MOURISQUENSE EM
CONFLITO COM A CHINA
Autor: João Manuel Maia Alves
Edição de Setembro de 2008
Cópia, impressão e transmissão totalmente livres
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Esta foto, do Arquivo da Sociedade de Geografia, é do Almirante Joaquim
Marques Esparteiro, nascido em Mouriscas, em 1895.
Este ilustre mourisquense foi governador de Macau entre 1951 e 1957. O seu
nome em chinês era:
A pronúncia aproximada destes caracteres é Chi Bó Tai.
Joaquim Marques Esparteiro esteve no centro de grave conflito entre o
pequeno Portugal e a imensa China. É a história contada nas páginas
seguintes.
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Palácio do governo de Macau
Em 1946 o Cônsul Geral dos Estados Unidos em Hong Kong solicitou
autorização para dois hidroaviões utilizarem o porto exterior de Macau para,
durante dois dias, treinarem pilotos no salvamento de náufragos. Salazar
escreveu então: “Parece-me de autorizar mas os chineses franzirão o
sobrolho”. Pode ler-se na página 188 de Salazar e Caetano – Cartas
Secretas – 1932-1968, de José Freire Antunes, edição do Círculo de Leitores.
De harmonia com a constituição de 1933, Macau fazia parte de Portugal.
Porém, era limitada a soberania portuguesa sobre o território, aliás nunca
reconhecida por qualquer documento oficial chinês. Macau recebia da China
os alimentos que consumia. O pequeno Portugal tinha de ser muito
cuidadoso no trato com o gigantesco vizinho.
Em 1949 foi instalado na China um regime comunista com o qual Portugal
não tinha relações diplomáticas. Portugal era aliado de países hostis à China,
contra a qual tinham decretado um embargo comercial. Alguns destes países
e certa imprensa internacional diziam que Macau vendia à China produtos
incluídos no embargo e que, portanto, Portugal era desleal aos seus aliados e
compromissos.
Por causa de denúncias da violação do embargo, Macau teve a visita do vice-cônsul-geral dos EUA em Hong Kong com o intuito de fiscalizar o
funcionamento dos sistemas e saídas de óleos combustíveis e gasolina
usados no território. A visita aconteceu em Maio de 1951, uns seis meses
antes da posse de Joaquim Esparteiro. De acordo com um relatório secreto
americano elaborado depois, era evidente para quem o redigiu que o
governador e seus colaboradores escondiam o facto de que negociavam com
a China em materiais estratégicos e que achavam conveniente colaborar com
os chineses para a manutenção do estatuto de Macau.
Face a fortes críticas internacionais, Portugal sentiu-se obrigado a agir de
acordo com os compromissos do país. Foi criada legislação que estabelecia
que produtos não se podiam exportar para a China. Foi também criada uma
comissão de controle confiada a uma entidade independente da elite sino-macaense. A elite sino-macaense era um pequeno grupo de destacados
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macaenses e chineses residentes em Macau com muito poder e influência e
que mediavam entre os interesses de sucessivos regimes chineses e
portugueses. No decénio de 1950, esta elite era constituída na parte
macaense pelo timorense Pedro José Lobo, ligado pelo casamento a uma
iluste família macaense e Director da Repartição Central dos Serviços
Económicos, e por destacados dirigentes da Associação Comercial Chinesa
de Macau como Ho Yin e Ma Man-kei. Ho Yin viria a ser escolhido por
comum acordo pela administração portuguesa e pela China, em meados do
decénio de 1950, para representar Macau em Pequim, cargo que
desempenhou até morrer, em 1983. Macau – estranha terra …
Estávamos em Janeiro de 1952. Joaquim Marques Esparteiro era governador
desde Novembro do ano anterior. Para seu chefe de gabinete tinha escolhido
outro mourisquense, seu primo em segundo grau – o jovem capitão de
cavalaria Abílio de Oliveira Ferro, filho de Jesuvino Ferro, durante muitos
anos figura de relevo em Mouriscas. Cabia a Abílio Ferro coordenar as
pessoas directamente dependentes do governador Joaquim Marques
Esparteiro.
