Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento
Qualidade de Vida, Diversificação e Desenvolvimento: referências práticas para análise do bemestar no meio rural
Sérgio Schneider
Tanise Dias Freitas
RESUMO
Este artigo discute os conceitos de qualidade de vida e vulnerabilidade buscando relacioná-los ao
tema do desenvolvimento humano. O objetivo do trabalho consiste em mostrar como uma análise
sociológica do desenvolvimento requer a incorporação das dimensões de bem-estar social como
elementos definidores e referências. Em termos teóricos, o artigo articula-se à abordagem das
capacitações de Amartya Sen e Martha Nussbaum que definem qualidade de vida examinando-se
os recursos disponíveis, a capacidade efetiva de um grupo social para satisfazer suas
necessidades. Ainda, este trabalho busca oferecer referências práticas e metodológicas para
viabilizar a análise do desenvolvimento na perspectiva da qualidade de vida e de redução das
desigualdades, o que o torna um ensaio com propostas concretas para a investigação social.
PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento; Qualidade de Vida; Vulnerabilidade; Abordagem das
Capacitações; Meios de Vida.
ABSTRACT
This article discusses the concepts of quality of life and vulnerability trying relating them to the
theme of human development. The objective is to show how a sociological analysis of the
development requires the incorporation of the dimensions of social well being as the defining
elements and references. In theoretical terms, the article articulates to the
capabilities
approach of Amartya Sen and Martha Nussbaum that define quality of life by examining the
resources that are available and the effective capacity of a social group to satisfy your needs.
Also, this study seeks to provide practical and methodological references to make possible the
analysis of development towards quality of life and reducing inequalities, which makes it a test
with concrete proposals for social research.
KEYWORDS: Development; Quality of Life; Vulnerability; Capability Approach; Livelihoods.
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INTRODUÇÃO
Definir o desenvolvimento como uma situação, condição e processo que cria e/ou
proporciona melhorias na qualidade de vida das pessoas e da sociedade em geral pode ser
considerada uma maneira adequada para tratar com este tema ou questão tão complexa. Não
obstante, qualquer cientista social mais atento, nos dias atuais, rapidamente fará a pergunta em
relação a tal definição: afinal, em que medida a melhoria da qualidade de vida contempla o
conjunto de indivíduos (universalidade), e de que forma esta melhoria implica em mudanças
relativas em termos sociais e até ambientais?
Isto leva à difícil tarefa de proporcionar a discussão de qualidade de vida em relação à
redução da vulnerabilidade, uma vez que o aumento ou a ampliação da qualidade de vida de um
indivíduo/coletivo social/sociedade não pode ser um processo que assevere a vulnerabilidade e
a precariedade da vida daqueles que não são contemplados. Portanto, pode-se dizer que
melhoria da qualidade de vida e redução de vulnerabilidades são faces de uma mesma moeda,
pois se nivelam em um mesmo processo que transforma, dialeticamente, estas duas dimensões.
Nesse sentido, tem-se percebido diversas formas de analisar desenvolvimento e
qualidade de vida. Indicadores recentes (como renda, educação, saúde, expectativa de vida ao
nascer, longevidade, etc) destacam que parece estar havendo uma melhoria de vida das pessoas,
no caso, da população brasileira em geral. Quando se trata de rentabilidade, os resultados de
pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), bem como pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que o número de vulneráveis no Brasil
(com renda per capita entre R$134,00 e R$465,00) caiu de 82 milhões para 80,8 milhões entre
2004 e 2009, sendo que a renda média deste grupo aumentou 4% nos últimos anos. O número de
pobres também diminuiu (aqueles que ganham entre R$67,00 e R$134,00), passando de 28,2
milhões para 17,5 milhões. Os extremamente pobres (com renda per capita até R$67,00)
passaram de 15 milhões em 2004 para 8,7 milhões em 2009.
Tais dados parecem dizer muito ao se ter estabelecido como Metas do Milênio a
diminuição do número de pessoas pobres que pertencem às camadas mais vulneráveis. No
entanto, é possível afirmar que uma pessoa que ganha R$70,00 é menos vulnerável e,
consequentemente, mais desenvolvida que uma pessoa que ganha R$67,00? Ou ainda, é possível
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“medir” desenvolvimento e qualidade de vida com indicadores sociais alicerçados na
classificação social por renda per capita?
Por conseguinte, pode-se dizer que o desenvolvimento é um processo de mudança social
que, do ponto de vista prático e fenomenológico implica em melhoria das condições e da
qualidade de vida, por um lado, e redução ou alteração das condições de vulnerabilidade, por
outro. A qualidade de vida, por sua vez, é definida por Amartya Sen e Nussbaum (1995) como a
representação de combinações de coisas que uma pessoa é capaz (capacitações) de fazer ou ser,
e as funcionalidades, que representa partes do estado de uma pessoa – as várias coisas que ela
faz ou é (Sen, 2001). Isto significa dizer que a qualidade de vida pode ser avaliada em termos da
capacitação para alcançar as funcionalidades (desde nutrir-se, ter saúde, educação até ter
autorrespeito e integração social).
Desta forma, os autores sustentam que o desenvolvimento humano em seu sentido pleno
somente é alcançado à medida que os indivíduos de uma determinada sociedade passam a ter a
liberdade de escolha e opção e dispor de capacidades e meios para tal. Assim, Sen coloca em
plano secundário a importância de atributos como renda, capital e posse de recursos físicos e
destaca o papel das capacidades e das habilidades que os indivíduos precisam ter para poder
fazer as escolhas e alcançar uma vida plena de bem-estar.
