ALBERT O. HIRSCHMAN a moralidade e as ciências sociais ual é o papel de considerações e cuidados morais na ciência econômica? Mais genericamente, em que pe está “a questão da moralidade nas ciências sociais"? Para comentar estes problemas — o segundo foi assunto de um seminário recente, de que participei — começarei dando razões pelas quais esta espécie de tópico dificilmente ocorre ao cientista social. Em seguida, veremos que hoje a preocupação com valores morais é crescente, até mesmo nesta fortaleza positivista que é a ciência econômica. E, concluindo, indicarei conciliações possíveis entre a "objetividade científica" tradicional dos economistas e a dimensão moral, que também é sua. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que a ciência social tomou corpo, em larga medida, ao emancipar-se dos ensinamentos da moral tradicional. No início mesmo da Idade Moderna, Maquiavel anunciava que trataria de instituições políticas tais como elas existiam realmente, e não como "repúblicas e monarquias imaginárias", governadas segundo preceitos religiosos ou morais, transmitidos de geração em geração por pessoas bem intencionadas. A ciência política moderna deve DEZEMBRO DE 1981 muito a uma idéia — chocante — do próprio Maquiavel, segundo a qual as noções correntes de moralidade individual podem não ser adequadas como regras de conduta para os Estados. Mais genericamente, a riqueza das percepções desse Autor fez notar que a ênfase tradicional no "dever ser'', no modo pelo qual príncipes e estadistas deveriam se comportar, dificultava um pouco a compreensão mais plena do que "é", compreensão possível desde que se atente minuciosa e friamente para o exercício do poder de Estado em sua realidade. Mais adiante, a necessidade de separar ciência política e moral seria abertamente afirmada também por Montesquieu, outro dos grandes fundadores da ciência social: E inútil criticar a política dizendo que as suas práticas estão em conflito com a moral e a razão. Esta espécie de discurso provoca o assentimento geral, e não muda ninguém (1). Pouco depois, a passagem do "dever ser" ao que "é" seria efetuada igualmente pelo pensamento econômico. Na medida em que o funcionamento real do comércio e dos mercados passava a ser examinado em detalhe, a partir do século A MORALIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS XVII, os comentadores de assuntos econômicos chegavam a descobertas tão chocantes e instrutivas quanto as de Maquiavel. Não me refiro apenas ao paradoxo famoso de Mandeville, segundo o qual os vícios privados produziam benefícios públicos, pela via do estímulo ao comércio de luxo. Bastante antes disso, em meados do século XVII, vários pensadores franceses, profundamente religiosos, dentre os quais o mais eminente foi Pascal, compreenderam que na verdade era possível uma sociedade ordenada e durável que não se fundasse no amor ou na "caridade". Haviam descoberto que existe outro princípio capaz de assegurar o curso do mundo social: o interesse egoísta. Esta eventualidade, em que o amor parece prescindível, vinha-lhes como uma surpresa incômoda e um enigma perturbador: uma sociedade cujo vínculo fosse outro, que não o amor, seria claramente pecaminosa — como entender então que ela funcionasse, e mais, que ela fosse tão intricada e admiravelmente construída, a ponto de parecer obra da Divina Providência? Um século depois, estes cuidados seriam substituídos pela franca celebração: Adam Smith não demonstra inquietação religiosa alguma quando faz o elogio da mão invisível, a qual, a bem da ordem social e do progresso econômico, promove o interesse egoísta. Entretanto, a idéia de que a moralidade possa oferecer um modo diferente de ordenação da economia e da sociedade não desaparecera inteiramente, razão pela qual Smith a ridiculariza numa das formulações mais sugestivas de sua doutrina: "O nosso jantar vem à mesa não por causa da boa vontade do açougueiro, do padeiro ou do fabricante de cerveja, mas por causa do interesse que é o deles" (2). É grande a excitação de Smith neste passo, em que dá como dispensáveis a exortação e o discurso moral, e isto graças à descoberta de um mecanismo social que, uma vez desencadeado, exigiria muito menos da natureza humana, sendo por isso mesmo infinitamente mais seguro. Também aqui, e ainda uma vez, a recusa da normatividade tradicional criou um espaço em que o conhecimento científico se pôde expandir.. arx está na estrita tradição de Maquiavel, Montesquieu e Smith quando, em sua