Texto complementar
Gêneros e tipos textuais
José Luiz Fiorin (USP)
PORTUGUÊS
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Português
Assunto: Textos e gêneros
Gêneros e tipos textuais
José Paulo Paes/ editora Companhia das Letras
Significação e gênero textual
PAeS, José Paulo (1998). “Sick transit”. Poesia
completa de José Paulo Paes. Apresentação de rodrigo
Naves. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 188.
Qualquer pessoa que olha o texto acima vê que se trata de um sinal de trânsito. Um motorista paulistano
entende que a placa indica que a Avenida Liberdade está interditada, que, à direita, na direção mostrada pela
seta, ele vai para o bairro do Paraíso, para a Vila Mariana e para o Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN).
No entanto, esse texto aparece num livro de poesia. Isso significa que o texto ganha novas significações.
Ele está dizendo que a liberdade, ou seja, a condição daquele que não está submetido a nenhuma força
constrangedora física ou moral, está proibida, interditada, vedada. Por isso, os indivíduos devem adotar uma
direção obrigatória seja para realizar suas atividades práticas (ir ao DETRAN), seja para dirigir-se aos lugares
onde vão efetuar suas atividades cotidianas (Vila Mariana) ou aos lugares onde se realizam os sonhos, as
atividades extraordinárias (Paraíso). A placa de trânsito transforma-se num poema que fala sobre a impossibilidade do querer (a interdição da liberdade) e a coerção do dever.
Por que houve essa mudança da significação do texto? Porque se alterou o gênero do texto.
Todos os textos que produzimos sejam eles orais ou escritos, sejam eles manifestados por qualquer outra
linguagem que não a verbal, são sempre a materialização de um gênero. Assim, por exemplo, uma conversa
com amigos é diferente de uma conversa com os pais, uma aula é distinta de um sermão, uma carta comercial é diversa de uma carta de amor, um filme de bang-bang é diferente de uma filme policial, uma novela
de época é distinta de uma novela urbana e assim por diante. Todos os textos são produzidos dentro de um
gênero, todos os textos são manifestações de um gênero.
Os gêneros são organizações relativamente estáveis caracterizadas por uma temática, uma forma composicional e um estilo. A temática não é o assunto de que trata o texto, mas é a esfera de sentido de que trata o
gênero. Assim, numa conversa de amigos, a temática são os acontecimentos de nossa vida mesmo íntima; numa
oração, a temática é o agradecimento ou a súplica a Deus ou aos santos; numa carta comercial, a temática é o
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tratar de um negócio; num requerimento, a temática é um pedido a uma autoridade pública. A forma composicional é a estrutura do texto. Assim, uma carta comercial tem lugar e data, assunto, fórmula de cortesia,
assinatura. O estilo é o conjunto de marcas linguísticas exigidas por um gênero. Assim, numa carta comercial, é
preciso usar uma linguagem formal, donde estão excluídas quaisquer expressões afetivas; é necessário utilizar a
norma culta; deve-se ser conciso e direto. Numa carta a um amigo ou parente, o estilo é completamente outro.
Os gêneros são inúmeros, pois eles dizem respeito à esfera das atividades cotidianas (relações de amizade,
convívio familiar, etc.), bem como à esfera das atividades institucionalizadas (prática religiosa, atividades escolares,
relações jurídicas). Em cada uma dessas esferas de atividade, há inúmeros gêneros textuais. Por exemplo, na
esfera da prática religiosa, temos o sermão, a oração, as fórmulas rituais, etc. No nível das atividades jurídicas, há
a petição, a sentença, etc. Na esfera das atividades jornalísticas, temos, por exemplo, o gênero editorial, em que
se opina sobre os acontecimentos, e o gênero notícia, em que se dão informações sobre os acontecimentos.
O que é importante é ter presente que a mudança de gênero do texto altera os significados dos elementos
do texto (palavras, imagens, gestos, etc.). Isso quer dizer que seu significado depende também do gênero do
texto. Foi o que aconteceu no exemplo acima. A mudança do gênero sinal de trânsito para o gênero poesia
produziu uma mudança no sentido dos elementos do texto.
