UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS
Martha Teixeira Vieira
SOB O TRONO DE ZEUS:
Mito e Coerção Social na Cidade de Atenas
Anápolis – GO
2009
Martha Teixeira Vieira
SOB O TRONO DE ZEUS:
Mito e Coerção Social na Cidade De Atenas
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Coordenação do curso de História da
Universidade Estadual de Goiás - Unidade
Universitária de Ciências Socioeconômicas e
Humanas
Orientador: Prof Ms Paulo Henrique
Castanheira Vasconcelos
Anápolis - GO
2009
2
Dedico este trabalho a minha amada família,
pelo apoio e compreensão oferecidos, em
especial a minha querida mãe, cujos esforços
me permitiram concretizar esta importante
etapa de minha vida.
3
AGRADECIMENTOS
A minha família e amigos pela compreensão
de minha constante ausência.
A minha amada irmã, que sempre solicita
atendeu a meus pedidos de ajuda.
Ao meu orientador Prof. Ms. Paulo Henrique
Castanheira Vasconcelos, que por meio de seu
apoio e fé em mim depositada possibilitou a
materialização de uma ideia.
A Profª. Ms. Lígia Maria de Carvalho, pela
paciência e cooperação dispensadas em todo o
processo de elaboração desta monografia.
Ao meu grande amigo Marcus Vinícius Flexa
Rodrigues, cujas contribuições tornaram
possível a concretização do último capítulo
deste trabalho. Por sua amizade e pela calma a
mim passada nos momentos mais difíceis do
espinhoso caminho até aqui.
Aos meus colegas de turma, especialmente ao
Adriano, Allyne, Gilson, Lívia e Marquinhos,
por tornarem meus dias mais alegres.
4
A memória se conservou na lenda
Glotz
Conhecer os mitos é aprender o segredo da
origem das coisas
Mircea Eliade
Haja ou não deuses, deles somos servos
Fernando Pessoa
5
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS...................................................................................................... 7
RESUMO......................................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO............................................................................................................... 9
CAPÍTULO I: OS DEUSES E O SURGIMENTO DAS CIDADES.............................12
1 A IMPORTÂNCIA DO MITO...............................................................................12
2 E DO SOPRO DIVINO SURGE À CIDADE........................................................16
3 OS DEUSES E A COESÃO SOCIAL ...................................................................21
CAPÍTULO II: OS MITOS A SERVIÇO DO ESTADO...............................................24
1 MITO E POLÍTICA............................................................................................... 26
2 OS ESCOLHIDOS DOS DEUSES ........................................................................29
3 OS MITOS PUNITIVOS E A CONSERVAÇÃO DA ORDEM............................34
CAPÍTULO III: ATENAS E SUAS REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS..................41
1 A MORADA DOS DEUSES E A MORADA DOS HOMENS..............................43
2 ARTE E A PRESENTIFICAÇÃO DOS DEUSES ................................................46
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................53
REFERÊNCIAS..............................................................................................................54
6
LISTA DE FIGURAS
Figura 3.1: Atena Partenos, do Partenos de Atenas, 12m. Museu Arqueológico Nacional
de Atenas.........................................................................................................................48
Figura 3.2: Prometeu acorrentados (1735), 115 cm. Nicolas Sébastien Adam. Museu do
Louvre, Paris.
Fotografia disponibilizada por Marcus Vinícius Flexa
Rodrigues.........................................................................................................................49
Figura 3.3: Teseu e o Minotauro ( 1843), 40 cm. Antoine - Louis Barye. Museu do
Louvre, Paris.
Fotografia disponibilizada por Marcus Vinicius Flexa
Rodrigues.........................................................................................................................49
Figura 3.4: Representação do Pathernon.........................................................................51
Figura 3.5: Ruínas do Pathernon. Construção projetada pelos arquitetos Calícrates e
Ictinos de Mileto sendo construída no séc. V a.C. Dimensões: base: 69.5 x 30.9, “cela”:
29.8 x 19.2. Acrópole, Atenas........................................................................................ 51
7
RESUMO
Compreender a importância do mito na sociedade clássica ateniense é ressaltar o caráter
sagrado e transcendental das instituições, assim como estabelecer mecanismos de
justificação e manutenção social. Vistos como geradores de padrões comportamentais,
possibilita a compreensão das constantes alterações que sofrem em suas estruturas
sempre que necessário para que o mesmo se torne compatível com as exigências morais
priorizadas pelas diferentes necessidades e anseios dos dirigentes, dando lhes um caráter
“politizador” com claras intenções políticas e de hegemonia. Analisar a apropriação e
intervenção do Estado Ateniense nas construções míticas é uma forma de conhecer e
reconhecer o mito como um mecanismo coercitivo, cujo reforço das normas morais e de
conduta interferiu em todas as esferas da sociedade, exercendo e justificando seu
controle além de garantir sua hegemonia perante as demais cidades-estados gregas.
8
INTRODUÇÃO
Sempre que voltamos nosso olhar para as diferentes épocas que permeiam nossa
história, nos deparamos com as mais diversas sociedades que, independentemente do
seu tempo histórico, fomentam argumentos que possam legitimá-las e assegurar sua
permanência, bem como o pleno exercício do poder de seus dirigentes. De posse te tal
necessidade, os discursos ideológicos assumem características que visam ressaltar e
reafirmar a necessidade da adesão de todos os membros sociais à nova realidade
vivenciada.
Uma das maiores “fontes” legitimadoras dos governos foi à religião que,
intrínseca ao imaginário dos indivíduos, forneceu um suporte indiscutível e durante
muito tempo intransponível de garantia a manutenção da ordem estabelecida pelos
detentores dos privilégios sociais.
Tal realidade não se deu de forma diferenciada em Atenas, que necessitando
unificar os diferentes grupos familiares em torno de um governo central, vislumbrou nos
mitos uma sólida base de edificação de seu poder coesivo e coercitivo. Se tornando
“aliados” da pólis recém formada, estes estabeleceram e propagaram normas e condutas
tidas como essenciais para o bom andamento da sociedade ateniense e o estreitamento
com os deuses políades, fornecendo para os “comedores de pão” diretrizes
comportamentais.
Dessa maneira, nota-se, que os mitos tiveram uma importância pungente em
Atenas, devendo ser analisados como um pressuposto de entendimento das relações
sociais por eles estabelecidas. Diante disso, se faz necessário despi-los de preconceitos
decorrentes da depreciação científica que caracteriza, a saber, a análise da narrativa
mítica como sendo fantasiosa e inacreditável, além de utópica. Devemos compreendêlos como um fenômeno cultural complexo, cujas características descrevam e retratem de
forma simbólica, os elementos e postulados básicos dessa cultura, tornando-se assim,
indispensáveis ao entendimento da vida individual e do coletivo.
Sob tais perspectivas devemos percebe os mitos tais quais eles eram para as
sociedades tidas como clássicas, nos aproximando, mesmo que minimamente, do seu
real fator de influência.
9
[Nessas civilizações], os mitos desempenham uma função
indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e impõe os
princípios morais, garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a
orientação do homem. (MALINOWSKI apud ELIADE apud BRANDÃO,
1990, p.41)
Revestido da sacralidade que lhe é própria e, portanto legitimadora, são
considerados como “histórias verdadeiras porque sempre se referem a realidades” 1,
relatando “de que modo algo foi produzido e começou a ser.” 2 Assim o mito, segundo
palavras de ELIADE: “fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou
plenamente”.
Percebidos como geradores de padrões comportamentais, possibilitam a
compreensão das constantes alterações que sofreram em sua estrutura sempre que
necessário, visando se tornarem compatíveis com as exigências morais priorizadas pelas
diferentes necessidades e anseios dos dirigentes, dando um caráter politizador com
claras intenções políticas e de hegemonia. Tal fato demonstra a necessidade de
contextualização do mito e sua inserção nos molde coercitivo, como meio de
compreensão das sociedades que o formularam, pois esses possuem relevância social e
caracterizam construções culturais onde os indivíduos “detentores” do poder
proveniente dos mitos, ganham toda uma justificativa sobrenatural e, portanto
incontestável.
Tentando compreender a forma como a sociedade ateniense incorporou os mitos
aos mecanismos de manutenção social com evidente intuito coercitivo e de manutenção
do poder, tendo como justificativa as relações míticas entre o sobrenatural e o humano,
este trabalho está dividido em sub-temáticas que compõem a temática central: De que
maneira o mito possibilitou a manutenção da ordem e do poder outorgados ao Estado
ateniense. Intencionando compreender tais mecanismos dividiu-se o presente trabalho
em três capítulos.
No primeiro capítulo, abordaram-se sucintamente as etapas que circundaram os
mitos e as suas associações com a religião, característica que promoveu mais facilmente
a penetração destes no imaginário coletivo, o que fez com que a sua incorporação
ganhasse dimensões reais. A maior prova dessa materialização do imaginário social se
deu através da elaboração de Atenas como um organismo unificado sobre um governo
1
2
ELIADE, 1989, p.12
Idem, 11
10
central, fato que só se tornou possível graças à criação de um sentimento que permitisse
que as várias famílias constitutivas da recém unificada polis, se vissem e se
percebessem como componentes, como pertencentes ao mesmo grupo sendo, portanto,
membros de uma mesma coletividade.
O segundo capitulo, por sua vez, trata da maneira como os mitos serviram aos
interesses dos dirigentes atenienses, ou seja, analisa a maneira como as leis e os
dirigentes passaram a ser revestidos de características divinas, o que possibilitou a
garantia tão almejada pela continuação da detenção do poder restrita aos privilegiados
do Estado. Tal garantia se viu fortificada pelo uso dos mitos punitivos que, objetivando
conservar a ordem, mostravam preciosas lições aos transgressores dos princípios
divinos assumidos por sua sociedade.
O terceiro e último capítulo, trata da maneira como a arte monumental,
exemplificada aqui pelo estatuário e pelos templos, exercia a coerção sobre a população
demonstrando através da materialização do mito e dos deuses, a constante presença
destes no meio social, os lembrando sempre que a ordem e as diretrizes em que sua
cidade tinha sido alicerçada era a transposição do Olimpo, mecanismo que contribui
ainda no reforçamento da presença divina e da vigilância intrínseca a ela.
11
CAPÍTULO I
OS DEUSES E O SURGIMENTO DAS CIDADES
Honra em primeiro lugar os deuses
imortais, como manda a lei
Pitágoras
1 A IMPORTÂNCIA DO MITO
Visto usualmente como sendo uma fábula, lenda, invenção, ficção ou ainda
como uma mera interpretação primitiva, além de ingênua do mundo e de sua origem, o
mito durante longo período teve sua importância reduzida e sua análise transvestida por
preconceitos decorrentes do sistema de pensamento filosófico e racional que passou a
ditar uma nova maneira de ver, pensar e entender o mundo. No entanto a partir de
meados do século XIX, tentou se ver o mito como este era visto pelas sociedades tidas
como arcaicas. Essa nova forma de entender e se perceber o mito acarretaram mudanças
sensíveis na sua compreensão enquanto agente social, exemplar e altamente
significativo, sem mencionar o caráter sagrado que o cerca e o dá sustentação.
Desvinculá-lo dessa característica religiosa é o mesmo que despi-lo de sua verdadeira
natureza e sua real importância, uma vez que a associação de ambos foi vital para o
desenvolvimento e criação da Cidade-Estado de Atenas, como as demais CidadesEstados gregas.
Nas sociedades gregas, em especial Atenas, nota-se que o mito é uma instituição
viva. Tão viva que se leva em conta sua capacidade de fornecer os modelos para a
conduta humana e isto pode ser observado tanto no plano individual quanto no coletivo,
uma vez que, a existência de cultos e ritos legitimam as crenças e as práticas que vão
além da mera narração de lendas e feitos das entidades sobrenaturais. Tais sociedades
percebem o mito como sendo e tendo uma significação própria e indiscutível, dando
explicação e valor a sua existência: “assim fizeram os deuses; assim fazem os homens”.3
Vale ressaltar que a apreensão parcial do mito bem como a compreensão de sua
importância deve se apoiar na perspectiva histórico-religiosa a qual o mesmo pertence,
já que o mito está inserido em um contexto sócio-religioso próprio e altamente
significativo.
3
Taittiriya-Brahmana apud ELIADE, 1989 p. 12.
12
A criação, a apropriação e a reconstrução dos mitos fazem parte de um processo
que se inspira nos contextos sociais vigentes em cada época, pois funcionam como uma
forma de responder ou tentar fornecer uma compreensão às indagações de seu tempo.
Tanto os questionamentos individuais quanto os coletivos buscam respostas ou
explicações “aceitáveis” que auxiliem na racionalização da perplexidade, ou seja,
buscam promover uma maneira para se compreender, aplacar e, quem sabe, até mesmo
reparar a fúria dos deuses.
Essa relação mito e religião se fizeram tão presente nas sociedades gregas que
chegou ao ponto de se complementarem, o que, de certa forma causou alguma confusão
na análise contemporânea dos mitos, sejam eles gregos, romanos ou de demais culturas
e localidades4.
