ISSN 2037-6677
Turbulência
portuguesa
DPCE online 2015-3
imprevista:
a
situação
político-constitucional
di Luís Pereira Coutinho
Lisboa, 7 de novembro de 2015. À luz da Constituição e da prática constitucional
portuguesa, os resultados das eleições de 4 de outubro não teriam a virtualidade de
gerar uma qualquer turbulência política. Na verdade, houve uma força política
inequivocamente mais votada (a coligação Portugal à Frente, com de 38,5% dos
votos, contra 33% do Partido Socialista) que obteve uma representação parlamentar
expressiva (107 Deputados, 89 dos quais do Partido Popular Democrático, contra
86 do Partido Socialista), embora sem maioria absoluta (para a qual seriam
necessários 116 Deputados).
Desde a entrada em vigor da Constituição de 1976, é prática o Presidente da
República (a quem cabe nomear o Primeiro-Ministro “ouvidos os partidos
representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados
eleitorais”) nomear Primeiro-Ministro o líder do partido com maior representação
parlamentar, ainda que sem maioria absoluta. E é também prática, o maior partido
da oposição viabilizar o correspondente governo minoritário no Parlamento.
Recorde-se que, depois de empossado, o Governo apresenta o seu programa na
Assembleia da República para apreciação, sendo este viabilizado se não for rejeitado
por maioria absoluta dos Deputados. Ou seja, um Governo empossado pelo
Presidente só cairá no Parlamento se se verificar uma maioria negativa contra ele.
www.dpce.it
1
DPCE online 2015-3
A estabilização desta prática – que se pode mesmo ter como uma convenção
constitucional – ao longo de 40 anos deveu-se a um acordo implícito entre os dois
maiores partidos (Partido Popular Democrático, de centro-direita, e Partido
Socialista, de centro-esquerda) em deixarem-se reciprocamente governar quando
obtivessem mais votos nas urnas e maior representação parlamentar. Essa prática de
regime permitiu, na sequência da Revolução de 1974 e do traumático período
revolucionário subsequente, assegurar a governação pelos partidos moderados –
integrantes do chamado “arco da governação” – e concomitantemente neutralizar
politicamente os partidos de extrema esquerda, nomeadamente o Partido Comunista
Português.
A turbulência política que se instalou em Portugal depois das eleições de 4 de
outubro deve-se a o Partido Socialista, ao arrepio da prática seguida até ao
momento, ter sinalizado que se juntará ao Partido Comunista Português, ao Partido
Ecologista e ao Bloco de Esquerda – que no seu conjunto formam uma maioria
negativa de 122 Deputados contra 107 da coligação de centro-direita – na rejeição
do programa de Governo, anunciando ainda a sua intenção de formar Governo com
o apoio de uma “maioria de esquerda”.
Ora, este inesperado estado de coisas teve como efeito catapultar o Presidente
da República para uma posição central. Na verdade, o sistema de governo
português, de natureza semipresidencial, funcionou na prática como um sistema
parlamentar no que à formação de governos diz respeito. Na verdade, o Presidente
tem-se limitado, por via de regra, a viabilizar a solução governativa com maior
representação
parlamentar,
obedecendo
à
mencionada
convenção
e
ao
correspondente acordo implícito entre os dois maiores partidos.
Mas o presente cenário coloca ao Presidente duas alternativas: a de viabilizar a
solução de centro-direita, sufragada nas urnas, ou a solução de esquerda. Sendo que
o Presidente goza aqui de verdadeiro poder decisório. Na verdade, o sistema
resultante da Constituição de 1976 é um sistema semipresidencial, no qual o
Presidente goza de legitimidade democrática direta, podendo ler os seus poderes
como poderes efetivos. Num sistema semipresidencial, recorde-se, as soluções
governativas resultam caracteristicamente de um acordo entre o Presidente e a
maioria parlamentar, não se limitando o primeiro a meramente deferir perante a
www.dpce.it
2
DPCE online 2015-3
segunda. E embora, em Portugal, a natureza semipresidencial do sistema se tenha
encontrado adormecida nas últimas décadas, tal deveu-se à persistência de uma
prática estável e de um correspondente acordo dos dois maiores partidos. Na
ausência destes fatores, o papel presidencial na formação de Governos pode
emergir, sendo tal inteiramente conforme com a Constituição.
