. Schiel. As transcrições
foram feitas na cidade de Rio Branco pela autora mediante o pagamento em dinheiro
para dois informantes. A tese une o material obtido em tal parceria àquele levantado
pela autora em arquivos e bibliotecas, entre 1997 e 1999, durante sua pesquisa de
mestrado, bem como ao material coletado durante um levantamento etnoecológico,
em parceria com uma bióloga, encomendado pela Funai no âmbito do Programa
Integrado de Proteção às Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), e realizado
em 2000/2001 no Médio Purus. Em sua totalidade, a pesquisa abarcou cerca de 48
comunidades Apurinã distribuídas no Município de Pauini, no Médio Purus. Desse
modo, a autora diz adotar uma perspectiva macroscópica, com poucas abstrações,
mantendo o concreto e o vivido como tais. Afasta-se, pois, da prática típica da
etnografia, que busca uma imersão em profundidade, com vistas a abstrações a
partir do mais concreto, e não um sobrevoo em latitude.
O primeiro capítulo tem como objetivo aproximar o leitor dos Apurinã,
por meio do tangenciamento de vários aspectos — sociais, econômicos e
cosmológicos, sem a pretensão de dar, sobre eles, explicações refinadas. O termo
apurinã é apresentado como sendo pertencente à língua portuguesa. A divisão entre
Xoaporuneru e Mentumanetu seria, na visão dos nativos, menos metades matrimoniais
de um mesmo povo do que dois povos distintos que devem se casar entre si.
Entretanto, a autora privilegia o termo metade para se referir a tais grupos e salienta
que esse dualismo não se inscreve no espaço. Aquilo que foi chamado de horda
por Ehrenreich e de clã ou tribo por Steere é, para a autora, tema sobre o qual não
obteve definições claras e convergentes. Ora parece dizer respeito a subgrupos,
ora ao grupo Apurinã como um todo. Seria a forma mais antiga de identidade:
ximakuwakoru, “povo do peixe”, kaikuruwakoru, “povo do jacaré”, yõpuruwakoru,
“povo do japó”, dentre outros. O xamanismo pertenceria a um modelo regional
do qual participariam os Jamamadi e os Kulina. Por sua vez, a guerra interna ou
endoguerra é, segundo a autora, estruturadora das relações intragrupais e marca
distintiva dos Apurinã. Isso coloca os Apurinã como exceção no interior da família
Arawak, ao lado dos Piro.
O segundo capítulo apresenta de forma modificada as discussões
desenvolvidas na dissertação de mestrado da autora, sobre as relações dos Apurinã
276
Álbum Purus
Stela Azevedo de Abreu
com o Posto Marienê, que abordamos anteriormente. E acrescenta dados sobre
a política indigenista na região de Pauini a partir de 1977. A Funai realiza ali
os primeiros levantamentos entre 1977 e 1979. Hoje, há seis terras indígenas
homologadas na região.
O terceiro capítulo traz um extenso levantamento genealógico realizado
em 48 comunidades Apurinã, distribuídas no Município de Pauini, acompanhado
de relatos sobre cada comunidade, com detalhes sobre as parentelas, as redes de
parentesco, os deslocamentos, as doenças, as mortes, os conflitos entre si e com
os brancos, e, por fim, sobre as condições de pesca, caça e coleta. O Sepatini é
recorrentemente mencionado como local de origem das dispersões, que se seguem
aos conflitos com mortes. Em apenas duas comunidades – o Tumiã e o Marienê
– a língua Apurinã é usada cotidianamente. O grupo do Tumiã permanece muito
furtivo, às chegadas inesperadas, pois correm e se escondem.
O quarto capítulo discorre sobre a trajetória da pesquisa, sobre as escolhas
teóricas e sobre o trabalho de campo e, em particular, sobre o trabalho com as
narrativas e as fotografias. Reproduz as fotografias, tanto de objetos quanto de
pessoas, disponíveis nas fontes sobre os Apurinã, que foram levadas como um meio
de aceder à memória apurinã e apresenta os comentários colhidos. Sustenta que, à
diferença dos Wapixana (Arawak), Krahó e Jívaro, para os quais, entre os vivos e
os mortos, constroi-se, seja por meio de rituais, seja por meio de narrativas, uma
separação radical que é o esquecimento, os Apurinã lembram sempre os mortos
e definem a identidade por meio deles. A autora recusa tratar as narrativas, via de
regra ditas míticas, como mitos, posto que concebe esses últimos como metáforas.
Desse modo, todas as narrativas são indistintamente referidas como histórias. Uma
narração completa é feita pelos Apurinã por meio de duas pessoas. A segunda repete
algumas palavras já ditas e adianta por vezes a palavra exata que está por ser dita.
O papel do “confirmador” tem sido raras vezes executado dada a falta de falantes
da língua Apurinã. O critério nativo de conhecimento profundo da língua é saber
contar o mito de Tsorá.
A segunda parte da tese está dividida em quatro capítulos, que contêm trinta
e sete narrativas em língua portuguesa, cujos originais na língua Apurinã encontramse transcritos em sua totalidade no Anexo 1. Com exceção do último capítulo, não
se percebe a unidade dos demais. Sem prévia introdução, as narrativas são arroladas
diretamente, e os comentários que se seguem a elas não são suficientes para levar a
conclusões. Todas as narrativas são indistintamente tratadas como histórias. Diante
dessa indistinção, optamos por apresentar o material composto por vinte e duas
narrativas, referentes a três capítulos, à nossa maneira, na tentativa de torná-lo
Apurinã: tese e dissertações
277
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
menos amorfo. Vemos aí o mito de Tsorá, o mito dos Otsamaneru, mitos diversos
do tempo da indistinção entre animais e humanos, relatos sobre xamanismo e relatos
sobre o casamento de xamãs com cobras.
O mito de Tsorá é o mais importante para os Apurinã. A autora apresenta-o
como sendo o mito da criação, da origem da vingança, do incesto e dos infortúnios
dos Apurinã. Submetidos a uma série de provas, os Apurinã saíam-se sempre mal.
Considerado particularmente difícil de ser contado, cabe aos velhos com muito
conhecimento na língua fazê-lo. Antigamente levava-se muito tempo a contá-lo,
desde o final da tarde até, às vezes, o amanhecer. Agora dizem que a Semana Santa
é o tempo de contar.
O mito dos Otsamaneru é apresentado segundo quatro versões. Relata a
saída desse povo, junto aos Apurinã, do local primordial de imortalidade (kairiko),
numa viagem em direção ao outro extremo da terra, também local de imortalidade e
também aí os excrementos se transformam ao serem depositados no solo. A autora
afirma que os Otsamaneru são um povo distinto dos Apurinã. Mas não é isso o que
se lê nas narrativas presentes na tese. “Otsamaneru é Apurinã também”, segundo o
relato de Adilino, que também os menciona como “nossos parentes Otsamaneru”
(Schiel, 2004, p. 241).
Se há versões em que se afirma o contrário, a autora não as expõe. A autora
se furta, pois, de destrinçar as relações existentes entre os Otsamaneru e os Apurinã.
Tomar isso como problema nos parece via fundamental para entender quem são
afinal os Apurinã, que pararam no meio da viagem, separarando-se dos Otsamaneru
que continuaram.
O quarto capítulo, “Trajetórias”, apresenta quinze relatos que são
acompanhados pelos “comentários” da autora que o parafraseiam. Invariavelmente
giram em torno de bebedeiras, mortes em conflito, vinganças e medos que implicam
em deslocamentos e isolamentos. Vê-se aí que o Sepatini, já mencionado como
ponto original da dispersão, é tido também como um lugar de refúgio para os
matadores. E o destino provisório dos parentes da vítima é, por sua vez, a descida
dos igarapés em direção à margem dos rios. Entre os relatos, encontramos um elo
que nos permite passar aos Apurinã de Tapauá, mencionados como vimos por
Lazarin. J. Schiel (2004, p. 304) recolheu, no ponto de partida, o Tumiã, um relato
sobre os conflitos internos que implicaram na descida de uma das partes envolvidas
para Tapauá.
Na conclusão, a autora afirma apenas que é central, para os Apurinã, a
ideia de que os menores e aparentemente mais frágeis são, na verdade, os mais
poderosos.
278
Álbum Purus
Stela Azevedo de Abreu
As leituras da tese e da dissertação de J. Schiel dão a sensação de que estamos
diante de duas autoras distintas. Na dissertação, a argumentação é clara, muito bem
articulada e escrita. A tese está muito longe disso. Poder-se-ia aventar que escrever
uma etnografia é incomparavelmente mais difícil do que o trato com as fontes
documentais. Não resta dúvida, porém, de que, diante dos trabalhos aqui examinados,
é preciso louvar as etnografias que não estão a serviço da teoria. Enquanto as teorias
passam, as etnografias ficam. Mas há etnografias feitas de tal modo que nos fazem
recordar a antiga prática das coleções etnográficas, que buscavam acumular o maior
número possível de peças. Acumular o maior número de genealogias ou narrativas
sem se debruçar o suficiente sobre nenhuma é fugir à função de etnólogo. A dura
e lenta tarefa de transcrição não pode redundar num ato mecânico, não reflexivo.
O aprendizado da língua, não menos demorado e árduo, parece-nos ser o desafio a
abraçar, mesmo sabendo que jamais chegaremos a dominá-la. Inclusive, é preciso
ouvir também com cuidado o português falado pelos índios, pois este pode trazer
em si muitas marcas da língua nativa. A supressão de ocorrências aparentemente
supérfluas e excessivas do pronome ele parece-nos ocultar uma questão fundamental
da língua e da cultura Apurinã.
Por fim, cabe dizer que, na ausência de diálogo efetivo entre antropólogos e
linguistas, a tese e a dissertação produzidas por profissionais da Linguística sobre a
língua Apurinã (Netto do Vale, 1985; Facundes, 2000) acrescentam pouco
para a compreensão sobre os próprios Apurinã e sobre os problemas linguísticos
com que se deparam os antropólogos.
Apurinã: tese e dissertações
279
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
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Apurinã: tese e dissertações
281
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
O nome do pai: a centralidade da figura paterna
entre os Jarawara
Fabiana Maizza
A primeira pergunta que faziam os diferentes indivíduos
jarawara, homens e mulheres, ao me conhecerem, era: “qual
o nome do seu pai?”. Demorei muito tempo para entender
o porquê deste interesse ao meu genitor. Foi conhecendo a
cosmologia e a organização social da etnia que compreendi
a importância da figura do pai para eles. Este artigo visa
demonstrar, de forma resumida, a centralidade do pai na
sociedade jarawara em três domínios distintos: o parentesco,
a organização social e a cosmologia,1 respectivamente, para
finalizar com uma hipótese sobre a importância do nome do
pai entre os Jarawara. Lembremos que os Jarawara são um povo
indígena pertencente à família linguística Arawá, e moram no
Médio rio Purus, no Estado do Amazonas – Brasil.
Falar do pai
Começamos com uma anedota de campo que poderá
nos situar na centralidade da figura do pai entre os Jarawara.
A previdência social oferece um salário-maternidade durante
um a quatro meses após o nascimento de uma criança, ao qual
as mulheres indígenas têm também direito. Normalmente,
um funcionário da Funai ajuda a todos os Jarawara, e outros
índios, a preencher os papéis que devem ser entregues ao
“barco da Previdência”, para que as mulheres possam então
receber o seu salário-maternidade alguns meses depois.2 Este
barco passa pela região de Lábrea e seus arredores uma vez
1 Diversos trechos que apresento aqui foram originalmente escritos para a minha tese de doutorado (Maizza
2009).
2 O barco da Previdência tem como objetivo garantir acesso à previdência social àqueles que moram longe
dos postos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e funciona na Amazônia no fim da época da
cheia.
282
Álbum Purus
Fabiana Maizza
por ano. No ano de 2006, como eu estava com os Jarawara, eles me pediram
para preencher os seus papéis. Neste momento estávamos na aldeia, e eu não
tinha visto ainda o formulário; então comecei a organizar as informações
para que, uma vez no barco, os papéis ficassem prontos mais facilmente.
Havia quatro mães na aldeia em que eu estava que poderiam ter o auxílio,
pois se enquadravam à condição requerida. No entanto, os Jarawara (e aqui sem
exceção) afirmavam que as mães das crianças que “não têm pai” não tinham direito
ao salário-maternidade. Das quatro crianças em questão, duas “não têm pai”. Como
tudo que se trata de dinheiro e de relações com os brancos, em geral, passa sempre
pelo cacique da aldeia e pelos líderes – entre eles o professor indígena, a questão do
salário-maternidade se tornou uma discussão pública. Eu argumentava que nenhum
documento oficial brasileiro exige o nome do pai, apenas o da mãe é necessário.
Eles diziam que não, que se a criança não tivesse pai não poderia ter o auxílio.
Eles então decidiram que somente as mães casadas (ou seja, as crianças ‘com pais’)
poderiam ir pedir o salário, e fomos para o barco. Quando chegamos ao lugar e
finalmente pude ver o papel que deveria ser preenchido para o recebimento do
dinheiro, o nome do pai nem sequer era requisitado. Encontramos os moradores
das outras aldeias Jarawara no local, a quem também ajudei com os formulários, e
mais uma vez o mesmo argumento: “se não tiver pai, não pode[…]”.
Para os Jarawara, “não ter pai” significa essencialmente ser criado por mãe
solteira. Todo mundo sabe, por fofoca, quem é o pai da criança, mas ele não a assume
socialmente por não ser casado com a mãe. Muitos destes filhos de mãe solteira são
ditos possuir mais de um pai, pois para os Jarawara existe multipaternidade: todos
aqueles com quem a mãe manteve relações sexuais pouco antes e durante a gravidez
são vistos como pais. No entanto, socialmente, estas crianças são sem pai. Elas não
são estigmatizadas ou ridicularizadas, como entre os Zuruahá (Fank; Porta
1996, p. 41; Kroemer, 1994, p. 66), mas vivem normalmente como as outras
crianças da aldeia. Na maioria dos casos, um outro homem corresidente assume as
principais “funções” do pai, por exemplo, a organização do ritual de menarca de
uma menina. Este homem é normalmente um dos irmãos da mãe (MB), mas pode
ser também o avô materno (MF) ou um “tio-avô” (MMB) da criança. No cotidiano,
eles ajudam a mãe com algumas tarefas, como tirar lenha e caçar, e tomam conta da
criança quando necessário.
O interessante é que apesar de os pais não assumirem os filhos, e não
exercerem suas funções de genitor, a criança leva em consideração todos os vínculos
de parentesco que passam por ele, inclusive quando cresce, na escolha de uma esposa
ou esposo. Por exemplo, passei meses para entender o “mistério” do pai de um dos
habitantes da aldeia Água Branca, um senhor, até um dia conseguir “desvendar” a
O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
283
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
questão ao vê-lo pessoalmente – antes pedi diversas vezes informações para seus
filhos e eles sempre mudaram de assunto. Eu perguntei para o senhor quem era a
mãe dele, ele falou que era a Felícia.3 Depois perguntei quem era o pai. Então as
pessoas em volta interromperam e começaram a dizer: “ele não tem pai, a mãe dele
só namorou e fez criança”. Fiquei confusa, pois um pouco antes ele me dissera que
era ayo (irmão mais velho/ primo paralelo) do Pedro, e passando pela Felicia isto
não verificava. Ele então me respondeu – com bastante pudor e certamente apenas
para se “livrar” o mais rápido possível de minhas perguntas indiscretas – que quem
namorou a Felicia foi o pai do Pedro! Ou seja, apesar de ser “sem pai”, este senhor
calculava o seu parentesco tanto pelos vínculos maternos como paternos, ele sabia
quem era o seu pai, todos os outros jarawara também, e as suas relações com as
outras pessoas da etnia levavam em consideração a figura deste. Parece-nos que
para os Jarawara, não é possível não ter pai, todo mundo tem um pai, mesmo se
este não assume o seu filho. Assim, “não ter pai” é importante mais em termos de
discurso do que em termos concretos, é o que podemos verificar com os dados que
seguem.
Passemos à análise da rede de alianças Jarawara. As informações apresentadas aqui são fruto de um primeiro tratamento computacional dos dados
genealógicos coletados em campo. Para a tarefa, foi utilizada a MaqPar (versão 2.7),
uma ferramenta computacional em construção para o estudo do parentesco em
sociedades de pequena escala, desenvolvida por Dal Poz & Silva.4 Dois aspectos
da rede nos interessam. O primeiro diz respeito a sua divisão e o segundo sobre a
mémoria dos antepassados.
Sobre a rede Jarawara: ela é composta de 234 indivíduos sendo que apenas
133 são “vértices”. Isto significa que apenas 133 pessoas são casadas ou têm filhos,
segundo a definição de vértice por Dal Poz e Silva (2008, p. 10). Estas são as pessoas
“relevantes” para a análise, e elas estão simetricamente divididas em um grupo de
67 homens e outro de 66 mulheres, o que significa que temos uma razão de sexo
bastante equilibrada. Isto mostra que a porcentagem de homens e mulheres por
quem passam vínculos é idêntica (50% para cada um), o que nos faz concluir que
na prática não existe uma tendência agnática entre os Jarawara.
3 Os nomes aqui apresentados foram trocados.
4 O dispositivo automatiza tarefas básicas na análise do parentesco, gerando as alternativas de percursos
genealógicos que conectam duas pessoas em posição de aliança de uma mesma rede. O material produzido pela MaqPar propõe uma análise que parte da rede genealógica empírica e visa a uma análise
sistêmica-viável, graças a recursos computacionais o seu objetivo é observar e descrever fenômenos que
sem o computador seriam dificilmente percebidos. Assim, com a MaqPar, em vez do ponto de vista da
sociedade ou do indivíduo temos o ponto de vista da rede genealógica: uma rede já formada, cujas leis
não se reduzem nem à regra de casamento nem às estratégias matrimoniais individuais.
284
Álbum Purus
Fabiana Maizza
No entanto, quando nos concentraremos nos dados sobre os avós, temos
uma revelação importante. A Tabela 1, abaixo, demonstra as ligações entre gerações
alternas na memória das pessoas. A primeira linha horizontal mostra a quantidade
de pessoas que se lembram do pai do pai (FF), do pai da mãe (MF) etc. A segunda
linha mostra quanto estes números representam em porcentagem e, finalmente, a
terceira linha considera as porcentagens sem levar em conta os 24% dos “vértices”
que se lembram dos quatro avós. Logo depois da tabela, temos a Figura 1 que
ilustra justamente a terceira linha da Tabela 1 e compara, assim, com mais precisão
a presença dos avós na memória dos indivíduos. Em seguida temos a Figura 2, que
divide os avós em gêneros.
Tabela 1: Os quatro avós na memória dos indivíduos Quant. / %
FF
MF
FM
MM
Quantidade
(sob 133 vértices)
64
60
46
53
48%
45%
34%
40%
24%
21%
10%
16%
Porcentagem
(sob vértices)
Porcentagem sem
considerar os que
se lembram dos
quatro avós
Figura 1: Porcentagem dos avós lembrados pelas pessoas O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
285
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Figura 2: Porcentagem dos avós lembrados, de acordo com o gênero
Pela Figura 1 podemos perceber que, na memória das pessoas, o mais
lembrado é o pai do pai, seguido pelo pai da mãe, seguido pela mãe da mãe, e por
último temos a mãe do pai (FF > MF > MM > FM). Notamos assim uma diferença
na memória das pessoas com relação ao gênero dos avós, que é demonstrada com
mais precisão na Figura 2. A Figura 2 mostra que os homens (pai do pai e pai da
mãe) são bem mais lembrados do que as mulheres (mãe do pai e mãe da mãe)
ou, em outras palavras, os vínculos paternos são mais lembrados do que os seus
respectivos maternos. Podemos perceber que na memória dos antepassados os
Jarawara possuem uma inflexão agnática do cálculo do parentesco.5
Não acreditamos que exista descendência patrilinear entre os Jarawara —
como na maioria das sociedades das terras baixas com exceção dos grupos do
noroeste amazônico. Mas por outro lado percebemos um viés agnático do cálculo
do parentesco ou uma inflexão agnática entre eles. Por exemplo, as pessoas apenas
lembravam seus antepassados homens, esquecendo-se completamente das mulheres,
ou quando iam fazer um cálculo para explicar a relação que as unia a outrem, na
maior parte das vezes elas passavam pelo pai, mesmo que o cálculo passando
pela mãe fosse mais curto. Normalmente, em sociedades cognáticas os dois lados
(materno e paterno) são idênticos e possuem o mesmo valor. Entre os Jarawara,
no entanto, podemos perceber que eles valorizam a posição do pai e privilegiam o
lado paterno em detrimento do materno, sobretudo em termos do discurso. É o
5 Isto parece ser comum entre os grupos Arawá: Viveiros de Castro fala em uma vaga ideologia patrilinear
entre os Kulina (1978, p. 78); Kroemer afirma que os Zuruahá apresentam a descendência como uma
certa inflexão agnática (1994, p. 130); entre os Deni, o princípio agnático constitui a base da organização
social (Koop; Lingenfelter 1983, p. 18), e o mesmo parece válido entre os Jamamadi (Rangel, 1994,
p. 91).