Definir o que vem a ser religião se torna uma tarefa complicada devido ao
caráter polissêmico do termo. Utilizando-se da etimologia latina da palavra temos que
religião provém do verbo religare, tornar a ligar, religar, ou seja, é a ação de ligar.
Segundo a filosofa brasileira Marilena Chauí a religião é um vínculo estabelecido entre
o profano e o sagrado, ou seja, entre a natureza e as divindades que habitam a natureza
ou lugares específicos dela.
O mito por sua vez, em uma definição bem superficial e um tanto quanto
simplista, é tido como uma narrativa com caráter explicativo e simbólico portando uma
linguagem imagística cujo principal objetivo está em exaltar e codificar a crença,
garantindo e impondo os princípios morais e a eficácia do ritual, além de oferecer regras
práticas para a orientação dos indivíduos. Para Mary Junqueira “Os mitos são
representações da realidade, construções culturais que evocam a memória, a nostalgia e
reavivam crenças, além de oferecerem modelos de conduta.” Dessa forma, o mito se
apresenta como a narrativa real de uma criação, contando através dos tempos o modo
pelo qual algo, que não era, começou a ser. “Em síntese, os mitos são a linguagem
imagística dos princípios.‘ Traduzem’ a origem de uma instituição, de um hábito, a
lógica de uma gesta, a economia de um encontro.” 5
4
Diante da relação intrínseca estabelecida entre mito e religião, presente principalmente nas sociedades
denominadas clássicas, se fez necessário abrir uma brecha para demonstrar as definições de ambos e a
maneira como se relacionam, almejando dessa forma uma maior compreensão do envolto sagrado que
cercava o mito tentando assim minimizar possíveis confusões durante a leitura deste trabalho.
5
BRANDÃO, 2001, p.38.
13
Bem, mesmo de pose das definições sobre religião e mito, ainda existe uma
questão a ser vislumbrada: a maneira pela qual tais preceitos se uniram ao imaginário e
à constituição da religião nas sociedades antigas.
Religião pode, assim, ser definida como o conjunto de atitudes e
atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua
dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais.
Tomando- se o vocabulário num sentido mais estrito, pode-se dizer que a
religião para os antigos é a reatualização e a ritualização do mito 6.
(BRANDÃO, 1990, p.39)
A religião antiga, por assim dizer, se apoiava na função de sempre manter
vivo os mitos e seus ensinamentos através da constante realização dos rituais
necessários para o eterno reavivamento das ligações entre o divino e o humano. A
religião forneceu ao mito a sacralização, e uma vez tornado sagrado se instituiu na vida
dos atenienses, sendo mais do que modelos de conduta, tornaram se um legado dos
deuses para os homens.
Outro componente fundamental para se estabelecer o paralelo entre a religião e o
mito está na questão ritualística necessária para ambos. Os rituais, ou ritos, são uma
forma de assegurar que a organização e a ligação entre as divindades e os seres
humanos se mantenham e sejam sempre propícias. As realizações dos rituais fazem com
que os indivíduos se incorporem ao mito, assim como a religião, realizando um retorno
às origens do mundo, ou a determinado contexto temporal. Segundo BRANDÃO “o
rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o
homem na contemporaneidade do sagrado”. Para tanto se torna necessário, uma vez
fixada à simbologia do ritual, “a repetição minuciosa e perfeita do rito, tal qual foi
praticado pela primeira vez, porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras
dos humanos.”7 O rito tem uma importância vital para a existência e permanência dos
mitos a ponto de ser observado como “ aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra
em verbo, sem o que ela é apenas lenda,’ legenda’, o que deve ser lido e não mais
proferido.”8
Os mitos sofreram em suas estruturas constantes interferências dos interesses
sociais e políticos, que em nome dos anseios dos dirigentes de Atenas ou das classes
6
Grifo nosso
CHAUÍ, 2003, p.255.
8
Brandão, 2001, p. 40.
7
14
tidas como privilegiadas impunham mudanças a eles. Entre estas mudanças as que se
fizeram mais sensíveis foram a dicotomização e a politização dos mitos.
A dicotomização9 foi o processo onde em nome da moral começou-se a filtrar o
mito, podando-o e alterando-o visando assim torná-lo mais compatível com as
exigências morais. Através desta peneira ética, purificou se o mito para dele extrair
somente a variante sadia. Ora ao realizar semelhante corte, ou melhor, dizendo
alteração, os mitos com suas retratações dos deuses sofrem modificações que vão além
de suas estruturas, as mudanças são mais profundas, invadem o campo da representação
divina, uma vez que mudam o próprio aspecto da divindade retratada, atribuindo a ela
somente ações aceitáveis pelas exigências dos indivíduos, “O homem não deve atribuir
aos deuses a não ser belas ações. Este é o caminho mais seguro.”
10
. Nota-se que a
preocupação dos dirigentes com relação ao conteúdo e a essência dos mitos apóia se no
fato deste ser, como dito anteriormente, condutores morais dos indivíduos e da
sociedade. Como esperar ou atribuir aos mitos e seus deuses características reprováveis
pelos indivíduos ou que demonstram de certa maneira ações incoerentes com aquelas
esperadas pelos dirigentes atenienses no sentido de garantir a ordem social e manter a
paz e o controle de sua população.
Outro aspecto de mudança que merece ser mencionada é em relação à
politização dos mitos. A tomada de consciência política ofertada pelos indivíduos aos
mitos baseava-se no deslocamento quase que ininterruptos dos mitos, em principal o de
heróis, fazendo com que estes tivessem por passagem inevitável, viessem de onde
viesse, a cidade de Atenas. A auto eleição da cidade-estado de Atenas como ponto
obrigatório de convergência abarca conotações claramente políticas visando defender a
hegemonia política e cultural da cidade. Novamente os interesses políticos atenienses se
fazem sentir também neste processo de alteração dos mitos. Ao terem sua passagem
direcionada para Atenas, os heróis e os deuses, confirmam a superioridade política da
cidade-estado frente às demais cidades-estados gregas, mecanismo que proporcionou
enfatizar Atenas como núcleo político, social e cultural de grande importância para a
Grécia e todo o mundo ocidental.
Tais mudanças ressaltam o caráter primordial que o mito e os deuses assumiram
na sociedade ateniense, acompanhando grande parte da evolução sócio-política e
cultural dos mesmos, estando presentes inclusive na formação da própria cidade.
9
O maior responsável pelo processo de dicotomização foi Píndaro (52-44 a.C). O processo em questão se
apóia na categorização e bipartição dos mitos onde somente um das variáveis era aproveitada.
10
Píndaro, Olímpicas (35) apud BRANDÃO, Volume I, 1990, pg. 29.
15
2 E DO SOPRO DIVINO SURGE À CIDADE
Para se obter uma ideia, mesmo que aproximada, da extensão de atuação do
Estado ateniense na vida dos seus cidadãos é preciso compreender que política e
religião se caracterizavam como instituições indissociáveis. A vida em Atenas era ditada
pelos preceitos religiosos da qual era remanescente, toda estruturação social bem como
as regras, os direitos e deveres dos indivíduos possuíam suas explicações nas práticas
religiosas e em conseqüência nos mitos e nos deuses próprios da cidade.
A formação das cidades-estados não surgiu por si só sem uma causa aparente, ou
tampouco desceu dos céus pronta como um presente dos deuses a humanidade. Sua
constituição remonta ao tempo da instituição familiar com sua religião doméstica e suas
regras próprias. Cada família possuía seus deuses e chefes ficando proibidas a entrada
de estrangeiros e a associação com outras famílias e seus deuses, o culto era privado.
Cabia ao homem primogênito de cada família realizar os ritos sagrados e se
responsabilizar pela sua continuidade
Com o tempo famílias que possuíam divindades semelhantes se agruparam
unindo-se em torno de símbolos e de um culto em comum. É necessário ressaltar que
com o surgimento das fátrias houve um alargamento da ideia religiosa, que deixou de
ser uma religião particular, doméstica começando a adquirir os contornos de uma
religião/ culto público. Os mitos se tornaram comuns, passaram a ser compartilhados e
comungados por todos os membros da nova organização social.
Ao mesmo tempo que essas famílias se uniram, logo
conceberam uma divindade superior a seus deuses domésticos que, comum a
todos, velava por todo o grupo. Erigiram-lhe altar, acenderam o fogo sagrado
e instituíram-lhe o culto. (COULANGES, 2004, p. 124)
Cada fátria possuía um chefe, um deus tido como supremo, um culto com seus
sacerdotes, uma justiça e um governo. Extensão social modelada segundo a família, à
direção tanto religiosa quanto política da fátria era dominada pela família mais
poderosas que compunham o grupo. O deus superior era o seu, seu chefe patriarcal se
tornava o fatriarca, e a esta família estava reservada o direito de sacerdócio. A família
obtinha em seu poder o controle tanto político quanto religioso do grupo.
O
alargamento contínuo dessas associações possibilitou originarem as tribos, que tal qual
a fátria, teve sua organização política e social semelhante às bases familiares das quais
16
se originou, devendo ser acrescentado o direito de jurisdição sobre os seus membros.
Tais tribos se uniram sob a condição, vista até então como vital, de que seus cultos
seriam respeitados, convivendo assim mutuamente sob os olhares e alvará do deus
supremo instituído pelo grupo.
Pouco importa investigar a causa determinadora de muitas tribos
vizinhas assim se unirem. Ou a união fosse voluntária, ou imposta pela força
superior de alguma tribo, ou tornada obrigatória pela vontade poderosa de
algum homem, temos como certo ter sido ainda o culto que estabeleceu este
vínculo de nova associação. (COULANGES, 2004, p. 134)
“A ideia religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da
sociedade11.” “Do sopro divino” se cria o Estado antigo, ideia compreensível ao se levar
em conta a forte característica religiosa impregnada na formação da cidade ateniense,
assim com nas demais cidades-estados gregas. Segundo COULANGES, a religião tinha
gerado o Estado e o Estado por sua vez conservava a religião, fato que obtêm
corroboração quando observado as formas de sua origem. Aristóteles em seu livro
Política demonstra que a constituição de um Estado tem suas raízes no seu sistema
social, pois bem o sistema social envolto na criação de Atenas tem suas bases no ideário
religioso, que vai além da mera associação de famílias diferentes que se unem por
objetivos diversos. A associação remete uma união religiosa, uma união dos deuses
domésticos com deuses até então alheios de sua realidade, diferentes em sua
constituição e concepção. Ao se constituir um elo entre tais deuses, se estabeleceu um
deus comum a todos os membros do grupo. Portanto começa a se tornar possível a
criação de cidades-estados organizadas em torno de práticas religiosas comuns e
permeadas pela ideia religiosa da constante presença dos deuses, nesse sentido podemos
concluir que a ideia religiosa e a sociedade humana desenvolveram-se ao mesmo tempo.
É preciso perceber que a cidade não era um simples agregado de indivíduos,
antes disso, deve ser percebida como uma confederação de vários grupos sociais que ela
permite subsistir. Cada ateniense fazia parte de grupos diferenciados, mas, que se
completavam, eram membros de uma família, uma fátria, uma tribo e de uma cidade. O
lar foi substituído pelo templo, a religião teve um culto comum acompanhado de
pequenos cultos que ainda subsistiram, na política continuou a funcionar uma infinidade
de pequenos governos, acima do quais se colocou o governo soberano e, portanto
comum. Contudo vale salientar que as famílias continuaram os seus cultos domésticos,
11
COULANGES, 2004, p. 140.
17
prestando honras e realizando ritos aos seus antepassados, mantendo acesso o fogo
doméstico e perpetuando dessa forma o respeito às tradições familiares. Ou seja,
embora tenha ocorrido à estatização do divino por meio de uma hierarquização dos
deuses cultuados, as famílias continuaram a exercer certa autonomia de culto em relação
aos cultos familiares.
Segundo DETIENNE e SISSA “Os deuses estão de tal forma presentes na
cidade que nenhuma comunidade política pode ser fundada e instituída sem ter deuses”,
tal era a importância religiosa concebida aos deuses pelos atenienses clássicos. A figura
das potestades divinas estava associada à construção das cidades e a crença atribuída a
eles era uma forma de reconhecer sua presença nelas, sua importância na vida dos
homens enquanto organizados em sociedade e enquanto membros de uma comunidade
política. A autoridade dos olímpicos sobre a vida dos cidadãos se personificava nos
sacrifícios, e constantes cultos e oferendas ofertadas a eles nas mais diversas ocasiões.
Havia locais próprios intitulados como moradias para a divindade e os cultos eram
praticados sempre antes das deliberações do senado ou de atividades tidas como
públicas ou até mesmo privadas tal era o grau de importância dada às divindades
políades. Não prestar culto aos deuses, culto adequado, é causar dano à cidade, a seus
dirigentes e acima de tudo a seu próprio ser.
Convém ressaltar que “os inventores da cidade-estado fabricam deuses-cidadãos,
divindades ditas ‘políadas’, que regem o panteão de uma cidade, deuses estreitamente
implicados no cotidiano do social e do político” 12, fundadores esses que sempre que
necessário forjam os deuses em prol de projetos políticos, buscando por meio de este
mecanismo estabelecer a coesão dos atenienses e/ou exercer domínio sobre os mesmos.
