Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório
de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de
Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde
(universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase
à pesquisa qualitativa.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University
(Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu
Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education
(Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences.
Qualitative research is emphasized.
Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual
Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias
Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud,
la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y
las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.
EDITORES/EDITORS/EDITORES
Antonio Pithon Cyrino, Unesp
Lilia Blima Schraiber, USP
EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR
Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp
EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS
ASISTENTES
Denise Martin Covielo, Unifesp
Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação
EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA
EJECUTIVA
Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação,
Saúde, Educação
EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA
Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP
Charles Dalcanale Tesser, UFSC
Claudio Bertolli Filho, Unesp
Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP
Janine Miranda Cardoso, FioCruz
Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp
Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp
Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL
Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar
Silvio Yasui, Unesp
Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp
Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ
Editora de Resenhas/ Reviews Editor /Editora de
Reseñas
Francini Lube Guizardi, Fiocruz
PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO
GRÁFICO
Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto
gráfico-textual
Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual
Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign
Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración
electrónica
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PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/
PRODUCCIÓN EDITORIAL
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Auxiliar administrativo/Administrative assistant/ Ayudante
administrativo
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Normalização/Normalization/Normalización
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Manutención del sitio
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Creación
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Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación
Eduardo Augusto Alves Almeida, USP
Eliane Dias de Castro, USP
Gisele Dozono Asanuma, USP
Paula Carpinetti Aversa, USP
Renata Monteiro Buelau, USP
Capa/Cover/Portada: Apresentação da Oficina de Dança e
Expressão Corporal do Projeto Cidadãos Cantantes. Registro
fotográfico e produção da imagem: Renata Monteiro Buelau e
Isabela Umbuzeiro Valent, 2014.
ISSN 1807-5762
comunicação
Saúde e educação
Ideologia
Análise do
discurso
Intersetori
ali
dade
educação
Saúde
Mídia
grafia
Carto
Gestão
Ética
Educação
médica
Tutoria
Saúde da Família
Narrativa
Vulnerabilidade
Saúde Mental
Planejamento Estratégico.
Inovação
ção
Educa da
a
Continu
Violência
Intervenção artística do Grupo Caixa de Imagem. Registro fotográfico e produção
da imagem: Renata Monteiro Buelau e Isabela Umbuzeiro Valent, 2014
Atenção Básica
à Saúde
Arte
Formação
em saúde
o
açã
Educ úde
a
em S
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53)
Interface - comunicação, saúde, educação/
Unesp, 2014; 19(53)
Botucatu, SP: Unesp
Trimestral
ISSN 1807-5762
1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde
3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação
5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde
I Unesp
Filiada à
A
B
E
C
Associação Brasileira de
Editores Científicos
comunicação
saúde
2015; 19(53)
229
editorial
artigos
237 O conceito de vulnerabilidade
e seu caráter biossocial
Natasha Ventura da Cunha; Maria de Lourdes Tavares
Cavalcanti; Maria Lúcia Freitas dos Santos; Vanusa de
Lemos Andrade Araújo; Débora Medeiros de Oliveira
e Cruz; Gabriela Fonte Pessanha; Pauline Lorena Kale;
Antonio José Leal Costa
ISSN 1807-5762
337 Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE): elementos
para avaliação de projetos sociais em Juazeiro,
Bahia, Brasil
Marcelo Silva de Souza Ribeiro; Carla Valois Ribeiro
349 Residência Multiprofissional em Saúde da Família:
concepção de profissionais de saúde
sobre a atuação do nutricionista
Irani Gomes dos Santos; Nildo Alves Batista; Macarena
Urrestarazu Devincenzi
Rafael Antônio Malagón Oviedo; Dina Czeresnia
251 Estrutura, organização e processos de trabalho
no controle da tuberculose em municípios
do estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil
educação
361 Novos espaços de reorientação para formação
em saúde: vivências de estudantes
Juliana Alves Leite Leal; Cristina Maria Meira de Melo;
Rafaela Braga Pereira Veloso; Iraildes Andrade Juliano
373 Paradigmas e tendências do ensino universitário:
a metodologia da pesquisa-ação como estratégia
de formação docente
Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre
Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes
Carvalho Junior
265 Planejamento Estratégico como exigência ética
para a equipe e a gestão local da Atenção Básica
em Saúde
José Roque Junges; Rosangela Barbiani; Elma Lourdes
Campos Pavone Zoboli
275 A violência na vida de mulheres
