Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia Financiamento da Transição Agroecológica Grupo de Trabalho de Financiamento da Transição Agroecológica Articulação Nacional de Agroecologia Junho de 2007 Editor: Jean Marc von der Weid Revisão técnica: Jean Marc von der Weid Revisão gramatical: Rosa Peralta Projeto gráfico e diagramação: I Graficci Tiragem: 1000 exemplares SUMÁRIO Apresentação .........................................................................................5 Capítulo 1 – Questões sobre o financiamento da transição para a agroecologia e para a produção agroecológica ..........................................7 Capítulo 2 – Subgrupo de trabalho sobre o Pronaf....................................15 Relatório...................................................................................................................15 Resumo das experiências apresentadas: .......................................................................20 Pronaf Agroecologia – CTA-ZM.......................................................................................20 Pronaf Semi-Árido – Pólo da Borborema..........................................................................25 Pronaf Agroflorestal – Copatiorô....................................................................................32 Capítulo 3 – Subgrupo de trabalho sobre o Proambiente...........................37 Relatório...................................................................................................................37 Resumo das experiências apresentadas: .......................................................................40 Pólo Baixada Maranhense – Coospat ..............................................................................40 Pólo Noroeste de Mato Grosso – Ajopam .........................................................................43 Capítulo 4 – Subgrupo de trabalho sobre Fundos Não-Governamentais .......47 Relatório...................................................................................................................47 Resumo das experiências apresentadas: .......................................................................50 Fundos Rotativos Solidários – ASA-Paraíba ......................................................................50 Fundo Rotativo Banco da Mulher – Assema-MA.................................................................56 Fundo de Crédito Solidário – CTA-ZM...............................................................................57 Fundo Dema – Fase-Amazônia .......................................................................................63 Cooperativa de Crédito da Agricultura Familiar de Araponga (Ecosol) – CT.............................69 Capítulo 5 – Subgrupo de trabalho sobre Compra Antecipada (Conab)........73 Relatório...................................................................................................................73 Resumo das experiências apresentadas: .......................................................................79 Merenda Escolar – Pólo Sindical da Borborema .................................................................79 Banco de Sementes Comunitárias – AS-PTA .....................................................................83 Capítulo 6 – Oficina de debate sobre o Crédito Pronaf com os representantes da Secretaria de Agricultura Familiar/MDA, Banco do Brasil e Banco do Nordeste do Brasil.........................................93 Capítulo 7 – Conclusões ......................................................................101 Apresentação Financiamento da Transição Agroecológica Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) Este caderno do II ENA apresenta os resultados do Grupo de Trabalho sobre o Financiamento da Transição Agroecológica da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) que fundamentaram a preparação e a realização dos seminários e oficina sobre o tema durante o encontro. O GT Financiamento deriva do GT Crédito criado logo após o I ENA. Durante os dois primeiros anos do governo Lula, o GT atuou fortemente polarizado pelas iniciativas, demandas e oportunidades de participação criadas pela Secretaria de Agricultura Familiar (Pronaf/SAF) e teve papel significativo nas negociações que levaram à criação dos Pronaf Agroecologia e Pronaf Semi-Árido. Além disso, o GT influiu nas modificações normativas que buscaram facilitar o acesso dos agricultores agroecológicos às modalidades convencionais do Pronaf (A, B, C, D e E), eliminando condicionantes do uso do pacote agroquímico. O GT revisou essas normativas e as novas modalidades de crédito junto com a SAF em 2004, mas sem conseguir resolver alguns problemas de fundo que vieram a aflorar e se explicitaram na preparação e realização do II ENA. Em 2005, o GT reconfigurou-se para incorporar entidades com experiências de financiamento diferenciadas incluindo, além do crédito Pronaf, os Fundos Não-Governamentais, os Fundos Rotativos Solidários e o Proambiente. A participação no GT envolveu entre oito e onze entidades? e voltou-se para a identificação de experiências de referência, a formulação de uma matriz de sistematização e a discussão da pedagogia a ser utilizada no seminário temático durante o II ENA. Financiamento da Transição Agroecológica 5 Sem dúvida, as limitações de tempo e recursos deixaram de fora um grande número de experiências que foram sendo identificadas, algumas das quais se fizeram representar no II ENA. Por outro lado, a orientação da Coordenação da ANA de restringir o número de participantes por entidade levou a que, em não poucas vezes, os portadores das experiências na área de financiamento não pudessem estar presentes. Este caderno se inicia com a apresentação de abertura do seminário que buscou discutir algumas questões de fundo no financiamento da transição agroecológica. Em seguida, cada um dos quatro capítulos apresenta o relatório das discussões dos subgrupos e um resumo das experiências que serviram de referência em cada um deles. Nem todas as experiências apresentadas foram reproduzidas no caderno, pois algumas não chegaram a ser sistematizadas por escrito. No capítulo 6, apresentamos uma síntese dos debates realizados na oficina que confrontou as bases da ANA com representantes da SAF, do Banco do Brasil e do Banco do Nordeste do Brasil. Finalmente, o capítulo 7 procura fazer um balanço desse processo, muito embora seja um texto de autoria do coordenador do GT e voltado para provocar o debate sobre os desdobramentos do II ENA e não exprima uma posição do GT. AS-PTA, coordenação do GT; Centro Ecológico; Fetraf; Capa; Fase-Pará; CTA-ZM; Pólo da Borborema; Patac; ASA-Paraíba; Tijupá; Fórum do Centro-Sul do Paraná. 6 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 1 Questões sobre o financiamento da transição para a Agroecologia e da produção agroecológica Jean Marc von der WeidAS-PTA As necessidades de financiamento de custeio e investimento na transição para sistemas agroecológicos Quanto custa produzir com base nos princípios da agroecologia? A questão tem que ser olhada por dois ângulos: o do custo de produção de um sistema já convertido para a agroecologia e o do custo de converter um sistema, convencional ou tradicional, para os princípios agroecológicos. Costuma-se afirmar que os sistemas agroecológicos são mais caros e que, por isso mesmo, necessitam de um sobrepreço para poder remunerar o agricultor devidamente. Como os produtos vendidos como orgânicos (muitas vezes confundidos com os agroecológicos) costumam ter esse sobrepreço, acredita-se que, de fato, os custos de produção da agroecologia sejam maiores dos que os da agricultura convencional. A verdade, porém, é que as coisas não são assim. Por que produtos que não usam insumos químicos e sementes melhoradas por empresas custariam mais caro para produzir? A única explicação para um maior custo dos produtos agroecológicos seria ou uma produtividade mais baixa ou custos de mão-de-obra ou maquinário mais altos. No entanto, em um sistema agroecológico pleno e equilibrado, a produtividade total por hectare não é menor do que em um sistema convencional. Explicando melhor: um hectare produzido em sistema agroecológico deve ter um conjunto de produtos Financiamento da Transição Agroecológica 7 variado, já que esses sistemas funcionam melhor em culturas combinadas, com alta diversificação em um mesmo espaço. O total de produção obtido nesse hectare será maior do que qualquer cultura solteira no mesmo espaço. Esses sistemas com alto grau de diversificação em um mesmo espaço colocam problemas para a mecanização, mas, por outro lado, exigem pouca mãode–obra, já que várias operações, como aração, gradagem e subsolação, simplesmente não são necessárias nos sistemas agroecológicos, assim como as operações de limpeza de ervas invasoras ou de aplicação de agrotóxicos. Uma operação que é difícil de mecanizar e que requer uma mão-de-obra mais intensiva é a colheita, dependendo do grau de complexidade dos sistemas em questão. Já o plantio pode ser mecanizado, pelo menos em parte e dependendo do tipo de sistema. Assim, as experiências mostram que os sistemas agroecológicos na verdade têm custos menores que os sistemas convencionais e usam muito menos insumos externos à propriedade. Além disso, mesmo quando necessários, os custos em insumos externos tendem a ser episódicos e não recorrentes, isto é, não se trata de um custeio anual obrigatório. Eventualmente as propriedades manejadas segundo princípios agroecológicos têm que comprar sementes de adubos verdes, esterco, calcário ou pós de rocha, além de micronutrientes ou insumos para preparar caldas para controle de pragas ou fungos. Entretanto, em uma propriedade bem equilibrada, o agricultor tirará suas próprias sementes de adubos verdes, terá criações que permitirão utilizar o esterco nas culturas, etc. Na agroecologia é o manejo que importa, mais do que os insumos. Os preços mais altos dos produtos orgânicos não se devem, em geral, por eles terem custos mais altos, mas porque há pouca oferta para muita demanda. Além disso, a oferta está dispersa no espaço, aumentando o custo de condução ao mercado, a não ser que sejam comercializados nos mercados locais. O exposto anteriormente aponta para sistemas que têm pouca necessidade de custeio, nos casos mais avançados de aplicação dos princípios da agroecologia, ou moderada necessidade de custeio, nos casos menos avançados. De qualquer forma, os valores são muito inferiores aos custos recorrentes dos sistemas convencionais. Tudo isso aponta para uma necessidade pequena de crédito de custeio, mas e quanto ao crédito de investimento? No caso do investimento, a situação varia de região para região. No Sul do país há pouca necessidade de investimentos que estejam intrinsecamente ligados às práticas agroecológicas. Afinal, pequenas infra-estruturas e equipamentos para produzir composto, adubo da independência, pós de rochas ou caldas não chegam a ser investimentos vultosos. No entanto, verificou-se que a agri- 8 Financiamento da Transição Agroecológica cultura familiar na região está muito descapitalizada e necessita de investimentos significativos em equipamentos e infra-estruturas que não têm a ver especificamente com as práticas agroecológicas, mas com a eficiência do sistema produtivo de maneira geral. Esses investimentos seriam os mesmos de qualquer propriedade convencional (silos, secadores, equipamentos de tração, animais de tração, microtratores, estábulos, apriscos, chiqueiros, paióis, carroças, mudas de árvores, cercas, eletrificação, etc). Já na região Nordeste, para se conseguir operar uma propriedade em sistemas agroecológicos, é precisa haver mais investimentos, embora se use poucos recursos de custeio. Não só as propriedades estão ainda mais descapitalizadas que nas regiões Sul e Sudeste, como também as práticas agroecológicas requerem infra-estruturas mais pesadas devido à necessidade de se enfrentar os riscos de seca com obras de retenção das águas de chuva para diferentes fins, do uso humano ao animal, passando pelos cultivos. Também no Nordeste é essencial haver infra-estruturas de criação de animais para se poder equilibrar os sistemas em base agroecológica. Esses investimentos nas duas regiões não são recorrentes, são pontuais e não se repetem, a não ser com largos intervalos, e nem todos ao mesmo tempo. De toda forma, um processo de conversão agroecológica cobrará, tanto num caso como no outro, um investimento inicial que pode chegar até R$ 25 mil, dependendo do tamanho da propriedade, do projeto do agricultor e do nível de descapitalização em que ele estiver. Os Pronafs Semi-Árido e Agroecologia Como conseguir esses recursos de investimento? Em princípio, os Pronafs de investimento chamados agroecológico e semi-árido podem financiar esses Financiamento da Transição Agroecológica 9 montantes, em dois projetos que podem se suceder a partir do pagamento da primeira parcela do primeiro deles. Como o prazo de carência é de três anos, o agricultor pode distribuir seus investimentos ao longo de seis anos, se quiser. No entanto, ele receberá a totalidade dos recursos a investir em cada projeto no primeiro ano, mesmo que só pense em usar parte dos recursos mais adiante. Isso coloca um problema de eficiência no uso dos recursos e encarece o crédito para o agricultor. O ideal seria o agricultor poder planejar seus investimentos ao longo de seis ou mesmo oito anos, no caso do semi-árido, e os recursos irem sendo liberados ano a ano pelos bancos segundo as necessidades definidas pelo agricultor. Assim, a dívida só passaria a contar para fins de carência e de prazo de pagamento a partir do momento do desembolso de cada parcela pelos bancos. Isso permitiria escalonar a dívida de forma bem mais suave, em até onze anos, se o prazo de carência de cada parcela for, por exemplo, de cinco anos. Por que os prazos da transição são tão longos? Na verdade, os prazos acima sugeridos, de seis ou oito anos, podem ser estendidos ou encolhidos de acordo com a situação do agricultor, mas é prudente regulamentar o crédito com prazos tão longos quanto possível para que diferentes tipos de agricultor possam ser contemplados. Afinal, a transição para um sistema agroecológico não pode ser pensada em prazos curtos e acelerados, pois não se trata de aplicar um pacote, mas sim de elaborar um sistema específico para cada agricultor. Os agricultores que se engajam em processos de conversão agroecológica vão definindo aos poucos as diferentes técnicas que vão utilizar, testando-as primeiro em pequena escala e uma de cada vez. Para estender as práticas para a propriedade como um todo o agricultor pode tanto aumentar a escala de cada técnica individualmente como montar um minissistema integrado experimental para depois reproduzi-lo na escala da propriedade. De uma ou de outra forma, a implantação do novo sistema na escala da propriedade será paulatina e tão longa quanto a complexidade da proposta adotada. A seqüência de técnicas a serem introduzidas na escala da propriedade também não pode ser prevista de forma rígida, pois a prática pode cobrar ajustes e mudanças a partir de problemas encontrados ou devido a questões climáticas. Por essas razões a proposta do Pronaf Agroecologia, que obriga o agricultor a apresentar um plano de transição rígido de três anos com indicações de que técnicas vai abandonar e quais vai introduzir a cada ano, é inviável. Seria necessário flexibilizar muito os procedimentos para que o agricultor possa efetivamente chegar a usar o Pronaf Agroecologia. O mesmo vale para o Pronaf Semi-Árido. Além de problemas de ajuste nas regras dessas modalidades de Pronaf, há inúmeros problemas na operacionalização do crédito para os agricultores familiares. 10 Financiamento da Transição Agroecológica Em primeiro lugar, é difícil montar um sistema computadorizado com planilhas em que os dados fornecidos pelos agricultores vão sendo alimentados e o apertar de uma tecla permite dizer se o projeto vai ou não dar certo (se vai ficar no azul ou no vermelho, numa avaliação de rentabilidade). Essa normatização responde bem aos pacotes técnicos simplificados dos sistemas convencionais, mas com sistemas complexos e altamente diversificados ela não funciona. Em segundo lugar, os gerentes dos bancos ficam inseguros com essas tecnologias que não estão certificadas pelos manuais da Embrapa e criam as maiores dificuldades para aceitar esses projetos. Os gerentes questionam o poder germinativo das sementes crioulas, a eficiência dos adubos orgânicos e dos pós de rochas, a eficácia das caldas como controles de pragas e doenças, etc. Finalmente, há uma resistência dos sistemas financeiros a operar com muitos pequenos projetos que dão muito trabalho e acarretam baixo rendimento para o banco. Para completar esta análise da situação atual do financiamento da transição agroecológica por meio dos mecanismos do Pronaf, devemos apontar o baixo nível de informação dos agricultores sobre essas oportunidades e a pouca capacidade das organizações de apoio para facilitar o acesso dos agricultores em uma escala significativa. Os fundos rotativos Outros mecanismos de financiamento da transição agroecológica têm se mostrado mais adequados para os ritmos do cuidadoso processo de experimentação que precede qualquer alteração dos sistemas de produção da agricultura familiar. Os fundos rotativos, muito comuns na região Nordeste, têm operado com alta eficiência, ainda que, na grande maioria dos casos, funcionem como Financiamento da Transição Agroecológica 11 apoios pontuais para a adoção de uma tecnologia específica. Esses fundos, de modo geral, financiam infra-estruturas hídricas, como cisternas e barragens subterrâneas, silos, sementes, mudas, cercas, esterco, etc. Em princípio, nada impede que se organizem fundos de tipo mais complexo que incorporem várias dessas opções de uma só vez, mas isso tornará a gestão mais difícil de realizar e aumentará os riscos do empreendimento. Financiar vários equipamentos, infraestruturas e insumos simultaneamente não parece ser um imperativo, como vimos anteriormente na discussão sobre os Pronafs, mas combinar alguns dos investimentos pode ser uma necessidade. Se o agricultor, por exemplo, quiser construir uma cisterna de placas ele pode entrar em um fundo rotativo específico e não precisará de nenhum outro investimento complementar para operar essa infra-estrutura, a não ser, eventualmente, uma bomba d’água. Já para operar uma barragem subterrânea ele vai precisar de outros insumos e, eventualmente, equipamentos. Os fundos rotativos que financiam barragens não disponibilizam recursos para outros fins e, para explorar essa infra-estrutura, o agricultor precisará recorrer a outros tipos de financiamento. Essa questão do escopo dos fundos rotativos, no entanto, pode ser objeto de novos arranjos segundo a vontade e capacidade de gestão dos grupos de agricultores, e não de empecilhos estruturais para que esse instrumento não venha a se complexificar e responder a situações de maior exigência de recursos para diversos fins. A grande vantagem dos fundos rotativos é que eles permitem uma transição paulatina dos sistemas, seguindo o ritmo da capacidade técnica e de pagamento dos agricultores. Além disso, essa modalidade não tem burocracias nem intimida os agricultores, já que são eles mesmos que a gerem. As compras antecipadas da produção da Conab Embora operando ainda em pequena escala e de forma experimental, essa forma de financiamento é das mais promissoras por interligar financiamento com escoamento da produção. As regras são claras e bem mais simples do que as complexas planilhas dos contratos de crédito oficiais do Pronaf. Os limites de valor das operações, entretanto, colocam problemas em algumas regiões onde os agricultores têm mais produtos ou maior volume para entregar. Por exemplo, R$ 2,5 mil por agricultor significa 33 sacos de feijão a R$ 75,00 o saco. Na região Sul do país, um agricultor com boa eficiência em sistemas agroecológicos tira essa produção com 2/3 de hectare. Fica claro, portanto, que seria preciso um volume maior de recursos por agricultor para responder às necessidades de comercialização de boa parte dos produtores daquela região. 12 Financiamento da Transição Agroecológica Já na região Nordeste, onde as produtividades são mais baixas nas condições de sequeiro, o rendimento mais comum entre os agricultores familiares e as propriedades também é de menor porte, mas 33 sacos de feijão ainda é um volume irrisório para a maioria dos produtores. De qualquer maneira, o sistema de compra antecipada representa um grande avanço em termos de modo de acesso aos recursos de financiamento da produção combinado com a garantia de escoamento do produto. A questão é ampliar o número de agricultores com acesso a essa modalidade e ampliar o limite de recursos por agricultor. Os fundos de financiamento da produção Existem inúmeros fundos, públicos e privados, que financiam tanto a produção agroecológica como a transição para sistemas agroecológicos. Esses fundos ainda são pouco conhecidos e estudados e não se sabe muito sobre seus prós e contras. Entretanto, pelo menos um deles apresenta características da maior relevância para o futuro da agroecologia. Trata-se do fundo de financiamento Proambiente – Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural –, centrado, até agora, na região amazônica. O Proambiente tem um conceito inovador e revolucionário do ponto de vista dos paradigmas do desenvolvimento agrícola que é o pagamento de uma compensação ao agricultor por adotar práticas de conservação dos recursos naturais e do meio ambiente. A aplicação desse princípio de remuneração aos chamados serviços ambientais prestados pelos sistemas de tipo agroecológico, se combinada com uma taxação dos agricultores que produzem impactos negativos sobre os mesmos recursos, liquidará com eventuais vantagens econômicas das grandes monoculturas predadoras do meio ambiente. Como já foi dito antes, a agroecologia produz com maior rendimento físico e econômico por hectare, mas não permite cultivos em grande escala, sendo portanto ideal para as dimensões da agricultura familiar. O que os grandes monocultores-predadores do meio ambiente perdem em lucratividade por hectare eles ganham pelo número de hectares que conseguem cultivar. Uma dupla taxação positiva e negativa aos Financiamento da Transição Agroecológica 13 protetores e destruidores do meio ambiente poderá, assim, ser a forma mais adequada de se garantir a sustentabilidade da agricultura e a eliminação dos grandes produtores insustentáveis. Perspectivas para o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) Esses temas serão debatidos no ENA, em quatro subgrupos que tratarão da questão do financiamento da agroecologia e da transição para sistemas agroecológicos. Através da apresentação e discussão de experiências concretas de agricultores com vivência de cada uma dessas várias modalidades de financiamento se procurará estabelecer uma visão crítica dos vários aspectos positivos e negativos de cada uma delas e formular propostas de melhoramento que permitam fazer avançar a agroecologia tal como é praticada pelos diferentes tipos de produtor que participarão do ENA. 14 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 2 Subgrupo de trabalho sobre o Pronaf Coordenadores: Ivo Macagnan do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa) e Gilmar Pastorio da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) 1. Relatório do subgrupo Pronaf 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. Pronaf Agroecologia – Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) – Minas Gerais 2.2. Pronaf Semi-Árido – Pólo da Borborema - Paraíba 2.3. Pronaf Florestal – Cooperativa de Serviço e Apoio Humano e Sustentável Atiorô – (Copatiorô) - Pará 1. Relatório do subgrupo Pronaf Relator: Pablo Renato Sidersky a. Apresentação Setenta pessoas participaram da reunião desse subgrupo, realizada na tarde do dia 4 de junho de 2006. Os trabalhos começaram com a apresentação de seis experiências: • Pronaf Agroecologia (Zona da Mata, MG) • Elaboração de projetos para o Pronaf Semi-Árido (Agreste da Borborema, PB) Financiamento da Transição Agroecológica 15 • Pronaf Mulher (Apodi, RN) • Pronaf Florestal (Altamira, PA) • Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária – Cresol Central (vários municípios de SC e RS) • Cooperativa de Economia e Crédito Solidário – Ecosol (Araponga, Zona da Mata, MG) Seguiu-se uma discussão. As principais conclusões do subgrupo foram sintetizadas e apresentadas para a plenária do GT Financiamento, realizada na manhã do dia 5, o que propiciou outro rico debate sobre o tema. O presente relatório inclui, para além dos resultados dos trabalhos do subgrupo, alguns elementos da discussão da oficina sobre Pronaf, realizada no próprio II ENA no dia 3 de junho, e as contribuições colhidas a partir da discussão plenária. b. Análise da concepção de diversas modalidades do Pronaf De um modo geral, viu-se que a Agricultura Familiar (AF) leva uma fatia pequena do total de crédito direcionado para a atividade agropecuária. E, analisando aquilo que vai para AF, percebeu-se que, na sua quase totalidade, o Pronaf está apoiando a agricultura convencional. Isso permite dizer que uma fatia enorme dos recursos não vai efetivamente para a AF e sim acaba indo para a Monsanto, Bayer, etc. Permanece no seio do Pronaf uma contradição de fundo, quando ele é analisado do ponto de vista da agroecologia: é a contradição produto x sistema. Em algumas modalidades, ela não aparece muito, como no caso do Pronaf Agroecologia. Também em um dos casos apresentados no subgrupo, o fato de se tratar de café facilitou a relação com os bancos. Já em outros casos, a contradição é gritante. Talvez o melhor exemplo seja o Pronaf Florestal. Na experiência de Altamira discutida no subgrupo, foram necessárias longas negociações com o banco para que este aceitasse financiar um sistema agroflorestal diversificado. E é por isso que essa modalidade é vista por muitos como o Pronaf eucalipto ou pinus, ou seja, incentivadora de monoculturas. Quanto ao Pronaf Mulher, foi dito na discussão no subgrupo que, do ponto de vista da concepção, tem significado um avanço, sobretudo no sentido de abrir maior espaço para as mulheres. No entanto, a discussão também mostrou que a exigência de que o esposo ou companheiro não esteja inadimplente para a mulher poder acessar essa linha a transforma em Pronaf Esposa. Porém, viuse que essa questão é de difícil solução, já que o embasamento jurídico dessa exigência está no código civil. 