Um exemplo claro da presença e da interferência atribuída aos deuses tidos
como políades está no mito da própria construção da cidade-estado de Atenas. Relata o
mito que houve uma disputa divina pelo patronato de Atenas, sendo os combatentes
Poseidon e Atena. Ficaria com o almejado prêmio quem oferecesse à cidade recém
fundada o presente mais valioso. Sob tais regras, Poseidon deu o cavalo aos moradores
enquanto Atenas fez surgir uma oliveira e ensinou os habitantes a produzirem o óleo.
Há variantes em relação ao presente fornecido por Poseidon dizendo que este foi um
poço feito no meio da cidade. Independente das variações dos presentes ofertados pelo
deus Poseidon, a cidade ficou sob os cuidados da deusa sendo nomeada a partir de seu
nome.
12
DETIENNE e SISSA, 1990, p.184.
18
Outro elemento mítico importante nas construções das cidades está associado
aos heróis, no caso da construção mítica de Atenas este herói foi Teseu. Por meio da
nomenclatura do nome de Teseu se chega à ideia de homem forte por excelência- teu
significa forte- que estava destinado a libertar a Grécia de seus monstros. Não focando
muito no mito de origem de Teseu, este era filho de Poseidon com Etra, filha do sábio
Piteu rei de Trezena. Devido a confabulações de Piteu, Egeu rei da Ática, considera ser
Teseu seu filho. Devido a problemas internos em seu reino, Egeu volta pra casa
deixando Teseu em Trezena aos cuidados de seu avô Piteu e de um grande pedagogo
Cônidas. Porém, antes de partir, deixa sua espada e suas sandálias sob um enorme
rochedo com a instrução de assim que Teseu atingisse a adolescência e conseguisse
retirar os objetos por ele escondidos, o fosse procurar. Assim foi feito e, para chegar a
seu destino final, passou por inúmeras provações, enfrentando monstros, bandidos e
demais perigos. Alguns dos feitos realizados por Teseu serão aqui cerceados, não por
considerarmos desnecessários ou sem importância, mas, simplesmente por ter o mito
Teseu e o Minotauro uma ligação direta com a formação da cidade de Atenas, além de
compor o quadro para se entender a escolha dos dirigentes pela deusa Atena como
patrona da cidade.
Já instalado na Ática, Teseu se viu diante do dever de enfrentar um novo
problema, após a morte do filho do rei Minos de Creta, morte essa atribuída a Egeu,
eclodiu uma guerra sangrenta entre Creta e Atenas. Como o prolongamento da guerra e
uma peste, que o rei cretense pediu a Zeus, assolaram Atenas, o rei Minos concordou
em retirar suas tropas sob o acordo de que lhe fosse enviados anualmente sete moças e
sete rapazes que seriam jogados no Labirinto para servirem de “pasto” ao Minotauro.
Como um bom herói Teseu se prontificou a ir para Creta e compor o grupo das vítimas
intencionando assim acabar com esse tributo nefasto e apaziguar os ânimos da
população que estava irritada com o rei Egeu. Relata-se que o rei Minos escolhia
pessoalmente as vítimas e que uma vez lançados no Labirinto tinham a garantia de que,
se conseguissem matar o Minotauro, poderiam regressar livremente a sua pátria. Teseu
só consegue se livrar do Labirinto e matar o Minotauro, porque obtém a ajuda de
Ariadne, filha do rei Minos, que ao se apaixonar por ele lhe oferta um novelo de fios de
ouro que à medida que adentrasse o Labirinto iria se desenrolando.
Realizado tal feito regressa para sua pátria, porém uma fatalidade lhe acomete,
característica própria das narrações dos heróis. Esquece de trocar as velas de sua
embarcação como o seu pai lhe havia pedido. Antes de partir para Creta, seu pai lhe deu
19
um jogo de velas sendo uma branca para caso saísse vencedor e uma negra para caso
tivesse perdido e morrido na empreitada heróica. Pois bem, o herói ateniense esquece-se
de trocar as velas, fato que gera o suicídio de seu pai que aguardava seu regresso em
cima de um monte de frente para o mar.
Nesse momento do relato começa a construção da cidade-estado, foco de nosso
estudo. Após a morte de Egeu, Teseu assume o poder da Ática sendo ele o responsável
pelo sinecismo, ou seja, reuniu em uma só polis os habitantes que estavam disseminados
pelo campo, processo que possibilitou a Atenas se tornar a capital do Estado e
posteriormente uma das cidades mais importantes da Grécia. É dedicado a ele o feito de
ter instituído a moeda e ter construído o Senado, além de ter dividido os cidadãos em
eupátridas, artesãos e camponeses. Trata-se aqui da ideia mítica em relação à formação
de Atenas, mas tais fatos relatados possibilitaram uma inversão real na forma de
organização tanto social quanto econômica da polis. Atenas deixa de ser uma sociedade
de economia agrária e passa a ter como base de sua economia o comércio, fato
demonstrado pela criação da moeda que, em linhas gerais, seria a “evolução” das
relações de escambo que se desenvolveriam em relações mais comerciais e rentáveis
para o Estado ateniense.
Nessa perspectiva voltamos a comentar sobre a escolha das divindades políades
como mantenedoras de uma relação restrita com o ideário pregado pelos seus dirigentes
e por seus projetos políticos. A escolha de Atena como deusa patrona da polis que leva
o seu nome, se deve justamente a essa mudança nas bases de Atenas, bem como do seu
novo ideário político. Ora, ao decidir por não escolher Poseidon e o cavalo, os
atenienses rompem com o mundo e o pensamento agrário que eram vigentes até o
momento. Optando por ficarem com a oliveira ofertada por Atena demonstram suas
intenções claramente comerciais e o novo modo de vida que pretendem possuir desse
momento em diante, a vida nas polis. A disputa entre Poseidon e Atena, e até mesmo o
processo de sinecismo promovido por Teseu, demonstram a luta entre o campo e o
urbano, saindo vencedor dessa disputa o modo de vida do urbano, do “civilizado”. A
legitimação dessa transferência no modo de vida veio justamente com os mitos de
disputa do patronato e as mudanças realizadas pelo fundador mítico de Atenas, fato que
possibilitou a permanência das mudanças políticas, econômicas e sociais e explicou o
nascimento da cidade- estado mais importante de toda Grécia: Atenas.
20
3 OS DEUSES E A COESÃO SOCIAL
Antes de se comentar sobre a coerção exercida pelo Estado ateniense apoiandose nos deuses e mitos, em suma na religião grega, é plausível, e porque não dizer,
considerável mencionar o processo de coesão promovido pela religião e por seus mitos.
Para estabelecer tal compreensão devemos levar em consideração à crença e o
poder a ela atribuído.
Nada de mais poderoso existe sobre a alma. A crença é obra do
nosso espírito, mas não encontramos neste liberdade para modificá-la a seu
gosto. A crença é de nossa criação, mas a ignoramos. É humana, e a julgamos
sobrenatural. É efeito de nosso poder, e é mais forte do que nós... Se nos
manda obedecer, obedecemos, se nos indica deveres, submetemo-nos. O
homem pode dominar a natureza, mas está sempre sujeito ao seu próprio
pensamento. (COULANGES, 2004, p.139-140)
A crença foi a responsável por criar um vínculo social, unindo famílias
diferentes com crenças próprias, em torno de um altar comum de um deus comum, de
um culto não visto como único, mas como superior aos demais. Somente por meio dela
foi possível criar e aplicar regras comuns e instituir o comando dos dirigentes fazendo
com que a população acatesse as regras e as obedecesse sem criar problemas maiores
para o Estado. Ao levar em conta a crença, compreendem-se os motivos que permitiram
às cidades,formadas por grupos distintos entre si tais como dirigentes próprios e regras
próprias, permanecessem unidos criando não somente uma ideia de Estado mas um
sentimento de pertencimento e de grupo.
É justamente essa crença nos deuses que cria condições para se inserir na
comunidade. O ato de ser cidadão está intrínseco na crença aos deuses de Atenas, sendo
os sacrifícios e o culto, uma espécie de laço entre os membros da cidade fazendo com
que a identidade do ateniense se firmasse principalmente em torno do altar. Ser cidadão
era oferecer, às entidades políades, sacrifícios e devoção constante, assumindo perante a
comunidade a importância e, porque não dizer, a preeminência que essa divindade
possuía na vida dos indivíduos e no regimento favorável da sociedade. Regimento esse
que dependia da vontade dos deuses, principalmente o deus políade, no caso Atena, que
interviria no destino da cidade-estado sob sua jurisdição: a cidade-estado de Atenas.
A questão do culto como identificação de um compatriota era levada tão a sério
que essa característica se torna uma prerrogativa de definição de quem era cidadão em
Atenas, e na Grécia em geral.
21
Se quisermos definir o cidadão dos tempos antigos pelo seu atributo
mais essencial, devemos dizer ser cidadão todo o homem que segue a religião
da cidade, que honra os mesmos deuses da cidade, aquele para quem o
arconte ou o prítane oferece, em cada dia, o sacrifício, o que tem o direito de
aproximar-se dos altares e, podendo penetrar no recinto sagrado onde se
realizam as assembléias, assiste às festas, segue as procissões e participa nos
panegíricos, participa nas refeições sagradas e recebe sua parte das vítimas.
Também este homem, no dia em que se inscreveu no registro dos cidadãos,
jurou praticar o culto dos deuses da cidade e por ele combater. Examinem-se
as expressões da linguagem: ser admitido no número de cidadãos traduz-se
em grego pelas palavras meteînai tôn nirôn, que significam: entrar na partilha
das coisas sagradas. (COULANGES, 2004, p. 211)
O compartilhamento do culto à Atena e nos ritos inerentes a ele, assim com a
transmissão dos mitos de criação da cidade-estado de Atenas e de sua supremacia em
relação aos demais ajudaram na construção do modo como se viam e se percebiam
enquanto pertencentes de uma unidade social recém formada e completamente diferente
dos núcleos sociais a quais pertenciam. A participação dos mitos na construção do, por
assim dizer, pertencimento dos indivíduos a sociedade ateniense, se mostrou decisiva ao
fornecer para todos esses grupos recém unidos uma característica em comum, ambos
foram cingidos por Teseu, o grande herói da Grécia, fato que por si denota a grandeza e
o prestígio de Atenas sobre as demais cidades gregas.
Essas questões quanto ao pertencimento e a percepção dos componentes sociais
quanto ao ser ateniense, modificou também sua relação no tocante a percepção do outro,
o como agir e até mesmo reagir diante da sua presença.
O estrangeiro era mal visto em certas ocasiões e sua presença se limitava a
alguns lugares, não podendo jamais fazer parte dos cultos e ser contemplado pelas leis
locais.
...o estrangeiro é aquele que não tem acesso ao culto, a quem os deuses da
cidade não protegem e que nem sequer possui o direito de invocá-los. Esses
deuses nacionais, como só querem receber orações e oferendas do cidadão,
repelem todo homem estrangeiro: a entrada do estrangeiro nos templos não é
permitida e sua presença durante as cerimônias é um sacrilégio.
(COULANGES, 2004, p. 211)
Este jamais se tornaria membro da sociedade ateniense, tendo seus direitos
cerceados em nome do bem comum, da comunidade como um todo. Ao nos deparamos
com tal prerrogativa para a obtenção da cidadania ateniense, fica nítido a influência que
a religião antiga e seus mitos tiveram na diferenciação entre o cidadão e o estrangeiro.
22
“É assim que a religião estabelecia entre o cidadão e o estrangeiro uma distinção
profunda e indelével. Essa mesma religião, enquanto exerceu poder sobre as almas,
proibiu que se concedesse aos estrangeiros o direito da cidadania.”
13
A religião se
tornou a base de justificativa e de sustentação da criação de um ideário comum do que é
ser ateniense, estabelecendo para tal a diferenciação e o detrimento do outro.
Somente por meio das construções míticas e, portanto, sociais, se tornou possível
superar as diferenças dos diversos grupos que até então compunham o cenário social de
Atenas, unindo-os em torno de um projeto de Estado com leis e cultos comuns a todos,
criando como solucionador de possíveis desavenças internas o sentimento de
pertencimento a um grupo social cujas características divinas de criação e de
superioridade possibilitavam ao novo Estado manter a unidade que era tão necessário
para o exercício de seu poder coercitivo sobre os atenienses.
13
COULANGES, 2004, p. 211.
23
CAPÍTULO II
OS MITOS A SERVIÇO DO ESTADO
A crença num poder sagrado é
fonte da crença em todo poder
Alípio de Sousa Filho
Como mencionado no capítulo anterior, os mitos tiveram um papel fundamental
no estabelecimento e na conservação da unidade ateniense. Contudo, sua função foi bem
maior do que somente ser o elo formador do ideário de coletividade e de pertencimento
a polis ateniense. Esses também serviram como mecanismos de controle da população,
indicando bem mais do que a maneira como se dirigir aos deuses, de se portarem nos
templos ou de realizar os ritos e sacrifícios. Também instituía os direitos e deveres dos
cidadãos, bem como daqueles que, de fato, se tornariam cidadãos, e a maneira como
todos deviam agir diante da coletividade, imposta pelo surgimento das cidades-estados e
suas normas.
