{A. M. H.}, 0 absolutismo de raiz contratualista A concepção individualista e voluntarista da sociedade e do Poder é, porventura, a mais difícil de enraizar, quer nas representações sociopolíticas tradicionais quer nos contextos político-institucionais nacionais. A sua pré-história no pensamento politico português também é obscura (alguns elementos em Andrade, 1966), embora - como já tem sido notado (M. Villey, 1961 e 1969) - seja possível entroncar alguns dos seus elementos (individualismo. voluntarismo) na segunda escolástica peninsular. Seja como for, o paradigma individualista parece surgir abruptamente, mas com uma força expansiva devastadora, nos meados do século XVIII como a filosofia de base do pombalismo. Silva Dias, num notável (e praticamente único) estudo sobre a teoria politica do pombalismo (Dias, 1982), mostra como, na sua primeira fase, o discurso politico do pombalismo se desenvolveu em tomo de duas vertentes do problema central, do ponto de vista da prática politica, que era a fundamentação do absolutismo. A primeira vertente, de recorte teológico e juscanonista, abordava a questão das relações entre o poder civil (o imperium) e o poder eclesiástico (o sacerdotium) e, em certa medida, prolongava e rematava uma corrente de pensamento regalista que já vinha do século XVII, como vimos. A segunda, de pendor jurisdicista, ocupava-se das relações entre a coroa e os outros corpos políticos (nomeadamente as cortes). Por ora, nestas décadas de 50 e 60, esta segunda vertente aparece ainda como menor, embora possa constituir um eco, residual e já longínquo, das polémicas constitucionais sobre as relações entre o rei e as cortes durante a regência e reinado de D. Pedro II. Mas o mais característico da teoria politica pombalina e pós-pombalina é o imaginário politico que subjaz as suas propostas mais imediatas. Ou seja, o modo novo como ela entende a sociedade e o Poder, ambos concebidos como produtos menos de uma ordem objectiva posta directamente por Deus do que do jogo, pactício ou não, dos ímpetos individuais. Já nos ocupámos das raízes filosóficas do paradigma individualista. Mas, no contexto português, a sua súbita e clamorosa fortuna não pode ser desligada nem dos contextos prático-políticos, nem da inserção deste paradigma doutrinal no centro dos aparelhos de reprodução ideológica do pombalismo, nomeadamente a universidade. Os primeiros explicam a sua recepção; os segundos, a sua difusão fulgurante como ideologia social e politica. O primeiro destes contextos é constituído pelas tensões entre o poder temporal e o poder espiritual nos primeiros anos do reinado josefino. Como refere Silva Dias, a defesa da autonomia da coroa face à Igreja supõe que se rejeite uma “concepção sacral da sociedade, isto é, a visão da sociedade civil à imagem e semelhança da sociedade eclesiástica [...] a visão do Estado como braço secular da Igreja”. Mas a secularização da sociedade temporal apenas era possível se, ao conceber esta, se prescindisse da ideia de que ela constituía uma ordem da criação e, logo, um todo originariamente orgânico. Postas as coisas nestes termos, foi fácil extrair as consequências políticas desejadas quanto as relações entre o sacerdotium e o imperium, nomeadamente a isenção dos reis, no temporal, em relação ao papa (Dias, 1982, p. 48, al. g) e o reconhecimento de um poder real de tutela temporal sobre a religião e a Igreja (ibid., p. 48, al. h). A Dedução Cronológica e Analítica, primeira grande manifestação literária, em Portugal, desta nova concepção polftica40, insere-se directa e primariamente na polémica anti papista, defendendo a tese de que o rei é “soberano, ungido de Deus Todo-Poderoso, imediato à sua divina omnipotência, e tão independente que não reconhecia na terra senhor superior temporal” (Parte I, p. 441), e que, portanto, são “abomináveis e sediciosas” as teses de “que todo o poder temporal era dependente do governo eclesiástico, por ser este o único governo que Deus tinha criado; que as leis seculares não obrigam no foro da consciência; que a todos é licito desencaminhar as gabelas