16 Financiamento da Transição Agroecológica Outra conclusão tirada da discussão foi que a única coisa que realmente distingue o Pronaf Agroecologia da modalidade Crédito de Investimento convencional, por exemplo, é a existência do sobreteto (ou seja, da possibilidade de se obter uma soma um pouco maior). Foi visto que é necessário sair dessa situação, buscando a criação de uma modalidade de crédito diferenciado para incentivar a agroecologia. Finalmente, foi dito que o formato da modalidade recém-criada Pronaf Comercialização é realmente muito ruim. É apenas um “Pronaf capital de giro para as cooperativas”. Não era nada disso que as organizações dos agricultores estão propondo. c. Sobre as dificuldades operacionais Nesse ponto cabe diferenciar as dificuldades que se referem à relação entre as famílias que buscam crédito e os agentes financeiros daquelas que não se situam nesse campo. Sobre a relação com os agentes financeiros As discussões evidenciaram a existência de muitas dificuldades na operacionalização do Pronaf, que têm como principal efeito prático a limitação do número de famílias atendidas pelo programa. A seguir listamos algumas. • Em muitos lugares criam-se dificuldades com respeito à Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), dizendo, por exemplo, que ela venceu de um ano para outro e exigindo uma nova, quando na realidade a DAP tem validade de cinco anos, a não ser que a família tenha mudado de categoria (de C para D, por exemplo). • Há demoras inexplicáveis na análise das propostas. • Em certos casos, as planilhas apresentadas pelos bancos para formular os projetos dificultam a elaboração dos projetos. • Outro problema importante é a relação entre o Pronaf e o zoneamento da Embrapa, que impõe limitações no que se refere às atividades que podem ser financiadas em uma determinada região. Essas dificuldades multiplicam-se quando se trata dos Pronaf específicos: Agroecologia, Florestal, Mulher e Jovem. Um companheiro do Ceará exemplificou dizendo que, na região dele, “se for para destruir a natureza, o Pronaf sai rapidinho”, mas ele estava esperando há um ano pela aprovação da sua proposta agroecológica. Embora não tenha sido dito explicitamente durante as discussões, é provável que isso também aconteça no caso dos Pronafs Agroindústria, Produção Orgânica, etc. Financiamento da Transição Agroecológica 17 Em certos casos parece que as exigências burocráticas são maiores (são solicitados mais documentos, etc.). Em outros casos, a lentidão e a má vontade podem estar ligadas ao fato de que existe um profundo desconhecimento por parte dos funcionários dos bancos sobre essas modalidades. Nessas circunstâncias, os bancos (ou melhor, esses funcionários) preferem lidar com as modalidades mais conhecidas. Assim, chega a acontecer que falta dinheiro, quando, depois de muita luta, os projetos dessas modalidades são finalmente aprovados: é que ele já foi todo gasto com os Pronafs convencionais. As apresentações das experiências das cooperativas de crédito deixaram a impressão de que, nesses casos, os problemas operacionais são menores. Evidentemente, como elas dependem, em grande parte, de liberação de verba dos bancos, nem todos os problemas podem ser evitados. Mas a proximidade das cooperativas com o público delas tende a favorecer uma relação bem mais tranqüila. Outras dificuldades operacionais Constatou-se que uma parte enorme do público da AF sabe pouco ou nada sobre o Pronaf. Essa situação é ainda pior quando se trata das modalidades especiais. Nesse quesito as mulheres estão numa situação pior do que os homens. Em vários momentos da discussão foi levantado o problema da assistência técnica. Por um lado, em muitos locais, os técnicos das Ematers não têm afinidades com a agroecologia e, portanto, só fazem preparar propostas de crédito com pouca conversa com os interessados. Em contraste, muitos técnicos do nosso campo fazem muitas reuniões, sendo muito bons de conversa, mas não elaboram projetos, como disse uma companheira da Bahia. Além disso, muitos destes últimos praticamente não conhecem o Pronaf. Duas das experiências apresentadas (MG e PB) mostraram um esforço grande para mudar a forma em que são elaborados os projetos. Tentaram, por exemplo, garantir uma participação intensa das famílias na elaboração da proposta. Também buscaram construir a proposta a partir de uma visão do conjunto da unidade familiar. Mas ambas concluíram que o esforço demandado para implementar esse enfoque diferenciado na elaboração de propostas era muito grande. A tal ponto que, em uma das experiências, o processo de elaboração nem conseguiu chegar até o fim. Dessa maneira, fica ainda a pergunta no ar: como resolver esse dilema? Outro problema da assistência técnica é que, em geral, ela é muito masculina. Isso estabelece uma dificuldade a mais que as mulheres devem enfrentar no processo de elaboração a apresentação de propostas de crédito. 18 Financiamento da Transição Agroecológica d. Propostas Diante do quadro descrito, foram apresentadas diversas propostas. Sobre a concepção e o desenho das diversas modalidades Diante dos problemas identificados na concepção das diversas modalidades do Pronaf, vai ser necessário formular propostas de mudança e negociá-las junto à Secretaria de Agricultura Familiar (SAF). • Nesse sentido, no caso do Pronaf Semi-Árido, propõe-se acabar com a obrigatoriedade de que 50% do crédito seja para infra-estrutura hídrica. • Uma segunda proposta é juntar essa modalidade com o Pronaf Agroecologia, o que passaria a dar ao Pronaf Semi-Árido uma cara explicitamente agroecológica, coisa que não tem hoje. • Propõe-se também que seja bem demarcada a especificidade do Pronaf Agroecologia, fazendo dessa modalidade algo que incentive a expansão da AF agroecológica. Uma primeira medida seria a redução da taxa de juros para 1% ao ano. A segunda seria o alongamento da carência e do prazo para pagar. Nesse ponto a proposta seria de até cinco anos de carência e mais oito para pagar (num máximo de treze anos). Uma terceira especificidade dessa modalidade seria a possibilidade de que a liberação dos recursos fosse paulatina, se for interessante para a família, em lugar da prática atual que obriga a gastar tudo no primeiro ano. • Seria importante garantir que o leque de possibilidades abertas para uma proposta de crédito nessa modalidade seja o mais amplo possível. Nesse ponto, a questão do zoneamento da Embrapa, que hoje limita este leque, precisa ser revista. • Também não basta ter um Pronaf com um grande volume de recursos. É precisa orientá-lo para a transição e produção agroecológica. • Finalmente, propõe-se a criação de uma modalidade específica de Pronaf para atender a agricultura familiar urbana, já que atualmente ela não tem acesso. Sobre os problemas operacionais • Uma boa parte das dificuldades operacionais não poderá ser superada se não desenvolvermos uma atitude de cobrança mais ativa. Poder-seia falar da necessidade de desenvolver uma cultura do 08001... Também será necessário mais diálogo e pressão junto aos diversos níveis da estrutura de administração dos bancos. E, quando necessário, “pôr um porquinho na agência”... Financiamento da Transição Agroecológica 19 • Poder-se-ia propor a reserva de recursos para as modalidades especiais (descendo até o nível da agência), para evitar a situação de “acabou o recurso”. • No caso dos bancos que usam planilha, propor a sua substituição por instrumentos mais simples, do tipo roteiro, para orientar a montagem de propostas. • Diante da constatação de que é necessária uma reciclagem profunda dos funcionários dos bancos, propõe-se que as direções dessas entidades façam isso maciçamente. • Também se propõe que as direções dos bancos criem oportunidades de discussões cara a cara entre gerentes e funcionários de um lado e lideranças e agricultores do outro, com o objetivo de aparar arestas. • Montar iniciativas mais sistemáticas de busca e divulgação ampla de informações sobre as diversas modalidades do Pronaf. Nesse ponto, dar especial atenção ao público feminino, tradicionalmente ainda menos informado. • Diante do problema levantado de que, em certos casos, a DAP poder ser emitida pelo sindicato patronal, propõe-se que se reivindique junto à SAF que essa medida seja revista, já que ela tem implicações bastante sérias. • Mesmo com uma necessária simplificação da forma de apresentação dos projetos será importante desenvolver uma metodologia participativa para a elaboração dos mesmos de modo a diminuir a dependência do apoio de técnicos. 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. Pronaf Agroecologia Sistematização: Sérgio da Silva Abrahão (CTA-ZM) a. Localização • Estado: Minas Gerais • Região: Zona da Mata • Municípios: Divino, Orizânia, Espera Feliz, Caparaó, Tombos, Pedra Dourada, Eugenópolis, Araponga, Ervália, Guidoval e Paula Cândido • Bioma/região ecológica: Mata Atlântica 20 Financiamento da Transição Agroecológica b. Público Os participantes da experiência se identificam como agricultores(as) familiares. O grupo foi composto por representantes de 82 famílias, dos quais quatro jovens participaram como proponentes do projeto. Essas famílias estão classificadas dentro dos Grupos C e D, estabelecidos pelo Pronaf. c. Papel das organizações Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) • Buscar informações sobre a documentação necessária para a elaboração e negociação dos projetos junto aos bancos. • Propor metodologia para elaboração coletiva dos projetos. • Formatar os projetos após a elaboração coletiva. • Assessorar as organizações parceiras (associações e STRs) na negociação dos projetos com os bancos. • Assessorar as famílias na implementação dos projetos. Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata • Definir, juntamente com o CTA-ZM, o grupo de famílias que participarão da experiência. • Validar a metodologia proposta pelo CTA-ZM para a elaboração dos projetos. • Contatar instâncias superiores responsáveis pelo Pronaf (Superintendências do Banco do Brasil, Pronaf/DF, etc.). Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) • Articular as famílias para participarem das diversas atividades necessárias para acessar o crédito (mutirões para elaboração dos projetos, reuniões com gerentes dos bancos, reuniões de monitoramento do processo, etc.). • Manter as famílias informadas sobre as negociações com os bancos. • Apresentar os projetos aos bancos e assessorar as famílias na negociação do crédito com os agentes bancários. d. Objetivo do financiamento O recurso acessado pelas famílias foi, em maior parte, utilizado para investimentos em infra-estrutura e aquisição de equipamentos e, em menor parte, para custeio. Os financiamentos foram individuais. Porém, houve o caso de um Financiamento da Transição Agroecológica 21 grupo de famílias que após o recebimento do recurso resolveu adquirir coletivamente um trator para o uso do grupo. Essas famílias já haviam previsto em seus projetos gastos individuais com alguma forma de transporte para a produção. As principais infra-estruturas instaladas foram: terreiros para secagem de grãos, estruturas para armazenamento da produção, currais, chiqueiros e melhoria de estradas. Os principais equipamentos adquiridos foram: picadeiras, ensiladeiras e roçadeiras. A produção de café foi a principal atividade agroecológica beneficiada pelos projetos. O período de carência para devolução do recurso é de três anos e o período para pagamento do empréstimo é de cinco anos (uma parcela por ano). Em todos os casos o agente financeiro foi o Banco do Brasil. e. Período da experiência A experiência se iniciou em setembro de 2003 com a articulação das famílias e organizações para a elaboração dos projetos. A previsão de término da devolução dos recursos emprestados é 2011. f. Histórico Em setembro de 2003, o CTA-ZM, juntamente com seus parceiros (STRs e Associações de Agricultores Familiares da Zona da Mata), decidiu elaborar e encaminhar projetos de investimento à Linha de Crédito do Pronaf Ambiental: Agroecologia, cujos recursos seriam destinados aos seus beneficiários. Essa foi a primeira vez que o CTA-ZM de fato se envolveu e investiu no apoio à busca de crédito, via Pronaf, para o público que assessorava. Como o CTA-ZM não dispunha de pessoal em sua equipe técnica para a elaboração desse tipo de projeto, optou-se por restringir o grupo beneficiário e utilizar uma metodologia que fosse capaz de agilizar o trabalho envolvendo o(a) proponente e seus(suas) companheiros(as) de organização na elaboração do conjunto de projetos. Em relação ao grupo beneficiário, optou-se por trabalhar, nessa primeira experiência, apenas com os(as) agricultores(as) que estavam diretamente envolvidos em dois projetos específicos do CTA-ZM: o Plano Estratégico do Café Agroecológico (PEC) e o Programa de Formação de Agricultores(as) (PFA). Para a elaboração dos projetos, a equipe técnica formulou, juntamente com os(as) agricultores(as), um roteiro com o qual cada proponente pudesse 22 Financiamento da Transição Agroecológica fornecer informações sobre seu sistema de produção agroecológica e dados sobre a renda da família demandados pelas agências bancárias. Entre os meses de novembro e dezembro de 2003 foram feitas reuniões nos municípios de Divino, Espera Feliz, Tombos, Viçosa e Araponga, para elaboração dos projetos em regime de mutirão. Durante os mutirões, além do assessoramento da equipe técnica do CTA-ZM, houve uma grande interação e troca de informações técnicas entre os(as) próprios(as) agricultores(as) envolvidos(as), possibilitando uma rápida e eficiente construção dos projetos. De posse das informações e solicitações de cada família fez-se, com o apoio de estudantes – estagiários(as) –, a adequação do projeto para o formato a ser apresentado às agências bancárias. Em janeiro de 2004, uma primeira versão dos projetos foi apresentada para duas agências do Banco do Brasil para que estas apontassem sugestões e/ ou mudanças que deveriam ser feitas. Algumas sugestões foram propostas por ambas as agências e, para que fossem acatadas, foi necessário promover uma nova reunião com os proponentes, em cada um dos municípios envolvidos, para a revisão dos projetos. Feita a revisão junto às famílias, concluiu-se a elaboração dos projetos, e cada STR encaminhou os projetos à agência do Banco do Brasil (BB) de seu município. A partir desse momento cada município teve uma história diferente em relação à aquisição do crédito, dependendo da agência bancária. Apenas uma agência do BB foi pouco exigente e, logo no final de março de 2004, liberou o recurso, de uma só vez. Todas as outras cinco agências do BB envolvidas no processo fizeram mais exigências e/ou solicitaram maiores informações além das apresentadas após a revisão dos projetos. As principais solicitações foram: apresentação de declaração do CTA-ZM afirmando que iria fazer o acompanhamento técnico do projeto, maior detalhamento dos orçamentos dos projetos que incluíam algum tipo de construção e justificativas técnicas para o que estava sendo solicitado. A declaração e as justificativas técnicas foram apresentadas. Porém, em relação ao detalhamento do orçamento, foi negociado com a gerência dos bancos apenas a apresentação de planilhas genéricas com custos de construção por metro quadrado. As próximas liberações ocorreram no final de 2004 e as últimas só vieram a acontecer em meados de 2005. Vale ressaltar que nem todos os projetos elaborados foram encaminhados aos bancos e que nem todos os que foram encaminhados foram aprovados. Inicialmente foram elaborados 82 projetos. Porém, após a revisão, 11 famílias desistiram de dar continuidade ao processo, principalmente por verificar que não dispunham de determinados documentos. Foram então apresentados oficiFinanciamento da Transição Agroecológica 23 almente 71 projetos às agências bancárias. Durante as negociações com os bancos, mais 26 famílias saíram do processo, algumas por desistência devido à morosidade, outras por falta de documentos exigidos pelo banco. Por fim, apenas 45 projetos foram aprovados e tiveram os recursos liberados. g. Gestão De uma forma geral, a gestão financeira do recurso é feita pela própria família. No entanto, nos momentos de dúvidas, as famílias recorrem à rede social em que estão inseridas (comunidade, STR, CTA-ZM e associações). Há também momentos de avaliação coletiva do desenvolvimento do processo, que normalmente ocorrem em reuniões nos municípios com a participação das organizações locais e o CTA-ZM. Em um dos municípios houve fiscalização do banco aos projetos e surgiram alguns questionamentos dos fiscais. Para resolver essas questões, foi necessária a assessoria do STR e do CTA-ZM. h. Avaliação As famílias que participam desse processo são famílias que já estão num estágio avançado em relação à vivência agroecológica. Dessa forma, os principais resultados, para as famílias, estão diretamente relacionados com a melhoria nas condições de trabalho, ou seja, o financiamento possibilitou a melhoria de infra-estruturas e/ou aquisição de equipamentos que facilitaram a vida dessas famílias na roça. A elaboração do projeto em si é um grande entrave, que impede as famílias de acessar o crédito, uma vez que sem ele não há possibilidade de acesso e poucas famílias têm a oportunidade para elaborar o projeto. O período de carência e o longo prazo para a devolução do empréstimo, por outro lado, possibilitam melhor planejamento da propriedade e contribuem para garantir o retorno financeiro dos sistemas de produção. Entretanto, pior que a burocracia dos bancos, foi a falta do recurso nas agências. Com exceção de uma agência, todas as outras tiveram dificuldades e indisponibilidade de recursos para a imediata liberação do crédito. Em um dos municípios envolvidos o recurso só foi liberado depois de um ano e meio da apresentação dos projetos. i. Políticas Públicas Verificou-se que nenhum dos agentes bancários conhecia a proposta de crédito do Pronaf Agroecologia. Dessa forma foi preciso gastar tempo, com 24 Financiamento da Transição Agroecológica cada um deles, para fazer as devidas explicações. A maior parte dos agentes foi receptiva e cooperou sem colocar grandes dificuldades. No entanto, houve casos em que foi necessário recorrer à Superintendência do Banco do Brasil para que o processo andasse. A questão da falta de dinheiro do Pronaf nos bancos também foi um grande complicador. Por várias vezes foi solicitado do Pronaf/DF informações sobre a falta do recurso. Porém, o máximo que se obteve de resposta do pessoal de Brasília foi que realmente o programa estava sem dinheiro. j. Propostas Capacitar as pessoas envolvidas nos processos de aquisição de financiamento –técnicos(as), lideranças, agentes bancários – para que possam auxiliar um maior número de agricultores(as) no acesso ao crédito. Os sistemas em transição devem ter maior subsídio e/ou rebate, assim como maior tempo para a devolução do dinheiro, pois constituem experiências inovadoras. No entanto, devem ser criadas regras ou formalizados compromissos entre proponentes e financiadores para que sejam cumpridos os objetivos dos projetos. Finalmente, o Pronaf deve garantir recursos para as linhas especiais de crédito: Agroecologia, Mulher, Jovens, Florestal, Turismo, etc. 2.2. Projeto de crédito para a transição agroecológica no Semi-Árido: buscando novos caminhos para a elaboração, análise e acompanhamento Sistematização: Geovanni Medeiros (Pólo da Borborema) a. Localização • Estado: Paraíba • Município: Lagoa Seca b. Público imediato Cinco agricultores do município de Lagoa Seca, técnicos e lideranças das organizações citadas a seguir. c. Organizações envolvidas O Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema, o STR de Lagoa Seca e as ONGs Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Financiamento da Transição Agroecológica 25 Alternativa (AS-PTA) e Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac). d. Introdução: é preciso inovar também no crédito Desde 1993, um conjunto de famílias agricultoras, de organizações de agricultores (STRs, associações, Pólo), além de ONGs e grupos de igreja da região do Agreste da Borborema, vem experimentando inovações agroecológicas, na busca de uma maior sustentabilidade das unidades familiares da região. Diversas propostas inovadoras têm sido testadas. Assim, por exemplo, foram implantadas barragens subterrâneas, cisternas de placas, parcelas de palma consorciada com árvores forrageiras, etc. Também existem instalações (como cercas, barreiros) e equipamentos (como a máquina forrageira) que não são propriamente inovações, mas que geralmente são elementos importantes para a sustentabilidade das unidades familiares. Embora a maior parte das inovações, instalações e equipamentos mencionados não tenham custos muito altos, a situação de descapitalização da grande maioria das unidades familiares é tal que impede a realização dos investimentos necessários com recursos próprios. Nessas circunstâncias, o crédito passa a ser um elemento importante para acelerar e até possibilitar a transformação agroecológica das unidades familiares. Os problemas do crédito convencional Existem linhas de crédito para a agricultura há muitos anos. Também é verdade que, a partir dos anos 1990, foi criada uma linha específica de crédito – o Pronaf – com o intuito de atender a Agricultura Familiar (AF). No entanto, na região em questão, os agricultores familiares têm muitas dificuldades para acessar esse crédito. E, para os poucos que conseguiram, o crédito assim obtido tem sido mais uma fonte de problemas que um instrumento de reforço da economia e da propriedade familiares. Os principais motivos disso podem ser atribuídos à própria natureza do crédito. A seguir listaremos algumas das características do que chamaremos de crédito convencional, que são um empecilho para o fortalecimento das unidades familiares: • Ele privilegia o custeio (crédito de curto prazo) e financia produtos isolados (por exemplo, na região do Agreste da Borborema, financiou a batatinha), em lugar de privilegiar a estruturação das propriedades como um todo. 26 Financiamento da Transição Agroecológica • É o sistema de crédito (os bancos, as normas) que define as atividades que podem ser financiadas, muitas vezes em função de zoneamentos opacos, desconhecidos do grande público. • Também é o sistema de crédito que define a tecnologia que deverá ser empregada, sendo ela sempre do padrão agroquímico. • O processo de elaboração, a análise de viabilidade exclusivamente financeira e as regras burocráticas dos bancos, também opacas e “de cima para baixo”, são outros tantos fatores que dificultam o acesso. Quais podem ser as características de um crédito adaptado à AF agroecológica? A crítica do sistema creditício vigente e a reflexão que aos poucos vem sendo desenvolvida sobre a sustentabilidade da AF na região ajudaram a definir alguns elementos daquilo que poderia ser um sistema de crédito diferente, que deveria: • Comportar e estimular a participação das famílias na elaboração das propostas. • Partir de uma compreensão global, sistêmica da unidade familiar, considerando ao mesmo tempo o conjunto e o funcionamento dos subsistemas. • Priorizar as demandas da família, ajudando-a a estabelecer prioridades. • Financiar projetos capazes de aumentar receitas e diminuir custos, garantindo ao mesmo tempo uma maior capacidade de resistência e autonomia. e. Um experimento metodológico Embora o Pronaf continue sendo bastante convencional, com a chegada do Governo Lula foram aparecendo espaços que possibilitaram o início de um debate sobre a política de crédito para a AF. Resultado disso foi a criação de novas linhas de crédito dentro do Pronaf. A partir de 2004, foram instituídos o Pronaf Mulher, o Pronaf Agroecologia, o Pronaf Semi-Árido, entre outros. Algumas dessas linhas tinham como ponto importante a possibilidade de financiar a transformação do conjunto da unidade familiar. Estimulados, por um lado, pela necessidade das famílias de ter acesso ao crédito e, por outro, pelo aparecimento de linhas que em tese pareciam ser mais propícias, o Pólo, a AS-PTA e o STR de Lagoa Seca decidiram se lançar num exercício experimental de elaboração de propostas. O debate travado sobre o Pronaf Semi-Árido no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável Financiamento da Transição Agroecológica 27 (Condraf), entre o final de 2004 e início de 2005, foi outro fator de estímulo. Esse exercício tinha como uma das suas ambições aproximar o processo de elaboração de propostas de crédito das famílias e das organizações. Imaginouse a possibilidade de desenhar um processo que pudesse ser reproduzido pelas organizações com um apoio técnico mínimo. O Pronaf Semi-Árido, em janeiro de 2005 O Pronaf Semi-Árido foi concebido para favorecer a estruturação das propriedades para a convivência com a seca. É um recurso de investimento. O projeto pode ter um valor entre R$ 1,5 mil e R$ 6 mil. Até 35% do valor pode ser usado como custeio. É possível solicitar um segundo empréstimo Pronaf Semi-Árido nos mesmos limites do primeiro a partir do momento em que se fizer o pagamento da primeira parcela do primeiro empréstimo. Ou seja, o empréstimo máximo que o Pronaf Semi-Árido pode fazer é de R$ 12 mil, em dois contratos. Inicialmente cada projeto podia contemplar até 65% para infra-estrutura hídrica. Durante o exercício isso mudou: cada projeto deveria prever, obrigatoriamente, o gasto de pelo menos 40% nesse item. Os juros são de 1% ao ano sem rebate. O prazo de carência é de até três anos, e o pagamento deve ser feito em até sete anos. (Total: até 10 anos) O público: agricultores enquadrados nas categorias B e C. Exige a apresentação de projeto técnico. Algumas dessas características foram mudando no decorrer de 2005. 