Todos os membros da sociedade tinham regras e leis que deveriam ser seguidas
para o bem estar da cidade, dos indivíduos e dos deuses. Regras e leis essas
estabelecidas pelo intermédio de práticas e do culto aos mitos e, por conseguinte, dos
deuses. Platão afirmava que obedecer às leis era o mesmo que obedecer aos deuses,
tamanha era a simbiose entre religião e Estado, ou melhor, dizendo, entre o poder divino
e o poder estatal.
A religião que tinha gerado o Estado, e o Estado que conservava a
religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; este dois
poderes associados e confundidos formavam um só poder quase sobre –
humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos.
(COULANGES, 2004, p. 247)
Para se ter uma dimensão parcial do estreitamento entre a política da polis
ateniense e os mitos, enquanto componente integrante da religião antiga se torna
necessário, a nosso ver, vislumbrar os mitos como pertencentes a um intrincado sistema
simbólico, que por meio da representação dos deuses com suas proezas e ensinamentos,
tecem os rumos e a dinâmica dos indivíduos e da sociedade que, regida pela lança e pelo
24
escudo da sábia Atenas, se tornaram uma das mais importantes Cidades-Estados de toda
Grécia clássica.
Pautados no poder simbólico, tencionam alcançar sua função enquanto
instrumentos políticos de legitimação e/ou imposição da dominação e da ordem vigente.
Tal associação se faz visível quando relacionamos a função do mito com o do poder
simbólico. Segundo BOURDIEU:
[...] o poder simbólico é um poder de construção da realidade que
tende a estabelecer uma ordem gnesológica: o sentido imediato do mundo (e ,
em particular, do mundo social) [...]. Os símbolos são instrumentos de
conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do
sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução
da ordem social: a integração <<lógica >> é a condição da integração
<<moral>>>>. (2007, p.9-10)
Os mitos, enquanto “produtos coletivos e coletivamente apropriados”
(BORDIEU), possuem a função legitimadora da sociedade, sendo vistos como
instrumentos de conhecimento e de construção do mundo, almejado pelos grupos
sociais e pelo contexto sócio-histórico em que foram forjados. Nesse sentido de
ordenação e de tentativa de legitimidade social, os mitos são formas simbólicas de
apropriação da realidade. Frutos de uma cultura específica que , ao mesmo tempo em
que exercem a unificação dos atenienses, também funcionam como um mecanismo que
os separam e os subordinam a uma vontade transcendental, divina e, portanto, exterior a
sua “simples” condição humana.
Torna-se fundamental percebê-los enquanto construções culturais sendo,
portanto, formulações humanas, cujas regras e preceitos se transvertem e se apossam do
sagrado, objetivando, alcançar um poder até então irrefutável e autêntico, que
possibilitou o pleno exercício da coerção dos indivíduos pelo Estado. Poder esse,
simbólico, que por si só amenizava o constante uso da violência física no contexto
interno da sociedade14, uma vez que o medo dos deuses instituídos através dos relatos
14
A violência aqui mencionada se trata, por assim dizer, da “violência ritual”, daquela disseminada pelos
mitos e, por sua vez, apropriada pelo Estado ateniense. Cabe frisar que esse tipo de violência era praticada
de maneira silenciosa e camuflada, pois agia no campo das mentalidades, impregnando a organização e
manutenção social ateniense. A existência desta “violência ritual” não excluía a prática da violência em
si, que era praticada, principalmente, em tempos de guerras e de expansionismo. A diferença, se assim
podemos denominar, entre as duas formas de violência, está no fato de a primeira ser exercida pelo
Estado ateniense e direcionada para os seus concidadãos, enquanto a segunda, era praticada contra o
estrangeiro, ou seja, pelo alheio ao modo de vida, à organização social e ao “bem querer” da deusa Atena,
reafirmando, através do seu culto, a identidade e o sentimento de pertencimento dos atenienses.
25
míticos se mostrava capaz de exercer certo controle sobre a sociedade. Contudo vale
ressaltar que o funcionamento deste poder simbólico só se mostra realmente eficaz uma
vez que o mesmo se vê incorporado pelos membros sociais. Nesse sentido BOURDIEU
menciona que:
... o poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser
exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeitos ou mesmo que o exercem. Poder quase mágico, que permiti obter o
equivalente daquele que é obtido pela força (física ou econômica) só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (2007, p.9)
Fica fácil perceber, pois, o papel que a religião teve enquanto fator de garantia
à legitimação do sistema social, sancionando através do simbólico a ordem nomeada e
estabelecida pelos interesses políticos de determinados grupos sociais. O mito, por sua
vez, ofertou a legitimidade e as justificativas necessárias para a aplicação e permanência
das ações dos governantes sobre a sociedade, que se viram favorecidos pela associação
deste com a política.
1 MITO E POLÍTICA
Permeada pela sacralização da polis, o poder, a ela instituído, bem como o
sistema social por ela prescrito, se tornaram incontestáveis, uma vez que suas ações
estavam relacionadas com a necessidade da existência da ordem entre os indivíduos,
ordem essa, constantemente demonstrada e reafirmada pelos mitos. O poder do Estado,
ou da polis, era fomentado de tal maneira pela religião que os indivíduos, segundo
FINLEY, não possuíam direitos naturais nem inalienáveis que pudessem interditar os
atos deste.
Para os atenienses os interesses e a inviolabilidade da sociedade eram tamanhos,
que os indivíduos, segundo COULANGES, “tinham muito pouco valor perante esta
autoridade santa e quase divina”, da qual se apoderou a sociedade clássica. Em
benefício dessa sociedade, os indivíduos tinham suas liberdades cerceadas, almejando
com isso o bem estar da coletividade, apoiados no bem estar do Estado, em detrimento
do individual. O individuo não era independente, nem tão pouco, tinha pleno domínio
sobre seu corpo e vida, estes pertenciam ao Estado e serviam a sociedade.
26
É erro singular, entre todos os erros humanos, acreditar-se que nas
cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha sequer a
mais leve ideia do que esta fosse. Ele não se julgava capaz de direitos, em
face da cidade e dos seus deuses. (COULANGES, 2004, 250)
Tal subordinação, ou até mesmo, a anulação da liberdade individual, se elucida
no engrandecimento da importância, do poder e dos direitos inerentes a sociedade,
mantidos “sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade
originariamente se revestiu” (COULANGES, 2004).
... não podendo a sociedade subsistir sem o poder, esse procura uma
maneira de não ser percebido como tal, ou então busca ser a aparência de
algo superior ao que á comum aos homens para que seja possível que esses se
convençam que é assim. (Espinosa apud FILHO SOUSA, 1995, p.85)
As práticas estabelecidas pelo ordenamento dos atenienses em uma sociedade, só
se tornou possível quando seu estabelecimento foi visto como necessário para o
desenvolvimento da coletividade, sendo fundamental para isto, a aceitação por parte dos
membros sociais, das suas instituições políticas e do seu modelo de sociedade que, ao
serem transportados para o campo natural do progresso humano, reafirmam a
necessidade da realidade social que se instala entre eles.
O indivíduo submetido ao aprendizado da cultura instituída é levado
a considerar a sua sociedade (e seu modo de vida) como o único modelo de
vida social, ou mesmo expressão natural da vida em comum. A sociedade,
embora mascarando o fato, obtém isso por meio da imposição de normas de
conduta e pala difusão de crenças segundo as quais a própria realidade
imposta é vista como necessária, inevitável e imutável, como parte da
natureza das coisas. Essa é a maneira pela qual o indivíduo passa a aceitar
sua sociedade tal como é (ou se apresenta), sem colocá-la em questão. Os
costumes, as normas e as crenças têm o poder de condicionar o modo dos
indivíduos verem o mundo, determinar suas apreciações morais e os
diferentes comportamentos sociais. (FILHO SOUSA, 1995, p.19)
Alicerçada na tradição mítica, as normas sociais, assim como a condução da
sociedade através de seus dirigentes, se viu constantemente associada à concepção
mágico-religiosa. Concepção que invadia e ditava a forma de se governar à cidadeestado. “Governava-se o povo propalando oráculos. Os oradores para fazerem
prevalecer sua opinião repetem a cada momento: Assim o ordena a deusa.”
15
15
COULANGES, 2004, p.244.
27
ressaltando que tais feitos eram desígnio dos deuses, assim como o estabelecimento das
instituições e dos homens que os iriam dirigir a sociedade, fato que será propriamente
analisado em outro tópico.
A, por assim dizer, personificação da vontade dos deuses, estava presente na
criação das leis que regeriam todo o corpo social. Tal enlace entre as leis e o divino
pode ser compreendido quando outorgamos a primeira o caráter sagrado que lhe era
atribuído pelos povos antigos. Segundo COULANGES “entre os antigos, a lei foi
sempre sagrada; no tempo da realeza, era a rainha dos reis, no tempo da república foi
rainha dos povos. Desobedecer-lhe seria cometer sacrilégio”. Essa associação garantiria
as bases necessárias para a sua permanência e a obediência por parte dos atenienses, que
não iriam de encontro à vontade “olímpica”, temendo despertar com isso, a fúria dos
seus deuses. Nesse sentido a lei não se discutia, impunha-se, não necessitava explicar
suas razões e motivações, existia porque os deuses a fizeram e assim a quiseram.
Pautados sob a dinâmica leis-deuses, a analise da sujeição dos atenienses à lei,
fato que ocasionaria a manutenção da ordem e a coerção social, torna-se mais facilitada.
Para tal levaremos em consideração que as leis sociais foram obras dos deuses, e esses
por sua vez, são frutos das crenças humanas e de seus anseios em compreender os fatos
alheios ao seu entendimento. Ora, como são criações humanas, fazem parte da
necessidade de se explicar e embasar um contexto social específico, garantindo dessa
maneira a perpetuação e não contestação desses pelo grupo social. Ao inserir as leis em
um contexto divino, os responsáveis por sua criação lhe outorgam a confiabilidade
inerente ao sagrado, ou seja, a certeza de que elas serão o melhor para o bem estar de
toda a comunidade e todos seus indivíduos. Por estar de tal maneira intrínseca a religião
antiga, os indivíduos não ousavam contestá-las, a admitindo como algo superior a sua
vontade. Para Aristóteles, “os deuses com sua histórias e seu modo de vida seriam
invenções pedagógicas úteis, tendo em vista persuadir a multidão a servir às leis e aos
interesses comuns” 16. A supressão da participação humana na criação das leis se fazia
necessária para garantir o estabelecimento da ordem social vigente e da permanência
dos grupos aristocráticos no comando da cidade-estado de Atenas. Para tanto, o estado
se apropria dos mitos, que ficam a serviço da política na polis ateniense, servindo como
um forte mecanismo de manutenção social.
16
Citado por DETIENNE e SISSA, 1990, p.100
28
2 OS ESCOLHIDOS DOS DEUSES
Outro quesito social que teve a forte ingerência dos deuses na sociedade
ateniense está relacionado com a escolha dos seus dirigentes.
No período em que Atenas, assim como toda a Grécia , era governada por uma
realeza, o poder conferido a esse baseava-se em uma concepção religiosa, onde eram
vistos como “guardiões da justiça”, estando diretamente ligados aos deuses,
principalmente a Zeus. A explicação mítica da formação da nobreza, assim como a
constituição de seus privilégios e habilidades de governo, pautava-se, geralmente, na
versão da descendência hibrída, ou seja, na união sexual de algum dos membros desta
com um deus, sobretudo Zeus, famoso por suas constantes ligações adulterinas com
mortais, gerando uma linhagem divina.
Tais uniões e filiações divinas serviram para justificar as prerrogativas
sagradas de certas famílias, dando embasamento aos poderes e privilégios religiosos e,
portanto, ressaltando o caráter de soberania de alguns pouco grupos familiares. Dessa
forma, a nobreza e seu rei, tinham seu poder sustentado por crenças possantes,
cultivadas dentro da alma. Essa filiação dos reis com Zeus é expressa de forma bem
clara por Platão: “é de Zeus, que vêm os reis... eles são estabelecidos por Zeus como
‘guardiões das cidades’”.17 A associação com o divino era fonte de toda sua dignidade e
poder. A ligação entre o rei e Zeus estava tão arraigada no pensamento arcaico ateniense
que, para Hesíodo, “Zeus é a expressão suprema do exercício de poder”, uma vez que”
toda a cosmogonia, converge e centra-se na assumpção da realeza universal por Zeus”.18
Para os atenienses, assim como para os gregos em geral, Zeus é visto como o
mantenedor da ordem e da justiça, se tornando a própria expressão do poder, razão pela
qual toda realeza e todo exercício do poder tem sempre sua fonte no senhor supremo
dos olímpicos. Devido a essa ligação, os reis eram vistos como escolhidos, protegidos e
sustentados por Zeus e os demais deuses. Assim, os dirigentes eram tidos como pupilos
dos imortais e, portanto, responsáveis diretos pela manutenção da sociedade: “os reis
alunos de Zeus são os mantenedores da Ordem.” 19
“A quem honram as virgens do grande Zeus
17
Platão em a República apud VERNANT, 1990, p.37
Torrano, Jaa, 2007
19
Idem 15
18
29
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem de sua boca. Todas
as gentes o olham decidir as sentenças com
reta justiça e ele firme falando na ágora
logo a grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quanto às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
Indo à assembléia, como a um Deus o propiciam
Pelo doce honor e nas reuniões se distingue.”