e tributos estabelecidos para o bem comum dos povos, contanto que os desencaminhadores não sejam descobertos; que os tais tributos, impostos sem autoridade do Papa, são injustos e excomungados os príncipes que os estabelecerem; que em castigo destas leis e excomunhões dos príncipes que as fazem publicar, vêm as mortandades e as mais públicas desgraças; que é permitido aos vassalos julgarem, com o seu particular conhecimento, as acções dos respectivos soberanos e assassiná-los quando lhes parecer que é útil tirá-los do mundo” (Parte II, idem. iv, § 23, apud Dias, 1982, pp. 55-56). Todas estas proposições agora condenadas são típicas do pensamento politico papista, que era o que aqui estava sob fogo; algumas são directamente retiradas da Bula da Ceia. Desta citação já se vê que, ainda que o contexto politico directo da obra fosse a polémica anti papista, ela acaba por, no mesmo movimento de exaltação do poder da coroa, atingir outros poderes concorrentes, estes já no âmbito secular. Neste plano - por assim dizer, subordinado - o alvo da Deducção Chronologica é a doutrina politica da Contra-Reforma - aqui identificada, com alguma justificação, com as posições teóricas dos Jesuítas e, com maior simplificação, com o conjunto das doutrinas monarcómacos – favoráveis à ideia de uma ordem sociopolítica natural e, portanto, ao corporativismo politico. No plano constitucional, a polémica anti corporativa tende a insistir, no contexto setecentista, em dois tópicos. Por um lado, no dos direitos de conquista, legitimados pelo estado inicial de guerra (justa) de todos contra todos e que geravam direitos de propriedade, transmissíveis por sucessão dentro das dinastias. Por outro lado, na ideia de um pacto originário global (isto é, incluindo não só a forma, mas também os objectivos imediatos e últimos do governo), absoluto (isto é, não sujeito a quaisquer limites contra os quais a razão nada pudesse - v. g., derivados da razão ou da justiça) e irrevogável. Em qualquer dos casos, estamos perante uma completa desvalorização da ideia de uma ordem preestabelecida da criação e perante a fundamentação dos vínculos sociais na vontade. No primeiro caso, na vontade livre e absoluta de um soberano, que — em virtude da vontade de Deus rege o Reino como coisa conquistada e sua. No segundo caso, na vontade de um rei posto à frente do Reino em virtude de um pacto originariamente estabelecido entre os povos e cujas prerrogativas de governo foram estabelecidas pela vontade dos pactuantes. No caso da Deducção Chronologica... toda a estratégia anti corporativista se dirige a provar que a monarquia portuguesa era uma monarquia pura, constituída por territórios conquistados em guerra justa, fundada por doação (de Afonso VI de Leão a D. Henrique), transmitida por sucessão e em que todos os poderes residiam pura e soberanamente no rei (Deducção Chronologica..., parte I, §§ 592-598 e 679-683), e que, portanto, ao contrário do que se passava nas monarquias mistas, não havia qualquer participação no poder de outros corpos do Reino, nomeadamente quando reunidos em cortes. 0 papel destas, desde as de Lamego, fora sempre o de um organismo consultivo, a que o rei recorria na falta de outros meios de auscultar o Reino. Nesse momento, as cortes já não eram um tema politicamente critico, tendo sido pela última vez convocadas no reinado de D. Pedro II. 0 destaque dado as teses “anti-parlarnentares” na Deduccão Chronologica... apenas se explica por elas serem emblemáticas de um paradigma individualista e voluntarista de entender a sociedade e o Poder que tinha outras consequências. essas sim, politicamente actuais. no plano das relações, por um lado, entre a coroa e a Igreja (questão imediata de que a obra se ocupa) e, por outro, entre a coroa e a ordem politica estabelecida, ou seja, a constituição do Reino. Os temas constitucionais ligados à unidade do Poder (a “questão do Estado”) vão constituir, de facto, o centro do debate politico durante as décadas de 70 e 80, pelo menos ate ao momento em que os acontecimentos europeus promovam a questão das relações entre a coroa e as cortes (a “questão parlamentar”) e a questão das leis fundamentais (a “questão da constituição formal”) ao primeiro plano da reflexão politica. Por detrás, entretanto, desenvolvia-se um decisivo combate de retaguarda, no sentido de impor na consciência colectiva os fundamentos teóricos individualistas que suportavam as soluções prático-políticas propostas. Já a Deducção Chronologica... havia defendido vigorosamente a unidade e autonomia do soberano em relação a qualquer outro poder temporal (Parte II, n°. 