UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ CARLOS ROBERTO DE C. JATAHY O MINISTÉRIO PÚBLICO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO : PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS CONTEMPORÂNEAS DE ATUAÇÃO EM DEFESA DA SOCIEDADE. Rio de Janeiro 2006 CARLOS ROBERTO DE C. JATAHY O MINISTÉRIO PÚBLICO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS CONTEMPORÂNEAS DE ATUAÇÃO EM DEFESA DA SOCIEDADE. Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá. Orientador: Prof. Dr. Lenio Luiz Streck Rio de Janeiro 2006 VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA A dissertação O Ministério Público no Estado Democrático de Direito: Perspectivas Constitucionais Contemporâneas de Atuação em Defesa da Sociedade elaborada por CARLOS ROBERTO DE CASTRO JATAHY e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM DIREITO Rio de Janeiro, de de 2006 BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Prof. Dr. Lenio Luiz Streck Presidente Universidade Estácio de Sá _________________________________________ Prof. Dr. Universidade _________________________________________ Prof. Dr. Universidade A Celeste e Marina, pelas inúmeras horas de convívio subtraídas. AGRADECIMEN TOS Agradeço ao Professor Dr. Lenio Luiz Streck, colega do Ministério Público gaúcho, pela orientação neste trabalho, com comentários, críticas e sugestões para a execução e aprimoramento da pesquisa realizada. Seus profundos conhecimentos jurídicos, apoio incondicionado e interesse pelas questões contemporâneas do Ministério Público, durante todo o período do mestrado e, principalmente, por ocasião da elaboração desta dissertação, foram inestimáveis para a conclusão do tema. Agradeço também ao Professor José dos Santos Carvalho Filho, dileto amigo, que com elegância e paciência, procedeu a leitura e revisão do texto, oferecendo, como de hábito, pertinentes comentários sobre a matéria. Finalmente, não poderia deixar de agradecer a Dra. Ana Claudia Teixeira de Melo, pelo inestimável auxílio para a adequação da presente dissertação aos padrões da ABNT. RESUMO A pesquisa volta-se à análise do Ministério Público no Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988 e alguns obstáculos contemporâneos ao pleno exercício de suas funções institucionais. Demonstra-se a evolução histórica da instituição e a mudança paradigmática (de defensora dos interesses do Soberano até a de indutora da transformação social) em seu perfil, para a compreensão dos valores e princípios que norteiam sua atuação. Aborda-se, para a compreensão desta mudança de paradigma, a evolução do Estado e suas relação com a sociedade, desde o modelo liberal, passando pela instituição do Estado Social e chegando-se ao Estado Democrático de Direito, com seu potencial transformador da realidade. Desenvolve-se análise da legislação comparada, para que melhor se aquilate a posição topográfica do Ministério Público em outros ordenamentos jurídicos, comparando-os com o modelo adotado no Brasil. Critica-se as interpretações restritivas de caráter contemporâneo, que não compreendendo as exatas dimensões do Ministério Público neste novo ordenamento constitucional, obstaculizam sua atuação institucional, dificultando o exercício de seu mister. Enfatiza-se a legitimidade da atuação do Ministério Público na defesa da sociedade, no que concerne a Investigação Direta Criminal; a utilização da ação civil pública para o controle difuso da inconstitucionalidade das leis; o combate à improbidade administrativa e a proteção do contribuinte. Evidencia-se o perfil constitucional conferido ao Ministério Público após 1988 e a conseqüente relevância da atividade institucional na consolidação da cidadania no Brasil. Fomenta-se, por fim, o debate teórico sobre os rumos da instituição e a correlata responsabilidade social do Parquet no Estado Democrático de Direito. Palavras-Chave: Ministério Público, Estado Democrático de Direito, Constituição Federal de 1988, legitimidade. ABSTRACT The survey is determined to scrutinize Brazilian Public Prosecution Service´s accomplishments for the Democratic State of Law instituted by the 1988´s Brazilian Constitution as well as certain present-day obstructions towards the institutional roles´ perfect practice of law. Initially, the study portrays the institution’s historical evolution plus its paradigmatic movements (since as a interests sovereign’s defender till as a social makeover’s inductor). The topics are analyzed in its profile seeking the values and the principles´ understanding, which guides the institute’s achievements. Also, objecting an upper conception of paradigm’s transformation, it is pointed up the State’s progress along with its relation towards the society. The issue regards since the liberal patterns, followed by the Social State’s institution, and finally the Democratic State of law, considering its high potential to alter reality. Subsequently, it is reported an analysis consisting of preliminarily contrasting different legislations in order to improve the topography’s examine on the subject of the Public Prosecution Service’s location in another Legal System, matching it up to the standard adopted in Brazil. Furthermore, it is underlined an assessment for contemporary features´ restrictive interpretations, once it denotes an hindrance to the institutional attainment, for that it struggles its mister practice of law given that it misunderstands the Public Prosecution Service’s accurate scopes within a new Constitutional System. Next and as final point, the essay culminates stressing the legitimacy of the Public Prosecution Service’s behavior observing the defense of the society. Thus, the issue sketches the Direct Criminal Inquiry; the usage of a criminal and civil action to the diffuse control of law’s unconstitutionality; the legal battle against administrative improbity; and also the contributor’s safeguard question. Ultimately, the dissertation highlights the constitutional profile conferred to the Public Prosecution Service after the advent of the 1988´s Republic Constitution and the consequent relevance of the institute’s performance within the Brazilian citizenship consolidation, what encourages the theoretical discuss about the institution’s routes and the co-related “Parquet” ´s social liability in the Democratic State of law. Key-words: Public Prosecution Service, Democratic State of law, Republican Constitution, legitimacy SUMÁRIO INTRODUÇÃO: ..................................................................................................................................................... 22 PARTE I: O MINISTÉRIO PÚBLICO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. .......................... 26 CAPÍTULO 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA FORMAÇÃO HISTÓRICA: DE DEFENSOR DO REI A DEFENSOR DA SOCIEDADE................................................................................................................. 26 1. A ORIGEM HISTÓRICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO:........................................................................... 26 1. 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO NA ANTIGUIDADE: ............................................................................................. 27 1.2. AS ORIGENS PRÓXIMAS DA INSTITUIÇÃO:................................................................................................. 31 1.2.1. As Origens Francesas ................................................................................................................... 32 1.2.2. As Raízes Portuguesas .................................................................................................................. 36 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO IMPÉRIO ................................................................................................... 39 2.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1824 ......................................................................................................................... 40 3. O PERÍODO REPUBLICANO......................................................................................................................... 42 3.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1891 ......................................................................................................................... 43 3.2. A CONSTITUIÇÃO DE 1934 ......................................................................................................................... 43 3.3. A CONSTITUIÇÃO DE 1937 ......................................................................................................................... 44 3.4. A CONSTITUIÇÃO DE 1946 ......................................................................................................................... 46 3.5. A CONSTITUIÇÃO DE 1967 ......................................................................................................................... 46 3.6. A EMENDA CONSTITUCIONAL 01/69 ......................................................................................................... 47 3.7. A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA: PREPARATIVOS PARA O NOVO MINISTÉRIO PÚBLICO .............................. 48 3.8. A CARTA DE CURITIBA. OS ANTECEDENTES DO REGIME CONSTITUCIONAL DE 1988 ............................... 49 3.9. OS TRABALHOS DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE ................................................................... 50 4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: O AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ................................................................................................................................................................... 51 4.1. O NOVO PERFIL DO MINISTÉRIO PÚBLICO.................................................................................................. 51 4.2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O NOVO MINISTÉRIO PÚBLICO ........................................................................ 54 4.2.1. O Ministério Público “ombudsman”............................................................................................ 56 CAPÍTULO 2. ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.......................................................................................................................... 59 1. O ESTADO MODERNO: DO ABSOLUTISMO AO ESTADO DE DIREITO ......................................... 59 2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO DE DIREITO ......................................................................... 63 2.1. O ESTADO LIBERAL DE DIREITO ................................................................................................................ 63 2.2. O ESTADO SOCIAL DE DIREITO .................................................................................................................. 71 2.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................................................................... 76 CAPÍTULO 3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O SEU POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: APONTAMENTOS DE LEGISLAÇÃO COMPARADA .... 82 1. APONTAMENTOS NA LEGISLAÇÃO COMPARADA ACERCA DA POSIÇÃO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO: ....................................................................................... 87 1.1. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO INTEGRADO AO PODER JUDICIÁRIO ............................................. 87 1.1.1. Espanha:....................................................................................................................................... 88 1.1.2. Itália: ........................................................................................................................................ 91 1.2. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO DO PODER EXECUTIVO ................................................................ 98 1.2.1. França: ......................................................................................................................................... 99 1.2.2. Alemanha:............................................................................................................................... 102 1.2.3. Estados Unidos da América:....................................................................................................... 105 1.3. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO VINCULADO AO PARLAMENTO ................................................... 107 1.3.1. Antiga União Soviética (URSS): ................................................................................................ 109 1.3.3. Cuba: ........................................................................................................................................... 111 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO DE EXTRAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ESTADO, ESSENCIAL PARA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA: O AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ................................................................................................................................................................. 113 PARTE II. OBSTÁCULOS CONTEMPORÂNEOS AO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO: PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS ........................................................... 127 CAPÍTULO 1. A INVESTIGAÇÃO DIRETA DO MINISTÉRIO PÚBLICO...................................... 127 1. A DECISÃO DO STF NO JULGAMENTO DO RHC N.º 81326:............................................................. 130 1.1. A INOPEROSIDADE DO MÉTODO HISTÓRICO APLICADO:......................................................................... 131 1.2. A INEXISTENTE EXCLUSIVIDADE DA POLÍCIA JUDICIÁRIA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL:.................... 134 2. A PREVISÃO DO PODER INVESTIGATÓRIO MINISTERIAL: ......................................................... 138 3. O CONTROLE DE LEGALIDADE DOS ATOS INVESTIGATÓRIOS MINISTERIAIS: .................. 143 3.1. A TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS:...................................................................................................... 145 CAPÍTULO 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA: UMA HISTÓRIA INACABADA............................................. 153 1. O CONTROLE DIFUSO E A AÇÃO CIVIL PÚBLICA: FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO .................................................................................................................................... 155 CAPÍTULO 3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DA PROBIDADE ADMINISTRATIVA: A ATUALIDADE DO CASO MADISON VS. MARBURY E A LEI 10.628/02.............................................. 165 1. A LEI 10.628/02 E A TENTATIVA (FRUSTRADA) DE CERCEAR A PLENA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO:................................................................................................................................... 169 2. A REAÇÃO INSTITUCIONAL E A ORIENTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FLUMINENSE: 173 CAPÍTULO 4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DEFESA DO CONTRIBUINTE: ATRIBUIÇÃO INSTITUCIONAL DERROTADA PELA JURISPRUDÊNCIA.................................................................... 178 1. POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL ACERCA DO TEMA ................... 180 2. A DECISÃO DO STF NO RE 195.056: O PRECEDENTE DA ILEGITIMIDADE.............................. 182 3. OS EQUÍVOCOS NA DECISÃO PARADIGMÁTICA:............................................................................ 184 3.1. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO: ......................................................................................... 184 3.2. DA RELEVÂNCIA SOCIAL E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES DOS CONTRIBUINTES .................. 190 3.3. A DECISÃO DO STF NO CASO DAS MENSALIDADES ESCOLARES, DE MANIFESTA RELEVÂNCIA SOCIAL.. 195 3.4. A INCONSTITUCIONALIDADE DA MP N° 2.180-35/2001 .......................................................................... 196 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ............................................................................................................................. 200 BIBLIOGRAFIA: ................................................................................................................................................. 214 INTRODUÇÃO: Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses indisponíveis da sociedade (art. 127). O Ministério Público, face à natureza de seu perfil e de suas funções institucionais típicas, deve, assim, buscar a justiça social, fundado nos princípios fundamentais da República (art. 1º, II e III, da Constituição Federal), tais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana, a fim de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I), objetivo maior da nação brasileira. Portanto, deve atuar como um verdadeiro agente de transformação sócial, lutando pela implementação dos direitos e garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito instituído pela nova ordem jurídico-constitucional. A conjugação dos arts. 127, caput, e 129, II, III e IX, do texto constitucional conferem ao Ministério Público a legitimidade para a tutela de interesses sociais indisponíveis, por meio de inquéritos e ações civis públicas (Lei 7.347/85), além de outros procedimentos investigatórios destinados ao exercício de suas funções institucionais, o que representa um avanço substancial no ordenamento jurídico, já que privilegia a proteção coletiva da sociedade, com maior espectro de beneficiários da tutela jurisdicional, em detrimento das demandas individuais. Por outro lado, sua atuação não deve se limitar apenas à propositura das demandas coletivas perante o Poder Judiciário. O Ministério Público deve, cada vez mais, assumir seu papel de indutor do processo de evolução social, buscando soluções criativas e ágeis para as mazelas que afligem a coletividade cuja tutela lhe foi outorgada pela Constituição da República. Apesar disso, inúmeras decisões judiciais e alterações legislativas pontuais na Legislação pátria - além de comentários doutrinários – vêm tentando diminuir o campo de legitimidade do Parquet para a tutela de tais interesses, prejudicando sobremaneira a efetividade de sua atuação, em verdadeira afronta aos princípios constitucionais relativos à Instituição. É neste contexto que se insere a presente dissertação, buscando analisar, pelo prisma constitucional e infra-constitucional, o papel do Ministério Público na defesa dos interesses meta-individuais indisponíveis, considerando tratar-se de função institucional que lhe foi deferida pela Constituição da República, como forma de ampliar o acesso da sociedade à Justiça. Busca-se também contribuir para a efetividade da atuação do Ministério Público no âmbito do Estado Democrático de Direito, à luz da doutrina e da legislação vigentes. Justifica-se a escolha do tema, já que, decorridos dezoito anos da promulgação da Constituição de 1988, muitos dos direitos e garantias nela assegurados se encontram ainda sem a devida proteção. Apesar das inovações trazidas pelo Constituinte, a atuação do Ministério Público como agente de transformação social tem encontrado entraves para seu desenvolvimento pleno e eficaz. Uma das causas para tais percalços é a forma como parte da doutrina e, notadamente, a jurisprudência, vêm tratando o tema, restringindo a legitimidade para a atuação do Ministério Público em causas que este repute de sua atribuição, face à nova ordem constitucional vigente. Nessa perspectiva, objetiva-se demonstrar, sob a ótica constitucional, a legitimidade do Ministério Público para a tutela de tais interesses, contribuindo-se, de igual sorte, para reforçar a Linha de Pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do Processo do curso de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá. A dissertação desenvolve-se em duas partes, subdivididas em sete capítulos. Na primeira parte, o capítulo primeiro aborda a origem e a evolução histórica do Ministério Público, com suas bases na França, onde foi criado para a defesa dos interesses do monarca, até os dias atuais, como defensor da sociedade no Estado Democrático de Direito. No capítulo segundo, analisa-se a evolução do Estado Moderno, desde sua instituição, com ênfase na concepção liberal, passando pelo Estado Social e atingindo o Estado Democrático de Direito, com suas nuances e características. No terceiro capítulo, procura-se traçar o desenho institucional do Ministério Público no Estado Democrático de Direito, efetuando apontamentos de legislação comparada acerca de sua posição constitucional dentro dos poderes do Estado, com ênfase na perspectiva de que, para uma efetiva atuação na defesa da coletividade, privilegiando sua verdadeira vocação social, deve a Instituição relacionar-se com os três poderes com independência e sem qualquer vínculo de subordinação. Na segunda parte da dissertação são apontados alguns obstáculos que se apresentam à atuação contemporânea do Ministério Público, analisando-se, pontualmente, as decisões judiciais e comentários doutrinários que procuram cercear suas atribuições na defesa da sociedade, especialmente no que concerne à Investigação Direta Criminal (Capítulo 1); a utilização da ação civil pública para o controle difuso da inconstitucionalidade das leis (Capítulo 2); o combate à improbidade administrativa (Capítulo 3); e a legitimidade para a proteção do contribuinte (Capítulo 4). Finalmente, em considerações finais, procura-se demonstrar que a Constituição de 1988 reservou ao Ministério Público a verdadeira condição de defensor da sociedade e agente de transformação social, sendo as interpretações restritivas à sua atuação fundadas em perspectivas equivocadas da vontade do constituinte ao redesenhar a Instituição no Estado Democrático de Direito instituído no Brasil após 5 de outubro de 1988. PARTE I: O MINISTÉRIO PÚBLICO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. CAPÍTULO 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA FORMAÇÃO HISTÓRICA: DE DEFENSOR DO REI A DEFENSOR DA SOCIEDADE. 1. A ORIGEM HISTÓRICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO: A compreensão do papel da instituição do Ministério Público na sociedade contemporânea deve, necessariamente, levar em conta as razões históricas que permearam sua formação e seu desenvolvimento até a atualidade, bem como as perspectivas futuras para seu aprimoramento. Nesse aspecto, deve-se considerar que a história do Ministério Público está vinculada à evolução do Estado moderno e à construção do aparelho estatal, notadamente as atividades relacionadas com a prestação da Justiça. Com efeito, sendo o Ministério Público “um mecanismo político de proteção social”1, indispensável a digressão histórica para uma melhor compreensão do contexto onde a Instituição se encontra no Estado Democrático de Direito contemporâneo, seus valores e sua finalidade. 1. 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO NA ANTIGUIDADE: A tarefa de precisar a gênese do Ministério Público é árdua. Com efeito, sua origem é controvertida, divergindo a doutrina quanto à sua base remota2, havendo, entretanto, relativo consenso quanto à sua origem próxima3. A busca por raízes do Ministério Público na Antiguidade tem severos críticos, como Roberto Lyra4, que em suas pesquisas concluiu no sentido de que “os gregos e romanos não conheceram, propriamente, a instituição do Ministério Público”, apesar de existirem cargos e funções similares àquelas atualmente exercidas pela Instituição na Antiguidade5. De fato, no antigo Egito, há quatro mil anos, segundo Vellani6, havia o “Magiaí”, funcionário real do Faraó que deveria ser “a língua e os olhos do Rei”, castigando os criminosos, reprimindo os violentos e protegendo os cidadãos pacíficos; acolhendo os pedidos do homem justo; sendo o pai do órfão e o marido da viúva. Vislumbram-se nessas atividades, ainda que de maneira remota, funções que hoje são deferidas ao Ministério Público, tais como a persecução criminal (art. 129, I, da Constituição 1 SAUWEN Filho, João Francisco. Ministério Público e o Estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p 2. 2 TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 1, p. 484. 3 SAUWEN Filho, João Francisco. op cit, p 38. 4 LYRA, Roberto. Theoria e prática da promotoria pública. Rio de Janeiro: Jacintho, 1937. p. 9. 5 SALLES, Carlos Alberto. Entre a razão e a utopia: A formação histórica do Ministério Público.In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes e MACEDO Junior, Ronaldo Porto (coord.). Ministério Público II:Democracia. São Paulo: Atlas, 1999. pp. 13-14. 6 VELLANI, Mario. Il Publico Ministero nel Processo. Bologna: Zanichelli, 1965, v. 1, p. 16. da República) e a proteção dos órfãos e da família (art. 82, I e II do Código de Processo Civil) . Outros idealizam, ainda na Antiguidade, figuras similares ao atual Ministério Público nos “Éforos” de Esparta ou ainda nas figuras romanas do "advocati fisci", dos "censores" ou do "defensor civitatis"7. No que concerne à Grécia clássica, parece difícil acreditar que a Instituição pudesse ter existido, num sentido orgânico e funcional, nesse período. Isso porque a figura do acusador público não existia naquela sociedade, onde se deixava às vítimas dos crimes ou à sua família a iniciativa do processo contra os criminosos8. A acusação era então desempenhada por notáveis oradores que, movidos pelo interesse na causa ou pela paixão que o delito desencadeava no meio social, nem sempre agiam com a imparcialidade do Ministério Público da atualidade. Lecionando sobre o tema, Roberto Lyra adverte: Os oradores atenienses, constituídos em Magistratura voluntária, conferiam ao debate judiciário o mesmo caráter de pugilato intelectual, com o trágico poder de arrastar os acusadores à proscrição e ao extermínio. O juramento de acusar de boa fé e no interesse da justiça não infundia reservas reais até na prerrogativa de formar a culpa.9 No tocante às demais atribuições atualmente deferidas ao Ministério Público, é improvável que, numa democracia direta como aquela cultivada pelos gregos, pudesse vicejar a instituição ministerial. A amplitude do exercício da cidadania, o respeito aos ideais democráticos, a prática da democracia direta e a consciência dos direitos, 7 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 5a ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 42 Neste sentido, SAUWEN Filho, João Francisco. op cit., p. 18; e PAES, José Eduardo Sabo. O Ministério Público na construção do Estado Democrático de Direito. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 26. 9 LYRA, Roberto. op cit. p 10. 8 escrupulosamente garantidos aos considerados cidadãos, prescindia da existência de uma instituição para cumprir as atividades hoje confiadas ao Ministério Público.10 Não sendo despiciendo trazer à colação a peremptória afirmação de Marcel Rousselet e Jean Michel Auboin11: “La justice athénienne, comme d”alleurs toutes lês justices antiques na jamais connu lê Ministère Public.” Quanto à existência da Instituição em Roma, nova controvérsia. Estudiosos da matéria12 apontam os “procuratores Caesaris” e os “advocati fisci” como precedentes históricos do Ministério Público. Nesse sentido, parecer elaborado por João Monteiro13, destinado à Câmara dos Deputados, por ocasião da votação da Lei nº 18, de 21 de novembro de 1891, ainda sob a égide da primeira Constituição da República Republicana, assevera: A instituição do tempo do império romano denominada fiscus se apresenta como a primeira criação do Ministério Público; os advocados do fisco, criados pelo Impeador Adriano, foram os seus primeiros representantes. Também chamados de procuratores caesares, viram por tal forma crescer o código de suas atribuições, que, na frase de Savigny em sua História do Direito Romano na Idade Média, caíram afinal no ódio popular. 10 PAES, José Eduardo Sabo. op. cit. p. 27. ROUSSELET, Marcel e AUBOIN, Jean Michel. Histoire de La Justice. 5.ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1976. p.12. 12 FERREIRA, Sérgio de Andréia. Princípios Institucionais do Ministério Público. Revista do Instituto dos Advogados do Brasil, p. 9; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo:Saraiva, 1977. v.1, p 105; VELLANI, Mário. Op. cit., V. 1, p 11-12, MONTEIRO, João. Teoria do Processo Civil. 6ª ed. Rio de janeiro: Borsoi, 1956. p. 195. 13 MONTEIRO, João. op. cit., p. 195. 11 Tal assertiva é refutada por outros, como Roberto Lyra14, que, ao pesquisar o tema, focado na questão do exercício da persecução penal pelos membros da Instituição, afirma que tal função não era deferida ao Estado: Ao povo quando não o ofendido competia a iniciativa do procedimento penal e os acusadores eram um César, um Hortencio, um Catão, que, movidos pelas paixões ou pelos interesses, abriam caminho à sagração popular em torneio de eloqüência faciosa. A técnica da função confundia-se com a arte de conquistar prosélitos pela palavra. No mesmo teor, substancial doutrina mostra-se cética quanto à possibilidade de serem encontradas em Roma as raízes do Ministério Público15, sendo interessante ressaltar o trabalho de pesquisa de José Narciso da Cunha Rodrigues16, exProcurador-Geral do Ministério Público Português, que esclarece serem cinco as magistraturas romanas consideradas como prováveis antepassados do Ministério Público e não apenas os “procuratore caesaris”, como comumente se afirma. Leciona o autor luso: São cinco as instituições de direito romano em que a generalidades dos autores vê traços de identidade com o Ministério Público: os censores, vigilantes gerais da moralidade romana; os defensores das cidades, criados para denunciar ao imperador a conduta dos funcionários; os irenarcas, oficiais de polícia; os presidentes das questões perpétuas; e os procuradores dos césares, instituiídos pelo imperador para gerir os bens dominiais. 14 LYRA, Roberto. op cit., p. 10. PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., pp. 29-39; MACHADO, Antonio Cláudio da Costa, op. cit., p 12; SAUWEN Filho, João Francisco. op. cit., p 26. 16 RODRIGUES, José Narciso da Cunha . Em nome do povo. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 36. 15 Terminando por concluir: “Examinadas uma a uma, nenhuma evidencia uma instituição reunindo as características que hoje definem o Ministério Público. No entanto, todas têm desta instituição algum sinal”. Nesse sentido, também é a afirmativa de Michele-Laure Rassat: “a origem do direito de perseguir de ofício não deve ser confundida com a origem do Ministério Público”, acrescentando que “pode-se sempre citar, entre todas as legislações antigas, os exemplos de persecução de ofício sem que isto signifique que o Ministério Público, tal como o entendemos, seja de origem persa, ateniense ou romana.”17 Em suma, é acertado afirmar que algumas funções atualmente exercidas pelo Ministério Público já existiam no Egito, na Grécia e em Roma. Contudo, tratava-se de funções atribuídas a pessoas que não representavam uma estrutura nem gozavam de um estatuto semelhante ao que hoje existe no Ministério Público contemporâneo. De todo o modo, sempre é pertinente lembrar que não se deve incorrer em armadilhas historicistas, ahistóricas e atemporais. Não se deve olvidar que a distância temporal, como bem diz Gadamer, é sempre um aliado e não um obstáculo para a compreensão do fenômeno. 1.2. AS ORIGENS PRÓXIMAS DA INSTITUIÇÃO: O Ministério Público contemporâneo está relacionado a formas específicas de organização do Estado e em especial, da administração da Justiça. Os 17 RASSAT, Michele-Laure. Lê Ministére public entre son passé et son avenir. Paris:Librarie Genérale de Droit et de Jurisprudence, 1967. pp. 7-16. Tradução livre do autor. precedentes históricos que marcam seu surgimento são: I. A superação da vingança privada; II. A entrega da ação penal a um órgão público tendente à imparcialidade; III. A distinção entre o acusador e o Juiz; IV. A tutela de interesses da coletividade e não somente do fisco e do soberano; e V. A execução rápida e certa da sentença dos Juízes.18 Tais princípios e requisitos são característicos do Estado Moderno e, nesse contexto, o surgimento do Ministério Público deve ser compreendido como ligado à preexistência de condições básicas de organização política da sociedade, vinculadas ao aparecimento e à formação do novo aparato estatal. Feitas tais considerações é de se aferir as origens modernas da Instituição, iniciando pelo seu berço: a França. 1.2.1. As Origens Francesas A origem próxima da Instituição é comumente atribuída à França, com a criação dos “advocat et procureur du roi” no século XIV. Tais funções, não obstante a generalização realizada por parte da doutrina, tinham atribuições diversas na nascente burocracia francesa. Os chamados Procuradores do Rei tinham sua origem nos oficiais chamados “saion” ou “graffion”, existentes desde o Século VII, que exerciam inicialmente várias funções administrativas, entre as quais o recrutamento de marinheiros, o controle da população e dos postos de correio e, sobretudo, atribuições fiscais. Em decorrência dessa última função, passaram, com o tempo, a desempenhar tarefas criminais, tendo em vista que uma grande parte dos delitos era punida com penas pecuniárias, o que 18 ZAPPA, Giancarlo. Il pubblico ministero: apunti di storia e di diritto comparatto. In: La riforma Del pubblico ministero. Milão: Dott. A. Giuffré, 1974. p. 63. constituía grande parcela do tesouro real19. As funções dos “procureur du roi” destinavam-se, portanto, não apenas a denunciar quem violasse a lei, mas também a executar a sentença proferida pelo Juiz, garantindo o proveito econômico da Coroa. Já os “avocat du roi” eram escolhidos entre os advogados comuns, com atribuição exclusivamente cíveis, para a administração e defesa dos interesses patrimoniais do soberano20. O “advocat” e o “procureur”, embora exercendo atribuições diferentes, respectivamente de natureza cível e criminal, tinham sua atividade dirigida para um único objetivo, a defesa do poder e dos interesses do soberano, personificando o poder do Estado. Nesse contexto, em razão de tal semelhança, há a junção dos cargos, com a criação do Ministério Público. Com efeito, especificamente na “Ordonnance” de Felipe IV, o Belo, em 1302 , une-se a figura dos “advocat et procureur du roi” também chamados de “les gens du roi”, numa única instituição, sendo certo que tais agentes públicos desempenhavam as funções de persecução penal e de tutela dos interesses do Estado e do soberano junto ao Poder Judiciário21. A criação de Tribunais e a investidura de magistrados na função jurisdicional se deve ao Rei Luiz IX que, com a publicação de seus Estatutos, em 1270 (“Estatutos de São Luiz”), retornou à fonte do direito romano, moralizando a distribuição da justiça naquele país22. 19 SALLES, Carlos Alberto. op.cit., p. 18. SAUWEN Filho, João Francisco. op. cit., p.38. 21 MACHADO, Antonio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 13. 22 MELLO Junior, João Cancio de. A Função de controle dos atos da Administração Pública pelo Ministério Público. Belo Horizonte: Líder, 2001. p. 46. 20 Felipe IV - o Belo23- cria, portanto, um corpo de funcionários a quem competiria a tutela dos interesses do Estado, separados da pessoa e dos bens do rei24; e com a finalidade de fiscalizar de perto as atividades dos magistrados, outorga-lhes as mesmas prerrogativas destes, impondo-lhes, inclusive, a vedação do patrocínio de quaisquer outras causas. Apesar de atuar tão somente na defesa dos interesses do Estado (que então se confundiam com os do soberano) - função que a instituição somente abandonou na Constituição de 1988 - nascia aí o Ministério Público. Note-se, entretanto, que a definição institucional do Ministério Público na França, nos padrões do que é hoje, só ocorreu após o conturbado período que se seguiu à Revolução Francesa de 1789, com o movimento de Codificação patrocinado por Napoleão, adotando-se o perfil atualmente existente naquele país25. A origem das expressões “Parquet” e “Ministério Público” é decorrente do exercício funcional pelos próprios procuradores do rei, que em correspondências trocadas entre si, denominavam sua função como um ofício ou ministério público, visando distingui-lo do ofício privado dos advogados,26 sendo certo que, a expressão Parquet, utilizada atualmente como sinônimo da Instituição, tem origem no estrado existente 23 Alto e dotado de grande beleza física, o que lhe valeu a alcunha, Felipe IV de França é conhecido na história universal como um monarca tirano, responsável por inúmeras atrocidades jurídicas com requintes de perversidade. João Francisco Sauwen Filho relata em sua obra (pp. 44-46), que ao tomar conhecimento do adultério cometidos por suas noras, as princesas e irmãs Margarida e Branca Artois, conseguiu-lhes a condenação, juntamente com sua irmã mais nova, que inocente, sabia do ilícito, trancafiando-as num convento até a morte. Os amantes, os irmãos Gautier e Felipe Aunnay, escudeiros de nobres da corte, os fez condenar à morte precedida de bárbaras torturas, como castração em praça pública(a pretexto de resgatar a honra da família) e esfolamento, com a retirada de toda a pele por seus carrascos e a queima de seus órgãos genitais em fogueira. “Jamais o povo tinha visto espetáculo tão horripilante. Felipe quis deixar o exemplo gravado para sempre”, conclui o autor. 24 REZENDE Filho, Gabriel. Direito Processual Civil. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1954. v . 1, p. 91. 25 Código de Instrução Criminal e Lei de 20 de Abril de 1810. 26 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 52; e SAUWEN Filho, João Francisco, op. cit, p. 38, citando Henri Roland e Laurent Boyer, em Lês Institutions Judiciares. nas salas de audiência, onde os procuradores do rei podiam sentar-se lado a lado com os magistrados. Como bem leciona Hélio Tornaghi27: O Ministério Público constituiu-se em verdadeira magistratura diversa da dos julgadores. Até os sinais exteriores dessa proeminência foram resguardados; os membros do Ministério Público não se dirigiam aos juízes do chão, mas de cima do mesmo estrado ("parquet") em que eram colocadas as cadeiras desses últimos e não se descobriam para lhes endereçar a palavra, embora tivessem que falar de pé (sendo por isso chamados "magistrature debout", Magistratura de pé). No mesmo teor, Mauro Capelletti e J. A. Jolowicz·28, indicando o “status” de magistrados dos membros do Ministério Público e o local especial onde tinham assento na corte: “Like the judges, they were(and are) member of the magistrature, although called ‘magistrats debout’(standing judges) rather than ‘magistrats assis” or “magistrates du siége’(sitting judges, to indicate that they made (ad make) their arguments standing before the sitting court). Likewise, they were (and are) also called parquet, to indicate that, when arguing in court, they did (and do) not sit on the bench but rather, like the normal attorneys, stand on the floor parquet.” A evolução histórica do Ministério Público francês demonstra como a Instituição, nascida para sustentar os interesses dos monarcas, lenta e gradualmente transformou-se num baluarte da democracia, como conseqüência lógica da transformação da mentalidade política dos povos. Com efeito, seria ingênuo imaginar que, desde sua criação em 1302, o órgão tivesse se constituído num guardião dos direitos indisponíveis do cidadão. A 27 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. v.1, pp. 277/278. 28 CAPPELLETTI, Mauro e JOLOWICZ, J. A. Studies in a Comparative Law – Public Interest Parties and the Cative Role of the Judge in civil Litigation – Milano – Dott. A. Giuffré Editore. mentalidade da época, marcantemente autoritária, por si só impediria qualquer tentativa nesse sentido. Cidadania e direitos do cidadão eram coisas impensáveis no mundo de então. 29 Criado e desenvolvido na França, o Ministério Público penetra em quase todas as legislações européias, inclusive na portuguesa, de onde, através das ordenações, chegou até nós, alcançando sua plenitude com a Constituição de 1988. 1.2.2. As Raízes Portuguesas No Brasil, as raízes do Ministério Público repousam, inicialmente, no Direito Português, vigente no país no período colonial. Fundada a monarquia portuguesa, com a ascensão ao trono de D. João I, após a batalha de Aljubarrota, começaram a aparecer em documentos e textos legais referências aos procuradores e advogados do rei, que se ocupavam dos interesses do fisco e da coroa, tal como ocorrera na França, antes da Ordonnance de Felipe IV em 130230. No país ibérico, a primeira menção existente acerca do assunto é um diploma legal de 14 de Janeiro de 1289, em que se criava a figura do Procurador do Rei, cargo de natureza pública e permanente31, sem entretanto constituir ainda uma magistratura, o 29 SAUWEN Filho, João Francisco. op cit., pp. 38-46. LOPES CARDOSO, Isabel. Breve Memória sobre a Procuradoria-Geral da República. Lisboa. Ed. Procuradoria-Geral da República. Gabinete de Relações Públicas e Informação. p.9. 31 MÁRTENS, João B. da Silva Ferrão de Carvalho. O ministério público e a procuradoria-geral da Coroa e Fazenda. História, natureza e fins. In: Boletim do Ministério da Justiça. Lisboa: Ministério da Justiça, fev. 1974, nº 233. 