28 Financiamento da Transição Agroecológica Cinco famílias do município de Lagoa Seca, contatadas pelo STR, aceitaram ser as cobaias. O experimento começou com a realização de um pequeno seminário (em janeiro de 2005), que teve a participação de lideranças do STR de Lagoa Seca e do Pólo, técnicos da AS-PTA e do Patac, além dos cinco agricultores. Foi apresentada e discutida a linha Pronaf Semi-Árido, que seria usada como referência na elaboração das propostas. O primeiro passo no processo de elaboração foi a análise dos sistemas produtivos das famílias participantes. Para isso cada família foi visitada por uma equipe formada por um técnico e uma ou duas lideranças do STR. O levantamento da realidade incluiu a elaboração de um croqui da propriedade junto com a família. Nessa mesma visita também foi discutida a visão de futuro que a família tinha para a propriedade, o que serviu de base para listar os investimentos desejados pela família. Feito esse trabalho de campo, o resultado foi apresentado ao conjunto de técnicos, lideranças e agricultores que participava do exercício. Na discussão buscou-se sempre analisar a unidade familiar no momento atual, assim como as idéias para o futuro, do ponto de vista da sustentabilidade2. O caso da família de J. e V. J. e V. têm três filhos jovens. Possuem 6,5 de hectares. Cultivam a metade com milho, feijão, mandioca e batatinha. A principal cultura de renda é a batatinha. O restante da área é pasto. Criam um rebanho de oito bovinos e três ovinos, mas a maior parte do rebanho é de terceiros, criado de meia. Há dois barreiros, que secam no verão. Atualmente, a família não possui área irrigada, mas deve receber como doação um kit, por meio de um projeto com a Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba (Saelpa). Esse agricultor já foi um produtor convencional de batatinha. Utilizava o crédito de custeio. Mas ele ficou endividado e teve que “vender quase tudo” para pagar. Depois disso ele passou a cultivar uma área menor usando menos insumos. Hoje usa biofertilizante e as caldas “do STR”. O primeiro desejo da família, em relação ao crédito, era aumentar e estabilizar a oferta de água, através da reforma de um açude. Também queria criar um rebanho próprio de dez bovinos. Além disso, V. queria instalar uma pequena pocilga para criar porcos para vender. Essas idéias iniciais foram modificadas depois do exercício de quantificação: J. decidiu desistir da reforma do açude e se concentrar na melhoria do sistema de criação de gado. Incluiu no projeto, fora a compra de animais, a compra de uma forrageira, a construção de uma cocheira, etc. Financiamento da Transição Agroecológica 29 É interessante registrar aqui que em todos os cinco casos o projeto das famílias dava uma grande importância à criação de gado, como pode ser observado na tabela a seguir. Tabela. Investimentos solicitados pelas cinco famílias Família A • Equip. irrigação p/ capineira Família B Família C Família D Família E • Barreiro (refor- • Máquina forrama) geira • Máquina forrageira • Máquina forrageira • Cercas • Cocheira • Curral • Depósito de forragem • Cocheira • Cercas • Curral e cocheira • Pastagem (braquiária) • Aquisição de bovinos • Bebedouros • Capineira • Palma • Carroça • Palma • Galpão • Cercas • Equipamento • Galpão • Tração animal • Esterco (p/ roçado) • Aquisição de bovinos • Apiário • Pocilga (reforma) • Pocilga • Cercas • Depósito de forragem • Aquisição de bovinos • Aquisição de bovinos • Área de maracujá • Capineira • Barreiro • Esterco (para roçado) • Galinheiro Definidas assim as grandes linhas para a elaboração das cinco propostas, a etapa seguinte foi a quantificação, entendida, sobretudo, como o cálculo dos valores necessários à elaboração da proposta a ser apresentada ao banco. As famílias foram visitadas, em alguns casos mais uma vez, com o objetivo de calcular o custo dos investimentos que elas queriam realizar. Quando restava uma dúvida, o agricultor ficava com a incumbência de obter as informações que faltavam. Para algumas famílias o resultado dessa segunda etapa foi uma mudança na idéia original da família. Por exemplo, no caso do quadro sobre a família J. e V., quando a família viu que a reforma do pequeno açude custaria mais do que R$ 6 mil – valor máximo possível do projeto –, ela decidiu desistir desse investimento. Outra tarefa realizada nesse momento foi o levantamento das atividades agropecuárias da família, dando ênfase à produção, às receitas e aos custos. Isso permitiu, na fase seguinte, fazer um cálculo detalhado das receitas e despesas da unidade familiar, pensando na demonstração da capacidade de pagamento. O passo seguinte foi um exercício de tradução dos projetos assim desenhados para a linguagem das planilhas utilizadas pelo Banco do Nordeste. Para tal contamos com a colaboração de um técnico que já tinha trabalhado nas elabo- 30 Financiamento da Transição Agroecológica rações de projetos de crédito para esse banco. Ele conseguiu montar uma planilha simplificada (preparada em Excel). Como foi feita tendo como referência o software do Banco do Nordeste3, ela permitiu colocar as informações requeridas e, entre outras coisas, fazer os cálculos da famosa capacidade de pagamento. Entretanto, durante essa parte do exercício, apareceram problemas para levar adiante a nossa elaboração. Um deles foi a descoberta de que não seria possível financiar a compra de bovinos para recria/engorda (como queriam quase todos os agricultores que participaram do exercício), ainda que os textos normativos do Pronaf Semi-Árido não digam nada a respeito disso. Disseramnos que isso era “uma norma do banco”...4 Apareceram ainda outras dificuldades, também relacionadas às normas. Por exemplo, o banco determina que o agricultor tem que destinar entre 30 e 60% da sua receita líquida para pagar o empréstimo. Embora pareça natural colocar um limite máximo, qual a lógica de colocar um mínimo? Assim como acontece no processo convencional de elaboração de propostas, essa exigência é um estímulo para quem está elaborando a proposta fazer uma conta de chegada, colocando os dados necessários para tal. Outro impedimento foi a dificuldade de financiar reformas, por exemplo, de um açude, já que a norma pede obra ou implemento novo. A própria operação da planilha, embora simplificada em relação à original, foi outro problema. Houve então uma modificação nas diretrizes do Pronaf Semi-Árido, que passou a exigir que no mínimo 40% do crédito fosse dedicado às infra-estruturas hídricas. Como, na maior parte dos casos envolvidos no exercício, as famílias não tinham solicitado esse tipo de investimento (no caso de J. e V., eles tinham desistido de reformar o açude, por ser esta obra cara demais), viu-se que seria necessário retomar o exercício, pelo menos em parte. Foi nesse momento que o experimento foi interrompido. Não se chegou a levar as propostas elaboradas para serem discutidas com o Banco do Nordeste. As dificuldades relatadas tiveram uma certa influência nisso, já que criaram um certo desânimo nos participantes. Mas também houve outros problemas relacionados com a agenda e as prioridades dos envolvidos. f. Lições e desafios Embora não tenha sido levada a bom término, essa experiência foi bastante rica em ensinamentos. O processo aqui descrito permitiu uma participação bastante intensiva das famílias. Destaque especial nesse ponto para as visitas feitas pelas equipes às propriedades, que permitiram assegurar uma contribuição mais plena do casal e também dos filhos. Financiamento da Transição Agroecológica 31 Por outro lado, a seqüência completa do processo relatado consumiu muito tempo e esforço, não somente por parte da família agricultora, mas também da equipe encarregada da preparação das propostas. A pergunta que fica, nesse quesito, é como acelerar o processo sem sacrificar a participação. Isso é uma equação de solução difícil. Por exemplo, as visitas mencionadas são um instrumento de participação ampliada para a família e, ao mesmo tempo, uma atividade que consome muito tempo. O que pode ser dito sobre a metodologia usada para analisar a sustentabilidade? Embora nenhuma proposta tenha saído concentrada num produto único, de certa maneira, a importância da criação de bovinos nas propostas não deixa de ser instigante. Em um caso, a propriedade já tinha sido muito diversificada, mas a evolução em curso, que buscava apoio na proposta desenhada pela família, era de pecuarização acentuada. Certamente as famílias tinham boas razões para isso, mas caberia uma discussão mais profunda sobre a questão. Na época em que foi feito o exercício, a planilha e as normas representaram dificuldades significativas. Conforme vimos, a planilha, mesmo com a simplificação construída, é de difícil manuseio. O exercício mostrou que, mantido esse formato, a idéia de um processo de elaboração de propostas de crédito implementado pelas próprias famílias com apoio das organizações seria muito difícil de realizar. Algumas normas, como já foi dito, também foram um obstáculo importante. Mas entendemos que nesse quesito houve, posteriormente, uma evolução positiva. Por exemplo, parece que as normas de 2005/2006 aceitam as atividades de recria e engorda de bovinos. Nesse ponto o desafio é, por um lado, manter-se atualizado. Por outro lado, seria necessário identificar as dificuldades que permanecem para reivindicar as mudanças necessárias. 2.3. Implantação e ampliação de Sistemas Agroflorestais (SAFs) na região sul do Pará com recursos do Pronaf Florestal Sistematização: Antônio Carlos Cavalcante Pereira e Roberto Araújo de Lima (Copatiorô) a. Localização • Estado: Pará • Região: Sul do estado 32 Financiamento da Transição Agroecológica • Município: Conceição do Araguaia • Bioma/região ecológica: Zona de transição entre os biomas do Cerrado e da Amazônia. b. Público Participaram da experiência 17 famílias que se identificaram como de agricultores familiares, sendo que em 15 delas o proponente do financiamento eram homens e 2 eram mulheres. c. Organização A Copatiorô, juntamente com alguns movimentos sociais da região – Associação do P.A. Canarana, Grupo do MPA do Projeto de Assentamento Padre Josimo Tavares, Grupo do P.A. de Curral das Pedras –, mobilizou algumas famílias e está implantando e ampliando Sistemas Agroflorestais (SAFs) com recursos do Pronaf Florestal. A Copatiorô teve o papel de assessoria na qualificação da demanda dos grupos de agricultores familiares para a elaboração dos projetos técnicos para financiamento no Pronaf Florestal. As organizações dos agricultores familiares participaram do processo de discussão do crédito e selecionaram as famílias que participaram da experiência. d. Objetivo do financiamento Implantação e ampliação de SAFs com recursos governamentais. A maior parte do valor do crédito concedido às famílias se destinou, sobretudo, para a produção de mudas de espécies frutíferas e madeireiras, aquisição de materiais e equipamento e custeio de parte da mão-de-obra, principalmente para o aceiro, visando evitar acidentes provenientes de queimadas descontroladas. e. Período da experiência A região já vem discutindo há algum tempo a necessidade de se ter um modelo de desenvolvimento com um menor impacto ambiental. Em 2005, essa discussão tomou maiores proporções devido o alto índice de desmatamento dos últimos anos ocasionados principalmente pela pecuária, pelos grandes plantios de soja, pela venda de madeira para as serrarias e pela produção de carvão para as guseiras. Os movimentos sociais, juntamente com a Copatiorô, Copserviços e o Banco da Amazônia (Basa), discutiram a implantação do Pronaf Florestal para algumas famílias da região. A formulação dos projetos e sua contratação foi realizada em dezembro daquele ano. Financiamento da Transição Agroecológica 33 A experiência está em andamento, pois a implantação dos SAFs na forma em que se trabalha na região leva de três a quatro anos. f. Histórico A maioria dos agricultores familiares da região segue o sistema convencional que é feito da seguinte forma: desmatando as áreas de lavouras com queimadas para logo em seguida transformá-las em pasto para a pecuária. Tal prática tem ocasionado um alto índice de desmatamento na região. A venda de madeira (magno, castanha, candeia-da-noite, aroeira, cedro, favão, jatobá, entre outros) e a produção de carvão foram elementos importantes da economia da Agricultura Familiar (AF), mas todas essas atividades levaram a um intenso desmatamento e degradação ambiental, devastando a maioria das florestas do sul do Pará. Os lotes da maioria dos AFs não cumprem a legislação ambiental, que exige 80% de áreas preservadas com florestas. Além disso, as crescentes dificuldades dos sistemas em processo de degradação suscitaram uma discussão envolvendo várias entidades da região amazônica, como o MDA/SAF e o Basa, para identificar formas viáveis de reflorestamento. A adoção de SAFs foi aceita como a opção mais promissora e decidiu-se promover uma série de experiências de implantação de SAFs com recursos do Pronaf Florestal, operacionalizadas pelo Basa. A pressão das entidades ambientais na região e a intensificação da fiscalização do Ibama têm gerado uma crise nas serrarias e indústrias de ferro gusa. Estas, por sua vez, têm pressionado para que o reflorestamento da região seja feito em monocultivo com espécies energéticas (eucalipto) e madeireiras (Teça), justificando assim o seu passivo ambiental. Com isso, essas empresas que não têm áreas de reflorestamento se beneficiariam com a produção de matériaprima para as mesmas no futuro. No entanto, por entendermos que o reflorestamento em monocultura e com culturas exóticas não é sustentável, temos trabalhado somente com SAFs. Na região sul do Pará, a Copatiorô, entidade de apoio técnico à AF baseada em Conceição do Araguaia, ficou responsabilizada pela condução da experiência. A Copatiorô, em diálogo com técnicos da SAF/MDA e do Basa, elaborou uma proposta básica de SAF que foi apresentada aos agricultores relacionados por suas organizações para participar da experiência. Após acordo em relação à proposta técnica básica, houve uma série de reuniões de esclarecimento sobre o Pronaf Florestal de modo a que ficassem bem claras para os agricultores as questões relativas aos juros, carências e prazos de pagamento. 34 Financiamento da Transição Agroecológica A proposta técnica foi então elaborada com cada uma das famílias em seus lotes, por meio do diálogo entre estas e os técnicos, observando-se as áreas onde o SAF iria ser implantado e a aptidão das famílias, elaborando-se assim arranjos específicos de SAF para cada situação particular. Nos SAFs elaborados foram incluídas espécies frutíferas comerciais da região e espécies madeireiras dos biomas Cerrado e Amazônia. A maioria das famílias implantou seu SAF em áreas de roça, somente duas famílias implantaram o seu sistema na capoeira. Não houve dificuldades na aprovação dos projetos, já que técnicos do Basa participaram do processo de elaboração. E, em janeiro de 2006, as famílias começaram a preparar as áreas para a implantação dos SAFs. A Copatiorô assessorou a implantação dos SAFs com cursos de produção de mudas a partir de manejo florestal e de outras adquiridas no mercado com os recursos dos projetos. Os agricultores familiares introduziram vários tipos de fruteiras, tais como: o cupuaçu, laranja, tangerina, murici, manga, coco, açaí, pequi, acerola, cajá, banana e outras. Dentre as espécies madeireiras, a maioria das famílias está plantando espécies nativas da região como: mogno, aroeira, candeia da mata, paricá, castanha-do-pará, frutão, entre outras. A Copatiorô vem trabalhando com essas famílias a integração do sistema de produção introduzindo, além dos SAFs, a venda residual de madeira extraída dos remanescentes florestais e a criação de pequenos animais, como porcos, aves, abelhas (apicultura) e peixes (piscicultura). A lavoura branca também tem sido incentivada de forma que a segurança alimentar dos AFs seja restabelecida em todos os níveis em roças com milho, arroz e feijão. Enfatizamos que essa parte da produção é dirigida sobretudo para o consumo das famílias com manejo de leguminosas e rotação de culturas em uma mesma área evitando assim novas áreas de desmatamento. g. Avaliação A implantação dos SAFs tem apresentado um bom desenvolvimento. As mudas e as sementes das plantas semi-perenes e perenes já foram plantadas. Apesar de este ano ter tido um menor índice pluviométrico, as plantas têm resistido bem à essa situação. As famílias têm apresentado um bom grau de satisfação com a atividade, visando principalmente a melhoria da segurança alimentar e a geração alimentar a médio prazo e a espécies florestais a longo prazo. Todas estão participanFinanciamento da Transição Agroecológica 35 do das capacitações e estão implantando o seu sistema inserindo até outras espécies, conforme observação in loco pela equipe técnica, embora haja uma exceção, em que a família vendeu a terra e desistiu de seu financiamento ocasionado pela desagregação da família. Apesar de ter havido a desistência de uma das famílias a equipe tem avaliado que os trabalhos têm tido um bom resultado, pois as demais têm demonstrado um bom interesse, principalmente por já termos implantado alguns SAFs com outros recursos e estes apresentarem uma boa produção já estando com oito anos. Esperamos que o Pronaf Florestal se apresente como uma alternativa de implantação de SAFs e também venha a incentivar/facilitar as famílias, fato esse que já vem ocorrendo, pois a região encontra-se com uma demanda qualificada de 96 famílias para o próximo ano agrícola. 1 Uma referência ao número de telefone criado pela SAF especialmente para receber reclamações ligadas ao Pronaf: 0800 787000. 2 Essa análise valeu-se de quatro“atributos da sustentabilidade”: a) produtividade(ou seja, a capacidade do agroecossistema prover o nível adequado de bens, serviços e retorno econômico para a família); b) estabilidade (a capacidade de o sistema manter ou aumentar a produtividade ao longo do tempo); c) resiliência ou resistência (a capacidade do sistema em absorver os efeitos de perturbações graves, retornando ao estado de equilíbrio, mantendo o potencial produtivo); d) autonomia: (a capacidade de o sistema regular e controlar suas relações com agentes externos - bancos, atacadistas, etc.). 3 Na época, o Banco do Nordeste era o único banco que operava com o Pronaf no estado da Paraíba. Atualmente o Banco do Brasil também passou a operar com o Pronaf. 4 Soubemos que essa questão foi resolvida no Plano Safra 2005/2006: atualmente é possível o Pronaf financiar as atividades de recria e engorda. 36 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 3 Subgrupo de trabalho sobre proambiente Coordenadores: Fábio Pacheco (Tijupá) e Vânia de Carvalho (Fase) 1. Relatório 2. Apresentação do Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural (Proambiente) 3. Resumo das experiências apresentadas 3.1. Pólo Baixada Maranhense – Cooperativa de Serviços, Pesquisa e Assessoria Técnica (Coospat) 3.2. Pronaf Semi-Árido – Pólo da Borborema - Paraíba 2.3. Pólo Noroeste do Mato Grosso – Associação Juinense Organizada para a Ajuda Mútua (Ajopam) 1. Relatório do subgrupo Proambiente Relatores: Vânia de Carvalho e Fábio Pacheco Participantes: 59 pessoas de 33 entidades de 16 estados, com a participação de quase 50% de mulheres Após uma apresentação do Proambiente e de três experiências de Pólos Piloto do programa, a plenária discutiu tanto as apresentações como outras experiências e chegou às seguintes conclusões: 1.1. Avanços • Superação da visão economicista da “remuneração dos serviços ambientais”. Financiamento da Transição Agroecológica 37 • Envolvimento das mulheres (família) nas discussões. • Disseminação dos princípios da agroecologia e crescimento do nível de consciência ambiental das famílias envolvidas, o que levou à diminuição imediata do uso de pesticidas; a uma visão integrada da propriedade; a que cada família envolvida fizesse o planejamento, a longo prazo, da propriedade; e à conservação e recuperação de áreas degradadas, principalmente de Áreas de Preservação Permanente (APPs). • Maior presença da assistência técnica nas propriedades. • Melhora na comercialização da produção. 1.2. Problemas • Falha no cronograma de recursos financeiros. • Falta de garantia de recursos para compensação financeira (a não operacionalização do fundo socioambiental devido à falta de legislação), criando expectativa entre as famílias. • Programa ainda não priorizado pelo Governo Federal devido à ausência de um marco legal para garantir recursos para o fundo. 1.3. Propostas • Definição legal dos princípios dos serviços ambientais a partir do Programa Proambiente. • Regulamentação dos serviços ambientais. • Definição legal das fontes do orçamento público para efetivação da constituição do fundo. • Definição de uma linha de crédito diferenciada dentro do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) que preveja o rebate e um tempo maior de pagamento para o público do Proambiente, tendo como referência os cadastros e planos de utilização das Unidades de Produção Familiares (UPFs). • Consolidar os pólos existentes a partir das questões apontadas anteriormente tendo como prazo até 2007, efetivando a nacionalização do programa. • Dar prioridade ao Proambiente na pauta da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e dos diversos atores sociais amazônicos, provocando uma ampla mobilização, em caráter estadual, regional e nacional, com manifestações e elaboração de documentos públicos. 38 Financiamento da Transição Agroecológica 1.4. Questões gerais A falta de profissionais com formação em agroecologia gera dificuldades na comunicação e falta de garantia de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater). Diante disso, a proposta seria haver maior intercâmbio (elo de comunicação) entre técnicos e agricultores e entre os pólos. 2. Apresentação do Proambiente Shigeo Shiki: gerente do Proambiente (Ministério do Meio Ambiente) O Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural da Amazônia (Proambiente) surge por uma demanda da sociedade civil – organizações de agricultores(as) familiares, extrativistas e pescadores(as) – de uso dos recursos naturais para a geração de renda com um menor impacto ambiental. Essa proposta de programa nasceu do Grito da Amazônia/2000, organizado pelos movimentos sociais liderados pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura (Fetag); pelo Movimento Nacional dos Pescadores (Monape) e pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A partir de 2004, o Proambiente passa a incorporar o Programa Plurianual (PPA) de 2004-2007 do governo Lula, adquirindo assim um caráter nacional. O Proambiente visa tanto a construção de modelos de produção de menor impacto ambiental (agroecológicos) como também a recuperação e conservação do ambiente natural pelos(as) próprios(as) produtores(as), sendo esses serviços reconhecidos pelo poder público e pela coletividade como um serviço de importância para a melhoria da qualidade de vida geral. Por adotarem práticas agroecológicas, esses produtores são considerados como prestadores de serviços ambientais que devem ser remunerados de alguma forma (financeira, prestação de Ater, crédito diferenciado, apoio à comercialização, etc.). Entre os mencionados serviços ambientais, podemos citar: a redução do desmatamento, conservação do solo, conservação da água, preservação da biodiversidade, redução do risco do fogo, redução do uso de agrotóxicos e absorção do carbono atmosférico. Essas atividades podem tanto buscar o aumento da renda como dirigir-se à recuperação ambiental. O Proambiente por enquanto somente está sendo experimentado em doze projetos chamados pólos, localizados nos nove estados da Amazônia legal. O Proambiente é um projeto piloto que tem a perspectiva de ser expandido para outros biomas brasileiros, mas que dependerá da experiência amazônica para Financiamento da Transição Agroecológica 39 ganhar mais força, pois atualmente encontra muitas dificuldades na execução, principalmente com relação ao repasse dos recursos para os pólos. 