640). Em 1770, António Ribeiro dos Santos escreve, com a mesma ênfase e redundância, que “o sumo poder do imperante civil é o direito absoluto de moderar e dirigir, indistintamente, as acções de todos os membros dos seus corpos políticos, em prol da utilidade comum dos cidadãos [...] unido num só titular, de tal modo que esse império, indiviso e integro de uma só e mesma suma potestade, regule, por todas as partes dos estados, as matérias da comum felicidade e as graças da utilidade”. Nestes dois textos contém-se uma ideia fundamental, a da unidade do Poder, e todo o programa constitucional e institucional que daí decorre e que implicava uma ruptura com a ordem institucional estabelecido, ou seja: i) tornar o soberano na única fonte do direito e tornar o direito disponível nas suas mãos (isto é <fazer as leis e derrogá-Ias quando bem lhe parece”); ii) tornar o poder geral e absoluto, ou seja, não cerceado pelos privilégios (isto é “dirigir e moderar indistintamente todos os membros dos seus corpos políticos”); iii) tornar os aparelhos político-administrativos em instrumentos disponíveis da vontade politica central (isto é “deputar as pessoas que lhe parecem mais próprias para exercitarem nos diferentes ministérios”); iv) definir um “núcleo duro” de poderes inseparáveis da pessoa do rei. Embora não esteja estudada a resistência oferecida pelos aparelhos jurídicos e políticos à primeira década do governo de Pombal, é provável que cedo tenha ficado claro que, sem uma profunda reforma constitucional relativa à estrutura da ordem jurídica, nenhuma outra reforma podia ser feita. Na verdade, o direito constituía, na ordem constitucional corporativa, urna ordem objectiva, definida por urna tradição normativa (ius commune, opinio communis, “praxística”) que escapava ao controlo dos monarcas, ou por ser de origem doutrinal ou por decorrer das práticas inveteradas dos tribunais. Por outro lado, a lei geral dificilmente prevalecia sobre a norma especial (privilegio geral) e não prejudicava, de todo, o privilégio especial, que se incorporava, como urna coisa, no património do seu detentor e que, assim, passava a gozar da protecção de todos os meios jurídicos e judiciários que protegiam os direitos adquiridos (Hespanha, 1989a, pp. 392 e segs.). O carácter central da legislação régia na ordenação da sociedade é declarado por Pascoal de Melo Freire, o principal intérprete, no campo do direito, das novas ideias politicas logo no início das suas Institutiones iuris civilis lusitani. Depois de se referir ao direito supremo do imperante de fazer tudo o que fosse necessário para garantir a segurança interna e externa dos cidadãos e o seu bem-estar (vol.I, pp. 1-2), enumera como primeira prerrogativa aí contida a potestas legislatoria: “[...] pois se não fosse direito do Príncipe fazer, segundo o seu arbítrio, as leis a cujas normas as acções dos súbditos se devam conformar, de que modo os poderia dirigir e harmonizar todas as coisas com a utilidade da República? Dai que o poder de fazer leis seja um direito majestático e nunca possa faltar ao Supremo Imperante da República” (vol. I, pp. 1-3). Afirmação que contrariava as pretensas atribuições legislativas quer das cortes quer dos conselhos e tribunais palatinos [ibid., “(...) e o mesmo se diga, e com maioria de razão, dos Tribunais do Reino, que, de algum modo, se subrogaram no lugar das cortes”]. E, por outro lado, contrariava a ideia, corrente entre os juristas, de que a lei do Reino estava subordinada não apenas à lei divina, mas também à ratio iuris, ou seja, aos