(Teogonia, 2007, vs. 81-92)
Os reis eram percebidos e concebidos como os colaboradores da manutenção
cósmica e portanto da garantia de equilíbrio e da prosperidade da comunidade. Era
como se a organização social do Olimpo fosse transportada para a sociedade humana,
demonstrando uma forte necessidade de uma hierarquização social, por conseguinte, da
necessidade de autoridade e de persuasão. Preceitos esses reforçados pelos mitos de
soberania de Zeus, que por meio da sua ascensão ao poder cósmico suplanta o
“governo” do Caos, instaurando uma nova organização pautada na ordem e no
equilíbrio. Tomando por pose tal perspectiva, nota-se que o emprego do poder e da
direção dos escolhidos dos deuses - os reis- visava estabelecer a mesma ordem e
equilíbrio entre “comedores de pão” (Hesíodo).
Partindo para uma explicação menos mítica, contudo entremeada de
características religiosas, a instauração do rei se deu pela fundação e instituição do lar
público, da cidade, sendo o poder e o governo transmitidos de forma hereditária,
demonstrando a importância da linhagem. Com base nisso pode-se mencionar que a
religião fez o rei da cidade, fato que também explicaria a confusão, existente no mundo
antigo, entre as funções religiosa e sacerdotal e a função política, devido ao forte
envolvimento entre religião e governo.
A obediência ao poder do rei, bem como sua aceitação, não encontraram
empecilhos entre a população que o viam como um ser sagrado, fundamentada,
sobretudo em crenças que tinham grande poder sobre a alma humana. Sua autoridade
passa a ser santa e inviolável.
A crença, a indiscutível e imperiosa crença, dizia que o sacerdote
hereditário do lar era o depositário das coisas sagradas e o guarda dos deuses.
Como hesitar em obedecer a tal homem? O rei era um ser sagrado. Nele se vê
não um deus propriamente, mas, pelo menos, “o homem mais poderoso para
30
conjurar a cólera dos deuses”, o homem sem cuja assistência nenhuma prece
seria eficaz, nenhum sacrifício seria aceito. (COULANGES, 2004, p.277)
Mesmo com a supressão da realeza por revoluções20 e o estabelecimento de um
novo regime, a escolha dos dirigentes ainda fica a cargo dos deuses. O governo e o
poder a ele enraizado passam a ser por meio de eleições, contudo não havia, ainda, a
distinção entre o sacerdote e o chefe político, visto que sua efetivação enquanto
dirigente dependia dos prenúncios das potestades olímpicas. 21
O caráter sacerdotal que era inerente ao magistrado mostra-se
sobretudo na maneira pela qual era eleito. Aos olhos dos antigos os sufrágios
dos homens não pareciam suficientes para eleger o chefe da cidade. Enquanto
durou a realeza, parecia natural que esse chefe fosse designado pelo
nascimento, em virtude da lei religiosa que prescrevia que o filho sucedesse
ao pai em todo sacerdócio; o nascimento parecia revelar satisfatoriamente a
vontade dos deuses. Quando as revoluções suprimiram a realeza por toda
parte, os homens pareciam procurar, para suprir ao nascimento, um modo de
eleição que os deuses não pudessem desaprovar. Os atenienses [...] não viram
melhor meio que a escolha por sorteio.[...] Para eles o sorteio não era acaso:
era a revelação da vontade divina. Assim como os templos tinham recursos
para adivinhar os segredos divinos, assim a cidade ia ao templo para escolher
seu magistrado. Os antigos estavam persuadidos de que os deuses
designavam o mais digno, fazendo sair seu nome da urna. Platão exprimia o
pensamento dos antigos quando afirmava: “O homem designado pela sorte,
nós dizemos que é caro a divindade, e achamos justo que ele governe. Para
todas as magistraturas que diziam respeitos às coisas sagradas, deixando à
divindade a escolha dos que lhe são agradáveis, confiamos na sorte.” A
cidade julgava assim receber os magistrados dos deuses.” (COULANGES,
2004, p. 283-284)
Mesmo sendo obtido por meio de sorteio, não era qualquer pessoa que poderia
se candidatar ao magistrado, ela tinha que ser um cidadão e atender os interesses dos
grupos detentores do poder: os eupátridas. É valido lembrar que os nomes escolhidos
pra fazerem parte do sorteio, ou da eleição, eram previamente designados não podendo
a assembléia votar em outros nomes que não os apresentados.
20
A revolução aqui mencionada se trata da realizada pela aristocracia contra o exercício do poder político
da nobreza. O novo governo coexistiu com as funções sacerdotais dessa nobreza, já que segundo
Coulanges: “a religião e a salvação da cidade tinham necessidade de um rei”, fato que impedia a total
supressão da figura do rei. De um modo geral a realeza foi conservada, mais despojada de seu poder
político, tornando se um simples sacerdócio, uma nobreza religiosa.
21
A distinção entre o poder político e religioso só se efetiva no período da democracia, onde a escolha
dos governantes e as leis são vistas como normas humanas e portanto de autoria dos indivíduos e não dos
deuses.
31
A assembléia jamais teve o direito de votar em outros homens, a não
ser nos designados pelo magistrado que presidia a assembléia, porque
somente por estes se tinham mostrado favoráveis os auspícios e,
conseqüentemente, só para eles estava assegurado o assentimento dos
mesmos deuses. (COULANGES, 2004, p.199)
O próprio COULANGES menciona que muitas vezes eram eleitas pessoas cuja
população era avessa, mas que se mantinha pelos preceitos divinos e pela construção
mítica envolto em tal processo. Sua permanência, assim como sua escolha, era fruto da
vontade dos deuses, ir contra tal escolha seria o mesmo que ir contra os deuses e contra
os desígnios deste para com a sociedade ateniense.
Ao não terem liberdade para escolher outros representantes que não indicados
pelo conselho a magistratura, os atenienses, em sua grande maioria, se viam a mercê da
continuidade do governo e dos interesses dos bem-nascidos: os eupátridas. Partindo
para uma análise mais social do contexto que nos é vislumbrado, nota-se que os
interesses da aristocracia, apoiados na forma oligárquica, mantinham-se intactos assim
como seus privilégios. A nova organização política, baseada na eleição dos arcontes 22, e
na formação do conselho, o boulé, ficava sob a custodia da aristocracia, se tornando
inacessível aos demais cidadãos. Tal apreensão do poder por parte dos eupátridas pode
ser analisado sob duas óticas diferentes, mas não contrárias: o conceito de cidadão e o
apanágio divino.
É perceptível, em toda trajetória histórica de Atenas, a importância dedicada ao
quesito cidadania, sendo este caráter a “chave” que abriria todas as portas da vida
pública na polis. Mas o que era ser um cidadão em na Atenas clássica? Segundo
MOSSÉ em seu Dicionário da Civilização Grega, “seriam cidadãos os filhos de um pai
ateniense e de uma mãe ateniense unidos em casamento legítimo”, condição que os
tornava uma grupo privilegiado em relação aos estrangeiros e aos escravos que não
detinham o direito de atuar na política do estado. Somente os cidadãos eram admitidos,
de acordo com a idade e o recurso, o acesso aos cargos, anualmente renovados, tanto
por eleição como por sorteio, ou seja, a participação ativa na vida pública e na política.
Aristóteles definia cidadão como sendo aquele que de forma alternada “podia
governar e ser governado”. Contudo o que se observa é a divergência entre a teoria e a
22
Eram inicialmente eleitos três arcontes: o Arconte-Rei que ficava a cargo das funções religiosas e era o
representante da monarquia, Arconte Epônimo tido como o principal governante e juiz supremo e o
Polemarco, chefe militar responsável pela segurança do estado, sendo esses dois últimos representantes
dos eupátridas. Mas devido a exigências das classes mais baixas para que as leis fossem escritas e
publicadas, levou a nomeação de mais seis arcontes responsáveis por codificar e guardar as leis.
32
prática. Na teoria qualquer cidadão que tivesse algo considerável para ofertar a polis,
poderia e deveria ser aceito ou ter direito a palavra, caso que não ocorria. Ao invés disso
a atuação política concentrava-se nas mãos de uma pequena elite que, por meio de
“associações oligárquicas”, que apoiados nos fortúnios próprios da sua classe, se
dedicavam aos constantes debates políticos, aperfeiçoando a opinião publica sob os
moldes dos seus interesses. A vontade da comunidade se tornava, pois, a vontade de
uma pequena classe, que fazia do corpo soberano do Estado o perpetuador de seus
interesses e da sua permanência.
Em relação à garantia e legitimidade dessa aristocracia por preceitos divinos e
religiosos, se percebe a filiação de qualquer membro das famílias de bem-nascidos com
as divindades, ou a ligação com algum filho proveniente dos enlaces amorosos entre
deuses e mortais. Por tal questão, esses tinham o bem querer e a proteção dos olímpicos,
proteção essa que se estenderia a toda a cidade por intermédio desses. O culto, a
religião, e os mitos de soberania, garantiam a legalidade e a permanência do sistema
político e social vigente. Através deles foi possível transportar a ordem hierárquica
existente no Olimpo para o plano terrestre, mantendo os escolhidos dos deuses como
protetores e guardiões da ordem e da sociedade, o que lhes garantiriam grande prestigio
social frente a toda comunidade da polis. Vale destacar ainda, que com a ascensão da
aristocracia, há uma revalorização do culto dos heróis, que de posse destes sustentam
sua ascendência e a imortalidade da sua linhagem.
Para Espinosa, “a religião é antes de tudo instrumento necessário a dominação
social e política” fato que se estende a Atenas clássica, onde a religião e os mitos
possibilitaram a manutenção da ordem por meio da coerção dos cidadãos e demais
membros que compunham a sociedade ateniense. Ora, aqui a religião se torna uma
religião política, cujos principais interesses são a integração social e, consequentemente,
a coerção de todos, servindo para sacralizar a ordem humana e natural, permitindo que
os indivíduos se ajustem ou sejam ajustados. É valido lembrar que a ligação divina,
anunciada a sete ventos pelos mitos, não foi a única maneira de garantir a manutenção
da sociedade e a coerção, pra tanto precisavam demonstrar o que aconteceria com os
transgressores da ordem e como esses seriam punidos por tais atos. É justamente com
esse intuito de conservação que entram os mitos punitivos.
33
3 OS MITOS PUNITIVOS E A CONSERVAÇÃO DA ORDEM
Em seu livro Medos, Mitos e Castigos: notas sobre a pena de morte, Alípio
de Sousa Filho menciona serem os mitos a primeira forma de ideologia. Apesar do
anacronismo existente no emprego do conceito, percebe-se qual foi à intenção do autor
ao fazer uso do termo.
No seu significado mais amplo, ideologia é percebida como uma concepção de
mundo e das relações sociais. Concepção essa que se encontra envolta em um conjunto
de ideias, crenças e doutrinas próprias de uma sociedade, de uma época e de uma classe,
sendo produtos de uma situação histórica e das aspirações de determinados grupos. Sob
tais aspectos, podemos dizer que a ideologia surge da necessidade de se explicar o
porquê de a sociedade funcionar de uma determinada forma ou maneira, garantindo as
ações dos grupos dirigentes nos diferentes momentos e nas mais diversas situações. Ora,
os mitos “nascem” justamente dessa necessidade de explicar o funcionamento das
sociedades, estabelecendo a ordem social existente e a confirmando entre os indivíduos.
Segundo FINLEY: “A ideologia de uma classe dirigente de pouco servirá se não
for aceita pelos governados”, se não estiver impregnado no modo de agir e de ver o
mundo desses mesmos indivíduos. Pois bem, os mitos tiveram essa função de promover
a aceitação do ideário e da organização imposta e mantida pela classe dirigente que,
contudo, necessitava de mais que a plena aceitação, necessitava de uma garantia de que
a ordem social por ela defendida não sofreria grandes embates. Garantia que veio
personificada nos mitos punitivos e nos deuses da vingança.
Os mitos punitivos serviram para manter o controle da sociedade sob a punição
severa dos deuses, não necessitando necessariamente de uma repressão física por parte
do Estado, já que na mentalidade vigente esta seria aplicada pelas potestades. Tendo um
grande aspecto social, os mitos de punição, tinham como principal objetivo garantir que
as regras sociais e as leis morais fossem respeitadas e cumpridas pelos membros da
sociedade, assegurando dessa maneira, o pleno desenvolvimento do viver em
comunidade e do respeito consagrado aos deuses.
A atuação dos mitos agora passa a ser outra, se antes serviram aos propósitos de
ofertar modelos de conduta, bem como explicar a realidade social existente, agora
passam a servir como “discurso de estímulos”
23
objetivando a adoção de condutas
23
FILHO SOUSA, 1995.