3. Resumo das experiências apresentadas 3.1. Proambiente: valorização dos serviços ambientais nos espaços de produção rural – Pólo da Baixada Maranhense Laurilene Muniz da Cooperativa de Serviços, Pesquisa e Assessoria Técnica (Coospat) - Pólo da Baixada Maranhense A primeira ação do Proambiente no Maranhão acontece em 2002, quando foi realizado o I Encontro Estadual de Agricultura Familiar e Extrativismo em São Luís. O evento, promovido por representantes das instituições idealizadoras da proposta, tinha como objetivo a divulgação e socialização do programa, bem como a criação do Conselho Estadual do Proambiente (Conges) e, principalmente, a indicação da região na qual seria implantado o programa no Maranhão. Por meio de votação, e em virtude de apresentar uma maior representatividade de lideranças locais, a região da Baixada Maranhense foi escolhida para ser o Pólo Pioneiro do Proambiente, abrangendo, inicialmente, os municípios de Viana, Matinha, Penalva, Vitória do Mearim e São João Batista. O Conges teve como atividade inicial a definição de uma entidade executora que obedecesse a um perfil de trabalho junto à agricultura familiar com enfoque nos princípios agroecológicos. Atendendo a esses requisitos, a Cooperativa de Serviços, Pesquisa e Assessoria Técnica (Coospat) foi eleita para execução do programa, responsabilizando-se pela elaboração do projeto e pela formação da equipe de assessoria técnica, implantando dessa forma o Pólo Proambiente Baixada Maranhense. O Pólo Proambiente Baixada Maranhense começa suas atividades na região por meio de seminários de nivelamento nos municípios, com o objetivo de promover o entendimento e a compreensão do público-alvo como também das lideranças locais. Posteriormente ocorre no município de Viana um seminário regional para a formação do Conselho Gestor do Pólo (Congep), composto por lideranças sindicais, membros da sociedade civil e poder público municipal. No primeiro ano de atuação do pólo, considerado como de estudo para conhecimento da realidade local (estudo macro) de execução do programa, é elaborado o Diagnóstico e Plano de Desenvolvimento Sustentável do Pólo, com enfoque em quatro pontos temáticos de organização, infra-estrutura, sistemas de produção e processo de comercialização, utilizando uma metodologia 40 Financiamento da Transição Agroecológica participativa respeitando-se as questões de gênero, geração e etnia. O Plano de Desenvolvimento Sustentável do Pólo Proambiente Baixada Maranhense foi aprovado durante a Assembléia dos 500, quando se fizeram presentes agricultores e agricultoras dos cincos municípios que compõem o pólo, além de lideranças sindicais, representantes da sociedade civil, entidades parceiras e membros das esferas municipal, estadual e federal. O segundo ano de estudo (micro) iniciou-se com o cadastro e seleção das famílias, estruturando-se o pólo em sete núcleos comunitários englobando os municípios de Viana, Matinha, Vitória do Mearim e Penalva e totalizando 210 famílias até o final de 2005. Posteriormente foi feita a elaboração dos Planos de Utilização (PUs) das Unidades Produtivas Familiares (UPFs) respeitando-se a proposta de prestação dos serviços ambientais. Atualmente o programa encontra-se em processo de assessoria técnica junto às famílias, tendo como metas a elaboração e revisão de PUs, a construção de Acordos Comunitários, visitas técnicas de monitoramento e orientação para execução dos PUs nas unidades de produção. Nesse processo participativo a equipe de assessoria técnica passa a ser formada, também, por agricultores e agricultoras escolhidos pelas famílias dos núcleos comunitários para exercerem a função de agentes agroecológicos, facilitando, dessa forma, o processo de assessoria junto às famílias. Entre as categorias participantes da experiência, estão agricultores familiares, mulheres agricultoras e assentados. Os primeiros caracterizam-se por explorar a terra com roçado, num sistema de derruba e queima representado, principalmente, pelas culturas da mandioca, arroz, milho e feijão. Eventualmente, atividades como a pesca artesanal e fabrico do carvão também têm um papel na economia familiar. Já as mulheres agricultoras, em sua grande maioria, participam da atividade de roça nas tarefas de plantio, capinas e colheitas e beneficiamento. Contudo, vale ressaltar que, apesar de fazerem uma leitura de que apenas ajudam nas tarefas, as mulheres se encarregam das atividades domésticas, da criação de pequenos animais (galinha caipira), da coleta e quebra do coco babaçu, bem como do fabrico do carvão a partir das cascas do coco. O extrativismo do coco babaçu, para algumas famílias, representa aproximadamente 50% da renda familiar. Com relação ao grupo dos assentados provenientes de reforma agrária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estes se assemelham à categoria dos agricultores familiares, apresentando como diferencial atividades de bovinocultura, em virtude de serem beneficiários do Pronaf A com investimento para gado. Financiamento da Transição Agroecológica 41 As atividades de produção nas UPFs são desenvolvidas em áreas de capoeira com tempo médio de pousio de três a quatro anos, demonstrando fragilidade do sistema de cultivo por ser baseado no trinômio derruba-queima-pousio. É comum as atividades ultrapassarem os limites de capoeiras, utilizando também áreas destinadas a Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente (APPs), sobretudo as matas ciliares. No que tange a questão fundiária, as UPFs do pólo são caracterizadas, em sua maioria, por terras de herança e terras do Estado. Apresentam-se, também, como terras de reforma agrária, compreendendo três núcleos em dois municípios. As famílias estão inseridas em um contexto organizacional estruturado por relações de parentesco e associativismo formal por meio dos sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais e associações comunitárias de produtores. Principais pontos de conversão de uso da terra das atuais unidades de produção √ Conversão do sistema de roçados de corte e queima em sistema de transição com queimada controlada e iniciativas de conversão em sistema sem queima e adubação verde a partir do segundo e terceiro ano. √ Pousio de capoeiras por três a cinco anos, objetivando a implantação futura de roçados já numa perspectiva de não uso do fogo. √ Recuperação de mata ciliar, predominando o açaí como espécie a ser inserida e/ou replantada. √ Consórcio de plantas perenes com arranjos que permitam a estruturação de sistemas agroflorestais. Essa conversão, em geral, objetiva também a complementação do percentual relativo à reserva legal da unidade familiar. √ Definição da Reserva Legal, adotando práticas que permitam a recuperação e/ou consolidação do ecossistema. As práticas mais dominantes rumam na perspectiva da sucessão natural, do extrativismo do babaçu, do manejo da madeira para uso doméstico e na agroindústria, do manejo da fauna, destacando-se o manejo da abelha. √ Criação de pequenos animais, como peixes (piscicultura) e cabras (caprinocultura). √ Construção de açudes para atender a atividade de piscicultura e como reservatório para abastecimento da criação, sobretudo dos bovinos. O processo de conversão de uso da terra das atuais unidades de produção na perspectiva de manejo ecológico dar-se-á de forma gradativa, pois ainda estão presentes entre as famílias a expectativa e práticas na linha do manejo 42 Financiamento da Transição Agroecológica tradicional e/ou convencional. Por isso, as capacitações e trocas de experiências serão de fundamental importância logo no primeiro ano. Os conteúdos dessas capacitações devem atender as demandas das famílias e abordar: o manejo ecológico do solo, o manejo e uso múltiplo da floresta, a criação ecológica, a produção de mudas florestais, bem a agroecologia, gestão participativa e comercialização coletiva. Estratégias políticas para fortalecimento do Programa no Pólo Baixada Maranhense Pelo próprio caráter desafiador do programa, que busca redesenhar o espaço rural numa perspectiva de mudança de cenários, a sua sustentabilidade e continuidade passam pelo empoderamento das famílias a partir de uma compreensão política e técnica, visando o envolvimento efetivo das entidades de base, iniciando pelos STRs. Nesse contexto, é de vital importância que o Conselho Gestor do Pólo, funcionando como interface desse processo, possa inteirarse do seu papel a partir do entendimento de gestão autônoma capaz de promover interlocuções tanto no campo específico com as famílias quanto na esfera pública municipal. Portanto, para que haja o fortalecimento do programa, torna-se necessário reverter o atual quadro de não envolvimento integral de algumas prefeituras municipais e órgãos estaduais. E será assim que poderá tornar-se uma política pública capaz de instrumentalizar a execução e consolidação de ações apontadas no Plano de Desenvolvimento do Pólo, gerando com isso melhoria de qualidade de vida para as famílias. Outro aspecto a ser destacado é a importância da criação de uma rede de articulação de parceria com entidades governamentais e não-governamentais que possam dar suporte às capacitações e treinamentos das famílias em práticas agroecológicas, bem como possam promover intercâmbios e visitas técnicas para que os agricultores e agricultoras consigam visualizar e conhecer experiências concretas e auto-sustentáveis como proposta de mudanças para as atuais atividades agropecuárias desenvolvidas nas UPFs. 3.2. Proambiente – Pólo pioneiro noroeste de Mato Grosso Sistematização: Eder Luiz Weber (Ajopam) O Proambiente é um programa piloto que começou a ser discutido na região Noroeste de Mato Grosso no primeiro semestre do ano de 2001, pólo que abrange o município de Juína e seus distritos. Já nesse período, a Associação Financiamento da Transição Agroecológica 43 Juinense Organizada para Ajuda Mútua (Ajopam) foi escolhida como entidade executora do programa no pólo pelas demais entidades parceiras que compõem o Conselho Gestor do Pólo (Congep), sendo elas: Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente (Samma), Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), Ibama, Empresa Mato-Grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural (Empaer), Instituto de Defesa Agropecuária (Indea), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Associação Municipal dos Produtores Feirantes de Juína (Aprofeju), Pastoral da Saúde, Pastoral da Criança, Associação Agrossocioambiental (Aasa) e STR. Em 2004 foram liberados os primeiros recursos para a contratação da equipe técnica. Entre as primeiras atividades realizadas no pólo, esteve a divulgação do programa nos meios de comunicação do município, com o objetivo de despertar o interesse nos produtores. Em seguida foi realizado um seminário, a fim de apresentar melhor o programa aos agricultores e realizar o cadastramento das 300 famílias interessadas. As famílias foram distribuídas em doze grupos com aproximadamente 25 famílias. Cada grupo elegeu um agente comunitário, que deveria apresentar um certo perfil, já que passaria a fazer parte da equipe técnica do programa no pólo juntamente com quatro Técnicos de Nível Médio (TNM) e um Técnico de Nível Superior. Desta forma, cada TNM ficou responsável por acompanhar três grupos de famílias. Logo no início do programa, foram realizadas, em campo, oficinas de agroecologia junto aos grupos. Em seguida, os técnicos realizaram uma atividade que chamamos de diagnóstico das Unidades de Produção Familiares (UPFs), que foi realizada pelo técnico, pelo agente comunitário e pela família. A metodologia de desenvolvimento e construção desse produto foi participativa, envolvendo toda a família, e as principais ferramentas utilizadas foram: caminhada transversal pela UPF, construção do croqui atual da propriedade e coleta de dados sobre renda, atividades e situação dos diferentes subsistemas de produção e conservação de APPs e Reserva Legal. No intervalo entre uma visita e outra da equipe técnica, as famílias ficaram responsáveis por construir um croqui futuro da UPF, ou seja, colocar no papel todos os sonhos de transformação da propriedade. Esse croqui serviu de base para o planejamento das UPFs, que foi realizado em seguida, e também para identificar os pontos de conversão necessários em cada unidade. Quando todas as famílias já tinham seus planejamentos, foi o momento dos grupos de famílias formularem seus Acordos Comunitários, nos quais cada família assume com o grupo algumas medidas possíveis de serem mudadas em 44 Financiamento da Transição Agroecológica benefício da conservação e reposição de ecossistemas, além de se comprometer a utilizar práticas de manejo na produção menos agressivas ao solo, à água, ao ar e ao meio ambiente. Paralelamente a essas atividades, outras foram acontecendo nos grupos, tais como: • Oficinas de produção de compostagem. • Oficinas de produção de caldas e biofertilizantes. • Oficina para disseminação e uso de controle biológico para pragas e doenças. • Assistência técnica às UPFs. Todo esse trabalho tem surtido vários efeitos positivos. Dentre eles podemos destacar alguns: √ √ √ √ √ √ √ √ Crescimento do nível de consciência ambiental das famílias envolvidas. Envolvimento da família nas discussões. Diminuição imediata do uso de pesticidas. Disseminação da agroecologia. Diversificação da produção. Assistência técnica nas propriedades. Comercialização da produção. Cada família envolvida tem o planejamento a curto, médio e longo prazo da propriedade. √ Conservação e recuperação de áreas degradadas, principalmente APPs. Porém, nem tudo foi conquistado nesse período. Temos algumas limitações a serem superadas: • Recursos para a manutenção da equipe técnica. • Profissionais habilitados em agroecologia. • Comunicação deficiente entre vários cenários. • Execução das atividades de acordo com o planejamento das UPFs. • Difícil acesso às linhas de crédito. • Vizinhança (divisa) com produtores convencionais. Para resolver essas situações, enxergamos algumas possíveis saídas: • Capacitar cada vez mais os profissionais envolvidos, bem como as famílias. Financiamento da Transição Agroecológica 45 • Criar maior elo de contato entre produtores e entre produtores e a equipe técnica. • Articular meios para que as famílias executem os planejamentos. • Buscar a regularização fundiária das Unidades de Produção Familiares. • Estimular as famílias do entorno a aderirem às novas técnicas de produção. • Articular momentos de formação também para os demais membros da comunidade. Os principais objetivos do programa são unir e desenvolver os lados social, econômico e ambiental nas UPFs. Todos devem estar em equilíbrio, visando a fixação do homem no campo, a geração de renda e a preservação e conservação dos recursos naturais. 1 Entende-se por núcleo comunitário o agrupamento de famílias que aderiram à proposta do Proambiente, apresentando uma distribuição espacial, respeitando a proximidade das unidades de produção familiar (escala de paisagem). Em 2006, tem-se a perspectiva de inclusão de mais um núcleo comunitário. 46 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 4 Subgrupo de trabalho sobre fundos não-governamentais Coordenador: José Camelo da Rocha (AS-PTA PB) 1. Relatório do subgrupo Fundos não-governamentais 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. Fundos Rotativos Solidários da Articulação do Semi-Árido (ASA) Paraíba 2.2. Fundo Rotativo Banco da Mulher no Maranhão 2.3. Fundo de Crédito Solidário da Zona da Mata de Minas Gerais 2.4. Fundo Demana Amazônia 2.5. Cooperativa de Economia e Crédito Solidário (Ecosol) de Araponga/ Minas Gerais 1. Relatório do subgrupo Financiamentos por fonte nãogovernamental Relatora: Ghislaine Duque (UFCG) a. Apresentação O grupo, composto de cerca de 30 pessoas, analisou quatro experiências de financiamento da agricultura familiar agroecológica por fontes não-governamentais. Financiamento da Transição Agroecológica 47 Os Fundos Rotativos Solidários (FRS) praticados pela Articulação do SemiÁrido (ASA) na Paraíba para todas suas ações. Iniciados em 1993 pelas ONGs que compõem a ASA, os FRS são administrados por cada comunidade que decide coletivamente a seleção dos participantes e as formas de organização e gestão. Apresenta diversas modalidades de reembolso. Não se cobram juros, mas certas comunidades prevêem o reajuste da devolução pelo valor do material. Os FRS vêm cumprindo o objetivo de fortalecer a agricultura familiar agroecológica, reforçando a organização comunitária e a auto-estima das famílias. As organizações de assessoria cumprem um papel na formação técnica e política mediante intercâmbios, encontros, etc. O Fundo Rotativo do Banco da Mulher, organizado pela Associação em Áreas de Assentamentos (Assema) no Maranhão, favorece o empoderamento das mulheres e a integração entre os membros da família, a partir do financiamento das atividades dirigidas pelas mulheres (por exemplo, pequena criação e horticultura orgânica). O valor do crédito (hoje R$ 700,00), os prazos de reembolso (dois anos) e os juros (5,4% nos dois anos) são fixados pela Assema que gerencia o fundo. Os Fundos de Crédito Solidário (FCS), organizados pela Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata de Minas Gerais, têm como objetivo fomentar a geração de renda e a organização das agricultoras e agricultores. O projeto, individual ou em grupo, é apresentado pela associação local ou pelo STR filiado à associação regional e é analisado e liberado por uma Comissão de Gestão composta de dois representantes da associação, dois representantes do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), enquanto parceiro, e um representante da Comissão Regional de Mulheres. Os valores (R$ 5 mil para grupos e até R$ 1,5 mil para projetos individuais), a taxa de juros (6% ao ano) e o prazo de reembolso (até 20 meses, com oito meses de carência) são fiscalizados pelo Conselho Regional, que dá grande atenção ao acompanhamento técnico do projeto. São previstas normas quanto ao tipo de atividade financiada, à análise da gestão dos FCS, à representação das associações regionais na Comissão de Gestão, etc. O Fundo Dema na Amazônia, cuja gestão é assegurada pela Fase-Amazônia, foi criado a partir da venda do mogno apreendido pelo Ibama, cujo valor formou um capital depositado em banco. São os rendimentos desse capital que financiam, a fundo perdido, projetos a favor das populações prejudicadas pelos danos ambientais. O capital permanece intocado. b. Análise O grupo observou que, das quatro experiências apresentadas, três são na modalidade de fundos rotativos solidários, sendo um gerido pela comunidade e 48 Financiamento da Transição Agroecológica dois pelas organizações. A gestão pela comunidade favorece a auto-estima e o empoderamento dos agricultores e das agricultoras familiares. Quanto à quarta experiência, a do Fundo Dema, trata-se de uma doação do poder público. O capital é mantido e controlado pelo banco segundo procedimentos burocráticos bancários próprios, mas a gestão é feita pela organização, no caso a Fase. Não se trata de um fundo rotativo, pois o financiamento é a fundo perdido. Cabe ressaltar um aspecto interessante, que é o fato de a punição dos prejuízos ambientais se tornar uma fonte de benefícios a favor das comunidades das áreas devastadas. c. Alcance das quatro experiências Os FRS da Paraíba têm capilaridade em todo o estado. Atingem aproximadamente 22 mil famílias em 147 municípios. Já os dois outros fundos são mais localizados na área de abrangência da organização responsável. Quanto ao Dema, ele atinge uma área bastante grande, mas tem limitações quanto às famílias beneficiadas em função das exigências burocráticas do banco (por exemplo, documentação necessária). d. Propostas Reconhecendo a importância dos Fundos Rotativos Solidários geridos pelas comunidades como forma de organização que contribui eficientemente para a auto-estima, o empoderamento e a cidadania dos agricultores e das agricultoras familiares, recomenda-se que seja criada, no quadro da política pública de financiamento da agricultura familiar agroecológica, uma modalidade de financiamento que alimente a poupança comunitária mediante esses fundos, permitindo a autonomia da comunidade na gestão dos recursos. Que a avaliação dos fundos leve em conta não apenas aspectos financeiros, mas também os impactos sobre o progresso da agroecologia, a capacitação das comunidades camponesas em termos de gestão e o empoderamento das famílias. Que todas as multas aplicadas em decorrência de danos ambientais sejam destinadas ao financiamento de projetos em beneficio das populações prejudicadas e administrados por elas na forma de fundos rotativos solidários. Financiamento da Transição Agroecológica 49 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. A ASA Paraíba e os Fundos Rotativos Solidários Sistematização: José Waldir Costa (Patac) a. Caracterização da região do Semi-Árido A agricultura familiar no semi-árido brasileiro é caracterizada por diversidades nos cultivos, nas espécies de criação animal e até nos costumes e (inter)relacionamentos, sejam individuais ou coletivos. Também manifesta historicamente, no trato com as finanças, ricas e variadas formas de relação e lógicas para otimização do trabalho, bem-estar familiar e garantia da produção, num sentimento mútuo de cumplicidade. Todos contribuem e igualmente recebem, sejam benfeitorias, respeito, apoio à produção e mesmo afirmação e reprodução da cultura de relações que amenizam flagelos e permitem a convivência técnica, social e organizativa. Assim, podemos dizer que a solidariedade, na agricultura familiar, é uma importante manifestação de crédito, vivenciada, no geral, no sentimento de pertencimento à localidade onde se vive – entre os vizinhos, amigos e familiares – , onde cada um demonstra preocupações para com todos. Essa cultura – viva expressão de resistência das comunidades empobrecidas por muito tempo – ficou isolada nos grupos, que a desenvolvem mesmo sem diálogo entre eles, assim como sempre foi sufocada e sofreu pressões do sistema financeiro predominante, que a considera ineficaz por não gerar lastro e dispensar o uso de papéis como moeda. Com o passar do tempo, muitas das antigas práticas de organização e socialização do trabalho têm sido desvalorizadas, embora lembradas com certo saudosismo. Outras foram esquecidas e poucas têm permanecido e/ou se moldado para atender as atuais exigências das comunidades. Assim é que afirmamos que as relações estabelecidas pela comunidade, seja com pessoas estranhas à lógica de solidariedade – como os fazendeiros –, seja com chefes políticos ou comerciantes dos aglomerados urbanos, sempre foram conflituosas e desfavoráveis às iniciativas de fortalecimento organizativo e mesmo econômicos das famílias agricultoras. A perspectiva do lucro, da produtividade e da acumulação de capital auxilia o descrédito no potencial local e traz consigo desvantagens à agricultura familiar e à identidade organizativa, desestruturando as dinâmicas sociais por décadas construídas. As famílias agricultoras, portanto, convivem em um espaço de rica afirmação existencial, mas também repleto de contraditórios desdobramentos. Para ilustração, basta analisar que as famílias do semi-árido têm a água como escassa, uma verdadeira “dádiva divina”, e, assim sendo, quem tem água é guardião 50 Financiamento da Transição Agroecológica de um patrimônio com significado imensurável: “água não se nega”. Mas a lógica da especulação – reforçada por políticas públicas governamentais – inunda vastas áreas com represas que simbolizam poder e dominação. Represas cercadas para não darem acesso logo a essa população, que contempla a divindade na chuva que cai, e vê-se desprovida dela que está logo ali, fora de seu alcance. Isso quebra toda simbologia que sua cultura de ser integrado foi capaz de absorver. Com essa percepção, as organizações de apoio à agricultura familiar com enfoque agroecológico, no semi-árido paraibano, vêm motivando as comunidades a descreverem por meio de gravuras, desenhos, mapas, linha cronológica ou mesmo textos expressões de sua identidade histórica, cultural, produtiva e de sociabilidade. Além disso, as incentivam a resgatarem sua história de cumplicidades e vivências solidárias. Uma das dinâmicas que melhor tem assimilado essa motivação é a mobilização para a formação e gestão dos Fundos Rotativos Solidários para apoio às iniciativas de experimentação técnica e produtiva e ao fortalecimento organizacional. b. Os Fundos Rotativos Solidários (FRS) A experiência com Fundos Rotativos Solidários (FRS) no Brasil e, em especial, no Nordeste, tem sido estimulada desde a década de 1980, apostando de forma incisiva na perspectiva de quebra das estruturas geradoras de dependência e empobrecimento das trabalhadoras e trabalhadores. Apesar dos tantos desafios e do muito a conquistar para o fortalecimento dessa dinâmica, já constatamos significativas mudanças no comportamento e estruturação entre as pessoas, suas comunidades/localidades e nas políticas públicas governamentais e suas amarrações de fortalecimento à reprodução do sistema de dependências e concentração. A experiência com FRS, relatada a seguir, está em aproximadamente mil comunidades distribuídas por 147 municípios do semi-árido paraibano, articulada na ação da ASA estadual. Participam desses FRS famílias agricultoras que se inserem em processos comunitários sócio-organizativos, com residência na área rural e produção caracterizada pela diversidade de cultivos agrícolas e criação animal voltada, primordialmente, para a auto segurança alimentar e nutricional. Pessoas de todas as idades se inserem na experiência, embora os homens e as mulheres responsáveis pelas famílias estejam em grande maioria, mesmo que os resultados contemplem toda a família. Nessa dinâmica envolvem-se 350 organizações representativas e de apoio da agricultura familiar que interagem do espaço comunitário ao estadual, pasFinanciamento da Transição Agroecológica 51 sando por comissões municipais e regionais. As iniciativas com FRS presentes no estado se encontram e se retroalimentam nas dinâmicas da ASA Paraíba por suas comissões de manejo da água, sementes e agrobiodiversidade, rede abelha e outras, sem que haja um espaço próprio para tratar de finanças solidárias isoladamente. Participam, no entanto, no apoio e motivação aos FRSs, organizações juridicamente formalizadas e grupos informais nos diversos espaços (comunitário, municipal e regional), contribuindo da mais variadas formas. A experiência é de fortalecimento dos processos sócio-organizativos, técnicos e políticos junto às famílias agricultoras e suas organizações na construção e gestão de um modelo de desenvolvimento pautado nos princípios da solidariedade e respeito ao meio ambiente. Iniciou em julho de 1993 – ano de seca em todo Nordeste brasileiro – com apoio financeiro da ONG Patac captado junto à cooperação internacional para experimentações de armazenamento da água de chuva, sem ter o propósito inicial de estar motivando a formação dos Fundos Rotativos Solidários. De fato, em 1993 centenas de municípios no semi-árido foram abastecidos por carros-pipa com água vinda de lugares de até 100 km de distância. Algumas comunidades não dispunham de reservatório adequado para receber a água, Caiçara, no município de Soledade, por exemplo, era uma delas. A saída emergencial para a comunidade foi a escavação de um buraco em frente ao grupo escolar: “Era um buraco no chão batido sem revestimento nem cerca ao redor e os animais disputavam a água com as pessoas; os porcos se lambuzavam dentro”, lembra José Maciel, morador de Caiçara. A prefeitura municipal havia sido procurada anteriormente e transformara a fossa céptica