princípios fundamentais do direito comum, entendido como “razão escrita” (ratio scripta). No plano da politica do direito, qualquer destes pontos era fundamental. Com o primeiro, denegava-se valor de lei a qualquer costume ou praxe de julgar em vigor nos tribunais, tal como já fizera, até certo ponto, a Lei da Boa Razão, de 18 de Agosto de 1769, ao restringir a relevância desses costumes aos que estivessem ratificados em assentos da Casa da Suplicação (§ 14). Com o segundo, impedia-se a contínua usura do direito legislado pela invocação dos princípios eventualmente contraditórios do direito civil e canónico. E, de facto, a mesma lei de 1769, além de revogar a autoridade secular do direito canónico (§ 12), diminuíra também drasticamente a do direito romano, reafirmando, por um lado, o seu carácter meramente supletivo e, por outro, subordinando a autoridade “extrínseca” dos seus textos à autoridade “intrínseca” da boa razão em que fossem fundados (§ 9). Mas a redução do direito à lei e a concepção desta como um direito majestático implicavam ainda uma nova relação entre a norma geral, a norma especial e o privilégio. Por um lado, a norma geral, escrita (i.e., a lei), impõe-se agora a todas as normas consuetudinárias e locais. O principio de que “o direito pode surgir sem a forma escrita, pois os costumes diuturnos, aprovados pelo consenso dos utentes se equiparam à lei” (Inst. just., vol. I, pp. 2-9) aparece agora subvertido por outro, próprio dos regimes monárquicos: “Na verdade, nas Monarquias, se houver leis escritas em contrário [estes costumes] não valem.” (Melo, 1789, vol. I, pp. 1-9) Por outro lado, reforça-se a interpretação de que as normas locais (posturas) tem que obedecer, na forma e no fundo, à lei geral (Melo, 1789, vol. I, pp. 1-9). E, por fim, introduzem-se fissuras no princípio da absoluta intangibilidade dos privilégios. Este princípio era uma peça central, não apenas do modelo teórico tradicional da sociedade e de poder, mas também das estratégias jurídicas de defesa do statu quo politico. A tal ponto que, mesmo Pascoal de Melo continua a afirmar que “também os privilégios concedidos individualmente a alguém se chamam leis; pois ninguém pode perturbar aquele cidadão na fruição do seu direito” (Melo 1789, vol. i, pp. 1-5). Mas logo acrescenta que “apenas o Rei pode constituir, modificar e revogar tais privilégios” (ibid.), e que mesmo os dos eclesiásticos e os dos nobres “podem e devem ser revogados, se contrariarem o bem público”. Apesar de herdeiro de uma doutrina jurídica favorável aos direitos dos privilegiados, Pascoal de Melo procede a uma “desconstitucionalização” dos direitos particulares que, a partir daqui, deixam de limitar o rei, ficando antes a mercê dos seus juízos de oportunidade. O que Melo Freire escreve sobre a irrelevância do juramento régio de manter os foros do Reino e sobre a radical diferença entre os privilégios e as leis fundamentais (Institutiones iuris civ., vol. II, pp.2-5, nota in fine) é um claro sinal disso mesmo. E uma rápida vista de olhos pela legislação da segunda metade de Setecentos rapidamente revela formulações radicais sobre a irrelevância dos privilégios. O facto de os privilégios (e, mais em geral, os direitos dos particulares) estarem, agora, fundados, não numa ordem jurídica natural e objectiva, mas num direito “voluntário” de origem legislativa, faz com que também se enfraqueçam algumas das suas garantias jurídico-judiciárias. Não devemos deixar passar em claro o significado profundo desta mudança. Não se trata, de facto, de um mero rearranjo técnico das competências para conhecer recursos. Trata-se, antes, de um sintoma de uma mudança profunda do modelo das relações entre os particulares e o poder central. Até aqui, os diferendos entre a vontade da coroa e os interesses dos particulares eram encarados como quaisquer outros diferendos entre particulares e resolvidos pelas vias jurisdicionais comuns, com meios jurisdicionais também comuns. A partir de agora, esta equiparação do Estado aos particulares torna-se “indecente” (como diz a lei) e substitui-se o