A perspectiva das capacitações propõe que o desenvolvimento seja uma característica
das sociedades em que os indivíduos alcançam uma condição em que dispõem de meios pelos
quais podem realizar os fins que desejam. Contudo, o desenvolvimento também significa a
capacidade de poder remover as barreiras existentes ou aquelas que condicionam ou restringem
a liberdade de opção e escolha. Trata-se então de criar as condições para a realização da
capacidade de escolha dando espaço para que a liberdade e a diversidade de escolhas
individuais passem a ser um direito individual e uma característica da sociedade.
A abordagem das capacitações estabelece um diálogo profícuo com a perspectiva da
diversificação dos meios de vida. Isto faz com que estudiosos do desenvolvimento rural passem a
rediscutir as estratégias de combate à pobreza com base na hipótese de que mais importante do
que dar comida aos pobres seria dotá-los de recursos que estimulassem suas capacidades,
fortalecendo os meios de que dispõem para realizar suas atividades. Para além de um quadro
analítico, a perspectiva da diversificação dos meios de vida oferece um referencial teórico
importante para compreender o processo mais geral de mudança no meio rural.
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Neste sentido, a interface está na ideia de que a ampliação das capacitações dos
indivíduos e das famílias rurais pode ser realizada pela diversificação das formas de organização
econômica e produtiva. Um leque maior de oportunidade e opções de escolha é fundamental para
que tais famílias possam estabelecer estratégias de combate às mais distintas formas de
vulnerabilidades (clima, doenças, preços, etc.) a que estão submetidos, bem como incrementar a
sua resiliência.
Assim, este trabalho subdivide-se em quatro partes, onde na primeira busca-se trazer as
discussões sobre vulnerabilidade e qualidade de vida como referencias de uma sociologia do
desenvolvimento em convergência com uma sociologia do risco de Ulrich Beck. Na segunda parte,
tem-se uma apresentação da abordagem das capacitações a fim de mostrar a contribuição de
Amartya Sen ao debate do desenvolvimento na sociologia, e em conjunto com Ellis compreender o
desenvolvimento dos meios de vida rural, como uma forma de complementar a abordagem
seniana e torná-la operacional. Na terceira parte, têm-se algumas definições sobre qualidade de
vida e como isto pode ser traduzido em desenvolvimento. A última sessão presta-se à análise dos
indicadores de qualidade de vida de acordo com referencias práticas, buscando construir ao fim
um quadro teórico- metodológico que sirva para futuros debates sobre a multidimensionalidade
da qualidade de vida como condição ao desenvolvimento.
1. Vulnerabilidade e Qualidade de Vida na Sociedade Atual
A geração de riqueza e desenvolvimento quase sempre andaram juntos e
tornaram-se objeto e objetivo de muitos países. Na década de 1950, no Brasil, por exemplo,
desejava-se avançar 50 anos em cinco, com desenvolvimento de indústrias, superação da
dependência agrícola e buscando igualar-se aos países ditos desenvolvidos. Era o viés econômico
que conseguia mostrar resultados para satisfazer as expectativas do cenário desenvolvimentista.
Segundo Martins (2010), nesse contexto, as Ciências Sociais também se
debruçaram sobre o desenvolvimento, principalmente quanto: mudança social, atraso versus
moderno, desenvolvimento e planejamento social, reformas, crises, imperialismo, alienação, etc.
Assim, pode-se dizer que por muitos anos a sociologia do desenvolvimento buscou compreender,
através das relações econômicas, políticas e sociais, os efeitos da industrialização nos países e
em contextos individuais. Na década de 1970, essa sociologia mostrou-se otimista diante dos
resultados da industrialização, acreditando até na superação do status de terceiro mundo aos
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países tido como menos desenvolvidos. Contudo, esse otimismo perdeu-se com a continuidade da
dependência “das antigas colônias às suas metrópoles”, em pleno século XX.
Nos últimos anos, a sociologia do desenvolvimento tem buscado demonstrar que
não há uma evolução automática de desenvolvimento, onde todos os países seguem uma mesma
linha de progresso e melhoria das condições de vida das populações. Conforme Ulrich Beck
(1998), a forma de crescimento exponencial das economias acabou trazendo, sim,
desenvolvimento aos países, à medida que se apresentava um maior uso das tecnologias e suas
descobertas, a melhoria nas relações de mercado e mudança nas relações de trabalho, a
mudança nos estilos de vida, a mudança nas formas de produção no meio rural, etc.
Porém estes os ganhos da modernidade industrial não foram igualmente
repartidos entre as sociedades e os indivíduos. A desigualdade evoluiu paralelamente ao
crescimento econômico, as promessas de diminuição da pobreza e da miséria material não
encontravam respostas frente à crescente vulnerabilidade social e aos riscos que os indivíduos
estavam expostos. Para o autor, “La historia del reparto dos riesgos muestra que éstos siguen, al
igual que las riquezas, el esquema de classes, pero al revés: las riquezas se acumulan arriba, lós
riesgos abajo.” (BECK, 1998, p.40).
Os riscos são eminentes, atingem todas as classes sociais, mas de forma
desigual. Segundo Beck, há um filtro social a partir do momento em que os ricos conseguem
comprar sua seguridade e acabam tendo maior capacidade de enfrentamento dos riscos e
adversidades do cotidiano, conseguem ter mais estudo, informação, moradia adequada, etc.
Aqueles que possuem os funcionamentos básicos (SEN, 2001), tornam-se mais capazes de
enfrentar os riscos que se colocam na contemporaneidade.