da escola numa cisterna para receber o carro-pipa, mas esta não resistiu e rompeu-se no primeiro abastecimento. Caiçara, no entanto, uma comunidade muito populosa e composta por agricultores familiares com pouquíssima terra, havia aprendido há bastante tempo a partilhar esforços, organizar mutirões e até um banco de sementes comunitário “ já em 1983, com apoio da ONG Pracasa. A Igreja Católica e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Soledade também estavam, desde 1989, motivando ações junto às comunidades para ampliação da capacidade de captação e armazenamento da água. Foi assim que no início de 1993 a igreja e o sindicato formaram parceira com o Patac na execução do projeto Água é Vida, com apoio financeiro da Catholic Relief Service (CRS) e da Misereor, experimentando algumas tecnologias para reforçar o abastecimento das famílias com água de beber e cozinhar, como barreiros trincheira e cisternas de placas. O município de Soledade foi contemplado com 17 cisternas que foram encaminhadas para re- 52 Financiamento da Transição Agroecológica forçar as ações junto a quatro comunidades, entre elas Caiçara, por seu acúmulo de iniciativas e organização e pela fragilidade no abastecimento. A comunidade formou um grupo com dez famílias interessadas nas cisternas para abastecimento familiar com água captada do telhado das próprias residências. Havia uma cisterna para cada duas famílias envolvidas. As dez famílias resolveram trabalhar em conjunto para a construção das cinco cisternas, o que motivou a formação de um consórcio entre elas para garantir que cada uma ficasse com sua cisterna após determinado tempo. Assim, sortearamse as famílias a serem contempladas com as cisternas recebidas da cooperação e todas se comprometeram em ratear o valor de uma nova cisterna a cada ano conforme a capacidade de contribuição de cada uma delas. Com os valores arrecadados em apenas três dos cinco anos previstos inicialmente, as dez famílias estavam contempladas. A comunidade contava com onze cisternas, sendo dez familiares e uma construída no salão comunitário para receber o carropipa, se necessário. A partir daí outros grupos de famílias foram estimulados na comunidade e na vizinhança, recebendo as primeiras cisternas das famílias já contempladas. Aos poucos essa idéia foi sendo incorporada a diversas iniciativas, tanto coletivas quanto familiares. Hoje Caiçara tem 87 cisternas construídas, sendo 67 delas fruto dos rateios nos FRS, e aplicou sua experiência com esses fundos em ações como cercas de tela para o sistema de criação animal, plantio de palma forrageira, barragem subterrânea, tanques de pedras, animais e poços amazonas, entre outras. O exemplo de comunidades como Caiçara sempre foi partilhado nos espaços de discussão regional com famílias agricultoras e mesmo na formação e primeiros passos da ASA Paraíba. Muitas organizações de dentro e de fora do estado visitaram essas comunidades e motivaram a iniciativa em suas localidades, sempre integrando os FRS aos processos de construção de cisternas. Como no caso do Centro de Educação Popular e Formação Sindical (CEPFS), que adotou a idéia no médio sertão. A partir do CEPFS, essa metodologia se estendeu no sertão. E assim a irradiação foi muito rápida por todo o estado. A cisterna de placas ainda é responsável pela inserção da grande maioria dos integrantes na dinâmica dos FRS na Paraíba, mesmo com a diversidade de atividades que os fundos têm motivado. Hoje podemos afirmar que os FRS são alimentadores de dinâmicas e ações que se refletem na transição da propriedade para produção agroecológica. Assim sendo, não há uma predeterminação de atividades a serem trabalhadas nem limites para apoios e experimentações. O que existe são princípios e acordos que reforçam as dinâmicas - inclusive tradiFinanciamento da Transição Agroecológica 53 cionais –, valorizam as formas organizativas e de relações respeitosas entre as pessoas e das pessoas com o meio ambiente onde vivem, produzem e constroem um modelo de desenvolvimento endógeno. Esse estágio se deve à total autonomia de gestão que vem sendo construída nas comunidades há mais de uma década. A idéia inicial (1993) consistia em que haveria um retorno dos recursos repassados às comunidades a uma conta comum gerida pelo Patac ou por outras organizações de apoio regional. No entanto, a experiência de Soledade e de algumas outras comunidades com gestão físico-financeira e organizativa compartilhada entre as famílias envolvidas demonstrou que as ações para reforçar a organização e os processos emancipatórios das comunidades são facilmente por elas apropriadas. Aliás, percebeuse que as próprias comunidades têm melhor capacidade de gestão do que uma organização que, ainda que as apóie, não viva seu cotidiano. c. Gestão A forma de gestão que melhor tem respondido ao anseio de autonomia, autogestão e auto-estima é construída com base nos seguintes indicativos: – Existem comissões comunitárias formadas por membros de cada grupo nas localidades para gestão do fundo, que assume formato de integração das várias ações articuladas na comunidade. Então se organizam grupos de trabalho e de interesses, se discutem formas de repasse dos apoios às ações e se estabelecem critérios e normas adequadas para serem localmente apropriadas. – Nos municípios, as várias comissões comunitárias e as organizações de apoio e da agricultura familiar, como Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e igrejas, formam comissões de acompanhamento das experiências. Esse é um espaço de troca entre os vários grupos onde a problemática vivenciada por um deles alimenta o processo junto aos demais. Também é um espaço onde se pensa o município a partir da ação distribuída em cada localidade e se planejam as realizações e apoios junto aos vários grupos. – Um conjunto de municípios próximos tem dinâmicas de interação com as comissões municipais e/ou de várias comunidades de municípios distintos. São espaços regionais de discussão e monitoramento das ações tendo como foco a reflexão das experiências e a aproximação das políticas públicas como alimentadoras da dinâmica. Nesse espaço também estão presentes organizações não-governamentais que apóiam e articulam as iniciativas, além de prestarem assessoria técnica e organizativa de promoção agroecológica. 54 Financiamento da Transição Agroecológica – Nos espaços organizativos e eventos da ASA Paraíba, as várias experiências têm dialogado. Esse também tem sido um espaço onde há reflexão sobre algumas questões de ordem jurídico-administrativa e onde se faz a leitura dos princípios que norteiam essa teia de dinâmicas e fortalecimento da agricultura familiar agroecológica. A gestão não tem, portanto, ficado limitada à quantia de dinheiro arrecadado em um dado momento. Às vezes é estimulada pelos recursos disponíveis, mas tem se dado de verdade a partir das demandas e dos acúmulos das famílias na própria localidade. d. Conclusão A motivação inicial para a formação dos Fundos Rotativos Solidários se deu pela necessidade de ampliar o acesso de novas famílias às iniciativas de organização e estruturação dos meios de produção, de forma apropriada. Os fundos cumpriam, portanto, a função de alimentadores das iniciativas julgadas estratégicas para contribuir na construção de uma nova sociedade. Com o passar do tempo, a estratégia de constituição dos FRS foi ganhando expressão e vida própria, conquistando, em particular, um dinamismo organizativo. Os FRS passaram então a ser considerados também como uma iniciativa de promoção e estruturação comunitária, e não mais só alimentadores delas. Foi assim que, em 2003, a ASA Paraíba, por ocasião do lançamento do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), compreendeu a necessidade de inversão da perspectiva de tê-los como multiplicadores de cisternas junto a um número maior de famílias, embora tenha continuado a estimular a constituição dos fundos como estratégia de fortalecimento comunitário. Porém, como não houve investimento estratégico para a qualificação dessa ação, a conseqüência foi que mesmo os grupos e comunidades com experiência em FRS anteriores ao P1MC têm manifestado dificuldades para tratamento do tema e cumprimento dos acordos localmente assumidos. A abrangência de um grande número de famílias em um curto espaço de tempo, com a expansão da dinâmica dos FRS para novos municípios e novas comunidades (possibilitada pelo P1MC, a partir de 2003), tem sido, surpreendentemente, uma das oportunidades de aproximação da temática com setores do governo, proporcionando a quebra de limites para que os fundos sejam assumidos por políticas estruturantes, capazes de gerar processos emancipatórios nas comunidades. Prova disso é que está em pauta a Constituição do Programa Nacional de Apoio aos FRS, que deverá ser assumido pelo governo federal. Financiamento da Transição Agroecológica 55 2.2. Banco da Mulher Sistematização: Graciléia de Brito Sousa (Assema) a. Localização Região do Médio Mearim, no estado do Maranhão, incluindo os municípios de Lago do Junco, Lago dos Rodrigues, Esperantinópolis, Lima Campos, Peritoró, São Luiz Gonzada e Capinzal do Norte. A região encontra-se na Pré-Amazônia, com predominância dos babaçuais. b. Público Participam dessa experiência 36 famílias, sendo: 31 homens adultos, 38 mulheres adultas, 28 homens jovens e 25 mulheres jovens que se identificam como extrativistas. c. Organizações que participam da construção da experiência • Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema) – entidade de apoio. • Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR). • Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Esperantinópolis (Coppaesp). • Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (Regional Médio Mearim). d. Objetivo do financiamento • O Banco da Mulher oferece microcrédito para diversas atividades produtivas das famílias visando garantir a segurança alimentar e nutricional. e. Histórico da experiência A partir da conquista da terra ocorrida entre as décadas de 1970 e 1980, as famílias dessa região organizaram-se de várias formas, criando associações de produtores, cooperativas, Escolas Família Agrícola (EFAs) e grupos de mulheres. As trabalhadoras quebradeiras de coco protagonizaram um dos mais significativos processos de organização, rompendo com os vínculos que as subordinavam aos proprietários dos babaçuais e a comerciantes. A autonomia conquistada pelo movimento se deu tanto no plano político como no econômico. As organizações das quebradeiras de coco voltaram-se para investir na agregação de valor ao produto do extrativismo, passando de vendedoras de 56 Financiamento da Transição Agroecológica matéria-prima (a amêndoa do coco) a produtoras de óleo orgânico e, mais tarde, processando o óleo para produzir sabonetes naturais. O investimento em beneficiamento de produtos diversificou-se, incluindo doces e licores. Visando fortalecer os grupos de quebradeiras de coco, a Assema desenvolveu, a partir de 2002, a iniciativa de criar um fundo rotativo intitulado Banco da Mulher. Esses microcréditos tiveram por objetivo financiar pequenos projetos das mulheres organizadas com o fim de garantir a segurança alimentar e nutricional das famílias. Os projetos levaram à diversificação das unidades de produção familiar, melhorando e ampliando a produção de hortaliças, de várias criações e de grãos. O Banco da Mulher empresta um valor máximo de R$ 700,00 por família, iniciando em 2002 com créditos para projetos produtivos de 15 mulheres. O crédito tem dois anos de carência e juros de 1% ao ano. No ano de 2006, 21 novos projetos foram financiados em parte com o retorno de 85% dos recursos dos primeiros empréstimos e outro com novos recursos mobilizados pela Assema. f. Gestão As organizações das trabalhadoras quebradeiras de coco gerem os recursos do banco, selecionando os projetos e verificando os pagamentos. g. Avaliação A experiência provou a viabilidade de se financiar projetos de segurança alimentar sem burocracia e a custos baixos assumidos pelo trabalho voluntário das organizações de mulheres que gerem os fundos. É um crédito ao alcance da capacidade de pagamento das mulheres e de fácil acesso pelas interessadas na escala em que está operando. h. Políticas públicas O Estado deveria fortalecer e multiplicar esse tipo de crédito provendo, através de doações, as condições para que esses fundos rotativos deslanchem. 2.3. Fundo de Crédito Rotativo (FCR) Sistematização: Sérgio da Silva Abrahão (CTA-ZM) a. Localização • Estado: Minas Gerais • Região: Zona da Mata Financiamento da Transição Agroecológica 57 • Municípios: Divino, Orizânia, Espera Feliz, Caparaó, Tombos, Pedra Dourada, Carangola, Acaiaca, Visconde do Rio Branco, Araponga, Ervália, Guidoval e Paula Cândido • Bioma/região ecológica: Mata Atlântica b. Público Os participantes da experiência se identificam como agricultores(as) familiares. O FCR é destinado a agricultores(as) filiados às associações locais e STRs associados à Associação Regional de Trabalhadores Rurais da Zona da Mata (MG). c. Papel das organizações O trabalho de gestão do FCR é executado por uma comissão denominada Comissão de Gestão do Fundo de Crédito Rotativo. Composição da Comissão: – Dois representantes da Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata. – Dois representantes do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM). – Um representante da Comissão Regional de Mulheres da Zona da Mata. Principais funções da Comissão: – Analisar e selecionar os projetos apresentados ao FCR. – Acompanhar e orientar a gestão administrativo-financeira dos recursos do FCR. – Contribuir na resolução de dificuldades técnicas que venham a ocorrer na implementação dos projetos financiados pelo FCR. – Promover encontros e eventos de capacitação com os beneficiários do FCR. – Acompanhar e monitorar os projetos financiados pelo FCR Especificamente, as organizações que atuam nesse trabalho exercem as seguintes funções: Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata – Executa a contabilidade do FCR (repassar e receber empréstimos, emitir documentos aos beneficiários, controlar o fluxo de caixa, etc). – Mantém informadas as organizações associadas. 58 Financiamento da Transição Agroecológica Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) – Promove os eventos de capacitação. – Assiste tecnicamente os projetos. Associações locais e STRs – Divulgam o FCR nos municípios. – Articulam os(as) agricultores(as) para a participação nos eventos do FCR. – Respaldam os(as) proponentes dos projetos. – Colaboram na elaboração dos projetos. d. Objetivo do financiamento O principal objetivo do FCR é fomentar iniciativas de geração de renda de famílias e organizações de agricultores(as) a partir de crédito devolutivo. A prioridade é dada ao financiamento de atividades de beneficiamento, agroindustrialização e comercialização. Entretanto, nos casos de propostas coletivas, são também financiados projetos para compra de insumos, capital de giro e produção de artesanato. e. Histórico O Fundo de Crédito Rotativo (FCR) é um fundo de financiamento devolutivo criado no ano de 2000 pela Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata em parceria com o CTA-ZM. Seu objetivo principal é fomentar iniciativas de geração de renda das famílias e organizações de agricultores(as) vinculadas à associação regional. Tem como prioridade financiar atividades de beneficiamento, agroindustrialização, comercialização e compra coletiva de insumos. A gestão do FCR é feita por meio de uma comissão formada por membros da associação regional e do CTA-ZM. Para aquisição do financiamento, os(as) proponentes apresentam um pequeno projeto. Em caso de dificuldade para escrever o projeto, o(a) proponente procura a organização a que pertence, ou mesmo a associação regional ou o CTA-ZM, para obter auxílio na elaboração do projeto. A proposta do projeto deve ser sustentada nos aspectos sociais, ambientais e de gênero. Os recursos para composição do FCR foram adquiridos a partir de doações de projetos do CTA-ZM e também da Cáritas/MG. O montante de recursos movimentado entre empréstimos, devoluções e aplicações está em torno de R$ 100 mil. Desse montante, 30% se destinam exclusivamente a projetos administrados e executados por mulheres e os 70% restantes podem ser utilizados pelos Financiamento da Transição Agroecológica 59 grupos, organizações, homens e mulheres. Para projetos coletivos, o valor emprestado é em torno de R$ 5 mil, e para projetos individuais o valor é de R$ 1,5 mil. A taxa de juros é de 6% ao ano, mas, se for pago em dia, será de 4% ao ano. O prazo para pagamento é de 20 meses, sendo de até oito meses o tempo de carência. Até abril de 2006, o FCR beneficiou, diretamente, 270 famílias e, entre os resultados do FCR, podemos destacar: a geração de serviços na propriedade contribuindo para a manutenção da família na roça; a oportunidade de financiamento de atividades que muitas vezes não podem ser financiadas pelo crédito formal; o incentivo à diversificação e/ou ampliação da produção; e o incentivo financeiro para projeto de mulheres. f. Gestão Existem vários espaços de discussão e de tomada de decisão (reuniões da Comissão de Gestão do FCR, Encontros de Avaliação do FCR, reuniões da Associação Regional, etc) onde se dá todo o processo de gestão do FCR. Cada um desses espaços segue um cronograma próprio, sendo alguns especificamente criados com a função de gerir o FCR. g. Avaliação De uma forma geral, o aporte financeiro aplicado ao projeto, via FCR, tem contribuído para manter ou ampliar os postos de trabalho e as formas de geração de renda das famílias e/ou grupos de agricultores(as), pois essa injeção de recursos cria novos serviços ou incrementa os já existentes na propriedade. Uma análise mais qualitativa, levando em consideração algumas formas de condução dos projetos e alguns fatores que influenciam o seu percurso, indica que: – Quando a atividade proposta no projeto já estava em andamento, antes do aporte financeiro do FCR, há uma maior chance de sucesso e normalmente esse recurso potencializa a atividade; – As experiências anteriores da família ou grupo com atividades iguais ou semelhantes à proposta do projeto garantem uma maior possibilidade de êxito; – O grau de conscientização do(a) proponente em relação aos fatores de risco e de oportunidades que podem influenciar no desempenho do projeto, associado à forma de gestão do recurso emprestado, tem relação direta com o sucesso ou insucesso do projeto; – A forma de ver ou quantificar o lucro, ou seja, o conceito de lucro para muitos(as) agricultores(as) familiares, leva em consideração elementos que normalmente não fazem parte da contabilidade clássica. A percep- 60 Financiamento da Transição Agroecológica ção desses elementos como forma de renda leva-os a afirmar que o apoio financeiro do FCR contribui para aumentar a renda da família. h. Políticas Públicas Dependendo do olhar, esta atividade pode ser considerada ilegal. Políticas públicas que, de alguma forma, possam abonar essa atividade dariam mais segurança para as organizações envolvidas e incentivariam o crescimento desse tipo de iniciativa. Regras gerais do FCR Quem pode usar o FCR? O projeto poderá ser apresentado individualmente, em grupo ou pela associação local ou STR, desde que filiados à Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata e em dia para com suas obrigações de associado. Os projetos deverão ser encaminhados com uma carta de apresentação da associação ou STR do respectivo município, os quais se responsabilizarão como avalistas pelo pagamento do projeto e farão o acompanhamento junto com a Comissão de Gestão do FCR. Que atividades financia? Atividades de beneficiamento, agroindustrialização e comercialização. Compra de insumos, capital de giro e para produção de artesanato. • Para capital de giro e aquisição de insumos (calcáreo, adubo, semente, biofertilizante), só serão financiados projetos coletivos, para as associações, STRs ou grupos vinculados a essas organizações. • Projetos para compra de insumos deverão abranger um número mínimo de cinco famílias, tendo como teto o valor de R$ 300,00 por família. • Não serão financiadas atividades de custeio para plantio e culturas anuais e permanentes como arroz, feijão, cana e milho. • O FCR deverá ter uma linha específica para o financiamento do café orgânico. Como é o projeto? Para conseguir o financiamento do FCR a pessoa ou organização deverá apresentar um projeto que demonstre que a atividade não vai dar prejuízo e que aponte as datas de devolução do dinheiro. No caso de dificuldade para escrever o projeto, a pessoa ou organização poderá enviar uma carta dizendo o que pretende financiar com o dinheiro do fundo e solicitando apoio para escrever o projeto. Financiamento da Transição Agroecológica 61 Agrotóxico não! A proposta deve apresentar a sustentabilidade da atividade, nos aspectos sociais, ambientais e de gênero. Sendo assim, o FCR não financiará projetos em propriedades que utilizem agrotóxicos. Como e quando o dinheiro sai? A liberação do dinheiro e a assinatura do contrato serão feitas em uma reunião marcada na sede da associação local ou do STR do município onde o(a) beneficiário(a) será esclarecido(a) sobre o funcionamento do FCR. Nessa reunião deverão estar presentes, pelo menos, um membro da Comissão de Gestão do FCR, uma pessoa responsável pelo projeto e um(a) representante da entidade que indicou o projeto. Nesse momento também será agendada pelo menos uma visita da Comissão de Gestão, juntamente com a entidade local responsável, ao local do projeto para acompanhamento técnico. Quanto de dinheiro e que juros a gente paga? Para associações e STRs, o valor por projeto será em torno de R$ 5 mil. O número de pessoas envolvidas vai pesar na avaliação do projeto. A taxa de juros é de 6% ao ano (meio por cento ao mês) e as despesas com CPMF serão por conta do(a) beneficiário(a). Prazo para pagar e atraso de pagamento • Prazo de 20 meses, tendo até oito meses de carência de acordo com a atividade proposta e mais 12 meses para o pagamento. • Após a carência, a primeira parcela deverá ter um valor mínimo de 1/12 do valor total do projeto. • No caso de dificuldade de pagamento das parcelas, abrir negociação tendo como referência o tempo do projeto e os juros de 6%a.a. • Se o atraso do pagamento for de até dez dias, será cobrada uma multa proporcional aos dias de atraso da parcela. • Após os dez dias a multa será de 5% ao mês sobre o saldo devedor das parcelas vencidas. Isso quer dizer que a cada mês será calculado mais 5% sobre o saldo da dívida do mês anterior. E se perder tudo? A perda total ou de parte da atividade deverá ser comunicada imediatamente à Comissão de Gestão, que indicará um técnico para fazer o laudo. De 62 Financiamento da Transição Agroecológica acordo com o laudo, a comissão decidirá sobre a anulação total ou de parte do pagamento da dívida. Preste atenção O dinheiro do FCR não poderá ser usado para pagamentos de dívidas anteriores ou de dívidas que não estejam relacionadas com o projeto. A pessoa ou organização deverá ter no mínimo 30% do valor do projeto como contrapartida. A contrapartida pode ser na forma de dinheiro, mão-deobra, produto, equipamento, embalagem, infra-estrutura, etc. Os projetos só serão avaliados quando o FCR tiver dinheiro na conta. Enquanto isso, os projetos ficarão arquivados na associação regional esperando as devoluções dos empréstimos. A ordem de chegada dos projetos não será critério para a ordem de liberação dos recursos. Terão prioridade para aprovação de projetos as organizações e pessoas que ainda não foram contempladas com recursos desse fundo rotativo ou outras linhas de crédito, desde que preencham todos os outros critérios. 2.4. Fundo Dema 1 - Uma conquista dos movimentos sociais na Amazônia Sistematização: Mateus Otterloo (FASE-Pará) a. Os antecedentes Contando a história... No final da década de 1990, um conjunto de ONGs passou a realizar campanhas contra a exploração ilegal de madeira vinda, principalmente, das terras indígenas na Amazônia. O mogno foi escolhido como madeira símbolo, por ser uma das madeiras tropicais mais cobiçadas e de alto valor no comércio externo, caracterizando o início das ocupações ilegais de grandes áreas. Além disso, por ser sua extração uma exploração seletiva, chegando bem ao interior da floresta, abrindo estradas no coração da Amazônia. Uma característica biológica dessa espécie é que ela se dá em uma faixa limitada da floresta amazônica. Parte das terras indígenas do Xingu, chamada Terra do Meio, denominação local da terra entre os rios Xingu e Iriri, no Oeste do Pará, estava nessa faixa do mogno. Depois de várias investigações realizadas entre 1997 e 2001, em colaboração com entidades ligadas à Igreja Católica do Xingu e outras, entre as quais o Financiamento da Transição Agroecológica 63 Greenpeace, fora diagnosticado que a exploração do mogno avançava para a região da Terra do Meio. Em outubro de 2001, o relatório do Greenpeace “Parceiro no Crime” denunciou o esquema criminoso envolvendo políticos, funcionários do Ibama, empresas madeireiras e engenheiros florestais na extração ilegal do mogno na região da Terra do Meio. Uma verdadeira quadrilha foi denunciada publicamente, tendo seus nomes expostos. Nesse mesmo ano, o Ibama, acompanhado por um jornalista e uma equipe do Greenpeace, realizou uma das maiores operações na Amazônia, focada para Terra do Meio, quando foram apreendidos mais de sete mil metros cúbicos de madeira, além de caminhões, tratores e motosserras, sendo que havia mogno nos rios Xingu, Iriri, Carajari e Curuá. Uma parte foi retirada das terras indígenas Xipaia e Curuaia. Mesmo antes da operação do Ibama em campo, já havia um clima de guerra instalado entre os madeireiros de São Felix do Xingu ligados à máfia do mogno e ao mega grileiro Cecílio Rego de Almeida, que reivindicava o mogno já derrubado e em toras, apreendido por uma equipe do Ibama de Belém, usando a Polícia Militar e seus homens. Dizia o mega grileiro que parte dessa madeira teria saído de suas propriedades, tanto no Xingu quanto no Iriri. O grileiro completava o discurso através de seus representantes, dizendo que iria “doar o dinheiro do mogno depois de vendido para as famílias ribeirinhas”. Aguardando a decisão judiciária em relação à madeira apreendida, o Ibama nomeou um funcionário da empresa CR Almeida como fiel depositário, dando ao mesmo a responsabilidade de trazer o mogno apreendido de todos os rios para o rio Xingu na frente de Altamira. b. A construção e funcionamento do fundo Um fato que veio à tona, via imprensa, foi um acordo entre a CR Almeida e um madeireiro da região que acabaram instalando uma serraria ao lado do Assurini. Começaram então a testar as máquinas que estavam sendo preparadas para serrar o mogno. Em uma dessas tentativas foi serrado jatobá, que é da mesma cor do mogno. Esse jatobá foi colocado em um barco que veio até o porto de Altamira, principal concentração urbana dessa região. O Ibama de Altamira recebeu a denúncia de que o mogno apreendido estava sendo serrado. Uma equipe de Brasília do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ibama chegou poucos dias depois em uma missão de impacto na mídia para tirar o mogno das mãos de Cecílio e repassar para o Ibama. 