recurso judicial por um pedido de reapreciação ao órgão autor do acto contestado; por outras palavras — e para utilizar uma linguagem de hoje —, substitui-se uma via contenciosa, por um recurso gracioso. Ou seja, ao modelo jurisdicionalista substitui-se o modelo administrativo, nas relações entre o Estado e os particulares. Finalmente, a ideia de unidade suporta um entendimento diverso da relação entre o soberano e os aparelhos político-administrativos da coroa. Antes, como já se tem dito, a administração central estava organizada de acordo com um modelo polissinodal, em que cada conselho ou tribunal (mas mesmo cada magistrado) podia opor ao rei, de forma praticamente incontornável por este, as suas próprias competências. Pois se entendia, segundo uma tradição que ia de um célebre texto do Digesto [Digesto, I, 2, 3 (I. de império)] à própria obra de Jean Bodin, que a jurisdição dos verdadeiros magistrados (“les vrais officiers”, como diz Bodin) radicava na natureza da ordem política e não na discricionariedade do rei (Hespanha, 1989a, pp. 418 e segs.). A monarquia não tinha, portanto, sobre o seu próprio aparelho politico senão aquele mesmo poder de supervisão de que gozava sobre os poderes alheios. E, por isso, com razão se lhe aplicou já o epíteto de uma “monarquia descerebrada” (Jaime Vicens Vives). Agora, em contrapartida, da ideia de unidade do Poder podem tirar-se, neste plano, consequências de todo opostas. Que “os Magistrados de qualquer qualidade, ou considerados em particular, ou em comum, assim como as Relações, e Tribunais, não têm alguma jurisdição própria, mas toda é do Sumo Imperante, e em consequência sujeita à suprema jurisdição do mesmo Imperante” e que “apesar das alçadas dos Magistrados do mesmo Imperante, sempre fica salvo recurso ao Príncipe ordinária, e extraordinariamente” (Sampaio, 1793, vol. I, p. 190, n.° y). Em vez de decorrer, como anteriormente sucedia, de uma estrutura naturalmente orgânica, a existência de diferentes magistrados explica-se, agora, pela delegação de um direito majestático em “alguns dos seus vassalos; isto é, o direito de constituir Magistrados” (ibid., pp. 189-190). Corolário desta mesma ideia é o principio de que os cargos da república nada mais são do que “uma comissão simples, e precária do Príncipe para exercer nesta, ou naquela Estação restrita, e totalmente dependente do seu bom, ou mau serviço, ou para se conservar, ou ser dela expulso” (lei de 23 de Outubro de 1770, António Delgado da Silva, Collecção Chron. de Legislação, p. 506). Embora isto fosse mais pacifico em face do direito anterior, o mesmo carácter delegado tinham as jurisdições e direitos dos donatários, “pois tem a jurisdição dada ou doada pelo Rei, de quem deriva todo o império e poder, exercendo-a em nome dele” (ibid.). Mais tarde, em 19 de Julho de 1790, a Iei vem restringir mais ainda estes poderes. A questão dos poderes senhoriais leva directamente a última ilação do principio da unidade do Poder — o da constituição de um “núcleo duro” de poderes inseparáveis da pessoa do monarca. De um deles já se falou — a potestas legislatoria. Ao contrário da visão clássica dos regalia (decorrente das características do regime feudal), fundados nos dados particulares da constituição de cada Reino, agora do que se trata é de ligar intimamente a ideia de direitos reais a ideia da unidade do Poder. Daí que António Ribeiro dos Santos distinga, cuidadosamente, a nova da antiga concepção dos direitos do rei: “Direitos reais ou majestáticos [...I~ ou são os direitos gerais, que emanam da natureza da sociedade civil, e do supremo poder, que nela há; ou são os direitos particulares, que provém da constituição fundamental do Reino”. Os primeiros são definidos, a partir da própria ideia de majestade ou soberania (ibid., p. 25), pelo direito público universal ou pelo direito público constitucional (isto é, pela constituição fundamental do Reino). Os segundos, que decorrem do “direito público puramente civil”, englobam “os direitos feudais, fiscais e tributários que se deviam aos príncipes, não tanto em razão da