30 que só ocorreria mais tarde, com a criação dos tribunais regulares e a publicação de leis que viriam a substituir o primitivo direito dos forais de cada região. Como é cediço, em Portugal (e até a independência, no Brasil), vigoraram três grandes monumentos legislativos: as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, tendo esta última perdurado parcialmente até a entrada em vigor do Código Civil de 1916, no Brasil. Evidenciada no reino de Portugal a necessidade de se estabelecer uma instituição que apoiasse os vassalos que reclamassem por Justiça, bem como defendesse o interesse geral, surge, nas ordenações Afonsinas, publicadas entre 1446 e 1447, em seu Título VIII, Livro I, a figura do Procurador da Justiça, nestes termos “... E veja, e procure bem todos os feitos da justiça, e das viúvas, e dos órfãos, e miseráveis pessoas que à nossa Corte vierem”32. Com o advento das Ordenações Manuelinas, em 1521, nos Título XI e XII do Livro I, foram estabelecidas as obrigações relativas aos ofícios dos Procuradores dos Feitos do Rei, da figura do "Promotor da Justiça da Casa de Suplicação" e dos Promotores da Justiça da Casa Civil. Estabelecia ainda a existência, na Casa de Suplicação de Lisboa, de um Procurador dos Feitos da Coroa e um Procurador dos Feitos da Fazenda, certamente seguindo o clássico modelo do Parquet francês, onde “as gentes do rei”, 32 RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público: Dimensão constitucional e repercussão no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 16. Note-se que o sentido democrático na instituição dos Procuradores da Justiça do reino português deve-se ao especial contexto histórico em que nasceu a monarquia lusa, numa época em regra absolutista. O signo da liberdade era evidente entre os portugueses que venceram a batalha de Aljubarrota e coroaram o primeiro soberano (D. João I, o mestre de Aviz), tanto que em suas lanças estava escrito, por ordem do príncipe: “Os vassalos portugueses são livres”, como informa João Francisco Sauwen Filho em sua obra, em nota de rodapé da p. 104, citando Alexandre Herculano. no alvorecer da Instituição, deixaram de defender apenas os interesses privados do monarca passando também à defesa dos interesses do Estado. Finalmente, nas ordenações Filipinas de 1603 é que se cria, de maneira mais sistemática, a figura de um Promotor de Justiça. Há diversos Títulos referindose à instituição do Ministério Público, com referências a um "Procurador dos Feitos da Coroa" ou ao "Procurador dos Feitos da Fazenda", ao "Promotor da Justiça da Casa da Suplicação” e ao "Promotor da Justiça da Casa do Porto", todos no Livro I33. As atribuições do Promotor de Justiça, descritas no título XV merecem ser transcritas, por descreverem, de maneira ainda incipiente, funções que até hoje são características da Instituição: Ao Desembargador da Casa da Suplicação, que servir de Promotor de Justiça, pertence requerer todas as coisas, que tocam à Justiça, com cuidado e diligência, em tal maneira que por sua culpa e negligência não pereça. E a seu Ofício pertence formar libelos contra os seguros, ou presos, que por parte da Justiça hão de ser acusados na Casa de Suplicação por acordo de Relação...Nos casos onde não houver querela nem confissão da parte, porá sua atenção na devassa, parecendo-lhe, que se ela não deve proceder, para com ele dito promotor se ver em relação, se deve ser acusado, preso ou absolvido. E assim fará nos ditos feitos quaisquer outros artigos e 34 diligências, que forem necessárias ao bem da Justiça.” Ressalve-se que a evolução do Ministério Público português está muito relacionada a evolução dos órgão judiciais junto aos quais atuava, que, por sua vez, acompanharam a organização do Poder Político em Portugal. Sua feição atual origina-se do Decreto nº 24, de 16 de maio de 1832, conhecido como “decreto sobre as reformas das Justiças”, assinado em Ponta Delgada pelo então Príncipe Regente, Dom Pedro, Duque de 33 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 46. Bragança (D. Pedro I do Brasil), em nome da Rainha Infanta, Dona Maria II de Portugal, sua filha. O primeiro texto legislativo genuinamente brasileiro a prever a figura do "Promotor de Justiça"35 é datado de 1609, tratando-se do diploma que regulava a composição do Tribunal da Relação da Bahia e que dispunha: "A Relação será composta de 10 (dez) desembargadores, 1 (um) procurador de feitos da Coroa e da Fazenda e 1 (um) promotor de justiça". Em 1751 foi criada outra Relação na Cidade do Rio de Janeiro, que viria a tornar-se a Casa de Suplicação do Brasil em 1808, cabendo-lhe julgar recursos da relação da Bahia. Nesse novo Tribunal, o cargo de promotor de justiça e o cargo de procurador dos feitos da Coroa foram separados, passando a ser ocupados por dois titulares. Pela primeira vez em terras brasileiras, separam-se as funções de defesa do Estado e do fisco da Defesa da Sociedade, finalmente implementada em definitivo na atual Constituição da República. 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO IMPÉRIO Com a independência do Brasil, em 1822, a Constituição de 1824 atribuiu ao “Procurador da Coroa e Soberania Nacional”, a acusação criminal, ressalvadas as hipóteses de iniciativa da Câmara dos Deputados. Já a partir de 1828, existia 34 SALLES, Carlos Alberto. op. cit., p. 20. 35 MELLO JUNIOR, João Cancio de. op. cit., p. 46. um promotor de justiça junto a cada tribunal de relação, inclusive o da corte e em cada comarca. O Código de Processo Criminal do Império, datado de 1832, foi o primeiro diploma brasileiro a dedicar tratamento sistemático ao Ministério Público. Com efeito, havia uma seção inteira destinada à instituição, notadamente aos promotores, com os principais requisitos para sua nomeação e com suas principais funções institucionais. A reforma processual de 1841, consubstanciada na Lei 261 de 03 de dezembro, ao reformular o Código de Processo Criminal, estipulou em dois artigos a figura do promotor de justiça: art. 22: Os promotores públicos serão nomeados e demitidos pelo Imperador ou pelos Presidentes das Províncias preferindo sempre os bacharéis formados, que forem idôneos, e serviram pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento, serão nomeados interinamente pelos juízes de direito. art. 23: Haverá pelo menos em cada comarca um promotor que acompanhará o juiz de direito; quando, porém, as circunstâncias exigirem, poderão ser nomeados mais de um. Os promotores venceram o ordenado que lhes for arbitrado, o qual, na corte, será um conto e duzentos mil réis por ano além de mil e seiscentos por oferecimento do libelo, três mil e duzentos réis por cada sustentação no júri, e dois mil e quatrocentos réis por arrazoados escritos. 2.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1824 A Constituição de 1824 não fazia qualquer menção ao Ministério Público, mas em seu art. 48 afirmava: "No juízo dos crimes cuja accusação não pertence à Câmara dos Deputados, accusará o Procurador da Coroa e Soberania Nacional."36 Depreende-se de tal dispositivo que havia, sob a égide da Constituição do Império, dois órgãos com atribuição para a persecução criminal, o Procurador da Côroa e a Câmara de Deputados. O Procurador da Côroa e Soberania Nacional detinha legitimidade para acusação dos crimes de autoria das pessoas que não fossem ministros e conselheiros de 36 CAMPANHOLE, Adriano. Constituições do Brasil. 11a ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 762. estado, já que, nessas hipóteses, a competência era da Câmara dos Deputados, conforme previsto no art. 38 daquela Constituição da República. Como já asseverado, durante a vigência dessa Constituição foi editado o Código de Processo Criminal do Império, em 1832, que continha uma seção reservada aos promotores, com os primeiros requisitos para sua nomeação e principais atribuições. Foi editada também, em 1841, a Lei nº 261, regulada pelo Decreto nº 120, de 31 de Janeiro de 1842, estabelecendo que os Promotores seriam nomeados pelo Imperador no Município da Corte e pelos Presidentes de províncias, naquelas unidades do Império, devendo servir por tempo indeterminado, enquanto conviesse ao serviço públicos, livremente demissíveis pelas autoridades que o nomearam. Destaque-se nesse período, que a “Lei do Ventre Livre” (Lei nº 2040, de 28-9-1871)37 conferiu ao Promotor de Justiça a função de ”protetor dos fracos e indefesos” (que futuramente viriam a ser definidos como hipossuficientes)38, estabelecendo também que lhe competia velar para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados conforme matrícula especial que se criou na época. Chegando ao seu conhecimento a existência de crianças em tal condição, cabia-lhe dar a eles matrícula, numa função que até hoje é desempenhada especialmente pelos Promotores de Infância e Juventude. 37 38 PAES, José Eduardo Sabo, op. cit, p.170 SALLES, Carlos Alberto. op.cit., p. 41. 3. O PERÍODO REPUBLICANO Proclamada a República e instituído o Governo Provisório, Campos Salles, Ministro da Justiça nesse período, edita os Decretos 848, de 11 de outubro de 1890 e 1030, de 14 de novembro de 1890, que deliberaram, respectivamente, acerca da justiça federal e da justiça do Distrito Federal, reservando capítulos próprios para o Ministério Público. Para a Instituição, o primeiro decreto, que realiza a reforma do Poder Judiciário no Brasil, é lapidar. Com efeito, ressalva a Exposição de Motivos: O Ministério Público, instituição necessária em toda organização democrática e imposta pelas boas normas da justiça, está representada nas duas esferas da Justiça Federal. Depois do Procurador–Geral da República, vêm os procuradores seccionais, isso é, um em cada Estado. Compete-lhe, em geral velar pela execução das leis, decretos e regulamentos, que devam ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela convier. A sua independência foi devidamente resguardada. Por sua vez, o art. 164 do Decreto 1030 assim dispunha: ”O Ministério Público é perante as justiças constituídas o advogado da lei, o fiscal de sua execução, o procurador dos interesses gerais do Distrito Federal e o promotor da ação pública contra todas as violações do direito”.39 Tais decretos, que reconheciam o Ministério Público como instituição democrática e lhe davam acentuada importância na organização do Estado, foram a primeira feição institucional do Ministério Público na legislação infraconstitucional, sendo, por essa razão, Campos Sales o patrono da Instituição. 39 PALMA, Enos da Costa. Programa de Princípios Institucionais do Ministério Público. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1986. p. 22. 3.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1891 A Constituição de 24 de fevereiro de 1891 também não mencionou a instituição do Ministério Público, mas em seu art. 58, §2º fazia nascer a figura do Procurador-Geral da República, que seria nomeado pelo Presidente da República entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, com atribuições a serem definidas em lei. Deve-se ressalvar, como asseverado, que o Decreto nº 1030/90 já fazia menção ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República, enumerando suas atribuições, sendo certo que o art. 81, § 1.º, da Constituição, por sua vez, dava legitimidade ao chefe da Instituição para a propositura da revisão criminal. Esse segundo dispositivo não é de maior relevância, mas o primeiro o é, pois fixa a forma de investidura do Procurador-Geral da República e faz nascer indiretamente a Instituição, no capítulo referente ao Poder Judiciário. Sob essa égide constitucional foi editado o Código Civil de 1916, que deferiu ao Ministério Público, além de outras atribuições, a função institucional de velar pelas Fundações; a legitimidade para a propositura de ação de nulidade de casamento; e a defesa de interesses de menores. 3.2. A CONSTITUIÇÃO DE 1934 A Constituição da República de 16 de julho de 1934 foi a primeira a constitucionalizar o Ministério Público, inovando o tratamento institucional, ao reservar ao Parquet capítulo próprio, absolutamente independente dos demais poderes do Estado, situando-o entre os "Órgãos de Cooperação nas Actividades Governamentaes" no Capítulo VI, seção I40. Com efeito, o art. 95 disciplinava a instituição do Ministério Público, sendo o mesmo organizado na União, no Distrito Federal e nos Estados por leis próprias. Foram fixadas também, pela primeira vez, garantias e prerrogativas aos membros do Parquet, entre as quais a estabilidade funcional e a investidura, obrigatoriamente, por concurso público. Criou-se ainda, no art. 98, o Ministério Público perante as justiças militar e eleitoral, bem como, ratificando o art. 81, § 1.º, da Constituição anterior, concedeu-se ao Ministério Público a legitimidade para a revisão criminal (art. 76). O constituinte de 1934, inspirado na Constituição alemã de Weimar (1919), que instituiu o Welfare State, fortaleceu, de forma pioneira, o Ministério Público Nacional, numa nítida compreensão de sua importância em um Estado preocupado com a questão social, onde a atuação ministerial é primordial para a efetivação das promessas de Justiça social. 3.3. A CONSTITUIÇÃO DE 1937 A Constituição de 1937, editada sob a ditadura de Vargas, gerou severo retrocesso na Instituição, eis que apenas alguns artigos esparsos, como o artigo 99, 40 CAMPANHOLE, Adriano. op. cit., p. 655. dispunham sobre a figura do Procurador-Geral da República (livremente nomeável e demissível pelo presidente da República), dando-lhe algumas atribuições, tais quais oficiar junto ao Supremo Tribunal Federal, sendo esta Corte competente para o seu julgamento (art.101, I, b). Havia, ainda, referência no art.105 sobre a participação do Ministério Público no chamado "quinto constitucional", forma de ingresso derivado na magistratura. Intuitivo concluir que, nos Estados onde a democracia não floresce e onde não se privilegiam os direitos fundamentais do homem, o Ministério Público não tem contornos constitucionais fortes. Apesar disso, no período do “Estado Novo” de Vargas, foi editado o Código de Processo Penal de 1941, de influência italiana, conferindo ao Ministério Público o poder de requisitar a instauração de inquérito policial e diligências em seu bojo, bem como a titularidade da ação penal pública. Na área processual civil, o Código de 1939 estabeleceu a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público em diversas hipóteses jurídicas, na qualidade de custos legis, oficiando na proteção de alguns interesses considerados relevantes para o legislador, tais como o direito de família e a proteção aos incapazes. Inicia-se aí o fenômeno da intervenção como fiscal da lei, com a emissão de pareceres quanto ao mérito das demandas (que até então não havia), pois os Códigos de Processo Civil estaduais não davam maior atenção ao Ministério Público41. 41 MACEDO JUNIOR, Ronaldo. op. cit., p. 43. 3.4. A CONSTITUIÇÃO DE 1946 Com a promulgação da Constituição de 1946, o Ministério Público retornou ao texto constitucional em título próprio, após a organização das Justiças dos Estados (arts. 125 e 128), prevendo-se a Instituição tanto no âmbito federal como no estadual e sua atuação nas Justiça Comum, Militar, Eleitoral e do Trabalho. Foram asseguradas aos seus membros estabilidade e inamovibilidade, além de ser outorgada, nessa ocasião, a representação da União aos Procuradores da República, que podiam delegar tais funções, nas comarcas do interior, aos Promotores de Justiça, numa atuação de índole fazendária que somente foi afastada em 1988. 3.5. A CONSTITUIÇÃO DE 1967 A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dispôs sobre o Ministério Público na seção IX do Capítulo VIII (Poder Judiciário) do Título I (Da Organização Nacional), inserido dentro do âmbito desse Poder. Ao vir a integrar o Poder Judiciário, o Ministério Público deu importante passo na conquista de sua autonomia e independência, afastando-se do Poder Executivo e, por assemelhação com os magistrados, conquistando garantias e prerrogativas para o pleno exercício das funções institucionais que somente seriam consagradas efetivamente com a Constituição de 1988. Havia, nos arts. 137 a 139 daquela Constituição da República, menção expressa às garantias de estabilidade e inamovibilidade e a existência de dois ramos da Instituição, o Ministério Público da União e o Ministério Público dos Estados. 3.6. A EMENDA CONSTITUCIONAL 01/69 A Emenda Constitucional n.º 1/69, fruto da ruptura da ordem constitucional então vigente, retornou o Ministério Público ao âmbito do Poder Executivo, topograficamente posicionado ao lado dos funcionários públicos e das Forças Armadas, mantendo, entretanto, a autonomia de organização e a carreira conforme os preceitos do ordenamento anterior. O regime de exceção que se instaurara no Estado Brasileiro, de cunho autoritário, não podia permitir que o Ministério Público estivesse afastado do Executivo, convivendo intimamente com o Judiciário, que possuía relativa autonomia. Nesse período foi editado o Código de Processo Civil de 1973, que consolidou a posição institucional do Ministério Público no Processo Civil, nas clássicas funções de Autor (órgão agente) e fiscal da lei (órgão interveniente). Com a Emenda Constitucional n.º 07/77, que acrescentou parágrafo único ao art. 96, houve previsão de lei complementar de iniciativa do Presidente da República estabelecendo normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público estadual, o que terminou ocorrendo com a edição da Lei Complementar nº 40, de 14 de dezembro de 1981, primeira legislação que organizou em nível nacional os Ministérios Públicos estaduais. Tal diploma legal fixou as linhas gerais do Ministério Público em todo o país, criando órgãos colegiados dentro da instituição e estabelecendo tratamento orgânico para todo o Ministério Público Estadual. Nesse diploma legal já foi traçado um novo perfil à Instituição, que foi definida como “permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, e responsável, perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das Leis”, texto praticamente repetido na Constituição da República de 1988. Outro importante marco na história institucional foi a promulgação, em 1985, da Lei 7.347, que, ao disciplinar a ação civil pública, conferiu ao Ministério Público a legitimidade para a tutela de interesses transindividuais. A partir de tal diploma legal, foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questões do direito de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de caráter urbano, conferindo-se ao Ministério Público o poder de instaurar e presidir inquéritos civis sempre que houvesse dano a interesse ambiental, paisagístico ou do consumidor. Nessa nova fase, o membro do Ministério Público passa a atuar como verdadeiro advogado da sociedade, na proteção a interesses transindividuais e na qualidade de indutor da transformação social, como será adiante demonstrado. 3.7. A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA: PREPARATIVOS PARA O NOVO MINISTÉRIO PÚBLICO Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil, face à eleição de Tancredo Neves no pleito presidencial indireto de 1984, fortaleceu-se a idéia de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para o país, a fim de conferir uma nova e legítima ordem jurídica à nação. Foi instalada uma Comissão de Notáveis, com cinqüenta componentes, que elaborou o denominado “Anteprojeto Afonso Arinos” submetido à chefia do governo42. Paralelamente, setores da sociedade organizada discutiam seu papel numa nova ordem constitucional, sendo realizado em São Paulo o VI Congresso Nacional do Ministério Público (1985), que teve por objetivo preparar teses em matéria constitucional visando a formular propostas preparatórias aos trabalhos da Constituinte, no que concerne ao Ministério Público.43 Havia já uma consciência nacional para a classe e foi também se solidificando, no seio da corporação, a idéia de que o Ministério Público, para atingir os ideais preconizados num Estado Democrático de Direito (que se avizinhava com a nova ordem), deveria ter também uma consciência social. Fruto de trabalho pioneiro de Carlos Siqueira Neto44, a denominada consciência social do Ministério Público traduzia a idéia de que a atuação desinteressada e dinâmica da Instituição poderia trazer benefícios sociais à coletividade. Para tanto não poderia o Parquet ser servil a governo ou governante algum, necessitando de estrutura e princípios definidos, contornos precisos, norteando sua atuação na verdadeira função institucional: a defesa dos direitos e interesses indisponíveis da sociedade. 3.8. A CARTA DE CURITIBA. OS ANTECEDENTES DO REGIME CONSTITUCIONAL DE 1988 42 SAUWEN Filho, João Francisco. op. cit., p. 168. As teses do encontro foram publicadas na revista Justitia, do Ministério Público de São Paulo, n.º 131 e 131A, em Junho de 1985, como nos informam Hugo Nigro Mazzilli, na obra citada Regime Jurídico do Ministério Público, p. 101, e João Francisco Sauwen Filho, op. cit., p. 171. 43 Tal consciência nacional e social do Ministério Público cristalizou-se no 1º Encontro Nacional de Procuradores e Promotores de Justiça, realizado em Junho de 1986, na Cidade de Curitiba. Com efeito, analisando as fontes legais então existentes: o anteprojeto apresentado pelo então Procurador-Geral da República à Comissão Afonso Arinos; as teses aprovadas no VI Congresso Nacional; e o questionário distribuído à toda a classe acerca do novo perfil constitucional, providenciado pela Confederação Nacional do Ministério Público (CAEMP, hoje CONAMP), consolidou-se a idéia da vocação social do Ministério Público, definindo-se o Promotor de Justiça como “órgão agente em favor dos interesses sociais”45 e sedimentando-se a idéia do Ministério Público como “defensor do povo”46. O documento aprovado no consenso institucional foi denominado “Carta de Curitiba” e orientou a classe nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte47 . 3.9. OS TRABALHOS DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE Os trabalhos relativos ao Ministério Público na Assembléia Nacional Constituinte iniciaram-se em 1987, na Subcomissão da Organização do Poder Judiciário e do Ministério Público48. O relator da matéria foi o constituinte Plínio Arruda Sampaio, que em seu trabalho assentou os princípios e garantias essenciais à nova vocação 44 SIQUEIRA Neto, Carlos. Ministério Público – Uma nova estratégia para seu aperfeiçoamento. In: Justitia, 99. p.189. 45 SALLES, Carlos Alberto. op. cit., p. 43. 46 Art. 3º, § 2º, letra “a”, da “Carta de Curitiba”. 47 A íntegra da “Carta de Curitiba” encontra-se na obra de Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público. 48 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 117. social da Instituição, nos termos da Carta de Curitiba. A seguir, o texto foi encaminhado à Comissão de Organização dos Poderes, que produziu novo texto, com menores avanços que o anterior. Entretanto, na Comissão de Sistematização, o relator da Assembléia Nacional Constituinte, Deputado Bernardo Cabral, consolidou, em linhas gerais, as teses ministeriais, apresentando texto favorável ao Ministério Público. Ocorre que forças retrógradas aos avanços sociais idealizados, conhecidas na época como “Centrão”, inviabilizaram o texto elaborado pela Relatoria, aprovando substitutivo que não continha as modificações necessárias à consolidação do Parquet como o defensor da sociedade. Finalmente, em acirrada sessão realizada em 12 de abril de 1988, foram aprovados inúmeros destaques ao texto então prevalente, consolidando-se, em definitivo, o novo perfil constitucional do Ministério Público Brasileiro49. 4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: O AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 4.1. O NOVO PERFIL DO MINISTÉRIO PÚBLICO A Constituição da República de 1988 dotou o Ministério Público de novo perfil. Conferiu-lhe uma precisa e avançada definição institucional, estabelecendo critérios formais para a escolha e destituição dos Procuradores-Gerais, assegurando autonomia 49 Para uma melhor compreensão do processo de institucionalização do Ministério Público na Assembléia Nacional Constituinte, remetemos o leitor a MAZZILLI, Hugo Nigro, op. cit., capítulo 5. funcional e administrativa à Instituição, outorgando garantias aos seus membros e impondolhes vedações, tudo para o bom desempenho da vocação social que lhe foi cometida. O art. 127, caput, da Constituição, ao definir o Ministério Público, foi claro ao asseverar ser o Parquet “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.O tratamento foi claro, mas não é despiciendo trazer à colação a interpretação desse dispositivo: Instituição no sentido de estrutura organizada para a realização de fins sociais do Estado. Permanente, porquanto as necessidades básicas das quais derivam as suas atribuições revelam valores intrínsecos à manutenção do modelo social pactuado (Estado Democrático de Direito – Constituição, art. 1º). “Essencial à função jurisdicional do Estado”, de vez que a atuação forçada da norma abstrata ao fato concreto, quando envolver interesse público, deve sempre objetivar a realização dos valores fundamentais da sociedade, razão pela qual a intervenção do Ministério Público se faz sempre 50 necessária. A Constituição de 1988 elegeu também princípios e valores fundamentais para que o Estado Democrático de Direito fosse consolidado. Fazia-se necessário, portanto, escolher quem zelasse por esses valores e princípios, sendo escolhido o Ministério Público, que tem sua atuação, neste aspecto, comprometida com a defesa do Estado Democrático de Direito, da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Com efeito, não deve ser outra a interpretação do dispositivo constitucional antes referido, para assentar o perfil e a função maior do Ministério Público: 50 GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. O Ministério Público e os direitos das crianças e adolescentes. In: ALVES, Airton Buzzo, RUFINO, Almir Gasquez e SILVA, José Antonio Franco da (org). Funções Institucionais do Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 312. A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”caracteriza a Instituição como verdadeiro guardião das liberdades públicas e do Estado Democrático de Direito, na medida em que o exercício de suas atribuições, judiciais ou extrajudiciais, visa, em essência, o respeito aos fundamentos de modelo social pretendido(soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político – Constituição, art. 1º) e a promoção dos objetivos fundamentais do País (construção de uma sociedade livre justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalidade e redução das desilguadades sociais e regionais, promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação – 51 Constituição, art. 3º). Como é cediço, a Constituição de 1988 traduz o resultado de conflitos e discussões entre classes, cujos valores, após os debates realizados, passaram a integrar o texto maior. Os valores constitucionais são a materialização da preferência do constituinte, expressando as prioridades e fundamentos da convivência coletiva. São as opções que devem presidir o ordenamento político, jurídico, econômico e social. Os valores são, portanto, os critérios básicos para ajuizar ações, ordenar convivência e estabelecer fins52. O Estado Democrático de Direito instaura perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelos instrumentos que oferece à cidadania para concretizar as exigências de um estado de Justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.53 A observância dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade é fundamental no processo da emancipação do homem. O princípio da igualdade pressupõe a justiça social. Por sua vez, o princípio da dignidade da pessoa humana 51 GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. op. cit., p 313. PEREZ LUÑO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constituicion. Madri: Tecnos, 1984. p. 228. 53 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 1994. p. 109. 52 deve comprometer, também, o exercício da atividade econômica do Estado, realizando-se políticas públicas voltadas para a promoção da existência digna. A não promoção de tais políticas vulnera o princípio acima referido, como observado por Eros Roberto Grau54: Concebida como referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais, o conceio de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional, e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos dos direitos sociais, ou invocá-la para construri uma “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de diretos econômicos, sociais e culturais. Os valores emancipatórios consignados na Constituição devem, portanto, pautar a atuação do Ministério Público na sociedade. É sua função utilizar o direito como instrumento de transformação da realidade social, fazendo com que os fatores que ensejam e mantêm a injustiça social sejam eliminados. 4.2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E O NOVO MINISTÉRIO PÚBLICO O perfil constitucional do Ministério Público e sua legitimidade perante a sociedade o vinculam primordialmente a sua atuação como órgão agente, através dos poderosos instrumentos previstos na Constituição da República, em que se destacam o Inquérito Civil e a Ação Civil Pública (art. 129, III). 54 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). São Paulo: RT, 1990. p. 217. O papel do Ministério Público, como agente de transformação social está diretamente relacionado, portanto, à implementação dos princípios e valores insertos no texto constitucional, sendo o Parquet o defensor direto dos interesses de relevância social (sejam eles coletivos, difusos ou individuais homogêneos imbuídos de interesse social). E para que os valores constitucionais acima descritos se sobreponham, não se pode conceber que o ordenamento jurídico existente seja visto apenas como um amontoado de normas. O Direito deve ser operado atendendo-se ao ideal de justiça social retratado na Constituição. Isso é perfeitamente possível sob uma perspectiva sistemática, compreendida a superioridade da Constituição e de suas normas sobre todo o ordenamento jurídico infra-constitucional. Incumbe ao Parquet, como assevera Márcia Piatigosky55 “ter como fonte primeira de interpretação a Constituição, afastando o absolutismo legal formal e defendendo a legalidade democrática, visando o bem comum. Operando o direito é possível transformar a realidade e concretizar o Estado Democrático”. Face a tal modificação conceitual, instituída pelo novo regime constitucional, determinadas concepções, voltadas ao passado, acerca de suas atribuições não se coadunam com o novo paradigma democrático, devendo-se compreender as funções ministeriais em consonância com as transformações operadas pelo sistema constitucional vigente. Tal mudança de paradigma não passou despercebida a Clèmerson Merlin Clève56, que afirma “ser preciso sintonizar a legislação com o texto constitucional, operar a sua constitucionalização, fazer vazar as conseqüências da filtragem constitucional, realizar, enfim, a leitura da lei com os olhos voltados para a Constituição e o futuro”. A ação civil pública e o inquérito civil, previstos no art. 129, III da Constituição da República são os mais importantes instrumentos de transformação social que o constituinte colocou à disposição do Ministério Público para realizar os valores constantes do Pacto Social de 1988, em especial a defesa e promoção dos direitos sociais. 4.2.1. O Ministério Público “ombudsman” Finalmente, não se pode olvidar da função de “ombudsman” conferida ao Ministério Público. Com efeito, ao remontarmos à história econômica e social do Brasil, percebemos momentos de grandes abalos à Democracia, ao respeito pela coisa pública, à descrença popular em seus próprios governantes, enfim, momentos marcados pela corrupção, injustiça social e imoralidade. Merece destaque, pois, a disposição do art. 129, inciso II da Constituição, que, de forma inédita (a ação civil pública foi idealizada ainda sob a ordem 55 PIATIGORSKY, Márcia. O papel do Ministério Público em prol da efetividade dos direitos humanos, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos Interamericano e do ordenamento Jurídico Interno.Rio de Janeiro: UERJ, [s.d.]. (Dissertação de Mestrado). p. 98. 56 CLÉVE, Clémerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público. Disponível em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5760. Acesso em 16/08/2004 jurídico-constitucional anterior), estatuiu como função do Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. Essa atividade de controle dos atos do poder público abriu um grande e importante campo de atuação institucional, na esteira de conferir mecanismos hábeis a dotar o Parquet para promover os valores sociais constitucionais. Essa função, denominada de “ombudsman”, tem origem remota na Constituição sueca de 1809, que criou a figura do justitieombudsman, expressão traduzida para o vernáculo como “comissário de justiça”, com a função de supervisionar a observância dos atos normativos pelos juízes e servidores públicos. Sua estrutura foi abraçada também pelas Constituições espanhola de 1978 (que instituiu “el defensor del pueblo”, no art. 54) e portuguesa de 1976, que acolheu o provedor de justiça no art. 24, mantido, aliás, no art. 23, após a revisão de 1982. Na Assembléia Nacional Constituinte, verificando-se que o Ministério Público já estava estruturado em carreira e existia em todo território nacional, foilhe deferida tal função, que consiste no controle dos diversos controles (parlamentar ou político, administrativo e judiciário), atinente aos três Poderes, sobretudo ao Poder Executivo (Administração Pública). Objetiva, em síntese, remediar lacunas e omissões, bem como assegurar que os Poderes respeitem as regras postas e não se imiscuam nos direitos e liberdades públicas dos cidadãos. De fato, as funções executiva, legislativa e judiciária, atribuídas aos três Poderes Constituídos, realizam controles específicos (controle administrativo, controle político e controle judiciário), mas apresentam entre si separação excessivamente rígida e insuficiências. O controle parlamentar, por sua natureza política, deixa de penetrar em várias zonas cinzentas e em situações concretas de omissividade ou negligência dos agentes públicos. O controle jurisdicional é também insuficiente, por sua natureza casual e individualizada, porquanto depende de provocação da parte interessada. O controle administrativo interno, por sua vez, exatamente por remanescer ao alvedrio de autoridades públicas da Administração ativa, é freqüentemente menosprezado, quando não solapado. Em função exatamente da insuficiência dos diversos controles, fez-se necessário o surgimento de um órgão que se encarrregasse do controle residual, buscando associar as vantagens das diversas espécies de controle. Assim, coube ao Ministério Público exercer tais funções, velando pela atuação da Administração Pública dentro dos primados constitucionais determinados, podendo aduzir medidas judiciais e extrajudiciais para concretizar tal atividade, como será aduzido no curso desta dissertação. Sem embargo das características e atribuições destinadas pela nova Constituição ao Ministério Público, a perfeita compreensão da magnitude de suas funções no Estado Democrático de Direito e a exata dimensão da sua vocação social carecem de uma abordagem histórica sobre a evolução do estado moderno e de sua relação com o direito e a sociedade, que será desenvolvida no capítulo seguinte. CAPÍTULO 2. ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE: DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. O conceito de Estado, atualmente utilizado na doutrina contemporânea, foi consolidado no século XVI, quando a comunidade política se definiu fundamentalmente em virtude da sujeição a um poder político, que exerce suas funções em um âmbito determinado sobre todos aqueles que nele se situam. De fato, a expressão Estado (do latim status = estar firme) significando situação permanente de convivência e ligada à sociedade política, aparece pela primeira vez em “O Príncipe” de Maquiavel, escrito em 1513, passando a ser utilizada pelos italianos sempre ligada ao nome de uma cidade independente, como no caso do stato di Firenzi, exemplifica Dalmo de Abreu Dallari57. No âmbito deste capítulo proceder-se-á à análise do Estado Moderno, seu surgimento e evolução histórica, notadamente sua relação com o Direito e a sociedade de que, como demonstrar-se-á no capítulo seguinte, o Ministério Público mandatário constitucional. 1. O ESTADO MODERNO: DO ABSOLUTISMO AO ESTADO DE DIREITO 57 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 51. é O Estado Moderno surge com o rompimento do período medievo, onde o sistema feudal e sua forma concentrada de organização do poder político sofre um profundo desgaste, fazendo nascer uma nova ordem, através da passagem das relações de poder (autoridade e administração de justiça), até então nas mãos do senhor feudal, para a esfera pública, ou seja, do Estado. A necessidade de superação do sistema feudal e sua permanente instabilidade política, econômica e social, despertara a consciência para a busca de uma unidade, que seria concretizada “com a afirmação de um poder soberano, no sentido de supremo, reconhecido como o mais alto de todos dentro de uma precisa delimitação territorial.”58 Surgia um novo tipo de Estado, caracterizado pela unidade territorial, dotada de um poder soberano. Era o Estado moderno, cuja autoridade se prendia à figura do monarca, o Príncipe, espécie de divindade temporal e terrena, que num lento processo dissolvera a constelação de poderes desiguais e privilegiados do sistema feudal até se transformar no soberano titular de um império, donde se irradiavam todas as competências e atribuições governativas. O conceito de soberania é uma das bases desse novo Estado, tendo seu escorço teórico sido criado por Jean Bodin, autor dos “Seis Livros da República”, 58 DALLARI, Dalmo de Abreu. op.cit., p. 70. em 1573, “como instrumento político de um poder absoluto que se incorporava no príncipe como se o príncipe fora o próprio Estado”59. A estratégia de construção da nova forma estatal, alicerçada na idéia da soberania, vai levar à concentração de todos os poderes nas mãos dos monarcas, permitindo-se personificar o Estado na figura do rei e tornando histórica, como lembrado por Lenio Luiz Streck60, a clássica frase de Luís XIV, o Rei-Sol: “ O Estado sou eu.” Os monarcas absolutistas se apropriam dos Estados como o proprietário o faz com o objeto de sua propriedade e tal estratégia serviu fundamentalmente para, “na passagem do modelo feudal para o moderno, assegurar a unidade territorial dos reinos, sustentando um dos elementos fundamentais da forma estatal moderna: o território.”61 Instauram-se, pois, as Monarquias absolutistas, numa sociedade em que, robustecido o Estado Nacional, sobreviviam ainda as camadas sociais da antiga nobreza feudal, transformada em aristocracia decadente, com uma nova classe emergente, favorecida pelas políticas mercantilistas implantadas e usufrutuárias da expansão colonialista: a Burguesia. O absolutismo é teorizado por Hobbes, que em seu “Leviatã” – obra clássica daquele momento histórico – é o mais engenhoso tratado de justificação dos poderes extremos do soberano, servidos, “de uma lógica perversa, em que a segurança sacrifica a liberdade e a lei aliena a justiça, conquanto que a conservação social de que é fiador o monarca seja mantida a qualquer preço”.62 59 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 30. STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 44. 61 Idem, p. 45. 60 No regime do absolutismo, o homem, que em seu estado de natureza era belicoso, desconfiado e com ferocidade contumaz, segundo Hobbes, abriria mão de sua liberdade em prol do Estado, mas ganharia, em troca, a certeza da conservação63. Mas o regime absolutista estava fadado ao insucesso, em razão da crescente ascensão da burguesia, que, como corpo social de vanguarda, estava a um passo de tomar o poder e a autoridade, que se esvaziava da nobreza e do clero. “Na virada do Século XVIII, a burguesia não mais se contentava em ter o poder econômico; queria sim, agora, tomar para si o poder político, até então privilégio da aristocracia”64. Inicialmente aliada dos monarcas absolutistas, essa classe se tornou o eixo e o centro vital da sociedade, para, insuflada pelo pensamento de vários e influentes pensadores, como Montesquieu, Siéyes e Rousseau65, tomar o poder pela via revolucionária, com o movimento social de 1789, conhecido por Revolução Francesa. Encerra-se, nesse momento, a primeira etapa do Estado Moderno, de conteúdo absolutista, para instaurar-se o Estado de Direito, com a conversão do Estado absoluto em Estado Constitucional, momento histórico que não passou despercebido a Paulo Bonavides66: “o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis e não as personalidades que governam o 62 BONAVIDES, Paulo. Teoria, cit., p. 32. Para Hobbes, o estado de natureza humano propicia o amplo uso da liberdade, que passa a ser irrestrito, a ponto de uns lesarem, invadirem e usurparem uns aos outros. No Estado de Natureza há o estado de guerra de uns contra os outros, e o homem pode ser chamado de lobo do próprio home (homo homini lupus), conforme BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005. p. 235. 64 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op.cit., p. 46. 65 Para Paulo Bonavides (Teoria, cit., p. 38): “A Filosofia política expendida em livros de quilate do Contrato social de Rousseau ou do Espítito das Leis de Montesquieu, teve na época sentido altamente subsversivo, porquanto inspirando a ação revolucionária, traçou a linha mestra das transformações profundas da sociedade, sendo a cartilha por onde rezaram os teoristas da liberdade.” 66 BONAVIDES, Paulo. Teoria, cit., p. 37. 63 ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz com toda sua energia, no texto dos Códigos e das Constituições.” Mas a noção de Estado de Direito não nasceu completa, tendo sofrido uma longa evolução histórica. Não esqueçamos, aliás, que o Estado Moderno nasce sem Constituição. 2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO DE DIREITO 2.1. O ESTADO LIBERAL DE DIREITO O Estado Liberal nasce com o crepúsculo do absolutismo, cujo momento culminante foi a Revolução Francesa. Tal manifestação social, de índole revolucionária foi marcante para fazer nascer a idéia da necessidade de se transformar a sociedade. A revolução francesa de 1789 pode ser considerada como o termo inicial de uma nova estrutura do Estado, verdadeiro berço de um novo pacto social, pois, reduzindo em conceitos jurídicos as idéias políticas e a realidade econômica da burguesia emergente, gerou “una présion directa e indirecta que los países angloamericanos – com sus ejemplos y modelos de Estado Constitucional – no habían producido em tal grado”.67 Pela primeira vez na história dos povos, verificou-se a universalização de um princípio político, como percebido por Paulo Bonavides: Escreveram os ingleses a Bill of rights, o Instrument of government; os americanos, as Cartas coloniais e o Pacto federativo da Filadélfia, mas só os franceses, ao lavrarem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, procederam como o apóstolo Paulo com o cristianismo. Dilataram as fronteiras da nova fé política. De tal sorte que o governo livre deixava de ser a prerrogativa de uma raça ou etnia para ser o apanágio de cada ente humano; em Roma, universalizou-se uma religião; em Paris, uma ideologia. Do homem-cidadão ao homem-súdito. 68 O Estado de Direito, também chamado de Estado Liberal de Direito, emergiu aliado ao conteúdo próprio do liberalismo, que impôs ao Estado a concretização do ideal Liberal, com base na consagração dos direitos humanos e na prioridade que se deve outorgar à tutela desses direitos, acima de qualquer outra razão de Estado. Desde a queda do poder feudal na Europa, a forma despótica e absoluta do poder político, fundamentada na vontade divina, gradativamente vai perdendo força, permitindo, assim, o aparecimento de novas teorias, como a do contrato social, que, embasada na idéia de que o homem está no centro da teoria política, define o Estado como o resultado de um pacto celebrado entre indivíduos livres e iguais, que a ele delegam a função de assegurar a sua liberdade e os seus direitos. Para os contratualistas, é o pacto social, feito 67 HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como história, actualidad y futuro Del Estado Constitucional. Madrid: Trotta, 1988. p. 59. 68 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 30. pelos cidadãos, que dá poder político ao Estado, sendo tal poder limitado, não podendo ultrapassar os limites da convenção geral69. O conceito de Estado de Direito tem sua origem em uma expressão alemã — Rechtstaat— e equivale aproximadamente a outra expressão inglesa, rule of law. Lenio Luiz Streck registra que: A idéia de Estado de Direito carrega em si a prescrição da supremacia da lei sobre a administração...o Estado de Direito não é mais considerado somente como um dispositivo técnico de limitação de poder, resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas; é também uma concepção que funda liberdades públicas e democracia...O Estado de Direito é, também, uma concepção de fundo acerca das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica.70 O Estado não é uma criação de Deus nem uma determinação divina, mas uma comunidade (res pública) a serviço do interesse comum de todos os indivíduos. Assenta-se sobre o princípio da legalidade, através da submissão da soberania Estatal à Lei, com a divisão tripartite dos seus poderes e a garantia dos direitos individuais, chamados de direitos de primeira dimensão, inclusive contra o próprio Estado. Os direitos de primeira geração – primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional – são os direitos de liberdade, direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, à instauração do Estado Liberal e àquela fase inaugural do Constitucionalismo no Ocidente. Têm por titular o indivíduo, sendo 69 RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 30. 