O Presidente da República evidenciou já ler o seu poder de nomeação do
Primeiro-Ministro como um poder efetivo. Na verdade, ao nomear Pedro Passos
Coelho, líder da coligação de centro-direita, vincou a sua aversão a uma solução
emergente de uma “maioria de esquerda”, a qual qualificou como “inconsistente” e
como discordante com os resultados eleitorais, tendo em conta a dissonância ou
desarticulação das linhas programáticas apresentadas ao eleitorado pelos
correspondentes partidos.
Na verdade, o Partido Socialista, caracteristicamente moderado e europeísta,
apresentou-se a eleições com um programa em que vincava o respeito pelos
compromissos internacionais e europeus do Estado português, nomeadamente os
compromissos emergentes do Tratado de Lisboa e do Tratado Orçamental. Já o
Partido Comunista Português, de irreformada base marxista-leninista, manifestou
programaticamente a sua oposição à permanência de Portugal na NATO e na zona
euro. O mesmo vale para o Bloco de Esquerda, pelo menos na medida em que tal
permanência implique o estrito respeito pelos referidos instrumentos.
No momento em que escrevo, o cenário mais provável é o de o Governo
formado por Pedro Passos Coelho após nomeação presidencial ver o seu programa
rejeitado na Assembleia da República, tal implicando a sua demissão. Caso se
confirme esse cenário, restam ao Presidente três hipóteses.
A primeira hipótese traduz-se em manter o Governo demitido em funções –
então em meras funções de gestão, limitado a atos estritamente necessários à
condução dos negócios públicos – até que seja possível dissolver o Parlamento e
convocar novas eleições. Sucede no entanto que a dissolução só será possível a
partir de abril de 2016 (o Parlamento não pode ser dissolvido no primeiro semestre
da legislatura ou no último semestre do mandato presidencial, circunstâncias que se
verificam cumulativamente neste caso). Ora, a juspublicística portuguesa,
nomeadamente Jorge Miranda, tem colocado dúvidas sobre a constitucionalidade de
www.dpce.it
3
DPCE online 2015-3
se manter um Governo demitido em gestão durante um período tão largo de tempo.
De uma forma ou de outra, o que se volta a atestar aqui é a relevância do poder de
dissolução enquanto arma do Executivo face ao Legislativo, arma cuja paralisação
abre caminho à turbulência nas assembleias. A paralisação do poder de dissolução é,
neste caso, temporária, mas na prática avulta em este Presidente não poder dissolver
este Parlamento, que se se tem pois como liberto da pressão presidencial.
Se excluída a hipótese de permanência de um Governo demitido em gestão,
abrem-se duas opções ao Presidente: empossar um Governo de iniciativa
presidencial, que funcione como Governo de transição até que seja possível a
convocação de novas eleições parlamentares, ou viabilizar um Governo socialista
apoiado pela “maioria de esquerda”.
A opção de um Governo de iniciativa presidencial, sem sedimentação na prática
constitucional portuguesa (três Governos de iniciativa presidencial, formados no
final da década de 1970 fracassaram rotundamente), sujeitar-se-ia, no entanto, a um
fracasso parlamentar perante uma maioria negativa agregadora de esquerdas. Resta,
então, a opção de um Governo suportado pela “maioria de esquerda”, então a
funcionar como maioria positiva. Esta última solução, de momento a mais provável,
não se encontra, no entanto, ainda garantida. Desde logo, um acordo entre o Partido
Socialista e o Partido Comunista, que permita uma solução governativa estável, não
está ainda alcançado. E no caso de ver a luz do dia, tal acordo dificilmente cumprirá
os requisitos de “consistência” fixados pelo Presidente da República. Tal,
considerada nomeadamente a demonstrada relutância do Partido Comunista em se
comprometer com os limites inerentes à pertença de Portugal à zona euro.
Desenha-se, pois, no horizonte um difícil braço de ferro. Pelo menos no caso
de a “maioria de esquerda” se recusar a negociar a sua solução governativa com o
Presidente, invocando a sua base parlamentar. Mas paradoxalmente, se o fizer,
estará a invocar a seu favor uma prática que, como vimos, se sedimentou num
contexto diferente, no quadro de um entendimento entre os dois principais partidos
que agora foi quebrado. Mudados os tempos, podem bem mudar-se as vontades do
Presidente…
www.dpce.it
4
Download

a situação político-constitucional portuguesa di Luís Pereira