tentativa de interpretar e sobretudo de modificar a ordem política e social reinante, ele recusa o apelo ao argu- Um tema conhecido: tensões entre a cabeça e o coração mento moral. É esta precisamente a sua diferença com os "socialistas utópicos", que na crítica à sociedade capitalista, bem como nos remédios que propõem, recorrem à exortação. Para Marx, apesar da vibração moralista sempre presente em sua obra, o maior título de glória estaria na criação do "socialismo científico". E, para ser verdadeiramente científico, parecia-lhe claro que era necessário evitar o argumento moral. A ciência verdadeira não prega, ela prova e prevê: assim, Marx prova a existência da exploração através da teoria do valor-trabalho, e prevê o eventual fim do capitalismo através da lei da queda da taxa de lucro. Na realidade, Marx operou uma estranha mescla de proposições científicas "frias" e indignação moral "ardente". Talvez tenha sido (e ainda seja) este amálgama singular, com todas as suas tensões internas irresolvidas, o responsável pelo extraordinário chamamento que emana de sua obra — nesta era com vício de ciência e sequiosa de valores morais. As tensões entre a cabeça, que é "fria", e o coração, que é "cálido", formam um tema conhecido da cultura ocidental, especialmente desde o Romantismo. Entretanto, mais que essa tensão, estou me referindo a uma incompatibilidade existencial: de um lado, reflexão moral e moralidade: de outro, as atividades analírico-cíentíficas. Esta incompatibilidade é, puta e simplesmente, um fato. O nosso desempenho analítico torna-se automaticamente suspeito caso esteja a serviço de uma convicção moral; e, inversamente, a convicção moral não é dependente de argumentação analítica, a qual pode inclusive enfraquecê-la, como aliás, pesadas as coisas, a crença religiosa terá sido mais solapada que fortificada pelas provas da existência de Deus, com as argúcias que as acompanham. A melhor expressão do assunto encontra-se num epigrama conciso e doloroso de Hölderlin, o grande poeta alemão. Os versos datam de mais ou menos 1800, e trazem o título de "Bom Conselho": Se tens entendimento e coração, mostra um só dos dois. Pois, se os mostras de uma vez só, a ambos difamam (3). A exclusão mútua de reflexão moral e entendimento analítico pode ser uma simples contingência, refletindo as circunstâncias históricas particulares em que ocorreu o progresso das diversas ciências no Ocidente. Essas circunstâncias naturalNOVOS ESTUDOS N.º 1 mente deixaram marcas e cunharam atitudes, marcas tão bem identificadas por Hölderlin. Contudo, a hostilidade em relação à moral não é somente um resíduo dos tempos em que nascia a ciência. No que diz respeito às ciências sociais, em particular, há razão para crer que a petulância antimoralista seja recorrente, isto devido à própria natureza do que elas são e de seu discurso. Tentarei me explicar. Em ciência, é freqüente que as descobertas fundamentais tenham a forma do paradoxo. Isso é verdade para alguns dos teoremas principais da física, tais como a proposição de Copérnico, segundo a qual é a Terra que se move em torno do Sol, e não vice-versa. Mas é possível sustentar também que, entre todas, as ciências sociais sejam as mais dadas à produção de paradoxos. A razão está no muito que todos nós sabemos a respeito da sociedade, ainda que nunca tenhamos freqüentado um curso na matéria. Vivemos em sociedade; freqüentemente somos atores em processos sociais, políticos e econômicos; e pensamos — é claro que às vezes enganadamente — saber grosso modo o que se passa não só em nossa mente, como também na dos outros. Em conseqüência, a nossa compreensão intuitiva e de senso comum dos "problemas" da ciência social, problemas como crime urbano, corrupção nas altas esferas ou mesmo inflação, é considerável. Estamos todos sempre prontos a apresentar a nossa "solução" ou panacéia. Assim, para que a ciência nestes domínios ultrapasse o nosso conhecimento — que existe — é preciso que ela proponha algo de não-evidente, ou, de preferência, algo que demonstre as ilusões a que nos induz o senso comum (4). Por isso, as descobertas importantes da ciência social são contra-intuitivas, chocantes, e relacionadas com conseqüências inadvertidas e surpreendentes da ação humana. Em boa medida, a necessidade de produzir choques e paradoxos é responsável pela vocação imoralista da ciência social, pois a compreensão que o senso comum tem dos problemas sociais é fortemente impregnada de moral (muito mais que no caso dos