286
Álbum Purus
Fabiana Maizza
que mostra igualmente a anedota do salário-maternidade e o fato de as crianças cujas
mães não são casadas levarem em conta o vínculos que passam pelo lado paterno
mas serem ditas “sem pai”. Por esta breve análise do parentesco, percebemos que o
pai possui uma posição privilegiada na sociedade Jarawara. Veremos agora, por meio
da organização social do grupo, como esta observação se concretiza no cotidiano
das pessoas.
Morar com o pai
Apresentamos aqui a composição de uma das três maiores aldeias Jarawara,
para demonstrar o que nos parece ser o ideal de residência para eles. Tomamos a
aldeia Casa Nova como exemplo pois ela possui uma organização que está presente
também nas outras aldeias, mas de maneira menos explícita. Casa Nova seria assim
uma “aldeia exemplar”. Na figura abaixo temos os donos das casas representados
na árvore genealógica, sendo que o antigo chefe, Konabono, é falecido. Dentro
da etnia Jarawara existem pequenos grupos encabeçados por certos indivíduos, os
quais chamamos de chefes. Os Jarawara não usam com frequência a palavra “chefe”,
mas dizem, por exemplo, “o pessoal do Konabono” (Konabono mati), que significa,
de alguma forma, aqueles que são liderados por Konabono, mas também todos que
moram na aldeia de Konabono.
Konabono
Figura 3: Demonstração dos donos das casas (representadas pelos círculos
pontilhados e pelos números) na aldeia Casa Nova, em termos genealógicos
O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Pela Figura 3, podemos ver que a aldeia Casa Nova possui sete casas, três
delas pertencentes,6 respectivamente, a três irmãos “reais” – eles são os filhos do
antigo chefe (Konabono), sendo um deles o chefe atual. Uma outra casa pertence
ao filho de um destes irmãos. Uma casa é do cunhado (ZH) destes irmãos, que se
casou com duas de suas irmãs “reais” (um dos raros casos de poligamia). Finalmente,
existem duas outras casas que foram construídas pelos genros (DH) de dois dos
irmãos, enquanto ainda prestavam serviço aos sogros, mas que retornaram com
suas esposas a suas aldeias natais, emprestando ou doando a moradia em Casa Nova
a filhos ou filhas do grupo dos irmãos.
Este grupo, que hoje se encontra em Casa Nova, sempre se deslocou
junto pelo espaço. O antigo chefe, Konabono, teve nove filhos, todos aqueles que
ainda estão vivos moram atualmente em Casa Nova. O único irmão que deixou
periodicamente o grupo foi o dono da casa número 4: ele morou em duas aldeias
em que os seus irmãos não moraram enquanto cumpria o “serviço da noiva”. Além
disso, o cunhado deste mesmo irmão não morou, em todos os momentos, com o
grupo; ele nunca se casou e, antes de se fixar em Casa Nova, morou com sua mãe
e o marido dela em outras aldeias até a morte destes, quando veio morar com sua
única irmã viva, casada com o dono da casa número 4. Fora estas exceções, o grupo
que hoje se encontra na aldeia Casa Nova mora junto desde que nasceu, pois todos
são irmãos e irmãs “reais”.
De uma maneira geral, após o casamento entre duas pessoas de aldeias
distintas, os homens vão morar na aldeia da mulher durante alguns anos, às vezes
se revezando entre a aldeia da esposa e a sua, mas no final retornam à aldeia de seu
pai. Como dissemos sobre a Figura 3, por exemplo, os proprietários das casas 5 e
7 retornaram à aldeia de seus pais, com suas esposas. Sem dúvidas, podemos dizer
que os Jarawara são virilocais. No entanto, as filhas dos chefes não abandonam as
aldeias dos seus pais; seus esposos normalmente lá permanecem mesmo depois de
diversos anos de casados. Este é o caso, por exemplo, do dono da casa número 1
na Figura 3, ele se casou com as filhas do chefe e permaneceu com o grupo mesmo
depois do “serviço da noiva”. Isto resulta em um fenômeno que é a base de todas as
aldeias: uma aldeia é formada por um grupo de irmãos e irmãs “reais”, filhos de um
chefe. Unidos a este grupo estão aqueles que chamamos de “agregados”, que são os
maridos das filhas do chefe e, muitas vezes, os irmãos não casados das esposas dos
filhos do chefe, ou seja, “cunhados” e aliados dos filhos do chefe.
Dizemos que esta é a base das aldeias jarawara, pois podemos reconhecer
claramente esta formação na Figura 3, mas também nas outras localidades habitadas
6 As casas pertencem ao homem que as construíram.
288
Álbum Purus
Fabiana Maizza
pelo Jarawara, atuais e antigas. Aliás, reconhecemos igualmente em todas aldeias
atuais um grupo de pessoas as quais sempre se movimentaram no espaço juntas e
ainda moram juntas. Vemos que, no passado, quando os Jarawara mudavam sem
cessar de aldeia, eles não mudavam necessariamente de corresidentes.7 As aldeias
de hoje refletem diretamente os agrupamentos familiares antigos, sendo cada
uma delas formada pelos filhos e filhas do antigo chefe e hoje “orquestrada” por
um destes filhos, que é o chefe. A movimentação pelo espaço, que ocorreu até o
momento de sedentarização das aldeias, aproximadamente vinte anos atrás, mostra
que: os chefes concentram os seus filhos e filhas na mesma localidade, recebendo
seus genros e cunhados para morar com eles. Já os não chefes tendem a morar com
seus irmãos e irmãs na mesma aldeia e nem sempre conseguem fazer com que seus
filhos permaneçam com eles quando se casam.
Acreditamos haver dois fatores que influenciam e se complementam na
composição das aldeias: um é relativo à genealogia, e por isso sociocentrado,8 e outro
é puramente individual, e por isso egocentrado. O fator “sociocentrado” seria mais
exatamente ‘patricentrado’: uma aldeia é composta por um grupo de irmãos e irmãs
reais, filhos do chefe. Por outro lado, as escolhas são individuais, e egocentradas: todo
indivíduo “pertencendo” a determinada aldeia pode decidir se mudar para outra por
qualquer motivo que lhe pareça conveniente: casamento, casamento de uma filha/o
ou irmã/o etc. Estas “mudanças por conveniência” estão invariavelmente ligadas a
laços de afinidade e são fruto de novas ou antigas alianças.
As aldeias Jarawara são, de uma forma geral, agrupamentos dos filhos de um
pai, onde existe uma minoria de aliados. Esta configuração torna possível o ideal de
endogamia de aldeia, pois, no interior de cada uma das localidades, para um dado
Ego haverá sempre consanguíneos e afins da mesma geração que a sua, filhos dos
irmãos dos seus pais e filhos dos aliados dos seus pais, respectivamente.
Acreditamos que a aldeia paterna seja a aldeia de referência à qual a pessoa
‘pertence’. Em alguns mitos e no cotidiano atual, quando a mulher briga com o marido,
ou quando este morre, ela volta imediatamente para a aldeia de seu pai, o que parece
demonstrar a forte ligação entre as pessoas e o grupo paterno. Além disso, o pai é a única
pessoa na sociedade Jarawara que pode eventualmente mandar em alguém,9 no caso,
em seus filhos homens e mulheres. Estas ordens se referem, sobretudo, ao trabalho a
7 Por outro lado, nenhuma das localidades possui exatamente a mesma composição daquela da qual provém: há sempre alguém que casou e foi morar em outro lugar, ou um genro que saiu para prestar o serviço
da noiva, ou então um irmão solteiro de uma esposa de um filho do chefe que decidiu ir morar com outro
grupo de pessoas etc.
8 Não dizemos com isto que haja descendência entre os Jarawara; os grupos locais são bilaterais e formam
“kindreds” (Freeman, 1968) pessoais.
9 Entre os Jarawara não existe hierarquia; eles não fogem à regra da Sociedade contra o Estado, Clastres
(1974).
O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
289
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
ser efetuado, para a boa “manutenção” da aldeia ou de sua casa; por exemplo, uma
mulher um dia nos disse que ela e seus irmãos iam fazer um roçado “porque nosso
pai mandou”, em outra ocasião, os jovens filhos de um senhor, saíam regularmente
com este para buscar palha para a “reforma” do telhado de sua casa. Estas situações
parecem banais, mas na sociedade Jarawara são raras as vezes em que as pessoas
trabalham juntas, normalmente cada indivíduo realiza suas tarefas sozinho, quando
o convém. O único momento em que as pessoas se unem para trabalhar é sob as
“ordens” do pai.
Morrer com pai
A posição central do pai é importante também após a morte: quando os
espíritos dos Jarawara mortos vão para o céu eles precisam ter um pai no céu, um
pai adotivo, é o que veremos agora.
Quando os Jarawara morrem, o espírito deles vai para o céu. Algumas horas
depois do funeral, o espírito sai do corpo do morto e de sua cova. Ao sair de
debaixo da terra, o espírito (inamati) do morto é buscado por um ou mais espíritos
(inamati) do céu.10 Normalmente diversos espíritos descem à Terra para se ajudarem
mutuamente, pois o espírito do morto Jarawara é muito nervoso e agressivo e quer
brigar e matar quem se aproximar. Os espíritos que vêm buscar conversam com
o espírito do morto, “nós estamos te esperando, vem com a gente, nós vamos te
levar”, e o convencem a ir com eles.
Quando chega no céu, o espírito é recebido pelas pessoas de lá (espíritos),11
ele é ‘curado’, alguém limpa ele para “ele ficar bonito”, ele rejuvenesce e depois fica
isolado alguns dias, descansando e esperando para ser chicoteado. No dia previsto,
os espíritos da aldeia em que ele foi recebido o levam para outra aldeia localizada
no leste ou no oeste do céu. Nesta aldeia, onde os espíritos são conhecidos dos
espíritos que o receberam (pois se não fossem eles os matariam e os comeriam),
o espírito do Jarawara é chicoteado da mesma maneira que a menina em seu ritual
de menarca. O chicoteamento, dizem, é para que o espírito fique forte e preparado
para brigar contra os inimigos, que são numerosos no céu. Em seguida, o espírito
do morto e seus “familiares” voltam para a aldeia destes e ficam morando por lá.
10 Estes são os espíritos das plantas e árvores que a pessoa plantou durante sua vida; eles moram no céu
e os Jarawara dizem que eles são ‘filhos’ desta pessoa, não entraremos em detalhes aqui, para mais
informações sobre esta relação ver Maizza (2009, p. 233-237).
11 Neste momento, segundo a teoria do animismo perspectivista (Viveiros de Castro, 1996, 2002), o espírito do morto já não considera mais as pessoas do céu como espíritos, mas continuaremos relatando
a sequência dos eventos do ponto de vista dos Jarawara vivos.
290
Álbum Purus
Fabiana Maizza
O céu Jarawara (neme) é exatamente igual à Terra, com floresta, rios, igarapés,
várzea, ladeiras, caminhos, cidades; mas lá em cima, em vez dos humanos, estão os
espíritos inamati.12 É para o céu que se destinam os espíritos dos Jarawara falecidos,
mas também os espíritos dos outros índios falecidos, dos brancos falecidos e das
plantas — que saem de seus corpos na Terra e são levados para o céu. No céu
existem animais, plantas, árvores e seres maléficos denominados yama. Além de
todos os tipos de habitantes que existem na Terra, no céu há também entes que não
vemos aqui. Por exemplo, os espíritos-do-ferro,13 os Yimawa,14 que moram em um
prédio de ferro e trabalham para o pai deles, limpando o céu, com instrumentos
feitos de metal, entre eles, a faca, o motor, o machado e o terçado; todos eles
têm nomes que começam por “yima”, como Yimakosisawi, por exemplo. Existem
igualmente os espíritos-do-céu, os Neme, que possuem nomes como Nemefe e
Nememe. Cada um dos diversos povos do céu mora em suas aldeias respectivas,
que se localizam em lugares diferentes. Os Jarawara dizem que no céu todos os
espíritos estão sempre brigando com seus inimigos, outros espíritos, outros tipos
de gente.15
Existe mais de uma possibilidade de corresidentes póstumos. Em primeiro
lugar, o espírito pode “comprar” um pai no céu, isto é, ser adotado tendo como
contrapartida trabalhar para este “pai”. Neste caso, ele morará com os outros filhos
e filhos adotivos deste espírito na aldeia do pai deles. Por exemplo, se o espírito
(do morto) for morar com os espíritos-do-ferro, ele morará em uma casa de ferro
e trabalhará fazendo objetos de ferro. Ele então receberá um nome de espíritodo-ferro. Uma outra possibilidade, comum para as mulheres, é o espírito ir para
uma aldeia do céu, se casar lá e ficar morando na aldeia do marido. Finalmente, o
espírito pode ir direto para a aldeia onde mora um familiar Jarawara que já tenha
falecido, como uma irmã ou filho, e passar a morar com ele, mas esta situação
ocorre exclusivamente com os xamãs e com seus filhos biológicos Jarawara, como
falaremos a seguir.
Tudo indica que o grupo local do céu tenha a mesma configuração que
descrevemos para o grupo local na Terra. Como falamos, as aldeias jarawara são
12 O céu é um lugar melhor do que a terra, onde todos são jovens, as plantas dos roçados são maiores e
mais bonitas, os caçadores conseguem carregar todas as suas caças sem ajuda etc.
13 Utilizamos os traços de união, para demonstrar que estamos falando de um tipo de ser entre vários outros, que são sujeitos potenciais. Utilizamos a tradução espírito, tendo em mente que na Amazônia ter
espírito ou alma significa ter capacidades de intencionalidade consciente e de agência que possibilitam
a ocupação enunciativa do sujeito (Viveiros de Castro, 2002, p. 372).
14 Yimawa significa faca, terçado.
15 O mesmo ocorre na Terra, com mais moderação.
O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
agrupamentos de filhos e filhas de um chefe. Estes irmãos e irmãs “reais” tendem
a corresidir a vida inteira juntos, e quando se casam trazem para a aldeia os aliados.
As mulheres que não são filhas dos chefes moram na aldeia do marido, e os homens
que se casam com as filhas do chefe moram na aldeia da esposa. Qual na Terra, as
aldeias do céu são formadas por tipos de gente, e lá eles são: o pessoal do leste, o
pessoal do oeste, o pessoal do ferro, o pessoal do céu etc., provavelmente grupos de
filhos de um chefe reunidos (como os espíritos-do-ferro, por exemplo, todos filhos
do ferro) e seus aliados. Muitos espíritos possuem nomes que fazem referência ao
tipo de gente que são.
Pertencer a um grupo de parentes é fundamental no céu Jarawara – assim
como o é na Terra – pois se não pertencer a uma aldeia o espírito não sobreviverá à
guerra violenta do céu, onde, fora do grupo local, todos são inimigos e canibais. A
nomeação do espírito é a coroação do processo de “adesão” a uma aldeia: quando
ele recebe o nome que o vincula aos seus novos familiares, um nome de espírito-doferro, por exemplo, o espírito do morto jarawara completa a sua integração a seu novo
grupo de parentes. Como dissemos, este novo grupo são todos filhos do mesmo pai,
e o nome que o espírito do morto recebe muitas vezes faz referência ao seu pai.
Podemos dizer que as aldeias do céu são aldeias centradas na figura dominante do pai
e demonstram que ser um tipo de gente é também ter um tipo de pai.
Idealizar um pai
Os xamãs, contrariamente aos outros indivíduos Jarawara, permanecem ao
longo de sua vida em contato com os espíritos que moram no céu. Estes espíritos
são de fato os seus espíritos auxiliares e descem à Terra quando chamados por ele,
por diferentes razões. Os xamãs recorrem aos seus espíritos auxiliares sobretudo
quando alguém está muito doente ou para se vingarem de outro xamã. Mas também
os espíritos auxiliares descem à Terra simplesmente para manter contato com os
seus “familiares”; ao chegar, eles perguntam se todo mundo vai bem: “os meus
irmãos vão bem?” – eles dizem, preocupados em saber se os filhos biológicos do
xamã estão todos com saúde. Existem igualmente espíritos que se relacionam com
o xamã que não são exatamente seus espíritos auxiliares, mas sim, os espíritos dos
Jarawara que faleceram. Muitas vezes estes espíritos descem à Terra para conversar
com o xamã, ou o recebem no céu ou então levam o xamã em suas costas até o céu.
Normalmente trata-se de espíritos de pessoas genealogicamente próximas do xamã
que morreram, sobretudo os seus filhos biológicos.
Os filhos do xamã quando morrem vão para o céu, da mesma maneira
que os outros Jarawara. Ao chegarem, passam pelo ritual de chicoteamento, ficam
292
Álbum Purus
Fabiana Maizza
morando com seus novos familiares e recebem um nome. Às vezes, estes espíritos
descem à Terra para visitar o xamã, que é o pai Jarawara deles, ou recebem o xamã
quando ele chega no céu. Por isso, os espíritos dos filhos biológicos falecidos do
xamã têm acesso tanto aos seus novos familiares no céu, que o adotaram, quanto
aos seus familiares na Terra: o seu pai, o xamã. Eles possuem, assim, algo parecido
com o xamã e com seus espíritos auxiliares: uma locomoção entre a Terra e o céu
(contanto que o seu pai xamã esteja ainda vivo).
Parece que a grande diferença entre os filhos biológicos do xamã e os outros
Jarawara é que os segundos (não filhos de xamã), ao chegarem no céu, devem ser
adotados ou se casar para se integrarem a uma nova parentela. No céu, o espírito
do morto rompe com os seus familiares da Terra e começa uma vida marcada pela
afinidade do casamento ou pela afinidade consanguinizada da adoção. Ele passa
assim a pertencer a aldeia de um pai outro. Já um filho biológico do xamã será
levado direto à casa de um espírito de um irmão biológico que tenha morrido e
morará lá, com ele. A sua integração a uma aldeia no céu é mais rápida e mais fácil,
e ele mantém uma dupla rede genealógica, pois permanece vinculado ao seu pai na
Terra ao mesmo tempo que “ganha” novos familiares no céu.
Ao contrário do que poderíamos imaginar, os outros Jarawara que não são
filhos do xamã não se inserem na rede genealógica do xamã de maneira classificatória,
quando morrem. Por exemplo, se na Terra, Ego é sobrinho cruzado do xamã (ZD)
isto não quer dizer que no céu ele poderá encontrar o espírito da filha biológica
do xamã e que ela será sua prima cruzada de primeiro grau (MBD). Aliás, ele não
encontrará sua prima e terá que se integrar a uma aldeia de outro tipo de gente.
As relações entre o xamã e os espíritos se limitam à primeira geração descendente
do xamã em linha direta, ou seja, seus filhos, sejam eles biológicos ou adotivos.16
Graças a sua habilidade de se comunicar e de controlar os espíritos, o xamã faz com
que seus filhos biológicos se encontrem pós-mortem. Ou seja, o xamã consegue no
céu o que um chefe deve conseguir na Terra: reunir todos os seus filhos na mesma
aldeia.
Os Jarawara sempre dizem que os xamãs cuidam deles, e demonstram certo
desassossego quando pensam no fato de que os pajés estão acabando: “primeiro os
pajés cuidavam de nós. Agora os pajés morreram, a gente precisa de alguém para
cuidar de nós” – como, por exemplo, nos explicou um senhor. Temos também um
relato em que um xamã sai com um grupo de pessoas na floresta e eles ouvem os
espíritos; o xamã tem muita vontade de ir ver estes seres, mas ele diz: “eu queria ver
16 Os filhos adotivos do xamã são os espíritos das plantas e árvores que ele cultiva. O mesmo é válido para
todos os outros Jarawara (para mais detalhes ver Maizza, 2009).