Abílio de Oliveira Ferro
A legislação foi enviada ao governador Esparteiro para publicação na
imprensa oficial de Macau. O Ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues,
instruiu Esparteiro a discretamente contactar a elite macaense e dizer-lhes
para não ficarem alarmados com o que ia ser publicado.
A legislação foi publicada e o novo organismo, a Comissão Coordenadora de
Comércio, tomou posse. Alguns ficaram contentes. Pensaram que Pedro
José Lobo e o resto da elite sino-macaense iam deixar de controlar as
exportações para a China. No entanto, Joaquim Marques Esparteiro deu
instruções escritas secretas aos membros da comissão, mandando-os
manter uma íntima colaboração com Pedro José Lobo, pois “tem larga
experiência do assunto e cujas indicações e conselhos lhe podem ser muito
proveitosos” e porque considerava os seus apoios “indispensáveis para a boa
marcha dos trabalhos da Comissão”.
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Claro que a China não ficou contente com a legislação nem com as restrições
ao que Macau lhe vendia. Alguns dirigentes terão pensado que Portugal e
Macau precisavam dum correctivo.
As autoridades chinesas deram dois sinais inequívocos do seu estado de
espírito. Em 5 de Fevereiro de 1952, o governador Esparteiro informou
Lisboa duma reunião sobre Macau em Cantão, com a presença de altas
personalidades. Alguns dos presentes defenderam atitudes hostis contra a
administração portuguesa de Macau por esta e Portugal alinharem com os
inimigos da China. Os dois representantes da elite chinesa de Macau
defenderam que nada deveria ser feito contra o território. Um deles fazia
parte da organização regional de Macau do Partido Comunista da China. O
segundo sinal observou-se com a detenção dum capitão português, chefe
dos serviços de informações do comando da guarnição militar, em 22 de
Março de 1952, quando, segundo os chineses, entrou com o seu barco em
águas da China.
A administração de Macau e o governo de Lisboa mostraram-se firmes na
aplicação das novas regras. Como resultado, os incidentes junto às Portas do
Cerco, que se verificavam há meses, intensificaram-se em Maio, levados a
cabo pelas sentinelas chinesas.
A foto seguinte é das Porta do Cerco. É do tempo da administração portuguesa, vendo-se dum lado uma bandeira portuguesa e do outro uma
chinesa, vermelha e com estrelas douradas. Dum e doutro lado havia uma
sentinela.
Não se adivinham tempos fáceis para os mourisquenses Joaquim Marques
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Esparteiro e Abílio Ferro. Por mais optimista que se seja, aparecem-nos
como protagonistas duma história sem final feliz.
O Ministro do Ultramar visitou Macau em Junho. Antes da visita as provocações passaram a ser feitas por crianças que atiravam pedras às sentinelas portuguesas. Durante a visita ministerial as provocações voltaram a ser
do exército chinês.
Joaquim Esparteiro tinha de enfrentar o descontentamento da China e o da
elite sino-macaense. Tentou esfriar os ânimos com a passagem da fiscalização das exportações para a tutela conjunta da comissão que tinha sido
criada para esse efeito e da Repartição Central dos Serviços Económicos,
que se dizia dominada pela elite sino-macaense, favorável aos interesses da
China. No entanto, o descontentamento continuou. Houve novos incidentes,
com troca de tiros e bastantes baixas chinesas. Como resultado, cessou o
abastecimento de víveres a Macau, tendo a China imposto um bloqueio às
trocas comerciais e às comunicações terrestres, fluviais e marítimas.
Estávamos a 25 de Julho de 1952. Não há dúvida – Joaquim Marques
Esparteiro está em grandes dificuldades. Como sairá desta situação?
Seguiram-se manobras de intimidação de vários tipos por parte dos chineses,
incluindo a ameaça de pedido de pesadas indemnizações.
Houve mais violência, mas em 29 de Julho cessou praticamente o conflito
armado. Subsistia no entanto, o bloqueio a Macau e muita tensão e medo na
população.
Joaquim Esparteiro tentou estabelecer pontes de comunicação com os
chineses com o auxílio do governo da colónia britânica de Hong Kong, mas
não teve êxito. Também Salazar procurou auxílio da parte dos ingleses, que
tinham relações diplomáticas com a China, mas as suas diligências não
tiveram resultados.