Observe o caso abaixo:
Eis que uma Virgem conceberá e dará à luz um filho que receberá o nome de Emanuel, que significa “Deus conosco”
(Mateus, 1, 23).
Se esse texto pertencesse ao gênero informação científica, por exemplo, ele seria um absurdo, porque
todos sabemos que uma virgem não pode conceber nem dar à luz. No entanto, como ele pertence ao
gênero profecia, da esfera da prática religiosa, o texto ganha um sentido perfeitamente coerente, já que, dentro
da lógica do discurso religioso, um Deus que se faz homem só poderia nascer de uma Virgem, porque, se ele
nascesse como todos os outros homens, seria apenas homem e não um Deus feito homem.
Numa conversa entre amigos, às vezes, um dirige-se ao outro, com palavras que, em outro gênero de
texto, seriam um xingamento, mas que, nesse gênero, são formas de marcar uma grande intimidade.
Pode-se parodiar ou estilizar um gênero. No gênero receita, o texto tem duas partes: ingredientes e modo
de preparar. O tema é sempre ensinamento para preparar um alimento. No texto abaixo, o poeta Nicolas Behr
mantém a estrutura composicional e o estilo do gênero receita, mas muda a temática. Fala não de uma
receita de alimento, mas de uma receita de poesia. Ele estilizou a receita de alimento para construir seu texto
de receita poética.
Receita
Ingredientes
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos
beatles o mesmo processo usado
com os sonhos eróticos mas desta
vez deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
parte do sangue pode ser
substituído por suco de
groselha mas os resultados
não serão os mesmos
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças
perdidas
sirva o poema simples
ou com ilusões
Behr Nicolas. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (Org.).
Poesia jovem anos 70. São Paulo: Abril, 1982.
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Tipos textuais
Como se disse acima, comunicamo-nos por meio de textos, que pertencem sempre a um gênero determinado: o bate-papo com os amigos, o bilhete, a reportagem, a notícia, o horóscopo, o edital de concurso,
a bula de remédio, o cardápio, etc. Cada esfera de comunicação tem os seus gêneros próprios. Por exemplo,
o discurso jornalístico usa gêneros, como a notícia, o editorial, os gráficos, etc. Há, no entanto, uma categoria
mais geral de organização dos textos, que poderia ser denominada tipo textual. Os tipos são construções
textuais que apresentam determinadas características linguísticas. São bem poucos os tipos textuais: o
narrativo, o descritivo, o expositivo, o opinativo, o argumentativo e o injuntivo. Quando dizemos que o tipo
textual é uma categoria mais geral do que o gênero, o que queremos dizer é que os gêneros fazem uso dos
tipos na sua composição. Assim, um mesmo tipo é utilizado por diferentes gêneros: os gêneros notícia,
fofoca, romance, conto, etc. usam o tipo textual intitulado narração. Por outro lado, é preciso dizer ainda que
o mesmo gênero se vale de mais de um tipo textual: por exemplo, no gênero romance, encontramos o tipo
narrativo, que será predominante, mas podemos também deparar com o tipo descritivo, quando o narrador
nos mostra os lugares, as personagens; o tipo opinativo, quando o narrador dá sua opinião sobre os acontecimentos relatados, etc. Por isso, é preciso ficar claro que os tipos, frequentemente, não são encontrados
em estado puro, já que um gênero pode valer-se de vários tipos. Quando dizemos que um texto é narrativo,
estamos classificando-o, assim, porque nele predomina o tipo narrativo e não porque ele se vale exclusivamente
do tipo narrativo. A classificação do tipo de texto faz-se pela dominância e não pela exclusividade. O tipo textual
dominante num gênero faz parte de sua estrutura composicional. Assim, o tipo injuntivo faz parte da forma
composicional da receita de cozinha. Vamos analisar alguns tipos textuais. Deixamos de lado a narração e a
descrição e a argumentação por serem os tipos mais frequentemente estudados.