majestade, que por sua mesma natureza necessariamente os exigisse, como de senhorio feudal” (ibid., p. 7). Se os direitos reais decorrem da majestade, já se entende que uns nunca possam ser separados da pessoa do rei; que outros se presumam na sua titularidade, salvo concessão expressa (Melo, 1789, vol. II, pp. 2-42). E que todos, ainda que concedidos, nunca saiam, essencialmente, da esfera de prerrogativas do soberano. E o que explica Pascoal de Melo nas Institutiones: “A jurisdição não é própria dos senhores, que apenas a tem do rei; nisto se distinguem essencialmente as jurisdições régia e feudal (Heineccius, Elementa juras germanici, vol. III, p. 1) […]. Daqui decorre que apenas se pode exercer em nome do rei e de acordo com o seu arbítrio e de tal modo que ele a possa limitar ou revogar […]” (Inst. civ., vol. II, p. 3-39) [No mesmo sentido, v. Sampaio, Prelecções de Direito Patrio, Publico e Particular..., Coimbra, 1793, vol. III, torno 45, p. 169, n. b)]. Por outro lado, defende-se agora, contra a doutrina anterior, que o rei pode sempre revogar as concessões destes poderes, mesmo feitas por contrato, pois o regime da irrevogabilidade contratual de direito comum não vigora quando os contratos tem por objecto direitos públicos e da coroa do Reino. A concentração dos poderes num centro único — aquilo a que já se tem chamado a separação entre o Estado e a sociedade civil (agora reduzida a um conjunto de indivíduos privados de poder de império) — foi, como vimos, o elemento estratégico do paradigma politico individualista. Esta concentração vinha, no entanto, criar problemas novos nas relações entre os particulares e o Poder, nomeadamente, no plano dos limites do Poder e da garantia dos direitos dos particulares. A terceira fase de reflexão politica setecentista, situada nas últimas décadas do século, entre a ressaca do despotismo pombalino e as comoções da Revolução Francesa, dedica-se sobretudo a esta questão, discutindo-a a propósito do conceito de “leis fundamentais”, dos direitos dos vassalos e do papel das cortes. Consequente com o novo paradigma político, António Ribeiro dos Santos rejeita esta redução dos direitos políticos aos direitos particulares na sua critica ao plano do Novo Codigo de Pascoal de Melo: “No titulo I deste Código se enunciam certos e determinados direitos, que competem aos vassalos; mas olhando para os Títulos desta obra, persuado-me: 1. que os vassalos se consideravam nela em diverso ponto de vista, isto é, como particulares, e não como corpo da nação; 2. que só se tratou dos direitos, que tem cada um deles em particular em razão de seus serviços feitos a Coroa, e não dos que tem todos os vassalos em geral em razão das leis fundamentais, estilos, foros, usos e costumes de nossos reinos.” Feita esta distinção, já se entende que proponha que, logo no inicio do código, figure um artigo em que apareçam expressamente enumerados os direitos, foros, liberdades e privilégios dos “Vassalos como corpo de nação”, bem como a sua “força e efeitos” e os “meios legítimos” de os “fazer valer perante eles [os príncipes]” (ibid., p. 22). Em resumo: pode dizer-se que Pascoal de Melo ainda não tinha desenvolvido uma teoria estatalista dos direitos de resistência e, por isso, ainda se socorre da anterior construção privatista dos direitos particulares como iura quaesita, fora da qual nada existe que se possa configurar como direito dos vassalos em relação ao imperante. Só que, como transparece do conjunto da obra do próprio Pascoal de Melo, o paradigma político-corporativo que suportava esta construção se encontrava já subvertido. Como vimos, ele próprio se recusa a considerar, por exemplo, a jurisdição e privilégios dos tribunais, dos oficiais ou dos donatários como direitos radicados oponíveis ao Poder da coroa. A própria propriedade se encontra, na sua obra, seriamente comprimida pela concepção de um direito eminente do soberano sobre o reino. E, por isso, a sua construção envolve a contradição de fazer repousar o direito de resistência sobre uns direitos que, na verdade, se revelam ... não o serem. Isto