Joaquim Esparteiro, a braços com uma situação difícil, tinha de fazer alguma
coisa e pensou numa solução local. Com muita dificuldade conseguiu que os
chineses concordassem com uma reunião. No dia 1 de Agosto de 1952
enviou a Gongbei uma delegação da administração portuguesa de Macau,
constituída por Ho Yin, Ma Man-kei, Chü Chi-ping e Kwok Siu-kan com o fim
“de restabelecer as comunicações e abastecimentos indispensáveis à vida
desta Província”. A reunião com os representantes chineses durou duas
horas e meia, tendo a delegação da elite chinesa de Macau afecta a Pequim
regressado ao enclave com as três seguintes condições: 1) pedirmos
desculpa por um soldado nosso ter pisado o seu território na fronteira, o que
deu lugar, segundo a sua versão, aos incidentes; 2) abandonarmos a faixa de
terreno considerado neutro na fronteira; e 3) compensarmos as vítimas e
estragos causados pelas nossas acções militares.
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Ruínas de S. Paulo
O governador Esparteiro discordou das reivindicações por não condizerem
com o relatório do comando da guarnição militar portuguesa, mas poderia
recusá-las?
Em 2 de Agosto foi apresentada a seguinte contraproposta: 1) confessar sem
pedir desculpas que o nosso soldado pisou território chinês; 2) estabelecer
um novo sistema de vigilância da fronteira e continuando terreno neutro de
harmonia com o status quo; 3) compensação, que na opinião dos enviados,
não deveria exceder 30.000 patacas. (A pataca era e é a moeda de Macau.)
Joaquim Marques Esparteiro não queria sofrer a humilhação das condições
exigidas, mas lembrou a Lisboa que a China estava a exercer enorme
“pressão económica” através da suspensão do tráfego entre os territórios
vizinhos e Macau. Numa tentativa para melhorar a situação, o governador
Esparteiro tentou comprar arroz na Tailândia, para fornecer o mercado de
Macau e fazer baixar o seu preço no território.
No dia 2, os chineses permitiram o restabelecimento da circulação de
mercadorias por via fluvial, embora em escala insuficiente para as necessidades da população. Já era um desanuviamento.
No dia 5 de Agosto Salazar convocou um Conselho de Ministros, tendo como
ponto principal a situação de Macau. No dia seguinte o governador Marques
Esparteiro realizou uma sessão secreta extraordinária do Conselho de
Governo. Nela estiveram todos os membros deste órgão, além dos membros
do Conselho de Defesa Militar e do Director da Repartição Central dos
Serviços Económicos, o já citado Pedro José Lobo. Todos os presentes
acharam que se deveria aceitar as condições impostas pelos chineses;
disseram também que deveríamos tentar evitar o reconhecimento da nossa
culpa pelos incidentes.
No dia 9 de Agosto, Ho Yin e Ma Man-kei voltaram a deslocar-se à China
para uma reunião que durou à volta três horas. No dia 11 fontes próximas
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destes dois destacados dirigentes da elite chinesa de Macau garantiram que
a administração portuguesa de Macau e a China tinham logrado uma
“solução de compromisso” e que as partes não “pretendiam ampliar o conflito
e mostram-se convencidos de que dentro de poucos dias se chegaria a um
acordo total”.
Os chineses permitiram que Macau recebesse no dia 11 flores baratas com
abundância e milhares de quilos de vegetais transportados duma ilha
chinesa, mas as principais comunicações terrestres e marítimas com a China
continuavam paralisadas.
No dia 12 de Agosto, o ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, enviou
para Macau o teor da mensagem a apresentar por Ho Yin ao general Li
Zuopeng. Na sequência deste telegrama, voltou a ter lugar mais uma reunião
entre os representantes da administração portuguesa de Macau, Ho Yin e Ma
Man-kei, com as autoridades de Cantão. Antes da reunião o governador
Marques Esparteiro comunicou para Lisboa ter Ho Yin a impressão, por
conversas com os chineses, da dificuldade em chegar a acordo com eles
sem reconhecermos as nossas culpas e apresentarmos desculpas. Joaquim
Marques Esparteiro, adiantou que, embora não concordasse com o ponto de
vista chinês, a verdade é que os chineses não desistiriam da sua posição
assumida. Teria o governador Esparteiro uma fórmula que satisfizesse os
chineses sem humilhação para a administração portuguesa? Será que as
partes vão encontrar uma saída airosa, um desfecho em que ninguém pareça
humilhado?