70 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 87. oponíveis ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa. Ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico, com o intuito de resistir ou opor-se aos arbítrios do Estado. Privilegia-se, nesse novo momento histórico, o homem-singular, das liberdades abstratas, inserido na sociedade civil, também chamada sociedade mecanicista. Tais direitos possuem nítido caráter anti-estatal, a retratar a absoluta separação, à época, entre sociedade e Estado. Não havia qualquer compromisso do Estado com a realidade política, social e econômica da integralidade de seu povo, mas somente com a classe dominante, a burguesia. A índole maior desse Estado apresentava-se como uma garantia dos cidadãos frente a uma eventual ação estatal, isto é, uma limitação jurídico-negativa do Estado. De fato, todo esse processo de instauração do Estado Liberal é movido pelos interesses da burguesia, consoante princípios iluministas de racionalismo e antropocentrismo. Nesse contexto histórico, parte-se do pressuposto que o homem é anterior ao Estado, sendo, portanto, seu fundamento. Dá-se, então, uma inversão na perspectiva da garantia dos direitos do cidadão e dos deveres do Estado, que é regido, nesse aspecto, por dois princípios fundamentais: o princípio da distribuição e o princípio da organização. Pelo primeiro, partindo-se da idéia de que a liberdade individual é anterior à formação do Estado, possui esse, em princípio, caráter ilimitado, ao passo que a faculdade que o Estado tem para restringi-la, é, em princípio, limitada. Tal premissa resulta na circunstância que ao indivíduo é permitido fazer tudo aquilo que não lhe seja proibido e ao Estado, somente aquilo que lhe é permitido. 71 71 LEAL, Monia Clarissa Henning. A Constituição como princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri, São Paulo: Manole, 2003. p. 4. O segundo princípio mencionado, por sua vez, dá origem à técnica da separação dos poderes, forma ideal encontrada para pôr em prática o princípio da distribuição, segundo o qual o poder se divide em competências circunscritas (sistemas de freios e contrapesos), o que acentua ainda mais o caráter limitado da atuação estatal. Nessa ótica, o Estado passa a ter atribuições bem delimitadas, marcado pela limitação em seu atuar, sendo a lei o melhor instrumento para ordenar esses regramentos sobre competências e atribuição, além de assegurar – de forma genérica e impessoal – os direitos individuais. Como assevera Ernst Bockenforde72: Todos los princípios essenciales para el Estado de Derecho están incluídos institucionalmente em este concepto de ley. (...)el assentimiento de la representaciona del pueblo garantiza el principio de la libertad y la poscion de sujeito del ciudadano; la generalidad de la ley impiede ingerências em el âmbito de la libertad civil y de la socied más Allá de suas limitaciones o delimitaciones de caráter general, est és, válidas para todos por igual; el procediemento determinadoa por la discusion y la publicidad garantiza la medida de racionalidad que el contenido de la ley puede humanamente alcanzar. Entretanto, para poder vincular o Estado nessa nova ordem jurídica, é necessária a existência de uma lei especial, com status diferenciado, como afirma Rogério Gesta Leal73: o instrumento que melhor pode ordenar os regramentos sobre competências e atribuições, de uma maneira neutra e racional (sob a ótica liberal), é a lei; 72 BÖKENFÖRDE, Ernst Wolfgana. Estúdios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Madrid: Trotta, 2000. p. 23. 73 LEAL, Rogério Gesta. Persperctivas hermenêuticas dos Direitos Humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. pp. 123/124. entretanto, para que vincule inclusive o Estado ao respeito da mesma, ela deve ter um status diferenciado, capaz de efetivamente obrigar a todos os entes políticos: o de lei constitucional. Nasce, portanto a Constituição, que na ótica do Estado Liberal era o instrumento de garantia dos direitos de cada cidadão, em face dos poderes arbitrários do Estado, que não deveria intervir na esfera privada, palco de relações entre indivíduos livres e independentes, onde não deveria haver interferências externas. A razão de ser do Estado de Direito é a luta contra a arbitrariedade. Sua concepção liberal servirá de apoio aos direitos do homem, convertendo os súditos em cidadãos livres. Estado e Sociedade apresentam-se, então, como dois eixos paralelos e independentes, sendo esta colocada em oposição àquele, numa alusão à luta contra o absolutismo e a arbitrariedade, que até então vigoravam. O Estado liberal potencializava as liberdades individuais, inatas, que tinham o caráter de liberdades pré -políticas: o Estado formava-se exatamente para as proteger e não podia interferir na sociedade para as limitar, mas somente para as generalizar, “...impedindo os eventuais abusos cometidos no seu exercício. Um Estado, portanto, absolutamente neutral perante os interesses econômico-sociais que se digladiavam na sociedade”74. Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou por seus delegados, o exercício por muitos, eleitos pela coletividade. Em vez da razão do Estado, o Estado sendo o executor de normas jurídicas; em vez de súditos, cidadãos, conferindo-se a todos os homens, apenas por serem homens, direitos consagrados na Lei. Eis o Estado de Direito, onde os principais instrumentos técnico-jurídicos são a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a separação de poderes e a representação política75. O Estado de Direito era, portanto, um conceito tipicamente liberal, daí se falar em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas, enumeradas por Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Moraes eram: a separação entre o Estado e a Sociedade, mediadas pelo Direito; as garantias das liberdades individuais; o submetimento do Estado ao império da lei; a divisão de poderes; e o enunciado e garantia dos direitos individuais76. Essas exigências continuam sendo postulados básicos do Estado de Direito, e configuram a grande conquista da civilização liberal. Interessante ressalvar que a Constituição e o Constitucionalismo, nesse contexto histórico, constituem-se mais em instrumentos de manutenção da ordem estabelecida – numa tentativa da burguesia emergente que tomara o poder de defender-se do Estado e manter as conquistas obtidas com a revolução – do que caracterizarem-se como mecanismos de transformação social. Isto denota ser a propalada neutralidade do Estado, neste aspecto, uma postura em favor da classe burguesa, constatando-se, pois, que a Constituição e 74 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 154. 75 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 1982. Tomo I, p. 77. o Estado liberal impunham a parcialidade do Estado em prol de uma classe, numa postura de verdadeira “imparcialidade parcial”77, percebida por Carl Schmitt, que alertou para esta pseudo-neutralidade como um instituto falacioso, asseverando “no hay ninguna constituicion que sea, puramente e sin resíduo, um sistema de normas jurídicas para la protección del indivíduo frente al Estado.”78 Esse falso absenteísmo imposto à figura do Estado gerou, portanto, uma forte desigualdade social, em manifesto contraponto à igualdade formal pregada pelo ideário liberal. O sucesso político da revolução liberal trouxe não mais a contradição entre Estado e sociedade, mas sim entre a burguesia e o proletariado, em inconciliável conflito face a um Estado inerte. A igualdade reivindicada passa a ter outro matiz. O princípio da igualdade passa a ser não mais meramente formal, tutelada pelo ideário liberal, onde o direito é teoricamente igual para indivíduos também teoricamente iguais. A igualdade passa a ser perseguida não apenas perante a lei, mas será substancializada através dela. 76 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 90. STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 155 78 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, [s.d.]. p. 145. 77 Diante desse quadro, surgem, a partir do começo do século XX, fortes movimentos sociais, alavancados pelas lutas operárias, que vai resultar na criação de um novo modelo estatal, denominado Estado Social. 2.2. O ESTADO SOCIAL DE DIREITO O absenteísmo do Estado liberal causou inúmeras injustiças na sociedade, formada por pretensos indivíduos formalmente iguais, mas substancialmente diferentes, tendo os movimentos sociais do século passado revelado as insuficiências das liberdades burguesas, permitindo, assim, que se tivesse consciência da necessidade de justiça social. Neste sentido, assinala Pablo Lucas Verdú79: [...] el Estado de Derecho, ya no podia justificarse como liberal, necesitó para afrontar la marea social arrojar por la borda su neutralidad, integrar em su seno a la sociedad sin renunciar al primado del derecho. El Estado de Derecho, em la actualidad, dejó de ser formal, neutral e individualista, para transformarse em Estado material de derecho, em cuanto adopta una dogmática y pretende la justicia social. O objetivo inicial de deixar à livre ação dos cidadãos a satisfação de suas necessidades materiais restou frustrado ao longo das transformações econômicas, sociais e industriais dos séculos XIX e do início do século XX. Tais fatos 79 VERDU, Pablo Lucas. La lucha por el Estado de Derecho. Bolonia.: Publicaciones Del Real Colégio de Espana, 1975. p. 94. afetaram o pensamento político e econômico e fizeram com que o Estado passsasse a intervir no meio social, a fim de garantir condições mínimas de vida e de dignidade. A base de tal transformação foi a constatação da incapacidade do sistema liberal-burguês de lidar com o sistema capitalista. Assim, o Estado Liberal, gradativamente, converteu-se em um Estado Social, mais intervencionista na vida econômica e social, também denominado Estado do Bem-Estar ou “Welfare State”. Note-se que a adoção de medidas corretivas de rumo no sistema capitalista auto-regulado não consubstanciou uma ruptura no modelo liberal vigente, mas sim mera adaptação, correção de rumo, a fim de atender aos anseios da classe dominante e evitar um desequilíbrio brusco na ordem econômico-social vigente, a exemplo da Revolução Russa de 1917. O Welfare State apresenta-se como uma amálgama do capitalismo dominante na Europa, como solução “paliativa” entre o capitalismo e o socialismo incipiente pregado pela esquerda, de inspiração soviética, que pretendia se expandir a partir da URSS. Também chamado de Estado-Providência, ou, como prefere Ingo Wolfgang Sarlet, “Estado Social de Direito”, assim o conceituando: Todas [as expressões], porém, apresentam, como pontos em comum, as noções de um certo grau de intervenção estatal na atividade econômica, tendo por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade material e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais mínimas para uma existência digna. Neste contexto, para justificarmos nossa opção dentre as variantes apontadas, entendemos que o assim denominado Estado Social de Direito constitui um Estado Social que se realiza mediante os procedimentos, a forma e os limites inerentes ao Estado de Direito, na medida em que, por outro lado, se trata de um Estado de Direito voltado à consecução da Justiça Social.80 80 SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. In: O Direito Público em Tempos de Crise, Estudos em Homenagem a Rui Ruben Ruschel. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 132. Diante desse quadro de degradação social, o Estado não mais podia ser mero espectador, devendo intervir diretamente nas questões sociais, passando de ente meramente passivo (com a obrigação de não intervir na esfera dos direitos individuais constitucionalmente assegurados) a promotor de bens e serviços e devedor de uma prestação positiva a ser assegurada a uma parcela mais abrangente da sociedade, especialmente das classes menos favorecidas. Caracteriza-se como modelo estatal capaz de compatibilizar, em um mesmo sistema, como asseverado por José Afonso da Silva81, dois elementos: “o capitalismo, como forma de produção, e a consecução do bem estar social geral, servindo de base ao neocapitalismo típico do Welfare State. Esta transformação do perfil do Estado liberal em Estado Social foi assinalada por Ernst Forsthoff, para quem Como conseqüência de la falta de reservas existenciales próprias, el individuo há transferido al Estado la exigência natural de seguridad. Del Estado se esperan las ayudas que les permitam subsistir a través de las diversas crisis que puedan afectarles, tanto si es el paro, enfermedad, falta de habitación, como la pérdida del país natal. Ningún Estado moderno puede defraudar tales esperanzas sin amenazar com ello su propra existência; por eso mismo tiene que enfrentarlas.82 É rompida, definitivamente, a idéia liberal de uma “harmonia preestabelecida” e de uma justiça inerente às relações sociais, de maneira que não mais se admite que a ordem econômica e social seja capaz de produzir justiça ao funcionar livremente. Estado e Sociedade sofrem um processo de aproximação – diametralmente 81 SILVA, José Afonso. op. cit., p. 105. FORSTHOFF, Ernest. Problemas Constitucionales Del Estado Social. In: El Estado Social. Madrid.Centro de Estúdios Constittucionales, 1986. p. 53. 82 inverso do que havia no Estado Liberal, onde se posicionavam em pólos opostos – em decorrência da perda da noção de que as relações interindividuais podiam auto-regular-se, vindo a sociedade a buscar no Estado a intervenção reguladora que carecia. É possível dizer, então, com Lenio Luiz Streck, que: [...] a transformação no viés intervencionista do Estado Moderno Liberal o faz assumir responsabilidades organizativas e diretivas do conjunto da economia do País, em vez de simplesmente exercer poderes gerais de legislação e polícia, próprias do perfil do Estado Mínimo, como era até então conhecido.Em virtude disto, pode-se dizer que o Estado do Bem-Estar Social constitui uma experiência concreta da total disciplina pública da economia, assumido como modelo de futuros objetivos autoritários da política econômica e ao mesmo tempo cria hábitos e métodos dirigistas dificilmente anuláveis.83 Nessa linha de raciocínio, constitucionalizam-se direitos que, contrariamente aos direitos de liberdade, caracterizadores do Estado Liberal, não são meros poderes de agir, mas poderes de exigir. Os textos constitucionais catalogaram propósitos emancipatórios, tendo como meta a correção de rumo da sociedade, ou a própria transformação da ordem econômica e social. São os direitos fundamentais de segunda geração. Esses direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos nas Cartas Magnas das distintas formas de Estado Social, depois de terem germinado por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século passado, nasceram vinculados ao princípio da igualdade, do qual não podem se separar, sendo proclamados, após formulações especulativas de índole filosófica e de acentuado cunho ideológico, nas declarações solenes das Constituições Marxistas e também nas dos países da social-democracia84. Cumpre observar que, no Estado Social, tais direitos passaram primeiro 83 STRECK, Lenio Luiz, e MORAES, José Luiz Bolzan de. op.cit., p. 65. “[...] o modelo constitucional do Welfare State principiou a ser construído com as Constituições Mexicana de 1917 e a de Weimar, de 1919, sem ter uma aparência uniforme”. O conteúdo desta forma estatal se altera, reconstrói e se adapta a situações diversas. O Estado do bem estar se diferencia na América do Norte, na França 84 por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais, nem sempre respeitadas por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios ou recursos. O Estado social se contrapõe à estrutura dos ordenamentos liberais, que não admitiam ingerências do Poder Público na organização econômica. O Estado social reclama outra concepção da política baseada na ação estatal com o fim de equilibrar a balança da justiça e garantir juridicamente aos cidadãos assistência e sustento para suas necessidades. Note-se, por oportuno, que o Estado social de Direito ou Welfare State nem sempre se caracterizava como Estado de índole democrática. O Estado Democrático se funda no princípio da soberania popular, que [...] impõe a participação efetiva do povo na administração pública, participação que não se esgota com a simples formação das instituições representativas, as quais constituem um estágio da evolução do Estado 85 democrático, mas não seu completo desenvolvimento. O Estado social, por sua vez, pôde tolerar regimes políticos antagônicos, como são a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. Assevera Paulo Bonavides86 que a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista e Portugal salazarista foram Estados Sociais. Da mesma forma, também foram Estados Sociais a ou na Europa setentrional, mas “há um caráter que lhe dá unidade: a intervenção do Estado e a promoção de serviços.” STRECK, Lenio Luiz, e MORAES, José Luiz Bolzan de. op.cit., p. 141. 85 Cf. Emilio Crosa, “Lo Stato democratico”, p. 25, citado por José Afonso da Silva, op. cit., p. 118. 86 BONAVIDES, Paulo. Do Estado, cit., p. 184. Inglaterra de Churchill e Attlee, os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt, a França com a quarta República e o Brasil, desde a Revolução de 1930. Quando o Estado passa a ser o Estado de todas as classes ou o Estado conciliador, mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital, buscando superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social e legitimado pela vontade do povo, produz-se uma importante transformação, que é a instauração do Estado Democrático de Direito, a seguir examinado. 2.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Na verdade, o conceito é novo e deve-se levar em conta outro componente a ser adicionado àqueles já existentes. Estarão presentes, nesse novo modelo, as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social, tudo constituindo um novo conjunto em que a preocupação básica será a transformação social, ou, no dizer de Lenio Luiz Streck, “a transformação do status quo.”87 87 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. Ciência política, cit., p. 92. Com efeito, como observado por Manuel Garcia-Pelayo88, o Estado de Direito “... significa, assim, uma limitação do poder do Estado pelo Direito, porém não a possibilidade de legitimar qualquer critério concedendo-lhe a forma de lei”, mas é indispensável que seu conteúdo reflita um determinado ideário, ou como já explicitado por Lenio Luiz Streck “... para o Estado ser de Direito, não é suficiente que seja um Estado legal”89. Se se concebe o Direito como um conjunto de normas estabelecidas pelo Legislativo, o Estado de Direito passa a ser um Estado legislativo. Assim, todo Estado deve ser Estado de Direito, ou seja, o direito positivo, como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo, chegando a uma idéia formalista do Estado de Direito, que também pode servir a interesses ditatoriais90. Se o direito se confunde com o mero enunciado formal da lei, privado de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade política, social, econômica e ideológica, todo Estado acaba sendo um Estado de Direito, ainda que totalitário. O Estado social da democracia difere dos Estados sociais dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, em seu aspecto jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade. 88 GARCIA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones Del Estado Contemporâneo. Madrid:Allianza. 1982. p. 52. 89 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 93. 90 PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 232. Ao vincular a expressão democrática ao Estado para qualificálo, todos os valores da democracia (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana) se propagam sobre os elementos constitutivos do Estado e também sobre a ordem jurídica. O direito, então, revestido por esses valores terá que ajustar-se ao interesse coletivo. É da essência de seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais (..) A Lei deve influir na realidade social (..,). A tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito consiste em superar as desigualdades sociais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social.91 As transformações sociais originadas pelo aparecimento das novas classes trabalhadoras geradas pela Revolução Industrial e o crescimento urbano constituíram a base onde se produziram as revoluções democráticas na segunda metade do século XIX, que reivindicavam a plena participação de outros setores no sistema político, além dos setores burgueses afiançados pelo liberalismo. Para o liberalismo político, a questão-chave na organização do Estado era que os distintos poderes ou funções estatais estivessem divididos e submetidos a regras que garantiriam a liberdade privada. Para o novo movimento democrático que começa a despertar por toda Europa, o essencial é, no entanto, que o poder político esteja legitimado por sua origem popular e pela participação de todos na tomada de decisões. Assim, o Estado Democrático de Direito traz em seu bojo, um plus normativo, um conteúdo utópico de transformação da realidade, que o difere do Estado 91 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 110 Liberal, onde a lei possuía um conteúdo geral e abstrato, destinada a limitar a ação estatal e também do Estado Social, onde a lei, além da restrição à atividade estatal, assumia um papel de implementação das prestações exigidas do Estado. De fato, no Estado Liberal de Direito, onde se privilegiam as liberdades negativas através da regulação das atividades estatais, a lei caracteriza-se como ordem geral e abstrata, regulando as relações sociais através do não impedimento ao seu livre desenvolvimento. O personagem principal é o indivíduo. Já no Estado Social de Direito, ao ideário liberal anterior agrega-se a denominada questão social que traz à tona os problemas decorrentes das relações de produção e dos novos conflitos emergentes entre o capital e o trabalho. A lei está presente limitando o Estado, mas também coadjuvada por um conjunto de prestações positivas que tentam buscar um equilíbrio não alcançado na sociedade eminentemente liberal. A ordem jurídica destina-se agora a ser um instrumento de ação concreta do Estado, como mecanismo de promoção social. Os grupos passam a ser os protagonistas desse momento social. No entender de Elias Diáz, há que se fazer distinção entre o Estado Social de Direito e o Estado Democrático de Direito: o primeiro se caracteriza pela atitude paternalista do Estado, que assume a função de produtor de bens e serviços e o segundo, pela tendência à transformação da ordem estabelecida, o que pressupõe a participação da sociedade, gerando o seu caráter democrático.92 92 DÍAZ, Elias. El Estado Democrático de Derecho em la Constitución española de 1978. Madrid: Sistemas, 1981. p.46. O Estado Democrático de Direito, entretanto, possui na sua essência [...] um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública, quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, sobre a ordem jurídica.93 Com efeito, quando assume a condição de democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade e não mais lhe basta a limitação à atividade do Estado nem a promoção de atuação estatal. A democracia, como realizadora dos valores da convivência humana, é conceito bem mais abrangente do que o Estado de Direito, cunhado pelo liberalismo. O Estado Democrático de Direito agrega os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, mas não como simples reunião formal de seus elementos, e revela um conceito novo que os supera, à medida que incorpora um componente de transformação do status quo. Cabe aqui a advertência de Pablo Lucas Verdú, acerca da evolução entre tais fases/dimensões do Estado, onde aponta que esta transformação se deu com caráter pacífico, conservando, cada uma destas fases, elementos da seguinte94: 93 94 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 93. VERDU, Pablo Lucas. op. cit., p. 134. Recordemos que la formula Estado Social y democrático de Derecho es uma síntesis constitucional de contraposiciones doctrinales y reales que han seguido el proceso histórico-ideológico e institucional: Estado liberal de Derecho, Estado Social de Derecho e Estado Democrático de Derecho. Quiero decir que cada uma de estas fases es no solo cuantitativa, además es cualitativamente diferente de la anterior, pero, sin embargo, desarrolla la inmediatamente precedente y prepara a la inmediatamente posterior.” A novidade do Estado Democrático de Direito é a incorporação da questão da igualdade aos modelos anteriores como um conteúdo próprio a ser buscado, através de medidas assecuratórias ao cidadão e à comunidade, de condições indispensáveis à vida, com dignidade. Há um propósito solidário, até então inexistente, que inclui solucionar os problemas da vida individual e coletiva. Sua principal tarefa, de índole fundamental, consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social, plasmado num processo de convivência numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, II, da Constituição). No Estado Democrático de Direito, é de primordial importância a atuação do Ministério Público como agente indutor do processo de transformação social esperado pelo povo, no exercício de sua vocação constitucional para a defesa dos interesses indisponíveis da sociedade. Não foi por acaso que o constituinte traçou para o Ministério Público, no Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988, nítido perfil de órgão agente, promotor de medidas, empregando nos quatros primeiros incisos do art. 129, que define suas funções institucionais, o verbo “promover”, demonstrando, assim, que à Instituição cabe atuar como promotor, como agente da transformação social determinada pela nova ordem constitucional, o que será explicitado no capítulo seguinte. CAPÍTULO 3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O SEU POSICIONAMENTO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: APONTAMENTOS DE LEGISLAÇÃO COMPARADA Uma das características do Estado de Direito é a técnica da separação de poderes, consoante propugnada por Montesquieu e já referida no capítulo anterior. Tal tripartição é institucionalizada pelo Estado Democrático de Direito brasileiro, na Constituição de 1988, que, em seu art. 2.º, adota os três Poderes imaginados pelo teórico da Revolução Francesa: Legislativo, Executivo e Judiciário, com características de independência e harmonia. A separação de poderes e o reconhecimento dos direitos fundamentais dos membros da sociedade consolidam os regimes constitucionais que garantem efetivamente a liberdade do cidadão. Entretanto, isso também se deve à consagração do princípio democrático e ao estabelecimento de instituições de índole democrática na estrutura do Estado. O Estado de Direito, como já estudado, caracteriza-se pela submissão de suas atividades ao império da lei, o que não ocorria no Estado absoluto, onde todas as funções se concentravam nas mãos do soberano, com poderes ilimitados para elaborar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos. “O Estado sou eu”, já asseverava o monarca francês Luís XIV, o Rei Sol. A ordem jurídica não se diferenciava da vontade do rei. Desse modo, o Poder Público era alheio à ordem jurídica, não se submetia a ela, que estava dirigida apenas aos súditos, resultando na sentença: the king can do no wrong. O Ministério Público no Estado Democrático de Direito idealizado em 1988 é conseqüência da necessidade de defender os elevados interesses da sociedade, na fiel aplicação e execução da lei. Como bem observa Lenio Luiz Streck95, “...o poder constituinte arquitetou o Ministério Público como autêntico órgão de defesa social, dotando-o dos atributos de perenidade e essencialidade (art. 127). De fato, sendo o Ministério Público criação posterior à teoria da separação dos poderes, incabível situá-lo, no Estado Democrático de Direito, em um dos poderes constituídos, já que tal classificação destoaria das rígidas linhas de repartição imaginadas por Montesquieu. Há que se mencionar, nesse aspecto, a pioneira posição de Alfredo Valladão, em artigo publicado no Jornal do Commercio que circulou em 19 de abril 95 STRECK, Lenio Luiz e FELDEN, Luciano. Crime e Constituição. A Legitimidade da Função Investigatória pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 11 . de 191496, em que o publicista e posteriormente Ministro do Tribunal de Contas vislumbrava as atividades do Ministério Público como próprias de um quarto Poder do Estado: As funções do Ministério Público subiram, pois, ainda mais, de autoridade, em nossos dias. Ele se apresenta como a figura de um verdadeiro poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o ‘Espírito das Leis” por certo não seria tríplice, mas quádrupla a divisão de poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa , ao que julga,um outro órgão acrescentaria ele - o que defende a sociedade e a lei perante a justiça, parta a ofensa donde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estador tanto se a ofensa parte dos indivíduos como dos próprios poderes do Estado. A natureza das funções institucionais do Ministério Público e seu posicionamento peculiar no Estado contemporâneo também não passaram despercebidas a Prudente de Moraes Filho, constituinte de 1934, que, ao justificar a opção da posição do Parquet naquela Constituição (“Órgão de Cooperação”)97, assegurava: “É uma magistratura especial, autônoma, com funções próprias. Não recebe ordens do Governo, não presta obediência aos juízes. Atua com autonomia e em nome da sociedade, da lei e da justiça”. Com efeito, consoante asseverado por João Gaspar Rodrigues, ao perceber a especial posição da Instituição : “O Poder Judiciário, sem o Ministério Público, fica incompleto. Não pode funcionar. Por isso é que o Ministério Público é mais que um órgão auxiliar ou de cooperação. É peça fundamental do sistema”98. ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC: Editora Sumaré: FABESP, 2002. p. 19. 97 LYRA, Roberto. op.cit., p. 65. 98 RODRIGUES, João Gaspar. O Ministério Público: princípios, atribuições e seu posicionamento no ordenamento jurídico. Disponível em www.buscalegis.com.br. Acesso em 20/01/06. 96 O Ministério Público, com efeito, tem como principal missão a defesa do Estado Democrático de Direito e de uma ordem jurídica em que predominem os direitos humanos, manifestando tal viés na defesa dos grupos sociais considerados econômica e socialmente mais débeis e, por tal motivo, merecedores de proteção especial de acordo com o direito social. Assim, o Ministério Público passa a ter um importante papel como instituição mediadora nos conflitos de interesses sociais. Os grandes litígios necessitam ser afrontados por um órgão independente e fortalecido, com segurança suficiente para garantir a eficácia dos interesses sociais e a defesa dos fins do Estado, entre os quais sobressai o bem comum. Como ressaltado por Antonio Camargo Ferraz: o papel do Ministério Público está diretamente relacionado com as novas características do Direito Social, na medida em que o fundamento de intervenção do Promotor no âmbito do aparato judicial é o de defensor direto dos interesses sociais (sejam eles coletivos, difusos ou individuais imbuídos de interesse social).99 A estrutura formal do Ministério Público e a pretensão dos distintos poderes do Estado de instrumentalizar a seu favor a instituição, têm produzido, no ordenamento jurídico internacional, uma variedade de sistemas que diferem quanto a inserção do Ministério Público na estrutura do Estado. No que concerne ao sistema constitucional brasileiro, a matéria já foi examinada pelo STF, em voto da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, para quem, na verdade, 99 CAMARGO FERRAZ, Antônio Augusto. Ministério Público — Instituição e processo. São Paulo: Atlas, 1997. p. 55. [...] a colocação tópica e o conteúdo normativo da seção revelam a renúncia por parte do constituinte de definir explicitamente a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado. Desvinculado do seu compromisso original da defesa judicial do erário e a defesa dos atos governamentais aos laços de confiança do executivo, está agora cercado de contraforte de independência e autonomia que o credenciam ao efetivo desempenho de uma magistratura ativa de defesa impessoal da ordem jurídica ou democrática, dos direitos coletivos e dos direitos da cidadania. E, citando o Ministro Rodrigues Alkmin, discorre ... a questão da colocação constitucional do Ministério Público entre os Poderes é uma questão de somenos, pois o verdadeiro problema é sua independência. O mal é que partimos de um preconceito de unipessoalidade e oriundos de um preconceito de unipessoalidade e verticalidade hierárquica do poder executivo, que o Estado moderno não conhece mais e que está desmentido pelos fatos, de que o direito comparado dá exemplos significativos... Garantida efetivamente a sua independência, a colocação constitucional do Ministério Público é secundária de interesse quase meramente teórico.100 No entanto, a posição constitucional do Ministério Público na estrutura jurídico-política do Estado contemporâneo revela a integração ou a equação entre dependência e independência da instituição em relação aos poderes do Estado e a sua função como órgão indutor da transformação social desejada pelo Estado Democrático de Direito. Assim, necessária uma breve incursão na legislação comparada para analisar o posicionamento constitucional do Ministério Público no âmbito dos poderes constituídos dos Estados do século XXI, especialmente aqueles que se caracterizam como 100 Voto proferido. In: Revista Trimestral de Jurisprudência. n.º 147, pp. 129-130. democráticos, ora como instituição integrada nos poderes estatais, ora como órgão de direta extração constitucional, analisando-se especialmente sua autonomia institucional, a forma de investidura da sua Chefia e de seus membros, bem como as funções que lhe são cometidas pela ordem jurídica ali vigente. 1. APONTAMENTOS NA LEGISLAÇÃO COMPARADA ACERCA DA POSIÇÃO CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO: 1.1. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO INTEGRADO AO PODER JUDICIÁRIO A inserção do Ministério Público na estrutura do Poder Judiciário como órgão vinculado a esse poder é uma opção presente na estrutura constitucional de vários países democráticos. A análise dessa circunstância, como bem assinalado por José Eduardo Sabo Paes, serve para iniciar o debate sobre a natureza do Ministério Público, podendo-se dizer que [...] até as transformações do moderno Estado de Direito, o debate sobre a natureza do Ministério Público vinha girando sobre uma dialética recorrente: a defesa pública da legalidade haverá de estar integrada dentro das responsabilidades do Estado-aparato e, portanto, haverá de ser assumida por uma estrutura orgânica e funcionalmente dependente do Governo; de outra parte, a ação pública haverá de ser um instrumento de garantia integrado nos mecanismos de controle do poder, cuja legitimação arranca, seja da soberania popular por meio de um sistema eletivo direto ou indireto —, seja por meio da independência e submissão à lei como ocorre com o Poder Judiciário.101 Adiante serão analisados alguns países que optaram por essa colocação topográfica. 1.1.1. Espanha: Na Espanha, a Constituição de 1978 inclui o Ministério Público no art. 124, inserido dentro do título VI, denominado “Do Poder Judicial”102. Apesar de tal dispositivo constitucional ser taxativo quanto à posição topográfica da Instituição, parte da doutrina local entende que o Ministério Público Espanhol é vinculado ao Poder Executivo, como citado por Andréa Cristiane Kahmann em estudo sobre o tema103, fundada na vinculação que esse Poder Executivo ainda exerce sobre a Instituição. 101 PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 249. O autor cita Jiménez Villaiejo, em “EI Ministerio Fiscal dentro dei Poder Judicial”, Poder Judicial, núm. 3, junho de 1982, p. 81, para quem o assunto versa sobre ‘aquela velha ambigüidade, tantas vezes assinalada, que fazia oscilar o Ministério Público, alternativa e interminavelmente, entre o Poder Judiciário e o Poder Fxecutivo”. 102 ESPANHA. Constitução Espanhola de 27 de dezembro de 1978. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 25/01/2006. “TITULO VI Del Poder judicial. Artículo 117. 1. La justicia emana del pueblo y se administra en nombre del Rey por Jueces y Magistrados integrantes del poder judicial, independientes, inamovibles, responsables y sometidos únicamente al imperio de la ley. Artículo 124. 1. El Ministerio Fiscal, sin perjuicio de las funciones encomendadas a otros órganos, tiene por misión promover la acción de la justicia en defensa de la legalidad, de los derechos de los ciudadanos y del interés público tutelado por la ley, de oficio o a petición de los interesados, así como velar por la independencia de los Tribunales y procurar ante éstos la satisfacción del interés social. 2. El Ministerio Fiscal ejerce sus funciones por medio de órganos propios conforme a los principios de unidad de actuación y dependencia jerárquica y con sujeción, en todo caso, a los de legalidad e imparcialidad. 3. La ley regulará el estatuto orgánico del Ministerio Fiscal. 4. El Fiscal General del Estado será nombrado por el Rey, a propuesta del Gobierno, oído el Consejo General del poder judicial. Artículo 127. 1. Los Jueces y Magistrados, así como los Fiscales, mientras se hallen en activo, no Podrán desempeñar otros cargos públicos, ni pertenecer a partidos políticos o sindicatos. La ley establecerá el sistema y modalidades de asociación profesional de los Jueces, Magistrados y Fiscales. 2. La ley establecerá el régimen de incompatibilidades de los miembros del poder judicial, que deberá asegurar la total independencia de los mismos.” 103 KAHMANN, Andréa Cristiane. O Ministério Público e seu posicionamento em frente aos Poderes do Estado: Uma análise sob a ótica do direito constitucional comparado. In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF e Territórios. Brasília, ano 12, volume 23, jan/dez/2004. pp. 11/27. A autora cita, em abono desta idéia, a obra de Marcelo Huertas Contreras, intitulada El Poder Judicial em la Com efeito, o órgão é chefiado pelo Fiscal Geral do Estado, designado pelo Governo, após aprovação do Conselho Geral do Poder Judicial, o que denota a ingerência do Executivo na Instituição, que possui matriz judicial. Nomeado formalmente pelo Rei, consoante art. 124, § 4º, da Constituição, o Chefe da Instituição pode ser por ele livremente demitido, demonstrando-se uma vinculação que pode comprometer a independência de atuação da Chefia institucional. O Ministério Fiscal da Espanha tem por missão “sem prejuízo das funções cometidas a outros órgãos”, promover a ação da justiça em defesa da legalidade, dos direitos do cidadão e do interesse público tutelado pela Lei, velando pela independência dos Tribunais e “procurar, perante esses, a satisfação do interesse social”. Sua estrutura infra-constitucional é estabelecida por Lei Orgânica ( Lei nº 50, de 30 de dezembro de 1981), onde, no art. 2º, fica claro que a Instituição, dotada de autonomia funcional, integra o Poder Judiciário. Dentre suas funções, previstas no art. 3º do aludido Estatuto, destaca-se a defesa dos direitos fundamentais e liberdades públicas e o zelo pelas decisões judiciais que sejam relevantes para o interesse público e social. A questão do posicionamento constitucional é meramente formal, já que o Ministério Público aparece integrado ao Poder Judiciário “como magistratura constitucion Espanõla.Granada:Servicio de Publicaciones de la Universidad de Granada, em que este, apoiado em outros doutrinadores (Mosquera, Gil Albert, Gordilho, Calvo-Rubio, Granados e Perez-Gordo sustentam que o Ministério fiscal é vinculado ao Poder Executivo, apesar da posição topográfica em que foi inserifo pelo Poder Constituinte Espanhol. No Brasil, Alexandre de Moraes comunga do posicionamento, apoiado no jurista espanhol José Manuel Bandrés. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo:Atlas, 2004. p. 517. não decisória - que se quer autônoma desvinculada do Poder Político e submetido aos princípios da legalidade e imparcialidade”.104 Desse modo, estaria separada a função de administrar justiça entre uma magistratura postulante (Ministério Público) e uma magistratura decisória (Juízes e Tribunais). Como asseverado por José Jiménez Villarejo: [...] determinadas missões, sem dúvida por sua transcedental importância na sociedade democrática que se pretende construir, se atribuem ao mesmo tempo a dois órgãos separados, um com função promotora, outro com função decisória. Deve-se falar, em conseqüência, da coexistência dentro do Poder Judiciário de duas Magistraturas ígualmente insubstituíveis para a realização da Justiça, organicamente autônomas e funcionalmente coordenadas.105 Os tribunais constituiriam uma magistratura decisória, que contaria com o princípio da independência, e o Ministério Público, uma magistratura postulante, que viria informada pelos princípios de unidade e dependência hierárquica, ainda que “ambas professem como comum e mais alto valor o da legalidade.”106 Com efeito, a independência funcional não é atributo dos membros do Ministério Público Espanhol, que agem por delegação da Chefia Institucional, amparada pelo art. 124, § 2º, da Constituição (que instituiu a unidade de atuação). Podem ser substituídos pelo seu superior hierárquico com mera comunicação ao Conselho Fiscal (art. 23 104 O autor cita, entre outros autores, FLORES PRADA, Ignácio. “El Ministério Fiscal em Espanã. Tirant lo Blanch y Universidad Carlos III de Madrid, Valencia, 1999, p. 316 e CONDE-PUMPIDO FERREIRA, Candido. “La naturaleza.y los princípios rectores Del Ministério Fiscal em la Constitución y el nuevo Estatuto Orgânico, El Poder Judicial, v1, Instituto de Estudos Fiscales, p. 119. 105 VILLAREJO, José Jiménez. El Ministerio Fiscal, dentro del Poder Judicial (Notas para el planteamiento de unas relaciones). In: Poder Judicial, n. 3 (1 epoca), junho/1982, p. 83. da Lei nº 50/81, que é o Estatuto do Ministério Público Espanhol), sendo-lhes facultado, entretanto, opor o direito de resistência, que lhes permite fundamentar sua decisão de opor-se à ordem considerada ilegal107. Os cargos do Ministério Fiscal são providos por concurso público, sendo-lhe vedadas a ocupação de outros cargos públicos e a filiação partidária ou sindical108. Sem dúvida, a similitude de origem, formação, regime remuneratório, ascensão e incompatibilidades dos membros da carreira ministerial com os da judicial e também a submissão aos princípios de legalidade e imparcialidade, são dados que apontam para a integração do Ministério Público no Poder Judiciário na Espanha, com as nuances ora descritas, que podem dificultar a livre atuação na defesa do Estado Democrático de Direito. 1.1.2. Itália: Também na Itália, a “Constituzione Della Repubblica Italiana”, de 1947, previu a inclusão do Ministério Público junto à Magistratura, ao dispor em seu art. 106 VILLAREJO, José Jiménez. Op. cit. , p. 251. GARCIA, Emerson. Ministério Público: Organização, Atribuições e Regime Jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 27. 108 Idem, p. 27. 