64 Financiamento da Transição Agroecológica O aparecimento da imensa jangada com milhares de toras de mogno na frente da sede do município de Altamira deu a visibilidade necessária para os movimentos sociais do eixo da Transamazônica, ligados ao Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX)1, se darem conta da problemática em todas as suas dimensões. A denúncia nos jornais da jogada planejada pelo grileiro e da retomada do mogno pelo Ibama criou a vontade política nos movimentos sociais de impedir que a madeira roubada voltasse de uma ou outra maneira para os madeireiros ilegais e fosse devolvida para a região de onde foi tirada. Surge então a proposta da criação de um fundo para receber a doação dessa madeira que já estava nos portos de Altamira e destiná-la às comunidades da região da Terra do Meio. Em novembro de 2002, o então Ministro do Meio Ambiente veio para Altamira discutir a possibilidade de fazer um leilão com as cinco mil toras de mogno. Na ocasião, o movimento protestou contra a idéia de fazer o leilão, já que essa forma já era conhecida como um meio indireto para os madeireiros ilegais recuperarem a madeira de origem criminosa. O movimento então apresentou ao ministro uma proposta pela qual o MMA doaria o mogno para uma organização regional, que transformaria o mogno em móveis para as escolas, demais instituições públicas e instituições privadas sem fins lucrativos e desenvolveria projetos de uso sustentável de recursos naturais. Após muitas negociações, o MMA2 decidiu fazer a doação da madeira para uma entidade que representasse os movimentos sociais da região. Entre os vários critérios, constava a necessidade de que a entidade possuísse o registro como entidade beneficente, de utilidade pública, no Conselho Nacional de Serviço Social, o que excluiu as entidades representativas da região, como a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP)3 e a Prelazia do Xingu4, que não tinham na época o registro e, portanto, não puderam ser recebedoras, tendo de procurar uma entidade parceira para receber a doação. A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)5, atendendo à solicitação das entidades da região, decidiu aceitar ser a entidade recebedora da referida doação. No dia 18 de junho de 2003 foi assinado, em Brasília, pelo Ibama e a Fase, o termo de doação (6 mil toras de mogno6) com encargo de 13 itens para a Fase em relação à constituição do fundo e sua gestão democrática e participativa, colocando para a Fase toda a responsabilidade jurídica por tudo o que ocorresse com a administração desse fundo. A partir dessa doação, já num processo participativo, tendo como os principais componentes a Fase, a FVPP, a Prelazia do Xingu, o Ministério Público Financiamento da Transição Agroecológica 65 Federal do Pará e o Ibama, foi elaborado o regulamento interno do Fundo Dema, aprovado em 11 de fevereiro de 2004. Com isso, constituiu-se formalmente o Fundo Dema e o Manual de Operações, aprovado em 30 de junho de 2004. Dessa forma a Doação com Encargo, o Regulamento Interno e o Manual de Operações são os elementos básicos que orientam a ação atual do fundo. O rendimento líquido da comercialização no mercado externo (fevereiro 2004) do mogno doado formou o capital inicial do Fundo Dema de R$ 4.830.174.12 (quatro milhões, oitocentos e trinta mil, cento e setenta e quatro reais e doze centavos). Em outubro de 2005, a Fundação Ford, como reconhecimento da validade da ação dos movimentos sociais da região, alocou uma doação de R$ 2.227.000.00 (dois milhões duzentos e vinte sete mil reais). Dessa forma, o Fundo Dema termina o ano de 2005, tendo incorporado a correção monetária, com um capital de investimento na ordem de R$. 7.607.845,82 (sete milhões, seiscentos e sete mil, oitocentos e quarenta cinco reais e oitenta e dois centavos). O rendimento líquido desse investimento fornece os recursos financeiros destinados ao atendimento, em forma de doação, das solicitações provenientes das organizações da região, sempre de caráter coletivo e formalizadas de acordo com um roteiro preestabelecido. Em função disso, estabeleceu-se uma dinâmica de publicação de um edital por semestre. Num período de dois meses, as organizações formulam as suas propostas e enviam para o secretariado do fundo, passando mais um período para a sua habilitação documental. O Comitê Gestor, composto por seis representantes da Fase, da FVPP e da Prelazia de Xingu, aprecia e aprova as solicitações, as quais têm o seu teto máximo fixado em R$ 20 mil. Além disso, 10% do rendimento líquido do capital investido ainda é destinado para pequenas iniciativas, instantâneas, com um teto de até R$ 5 mil e uma apreciação de mais curto prazo. Em dois anos de funcionamento, o Fundo Dema já publicou três editais, atendeu 64 projetos, num total de R$ 855.523.42 (oitocentos e cinqüenta e cinco mil, quinhentos e vinte e três reais e quarenta e dois centavos), e está prestes a concretizar o quarto edital, chegando, ainda em 2006, à aplicação de um milhão de reais. A força da gestão participativa e da estrutura da base social do fundo até hoje garantiu a aplicação das doações com 97% de aproveitamento pleno. c. Como está estruturado o movimento social que forma atualmente a base do Fundo Dema A base do movimento social da Transamazônica e Xingu se estrutura organicamente por meio de associações, cooperativas, sindicatos, grupos informais, comitês, comissões e pastorais sociais. Em nível regional temos a FVPP, a 66 Financiamento da Transição Agroecológica Federação dos Trabalhadores Rurais (Fetagri), o movimento de mulheres e de igrejas e sua expressão no MDTX. Entre essas formas organizativas se destacam a Prelazia de Xingu e a FVPP como os principais interlocutores no cenário que construiu o Fundo Dema. A Prelazia do Xingu está estruturada numa área geográfica de 332 mil km2 com sede na cidade de Altamira (Oeste do Pará). Possui aproximadamente 800 comunidades de base nas áreas urbanas e rurais da Transamazônica, no trecho entre Anapu e Placas, e na região do Xingu, de Gurupá até a região de São Felix do Xingu. Além disso, estende sua ação às comunidades indígenas da região. A FVPP é composta por associações, sindicatos, cooperativas, movimentos, grupos e comitês, na BR 230, no trecho entre Pacajá e Itaituba, e na BR 163, nos municípios de Rurópolis e Novo Progresso. Essas entidades trabalham com uma parcela da sociedade menos favorecida (agricultores familiares, negros, pescadores, ribeirinhos, sem-terras, trabalhadores rurais, vítimas de trabalho escravo em fazendas, mulheres vítimas de violência, etc.), fazendo denúncias e apoiando iniciativas de formação e construção de estratégias de desenvolvimento sustentável junto a essas populações. d. Estratégia da ação do Fundo Dema O Fundo Dema foi pensado para alimentar a estratégia elaborada pelas organizações do movimento social regional, contribuindo para o fortalecimento institucional das entidades locais e populações tradicionais, possibilitando apoio para implementar ações de desenvolvimento local sustentável, seja na forma de projetos pilotos, seja na difusão de resultados, além de outras iniciativas de combate ao desmatamento da floresta amazônica. Para esse fortalecimento o fundo tem apoiado a estruturação de rádios comunitárias, a difusão de experiências agro-ambientais e de iniciativas de geração de renda (manejo florestal comunitário, acordos de pesca, criação de unidades de conservação, criação de abelhas, etc.), a estrutura para as organizações locais, oficinas e cursos de formação. Nessa perspectiva se ressalta a importância da estratégia de apoiar financeiramente a formação de redes em que essas organizações estão inseridas: a comunicação, a partir das rádios comunitárias; as mulheres, a partir de suas atividades de formação e iniciativas de geração de renda e controle social das políticas públicas; os jovens, filhos de agricultores, por meio das Casas Familiares Rurais (CFR), entre outros exemplos. São iniciativas que não estão isoladas em um único município, mas sim em sintonia com as demais organizações da região. Além disso, fazem parte do planejamento estratégico traçado pelas organizações regionais. Financiamento da Transição Agroecológica 67 O Fundo Dema, portanto, em sua ação, objetiva fortalecer o conjunto dessas iniciativas que constituem a proposta de desenvolvimento sustentável de base familiar na região. Decorrente disso, fortalece a resistência do movimento social regional aos grandes projetos, os quais formam uma ameaça crucial para a região, como a expansão da soja e/ou de qualquer monocultura de grande porte; a construção de hidrelétricas; a expansão da pecuária, da grilagem da terra e da extração ilegal dos recursos naturais; e todos os seus impactos colaterais, como conflitos fundiários, trabalho escravo, assassinatos, entre outros. De outro lado, práticas agroecológicas e florestais sustentáveis ganharão cada vez mais força nas prioridades do Fundo Dema como elementos estratégicos da ação dos movimentos da região, no combate ao desmatamento. e. Considerações finais: a punição exemplar para um crime socioambiental Até o ano 2002, aconteceram, na Amazônia, muitas apreensões de recursos naturais extraídos de forma ilegal, como madeira, animais silvestres, peixes, quelônios, entre outros. Tudo que era apreendido sempre acabava sob a responsabilidade dos próprios infratores, que ficavam como fiéis depositários. O leilão tornava-se uma forma de legalização do ilegal. Essa prática se dava na maioria dos casos com a conivência e participação dos órgãos de fiscalização. As denúncias da sociedade civil organizada quase nunca eram analisadas ou até mesmo divulgadas na grande imprensa. Acreditamos que a forma de denunciar e propor alternativa viável foram sem dúvida o diferencial do movimento social da Transamazônica e Xingu, que nesse caso demonstrou não só sua capacidade de propor algo novo, mas também de se colocar à disposição para implantar a proposta. Algo que foi apreendido como fruto de uma ação criminosa serviu para apoiar uma alternativa de desenvolvimento sustentável na região oeste paraense. Deu um exemplo claro de que o exercício da punição dos crimes ambientais precisa ter horizontes mais largos, ir além de multas, apreensões e prisões dos culpados. Isso deveria se tornar uma política pública, visando o fortalecimento do manejo sustentável comunitário dos recursos naturais da Amazônia. A estrutura democrática e participativa, formulada no regulamento do Fundo Dema, lhe permite abrir outras áreas prioritárias de atendimento, mantendo os objetivos estratégicos formulados e formando conselhos regionais correspondentes aos movimentos sociais existentes, que têm como garantia a gestão participativa. Nesse sentido, o seu capital de investimento permanente poderia ser reforçado com os resultados das punições socioambientais. Também elas poderiam ser perfeitamente investidas na 68 Financiamento da Transição Agroecológica fundação de outros fundos de caráter semelhante, em outras sub-regiões, na imensidão da região Amazônica, fortalecendo focos de desenvolvimento sustentável articulados entre si. 2.5. Cooperativa de Economia e Crédito Solidário de Araponga (EcosolAraponga) Sistematização: Sérgio da Silva Abrahão (CTA-ZM) a. Público Os participantes da experiência se identificaram como agricultores(as) familiares. Participaram 69 famílias, sendo 54 homens adultos, 39 mulheres adultas, 19 homens jovens e duas mulheres jovens. b. Localização da experiência Área geográfica: A experiência é desenvolvida no município de Araponga, região leste da Zona da Mata de Minas Gerais que se encontra no bioma da Mata Atlântica. c. Organizações que promovem a experiência Agência de Desenvolvimento Sustentável (ADS/MG): Criada pela Central Única dos Trabalhadores com o propósito de divulgar e incentivar o crédito solidário entre as diferentes classes de trabalhadores através da criação de cooperativas. A ADS promoveu vários cursos de cooperativismo para os agricultores e as agricultoras familiares em Araponga de forma a capacitá-los no gerenciamento de uma cooperativa de crédito, mostrando a vantagem na instalação da cooperativa na cidade. Associação Regional dos Trabalhadores Rurais da Zona da Mata e Associação dos Agricultores Familiares de Araponga/MG (AFA): Contribuem na divulgação da cooperativa nas comunidades junto a agricultores e agricultoras. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araponga: Além de auxiliar na divulgação, disponibiliza uma sala com mesas e cadeiras na sede do sindicato para a cooperativa funcionar. Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM): Assessora a cooperativa, principalmente nas questões de gestão institucional (assembléias, reuniões de planejamento, etc.). Financiamento da Transição Agroecológica 69 d. Objeto do financiamento Os financiamentos foram destinados à produção de café, milho, feijão, etc., em sistemas agroecológicos ou em transição para o agroecológico. São também usados para custeio de lavouras, comercialização e empréstimos individuais (utilizados para compra de equipamentos para a produção ou para a residência). Os recursos são próprios da cooperativa (adquiridos por meio da cota paga pelos filiados) e no vencimento dos empréstimos são retornados à cooperativa com os juros. e. Período da experiência A experiência começou em janeiro de 2005 e não tem prazo para término. O objetivo é ampliar os financiamentos para mais famílias que se interessarem em investir na transição agroecológica. f. Histórico A partir de algumas discussões que ocorreram em 2001, diversos trabalhadores e trabalhadoras rurais participaram de vários cursos de cooperativismo e de capacitação em gestão de cooperativas promovidos pela Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS). Esses trabalhadores e trabalhadoras rurais de Araponga fundaram em junho de 2003 a Cooperativa de Crédito da Agricultura Familiar Solidária de Araponga (Ecosol–Araponga), com o objetivo de administrar um fundo rotativo de conquista de terra em conjunto e por entender que os trabalhadores conseguem produzir. Percebeu-se que o que falta em muitos casos é o recurso para aplicar na lavoura e conseguir produzir para o sustento da família. Assim a cooperativa foi fundada, apreciada e aprovada pelo Banco Central do Brasil e pela junta comercial no início de 2004. Em novembro de 2004, a Ecosol-Araponga abriu as portas para a filiação de novos sócios, trabalhadores e trabalhadoras rurais. Em de maio de 2005 a cooperativa começou a financiar os associados. Primeiro trabalhamos com empréstimos de baixo valor. Em seguida foram criadas as linhas pró-insumo e pró-animal. Mais tarde criamos o pró-comércio. Essas linhas ajudaram muito e alguns agricultores compraram bezerro e vaca, outros usaram o recurso para comprar insumos para adubar e plantar na época certa sem precisar se desfazer do seu café estocado quando o preço estava baixo e assim esperar o produto melhorar de preço para comercializá-lo. Com a experiência adquirida em 2005, criaram-se novas linhas em 2006 para poder atender melhor o trabalhador e principalmente as trabalhadoras que vinham reivindicando linhas específicas. 70 Financiamento da Transição Agroecológica g. Gestão A Cooperativa é composta por uma diretoria formada por cinco pessoas e um conselho fiscal formado por seis pessoas, todos trabalhadores e trabalhadoras rurais associados(as). A diretoria se divide em um coordenador geral, um coordenador financeiro, um secretário geral e dois coordenadores conselheiros. O conselho fiscal se divide em três efetivos e três suplentes. O associado que reivindica o recurso se compromete a devolvê-lo no prazo estipulado num contrato que é assinado entre a cooperativa e o sócio. Primeiramente se faz uma avaliação do recurso disponível, depois são avaliados os pedidos de financiamento para então montar o projeto e liberar o recurso. Para acessar o recurso o trabalhador deve ser sócio da cooperativa há pelo menos dois meses e estar em dia com as obrigações com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araponga. As regras para acessar o recurso são definidas nas assembléias com os sócios e, com base no que é decidido, são lançadas as linhas (por exemplo, pro-insumos, pro-animais, pessoal, etc.). Cada linha possui datas e prazos diferenciados de vencimentos, sendo que o prazo de vencimento deve ser respeitado para não se pagar multas por atraso. A Ecosol-Araponga até o momento não teve nenhum contrato não honrado pelos tomadores. Alguns dos empréstimos são de 150 dias com 90 de carência, outros com 180 dias e 120 dias de carência. Há outros com prazos menores e, nesses casos, o associado e a cooperativa verificam o melhor que se encaixa para a situação do cooperado no momento. h. Avaliação Foi muito positiva, já que os financiamentos são destinados para culturas que respeitam o meio ambiente. O acesso ao recurso é facilitado, tendo prazos de pagamento que estão adequados ao período de plantio e colheita dos principais produtos no município. A cooperativa sempre orienta os agricultores na aplicação dos recursos de forma que possam obter com a produção o suficiente para pagar o financiamento e ainda retorno para a família. Financiamento da Transição Agroecológica 71 i. Políticas públicas O governo deu um grande incentivo à criação de novas cooperativas com o propósito de ampliar o crédito aos setores produtivos. Esse incentivo foi decisivo para criação da Ecosol-Araponga e de muitas outras cooperativas de crédito. Os trabalhadores rurais devem procurar aproveitar a chance para criar novas formas de financiamento da sua produção, sendo as cooperativas de crédito uma ótima alternativa, já que são os próprios agricultores que vão administrá-las. j. Propostas Facilitar a criação de novas cooperativas de crédito, já que a grande burocracia ainda emperra e inibe o surgimento de novas cooperativas em todo o Brasil. O governo deve dar condições às cooperativas para trabalharem com recursos governamentais, já que elas estão mais próximas dos agricultores e, dessa forma, podem investir melhor os recursos. 1 Articulação criada pelos movimentos sociais do Oeste do Pará nos anos 1990. Ministério de Meio Ambiente 3 Articulação de movimentos na área da Transamazônica e Xingu. 4 Forma organizativa da Igreja Católica. 5 ONG nacional de educação e desenvolvimento com 40 anos de atuação na Amazônia. 6 Somente a madeira foi doada, os restantes dos equipamentos foram devolvidos para os madeireiros. 2 72 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 5 Subgrupo de trabalho sobre compra antecipada (CONAB) Coordenador: Emanuel Dias do Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac) 1. Relatório 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. Merenda Escolar – Pólo da Borborema (Paraíba) 2.2. Banco de Sementes Comunitário – AS-PTA (Paraíba) 1. Relatório do Subgrupo Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (Caeaf)Caeaf – PAA/Conab Relatora: Vanúbia Martins Participantes: 21 1.1. Funcionamento do PAA O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi criado pela Lei 10.696 de 2 de julho de 2003, como parte integrante das políticas de segurança alimentar e combate à fome desenvolvidas pelo Governo Lula, por meio da estratégia Fome Zero. A lei que criou o PAA tornou possível a aquisição de alimentos produzidos por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais, acampados da reforma agrária, atingidos Financiamento da Transição Agroecológica 73 por barragens e comunidades indígenas, nas diferentes regiões do país, pelo Governo Federal através de procedimentos simplificados. Os produtos comprados pelo governo são distribuídos a programas sociais de caráter governamental ou não-governamental, ou destinados à formação de estoques públicos, sendo posteriormente repassados a bancos de alimentos, doados a instituições assistenciais, distribuídos como cestas de alimentos a grupos sociais em situação de risco alimentar ou vendidos a pequenos criadores e pequenas agroindústrias. O excedente, que não tem encaminhamento social, é comercializado pelo governo por meio de leilões públicos. O PAA tem por objetivos: • fortalecer a agricultura familiar, garantindo renda e sustentação de preços aos agricultores; • promover a inclusão social no campo; • fortalecer a segurança alimentar e nutricional das populações urbanas e rurais; • propiciar a formação de estoques públicos de alimentos; • incentivar o associativismo e o cooperativismo; • reforçar a estruturação de circuitos locais e regionais de abastecimento; e • incentivar o manejo agroecológico dos sistemas produtivos e o resgate e preservação da biodiversidade1. O acompanhamento das ações do programa fica sob a responsabilidade de um grupo gestor, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e integrado por representantes de cinco diferentes ministérios: Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) – representado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) –, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), Ministério da Fazenda (MF) e do próprio MDS. As normas que regulamentam o PAA estabelecem um valor máximo de acesso ao programa de R$ 3.500,00 ao ano por família, devendo os agricultores estar enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). As aquisições podem ser feitas através de diferentes mecanismos. Encontram-se atualmente em vigor: a Compra Direta da Agricultura Familiar, a Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (CPR Doação), a Formação de Estoque pela Agricultura Familiar (CPR Estoque), a Compra Direta Local da Agri- 74 Financiamento da Transição Agroecológica cultura Familiar e o Programa de Incentivo à Produção e ao Consumo do Leite. Os três primeiros instrumentos são operacionalizados pela Conab em relação direta com os agricultores familiares e suas organizações. Já os dois últimos são operados pelo MDS por meio de convênios com os governos estaduais e municipais. O quadro a seguir apresenta uma síntese desses mecanismos hoje em operação. Quadro 1. Mecanismos do PAA em operação Mecanismo Descrição Compra Direta da Agricultura Familiar Operacionalizado pela Conab, esse mecanismo possibilita aos agricultores a venda de alimentos para o Estado na época da colheita. Os produtos são comercializados a preços de referência (situados em uma faixa intermediária entre o preço mínimo e o preço de mercado), cujo cálculo é feito por uma metodologia desenvolvida pela Conab. Os produtos amparados por esse instrumento (arroz, castanha de cajú, castanha do Brasil, farinha de mandioca, feijão, milho, sorgo, leite em pó integral e farinha de trigo) destinam-se à formação de estoques governamentais e podem ser vendidos ao governo tanto por agricultores individuais como por grupos formais. Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (CPR Doação) Destina-se à aquisição de diferentes produtos alimentícios oriundos da agricultura familiar, visando à formação de estoques ou à doação simultânea a populações em situação de risco alimentar atendidas por programas sociais de caráter governamental ou não-governamental. Para acessar esse mecanismo, operacionalizado pela Conab, os agricultores precisam estar organizados em grupos formais (associações e cooperativas). Nos casos de doação simultânea, a entrega dos produtos deverá obedecer a um cronograma apresentado pelas organizações envolvidas no projeto através da Proposta de Participação. O controle social dessas doações se dá pelo envolvimento do Conselho de Segurança Alimentar (municipal ou estadual) ou organismo similar. Formação de Estoque pela Agricultura Familiar (CPR Estoque) Tem por objetivo a compra pelo governo de produtos oriundos da agricultura familiar visando à formação de estoques pelas próprias organizações dos agricultores. A CPR Estoque é operacionalizada por meio de associações, cooperativas, agroindústrias Financiamento da Transição Agroecológica 75 Quadro 1. Continuação familiares, condomínios e consórcios, exigindo-se comprovação de que o produto é de produção própria ou foi adquirido de agricultores familiares por preço igual ou maior ao valor definido pelo Grupo Gestor do PAA ou acordado entre a Conab e a organização na Proposta de Participação. A operação deverá ser liquidada financeiramente mediante o pagamento do valor recebido acrescido de encargos de 3% ao ano. Se o Governo Federal tiver interesse na compra do produto, o pagamento também poderá ser feito por meio da entrega da produção. Compra Direta Local da Agricultura Familiar Visa a promover a articulação entre a produção familiar e as demandas locais de suplementação alimentar e nutricional dos programas sociais, viabilizando a aquisição de produtos comercializados por associações, cooperativas e grupos informais de agricultores, a serem distribuídos em creches, hospitais, restaurantes populares, entidades beneficentes e assistenciais. Esse mecanismo é bastante semelhante à CPR Doação, mas é operacionalizado pelo MDS através de convênios com governos estaduais ou municipais e não diretamente com as organizações da agricultura familiar. Incentivo à Produção e ao Consumo do Leite Busca assegurar o consumo de leite a gestantes, crianças, nutrizes e idosos pela aquisição da produção leiteira de agricultores familiares com produção média diária de até 100 litros de leite, com prioridade para os que produzam até 30 litros de leite por dia. O mecanismo é operacionalizado pelo MDS através de convênios com os governos estaduais. Atualmente o programa atende os nove estados do Nordeste, assim como Minas Gerais, nas regiões Norte, Vale do Jequitinhonha e Mucuri. O instrumento denominado Compra Antecipada da Agricultura Familiar, implementado em 2003 e durante o primeiro semestre de 2004, principalmente junto aos assentados da reforma agrária, encontra-se suspenso por determinação do Grupo Gestor do PAA. Esse mecanismo permitia ao governo comprar antecipadamente a produção dos agricultores, ainda na época do plantio, possibilitando aos mesmos adquirirem os insumos necessários para a implantação de suas lavouras, ou seja, financiando sua produção, não através do crédito, mas por meio de um instrumento específico de apoio à comercialização. No entan- 76 Financiamento da Transição Agroecológica to, em função de uma série de problemas relacionados a ocorrências climáticas, a dificuldades enfrentadas pelos diferentes órgãos governamentais envolvidos na operacionalização do mecanismo e à própria situação de vida nos assentamentos de reforma agrária, muitos agricultores não saldaram seus compromissos com o programa, o que levou o Grupo Gestor do PAA a interromper sua execução. Atualmente, o PAA funciona com recursos provenientes do MDA e do MDS, que é o órgão responsável pela maioria das ações do Fome Zero, do qual faz parte o PAA. Os recursos oriundos do MDS podem ser utilizados para a operacionalização de todos os mecanismos do programa. Já os recursos provenientes do MDA são destinados apenas à operacionalização da Compra Direta e Formação de Estoque pela Agricultura Familiar, pois precisam necessariamente retornar aos cofres da União. Dessa forma, as ações do PAA são viabilizadas pelo MDS, em convênio com governos estaduais, municipais e com a Conab, e pelo MDA, em convênio com a Conab. No âmbito do PAA foram desenvolvidas, também, algumas ferramentas de apoio ao uso sustentável da agrobiodiversidade agrícola e alimentar e à incorporação de práticas de agricultura orgânica ou agroecológica pelos produtores familiares. Alimentos oriundos do agroextrativismo, como a castanha do Brasil e a castanha do baru, são adquiridos pelo PAA a preços de referência. Produtos orgânicos ou agroecológicos comercializados através do programa recebem um incentivo de preço de até 30%. Sementes de variedades locais, tradicionais ou crioulas, produzidas por agricultores familiares, são compradas por meio do mercado institucional e distribuídas a populações rurais em situação de insegurança alimentar, como forma de resgatar a produção para auto-consumo e estimular a atividade produtiva. 1.2. Principais dificuldades enfrentadas pelos agricultores e suas organizações no acesso ao PAA As principais dificuldades apontadas pelos agricultores familiares e suas organizações no acesso ao PAA, particularmente no que se refere ao mecanismo de Compra Antecipada da Agricultura Familiar, mas também, em alguma medida, em relação aos demais mecanismos do programa, foram: • desinformação por parte dos órgãos operadores e entidades apoiadoras do programa (bancos, Conab, entidades de assistência técnica); • falta de agilidade na operacionalização do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro); Financiamento da Transição Agroecológica 77 • plantio fora da época recomendada; • secas no Sul e Sudeste e chuva em excesso no Norte e Nordeste (safra 2003 e 2004); • orientação política para o não pagamento; • volume produzido insuficiente, permitindo apenas o auto-consumo das famílias; • falta de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (Ates); • atrasos na liberação dos recursos; • falta de capacitação e divulgação da proposta; • falta de apoio político estadual e local; • falta de estrutura da Conab; • falta de cultura na Conab para operacionalizar o programa; • o fato de a proposta ser uma ação de governo e não um programa de governo, e tampouco ser uma política pública de Estado; • falta de organização social; • o fato de a proposta ter sido encaminhada como substituta ao Pronaf A; • falta de logística para operacionalizar a proposta nas comunidades. 1.3. Potencialidades As principais potencialidades identificadas em relação ao PAA foram: • o programa ter proporcionado o reconhecimento público das sementes crioulas; • o apoio do programa ter tornado possível aumentar o volume produzido, o número de bancos de sementes e o número de famílias envolvidas; • o programa ter proporcionado crédito a famílias excluídas do Pronaf; • o fortalecimento também da segurança alimentar das famílias beneficiadas (agricultores, principalmente). 1.4. Propostas Foram levantadas, também, algumas proposta em relação ao programa: • vincular o Pronaf à garantia de comercialização – doação e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com acompanhamento técnico; 78 Financiamento da Transição Agroecológica • transformar PAA em política de Estado, com os incrementos necessários para tal; • manter o mecanismo de Compra Antecipada da Agricultura Familiar para segmentos especiais (ribeirinhos, quilombolas, indígenas, recém-assentados); • parcelamento das dívidas dos agricultores referentes ao pagamento das operações de Compra Antecipada em quatro anos, permitindo o pagamento em dinheiro ou mediante a entrega de qualquer produto; • produção de materiais de divulgação e capacitação. 2. Resumo das experiências apresentadas 2.1. Complemento da merenda escolar com produtos agroecológicos por meio do PAA/Conab: a experiência do Pólo Sindical da Borborema Sistematização: Pablo Renato Sidersky Localização Esta experiência, em andamento, envolve sete escolas e cinco creches, nos municípios de Lagoa Seca, Queimadas e Soledade, localizados na região do Agreste da Borborema, na Paraíba. A gestação da experiência No ano de 2004, três pessoas dos municípios mencionados visitaram a cidade de Constantina (RS), onde conheceram a experiência de complementação da merenda escolar com compra de produtos da agricultura familiar por parte daquela prefeitura. Essa iniciativa tinha o apoio do PAA da Conab. Na sua busca de instrumentos para fortalecer a agricultura familiar na região, o Pólo da Borborema tem se interessado pela criação de novas oportunidades de mercado para os seus produtos. A visita a Constantina mostrou o potencial da merenda escolar nesse sentido. Ao mesmo tempo, permitiu ver que havia uma segunda vantagem: a garantia de que as crianças das escolas tivessem uma alimentação de melhor qualidade, com produtos da culinária regional. Assim, o Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema tomou a iniciativa de formular uma proposta à Conab, por meio do mecanismo de Compra Antecipada Especial da Agricultura Familiar (Caeaf), com doação simultânea, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Financiamento da Transição Agroecológica 79 Objetivos e público A proposta busca fornecer um complemento de produtos agroecológicos regionais, produzidos localmente, para a merenda escolar de oito escolas e cinco creches dos municípios de Lagoa Seca, Queimadas e Soledade. Com isso, espera-se melhorar a nutrição das crianças das escolas atendidas, além de prover uma fonte de renda para as famílias fornecedoras. Paralelamente, a iniciativa busca valorizar os alimentos regionais, estimular a produção agroecológica local e conscientizar os alunos e seus pais acerca da importância de uma produção agroecológica e de uma alimentação mais saudável. A experiência envolve dois públicos. Por um lado, 31 agricultores e agricultoras familiares (17 homens e 14 mulheres) dos três municípios mencionados fornecem mais de 50 produtos agroecológicos1 para as escolas e creches. Por outro lado, no seu formato original, a iniciativa devia beneficiar mais de 1.400 crianças empobrecidas em situação de insegurança alimentar de oito escolas e cinco creches nos três municípios mencionados. No entanto, com as dificuldades encontradas na implementação, esses números foram ajustados para cinco escolas e quatro creches, num total de 970 crianças. Organizações participantes Além do Pólo acima mencionado, estão envolvidos na montagem e operacionalização os Sindicatos de Trabalhadores(as) Rurais (STRs) e as prefeituras dos municípios de Lagoa Seca, Queimadas e Soledade, além das ONGs Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac) e AS-PTA. Cada um desses parceiros tem funções, como podemos ver na tabela a seguir. 80 Financiamento da Transição Agroecológica Quadro 2. As responsabilidades das diversas entidades participantes Instituições Responsabilidades Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema • Gerenciar o programa (gerir os recursos financeiros, preparar a prestação de contas, etc) • Acompanhar a implementação • Organizar o planejamento e a avaliação da iniciativa Prefeituras de Lagoa Seca, Queimadas e Soledade • Fazer a formação dos(as) agricultores(as) envolvidos(as) • Garantir o transporte das mercadorias • Formação e acompanhamento nutricional dos alunos STRs de Lagoa Seca, Queimadas e Soledade Patac e AS-PTA • Organizar as famílias fornecedoras • Apoiar a formação dessas famílias e a distribuição dos alimentos Apoiar a produção agroecológica dos alimentos e fornecer atestado comprovando que os produtos distribuídos foram produzidos com base nos princípios da agroecologia Funcionamento A proposta original apresenta a lista dos(as) agricultores(as) fornecedores(as) e também determina quais os produtos que cada um deverá fornecer. Além disso, define as quantidades de cada produto a serem entregues, o preço e o período durante o qual isso deverá ser feito. O Pólo e as prefeituras ficam encarregados de organizar a entrega dos produtos. Em cada município foi formada uma comissão para acompanhar o andamento do projeto. Cada entrega deve gerar documentos que atestem a própria entrega e a qualidade dos produtos. Esses documentos são consolidados num relatório periódico para a Conab, que deposita o montante total dos recursos (R$ 64.600,00) numa conta especial, em nome do Pólo. Mas o dinheiro só pode ser sacado após uma ordem específica da Conab, depois do Pólo fazer uma prestação de contas periódica, como foi anteriormente mencionado. Paralelamente, o Pólo e os STRs têm organizado reuniões e eventos de formação com os(as) agricultores(as). No caso de Lagoa Seca, também foram organizados momentos de capacitação com as merendeiras das escolas e creches. Financiamento da Transição Agroecológica 81 Resultados e desafios Essa experiência é muito recente: começou a funcionar no segundo semestre de 2005, tendo completado apenas o primeiro ano. A implementação tem encontrado problemas. Na prática, a iniciativa está funcionando bem somente em Lagoa Seca. Em Queimadas e Soledade “a coisa está devagar”, conforme indicou um entrevistado. Uma das razões apontadas para isso é a questão dos preços. Acontece que os preços foram definidos no momento em que foi elaborada a proposta. Aparentemente, a Conab não aceita alterações nesse quesito. E, atualmente, os preços de mercado de alguns produtos estão bem acima daquilo que consta na proposta original. Pelo menos essa tem sido a justificativa colocada pelas organizações de Soledade para não estarem utilizando os recursos disponíveis1. Por outro lado, conforme já foi dito, a implementação da proposta requer um esforço significativo de acompanhamento, o que nem sempre tem sido possível. Outra possível razão é que a operacionalização dessa iniciativa requer uma contrapartida importante por parte das organizações parceiras. Em Lagoa Seca, por exemplo, a Secretaria de Agricultura Municipal tem colocado uma pessoa exclusivamente para cuidar dessa iniciativa. O STR também faz a sua parte. Já os outros municípios têm tido dificuldades nesse ponto. Um resultado bastante importante tem sido a possibilidade de que as crianças das escolas beneficiadas passem a consumir mais produtos regionais, produzidos localmente. Em alguns casos, as crianças consomem os produtos de seus próprios pais. Isso representa uma valorização da qualidade do alimento, mas também da regionalidade do produto. Vale lembrar que muitas vezes a merenda escolar tem servido refrigerante, salsicha e outros produtos de baixo valor nutritivo. Por outro lado, como o valor da merenda escolar oferecida pela prefeitura é muito baixo (R$ 0,22 por criança por dia), esse complemento dado pelo programa representa muitas vezes uma melhoria no lanche dos alunos. Para algumas das famílias fornecedoras de Lagoa Seca, esse mercado está tendo um retorno concreto. Por exemplo, a família que fornece as polpas de frutas decidiu tirar um crédito pelo Pronaf para se estruturar melhor e comprou um freezer e outros equipamentos. O mercado garantido pela iniciativa foi fundamental para isso. No entanto, esse mercado novo ainda não tem sido determinante para incorporar novas famílias na produção e comercialização agroecológica. Sempre tomando o exemplo de Lagoa Seca, das dez famílias envolvidas, oito já participavam da feira agroecológica existente e as duas restantes fazem parte de outros espaços de comercialização criados recentemente. Segundo o membro do Pólo que acompanha 82 Financiamento da Transição Agroecológica a iniciativa, há uma possibilidade de expandir o trabalho em Lagoa Seca para outras escolas, o que implicaria a entrada de novos fornecedores. Mas nos outros dois municípios a perspectiva não é tão promissora. Onde a proposta funciona melhor, as organizações participantes destacam a importância dessa experiência no que diz respeito à conscientização de grupos que, até então, não tinham sido atingidos. Um deles é o público das escolas. Esse projeto tem possibilitado levar a discussão sobre uma agricultura agroecológica local para alunos, pais de alunos e funcionários (auxiliares de serviço, merendeiras, professoras e diretoras) das escolas envolvidas. É claro que esse universo é ainda pequeno (em Lagoa Seca a iniciativa atinge três das 23 escolas existentes no município), mas considera-se que é um começo promissor. Ao mesmo tempo, o STR tem discutido a proposta nas reuniões regulares em sua sede e nas comunidades. Outro desafio é introduzir essa prática de comprar produtos locais de qualidade no funcionamento da merenda escolar convencional, já que a iniciativa da Conab é apenas um complemento. Sabe-se que existem dificuldades relevantes, já que para usar os recursos convencionais a licitação é obrigatória. E para a agricultura familiar local, isso é uma barreira difícil de ultrapassar. Finalmente cabe mencionar aqui um fato interessante. Tudo indica que os recursos do programa da Conab podem ser usados para financiar a produção estipulada. Ou seja, nessa modalidade é possível o pagamento adiantado dos produtos. O Pólo, porém, decidiu que isso não seria uma boa alternativa e nem se cogitou colocá-la em prática, uma vez que avaliou-se que seria muito arriscado. 2.2. Fortalecimento dos Bancos de Sementes Comunitários (BSCs) da Paraíba com apoio da Conab Sistematização: Pablo Renato Sidersky Localização e contexto da experiência A Rede de Bancos de Sementes Comunitários contava, no início de 2006, com 228 comunidades em 61 municípios, em praticamente todas as regiões do estado da Paraíba (para mais detalhes ver quadro em anexo). A área onde a Articulação do Semi-árido Paraibano (ASA-PB) atua é parte da região do Semi-Árido nordestino, domínio do bioma caatinga. A própria denominação de Semi-Árido põe em relevo os aspectos climáticos, dentre os quais destaca-se a pluviometria. No Semi-Árido paraibano, as chuvas variam entre 300 e 800 mm por ano, em média, mas caracterizam-se sobretudo por uma extrema variabilidade no tempo (volume, freqüência das chuvas, data de Financiamento da Transição Agroecológica 83 inicio, duração dos invernos) e no espaço (é bastante comum haver chuvas muito localizadas), sendo freqüentes as secas prolongadas. Os sistemas agropecuários familiares da região têm como base o policultivo (cultivos alimentares, comerciais e forrageiros) e a criação animal. Também fazem uso de plantas nativas. A estratégia técnica desses sistemas apóia-se na manutenção e no uso da biodiversidade, assim como na constituição de estoques de recursos (de água, sementes, forragem, alimentos) como forma de enfrentar os desafios colocados pelo Semi-Árido. Caracterização da experiência O problema a ser enfrentado Para o agricultor paraibano, o estoque familiar de sementes é crucial para a renovação do ciclo anual de plantio. Normalmente esse estoque é constituído a partir da produção agrícola do ano anterior. Em geral ele é composto de sementes de variedades locais, preferidas dos agricultores – as chamadas sementes da paixão. Às vezes ele é renovado e/ou expandido por meio da troca, da doação de parentes e amigos ou da compra de sementes junto a outros agricultores. O intercâmbio de materiais e de informação sobre essas sementes é outro elemento tradicional do sistema. Mas, não raro, esse estoque familiar fica reduzido a zero. O limitado tamanho das áreas plantadas e, sobretudo, a instabilidade climática (a ocorrência de invernos irregulares e/ou secas) fazem com que as colheitas fiquem comprometidas. E assim, quando a colheita é nula ou muito pequena, a família não consegue reconstituir o seu estoque de sementes. Resultado: no ano seguinte, quando chega a hora de plantar, fica numa situação crítica. Quais são as alternativas possíveis nesse caso? Às vezes, um empréstimo ou doação familiar ou de vizinhos pode aliviar a situação, mas não resolve. Os órgãos de governo, por sua vez, raramente têm a agilidade necessária para prestar socorro, além de existir o problema do uso politiqueiro dessa semente quando ela aparece. Por outro lado, quando acontecem, as iniciativas governamentais nesse campo trabalham normalmente com poucas variedades de sementes de fora2. Outra opção para a família é a compra, feita então numa condição muito desfavorável, já que o momento do plantio é justamente quando o preço do milho ou do feijão atinge o nível máximo3. Quem não consegue obter semente por meio desses mecanismos pode terminar tendo que recorrer ao sistema de semente de meia, pelo qual o agricultor obtém semente emprestada com alguém que a possa comprar, ficando com o compromisso de pagar com a metade da colheita. 84 Financiamento da Transição Agroecológica Os Bancos de Sementes Comunitários (BSCs) surgem como forma de enfrentar esses problemas. Funcionam como um instrumento que possibilita a reconstituição do estoque familiar de sementes, quando este falha, tendo também um papel na conservação da biodiversidade agrícola. Neste documento enfocaremos mais a primeira dessas funções. O BSC como estoque de reserva O BSC surge como uma alternativa para quem precisa de sementes para plantar4. Trata-se de um mecanismo através do qual uma família toma emprestada uma quantidade de sementes do estoque do banco que, em geral, é constituído a partir de uma doação externa5 feita à comunidade. A família se compromete a pagar, no momento da colheita, a mesma quantidade acrescida de uma percentagem, segundo regras definidas na própria comunidade. Assim, o BSC funciona como um crédito de custeio, fornecendo um insumo crucial para a família, para pagamento posterior. A estocagem, a entrega e a devolução da semente são todas feitas na comunidade, sob a responsabilidade da associação ou de um grupo designado para tal. Esse grupo é responsável por guardar a semente devolvida nos silos, buscando armazenar o estoque em boas condições, para que possa ser usado novamente no ano seguinte. Mas nem sempre é possível reconstituir o estoque do BSC. Às vezes isso é resultado da falta de organização, embora em geral o principal motivo seja o clima. A ocorrência de veranicos pode ter um impacto importante nesse ou naquele banco. Quando vem uma seca, a quebradeira passa a ser praticamente geral. A tabela a seguir, que apresenta dados referidos aos municípios de Solânea, Remígio e Lagoa Seca para o período entre 1995 e 1999, ilustra o que acabamos de dizer. Note-se que os anos de 1998 e 1999 foram anos de seca intensa em toda a Paraíba. Diante desse quadro, foi necessário buscar formas de realimentar os BSCs exauridos. Financiamento da Transição Agroecológica 85 Tabela 1. Resultados dos BSC em três municípios do Agreste paraibano 1995 1996 1997 1998 1999 17 17 17 16 25 Kg de sementes distribuídas 9.800 9.761 6.633 4.593 7.941 Kg de sementes devolvidas aos BSCs 11.511 7.279 8.723 1.394 4.233 Variação do estoque (em %) 17,5 (25,4)* 31,5 (69,7)* (46,7)* Nº de famílias que receberam sementes 530 416 276 143 467 Nº de famílias que devolveram sementes 441 276 266 24 258 % de famílias que devolveram sementes 83 66 96 17 55 Indicador Nº de BSCs Fonte: AS-PTA. * Os números que aparecem entre parênteses são negativos. A busca de apoio para os BSCs No início de 1999, os agricultores em todo estado da Paraíba estavam numa situação difícil, com os seus estoques de sementes praticamente vazios. O próprio governo estadual demonstrou preocupação e montou um programa de distribuição de sementes1. Como os BSCs estavam também em situação crítica, em lugar de buscar sementes junto a outras fontes, a Rede de Sementes da ASA-PB (veja quadro ao lado) optou por questionar a política proposta pelo governo do estado. O objetivo era fazer com que essa política contemplasse a rede estadual de BSCs. Depois de uma série de iniciativas que culminaram uma negociação com a Secretaria de Agricultura (Saia), a ASA conseguiu que 85 toneladas de sementes2 fossem destinadas ao fortalecimento de 130 BSCs das regiões do agreste e do litoral3. Ainda que essa ação tenha servido para reabastecer alguns dos BSCs, a ASA-PB buscou aprimorar a proposta. É formulado, então, um documento intitulado “Programa Especial de Fortalecimento e Ampliação dos BSCs da Paraíba”. A diferença entre essa idéia e a iniciativa de 1999 está principalmente na reivindicação de que o apoio aos BSCs deveria ser também uma política que favorecesse a diversidade. No entanto, o programa de reforço aos BSCs forneceu mais 85 toneladas de sementes nas mesmas condições do ano anterior. Foi somente em 2001 que se conseguiu que a Saia aceitasse fazer o repasse de 50% dos recursos do programa de fortalecimento dos BSCs para que fossem 86 Financiamento da Transição Agroecológica compradas sementes dos agricultores. Nesse ano foram compradas dos agricultores 66 toneladas de sementes da paixão, que foram repassadas para 220 BSCs nas diversas regiões do estado. O papel da Conab Com a chegada do Governo Lula, a ASA-PB lança o debate sobre o papel dos BSCs na segurança alimentar. Com base nisso, elabora-se uma proposta para a Conab, já em 2003. Foi assim que foi feita uma solicitação ao Programa de Compra Direta, parte do PAA. Nesse caso, a própria Conab foi com um caminhão aos diferentes locais (em 26 municípios diferentes) para fazer a compra, diretamente, na época da safra. Dessa maneira, foram compradas cerca de 80 toneladas de milho, feijão, fava, gergelim, arroz, amendoim. Em seguida, os produtos assim comprados foram estocados nos armazéns da Conab, para depois serem redistribuídos como doações para os BSCs na época do plantio (no caso, no início de 2004). A Rede de Sementes da ASA-PB A base da rede são os Bancos de Sementes Comunitários (BSCs) geridos pelas comunidades. Geralmente o STR e/ou a paróquia tem um papel de apoio e articulação dos BSCs no município. Em praticamente todas as regiões existe uma forma de organização, como a Rede de Sementes do Alto Sertão, que coordena e implementa iniciativas de apoio aos municípios. Essas atividades incluem o levantamento de necessidades, a distribuição de sementes, quando isso é necessário, e a organização de encontros, cursos, visitas, etc. No âmbito estadual existe, desde 1995, a Comissão de Sementes da ASA-PB, que tem como função coordenar as iniciativas locais e organizar atividades e eventos estaduais. É também essa comissão que organiza e negocia as propostas de parceria com diferentes instituições – o governo estadual, a Conab, os órgãos de pesquisa, etc. O conjunto da Rede Estadual integra, além dos BSCs e STRs, várias ONGs (Cepfs, Pracasa, AS-PTA, Patac, Sedup, etc.) e organizações regionais (tais como o Pólo Sindical da Borborema, a Caaasp, o Coletivo do Médio Sertão, CPT de Campina Grande, do Alto Sertão e de Guarabira, etc.). Esse conjunto faz parte da ASA-PB. Financiamento da Transição Agroecológica 87 Contudo, essa experiência também enfrentou dificuldades: uma delas foi o preço pago pelos produtos. A ASA foi obrigada a fazer um projeto emergencial, com o qual conseguiu com o governo do estado uma verba adicional para pagar a diferença entre o preço da Conab e o preço do mercado do momento. Também avaliou-se que o processo todo era complicado, sobretudo porque a compra, a estocagem em armazéns da Conab e a posterior redistribuição tornavam o processo custoso. Em 2004, formulou-se uma segunda proposta, através do programa Compra e Doação Simultânea de Produtos, outra parte do PAA. Isso permitiu tornar o processo bem mais ágil. Por meio desse mecanismo, uma entidade proponente é quem se responsabiliza pelo conjunto das operações de compra, estocagem e re-distribuição, com dinheiro da Conab. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) do estado é solicitado para dar o seu aval na hora da apresentação da proposta. Tabela 2. Mecanismos da Conab e valores envolvidos para compra de sementes Ano 2003/04 Mecanismo da Conab Valor Quantidade de N0 de famílias utilizado (em R$) sementes com- fornecedoras pradas Compra direta 80.000,00* 80.660 kg 50 (aproximadamente) 2004/05 Compra com doação simultânea 16.735,00 12.797 kg 11 2005/06 Compra com doação simultânea 22.003,00 19.260 kg 13 * Valor estimado, já que a compra foi feita diretamente pela Conab. 