problemas tratados pelas ciências naturais). Assim, é quase lógico que o cientista social goste de afirmar a racionalidade oculta do que aparenta ser irracional, ou a coerência do que parece incoerência. E mais, que defenda como senso moral, útil, ou ao menos inocente, um DEZEMBRO DE 1981 A petulância anti-moralista deriva da sua natureza e do seu discurso comportamento social geralmente tido como reprovável. A economia abunda em exemplos desta busca do moralmente chocante. Seguindo a inspiração já antiga de Mandeville, e de sua reabilitação do luxo, muitos economistas fizeram fama celebrando os efeitos positivos, para a eficácia econômica, de atividades ilegais ou repulsivas, tais como contrabando, mercado negro ou mesmo corrupção governamental. Em nossos dias, a predileção pelo choque moral é ostensiva no imperialismo dos economistas que se aventuram em campo alheio. Atividades tais como crime, casamento, procriação, burocracia, voto e participação nos negócios públicos vêm sendo submetidas a uma assim chamada "abordagem econômica". O resultado é que as personagens envolvidas, sejam elas criminosos, amantes, pais, burocratas ou eleitores, previsivelmente passam o seu tempo "maximizando vantagens", exatamente como fazem o consumidor e o produtor do manual de economia. Durante muito tempo se acreditou que as mencionadas personagens eram movidas ou batidas por paixões complexas, nobres ou ignóbeis, tais como, entre muitas outras, a revolta contra a sociedade, o amor, ânsia de imortalidade, devoção ao interesse público, ou traição dele. Comparada a esta imagem tradicional das finalidades não-econômicas do homem, as explicações ligadas ao imperialismo da abordagem econômica, com a sua ênfase na sordidez do cálculo de custo e lucro, estavam fadadas a ser chocantes. E, ainda uma vez, a força da análise efetivamente deriva deste efeito de choque. ecentemente, começando uma resenha, meu colega Clifford Geertz escreveu um parágrafo notável, feito sob medida para os escritos a que estou me referindo: Este é um livro sobre "as diferenças primárias entre macho e fêmea na sexualidade humana'', em que os seguintes assuntos não são discutidos: culpa, embevecimento, perda, auto-estima, morte, metáfora, justiça, pureza, calculismo, covardia, esperança, juízo, ideologia, humor, obrigação, desespero, confiança, maldade, ritual, loucura, perdão, sublimação, piedade, êxtase, obsessão, discurso e sentimentalismo. Só podia ser o que é: sociobiologia (5). Muitos verão nesse trecho uma crítica A MORALIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS severa, e no entanto os partidários do livro resenhado podem, perfeitamente, sentir que seu autor merece aplauso justamente por ter ido além dos "fenômenos superficiais", enumerados por Geertz, e por ter alcançado o mecanismo fundamental que põe a nu a própria essência do que acaso seja o assunto do livro. Do mesmo modo, os adeptos da "abordagem econômica" no estudo do comportamento humano provavelmente se orgulham da frugalidade de sua teoria, e é fato que o seu êxito eventual se deve a insolência reducionista de seu ataque. Não obstante, como não reconhecer que, para o economista, esta maneira de granjear fama entrou na fase dos rendimentos decrescentes? Em primeiro lugar, o paradigma segundo o qual o interesse egoísta puro e sem mescla conduz a uma ordem aceitável, e talvez mesmo à melhor possível, está na praça há muito tempo, Isto faz com que a redescoberta do papel da moralidade se torne um desafio intelectual. Hoje, afirmar este papel tem um efeito de surpresa e paradoxo quase tão grande quanto, outrora, o do adeus de Smith à boa vontade. Em segundo lugar, é mais importante, está cada vez mais claro que sem um mínimo desta boa vontade o desempenho da economia em várias áreas importantes pode resultar fraco. O ressurgimento e a reabilitação dos bons sentimentos começaram na microeconomia. Uma das condições para o funcionamento de mercados competitivos é a informação ''perfeita" a respeito dos bens e serviços comprados e vendidos. Todos naturalmente sabemos que em geral esta condição está longe de ser satisfeita. Entretanto, a informação imperfeita poderia não ser excessivamente prejudicial ao sistema de mercado, caso a imperfeição tivesse limites, e fosse amplamente partilhada pelos cidadãos, sejam estes compradores ou vendedores. Se entretanto, como e freqüente, o conhecimento dos compradores a respeito de certa mercadoria for muito inferior ao dos fornecedores ou vendedores, o