107 107109 que o Poder Judiciário é composto por magistrados judicantes e por aqueles que exercem funções próprias de Ministério Público. Aponta a doutrina que o motivo de tal inserção, logo após a queda do regime fascista, seria a desconfiança que a sociedade italiana nutria pelo Poder Executivo, tendo retirado, então, dos futuros governos a disponibilidade da ação penal110. Dessa forma, os órgãos judiciais italianos, dividem-se, de maneira singular, em órgãos julgadores e inquisitivos, tendo essa peculiaridade sido ratificada pelo Tribunal Constitucional Italiano, que “descreveu a natureza da figura do Promotor de Justiça desse ordenamento jurídico como um magistrado pertencente ao poder judiciário, colocado em posição de independência institucional com respeito a qualquer outro poder.”111 O Poder Judiciário Italiano, desse modo, reúne magistrados judicantes e do Ministério Público na mesma carreira, sujeitos ao mesmo estatuto e à mesma autoridade disciplinar do Conselho Superior da Magistratura, devendo-se ressaltar a singular peculiaridade da Instituição, que permite a transposição das funções exercidas por seus integrantes, que ora podem estar exercendo atividades de Ministério Público ora podem estar 109 ITÁLIA, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ITALIANA, DE 27 DE DEZEMBRO DE 1947. Disponível em www.planalto.gov.br, acesso em 26/01/2006. “Art. 107. I magistrati sono inamovibili. Non possono esseredispensati o sospesi dal servizio né destinati ad altre sedi o funzioni se non in seguito a decisione del Consiglio superiore della magistratura, adottata o per i motivi e con le garanzie di difesa stabilite dall’ordinamento giudiziario o con il loro consenso. Il Ministro della giustizia ha facoltà di promuovere l’azione disciplinare. I magistrati si distinguono fra loro soltanto per diversità di funzioni. Il pubblico ministero gode delle garanzie stabilite nei suoi riguardi dalle norme sull’ordinamento giudiziario. 110 DÍEZ-PICAZO. Luís Maria. El poder de acusar: Ministério fiscal y coinstitucionalismo. Barcelona:Ariel Derecho. 2000. p. 189. 111 DÍEZ-PICAZO. Luís Maria. Op. cit., ao comentar a sentença nº 96, de 1975 daquela Corte, que aborda a posição do Ministério Público italiano consoante Kahmann, Andréa Cristina, Revista Fund. Esc. SuperiorMPDFT. Brasília, Ano 12, volume 23, p. 11/27, Jan/Dez. 2004. exercendo atividades judiciais, o que trouxe, na opinião de Luis Maria Diés-Picazo112, duas importantes conseqüências: (1) o desenvolvimento de uma forte identidade corporativa, independente da diversidade de funções; (2) a tendência a se conceber os atos do Ministério Público, e, em particular, o exercício da acusação no processo penal, como parte integrante da função jurisdicional. Cabe lembrar, entretanto, que apesar do Sistema Italiano, desde 1946113, não prever nenhuma dependência funcional hierárquica ou disciplinar em relação ao Poder Executivo, encontra-se em pleno vigor o art. 39 do Real Decreto-Lei nº 511/46, que dispõe sobre o poder de vigilância do Ministro da Justiça, o qual tem legitimidade para instaurar procedimento disciplinar sobre os membros do Ministério Público: “Il Pubblico Ministereo esercita, sotto la vigilanza Del Ministro della Giustizia lê funzioni Che la lege gli atribuisce.” Paulo César Pinheiro Carneiro assevera que o poder do Ministro da Justiça, na prática, ainda é grande, já que além de poder instaurar o procedimento disciplinar contra o membro da instituição, “é ele quem escolhe os 23 Procuradores-Gerais de segundo grau, que, por seu turno, controlam os 159 escritórios onde as funções de Ministério Público são exercidas em primeiro grau”. Tal ingerência do Poder Executivo, exercida pelo Ministro da Justiça pode interferir na atividade ministerial já que “Os 112 Idem. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, em obra clássica sobre o tema, assevera que “A partir de 1946, com a lei sobre as garantias da magistratura, os poderes de controle exercidos, até então, pelo Ministro da Justiça, em face da instituição do MP, como remoção, transferência, designação e procedimento disciplinar foram limitados, dispondo o art. 39 da lei acima referida, que o Ministério Público exerce o seu ofício sob a vigilância do Ministro da Justiça e não mais sob a direção do mesmo.” CARNEIRO. Paulo Cezar Pinheiro. O Ministério Público no processo civil e penal:Promotor Natural:atribuição e conflito. Rio de Janeiro:Forense. 1995. 113 Procuradores-Gerais têm amplo poder de avocar os procedimentos distribuídos aos escritórios sob o seu controle.”114 Os magistrados do Ministério Público são selecionados mediante concurso público, exercendo suas funções preferencialmente no âmbito criminal, onde vige o princípio da obrigatoriedade da ação penal, consoante art. 112 da Constituição Italiana115. No exercício de tal função, como analisado por Vincenzo Manzini,“L’azione penale, affidata al p.m., implica ter espécie di attivita: -inquirente (di polizia giudiziaria, e instruttoria); di persecuzione processuale (requirente); e di realizzacione dei resulti ottenuti (di esecuzione penale).”116 Na esfera cível, atuam nas hipóteses determinadas por lei, intervindo também como “custos legis”, sob pena de nulidade do feito, entre outras causas, na separação entre os cônjuges, nas causas relativas ao estado da pessoa, nas causas coletivas e naquelas onde houver interesse público117. 1.1.3. Portugal: 114 CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. op. cit., pp. 235/236. Ao criticar esta indevida interferência externa, o autor demonstra a preocupação com o poder de avocação e designação dos Procuradores-Gerais, “certamente sensíveis as exigências políticas, indicados que são pelo Ministro da Justiça.” Neste sentido, idêntica preocupação demonstra Paulo Pinto de Carvalho, em artigo acerca do tema, onde ressalta o progressivo fortalecimento do Ministério Público italiano, mas anota a sua hierarquização execessiva e o princípio da avocação de processos como pontos ainda existentes que o diferem da Magistratura judiciante,com total independência.(Uma incursão do Ministério Público à luz do direito Comparado: França, Itália, Alemanha, América do Norte e União Soviética. In: MORAES, Voltaire de Lima. Ministério Público, Direito e Sociedade.Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1986. p. 93. ) 115 “Il Pubblico Ministereo há l’obbligio di essercitare l’azione penale.” 116 CARVALHO, Paulo Pinto de. op. cit., p. 95. 117 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. op. cit., p. 238. Em Portugal também o Ministério Público, “originariamente concebido como “órgão de ligação” entre o Poder Judicial e o Poder Político,” integra o Poder Judiciário, sendo, nas palavras de J. J. Canotilho, “um órgão do Poder Judicial.”118 Com efeito, o constituinte luso, ao incluir no Título V, “Tribunais”, o Capítulo IV, “Ministério Público” e seus arts. 219 e 220 da Constituição Portuguesa, tornou certo o vínculo existente entre o Judiciário e o Ministério Público.119 A magistratura do Ministério Público, na lição do constitucionalista citado, não tem, portanto, uma “natureza administrativa”. Integra-se ao Poder Judicial sendo a função do magistrado do Ministério Público, porém, diferente da do juiz: [...] este aplica e concretiza, através da extrinsecação de normas de decisão, o direito objectivo a um caso concreto(jurisdictio); aquele colabora no exercício do poder jursdcicional, sobretudo através do exercício da acção penal e da iniciativa da defesa da legalidade democrática.120 118 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ª ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 679. 119 PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 1º/02/06. CAPÍTULO IV - Ministério Público Art. 219.º (Funções e estatuto)1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática. 2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei. 3. A lei estabelece formas especiais de assessoria junto do Ministério Público nos casos dos crimes estritamente militares. 4. Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei. 5. A nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar competem à Procuradoria-Geral da República. Art. 220.º (Procuradoria-Geral da República) 1. A Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério Público, com a composição e a competência definidas na lei. 2. A Procuradoria-Geral da República é presidida pelo Procurador-Geral da República e compreende o Conselho Superior do Ministério Público, que inclui membros eleitos pela Assembleia da República e membros de entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público. 3. O mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do art. 133. ...Art. 133. Compete ao Presidente da República, relativamente a outros órgãos:...m)Nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o procurador-geral da República [...] A Procuradoria Geral da República é o órgão máximo da instituição, sendo os agentes do Ministério Público “magistrados responsáveis”, hierarquicamente subordinados, não podendo ser transferidos, suspensos ou demitidos senão nos casos previstos na lei. (art. 219.4 da Constituição Portuguesa). Apesar da vinculação formal ao Poder Judiciário, o Chefe da Instituição – o Procurador-Geral da República – possui estreita ligação hierárquica com o Poder Executivo, eis que nomeado e exonerado pelo Presidente da República, apesar de possuir mandato de seis anos para o exercício do cargo (arts. 220, parágrafo terceiro e 113,“m”, da Constituição Portuguesa). O Ministério Público luso se distingue da Magistratura judicial na medida em que se organiza por critério hierárquico-funcional, devendo os membros de grau inferior obediência às diretrizes funcionais de seus superiores (do vértice ao topo, respectivamente: Procuradores-Adjuntos; Procuradores da República; Procuradores-Gerais Distritais e Procuradores-Gerais Adjuntos, e o Procurador-Geral da República)121 consoante determinado pela Lei 47/86 em seu art. 2º, § 2.º. O poder diretivo do magistrado superior, entretanto, está limitado à possibilidade de recusa ao cumprimento de ordens ilegais e o exercício do “direito de objeção de consicência, nos casos de grave violação de consciência jurídica”, caracterizando um “contraste decisivo entre a hierarquia do Ministério Público e a hierarquia administrativa.”122 120 CANOTILHO, J. J. op. cit., p. 680. LOPES CARDOSO, Alvaro. Estatuto do Ministério Público. Coimbra: Almedina, 2000. p.12. 122 MAIA COSTA, Eduardo. Ministério Público em Portugal. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes e MACEDO Junior, Ronaldo Porto (coord.). Ministério Público II:Democracia. São Paulo: Atlas, 1999. p.48 121 Seus integrantes são selecionados através de concursos públicos, da mesma forma que os membros da Magistratura judicial, sendo lhes vedado o exercício de atividade político-partidária de caráter público e a ocupação de cargos políticos, à exceção do de Presidente da República e de membro do Governo ou do conselho de Estado123. No que concerne às funções institucionais, destaca-se a defesa da legalidade democrática, o que faz do Ministério Público português importante agente da defesa do Estado Democrático de Direito. (art. 219 § 1º da Constituição e art. 1º do Estatuto do Ministério Público - Lei 47/86, de 15 de outubro). O Procurador-Geral tem atribuição para acionar a fiscalização abstrata de constitucionalidade, requerendo ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de atos normativos devendo os magistrados do Ministério Público, em sede de fiscalização concreta, recorrer para a aludida corte sempre que as decisões judiciais se recusem a aplicar um ato normativo com fundamento em inconstitucionalidade ou que apliquem norma já considerada inconstitucional. Há também importante atuação na seara penal, onde o Código de Processo Penal de 1988, consagrando um processo essencialmente acusatório, atribuiu ao Ministério Público a direção da investigação criminal, ainda que realizada por outras entidades124, sendo criado na Instituição o “Departamento Central de Investigação e Acção Penal” (art. 46 do Estatuto) dando novo dinamismo na atuação ministerial no combate à criminalidade. 123 Idem, ibidem. 124 Estatuto do Ministério Público Português, art. 3º.1 “h”. Na seara cível, ainda vigora a atribuição do Ministério Público em representar o Estado, o que permite a ingerência do Executivo na instituição, já que cabe ao Ministro da Justiça emitir diretivas acerca da atuação do Ministério Público nas causas cíveis em que há interesse do Estado (art. 219 da Constituição)125. 1.2. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO DO PODER EXECUTIVO Diversos países optam pela vinculação do Ministério Público ao Poder Executivo, notadamente pela conexão que o Estado-Administração possui com a persecução penal e a execução da política criminal do governo, passando a ter, por tais razões, em diferentes proporções, poderes para influir nos rumos da Instituição. Com efeito, como analisado no capítulo primeiro deste trabalho, a vinculação ao Executivo originariamente decorria do poder de tutela dos interesses do Estado, atribuído ao Ministério Publico, a ensejar, organicamente, uma vinculação da Instituição ao Estado-Administração. Essa é a posição tradicional do constituinte brasileiro, como já exposto, com exceção das Constituições de 1934 e 1967, que reservaram, respectivamente, local próprio para o Ministério Público (1934) e vinculação ao Poder Judiciário (1946). A propósito das relações entre o Ministério Público e o Poder Executivo, são sempre atuais as palavras de Francisco Carrara, ao asseverar que a figura do Ministério Público vem purificando-se gradualmente, distanciando-se de qualquer representação dos interesses da Coroa e assumindo, cada vez mais, uma posição de imparcialidade, não como representante do governo, mas como órgão da sociedade, acrescenta: “aquele que tornaria a afirmar que o Ministério Público é um órgão do Poder Executivo o conduziria, sem perceber, a suas antigas condições.”126 Pode-se acrescentar também que a subordinação do Ministério Público a tal dependência ou ainda a semelhante influência em relação ao Poder Executivo, acarretaria fatalmente um prejuízo à objetividade e à imparcialidade da instituição e suporia para o poder jurisdicional um sério perigo de divórcio da realidade dos fatos que devem estar sob seu exame. Em vista disso, cabe uma análise dos sistemas que ainda adotam tal vinculação no direito comparado. 1.2.1. França: Na França, berço do Ministério Público, não há tratamento formal na Constituição da V República, promulgada em 04 de Outubro de 1958, em relação à Instituição do Ministério Público (tampouco ao Poder Judiciário, denominado “Autoridade Judiciária”)127. 125 126 127 MAIA COSTA, Eduardo. op. cit., p. 52. PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 256. FRANÇA. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FRANCESA, DE 04 DE OUTUBRO DE 1958. WWW.PLANALTO.GOV.BR, acesso em 1º/02/06. “Titre VIII - De l'autorité judiciaire Article 64 : Le Président de la République est garant de l'indépendance de l'autorité judiciaire. Il est assisté par le Conseil Supérieur de la Magistrature. Une loi organique porte statut des magistrats. Les magistrats du siège sont inamovibles. Article 65 : Le Conseil Supérieur de la Magistrature est présidé par le Président de la République. Le Ministre de la Justice en est le vice-président de droit. Il peut suppléer le Président de la République. Le Conseil Supérieur de la Magistrature comprend deux formations, l'une compétente à l'égard des magistrats du siège, l'autre à l'égard des magistrats du parquet. La formation compétente à l'égard des magistrats du siège comprend, outre le Président de la République et le garde des Sceaux, cinq magistrats du siège et un magistrat Os franceses nutrem tradicional desconfiança pelos Juízes, em decorrência da conduta do Judiciário durante o “Ancien Regime”, quando os déspotas utilizavam os serviços dos magistrados para objetivos diversos aos da solução dos conflitos, transformando a figura do magistrado em agente político arbitrário e implacável128. Como se afere do art. 64 da Constituição, o Presidente da República é o garantidor da independência da autoridade judiciária, assistido nesse mister pelo Conselho Superior da Magistratura, o que denota um status jurídico inferior da função judicial no Estado Francês em relação ao Executivo. No que concerne ao Ministério Público, seus integrantes compõem uma magistratura especial, integrada à função judicial (Magistrature Debout ou Magistrature du Parquet, como define o art. 65 da Constituição), sendo certo, entretanto, a existência de um vínculo intenso ao Poder Executivo, no tocante às suas funções, organização e características, através do Ministro da Justiça. du parquet, un conseiller d'Etat, désigné par le Conseil d'Etat, et trois personnalités n'appartenant ni au Parlement ni à l'ordre judiciaire, désignées respectivement par le Président de la République, le président de l'Assemblée Nationale et le président du Sénat. La formation compétente à l'égard des magistrats du parquet comprend, outre le Président de la République et le garde des Sceaux, cinq magistrats du parquet et un magistrat du siège, le conseiller d'Etat et les trois personnalités mentionnées à l'alinéa précédent. La formation du Conseil Supérieur de la Magistrature compétente à l'égard des magistrats du siège fait des propositions pour les nominations des magistrats du siège à la Cour de cassation et pour celles de premier président de cour d'appel et pour celles de président de tribunal de grande instance. Les autres magistrats du siège sont nommés sur son avis conforme. [Elle] statue comme conseil de discipline des magistrats du siège. [Elle] est alors présidée par le premier président de la Cour de cassation. La formation du Conseil supérieur de la magistrature compétente à l'égard des magistrats du parquet donne son avis pour les nominations concernant les magistrats du parquet, à l'exception des emplois auxquels il est pourvu en Conseil des Ministres. Elle donne son avis sur les sanctions disciplinaires concernant les magistrats du parquet. Elle est alors présidée par le procureur général près la Cour de cassation.Une loi organique détermine les conditions d'application du présent article.” 128 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 11. Os membros do Ministério Público Francês estão sujeitos à mesma modalidade de recrutamento, desfrutando dos mesmos direitos civis e políticos dos magistrados129 e possuindo, apesar de agentes do Poder Executivo130, a mesma formação técnica dos membros da Magistratura, recrutados, desde 1959, através de Concurso Público pela “Ecole Nationale de La Magistrature”, situada em Bordeaux, instituição controlada pelo Executivo131. Há, como no modelo italiano, fungibilidade entre as funções exercidas pelo integrante da magistratura, ora no Ministério Público, ora na judicatura (Magistrature du Siège)132. Como já asseverado, há intensa vinculação da instituição ao Executivo, através do Ministro da Justiça, a quem estão subordinados direta e hierarquicamente o Procurador-Geral junto à Suprema Corte e os Procuradores-Gerais junto aos Tribunais de Segunda instância. Esse poder inclui a possibilidade de emissão de instruções ou ordens, através de circulares, acerca de como devem atuar e proceder, funcionalmente, os membros do Ministério Público. O descumprimento a tais instruções pode ensejar sanções disciplinares, tais como remoção (diferentemente dos magistrados judicantes, a magistratura do Ministério Público não possui a garantia da inamovibilidade preconizada no art. 64 da Constituição), rebaixamentos ou até exoneração133. Interessante ressaltar que, apesar de tal vinculação hierárquica, é assegurada aos membros do Ministério Público a autonomia funcional por ocasião da elaboração de alegações orais em processos perante o tribunal, circunstância que é caracterizada pelo adágio “La plume est serve, mais la parole est libre”, dando a entender que 129 CARVALHO, Paulo Pinto de. op. cit., p.83 . RITT, Eduardo. op. cit., p. 128. 131 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. op. cit., p. 232. 132 Idem, p. 233. 130 haveria uma relativa liberdade de atuação. No entanto, como asseverado por Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “na prática tal princípio só é utilizado quando não existem instruções ditadas pelo chefe, dado o poder que este último detém, inclusive possibilidade de responsabilizar aquele que não seguiu suas instruções.”134 Em síntese, os membros do Ministério Público se diferenciam daqueles que exercem a função judicante por estarem sujeitos à direção e ao controle de seus superiores nos quadros da carreira e por estarem submetidos à supervisão do Ministro da Justiça.135. A atuação funcional do Ministério Público francês dá-se no processo penal e no processo civil nas hipóteses previstas em Lei. Não há, apesar da intensa vinculação com o Executivo, a defesa dos interesses do Estado, que possui advogados independentes para tal mister136. 1.2.2. Alemanha: 133 Ibidem, p. 232. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. op. cit., p. 230. 135 SAUWEN Filho, João Francisco. op. cit., p 77. 136 GARCIA, Emerson. op. cit., p. 16. 134 Na Alemanha, também não há tratamento do Ministério Público no texto da Constituição de 1949, que, entretanto, regulamenta o Poder Judiciário nos arts. 92 a 104137. No passado, o caráter específico de elo entre Executivo e Judiciário levou o Ministério Público a se revestir, nas palavras do Professor Claus Roxin “em verdadeira autoridade judicial administrativa, fora da área de ambos os Poderes”138. Entretanto, o Ministério Público alemão contemporâneo tem, entre suas características, a qualidade de ser uma “longa manus do Poder Executivo, tendo como modelo o Ministério Público francês.”139Com efeito, a vinculação com o Poder Executivo é manifesta, sendo os chefes da Instituição, tanto em nível nacional quanto em nível local, vinculados ao Ministro da Justiça. Os membros do Ministério Público recebem um tratamento semelhante aos demais servidores do Poder Executivo, estando vinculados, administrativa e funcionalmente, às diretrizes traçadas pelo Ministro da Justiça, a quem compete responder pela instituição junto ao Parlamento. São recrutados por meio de rigoroso exame de seleção, com a necessária realização de período de estágio, sendo certo que, em alguns estados do sul, como a Baviera, há possibilidade de transposição na carreira do Ministério Público e da Magistratura, apesar de serem quadros distintos e organizados de forma diversa140. 137 ALEMANHA. Constituição da República Federal de 23 de Maio de 1949. In: Constituições Estrangeiras. Tradução de José Luiz Tuffani de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2003. p . 146/154. 138 CARVALHO, Paulo Pinto de. op. cit., p. 96/97. 139 Idem, p.96/97. O ingresso na carreira dá-se no primeiro grau de jurisdição, onde oficiam os Promotores de Justiça (Staatsanwalt); seguindo-se a ascensão funcional Tribunais de Apelação, onde funcionam os Procuradores-Gerais aos Estaduais (Generalstaatanwalt) e finalmente na Suprema Corte (Bundesgerichtshof), onde tem assento o Procurador-Geral da República (GeneralBundesanwalt). Tanto a Procuradoria-Geral da República quanto as Procuradorias-Gerais Estaduais são vinculadas ao Ministro da Justiça 141. Os agentes no topo da estrutura em cada Estado (Land) podem avocar processos distribuídos aos seus subordinados, passando a oficiar naqueles que entendam relevantes. Além disso, podem substituir livremente os agentes oficiantes, prerrogativa que também é conferida ao Ministro da Justiça, o que denota ser relativa a independência funcional dos integrantes da Instituição, diversamente dos magistrados, que não estão sujeitos a tal supervisão. A Instituição possui o caráter de órgão responsável pela tutela dos interesses soberanos do Estado na persecução penal, “tendo a atribuição de buscar, no curso da fase preparatória da ação penal, as provas favoráveis e contrárias ao investigado.”142 Essa atribuição de persecução penal inclui também a direção das investigações criminais, com o auxílio das forças policiais. Para Marcos Kac, o Ministério Público alemão possui o controle sobre as investigações penais, contando seu trabalho, na persecução penal, de enorme desenvoltura e autonomia. Apesar de possuir o poder de realizar a investigação direta criminal, o Ministério Público tem a faculdade de baixar instruções normativas àquela feita pela polícia, via de regra procedendo dessa forma. A investigação direta fica reservada, na 140 141 GARCIA, Emerson. op.cit., p. 24. Idem, ibidem maior parte dos casos, para determinados delitos, como: (a)Homicídios; (b) crimes envolvendo corrupção; (c) crimes financeiros; e (d) terrorismo, entre outros143. Já no âmbito cível, são reduzidas as hipóteses de atuação do Ministério Público, ocorrendo em apenas determinadas causas, tais como: interdição, anulação de casamento e direito do menor. Não possui a instituição a legitimidade para o controle concentrado de constitucionalidade, o que restringe a sua atuação na defesa da legalidade democrática. 1.2.3. Estados Unidos da América: Também nos Estados Unidos, o Ministério Público não tem tratamento constitucional, estando, indiscutivelmente, vinculado ao Poder Executivo, como órgão encarregado sobremaneira da persecução criminal. O sistema adotado na América é bem discrepante dos demais países, notadamente pelo caráter político que se dá à instituição do Ministério Público e suas específicas atribuições. 142 GARCIA, Emerson. op. cit., p. 23. KAC, Marcos. O Ministério Público na Investigação Penal Preliminar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 76. 143 No âmbito federal, o Chefe da Instituição é o titular do Ministério da Justiça (Head of Department of Justice), livremente escolhido pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, recebendo o título de Procurador-Geral (Attorney General) e as funções de supervisionar a persecução penal nos tribunais distritais federais, espalhados por todo território americano, a ser realizada pelos 94 Procuradores Distritais federais (U.S. District Attorneys) e suas equipes (Assistant U.S. Attorneys). Esses Procuradores Distritais Federais, por sua vez, são indicados pelo Attorney General ao Presidente da República e, se aprovados pelo Senado, passam a representar a União na persecução penal dos delitos de sua competência, perante as referidas Cortes. Os US District Attorneys possuem mandato de quatro anos, podendo, entretanto, serem demitidos ad nutum pelo Presidente da República. Face ao caráter político que se dá à função e a vinculação ao Poder Executivo, em regra, quando ocorre a posse de um novo Presidente da República, os US District Attorneys renunciam em bloco, cabendo ao novo chefe do executivo a indicação dos quase cem novos Procuradores Distritais Federais, que quase sempre pertencerão ao mesmo partido político do eleito144. Os 94 escritórios do Ministério Público Federal americano possuem relativa autonomia em relação ao Procurador-Geral, cabendo ao US Distric Attorney a seleção e a supervisão dos Assistant U.S. Attornesy que constituirão sua equipe, podendo substituí-los a qualquer momento, “...exercendo amplo poder hierárquico e funcional.”145 144 145 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. op. cit., p. 222. Idem, p. 223. A atividade do Ministério Público americano é voltada essencialmente ao combate à criminalidade, podendo exercer a ação penal, a direção da investigação criminal e utilizar-se do sistema da discricionariedade para a deflagração da ação penal, denominado plea bargain. O Federal Bureau of Investigation (FBI) e a Drug Enforcement Adminostration (DEA) lhe são subordinados administrativamente, dando ao Ministério Público e a seus membros efetivo apoio na atividade de persecução criminal. O Procurador-Geral possui, ainda, em nível federal, a função de assessoria ao Presidente da República em questões afetas ao sistema jurídico, devendo atuar em questões envolvendo o mercado financeiro, medidas antitruste, comércio exterior e outras, de índole consultiva, numa evidente vinculação ao Executivo146. Em nível estadual, os Procuradores-Gerais (State Attorney General) possuem relativa independência do chefe do Poder Executivo local, face à prática comum nas unidades federadas americanas de serem eleitos para mandatos que variam de dois a quatro anos. Os Procuradores Estaduais selecionam seus próprios assistentes, (Assistant Attorney General), que não possuem qualquer estabilidade, realizando a persecução penal nos crimes não compreendidos na competência esfera federal. 1.3. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO VINCULADO AO PARLAMENTO Há ainda um terceiro sistema, que afeta a posição do Ministério Público na estrutura do Estado e a fonte de que emana seu poder. Trata-se da proposta que posiciona o Ministério Público vinculado ao Parlamento, na qualidade de Poder do Estado que representa a soberania popular e do qual precisamente emana a legalidade que a instituição haverá de defender. Esse sistema considera o Ministério Público como órgão representante da soberania estatal147, sendo certo que, apesar de poucos países terem adotado esse sistema, a opção de vincular a Instituição ao Legislativo concede ao Parquet acentuada legitimidade para a tutela da legalidade democrática necessária para o bom desempenho de suas funções de representante da sociedade. No Brasil, não é despiciendo assinalar a vinculação que o Legislativo exerce sobre o Ministério Público Nacional, tanto no âmbito do Ministério Público da União (já que o Senado aprova a nomeação e a eventual destituição do ProcuradorGeral da República – art. 128, §§ 1.º e 2.º, da Constituição da República) quanto no âmbito do Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, onde as Assembléias legislativas locais possuem o poder de destituir os Procuradores Gerais de Justiça (art. 128, § 4º da referida Constituição). Inicialmente desenvolvido nos regimes comunistas do Leste europeu (depois estendido a Cuba), esse sistema originariamente vislumbrava uma concepção 146 GARCIA, Emerson. op. cit., p. 30. Cf. PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 256, citando a doutrina italiana, “Il Pubilico Ministero: Appunti di storia e di diritto comparato”, em La riforma dei Publico Ministero, Milano, 1974, pp. 77 e 78. 147 do promotor como defensor da legalidade emanada da Câmara que o nomeava, isto é, da legalidade estatal socialista. Necessário, pois, breve análise do modelo em questão. 1.3.1. Antiga União Soviética (URSS): Na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (U.R.S.S.) o Ministério Público (Prokuratura) encontrava tratamento constitucional no Capítulo 21 da Constituição, de 7 de Outubro de 1977, que dedicava os arts. 164 a 168 à Instituição. Sua função, segundo Jorge De Esteban e Santiago Varela148: “Pode ser definida em três vertentes principais: vigiar o cumprimento das leis por parte dos órgãos do Estado, das organizações sociais, dos funcionários públicos e dos cidadãos; cuidar pelo respeito da legalidade nos processos penais e, cada vez mais, nos cíveis e proteger os direitos dos cidadãos. Com efeito, o poder do Ministério Público era enorme e recaía sobre todos os ministérios, comitês de departamentos de Estado, empresas, instituições e organizações, órgãos executivos e administradores dos sovietes locais de deputados e outras organizações sociais, tendo as instruções do Procurador, desde que baseadas em Lei, força obrigatória para cumprimento por parte de tais órgãos149. 148 DE ESTEBAN, Jorge e VARELA, Santiago. La Constituicion Soviética. Universidad Complutense, Facultad de Derecho, Seccion de Publicaciones. Madrid, 1978. 149 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. op. cit., p. 240. Era garantida aos integrantes da Instituição a independência funcional no exercício de suas atribuições, colocando-os, porém na dependência administrativa do Procurador-Geral, este escolhido pelo Soviete Supremo, para um mandato de cinco anos, e que, por sua vez, designava os demais Procuradores150. 1.3.2. Rússia: Com a desintegração da antiga União Soviética, a nova Constituição Russa, de 12 de dezembro de 1993, adotou o antigo modelo, com a manutenção da Prokuratura no Poder legislativo, mas inserindo um vínculo do Poder Executivo na Instituição, ao determinar que a indicação do Procurador-Geral à Câmara Alta do Parlamento (Conselho da Federação), é feita pelo Presidente da Federação151. 150 151 Idem, p. 238. RÚSSIA. Constituição da Federação Russa. In: Constituições Estrangeiras, cit., p. 272. Art. 129 1. A procuradoria da Federação da Rússia constituiu um sistema centralizado único, em que os Procuradores inferiores são subordinados aos Procuradores superiores e ao Procurador geral da Federação da Rússia. 2 O Procurador Geral da Federação da Rússia é nomeado e empossado pelo conselho da Federação por proposta do Presidente da Federação da Rússia. 3. Os procuradores dos membros-elementos da Federação da Rússia são nomeados pelo Procurador Geral da Federação da Rússia, em consonância com eses membros-elementos. 4 Os demais procuradores são nomeados pelo Procurador-Geral da Federação da Rússia 5.As atribuições, a organização e as modalidades de funcionamento da Procuradoria da Federação da Rússia são fixadas por uma Lei federal. Os poderes do Ministério Público permaneceram similares àqueles existentes no regime anterior e ainda é cedo para se avaliar como tem funcionado a instituição num país definido, como asseverado no art. 1º de sua Constituição, como “Estado de direito democrático, federal”, onde “o homem, seus direitos e liberdades constituem o valor supremo” do Estado, que possui como obrigação “o reconhecimento, o respeito, e a proteção dos direitos e liberdades do homem e do cidadão” (art. 2.º da Constituição da Federação Russa). 1.3.3. Cuba: Em Cuba, onde originariamente vigia o modelo espanhol de Ministério Público, a Constituição de 1976 adotou o modelo original soviético e fez do Ministério Público órgão de defesa da legalidade socialista, nomeado pela Assembléia Nacional do Poder Popular, como [...] órgão do Estado ao que corresponde, como objetivos fundamentais, o controle e a preservação da legalidade, sobre a base da vigilância do estrito cumprimento da Constituição, das leis e demais disposições legais, pelos organismos do Estado, as entidades econômicas e sociais e pelo cidadãos, e a promoção e o exercício da ação penal pública em representação do Estado.152 152 CUBA. Constituição. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 21/01/06. Capítulo XIII TRIBUNALES Y FISCALÍA Artículo 127o.- La Fiscalía General de la República es el órgano del Estado al que corresponde, como objetivos fundamentales, el control y la preservación de la legalidad, sobre la base de la vigilancia del estricto cumplimiento de la Constitución, las leyes y demás disposiciones legales, por los organismos del Estado, entidades económicas y sociales y por los ciudadanos; y la promoción y el ejercicio de la acción penal Pública en representación del Estado. La ley determina los demás objetivos y funciones, así como la forma, extensión y oportunidad en que la Fiscalía ejerce sus facultades al objeto expresado. artículo 128o.- La Fiscalía General de la República constituye una unidad orgánica subordinada únicamente a la Asamblea Nacional del Poder Popular y al Consejo de Estado. El Fiscal General de la República recibe instrucciones directas del Consejo de Estado. Al Fiscal General de la República corresponde la dirección y reglamentación de la actividad de la Fiscalía en todo el territorio nacional. Los órganos de la Fiscalía están organizados verticalmente en toda la nación, están subordinados sólo a la Fiscalía General de la República y son A Procuradoria Geral da República constitui uma unidade orgânica subordinada unicamente à Assembléia Nacional do Poder Popular e ao Conselho de Estado e se organiza de maneira vertical em toda a nação, sendo independente dos demais órgãos locais. Essa foi a forma adotada para delimitar com exatidão o posicionamento do Ministério Público, sendo certo que o Procurador-Geral deve prestar contas à Assembléia Nacional do Poder Popular na forma e com a periodicidade que estabelece a Lei. Em julho de 1997 foi aprovada a Lei n.º 83 que estabelece a organização do Ministério Público Cubano153 dividindo a Fiscalía General de La República em quatro unidades distintas: 1. Fiscalia General; 2. Ficalías Provinciales; 3. Fiscalías Municipales e 4. Fiscalía Militar. O controle e a preservação da legalidade são as funções mais importantes da Fiscalia General de La República, cujas atribuições, áreas de trabalho e objetivos, além daqueles já descritos em sede constitucional, estão especificados no título III da Ley de La Fiscalia independientes de todo órgano local. artículo 129o.- El Fiscal General de la República y los Vicefiscales generales son elegidos y pueden ser revocados por la Asamblea Nacional del Poder Popular. artículo 130o.- El Fiscal General de la República rinde cuenta de su gestión ante la Asamblea Nacional del Poder Popular en la forma y con la periodicidad que establece la ley. 153 Lei n.º 83, de 14 de julho de 1997. 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO ÓRGÃO DE EXTRAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ESTADO, ESSENCIAL PARA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA: O AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL No momento de abordar a posição do Ministério Público no âmbito da estrutura constitucional do Estado, ponto essencial para a concepção global da Instituição, a maior parte da doutrina adota uma das três opções acima expostas, comungando com a clássica trilogia em que se decompõem os poderes do Estado, vinculando o Ministério Público a um dos três poderes constituídos, na forma preconizada por Montesquieu. Entretanto, pelas funções institucionais do Ministério Público no âmbito do Estado Democrático de Direito, tal posicionamento constitucional-topográfico não parece atender plenamente a função precípua da instituição, que é a de ser indutor da transformação social reclamada pelo Estado Democrático, não devendo, para exercer com independência e imparcialidade tais relevantes funções, estar necessariamente vinculado a um dos três poderes tradicionalmente constituídos. Não se está aqui defendendo a posição de Alfredo Valladão, antes referida, no sentido de ser o Ministério Público um quarto poder do Estado. Não. Montesquieu não viveu no século XX e sua tradicional teoria não pode ser modificada. Entretanto, cabem agora considerações para posicionar o Ministério Público como órgão de direta extração constitucional, essencial à função jurisdicional do Estado, como agente de transformação social. A matéria encontra perspectivas na função que o Estado Democrático de Direito, escolhido como modelo pelo constituinte de 1988, possui no relacionamento com a sociedade e o direito154. A atuação do Estado passou a ter, como percebido por Lenio Luiz Streck155, um conteúdo de transformação do status quo, surgindo a lei como instrumento de transformação, por incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade. “Dessa forma, os mecanismos utilizados aprofundam seu papel promocional, mutando-o em transformador das relações comunitárias. O ator principal passa a ser as coletividades difusas, a partir da compreensão da partilha comum de destinos”. O Estado Democrático de Direito carrega em si um caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da democracia ao Direito, impondo, portanto, um caráter reestruturador à sociedade, rompendo com a juridicidade liberal, voltada para seguranças jurídicas passadas e adaptando-a a um novo paradigma, voltado para garantia e implementação do futuro. “Neste sentido, pode-se dizer que no Estado democrático de Direito, há um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder legislativo para o Poder Judiciário.”156 Claro está, portanto, que, se o Judiciário toma a si a tarefa de adequar o direito ao aspecto de transformação social preconizado pelo Estado Democrático, necessária será a existência de uma Instituição, “essencial à função 154 Art. 1º da Constituição Federal: A República Federativo do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito. 155 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 98. 156 STRECK, Lenio Luiz e MORAES, José Luiz Bolzan de. op. cit., p. 98. jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”157 para veicular os pleitos de índole transformadora junto àquele Poder, por sua própria natureza, inerte. Não se pode, pois, conceber um Estado Democrático de Direito sem uma instituição fortalecida, que possa realizar tal função e opor-se contra forças negativas da sociedade, neutralizando o poder econômico, quando contrário ou nocivo aos interesses sociais, e combatendo os mecanismos de repressão, quando espúrios ou violentadores dos direitos humanos. As sociedades pluralistas e abertas, bem como os governos representativos legitimados pela vontade do povo, não podem prescindir do fortalecimento do Ministério Público, a fim de que ele seja o mais poderoso instrumento da efetiva promoção da justiça social, visando ao bem comum. Sendo, então, o Ministério Público um órgão do Estado, de extração constitucional, cujos princípios e funções refletem o sistema político do qual é expressão e sendo, também, indutor dos valores maiores do ordenamento, é evidente que a instituição se encontra em uma posição de equilíbrio dentro do referido sistema político, nem estritamente dependente dos poderes do Estado nem desligado deles158. Esse equilíbrio institucional e constitucional que desfruta o Ministério Público no âmbito do Estado Democrático de Direito faz com que a instituição deva ser considerada como órgão de extração constitucional, não integrada formalmente em nenhum dos três clássicos poderes, mantendo, entretanto, com eles relações institucionais 157 158 Art. 127 da Constituição da República. Neste sentido, PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., pp. 261/262. que possibilitam os freios e contrapesos — checks and balances — necessários para o funcionamento harmônico do sistema. Contemplar o Ministério Público como órgão do Estado é entendimento que encontra respaldo em doutrina estrangeira, como bem percebido por José Eduardo Sabo Paes, assinalando que Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, ao examinar as distintas naturezas e construções constitucionais do Ministério Público assevera159 : [...] as mais recentes regulamentações do Ministério Público fixam um novo marco de sua concepção, estabelecendo-o como um órgão do Estado, independente, situado à margem dos três poderes tradicionais e tendo como missão manter a legalidade e a ordem jurídica constitucional, defender os direitos dos cidadãos e os interesses públicos coletivos e assegurar a paz social perseguindo os delitos que perturbem. Após citar exemplos dessa nova configuração político-jurídica, trazendo à colação a Constituição italiana que “com maior ou menor acerto rompeu com a vinculação ao executivo concebendo-o como um órgão judicial, nem sobreposto nem submetido ao juiz, vinculado à lei” e a Constituição Portuguesa “que foi além declarando que o Ministério Público é representante do Estado, isto é, do conjunto dos poderes e não de um deles isolado e que tem encomendada a defesa da legalidade democrática”, cita o autor espanhol o exemplo brasileiro, ainda sobre a égide da Lei Complementar nº 40/81, antiga Lei 159 PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 262. Orgânica do Ministério Público, em vigor até o avento das Leis 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) ao afirmar: mejor que ninguna otra, refleja esta postura de un Ministerio Público, como órgano del Estado, con entidad propia e independiente, el projecto de ley brasileño, estableciendo las normas generales que deben ser adoptadas en la organzación de los Ministerios Públicos estatales.... La consideración de órgano responsble tan solo ante la nación senála aqúél carácter de órgano autónomo de la estructura política del Estado y su condición de institucíon esencial para la función jurisdiccional lo incardina en el ámbito del Poder Judicial, aunque claramente dferenciado de la potestad jurisdiciccional que corresponde a los jueces e independiente de éstos, como lo es de los otros poderes. 