O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
293
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
o inamati mas eu estou ocupado tomando conta das pessoas”. Ou seja, eles cuidam
dos outros Jarawara corresidentes de uma forma paternal.
Acreditamos que para os Jarawara o xamã representaria o pai ideal: ele reúne
os seus filhos na mesma localidade e os protege. No passado, praticamente todos os
homens importantes da etnia eram xamãs. Eles eram igualmente chefes do grupo de
parentes que se locomovia pelo espaço junto. Por isso, a nossa hipótese consiste em
pensar que entre os Jarawara idealmente um grupo de pessoas deve ser encabeçado
por um chefe que é também xamã e é o pai biológico da maioria das pessoas que
moram na aldeia. A figura do pai esta intrinsecamente ligada à figura do chefe e do
xamã.
O nome do pai
Sabemos que no passado, as etnias da família linguística Arawá — a qual os
Jarawara pertencem — se dividiam em subgrupos com nomes de plantas e animais,
os mais conhecidos são sem dúvidas, os madiha Kulina. Cada subgrupo se dizia
autárquico e endogâmico e, eles eram chefiados por um homem que muitas vezes
era também o xamã do grupo. Os Jarawara não falam mais nesta instituições, mesmo
quando perguntados sobre o assunto. Mas quando observamos a composição de
suas aldeias – pequenos grupos endogâmicos de irmãos e irmãs “reais” e seus aliados
– e a organização social do céu – tipos de gente que moram em diferentes lugares e
se disputam frequentemente entre si, com exceção dos poucos aliados, com quem
comemoram o ritual do chicoteamento – vemos que aquilo que foi descrito para os
subgrupos está indiscutivelmente presente na maneira como os Jarawara organizam
e concebem o mundo. No entanto, nos dias atuais, entre os Jarawara, os nomes dos
grupos não fazem apenas referência às plantas, mas também a alguns objetos (faca),
lugares (céu) e pontos cardiais (leste, oeste).
A nossa hipótese consiste em pensar que para os Jarawara idealmente um
subgrupo são os filhos do mesmo pai. Esta hipótese é uma consequência direta da
reflexão sobre o parentesco, a organização social e a cosmologia que descrevemos
neste artigo. Enfatizamos, no entanto, que acreditamos ser este o “ideal”, e não
necessariamente a maneira concreta que estas instituições tomaram e tomam forma
nesta etnia. Um subgrupo Jarawara seria assim uma aldeia constituída dos filhos
biológicos de um pai, corresidentes, e os afins que se uniram a este grupo. Ele
teria como referência o pai, que é também o chefe da aldeia e seu xamã principal.
O nome do grupo estaria diretamente ligado ao nome do pai, “o pessoal de X (o
pai)”. Isto explicaria o porquê de todo Jarawara que me conhecia perguntar, antes
de mais nada, o nome do meu pai. Com esta questão eles queriam saber algo
extremamente importante para eles: o subgrupo a que eu pertencia, ou melhor,
que tipo de gente era.
294
Álbum Purus
Fabiana Maizza
Referências
CLASTRES, P. La Société contre l’État: recherches d”anthropologie politique. Paris: Les
éditions de minuit, 1974.
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O nome do pai: a centralidade da figura paterna...
295
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Contrastes entre semejantes y extraños
Jadawa versus Waduna: cosmovisión suruaha de
nuestro desorden
Miguel Aparicio
El origen: los ancestrales Ajiaji y Wanykaxiri1
Aijumarihi caminaba por la selva buscando frutas. Cogía
una fruta, la frotaba, la golpeaba: la fruta se transformaba en
gente. Cogió varias frutas que dieron origen a los diversos
pueblos. Entonces les pedía que hablasen:
― ¡Habla!
Y como no podía entender las palabras de las personas,
las despreciaba y las echaba de allí. De la fruta del ucuqui hizo
que surgieran los Juma. La semilla del ucuqui es grande, por
eso los Juma son altos y fuertes; nadie entiende el lenguaje
de los Juma. De la fruta del patauá surgieron los Zamade:
también su lengua es incomprensible. De la fruta del árbol de
brea surgieron finalmente los Saramade, antecesores de los
Suruaha. Aijumarihi cogió la fruta, la restregó, la sacudió, de
ella salieron las personas, que fueron pintadas con bija. No las
despreció, permitió que se quedaran con él porque su manera
de hablar era muy bonita. Hizo dos parejas, que serían después
maridos y mujeres. Aijumarihi les enseñó a construir la casa,
los pilares que la sustentan, los amarres de bejuco de titica, el
tejido de palma de caranaí que cubre la maloca. Jumanihia, la
esposa de Aijumarihi, les enseñó a las mujeres el trabajo con
arcilla, con algodón y la manera de tejer las hamacas.
Todos vivían en casa de Aijumarihi. Las personas se juntaron
y el pueblo aumentó cada vez más. Aijumarihi les enseñó a
hacer las flechas, el curare de kaiximeni, la cerbatana, las saetas,
el arco, la aljaba. Con Jumanihia, las mujeres aprendieron a
hacer hamaca, cesto, abanico, ollas y vasijas, así como a hilar el
algodón. Poblaron toda la selva, y así Aijumarihi y Jumanihia
regresaron a su tierra, al otro lado del río Oaha.2
1 Relato por Ohozei, en la maloca de Henijei, en octubre de 1999.
2 El río Purus, afluente del río Solimões.
296
Álbum Purus
Miguel Aparicio
El origen de los Suruaha
Los Suruaha viven actualmente en las tierras firmes situadas entre los ríos
Coxodoá (Haxinawa) y Riozinho (Hahabiri), afluentes del río Cuniuá, en la cuenca
del río Purus, municipio de Tapauá, estado de Amazonas. Su área está demarcada
y homologada por el Gobierno Federal brasileño desde 1991, y cuenta con una
extensión de 239.070 hectáreas. La población suruaha se sitúa en torno a los 140
individuos.
El avance del frente cauchero regional en los ríos Tapauá y Cuniuá en las
primeras décadas del siglo 20 dio lugar a las masacres que diezmaron a los diversos
subgrupos suruaha. Ataques violentos, expediciones armadas y diseminación de
epidemias forzaron a la unificación de los supervivientes en el territorio tradicional
del subgrupo jokihidawa, que acogió a los otros subgrupos suruaha en fuga:
masanidawa, sarokwadawa, adamidawa, entre otros. El lugar que los supervivientes
ocuparon, de difícil acceso y alejado de los centros comerciales regionales, se mantuvo
hasta la actualidad como región de refugio y resistencia del pueblo suruaha. A partir
de la década de ’20, con la generación de Dawari, Mixijaru y Wixinia, la práctica
ritualizada del suicidio se consolidó de modo dominante, como consecuencia de
la experiencia traumática de las masacres y de la crisis del poder chamánico. La
nueva situación supuso un verdadero colapso, las marcas de la tragedia llevaron a
los Suruaha a reinterpretar su vida colectiva y sus símbolos de referencia. Nuevas
invasiones de caucheros irrumpieron en la década de los ’70. Para evitar una nueva
situación de conflicto y violencia que pudiese llevar al exterminio de los Suruaha, un
equipo del Cimi emprendió la expedición de contacto, que encontró a los Suruaha
en 1980. Desde entonces, la relación de los Suruaha con la sociedad brasileña ha
estado totalmente mediada por la asistencia y protección de equipos indigenistas.3
La memoria suruaha remonta los orígenes del pueblo a los ancestrales Saramade4,
de los cuales heredaran las tradiciones y los conocimientos más importantes. Los
3 Además del Cimi, han intervenido en el área Suruaha: la Opan (Operação Amazônia Nativa); la agencia
misionera protestante Jocum (Jovens con una Missão, vinculada al SIL — Summer Institute of Linguistics);
la Funai (Fundação Nacional do Índio, órgano indigenista oficial vinculado al Ministerio de Justicia del
Gobierno Federal); la Funasa (Fundação Nacional de Saúde, órgano del Ministerio de Sanidad responsable
por la asistencia sanitaria a poblaciones indígenas); y más recientemente, desde 2000, el Ministerio Público Federal. En la actualidad, la Coordinación General de Indios Aislados de la Funai realiza un Programa de Protección Etnoambiental en territorio suruaha, con la colaboración del Projeto Aldeias (Consorcio
Opan/World Vision) y del CTI — Centro de Trabalho Indigenista, con recursos de cooperación de Usaid.
4 Literalmente, Saramade significa “gente de las várzeas” (llanuras aluviales). Históricamente, numerosos
pueblos indígenas de Amazonia se desplazaron del hábitat de várzea a las áreas interfluviales o tierras
firmes, que se constituyeron en regiones de refugio, según la expresión de Aguirre Beltrán. Cfr. M. MARZAL. “Indigenismo en México: Gonzalo Aguirre Beltrán”, en El indigenismo: “Rebeldes y Utópicos”. Lima,
1961, p. 255-265.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
297
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
diversos subgrupos suruaha ― Masanidawa, Jokihidawa, Sarokwadawa, Suruaha
made,5 Adamidawa, Nakandanidawa, Tabusurudawa, Eidahindawa, Kurubidawa,
Aijanema made, Dawihadawa ― encuentran en los Saradawa su origen común.
Los productos etnográficos realizados hasta hoy no han dado suficiente
destaque a la memoria de los relatos sobre los Saramade como clave de ancestralidad
en la memoria oral suruaha, por eso puede ser oportuno detenerse en este tema. El
tiempo de los Saramade es el tiempo de los grandes chamanes, de las metamorfosis
extraordinarias que dan origen a los seres y fenómenos importantes de la realidad.
Pero esta era primordial no se concibe como un tiempo de armonía y equilibrio:
luchas, conflictos, hechizos de muerte marcan los relatos de los Saramade,
manifestando ya una de las constantes que encontraremos en la mitología suruaha
actual: su tono trágico y violento, seguramente debido a la relectura de la tradición
oral que las generaciones contemporáneas han efectuado, a partir de la experiencia
colectiva de las masacres y de la consolidación del ritual de suicidio como horizonte
preferencial colectivo. Así, por ejemplo, Ikiji me refirió que “los Saramade vivían
en varias casas, y a veces buscaban jóvenes de otras casas para casarse. Por eso,
a veces surgían luchas y disputas. En cierta ocasión, los hombres de una maloca
atacaron otra maloca durante la noche, y mataron a todas las personas, hombres,
mujeres y niños”.6 Ainimoru me contó que “los Saramade se acabaron debido a
tantas luchas entre ellos. Fue en la época en que murió el hijo de Makasu. Los hijos
de los Saramade, los Aigewa made, estaban en el río Hahabiri. Los persiguieron hasta
una playa. Allí los mataron golpeándolos en la sien, a otros los agarraron y los
ahogaron en las aguas del Hahabiri hasta que murieron. Abandonaron sus cuerpos
en la tierra firme, no los enterraron”.
La presencia perturbadora del mundo occidental ― los Jara, designación común
de los “blancos” para la mayoría de los pueblos arawa ― ya aparece en los relatos
orales sobre los Saramade, como demuestran las palabras del joven Ania al hablar
sobre el origen de las armas de fuego: “Los Saramade eran violentos, guerreros,
luchaban y guerreaban contra los Jara. Antiguamente los Jara no tenían escopetas;
usaban flechas para cazar y para luchar. Las flechas de los Jara eran de punta de
hierro. Después de sufrir muchas muertes por ataques de los Saramade, un chamán
de los Jara subió al cielo y fue hasta la morada del trueno. Allí conoció las escopetas
y la máquina para fabricarlas. Desde aquel tiempo, los Jara las poseen. Las escopetas
son muy potentes y hacen un ruido muy intenso”.7
5 La denominación Suruaha originalmente correspondió a un subgrupo específico y sólo a partir de los años
— 80 adquirió una significación colectiva, como explicaremos más adelante.
6 Relatado por Ikiji en la maloca de Henijei, el 6 de noviembre de 1999.
7 Relato de Ania en la maloca de Dihiji, el 25 de abril de 1998.
298
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Las narraciones que enlazan el tiempo ancestral de los Saramade con el
momento actual hablan de diversos pueblos con los que los diversos subgrupos
suruaha se relacionaban, estableciendo alianzas, realizando trueques o manteniendo
hostilidad. Pero el momento crucial lo constituyen las masacres ocurridas con
el avance del frente cauchero, que introduce a los Suruaha en un periodo de
aislamiento y de refugio territorial. Las redes externas de intercambio se rompen,
los supervivientes de los diferentes subgrupos optan por una unificación necesaria,
y en el cambio de perspectivas surge un ritual de suicidio que se ha consolidado en
las últimas generaciones, hasta los tiempos actuales. La reconstrucción del universo
relacional es actualmente muy precaria, ya que las entidades indigenistas, misioneras
y los organismos públicos acaparan totalmente la red actual de interacciones que
viven los Suruaha. Una red de ficciones, en las que los Suruaha elaboran su imagen
del mundo occidental casi solamente a partir de las agencias asistenciales, y en la
que éstas proyectan sus ideales de indigenismo para proteger lo que se considera un
genuino pueblo amazónico, una especie de survival indígena.
Antes del contacto con el frente extractivista brasileño, en el avance de
los caucheros sobre la cuenca de los ríos Tapauá y Cuniuá, los Suruaha estaban
organizados en varios subgrupos de relativa autonomía territorial y política, entre
los que había un flujo constante de intercambios. De hecho, la denominación actual
Suruaha surgió como etnónimo común a todos los subgrupos (unificados en el
territorio actual, asentamiento tradicional de los Jokihidawa, tras las masacres) como
respuesta necesaria a la demanda de los equipos indigenistas en los primeros años de
contacto. En realidad, cuando se pregunta a alguien sobre su origen, cada individuo
suruaha se remite enseguida a su subgrupo de referencia: Suruaha hysukoanei,
Tabusurudawa (“No soy Suruaha, soy Tabusurudawa”), me decía siempre Hamy
cuando respondía a mi interpelación. Según esto, podemos identificar los siguientes
subgrupos como integrantes de los Suruaha actuales: Masanidawa, Jokihidawa,
Sarokwadawa, Suruaha, Adamidawa, Kandanidawa, Tabusurudawa, Eidahindawa,
Kurubidawa, Aijanema mande, Dawihadawa. Cada subgrupo8 funcionaba, por
lo tanto, como unidad residencial, oda, que realizaba el “ajuste” “entre los ideales
sociológicos caracterizados por la naturaleza consanguínea, endogámica y autónoma
de las unidades residenciales y las ideas metafísicas o cosmológicas dominadas por
8 Para definir los subgrupos, nos es útil el enunciado de Kaplan-Kaplan sobre los Piaroas en la región del
Orinoco: cada subgrupo posee una identidad que lo distingue como un grupo de cognados que viven juntos en un determinado lugar, que tiene un nombre propio, y que debe ser contrastado con los miembros
de otras casas, cada una de las cuales también se localiza en un determinado lugar con nombre propio:
KAPLAN-KAPLAN, cit. por RIVIÈRE, Peter. O indivíduo e a sociedade na Guiana. São Paulo: Edusp, 2001,
p. 60.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
299
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
una relación conceptual entre lo de dentro y lo de fuera, asociado respectivamente
a la seguridad y al peligro, a la similitud y a la diferencia”.9 Una de las consecuencias
más graves del choque con el mundo occidental será la ruptura de esta red de
intercambios subgrupales, y la reorganización compulsiva que supuso la unificación
de los supervivientes de los subgrupos en una sola unidad residencial, a orillas del río
Jokihi. Todos los subgrupos fueron duramente fragilizados, algunos prácticamente
extinguidos. No es equivocado afirmar, en consecuencia, que los Suruaha actuales se
han organizado a partir de la ruina de los subgrupos, y que son el vestigio resistente
que ha quedado tras el impacto con el mundo occidental.
Jadawa, Waduna. El terror de los extraños
No hay duda de que la situación de aislamiento que los Suruaha han
vivido en décadas pasadas debe explicarse en clave de desequilibrio del universo
relacional, y no como una supuesta condición favorable de “preservación de la
identidad cultural”, como complace a algunas visiones indigenistas que han insistido
en el refuerzo de la protección frente a las “amenazas del mundo externo”. La
red de intercambios (positivos o conflictivos) que los Suruaha vivieron antes del
aislamiento se desarrollaba en dos ámbitos: el de la relación inter-aldeana que
mantenían los diversos subgrupos; y el de las relaciones externas con otras etnias
indígenas y con comunidades caucheras ribereñas. A partir de las narrativas orales y
de la retrospectiva genealógica, voy a intentar reconstruir en la medida de lo posible
las condiciones de interacción social en que vivían los subgrupos antecesores de
los Suruaha contemporáneos. Nos remontaremos, aproximadamente, a la quinta
generación anterior a la de los adultos actuales, lo que nos sitúa aproximadamente
alrededor de 1880. Se trata, por lo tanto, de la época del primer ciclo cauchero que
vivió Amazonia,10 y que afectó ya a todos los pueblos indígenas de la cuenca del
Purus.
En la lengua suruaha existe una oposición binaria que expresa la tensión
entre dos mundos que se confrontan entre sí: jadawa versus waduna. Los jadawa
(expresión que podríamos traducir como “los nuestros”) son los miembros del
pueblo, “aquellos que hablan bien” (ate tijuwa), según la mitología nativa sobre el
9 RIVIÈRE, Peter. ibid., p. 11.
10 La “segunda ola de cambios” de la Amazonia indígena, según el análisis de SANTOS GRANERO, Fernando.
“Hacia una antropología de lo contemporáneo en la Amazonía indígena”, en Id., Globalización y cambio
en la Amazonía Indígena. Quito: Abya Yala, 1996, p. 17 ss.
300
Álbum Purus
Miguel Aparicio
origen de los pueblos.11 Comparten un mismo universo simbólico y se remiten al
origen común de los ancestrales Saramade. Los subgrupos mantienen su red de
intercambios, alianzas y conflictos de hechicería en un espacio territorial próximo,
algo mayor que el territorio indígena actualmente demarcado por el gobierno
brasileño, y que tiene como eje el río Cuniuá y sus afluentes Haxinawa (Coxodoá) y
Hahabiri (Riozinho). En contraposición a los jadawa están los waduna (“los otros”),
los pueblos “que hablan mal” (ate tijuwanaxu), y que la historia ha mostrado como
peligrosos. Aunque la memoria colectiva habla de intercambios antiguos con los
waduna, domina una concepción negativa sobre ellos, caracterizados con atributos
tales como la violencia, el canibalismo, el poder de diseminar enfermedades,
el dominio de las armas de fuego y la capacidad incesante de avanzar sobre las
tierras ancestrales. El río Oaha (el Purus) aparece como el espacio originario de los
waduna.
La memoria del terror: la vorágine cauchera
en la cuenca del Tapauá y Cuniuá
La red heterogénea de relaciones externas de los subgrupos suruaha, y la
dinámica interna de intercambios entre ellos, se vieron radicalmente alteradas por el
impacto del avance del frente cauchero sobre sus territorios. La experiencia colectiva
del terror se extendió a todos los pueblos indígenas de la cuenca de los ríos Tapauá
y Cuniuá, dando lugar a respuestas colectivas diversas. Para los Suruaha, se inicia un
proceso de fragilidad, pérdida de territorios, supresión de intercambios. El drama
colectivo lleva a los supervivientes a instalarse en una región de refugio ― las tierras
de los Jokihidawa ― que corta los vínculos externos, debido al miedo que causa la
violencia expansiva de los Jara.