A dissertação
Observemos o texto que segue:
Há três métodos pelos quais pode um homem chegar a ser primeiro-ministro. O primeiro é saber, com prudência,
como servir-se de uma pessoa, de uma filha ou de uma irmã; o segundo, como trair ou solapar os predecessores; e o
terceiro, como clamar, com zelo furioso, contra a corrupção da corte. Mas um príncipe discreto prefere nomear os que
se valem do último desses métodos, pois os tais fanáticos sempre se revelam os mais obsequiosos e subservientes
à vontade e às paixões do amo. Tendo à sua disposição todos os cargos, conservam-se no poder esses ministros
subordinando a maioria do senado, ou grande conselho, e, afinal, por via de um expediente chamado anistia (...),
garantem-se contra futuras prestações de contas e retiram-se da vida pública carregados com os despojos da nação.
SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 234-235.
Esse texto explica os três métodos pelos quais um homem chega a ser primeiro-ministro, aconselha o
príncipe discreto a escolher entre os que clamam contra a corrupção na corte e justifica seu conselho.
O texto é temático, isto é, trabalha com abatrações, pois analisa e interpreta a realidade com conceitos
abstratos e genéricos (não se fala de um homem particular e do que faz para chegar a ser primeiro-ministro,
mas do homem em geral e de todos os métodos para atingir o poder). Mesmo os termos concretos são
tomados em seu valor genérico: por exemplo, quando se fala em se servir de uma filha, a palavra filha está
tomada em seu valor genérico, isto é, refere-se a toda e qualquer filha.
A progressão dos enunciados não se fez temporalmente, mas logicamente. As ideias encadeiam-se por
relações lógicas (por exemplo, clamar contra a corrupção da corte implica ser corrupto depois da nomeação
para primeiro-ministro).
O tempo verbal fundamental nesse tipo de texto é o presente com valor atemporal. Ele aparece nas
frases que enunciam o que o autor pretende sejam verdades válidas em todos os tempos e lugares: veja-se,
por exemplo, “um príncipe discreto prefere nomear os que se valem do último desses métodos, pois os tais
fanáticos sempre se revelam os mais obsequiosos e subservientes à vontade e às paixões do amo”.
O texto compõe-se de duas partes bem determinadas: a) introdução: no caso, os três métodos pelos
quais um homem pode chegar a ser primeiro-ministro; b) o desenvolvimento: no texto acima, o conselho
dado ao príncipe para nomear como primeiro-ministro aquele que clama contra a corrupção na corte.
O texto acima é uma dissertação, tipo textual que serve para analisar, interpretar, explicar e avaliar os
dados da realidade.
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As características da dissertação são:
a) é um texto temático, pois não se destina a contar episódios singulares ou a descrever seres concretos
e particular, mas dá explicações, faz análises, interpretações e avaliações válidas para muitos casos
concretos e particulares; por isso, constrói-se dominantemente com termos abstratos;
b) a ordenação do texto não é temporal como na narrativa, em que se relata um acontecimento depois
do outro, de acordo com sua progressão no tempo, mas é uma ordenação construída com base em
relações lógicas: pertinência, causalidade, coexistência, implicação, correspondência, etc.;
c) como esse tipo de texto pretende expor verdades gerais (ou pelo menos tomadas como tal), válidas
para muitos casos particulares, o tempo por excelência da dissertação é o presente atemporal; podem-se
eventualmente usar outros tempos, principalmente, os outros dois tempos do sistema do presente: o
pretérito perfeito e o futuro do presente;
d) esse tipo textual apresenta, normalmente, a seguinte estrutura composicional: introdução, desenvolvimento, conclusão;
e) normalmente, o enunciador não se projeta no interior do enunciado: daí a preferência por não usar, nesse
tipo textual, a primeira pessoa do singular, mas a primeira pessoa do plural ou as formas impessoais.
Um texto dominantemente dissertativo pode referir-se ao que é particular e concreto, valendo-se, portanto,
de descrições e narrações. No entanto, elas não são o elemento central do texto; elas servem apenas para
ilustrar afirmações gerais ou para argumentar a favor delas ou contra elas.