88 Financiamento da Transição Agroecológica Resultados, impactos e desafios Abrangência do trabalho Embora o trabalho tenha começado em 1995, só existem dados a partir de 1998. A tabela a seguir nos permite acompanhar o crescimento desse trabalho. Tabela 3. Abrangência da Rede de Bancos de Sementes Comunitários da ASA-PB Ano N0 de BSCs N0 de famílias Estoque de sementes N0 de municípios N0 de silos 1998/99 62 1.860 15.000 kg --- --- 1999/00 129 3.838 66.419 kg --- --- 2001/02 --- --- --- --- --- 2002/03 175 7.441 77.900 kg 51 --- 2003/04 205 7.170 127.907 kg 60 437 2004/05 207 7.145 161.960 kg 56 344 2005/06 228 6.560 39.592 kg** 61 476 - Sem informação * Estoque total de sementes disponível nos BSCs antes do plantio (levantamento feito nos últimos meses do ano). ** O levantamento de 2005/06 foi feito em março, quando o plantio já tinha sido realizado em diversas regiões do estado. Cabe comentar o momento vivido pela rede entre 2001 e 2003. No ano 2000, houve uma expansão dramática do número de BSCs, muito ligada a um aporte de sementes conseguido num convênio com o governo estadual. Porém, muitos desses bancos novatos, criados às pressas, não conseguiram se firmar. A partir de 2003, no entanto, o crescimento voltou a ser mais comedido, ainda que mais sólido. Isso aparece quando se analisa a evolução da necessidade de aquisição de sementes para o reforço dos BSCs nos últimos três anos. Na tabela a seguir podemos observar que, enquanto entre 2003 e 2004 o reforço da Conab foi distribuído a praticamente todas as famílias atendidas pelos BSCs (99,6%), nos anos seguintes a proporção caiu significativamente. Financiamento da Transição Agroecológica 89 Tabela 4. Comparação das famílias atendidas pela Conab e pelos BSCs Ano A (Nº de famílias atendidas pelo programa da Conab) B (Nº de famílias atendidas pelos BSCs A/B 2003/04 7.145 7.170 99,6% 2004/05 3.224 7.145 45,1% 2005/06 2.400 6.560 36,6% O reconhecimento da Agricultura Familiar (AF) Entretanto, é muito importante destacar que essa iniciativa representa o reconhecimento das sementes dos agricultores – as sementes da paixão – e, conseqüentemente, reconhece os agricultores como produtores de sementes. As iniciativas feitas com apoio da Conab permitiram a compra de sementes de cerca de 50 famílias. Destaque-se ainda que a Conab só pôde proceder dessa forma porque houve uma mudança na legislação. Anteriormente os programas governamentais não podiam destinar recursos para a compra de sementes crioulas. Mas, com a revisão da Lei de Sementes em 2003 (regulamentada em 2004), foi possível reconhecer a semente de cultivar local, ou tradicional, ou crioula e, ao mesmo tempo, fazer com que não fosse mais necessário que ela seja registrada no Registro Nacional de Cultivares (RNC). Assim, os produtores dessas sementes não precisam de registro para produzi-las. Com essas modificações, os programas governamentais não podem mais usar a legislação como motivo para não incluir as sementes crioulas. Alguns desafios Embora possa parecer simples à primeira vista, no detalhe a operação das iniciativas Conab é bastante complexa. Envolve, por exemplo, a identificação de cada um dos agricultores fornecedores das sementes. Cada um precisa tirar a sua Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). A compra precisa de nota fiscal. Também é necessário especificar o BSC que receberá a doação, além identificar individualmente cada uma das famílias beneficiárias (inclusive com o CPF). As entidades proponentes é que garantem toda a operacionalização, o que inclui o transporte, além da estocagem feita em bancos mãe em diferentes regiões. Esse trabalho requer recursos humanos e financeiros consideráveis. Portanto, a questão que fica é: como simplificar a operacionalização desses programas? 90 Financiamento da Transição Agroecológica Anexo Região Municípios Alto Sertão Aguiar, Aparecida, Bonito de Santa Fé, Igaracy, Brejo dos Santos, Cachoeira dos Índios, Cajazeiras, Catolé do Rocha, Coremas, Diamante, Itaporanga, Jericó, Lagoa, Marizópolis, Mato Grosso, Paulista, Pedra Lavrada, Poço Dantas, Poço José de Moura, Pombal, Riacho dos Cavalos, Santa Cruz, S. Domingos de Pombal, S. José da Lagoa Tapada, S. José de Piranhas, Triunfo, Uiraúna, Vieirópolis Cacimbas, Desterro, Maturéia, Princesa Isabel, Santana dos Garrotes, Tavares, Teixeira Médio Sertão Municípios envlvidos Aguiar, Aparecida, Bonito de Sta. Fé, Igaracy, Brejo dos Santos, Cachoeira dos Índios, Cajazeiras, Catolé do Rocha, Coremas, Diamante, Itaporanga, Jericó, Lagoa, Marizópolis, Mato Grosso, Paulista, Pedra Lavrada, Poço Dantas, Poço José de Moura, Pombal, Riacho dos Cavalos, Santa Cruz, S. Domingos de Pombal, S. José da Lagoa, Tapada, S. José de Piranhas, Triunfo, Uiraúna, Vieirópolis Alto Sertão Médio Sertão Cacimbas, Desterro, Maturéia, Princesa Isabel, Santana dos Garrotes, Tavares, Teixeira Curimataú/ Seridó Cuité, Damião, Juazeirinho, Olivedos, Pedra Lavrada, Seridó, Sossêgo Cariri Alcantil, Barra da São Miguel Alagoa Nova, Areial, Cacimba de Dentro, Campina Grande, Casserengue, Esperança, Lagoa Seca, Massaranduba, Matinhas, Montadas, Queimadas, Remígio, S. Sebastião de Lagoa de Roça, Solânea Borborema Brejo Areia, Pilões, Sertãozinho 1 Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Esse órgão, que andava sucateado, viu a sua importância crescer a partir de 2003, sobretudo em função do Programa Fome Zero. Um dos seus programas é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA),que busca sustentar os preços de alguns produtos básicos,além de constituir estoques de reserva e atender a populações em situação de insegurança alimentar. Esse mesmo programa faz doações para programas sociais, sendo que os alimentos assim doados são adquiridos da agricultura familiar. Financiamento da Transição Agroecológica 91 2 Entre os produtos distribuídos, estão diversas hortaliças, mas a lista inclui também xerém de milho, goma de mandioca, ovos caipira, mel, frutas in natura, sucos de fruta, geléias, queijo de coalho, carne caprina, etc. 3 Um dos preços que se encontra defasado é o da carne de bode, produto que seria fornecido por famílias domunicípiode Soledade. 5 Nessa época o preço pode chegar a ser quatro vezes maior que na época da colheita. 6 No Brasil, os BSCs tiveram origem na década de 1970, a partir da iniciativa da Igreja Católica junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em diversas partes do Nordeste. Na Paraíba, existem BSCs bastante antigos, a exemplo daquele da comunidade de São Tomé (município de Alagoa Nova), fundado em 1974. 7 A maior parte dos BSCs da Paraíba foram constituídos a partir de um estoque inicial obtido junto a diversos programas governamentais, que chegaram às comunidades através das diversas organizações que apóiam a Rede de Bancos de Sementes. Mas existem casos em que esse estoque inicial do BSC foi estabelecido, pelo menos em parte, a partir de doações obtidas na própria comunidade e vizinhança. 8 Essa iniciativa foi batizada de “Programa de Distribuição de Sementes Selecionadas a Preço Subsidiado em Tempo Hábil do Governo do Estado da Paraíba”. A Empresa Estadual de Pesquisa Agropecuária (Emepa) devia fornecer essa semente, que seria distribuída pela Emater. 9 Foram 35 toneladas de feijão carioquinha e 50 toneladas de milho (variedade BR 106). 10 O atraso na liberação dessas sementes fez com que não fosse possível atender às áreas do sertão, onde a época de plantio começa mais cedo do que no agreste e no litoral. 92 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 6 Oficina Pronaf/ BB / BNB Relator: Jean Marc von der Weid – AS-PTA Coordenador : Jean Marc von der Weid – AS-PTA Apresentações : Márcio Hirata – Pronaf/SAF Luís Sérgio Faria Machado – Banco do Nordeste do Brasil (BNB) Carlos Alberto Rhoden – Banco do Brasil (BB) Oficina organizada pelo Grupo de Trabalho – Financiamento da Articulação Nacional de Agroecologia (GT – Financiamento da ANA) Título: Debate sobre a operacionalização dos Pronafs Agroecologia, SemiÁrido e Floresta. Convidados: Márcio Hirata - representante do Pronaf/SAF; Luis Sérgio Faria Machado- representante do Banco do Nordeste do Brasil (BNB); Carlos Alberto Rhoden – representante do Banco do Brasil (BB) Coordenação: Jean Marc von der Weid – AS-PTA Participantes: 47 se identificaram na abertura da oficina, vindo de treze estados (SC, RS, PR, RJ, ES, MG, BA, SE, AL, PE, PB, CE, MT e PA). Outros 30 participantes se juntaram ao grupo durante os debates. Entre os 47 que se identificaram, 25 eram produtores(as). Os três convidados apresentaram a visão de suas instituições e 24 participantes levantaram questões, críticas, análises e propostas. Financiamento da Transição Agroecológica 93 Síntese da apresentação de Márcio Hirata (Pronaf/SAF) As novas linhas Pronaf Agroecologia, Pronaf Semi-Árido e Pronaf Florestal foram criadas em 2003 e tinham a intenção de facilitar os processos de transição para a agroecologia em situações diferenciadas: sistemas convencionais; sistemas tradicionais na região semi-árida que necessitavam de infraestruturas hídricas; ou sistemas tradicionais na região amazônica onde os Sistemas Agroflorestais (SAFs) eram vistos como um caminho para a agroecologia. No entanto, o desenho dessas propostas de crédito gerou problemas na operacionalização. Em particular, a exigência de apresentação de um projeto de transição em três anos com descrição ano a ano das práticas a serem introduzidas mostrou-se uma barreira intransponível no acesso ao Pronaf Agroecologia. Na prática, o Pronaf não conseguiu monitorar os acessos a essas linhas, cuja pouca transparência não permitia identificar quem e quantos as solicitavam. Além disso, havia confusão entre agroecologia e agricultura orgânica. Em 2005, o Pronaf corrige a formulação da linha Agroecologia com duas portarias assinadas em setembro e novembro, eliminando a exigência do projeto de transição e liberando recursos de investimento de até R$ 6 mil no grupo C e R$ 15 mil no grupo D. Dessa forma, não é mais preciso especificar as práticas agroecológicas a serem adotadas ano a ano, mas apenas apontar o objetivo final. No Pronaf Florestal, os prazos de pagamento dos créditos foram ampliados para até 16 anos, com prazos amplos de carência, desde que bem justificados nos projetos. Alguns entraves foram identificados e que levaram a um baixo acesso às linhas mencionadas. Em primeiro lugar, a ausência de uma cobertura de seguro para esse tipo de projeto sistêmico, já que o seguro é dirigido a culturas. Além disso, o sistema de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) está pouco preparado para a elaboração dos projetos dessas linhas. Para buscar suprir essas demandas, a SAF programou um processo de formação de 8.000 agentes de extensão das Emater, das cooperativas de técnicos e das ONGs. Síntese da apresentação de Luis Sérgio Faria Machado do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) O BNB é um banco de investimentos para a região Nordeste, onde aplica cerca de R$ 5 bilhões por ano, dos quais R$ 1,5 bilhão são destinados à agricultura familiar. 94 Financiamento da Transição Agroecológica O BNB considera que vários fatores contribuíram para que as novas linhas não pegassem no Nordeste. A já mencionada questão da Ater é crítica, mas também a organização dos produtores não é suficiente para conseguir explorar as novas oportunidades – o crédito sozinho não promove o desenvolvimento. Para o Pronaf Agroecologia vingar, é preciso uma maior extensão dessa cultura com economias de escala e inserção no mercado. O BNB quer ajudar as ONGs a promoverem essas linhas por meio de parcerias, mas constata que faltam alguns requisitos básicos, tais como maior número de organizações de certificação de produtos agroecológicos. O Pronaf Semi-Árido foi divulgado pelo BNB em programas de rádio e chegou-se a aplicar R$ 30 milhões na safra 2005/2006. O banco acredita que o teto dessa linha também impede o acesso e que as outras modalidades do Pronaf são melhores para investimentos em infra-estruturas hídricas. Atualmente é possível acessar R$ 10 mil sem garantia e entre R$ 10 e 20 mil com aval. O BNB procurou usar um cadastro e uma planilha de projetos simplificados para facilitar o acesso dos agricultores e disponibilizou um Gerente Pronaf em cada agência do banco. O crédito mais acessado no Nordeste é o Pronaf B, identificado como micro-crédito e que teve uma Ater apoiada pelo banco com cerca de 360 técnicos em apenas uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que atua como agente de desenvolvimento. Financiamento da Transição Agroecológica 95 Síntese da apresentação de Carlos Alberto Rhoden do Banco do Brasil (BB) O BB distribuiu R$ 5 bilhões em créditos na safra 2005/2006, com R$ 1 milhão de contratos de custeio e de investimento. As cooperativas de crédito (Crenor, Cresol e Ascob) receberam R$ 300 milhões. Cada estado tem uma gerência do Pronaf que dialoga com os movimentos sociais e cooperativas de crédito. O BB constata que há dificuldades para os cerca de 260 engenheiros agrônomos do banco entenderem o tema da agroecologia, muito embora isso varie de estado para estado. Na região sul, por exemplo, o entendimento com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) sobre o tema da agroecologia tem sido mais fácil. O número de contratos realizados pelo BB obriga a uma simplificação do acesso aos recursos, com planilhas de projetos mais sucintas e com sistemas de pedidos via internet, previstos para serem implantados a partir de julho de 2006. Apesar do esforço de simplificação, há elementos-chave de informação que não podem faltar nos projetos, tais como os mercados onde os produtos financiados serão vendidos. Síntese dos comentários e questionamentos dos participantes 1. Sobre o Pronaf Agroecologia • É muito complicado • Financia a transição, mas não a produção agroecológica • Os agentes financeiros locais têm muita resistência à agroecologia • Há poucos recursos para Ater e vincular a remuneração com o valor do projeto é um erro 96 Financiamento da Transição Agroecológica • Burocracia ainda é grande • Quem vai sozinho ao banco não consegue o que quer • Os bancos orientam para o uso do pacote • O zoneamento da Embrapa impõe restrições injustificáveis a projetos agroecológicos • Os créditos estão orientados para uma cultura ou um animal e não para um sistema produtivo • Os prazos de análise dos projetos são muito longos e os recursos chegam atrasados ou acabam faltando para os projetos agroecológicos • O Pronaf Agroecologia foi para os tipos C e D, deixando os assentados (A) de fora • Os bancos tendem a atender primeiro as demandas dos agricultores do tipo D, que têm projetos com valores mais altos, fazendo com que acabe faltando recursos para os outros • Os prazos para a transição agroecológica são muito apertados 2. Sobre o Pronaf Semi-Árido As observações feitas sobre essa modalidade repetem as que se referem ao Pronaf Agroecologia com os seguintes adendos: • A planilha de projeto do BNB inviabiliza o Pronaf Semi-Árido • O Pronaf Semi-Árido não está orientado para a agroecologia, mas para a infra-estrutura hídrica • A exigência de 50% de investimento em infra-estrutura hídrica não é adequada, uma vez que nem sempre essa é a questão mais importante em um projeto agroecológico de convivência com o semi-árido 3. Sobre o Pronaf Florestal O Pronaf Florestal só financia plantio de pinus e eucalipto e, portanto, é um Pronaf monofloresta 4. Sobre o Pronaf Jovem e Mulher Não estão chegando ao público-alvo 5. Sobre o Pronaf B • Houve avanços: diminuiu a burocracia, facilitou o acesso dos mais pobres, inclusive de mulheres Financiamento da Transição Agroecológica 97 • Os agentes de crédito impõem projetos técnicos direcionados para pacotes que o agricultor não quer Síntese das respostas dos três convidados O BNB colocou um gerente de agricultura familiar em cada banco e é ele quem orienta os kits de projetos B, com base nos manuais e no zoneamento da Embrapa. Luis Sérgio reconhece que o zoneamento precisa ser aperfeiçoado e que é preciso “tirar o Pronaf B de dentro das agências” e levá-lo aos agricultores por agentes de desenvolvimento. Já a crítica aos prazos de análise dos projetos não foi aceita, pois ele afirma que leva-se 21 dias para essa operação. O BB alega que a burocracia não é culpa dos bancos, mas dos manuais do Banco Central. Carlos Alberto admite que há a necessidade de um processo de educação sobre agroecologia para os agentes financeiros e que estes estão condicionados por anos a lidar com o agronegócio. Além disso, justifica o fato de que as operações de crédito de investimento são mais lentas porque são mais complexas. Márcio Hirata alega que os demais problemas existem pela novidade do processo e vê grande importância em agilizar no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e nos bancos as respostas às questões 98 Financiamento da Transição Agroecológica colocadas pelos agricultores. Ele vê, contudo, uma grande desinformação também por parte da grande massa dos agricultores em relação às novas modalidades de Pronaf. Márcio apresenta três questões como mais estratégicas: o financiamento de sistemas produtivos e não de produtos; a simplificação/flexibilização das planilhas de projetos; e a carimbagem de recursos para projetos de tipo agroecológico, com uma dotação garantida. Quanto ao Pronaf Florestal, Márcio não vê problemas em financiar culturas de pinus e eucaliptos se elas não substituírem vegetação nativa, mas acha que a prioridade deve ser o financiamento de SAFs e de revegetação com espécies locais. Síntese das propostas apresentadas pelos participantes • Os bancos devem priorizar os projetos de agroecologia • Criar um Pronaf de produção agroecológica além do dirigido à transição • Recursos para a agroecologia devem ser carimbados • Dar formação em agroecologia aos técnicos e gerentes dos bancos • Promover encontros entre técnicos/gerentes e agricultores em cada agência para discutirem as novas linhas de Pronaf • Simplificar e flexibilizar os projetos de crédito reduzindo as planilhas ao mínimo • Financiar os sistemas produtivos, ou o conjunto da propriedade, e não produtos ou animais específicos • Unificar o Pronaf Semi-Árido e o Pronaf Agroecologia, eliminando a exigência de investimento em infra-estrutura hídrica • Ampliar os prazos de transição agroecológica segundo as regiões – até 8 anos no sul e sudeste, até 14 anos no nordeste e até 18 anos no norte • Permitir o Pronaf Agroecologia nos assentamentos • Garantir o financiamento de Ater para a elaboração dos projetos sem vincular a remuneração ao valor do projeto • Garantir financiamento de Ater de forma continuada no longo prazo • Ajustar o zoneamento aos conceitos da agroecologia • Garantir o seguro para os sistemas agroecológicos com ou sem acesso ao crédito Financiamento da Transição Agroecológica 99 • Dirigir o Pronaf Florestal para SAFs e sistemas agroecológicos • Criar um Pronaf de Comercialização de produtos agroecológicos • Liberar o crédito de investimento na transição agroecológica ano a ano, conforme as necessidades do agricultor • Vincular os prazos de carência aos prazos da transição agroecológica • Prazos de pagamento de até 8 anos • Juros de 1% ao ano • Teto de R$ 30 mil independente da classe do projeto • Possibilidade de apresentar mais de um Pronaf Agroecologia em sucessão • Rapidez nos processos de avaliação e liberação dos recursos • “Confiar nos agricultores familiares” 100 Financiamento da Transição Agroecológica Capítulo 7 Conclusões Algumas conclusões sobre o seminário do II ENA e perspectivas para o GT Financiamento da ANA Jean Marc von der Weid AS-PTA O tema do financiamento da transição e da produção agroecológica foi um dos que menos suscitou interesse entre os participantes do II ENA. Foi o seminário com menor número de participantes, cerca de 150. O número de experiências identificadas e sistematizadas também foi reduzido, embora bastante rico. Comparado com outros temas, o do financiamento da transição agroecológica foi ainda pouco mobilizador. Por outro lado, a maioria dos participantes dos vários subgrupos em que o tema se dividiu era de produtores e produtoras, com baixa presença de técnicos de apoio. Por que esse pouco interesse e pouca participação (em termos relativos, é claro)? Penso que a grande maioria das organizações de apoio ao desenvolvimento agroecológico da agricultura familiar não se envolveu ainda com essa temática, a não ser em pequena escala, assessorando processos experimentais nas propriedades dos agricultores. A experiência está mais concentrada nos processos de geração participativa de tecnologias do que na promoção de sua adoção na escala das propriedades como um todo. Está bastante claro que há uma grande diferença entre facilitar processos de experimentação e o passo seguinte que é facilitar a generalização dessas experiências para o conjunto da propriedade de cada agricultor. Esse passo envolve não apenas ajustes nas propostas técnicas como o uso de recursos Financiamento da Transição Agroecológica 101 humanos e materiais em outra dimensão, que talvez não esteja disponível para o produtor. É freqüente encontrar um número significativo de agricultores envolvidos em processos de experimentação que não chegam a se generalizar para o conjunto da propriedade. E então nos perguntamos por que o agricultor não sai nunca da experimentação. Os casos de agricultores que realizaram o processo de transição no conjunto de suas propriedades correspondem, na sua maioria, a situações em que o agricultor resolveu, por conta própria, os entraves financeiros exigidos pela transição para o novo sistema. Mais de uma vez ouvimos técnicos afirmarem que a agroecologia significa economias de custo de produção e que, portanto, o problema do financiamento não deveria existir. É uma verdade relativa, pois ao mesmo tempo que a produção agroecológica economiza custos de insumos químicos e, em certas circunstâncias, de uso de maquinário, ela tem outros custos, em geral de mão-de-obra, pelo menos nas fases de transição. Em outros casos, o custo das infra-estruturas capazes de dar suporte aos processos agroecológicos exige investimentos significativos, embora poucos recursos de custeio. Finalmente, a agricultura familiar se encontra em tal estado de descapitalização que há uma exigência não pouco significativa de investimentos em quase todas as situações, independente de se tratar ou não de uma transição agroecológica. Há problemas significativos identificados nas normativas e, sobretudo, na operacionalização do crédito Pronaf dirigido para a transição agroecológica, embora seja a única modalidade que opera com um potencial de recursos disponível a altura das necessidades do público com que trabalhamos. As outras modalidades se mostraram mais adequadas e acessíveis (fundos não-governamentais e Proambiente), mas a disponibilidade de recursos foi ínfima. Os Fundos Rotativos Solidários (FRS) foram a alternativa com maior potencial, quer pela sua aceitabilidade pelo público quer pela facilidade de acesso. No entanto, foram utilizados, até agora, fundamentalmente para obras de infra-estrutura (cisternas, barragens subterrâneas) ou para alguns insumos como sementes ou esterco. Além disso, ainda seria necessário testar a capacidade dessa modalidade de enfrentar os processos de financiamento mais complexos e de maior porte que se dão em longo prazo e que podem ser necessários na transição agroecológica. Por outro lado, os recursos disponíveis para os FRS estão centrados no Nordeste e no Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), agora em vias de se ampliar para a modali- 102 Financiamento da Transição Agroecológica dade P1+2 (Uma Terra e Duas Águas, significando duas infra-estruturas hídricas das quais uma é a cisterna). Seria portanto necessário pensar uma expansão desse tipo de financiamento para outras regiões e outras necessidades de investimento. Entretanto, o problema da extensão das experiências em pequena escala para o conjunto da propriedade do agricultor familiar não é só de capital humano ou financeiro, mas também de ajustes nas próprias propostas técnicas. Há ainda uma questão de caráter metodológico sobre como facilitar esse tipo de experiência em maior escala apoiando os esforços dos agricultores em processos coletivos, tal como já se faz com a experimentação em pequena escala. Essa nova modalidade de experimentação é ainda mais complexa que a outra, pois os itinerários técnicos para fazer a transição no conjunto da propriedade podem ser muito diferenciados de agricultor para agricultor, dependendo da sua disponibilidade de mão-de-obra, de recursos financeiros, de terras, etc. Conhecer e entender esses processos de transição em escala de propriedade, verificando os tempos necessários para sua completude, os mecanismos de financiamento dos investimentos necessários, são questões básicas para se poder identificar como será possível mobilizar recursos em apoio aos processos, quais as melhores modalidades de financiamento, em que prazos, com que tipo de pagamentos, etc. Diante desse contexto, o GT Financiamento vai ter que se reciclar para traçar um programa mais ajustado a essas necessidades. Mais do que reagir às demandas e oportunidades criadas pelo governo, devemos nos debruçar no estudo dos processos de transição para a agroecologia e dos problemas de financiamento dos seus custos para poder formular uma proposta mais precisa ao governo sobre a adequação das distintas modalidades de crédito hoje disponíveis para a agricultura familiar. Financiamento da Transição Agroecológica 103 Financiamento da Transição Agroecológica Articulação Nacional de Agroecologia Secretaria Executiva da ANA Rua da Candelária nº9 / 6º andar 20091-020 Rio de Janeiro – RJ Tel 21 22538317 [email protected] www.agroecologia.org.br