A partir de 1861 las expediciones de Manoel Urbano abren paso a la
implantación de la economía extractiva del látex en la cuenca del río Purus. El
esquema de explotación del látex de hevea brasiliensis y de otras especies gomeras se
consolida en la región con Manoel Urbano y con Antonio Labre como pioneros,
establecidos respectivamente en los asentamientos de Canutama y Lábrea. El nuevo
modelo de explotación económica implantado en Amazonia provoca la migración
11 En este sentido, el término jadawa es más contrastivo que el término made, que podemos traducir como
gente, pueblo, y que se encuentra también en otras lenguas arawa (equivale, por ejemplo, al término
madiha de las lenguas deni y kulina). Como afirma Viveros de Castro, las palabras amerindias que suelen
traducirse como ser humano, y que entran en la composición de tales autodesignaciones etnocéntricas,
no denotan la humanidad como especie natural, sino la condición social de la persona […]. Indican la
posición del sujeto; son un marcador enunciativo, no un nombre. Lejos de manifestar un estrechamiento
semántico del nombre común al propio (tomando ‘gente’ como nombre de la tribu), esas palabras muestran lo opuesto, yendo de lo substantivo a lo perspectivo”: VIVEROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes
cosmológicos e o perspectivismo ameríndio, en Mana 2(2): p. 124-125.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
301
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
masiva de contingentes de trabajadores oriundos de las sabanas del nordeste de
Brasil, e intenta incorporar la mano de obra indígena a la dinámica económica
extractiva.12 “Estos procesos contribuyeron a la ruptura de las antiguas redes de
intercambio interétnico y al aislamiento no sólo de los diversos pueblos indígenas
entre sí, sino incluso de los segmentos pertenecientes a una misma etnia”.13 La
expansión cauchera se difunde de forma imparable por ríos, afluentes e igarapés, en
una amplia red de explotación forestal establecida a través de caucherías, pequeños
asentamientos de trabajadores dispersos por toda la región, incluso en zonas muy
distantes de los centros comerciales, y controlados por los patrones seringalistas
que dominan el esquema de producción mediante el dispositivo del concertaje o
aviamento. La violencia de la implantación de la economía cauchera, la diseminación
de epidemias y el avance sobre los territorios tradicionales llevaron a los pueblos
indígenas a una situación de fragilidad y de amenaza a la supervivencia colectiva.
La relación del frente cauchero con los pueblos indígenas de Amazonia se
dio fundamentalmente a través de estos mecanismos de dominación: la invasión de
sus tierras, la pacificación y las expediciones de exterminio o correrías. La pacificación
buscaba la atracción de los indios con el objetivo de incorporarlos como mano de
obra para la producción extractiva. Se trataba, en el imaginario regional, de “amansar
indios bravos” e integrarlos a la sociedad regional y a las exigencias del proceso
civilizatorio.14 En la región Tapauá-Cuniuá, Chico Severo y Adriano entre los Deni,
Joaquim Cartássio entre los Katukina y los Mamori, y Firmino entre los Banawa
y Jarawara fueron los pacificadores más activos entre 1920 y 1960. Durante mis
expediciones por la región, tuve la oportunidad de conocer a Tição, hijo de Firmino,
y al anciano Chico Severo, último testigo protagonista de este proceso violento
sobre los pueblos indígenas de la región; Chico Severo falleció en 2000, en el
asentamiento ribereño de Foz del Tapauá. Cuando la resistencia indígena se oponía
al avance del frente cauchero, se promovían las correrías, expediciones punitivas de
exterminio que producían la crisis demográfica de las sociedades indígenas o incluso
su exterminio definitivo. En este sentido, la cuenca de los ríos Tapauá y Cuniuá
12 Informaciones sobre el desarrollo de la economía extractiva cauchera en la cuenca del Purus en KROEMER, Gunter. Cuxiuara, o Purus dos indígenas. São Paulo: Ed. Loyola, 1985. p. 78-101; RANGEL, Lucia H.
Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica,1994, p.
32-54 (Tesis de Doctorado); POHL, Luciene, Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena
Hi Merimã. Brasilia: Funai, 2000, p. 33-38.
13 SANTOS GRANERO, Fernando. ibid., p. 19.
14 “El modo de vida creado en las caucherías a partir, notoriamente, de la crisis de 1912, cuando la necesidad hizo que los caucheros tuvieran que hacerse cada vez más conocedores de la selva, haciendo de
ella su despensa, es gran deudor de técnicas, prácticas, conocimientos y creencias indígenas. Esto es
también resultado de la convivencia de los caucheros con indios e indias, que se hicieron parte de la
población de las caucherías de diversas formas, que van desde su captura en correrías hasta la incorporación de tribus enteras a las caucherías”: WOLF, Cristina. Mulheres da floresta. São Paulo: HUCITEC,
1999, p. 174, cit. por POHL, Luciene. ibid., p. 36.
302
Álbum Purus
Miguel Aparicio
aparece como paradigma expresivo que verifica el impacto de estos procesos sobre
el destino de los Suruaha y de los pueblos indígenas vecinos.15
Esta región es, en efecto, un verdadero mosaico de la diversidad de reacciones
indígenas ante la presión cauchera, como puede percibirse al observar el itinerario
de cada uno de ellos. Así, diversos subgrupos Deni fueron incorporados
coercitivamente al trabajo cauchero, con lo que acabaron desplazándose desde su
territorio tradicional hacia el río Cuniuá, principal vía comercial regional, donde
se sitúan sus aldeas actuales. Los Paumari, Jarawara, Banawa y Jamamadi entraron
en procesos acelerados de dependencia e incorporación a los mecanismos de la
economía cauchera. Los Hi Merimã16 y los Suruaha, tras la experiencia traumática
15 Cfr. Cimi. Índios novos. Relatório sobre o contato com os Índios do Coxodoá, Região do Purus, Amazonas.
Lábrea, AM: Archivo Cimi, 1980, p. 5:
“Una expedición del SPI de la jurisdicción de los puestos Tuini y Seruini, dirigida por el auxiliar Santana
Barros, el ingeniero agrónomo Admar Thury y el fotógrafo Anastasio Queiroz, realizada entre el 18 de
marzo y el 24 de abril de 1930, tuvo como objetivo fiscalizar la acción de los comisarios del bajo río
Purus y demarcar las áreas indígenas […]. El informe de esta expedición […] concluye así: No nos ha sido
posible proceder a las demarcaciones de las tierras ocupadas por los indios de las tribus que visitamos,
porque al estar cubiertas por la inundación, el auxiliar Admar Thury estuvo imposibilitado de actuar
en este sentido. Localizaron las siguientes tribus en los ríos Cuniuá y Tapauá: Paumari: en el bajo río
Tapauá y río Purus, hasta la desembocadura del río Ituxi; Mamori: en el medio río Cuniuá; Katukina: en
el río Coatá, afluente del río Cuniuá; Marimã: en el Riozinho, afluente del río Cuniuá; Tucumandubas:
en el bajo río Canaçã, afluente del río Cuniuá; Araçadaini: en los ríos Coxodoá y Aruá, afluentes del río
Cuniuá; Juma: en los ríos Piranhas e Içuã, afluente del río Piranhas; Kanamadi: en los ríos Curiá e Içuã,
afluentes del río Piranhas; Jamamadi: en los ríos Banauá, río Branco y Joarí; Jarauara: en los ríos Apituã,
Curiá, afluentes del Catahixi, que es afluente del Purus. Según el informe del SPI de 1942, los ríos Tapauá
y Cuniuá estaban entre los más interesantes de toda la vasta cuenca del Purus, porque en sus afluentes
había innumerables tribus indígenas: De manera que en el río Cuniuá viven los Katukina, Mamori, Pauquiris, Tucumandubas, Bridamãs, en el río Piranhas los Jamamadi, Kanamadi, Jarauara, en el Curiá los
Jamamadi y Araçadaini, en el Riozinho los Marimãs, formando tal vez la mayor población indígena del
río Purus, con un total de más de mil almas”.
16 En 1999 participé de una expedición de evaluación de las actividades de extracción ilegal de madera en
la Tierra Indígena Hi Merimã, promovida por Greenpeace (cfr. ADÁRIO, Paulo. O roubo de madeira na
bacia do rio Tapauá. Manaus: Greenpeace, 1999, 9 p .). Durante el viaje tuve oportunidad de conversar con Rieli Franciscato, jefe del Frente de Indios Aislados del Purus (Funai), y que durante los meses
anteriores realizó el levantamiento de datos de campo en territorio Hi Merimã. Me llamó la atención el
hecho de que muchas informaciones de Franciscato eran plenamente compatibles con las descripciones
que los Suruaha hacen sobre los Hi Merimã. Recogí algunos contenidos de los diálogos con Franciscato
en mis cuadernos de campo:
Los Hi Merimã son nómadas. Con la presión cauchera que sufren, se adaptaron a la vida de cazadores
recolectores y probablemente abandonaron prácticas agrícolas anteriores. Actualmente no abren rozas
y no plantan uno de los cultivos básicos de la región: la mandioca. La palmera patauá es de utilidad
fundamental: de ella extraen los dardos de sus cerbatanas, de sus hojas de palma obtienen la techumbre de sus cabañas, de su madera fabrican arcos y flechas, sus frutos son alimento cotidiano. Tal como
narran los Suruaha, los Hi Merimã usan la corteza del jutaí para cocinar las frutas del patauá; con ella
hacen una bebida muy nutritiva. De todas formas, poseen también vasijas de cerámica, semejantes a las
suruaha, muy frágiles. Plantan un tubérculo de gran tamaño, con el que elaboran una masa comestible:
también los Suruaha hablan de esta planta en los relatos antiguos, un tubérculo que ellos denominan
bija, plantando en tierra firme sin necesidad de roza. Hasta el momento (1999) el grupo de trabajo de
la FUNAI que trabaja en la delimitación de la T.I. Hi Merimã ha encontrado 53 campamentos, todos ellos
con bohíos cubiertos con palmas de patauá. Hay también cementerios circulares, con cadáveres en posición fetal bajo listones de paxiúba, junto a sus pertenencias y algunos alimentos. El grupo debe de tener
aproximadamente unos 70 miembros; a veces, se dividen en dos o tres subgrupos que se reencuentran.
En el río Branco, afluente del Piranhas, hay vestigios de otro grupo diferente de los Hi Merimã. Sobre la
identidad de este grupo, no hay pistas claras.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
303
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
del impacto con el frente regional, rompieron sus redes de intercambio y se aislaron
en regiones de refugio menos accesibles.
Los Katukina y los Mamori no resistieron ante el proceso de invasión y
acabaron siendo definitivamente exterminados. El informe del SPI de 1930 registró
una población de 65 personas entre los Mamori del río Cuniuá, y 51 personas entre
los Katukina de los ríos Canaçã y Coatá. Se relata una epidemia de gripe en los
años 1922-1924 que causó numerosas víctimas en estas aldeas. De hecho, estas
informaciones coinciden con las que obtuve en las investigaciones sobre relatos
orales suruaha, que hablan de epidemias que se encuadran en esta misma época.
Llévese en cuenta que tanto los Mamori como, sobre todo, los Katukina, están
localizados en áreas muy próximas al hábitat de algunos subgrupos suruaha, y que
éstos narran episodios de visitas y encuentros entre los Katukina y los Masanidawa.
El ataque cauchero a subgrupos suruaha tuvo lugar en la década de ’20, pocos años
antes del exterminio definitivo de los Mamori y Katukina en la década de ’40.
Este mecanismo de cooptación17 por el que los patrones y comerciantes
establecían alianzas de conveniencia con un grupo indígena (proporcionándoles
armas de fuego, herramientas y utensilios del ‘hombre blanco’) para emprender
ataques a otros pueblos fue otro de los factores de desarticulación de las sociedades
indígenas. La alianza de los caucheros y los Katukina contra los Mamori terminó
poniendo fin a la historia de ambos pueblos.18 Los relatos suruaha refieren también
un proceso análogo, e identifican una coalición entre los Jara (los caucheros) y
los Abamade (los Paumari), protagonistas de los ataques a los Masanidawa y otros
subgrupos suruaha.
El itinerario de los Suruaha se inscribe en todo este marco de convulsiones
colectivas, de transformaciones dramáticas derivadas de la irrupción violenta de
16 En los años ’50, el pacificador Firmino y su acompañante Bazé (un Banawa que trabajaba a su servicio)
encontraron a una familia Hi Merimã. Pasaron cuatro días con ellos en la orilla del río Piranhas, después
se marcharon. Durante esos días conversaron con Bazé y le dijeron que su nombre era ‘Hi Merimã’.
Posteriormente hubo un nuevo encuentro entre dos Paumari (uno de ellos llamado Zé Grande) y algunos
Hi Merimã. Los Paumari asesinaran a los hombres, violaran a algunas mujeres y dejaron huir al resto
del grupo. Tição, hijo de Firmino, me contó en cierta ocasión que en los años ’70 encontró un grupo de
indios en el alto Piranhas que, según él, no eran Hi Merimã: a diferencia de ellos, las mujeres vestían
tangas de algodón, muy parecidas a las de los Suruaha”.
En el pueblo de Canutama escuché una leyenda local acerca de indios que habitan en las tierras del río
Piranhas, que no poseen casas, no cultivan rozas y duermen bajo tierra. Se les conoce como índios-tatu
(‘indios-armadillo’) y, para algunos caucheros, se trata ciertamente de los Hi Merimã…”.
17 SANTOS GRANERO, Fernando (org.), op. cit., p. 20.
18 Supervivientes de los Mamori y de los Katukina del Cuniuá viven integrados a los Paumari, en la aldea de
Manissuã, en el río Tapauá. Allí encontré a Ademarzinho, Katukina y al anciano Luís, que con orgullo me
decía que su verdadero nombre era Sipatihi, en la lengua de su pueblo: los Mamori. En los últimos años
se observa un proceso creciente de emergencia de los Katukina y los Mamori en Canutama.
304
Álbum Purus
Miguel Aparicio
la economía cauchera en la región. Las etnias de la cuenca del Cuniuá, todas ellas
pertenecientes al complejo Arawa, vivieron con la implantación de la economía
cauchera la eliminación de sus dinámicas de interacción social, ritual y comercial.
Todas vivieron desequilibrios que afectaron definitivamente sus condiciones de
reproducción física y cultural. Los Suruaha consiguieron resistir a la perspectiva de
incorporación ofrecida por los pacificadores, y pequeños grupos de supervivientes
escaparon al impacto de las correrías y las epidemias. Quedaba una “tercera vía”,
incierta y arriesgada: la del aislamiento. Fue esta la alternativa que les llevó a refugiarse
en las tierras del Jokihi.
Las narrativas del terror
Por el hecho de ser seres humanos, los indios salvajes pudieron
servir como mano de obra y como objetos de tortura; ya que no
es la víctima, en cuanto animal, la que gratifica al torturador, sino
el hecho de que la víctima es humana, y capacita así al torturador
para hacerse salvaje (Taussig19).
En 1994, antes de conocer a los Suruaha, vivía en el pequeño pueblo de
Canutama, a orillas del Purus: una localidad de pescadores y pequeños agricultores,
la mayor parte de ellos ex-caucheros y todavía dedicados a actividades extractivas.
En febrero, durante el invierno amazónico, me observé que numerosos grupos de
hombres se preparaban para viajar a áreas remotas de selva, para participar en la
recolección de la castaña de Pará, una especie de fruto silvestre muy apreciada en
el mercado regional y nacional. Me sumé a uno de los grupos de trabajadores que
se dirigía a unos castañales próximos a la carretera Transamazónica, subiendo las
aguas del río Mucuim durante aproximadamente cinco días de viaje en una pequeña
embarcación a motor. Allí trabajaríamos durante dos meses, junto con algunas
personas de una comunidad ribereña próxima a los castañales. En el itinerario estaba
previsto pasar por el igarapé Içuã, afluente del río Mucuim donde habitan los Juma.
Había oído hablar de ellos antes incluso de mi llegada a Amazonia, y en Canutama
había participado de conversaciones que relataban episodios conmovedores sobre
este pueblo indígena, ya prácticamente exterminado. De ellos se contaba que, a
inicio de los años 60, habían matado a una pareja de caucheros de Canutama: el
cuerpo del marido apareció acribillado de flechas a la orilla del río y su mujer,
embarazada, había sido descuartizada, con el vientre abierto y el feto atravesado por
19 TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura.
São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1993, p. 94.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
305
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
una flecha.20 En abril de 1964, Daniel Albuquerque, alcalde de Tapauá, y Orlando
França, comerciante, organizaron una expedición punitiva contra los Juma. Tras
realizar un sobrevuelo previo para identificar su localización exacta, contrataron un
grupo de pistoleros. El grupo de exterminio atacó a los Juma en el igarapé Onça y
los persiguió hasta el igarapé Veado. Fueron asesinados brutalmente 40 hombres,
mujeres y niños. Un ribereño que pasó después por el lugar de la tragedia dijo que
“vio pecarís comiendo los cuerpos de los indios, las cabezas estaban esparcidas
como castañas debajo de los árboles”. El principal responsable del ataque, Orlando
França, declararía en cierta ocasión: “Mandé matarles, sí, y ha sido una honra porque
libré a Tapauá de esas bestias feroces”. 21
Al llegar a la aldea Juma me encontré a los últimos supervivientes de este
pueblo, que nos recibieron con cordialidad: Bahu, el líder, Ite, muy anciana, una
mujer adulta, un hombre también anciano y dos adolescentes. Los castañeros les
ofrecieron algunos obsequios: azúcar, fósforos y anzuelos; pocas horas después
nos despedimos de ellos y continuamos nuestro viaje. Las escasas horas en que
permanecí con los Juma dejaron en mí un recuerdo inquieto durante las semanas en
el castañal. De hecho, había tenido la extraña oportunidad de estar en el lugar de una
tragedia relativamente reciente, y de conocer a testigos directos, supervivientes, de
uno de las masacres que habían marcado la historia indígena del Purus. Días después
mantuve varias conversaciones con mis compañeros de castañal, que describían a
los Juma como un pueblo violento y cruel en el pasado. Me admiré cuando uno
de ellos, conocido como Tote, nos contó que él mismo había participado de una
expedición de ataque a los Juma y que había matado a tres de ellos: “les apunté
como quien apunta a un bando de monos lanudos”. Después, con una sensación
de remordimiento, explicaba: “en aquella época creíamos que indio era animal, no
era gente, no era cristiano”. Todo este ambiente, durante los comienzos de mi vida
en Amazonia, desempolvaba algunas tesis que había estudiado en la universidad, y
daba la razón a Walter Benjamin al afirmar que los documentos de la civilización
son también documentos de barbarie. Mi permanencia en el castañal me mostró
cómo el imaginario de las poblaciones amazónicas excluidas, tanto los indios como
20 Incluso los registros de la iglesia local transmiten este imaginario de terror sobre los Juma: Habitantes
del Purus y del Paraná Pixuna, los Juma son los indios más temidos y que jamás se ponen en contacto
con los civilizados; de aspecto gigantesco y pies enormes, se afirma que son antropófagos: Agostinianos
Recoletos, Cinquentenário dos Agustinianos Recoletos no Brasil, 1899-1949. São Paulo, p. 129-130.
21 Orlando França nunca fue punido por este genocidio, y durante los años que viví en Lábrea continuaba
normalmente dedicado a sus negocios de comerciante, era común verle pasear por la calle. Sobre la
tragedia de los Juma, cfr. CORNWALL, Ricardo. Os Jumas: a continuação da violenta redução dos Tupi.
Ceará: Madalena, 2003, 245 p. (en este libro obtuve las declaraciones citadas). Cfr también CIMI, Matança de 40 índios no Purus dá processo segundo OAB em Porantim 5 (1978).
306
Álbum Purus
Miguel Aparicio
los caucheros y sus actuales descendientes caboclos, ha sido construido a partir de
una experiencia histórica de extrema violencia. Estas impresiones se tornaron aun
más contundentes cuando semanas después, ya en Canutama, mi compañero de
expedición Chico Severino me daba la noticia de que Tote acababa de ser asesinado
pocos días antes con un hachazo en la espalda, en su propia comunidad, a manos
de Manoel Maquinista, un ribereño vecino que, tras el siniestro, huyó de la región.
Una historia que parecía arrancada de las páginas de Dostoievski en Crimen y castigo,
y que desmontaba mis fronteras personales entre realidad y ficción.
Tras iniciar en 1995 mi trabajo indigenista con los Suruaha, tardé algún
tiempo en salir del encantamiento que produce la convivencia con un “pueblo
de poco contacto” y comencé paulatinamente a darme cuenta del imaginario de
violencia que también ellos habían construido, de manera peculiar, a lo largo de
su historia reciente. Esta violencia había dejado sus vestigios a ambos lados de la
‘frontera’ de esta tierra indígena, ahora semi-aislada, asistida por el proteccionismo
de la intervención indigenista. En efecto, los últimos ribereños del río Coatá, del
lago Caputiano, del río Cuniuá vivían en pleno año 2000 una situación de miseria,
aislamiento y exclusión de cualquier condición de ciudadanía. La época del oro
negro, el caucho, ya había terminado en estas tierras, había exterminado pueblos
indígenas que habían habitado en ellas y los había reemplazado por caucheros hoy
decadentes y miserables, en un cotidiano de malaria y pobreza desconocido en los
centros urbanos de Amazonia.