A dissertação é o tipo textual predominante nos gêneros das esferas da ciência (por exemplo, a exposição
científica, a divulgação científica, o relatório técnico) e da filosofia (por exemplo, a exposição filosófica), bem
como em gêneros de outras esferas de circulação (por exemplo, os editoriais dos jornais).
Poder-se-ia notar que a dissertação não estava arrolada entre os tipos textuais mencionados acima.
No entanto, dissertação é um termo usado há séculos na escola. Por isso, preferimos tratar dela. No entanto,
pode-se refinar mais o estudo do tipo dissertativo, dizendo que ele é um macrotipo textual, que recobre dois
outros tipos: o expositivo e o opinativo.
O texto expositivo e o texto opinativo
Observemos os textos que seguem. O primeiro foi retirado do site lqes.iqm.unicamp.br, que divulga
notícias científicas numa linguagem acessível e agradável; o segundo é um trecho de um artigo de autoria
do psicanalista Hélio Pellegrino, foi colhido no site www.dhnet.org.br.
Stradivarius perde o véu de mistério!
Quem, pelo menos uma vez, não teria lido ou ouvido o nome Stradivarius? Isso sem falar daqueles que tiveram o
prazer de ouvir o som ma-ra-vi-lho-so de um dos instrumentos de corda – violinos (os mais famosos), harpas, violões,
violas ou violoncelos –, assim conhecidos. De um total de mais de 1100 instrumentos fabricados por Stradivarius, cerca
de 650 vivem até os dias de hoje.
Antonio Stradivari, mais tarde Stradivarius (1644-1737), célebre “luthier”, original de Cremona (Itália), tem hoje seu
nome reconhecido como sinônimo de violino de grande valor. Por mais de 250 anos, tanto a geometria quanto o
design, propostos por Stradivarius, têm servido como modelo conceitual para a fabricação de violinos.
Não foram poucos os que tentaram descobrir o segredo de fabricação de tais instrumentos: tratar-se-ia do verniz
utilizado, de um trabalho particular sobre a madeira, do quê, enfim? Para responder a estas perguntas, pesquisadores
da Universidade de Colúmbia e da Universidade do Tenessee, ambas nos Estados Unidos, debruçaram-se sobre o
assunto, chegando à conclusão de que a qualidade acústica dos famosos violinos provém das próprias características
da madeira, marcada por um clima sobremodo particular.
Estudando os anéis da madeira com a qual foram feitos os instrumentos, reconstituíram a história do crescimento das
árvores que lhes deram origem. Constataram que elas tinham conhecido longos períodos invernais, dado que entre a
segunda metade do século XV e a primeira metade do século XIX a Europa sofrera um pequeno período de glaciação,
com um ponto culminante entre 1645 e 1715, conhecido com o nome de “mínimo de Maunder” (E. W. Maunder foi
um astrônomo do séc. XIX que documentou a falta de atividade solar no período em questão).
Ocorre ter sido exatamente entre 1700 e 1720 que os melhores trabalhos do mestre foram executados. Os pesquisadores observaram que os invernos rigorosos são responsáveis por um crescimento bastante lento das árvores,
fato atestado também pelos anéis, bastante próximos um dos outros, que acabaram por reforçar não somente
a resistência da madeira mas também sua densidade. Tais fenômenos, segundo eles, explicariam o caráter único
dos Stradivarius, os quais se destacam por sua insuperável qualidade de som e pela beleza da cor de sua madeira.
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Pena de morte
(...) Na avaliação do problema da pena de morte, há que levar em conta o fato de que ela, uma vez aplicada,
cria uma situação absoluta – e irreparável. A morte é a impossibilidade de qualquer possibilidade, seja lá do
que for. Na medida em que condenemos alguém à execução capital, estaremos praticando um ato absoluto.
desmesurado­e ilimitado na sua irretratabilidade. Ora, para que uma ação desse tipo fosse minimamente legitimável, seria necessário que os julgamentos humanos pudessem reivindicar para si um grau também absoluto de
certeza – e de verdade. Só posso castigar quem quer que seja, de maneira absoluta, na medida de uma absolutização
paranoica de minhas razões, critérios e discernimentos. A pena de morte, por parte daqueles que a defendem, é uma
usurpação do lugar da divindade. Só Deus é senhor absoluto – e juiz supremo – da vida e da morte. (...)