condu-lo a uma concepção absoluta do Poder — que adopta mais por razões de oportunidade politica (o exemplo da França) do que por convicção teórica —, em que as únicas limitações do Poder — que o distinguem, portanto, do despotismo e da tirania —são a humanidade e o amor do soberano, o carácter vinculado (ao bem da república) dos seus direitos e a generalidade da justiça e da lei. Já a salvaguarda dos privilégios, o respeito da propriedade e a liberdade natural e civil dos vassalos estão subordinados ao interesse da causa pública e ao bem universal da sociedade (Resposta Que Deu..., p. 99). Em contrapartida, Ribeiro dos Santos, estando consciente da radical separação entre direitos políticos e direitos privados, e filiando-se, a partir de certa altura, noutra sub corrente doutrinal do jusnaturalismo, já se vê obrigado a construir um arsenal de direitos políticos de resistência, fundados nas leis fundamentais. Eis outro conceito, este de “leis fundamentais”, chave do novo paradigma politico. 0 conceito de lei fundamental tem como núcleo a ideia de que a constituição da sociedade repousa num acto de vontade, numa lei, e não numa disposição da Natureza, numa ratio, estruturante do paradigma corporativo60. Uns juristas derivarão esta ideia de urna constituição voluntária do conceito histórico de lex regia, a decisão popular que, na primitiva monarquia romana, teria investido o rei nos seus poderes67. Outros, das experiências pactistas medievais e primo-rnodernas (como vimos, no plano mais propriamente doutrinal, a Segunda Escolástica veio revalorizar a ideia de pacto na explicação da origem do poder politico em concreto). A polémica setecentista sobre as leis fundamentais gira, basicamente, em torno da existência e conte,.ido deste pacto histórico na monarquia portuguesa, já que, fiéis ao preceito contratualista de que pacta sunt servanda, os absolutistas nunca negaram o carácter vinculativo de tais leis, a existirem, como ainda fundaram no seu respeito a distinção entre governo absoluto e governo despótico. A Deduccao Chronologica... identifica como tais as leis de Lamego sobre a forma de governo (monárquico) e o regime da sucessão (vol. i, §§ 597, 601 e 675), definindo este estatuto como “lei fundamental, firme, perpétua e tal, que nem os seus régios sucessores pudessem alterá-las. (~ 676-677). Pascoal de Melo começa por negar qualquer participação do povo na translação do Poder para os reis, já que a monarquia portuguesa teria tido origem na conquista e sucessão; em todo o caso (ate porque o próprio Suarez tinha conceituado a conquista como uma forma de pacto), procura limitai esse pacto adventício (isto é, as leis fundamentais) as normas sobre a sucessão do Reino das Cortes de Lamego e das Cortes de Lisboa de 1698 (lei de 12 de Abril, que subordinava a sucessão do filho do rei que sucedeu ao irmão a aprovação das cortes). Diferente era, já, a posição de António Ribeiro dos Santos, na polémica que manteve com o anterior sobre o projecto do Novo Código. Aí, ele fundava (como vimos) os direitos políticos dos vassalos nas “leis fundamentais, estilos, foros, usos e costumes” do Reino (Pereira, 1982, pp. 301 e segs.). Mas, mais do que isto — coerentemente com a ideia da disponibilidade voluntarista da constituição e procurando tornear as eventuais dificuldades de comprovar a existência histórica de umas leis fundamentais tão liberais como as pretendia —, admitia uma “renegociação constitucional”, um novo pacto: “O príncipe, de comum consentimento com os seus povos, pode mudar e alterar quaisquer leis fundamentais do Estado. ou os povos fossem ou não autores delas; porque se o foram, de comum consenso com os seus príncipes as podem alterar, assim como as puderam estabelecer; se o não foram, quem estorva o príncipe. que não possa ceder de seus direitos em beneficio da república e tratar com os povos da alteração ou mudança da constituição do Reino” (pp. 140-141). Estava assim aberta uma nova via constitucional, a de uma constituição elaborada e votada por uma assembleia representativa, como cedo haveria de acontecer em 1820.