Pero el proyecto cauchero, ya fracasado, había dejado rastros imborrables
entre los Suruaha. Los relatos que presento a continuación son memoria de la
masacre sufrida por los subgrupos suruaha en la década de 1920. La economía
política del caucho se había implantado en décadas pasadas como un “exceso de
tortura” que difuminaba de cierta manera la autenticidad de las atrocidades vividas y
las tornaba fantásticas (Taussig, p. 45-51). El terror se instaura como una especie
de “ficción real” en el que se inscribe la lectura de la propia experiencia colectiva.
Desde esta perspectiva la alteridad se define según parámetros de violencia: los
indios son salvajes para los caucheros, los caucheros son salvajes para los indios.
Historias de canibalismo y de exterminio surgen de ambos lados. Desde la perspectiva
cauchera, “el canibalismo resumía todo aquello que se percibía como grotescamente
diferente acerca del indio, y al mismo tiempo propiciaba a los colonizadores una
alegoría de la propia colonización”.22 Hay que considerar que, como advierte
22 Cualquiera que haya sido su significado para los indios, el canibalismo funcionaba para la cultura colonial como un signo flexible para la construcción de la realidad. Al condenar el canibalismo, los colonialistas establecían una profunda complicidad con él […]. Al comer al trasgresor de esas diferencias, el acto
de consumir la alteridad no era tanto un acontecimiento como un proceso, desde el vacío que irrumpía
en el momento hasta la reconstitución de sí mismo, del consumidor, a través de una alteridad aún caliente. Así la propia colonización se vio afectada. Imputado a los indios, el canibalismo fue tomado de
ellos como una imagen onírica muy apreciada, que hablaba sobre los temores de ser consumido por la
diferencia”: TAUSSIG, Michael op. cit., p. 113-114.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
307
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Sahlins, el canibalismo es “siempre simbólico, incluso cuando es real”,23 y se insiere
en un imaginario de alteridades desencontradas. Desde la perspectiva indígena, el
canibalismo se sitúa como una dinámica inherente a la peligrosidad de los extraños,
los waduna: hace parte de la irracionalidad y de la violencia colonial. En este
sentido, de la misma manera que el universo waduna (el universo de la extranjería)
se contrapone al universo jadawa (el universo de la proximidad), el canibalismo se
opone a la comensalidad, como mecanismo de identificación que no sólo marca
las relaciones entre los subgrupos jadawa, sino que incluso las produce, a través de
dinámicas de intercambio y ritualidad.24
Los pobladores de la selva, indios y caucheros, han vivido marcados por la
sensación trágica de la muerte violenta y, ante la conmoción de la realidad, elaboraron
un universo ficcional que estructuró sus propias percepciones, dando origen a culturas
del terror. Esta experiencia de la muerte constituye, también para los Suruaha, una
fuerza cultural 25 que orienta definitivamente su vida social y política, su universo ritual
y sus relaciones de alteridad. Las lecciones convencionales de la historia occidental
nos llevan, en un primer impulso, a retrotraer el impacto violento vivido por los
pueblos indígenas a un momento primordial uniforme, unívoco, como si Colón o
Cabral hubiesen sido los únicos protagonistas del desastre. Por otra parte, tendemos
a escuchar las mitologías indígenas como narraciones ancestrales, leyendas de una
era primigenia cargada de episodios cosmogónicos, protagonizados por chamanes
heroicos. ­Poco a poco advertí que la memoria oral suruaha transmite menos las
cosmogonías arcaicas que las violencias próximas, y que su tono insistentemente
conflictivo muestra las reconstrucciones que los “mitos” han recibido al cargarse de
“historias” y experiencias de terror. Cuando Axa, Ainimoru, Kwakwei empezaron
a contarme las historias de las masacres, me quedé profundamente impresionado
al darme cuenta de que estaban hablando de las vidas de sus abuelos y bisabuelos,
de que nos separaban apenas tres generaciones del drama colectivo que los
condujo al aislamiento y al suicidio. Los Suruaha empezaron a perder a mis ojos el
carácter de “paisaje etnográfico” y me di cuenta de que hablaban de una tragedia
increíblemente próxima a sus vidas. Me acordaba de las historias que circulaban en
mi propia familia sobre la Guerra Civil Española de los años 1936-39: la masacre
de los vecinos de mis abuelos maternos en el Monte Palomo, en Avilés (Asturias);
23 SAHLINS, M. “Raw women, cooked men and other ‘Great Things’ of the Fiji Islands”, 1983, In: CARNEIRO
DE CUNHA, M. “Canibalismo”, In: BONTE, Pierre; IZARD, Michel. Diccionario Akal de Etnología y Antropología. Madrid: Akal, 2005, p. 92.
24 Cfr. FAUSTO, Carlos. Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia, en Mana 8(2): p. 32,
2002, Rio de Janeiro.
25 ROSALDO, Renato. Cultura y verdad. La reconstrucción del análisis social. Quito: Abya Yala, 2000, p.
33-36.
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Álbum Purus
Miguel Aparicio
la migración necesaria a Cuba de tíos-abuelos que nunca volvieron; las heridas en
combate de mi abuelo paterno en la batalla de Málaga; la tuberculosis que afectó
a mi padre y a algunos de sus hermanos durante los difíciles años de posguerra, y
que acabaron produciendo la muerte de algunos de ellos, en plena infancia; el largo
viaje de la familia hacia las tierras de origen, de Melilla a Valladolid. Para Xamtire,
la muerte de Myzawei y el exterminio de los Masanidawa no era otra cosa que un
recuerdo de la vida de sus abuelos, como para mí lo eran las historias de la guerra
española. Había muchas cosas en común de ambos lados: los ataques violentos, las
epidemias, el desplazamiento forzoso, la incertidumbre del futuro, la muerte de los
familiares. Más todavía: entre el drama de los Masanidawa en los años ’20 y Xamtire
en la actualidad, entre mis abuelos y yo, había prácticamente la misma distancia
en el tiempo. Me di cuenta de que estas historias eran mucho más que mitos para
una etnografía, y que al escucharlos, tenía acceso a un desconocido documento de
barbarie escrito en la selva amazónica, mucho más reciente de lo que mis prejuicios
de neo-etnógrafo hubiesen podido suponer.
El relato de Axidibi
Axidibi contó este minucioso y conmovedor relato en junio de 2000, durante
un viaje que promoví a los antiguos territorios masanidawa.26 Axidibi es hijo del
chamán Xamtire, y siempre manifestó un especial orgullo y dedicación para acoger
las enseñanzas de su padre, que en los últimos años ha sido uno de los mejores
depositarios de las tradiciones orales de los Suruaha. Llévese en cuenta que tan sólo
tres generaciones separan a Xamtire de los protagonistas de los hechos descritos:
Masanidawa (abuelo de Xamtire), Myzawei y Karokwei, entre otros, vivieron la
masacre de los Masanidawa en la década de ’20. Un año después de la narración
de este relato, Axidibi murió a los 19 años de edad, en un suicidio colectivo en el
que también perdieron la vida su padre, Xamtire, su madre, Deiahka, y otros cinco
Suruaha.
Los Masanidawa eran muchos, entre ellos había un chamán llamado
Myzawei. La gente de Myzawei era numerosa. Entonces llegó… ¿quién
era? Sí, era Niami. Niami llegó a la casa de los Masanidawa, con su hijo
Wakuwaku, y otras personas de los Abamade. Se llamaban Wakuwaku
y Ysywy; no eran personas blancas, eran morenos, morenos como yo,
26 La versión completa de este relato en APARICIO, Miguel. Relatos Orais Suruaha. [archivo personal]:
2002, mimeo, p. 85 ss.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
309
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
de la estatura de los Suruaha: no muy grandes, frágiles, no muy altos.
Ellos bajaron el río y vinieron a por las jóvenes de los Masanidawa. Los
muchachos estaban cantando en la casa de los Masanidawa. Iruwei,
Iruwei cantaba, iban a poner el suspensorio peniano a los adolescentes.
Wakuwaku y Ysywy estaban juntos. En casa de los Masanidawa iban a
ponerles el suspensorio a los jóvenes.
Aidemysa hizo la iniciación junto con Ysywy; entonces bajaron a
la casa de los Abamade, allí se quedaron viviendo durante un tiempo,
hasta que volvieron a la casa de los Suruaha, llegaron a la casa de los
Masanidawa.
― Dadme una esposa, dijo Ysywy; y le dieron una.
Wakuwaku también dijo:
― Dadme una esposa, y le dieron una joven. Se la llevó a casa de
los Abamade.
Llegaron allí, pero Myzawei les echó un hechizo, ella se murió y
entonces volvieron:
― Dadme una esposa, dijo Ysywy, y las personas se la dieron. Y
Wakuwaku les dijo:
― Dadme una esposa. Las personas le dieron una esposa y él se la
llevó.
Myzawei echó el hechizo y muchos fallecieron. Ysywy dijo:
― ¡Ah! ¡La gente quiere matarnos! ¡Vámonos!. Wakuwaku
respondió:
― ¡Sí, vámonos!
Entonces llegaron Burija, Damani Burija y otros, ya no me acuerdo
cómo se llamaban. Las personas querían conseguir jóvenes guapas para
llevárselas a la casa de los Abamade, de donde venían. Myzawei les echó
hechizo y se murieron. El pueblo lloró, lloró mucho:
― ¡Van a matarnos!
Se fueron deprisa, habían venido en barco, otros les seguían
en canoas, las canoas vinieron, hasta que llegaron a la tierra de los
Masanidawa. Vieron que no había casas, las personas ya habían viajado,
se habían ido hacia otros lugares. El pueblo acampó en chozas, había
muchas chozas, con un terrero en el medio. La gente vivía allí, salían de
allí para buscar comida:
― ¡Los Jara están aquí! ¡Son muchos, muchos Jara!
[…] En ese momento llegaron, no sé exactamente cómo fue, eran
unas mujeres con tangas desteñidas. Wakuwaku llegó y les golpeó con
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Álbum Purus
Miguel Aparicio
la escopeta, les golpeó en la nuca con la escopeta. Pegó a una de ellas, y
a otra, y a otra, hasta que todas cayeron al suelo. Las personas se reían.
― ¡Sólo es una broma!, decía Wakuwaku.
Se marcharon después de haberse puesto los suspensorios
penianos. Entonces llegó… ¿quién fue? Era un joven masanidawa,
recién casado.
― Tu esposa va a acostarse, vete a dormir y te mataremos, le dijeron
al joven masanidawa.
¿Quién fue…? No me acuerdo cómo se llamaba. Había otro
Masanidawa cerca. Vino Wakuwaku, llegó allí. Era Karokwei. Karokwei
estaba pescando con timbó; Karokwei era chamán, era el marido de
Makuta. Karokwei estaba saliendo a pescar cuando oyó un murmullo:
― Son Jara hablando, llegaron los Jara, dijo.
Dejó las saetas, fue allí y comprobó que los Jara habían llegado.
Cuando Karokwei llegó, los Jara ya estaban allí […]. Entonces los
Abamade cogieron a un joven que se llamaba Natiriu, él era alto,
grande y blanco, y se lo llevaron. Cogieron a las mujeres, cogieron a
Batei, a Damani Burija, a otras cuyo nombre no recuerdo, cogieron a
mucha gente, querían mujeres. Cogieron también a Dahu, se llevaron
solamente a las mujeres, sólo las jóvenes.
[…] Wakuwaku estaba de pie cuando Ysywy se marchó. Wakuwaku
dijo:
― Vamos a matar a esa gente. Venga, vamos, vamos a cortarlos
con los cuchillos. Ysywy le respondió:
― ¡¡¡Sí, vamos a matarlos, wuh, wuh, wuh!!!
Y se fueron. Wakuwaku vino desde allí, Ysywy acababa de llegar.
Wakuwaku disparó, y disparó sobre otro, y otro, y otro… Mató a mucha
gente. Iruwei estaba sentado, a su lado estaban Myzawei y el hijo de
Iruwei. No me acuerdo cómo se llamaba.
― Él no tiene ropa, sus testículos van a pudrirse en la tierra, dijo.
El niño era grande, estaba desnudo, todavía no sabía andar. Cogió
al niño, se quedó allí y en ese momento mataron al padre. Mataron
también a Myzawei, mataron a mucha gente. Myzawei dijo:
― ¡Estáis persiguiendo a nuestra gente! ¡¿Qué es lo que
pretendéis?!
Los Jara seguían disparando, disparando, disparando sobre Myzawei.
Él se retorcía, sus huesos estaban totalmente rotos, destrozaron su
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
cuerpo, solamente quedaban jirones de piel, le dispararon hasta que las
escopetas le destrozaron y su piel quedó totalmente desollada.
Por la mañana temprano, en la aldea del alto, en los Jokihidawa,
Sarawi salió para orinar y oyó el ruido de los disparos:
― Tou, tou, tou. Tou, tou, tou. Sarawi oyó los tiros:
― ¡Han matado a Myzawei!
El ruido de los disparos procedía del camino de Myzawei; Sarawi
lo oyó, salió corriendo y llegó a la casa:
― ¡Acabaron ahora mismo con la vida de Myzawei!
Pero las personas no venían…
― ¡Mira, están matando a la gente! El joven Aidemysa dijo:
― Dahu, vete a ver qué es lo que ha pasado. Píntate el cuerpo.
Las personas se pintaron de negro y rojo. El joven Aidemysa
fue, vio que los muertos ya no estaban y que las otras personas ya
se habían marchado. Se dio cuenta de que no habían enterrado los
cadáveres, habían sido comidos por los urubús. Las personas huyeron:
los Masanidawa Makuda, Jari, Juhade, mucha gente.
― ¡Es el fin!
― ¡Sí, es el fin!
Mucha gente huyó y acampó en la selva. Los Jokihidawa siguieron
sus huellas, hasta que los alcanzaron.
― ¡Venid!, les dijeron.
Llegaron. Estaban los Masanidawa Hahiu y Hijara; Hahiu era el
marido de Hijara. La gente estaba allí, las personas llegaban al lugar.
Los Abamade habían dicho:
― Nosotros vamos a acabar con los Masanidawa, matad vosotros
a los Jokihidawa.
Los Jara llegaron, vinieron en barco. La gente confundía el ruido
del motor con el sonido de las bocinas. Dijeron:
― Están tocando las bocinas.
La gente se fue. No pasaron por la desembocadura del Jokihi,
siguieron por un atajo. Los monos lanudos que Aidemysa había cazado
estaban en el suelo, a la orilla del río.
― Los dejé aquí para recogerlos después y poder ver lo que había
ocurrido con los Masanidawa.
Los había dejado en el suelo, a la orilla del Hahabiri. Pero los Jara
habían llegado antes y ya habían cogido los monos lanudos. Pusieron
312
Álbum Purus
Miguel Aparicio
los monos en un recipiente grande usado para guardar mandioca; los
pusieron allí y los dejaron.
Los Jara atajaron y persiguieron a los Suruaha. Llegaron hasta un
canal del Jokihi. Jari y su gente subieron por un camino. Por el camino
iban también Hahiu, Hijara y su gente. Ya no había más Masanidawa
allí, los Jokihidawa los habían encontrado y los habían llevado a su casa.
Llegaron allí y se quedaron.
― No hay más gente, dijeron las personas.
Después de muchos días, las personas dijeron:
― Basta, echamos mucho de menos a las personas. ¡Vámonos!
Y se fueron a buscar a los Masanidawa, los encontraron y los
condujeron a la tierra de los Jokihidawa. Se juntaron y ya no volvieron
a las tierras bajas. Entonces los Eidahindawa también se juntaron a
ellos; algunos habían muerto de gripe. Xubei, que se había quedado
en la tierra de su gente, vino donde los Jokihidawa. Después ― no
estoy del todo seguro ― los Adamidawa, que eran parientes de ellos,
también llegaron. Los Sarokwadawa vinieron aquí, el nombre del padre
era Ajisama. Ajisama se enfadó y pegó a su hijo, entonces Baidawa lo
recogió. Baidawa condujo a los Sarokwadawa y los llevó a vivir en la
tierra de los Jokihidawa. Ya no volvieron, nunca se marcharon de allí, se
quedaron para siempre. Pero no, no era Ajisama, era Awakirie.27 Después
de la muerte de Awakirie, sus hijos se quedaron, vivía allí mucha gente,
hasta el tiempo de Kwakwei.28 Hoy Kwakwei está vivo. Entonces, yo
no sé muy bien cómo pasó, los Kurubidawa se trasladaron aquí: fue
Johwady, hace ya mucho tiempo. Después de la época de Johwady,
fue el tiempo de Johu, después vino Obuniu, después Teaha, después
Waideni. Está también la gente de Ikiji, los Kandanidawa. Yo no sé cuál
es su tierra. Y los Tabusurudawa, el pueblo de Hamy y Naru. Su lugar
de origen es el río Makuhwa, más allá de la casa de Wahare; fueron
comidos por los Jakimedi.
27 Comparando este relato con otros, se comprueba que en esta parte del relato el narrador, Axidibi,
confunde la historia de los Sarokwadawa con la de los Adamidawa. El episodio de Ajisama y su hijo corresponde a la historia de los Adamidawa. Awakirie, en efecto, lidera la migración de los Sarokwadawa a
las tierras del Jokihi, como el propio Axidibi corrige en su narración.
28 Es interesante cómo Axidibi conduce el relato hasta establecer la conexión con los Suruaha actuales:
Kwakwei, Obuniu y Teaha (éstos dos, muertos en 1992), Waideni, Ikiji, Hamy (muerto en 1999), Naru,
Wahare (muerto en 2003).
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
“Nuestra gente”, los Jadawa
Las informaciones sobre los subgrupos proceden básicamente de relatos
familiares de sus descendientes actuales, ya que todos los Suruaha adhieren a una
identidad subgrupal específica.29 Llama la atención la precisión biográfica que
prácticamente todos los individuos adultos tienen sobre sus antecesores de las
últimas cuatro o cinco generaciones: es, de hecho, relativamente fácil reconstruir la
secuencia genealógica y obtener datos sobre las esposas e hijos de los ascendientes,
sobre su lugar de residencia, sobre la causa de su muerte. Descubrí también, con
sorpresa, que muchos de los relatos tradicionales que, a primera vista, parecían
corresponder a “héroes arcaicos” de una supuesta era primordial, se refieren en
realidad a antecesores recientes en el tiempo, lo que quiebra el prejuicio dicotómico
entre lo “mitológico” y lo “histórico”. Con las informaciones procedentes de los
relatos familiares que se transmiten entre los sucesores actuales de casa subgrupo, es
posible reconstruir con cierta aproximación la red social que existía entre las diversas
aldeas durante los años anteriores a los ataques violentos del frente cauchero. La
práctica del suicidio todavía no existía, pero el aumento progresivo de la presión
externa ya provocaba un flujo migratorio en el que los subgrupos abandonaban
progresivamente las zonas más frágiles (los asentamientos próximos al río Cuniuá
y la desembocadura del Hahabiri) y optaban por las tierras firmes del Jokihi como
posibilidad de supervivencia. En este movimiento, la condensación progresiva de
familias rivales en un espacio común y la presencia amenazadora de chamanes de
subgrupos ajenos aparecen como desafíos graves, en un contexto regional donde
las epidemias y el avance extranjero apuntaban una perspectiva de crisis colectiva.
El impacto violento del universo waduna, así como la dificultad de encontrar la
armonía entre los jadawa, configuraban un mundo controvertido, con un futuro
marcado por la incertidumbre.30
Los Extraños, Waduna
El universo waduna presenta en la perspectiva suruaha una heterogeneidad de
identidades que se remonta a la época primordial, en que el ancestral Aijumarihi
29 Con excepción de los individuos nacidos de uniones ilegítimas, encuadrados en la categoría marginada
de los Zamyiniamare.
30 Cfr. uma descripción más detallada de los subgrupos suruaha en APARICIO, Miguel. Los Suruaha: universos míticos y miradas etnográficas. Quito: Universidad Politécnica Salesiana, 2008, p. 107-122.