160 A matéria não passou despercebida a Hely Lopes Meirelles161, que já situava o Ministério Público como “órgão independente” ou “Órgão Primário do Estado”, originário da Constituição e sujeito, juntamente com o Poder Executivo, Judiciário, Legislativo e Tribunais de Contas, aos controles constitucionais dos demais poderes. Com efeito, no Brasil, a Instituição veio topograficamente disposta na Constituição de 1988, em Capítulo próprio (IV – Das Funções Essenciais à Justiça), inserto no título IV (“Da Organização dos Poderes”) e, portanto, no mesmo nível de igualdade – porém desvinculado - dos demais poderes constituídos. Tal circunstância, por si só, não traria o efeito de torná-lo órgão singular no ordenamento constitucional, pois o Capítulo referido também inclui em seu bojo 160 CONDE-PUMPIDO FERREIRO, Cándido. La naturaleza y los Princípios rectores Del Ministério Fiscal em la Constitucíon y el Nuevo Estatuto Orgânico. El Poder judicial, v. I, Instituto de Estudos Fiscales, 1983. Apud PAES, José Eduardo Sabo. op. cit., p. 263. 161 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. pp. 66-67. as Procuraturas Públicas, a Defensoria Pública e a própria advocacia, todas erigidas ao status de função essencial à Justiça. Sem dúvida, o tratamento constitucional conferido à instituição pelo constituinte de 1988 bem demonstra peculiaridades e características que, se não lhe fornecem a característica de quarto poder - como já asseverado - atestam a posição singular para qual o órgão foi vocacionado. De fato, o Ministério Público brasileiro (que pela Constituição de 1967 era órgão integrado ao Judiciário, sendo posteriormente transferido para o âmbito do Executivo pela Emenda Constitucional 01/69), diluiu muito seu vínculo com o Executivo, sendo-lhe asseguradas as autonomias funcional, administrativa e financeira e vedado à consultoria jurídica e à representação judicial das entidades públicas (arts. 127, § 2.º, e 129, IX). Ratificando tal desvinculação, qualquer ato do Executivo que atente contra o livre exercício do Ministério Público foi erigido à categoria de crime de responsabilidade (art. 85, II, da Constituição) do Presidente da República ou do Governador do Estado (dispositivo repetido na Constituição Fluminense no art. 146, II) numa clara sinalização do constituinte ao Executivo que a ascendência e o vínculo hierárquico se dissiparam. Foi-lhe conferida também iniciativa legislativa para projetos de seu interesse, permitindo-se ao Chefe da Instituição (Procurador-Geral da República e Procuradores-Gerais de Justiça) deflagrar o processo legislativo-institucional, remetendo ao parlamento matérias de sua atribuição. Certo é que, para um perfeito equilíbrio e inter-relacionamento com os demais poderes constituídos, há ingerências entre estes e o Ministério Público. Com efeito, determina a Constituição a interferência do Executivo na escolha da Chefia Institucional, com maior ou menor intensidade, tratando-se, respectivamente, do Ministério Público da União ou dos Estados. O Procurador Geral da República é livremente escolhido pelo Presidente da República, entre integrantes da classe, devendo seu nome ser chancelado pelo Senado (art. 128, § 1.º). Já os Procuradores-Gerais de Justiça são escolhidos pelos Governadores, dentre lista tríplice eleita pela classe (art. 128, § 3.º). Cabe, por sua vez, ao legislativo, a decisão acerca da destituição do Chefe do Ministério Público (art. 128, §§ 2.º e 4.º), numa clara demonstração de status de “quase poder” conferido ao Ministério Público. Deve-se ressaltar, por oportuno, que a expressão permanente, acrescida da condição de essencial – isto é, indispensável – à própria função jurisdicional do Estado, previstas no art. 127 da Constituição, deram ao Ministério Público caráter singular, que criam reflexos impeditivos ao próprio poder de reforma da Constituição, com a finalidade de extirpar do texto constitucional ou de nele diminuir a independência e as garantias que ostenta o Parquet. Analisando a questão, por ocasião da Revisão Constitucional de 1993, Lenio Luiz Streck já afirmava que: “Se os constituintes de 1987/88, que detinham o poder originário, disseram, por exemplo que o Poder Judiciário, o Legislativo ou o Ministério Público, para cumprir o seu múnus, deveriam ser independentes, com autonomia orçamentária e administrativa, como poderia, em sede de revisão constitucional, ser retirado o cerne, o âmago da estrutura de um destes poderes ou do Ministério Público? Mudança desse quilate infringiria a relação de pertinência e o sistema criado pela constituição. Atingido estaria, em outras palavras, o núcleo político da Lei Maior, através daquilo que Hesse chama de alterações constituicionais aniquiladoras da identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta.”162 Com efeito, a natureza da atividade desenvolvida pelo Ministério Público, visando ao bem-estar da sociedade dentro de um regime democrático, bem como os instrumentos constitucionais que lhe foram deferidos pela Constituição da República protegem a Instituição do próprio poder de reforma constitucional tendente a abolila ou modificar seu perfil, considerando-se, pois, o Ministério Público como cláusula pétrea implícita à função jurisdicional do Estado. Cria-se, assim, portanto, uma limitação de ordem material para a tramitação de qualquer emenda que restrinja as características que foram desenhadas pelo constituinte originário ao Parquet163. Lecionando sobre o tema, o Ministro Carlos Ayres de Brito, do STF, em conferência proferida na sede do Ministério Público fluminense164, intitulada “O MP enquanto cláusula pétrea da Constituição” asseverou: As clausulas pétreas da constituição não são conservadoras mas impedititvas do retrocesso. São a salvaguarda da vanguarda constitucional...a democracia é o mais pétreo dos valores. E quem é o supremo garantidor e fiador da democracia? O Ministério Público. Isto está dito com todas as letras no art. 127 da Constituição. Se o MP foi erigido à condição de garantidor da democracia, o garantidor é tão pétreo quanto ela. Não se pode fragilizar, desnaturar uma clausula pétrea. O MP pode ser objeto de emenda constitucional? Pode. Desde que para reforçar, encorpar, adensar as suas prerrogativas, as suas destinações e funções constitucionais.165 162 STRECK, Lenio Luiz. Constituição:Limites e Perspectivas da Revisão. Porto Alegre: Rígel, 1993. p. 39 Neste sentido ver RITT, Eduardo. op. cit., pp. 173/186. 164 Conforme a publicação “MP em revista nº 2, julho de 2004, Informativo da Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, p. 7/8.” 165 O texto da palestra, proferida em 4/06/2004, foi reproduzido parcialmente na Revista do Ministério Público, nº 20, Julho/Dezembro de 2004, às pp. 476/478. 163 Essa é, pois, a característica do Ministério Público como órgão essencial do Estado Democrático de Direito. Relaciona-se e interage com os demais poderes, mas possui independência em relação a esses para exercer com altivez sua vocação constitucional de ser agente de transformação social. O Poder Legislativo, como representante formal do povo, elabora as leis, mas perde o controle de sua execução e aplicação futuras. Necessita, pois, de um órgão forte que as faça valer. Por sua vez o Poder Judiciário interpreta e aplica as leis, mas, por sua própria natureza, é inerte, só atuando quando assim o solicitam as partes interessadas. A existência de interesses metaindividuais, cuja tutela é deferida ao Ministério Público, torna a instituição o principal veículo para que as postulações ligadas a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos sejam apreciadas por esse Poder, através de todas as ações e recursos postos à sua disposição pelo ordenamento jurídico. Também o Poder Executivo necessita de um controle externo efetivo. Portador de instituições de força, vinculadas por relação de hierarquia e muitas vezes influenciadas pela política partidária, esse poder poderia converter-se em uma monstruosidade onipotente, se não contasse com a fiscalização de um órgão não subordinado a sua hierarquia. O esboço dessas funções, que pressupõem uma relação de lateralidade e até de enfrentamento com os poderes formais do Estado, leva à concepção de uma Instituição que possa ser a cadeia de comunicação entre os poderes, promovendo e possibilitando o funcionamento harmônico do Estado Democrático de Direito como um todo. Essa é a Instituição do Ministério Público, erigido pela Constituição de 1988 como órgão estatal vocacionado para a transformação social e que adota, portanto, posição institucional de singularidade própria na qualidade de órgão do Estado, interagindo com os demais em relação harmônica e peculiar. Em função disso, não deve ser dependente do Poder Executivo ou de qualquer dos outros dois Poderes; possuindo relação de colaboração institucional com todos eles, pois se configura como um instrumento essencial para o cumprimento dos fins do próprio Estado, já que o conjunto de suas funções é inerente ao Estado Democrático de Direito. O povo, como fonte do poder estatal, é o outorgante dos deveres-poderes ministeriais, dirigidos, precisamente a garantir o respeito e a efetividade do ordenamento jurídico, na perspectiva do atendimento das finalidades essenciais do Estado, fixadas no pacto social. Não é por outra razão, que comungando com Antonio Augusto de Mello Camargo e João Lopes Guimarães Junior166, [...] acreditamos seja possível afirmar, de modo bastante abrangente, que ao Ministério Público incumbe defender os interesses, bens e valores essenciais à vida numa sociedade democrática em que vigorem o Estado de Direito e os princípio da igualdade e do respeito à cidadania. Logo, como já asseverado, não foi por acaso que o Constituinte traçou claramente para o Ministério Público o perfil de órgão agente, promotor de medidas, ao 166 FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo e GUIMARÃES Junior, João Lopes. A necessária elaboração de uma nova doutrina de Ministério Público compatível com seu atual perfil constitucional. In: FERRAZ, Antonio Augusto de Mello Camargo(Coord). Ministério Público: Instituição e processo. São Paulo:Atlas, 1997. p. 21. empregar no art. 129 suas funções institucionais e utilizar, nos quatro primeiros incisos, o verbo promover. Daí se infere que o papel da Instituição é o de ser verdadeiramente alavanca a movimentar o Judiciário, pugnando pelos interesses maiores da sociedade, amparados pelo ordenamento jurídico167. O papel do Ministério Público nesta quadra, como já salientado, guarda íntima correspondência com o perfil do Estado Democrático de Direito, onde o princípio da legalidade deve ser entendido não apenas no seu aspecto formal, mas no da legalidade democrática, estando o Poder Público subordinado às leis tanto no seu aspecto formal quanto na finalidade de garantir e realizar os mandamentos constitucionais. Deve-se ter presente, nesta ótica, o sujeito em nome de quem a Instituição atua (a sociedade brasileira) e o modelo de estado a que serve (Estado Democrático de Direito), consoante já reconhecido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, para quem, o Ministério Público após a Constituição de 198, lança-se ao exercício de uma magistratura ativa na defesa da ordem jurídico-democrática.168 Exercendo a ação penal pública como projeção da soberania estatal, detém o Ministério Público a palavra final sobre a deflagração ou não da persecução criminal no Estado Democrático instituído em 1988, que baniu do nosso ordenamento jurídico os procedimentos penais ex officio, que permitiam a instauração da ação penal pública sem a participação do Ministério Público. 167 168 FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo e GUIMARÃES Junior, João Lopes. op. cit., p. 22. Voto proferido no MS 21.239-DF, RTJ 147/129-130 Para o Ministério Público, a transcendência da ação penal pública explica-se porque nela se encontra uma das raízes históricas da instituição e também porque, por meio dela, a instituição exerce uma parcela direta da soberania do Estado. É no seu não exercício que se identifica a única hipótese em que o Ministério Público condiciona o ius puniendi do Estado soberano. Ele dá a palavra final de soberania não precisamente quando acusa, mas quando deixa de acusar. Não está aqui se referindo a falta de acusação à inércia do Ministério Público169, mas sim ao oportuno e fundamentado requerimento de arquivamento do inquérito policial ou peças de informação.170 Ainda que o órgão jurisdicional rejeite o arquivamento, a palavra final será do Procurador-Geral de Justiça (Art. 28 do CPP). Ressaltese que, nos casos de atribuição originária do chefe da instituição (Art 29, VII da Lei Federal nº 8.625/93), a soberania estatal exercida pelo Ministério Público evidencia-se ainda mais, pois o legislador utilizou-se da expressão “determinar o arquivamento de representação, notícia de crime, peças de informação, conclusão de comissões parlamentares de inquérito ou inquérito policial”, demonstrando que, nestes casos, por se tratar de opinio delicti privativa do Procurador-Geral, não cabe ao Judiciário qualquer juízo de valor acerca de tal manifestação, restando-lhe apenas remeter os autos ao arquivo.171 Finalmente, deve-se abordar a previsão do artigo 5º, LIX da Constituição da República, que trata da ação penal privada subsidiária da pública, cabível somente na hipótese de inércia do membro do Ministério Público, no prazo previsto em lei para o oferecimento da denúncia. Tal inércia somente se caracteriza no prazo legal (CPP, Art. 46), se o Ministério 169 STF. HC 607.502/RJ, 2ªT – Rel.: Min. Paulo Brossard,RTJ 118:130 “”O requerimento de arquivamento do inquérito polcial, pelo Ministério Público, não configura inéercia da instituição, não autorizando a ação penal subsidiária. 170 Mazzilli,Hugo Nigro, op.cit, p. 407 171 STF “Nos casos de competência originária do Supremo Tribunal, é irrecusável o pedido de arquivamento do inquérito policial quando o motiva o Procurador-Geral da República na inexistência, nos elementos informativos colhidos, de base para a denúncia.” (Inq. 1791 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 26/03/02) Público deixar de tomar uma das seguintes providências: oferecer a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou requisitar diligências.172 Note-se que não habilita a queixa crime subsidiária, por não caracterizar inércia do Parquet, a não inclusão de todos os participantes do evento na denúncia173. Mesmo que instaurada a ação penal subsidiária da pública, pode o Parquet aceitá-la ou aditá-la para acrescentar circunstâncias não expressas, corrigir imperfeições ou ainda repudiá-la, por inépcia da inicial, oferecendo assim denúncia substitutiva. No exercício desta parcela da soberania estatal, deve o Ministério Público, face ao novo delineamento constitucional, priorizar, o combate aos delitos que colocam em xeque os objetivos da República no Estado Democrático de Direito – dentre os quais se destaca a construção de uma sociedade justa e solidária (artigo 3º, I da Constituição) - inscrevendo neste rol os crimes de sonegação fiscal, aqueles praticados contra o sistema financeiro nacional, a corrupção, a lavagem de dinheiro e os delitos contra o meio ambiente.174 Ressalte-se, também, a função institucional prevista no art. 129, II, da Constituição, que incumbe ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta constituição”, e que dá ao Ministério Público, no Estado Democrático de Direito, a função de guardião da Constituição, de seus princípios, dos valores, dos deveres e direitos fundamentais 172 Informativo do STF, nº 43 – HC 74.276-RS – Rel. Min. Celso de Mello. RT 514/383. 174 STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e Constituição. A Legitimidade da Função Investigatória pelo Ministério Público. Op. cit, p. 48. 173 que consagra, configurando, assim, a própria tradução e síntese da função de garante da legalidade democrática. Tal aspecto não passou despercebido a Sérgio Gilberto Porto175, que ressalta que [...] quando o legislador constituinte outorgou ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, incluiu no rol de suas atribuições a defesa da Constituição, em qualquer nível e perante qualquer órgão, sem limitação de órbita de atuação, pois aparece a instituição como verdadeiro garante da ordem jurídica, e a ordem jurídica fundamental é a constitucional. Apesar de tais características, contemporaneamente o Ministério Público encontra percalços e obstáculos doutrinários e jurisprudenciais para sua plena atuação como agente de transformação social no Estado Democrático de Direito, que serão abordados a seguir. 175 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não criminal. Rio de Janeiro: AIDE, 1998. p. 19. PARTE II. OBSTÁCULOS CONTEMPORÂNEOS AO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO: PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS CAPÍTULO 1. A INVESTIGAÇÃO DIRETA DO MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público, como já asseverado, após a Constituição de 1988, passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor dos interesses sociais indisponíveis (Constituição, art. 127). Entre suas funções institucionais, descritas no art. 129 da Constituição, destaca-se o monopólio da ação penal (art. 129, I); o poder de requisição de diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial (art. 129, VIII); e a faculdade de exercer outras funções que lhe forem conferidas em Lei, desde que compatíveis com a sua finalidade institucional, vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas (art. 129, IX). Com base no texto constitucional em vigor, foram editadas a Lei Complementar 75/93, que disciplina o Ministério Público da União (LOMPU); a Lei 8625/93, que estrutura a organização nacional do Ministério Público (LONMP); e no Estado do Rio de Janeiro, a Lei Complementar 106/2003, que disciplina o Ministério Público Fluminense . Face a tal modificação conceitual, instituída pelo novo regime constitucional, determinadas concepções – voltadas ao passado - acerca de suas atribuições, não se coadunam com o novo paradigma democrático, devendo-se compreender as funções ministeriais em consonância com as transformações operadas pelo sistema constitucional vigente. Notadamente na seara penal, deve-se levar em conta, na análise das funções institucionais do Ministério Público, as novas demandas sociais com o objetivo de refrear o avanço de condutas criminosas, aperfeiçoadas com a velocidade da modernização tecnológica. Como afirma Clemérson Merlin Cléve176: [...] é preciso sintonizar a legislação processual penal com o texto constitucional, operar a sua constitucionalização, fazer vazar as conseqüências da filtragem constitucional, realizar, enfim, a leitura da lei com os olhos voltados para a Constituição e o futuro. Apesar de tal advertência, o exercício de uma das funções inerentes à atuação ministerial – a investigação direta criminal – está gerando intensa celeuma nos meios jurídicos177, onde se questiona a legitimidade constitucional do Ministério Público para realizar diretamente tal função institucional, questão que chegou ao Supremo Tribunal 176 CLÉVE, Clémerson Merlin. op. cit. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 254; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: Princípios Constitucionais do Processo Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. A síntese possível e necessária. Parecer aprovado pelo Conselho de Direitos da Pessoa Humana em 18.02.2004, disponível na Internet em www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/spi_investigação direta2; SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. Ministério Público e Investigação Criminal. In: Suplemento Jurídico da Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, ano VII, nº 63, agosto/2004. p. 21; TUCCI, Rogério Lauria. Ministério Público e Investigação Criminal.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 177 Federal, inicialmente através de sua Segunda Turma178 179 e agora ao Plenário da Corte Suprema180. A respeito do assunto, não é despiciendo relembrar que no Estado Democrático de Direito, a aplicação da lei penal e processual penal tem por objetivo oferecer solução para as condutas atentatórias aos valores e bens reconhecidos pela normatividade constitucional, que dão base à organização social. Para instrumentalizar o Estado nessa seara, a Constituição cria órgãos e instituições, retirando do cidadão a possibilidade de manifestar ação de caráter persecutório, enfim, de fazer justiça com as próprias mãos. O Constituinte, então, confere ao Estado o monopólio da persecução, dependendo a sociedade da eficiência e eficácia dos métodos e condutas praticados pelo aparato estatal. Diante dessa circunstância, é indispensável que tais órgãos, incumbidos da aludida tarefa, possam contar com instrumentos eficazes destinados ao atendimento das vítimas e à persecução, nos moldes legais, dos acusados da transgressão. Traçado esse intróito, afere-se que, como asseverado por Clèmerson Merlin Clève181: A questão sobre a legitimidade da apuração de infrações criminais pelo Ministério Público deve ser avaliada com adequado cuidado, isto para que não se reduza à significação de uma disputa contaminada por eventuais interesses intra-orgânicos, em tudo distante do necessário compromisso com a realização dos postulados do Estado Democrático de Direito. 178 “Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, CF, no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Pùblico realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial competente para tal (CF, art. 144 §§ 1º e 4º). “(RE nº 205. 473-9-AL) 179 “O MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem tem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tenha a possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, e pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Mas os elementos suficientes não podem ser auto-produzidos pelo MP, instaurando ele inquérito policial.” (RE nº 230.072-4-RJ) 180 Inquérito 1.968-2 – Distrito Federal 181 CLÈVE, Clèmerson Merlin. op. cit. As normas constitucionais que disciplinam as funções do Ministério Público e também de outros órgãos e instituições estatais formam um sistema, significando isso que sua correta compreensão envolve esforço maior que o consistente na singela leitura (interpretação simples e literal) das disposições constitucionais pertinentes. O sistema em questão abriga disposições que orientam a evolução dinâmica dos sentidos decorrente das mudanças operadas no plano da faticidade. O correto entendimento da matéria, portanto, envolve operação hermenêutica capaz de testar e, mais do que isso, superar o aprisionamento do território da pré—compreensão. Feitas tais considerações introdutórias, cabe analisar com maior enfoque a questão da possibilidade constitucional de o Parquet realizar a investigação direta criminal, tomando-se por base as decisões do STF acerca da matéria. 1. A DECISÃO DO STF NO JULGAMENTO DO RHC N.º 81326: A questão paradigmática acerca do assunto originou-se de requisição expedida pelo Ministério Público do Distrito Federal, para que Delegado de Polícia comparecesse ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial (órgão interno daquele Ministério Público), a fim de ser ouvido em Procedimento Administrativo Investigatório Supletivo (PAIS) ali em andamento. Contra esta requisição insurgiu-se o delegado notificado, impetrando ordem de habeas corpus perante o TJ/DF, denegada. Impetrou, assim, novo habeas corpus, substitutivo de recurso ordinário, perante o Superior Tribunal de Justiça, sendo certo que a Corte o indeferiu, afirmando “terem-se como válidos os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente, para fins de oferecimento de denúncia.”182 182 HC 13368 / DF ; HABEAS CORPUS 2000/0050811-0. Relator: Ministro Gilson Dipp. Órgão Julgador: Quinta Turma. Julgado em 03/04/2001. Publicado em: DJ 04.06.2001, p. 194; LEXSTJ vol. 146 p. 329. Desta decisão foi interposto o Recurso ordinário já referido, tendo a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em acórdão unânime, sendo relator o Ministro Nelson Jobim, decidido que: A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial(CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime, mas requisitar diligência neste sentido à autoridade policial. Precedentes O recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da corporação, Chefia de Polícia e Corregedoria. Recurso conhecido e provido. Cabe, pois, uma análise da decisão da Corte Suprema, com reflexão crítica acerca dos argumentos ali expendidos. 1.1. A INOPEROSIDADE DO MÉTODO HISTÓRICO APLICADO: No aresto, a Turma empreendeu análise histórica, concluindo que, desde 1936 até os dias de hoje, apesar das tentativas de modificação do modelo de investigação policial, nunca foi concedido ao Ministério Público o poder de realizar diligências investigatórias. Com fundamento na doutrina de Lenio Luiz Streck183, deve-se rebater, entretanto, o método de interpretação utilizado pelo STF na análise de tal questão. De fato, o método historicista é um meio amplamente aceito para o estudo dos mais diferentes institutos jurídicos. No entanto, a nova hermenêutica preconiza que nenhum método de interpretação é capaz de, isoladamente, resolver, em definitivo, uma questão de tamanha complexidade. Cabe ressaltar que o texto da lei não esgota em si mesmo todo o sentido da norma. É a dicotomia texto-norma, lembrada por Lenio Luiz Streck184 ao citar Friedrich Müller, asseverando que “a norma é sempre o produto da interpretação de um texto... e a norma não está contida no texto”. Assim, a interpretação é produtiva e não reprodutiva. A força normativa da Constituição depende da atualidade de suas normas para gerar a identidade dos diferentes grupos sociais que nela apostam suas esperanças. Como afirma Lenio Luiz Streck185: [...] perde força hermenêutica qualquer interpretação que busque no desenvolvimento histórico da formação de determinado instituto, a construção de uma mens legislatoris ou mens legis. Tal procedimento, de índole marcantemente historicista, mostra-se antiético com o que contemporaneamente se entende por hermenêutica. Quer-se dizer, o historicismo esbarra nos câmbios de paradigma; no caso do Direito, esse câmbio é evidenciado pelo advento de uma nova Constituição. Com a Constituição de 1988, o Ministério Público teve seu papel amplamente aumentado, passando, de Instituição vinculada e subordinada ao Poder 183 STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. op.cit., p. 65 Idem, p. 66. 185 Ibidem, p. 66. 184 Executivo, para um perfil independente, recebendo o papel maior de guarda do Estado Democrático de Direito, da defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Dessa forma, há um novo fundamento de validade a embasar a atuação do Parquet, não podendo, portanto, o intérprete utilizar-se de posicionamentos doutrinários, leis e julgados anteriores à Constituição de 1988 para concluir que o Ministério Público não possui poderes investigatórios. Com efeito, deve-se compreender as novas funções institucionais do Ministério Público sem olvidar-se das transformações operadas pelo novo texto constitucional, sob pena de recair-se na postura criticada por José Carlos Barbosa Moreira186, referindo-se aos juristas que operam com os olhos voltados para o passado : Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se o véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a interpretação da realidade que uma sombra fantasmagórica. Nesse sentido, aliás, foi o voto do Ministro Joaquim Barbosa, referindo-se ao precedente aqui em comento, na sessão plenária do STF que, em 1.º de Setembro de 2004, prosseguindo no julgamento do Inquérito nº 1.968187, que também trata da questão da legitimidade ministerial para a investigação direta criminal: Noto, Sr. Presidente, que nesse último precedente, de que foi relator o ministro Nelson Jobim, S. Exa. funda essencialmente a sua nova visão sobre 186 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição. In: Revista Forense, 304. p. 152. 187 Disponível em < www.stf.gov.br/processos/ processos >; acesso em 09/09/2004. o tema não na inteligência específica da Constituição de 1988, vista numa perspectiva global e sistemática, mas, sim, em interpretações de textos legais que datam de 1936 (Projeto Rao), 1941 (Código de Processo Penal) e 1957 (decisão do Supremo Tribunal Federal da lavra de Hungria). Tais interpretações, ainda que válidas para um determinado período, não o são necessariamente para outro, especialmente tendo-se em conta a radical transformação do quadro constitucional e especialmente o saliente papel que se procurou atribuir ao Ministério Público no Estado brasileiro. Em suma, o método hermenêutico de cunho historicista, além de suas deficiências intrínsecas não é adequado para a questão... 1.2. A INEXISTENTE EXCLUSIVIDADE DA POLÍCIA JUDICIÁRIA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: Outro importante argumento utilizado pela Corte – e também recorrente na discussão - é aquele de interpretar como de competência exclusiva da Polícia Judiciária a atividade investigatória, não tendo o Parquet essa função institucional. Na verdade, a intenção do constituinte, data venia, não foi de conferir exclusividade à Polícia no que tange à investigação, mas sim delimitar o âmbito de atuação de cada uma das Polícias ali mencionadas, reservando, em especial, à Polícia Federal a apuração das infrações penais, a prevenção e repressão ao tráfico de drogas e o exercício, com exclusividade, das funções de polícia judiciária da União. Não deixou também o constituinte de ressalvar, para a Polícia Civil, as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, quando não colidentes com a competência da União. Quis o legislador, portanto, apenas delimitar a atribuição de cada uma delas, sendo certo que, imediatamente em seguida, elencou as funções da polícia militar, polícia ferroviária e rodoviária federal. Nesse sentido, a posição de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho188: Na Constituição nenhum dispositivo ou interpretação permite vedar a investigação direta do Ministério Público. O dispositivo ora comentado, do art. 144, § 4º, apenas estatui as atribuições da Polícia Civil, mas não tem qualquer pretensão de estabelecer um monopólio da investigação. Não destoando, nesse aspecto, Antonio Scarance Fernandes, que assevera ter a Constituição da República assegurado a atividade de polícia judiciária, sem exclusividade, aos delegados de polícia189. Com efeito, percebe-se claramente que a Constituição da República diferenciou a função de polícia judiciária da função de apuração de crimes. O constituinte somente concedeu exclusividade à polícia federal para exercer, no âmbito da União, a função de policia judiciária, isto é, as demais polícias existentes no âmbito da União (polícia rodoviária federal e polícia ferroviária federal) “não possuem atribuição constitucional para procederem a investigações, reservando-lhes o constituinte o papela de polícias preventivas ou ostensivas”. O próprio Supremo Tribunal Federal assim já decidiu quando do julgamento da ADIn 1517, proposta pela ADEPOL, cujo voto do Relator, Ministro Maurício Corrêa, assim ficou consignado: [...] Assim sendo tenho que a expressão “com exclusividade”, inserida na regra contida no inciso IV do §1º do art. 144 da CF, deve ser interpretada no sentido de excluir das demais polícias elencadas nos incisos II a V do referido art., inclusive as de âmbito federal (rodoviária e ferroviária), a destinação de exercer as funções de polícia judiciária da União.[...] 188 189 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. op.cit., p. 206 FERNANDES, Antonio Scarance. op. cit., p. 255. Na verdade, o poder de investigação não é exclusividade da polícia, nem do Ministério Público. Existem outros órgãos do Estado para os quais a lei prevê a possibilidade de realização de diligências investigatórias. Com efeito, a Lei 4771/65 (Código Florestal), em seu art. 33, prevê que, nos crimes previstos naquela lei ou em outras que tenham por objeto florestas e vegetações, será competente para “instaurar, presidir e proceder a inquéritos policiais...”, além das autoridades indicadas no Código de Processo Penal, também “os funcionários da repartição florestal e de autarquias com atribuições correlatas, designados para a atividade de fiscalização.” No caso do Poder Legislativo é a própria Constituição que prevê, em seu art. 58, § 3.º, a possibilidade de investigação por parte dos Parlamentares quando da instauração das Comissões Parlamentares de Inquérito, prevista na Lei n.º 1579/52. No âmbito do Poder Executivo, é notório que o Banco Central possui o direito de pedir a quebra de sigilo bancário visando comprovar a materialidade do delito de sonegação fiscal. Até o próprio Poder Judiciário possui normas estabelecendo que em casos de crimes praticados por magistrados, a autoridade policial civil ou militar deverá remeter os autos ao Tribunal para que este prossiga na investigação (art. 33 da Lei Complementar 35/79 – Lei Orgânica Nacional da Magistratura). Não se pode esquecer de citar ainda o Inquérito Policial Militar previsto no Código de Processo Penal Militar; a investigação judicial eleitoral prevista na Lei Complementar 64/90, art. 22 e o inquérito administrativo para apurar faltas funcionais. Existe também previsão na Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) –, em seu art. 179, de investigações prévias promovidas pelo Parquet, por exemplo, quando da oitiva do menor para que o membro do Ministério Público possa, com mais clareza e convicção, formar a sua opinio delicti e tomar uma das providências previstas no art. 180 do referido estatuto, quais sejam, promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou representar à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa. O próprio Supremo Tribunal Federal possui, em seu Regimento Interno190, norma estabelecendo que, em caso de “infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. Insta acentuar que o próprio art. 4º, p.u., do Código de Processo Penal, afirma que “a competência definida neste artigo (investigação das infrações penais) não excluirá a de autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma função.” Vale lembrar também não ser o Inquérito Policial indispensável ao lastro da peça acusatória. O art. 12 do Código de Processo Penal é claro ao deixar patente a prescindibilidade do Inquérito, sendo certo que o Superior Tribunal de Justiça, apreciando a questão, inclusive assim já decidiu: Ementa: Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Penal. Crime de Ameaça. Representação feita no prazo legal. Ação Penal validamente instaurada. Prescindibilidade de Inquérito Policial. Não há falar em decadência do direito de representação, se o mesmo foi exercido no prazo legal. O inquérito policial não é peça imprescindível ao oferecimento da denúncia, podendo o Ministério Público ajuizar a ação penal independentemente de prévia investigação, desde que tenha elementos para tanto.(...)Recurso desprovido”. (RHC 9340 / SP, Relator Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Data da Decisão 16/12/1999, QUINTA TURMA) Para reforçar a idéia de prescindibilidade do inquérito policial, o art. 27 do Código de Processo Penal permite que qualquer do povo provoque a iniciativa do Ministério Público, fornecendo-lhe informações necessárias sobre crime de seu conhecimento, 190 Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 43. admitido-se no ordenamento processual, portanto, a investigação particular. O art. 39, § 5º, do Código de Processo Penal também admite expressamente que o Ministério Público dispense o inquérito se a representação recebida vier acompanhada de dados suficientes para que, desde já, seja deflagrada a ação penal. No mesmo teor o art. 46, § 1º, que faculta ao Parquet dispensar o inquérito polical, contando-se o prazo para a denúncia da data em que este tiver recebido as “peças de informação”. Vale ressalvar, por oportuno, que o art. 28 e o art. 67, I, ambos do Código de Processo Penal, também falam em “peças de informação”, corroborando, assim, com a existência de investigação criminal fora da sede de Inquérito Policial. Face ao exposto, não há que se falar em monopólio da Polícia no que tange ao poder de investigação criminal. Pode-se inferir que o inquérito policial é instrumento deferido à Policia Judiciária, mas esse não se apresenta como o único procedimento dirigido à apuração de infrações penais. 2. A PREVISÃO DO PODER INVESTIGATÓRIO MINISTERIAL: Analisar-se-ão, agora, as previsões constitucionais e legais que dotam o Ministério Público do poder de investigação. Já em 1981, a Lei Complementar n.º 40 previa expressamente em seu art. 15, como atribuições dos Membros do Ministério Público, a promoção de diligências e requisição de documentos, certidões e informações, além da expedição de notificações e do acompanhamento dos atos investigatórios junto a organismos policiais, convenientes à apuração de infrações penais. Em 1982, no Estado do Rio de Janeiro, a Lei Complementar n.º 28, trouxe em seu art. 43 as atribuições dos Promotores de Justiça, estabelecendo, principalmente em seus incisos VI, VII e VIII, uma gama de poderes investigatórios em consonância com o diploma legal referido, ratificando a legalidade e a conveniência com que tais poderes foram recebidos pela sociedade e juristas da época. Com a promulgação da Constituição da República de 1988, o Ministério Público, como já salientado, ganhou nova feição, e, mais uma vez, o legislador o dotou de poderes para promover, ele mesmo, a investigação penal quando entender necessária. É a transcrição parcial do art. 129 que se impõe: Art. 129 São funções institucionais do Ministério Público: I . promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; (...) VI. expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VIII. requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais IX. –exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. Algumas vozes levantaram-se no sentido de que os procedimentos administrativos a que se refere o inciso VI do art. 129 da Constituição diriam respeito apenas aos inquéritos civis. Hugo Nigro Mazzilli191, porém, leciona: No inciso VI do art. 129, cuida-se de procedimentos administrativos de atribuição do Ministério Público – e aqui também se incluem investigações destinadas à coleta direta de elementos de convicção para a opinio delicti: se os procedimentos administrativos de que cuida este inciso fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inc. III. Certo é, pois, que a própria Constituição lhe confere a promoção de inquérito civil, caso típico de procedimento administrativo de atribuição ministerial (inc. III do mesmo artigo). Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível atingindo também a área destinada a investigações criminais [...]. Face ao exposto, não restam realmente dúvidas quanto à amplitude da expressão “procedimentos administrativos” empregada na Constituição, sendo lícito, portanto, ao Ministério Público, a expedição de notificações inclusive nos procedimentos administrativos criminais de sua competência. Apesar disso, Antonio Scarance Fernandes192 assegura que o texto constitucional impede o Ministério Público de realizar diligências investigatórias, podendo apenas requisitá-las: O que permitiu o art. 129, VII, foi o acompanhamento do inquérito policial pelo promotor de justiça. O art. 129, VIII, da Constituição Federal só 191 MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., pp. 439-440. 192 FERNANDES, Antonio Scarance. op. cit., p. 255. possibilitou ao Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial. E continua: [...] O avanço do Ministério Público em direção à investigação representa caminho que está em consonância com a tendência mundial de atribuir ao Ministério Público, como sucede com Portugal e Itália, a atividade de supervisão da investigação policial. Entre nós, contudo, depende-se de previsões específicas no ordenamento jurídico. A interpretação do texto constitucional não pode ser feita, data venia, com a lente da literalidade, como fez o autor acima referido. Assevera Clèmerson Merlin Clève193 que o olhar atento sobre as atribuições do Parquet exige enfrentar a cláusula aberta do art. 129, IX, ao dispor, explicitamente, poder exercer o Ministério Público outras funções, desde que compatíveis com sua finalidade.A cláusula de abertura não é ilimitada, seja do ponto de vista negativo (existem restrições quanto à consultoria jurídica e representação de entidades públicas) seja sob a ótica positiva (as funções devem ser compatíveis com a finalidade do Ministério Público). Com efeito, o art. 129, IX, da Constituição diz que são funções institucionais do Ministério Público “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”. Dessa forma, dúvida não há de que a investigação da veracidade de uma notitia criminis que lhe chegue ao conhecimento tem total pertinência com 193 CLÈVE, Clèmerson Merlin. op. cit. uma das mais importantes dentre as atribuições do Ministério Público, que é o exercício da titularidade da ação penal. Esse dispositivo, de clareza insuplantável, estabelece a relação meio-fim a que faz alusão o art. 129, IX, da Constituição. E como afirma o Constitucionalista paranaense194: A legitimação do poder investigatório do Ministério Público, tem, portanto, sede constitucional e, no plano infraconstitucional, autoridade própria de lei complementar. A lei complementar 75/93 apenas conformou no plano infraconstitucional o que já podia ser deduzido a partir da acurada leitura da Constituição. A cláusula de abertura opera um reforço na esfera de atribuições do Ministério Público, que fica potencializado com a ação do legislador complementar. Ora, esses meios de ação foram expressamente conferidos ao Ministério Público, tanto no plano constitucional, por força da própria natureza da função cuja titularidade lhe foi outorgada, quanto no plano legal. De fato, a Lei Complementar n.º 75, datada de 1993, aplicável subsidiariamente aos Ministérios Públicos Estaduais, assevera que cabe ao Ministério Público realizar diligências investigatórias (art. 8º, I, V e VII) nos procedimentos e inquéritos que instaurar, notificando testemunhas, inclusive com condução coercitiva. E a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LONMP), Lei 8.625, também datada de 1993, em seu art. 26, I, II, IV e § 4º tem o mesmo sentido, ao 194 CLÉVE, Clémerson Mérlin. op. cit. afirmar que o Parquet Estadual pode promover inspeções e diligências investigatórias, também podendo expedir notificações, sendo-lhe facultada ainda a condução coercitiva. A propósito do art. 26 da LONMP, não se pode olvidar que o Min. Nelson Jobim – como ressaltado por Lenio Luiz Streck195 - já se pronunciara acerca do dispositivo, legitimando a investigação direta pelo Parquet. Confira-se: “HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. SENTENÇA DE PRONÚNCIA,. PROVA COLHIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. Inocorre excesso de linguagem na sentença de pronúncia que apenas demonstra a existência de indícios claros e suficientes de autoria e motiva sucintamente a ocorrência de qualificadora do homicídio. E remete ao Tribunal do Júri a solução da questão. Legalidade da prova colhida pelo Ministério Público. Art. 26 da Lei nº 8.625/93. Ordem denegada. (STF – HC 77.371-3-SP, 2ª Turma, 1º.09.98, DJ 23.10.98). Hoje, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro dispõe ainda da Lei Complementar n.