A REFORMA ADMINISTRATIVA NO CONTEXTO DA REFORMA POLÍTICA Gileno F. Marcelino 1. INTRODUÇÃO Agradeço à ANESP e à ENAP pelo convite para a palestra sobre "A Reforma Administrativa no contexto da Reforma Política". É uma oportunidade única para, comemorando o êxito da escola e da carreira, fazer uma reflexão sobre uma reforma que, na realidade, pode viabilizar todas as demais reformas do estado brasileiro, como a política, a previdenciária, a tributária, um reclamo das ruas nos dias de hoje. E também para analisar um sonho de redemocratização do Estado brasileiro que começou a se concretizar com a criação da escola e a implantação da carreira, atendendo à imperiosa necessidade de adaptar as velhas estruturas aos novos tempos democráticos. E é com muita satisfação, repito, que vi essas duas instituições florescerem nesses 25 anos, com os naturais avanços e recuos que compõem as suas trajetórias. A Administração Pública brasileira, desde 1930, tem uma característica autocrática e impositiva concentrada nos meios, orientada para instrumentos, métodos e processos. Tanto isso é verdade que os dois processos de Reforma Administrativa efetivamente implementados foram desenvolvidos em períodos autoritários: o DASP em 1937 durante o Estado Novo e o Decreto Lei 200 no Regime Militar pós-1964. Assim, o aparelho administrativo do Governo, herdado do regime militar e com os insucessos dos Governos civis em reformá-lo, permaneceu desarticulado, inflexível e centralizado. O Brasil, na década de 70 do século XX, apontavam as pesquisas do CLAD - Centro Latino Americano de Administração para o Desenvolvimento, tinha consolidado uma das melhores burocracias do chamado mundo em desenvolvimento. Desde então, ela entrou em processo de deterioração. Um dos exemplos mais gritantes hoje em dia é a nossa capacidade de planejar que já foi avançada naquela década e hoje sequer dá conta dos compromissos com os grandes eventos internacionais programados até 2016. Assim, na Comissão Geral de Reforma da Administração Pública proposta pelo Ministro Aluizio Alves e implantada pelo Presidente José Sarney em julho de l985, em cerimônia no Palácio do Planalto surgiu, naturalmente, um grupo que pensava estrategicamente a reforma administrativa da Nova República, do qual faziam parte os professores Nilson Holanda e * Palestra proferida na ENAP - Escola Nacional de Administração Pública, na cerimônia de comemoração dos 25 anos da ENAP e da carreira de "gestores governamentais". ** Professor da FACE - Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia da UnB e Professor Visitante da J. L Kellogg Graduate School of Management – Northwestern University, Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo. Pesquisador, Consultor e Autor de diversas publicações. 2 Florindo Villa-Alvarez, diletos amigos, que assumiram a Direção Geral e a Diretoria de Ensino da ENAP. O diag1nóstico em 1985 era muito claro: precisávamos pensar novas instituições que pudessem ajudar a reconstruir a gestão pública em um ambiente democrático. A 2ssim surgiu a idéia de uma ENAP, uma escola de governo e "think tank" para repensar a gestão pública e de uma carreira de gestores governamentais, com o curso de formação de 18 meses cuja grade programática, discutida, exaustivamente durante dois anos, foi devidamente adequada às condições da Administração Pública brasileira a partir da matriz da ENA francesa, que nos serviu de referência. E agora, 25 anos depois, vejo com muita alegria uma massa crítica de mais de 1.000 especialistas em políticas públicas se espraiando pela Esplanada dos Ministérios e ocupando funções de relevância no Governo Federal, capazes de atender aos reclamos da sociedade brasileira por um Estado eficiente e eficaz e de pensar o Estado que ela necessita para atender às suas inúmeras carências. 2. MODELOS DE REFORMA As propostas de Reforma Administrativa surgem a partir do novo papel intervencionista que o Estado assumiu, no Brasil e na América Latina, após a década de 30 e da necessidade de melhorar a capacidade de gestão. Foi, na realidade, a percepção dessa necessidade que levou os países da região a realizar, nos últimos setenta anos, amplos programas de Reforma Administrativa com resultados, no mínimo, duvidosos. No Brasil, o moderno Estado Administrativo foi estruturado, inicialmente, nas décadas de 30 e 40, durante o Governo Getúlio Vargas, por intermédio da primeira Reforma Administrativa planejada que o País conheceu, dando origem ao chamado "modelo burocrático" porque se fundamentava nos conceitos e princípios dos autores da escola clássica e da teoria da burocracia. Esse modelo somente foi substituído na década de 60 quando o Estado institucionalizou seu papel de intervenção na vida produtiva nacional, instituindo o segundo modelo que denominei