314
Álbum Purus
Miguel Aparicio
hizo surgir de algunas semillas de la selva a los diversos pueblos conocidos.31 La
experiencia histórica determina que la concepción sobre los waduna les atribuya
como característica intrínseca su potencial de violencia y pestilencia. El miedo y el
sentimiento de amenaza son elementos esenciales en esta relación con “los otros”. Si
los conflictos intergrupales de los diferentes subgrupos jadawa estaban determinados
por las relaciones de hechizo, los conflictos con los waduna se describen en forma
de ataques cruentos, terror y canibalismo. Esta intersección de alteridades nos
da acceso al cortocircuito de miradas que se establece entre los mundos jadawa y
waduna, y nos revela cómo la perspectiva esotérica32 de los Suruaha ― la manera en
que ellos producen la memoria de sí mismos a través de una dinámica de recuerdos
y olvidos ― se construye a partir de vínculos estrechos con su perspectiva exotérica
― las percepciones del otro simultáneamente históricas e imaginadas. Percepciones
adquiridas en la conflictividad, con miradas fracturadas: por un lado son lúcidas;
por otro, extremamente nebulosas.
Los caníbales Jakimedi
Los Jakimedi llevan consigo, en la memoria colectiva de los Suruaha,
la imagen del exterminio y del canibalismo. Se les atribuye la desaparición de
subgrupos descendientes de los Saramade, como los Amaxidawa. Los Jakimedi
son considerados Jara, por lo tanto entran en el ámbito imaginario de lo que
convencionalmente se llama “el hombre blanco”. Su hábitat es el río Purus, que
los Suruaha denominan Oaha, y accedieron a los territorios suruaha desde el alto
Hahabiri. Son descritos como personas altas y robustas, que raptaban a las personas
para consumir sus cuerpos. Matywa, de los Jokihidawa, fue el chamán, iniuwa hixa,
que enfrentó definitivamente a los Jakimedi. Son muchos los relatos que describen
las luchas de Matywa contra ellos:33
Matywa y los Jakimedi
Los jóvenes Jokihidawa salieron a comer frutas de sorva. Los Jakimedi
llegaron, los siguieron y los raptaron. Llevaron a los jóvenes Jokihidawa a la
aldea de los Jakimedi. Mataron a todos y comieron sus cuerpos.
31 El intento de las siguientes páginas es emprender una etno-historia de nosotros desde la perspectiva
suruaha, y acceder a su percepción histórica, política y simbólica de la alteridad colonial, en sintonía
con la pista de B. Albert en la introducción a ALBERT Bruce RAMOS, Alcida. Pacificando o Branco: Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Ed. Unesp, 2000, p. 9-18.
32 Carvajal apud GUERRERO, Patricio. Antropología Aplicada (comp.). Quito: Universidad Politécnica Salesiana, 1997, p. 291
33 Relatada por Ainimoru en la maloca de Jadabu, el 4 de noviembre de 1997.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
315
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Matywa era un gran chamán, no tenía miedo de los Jakimedi.
Dijo:
― Me voy a comer frutas de sorva.
Llevó solamente la cerbatana, los dardos y la aljaba. Encontró un
árbol de sorva que tenía fruta, había en él una bandada de papagayos.
Les disparó con la cerbatana, dejó los papagayos que había matado al
pie del árbol y trepó para comer las frutas. Dejó la aljaba con los dardos
al pie del árbol, junto a los papagayos cazados.
Los Jakimedi llegaron y cogieron la cerbatana y los dardos. Matywa
estaba en la copa del árbol, la llegada de los Jakimedi le pilló de sorpresa.
Cuando ellos iban a dispararle, hizo subir con su poder de chamán la
cerbatana y los dardos, atrayéndolos hacia sí. Con la cerbatana, disparó
sobre los Jakimedi y los mató. Los Jakimedi que huyeron fueron
perseguidos por los dardos de la cerbatana de Matywa, que volaban
por su propia fuerza. Todos los Jakimedi murieron, Matywa cogió sus
papagayos y volvió a casa, pero no contó nada a nadie.
Después, otros Jakimedi que caminaban por la selva encontraron
los cuerpos de los Jakimedi que Matywa había matado. Cogieron sus
cuchillos y regresaron a su aldea asustados. Pocos días después, los
Jokihidawa fueron a la aldea de los Sarokwadawa, en el río Cuniuá.
Actualmente los Jakimedi ya no representan una amenaza para los
Suruaha, que los consideran desaparecidos.
Los Zamade, “la gente de la selva”
Los Zamade, “la gente de la selva”, son un pueblo ancestral, del tiempo en
que Aijumarihi hizo surgir de algunas frutas a los pueblos de la selva: los Juma, de
la fruta del ucuqui, los Zamade, de la fruta de la palmera patauá, y los Saramade, de
la fruta del árbol de brea.
Gamuki dice que los Zamade son altos y fuertes, son buenos cazadores.
Viven en chozas muy sencillas, cubiertas con palmas de patauá. No construyen
malocas ni tejen hamacas, y duermen en el suelo. No tienen huertas, depredan las
huertas de los pueblos vecinos, donde obtienen mandioca, piñas, maíz. No plantan
timbó, pero con las raíces que roban pescan en los lagos y canales. Tampoco hacen
cerámica (ollas, platos, vasijas de arcilla), para cocinar improvisan unos recipientes
hechos con corteza del árbol de jutaí, y en ellos preparan grandes cantidades de frutas
de la palmera patauá. Normalmente preparan la carne que consumen ahumándola
en parrillas. Abren pequeñas sendas en la selva, y se desplazan permanentemente
por ellas. Son nómadas. Cuentan que, antiguamente, los Zamade sufrieron una
masacre en la desembocadura del canal Makuhwa, cuando fueron atacados por
316
Álbum Purus
Miguel Aparicio
los Jara. Cuando los Jara se aproximaban, los Zamade oyeron un sonido intenso,
procedente de un objeto que Gamuki llama zamateni: probablemente se trataba de
las armas de fuego. Los Jara llegaron con sus zamateni y mataron a muchos Zamade:
dispararon sobre sus chamanes, que subieron al cielo derramando sangre hasta
morir. Fue el final de la mayor parte de los Zamade. Desde esa época, sólo quedan
algunos supervivientes deambulando por la selva. De vez en cuando hay robos
de timbó o de plátanos en las huertas de los Suruaha. Con ocasión de una cacería
en el canal Makuhwa, hace algunos años Gamuki encontró en la selva restos de
huesos humanos, cogió incluso algunos dientes. Él cree que se trataba de huesos de
Zamade a quien los caucheros habían matado.
Según Ainimoru, a los Zamade no se les puede matar con flechas o cuchillos,
ya que ellos no tienen sangre: hace falta golpearles con un leño para conseguir
quitarles la vida. En la actualidad, los Suruaha continúan manteniendo una actitud
de alerta ante el posible acecho de los Zamade. Es común que las mujeres lleguen
inquietas a la maloca tras una salida a huertas distantes o después de un paseo por
la selva, por haber encontrado supuestos vestigios de los Zamade por las cercanías:
un racimo de plátanos robado, una plantación de piñas pisoteada, una raíz de timbó
arrancada. Agitados al oír ruidos extraños por la noche, en algunos ocasiones los
Suruaha gritan para ahuyentar a los Zamade, salen con antorchas o disparan sus
flechas en la oscuridad para espantarlos. Recuerdo una época, en los cerros del
Xibiri Iwi, en que los Suruaha llegaron incluso a cercar las inmediaciones de la
maloca de Hamy, inquietos por la proximidad de los Zamade. Una adolescente
aseguraba haberles visto bañándose en un arroyo cercano, y dos jóvenes les oyeron
correr por la selva mientras cazaban. Dijeron que, de madrugada, algunos Zamade
habían llegado a los pomares adyacentes a la casa y habían arrojado ramas y palos
al techo de la casa, para amedrentar a las mujeres. Los hombres exhiben su valentía
con gritos y flechas, para infundir tranquilidad a mujeres y niños. Por eso, en las
cazadas colectivas en que todos los hombres salen de la aldea, las mujeres viven
momentos más susceptibles, preocupadas con una eventual aproximación de los
Zamade.
Los Juma, enemigos violentos
Para los Suruaha, los Juma son violentos y peligrosos, y los relatos de ataques
de los Juma a los Suruaha son relativamente recientes.34 De hecho, Mixonawari, padre
34 En diversas lenguas del complejo arawa existe el etnónimo Juma para referirse a pueblos hostiles.
Los Juma de los relatos suruaha no deben ser confundidos con los Juma del igarapé Içuá, río Mucuim,
afluente de la margen derecha del río Purus, pueblo que fue casi totalmente exterminado en abril de
1964 en una de las correrías más sangrientas de la región. Los Juma del igarapé Içuã son un grupo de
lengua tupí, probablemente Kawahib. Sobre ellos, cfr. CORNWALL, Ricardo. Os Jumas: a continuação da
violenta redução dos Tupi. Ceará: Madalena, 2003, p. 245.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
317
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
de Jaxiri, fue mortalmente atacado por los Juma hacia 1940. Es posible que los Juma
correspondan a los Hi Merimã, que habitan en la margen opuesta del Hahabiri.35
Los Juma, cuenta Henijei, atacaron a Mixonawari en el Jokihi, mientras
se preparaba a pescar con barbasco en una pequeña laguna. Kudari estaba
acompañándole, pero decidió marcharse poco después. Un Juma se aproximó
sigilosamente por la espalda, cogió una de las flechas de Mixonawari y se la clavó.
Mixonawari, que era alto y fuerte, se abalanzó sobre el agresor, pero enseguida
llegaron otros Juma. Salió corriendo, pero al intentar huir una flecha le atravesó
los genitales, y murió. Los Juma dejaron el cadáver de Mixonawari extendido en el
suelo, y le clavaron flechas en los ojos. Kudari llegó más tarde y advirtió la tragedia:
avisó a las personas y sepultaron a Mixonawari cerca de la maloca. Cuentan que,
pasado o mucho tiempo, los Juma mataron a otra mujer suruaha, llamada Xamu.
En las tradiciones familiares de los diversos subgrupos existen también relatos
de ataques de los Juma: entre los Eidahindawa, entre los Masanidawa, como muestra
la próxima narración:36
Damy Baru y Johwady matan a los Juma
Los Masanidawa organizaron una cacería, querían ir con Johwady hasta la
tierra de los Kurubidawa. Cuando Damy Baru silbó imitando a un tapir, advirtió
que un Juma respondió con otro silbido. Damy Baru se sorprendió, ya que no había
oído el trote del tapir al caminar. Permaneció atento, observando, y vio a un Juma
que se aproximaba, adornado con una pluma de gavilán en la cabeza. Damy Baru
sintió el olor de otra persona, se trataba de un joven alto y fuerte. Le disparó con
sus flechas, hiriéndole en el muslo. En ese instante se formó una tormenta, con
fuertes truenos y un viento intenso. El Juma huyó corriendo, pero cayó muerto
poco después. Por la mañana tocaron las bocinas huriateni, las personas llegaron y
Johwady encontró el rastro de otro Juma. Siguió sus pasos hasta que lo encontró:
estaba bebiendo agua a orillas de un arroyo, muy cerca del Hahabiri. Johwady mató
al Juma, pero no enterró su cuerpo. Las personas tenían miedo de tocar los cuerpos
de los Juma. El cuerpo quedó abandonado en el suelo, y Johwady se marchó.
35 Es posible que los Hi Merimã sean un subgrupo de los Jarawara que permaneció aislado ante la presión
del avance cauchero. Recordemos que la dinámica social típica de las etnias arawa afirma la autonomía
de las unidades aldeanas. Según esto, es posible que los Jarawara, Banawa y Hi Merimã (todos ellos establecidos en torno al eje territorial del río Piranha, afluente del río Cuniuá) sean subgrupos étnicamente
análogos que vivieron procesos de diferenciación progresiva, en función de las circunstancias históricas
peculiares de cada uno. Sobre los Hi Merimã, cfr. POHL, Luciene. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Hi Merimã, Funai, Brasilia: 2000, p. 78.
36 Relatada por Ainimoru en la maloca de Hamy, el 15 de septiembre de 2000.
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Álbum Purus
Miguel Aparicio
Los Jara, dueños de las armas de fuego
El termino Jara es común en las lenguas Arawa y designa, fundamentalmente,
a los caucheros, al frente expansivo brasileño que irrumpe en las tierras indígenas
con la difusión de la economía de extracción y comercialización del látex de Hevea
brasiliensis. Los Jara son los waduna por excelencia, los extranjeros que a lo largo de
la historia representaron una amenaza constante a la armonía de la vida colectiva.
Los Jara, procedentes de los grandes ríos, numerosos y con una tecnología muy
desarrollada, destacaron siempre por su avance incesante sobre los territorios, por
la letalidad de sus enfermedades y por su capacidad de violencia. En la mitología
suruaha, el dominio sobre las herramientas y sobre las armas de fuego han sido
elementos característicos de los Jara ― aunque la tradición dice que, en su origen,
las herramientas eran instrumentos propios de los Saramade:
Sawari y las herramientas37
Sawari era el dueño de los machetes y las hachas. Una vez, él iba andando
por la selva y se subió a un árbol de sorva para comer sus frutas. Llegaron las
jóvenes kurimie y le dijeron:
― Sawari, danos hachas.
― No, no voy a daros mis hachas, dijo Sawari.
― Entonces danos machetes, replicaron las jóvenes kurimie.
― Podéis iros de aquí. No os voy a dar nada.
Pero las jóvenes continuaron insistiendo y le dijeron a Sawari:
― ¡Eh, marido! Anda, danos hachas…
Entonces él fue a la casa de las jóvenes, todas se pusieron juntas, una al lado
de otra. Sawari hizo sexo con todas ellas y después metió una fruta de tacuarí en
las vaginas de las jóvenes kurimie. Cuando terminaron de hacer sexo, las jóvenes se
pusieron a quitar los piojos de la cabeza de Sawari. A él le entró sueño, y se durmió.
Mientras dormía, las jóvenes cogieron un cuchillo y cortaron el cuello, el pecho,
todo el cuerpo de Sawari. De todos modos, él se despertó, se despertó enfurecido y
37 Relato de Kwakwei en la maloca de Dihiji, el 21 de abril de 1998. Esta lógica retrospectiva, por la que la
tradición narrativa indígena reprocesa los mitos colectivos, dando sentido a las innovaciones de la historia inmediata, aparece con frecuencia en otras sociedades amazónicas. Cfr. el análisis de la mitología
metálica de los Yanomami en ALBERT, Bruce. O ouro caníbal e a queda do céu. Uma crítica xamânica
da economia política da natureza (Yanomami), en ALBERT Bruce RAMOS, Alcida. Pacificando o Branco:
Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. p. 249-251.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
319
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
lanzó todos los machetes y hachas lejos, muy lejos: cayeron a orillas de un gran río,
en la tierra de los Jara. Sawari salió volando hacia un lugar distante. Desde ese día,
los Jara poseen los cuchillos, los machetes y las hachas.
A partir de las informaciones de los relatos orales y del análisis genealógico,
es posible afirmar que desde el primer ciclo de la economía cauchera, subgrupos
Suruaha ya mantenían relaciones con grupos de caucheros y regatones, así como
con las poblaciones indígenas de la cuenca de los ríos Tapauá y Cuniuá. En este
sentido, las décadas de aislamiento que precedieron al contacto indigenista de los
años ’80 constituyeron una interrupción de la red de relaciones que ya existía en las
tres últimas décadas del siglo 19. A continuación, presento un relato que considero
especialmente significativo en lo que se refiere a la memoria de la época de la
irrupción cauchera. En él, la tecnología occidental (véase la descripción mitificada
de los barcos a vapor), las nuevas enfermedades y los conflictos con los nuevos
pobladores aparecen como trazos del ambiente cauchero que se instaura en la
región:38
Gracias a Masanidawa sabemos también que en la tierra de los Jara vieron
a unas personas que bajaban del cielo por una especie de cuerda. Se trataba de Jara
muy bajos, tal vez eran chamanes. Bajaron hasta una cierta altura, se quedaron por
encima de las personas, suspensos de la cuerda. Cuentan también que en la tierra
de los Jara había una casa que estaba bajo el agua, el vértice del tejado despuntaba
sobre las aguas del río. De ella salía el humo de las hogueras que había dentro
de la casa. Sí, en aquella casa había gente que vivía bajo el agua, que hacía fuego
y que tenía perros, perros muy bonitos y bien cuidados. Había muchos objetos
de tamaños diversos, usados para guardar las cosas. Parecían colmenas, como las
bolsas de plástico que los Jara usan. Para entrar en la casa que había bajo el agua, las
personas remaban por el río y se sumergían para entrar. Se oía un ruido parecido al
de un avión, era el ruido de la casa de los Jara.39
Jara y Masanidawa vivieron mucho tiempo en casa de los Jara, conocían bien
sus costumbres y sabían hablar su lengua. Pero un día regresaron a casa. A Jara lo
enterraron en los cementerios cercanos a la desembocadura del Wantanaha, cerca
del río Jokihi. Tabanuti y Jara fueron grandes chamanes de su pueblo, así como
Wagy. Jara había sido raptado por los Abamade, su padre no estaba en casa cuando
eso ocurrió; salió a buscar a su hijo por las aldeas de los Abamade, hasta encontrarlo
y traerlo de vuelta.
38 Relato de Ohozei en la maloca de Henijei, el 13 de octubre de 1999.
39 Da la impresión de que esta casa acuática se trata de un barco, y que el relato habría surgido durante
los primeros años de contacto con el frente cauchero del siglo 19.
320
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Cuentan también que en casa de los Jara las jóvenes tenían una enfermedad
que los hombres cogían al hacer sexo con ellas; caían enfermos y se morían.
Tabanuti era alto, guapo, de piel branca. Una vez salió a cazar un jaguar y se
encontró con un grupo de Jara. Lo persiguieron y tuvo que esconderse en un bidón
de látex que había en la selva. Los Jara no lo hallaron, él se quedo sudando, sudando
muchísimo. Los Masanidawa fueron a buscarlo, pero tampoco lo encontraron.
Tabanuti se puso malo, y enfermó gravemente.
Desde la perspectiva suruaha, el mundo jara se caracteriza por su potencial
de violencia. Gamuki recuerda el destino de dos mujeres suruaha, Dahu y Burija:
“Dahu era una joven de nuestro pueblo que se fue con los Jara. Al viajar con ellos
por el río Cuniuá, sintió una fuerte nostalgia de su gente y se puso a llorar; los Jara la
echaron al agua, y murió devorada por los peces. Burija se encontró con los Jara, que
la llevaron a su casa. La pusieron dentro de una olla grande, cocinaron su cuerpo y se
lo comieron”.40 Las descripciones de los Jara como antropófagos parten, en definitiva,
del imaginario violento que los Suruaha han construido a partir de las relaciones que
mantuvieron con los caucheros. Como veremos enseguida, la expansión cauchera
se realizó mediante correrías (expediciones de exterminio), acciones de pacificación e
introducción forzosa de la mano de obra indígena en la economía de extracción de
productos forestales. A ello debe sumarse el efecto devastador de las epidemias. La
huida a las regiones más aisladas de la selva fue la alternativa de los pueblos que
no se subordinaron directamente al régimen económico impuesto. Fue el camino
emprendido por los Suruaha y por los Hi Merimã.
Los Oahadawa, Saradawa y Zamadawa
La tradición oral identifica algunos pueblos específicos, que los Suruaha
engloban también en la categoría de Jara: son los Oahadawa, los Saradawa y los
Zamadawa. Respectivamente, estos etnónimos designan a “la gente del río Purus”,41
“la gente de las várzeas” y “la gente de la selva”.42 Todos ellos mantienen los
atributos de diferenciación de los waduna. Mientras que la mayoría de las referencias
sobre los Oahadawa y los Saradawa parecen encuadrarse en una época más remota,
hay una percepción más cercana de las relaciones con los Zamadawa. Uno de los
últimos Zamadawa fue Hijei, que en las historias aparece como un proveedor de
40 Relatos de Gamuki en la maloca de Dihiji, el 2 de mayo de 1998.
41 Oaha, en la lengua suruaha, es el río Purus.
42 Los términos Zamadawa y Zamade, a pesar de tener un significado análogo, sin duda alguna designan,
desde la visión nativa, dos grupos étnicos totalmente diferentes.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
321
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
herramientas. Hijei era Zamadawa, hablaba la lengua de los Jara y de ellos conseguía
hachas y machetes que intercambiaba con los Masanidawa y a los Jokihidawa. Se
atribuye su muerte al líder masanidawa Asamkahuwy, lo que nos permite datarla
entre 1900 y 1920.