Além dos aspectos filosóficos e religiosos que a condenam, a pena de morte é perfeitamente indefensável a partir
de argumentos sociais e políticos. Cada sociedade tem os criminosos que merece, isto é, a prática do bem e do
mal, ou a maneira pela qual os seres humanos se relacionam, tem tudo a ver com a vida comunitária e com o grau
de justiça – ou de injustiça – que lhe define a estrutura. A fome, a opressão espoliadora, o abandono da infância,
o desemprego em massa, os graves – e clamorosos – desníveis entre as classes não constituem, obviamente, boa
fonte de inspiração para um correto exercício da cidadania. O processo civilizatório, pelo qual cada um de nós dá
o salto da natureza para a cultura, de modo a tornar-se sócio da sociedade humana, exige renúncias cruciais – e
sacrifícios cruciantes. Na infância, através das vicissitudes do complexo de Édipo, temos que abrir mão de nossas
primeiras – e decisivas – paixões. Depois, o corpo social nos impõe a lenta e dolorosa aquisição de uma competência,
que nos qualifique para o trabalho e para o pão de cada dia.
Tudo isto – contadas as favas – nos custa os olhos da cara, e da alma. É preciso, de maneira absoluta, que cada trabalhador, seja ele qual for, receba da comunidade um retorno salarial e existencial condigno, expressão do respeito
coletivo pelo seu esforço. Este é um dever social irrevogável, ao qual corresponde um direito sagrado. A ruptura
desta articulação constitui uma violência inaudita, capaz de tornar-se a matriz de todas as violências – e de todos
os crimes. Uma sociedade como a nossa, visceralmente comprometida com a injustiça e, portanto, geradora de
revolta e delinquência, cometeria uma impostura devastadora – e destruidora –, se adotasse a pena de morte.
Ao invés de fabricarmos bodes expiatórios, temos todos que assumir, sem exceção de ninguém, a responsabilidade
geral pela crise – e pelo crime.
Há, por fim, a favor da pena de morte o argumento psicológico da intimidação. O criminoso, diante do risco de
perder a vida, pensa duas ou mais vezes na consequência fatal do delito que o tenta, acabando por desistir de
praticá-lo. Afirma-se aqui o princípio – psicanaliticamente ilusório – de que o delinquente grave tem arraigado amor
à própria vida. Em verdade, acontece o oposto. A autoestima do ser humano se constrói a partir dos cuidados – do
amor – recebidos de fora, dos outros. Este amor, internalizado, vai constituir o fundamento da possibilidade que cada
um terá de amar-se a si mesmo, por ter sido amado. Se sou capaz de amar a mim próprio, e à minha vida, sou também
proporcionalmente capaz de amar ao Próximo, meu semelhante, meu irmão – e meu espelho.
O criminoso grave, ao liquidar sua vítima, condena-se, por mediação dela, à morte, com ódio e desprezo. Não o
imitemos, através da pena de morte.
Os dois textos acima são dissertações. No entanto, há uma diferença entre eles. O primeiro expõe os
motivos que levam os instrumentos fabricados pelo célebre luthier (= palavra francesa que designa o
­fabricante de instrumentos de corda) Antonio Stradivarius a ter qualidades acústicas excepcionais. O texto
mostra que isso se deve à qualidade da madeira usada, que tem uma resistência e uma densidade muito
grandes, devidas ao fato de que ela foi retirada de árvores que cresceram num período em que a Europa
passou por uma glaciação. O segundo texto entra na polêmica sobre a adoção da pena de morte no Brasil,
apresentando três argumentos contra ela: a) a pena de morte produz um efeito irreparável e, portanto, sua
adoção deveria pressupor a inexistência de erros judicários, o que é impossível; b) a violência é fruto de uma
sociedade injusta e, portanto, deveriam ser eliminados as causas estruturais da violência; c) a pena de morte
não intimida os criminosos mais frios e sanguinários, pois eles não têm amor à vida. O autor do segundo
texto manifesta, com uma série de argumentos, sua opinião sobre um assunto controvertido.