34
integrantes a ordem estabelecida. Para tanto os mitos punitivos, ou mitos de castigo,
exercem uma função organizativa, ou seja, “organiza as relações sociais de modo a
legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e
permissões.” (CHAUI, 2003, p.165)
Para oferecer autenticidade as proibições e garantir que essas sejam respeitadas,
os homens “conceberam” deuses e/ou forças que estavam encarregadas de infligir penas
exemplares para todos os indivíduos que agissem de forma contraria as normas
impostas à sociedade e pela sociedade. Figuram entre esses deuses vingativos duas
principais divindades: as Erínias e a deusa Nêmesis.
Segundo a etimologia grega o nome Nêmesis deriva do verbo grego neímein,
que dentre seus vários significados destacam-se: distribuir, governar, escolher. Segundo
tais nomenclaturas Nêmesis seria a “justiça distributiva” e, por conseguinte” a punidora
da injustiça praticada”.
Filha da deusa Nix, à noite, tinha como função essencial restabelecer o equilíbrio
quando a justiça deixava de ser igualitária, ou agir com moderação e distintamente. Em
seu Dicionário Mítico-Etimológico Junito Brandão diz ser:
Nêmesis, como abstração, é uma síntese do espírito helênico.
Simboliza, como as Erínias, a justiça primitiva dos deuses contra todos
aqueles que teimam em ultrapassar o métron, a medida de cada um, com o
descomedimento. Sua função essencial é pois, restabelecer o equilíbrio,
quando a justiça deixa de ser equânime, em conseqüência da hybris, de em
excesso, de uma “insolência praticada”.(BRANDÃO,2002,p. 162-163)
Apesar de ter nascido da família cuja maioria dos deuses são trevosos, vivia no
monte Olimpo e figurava a justiça divina, sendo vista também como a deusa da ética24,
representante da força encarregada de abater toda a desmesura e os excessos.
Era recorrente no ideário ateniense, como em toda a Grécia, a concepção de que
todos os excessos pendessem eles para mal ou para bem, alteraria a ordem imposta
pelos deuses e preservadas pelos homens, visando manter o equilíbrio de todo o cosmo.
Tal concepção se torna fundamental na compreensão do espírito helênico e da
importância social atribuída à deusa Nêmesis.
24
Para os gregos a palavra ética- ethos- designava o modo de ser, o caráter dos indivíduos. Em um sentido
mais filosófico, ética significa o que é bom para o individuo para a sociedade, pautado na relação
indivíduo-sociedade.
35
Tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no
mal, expõe-se a represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a
ordem do mundo, a por em perigo o equilíbrio universal e, por isso, tem de
ser castigado, se se pretende que o universo se mantenha como é. ( citação
presente no site Terra Vista)
Era julgado de maneira justa todos os membros sociais, independesse de qual
segmento pertencesse que estivessem usando de maneira abusiva o seu poder, prestigio
ou riquezas, fato que era mal interpretado pelos atenienses visto que prezavam o
equilíbrio e a ordem social tão cara aos homens e, por conseguinte aos deuses. Tais
excessos alterariam o equilíbrio na sociedade, em especifico Atenas, provocando não só
a ira dos olímpicos, mas também a insatisfação da população diante da nova situação de
desregramento, o que provocaria a perturbação da ordem. Nesse sentido Nêmesis é mais
do que uma simples deusa da justiça e punidora da injustiça, é a responsável por
lembrar aos indivíduos que todas as suas atitudes são acompanhadas pelos deuses e que
todas aquelas que se mostrem como ameaças para a o bem estar da sociedade serão
punidas de maneira exemplar. Como breve exemplo dessa atitude punitiva da deusa
Nêmesis contra os excessos, podemos citar o caso do rei Creso da Lídia. Segundo a
mitologia Creso estava demasiadamente feliz com o acumulo de suas riquezas e com
seu poder, sendo levado por Nêmesis a empreender uma grande expedição contra Ciro
II da Pérsia, fato que lhe acarretou a ruína de seu império e a sua desgraça.
Os “infratores sociais” não encontravam seu destino somente por meio da
intervenção da deusa Nêmesis, que compartilhava sua função punitiva com as Erínias.
As Erínias, ou Fúrias para os romanos, eram forças primitivas da natureza que
atuavam como vingadoras do crime, reclamando com insistência o sangue parental
derramado, só se satisfazendo com a morte violenta do homicida. Nascidas, segundo
Hesíodo, das gotas de sangue que caíram sobre Geia25 quando o deus Urano foi castrado
por Cronos26, eram divindades ctónicas27, deusas violentas que encarnavam forças
primitivas, não reconhecendo e tão pouco se submetendo a autoridade de Zeus vivendo
25
Geia ou Gaia era a deusa da Terra, a Grande Mãe, personificação do poder matriarcal e da
potencialidade geradora.
26
Tal episódio, segundo a mitologia grega, se dá após uma rebelião dos filhos de Urano contra seu pai.
Esses eram aprisionados por seu pai no interior de Gaia, que instigou os filhos a se revoltarem, sendo que
Cronos, o filho mais novo, assumiu a liderança da luta e castrou seu pai com uma foice oferecida por
Gaia, jogando os seus testículos ao mar. Da espuma que se formou no mar com a queda do membro
divino nasceu Afrodite a deusa do amor, por sua vez, o sangue que caiu sobre a terra gerou os Gigantes as
Erínias e as Melíades.
27
Na mitologia grega o termo ctónico esta relacionado a terra, terreno, designando os deuses ou espíritos
do mundo subterrâneo por oposição às divindades olímpicas. Evocam ao mesmo tempo a abundância e a
sepultura.
36
às margens do Olimpo, graças à rejeição natural que os deuses sentem por elas, sendo
com pesar que as toleram. Por outro lado, os homens, têm-lhe pânico, e fogem delas.
Nas versões mais antigas o nome é grafado no singular, mas com sentido
coletivo, somente com Ésquilo (séc. VI-V a.C.) que ela aparecem sendo três: Aleto (a
implacável, a que não para, a incessante. Encarregada de punir os delitos morais,
espalhava pestes e maldições. Persegui-a ininterruptamente com facho acessos o
deixando sempre a mostra) Tisífone (a que avalia o homicídio, a vingadora do crime.
Responsável por açoitar os culpados e enlouquecê-los) e Megera (a que inveja, a que
tem aversão por Responsável por punir a inveja, a cobiça, castigava principalmente
delitos contra o matrimônio, em especial a infidelidade. Gritava dia e noite às faltas
cometidas no ouvido do culpado).
Em relação a sua representação, eram concebidas como normalmente como
mulheres aladas de aspecto terrível, com olhos que escorrem sangue e madeixas
trançadas de serpentes. Em suas mãos estavam chicotes e tochas acesas usadas para
castigarem na terra e nos infernos (sua residência habitual) os infratores dos preceitos
morais. Vale ressaltar que a extensão de seu poder de castigo não tem limites se
estendendo até mesmo no Tártaro, o mundo dos mortos, torturando as almas pecadoras.
Segundo Junito de Sousa Brandão, inicialmente as Erínias apareciam como
guardiãs das leis da natureza e da ordem das coisas, tanto no sentido moral quanto
físico, o que as levava a punir todos que ultrapassassem seus direitos em prejuízo dos
outros. Mais tarde passaram a ser vingadoras do sangue parental derramado.
Sua função social fica evidenciada quando levamos em conta sua principal
característica: punir assassinatos e crimes contra a própria família. Pouco importava
para os atenienses a gravidade do crime, fosse qual fosse deveria ser punido de maneira
exemplar e de forma obrigatória. Para tal as Erínias surgem como vingadoras das
ofensas contra a sociedade patriarcal, personificando não somente a vingança mais toda
a concepção de punição da sociedade que vê a família como uma formação social
indispensável para o surgimento de todo núcleo social ateniense.
São elas as forças primordiais cuja função essencial é guardar a
recordação da afronta feita por um parente a outro, e de fazê-lo pagar, seja
qual for o tempo necessário para isso. São as divindades da vingança pelos
crimes cometidos contra consangüíneos. As Erínias representam o ódio, a
recordação, a memória do erro, e as exigências de que o crime seja
castigado28. (VERNANT, 200, p.25)
28
Grifo nosso
37
Ora, vale aqui lembrar que a polis ateniense foi erigida sobre os pilares da
família, sendo preciso que os crimes cometidos em seu seio fossem vistos como
anomalias sociais, sendo punidos severamente e indubitavelmente. Dessa forma, as
Erínias são protetoras da ordem social, favorecendo a manutenção da sociedade e
impedindo que os crimes cometidos, assim como as faltas praticadas contra o bem estar
da ordem social imposta, sejam punidos sem questionamentos ou com grandes
alterações sociais.
Em síntese, alem de vingadoras do homicídio em si, também são disciplinadoras,
visto que eliminam a “mancha religiosa que põe em perigo todo o grupo social em cujo
seio é praticado.” (Brandão, 2001) em relação ao criminoso, este era normalmente
banido da polis com intuito de se retirar da sociedade o responsável por ter corrompido
seus laços mais sagrados: o laço familiar, além de tentar aplacar ou até mesmo afastar a
ira dos deuses de toda a sociedade.
As punições não acometiam somente aos vivos. Até mesmo os mortos se viam
envoltos na rede divina dos castigos, recebendo as devidas penas por suas inflações no
temido Tártaro.
Inicialmente o vocábulo Tártaro era associado aos elementos tidos como
primordiais para o cosmo, sendo desse modo irmão de Caos, Geia e Eros, fato expresso
na obra Teogonia de Hesíodo:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais... (vs. 116-120)
Entretanto essa visão não predominou por muito tempo no pensamento grego
que aos poucos foi concebendo o Tártaro como a personificação do Inferno, se tornando
a parte mais temida e a mais terrível do rei de Hades, o mundo dos mortos, para onde
todos os inimigos do Olimpo eram enviados e castigados por seus crimes. Tal
concepção se formulou após a divisão do Hades29 em três compartimentos: os Campos
Elísios, local para onde iam os homens virtuosos sendo uma espécie de paraíso, o Érebo
local para onde se dirigiam obrigatoriamente os mortos para poderem entrar no Hades 30,
29
O termo Hades era frequentemente usado para designar tanto o deus responsável pelo mundo dos
mortos quanto o próprio domínio subterrâneo a qual dominava.
30
Há outra versão que diz ser esse o lugar onde os indivíduos que tinham pouco a purgar ficavam por
algum tempo, temporariamente.
38
e por fim o Tártaro que se tornou um local de suplício dos grandes criminosos fossem
eles mortais ou imortais.
Sempre visto como sendo o local mais “profundo das entranhas da terra” 31, ou
seja, muito abaixo do próprio Hades, as descrições do Tártaro permeavam o pensamento
e os escritos gregos. Em Ilíada, Homero o representa como sendo uma prisão
subterrânea “tão abaixo do Hades quanto a terra é do céu.” Para o poeta grego Hesíodo
se uma bigorna de bronze caísse do céu, essa cairia por nove dias até alcançar a terra, e
que cairia mais outros nove dias até atingir o Tártaro, tamanha era a sua distância e a
profundidade de sua localização. Outra característica que permeava o pensamento
ateniense em relação a esse temido local estava relacionado com sua, por assim dizer,
aparência. Era visto como um local gélido e extremamente tenebroso, descrição que se
assemelha um pouco com outra interpretação do mesmo que era descrito como sendo
um grande poço úmido, frio e funestamente imerso na mais tenebrosa escuridão.
Quanto a seus “moradores”, esses tiveram uma variação de acordo com o
contexto sócio-histórico. Primeiramente era representado como sendo uma prisão mais
antiga que o próprio Zeus. Segundo os mitos que se referem ao Tártaro como sendo
uma prisão, quando o mundo era governado por Cronos, este prendeu os Ciclopes nas
“entranhas da terra”, que não tardou muito foram libertados por Zeus para ajudarem na
luta contra os Titãs32, que após serem derrotados pelos olímpicos, são aprisionados nesta
caliginosa prisão. Apesar de ser inicialmente uma prisão para imortais, no período
designado como pós-homérico, o Tártaro passa a ser a morada de todos os criminosos,
se tornando de fato a medonha morada final dos transgressores da ordem.
Passando então a ser o local onde os crimes e seus praticantes encontrariam seu
castigo, ressaltou-se ainda mais o seu caráter tenebroso, almejando desta forma inibir e
coagir a ação de todos que iam contra o poder instaurado pelos dirigentes, bem como ir
contra as regras instituídas por esses governos, além de ir contra os desígnios divinos.
Os mitos relacionados com o Tártaro, sempre são carregados de sofrimento e de
“avisos” para que os mesmos fatos não se repitam evitando a degradação moral da
cidade. Um bom exemplo do sofrimento eterno vivido me tal lugar são os mitos
relacionadas à Ixíon e a Tântalos.
Em relação à Ixíon, esse foi o primeiro homem a derramar, segundo os mitos, o
sangue de um parente, fazendo com que seu sogro caísse num fosso cheio de carvão em
31
Brandão, 2001, p 78.
Titanomaquia
32
39
brasa para assim evitar o pagamento do dote pela sua esposa. Seu castigo foi passar a
eternidade girando uma roda em chamas.