no meu livro Evolução do Estado e Reforma Administrativa de “Administração para o Desenvolvimento”. Analisando o contexto econômico, político e institucional da época, é possível refletir sobre as principais restrições ao processo de Reforma Administrativa no período pós-85 que corresponde ao processo de redemocratização do País. 1 2 3 O governo Sarney, primeiro governo civil após o período militar, recebeu uma herança político-institucional de coalizões e alianças amplas e heterogêneas que impossibilitou formar uma base política forte, não conseguindo, dessa forma, um apoio significativo no Congresso Nacional. O Governo carecia de direcionamento e liderança na articulação política. Por um lado, a Aliança Democrática enfrentava dissensões internas, com a divisão ideológica de seus principais partidos políticos – PMDB e PFL. Por outro, o Governo não possuía um articulador político, dificultando, com isso, o entendimento entre o Planalto e o Congresso. Este, por sua vez, em 1986, ano de eleições para a Câmara dos Deputados e Governadores, fazia acirradas críticas ao Presidente Sarney, criando um ambiente de conflito permanente entre o Executivo e o Legislativo. Situado num contexto de crise econômica, abrandado efemeramente, de fevereiro de 1986 a meados do mesmo ano, pelo Plano Cruzado, o Governo da “Nova República” carecia de instrumentos legais e institucionais para coordenar as ações político-econômicas. Eram apresentados planos após planos, todos fadados ao fracasso. A partir de março de 1990, com o Governo Collor, estabeleceu-se um processo drástico de cirurgia cuja avaliação mais profunda ainda está por ser feita mas que teve, certamente, implicações traumáticas no funcionalismo público e na Administração Pública Federal. A Reforma Administrativa do Governo Collor propôs uma estratégia em que as regras, métodos e normas de administração seriam condicionadas pelos objetivos a atingir e os programas e projetos a desenvolver. No entanto, na prática, isso não aconteceu, predominando a antiga orientação processualista. As medidas de extinção de órgãos e entidades e de demissão e disponibilidade de servidores provocaram uma atitude de insegurança e inércia dos funcionários públicos acarretando uma certa paralisia da máquina, refletindo, negativamente, no processo reformista. Por sua vez, os projetos voltados para a formação, aperfeiçoamento e treinamento dos servidores, indispensáveis para o andamento da reforma, não foram implementados. Embora as diretrizes e princípios das Reformas Administrativas planejadas atendam às demandas sociais - tais como o enxugamento do Estado e a contenção de gastos públicos - elas deixaram, até o momento, de ser implementadas por restrições legais e institucionais, insucesso esse interpretado principalmente pela “mídia” como falta de vontade política. No plano social, as aspirações e prioridades, afloradas com o processo de transição política, são traduzidas em pressões para mudanças político-administrativas. Mas, transformar 4 um aparato administrativo inorgânico, ineficiente, agigantado, em “instituições socialmente eficazes”, ou seja, “ágeis nas respostas às demandas da população”, conforme proposto nos documentos originais da reforma da Nova República, é uma tarefa audaciosa e extremamente complexa. 3. ESTADO MODERNO Em trabalho pioneiro de pesquisa para identificar a percepção da sociedade e da imprensa sobre implementação de programas de reformas (Governo, Imagem e Sociedade - Marcelino, l988), mencionávamos, fundamentados em ampla literatura e experiências da América Latina, algumas características de um Estado moderno e que deveriam orientar futuros processos de Reforma/Modernização do Estado (transcrevo literalmente por representar ainda um insight de uma situação que não se alterou um quarto de século depois): • as estruturas estatais deveriam ser altamente flexíveis, ao contrário da rigidez atual, para enfrentar as turbulências e incertezas dos dias de hoje. Isto implicaria em se deixar de lado a tecnologia clássica das reestruturações organizacionais e buscar novas formas, como o gerenciamento de projetos e a estrutura matricial, ao invés de detalhar organogramas, regimentos internos ou descrever funções; • o perfil organizacional deveria estimular e provocar o pensamento estratégico. Assim, propõe-se uma busca de melhor monitoramento e integração com o meio ambiente e revisão de procedimentos e práticas atuais ao invés de buscar eficientizálos através de instrumentos e aplicativos modernos • em decorrência dessa busca de flexibilidade e estratégia, dever-se-ia procurar desenvolver a capacidade do Estado de promover projetos multi-institucionais, projetos que logrem quebrar a barreira da departamentalização tradicional existente nas organizações burocráticas. A