Hijei y las herramientas 43
Hijei era Zamadawa, de vez en cuando él subía el río Hahabiri con su familia.
Él mantenía buena relación con los Masanidawa, y les traía hachas y machetes.
Asamkahuwy le pidió que, al volver, trajera más machetes para su gente.
Pasado un tiempo, Hijei volvió al Hahabiri con su familia: su mujer, sus hijos y
sus hijas. Acampó y salió a cazar. Asamkahuwy había ido a participar de una cacería
con los Jokihidawa. Mientras cazaba, sintió el olor de gente y llegó al campamento
de Hijei. Hijei aun no había llegado, pero no tardó mucho en hacerlo. Cuando Hijei
llegó, Asamkahuwy le dijo, bromeando:
― Estaba haciendo el amor con tu mujer…
Hijei, siguiendo con la broma, agarró a Asamkahuwy por el cuello,
pero sin querer hacerle daño. Sin embargo, Asamkahuwy se enfadó. Al
día siguiente, estaba en el campamento de caza y dijo a las personas,
mintiendo:
― Encontré pecarís allá abajo, venid conmigo.
Pero en realidad quería que algunos Masanidawa le acompañasen para matar
a Hijei. En el camino, les contó lo que quería hacer. Al llegar al campamento de Hijei,
dispararon con flechas a él y a su familia. Hirieron a Hijei, que cayó al río y murió.
Su mujer y sus hijos también murieron, los que quedaron vivos fueron llevados a la
maloca de Asamkahuwy. Establecidos allí, se convirtieron en Masanidawa.
Ainimoru me refirió que, tras la muerte de Hijei, los Masanidawa pasaron a
ser proveedores de herramientas de los Jokihidawa, aunque su obtención se hizo
más difícil. Con la llegada de los caucheros a la región, los Suruaha empezaron a
organizar asaltos a las caucherías más aisladas, para obtener herramientas. Tuve
oportunidad de conocer en las malocas un hacha extremamente desgastada que
Xamtire guarda desde la época del aislamiento, en un saqueo de los Suruaha a un
pequeño asentamiento cauchero.
43 Relato de Ania en la maloca de Ikiji, el 17 de junio de 2001.
322
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Los Abamade, “la gente de los peces”
Los Abamade, “la gente de los peces”, son un pueblo que, en la visión
suruaha, aparece siempre muy vinculado al mundo de los Jara. Es posible que se
trate de los Paumari, que habitan hasta hoy en el río Tapauá y en el bajo Cuniuá. Son
muchos los relatos orales que refieren encuentros mutuos, viajes y permanencias
de los Masanidawa en las aldeas de los Abamade. Dos miembros de este subgrupo,
llamados Jara y Masanidawa, mantuvieron relaciones frecuentes con ellos.44
Masanidawa y Jara crecieron en casa de los Abamade, que convivían con los
Jara. En aquella época estaban en casa de Miji, en un lugar llamado Wakabu. Miji
era Jara, y tenía grandes huertas en Wakabu. A las chicas de allí les gustaban mucho
Masanidawa y Jara.
Un día Miji les pidió a Masanidawa y Jara que cortasen mucha leña, para
hacer una gran hoguera. Pasaron casi todo el día cortando leña y, ya cansados, por
la tarde se fueron a chupar caña de azúcar a la huerta de Miji. Mientras estaban
allí, oyeron a Miji, que acababa de llegar, y se asustaron, ya que estaban robándole
las cañas de azúcar. Se escondieron y vieron a Miji cargando la leña cortada en su
caballo. Miji hizo la hoguera al lado de su casa. Después, Jara y Masanidawa vieron
la casa de Wakabu andando sola, trasladándose por tierra a otro lugar.
Jara se puso a llorar, al echar de menos a su hija. Masanidawa le preguntó por
qué estaba llorando; cuando Jara se lo explicó, decidieron volver a casa. Masanidawa
y Jara volvieron a su tierra de origen, la tierra de los Masanidawa, después de mucho
tiempo. Hablaban la lengua de los Jara. Al llegar a su casa, se cortaron el pelo a la
manera tradicional, se pusieron el suspensorio e inhalaron rapé.
Después de mucho tiempo, los Abamade volvieron y mataron a los
Masanidawa.
En efecto, las narraciones de las masacres otorgan a los Abamade un papel
protagonista. Seguramente, los Paumari participaron de los ataques promovidos
por los caucheros del Purus sobre los subgrupos suruaha, en torno a 19201930.45 En toda la región, hubo ocasiones en que los pacificadores y los caucheros
incorporaron la mano de obra indígena que ellos controlaban, como brazo armado
en las expediciones de ataque a otras etnias indígenas. Así ocurrió con los Mamori
del Cuniuá (seguramente, un subgrupo Kulina) y con los subgrupos Suruaha.
44 Relato de Ohozei en la maloca de Henijei el 13 de octubre de 1999.
45 Fuentes históricas relatan la colaboración de los Paumari con el frente cauchero para hostilizar pueblos
indígenas rivales, en otros contextos. Cfr. COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório da Exploração do
Rio Purus apresentado pelo Engenheiro João Martins da Silva Coutinho. Manaus: 1862, p. 76, cit. por
CORNWALL, Ricardo. Op. cit., p. 86.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
En junio de 1999 tuve oportunidad de conocer lo que considero el objeto de
cultura material más importante entre los Suruaha contemporáneos: es seguramente
la única prueba física de los intercambios que los Suruaha mantenían con pueblos
vecinos antes de las masacres, antes del aislamiento, antes del inicio de la práctica del
suicidio. Se trata de un collar confeccionado con cuentas minúsculas, de un material
que los Suruaha no me supieron identificar, tal vez hecho a partir de conchas de
algún molusco fluvial o fragmentos de un crustáceo. Pertenece a Jejewei, mujer de
Ainimoru, que lo conserva con extremo celo; ella lo utiliza en las fiestas rituales,
es un ornamento (imega) usado como adorno dorsal de la tanga femenina. Jejewei
me explicó cómo este collar ha sido transmitido de generación en generación,
remontándose hasta los Abamade, que lo confeccionaron (Ainimoru, su esposo,
me confirmó esta información; Xamtire no está de acuerdo, y cree que el collar era
de los Oahadawa, no de los Abamade). La secuencia de transmisión es la siguiente:
Jejewei lo recibió de su madre, Kwamei, esposa de Kumyniru. Kwamei lo recibió de
Kuxanja, mujer de Myzawei, el chamán Masanidawa muerto en los ataques armados
de los caucheros. Kuxanja, a su vez, lo recibió de Haijanumaru, mujer de Wagaru. Y
Haijanumaru lo adquirió de los Abamade, lo que nos remonta a cinco generaciones
y nos sitúa aproximadamente entre 1880 y 1900, en una época de intercambios y
relaciones amplias de los Suruaha con las poblaciones regionales.
Comentarios
Las narrativas expuestas – especialmente la de Axidibi – nos remiten a
un imaginario de terror forjado en un mundo en el que sus protagonistas están
marcados por un escenario de violencia hiperbólica. En lo que respecta a la
experiencia de la región de los Suruaha, pensemos un instante en la vivencia “del
otro lado”: contingentes de caucheros oriundos de las lejanas sabanas áridas del
nordeste de Brasil son desplazados a una selva desconocida, esperada como paraíso
de riqueza pero hallada como “infierno verde”, donde la opresión de los patrones,
la malaria, el aislamiento contribuyen a alimentar un imaginario de terror cotidiano.
El indio representa, en este paisaje, la alteridad peligrosa, la amenaza por excelencia
de atrocidad y salvajismo. Este universo de extrañamientos tiene el potencial de
transformar la realidad y genera una mimesis del terror imaginado,46 capaz de
proyectar una violencia inusitada sobre las alteridades más radicales: los indígenas.
46 TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura.
São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1993, p. 129.
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Este choque brutal, como he querido destacar, no se insiere en una especie
de épica ancestral de la Amazonia salvaje: las narrativas “del lado indígena” que he
expuesto son las historias de los abuelos y bisabuelos de quienes nos las transmiten
en los días de hoy. Aquí la investigación crono-genealógica cobra una plasticidad
especial, cuando vemos los protagonistas de las historias son familiares cercanos en
el tiempo y en el espacio, minuciosamente presentes en los recuerdos, y que estos
hechos se remiten a la década de 1920. Las epidemias devastadoras, los ataques
con armas de fuego de los Jara y Abamade (el desastroso consorcio del frente
cauchero con pueblos sometidos en alianzas de conveniencia), la muerte de los
chamanes y el abandono de tierras ancestrales adquieren una cercanía inquietante.
Aunque la experiencia de la muerte conlleva siempre un carácter de inefabilidad, la
pulsión evocatoria de estas narrativas se sitúa ya como una posibilidad de sentido
para contrarrestar la sinrazón de los acontecimientos. Y así, por ejemplo, cuando
Kwakwei habla sobre el destino de su pueblo y afirma que “los Jara invadieron las
tierras de los Sarokwadawa y devoraron a las personas”, manifiesta el vigor de una
perspectiva en la que los hechos son menos relevantes que el imaginario construido
a partir de la vivencia colectiva.47 El terror como lugar de enunciación acaba, de esta
manera, capturando entre los Suruaha toda su relectura de memoria colectiva, como
podemos comprender en muchas de sus narrativas orales.
Esta actitud de “lectura” de narrativas orales y de intento de “reconstrucción”
(mediante la crono-genealogía de los protagonistas) subsidian un esfuerzo de
arqueología del saber, en el sentido apuntado por Foucault, a través de la cual “surge
la contradicción fundamental, como si todo el análisis estuviese conducido a ella,
disimuladamente y a pesar de ella: utilización, en el propio origen del sistema,
de postulados incompatibles, entrecruzamiento de influencias que no se pueden
conciliar, conflicto […] que opone una sociedad a sí misma; todo eso se revela
como principio organizador, como ley fundadora y secreta que justifica todas las
contradicciones menores y les da un fundamento sólido: modelo, en suma, de
todas las otras oposiciones”.48 La mirada se dirige, por lo tanto, a las instancias
de disensión y de absurdo, investiga las fallas, las brechas e intersecciones. Lo que
convencionalmente se evalúa como obstáculo, incoherencia o paradoja adquiere un
carácter de potencial de comprensión y búsqueda de sentidos y significados.
47 “Durante el proceso de re-trabajar un texto, interpretándolo, cuando se atraviesan divisorias culturales
importantes, se produce una sensación diferente del descubrimiento: sentimos como si hubiésemos
realmente encontrado algo nuevo, y no un recuerdo, o sea, la adquisición y no la herencia de algo. Pero
el proceso que transforma escenas de experiencia extraordinarias en figuraciones de la vida colectiva, a
través de representaciones de lo que en ella ocurrió, es el mismo. Ni siquiera cuando la escena original
es un artefacto y no, como diríamos, una escena real, este proceso se modifica seriamente”: GEERTZ,
Clifford. O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, Petrópolis (1983)82006, p. 75; cfr. TAUSSIG, op. cit., p. 137-138.
48 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 51997. p. 173.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
325
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
El ser humano “puede adaptarse a cualquier cosa que su imaginación sea capaz
de afrontar; pero no puede hacer frente al caos […], su mayor espanto es el de
enfrentarse con lo que no puede explicarse”.49 Y la experiencia del caos consiste en
algo más que la falta de interpretación de la existencia: se impone como la ausencia
de posibilidad de esta interpretación, en varios planos:50 más allá de los límites de la
capacidad analítica, más allá de los límites de la fuerza de resistencia y más allá de
los límites de la visión moral. En efecto, la ruptura analítica provoca desconcierto,
por ejemplo, en la reformulación de la dinámica social que implica la unificación
forzada de los supervivientes en un territorio ajeno, una innovación imprevisible
que arroja a la indefinición de las perspectivas de futuro. La ruptura de la resistencia
se traduce en un sufrimiento agotador ante la experiencia hiperbólica de la muerte
(las epidemias, las masacres), en el que los recursos más vigorosos (los chamanes,
las estrategias nativas de resistencia armada) se revelan como insuficientes. Y la
quiebra de la visión moral origina una paradoja ética, en la que la imponencia del
mal y de la violencia produce una quiebra del sistema simbólico, que fundamentaba
las interpretaciones esenciales de la vida colectiva, y sus expresiones más hondas.
Sin embargo, esta quiebra radical de sentido crea condiciones inauditas para nuevas
respuestas rituales con un poder simbólico insurgente, y que establecen el suicidio
como posibilidad de sentido.
La alternativa necesaria ante la irrupción inexorable del frente cauchero
fue el aislamiento, para ello las tierras altas del igarapé Pretão ofrecían mejores
condiciones de resistencia para los supervivientes de los subgrupos. En este
aislamiento, prolongado durante cinco décadas (de finales de los años ’20 hasta la
década de ’70), la dinámica de relaciones inter-aldeanas de los diversos subgrupos se
disolvió definitivamente, y la red externa de intercambios con pueblos circunvecinos
se suspendió, ante el horizonte de violencia que afectaba a los pueblos de la cuenca
del Cuniuá. Apenas encuentros esporádicos con pequeños grupos de caucheros
ocurrieron ocasionalmente. A medida que los Suruaha unificados se consolidaban en
la zona de refugio de las tierras del Pretão, y cuando percibieron que los asentamientos
caucheros estaban cada vez más fragilizados, emprendieron expediciones de asalto
y saqueo a las pequeñas caucherías de la periferia de su territorio. En ellas, buscaban
fundamentalmente hachas, cuchillos y otras herramientas, así como perros de caza.51
49 LANGER. Philosophy in new key, Cambridge, Mass.: 1960, cit. por GEERTZ, Clifford. La interpretación de
las culturas (1973). Barcelona: Ed. Gedisa, (1973) 2006, p. 96.
50 GEERTZ, Clifford. ibid, p. 97.
51 “Los Suruaha, en vez de retirarse en fuga para otros lugares tal como lo habían hecho anteriormente,
prefirieron organizarse mejor para las posibilidades del encuentro. De esta forma surgió el sistema de
saqueos, por el que atacaban colectivamente a los invasores buscando tomar el control pleno de la situación. A pesar de la agresividad que manifestaban destruyendo objetos y practicando amenazas, parece
que nunca llegaron a matar a ningún jara”: SILVA, Mário Lúcio. A epidemia de suicídio através do veneno
kunaha na tribo indígena Zuruahá no Brasil. 1994, mimeo, p. 13.
326
Álbum Purus
Miguel Aparicio
La mayoría las expediciones de saqueo a caucherías que los Suruaha me
relataron se encuadran en las décadas de ’60 y ’70,52 y se suspendieron a partir de
la asistencia indigenista inaugurada en los años ’80 con la intervención indigenista
y misionera, que aseguró a los Suruaha el abastecimiento permanente de
herramientas.
Durante los años de aislamiento, los Suruaha pierden la perspectiva de los
intercambios externos y se sumergen en un horizonte territorialmente reducido
a las tierras de los Jokihidawa. Llama la atención, en los Suruaha de los años ’80
y ‘90, la minuciosidad de significados que el territorio inmediato adquiere, frente
a la nebulosidad e imprecisión de las referencias socio-geográficas regionales; en
las tierras del entorno del Jokihi, áreas sorprendentemente próximas se describen
con un admirable nivel de especificidad: hay gente que se vincula, por ejemplo, al
Ihkiehini y gente que se vincula al Xindigiaru (pequeños canales de tierra firme),
atribuyendo una excelencia singular a sus respectivas tierras. El particularismo de
los significados de los espacios parece indicar casi mundos diferentes; sin embargo,
apenas 10 km. separan un local del otro. Una hora de camino a pie puede separar
auténticos universos familiares o subgrupales. Todo ello es un resultado perceptible
de un pueblo que perdió su red histórica de intercambios y desarrolló su sociabilidad
en las fronteras estrechas de la incomunicación con el exterior.
Seguramente también para los Suruaha el aislamiento supuso una “presencia
de la ausencia”:53 sentimiento insoportable de pérdida de territorios, pérdida de
intercambios, pérdida de familiares, de líderes, de chamanes. Esta situación produjo
una dinámica convulsa de cambios sociales y culturales provocados por la violencia
y la indefinición de perspectivas de futuro. Tengo la impresión de que, en esta crisis
de transformaciones, los Suruaha no consiguieron formular una imagen ordenada
del mundo, y entraron en una dinámica social y simbólica de alteraciones y desajustes.
Se alteran las dinámicas de relación entre individuos, familias y subgrupos; se alteran
los mecanismos rituales tradicionales; se alteran las posibilidades de reproducción
social; y se altera el equilibrio de la propia concepción de destino de la existencia.
52 Destaco, entre las diversas salidas descritas por los Suruaha, la expedición que Hamy me narró, en la que
él mismo participó de un asalto a caucheros próximos a la comunidad de Delicia junto a Dihiji, Kimeru,
Tukwamy, Kuxi, entre otros. Delicia, a finales de los años ’70, era el principal asentamiento cauchero
existente entre el área Suruaha y las aldeas Deni. Cuando el grupo llegó ― remando en sus canoas por
el río Cuniuá ― las casas estaban desocupadas. Se apropiaron de las herramientas, cazuelas de metal y
otros enseres. Río arriba había un bohío aislado, ocupado por una sola familia. Hamy cuenta que Tukwamy tomó la iniciativa, amenazando con sus flechas a los caucheros; se apropió de sus herramientas y de
los perros de caza, dejando a la familia atemorizada. Los Suruaha regresaron a las malocas, subiendo
el igarapé Coxodoá.
53 TAUSSIG, Michael. op. cit., p. 90.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
327
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
En este contexto de aislamiento, aparece entre los Suruaha una innovación
ritual que, arraigada en la experiencia de la muerte, instaura el suicidio como
posibilidad de sentido. La práctica del suicidio se consolida entre los Suruaha desde
aproximadamente 1930 hasta los tiempos actuales, y cobra proporciones inéditas,
al compararse con la incidencia de este fenómeno en otras sociedades amazónicas
afectadas por el contacto occidental.
El nacimiento de
la tragedia suruaha
Los procesos culturales de construcción de significado ante cuadros históricos
de conflicto radical dan origen a dinámicas intrincadas, en las que la búsqueda de
sentido coexiste con la contradicción y con una lógica compleja de supervivencia e
insurgencia de símbolos.
En su obra El nacimiento de la tragedia, Nietzsche presenta una perspectiva de
la vida humana enfocada desde el pensamiento trágico, en el que la conflictividad
constituye la esencia de la existencia humana. El sufrimiento, el desorden, el
instinto, la quiebra de la armonía y la desazón constituyen tramas fundamentales
de esta dinámica de afirmación recíproca de la vida y de la muerte. Se trata, para el
pensamiento de Nietzsche, del paradigma dionisíaco, en el que el impulso vital del
ser humano se contrapone al paradigma apolíneo de racionalidad, orden y armonía.
He encontrado en las páginas de El nacimiento de la tragedia enfoques válidos para
profundizar algunos aspectos relativos a la dinámica suicida, actualmente presente
‘en la entrañas’ de la cultura suruaha.54
Desde este paradigma trágico, la vida tiene que ser sentida desde la
indignación. El vivir humano se construye a partir de una experiencia última de
contradicción, de una disonancia que se justifica ante las condiciones históricas
de la existencia ― condiciones extremas para los Suruaha: violencia y epidemias,
aislamiento, inviabilidad de la propia sociedad y de sus símbolos. Si en el paradigma
apolíneo de orden y armonía el sueño constituye la expresión más completa (como
proyección de un mundo imaginario, de una idealidad que se instaura como modelo
de sustentación de la realidad), en el paradigma dionisíaco la vida se apoya en una
condición de embriaguez, que muestra la desmesura como posibilidad de existencia
para el hombre.
54 La clásica apropiación antropológica que Ruth Benedict desarrolló a partir de la oposición nietzscheana
apolíneo/dionisíaco fue propuesta como modelo general de interpretación de las culturas en Patterns
of Culture (1934). En principio, la cultura suruaha estaría situada dentro de la tipología dionisíaca. De
todos modos, no es mi intención aquí evaluar la pertinencia de la matriz analítica de Benedict para el
caso específico suruaha. Al respecto, cfr. GEERTZ, C. El antropólogo como autor. Ed. Paidós, Barcelona:
1989, p. 122 ss.; y MARZAL, M., Historia de la Antropología II. Antropología cultural. Quito: Ed. Abya
Yala — Universidad Politécnica Salesiana, 61998, p. 218-225.