No dia 16 de Agosto, voltaram a deslocar-se à China Ho Yin e Ma Man-kei.
Era a sexta vez que o faziam. Um outro sinal de que a China pretendia
resolver a questão observou-se no dia 18 de Agosto, quando a sua bandeira
foi içada na parte chinesa das Portas do Cerco, mas no dia 20 houve nova
reunião sem haver progressos nas negociações.
Largo do Senado - Macau
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Nestas reuniões os principais representantes de Macau foram Ho Yin e Ma
Man-kei. Parece que inicialmente os negociadores chineses mantiveram uma
forte intransigência, exigiram da administração portuguesa a apresentação
pública de desculpas e uma indemnização elevada pelos danos causados.
Lisboa rejeitou as condições chinesas e, por isso, as negociações caíram
num impasse. Numa tentativa para ultrapassar a situação, Pedro José Lobo,
Director da Repartição Central dos Serviços Económicos, deslocou-se a
Gongbei para negociar com representantes chineses. Desde o início das
negociações, ele teve a nítida percepção de que os chineses estavam
ansiosos por uma solução aceitável e que o único problema era achar uma
solução em que não se perdesse a face. Após dezassete reuniões, a solução
encontrada foi a de que Pedro José Lobo deveria apresentar o seu pesar
pessoal pela ocorrência dos incidentes, não comprometendo, porém, a
administração portuguesa de Macau. Extraordinária e brilhante solução!!!
Também houve acordo sobre as indemnizações, em que os chineses não se
mostraram muito exigentes.
Assim, o mais discretamente possível, com o mínimo de alarido, as duas
partes chegaram a um acordo. K. R. Oakeshott, do Departamento do
Extremo Oriente do Foreign Office (Ministério dos Negócios Estrangeiros
britânico), escreveu então que os chineses consideravam Macau útil e tinham
chegado a um acordo secreto sobre materiais estratégicos. Tenha ou não
havido acordo secreto, o que é certo que Salazar pediu e conseguiu dos seus
aliados um regime especial para Macau nas suas transacções comerciais
com a China.
Quando o primeiro-ministro chinês, Chu En Lai, visitou Moscovo em
Setembro de 1952, o conflito foi abordado na conversa com Estaline, o líder
da União Soviética. Isto mostra bem as repercussões do que em 1952 se
passou em Macau.
Parece que neste conflito ganharam todas as partes envolvidas – a China,
Portugal, Macau, Joaquim Marques Esparteiro, a elite sino-macaense. Esta
reforçou tanto o poder que já tinha que conseguiu atrasar durante vários anos
a moralização que Joaquim Esparteiro queria introduzir no comércio do ouro.
Neste mundo são raros os jogos em que todos ganham sem alguns perderem
alguma coisa. São raras as vitórias completas.
Joaquim Esparteiro continuou em Macau até 1957, com tempo mais
bonançoso, mas só em 1954 conseguiu a libertação do capitão preso no
início dos incidentes. É pena que Joaquim Marques Esparteiro e o seu chefe
de gabinete, o também mourisquense Abílio de Oliveira Ferro, não tenham
publicado as suas memórias dos incidentes de 1952 em Macau. Tinham tanta
coisa de interesse para contar!
Este artigos baseou-se no texto OS INCIDENTES DAS PORTAS DO CERCO
DE 1952: o conflito entre os compromissos internacionais e os
condicionalismos locais, da autoria de Moisés Silva Fernandes. A edição é do
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Instituto de Ciências Sociais Universidade de Lisboa. Leiam este texto, que
vale a pena. Pode ser descarregado do endereço seguinte:
http://www.ics.ul.pt/publicacoes/workingpapers/wp2005/wp2005_2.pdf
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