realidade é multidimensional e interdisciplinar e necessita de diferentes órgãos e entidades para sua transformação e mudança; • em quarto lugar, o Estado Moderno deveria incentivar a participação e a motivação dos seus servidores. Os modelos burocráticos tradicionais, pela sua neutralidade e mentalidade, sufocam essa motivação. As organizações do futuro devem ser crescentemente participativas; • um quinto ponto do perfil organizacional desse Estado do futuro é o estabelecimento de um intercâmbio absolutamente ativo com a sociedade e os cidadãos. Este é, 5 aliás, um princípio básico dos regimes democráticos e é, também, uma exigência em termos de eficiência administrativa. (Na atual conjuntura, o estímulo à participação tornou-se um imperativo para atender a voz rouca das ruas); • uma decorrência desse ponto e, é claro, da própria crise que assola a América Latina, é a capacidade gerencial do Estado em um clima de administração de escassez. Isto é tão mais importante na medida em que, por sua crise, o Estado brasileiro fez uma opção por programas sociais que exigem capacidade gerencial porque são, essencialmente, programas multi-intitucionais; • por último, o Estado deve melhorar a infra-estrutura institucional para o desenho de suas políticas públicas. O Estado brasileiro, em particular, e latino-americano, em geral, deve desenvolver condições de eficiência organizacional com adequados sistemas de informação e suporte institucional para continuar desempenhando seu papel de indutor e promotor do processo de desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que percorre o complicado caminho da integração regional. Vinte e cinco anos após a publicação do livro "Governo, Imagem e Sociedade" que se revelou premonitório, por esta mesma casa onde nos reunimos hoje, essas diretrizes pensadas em 1988 continuam sem implementação. À guisa de conclusão, diríamos que os processos de Reforma/Modernização desenvolvidos em nosso País continuam sem atingir esses objetivos. A Reforma Administrativa do Governo Sarney, frustrada em seu desenvolvimento por problemas políticos e institucionais e a Reforma do Governo Collor, brutal em sua execução e sem estratégia definida, foram tentativas mal-sucedidas de mudanças da Administração Pública brasileira. A Reforma do Governo FHC teve rumos e estratégias definidas e condições de se transformar em um terceiro modelo de Administração Pública no País, mas não alcançou este objetivo, talvez por não aceitar a sugestão do meu professor de Sociologia na EBAP, Alberto Guerreiro Ramos, que pregava a "redução sociológica", ou seja, a devida adaptação à cultura local no transplante de modelos estrangeiros para a realidade nacional. Os Governos Lula e Dilma ignoraram em sua agenda política o assunto Reforma Administrativa e pouco acrescentaram em termos de análise e reflexão. Isto, apesar dos esforços dos Secretários da SEGES, no primeiro mandato do Presidente Lula, de propor planos e projetos para dar continuidade aos esforços de Reforma Administrativa. Portanto, restou um desafio para as novas gerações de gestores públicos: à semelhança do ideograma chinês que pode ter uma dupla tradução, transformar uma ameaça em oportunidade: nesta hora em que as ruas pedem um Estado forte e justo. Surge a necessidade de repensar a 6 reforma administrativa para viabilizar todas as demais reformas previstas. E no contexto da reforma política que inevitavelmente virá pelo reclamo das ruas, proponho especialmente aos gestores governamentais assumir um compromisso que a primeira turma, apelidada carinhosamente de "gestosssauros" cumpriu de brigar pela carreira e contribuir para a refundação da Administração Pública brasileira, desenhando um Estado que nos permita alcançar o patamar do primeiro mundo. Para isso foi criada a ENAP e para isso foram recrutados, selecionados e formados os especialistas em políticas públicas e gestão governamental. Porque, como já dizia o poeta e escritor Fernando Pessoa, amplamente citado pelo líder Ulysses Guimarães, "navegar é preciso, viver não é preciso". BIBLIOGRAFIA BRASIL, Leis, Decretos, etc. Exposição de Motivos s/n°, de 3. 9. 86, Diário Oficial da União. Brasília. 4. 9.86. Seção I. KLIKSBERG, Bernardo – Nuevas Fronteras Tecnologicas em matéria de gerencia em America Latina. Revista de la CEPAL, n° 31: pg. 179 – 199, abril , 1987.. LAMOUNIER, B. e MENEGUELLO, R. org. – Partidos Políticos e Consolidação Democrática, o Caso Brasileiro. São Paulo. Editora Brasiliense S.A . 1986. MARCELINO, Gileno – Evolução do Estado e Reforma Administrativa. Brasília. SEDAP. 1987. MARCELINO, Gileno - Governo, Imagem e Sociedade. Brasília. FUNCEP. 1988. MARCELINO, Gileno – Administração Pública Brasileira: Modelos, Reformas e Perspectivas. 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