Neste sentido, destaca-se a importância de demonstrar como uma abordagem
sociológica do desenvolvimento deve ser redefinida na observância das mudanças que estão em
curso. O que Sen e Nussbaum (1996) afirmam sobre o desenvolvimento é que este está
impregnado de valor e que produz critérios que servem para avaliar o que seria ou não uma
mudança social benéfica, ou seja, o que permite ou capacita a realização de uma vida melhor.
Destarte, as Ciências Sociais precisam esclarecer o que se entende por
privações, bem-estar, qualidade de vida e desenvolvimento através de uma investigação empírica
para compreender o que está acontecendo em determinados contextos e como estes podem ser
melhorados. Ainda é preciso buscar mais que um desenvolvimento teórico e normativo, mas a
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realização prática de políticas de desenvolvimento para ampliar as capacidades das pessoas
para serem e fazerem o que desejam. A “ética das capacidades” de Sen e Nussbaum articula
elementos da vida social que foram separados. Conforme Crocker (1993, p.103)
(...) a ética do desenvolvimento de Sen e Nussbaum situa-se, como é de
se esperar de tal ética, em um contexto de interação dialética com
outros elementos da teoria e da prática do desenvolvimento. Aquilo que
entendemos valer a pena promover, como algo valioso, será importante
tanto para a análise causal como para recomendações de política
pública.
Desta forma, a sociologia do desenvolvimento tem buscado denunciar o falso
desenvolvimento, suas contradições e desigualdades, mas ainda permanece sem dar resposta ou
mostrar caminhos para a melhoria da qualidade de vida das populações. Conforme Schneider
(2011), o estudo do desenvolvimento pelas Ciências Sociais deve ser entendido como fato social,
explicado e interpretado como tal – como um processo que não possui um único caminho e que
expressa as contradições da vida humana, que dialoga e problematiza as desigualdades e as
novas desigualdades e que entende os riscos sociais como consequências do processo de
modernização e crescimento a qualquer preço. Assim, tem-se a sociologia do desenvolvimento
como aquela que trata dos riscos e incertezas da sociedade pela abordagem das vulnerabilidades
e da qualidade de vida em suas várias dimensões.
Entender o desenvolvimento é mais que uma análise das condições de renda dos
indivíduos, mas uma abordagem integral, que observa os funcionamentos e as capacitações dos
indivíduos e como estes conseguem melhorar suas condições de vida. Estar vulnerável diz muito
mais que “estar abaixo da linha da pobreza”; a sociologia do desenvolvimento deve ir além de
indicadores como a carência econômica das populações. Voltando a Sen, outros tipos de
carência como desnutrição, condições precárias de habitação e saneamento, subemprego,
subconsumo, falta de integração e suporte familiar e baixos níveis educacionais e culturais têm a
mesma importância que a econômica.
Para tanto, a sociologia do desenvolvimento necessita de debates sobre as bases
materiais sobre as quais as pessoas vivem e reproduzem-se. Assim, fazer uma análise sociológica
do desenvolvimento é fazer um estudo de como a vida das pessoas realmente transcorre. Nesse
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sentido, busca-se incessantemente a elaboração de indicadores que, para além de renda per
capita, consigam “dizer” quais situações podem ser caracterizadas como de qualidade de vida e,
opostamente, as de não qualidade ou vulnerabilidade. A abordagem sociológica do
desenvolvimento trata, portanto, das condições de vida das pessoas e como elas fazem para
superar os riscos, as incertezas e as vulnerabilidades.
Nesse sentido, as discussões sociológicas do desenvolvimento pretendidas neste
trabalho, analisam a superação da vulnerabilidade (do risco social) pela melhoria da qualidade
de vida, através da multidimensionalidade de indicadores objetivos e subjetivos. Tenciona-se
então, com as sequentes discussões sobre desenvolvimento e qualidade de vida, compreender
como a mobilização de ativos (recursos) pode ser uma forma de criação de estratégias de
adaptação ou transformação das oportunidades, a fim de fortalecer os ativos já existentes e
diversificá-los.
2. Superando a Vulnerabilidade e melhorando a Qualidade de vida (QV) através das
Capacitações
Ainda é comum tratar desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico com o
objetivo de simplificar as formas de medir desenvolvimento; levava-se em consideração quase
que essencialmente a evolução de indicadores tradicionais de economia, como o Produto Interno
Bruto (PIB) per capita. Conforme Veiga (2006), até o início dos anos de 1960 não se tinha a
necessidade de diferenciar desenvolvimento de crescimento econômico, pois poucas nações
desenvolvidas eram as que haviam enriquecido com o advento da industrialização.
Tal confusão mostrou o quanto estudos voltados para os fenômenos econômicos
baseados em análises de PIB, comportamento das exportações ou evolução do mercado eram
insuficientes. Na esteira dessas discussões, percebeu-se a propensão em selecionar alguns
poucos índices que, juntos, permitissem uma avaliação do desenvolvimento para além do viés
estritamente econômico, buscando o entendimento desse conceito em suas várias dimensões.
Sen trouxe contribuições essenciais à ideia de desenvolvimento, na chegada do século XXI, ao
Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), propondo elementos de análise que
se tornaram essências para a construção do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. Amartya
Sen, como elaborador principal do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, pretendeu criar
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um conjunto de indicadores capazes de fornecer, segundo Veiga (2006), um tipo de “hodômetro”
do desenvolvimento entendido como a expansão das liberdades substantivas.