328
Álbum Purus
Miguel Aparicio
El éxtasis del estado dionisíaco, con su exaltación de las barreras y límites habituales
de la existencia, contiene, en efecto, mientras dura, un elemento letárgico, en el que
se sumergen todas las vivencias personales del pasado. Quedan de este modo
separados entre sí, por este abismo del olvido, el mundo de la realidad cotidiana y el
mundo de la realidad dionisíaca […]. En este sentido el hombre dionisíaco se parece
a Hamlet: ambos han visto una vez verdaderamente la esencia de las cosas, ambos
han conocido, y sienten náuseas de obrar; puesto que su acción no puede modificar
en nada la esencia de las cosas, sienten que es ridículo o afrentoso el que se les exija
volver a ajustar el mundo que se ha salido de quicio.55
La incapacidad ante un mundo fuera de quicio es, sin duda, uno de los ejes
histórico-simbólicos que ha sustentado, en la trayectoria suruaha, la práctica ritual
del suicidio ― es posible ir más allá del tono romántico del texto de Nietzsche y llevar
en cuenta algunos elementos de interpretación. Desde un “imaginario de tradición”,
el chamanismo suruaha era una instancia de acceso al mundo de los espíritus de la
selva (karuki), los espíritus kurimie, las almas asuma de los antepasados. El vehículo
de acceso ritual a este universo superior era el tabaco kumade, que conduce a un
estado de embriaguez (muwy) que posibilita el contacto con esta esfera espiritual. En
el paradigma suicida, la embriaguez y la náusea letal del kunaha (asini) expresan una
voluntad extrema de superación del absurdo.
Ahora ningún consuelo produce ya efecto, el anhelo va más allá de un
mundo después de la muerte, incluso más allá de los dioses, la existencia es negada,
junto con su resplandeciente modelo en los reflejos en los dioses o en un más
allá inmortal. Consciente de la verdad intuida, ahora el hombre ve en todas partes
únicamente lo espantoso o absurdo del ser, ahora comprende el simbolismo del
destino de Ofelia: siente náuseas.56
En este dinamismo, la experiencia trágica derivada de la conflictividad
de las circunstancias históricas extremas origina una expresión dramática (y, por
consiguiente, configurada como ritual) que da un nuevo soporte simbólico a la vida
colectiva.
La náusea que crea el seguir viviendo es sentida como medio para crear […].
Lo espantoso o lo absurdo resulta sublimador, pues sólo en apariencia es espantoso o
absurdo. La fuerza dionisíaca de la transformación mágica continúa acreditándose
aquí en la cumbre más elevada de esta visión del mundo: todo lo real se disuelve
en apariencia, y detrás de ésta se manifiesta la naturaleza de la voluntad, totalmente
envuelta en la aureola de la sabiduría y de la verdad, en un brillo cegador. La ilusión,
el delirio se encuentran en su cúspide.57
55 NIETZSCHE, Friedrich. El nacimiento de la tragedia. Madrid: Alianza Editorial, (1886)2005. p. 80.
56 ibid., p. 81.
57 ibid., p. 264.
Contrastes entre semejantes y extraños jadawa versus waduna...
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Gilton Mendes dos Santos (Org.)
La respuesta simbólica de los Suruaha ante la experiencia de tragedia
abre, paradójicamente, una posibilidad de existencia. El proceso de consolidación
del suicidio se establece más como afirmación individual y colectiva que como
negación existencial, constituye más una expresión de resistencia que de desistencia.
No expresa la inviabilidad, sino la insurgencia. Al dirigir la mirada al trayecto
histórico de los Suruaha en las últimas décadas ― orientadas decididamente por
lo que hemos denominado “paradigma de suicidio” ―, se comprueba que el ritual
del kunaha ha estado vinculado, de hecho, a una dinámica colectiva de viabilidad de
la supervivencia. El horizonte trágico de la muerte voluntaria ha dado referencias
simbólicas para la posibilidad histórica de una “sociedad de suicidas”.
Hasta ahora esta posibilidad histórica ha sido viable. De todos modos,
persiste siempre una incertidumbre (para los Suruaha, más inquietante que para los
etnógrafos waduna…): la pertinencia futura de la alternativa suicida, ante el paisaje
en transformaciones permanentes en que se sitúa la Amazonia indígena. Para los
Suruaha, el horizonte continúa abierto de manera inquietante, como para Amantasi,
el viajero ancestral de su memoria colectiva, en el relato de Kwakwei:58
El viaje de Amantasi
Amantasi dejó nuestra tierra, atravesó todas las tierras de los Jara y llegó
hasta el horizonte, allá donde se encuentran el cielo y la tierra. Antes de llegar allí,
tuvo que atravesar una región donde volaban murciélagos gigantes. En el lugar
donde se tocan el cielo y la tierra, Amantasi tuvo que ir agachándose, levantó la
mano que, sin querer, penetró en el cielo. Las almas (asuma) que habitan en el
cielo sujetaron la mano de Amantasi, él vio que sus dedos eran largos y sus manos
enormes. Amantasi vio a las mujeres de las almas majando maíz en el pilón, su piel
era muy hermosa, roja como si estuviese pintada con bija. Las almas golpearon a
Amantasi y lo hirieron con cuchillos. Nadie más sabe qué fue de Amantasi.
Más allá del horizonte, donde el cielo y a tierra se encuentran, hay un lago
inmenso, un vacío que Amantasi conoció. Sobre la tierra, más allá de las nubes,
está el cielo (zamzama). En el cielo hay muchos colibríes y muchas imbaúbas, en
las imbaúbas viven las estrellas y viven también los mosquitos borrachudos. En
este lugar está la morada de las almas, las almas viven en una maloca grande y muy
bonita, la maloca de Tiwiju. En lo alto del cielo están el sol y la luna.
Bajo el suelo están las tierras profundas (adaha buhuwa), que no acaban; bajo
las tierras profundas hay piedra, rocas durísimas. Sobre el cielo están las aguas altas,
en las que abundan los peces. Sobre estas aguas hay un vacío infinito.
58 Relatado por Kwakwei en la maloca de Dihiji, el 21 de abril de 1998.
330
Álbum Purus
Miguel Aparicio
Referências
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Norte-Amazônico. Ed. UNESP, São Paulo: 2000
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GUERRERO, Patricio. Antropología Aplicada. Quito: Universidad Politécnica
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“Rebeldes y Utópicos”. Lima: 1961, p. 255-265.
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RANGEL, Lucia H. Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico. Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo: 1994, p. 32-54 (Tesis de Doctorado);
RIVIÈRE, Peter. O indivíduo e a sociedade na Guiana. EDUSP, São Paulo: 2001
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ROSALDO, Renato. Cultura y verdad. La reconstrucción del análisis social. Abya Yala,
Quito: 2000
SANTOS GRANERO, Fernando. “Hacia una antropología de lo contemporáneo
en la Amazonía indígena”, en Id., Globalización y cambio en la Amazonía Indígena. Abya
Yala, Quito: 1996
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o
terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 129.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio”, en Mana 2(2): p. 124-125.
332
Álbum Purus
Sobre os autores
Adriana Kulaif Terra. Bióloga pela Unesp de Botucatu. Mestre em Ciências
do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Ufam. Foi pesquisadora
do Instituto Piagaçu. Possui experiência na área de pesquisa sobre o uso
sustentável de recursos naturais na Amazônia, com caracterização, avaliação e
impactos de caça pelas comunidades locais.
Almir Diniz de Carvalho Júnior. Doutor em História Social pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). É professor da Universidade Federal do
Amazonas, onde atua nos programas de pós-graduação em História Social e em
Antropologia Social. Sua área de pesquisa engloba a história indígena, a história
colonial da Amazônia, a história cultural e a historiografia. Atualmente se dedica
a pesquisas sobre os processos de inserção das populações indígenas no
mundo ocidental considerando os fenômenos de mestiçagem cultural. Também
desenvolve e orienta pesquisas sobre a religiosidade, identidades e práticas culturais
na Amazônia.
Ana Gouvêa Bocchini. Pedagoga formada pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Trabalhou principalmente em espaços de educação não formal, com
ênfase em educação ambiental. Desde 2008 reside em Manaus, onde passou a
trabalhar com populações tradicionais de Unidades de Conservação Estaduais,
com organização comunitária e formação de conselho gestor.
André Pinassi Antunes. Biólogo e mestre em Zoologia pela Universidade
Estadual Paulista (Unesp). Atua pelo Instituto Piagaçu em parceria com as
populações locais na conservação dos recursos naturais da RDS Piagaçu-Purus.
Realizou estudos sobre fauna na Mata Atlântica e Amazônia, e atualmente vem
pesquisando uso da fauna e etnozoologia em populações humanas da Amazônia.
Angélica Maia Vieira. Estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Amazonas (Ufam), vinculada ao Núcleo de Estudos da Amazônia
Indígena (Neai). Desenvolveu dois projetos de iniciação científica na área
da Antropologia, um sobre a participação dos índios Paumari no sistema de
aviamento e o segundo sobre a relação dos índios Paumari com o universo
aquático.
333
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
Boris Marioni. Mestre em Ciências pela Universidade de Neuchâtel, Suíça, com
especialização em Ecoetologia dos vertebrados. É coordenador do Programa
de Conservação de Crocodilianos do Instituto Piagaçu e tem experiência na área
de Ecologia, comércio de fauna e manejo sustentável de recursos naturais por
comunidades locais da Amazônia.
Cláudia Pereira de Deus. É bióloga, doutora em Ecologia pela Universidade
Estadual de Campinas, tendo como área de atuação ecologia de comunidades
de peixes e biologia da conservação. Participou na elaboração da proposta
de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (RDSPP). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia tendo
iniciado suas atividades em 1987. É presidente do Instituto Piagaçu desde 2004, e
coordena o Projeto Conservação e Manejo dos Recursos Naturais da RDS-PP.
Bruno Garcia Luize. Ecólogo e mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia. Tem interesse em ecologia vegetal e atuou
principalmente nos seguintes temas: fenologia vegetal, dispersão de sementes e
levantamentos de vegetação. Atualmente tem foco nas vegetações alagáveis nas
planícies dos grandes rios amazônicos.
Clayton de Souza Rodrigues. Mestre em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Amazonas (Ufam, 2010). Produziu uma revisão bibliográfica sobre
organização social e cosmologia entre os povos do Médio Purus/Juruá, entre
eles os Arawa: Jamamadi, Kulina, Deni, Zuruahá, os Katukina: Kanamari e
Katukina e os Apurinã.
Davi Avelino Leal. Licenciado em História pela Universidade Federal do
Amazonas, mestre e doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM)
com bolsa da Fapeam. Pesquisa os conflitos pelo uso dos recursos naturais no rio
Madeira no final do século 19 e início do século 20.
Eduardo Martins Venticinque. Ecólogo, mestre e doutor pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor adjunto I do Departamento
de Biologia da Ufam e vice-presidente do Instituto Piagaçu. Tem experiência
na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia de Paisagem e Conservação.
Eduardo Von Muhlen. Biólogo, com mestrado em Zoologia. Realiza pesquisas
sobre o uso sustentável de recursos naturais, principalmente na caracterização,
334
Álbum Purus
avaliação e impactos da caça de subsistência e profissional praticada por diversas
comunidades tradicionais e monitoramento de mamíferos de médio e grande
porte. Atualmente é pesquisador do Instituto Piagaçu, onde coordena o
subprograma de Monitoramento e Uso de Fauna (Promuf) da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Piagaçu - Purus.
Fabiana Maizza. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo
(USP), realizou sua pesquisa entre os Jarawara, escrevendo a primeira monografia
sobre o grupo. Sua tese visa analisar, por meio de temas clássicos da antropologia
– como o parentesco, o xamanismo e a cosmologia –, a concepção do espaço/
território entre os Jarawara.
Fabiano Waldez. Biológo, doutorando em Ecologia pelo Inpa e bolsista
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
Pesquisador do Instituto Piagaçu. Pesquisa conservação e ecologia de anfíbios
e pequenos répteis amazônicos em colaboração com o Instituto Piagaçu e a
Coleção de Anfíbios e Répteis do Inpa.
Fabio Röhe. Ecólogo e mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia. Vem ao longo de sua carreira atuando em estudos principalmente
em Floresta Atlântica do Sudeste brasileiro e Amazônia, pesquisando mamíferos
selvagens. Nos últimos cinco anos tem se dedicado principalmente a estudos
ecológicos, distribucionais e taxonômicos de primatas amazônicos.
Fabrício Hernani Tinto. Engenheiro florestal pela Esalq. Foi pesquisador do
Instituto Piagaçu. Atua na área de Recursos Florestais e Agricultura, com ênfase
em Sistemas Agroflorestais e Extensão Rural.
Felipe Rossoni. Biólogo pela PUCRS e mestre em Biologia de Água Doce e Pesca
Interior pelo Inpa. Pesquisador do Instituto Piagaçu. Atua na área de Ictiologia
e Pesca, exercendo atividades de cunho científico e extensionista relacionadas
com ecologia, conservação e manejo de peixes amazônicos, caracterização
de usos de recursos aquáticos pelas comunidades locais, ecologia humana e
organização comunitária.
Gilton Mendes dos Santos. Doutor em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo (USP, 2006), desenvolveu pesquisas junto aos Enawene-Nawe, da
Amazônia Meridional, dando destaque às teorias nativas sobre a relação natureza
335
Gilton Mendes dos Santos (Org.)
e cultura, tendo publicado vários trabalhos sobre o tema. Atualmente é professor
do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam),
coordenador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai/PPGAS) e diretor
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Gustavo Falsetti Viviani Silveira. Cientista social pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC-SP, 2005) com especialização em indigenismo pela Opan/
Universidade Positivo (Curitiba, 2010). Atualmente executa o “Projeto Aldeias”
como indigenista da Operação Amazônia Nativa (Opan) junto ao povo indígena
Paumari na região dos rios Tapauá e Cuniuá no Estado do Amazonas.
Hermógenes Bastos Neto. Graduando em Ciências da Computação pela Ufam.
É integrante do Instituto Piagaçu. Tem experiência na área de Informática, com
Sistemas de Informação, Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento.
Ingrid Daiane Pedrosa de Souza. Estudante do curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Amazonas e vinculada ao Núcleo de Estudos da
Amazônia Indígena – Neai. Desenvolveu dois projetos de iniciação científica na
área da Antropologia, o primeiro focalizando a participação dos índios Jamamadi
no Sistema de Aviamento durante o século 19 e início do 20 (CNPq), o segundo
abordou a contribuição dos viajantes naturalistas Spix & Martius para o estudo
do conhecimento índígena na Amazônia.
Jucélya Suellen Pereira da Silva. Estudante do curso de Ciências Sociais
da Universidade Federal do Amazonas, vinculada ao Núcleo de Estudos da
Amazônia Indígena (Neai). Realizou pesquisa de Iniciação Científica sobre a
atuação do SPI na região do Médio Purus entre os anos 2008-2009.
Liliane de Souza e Souza. Estudante do curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Amazonas (Ufam), vinculada ao Núcleo de Estudos da
Amazônia Indígena (Neai). Realizou pesquisa de Iniciação Científica, com base
em documentação primária sobre os Kulina entre os anos de 2008 a 2010.
José Gurgel Rabello Neto. Formado em Engenharia de Pesca pela Universidade
Federal do Amazonas, é mestre em Biologia Aquática e Pesca Interior pelo INPA
tendo trabalhado com diferenciação de estoques pesqueiros de aruanã preto
(Osteoglossum ferreirai) na área do rio Negro. Atualmente é coordenador do
336
Álbum Purus
Programa Conservação e Manejo de Pesca do Instituto Piagaçu, atuando na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus desde 2006.
Lúcia Helena Rapp PyDaniel. Bióloga pela UnB, mestre em Biologia de Água Doce
e Pesca Interior pelo Inpa e doutora em Ecology and Evolutionary Biology pela
University of Arizona. Pesquisadora do Inpa e integrante do Instituto Piagaçu,
tem experiência na área de Zoologia, com ênfase em Sistemática Filogenética de
Peixes.
Marcelo Horta Messias Franco. Bacharel em Antropologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais, com especialização em Indigenismo pela Universidade
Positivo/Opan (2010), com a monografia intitulada “Organização Social e
Representatividade Pluriétnica na Região do Médio Purus”. Atualmente trabalha no
Instituto Internacional de Educação do Brasil — IEB, como assistente de campo do
programa Fortis (Fortalecimento Institucional no Sul do Amazonas).
Marcelo Pedro Florido. Doutorando em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo (USP, 2009), fez pesquisas de mestrado entre os grupos Arawá da
região do Purus/Juruá na Amazônia, sobre os quais escreveu a dissertação @@@.
Atualmente pesquisa as relações de parentesco entre o grupo Deni do rio Cuniuá,
afluente do Purus.
Miguel Aparicio. Graduado em antropologia pela Universidade Politécnica
Salesiana de Quito, atuou como indigenista na TI Zuruaha nos anos 1995-2001, e
colaborou ao longo desses anos com diversas articulações do movimento indígena
na região do Médio Purus, no Amazonas. Estudou aspectos da territorialidade e
da memória oral Zuruaha. Posteriormente (2004-2007) desenvolveu um programa
de conservação junto aos Katukina do Biá, no município de Jutaí (AM), numa
parceria da Opan (Operação Amazônia Nativa) com Conservation International.
Atualmente coordena na Opan o Projeto Aldeias (consórcio Opan/World Vision
apoiado por Usaid), programa de conservação da biodiversidade e fortalecimento
organizacional nas TIs Paumari do Cuniuá, Paumari do Manissuã, Paumari do
Paricá, Deni e Katukina do Biá, e de proteção territorial das TIs Hi Merimã e
Zuruaha, em parceria com a Funai/CGIIRC. Atualmente reside em Cuiabá (MT),
onde coordena o Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento
(Formad), e faz parte da Rede de Lideranças Ambientais da Universidade da
Califórnia em Berkeley.
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Oiara Bonilla. Doutora em Antropologia Social pela Ecole des Hautes Etudes en
Sciences Sociales (EHESS, 2007), trabalha entre os Paumari do Médio Purus no
sudoeste da Amazônia, estudando os temas da cosmologia, do ritual e das relações
interétnicas. é pós-doutoranda associada ao Centre d’enseignement et de recherche
en ethnologie amérindienne (Erea, Université de Paris Ouest Nanterre La Défense)
de Paris e, atualmente, é bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro (Faperj) desenvolvendo como pós-doutoranda no Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) um projeto sobre cosmopolítica indígena e políticas públicas.
Renata Corrêa Apoloni. Engenheira ambiental pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp - Rio Claro, 2007), com especialização
em indigenismo pela Opan/Universidade Positivo (Curitiba, 2010). Atuou, entre
2009 e 2010, no “Projeto Aldeias” como indigenista da Operação Amazônia Nativa
(Opan) junto ao povo indígena Paumari na região dos rios Tapauá e Cuniuá no
Estado do Amazonas.
Roselis Remor de Souza Mazurek. Bióloga pela UFSC, mestre em Ecologia pelo
Inpa e doutora em Ecologia e Evolução pela University of Illinois at Chicago. Foi
diretora científica do Instituto Piagaçu. Tem experiência na área de Antropologia,
com ênfase em Ecologia Humana, atuando principalmente em estudos de
utilização de recursos naturais entre povos indígenas amazônicos.
Stela Azevedo de Abreu. Mestre em Antropologia Social pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp, 1995). Realizou pesquisa entre os Ingarikó
(Carib) na Raposa Serra do Sol (Roraima), cujo tema foi o ritual do Aleluia.
Publicou, em 2004, o livro Aleluia e o banco de luz (Unicamp/CMU). Desde 1999,
faz pesquisa de doutoramento sobre os Apurinã (Arawak, Amazonas), tendo
realizado o trabalho de campo no Tauamirim, entre 1999 e 2001.
Thereza Menezes. Mestre e doutora em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ
e realizou estudos pós-doutorais no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap). Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS-Ufam) e coordena pesquisas
sobre efeitos sociais de políticas territoriais sobre povos tradicionais da Amazônia no
âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (Fundação Ford) e Capes.
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