que acontece? Neste caso, está armado o palco para a exploração dos compradores pelos vendedores, a não ser que os últimos sejam impedidos, de algum modo, de explorar a sua superioridade. O governo pode ser, e tem sido, o encarregado desta correção, com êxito variável: todos sabemos hoje que nem sempre o governo triunfa onde o mercado deixa a desejar. Criterioso seria se os vendedores se submetessem voluntariamente a uma A predileção pelo choque moral, hoje, é ostensiva no imperialismo da economia disciplina que os impeça de explorar a superioridade de seu conhecimento. Por exemplo, os cirurgiões poderiam assumir, como condição de exercício de sua profissão, o compromisso de nunca prescrever intervenções desnecessárias. São os casos apontados há algum tempo por Kennethe Arrow, em que a adoção de um código de ética profissional pode remediar uma forma específica de inconveniente da dinâmica de mercado. Voltamos assim à boa vontade: de modo um tanto institucionalizado, ela aqui é invocada como um elemento essencial ao funcionamento de uma economia de mercado em que os vendedores têm mais informação do que os compradores. Assim, nas situações em que o sistema de mercado e do interesse egoísta, deixado a si mesmo, dá resultados indesejáveis, o comportamento ético é necessário. Isto naturalmente não quer dizer que um tal comportamento se concretizará por si só. Talvez ele tenha de fazê-lo, se a necessidade é especialmente imperiosa, como no caso de cirurgiões e cirurgias. É fato que nos precavemos mais ao comprar um carro de segunda mão do que ao consultar um médico a respeito da conveniência de uma intervenção. Os economistas recentemente identificaram um certo número de áreas, do mercado de trastes aos serviços de creche e ao aconselhamento psicoterapêutico, em que o desempenho do mercado poderia melhorar muito através de uma injeção de "boa vontade", por exemplo, na forma modesta de cooperação e troca de informações entre fornecedores e clientes. estas situações de mercado contraproducentes, a necessidade de comportamentos éticos e de normas, a fim de suplementar e por vezes suplantar o interesse egoísta, aparece com urgência e clareza. Entretanto, nalguma medida, ela existe sempre: a empresa e a eficácia econômicas dependem da existência de confiança entre as partes contratantes, quando menos por causa do elemento de tempo implicado na maioria das transações. Esta confiança tem de ser autônoma, isto é, não pode estar vinculada estreitamente ao interesse egoísta. Para citar uma colocação recente e radical desta questão: "Os valores pessoais elementares de honestidade, veracidade, confiança, moderação e senso do dever são, todos eles, ingredientes necessários a uma sociedade contratual eficiente ( também agradável)..." (6). Somados estes valores, resulta que o voluNOVOS ESTUDOS N.º 1 me de boa vontade e moralidade requerido para o funcionamento do mercado não é nada pequeno! Isto quanto à microeconomia. Entretanto, a reabilitação da moral enquanto ingrediente necessário a uma economia que funcione deu os seus maiores passos, ainda que inconfessados, na área macro, em conseqüência da inflação e das preocupações que a acompanham. A despeito do barulho de certos debates técnicos (pressão da demanda vs. pressão dos custos, monetaristas vs. keynesianos e pós-keynesianos), existe amplo acordo para reconhecer — porque a evidência é tão grande — que a compreensão bem como o controle da inflação contemporânea requerem uma sondagem profunda do subsolo social e político da economia. Suponhamos por exemplo que seja correto dizer que os gastos públicos crescentes são responsáveis pela inflação; neste caso, a questão é de saber por que o Estado moderno é crescentemente pressionado a oferecer um conjunto cada vez mais amplo de serviços públicos a grupos de pressão com capacidade de luta recém-formada? Analogamente, se é verdade que a autocontenção de salários e preços poderia ajudar no controle da inflação, por que será ela tão difícil de obter? Em resposta a questões desse tipo, um sociólogo inglês escreveu que "o conflito entre os grupos e as camadas sociais tem se tornado mais intenso e, nalguma medida, mais equilibrado, sendo que estes dois aspectos interagem no sentido de um reforço recíproco" (7 ). Eis aqui a expressão clara de uma concepção muito generalizada, segundo a qual a inflação reflete uma disposição crescente para as vias de fato (bloody mindedness, para falar com os ingleses) da parte dos vários grupos sociais que até