A diferença entre os dois textos é que o primeiro é um texto que identifica um problema (por que os
instrumentos fabricados por Stradivarius têm qualidades acústicas excepcionais?), estabelece uma ligação de
causalidade entre fenômenos (características da madeira e glaciação no período em que os instrumentos­foram
construídos) e, assim, explica o problema identificado. Esse é um texto expositivo, que serve para transmitir e
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construir um saber sobre um dado tema. O segundo externa o ponto de vista do autor sobre uma questão
da vida social. É o que chamaríamos um texto opinativo. É preciso deixar claro que um texto opinativo não se
funda apenas num eu acho que. Na verdade, é um texto que exige uma argumentação­­objetiva e consistente
para expor um ponto de vista sobre uma dada questão. Como as questões que ­atingem os seres humanos (por
exemplo, os programas de governo, a questão do aborto, das quotas nas universidades) são sempre polêmicas, o texto opinativo é um pronunciamento sobre uma questão da vida social. O ponto de vista do enunciador
revela sempre suas representações do mundo social e subjetivo, sua visão de mundo: por exemplo, manifestar-se­
a favor da extensão de direitos a minorias mostra uma visão de mundo, pôr-se contra elas evidencia outra
concepção do mundo. O texto opinativo sustenta determinadas posições e refuta outras.
Os textos expositivos são utilizados em gêneros da esfera da ciência, da filosofia, da escola, etc. (por exemplo,
o livro didático, a exposição científica, a divulgação científica, a demonstração do teorema). Os textos opinativos
são usados em gêneros da esfera da política, do jornalismo, etc. (por exemplo, o editorial, o discurso parlamentar,
as declarações de voto).
Muitas vezes, a diferença entre eles é bastante sutil. No entanto, a questão não é classificar os textos
como expositivos ou opinativos, uma vez que, na verdade, os textos reais não são puros, mas valem-se de
diferentes tipos textuais. O que importa é saber que há textos que servem para expor a demonstração da
solução de um dado problema, para explicar um fenômeno, e há textos que servem para expressar uma
dada opinião, consistentemente argumentada, sobre uma questão da vida social.
É preciso considerar ainda que não é apenas no texto opinativo que o enunciador expressa uma
posição. No texto opinativo, ele o faz de maneira clara. No entanto, em todos os outros tipos de texto, estão
presentes os pontos de vista de quem elabora o texto. O que é diferente em cada tipo de texto é o modo
como o produtor apresenta suas perspectivas. No texto expositivo, o autor manifesta seu ponto de vista ao
considerar como válida uma explicação e não outra. Uma coisa é explicar as características de um indivíduo
pela posição dos astros no momento de seu nascimento, outra muito diferente é fazê-lo pela hereditariedade;
outra ainda é fazê-lo pelo ambiente em que foi educado.
O texto injuntivo
Observemos o texto que segue:
Frango com azeitonas pretas
1 kg de sobras de frango assado
100 g de azeitonas pretas
4 filés de anchova
3 dentes de alho
1/2 copo de sobra de vinho branco seco
3 colheres (sopa) de azeite
2 colheres (sopa) de vinagre
sal e pimenta
Coloque numa frigideira o azeite e os dentes de alho espremidos e leve ao fogo. Quando começar a dourar, junte o frango em pedaços. Deixe fritar até conseguir um dourado escuro. Molhe com o vinho e o vinagre e acrescente as anchovas
picadas, metade das azeitonas picadas e as restantes inteiras, sem caroços. Espere até que o vinho evapore totalmente
e junte um copo e meio de água. Deixe ferver novamente, até a água evaporar e engrossar o molho, e sirva em seguida.
PICCHETTO, Mariella; CATTANI, Roberto. Reciclar é gostoso. São Paulo: Ática, 1994. p. 98.