º 106, promulgada em 03 de janeiro de 2003, sendo que, em seu art. 35, mais uma vez, encontra-se elencado um vasto rol de atribuições do Ministério Público, e dentre elas, também os poderes ora estudados de investigação direta penal.196 3. O CONTROLE DE LEGALIDADE DOS ATOS INVESTIGATÓRIOS MINISTERIAIS: 195 196 STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. op.cit., p. 75. Saliente-se que em 28/10/2004, a Sexta Turma do STJ, no Resp 494.320, reformou decisão da 5ª Câmara Criminal do TJ/RJ e firmou entendimento, por maioria (vencido o Ministro Paulo Medina), de que o Ministério Público do Estado do Rio de janeiro, através de sua 9ª Promotoria de Investigação Penal, pode realizar diretamente a investigação criminal. Ainda assim, podem-se ouvir vozes contra tal poder ministerial tendo como argumentação a suposta ausência de controle de legalidade de seus atos investigatórios. Mais uma vez, não merece prosperar tal questionamento. A própria Constituição assegurou no seu art. 5º, XXXV, como direito fundamental do homem, a previsão que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Na hipótese de excesso ou subversão da lei por parte do Ministério Público quando de suas investigações, lícita será ao ofendido a impetração dos remédios constitucionalmente previstos para todos os casos de abuso de autoridade e agressão à lei, quais sejam, o Habeas Corpus ou o Mandado de Segurança, devendo figurar o Ministério Público como agente coator. Como leciona Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho197: Há que se reconhecer, porém, certos limites não só para a investigação direta por parte do Ministério Público, como, também, para a atividade regular da Polícia Judiciária, como explicitado ao longo deste livro. Deste modo, não podem, nem o Ministério Público, nem a Polícia Judiciária, praticar atos de investigação que, de um modo ou de outro, violem direitos fundamentais que integram aquela reserva de jurisdição. É como já teve a oportunidade de decidir o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: O Ministério Público, amparado pela CF e nos limites previstos pela LONMP pode, sempre que entender necessário e conveniente, exercer função investigatória visando apurar ilícitos penais, desta forma mantendo controle da atividade policial, sem ferir o equilíbrio processual que se deve preservar entre as partes, isto porque a sua atuação não escapará da apreciação do poder judiciário, caso haja excesso, arbitrariedade, ameaça ou lesão a direito, o que não é a hipótese “sub litem”.” (Ap. Cr. 4174/2000 – 1ªCâmara Criminal – Des. Paulo Ventura – 27/03/2001) 197 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. op.cit., p. 207. A par de tal controle de índole jurisdicional, que certamente saberá refrear eventuais excessos de alguns promotores e procuradores, especialmente aqueles ávidos das luzes dos holofotes da mídia, não deve descurar a Instituição de estabelecer mecanismos de controle interno, visando a coibir – respeitados os princípios da ampla defesa, do contraditório e da publicidade das inquirições e julgamentos – os desvios de conduta dos agentes do Ministério Público. Um instrumento de controle, que pode ser utilizado por Ministérios Públicos Estaduais e pelo Parquet Federal, é a regulamentação, interna corporis, da atividade de Investigação Direta, mediante a instauração de mecanismos de controle e revisão dos atos investigatórios da Instituição. Com efeito, o Ministério Público Federal, através de seu Conselho Superior, editou a Resolução nº 77, de 14 de Setembro de 2004198, fixando as atribuições e responsabilidades dos membros do Ministério Público Federal, bem como estabelecendo regras definidas para o respeito e garantia dos mandamentos constitucionais. 3.1. A TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS: 198 Conforme publicado na publicação eletrônica Consultor Jurídico, de 16 de setembro de 2004. Outro argumento para legitimar ao Ministério Público o poder investigatório é a Teoria dos Poderes Implícitos. Valendo-se da máxima de quem pode o mais pode o menos, Pinto Ferreira, invocando tal tese, cunhada pela Suprema Corte norte-americana no julgamento do caso McCulloch X Maryland - de aplicação corrente no direito constitucional pátrio – assevera que, se o constituinte concede a determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim), implicitamente estará concedendo-lhe os meios necessários à consecução de seus objetivos, sob pena de ver frustrado o exercício do múnus constitucional que lhe foi cometido199. De fato, de que adiantaria a Constituição da República dotar o Ministério Público de seu atual perfil de defensor do Estado Democrático de Direito, se não lhe proporcionasse os meios para atingi-los? Se o constituinte originário dotou o Ministério Público da privativa promoção da ação penal (art. 129, I), forneceu-lhe a faculdade de, quando entender necessário, requisitar informações ou expedir notificações, por que haveria ele de manter-se inerte diante de casos em que a Polícia Judiciária se fizesse inoperante na promoção da investigação que o Parquet tanto necessita? Apud Ofício encaminhado pela CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ao Secretário da Reforma do Judiciário a propósito das investigações criminais realizadas pelo Ministério Público, in www.conamp.org.br/noticias/investiga.htm, acesso em 10/09/03, p. 4. 199 Como afirmado pelo Ministro Joaquim Barbosa, em voto proferido no julgamento do Inquérito nº 1968200: [...] O que a Constituição e a teoria constitucional moderna asseguram é que, sempre que o texto constitucional atribui uma determinada missão a um órgão constitucional, há de se entender que a esse órgão ou instituição são igualmente outorgados os meios e instrumentos necessários ao desempenho dessa missão. Esse é, em síntese, o significado da teoria dos poderes implícitos, magistralmente sintetizada entre nós por Pinto Ferreira em seus Comentários à Constituição Brasileira, vol. II, p. 132: “As Constituições não procedem a enumerações exaustivas das faculdades atribuídas aos poderes dos próprios Estados. Elas apenas enunciam os lineamentos gerais das disposições legislativas e dos poderes, pois normalmente cabe a cada órgão da soberania nacional o direito ao uso dos meios necessários à consecução dos seus fins. São os chamados poderes implícitos. Concebida por John Marshall no célebre caso “McCulloch v. Maryland” e aplicada durante quase dois séculos de prática constitucional, em áreas que vão do direito tributário ao direito penal e administrativo, tal láusula simboliza a busca incessante pela efetividade das normas constitucionais. Nesse sentido, não me parece ocioso citar trecho dessa famosa decisão, especialmente o ponto em que Marshall argumenta: ‘Ora, com largo fundamento se pode sustentar que um Governo a quem se confiam poderes dessa amplitude, da execução correta dos quais tão vitalmente dependem a felicidade e prosperidade da Nação, deve ter recebido também amplos meios para os exercer...’ E lembra, no seu voto-vista, que a teoria dos poderes implícitos já foi adotada pela Corte no Julgamento da ADI 1.547, onde o então Procurador-Geral de Justiça do estado de São Paulo, Luiz Antonio Guimarães Marrey, sustentou que: [...] nada impede – e, antes, tudo recomenda – que o titular da ação penal se prepare para o exercício responsável da acusação. Como já se observou, há nessa hipótese um poder implícito, inerente ao seu poder específico no papela da persecução penal: ninguém ignora que a lei quando confere a um Poder ou órgão do Estado a competência para fazer algo, implicitamente lhe outorga ouso dos meios idôneos. ‘It´s not denied that power given to the government imply the ordinary means of execution’, escreve Franklin H. Cook, que acrescenta: ‘The government which has a right to do an act, and has imposed on it the duty of performing the act, must according to the dictates of reasons, be allowed to select the means’. Cabe bem à matéria a observação de Lenio Luiz Streck201: 200 Julgamento ocorrido em 1º/09/2004 Em síntese, texto e norma são coisas distintas, mas não separadas, no sentido de que possam subsistir um sem o outro. Dessa arte as expressões “realizar diligências investigatórias” não podem, jamais, significar o seu oposto. Ou seja, não podem significar que o Ministério Público “não” tem esse poder. Permitir ao Ministério Público que investigue é vontade inequívoca da sociedade brasileira, sendo certo que “... todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente...” (art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República). Essa vontade da sociedade - que é destinatária da atuação do Ministério Público e por isso quer vê-lo investigando - ficou bem explícita em recente pesquisa do IBOPE, em que a opinião pública nacional deu ao Ministério Público a posição de 4ª Instituição mais acreditada do País, superada apenas pela Igreja Católica, Forças Armadas e Imprensa: "Segundo a opinião de 68% das pessoas consultadas, os promotores e procuradores deveriam investigar todos os crimes, contra o entendimento de apenas 4% que defendem a exclusividade da investigação pela Polícia."202 Na lição de Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho 203: Em conclusão, a possibilidade existe e é constitucional. A legitimidade da investigação advirá de o membro do Ministério Público ter atribuição funcional para tanto. Se o objeto de sua investigação estiver afeto à sua atribuição funcional, a investigação será, em princípio, legítima. Exorbitando de sua atribuição funcional, abusando dos poderes de investigação, praticando qualquer ilegalidade, estará ensejando o recurso à via jurisdicional por parte do interessado. STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. op. cit., p. 91. PESQUISA sobre o Ministério Público no Brasil. Rio de Janeiro: Conamp, 2004. p. VII. 203 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. op cit., p. 208. 201 202 É muito providencial o voto do Ministro Jorge Scartezzini, acerca do tema: [...] Quanto à ilegalidade das investigações promovidas pelo Ministério Público, sem a instauração de inquérito policial, o writ, igualmente, improcede. Com efeito, a questão acerca da possibilidade do Ministério Público desenvolver atividade investigatória objetivando colher elementos de prova que subsidiem a instauração de futura ação penal, é tema incontroverso perante esta eg. Turma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 129, I, atribui, privativamente, ao Ministério Público promover a ação penal pública. Essa atividade depende, para o seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor. Entender-se que a investigação desses fatos é atribuição exclusiva da polícia judiciária, seria incorrer-se em impropriedade, já que o titular da Ação é o Órgão Ministerial. Cabe, portanto, a este, o exame da necessidade ou não de novas colheitas de provas, uma vez que, tratando-se o inquérito de peça meramente informativa, pode o MP entendê-la dispensável na medida em que detenha informações suficientes para a propositura da ação penal. - Ora, se o inquérito é dispensável, e assim o diz expressamente o art. 39, § 5º, do Código de Processo Penal, e se o Ministério Público pode denunciar com base apenas nos elementos que tem, nada há que imponha a exclusividade às polícias para investigar os fatos criminosos sujeitos à ação penal pública.[...]” (STJ HC 18060/PR; DJ DATA:26/08/2002 Relator Min. JORGE SCARTEZZINI) Sendo ele o órgão destinatário das investigações, o órgão responsável pelo objeto-fim de toda investigação - a deflagração da ação penal - ninguém melhor do que o próprio Ministério Público, por meio do Promotor Natural da questão, para avaliar a verdadeira necessidade, caso a caso, da interferência direta do Parquet na investigação penal. Mais uma vez, trazendo à colação os ensinamentos do Ministro Joaquim Barbosa, no já citado voto-vista: Assim, o inquérito policial, como a sua própria denominação está a indicar, é procedimento cuja condução cabe exclusivamente à polícia; no entanto, a elucidação dos crimes e das condutas criminosas não se esgota no âmbito do inquérito policial. Tal elucidação pode ser fruto de apurações levadas a efeito por diversos órgãos administrativos, à luz do que dispõe o § único do art. 4º do Código de Processo Penal. Nada impedindo que o Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e natural destinatário das investigações, proceda ele próprio a averiguações destinadas a firmar sua convicção. Não destoando o Ministro Carlos Ayres de Brito, na mesma linha de raciocínio, ao proferir seu voto no mesmo julgamento: 8. Investigar fatos, documentos e pessoas, assim, é da natureza do Ministério Público. É o seu modo de estar em permanente atuação de custoslegis ou de defesa da lei. De custos iuris ou de de defesa do Direito. Seja para lavrar um parecer, seja para oferecer uma denúncia, ou não oferecer, ou seja ainda para pedir até mesmo a absolvição de quem já foi denunciado. 9. Privar o Ministério Público dessa peculiaríssima atividade de defensor do Direito e promotor da Justiça é apartá-lo de si mesmo. É desnaturá-lo. Dessubstanciá-lo até não restar pedra sobre pedra ou, pior ainda, reduzi-lo à infamante condição de bobo da Corte. Sem que sua inafastável capacidade de investigação criminal por conta própria venha a significar, todavia, o poder de abrir e presidir inquérito policial. 10. Com efeito, é preciso distinguir as coisas. Se todo inquérito policial implica uma investigação criminal, nem toda investigação criminal implica um inquérito policial. Mas o que não se tolera, sob o pálio da Lex Maxima de 1988, é condicionar ao exclusivo impulso da Polícia a propositura das ações penais públicas. Ações que só o Ministério Público pode ajuizar (inciso I do art. 129 da Lei das Leis) e que têm na livre formação do convencimento dos promotores e procuradores de justiça a razão de ser da sua institucionalização como figura de Direito. Valendo-se destacar, neste aspecto, a decisão proferida pelo Ministro Eros Grau, no mesmo julgamento: 04. O artigo 127 da Constituição do Brasil afirma ser, o Ministério Público, “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ora, para cumprir esse desígnio, o Ministério Público há de dispor dos meios para tanto indispensáveis. Lembre-se a observação de CARLOS MAXIMILIANO:“Quando a Constituição confere poder geral ou prescreve dever, franqueia também, implicitamente, todos os poderes particulares, necessários para o exercício de um, ou o cumprimento do outro”.......................................................................................................... 07. Investigação criminal é gênero no qual se inclui, como espécie, o inquérito policial. Mas há outra espécie do gênero investigação criminal atribuída constitucionalmente, de modo explícito, às Casas Legislativas o CPIs --- artigo 58, § 3º]. Além disso, o parágrafo único do artigo 4 do CPP estipula que a atribuição estabelecida no seu caput não exclui a função investigatória da autoridade administrativa a quem a lei cometer essa função. Lembro, por exemplo, [i] o inquérito instaurado pelo Banco Central em caso de liquidação extrajudicial, falência ou intervenção em instituição financeira [art. 41 da Lei n. 6.024/74]; [ii] o inquérito administrativo contra funcionário público em virtude de falta funcional; [iii] o inquérito administrativo tributário conduzido pela Secretaria da Receita Federal [Lei n. 9.430/96, c/c decreto n. 2.730/98]; [iv] o inquérito instaurado pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM para apuração de irregularidades nas sociedades por ela fiscalizadas [art. 9º da Lei n. 6.385/76, c/c art. 19 do decreto n. 4.763/03]............................................. A lei poderia, sem sombra de dúvida, atribuir expressamente ao Ministério Público a atividade investigatória para fins de persecução criminal. A questão, contudo, não deve ser colocada no plano infraconstitucional, como anotam LENIO LUIZ STRECK e LUCIANO FELDENS (Crime e Constituição – a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro, Forense, 2.003, p. 116) A problemática relacionada à função investigativa do Ministério Público assume um viés nitidamente constitucional. Fazer o contrário é reduzir o problema ao plano (inferior) da infraconstitucionalidade. É como se, em vez de interpretarmos as leis em conformidade com a Constituição, passássemos a interpretar a Constituição em conformidade com as leis e, quiçá, com leis anteriores a Constituição, o que implicaria fazer uma leitura inconstitucional da própria Constituição!” 08. É da totalidade da Constituição, pois, que se extrai a faculdade de investigar do Ministério Público, para fins de persecução criminal. Às polícias civis, exceto no que concerne aos delitos militares, garante-se a exclusividade de uma das modalidades do gênero investigação criminal, qual seja, o inquérito policial. Mas somente isso, pois a apuração de infrações penais mediante a instauração de inquérito policial não é a única modalidade de investigação criminal . De resto, a manejar-se argumentos lógicos, basta a verificação de que --como anotei linhas acima --- o Ministério Público pode apresentar denúncia, independentemente [isto é, dispensando-o] independentemente, volto a repetir, da realização de inquérito policial. Como negar a quem pode prescindirde uma das modalidades de investigação criminal a faculdade de valer-se de outras para que possa cumprir suas funções institucionais? Concluo, destarte, pelo reconhecimento de que o Ministério Público tem a sua disposição todos os meios necessários ao desempenho dessas funções, inclusive a investigação criminal”. Ressalve-se que a investigação direta pelo Ministério Público não afasta a atribuição da polícia judiciária, devendo ser empregada subsidiariamente, quando for necessária, a critério do membro do Ministério Público. O ideal para a sociedade – e que já vem sendo alcançado em inúmeras investigações penais – é a parceria entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público com a finalidade de alcançar uma rápida, conseqüente e produtiva resposta do Estado na identificação e punição dos infratores da Legislação criminal. De fato, se a Constituição da República concedeu ao Ministério Público a função de dar início à ação penal, sendo esta sua atividade-fim, implicitamente, por óbvio, concedeu-lhe também os meios necessários para o alcance de seu objetivo, caso contrário seu encargo constitucional nem sempre poderia ser cumprido. Compelir o Parquet a uma postura meramente contemplativa seria, além de contrário à Constituição da República e à dimensão constitucional que o Ministério Público passou a ter a partir de 1988, desservir aos interesses mais elevados do país, instituir um sistema de persecução penal de fachada, incompatível com o visível amadurecimento cívico da nação e com o Estado Democrático de Direito, que deve proporcionar segurança ao cidadão.204 204 Em 10 de abril de 2006, o julgamento do inquérito 1968, que determinará a posição do plenário do STF acerca do assunto estava paralisado, aguardando-se o voto do Ministro Cezar Peluso, que havia pedido vista dos autos em 15/10/2004. A informação veiculada no Informativo nº 359 daquela Corte era a seguinte: Ministério Público e Poder de Investigação - 2 - O Tribunal retomou julgamento de inquérito em que se pretende o recebimento de denúncia oferecida contra deputado federal e outros pela suposta prática de crime de estelionato (CP, art. 171, §3º), consistente em fraudes, perpetradas por médicos que trabalhavam na clínica da qual os denunciados eram sócios, que teriam gerado dano ao Sistema Único de Saúde - SUS, as quais foram apuradas por meio de investigações efetivadas no âmbito do Ministério Público Federal. Na sessão de 15.10.2003, o Min. Marco Aurélio, relator, rejeitou a denúncia, por entender que o órgão ministerial não possui competência para realizar diretamente investigações na esfera criminal, mas apenas de requisitá-las à autoridade policial competente, no que foi acompanhado pelo Min. Nelson Jobim - v. Informativo 325. Em voto-vista, o Min. Joaquim Barbosa divergiu desse entendimento e recebeu a denúncia. Afirmou, inicialmente, não ter vislumbrado, na espécie, verdadeira investigação criminal por parte do Ministério Público. Salientou que o parquet, por força do que dispõe o inciso III, do art. 129 da CF, tem competência para instaurar procedimento investigativo sobre questão que envolva interesses difusos e coletivos (no caso a proteção do patrimônio público) e que essa atribuição decorre não da natureza do ato punitivo que resulta da investigação, mas do fato a ser investigado sobre bens jurídicos cuja proteção a CF lhe conferiu. Esclareceu que a outorga constitucional, ao parquet, da titularidade da ação penal implicaria a dos meios necessários ao alcance do seu múnus, estando esses meios previstos constitucional (CF, art. 129, IX) e legalmente (LC 75/93, art. 8º, V; Lei 8.625/93, art. 26). Asseverou que, apesar do Ministério Público não ter competência para presidir o inquérito policial, de monopólio da polícia, a elucidação dos crimes não se esgotaria nesse âmbito, podendo ser efetivada por vários órgãos administrativos, tendo em conta o disposto no parágrafo único do art. 4º do CPP. Ressaltou que a premissa de que o art. 144, §1º, IV, da CF teria estabelecido monopólio investigativo em prol da polícia federal poria em cheque várias estruturas administrativas e investigativas realizadas por diversos órgãos no sentido de combater uma série de condutas criminosas. Concluiu, dessa forma, quanto à questão preliminar, pela existência de justa causa para recebimento da denúncia. Os Ministros Eros Grau e Carlos Britto acompanharam a divergência. Após, o Min. Cezar Peluso pediu vista dos autos. (CF, art. 129: "São funções institucionais do Ministério Público:.. III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;... VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas..."; LC 75/93: "Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:... V - realizar inspeções e diligências investigatórias..."; Lei 8.625/93: "Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá: I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los..."; CPP: "Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Parágrafo único.A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função."). CAPÍTULO 2. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA: UMA HISTÓRIA INACABADA Um dos vetores da atuação do Ministério Público no Estado Democrático de Direito, como guardião da ordem jurídica e da legalidade democrática, referese à provocação da jurisdição constitucional, através do controle incidenter tantum de leis e atos normativos do Poder Público, realizado em sede de ações civis públicas, poderoso instrumento constitucional deferido ao Parquet. Com efeito, tal função institucional poderá servir de instrumento para a guarda, conservação e respeito da Constituição e para a real efetividade de suas normas, multiplicando a possibilidade de aplicação da jurisdição constitucional em todos os rincões do território nacional e possibilitando à sociedade maior aproximação com os compromissos sociais efetuados na Constituição da República. Entretanto, inúmeras decisões judiciais vêm obstando a utilização da Ação Civil Pública como instrumento hábil para, ainda que de forma incidental, o pleno exercício da jurisdição constitucional, ao principal argumento, dentre outros, de que a eficácia erga omnes obtida na sentença proferida naquela ação (art 16 da Lei 7.347/85) usurparia a competência dos órgãos constitucionalmente previstos para o controle in abstracto da constitucionalidade das leis – o STF e os Tribunais de Justiça locais. Neste capítulo da dissertação, procura-se demonstrar a possibilidade jurídica da utilização da ação civil pública - em sede de controle difuso, realizado incidenter tantum - dentro do legítimo exercício, pelo Ministério Público, de suas funções institucionais de defesa da ordem jurídica, dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, na defesa do princípio da supremacia formal da Constituição205. 205 O princípio da supremacia constitucional denota que a Constituição veicula as normas jurídicas de máxima hierarquia no Sistema de Direito Positivo, figurando como fundamento de validade de todo o ordenamento normativo. A noção de supremacia, como percebido por Guilherme Peña de Moraes (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 128) é decomposta nos conceitos de supremacia material e supremacia formal, estando a primeira a indicar a maior importância das normas constitucionais em relação às normas ordinárias e a segunda a induzir a relação de hierarquia entre o texto constitucional, produzido pelo poder constituinte e as normas ordinárias, elaboradas pelo poder constituído.. Para Hans Kelsen (Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 120) “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e, assim por diante, até buscar a norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética nestes termos – é, portanto, fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.". Assim, a superioridade da Constituição demonstra a necessidade de qualquer ato normativo inferior estar formal e materialmente adequado às disposições insertas no texto fundamental, sob pena de inconstitucionalidade, conforme os ingleses doutrinam: "an act againist Constitution is void" (uma lei contra a Constituição é nula).Tal noção de supremacia gera a necessidade do desempenho da jurisdição constitucional, com a finalidade de efetivamente assegurar a predominância do texto elaborado pelo poder constituinte em relação às normas infraconstitucionais, como asseverado por Marcelo Neves (Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 146). Ao citar o chief justice Marshall, em “Os Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo, ante a Justiça Federal” RUI já lecionava: “ Toda a construção do Direito americano tem por base a noção de que o povo possui originariamente o direito de estabelecer, para o seu futuro governo, os princípios que mais conducentes se lhe afigurem à sua utilidade. Os princípios, que destarte uma vez se estabeleceram, consideram-se, portanto, fundamentais.... E como a autoridade, de que eles dimanam é suprema, e raro se exerce, esses princípios tem destino permanente....Nesta última espécie se classifica o governo dos Estados Unidos. Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição. Com que fim se estipularia esta estipulação a escrito, se os limites prescritos pudessem ser ultrapassados exatamente por aqueles, que ela propunha coibir...Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar, por medidas ordinárias, a Constituição. Não há contestar o dilema. Entre as duas alternativas, não se descobre meio-termo. Ou a Constituição é lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos da legislação usual, e como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços do povo.... Ora, com certeza todos os que tem formulado constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a Lei fundamental e suprema da nação; e consequentemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo à Constituição, é nulo.” A noção de supremacia da constituição, no mundo contemporâneo, para Lenio Luiz Streck vai além do controle de constitucionalidade e da tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade, assumindo um papel de norma diretiva fundamental do Estado Moderno, tornando a Jurisdição Constitucional um requisito de legitimação e de credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos. Streck afirma que ”A jurisdição Constitucional passou a ser crescentemente considerada como elemento necessário da própria definição do Estado de Direito Democrático.”(Jurisdição Constitucional e Hermeneutíca: Uma nova crítica ao direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 101) A magnitude das funções da Jurisdição Constitucional, traz, como corolário lógico, a necessidade de se reconhecer, no entender do mestre gaúcho, “...a intervenção de um poder (no caso, o Judiciário ou os Tribunais Constitucionais não pertencentes – stricto sensu – ao Judiciário), mediante o instrumento de controle da constitucionalidade.” Controlar a constitucionalidade, pois, significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais. 1. O CONTROLE DIFUSO E A AÇÃO CIVIL PÚBLICA: FUNÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO No ordenamento jurídico brasileiro, convivem dois sistemas de controle da constitucionalidade: o sistema abstrato ou concentrado, através do qual apenas alguns legitimados podem provocar a jurisdição constitucional, visando a afastar do ordenamento jurídico norma considerada em antinomia com a Constituição da República; e o sistema difuso, o controle por via de exceção, onde qualquer magistrado pode aplicar a jurisdição constitucional, aferindo caso a caso, no exame concreto de uma causa, a compatibilidade vertical entre o fundamento normativo invocado e o texto da Constituição. Neste último sistema, cabe ao próprio interessado, quando apresenta sua defesa num caso concreto – ou através de um writ constitucional, como o Mandado de Segurança, Habeas Corpus ou Ação Civil Pública - suscitar a inconstitucionalidade da norma, sendo legitimados também todas as demais partes no processo, incluindo o Ministério Público. O responsável pelo julgamento é o próprio magistrado da causa, sendo certo que a declaração não é o objeto principal do litígio, mas questão incidente surgida num caso concreto. Nessa modalidade, a declaração da inconstitucionalidade constitui uma questão prejudicial, que deve ser sanada antes do julgamento da causa, pois dela depende a solução do litígio. A decisão proferida pelo juiz, na via de exceção, gera efeito apenas entre as partes, não fazendo, desse modo, coisa julgada perante terceiros. Depreende-se, nos dias de hoje, de certa preferência do legislador em relação ao controle concentrado, dada a preocupação em se fazer chegar logo ao STF, pela via abstrata, o entendimento constitucional acerca dos atos normativos do Poder Público. O antes exclusivo modelo de controle difuso passou a ter caráter quase obsoleto, por força do desenvolvimento do controle concentrado e da indispensável necessidade de utilização da resolução do Senado Federal para fins de extensão do julgado206. Entretanto, a via do controle concreto é imprescindível para a resolução de conflitos mediante a utilização das ações coletivas como instrumento de provocação da jurisdição constitucional. Nesse sentido, é indispensável a ação civil pública manejada pelo Parquet, dentro de suas funções institucionais, na proteção de interesses metaindividuais relevantes. A ação civil pública, como qualquer outra demanda no ordenamento jurídico nacional, é hábil para o exercício da jurisdição constitucional, tendo em vista a inexistência, no texto da Constituição da República, de qualquer restrição à sua utilização para esse fim207. Ocorre, que, por ter em seus atributos o chamado efeito erga omnes, há posições doutrinárias208 e jurisprudenciais que sustentam a impossibilidade da 206 BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas de utilização da ação civil púbica e da ação popular no controle concreto de constitucionalidade. Disponível em: http://Mundo Jurídico.adv.br . Acesso em: 04/06/04. 207 Apesar disso, o Ministro Gilmar Mendes assevera que “.ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.” MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. In: MILARÉ, Edis (coord). Ação Civil Pública após 20 anos: Efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005. pp. 195-205. 208 TUCCI, Rogério Lauria. Ação civil pública:Sua abusiva utilização pelo Ministério Público. In: Revista AJURIS, nº 56, ano XIX, Porto Alegre, novembro de 1992. pp. 35/55. análise difusa da constitucionalidade nesta via, eis que a decisão proferida não se restringiria às partes, ocasionando usurpação de competência do STF. Acerca do assunto, já decidiu o Min. Moreira Alves209: O controle de constitucionalidade in abstracto (principalmente em países em que, como o nosso, se admite, sem restrições, o incidenter tantum) é de natureza excepcional, e só se permite nos casos expressamente previstos pela própria Constituição, como consectário, aliás, do princípio da harmonia e independência dos Poderes do Estado. Na mesma linha, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes210: Tem-se de admitir a inidoneidade completa da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais. A razão principal de tal restrição é a semelhança existente entre as duas ações de matriz constitucional, que possuem natureza de processo sem partes ou de processo objetivo, apesar das diferenças que entre elas existem. Nesse sentido, o Min. Gilmar Ferreira Mendes211: a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua na defesa de situações 209 RE 91.740-RS MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de direito constitucional. [s.l.]:IBDC e Celso Bastos Editor, 1999. p. 356. 211 MENDES, Gilmar Ferreira, Direitos, cit., p. 356. 210 subjetivas, agindo, fundamentalmente, com o escopo de garantir a tutela do interesse público. Não destoando André Ramos Tavares212, para quem “não se pode conceber que se tenha engendrado um sistema próprio, criado pela Constituição, com uma instituição também própria (Supremo Tribunal Federal), para tratar da questão da constitucionalidade das leis com decisões erga omnes e, paralelamente, admitir que qualquer órgão da Justiça realize, por via de ação civil pública, essa tão delicada tarefa, muitas vezes fazendo-o também em abstrato, ou seja, sem qualquer referibilidade a um caso concreto específico (tal como deveria ocorrer apenas no exercício da jurisdição constitucional concentrada).Assim, embora se possa afirmar que, teoricamente, não há usurpação de competência própria do Supremo Tribunal Federal, já que o objeto da ação civil pública não é propriamente a declaração de inconstitucionalidade, na prática, admitir-se de modo amplo a possibilidade de controle difuso em virtude de ação civil pública pode desembocar em situações que só se deveriam alcançar por força das ações de controle concentrado da constitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal.” Ocorre que, entre a ação civil pública e a ação direta de inconstitucionalidade, apesar de existirem similitudes, também existem profundas diferenças, que não podem deixar de ser indicadas, como percebeu Lenio Luiz Streck213 “ o fato de que a regra do artigo 97 da Constituição, exigindo sempre uma maioria absoluta para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, aproximar as duas modalidades de controle de constitucionalidade, isso não tem o condão de transformar a declaração de inconstitucionalidade em sede de ação civil pública em sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade”. Na ação civil pública, o objeto principal é a tutela de um interesse público relevante, fundado no texto constitucional, enquanto que, na ação direta de inconstitucionalidade, o objeto principal é a declaração dessa circunstância. 212 TAVARES, André Ramos. Tratado da Argüição de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 287. 213 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, cit., p. 489. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery apontam214 : O objeto da ACP é a defesa de um dos direitos tutelados pela CF, pelo CDC e pela LACP. A ACP pode ter como fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O objeto da ADIn é a declaração, em abstrato, da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei declarada inconstitucional do mundo jurídico por intermédio da eficácia erga omnes da coisa julgada. Assim, o pedido na ACP é a proteção do bem da vida tutelado pela CF, CDC ou LACP, que pode ter como causa de pedir a inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ADIn será a própria declaração da inconstitucionalidade da lei. Na ação civil pública, a questão constitucional é argüida como causa de pedir, constituindo questão prejudicial ao julgamento do mérito. A inconstitucionalidade é questão prévia, que influencia na decisão sobre o pedido referente à tutela do interesse relevante. É decidida incidenter tantum, como pressuposto necessário à parte dispositiva da sentença. Uma vez que a coisa julgada material recai apenas sobre o pedido, e não sobre a fundamentação da sentença, nada obsta que a questão constitucional volte a ser discutida em outras ações. Nesse sentido, dispõe o art. 469 do Código de Processo Civil: Art. 469. Não fazem coisa julgada: (...) III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo A ação direta de inconstitucionalidade é instrumento do controle concentrado da constitucionalidade, já a ação civil pública é instrumento de controle difuso, 214 NERY Junior e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 2.ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 1403, nota 7. inexistindo qualquer óbice, especialmente constitucional, para sua utilização nessa modalidade. Com efeito, na ação civil pública, a eficácia erga omnes da coisa julgada material não alcança a questão prejudicial da inconstitucionalidade. Na ação direta, a essa declaração faz coisa julgada material erga omnes no âmbito de vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado. Além disso, as ações civis públicas estão sujeitas aos recursos previstos na legislação processual, incluindo-se o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, enquanto que as ações diretas são julgadas em grau único de jurisdição. Portanto, a decisão proferida na ação civil pública, no que se refere ao controle difuso de constitucionalidade, será submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal, guardião final da Constituição da República. Por fim, aponte-se que a ação civil pública atua no plano dos fatos, através, notadamente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe assegurem eficácia material. A ação direta de inconstitucionalidade, ao seu turno, tem natureza meramente declaratória, limitando-se a suspender a eficácia da lei ou do ato normativo em tese. Este ponto é de suma importância para embasar a tese de possibilidade do manejo da ação civil pública em sede de controle difuso. No controle abstrato, a decisão torna a norma - objeto da jurisdição constitucional - nula, sem eficácia, írrita. Não poderá jamais ser aplicada novamente. Já em sede de controle difuso, a lei somente perde sua eficácia para as partes envolvidas, podendo ser aplicada para os não envolvidos na demanda. Tome-se, por exemplo, a decisão tomada pelo STF no RE 197.917-8, em que o Ministério Público de São Paulo ajuizou ação civil pública visando a reduzir de onze para nove o número de vereadores do Município de Mira Estrela, cuja Lei Orgânica contrariava a proporção estabelecida no Artigo 29, IV, “a” da Constituição. A inconstitucionalidade da norma municipal era questão prejudicial, a qual se somavam ainda os pedidos de afastamento dos edis em demasia ao padrão constitucional, além da devolução do subsídio por eles percebido ilicitamente. Nesta hipótese, é difícil a distinção hermenêutica entre “o próprio objeto da demanda” e “a questão prejudicial”, já que os pedidos aduzidos são: (a) A redução de vereadores pela inconstitucionalidade da norma municipal; (b) o afastamento dos excedentes e; (c) a devolução dos subsídios percebidos ilegalmente. Mas a grande distinção entre o controle difuso e o concentrado é que a norma municipal não perde sua eficácia no primeiro, podendo ser aplicável em outra legislatura municipal se, passado lapso temporal, o número de habitantes do município alcançar a proporcionalidade exigida pela Constituição. No controle concentrado a decisão tem o condão de nulificar a lei, com eficácia erga omnes, perdendo assim, para sempre, sua eficácia.215 215 Acerca do assunto, confira-se a crítica efetuada por Lenio Luiz Streck em Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, cit. pp. 493/494. Ressalte-se, por oportuno, que a ação civil pública é instrumento para a proteção, pelo Ministério Público, de interesses sociais relevantes e de direitos fundamentais, de maneira que impedir a análise de matéria constitucional em seu bojo significa limitar o seu uso. A Ação Civil Pública é, na verdade, writ constitucional de efetivação de direitos fundamentais, devendo, nesse sentido, ser aplicado o "princípio da máxima efetividade" na sua interpretação. Para J. J. Canotilho: "Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. (...) é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).216 Deve-se, assim, buscar interpretação constitucional que reconheça a ação civil pública como espécie de instrumento processual que tem por primordial objetivo a proteção de interesses socialmente relevantes e direitos fundamentais. Considerar que, na ação civil pública, não pode ser tratado o tema “controle de constitucionalidade”, como questão prejudicial, equivale a minimizar ou mesmo destruir a eficácia desse mecanismo constitucional. 216 CANOTILHO, J. J. op. cit., p. 227. Nesse sentido, começa a Corte Suprema a mudar seu entendimento acerca da questão. Inicialmente, na Reclamação 434/SP, sendo relator o Ministro Francisco Rezek217, o plenário não admitiu, em ações civis públicas o controle difuso ainda que incidenter tantum, ao argumento de violação indireta de sua competência originária, nos seguintes termos: [...] As ações em curso nas 2ª e 3ª Varas de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo –objeto da presente reclamação – não visam ao julgamento de uma relação jurídica concreta, mas a da validade da lei em tese, competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, a da CF). Configurada a usurpação da competência do STF para o controle concentrado, declara-se a nulidade ab initio das referidas ações, determinando seu arquivamento, por não ossirem seus autores legitimidade ativa para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Posteriormente, nos julgamentos da Reclamações 597/SP, 600/SP e 602/SP, todos ocorridos em 03/09/97, a Corte admitiu o controle difuso, ao argumento de que a Ação Civil Pública tem por objeto bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, inalcançável por meio do controle abstrato, além da circunstância de a decisão proferida em Ação Civil Pública estar sujeita ao regime geral de recursos existentes no ordenamento jurídico, podendo, através do Recurso Extraordinário, submeter-se ao crivo do STF218. Finalmente, na Reclamação n. 1.733-SP, através de voto do Ministro Celso de Mello, decidiu a Corte acerca da questão, de maneira lapidar: EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO PREJUDICIAL. POSSIBILIDADE. 217 218 DJU 09/12/94, pp. 34.081. DJU 14/02/2003 INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina.(Informativo n. 211, de 1º de dezembro de 2000) No mesmo sentido, o julgamento do RE 227159 / GO, em 17/05/02, sendo relator o Ministro Néri da Silveira: EMENTA: - Recurso extraordinário. Ação Civil Pública. Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como inadequada a ação civil pública para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento desta Corte no sentido de que "nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local." 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva jurisdição, a propor ação civil pública(CF, arts. 127 e 129, III). 5. Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga na ação civil pública movida pelo Ministério Público. Espera-se que o entendimento acima descrito seja mantido pela Corte Suprema, permitindo-se, portanto, ao Ministério Público, no legítimo exercício de suas funções institucionais, utilizar-se da Ação Civil Pública como instrumento de tutela de interesses sociais relevantes e direitos fundamentais, na forma preconizada na Constituição da República. CAPÍTULO 3. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O CONTROLE DA PROBIDADE ADMINISTRATIVA: A ATUALIDADE DO CASO MADISON VS. MARBURY E A LEI 10.628/02. No Estado Democrático de Direito, a observância dos princípios constitucionais relativos à Administração Pública, previstos no caput do art. 37 da Constituição, dentre outros princípios constitucionais, é fundamental para o controle da atuação da atividade administrativa, assegurando o efetivo atendimento dos interesses públicos primordiais a todo cidadão brasileiro. O Ministério Público, nesse aspecto, assume importante papel no controle da administração pública, como legitimado constitucional para o exercício da ação civil pública para a proteção dos valores assegurados pela Constituição, notadamente daqueles tutelados pela Lei 8429/92, que consagra a sanção a atos de improbidade administrativa. Nesta perspectiva, deve-se relevar que a atuação ministerial em defesa da probidade administrativa enfrenta, na atualidade, sérios desafios quanto a sua efetividade, face a tentativas de se inviabilizar sua utilização por parte dos inúmeros Promotores de Justiça em atuação perante a primeira instância do Judiciário em todo o Brasil, estendendo-se a ela o foro privilegiado previsto na Constituição Federal em hipóteses exaustivas para determinadas autoridades e, por conseguinte, limitando a atuação ministerial, que ficaria, nesse aspecto, restrita à atuação dos Procuradores-Gerais de Justiça e do Procurador-Geral da República, únicos legitimados a tal tipo de postulação perante os Tribunais de Justiça, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público a tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa, valendo-se a instituição, inicialmente, da ação civil pública prevista na Lei 7.347/85 e da Lei Bilac Pinto (Lei 3502/58) para pleitear a invalidação de atos ilegais e lesivos ao patrimônio público, eventual ressarcimento ao erário e, nas hipóteses cabíveis, a perda do produto do enriquecimento ilícito219. Posteriormente, em 1992, foi editada a Lei 8429, que, regulamentando o art. 37, § 4.º, da Constituição da República, definiu atos de improbidade e respectivas sanções, passando a ser importante instrumento de utilização pelo Ministério Público para o controle da moralidade administrativa em todo o setor público, nos limites de atuação preconizados pelo Estado Democrático de Direito. Constata-se, desde então, que a ação ministerial, nessa vertente, tem repercutido fortemente nas esferas política e jurisdicional, motivando forte reação de segmentos da sociedade que não desejam ter seus atos ímprobos sindicados pelo Ministério Público e submetidos ao crivo jurisdicional. A reação não tardou. Nos estertores do ano de 2002, foi editada a Lei 10.628, de 24 de Dezembro, alterando o Código de Processo Penal e – ao evidente arrepio do texto maior – dilargando a competência originária do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, sem as necessárias alterações constitucionais, previstas nos arts. 60 e seguintes da Constituição. A alteração legislativa em comento traduziu, em seu bojo, uma tentativa de limitar a atuação do Ministério Público no controle da probidade administrativa, valor previsto na Constituição de 1988, cuja tutela coube à Instituição no Estado Democrático de Direito em que vive a sociedade brasileira. A edição do diploma em tela trouxe, ínsita, a necessidade de controlar a constitucionalidade do dispositivo em comento, bem como tornou necessário revisitar o célebre caso Marbury Vs Madison, ocorrido em 1803 e que se revela – decorridos dois séculos - de extrema atualidade para o direito contemporâneo220. 219 VIEIRA, Fernando Grella. Ação Civil Pública de Improbidade. Foro Privilegiado e Crime de Responsabilidade. In: MILARÉ, Edis (coord). Ação Civil Pública após 20 anos: Efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005. p. 165. 220 A Constituição Americana de 1787 apresenta-se como o primeiro texto constitucional consolidado de um país, trazendo em seu bojo características e institutos marcantes para o exercício e regulação do Poder, tais como, entre outros, a noção de Constituição Escrita e o caráter de Constituição rígida (Slaibi Filho, Nagib,. Breve História do Controle da Constitucionalidade.In:A Constitucionalização do Direito.Rio de Janeiro:Lúmen Júris. 2003.p. 44). Não trouxe, entretanto, o texto constitucional americano, a atribuição para qualquer órgão federal do Poder ou mesmo o Parlamento, zelar pela guarda da Constituição. Como ensina Ronaldo Poletti(Controle da Constitucionalidade das Leis.Rio de Janeiro:Forense, 1995, p. 24), o denominado ‘judicial review”, mesmo no tocante à Constitucionalidade das leis está, no Brasil, descrito no texto constitucional. Na América, entretanto, os elaboradores da Constituição da República , apesar de discutirem intensamente o assunto, optaram por não inseri-lo no texto pactuado que constituiria a nova nação.Os debates que ocorreram na Convenção de 1787 indicavam que os delegados esperavam que as novas Cortes Federais examinassem a Constitucionalidade das Leis elaboradas pelo Congresso, sendo certo que John Marshall, na Convenção de Virginia, chegou a asseverar: “Se eles (o Congresso) elaborarem uma lei não permitida por um dos poderes enumerados, ela deve ser considerada pelos juízes como infringente à Constituição, da qual eles são a guarda. Eles não deverão considerá-la como lei, ao exercerem sua função jurisdicional. Eles deverão declará-la como nula.(Polletti, ob. cit., p. 24).No mesmo sentido, Alexander Hamilton, nos artigos de “O Federalista”, quinze anos antes da histórica decisão de Marshall, já sustentava a competência judiciária para a interpretação das leis e que a Constituição devia ser vista pelos Juízes como uma lei fundamental, com prevalência sobre as leis ordinárias(Id.Ibidem, p. 26).A idéia da possibilidade do controle de constitucionalidade era latente no texto maior e apesar de já existirem posicionamentos judiciais neste sentido em diversos Estados americanos, a verdadeira jurisprudência, fundada nas idéias de Marshall somente prevaleceria depois do famoso aresto proferido pelo então Chief Justice Mas como ocorreu o célebre leading case? Na década de 1790, nasce na nova Com efeito, a idéia de que normas infraconstitucionais não podem alterar o texto da Constituição da República parece não ter sido bem compreendida pelo legislador pátrio, em atividade nociva a um dos princípios mais caros ao Estado Democrático de Direito cristalizado na Constituição de 1988 : a moralidade administrativa. nação americana o Sistema Partidário, sendo certo que praticamente todos os “Pais Fundadores” ingressaram no Partido Federalista, detentor do Poder, liderados por George Washington, primeiro presidente americano, que tinha em seu gabinete políticos do porte de Alexander Hamilton (Secretário do Tesouro); Thomas Jefferson (Secretário de Estado) e James Madison. Por razões de ordem política e econômica , Hamilton e Jefferson dissentiram ideologicamente, tendo este último, em virtude de tais divergências, abandonado a facção política originária e – juntamente com o jurista Madison - fundado o Partido Democrata Republicano (atual Partido Democrata), nascendo daí o célebre bi-partidarismo que caracteriza até hoje a história dos Estados Unidos. O segundo Presidente americano seria John Adams, Federalista, eleito para mandato compreendido entre 1797/1801, que governou sob severas críticas do partido de Jefferson, notadamente quanto à política econômica e de relações externas. Em sua gestão, Adams tinha como principais assessores Hamilton, que continuava na pasta do Tesouro e John Marshall, futuro Chief Justice, que desempenhava as funções de Secretário de Estado. No pleito seguinte (1801), apesar de candidato à reeleição, Adams é fragorosamente derrotado por Thomas Jefferson, dando início à primeira transição democrática do Poder na nova nação. Tencionando preservar seus correligionários de eventuais dissabores políticos causados pela investidura do novo governo, Adams, com o apoio de seu Secretário de Estado, John Marshall, resolveu nomear a cúpula do Partido Federalista, derrotado, para cargos no Poder Judiciário, que já possuía garantias e prerrogativas constitucionais, como a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos (id ibidem, p. 32). Um dos próprios beneficiários de tal decisão foi Marshall, nomeado para a U.S. Supreme Court, em Janeiro de 1801, após aprovação pelo Senado. Houve também nomeações para dezesseis cargos de Juiz Federal de Apelação (“Cricuit Court Judges”) e quarenta e dois cargos de Juízes de Paz para o Distrito de Columbia (“Organic Act of the District of Columbia”).Estas últimas nomeações foram confirmadas pelo Senado no último dia de Adams no cargo, razão pela qual os magistrados – nomeados no apagar das luzes da Administração Adams - foram denominados “Midnight Judges” Apesar de já empossado no novo cargo, Marshall permaneceu acumulando as funções de Chief Justice – tendo inclusive ministrado o “juramento do cargo” a Jefferson – com as de Secretário de Estado até a posse de seu sucessor, Madison, o demandado na questão em exame. Ocorre que, para o aperfeiçoamento do ato de nomeação, era indispensável a entrega do título, assinado e selado, ao destinatário da investidura. Entre o resultado da eleição e a passagem do governo, os denominados “Midnight Judges” foram investidos nas funções jurisdicionais, tendo entretanto Marshall – que desimcumbira-se da tarefa, na qualidade de Secretário de Estado - deixado de entregar alguns títulos de nomeação – já assinados e selados - entre os quais encontrava-se o de William Marbury, nomeado para o cargo de Juiz de Paz do Condado de Washington, no Distrito de Columbia. Quando Jefferson tomou posse, recusou-se a prosseguir na entrega dos termos de nomeação (“commissions”), negando-se a empossar os magistrados faltantes, por considerar tais atos nulos, dando a seu novo Secretário de Estado, Madison, tal determinação. Diante de tal fato, Marbury e os outros prejudicados inicialmente notificaram Madison para que apresentasse as razões da recusa e ante a inércia do demandado, interpuseram writ of mandamus, baseados em Lei ordinária que dava à Suprema Corte a competência originária para apreciar a questão. Na decisão em tela, Marshall reconheceu, implicitamente, o direito de Marbury de ser empossado no cargo. Entretanto, declarou a Suprema Corte americana incompetente para apreciar a questão, sob fundamento de que a Legislação ordinária (“ordinary act”), invocada no caso por Marbury em suas razões à Corte - o ”Judiciary Act”, de 1789 - era inconstitucional, pois não poderia ter aumentado a competência originária fixada em sede constitucional para a Suprema Corte da nação. Em conseqüência, declarou a nulidade da norma (“The rule must be discharged”), não lhe dando cumprimento. Nascia aí o conceito de supremacia formal da Constituição em relação às normas infraconstitucionais que lhe fossem incompatíveis, com a conseqüente nulidade da espécie normativa em antinomia com o texto maior, no que foi posteriormente denominada pelos constitucionalistas como “Doutrina Marshall”. 1. A LEI 10.628/02 E A TENTATIVA (FRUSTRADA) DE CERCEAR A PLENA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: A Lei nº 10.628, sancionada em 24 de dezembro de 2002, conferiu nova redação ao art. 84 do Código de Processo Penal, nele introduzindo dois parágrafos, no seguinte teor: Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. § 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º. Ora, tal diploma legal pretendeu, em seu parágrafo primeiro, revigorar a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da função pública, que havia sido extinto pelo Colendo Supremo Tribunal Federal com o cancelamento do verbete nº 394 da súmula predominante221 e, em seu parágrafo segundo, estender a “competência por prerrogativa de função”, antes existente tão-somente para o processamento e julgamento de infrações penais, para o conhecimento e julgamento de atos de improbidade administrativa. 221 Inq 687-SP QO, Rel. Min Sydney Sanches; Informativo STF 159. Com tal efeito, por norma infraconstitucional, pretendeu o legislador pátrio aumentar a competência originária da Suprema Corte (art. 102, I) e dos demais Tribunais Superiores, em flagrante violação aos princípios da supremacia formal da constituição e de sua rigidez, trazendo a lume, quase dois séculos após, o célebre caso Marbury Vs. Madison, examinado no início deste capítulo. Como é cediço, o sistema adotado pela Constituição de 1.988 determina que a competência originária dos Tribunais seja fixada, restritivamente, no corpo da própria Constituição. Tal sistema emerge da dicção dos arts. 102, I (Competência originária do STF); 105, I (Competência originária do STJ) e demais Tribunais superiores, sendo certo ainda que o art. 125, § 1.º, determina às Constituições Estaduais a fixação das competência dos Tribunais de Justiça. Logo, a aludida norma legal, ao criar, nos dois parágrafos introduzidos no art. 84 do Código de Processo Penal, circunstâncias que ensejam a majoração da competência originária do STF, STJ e demais Tribunais, violava o princípio do Juiz Natural (art. 5°, XXXVII) e padecia de flagrante inconstitucionalidade. A matéria já tinha sido decidida, nesse sentido, pela Suprema Corte na Petição 693 AgR/SP, sendo relator o Ministro Ilmar Galvão: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA PRESIDENTE DA REPÚBLICA. LEI N. 7.347/85. A competência do Supremo Tribunal Federal é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os feitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade..222 O Ministro Celso Mello, na Petição nº 1026-4/DF, também não destoava: A competência originária do Supremo Tribunal Federal qualifica-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional”, não comportando a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I da Carta Política. A definição da competência originária dos tribunais é matéria sujeita a reserva de constituição, sendo defeso ao legislador infraconstitucional disciplinar tal matéria, como tentou fazê-lo ao promulgar a Lei n. 10.628/03, arvorando-se, dessa forma, no papel do Poder Constituinte Derivado . A inconstitucionalidade do diploma legislativo em tela emergia também da aferição do desrespeito ao comando esculpido no art. 125, § 1º, da Constituição de 1988, que determina expressamente seja a competência originária dos Tribunais de Justiça definida pela respectiva Constituição Estadual e, não, por lei ordinária, como ocorria no diploma legislativo ora em análise. 222 RTJ 159/28, Rel Min. Ilmar Galvão; Informativo STF 172 Além disso, é da sistemática e da tradição de nosso direito que as hipóteses de foro privilegiado somente possam ser disciplinadas na Constituição Federal, ou, quando muito, nas Constituições estaduais, não se admitindo, portanto, como sintetizado por Alexandre de Moraes, ampliação por norma de estatura inferior: “...a Constituição Federal, consagrando o princípio do Juiz Natural (art. 5°, incisos XXXVII e LIII), não permite alterações de foro por conveniências ou analogias políticas.”223 A conseqüência imediata da edição do dispositivo em exame era tornar incompetentes os juízes de primeira instância que conheciam de ações por improbidade administrativa ajuizadas pelo Ministério Público em face de Prefeitos, Secretários de Estado, Deputados Estaduais e outras autoridades, que gozassem, em sede criminal, de foro por prerrogativa de função junto aos Tribunais de Justiça. Tais demandas somente poderiam ser aforadas pelo Procurador-Geral de Justiça e esvaziariam, de imediato, a ação dos Promotores de Justiça que, nos mais longínquos rincões da “Terrae Brasilis” perseguem a imoralidade administrativa. Por sua vez, determinadas autoridades estaduais, como o Governador do Estado, Desembargadores e Conselheiros de Tribunais de Contas teriam eventual conduta ímproba aferidas tão-somente pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio de ações ajuizadas pelo Procurador-Geral da República ou por seu delegatário perante aquela Corte superior, sendo certo que outras autoridades, como Presidente da República, Ministros de Estado e parlamentares federais teriam seu foro no STF e a exclusiva aferição de sua conduta pelo Procurador-Geral da República. 223 MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulos: Atlas, 2003. p. 2645. Desnecessário dizer que a colheita da prova e as notícias de improbidade administrativa veiculadas ao Ministério Público – que em muito são viabilizadas graças à proximidade do Promotor de Justiça da sociedade local - passariam a ter imensa dificuldade na sua consecução, face à distância física e à de comunicação que separariam a sociedade do seu destinatário legal (Procuradores-Gerais). A edição da Lei em comento atingiria, portanto, a efetividade da atuação do Ministério Público na tutela da improbidade administrativa, dificultando sobremaneira o exercício dessa função institucional. 2. A REAÇÃO INSTITUCIONAL E A ORIENTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FLUMINENSE: Centrado nessa linha de raciocínio, de que o dispositivo em tela violava a supremacia constitucional, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de seu Procurador-Geral de Justiça editou, em 20/02/03, a Resolução nº 1129, onde expediu recomendação, sem efeito normativo, aos promotores de justiça, no seguinte teor: O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições legais, especialmente as fundadas no art. 10, inciso XII, da Lei n.º 8.625, de 12.02.93, e art. 11, inciso XVIII, da Lei Complementar n.º 106, de 03.01.2003, CONSIDERANDO a alteração introduzida no art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei n.º 10.628, de 24.12.2002, segundo a qual fica garantido, no parágrafo 2º, foro especial por prerrogativa de função na hipótese de aplicação da Lei n.º 8.429/92, que disciplina as condutas inquinadas de improbidade administrativa e ensejadoras de enriquecimento ilícito; CONSIDERANDO as controvérsias que vêm sendo deduzidas no que concerne à constitucionalidade dessas novas regras de competência; CONSIDERANDO o entendimento unânime esposado, em reunião de 16.12.2002, pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, no sentido da inconstitucionalidade da dita alteração, sob o argumento de ser vedado à legislação infraconstitucional dispor sobre novas competências a serem atribuídas ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça e aos demais órgãos do Poder Judiciário; CONSIDERANDO a conveniência, para fins institucionais, de manter unidade de pensamento a respeito do assunto; CONSIDERANDO, enfim, que, para tal propósito, se torna adequado expedir recomendação, sem caráter normativo, aos órgãos do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, R E S O L V E: Recomendar, sem caráter normativo, aos órgãos do Ministério Público, que as ações civis públicas de improbidade administrativa, fundadas na Lei º 8.429/92, sejam ajuizadas perante o Juízo de primeiro grau, independentemente da natureza funcional do agente público responsável pela conduta; Recomendar que a direção e o acompanhamento de inquéritos civis e procedimentos investigatórios que tenham por fim a averiguação das condutas a que se refere a presente Resolução sejam da atribuição da respectiva Promotoria de Justiça de Proteção aos Interesses Difusos e Direitos Coletivos, de acordo com os critérios ora vigentes; Recomendar, ainda, que, nas causas referidas, deva ser argüida, incidentalmente, a inconstitucionalidade do § 2º do art. 84, do Cód. Proc. Penal, com a alteração introduzida pela Lei n.º 10.628, de 24.12.2002; Recomendar, por fim, que, nas ações civis públicas, propostas em face de agentes com foro especial, que já estejam tramitando no Juízo de primeiro grau, deva também ser suscitada a inconstitucionalidade incidental do mesmo dispositivo do Código de Processo Penal. Percebe-se, portanto, que, em atitude inédita, o ProcuradorGeral de Justiça abriu mão de atribuição que passara a ser sua e que o permitiria fazer juízo de valor sobre inúmeras autoridades estaduais e permitiu, de imediato, aos Promotores de Justiça prosseguirem oficiando em ação civis de improbidade administrativa, além de estimular, outrossim, o controle de constitucionalidade (por intermédio do sistema difuso), da norma em exame, servindo de multiplicador para as inúmeras decisões judiciais. Paralelalmente à providência ora narrada, a CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, legitimada para o Controle abstrato de Constitucionalidade, ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2797, tendo o mesmo fundamento acima exposto. Ao emitir parecer na aludida ADIN, o então Procurador-Geral da República, citando a doutrina Marshall, afirmou: Vislumbra-se, portanto, sério vício que resulta na inconstitucionalidade formal a macular a norma inserta no § 1.º do art. 84 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 10.628/02, pois somente o próprio Supremo Tribunal Federal é que teria que adotar tal exegese da norma constitucional sobre sua própria competência originária e não o legislador ordinário. Há, assim, a nosso ver, violação do disposto no art. 2.º, da Constituição da República. O § 1º viola o princípio da independência e harmonia dos poderes e usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal enquanto guardião máximo da Constituição, segundo o caput do art. 102. A lei neste ponto interpreta a Constituição, na verdade, revogando a exegese mais recente do Supremo Tribunal Federal e lembra o caso emblemático Marbury v. Madison da Suprema Corte Americana. Aliás, como se sabe, toda a teoria judicial review começa com a inconstitucionalidade formal naquele caso, sob inspiração do Chief Justice MARSHALL, quando o Congresso Americano pretendeu, por lei, criar competência originária para a Suprema Corte relativa ao writ of mandamus. A competência originária daquela corte é somente a definida no próprio texto da Constituição e não em leis ("Statutes") do Congresso. A matéria foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 15 de setembro de 2005, tendo aquela Corte acolhido a tese aqui esposada, no sentido da declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos em tela, como forma de efetivação da Constituição da República em detrimento das “maiorias eventuais” que teimam em desconsiderá-lo . Face ao exposto, afere-se que o legislador ordinário, numa tentativa de refrear o âmbito de atuação do Ministério Público no controle da probidade administrativa, ao editar a Lei 10.628/02, arvorou-se em Poder Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao rol exaustivo de competências de cada tribunal existente no ordenamento jurídico nacional. Tal conduta violou a tradição do ordenamento brasileiro, que preceitua ser a repartição da competência jurisdicional - especialmente da competência originária dos Tribunais - fixada na Constituição da República, de forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva. O comando aplica-se com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais regionais federais e aos juízes federais, bem como aos tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada em sede constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição Federal, previsto no art. 125, § 1°, da Constituição da República. Agindo dessa forma, trouxe o legislador ordinário a lume – dois séculos depois – a controvérsia judicial de caso Marbury vs Madison, precedente que institucionalizou a idéia de jurisdição constitucional e supremacia forma da Constituição da República em relação às normas infraconstitucionais. Com efeito, os limites da competência dos tribunais estão descritos no texto constitucional, quer federal, quer estadual, sendo vedado ao legislador ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se poder constituinte fosse. Não pode, pois, a lei ordinária tentar disciplinar matéria que só pode ter matriz constitucional, sob pena de violação do caráter rígido da Constituição da República, sua supremacia formal e material sobre todas as espécies normativas e, especialmente, a independência e a harmonia dos poderes do Estado, determinadas no art. 2.º da Constituição Republicana. Tal noção, de clareza curial, demonstra a atualidade da doutrina Marshall e a contemporaneidade do precedente para os estudiosos do Direito Constitucional. Espera-se que a resposta do Supremo Tribunal Federal tenha refreado a índole do legislador ordinário no afã de tentar obstaculizar a atuação do Ministério Público no controle da probidade administrativa. CAPÍTULO 4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DEFESA DO CONTRIBUINTE: ATRIBUIÇÃO INSTITUCIONAL DERROTADA PELA JURISPRUDÊNCIA. Como já assinalado neste trabalho, a Constituição Federal de 1988 assegurou ao Ministério Público a função institucional de guardião da ordem jurídica, podendo, neste aspecto, utilizar os mecanismos constitucionais e infraconstitucionais existentes no ordenamento jurídico nacional para a consecução de tal mister. Dentre tais instrumentos, destaca-se a ação civil pública e o inquérito civil, constitucionalizados no art. 129, inciso III, da referida Constituição, que estabelece competir ao Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública para a defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Tal dispositivo concede, a um só tempo, tanto a legitimidade para agir em favor do órgão ministerial, como a adequação da citada via processual, tendo rompido com o sistema originário previsto na Lei 7.347/85, de enumeração taxativa, viabilizando a propositura, pelo Ministério Público, da ação civil para a defesa de quaisquer interesses dessa natureza. Conjugado com o art. 127, que lhe defere a tutela da ordem jurídica, do regime democrático e de todos os interesses sociais e individuais indisponíveis, torna-se o Ministério Público o legitimado constitucional para as questões que contenham relevância social. Nesse diapasão, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) alterou vários artigos da Lei n° 7.347/85, que originariamente disciplinava a ação civil pública, trazendo vários outros dispositivos aplicáveis subsidiariamente à matéria224, além de estabelecer a total integração dos dois diplomas legais em matéria processual225. Dentre as inovações trazidas por tal diploma legal, encontra-se a possibilidade da tutela, pelo Ministério Público, dos interesses individuais homogêneos (que não possuíam, originariamente, matriz constitucional) e a possibilidade de utilização da ação civil coletiva (modalidade de ação civil pública expressamente criada pelo art. 91 do aludido diploma legal) para sua defesa. Tal legitimidade, conferida por diploma infraconstitucional, não encontra qualquer óbice na Constituição Federal, face à norma prevista no art. 129, IX, já comentada no Capítulo 1 da Parte II desta dissertação, que permite ao legislador ordinário cometer ao Ministério Público outros afazeres, desde que compatíveis aos seus fins institucionais. Parece evidente que ao Ministério Público, na função de garante da ordem jurídica e dos princípios basilares da Administração Pública, compete tutelar direitos de uma coletividade vulnerada pela instituição, cobrança ou majoração de tributos, em desacordo com os mandamentos constitucionais. No Estado Democrático de Direito, que tem função de promoção social, a justa tributação é o meio constitucional eficaz para a plena implementação do Welfare State. 224 225 Código de Defesa do Consumidor — Lei n°8078, de 11.9.90, arts. 81 a 104. Idem, art. 90. Entretanto, a legitimidade do Ministério Público nessa área, com a utilização da ação civil pública para promover a defesa do contribuinte, encontra forte resistência jurisprudencial. Neste capítulo da dissertação será abordada, sob a perspectiva constitucional, a utilização desse importante instrumento processual na tutela do contribuinte, analisando-se a posição jurisprudencial dos Tribunais Superiores acerca do tema (com enfoque especial em precedente da Suprema Corte), juntamente com a reflexão crítica acerca da constitucionalidade da Medida Provisória que impediu a utilização da ação civil pública para questões de ordem tributária, em evidente obstáculo à regular atuação do Ministério Público nessa seara. 1. POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL ACERCA DO TEMA A grande maioria dos doutrinadores sempre sustentou haver adequação da via processual e legitimidade do Ministério Público para promover a ação civil pública ou coletiva na defesa dos contribuintes e, por conseguinte, para veicular matéria tributária. Ocorria, na verdade, uma quase unanimidade da doutrina quanto ao tema226, sustentando a viabilidade quanto aos aspectos adequação e legitimidade. 226 NERY Junior e NERY, Rosa Maria Andrade. op. cit., p. 1129, nota n° 23; PRUDENTE, Antonio Souza. Legitimação Constitucional do Ministério Público para ação civil pública em matéria tributária na defesa de direitos individuais homogêneos. In: Jus Navigandi. Teresina, a.3, n. 35, out. 1999. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1293. Acesso em 02/03/06; WATANABE, Kazuo. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 820; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. São Paulo:RT, 2001. p.41; MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999. pp. 123/124; CARIGÉ, Washington Araújo. IPTU — Cobrança indevida de tributos — A legitimidade do Ministério Público e a ação civil pública. In: RDC 9/111115. SP: RT, jan.-mar./1994; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. O Ministério Público e a legitimidade para a defesa dos interesses coletivos decorrentes de questões tributárias de massa. In: Revista de Estudos Tributários n° 11, Ano II, jan.-fev./2000. pp. 132-157. Na área jurisprudencial, no entanto, a matéria nunca esteve pacificada, registrando-se julgados em ambos os sentidos, ora reconhecendo a legitimação ministerial ora negando-a. No próprio Superior Tribunal de Justiça as duas posições foram defendidas, de formas diametralmente opostas. Com efeito, havia julgados que consideravam a adequação da ação civil pública em matéria tributária e legitimação do órgão ministerial para promovê-la, como os abaixo transcritos: Em se tratando de pretensão de uma coletividade que se insurge para não pagar taxa de iluminação pública, por entendê-la indevida, não há que se negar a legitimidade do Ministério Público para, por via de ação civil pública, atuar como sujeito ativo da demanda. Há situações em que, muito embora os interesses sejam pertinentes a pessoas identificadas, eles, contudo, pela característica de universalidade que possuem, atingindo a vários estamentos sociais, transcedem à esfera individual e passam a ser interesse da coletividade. (STJ, AG em Resp. 98.286-SP, Rel. Min. José Delgado, DJU 23.3.1998, p. 17) Os interesses sociais, in casu, suspensão do indevido pagamento de taxa de iluminação pública, embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcedem a esfera de interesses puramente individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único e de eficácia imediata – a ação coletiva. (STJ, Resp. 49272-RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 17.10.1994, p. 27868) Outros, negando tal adequação e legitimação: Ação Civil Pública. Direitos Individuais disponíveis. IPTU. Legitimidade do Ministério Público. A legitimidade do Ministério Público é para cuidar de interesses sociais difusos ou coletivos e não para patrocinar direitos individuais privados e disponíveis. O Ministério Público não tem legitimidade para promover a ação civil pública na defesa dos contribuintes do IPTU, que não são considerados consumidores. Recurso provido. (STJ, Resp 219.673/SP, Rel. Min Garcia Vieira, j. em 14.09.99, DJ de 1.10.99) O MP não tem legitimidade para ajuizar a ação.civil Pública. Consumidores e Contribuintes são categorias afins, porém distintas. Enquanto entre consumidores o interesse a ser defendido é coletivo, entre contribuintes ele é individualizado. Assim a ACP mostra-se como meio inadequado à proteção dos interesses individuais advindos da relação estabelecida entre a Fazenda e os contribuintes. (STJ, 2ª T. Resp 169313-SP, Rel. Min Nancy Andrigui, j. 22.08.2000) Ocorre que, após o julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em 09 de dezembro de 1999 do RE 195.056-1 — Paraná, relativo à cobrança do Imposto Predial Territorial Urbano no município de Umuarama, a posição oposta ganhou força, no sentido da falta de legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública em matéria tributária. No caso vertente, discutia-se a constitucionalidade do aumento da cobrança do IPTU em relação aos contribuintes do Município de Umuarama, postulando o Ministério Público local a anulação do lançamento tributário e a repetição do indébito em relação aos contribuintes. 2. A DECISÃO DO STF NO RE 195.056: O PRECEDENTE DA ILEGITIMIDADE O STF se pronunciou sobre o tema, ao julgar o Recurso Extraordinário n° 195.056-l/PR, entendendo o Plenário que: Constitucional. Ação Civil Pública. Impostos: IPTU. Ministério Público: Legitimidade. Lei n°7.374, de 1985, art. 1, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei n° 8.078, de 1990 (Código do Consumidor); Lei n°8.625, de 1993, art. 25. C.F., art.s 127 e 129, III. 1- A ação civil pública presta-se à defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei n°7.374/85, art. 10, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei n° 8.078/90 (Cód. do Consumidor); Lei n° 8.625, de 1993, art. 25. II — Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se à defesa desses direitos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III. III — O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto — no caso o IPTU — pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei n° 7.374/85, art. l, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei n°8.078/90 (Cód. do Consumidor); Lei n° 8.625/93, art. 25, IV; C.F., art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com “interesses sociais e individuais indisponíveis.”(C.F., art. 127, caput). IV — R.E. não conhecido·. Como se vê, a Suprema Corte, em apertada síntese: (a) reconheceu a tutela do Ministério Público a interesses individuais homogêneos, quando os titulares daquela relação estiverem na situação ou na condição de consumidores ou quando se tratar de relações de consumo; (b) reconheceu a legitimidade do Ministério Público para certos direitos individuais homogêneos (que, segundo a corte, possam ser classificados como direitos coletivos) revestidos de relevância social ou caráter indisponível, tendo por base o art. 127, caput e o art. 129, III da Constituição Federal; e (c) deixou de reconhecer ao Ministério Público a legitimidade para tutela do contribuinte, tendo em vista o argumento de que a relação jurídico-tributária entre o Poder Público e o sujeito passivo da obrigação fiscal não tem natureza consumerista nem possui caráter de indisponibilidade e relevância social227. 227 Posteriormente, em decisão em que se invocou como precedente o acórdão em comento, a 2ª Turma, através do voto condutor do Ministro Carlos Velloso, julgando o RE248.191-2/SP, assim decidiu: CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA: MINISTÉRIO PÚBLICO: TRIBUTOS: LEGITIMIDADE. Lei 7.347/85, art. 1°, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25. C.F., art.s 127 e 129, III. I. O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança de tributos ou para pleitear a sua restituição. É que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte), relação de consumo, nem seria possível identificar o direito do contribuinte com “interesses sociais e individuais indisponíveis” (C.F., art. 127). II. Precedentes do STF: RE 195.056-PR, Ministro Carlos Velloso, Plenário, 09.12.99; RE 213.631-MG, Ministro Ilmar Galvão, Plenário, 09.12.99, RTJ 173/298. III. RE conhecido e provido. Agravo não provido. Na esteira desse entendimento, foi editada a Medida Provisória n° 1984-19, do ano de 2000, reeditada como Medida Provisória 2180-35/2001, alterando a Lei nº 7.347/85 (LACP), com a inserção do parágrafo único ao art. 1º, que passou a ter a seguinte redação: “Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.” Tal medida provisória, com o advento da Emenda Constitucional nº 32/01 ganhou validade indefinida, permitindo ao Poder Executivo, em manobra casuística, resolver questão emergencial de seu interesse, como eram as liminares deferidas nos processos coletivos questionando a cobrança da CPMF e outros tributos e exações. 3. OS EQUÍVOCOS NA DECISÃO PARADIGMÁTICA: 3.1. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO: Da decisão em comento, pode-se observar que foi vedada ao Ministério Público a tutela dos contribuintes, ao argumento de que a relação jurídico-tributária não se caracteriza como uma relação de consumo tampouco tem a obrigação tributária caráter de relevância social ou de interesse indisponível. “Ora o direito do contribuinte ao não pagamento de um tributo e o seu direito à restituição de tributos que teriam sido pagos indevidamente, não se identificam com direitos sociais” ··, concluiu o Ministro relator ao proferir seu voto, pela ilegitimidade do Parquet. Não foi examinada pela Corte, entretanto, a outra visão, isto é, a questão relativa à lisura da administração pública na imposição de tributo, com o cumprimento dos primados constitucionais da moralidade administrativa e da legalidade tributária. A sistemática constitucional vigente atribuiu ao Ministério Público, no art. 127 da Constituição da República a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesse contexto, o art. 129 da referida Constituição menciona, dentre outras funções institucionais do Ministério Público, “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (inciso II), e “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (inciso III). Logo, se vulnerados os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, encontra-se o Ministério Público, por determinação constitucional, incumbido da defesa do primado da ordem jurídica, zelando pelo efetivo respeito por parte do Poder Público aos direitos assegurados na Constituição. Com efeito, característica do Estado Democrático de Direito é a legalidade, na perspectiva de que o Estado submete-se à Lei. Analisando com propriedade a matéria, Eduardo Garcia de Enterria228 diz que, sob tal modelo, a legalidade da Administração é mais uma técnica de garantia da liberdade do que uma exigência decorrente de sua organização burocrática e racionalizada. Forçoso reconhecer então que [...] as disposições constitucionais balizadoras da ação do Estado são mecanismos propostos a conter certos rumos estatais, em prol dos indivíduos e a direcionar-lhes as condutas para certos rumos, em prol dos cidadãos.Donde serem, eles mesmos, indivíduos titulares de direitos à obediência destas regras, que sujeitam o Poder Público. Dentre os direitos subjetivos públicos assegurados à sociedade e que cabe ao Ministério Público velar, encontra-se o de ver respeitado o princípio da legalidade tributária, insculpido nos arts. 5º, § 2.º, e 150, I, da Constituição da República, os quais foram erigidos à categoria de direitos fundamentais do cidadão. A própria Suprema Corte já identificou, como observado por Luís Roberto Barroso229, que [...] os princípios constitucionais tributários, sobre representarem importante conquista político-jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal. Desde que existem para impor limitações ao poder de tributar do Estado, esses postulados têm por destinatário exclusivo o poder estatal, que se submete à imperatividade de suas restrições. (STF, RTJ 144/435) 228 GARCIA DE ENTERRÍA,Eduardo. Apud MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. In: Revista de Direito Público. São Paulo, v. 57/58, Jan/Jun. 1981, pp. 233-256. p. 251. 229 BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada e Legislação complementar. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 291. Com efeito, no Estado Democrático de Direito, que necessita implementar transformações sociais e direitos fundamentais, é inegável e necessária uma contraprestação para custear o Welfare State preconizado pela Constituição: o pagamento de tributos. Quer-se com isso deixar bem claro que, à luz das normas constitucionais, mormente do princípio da solidariedade e com a finalidade de se atingir os objetivos estampados no art. 3° da Constituição da República, todas as pessoas físicas e jurídicas – respeitadas suas capacidades contributivas (que derivam do princípio da igualdade) - têm um dever fundamental de pagar tributos. Simultaneamente, o Ministério Público, dentro dos limites de suas atribuições, tem o dever de resguardar a ordem jurídica para garantir o cumprimento do aporte desses recursos necessários à efetivação dos direitos fundamentais (e punição daqueles que descumprem as regras mediante condutas criminosas), tendo, igualmente, a obrigação de impedir condutas do Estado que vulnerarem os limites e princípios constitucionais em matéria tributária, que venham atingir os direitos dos contribuintes. Assim, em demandas que envolvam a manifesta ilegalidade ou inconstitucionalidade da cobrança de tributos (sem se verificar conflito com os propósitos da ação direta de inconstitucionalidade, como já demonstrado no capítulo 2 da parte II desta dissertação), tem o Ministério Público legitimidade para agir, pois estão presentes mais do que simples hipóteses de direitos individuais homogêneos (os quais, de modo isolado, efetivamente são), mas sim, sob um prisma sistêmico, verdadeiros interesses sociais indisponíveis que justificam a atuação, com amparo explícito no art. 127 e no inciso III do art. 129 da Constituição da República. Desrespeitando a Administração Pública os princípios que norteiam sua atuação, estará o Ministério Público legitimado a ajuizar as medidas cabíveis, eis que a observância do ordenamento jurídico, em especial aos direitos e garantias fundamentais de todos que estejam no território do Estado, erige-se, como consectário lógico e razão de ser do próprio Estado democrático de Direito. Nesse teor o entendimento do Ministro Celso Mello, na PET 1.466/PB: Os desvios inconstitucionais do Estado, no exercício de seu poder de tributar, geram na ilegitimidade desse comportamento do aparelho governamental, efeitos perversos, que, projetando-se nas relações jurídicofiscais mantidas com os contribuintes, deformam os princípios que estruturam a ordem jurídica, subvertem as finalidades do sistema normativo e comprometem a integridade e a supremacia da própria Constituição da República. Tal controle da Administração Pública pelo Ministério Público não passou despercebido a Hely Lopes Meirelles, para quem todo ato administrativo, de qualquer autoridade ou poder, para ser legítimo e operante deveria ser praticado em conformidade com a norma legal pertinente (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade), com a destinação pública apropriada (finalidade) e com a divulgação oficial necessária (publicidade). “Faltando, contrariando ou desviando-se destes princípios básicos, a Administração vicia o ato, expondo-o a anulação por ela mesma ou pelo Poder Judiciário.”230 230 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 610 Um dos legitimados para tal controle é o Ministério Público, tanto por força da Constituição, como já asseverado, quanto em sede infraconstitucional. De fato, a Lei Complementar nº. 