Segundo Veiga (2006), baseado em Amartya Sen e Mahbud ul Haq, só há
desenvolvimento quando os benefícios do crescimento conseguem ampliar as capacidades
humanas – o conjunto das coisas que as pessoas podem ser ou fazer na vida. Quando expande as
capacidades no momento em que as pessoas podem fazer suas escolhas para alcançar a vida que
realmente desejam. Para Sen (2000, p. 171), os saldos do desenvolvimento melhoram não
somente a qualidade de vida, mas também as habilidades produtivas das pessoas e, por
conseguinte, o crescimento econômico de base compartilhada.
Assim, torna-se indispensável compreender a abordagem das capacitações de Amartya
Sen, com objetivo de entender a superação da problemática da redução das vulnerabilidades
como obstáculo ao desenvolvimento. De acordo com Sen, esta abordagem apresenta
fundamentos teóricos amplos e suficientes para abarcar todas as dimensões que se pretendem.
Ainda, a abordagem das capacitações é diferente do modo tradicional de avaliação individual e
social de desenvolvimento, baseada em bens primários, recursos ou renda real que focalizam PIB
e PNB. (SEN, 2008). Não que o desenvolvimento econômico tradicional seja descartado das
análises de desenvolvimento aqui pretendidas, mas este se torna mais uma variável na
compreensão da realidade, um instrumento para realização do bem-estar.
A proposta de Sen objetiva, fundamentalmente, tirar o foco das ações sobre os
fins ou resultados, materializados em variáveis como renda, posse de bens ou capitais e
privilegiar o fortalecimento dos meios e modos que os indivíduos dispõem para lidar com as
adversidades dos contextos em que vivem, com os riscos sociais, as incertezas. O objetivo é,
então, deslinearizar a visão sobre os processos de desenvolvimento, o qual passa a ser entendido
como um ampliador das escolhas que os indivíduos podem fazer – a liberdade de escolha.
A quantidade de acesso, segundo Sen, é uma fonte de melhoria das capacitações,
mas não é automaticamente uma garantia de desenvolvimento para os indivíduos. (BAGOLIN,
2005). O desenvolvimento só pode ser alcançado quando os indivíduos dispõem dos “meios”
pelos quais podem realizar os “fins” que almejam, podendo ultrapassar obstáculos preexistentes
ou que condicionam ou ainda que restrinjam a liberdade de escolha. O que pretende Sen é
mostrar como desenvolvimento pode ser alcançado à medida que os indivíduos possuem a
liberdade e a capacidade de escolha (diante de um leque de oportunidades) para alcançarem os
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fins que desejam/almejam. Segundo Kühn (2003), com a abordagem das capacitações torna-se
possível avaliar a liberdade das pessoas pela percepção em relação às realizações ou aos
“funcionamentos”.
Desta forma observa-se que, conforme Sen, a realização de uma pessoa pode
acontecer sob o vetor dos funcionamentos (o conjunto deles) inter-relacionados. Estes
funcionamentos podem ser, por exemplo, estar bem nutrido, livre de doenças, ter boa saúde, até
realizações mais complexas como ter respeito próprio, ser feliz, fazer parte da vida da
comunidade, etc. “A asserção é de que os funcionamentos são consecutivos do ‘estado’ [being]
de uma pessoa, e uma avaliação do bem-estar tem de assumir a forma de uma apreciação desses
elementos constituintes.” (SEN, 2008, p.79).
Alguns autores procuram fazer a distinção usando os conceitos de meios e fins do
desenvolvimento, na qual os meios referem-se ao conjunto de combinações de bens ou
mercadorias que cada pessoa possui. Já os “intitulamentos” representam os meios para atingir
determinados fins, as condições para a realização de escolhas, sendo estabelecidos por
ordenamentos legais, políticos e econômicos (KAGEYAMA, 2008; WAQUIL, et.al., 2007). Os
funcionamentos (efeitos) por sua vez, remetem às realizações, às reais oportunidades de escolha
de possíveis estilos de vida - referem-se às varias coisas que uma pessoa faz ou é.
Em Desigualdade Reexaminada (2008), Sen descreve que a noção de
capacitação está intimamente ligada aos funcionamentos, uma vez que ela é resultado das várias
combinações desses funcionamentos, refletindo então na liberdade que uma pessoa tem para
levar a vida da forma que deseja. (SEN, 2001; KAGEYAMA, 2008). Com base em Sen (2001 e
2008) e Selene Herculano (1998) afirma-se que a qualidade de vida pode ser avaliada pela
capacitação para alcançar as funcionalidades, como estar bem nutrido, ter saúde, moradia
adequada, bem como integração social e autorrespeito, possibilitando a melhoria da qualidade
de vida. Amartya Sen busca com a utilização do termo “capacitação” tecer uma análise sobre as
privações políticas e sociais dos indivíduos – se uma pessoa está livre de doenças significa que
ela pode obter vida mais longa, pode trabalhar para auferir renda, é livre para locomover-se, etc.
Contudo, a abordagem das capacitações não pode ser entendida somente pelas realizações dos
indivíduos, mas pelo conjunto de oportunidades reais das quais as pessoas dispõem para viver.
Nesse sentido, tal proposta opõe-se ao welfarismo e ao utilitarismo, os quais
notam valor somente na utilidade individual, como prazer, desejo ou felicidade. Analisar a
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vantagem individual não faz parte da teoria seniana quando esta trata das desigualdades das
sociedades atuais. Segundo Sen, o utilitarismo pode ser interessante na diferenciação de classe,
sexo, casta, etc., mas está muito aquém da ideia de capacitações como liberdade para pessoas
desprovidas realizarem funcionamentos básicos.