agora haviam sido considerados em nossos manuais como sendo "cooperativos" na geração e na distribuição do produto social. O que esta espécie de análise sociológica da inflação portanto pede, ou advoga, é "um novo contrato social", o qual permitiria uma inibição e redução do ânimo bélico geral (8). A observação cabível a esta altura já terá ocorrido ao leitor: a disposição para as vias de fato, cuja limitação seria importante, é o oposto justamente da boa vontade, cujo estímulo, portanto, seria capital. Resulta, assim, que para vencer os grandes problemas atuais da macroeconomia precisaríamos gerar e difundir boa vontade entre os vários grupos sociais! DEZEMBRO DE 1981 A reabilitação da moral como ingrediente necessário está na área macro Noutras palavras, está na hora de os economistas abandonarem a postura amoral, ostentada, ao menos em A Riqueza das Nações, pelo ilustre fundador de nossa ciência: em sua pureza, o interesse egoísta de cada um dos membros individuais da sociedade é um móvel claramente inadequado à solução dos problemas da micro tanto quanto da macroeconomia. Isto posto, será que chegamos a alguma parte? Aprendemos a não desmerecer a boa vontade e os valores morais em geral. Compreendemos também as razões de Malthus, que embora endossando a regra de Smith, segundo a qual todos têm de ser livres para agir conforme o seu interesse próprio, acrescentava sistematicamente uma restrição: "isto enquanto concordarem com as leis da justiça" (9). Contudo, este acréscimo de uma reserva moralizante não muda grande coisa. Uma vez concedida a importância de pensamento e valores morais para a economia, falta ainda o principal: como mapear o novo terreno, descobrir as perspectivas que a nossa concentração exclusiva no interesse egoísta havia ocultado? A questão pode ser, e foi, atacada de frente. O oposto do interesse egoísta é o interesse, pelos outros, ou também a ação em benefício alheio. Assim, para compensar o descaso prévio pelos valores morais e impulsos generosos, os economistas agora se lançam ao estudo do altruísmo. Com efeito, vários livros sobre este tópico foram publicados nos últimos anos (10). São instrutivos e úteis, mas talvez sofram da pressa com que buscam recuperar o tempo perdido. m minha opinião, o prejuízo causado pela "abordagem econômica", baseada no modelo tradicional do interesse egoísta, não se esgota no desconhecimento de comportamentos altruístas. Ele atinge amplas áreas da análise tradicional, e é devido a um modelo do comportamento humano que é simplista em sua generalidade. O que é necessário é que os economistas incorporem à sua análise, sempre que for pertinente, elementos básicos tais como o desejo de poder ou sacrifício, o temor ao tédio, o prazer do engajamento bem como do imprevisto, a busca de sentido ou de comunidade, e assim por diante. E claro que esta não é uma lacuna que se possa preencher de uma vez por todas, através de um projeto que trate da injeção de valores morais na ciência econômica. Tentativas desta espécie dariam resulta- A MORALIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS dos decepcionantes, a que se poderia aplicar a extensão de um dito francês, segundo o qual "bons sentimentos fazem má literatura" A incorporação efetiva do raciocínio moral à análise econômica deve avançar devagar, e caso por caso, pois o aspecto moral relevante ou a dimensão humana esquecida irão variar consideravelmente conforme o tópico. Assim, a conjunção de aptidões que esta empresa requer não é fácil de se encontrar: primeiramente, familiaridade com o aparato técnico da economia, e, em segundo lugar, abertura para aquela exata dimensão moral que, tendo sido previamente negligenciada, modifica os resultados tradicionais ao ser levada em conta. Um bom exemplo desta conjunção — e também de sua dificuldade — encontrase na recente comunicação presidencial de Robert Solow à American Economic Association, referente a mercados de trabalho e desemprego. Explicando por que a compensação no mercado de trabalho não se efetua com fluência, o Autor sublinha o fato de que os trabalhadores dão muita atenção a "normas de comportamento decente, cuja fonte não é inteiramente individualista": sirva de exemplo a relutância dos desempregados em solapar a situação dos que estão trabalhando. "Não seria uma surpresa para os senhores", pergunta o conferencista, "se soubessem de um professor com status igual ao seu, mas ensinando em lugar menos vantajoso, que houvesse escrito ao chefe de seu