O texto acima é uma receita de cozinha. Nela se ensina a preparar o prato frango com azeitonas pretas,
feito com sobras de frango assado e outros ingredientes. No título, expõe-se o objetivo da receita, o prato
que se pretende ensinar a preparar. Depois de listar os ingredientes que são necessários, apresentam-se as
ações que devem ser feitas para chegar ao objetivo visado. Essas ações são apresentadas na ordem em que
devem ser executadas. Ao apresentá-las, usam-se verbos no imperativo (coloque, junte, deixe fritar, molhe,
acrescente, etc.). Esse texto é chamado texto injuntivo. O nome vem do fato de que ele se constrói basicamente
com o imperativo, o modo da injunção (= prescrição).
Os textos injuntivos, embora se apresentem como uma sequência de injunções, na verdade, transmitem
um saber sobre como realizar alguma coisa, expõem um plano de ação para atingir determinado objetivo.
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Explicitam, por exemplo, como montar um computador, como preparar um prato, como tomar direito uma
medicação, como tornar-se mais sensual, como perder a barriga, como portar-se em sociedade. Os textos
injuntivos estão predominantemente presentes nos chamados textos instrucionais-programadores, que compreendem gêneros como receitas, guias, manuais de instalação; textos de aconselhamento, que comportam o
gênero dicas sobre beleza, saúde e comportamento; textos reguladores-prescritivos, que abarcam o gênero legal
(leis, regimentos, regras de jogos, etc.).
As características do texto injuntivo são:
a) exposição do objetivo da ação: aquilo a que se visa com a realização do que vem prescrito a seguir;
essa exposição pode aparecer no título ou numa breve introdução (por exemplo: Dicas para perder a
barriga ou Quando os filhos se tornam adultos sua relação com os pais muda. (...) Eis algumas orientações
para essa nova fase de relacionamento (VEJA no 1868, 25/08/2004, p. 108));
b) apresentação da sequência de ações a realizar para atingir um dado objetivo: essas ações devem ser
realizadas simultânea ou sucessivamente (por exemplo, numa receita há ações que devem ser realizadas
umas depois de outras: dourar o alho, juntar a carne para fritar; há ações que devem ser executadas simultaneamente: por exemplo, os deveres de um condômino); há ações que são obrigatórias (por exemplo,
bata as claras em ponto de neve), outras que são eventuais (por exemplo, Se seu filho apresentar
sintomas de regressão, procure mostrar a ele que é amado) e outras que são opcionais (por exemplo,
numa receita, quem não gostar de peras, pode substituí-las por maçãs); há certas ações que são
principais para atingir um dado objetivo (por exemplo, cozinhe em fogo lento por vinte minutos) ou
outras que são secundárias (por exemplo, lave as maçãs); as ações são apresentadas no imperativo ou
em forma verbal com valor de imperativo;
c) justificativa da ação: essa característica é opcional (por exemplo, seja firme nas suas decisões, para
que seu filho não cresça achando que todas as normas podem ser contornadas).
Conclusão
Os gêneros são formas linguísticas concretas, que são utilizadas nas diferentes esferas de atividade em que se
organiza a vida social. São formas de ação verbal. O processo de socialização implica a apropriação dos gêneros:
socializar-se é aprender a usar determinado gênero numa dada situação de interação. Os gêneros são entidades
sócio-históricas. Por conseguinte, podem mudar de uma sociedade para outra, de uma época para a outra (por
exemplo, na discussão acadêmica os norte-americanos são muito mais diretos do que os brasileiros ao apresentar
suas críticas: isso faz parte do estilo do gênero discussão científica, que é diverso nos Estados Unidos e no Brasil).
Os tipos são matrizes linguísticas, que podem ser usadas em diferentes gêneros. Dado seu grau de abstração, os
tipos têm uma permanência muito grande, podem ser idênticos em sociedades diferentes e em épocas diversas.
Gêneros e tipos textuais. In: Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: Editora da PUC-Minas, 2005. p. 101-117.
Bibliografia
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: o que são e como se constituem. Recife, 2000. Mimeografado.
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