Portanto, para além das críticas conceituais ou metodológicas, as concepções de
Sen continuam sendo utilizadas, revistas e ampliadas para possibilitar a compreensão de como
determinada sociedade enfrenta crises de fome quando se está sob um celeiro de alimentos. Ou,
como existe falta de alimentos no meio rural? Uma interessante resposta teórica e metodológica
está na abordagem da diversificação dos meios de vida de Frank Ellis, a qual parece ser a que
mais se enquadra em análises sobre vulnerabilidade, pobreza e riscos no âmbito rural e está
intimamente ligada às concepções de Sen sobre capacitações e funcionalidades para o
desenvolvimento rural.
Segundo Schneider (2010), muitos estudiosos do desenvolvimento passaram a
rediscutir as possibilidades de traçar novos rumos para combater a pobreza e as vulnerabilidades
no meio rural, principalmente a partir das proposições de Sen com o fortalecimento das
capacidades dos indivíduos, dotando-os de recursos para que estes consigam fortalecer os meios
de vida que dispõem para executar suas atividades. Dentre os estudos dos livelihoods tem-se a
abordagem de Frank Ellis, o qual estabelece um diálogo bastante conveniente com a teoria de
Amartya Sem a fim de mostrar como as capacitações e os funcionamentos podem ser
operacionalizados em função da superação da vulnerabilidade no meio rural, melhorando a
qualidade de vida traduzindo-se em desenvolvimento.
A abordagem de Ellis foi utilizada como uma ferramenta analítica para
compreender a pobreza rural no mundo, pois tentava explicar como as pessoas faziam para
sobreviver em situações de risco, incerteza, vulnerabilidade social e econômica. (PERONDI,
2007). A correlação com Sen está em afirmar que a ampliação das capacitações destas famílias
pode ocorrer por meio da diversificação. Ou seja, quanto mais diversificada é a unidade
produtiva, maiores são as possibilidades de escolha e maiores são as estratégias que podem ser
estabelecidas para combate da vulnerabilidade. (SCHNEIDER, 2010).
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Para Ellis (2000), a criação de mecanismos/estratégias de diversificação dos meios de
vida pode contribuir de forma decisiva na operacionalização de ações para o desenvolvimento
rural, a fim de fortalecer os meios de vida dos indivíduos. Estas ações podem ser caracterizadas,
por exemplo, pela melhor distribuição de renda (tanto entre as famílias, como entre os membros
de cada família – homens e mulheres), diversificação das fontes de rendimentos, aumento da
produtividade com uso de rendas não agrícolas, conservação do meio ambiente frente à
necessidade da não superexploração do solo e por maior segurança em relação aos efeitos das
oscilações dos mercados.
Conforme Schneider (2010), a abordagem de Frank Ellis parte da diversificação
dos ativos disponíveis dados pelo conjunto de capitais natural, físico, humano, social, financeiro
para a construção de um portfólio de atividades diversificadas, as quais podem estar
relacionadas às atividades agrícolas ou não-agrícolas, dentro ou fora da propriedade. Em “Rural
Livelihoods and Diversity in Developing Countries” Ellis traz um diagrama para análise dos meios
de vida (p.30): dado uma plataforma de ativos (capitais), estes se traduzem num framework de
atividades de renda que variam de acordo com os contextos sociais, políticos, econômicos, em
situações distintas e que podem tornar-se vulneráveis ou podem estimular a transformação. O
resultado destas iniciativas ou estagnações são as estratégias dos meios de vida que geram ou
não melhoria de qualidade de vida e desenvolvimento rural.
Segundo Ellis, os elementos determinantes da diversificação dos meios de vida
rural variam em função das condições climáticas ou socioeconômicas que se apresentam por
meio da sazonalidade, dos riscos, da vulnerabilidade, das migrações, dos efeitos do mercado de
trabalho, do aceso ao crédito, etc. Já os efeitos do processo de diversificação em si expressam-se
na das atividades e dos rendimentos, no desenvolvimento, podem resultar em melhoria da
qualidade de vida, dos bens materiais, diminuição da vulnerabilidade, da insegurança alimentar,
etc.
Nesse sentido, a ferramenta metodológica proposta por Ellis torna-se um
referencial para operacionalizar a teoria das capacitações de Amartya Sen, em cenários de
pobreza e vulnerabilidade, em estudos sobre desenvolvimento no rural. Ainda, a proposta de Ellis
traz importantes elementos que corroboram com a possibilidade de construção de indicadores
para “medir” qualidade de vida, como superação das vulnerabilidades em prol do
desenvolvimento.
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Acredita-se aqui que a pontuação de indicadores mais específicos da realidade
pareça ser a saída mais eloquente para a utilização da abordagem das capacitações para
entender qualidade de vida no meio rural. Assim, partindo das análises sobre desenvolvimento de
Amartya Sen e do que Frank Ellis traz sobre a diversificação dos meios de vida, busca-se mostrar
como estas duas abordagens servem de suporte teórico à construção de indicadores objetivos e
subjetivos, multidimensionais, que possibilitem estudos sobre desenvolvimento como melhoria de
qualidade de vida no meio rural.
3. Desenvolvimento e Qualidade de Vida (QV)
Como saber sobre a prosperidade de uma nação? Sobre o desenvolvimento e a qualidade
de vida de sua população? Quais seriam os melhores critérios para tal análise? Parece-nos
possível dizer que as abordagens das capacitações e dos meios de vida trazem elementos
fundamentais na formulação do conhecimento para responder a estas questões. Especialmente a
partir dos anos de 1990 tem-se o expoente destas novas formas de pensar “graus” de
desenvolvimento na elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) proposto por
Amartya Sen e fruto da abordagem das capacitações. Mesmo com tamanho reconhecimento, tal
índice apresentou limitações e, desde então,vem sofrendo adaptações para uma aplicação mais
condizente com cada realidade estudada. Assim, destacam-se análises alternativas, que
tentaram estudar realidades menores, mas de forma mais incisiva, reforçando a necessidade da
multidimensionalidade nos trabalhos sobre QV.