departamento, oferecendo-se para dar os seus mesmos cursos por um salário menor?" (11). Aqui está uma importante percepção de como certas normas sóciomorais afetam profundamente o funcionamento de um mercado importantíssimo: elas o tornam menos perfeito do ponto de vista de sua compensação interna, mas com certeza o fazem mais perfeito de todos os outros pontos de vista concebíveis! olto agora às dificuldades que se antepõem a uma tal observação. Notese que esta aparece no corpo de uma comunicação presidencial. Existiria a tendência, em nossa profissão, de primeiro buscar as alturas, para só depois sair a campo com opiniões — moderadamente — heréticas e de moralista? A minha convicção (ao menos no caso de Solow) é de que não são a pusilanimidade ou o desejo de subir que têm responsabilidade pela firmação tardia da ênfase moral; antes Está na hora de os economistas abandonarem a postura amoral trata-se daquela exclusão recíproca de coração e cabeça, de argumento moral e entendimento analítico, em que me demorei no começo deste ensaio. Quem foi treinado como cientista tem de lutar muito consigo mesmo antes de admitir que considerações morais, de solidariedade humana, podem efetivamente interferir com as forças hieráticas e impessoais da oferta e da demanda. É uma instância notável do que Veblen batizou de "incapacidade adquirida mediante treino". Com efeito, ela é tão forte que muitas vezes não confessamos a nós mesmos a fonte moral de nossas descobertas ou do próprio processo de pensamento científico. m conseqüência, vários de nós são moralistas inconscientes em seu trabalho. Quero ilustrar este ponto com uma história pessoal. Transcrevo o prefácio especial que escrevi — por razões que ficarão evidentes — para a edição alemã de Exit, Voice and Loyalty: "Como adiante se explica, a origem intelectual deste livro está numa observação que fiz alguns anos atrás na Nigéria. Entretanto, bastante tempo depois de o estudo estar publicado nos Estados Unidos, pareceu-me que meu envolvimento com seu tema poderia ter raízes mais profundas. Grande parte do livro centra-se no prejuízo que a saída dos potencialmente mais capazes de falar traz aos que ficaram e viram diminuir as suas possibilidades de resistir ao declínio. A situação não é sem parentesco com o destino dos judeus que ainda estavam na Alemanha depois de 1939. A maioria dos jovens e vigorosos — como fora eu mesmo — haviam partido nos primeiros anos do regime hitlerista, deixando atrás uma comunidade gravemente enfraquecida. É claro que as chances de uma fala efetiva nas circunstâncias da época eram zero, pouco importa quem partisse ou quem ficasse. Não obstante, a verdadeira fonte do livro possivelmente tenha estado em sentimentos de culpa cuidadosamente reprimidos, e que, embora absurdos do ponto de vista de qualquer cálculo racional, são reais" (12). Neste ponto, cabe mais outra reflexão: foi provavelmente uma felicidade que eu não tivesse consciência destas motivações morais enquanto escrevia o livro; não fosse assim, a apresentação do argumento talvez perdesse em generalidade, em equilíbrio entre os méritos respectivos de partir e de falar, e também em persuasão científica. Assim, a minha incursão pela NOVOS ESTUDOS N.º 1 autobiografia aponta para uma conclusão inesperada: um modo dos mais efetivos de trazer os cuidados morais para dentro do trabalho do cientista social seria talvez de fazê-lo inconscientemente! É um conselho menos inútil do que pode parecer. Pelas razões mencionadas, me parece pouco prático e talvez contraproducente estabelecer diretivas para que os cientistas sociais incorporem a moral em seus projetos científicos e estejam atentos para a possível imoralidade dos "efeitos laterais" de sua investigação. A moralidade não é como o índice de poluição, que pode ser melhorado através de pequenas modificações na concepção de um projeto. Mais propriamente, o seu lugar é no centro de nosso trabalho; e ela só chega lá se os cientistas sociais estiverem moralmente vivos e inquietos — caso em que produzirão trabalho com significado moral, estejam ou não conscientes disso. E enfim, uma reflexão mais ambiciosa, e provavelmente utópica. Uma vez percorridos a perspectiva histórica e os argumentos conexos deste ensaio, uma vez que tomamos consciência de nossa tradição intelectual, com sua fratura profunda entre cabeça e coração, e com suas conseqüências nem sempre benéficas, o primeiro passo de superação está dado. Mais além, seria possível então visualizar uma ciência