Outro caso de punição pela ofensa aos deuses e crimes cometidos no seio da
família esta associado ao mito de Tântalos. Rei mitológico da Frígia ou da Lídia era
filho de Zeus com a princesa Plota, havendo no entanto outra versão que o menciona
como sendo filho do Rei Tmolo da Lídia33. Certa vez ousou tentar testar a omnisciência
dos deuses roubando os manjares divinos e servindo-lhes a carne de seu próprio filho
Pélope, que tendo a pena dos deuses voltou à vida. Como castigo Tântalos foi lançado
ao Tártaro em um local abundante em vegetação e água. Sua sentença por tal perfídia
foi não poder jamais saciar sua fome e sua sede, visto que, ao aproximar-se da água esta
escoava e ao se erguer para colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se sob a
força do vento para longe de seu alcance.
De forma geral, nota-se que tais mitos punitivos garantem, sobretudo, a
continuidade do modo de sociedade pautada nos ideários paternalistas garantindo, pois,
a continuidade de um sistema cujos laços consangüíneos e de parentesco contavam de
sobremaneira. Cometer um crime contra tais preceitos era o mesmo que ir contra a
ordem imposta pelos deuses, alterando a organização do cosmo e da sociedade humana.
Nesse sentido os mitos demonstram tais alterações e preconizam as lições para se evitar
que essas situações de subversão se repitam ou se prolonguem, evitando assim a
desagregação da sociedade e das normas por ela instituída.
33
Tmolo ou Tmolos é o deus das montanhas para a mitologia grega. Segundo esse mito ele seria o pai
humano de Tântalos.
40
CAPÍTULO III
ATENAS E SUAS REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS
A necessidade da vida
molda a forma da cidade
Júlio Moreno
O pleno desenvolvimento do poder exercido pelos governantes atenienses,
embasados sob a perspectiva religiosa, só ganhou de fato sua plenitude durante o regime
social existente na cidade. Aglomerados em centros urbanos, os atenienses, fossem eles
cidadãos ou não, estavam passivos aos interesses e prerrogativas dos “escolhidos dos
deuses’.
Mais do que centros urbanos, as cidades gregas se tornaram agentes valiosos
para que o Estado desempenhasse, de maneira justificável, as relações de coesão e de
coerção sobre os indivíduos. Intencionando demonstrar tais atribuições bem como a
forma como por si só a cidade com suas construções e representações garantiram a
ordem, se faz necessário, a nosso ver, referirmos sobre a importância ofertada aos
gregos para a vida urbana.
Para os gregos, a cidade assumiu uma conotação quase que vital para o pleno
desenvolvimento histórico e social dos indivíduos, fato que, segundo estes, os
diferenciavam dos demais povos, vistos como bárbaros. Tal importância pode ser
percebida nos escritos de Aristóteles que chega a mencionar que:
[...], há duas espécies de seres humanos: os que vegetam em tribos
amorfas e selvagens ou formam imensos rebanhos em monarquias de
proporções monstruosas, e os que se encontram harmoniosamente associadas
em cidades; os primeiros nasceram para serem escravos, de sorte que os
últimos pudessem dar-se ao luxo de gozar de um modo mais nobre de vida.”
(GLOTZ, 1980, p.1)
Torna-se saliente mencionar que as cidades gregas não surgiram como
instituições prontas e acabadas, tendo desde seu surgimento o modelo que chegou até
nós através dos relatos e escritos desses povos. Aristóteles, nesse sentido, destaca que os
gregos passaram por três estágios de formação até atingirem a tida por eles como
perfeita: a cidade-estado ou polis. Segundo o filosofo grego, a primeira etapa de
formação se encontra edificada na família, surgida, portanto, de forma natural. Logo em
seguida vieram as aldeias que se constituíam como uma família ampliada, sendo
41
dirigida por um rei cujos poderes se assemelhavam, em muito, aos reservados para o
mais velho na família primitiva. As junções desses aglomerados humanos formaram,
por fim, as cidades-estados34.
Finalmente, pela associação de diversas aldeias, forma-se o Estado
completo, a comunidade perfeita, a pólis. Nascida da necessidade de viver,
subsistindo pela necessidade de viver bem, a pólis só pode ter existência
duradora se se bastar a si mesma. A cidade é, portanto, uma conseqüência
natural, do mesmo modo que as associações anteriores, das quais ela é o
coroamento. E é exatamente por esse motivo que o homem, que só pode
começar a desenvolver-se na família, necessita da pólis para desabrochar por
completo e, por conseguinte, é naturalmente “um ser político”. (GLOTZ,
1980, p.2)
Nota-se que as cidades aparecem no ideário grego como sedo algo natural ao
desenvolvimento do homem, como se fosse a extensão da família, tendo dessa forma
sua justificativa e permanência assegurada por ela, “A cidade é uma casa grande. A casa
é uma cidade pequena.” (MORENO citando o pensamento dos filósofos gregos,
2002,p.17)
Toda a forma “política” , que era exercida no seio da família, ganha dimensões
cidadescas, fomentando consigo a ideia central de que política e cidade são irmãs
siamesas possuindo laços intrínsecos. Pois somente com a constituição da cidade foi
possível a ampliação do poder político dos principais membros das classes dirigentes,
expandindo sua influência para além do círculo familiar ou dos grupos circundados a
ela. Segundo a urbanista Raquel Rolnik, a polis designava não um lugar meramente
geográfico, “[...] mas uma prática política exercida pela comunidade de seu cidadãos.”
Outro elemento a ser destacado devido sua real importância para a ampliação
dos núcleos urbanos se relaciona com a religião. Com o apoio desta, as cidades-estados
tiveram seu poder tanto de coesão quanto de coerção facilitados. Sob a égide dos
deuses, as cidades antigas assumiram uma dupla função, ao mesmo tempo em que
possibilitava a unidade e a proteção, subjugava seus membros a uma vontade superior
personificada na figura do rei e da aristocracia.
Tal processo não ocorreu de forma diferenciada em Atenas, que sob os mesmos
aspectos acima descritos, se constituiu como sendo um dos principais núcleos políticos
e culturais da Grécia clássica, tendo em seu interior, assim como nas demais cidades
34
Tratamos superficialmente da cronologia relativa à formação das cidades devido ao fato de já ter sido
bem explorado no tópico inicial intitulado: “E do sopro divino surge à cidade”.
42
gregas, a aplicação e ampliação do seu poder coesivo e coercitivo. Poder esse que teve
como principal expoente a estruturação urbana e os templos com uma arte que chegava
a sugerir a presentificação divina entre os membros da cidade, fato que se tornou
essencial para a manutenção da ordem e do poder na cidade destinada a deusa Atena.
1 A MORADA DOS DEUSES E A MORADA DOS HOMENS
É importante ao mencionarmos sobre a cidade-estado ateniense, nos atentarmos
para a sua forma, sua estrutura, ao passo que estas características são de capital
importância para “definir-lhe a personalidade”.35
Em seus escritos Aristóteles atentava para a necessidade de as cidades terem
bem definidas três tipos de áreas: pública, sagrada e privada. Pautados em tais quesitos
podemos dividir a cidade ateniense em duas principais áreas: a Acrópole e a Ástu cujo
maior representante foi a Ágora, ou em outras palavras a “morada dos deuses” e a
“cidade dos indivíduos.”
Construída por volta de 450 a.C pelo estadista Péricles, a Acrópole teve entre
suas funções a de ser palco das cerimônias cívicas e ser o local dentro da cidade
destinada a ser “casa dos olímpicos”, bem como de seus representantes. Constantemente
mencionada como sendo a morada dos deuses, a cidade elevada (Akrópoles) com seu
posicionamento altamente singular, possuía um grande valor simbólico e um
demonstrativo de poder e privilégio considerável. Poder esse fundamentado na forte
concepção religiosa vigente entre os atenienses e sua forte intervenção no meio social.
Sua função era tal, que segundo MUMFORD:
O núcleo da cidade, o centro de suas atividades mais estimadas, a
essência de sua existência total, era a acrópole; a acrópole era acima de tudo,
a morada dos deuses da cidade, e nela se situavam todas as funções sagradas
derivadas da natureza e da história. (1998, p.179)
Ora dedicada à divindade, sua estrutura deveria se diferenciar em muito da
outra parte da cidade destinada a ser a morada dos homens, sendo necessário estabelecer
certa diferenciação entre ambas.
35
MORENO, 2002, p.22.
43
... e são muitos os termos que servem para dizer que ela [Acrópole] é
escarpada, bem construída, cercada de torres, munida de altos portões; além
disso, como nela se encontram o santuário da divindade políade e o palácio
do rei, só ela é santa, rica, esplêndida, cheia de ouro. (GLOTZ, 1980, p.9)
Em contrapartida a brilhante cidade dos deuses havia a Astú, cidade baixa
ocupada pelos demais membros da polis ateniense que se dedicavam ao comércio e a
agricultura. A diferenciação entre a Astú e a Acrópole se faz sentir no relato de
Dicearco36 sobre “o amontoado de casas que se espalhou na base da Acrópole”
(MUMFORD).
A cidade é seca e mal suprida de água. As ruas não passam de
velhos e acanhados caminhos, as casas são mesquinhas, havendo entre elas
umas poucas melhores. Ao chegar ali pela primeira vez, um estrangeiro
dificilmente acreditara que esta é a Atenas da qual tanto ouviu falar. (apud
MUMFORD, 1998, p.182)
Modelada em meio a certa confusão de caminhos e sob uma indubitável
precariedade, a “cidade dos homens” foi construída de maneira a circundar o local tido
como o responsável por marcar o advento das instituições políticas da cidade: a Ágora.
Formada inicialmente para servir como um local de mercado, indispensável para
uma sociedade que tem por base econômica o comércio, a praça pública (Ágora)
também teve como função ser palco de discussões políticas. Sob tal característica, notase que esta se configurou como sendo um local onde todos os cidadãos se igualavam
politicamente não estando, pelo menos de forma teórica, submetidos a nenhum outro
cidadão, consistindo neste local à representação da coletividade.
Segundo o regime constitucional das cidades, o conjunto do povo
não exerce qualquer direito político, ou, pelo contrário, dispõe de todos eles;
entretanto o direito de reunir-se é sempre indispensável. Para essa reunião
chamada agorá, impõem-se a existência de uma praça pública, que tem o
mesmo nome. Ela é, antes de tudo, o lugar do mercado. “Em quase todas as
cidades”, diz Aristóteles,” há necessidade de vender ou comprar para
satisfazer necessidades mútuas; esse é o meio mais expedito de que um
Estado pode dispor para suprir as próprias necessidades.” [...] Mas a praça
não era apenas o lugar das transações comerciais; aos comerciantes e sua
clientela misturavam-se curiosos e desocupados. Em qualquer hora do dia, é
o lugar de encontro onde se passeia ao ar livre, onde se fica sabendo as
36
Historiador, geógrafo e mitógrafo grego de Messina (Messena), Sicília que viveu entre 350 a 290 a.C
44
novidades, onde se discute política, onde se formam opiniões. (GLOTZ,
1980, p.17)
Fortemente marcada por uma simbologia de superioridade, Atenas exercia
devido à maneira pela qual foi construída a constante ideia de que os indivíduos, os
deuses e seus representantes eram diferentes entre si. Um olhar mais atento sobre a
disposição do centro religioso e político, já que lá estava localizado o palácio do rei, e o
centro econômico, mas também político, já que abrigava discussões políticas,
vislumbraria a materialização de uma forte hierarquia social, onde a presença olímpica
se fazia sentir constantemente, sempre lembrando aos indivíduos suas leis e o formato
como sua sociedade deveria seguir. É como se por meio de sua morada divina em
Atenas, os deuses pudessem transpor toda uma hierarquização existente no Olimpo para
a cidade, reafirmando entre os indivíduos a necessidade do culto e da obediência as
potestades, obediência essa estendida aos seus representantes terrestres.
De um ponto de vista mais social e menos religioso, como se fosse possível
separar sociedade grega e religião, a concepção envolta no ideário Acrópole – Ástu
demonstra a subordinação dos atenienses à forma de governo realizada pela monarquia
e posteriormente pela aristocracia, que alicerçado na religião, se justificaram como
sendo algo natural e benéfico para o homem. Cabe destacar que a localização do palácio
real no mesmo espaço que o destinado a ser a morada permanente dos deuses na cidade,
implica em si o legado destes em serem os regentes dos demais, que cunhado em tal
perspectiva, não são capazes de se governarem, necessitando da mediação divina para
tal ou simplesmente de sua aprovação para os escolhidos dos cidadãos.
O
compartilhamento do espaço entre os deuses e os dirigentes, reafirmava ainda mais a
ligação feita pelos atenienses, como pelos demais gregos, da figura de ambos,
evidenciando assim o poder e privilegio das classes dominantes frente a uma sociedade
altamente baseada nos pressupostos religiosos.
Dessa maneira a Acrópole exercia mais do que a função de abrigar os templos
destinados ao culto dos olímpicos, era também o símbolo do poder dos dirigentes que
sob o disfarce de “guardiões da justiça” outorgados por Zeus, estendiam sua influência e
seus interesses por toda a Atenas, mantendo a ordem social de acordo com a garantia da
permanência de seus interesses, objetivando dessa forma assegurar a continuidade do
formato assumido pela sociedade ateniense.