La Calidad de Vida” de Sen e Nussbaum (1996) traz questionamentos sobre quais seriam
os critérios verdadeiramente importantes, descrevendo que mais do que saber sobre saúde,
educação, recursos financeiros e outros indicadores, também é preciso entender de que forma os
indivíduos permitem-se imaginar, sentir emoções, relacionar-se com outras pessoas dentro e fora
de seu contexto. O que os autores enfatizam é a necessidade não só de critérios objetivos, mas
também dos subjetivos, que permitam compreender o que as pessoas podem ser e fazer nas suas
vidas – suas capacitações e funcionamentos. Nesta obra, dois trabalhos destacam-se como as
primeiras referências práticas sobre estudos de desenvolvimento e qualidade de vida. Erik Allardt
(1996), na Escandinávia, e Robert Erikson (1996), na Suécia, mostraram técnicas de medição de
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QV que foram usadas em determinados contextos europeus e que enfatizam o enfoque das
capacitações, utilizando dimensões objetivas e subjetivas da vida dos indivíduos.
Erik Allardt concentra seu trabalho na busca da satisfação das necessidades e não na
satisfação dos recursos. Segundo autor os indicadores devem ser elencados a partir de três
dimensões: (1) “Ter” referindo-se aos recursos econômicos; condições de habitação; emprego;
condições físicas de trabalho; saúde; educação. (2) “Amar” como necessidade de relacionar-se
com outras pessoas e formar identidades sociais; contatos com a comunidade local; apego com a
família e os parentes; amizade; reações e contatos com companheiros membros de associações e
organizações; relações com companheiros de trabalho. (3) “Ser” como necessidade de
integração com a sociedade, viver em harmonia com a natureza; participação nas decisões e
atividades coletivas que influenciam a vida dos indivíduos; atividades políticas, de lazer; vida
profissional significativa. (ALLERDT, 1996, p.128, 129, 130).
Robert Erikson (1996), analisando a desigualdade no contexto sueco, afirma que avaliar
qualidade de vida significa entender acerca do domínio que os indivíduos têm sobre os recursos
em forma de dinheiro, posses, conhecimento, energia mental e física; o domínio nas relações
sociais, segurança, dentre outras capacidades, pelas quais podem controlar e dirigir de forma
consciente suas condições de vida. O elemento central desta concepção está no domínio dos
recursos pelo indivíduo e como este controla os meios que possui para conduzir suas condições de
vida. A ênfase em diferentes componentes do bem-estar torna-se importante para analisar o nível
de vida de uma pessoa ou de um grupo. Para Erikson, os indivíduos devem saber sobre suas
condições econômicas, se elas são suficientes ou não; ter informação sobre saúde; conhecimento
e habilidades; ter relações sociais, ter mínimas condições de trabalho. A noção (percepção) da
própria QV é essencial nesta análise.
A importância destes dois autores está na construção de análises sobre bem-estar a
partir da abordagem de Amartya Sen, quanto aos funcionamentos e capacitações. Tanto para
Allerdt quanto para Erikson, as dimensões para a compreensão de bem-estar passam por
elementos que captam a realidade individual e coletiva, o que os indivíduos têm e como eles
operam tais recursos nos contextos em que vivem e como conseguem utilizá-los em busca da
melhoria de sua qualidade de vida e, consequentemente, o desenvolvimento. Mesmo que os
exemplos trazidos pelos autores tratem da realidade europeia, demonstra-se a possibilidade de
operacionalização dos conceitos de Amartya Sen.
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No Brasil, nos últimos anos, destacam-se os escritos de Selene Herculano (1998), a qual
segue a linha de Sen em relação ao conceito de qualidade de vida como um somatório de
recursos e condições individuais e coletivas, como os meios de vida que os indivíduos possuem
para realizarem o que desejam. Para a autora, a avaliação/mensuração de qualidade de vida se
expressa em: 1) exame dos recursos disponíveis, da capacidade efetiva de satisfação das
necessidades (por exemplo, analisar condições de saúde pela quantidade de leitos em hospitais,
analisar condições ambientais pela potabilidade da água, emissão de poluentes, etc; e 2) avaliar
as necessidades pelos graus de satisfação e patamares desejados, buscando mensurar sobre
qualidade de vida em relação ao que se deseja, em relação aos graus de prazer e felicidade ou até
mesmo por julgamentos do pesquisador sobre o que torna a vida melhor. (HERCULANO et al.,
2000).
Operacionalmente, Herculano propõe que qualidade de vida seja a soma das condições
econômicas, políticas, ambientais, científicas, culturais que estão ao alcance dos indivíduos e
que, a partir destes recursos, seja possível a realização dos desejos. Ou seja, a noção de QV não
está somente naquilo que as pessoas podem adquirir, mas no que elas entendem e equacionam
como melhoria de sua vida. Conforme Herculano, deve-se levar em conta a definição do que é
qualidade de vida, se esta definição variará em razão das diferenças individuais, sociais e
culturais. Assim, tem-se a importância da identificação das dimensões elencadas para estudos
sobre superação das vulnerabilidades em cada contexto social – os indicadores de qualidade de
vida no meio rural.
