dalosos e esquisitos para as pessoas. Elas aceitam, mas não compreendem que ele reproduza maçãs, cebolas e laranjas puramente com a cor (o que lhes parece sempre um meio subordinado do exercício da pintura); já nas paisagens sentem falta da explicação, do parecer. (...) E assim Cézanne lhes parece, naturalmente muito inadequado, algo que não vale a pena nem discutir. Neste Salon ele está sozinho como foi em vida, e mesmo os pintores, os jovens pintores, passa depressa por ali” 26. Ao afirmarmos que ele faz ver o mundo, ou seja, deixa que as coisas se mostrem, altera-se a perspectiva que o fruidor terá de seu quadro. Podemos pensar ainda em quando olhamos para o horizonte. Assim como na pintura de Cézanne, nossa percepção não vê um traçado de tinta preta dividindo o céu e o mar quando estamos “vendo” o horizonte. O que percebemos como um todo, são as nuances de azuis que fazem com que não saibamos muito bem onde inicia o céu ou onde termina o mar. São as cores que vemos primordialmente e são elas que prendem o nosso olhar, e isto é alguma coisa que se diz em nós. A pintura de Cézanne quer pintar exatamente essa percepção originária, fazendo com que o desenho resulte da cor, ou, como escreve Merleau-Ponty , sua pintura é “o mundo mostrado em espessura”. As coisas do mundo tal como pintadas pelo pintor não são um reflexo dos dados que apreendemos com nossos sentidos; se assim fosse, a pintura estaria “presa” à condenação platônica e não passaria de uma alusão às “coisas mesmas”. No entanto, o pintor não distingue pensamento de visão. Ele oferece a visão primordial do mundo, anterior a qualquer divisão entre sensível e inteligível. No caso específico da pintura de Cézanne, em que Merleau-Ponty tenta encontrar uma “filosofia do olhar”, percebemos, contudo, que suas telas trazem um mundo diferente daquele que nossos olhos “físicos” e apressados costumam “ver”. Sua paisagem é “um mundo sem familiaridade”. Ao longo do texto, vamos percebendo que cada pincelada “fala” nas telas de Cézanne, e notamos que sua pintura não quer “iludir” a realidade, mas dizer as coisas mesmas como elas se apresentam. Mas esta é uma questão importante, pois se sua pintura quer pintar as coisas como elas se apresentam, como pode causar estranhamento àquele que a contempla? Percebemos que a pintura não se prende a um modelo pré-determinado, o olhar da pintura é outro que o olhar ótico, é um entrelaçamento do homem com o mundo. Na busca da cômoda ilusão de ver um mundo ordenado e deter o incômodo do desconhecido, o homem usa do poder da palavra, subtraindo do ser a sua existência, mergulhando-o na linguagem. A compreensão equivale a um “assassinato” da coisa, o conceito é a ausência do ser. É preciso encontrar um lugar, um conceito, para se depositar o que não se entende. É impossível, se quisermos pensar o homem contemporâneo suportar a “coisa sem nome”. O acesso mais fácil ao objeto ocorre a partir do que se pode falar sobre ele, condição imposta pelo desejo de conhecimento. Para isto é preciso nomear o desconhecido, submetê-lo à “lei da fala”. Ao se defrontar com a arte e sua iminência do incompreensível, “o mundo sem familiaridade” , como Merleau-Ponty percebe nas pinturas de Cèzanne, observamos que a arte possui uma outra forma de “dizer”, sem nomear as coisas. 27 Merleau-Ponty vê o esforço da pintura em questionar a verdade da ciência. Em sua forma de pensar a arte, ele admite que a arte tem uma postura diferente. A realidade da obra de arte não se limita à realidade definida por um conceito. A arte vive este drama do lugar incerto, ela não busca nem a verdade nem a utilidade, mas estabelece novas relações simbólicas com o mundo. Se as perguntas diretas exigem respostas, a maneira indireta de a obra falar é demandar de quem a vê respostas silenciosas. Em um momento em que a ciência é tão soberana nas nossas relações com o mundo, po- 26 RILKE, R. Cartas sobre Cézanne. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras. 2001, p. 73-74 27 As abstrações da escrita não alcançam o que se mostra concretamente na obra. Cézanne certa vez escreveu: “Quase não faz sentido falar sobre arte, o homem de letras exprimi-se por abstrações, ao passo que o pintor, por meio da cor, dá forma concreta às suas sensações e percepções”. Esta frase revela algo da pintura que permanece inacessível às palavras, incapazes de dizer o que só se oferece ao olhar.