45
2 ARTE E A PRESENTIFICAÇÃO DOS DEUSES
Outro elemento de igual relevância para a manutenção da ordem estabelecida
pelos dirigentes se encontrou apoiado na arte, que tendo a estatuaria como sua maior
representante, tornou-se um poderoso “aparato ideológico” a serviço do Estado, tendo
sobre os atenienses um efeito educativo.
Vale destacar que a arte em Atenas não se baseava somente na formulação de
estátuas, sendo bem mais ampla do que isso. Contudo sua relevância para a
compreensão da conservação da ordem e do poder a tornaram capital enquanto
fornecedora de artifícios que reforçaram o simbolismo religioso e social da constante
presença divina entre os habitantes de Atenas. Sob tais requisitos, as imagens, bem
como a figuração proveniente dessas, assumiram características vitais para a
presentificação divina, além de fomentarem, por meio do ídolo, o prestígio social. Para
tanto se torna necessário perceber a imagem “como um artifício imitativo que reproduz,
sob a forma de falso semelhante, a aparência exterior das coisas reais”. (VERNANT,
1990). Não se trata somente de uma mera representação abstrata do deus. A imagem por
si só fornece e realça um estatuto social e mental próprio, dando um formato sólido ao
pensamento inerente na sociedade.
Diante desses fatos percebe-se que a figuração assumiu entre os atenienses um
local de destaque por exercer, juntamente com os mitos, uma espécie de ponte entre o
divino e o humano, tornando a comunicação entre ambos mais íntima.
Ao lado do mito em que se contam historias, em que se narram
relatos, ao lado da ritual em que se cumprem seqüências organizadas de atos,
todo sistema religioso comporta uma terceira opção: os fatos relativos à
figuração. (VERNANT, 1990, p. 402)
A eficiência da figuração se deve, sem dúvida, ao poder que exerce frente ao
expectador, possibilitando neste uma confluência de sentimentos que iam desde a mais
tenra admiração à intimidação total. Tal disparidade de sentimentos só se tornou viável
na medida em que os atenienses se apoiavam na ideia de presentificação. Segundo o
dicionário online Kinghost presentificação se trata do “ato pelo qual um objeto se torna
presente na forma de imagem”, no caso especifico dos atenienses, tal o objeto que se
fazia presente eram os olímpicos ressaltando ainda mais o caráter de intimidação e
constante vigilância que circundava o pensamento social ateniense.
46
A presentificação da imagem (figuração), com todas as implicações pertinentes a
ela só se tornou possível devido ao segmento estatuário, permitindo através da ênfase
dada a determinadas características, manter viva na mentalidade dos atenienses a
supremacia e a grandeza dos deuses.
Sempre associados ao quesito divino, as estátuas tinham inerentes a si a função
de representar, entre os indivíduos, o semblante de seus deuses garantindo, por meio
delas, não somente a presença destes entre os indivíduos, mas a constante atualização
simbólica da sua permanência e participação íntima nos assuntos da cidade.
Dotadas de uma grandeza, tanto na dimensão quanto na beleza, as estátuas
personificavam forças que até então se faziam invisíveis aos olhos da maioria dos
mortais, assegurando dessa forma a manutenção do poder intimidatório tão caros à
continuidade do governo estabelecido.
A estátua é “representação” em um sentido verdadeiramente novo.
Liberado do ritual e colocado sob o olhar impessoal da cidade, o símbolo
divino transformou-se em “uma imagem do deus” (VERNANT, 1990, p.
410)
Libertada dos rituais que a enclausuravam em recintos inacessíveis para os
demais indivíduos que não fossem os sacerdotes, o estatuário e as suas representações
ganharam dimensões públicas, passando a habitar de fato a cidade podendo ser visto por
todos, fato que foi indispensável para a sua utilização enquanto componente coercitivo e
pedagógico.
Vale destacar que as representações dos deuses por meio das estátuas vinham
sempre acompanhadas de paramentos que facilitassem a identificação do olímpico ou
que simplesmente lhe eram atribuídas segundo o pensamento vigente entre os gregos,
realçando ainda mais a imponência destes diante dos membros da sociedade.
O temor se via reforçado quando se deparavam frente à gigantesca e cintilante
estátua de Athena, que sempre paramentada como se estivesse preparada para uma
guerra, causava a impressão de olha fixamente para quem adentrava sua sagrada
morada.
47
Figura3. 1- Deusa Athena
Tentando vislumbrar o impacto gerado nos atenienses, e não somente neles, mas
em todos que adentravam o templo de Athena no Parthenon recorreremos à descrição
feita pelo historiador da arte Ernest Hans Grombrich.
[...] uma gigantesca imagem [esculpida em ouro e marfim], com uns
11 metros de altura, tão alta quanto uma árvore, toda coberta de materiais
preciosos- a armadura e as vestes de ouro, a pele de marfim. Havia também
grande profusão de cores fortes e brilhantes no escudo e em outras partes da
armadura, sem esquecer os olhos, que eram feitos de pedras coloridas. O
elmo dourado da deusa era encimado por grifos, e os olhos de uma enorme
serpente enroscada dentro do escudo também eram destacados, sem dúvida,
por refulgentes gemas. Devia ser uma visão fantástica, inspiradora de
profundo temor e reverência, quando alguém entrava no templo e, de súbito,
via-se diante dessa estátua enorme. [...] Pelas descrições que conhecemos, a
estátua tinha uma dignidade que transmitia ao povo uma ideia especial sobre
o caráter e o significado de seus deuses. (História da Arte, 1999, p.84-86).
Responsável pela personificação e materialização dos olímpicos, o estatuário
não se ateve somente em representar os deuses, funcionado também como monumentos
responsáveis pelo constante reavivamento dos castigos empregados por estes aos
48
humanos. Pautados também em tal função, tinham uma forte utilidade no imaginário
coletivo ateniense, pois intentavam relembrar o fim daqueles que ousassem ir contra os
desígnios divinos, bem como daqueles que tinham sido responsáveis por grandes feitos.
Figura 3.3- Teseu e o Minotauro37
Figura 3.2- Prometeu acorrentado.
O efeito pedagógico das estátuas, não se encontrava nelas propriamente dito,
mas no simbolismo perpassado por elas. Tornava-se indispensável, para seu pleno
exercício de poder, rituais públicos que lhe outorgavam e garantiam a legitimidade.
Construída para homenagear um deus, as estátuas tal como foram concebidas se
tornaram ídolos de um culto que se torna coletivo, mas com ritus e cuidados próprios de
determinados grupos sociais.
Foi justamente pela permanência da concentração dos domínios dos rituais pelas
classes dirigentes que seu poder e privilégios se viram garantidos apesar das mudanças
no cenário político ateniense. A figura, personificada pela estátua, necessita do rito que
a envolve para representar a força e a ação divina que lhe são características, sem tais
37
Todas as imagens utilizadas neste capitulo são releituras dos afrescos e do estatuário grego, que devido à
existência de inúmeros fatores, não chegaram até nossa época. Espera-se que tal fato não interfira na
compreensão da arte enquanto mecanismo de manutenção da ordem para os atenienses, assim como para
os demais povos gregos.
49
“acessórios” o estatuário perde seu verdadeiro significado, visto que para os atenienses
as estátuas não funcionavam simplesmente para a mera admiração, mas sim para a
comunicação com a entidade políade. Ora, sob tais aspectos nota-se que a estátua
enquanto símbolo exprime a força divina enquanto manejada e utilizada por certos
indivíduos como instrumento de prestígio social e um meio de “apreensão e de ação
sobre outrem.” (VERNANT, 1990, p. 406).
A transposição das estátuas em imagens apreendidas publicamente só se tornou
possível através da constituição de uma “morada divina” voltada para o culto público.
Nesse sentido os templos aparecem como sendo “a casa que desce dos céus”
38
,
responsável pela exteriorização do seu ilustre habitante. O templo grego assume, pois,
o formato de morada divina orientada para o exterior, para o público e não mais para um
pequeno grupo de privilegiados, efetivando assim o pertencimento do deus a cidade. “O
templo é feito para alojar a estátua do deus; a estátua para exteriorizar em espetáculo a
presença do deus na intimidade de sua morada.” (VERNANT, 1999, p.409).
Como morada do deus da cidade, o templo tornou a forma da
tradicional mansão palaciana, um grande salão com uma ante-sala e um
pórtico frontal; uma estrutura semelhante a um celeiro, com um teto de
cumeeira cujos esteios de madeira seriam traduzidos, afinal, em rijas colunas
dóricas ou jônicas de mármore. Aquela edificação geralmente abrigava as
imagens esculpidas do deus ou da deusa, cobertos de ouro, talvez coma
cabeça de marfim e os olhos de pedra preciosa [...]; ao passo que as
esculturas exteriores e a decoração geométrica seriam pintadas em fortes
tonalidades brilhantes, todas conduzindo uma sobrecarga de significado
simbólico. (MUMFORD, 1998, p.162)
38
MUMFORD, 1998, p.56
50
Figura 3.4- Representação do Pathernon
Figura3. 5- Ruínas do Pathernon original
Estava, pois completo o quadro da arte monumental urbana ateniense, destinada
deliberadamente a atemorizar e assustar os indivíduos que não detinham o controle
sobre as forças provenientes dela.
Pautados em uma analise social de sua utilidade, vislumbramos que tanto os
templos quanto as estátuas que abrigavam, eram um demonstrativo tanto do poder
sagrado como do poder secular. Sacralidade esta ofertada pela presença do deus políade
51
bem como das demais divindades, e secular, pois representava o poder imputado aos
governantes pelos deuses ali representados. Nesse sentido percebemos que:
Entre as missões da arte monumental urbana, talvez não fosse menos
importante a de reduzir o homem comum a essa posição abjeta; tornando
mais fácil de governar, enquanto durava a ilusão. (MUMFORD, 1998, p.84).
A ilusão de que a cidade era um recinto sagrado sobre a proteção de um deus,
sendo vigiados constantemente por ele e pelos dirigentes fizeram com que o controle
social se desse sem maiores coerções físicas, ficando essa instalada no campo das
mentalidades ateniense. Reforçados pela arte monumental, cujas maiores expoentes
foram os templos e as estátuas, fizeram com que a cidade assumisse um caráter
despótico, se tornando um importante centro de controle já que em seu interior se
encontravam aglomerados todos os membros sociais, independente de ser ou não
cidadão, facilitando a manipulação social e o alto controle dos indivíduos. Vale ainda
relembrar que toda essa concentração do poder só foi possível pela sacralização da
mesma, transportando o poder da morada do rei para a morada da divindade políade
A cidade teve, ao mesmo tempo, um aspecto despótico e um aspecto
divino. Em parte, era ela um [...] centro real de controle: em parte, uma
réplica do céu, um transformador do remoto poder cósmico em instituições
operativas imediatas. Seu centro de gravidade se deslocou do castelo para o
templo. (MUMFORD, 1998, p.56.)
52
CONSIDERAÇÕE FINAIS
A relevância do mito para a sociedade clássica ateniense baseou-se nas
características sociais que este, assumiu, servindo como um mecanismo de justificação
do estabelecimento de um poder central ao quais todos se subordinariam, além de
promover o controle das relações sociais desenvolvidas em tal contexto.
Por meio deles, as relações entre o sobrenatural e o humano se transformaram
em meios eficazes de controle, tornando as formas de repressão mecanismos que
transcendiam os indivíduos, possibilitando dessa maneira que a ordem fosse
configurada como algo natural e de suma importância para o bem estar da sociedade e
de quebra do bem querer dos deuses.
A utilização do imaginário mítico para se estabelecer a sociedade ateniense
partiu da necessidade de se construir características extra humana no sentido de modelar
o comportamento social evitando assim o não comprimento das normas estabelecidas,
poupando ao Estado recorrer à repressão física para com os seus. Dessa associação
mito-Estado surgiu a garantia indelével tão cara aos grupos que detêm o domínio do
poder público, permitindo que a realização de seus interesses fossem vistos e entendidos
como desígnios divinos pelos demais membros sociais.
Sob tais aspectos nota-se a grande utilidade dos mitos enquanto agentes sociais
de controle e de domínio, que com suas bases na alma humana, garantiu bem mais do
que a vida em sociedade, permitiu que a hegemonia de certos grupos continuasse
intactas e as normas e leis feitas por eles seguidas sem contestação. Servindo ao Estado,
os mitos garantiram-lhe a eficiência e o direito de permanência justificando seu controle
e superioridade frente às outras cidades-estados.
Através do culto e das histórias míticas criaram o sentimento de pertencimento e
de unidade, que favorecidos pela formação do núcleo urbano, promoveram o
destacamento de certos indivíduos diante da coletividade, fomentando prestígios e
benefícios ainda maiores.
Sob tais aspectos percebe-se que os mitos funcionaram mais do que simples
reguladores da ordem e da manutenção da sociedade, exercendo o poder de coerção de
Estado. Funcionaram sobretudo como legitimadores de uma ordem social com origens
humana, que transvestida de características divinas reafirmaram e justificaram o direito
de permanência dos “privilegiados sociais”.
53
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