4. Indicadores de Qualidade de Vida e Desenvolvimento – em busca de referências práticas?
Quando se pretende elencar indicadores que objetivam avaliar condições, níveis ou
qualidade de vida dos indivíduos percebe-se como estas questões são recentes na literatura da
sociologia do desenvolvimento. Ao longo dos últimos vinte anos é possível perceber uma evolução
nas abordagens sobre qualidade de vida. Desde a década de 1990, em nível internacional, o IDH
continua norteando boa parte das análises comparativas sobre desenvolvimento humano,
contudo, por ser uma média, o índice acaba sofrendo críticas quanto a sua unidade de análise,
metodologia de agregação e até mesmo pela escolha das variáveis.
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Em função destas críticas surgem propostas de indicadores alternativos que buscam
preencher as lacunas deixadas pelo IDH, focando principalmente uma abordagem
multidimensional. Uma destas novas propostas multidimensionais é o Índice de Sustentabilidade
Urbana que traz aspectos ligados à qualidade do sistema ambiental – qualidade da água,
qualidade de vida em relação a habitação, conforto ambiental, condições de vida e renda,
redução da pressão antrópica – redução da pressão urbana, industrial, agropecuária e
silvicultura, capacidade político-institucional, com relação à autonomia político-administrativa,
políticas ambientais, intervenção da sociedade civil. (“Relatório com a proposição do Índice de
Condições de Vida” – Ely José de Mattos, 2007 – ICV Territórios Rurais).
Segundo Mattos, alguns trabalhos buscaram compreender a multidimensionalidade de
um indicador, outros tencionaram diferenciar condições de vida do IDH articulando saúde,
educação, transporte, alimentação, habitação, meio ambiente, trabalho, etc., a fim de alcançar
resultados mais heterogêneos e menos medianos sobre condições de vida. Pode-se dizer que um
trabalho expoente nesse sentido foi o desenvolvido pela Fundação João Pinheiro (1998)
juntamente com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que se prestou a construir um
ICV com um número de indicadores maior que o usado no IDH – Municipal, adotando como
proposta metodológica pesos diferenciados para cada dimensão, conforme importância de cada
indicador.
Quanto aos estudos sobre qualidade de vida no meio rural, destacam-se as análises de
Kageyama (1996, 2003, 2006) a qual, ao fazer uma tipologia dos municípios paulistas, usou
indicadores sociodemográficos, trazendo como dimensões blocos temáticos sobre infraestrutura,
acesso a bens, população, renda, mercado de trabalho e inserção urbana (KAGEYAMA; LEONE,
1996). No ano de 2003, baseada em microdados do PNADs de 1992 e 2001 e Censos
Demográficos de 1991 e 2000, Kageyama mostra uma análise da diversificação das rendas dos
domicílios agrícolas no Brasil entre 1992 e 2001 e a incidência da pobreza, levando em
consideração: a) o rendimento de todos os trabalhos, o rendimento do trabalho principal, o
rendimento do trabalho agrícola e não-agrícola, rendas previdenciárias e outras rendas; b) nível
de vida em relação ao acesso a bens e serviços. Já em 2006, juntamente com Hoffmann, com
base nos dados do IBGE e PNUD de 1992 a 2004, a autora aborda a pobreza no Brasil buscando
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analisar dimensões como renda, bens não monetários (presença de água canalizada, existência
de banheiro ou sanitário e existência de luz elétrica).
A exemplificação destes trabalhos mostra que a escolha de indicadores para estudos
sobre QV devem ser bastante heterogêneos, multidimensionais e relacionados com cada
realidade. Porém, os problemas metodológicos para definir quais dimensões usar, quais devem
ser consideradas, qual o peso a ser atribuído a cada uma ainda está muito longe de ser um
consenso, mas tais decisões devem ir ao encontro do contexto que está sendo analisado e ao tipo
de estudo que está se fazendo.
Nesse sentido, a fim de estabelecer uma relação com os meios e fins do desenvolvimento
(conforme Sen), utilizando a metodologia dos capitais (de Frank Ellis) e de acordo com as
concepções sobre indicadores multidimensionais de qualidade de vida e medidas de bem-estar
buscou-se construir teoricamente um quadro com elementos que apresentem uma possibilidade
de “medir” qualidade de vida e desenvolvimento humano. No entanto, estes elementos não
encerram a análise per si, uma vez que adaptações podem ser realizadas de acordo com
características locais (meio rural). O quadro abaixo procura equacionar essas noções a partir das
concepções de indicadores objetivos e subjetivos como subsídio para pesquisas que busquem
examinar desenvolvimento como sinônimo de melhoria de qualidade de vida e superação das
vulnerabilidades.
Indicadores Objetivos e Subjetivos
Dimensões
daCapitais (Ellis) Indicadores Objetivos
Indicadores Subjetivos
Vida
– percepção
Meios de transporte; segurança deSentimentos/sensaçõ
Necessidades
Capital Físico
vida e de propriedade; tecnologia;
Materiais
es
subjetivas
de
satisfação/insatisfaçã
o com tais condições.
Condições
Capital
econômicos
Financeiro
propriedade).
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financeiras:
(renda
e
recursos
riqueza,
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Medidas
objetivas
de
relaçõesSentimentos
interpessoais:
Necessidades
Capital Social
Sociais
subjetivos sobre as
Família, recreação e cultura; recursosrelações
sociais
—
políticos (interesse e participação),Felicidade-infelicidade
participação e interação comunitária.
Sentimentos
Capital Humano Condições de saúde e acesso asubjetivos
Necessidades de
cuidados
médicos;
Crescimento
condições de trabalho e emprego
de
educação;alienação,
Pessoal
crescimento pessoal,
meio
ambiente,
cuidados com saúde,
infraestrutura
e
condições de trabalho.