social de uma espécie diferente da que a maioria de nós vem praticando: uma ciência sócio-moral, em que as considerações de moralidade não são recalcadas nem apartadas, mas sistematicamente associadas ao argumento analítico, sem que a eventual falta de integração desperte culpabilidade; em que as idas e vindas entre a pregação e a prova sejam freqüentes e fáceis; e nem que as considerações morais não necessitem entrar pela via subreptícia, nem expressar-se inconscientemente, mas possam apresentar-se de modo aberto e desarmante. Este seria, em parte, meu sonho de uma "ciência social para os nossos netos". NOTAS Este trabalho — dedicado pelo Autor à memória de Arthur M. Okun — foi lido na cerimônia de entrega do The Frank E. Seidman Distinguished Award in Political Economy, com que o Autor foi agraciado em 1980. Será publicado proximamente, em Albert O. Hirschman, Essays in Trespassing: Economics to Politics and Beyond, Cambridge University Press. Tradução de Roberto Schwarz. (N. da R.) DEZEMBRO DE 1981 Notas do Autor Uma espécie diferente do que praticamos: uma ciência sócio-moral (1) Oeuvres Complètes, ed. Roger Caillois, Paris, Pléiade, N.R.F., 1949, vol. I, p. 112. (2) Wealth of Nations, New York, Modern Library Edition, 1937, p. 14. (3) Hast du Verstand und ein Herz, sozeige nur eines von beiden, /Beides verdammen sie Dir, zeigest Du beides zugleich. — A distinção entre Verstand (entendimento) e Herz (coração) reflete a reabilitação das paixões no séc. XVIII, a qual fez do "coração" o representante dos sentimentos morais generosos, de paixões e impulsos benéficos, que agora passavam a caracterizar o homem, enquanto que a razão via-se rebaixada de posto; em tempos anteriores, o contraste entre paixões e razão, ou entre paixões e interesses — e não, como agora, entre cabeça e coração — tivera conotações de valor muito diferentes. Tratei destas matérias em Paixões e Interesses, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. (4) Cf. Gilles Gaston Granger, "L'explication dans les sciences sociales". Social Science Information 10, 1971, p. 38 (5) The New York Review of Books, 241-1980, p. 3. O livro resenhado é de Donald Symons, The Evolution of Human Sexuality, New York, Oxford University Press, 1979. (6) Fred Hirsch, "The Ideological Underlay of Inflation", in Fred Hirsch e John H. Goldthorpe, eds., The Political Economy of Inflation, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1978, p. 274. (7) John H. Goldthorpe, "The Current Inflation: Toward a Sociological account", in The Political Economy of Inflation, p. l96. (8) Outra solução é combater o fogo com o fogo, e aplicar o que se poderia chamar "uma disposição para as vias de fato em sentido contrário". A idéia, muito discutida recentemente, de punir os patrões que aumentem salários acima de certo limite, punição efetivada através de taxação especial sobre os aumentos, tem como finalidade confessa "endurecer a espinha" do patronato no enfrentamento com os sindicatos militantes. Também as injunções monetaristas podem ser vistas como proposta para contrapor à disposição bélica dos vários grupos sociais outra disposição igual do Banco Central (algo que em vários países chega a requerer regimes fortes e sangrias reais). Para um exame mais extenso dos aspectos sociológicos da inflação, ver "The Social and Political Matrix of Inflation", em meu livro a ser publicado em breve , Essays in Trespassing: Economics to Politics and Beyond, Cambridge University Press, cap. 8. (9) Principles of Political Economy, Londres, John Murray, 1820, pp. 3 e 518. Esta qualificação me foi indicada por Alexander Field; veja-se o seu "Malthus and Macroeconomics'', inédito, maio de 1980. Como aponta Field, as numerosas exposições de princípio que A. Smith espalhou em The Wealth of Nations só uma vez vêm acompanhadas de uma frase restritiva análoga: "contanto que não viole as leis da justiça". Cf. Modern Library Edition, p. 651. (10) Por exemplo, Kenneth Boulding, The Economy of Love and Fear: a Preface to Grant Economics, Belmont, Calif., Wadsworth, 1973; Edmund S. Phelps, ed., Alturism, Morality and Economic Theory, New York, Russel Sage Foundation, 1975; David Collard, Altruism and Economy: a Study in Non-Selfish Economics, Oxford, Martin Robertson, 1978. (11) Robert M. Solow, "On Theories of Unemployment", American Economic Review 70, março de 1980, pp. 3 e 4. (12) Prefácio à edição alemã, Albert O. Hirschman, Abwanderung und Widerspruch, Tuebingen, J.C.B. Mohr, 1974, p. VII.