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, estabeleceu tal função institucional em seu art. 5º, II, alínea “a”, cabendo-lhe “zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos ao sistema tributário, às limitações ao poder de tributar, à repartição do poder impositivo e das receitas tributárias e aos direitos do contribuinte.” Para o exercício de tal mister, poderá o Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos constitucionais, de outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos, propondo ação coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos (art. 6º, incisos VII, alíneas “a” e “d”, e XII). Tais normas, por estarem previstas na Lei Orgânica do Ministério Público da União, são aplicadas subsidiariamente aos Ministérios Públicos dos Estados, nos termos do disposto no art. 80 da Lei nº. 8.625/93. Ademais, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro (art. 173, inciso III), e a Lei Complementar Estadual nº. 106/03 (art. 34, inciso VI, alínea “a”), prevêem a possibilidade de manuseio da ação civil pública pelo Parquet com o intuito de buscar a tutela metaindividual dos contribuintes. Não há dúvida, portanto, que a ação civil pública é um valioso instrumento que se destina, dentre outras finalidades, à defesa do contribuinte, sob a ótica da legalidade tributária que deve nortear a atuação da administração pública, estando o Ministério Público legitimado a manejá-la, por força do art. 127 e 129, II da Constituição. 3.2. DA RELEVÂNCIA SOCIAL E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES DOS CONTRIBUINTES No acórdão objeto de reflexão, afere-se que o Supremo Tribunal, apesar de reconhecer ao Ministério Público a legitimidade para tutelar interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, não reconheceu na essência da relação jurídicotributária, sob a perspectiva do contribuinte, o caráter de relevância social e indisponibilidade que ensejaria a tutela pelo Ministério Público. Impõe-se, portanto, a reflexão acerca da noção correta desses dois paradigmas, a vedar a tutela pelo Ministério Público, na ótica da Corte, dos interesses dos contribuintes. Milton Sanseverino231, mesmo antes da Constituição de 1988, lecionando acerca das funções do Ministério Público, já asseverava ser o interesse que justificava sua intervenção no processo aquele que se prestava “à salvaguarda dos superiores interesses da comunidade”, classificando a instituição como “um defensor societatis”. Já Oswaldo Luiz Palu232, ao explicitar as finalidades constitucionais do Ministério Público, considerou os interesses sociais como aqueles aproximados à noção do “interesse geral” ou do 231 SANSEVERINO, Milton. O Ministério Público e o interesse público no processo civil. In: Revista Forense, 254:198; Justitia, 87/269. 232 PALU, Oswaldo Luiz. Ministério Público: Finalidades constitucionais e decidibilidade acerca de sua atuação. In: APMP Revista, nº 29. Ano III, Out/Nov 1999. p. 67/69 “bem comum”, aduzindo que o “interesse social é o que consulta a maioria da sociedade civil, o interesse que reflete o que a sociedade entende por bem comum.” No mesmo sentido, Teori Albino Zavascki233, que vincula a legitimidade do Parquet, em hipóteses de direitos individuais homogêneos, à ocorrência de lesão de interesses relevantes da comunidade – ou interesse social – , cujo amparo estaria no art. 127 da Constituição Federal, “circunscrevendo-se a [sua] atuação à busca de provimentos genéricos indispensáveis à restauração dos valores afetados”. Na sustação da cobrança do tributo indevido (pedido coletivo), como se percebe, há manifesto interesse social evidenciado pela dimensão e característica do dano, posto que esse atinge uma gama enorme de pessoas de determinado município, altamente dispersas, bem como está presente a relevância social do bem jurídico que se busca proteger — a ordem jurídica tributária, tal como exigido no § 1° do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor c/c Lei Complementar 75, de 20.5.93 (LOMPU), art. 5°, inciso II, alínea a. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover234: Em segundo lugar, a doutrina, internacional e nacional, já deixou claro que a tutela de direitos transindividuais não significa propriamente defesa de interesse público, nem de interesses privados, pois os interesses privados são vistos e tratados em sua dimensão social e coletiva, sendo de grande importância política a solução jurisdicional de conflitos de massa. 233 ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de Direitos Coletivos e Defesa Coletiva de Direitos. In: Revista de Processo. São Paulo, ano 20, n. 78, abr./jun. 1995. p. 32-49 234 GRINOVER, Ada Pellegrinni. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.871. Assim, foi exatamente a relevância social da tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador ordinário a conferir ao MP e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se tratando de interesses ou direitos disponíveis. Em conformidade, aliás, com a própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX); e a dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art. 127 da Constituição. Nesse teor, e especificamente acerca da relevância social e indisponibilidade dos direitos dos contribuintes, mesmo após a decisão ora questionada, os argumentos expendidos pelo Ministro Luis Fux no julgamento do Recurso Especial n° 530.808-MG, julgado em 1º de abril de 2004, são relevantes: 4. A soma dos interesses múltiplos dos contribuintes constitui interesse transindividual, que por sua dimensão coletiva torna-se público e indisponível, apto a legitimar o Parquet a velá-la em juízo. Aliás, em muitas decisões o Superior Tribunal de Justiça vinha sufragando o entendimento de que a Ação Civil Pública voltada contra a ilegalidade dos tributos não implicava em via oblíqua de controle concentrado de constitucionalidade. Deveras, o Ministério Público, por força do art. 129, III, da Constituição Federal é legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa de direitos transindividuais, nestes incluídos os direitos dos contribuintes de Taxa de Esgoto, ainda que por Ação Civil Pública. 5. Recurso Especial do Ministério Público provido. De fato, em matéria tributária, os interesses permeiam a esfera de um número indeterminado de indivíduos, de vez que a norma tributária, de caráter geral e abstrato, atinge, embora gerando efeitos para cada situação em concreto, a coletividade, transcendendo a sede individual dos direitos que ali residem. O ajuizamento pelo Ministério Público de ações coletivas envolvendo interesses individuais homogêneos já configura questão de interesse social ao evitar a proliferação de demandas, prestigia a atividade jurisdicional e evita decisões conflitantes. No mesmo sentido, Antonio Souza Prudente pondera que: [...] Nesse contexto, o direito fundamental de acesso à Justiça, garantido, expressamente, pelo texto constitucional (CF, art. 5, XXXV), assegura-nos, também, o direito à adequada tutela jurisdicional, por meio da ação civil pública, proposta pelo Ministério Público, em defesa dos princípios constitucionais tributários e dos interesses individuais homogêneos dos contribuintes, coletiva e socialmente considerados, na dispersão do ilícito tributário de origem legal comum, tal como ocorre com a cobrança abusiva da contribuição previdenciária do servidor público inativo e da CPMF. (grifou-se) [...] De ver-se, assim, que, em matéria tributária, os interesses individuais homogêneos, legalmente definidos, como aqueles decorrentes de origem comum, uma vez agredidos, coletivamente, em seu núcleo originário (hipótese de incidência tributária e conseqüente fato gerador, de natureza homogênea, a gestar obrigações tributárias e resultantes interesses individuais também homogêneos), sofrem, por força do impacto agressor, o fenômeno da atomização processual, em defesa de interesse coletivo e social, relevantes a legitimar a pronta atuação do Ministério Público, na linha de determinação institucional do arts. 127, caput e 129, III, da Constituição da República, traduzidos nas disposições dos arts. 5º, II, a e 6º, incs. VII, a e d e XII, da Lei Complementar n. 75/93, mediante garantias instrumentais da ação civil pública, evitando, assim, a pulverização dos litígios, com o conseqüente acúmulo de feitos judiciais nos tribunais do País, nessa seara histórica de abusos tributários, onde o contribuinte, individualmente considerado, sem recursos e órfão da assistência judiciária do Estado, queda-se inerte e vitimado, sem qualquer defesa, ante a brutal arrogância do Fisco. 235 (grifou-se) Especificamente comentando a decisão, objeto da presente reflexão, José Roberto dos Santos Bedaque236, ao criticar o posicionamento da Suprema Corte, define a questão da relevância social na matéria tributária, da seguinte maneira: Predomina o interesse social na cobrança justa dos tributos para uma população inteira; o caráter social, de utilidade pública, de interesse público está aí e nós sabemos hoje que a política de impostos feita pelos administradores não é exatamente esta. O raciocínio é outro: vamos cobrar todos os impostos possíveis, inclusive aqueles inconstitucionais, pois é uma parcela ínfima da população que se insurgirá contra este abuso consciente. Não me parece legítimo retirar do Ministério Público, que está defendendo a legítima cobrança de um imposto constitucional e a legítima exclusão de um imposto inconstitucional, para toda uma população, a possibilidade de levar 235 PRUDENTE, Antonio Souza. op. cit. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Legitimidade Processual e Legitimidade Política. In: SALLES, Carlos Alberto de (org.). O Processo Civil e o Interesse Público – O Processo como Instrumento de Defesa Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 109. 236 ao podr judiciário esse interesse individual homogêneo dos contribuintes lesados. Eu vejo aí um interesse social, público, não é pela quantidade das pessoas, é pela natureza da situação e evidentemente por alcançar toda uma coletividade. Foi este o raciocínio do Ministro Marco Aurélio, ao votar vencido no leading case aqui analisado e reconhecer a legitimidade do Ministério Público, por tratar-se, na espécie, de interesse individual homogêneo de relevância social e caráter indisponível: [...] a ação foi intentada objetivando beneficiar todos os contribuintes de um município. O interesse social salta aos olhos, considerada a globalidade dos que residem no município, valendo notar a natureza pública da relação jurídica tributária. Na espécie tem-se o interesse social, um predicado que direciona à conclusão do envolvimento de interesses individuais homogêneos, que é justamente o aspecto social. Estou lembrando de uma hipótese, que não diria mais ou menos favorável do que a retratada nestes autos, na qual o Plenário concluiu no sentido de reconhecer a legitimidade do Ministério Público. Aludo ao problema das mensalidades escolares. Caminhamos nesse sentido, dando uma interpretação, portanto, teleológica ao inciso III do art. 129 da Constituição Federal, considerada a repercussão no tecido social, ou seja, o interesse abrangente dos cidadãos.....Esperar-se que cada qual, residente no Município de Umuarama, ajuíze a ação para impugnar a majoração do tributo tida como ilegal é simplesmente assentarse que não teremos tal ajuizamento.” E citando Mazzilli, continua S.Exa “No caso do ajuizamento visando a obter a devolução dos tributos ilegalmente retidos ou recolhidos de milhares ou milhões de contribuintes, negar o interesse da sociedade como um todo na solução desses litígios e exigir que cada lesado comparecesse a juízo em defesa de seus interesses individuais seria negar os fundamentos e os objetivos da ação coletiva ou da ação civil pública”´para prosseguir “Há outro aspecto a respaldar a conclusão sobre a legitimidade em foco. Viabiliza a desburocratização do Judiciário, concentrando pretensões em um único processo, além de implicar freio à fúria arrecadadora do Estado. Sob o ângulo negativo, não vejo qualquer inconveniente na iniciativa do Ministério Público. Por último, atente-se para a Lei Complementar regedora da atividade do Ministério Público – Lei Complementar nº 75/93. O art. 5º, II, impõe-lhe zelar pela observância dos princípios constitucionais reltivos ao sistema tributário.Cumpre ao Judiciário agasalhar as iniciativas voltadas para o restabelecimento da paz social, ao equilíbrio das relações Estado-Cidadão, viabilizando, até mesmo, o melhor funcionamento da grande máquina que encerra.”(grifos nossos) Ressalve-se, por oportuno, que o STF, ao julgar questão semelhante, em que se discutia a tutela de interesses individuais homogêneos socialmente relevantes, na questão hoje já sumulada (Verbete 643)237 relativa às mensalidades escolares, teve posição diametralmente oposta. 3.3. A DECISÃO DO STF NO CASO DAS MENSALIDADES ESCOLARES, DE MANIFESTA RELEVÂNCIA SOCIAL. Em caso de todo semelhante ao objeto da presente análise (RE 163.231-SP), sendo Relator o Ministro Maurício Corrêa, decidiu o Supremo Tribunal Federal, pelo seu plenário: 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base. 3.1. A interdeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. (...) 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o art. 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. 237 Súmula nº 643 do STF: “O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares.” Cuidando da ordem jurídico-tributária, não estará o Parquet legitimado? Pode ver-se que, contraditoriamente, no caso do aumento abusivo das mensalidades escolares, os direitos individuais homogêneos (rectius coletivos) foram considerados subespécies de interesses coletivos, situação que era idêntica à dos contribuintes, que, no entanto, lograram tratamento diverso. 3.4. A INCONSTITUCIONALIDADE DA MP N° 2.180-35/2001 Também não se pode invocar o disposto no parágrafo único do art. 1º da Lei nº. 7.347/85, regra essa acrescentada pela Medida Provisória nº. 2.180-35, de 24/08/2.001, para que seja obstada a tutela do Ministério Público no caso vertente. Essa alteração contém manifesta inconstitucionalidade, não passando despercebida a Hugo Nigro Mazzilli, para quem: [...] é como se o governante dissesse assim: como a Constituição e as leis instituíram um sistema para defesa coletiva de direitos, e como esse sistema pode ser usado contra o governo, então impeço o funcionamento do sistema para não ser acionado em ações coletivas, onde posso perder tudo de uma só vez. Sim, o fundamento é esse, pois, se, em vez da ação coletiva fosse usada a ação individual, cada lesado teria de contratar individualmente um advogado para lutar em juízo. Em caso de danos dispersos na coletividade, isso só seria bom para o causador do dano, nunca para os lesados, já que, na prática, a grande maioria dos lesados não buscaria acesso individual à jurisdição, diante das dificuldades práticas (honorários de advogados, decisões contraditórias etc.). E é com isso que contam os governantes, quando cobram ´empréstimos compulsórios´ jamais devolvidos, retêm devoluções de impostos cobrados a mais, negam devolução da correção monetária de que se apropriou o Estado nas contas de FGTS.. 238 238 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo:Saraiva, 2003. p. 128. Como é cediço, o inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República consagra o princípio do direito de ação, o que significa dizer, como ensinam Nélson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, que “todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória de um direito individual, coletivo ou difuso.”239 Nesse contexto, os mesmos autores comentam a flagrante inconstitucionalidade do dispositivo em questão: O texto constitucional proíbe a lei de excluir da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito. O parágrafo ora comentado exclui da apreciação judicial ameaça ou lesão a direito, em desobediência intolerável à Carta Magna e, portanto, ao estado democrático de direito (CF 1º caput). Ainda que se entenda que a norma comentada apenas limitaria o pedido judicial, na verdade proíbe o ajuizamento de ação coletiva nos casos que enumera. É flagrante a inconstitucionalidade, notadamente porque a norma é oriunda do Chefe do Poder Executivo federal, que legisla em causa própria e proíbe que o Poder Judiciário examine pretensões coletivas contra atos dele, Poder Executivo. A proporcionalidade, a razoabilidade e a moralidade administrativa (CF 37, caput) são desrespeitadas pelo parágrafo incluído pela MedProv 2180-35. O Poder Judiciário não poderá dar cumprimento a essa norma inconstitucional. 240 Assim, ao se acatar a regra instituída pelo parágrafo único do art. 1º da Lei nº. 7.347/85, enfraquecida estará a Constituição da República e desprestigiado o Poder Judiciário, que tem o dever constitucional de conhecer e julgar lides, coletivas ou não, envolvendo ameaças ou lesões a direitos. Com esse mesmo entendimento, Hugo Nigro Mazzilli observa: 239 NERY Júnior, Nelson e ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 141. Flagrante é a inconstitucionalidade de medida provisória que tenta impedir o acesso coletivo à jurisdição. Tanto é garantia constitucional o acesso individual como o acesso coletivo à jurisdição. Ou seja, é o mesmo que, tendo a Constituição garantido o acesso à jurisdição, não só sob o aspecto individual como coletivo (Tít. II, Cap. I, e art. 5º, XXI, XXV e LXX), vir o administrador a legislar e a dizer que, nos casos em que ele não o deseja, não cabe acesso coletivo à jurisdição...Ora, a lei infraconstitucional não pode proibir nem o acesso individual nem o acesso coletivo à jurisdição.241 Ademais, por ser mais consentâneo com a economia processual, mostra-se impertinente qualquer tentativa de impedir os imensos benefícios que a tutela jurisdicional coletiva poderá proporcionar com a presente demanda, ainda mais diante do interesse social que se visa proteger. Face ao exposto, afere-se que a grande maioria dos doutrinadores sempre sustentou haver adequação da via processual e legitimidade do Ministério Público para promover a ação civil pública na defesa dos contribuintes, ou seja, para veicular matéria tributária. Entretanto, a partir de 1999, quando o STF efetuou o julgamento do RE 195.056-PR, surgiram obstáculos jurisprudenciais a tal tese, sustentando tese oposta, que nega legitimidade ao Ministério Pública. Tal postura é flagrantemente contrária ao perfil institucional que o Ministério Público possui no Estado Democrático de Direito. Há necessidade de revisão da orientação adotada no leading case, porque o Ministério Público está legitimado para defender os direitos dos contribuintes, por força da Constituição Federal (arts. 127, caput, 129, incisos, II, III e IX) e da Lei 240 241 NERY Júnior, Nelson e ANDRADE NERY, Rosa Maria. op. cit., p. 1418. MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa, cit., pp. 113/114. Complemntar nº 75/93, art. 5°, inc. II, alínea a, aplicado subsidiariamente à LONMP — Lei n° 8.625/93, sendo a Medida Provisória n° 1984-19, que hoje possui o n° 2180-35, de 24.8.2001, manifestamente inconstitucional na parte em que insere parágrafo único no art. 1° da Lei n° 7.347/85 (LACP), proibindo o uso da ação civil pública em matéria tributária, por ofensa aos dispositivos constitucionais e legais citados.242 242 Em Setembro de 2005, o STF continuava a se manifestar em posição contaria a aqui defendida, consoante o AI 516.072, sendo relator o Min. Joaquim Barbosa, DJ 23/09/05 “O Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito da possibilidade de ação civil pública declarar a inconstitucionalidade, incidenter tantum, de ato normativo municipal (CF. AI 504.856-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08/10/2004, e RE 227.159, Rel. min. Néri da Silveira, DJ 17/05/2002). Entretanto, tal entendimento não prevalece quando se trata de impugnação de tributos, como no presente caso. Isso porque não estariam presentes nenhumas das hipóteses constitucionais ou legais que legitimariam a propositura da ação civil pública (art. 129, III, da Constituição Federal e art. 1º da Lei 7.347/1985 e alterações), já que o contribuinte não pode ser considerado consumidor, ante a inexistência de relação de consumo, e pelo fato de seu direito ser individual, divisível e disponível. Nesse sentido, confira-se a decisão unânime a que chegou a Segunda Turma por ocasião do julgamento do RE 248.191AgR (Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 25/10/2002) (...)." CONSIDERAÇÕES FINAIS: O Ministério Público e o Estado Democrático de Direito. Esse o pano de fundo sobre o qual foi estudado, na presente dissertação, o perfil atual da instituição, seu posicionamento constitucional ante os poderes do Estado e alguns obstáculos contemporâneos ao pleno exercício de suas funções institucionais. Da análise objetiva da pesquisa realizada, podem-se extrair as seguintes considerações, de caráter final. A história do Ministério Público está vinculada a evolução do Estado moderno e à construção do aparelho estatal, notadamente às atividades relacionadas com a prestação da Justiça. Sendo o Ministério Público uma instituição voltada para a proteção da sociedade no Estado Brasileiro instituído pela nova ordem constitucional, indispensável iniciar seu estudo reflexivo com uma digressão histórica, para melhor compreensão do contexto onde esta se encontra no Estado Democrático de Direito, de seus valores e de sua finalidade. Na execução dessa tarefa, precisar a gênese do Ministério Público é assunto permeado de contradições, face à origem controvertida da instituição. Com efeito, apesar de autores apontarem que a Antiguidade não conheceu o Ministério Público, grande parte da doutrina identifica no antigo Egito, há quatro mil anos, o primórdio mais antigo do Ministério Público, onde o “Magiaí”, funcionário real do Faraó, executava funções que hoje são deferidas à Instituição. Outros vislumbram também na Antiguidade, figuras similares ao atual Ministério Público nos “Éforos” de Esparta ou ainda nas figuras romanas do "advocati fisci", dos "censores" ou do "defensor civitatis". Parece mais acertado, face às controvérsias encontradas na pesquisa, assinalar que na Antiguidade algumas funções atualmente exercidas pelo Ministério Público já existiam tanto no Egito, quanto na Grécia e em Roma. No entanto, tratavam-se de funções atribuídas a pessoas que não representavam uma estrutura nem gozavam de um estatuto semelhante ao que hoje existe no Ministério Público contemporâneo. Já a origem próxima da Instituição não é fruto de divergência doutrinária, sendo consensualmente atribuída à França, no século XIV. Felipe IV, em 1302 une duas funções então existentes na burocracia francesa e cria os agentes do rei (Le gens du roi). A esse corpo de servidores outorgam-se as mesmas prerrogativas dos magistrados, impondo-lhes, inclusive, a vedação do patrocínio de quaisquer outras causas. Apesar de atuar tão-somente na defesa dos interesses do Estado (que então se confundiam com os do soberano) - função que a instituição somente abandonou na Constituição de 1988 - nascia aí o Ministério Público. A idéia francesa penetra em quase todas as legislações européias, inclusive na portuguesa, chegando até nós através das ordenações, e alcançando sua plenitude com a Carta de 1988. No Brasil, o primeiro texto legislativo genuinamente brasileiro a prever a figura do "Promotor de Justiça" é datado de 1609, tratando-se do diploma que regulava a composição do Tribunal da Relação da Bahia. A partir daí, com maior ou menor extensão, o Ministério Público ganha corpo nos ordenamentos constitucionais e infraconstitucionais brasileiros. Registre-se, nessa evolução, o advento em 1985, da Lei 7.347, que, ao disciplinar a ação civil pública, conferiu à Instituição legitimidade para a tutela de interesses transindividuais, criando um canal para o tratamento judicial das grandes questões do direito de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de caráter urbano, além de eleger o Ministério Público como verdadeiro advogado da sociedade, na qualidade de indutor da transformação social. Promulgada a Constituição de 1988, a instituição passou a ter novo perfil, sendo-lhe assegurada autonomia funcional e administrativa, outorgadas garantias e impostas vedações a seus membros, passando a ser o Ministério Público o guardião dos princípios e valores fundamentais do Estado Democrático de Direito. Nesse momento, para a perfeita compreensão das novas funções do Ministério Público e seu papel transformador da realidade social, entendeu-se necessário empreender estudo acerca da evolução do Estado Moderno, desde sua criação, com matriz absolutista, até sua qualificação como Estado Democrático de Direito trazendo perspectivas de realização social profunda, para concretizar as exigências de um estado de Justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana. Afere-se, portanto, que o Estado Moderno surge com o rompimento do período medievo, onde o sistema feudal e sua forma concentrada de organização do poder político sofreram um profundo desgaste, fazendo nascer uma nova ordem, através da passagem das relações de poder (autoridade e administração de justiça), até então nas mãos do senhor feudal, para a esfera pública. Surgia um novo tipo de Estado, caracterizado pela unidade territorial e dotado de um poder soberano, cuja autoridade se prendia a figura do monarca, espécie de divindade temporal e terrena, titular de um império, donde se irradiavam todas as competências e atribuições governativas. Esse modelo, entretanto, estava fadado ao insucesso em razão da crescente ascensão da burguesia, insatisfeita com os poderes ilimitados do soberano e que vai comandar processo revolucionário e instaurar um novo modelo estatal – o Estado de Direito ou Liberal – consagrando os direitos humanos e a prioridade que se deve outorgar a sua tutela, acima de qualquer outra razão de Estado. Entretanto, o absenteísmo Estatal preconizado pelo Estado liberal causou inúmeras injustiças na sociedade, formada por pretensos indivíduos formalmente iguais, mas substancialmente diferentes, tendo os movimentos sociais do século passado revelado as insuficiências das liberdades burguesas, permitindo, assim, que se tivesse consciência da necessidade de justiça social. Cria-se aí a idéia de um Estado Social, mais intervencionista na vida econômica e social, também denominado Estado do Bem Estar ou “Welfare State”. Contudo, o esgotamento do modelo intervencionista estatal, face à ineficácia de suas propostas diante de uma sociedade submetida a transformações vertiginosas, precipitou a busca por um novo modelo estatal, onde estarão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social, tudo constituindo um novo conjunto em que a preocupação básica será a transformação social. Trata-se do Estado Democrático de Direito, que traz, em seu bojo, um plus normativo, um conteúdo utópico de transformação da realidade, que o difere do Estado Liberal, onde a lei possuía um conteúdo geral e abstrato, destinada a limitar a ação estatal e também do Estado Social, onde a lei, além da restrição à atividade estatal, assumia um papel de implementação das prestações exigidas do Estado. Com efeito, quando assume a condição de democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade e não mais lhe basta a limitação à atividade do Estado nem a promoção de atuação estatal. Estado Democrático de Direito e Ministério Público. Este o resultado de nossa pesquisa, onde procurou demonstrar-se o vínculo umbilical dessas duas instituições. No Estado Democrático de Direito, é de primordial importância a atuação do Ministério Público, como agente indutor do processo de transformação social esperado pelo povo, no exercício de sua vocação constitucional para a defesa dos interesses indisponíveis da sociedade. Não foi por acaso que o constituinte de 1988 traçou para o Ministério Público nítido perfil de órgão agente, promotor de medidas, empregando nos quatros primeiros incisos do art. 129 o verbo “promover”, demonstrando, assim, que à Instituição cabe atuar como promotor, como o agente da transformação social determinada pela nova ordem constitucional. Necessário, entretanto, para uma ampla compreensão do Ministério Público no Estado Democrático de Direito, incursão à legislação comparada para se analisar o melhor posicionamento constitucional da instituição, no âmbito dos poderes do Estado e para refletir sobre o melhor modelo que se adequa às novas funções institucionais. Com efeito, o Ministério Público é integrado ao Poder Judiciário na Espanha, na Itália e em Portugal, com menor ou maior intensidade de interação com o Executivo, quanto à nomeação do Chefe da Instituição. Já na França, na Alemanha e nos Estados Unidos, a Instituição não possui perfil constitucional, estando intensamente vinculado ao Poder Executivo, através do Ministro da Justiça, sendo em regra o órgão do Estado encarregado da persecução penal. Há ainda um terceiro sistema, que vincula o Ministério Público ao Parlamento, na qualidade de Poder do Estado que representa a soberania popular e do qual precisamente emana a legalidade que a instituição haverá de defender. O estudo comparado foi concluído no momento em que se constatou que a melhor posição a permitir o pleno desenvolvimento institucional do Ministério Público foi a adotada no Brasil e que é objeto de estudos por doutrina estrangeira. De fato, a conclusão a que se chegou foi a de que, para exercer com independência e altivez a função precípua da instituição, de ser indutor da transformação social reclamada pelo Estado Democrático, não deve estar o Ministério Público necessariamente vinculado a um dos três poderes tradicionalmente constituídos. A instituição deve encontrar-se em uma posição de equilíbrio dentro do referido sistema político, nem estritamente dependente dos poderes do Estado, nem desligado deles: relacionar-se e interagir com os demais poderes, mas possuir independência em relação a estes para exercer, com altivez, sua vocação constitucional de ser agente de transformação social. Apesar de tais características, o estudo defrontou-se com percalços e obstáculos doutrinários e jurisprudenciais para a plena atuação do Ministério Público como agente de transformação social no Estado Democrático de Direito. O exercício de uma das funções inerentes à atuação ministerial – a investigação direta criminal - tem gerado intensa celeuma nos meios jurídicos, onde se questiona a legitimidade constitucional do Ministério Público para realizar diretamente tal função institucional. Esquecem-se os críticos que, no Estado Democrático de Direito, a segurança é direito fundamental do cidadão e a aplicação da lei penal e processual penal tem por objetivo oferecer soluções para as condutas atentatórias aos valores e bens reconhecidos pela normatividade constitucional, que dão base à organização social. Para instrumentalizar o Estado nessa seara, a Constituição cria órgãos e instituições, retirando do cidadão a possibilidade de manifestar ação de caráter persecutório, enfim, de fazer justiça com as próprias mãos. Nesse sentido, a mudança de paradigma constitucional não permite que o intérprete adote exclusivamente o método histórico de hermenêutica para a busca, no passado, de uma interpretação adequada para determinado instituto, se a ordem constitucional foi modificada, instituindo novos valores sociais. Essa é a razão pela qual a interpretação daqueles que não admitem que o Ministério Público realize diretamente a investigação (com base em fatos históricos ocorridos antes do advento da constituição de 1988), não pode prosperar. Por outro lado, inexiste exclusividade da polícia judiciária para a investigação criminal, já que o constituinte, ao delimitar as funções do aparato policial, apenas determinou, no art. 144 § 1º, IV, as funções da polícia federal no âmbito das demais polícias da União, não conferindo a esta a exclusividade da investigação penal. Com efeito, a pesquisa demonstrou que existem diversas instituições e órgãos no Estado Democrático de Direito incumbidos de realizar a investigação criminal, valendo a máxima de que todo inquérito policial implica uma investigação criminal, mas nem toda investigação penal implica um inquérito policial. Nesse aspecto, o estudo conclui plenamente aplicável, na hipótese, a Teoria dos Poderes Implícitos. Se o constituinte concede a determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim), implicitamente lhe estará concedendo os meios necessários à consecução de seus objetivos, sob pena de ver frustrado o exercício do múnus constitucional que lhe foi cometido. Ora, se a Constituição da República concedeu ao Ministério Público a função de dar início à ação penal, sendo essa sua atividade-fim, implicitamente, por óbvio, concedeu-lhe também os meios necessários para o alcance de seu objetivo, caso contrário seu encargo constitucional nem sempre poderia ser cumprido. Compelir o Parquet, a uma postura meramente contemplativa seria, além de contrário à Constituição Republicana e à dimensão constitucional que o Ministério Público passou a ter a partir de 1988, desservir aos interesses mais elevados do país, instituir um sistema de persecução penal de fachada, incompatível com o visível amadurecimento cívico da nação. Outro dos vetores da atuação do Ministério Público no Estado Democrático de Direito, como guardião da ordem jurídica e da legalidade democrática, referese à provocação da jurisdição constitucional, através do controle incidenter tantum de leis e atos normativos do Poder Público, realizado em sede de ações civis públicas, poderoso instrumento constitucional deferido ao Parquet. A pesquisa demonstrou, entretanto, que inúmeras decisões judiciais vêm obstando a utilização da Ação Civil Pública como instrumento hábil para, ainda que de forma incidental, o pleno exercício da jurisdição constitucional, ao principal argumento, dentre outros, de que a eficácia erga omnes obtida na sentença proferida naquela ação (art. 16 da Lei 7.347/85) usurparia a competência dos órgãos constitucionalmente previstos para o controle in abstracto da constitucionalidade das leis – o STF e os Tribunais de Justiça locais. A pesquisa demonstrou, contudo, que a ação civil pública, como qualquer outra demanda no ordenamento jurídico nacional, é hábil para o exercício da jurisdição constitucional, tendo em vista a inexistência, no texto da Constituição de 1988, de qualquer restrição à sua utilização para esse fim. Na ação civil pública, a inconstitucionalidade é argüida como causa de pedir, constituindo questão prejudicial ao julgamento do mérito. A inconstitucionalidade é questão prévia, que influencia na decisão sobre o pedido referente à tutela do interesse relevante. É decidida incidenter tantum, como pressuposto necessário à parte dispositiva da sentença. Uma vez que a coisa julgada material recai apenas sobre o pedido, e não sobre a fundamentação da sentença, nada obsta que a questão constitucional volte a ser discutida em outras ações. Não bastasse isso, as ações civis públicas estão sujeitas aos recursos previstos na legislação processual, incluindo-se o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, enquanto que as ações diretas são julgadas em grau único de jurisdição. Portanto, a decisão proferida na ação civil pública, no que se refere ao controle difuso de constitucionalidade, será submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal, guardião final da Constituição da República. Logo, a pesquisa concluiu ser acertado o atual entendimento da Suprema Corte, no sentido de modificar posição anterior e admitir a ação civil pública manejada com o pedido, incidenter tantum, de controle difuso de constitucionalidade. Outro obstáculo encontrado no decorrer do estudo, quanto à atuação contemporânea do Ministério Público, foi relativamente à sua atuação no controle da Administração Pública e a fiel observância dos princípios constitucionais previstos no caput do art. 37 da Constituição, especialmente a moralidade administrativa. Com efeito, aferiu-se que após a edição da Lei 8.429/92, que definiu atos de improbidade e respectivas sanções a administradores ímprobos, setores da sociedade viram-se desconfortáveis com a atuação do Ministério Público nessa seara, nos parâmetros de atuação preconizados pelo Estado Democrático de Direito. Tal atuar vinha repercutido fortemente nas esferas política e jurisdicional, motivando forte reação de segmentos da sociedade que não desejam ter seus atos ímprobos sindicados pelo Ministério Público e submetidos ao crivo jurisdicional. Foi editada então a Lei 10.628/02, nítida tentativa de limitar a atuação do Ministério Público no controle da probidade administrativa, valor previsto na Constituição de 1988, cuja tutela coube à Instituição no Estado Democrático de Direito em que vive a sociedade brasileira. A edição do diploma em tela trouxe, ínsita, a necessidade de controlar a constitucionalidade do dispositivo em comento, bem como tornou necessário revisitar o célebre caso Marbury Vs Madison, ocorrido em 1803 e que se revelou – decorridos dois séculos - de extrema atualidade para o direito contemporâneo. Por tal norma infraconstitucional, pretendeu o legislador pátrio aumentar a competência originária da Suprema Corte (art. 102, I) e dos demais Tribunais Superiores, em flagrante violação aos princípios da supremacia formal da Constituição e de sua rigidez. No Ministério Público fluminense, de imediato, a inconstitucionalidade foi detectada, sendo emitida, pela Chefia Institucional, recomendação aos seus membros, no sentido da argüição incidental do vício e manutenção das atribuições. A matéria foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 15 de setembro de 2005, tendo aquela Corte acolhido a tese da inconstitucionalidade, na forma exposta nesta dissertação, como maneira de efetivação do Texto Maior em detrimento das “maiorias eventuais”, que teimam em desconsiderá-lo. Espera-se que a resposta do Supremo Tribunal Federal tenha refreado a índole do legislador ordinário no afã de tentar obstaculizar a atuação do Ministério Público no controle da probidade administrativa. Finalmente, para a conclusão da pesquisa, analisou-se a questão da legitimidade do Ministério Público em promover a defesa do contribuinte, com a utilização da ação civil pública, hipótese que encontra forte resistência jurisprudencial. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em precedente histórico, que o Ministério Público possui legitimidade para a tutela de interesses individuais homogêneos, quando tratar-se de relação de consumo ou litígio de relevância social ou caráter indisponível, mas deixou de reconhecer ao Ministério Público a legitimidade para tutela do contribuinte, argumentando não ter a relação jurídico-tributária natureza consumerista nem caráter de indisponibilidade e relevância social. Na esteira desse entendimento, editou o governo a Medida Provisória n° 2180-35/2001, vedando a ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. Esse entendimento, face ao estudo realizado, confronta com a sistemática constitucional vigente, que atribuiu ao Ministério Público, no art. 127 da Constituição da República a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Logo, se vulnerados os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, encontra-se o Ministério Público, por determinação constitucional, incumbido da defesa do primado da ordem jurídica, zelando pelo efetivo respeito por parte do Poder Público aos direitos assegurados na Constituição. Nesse diapasão, considerado o princípio da legalidade tributária, direito fundamental do cidadão, caberá ao Ministério Público o dever de resguardar a ordem jurídica, tanto para garantir o cumprimento do aporte desses recursos necessários à efetivação dos direitos fundamentais (realizando a persecução penal daqueles que descumprem as regras mediante condutas criminosas), quanto para impedir condutas do Estado que vulnerarem os limites e princípios constitucionais em matéria tributária. Dessa forma, desrespeitando a Administração Pública os princípios que norteiam sua atuação, estará o Ministério Público legitimado a ajuizar as medidas cabíveis, como consectário lógico e razão de ser de suas funções no Estado Democrático de Direito. De fato, em matéria tributária, os interesses permeiam a esfera de um número indeterminado de indivíduos, de vez que a norma tributária, de caráter geral e abstrato, atinge, embora gerando efeitos para cada situação em concreto, a coletividade, transcendendo a sede individual dos direitos que ali residem. O ajuizamento pelo Ministério Público de ações coletivas envolvendo interesses individuais homogêneos já configura questão de interesse social ao evitar a proliferação de demandas, prestigia a atividade jurisdicional e evita decisões conflitantes. Também não pode prosperar a idéia de que a Medida Provisória nº. 2.180-35, de 24/08/2.001, impediu a tutela do Ministério Público no caso vertente. Como é cediço, o inciso XXXV do art. 5.º da Constituição da República consagra o princípio do direito de ação, permitindo que todos tenham acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória de um direito individual, coletivo ou difuso. Assim, demonstra-se que, se for acatada a regra instituída pelo parágrafo único do art. 1º da Lei nº. 7.347/85, enfraquecida estará a Constituição da República e desprestigiado o Poder Judiciário, que tem o dever constitucional de conhecer e julgar lides, coletivas ou não, envolvendo ameaças ou lesões a direitos. Em conclusão, afere-se que o resultado de nossa pesquisa demonstrou estarem as questões abordadas bem delineadas no projeto constitucional preconizado em 1988 e na correta interpretação dos valores e princípios ali insculpidos para o Ministério Público. Na medida em que o Estado e o Direito assumem, num novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito, um viés de transformação potencial da sociedade, são incorporadas novas características ao modelo tradicional, já que além do núcleo liberal e social agrega-se, contemporaneamente, a questão da igualdade como um conteúdo a ser perseguido pela sociedade, assegurando-se juridicamente ao cidadão e à comunidade condições mínimas de existência com dignidade e justiça social. E o Ministério Público figura, em face das responsabilidades que lhe foram cometidas, no centro desta busca pela transformação social. Os princípios e funções institucionais que lhe foram outorgados tornaram-no um verdadeiro agente desta transformação esperada, consagrada numa Constituição Democrática, onde deseja-se que sejam minoradas as desigualdades e rompidas as barreiras da exclusão, com a defesa efetiva e real dos interesses sociais. Defender o Estado Democrático de Direito nem de longe pode ser um conceito vazio, desprovido de substância. O ambiente constitucional que erige o novo modelo de Estado como promessa de cumprimento da modernidade no Brasil aponta para uma postura intervencionista do Ministério Público em defesa dos direitos fundamentais-sociais, tanto utilizando-se dos instrumentos jurídico-constitucionais, como a ação civil pública, em busca da concretização de tais direitos (direito à saúde, tributação justa, segurança, educação, etc) quanto perseguindo delitos que coloquem em xeque os objetivos da República, inerentes à construção de uma sociedade justa e solidária, como a corrupção, a sonegação fiscal e os crimes contra o sistema financeiro. Assim, a busca da efetivação dos paradigmas do Estado Democrático de Direito deve pautar a atuação do Ministério Público, sendo os percalços contemporâneos elencados neste estudo apenas motivo para a maior combatividade institucional de seus membros, na busca da necessária e impostergável transformação social almejada pelo constituinte de 1988. BIBLIOGRAFIA: ALVES, Airton Buzzo; RUFINO, Almir Guasquez e SILVA, José Antonio Franco da. Funções Institucionais do Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 2001. ANTUNES, Paulo de Bessa. O papel do Ministério Público na ação civil pública. Artigo publicado na RPGR4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC: Editora Sumaré: FABESP, 2002. BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 1. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A legitimação para a defesa dos interesses difusos no Direito Brasileiro. 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