Condições ambientais; conservação da
Capital Natural fauna, flora, solo, nascentes e cursos
d’água.
Figura 1: Quadro Geral com os Indicadores Objetivos e Subjetivos
O presente quadro localiza as variáveis objetivas e subjetivas considerando as descrições
de Frank Ellis sobre os capitais (físico, financeiro, humano, social, natural) como meios para o
desenvolvimento e a melhoria de QV como um fim. Estes mesmos capitais podem ser percebidos
de forma subjetiva, analisando a percepção dos indivíduos sobre a realidade em que vivem, sobre
suas condições de vida.
Portanto, mesmo que este modelo ainda tenha sido pouco explorado empiricamente e que
as abordagens apresentadas neste trabalho sejam passíveis de longas discussões, tem-se uma
possibilidade de compreensão de qualidade de vida no meio rural pela superação das
vulnerabilidades e para além da caracterização dos indivíduos quanto “à linha de pobreza”. Temse aí um possível caminho para novas pesquisas e novos estudos na sociologia do
desenvolvimento.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visão do desenvolvimentismo como sinônimo de crescimento ainda é hegemônica.
Trabalhos e políticas construídas sob o viés do desenvolvimentismo deixam muitas perguntas
sobre o desenvolvimento sem resposta. Existem lacunas nesta perspectiva por não responder, por
exemplo, como nações que cresceram economicamente de forma significativa continuam
apresentando patamares elevados de pobreza e desigualdades. Estes estudos também não
explicaram como países celeiros de alimentos conseguem ter fome e miséria no meio rural. Não
explicaram como é possível concluir sobre patamares de qualidade de vida pela análise da renda
dos indivíduos.
Para responder algumas destas inquietações, este trabalho buscou apresentar aspectos
da sociologia que permita analisar o desenvolvimento por outro olhar, entendendo, sim, as
desigualdades e vulnerabilidades como antítese a este processo de desenvolvimento desejado.
No intuito de ir mais além que ortodoxias teóricas e metodológicas, coloca-se o desafio não só
para as Ciências Sociais, mas para as diversas áreas do conhecimento e até mesmo para os
formuladores de políticas de redução das vulnerabilidades. Mas este enfrentamento conceitual
ainda é algo bastante novo e pouco explorado pelos estudiosos do desenvolvimento.
Buscando enfrentar este desafio, parece-nos que os trabalhos de Amartya Sen tem se
tornado uma excelente referência para ultrapassar teorias mais conservadoras do
desenvolvimento. Portanto, o objetivo deste trabalho foi justamente descrever como a abordagem
de Sen sobre as capacitações e os funcionamentos consegue explicar questões do alcance do
bem-estar como forma de desenvolvimento. Ainda, com o objetivo de tratar desse
desenvolvimento no meio rural, buscou-se na abordagem dos livelihoods de Frank Ellis como as
estratégias e ações para a diversificação dos meios de vida podem ser traduzidas em bem-estar.
Estas duas abordagens buscam, essencialmente, entender o desenvolvimento de forma
diferente daquela que se utiliza de indicadores econômicos para classificações quanto à linha de
pobreza ou renda per capita. Mostra-se nesta relação entre Ellis e Sen como os funcionamentos e
as capacitações refletem os capitais (ativos) que os indivíduos possuem para levarem a vida
como desejam. Por exemplo, se a necessidade de intervenção está no “capital ambiental”,
objetiva-se a criação de estratégias que melhorem e até mesmo estratégias informativas de
reconstrução da percepção sobre o uso e preservação do meio ambiente, das nascentes, dos
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animais, dos solos, etc. Se o que se precisa em determinada propriedade ou para um conjunto de
produtores é promulgação de melhorias das condições financeiras, é preciso elaborar canais que
facilitem o acesso ao crédito rural.
Estes são apenas exemplos que descrevem teoricamente como estas abordagens
permitem pensar desenvolvimento para além da questão da renda associada à tecnologia e
produção, focalizando outros aspectos relacionados aos meios de vida dos agricultores tais como
os naturais, humanos, sociais e físicos. As questões sobre as “medidas” do desenvolvimento e da
qualidade de vida têm sido discutidas em diferentes áreas do conhecimento, mas não se pode
dizer que existe uma receita, uma maneira ideal de conceitualizar e mensurar estas perspectivas.
A literatura sobre capacitações, meios de vida, desenvolvimento e qualidade de vida é
bastante extensa e de maneira alguma está esgotada neste trabalho. O que se buscou com
este ensaio, portanto, foi demonstrar a importância destes conceitos como referências aos
estudos sobre bem-estar e desenvolvimento no contexto rural, a partir de uma visão
multidimensional, objetiva e subjetiva da vida dessas populações.
A ênfase nas capacitações e na diversificação dos meios de vida, juntamente com os
debates apresentados sobre indicadores de qualidade de vida, está na iniciativa de compreender
o desenvolvimento em suas várias dimensões: econômica, física, humana, social, ambiental, etc.
É exatamente essa multidimensionalidade de indicadores objetivos e subjetivos que talvez
consiga trazer respostas mais concretas às inquietações atuais e às consequências
“impremeditadas” do desenvolvimento. Compreender os riscos sociais, as incertezas, a
superação da vulnerabilidade como sinônimo de melhoria de qualidade de vida e desenvolvimento
tornou-se referência para a construção de um quadro de indicadores objetivos e subjetivos, os
quais genericamente postulam a realização de possíveis pesquisas e análises de dados sobre
“graus” de qualidade de vida a partir da superação das vulnerabilidades do campo como
desenvolvimento rural.
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Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento Qualidade de