em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil
Anderson da Silva Rosa; Ana Cristina Passarella Brêtas
espaço aberto
387 Educação, cinema e infância: um olhar sobre
práticas de cinema em hospital universitário
Fernanda Omelczuk; Adriana Fresquet; Angela
Medieros Santi
287 Atuação do psicólogo em situações de desastre:
reflexões a partir da práxis
Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub; Débora da
Silva Noal; Letícia Nolasco Vicente; Felícia Knobloch
299 Comunicação e saúde nos manuais dos
organismos internacionais para situações de
emergência e desastre: intervenção e hegemonia
395 Capacitação em álcool e outras drogas
para profissionais da saúde e assistência social:
relato de experiência
Pedro Henrique Antunes da Costa; Daniela Cristina
Belchior Mota; Erica Cruvinel; Fernando Santana de
Paiva; Henrique Pinto Gomide; Isabel Cristina Weiss
de Souza; Leonardo Fernandes Martins;
Pollyanna Santos da Silveira; Telmo Mota Ronzani
Luciana Lindenmeyer; Carla Macedo Martins
311 Comunicação entre trabalhadores de saúde
e usuários no cuidado à criança menor de dois
anos no contexto de uma unidade
de saúde da família
Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus;
Rebecca Soares de Andrade; Lidia Ruiz-Moreno;
Luciane Soares de Lima
325 Da invisibilidade à epidemia: a construção
narrativa do autismo na mídia impressa brasileira
Clarice Rios; Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli;
Leonardo Fernandes Nascimento
405
teses
notas breves
407 Encontro Arte, Saúde e Cultura:
compartilhando saberes e experiências em interface
Isabel Cristina Lopes; Isabela Umbuzeiro Valent;
Renata Monteiro Buelau
comunicação
saúde
2015; 19(53)
233
editorial
articles
237 The concept of vulnerability and its biosocial
nature
Natasha Ventura da Cunha; Maria de Lourdes Tavares
Cavalcanti; Maria Lúcia Freitas dos Santos; Vanusa de
Lemos Andrade Araújo; Débora Medeiros de Oliveira
e Cruz; Gabriela Fonte Pessanha; Pauline Lorena Kale;
Antonio José Leal Costa
Marcelo Silva de Souza Ribeiro; Carla Valois Ribeiro
349 Multiprofessional residency in family health:
the conceptions of healthcare professionals
regarding nutritionists’ performance
Irani Gomes dos Santos; Nildo Alves Batista; Macarena
Urrestarazu Devincenzi
361 New reorientation spaces for healthcare education:
students’ experiences
Juliana Alves Leite Leal; Cristina Maria Meira de Melo;
Rafaela Braga Pereira Veloso; Iraildes Andrade Juliano
373 Paradigms and trends in higher education:
the action research methodology as a teacher
education strategy
Erica Toledo de Mendonça; Rosângela Minardi Mitre
Cotta; Vicente de Paula Lelis; Paulo Marcondes
Carvalho Junior
265 Strategic planning as an ethical requirement for
primary healthcare teams and local management
José Roque Junges; Rosangela Barbiani; Elma Lourdes
Campos Pavone Zoboli
275 Violence in the lives of homeless women
in the city of São Paulo, Brazil
Anderson da Silva Rosa; Ana Cristina Passarella Brêtas
287 Psychologists’ actions in disaster situations:
reflections based on practice
Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub; Débora da
Silva Noal; Letícia Nolasco Vicente; Felícia Knobloch
299 Communication and health in international
organizations’ manuals for emergency and disaster
situations: intervention and hegemony
open space
387 Education, cinema and childhood:
a look at cinema practices in a university hospital
Fernanda Omelczuk; Adriana Fresquet; Angela
Medieros Santi
395 Training on alcohol and other drugs for health
and social care professionals: report on experience
Pedro Henrique Antunes da Costa; Daniela Cristina
Belchior Mota; Erica Cruvinel; Fernando Santana de
Paiva; Henrique Pinto Gomide; Isabel Cristina Weiss
de Souza; Leonardo Fernandes Martins;
Pollyanna Santos da Silveira; Telmo Mota Ronzani
Luciana Lindenmeyer; Carla Macedo Martins
311 Communication of healthcare workers and users in
caring for children under two years old
in the context of a family health unit
Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus;
Rebecca Soares de Andrade; Lidia Ruiz-Moreno;
Luciane Soares de Lima
325 From invisibility to epidemic: the narrative construction of autism in the Brazilian press
Clarice Rios; Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli;
Leonardo Fernandes Nascimento
ISSN 1807-5762
337 Health and prevention at schools: elements
for evaluating social projects in Juazeiro,
Bahia, Brazil
Rafael Antônio Malagón Oviedo; Dina Czeresnia
251 Structure, organization and working processes
within tuberculosis control in municipalities in the
state of Rio de Janeiro, RJ, Brazil
educação
405
theses
brief notes
407 Meeting Art, Health and Culture: sharing
knowledge and experiences in interface
Isabel Cristina Lopes; Isabela Umbuzeiro Valent;
Renata Monteiro Buelau
DOI: 10.1590/1807-57622015.0194
editorial
Por um campo específico de estudos sobre processos
migratórios e de saúde na Saúde Coletiva
A construção de uma abordagem para a compreensão do fenômeno das
migrações ao longo da história humana, com foco exclusivo nos fluxos
internacionais, conduz-nos a defini-los, em sua forma de manifestação atual,
como consequência da chamada globalização, concebida como o atual estágio
de desenvolvimento do sistema capitalista mundial1. Os fluxos migratórios
internacionais constituem mudanças sociopolíticas e econômicas, com
repercussões globais e locais, constantemente acionadas e aprofundadas sob o
domínio do processo da globalização.
De forma contrária aos processos de migração transatlânticos ocorridos
durante o século XIX e início do século XX, para o Brasil, Argentina, Austrália,
Canadá e Estados Unidos, entre outros países – de caráter “definitivo” e
conectados às políticas de povoamento e às exigências específicas dos mercados
locais de trabalho –, as imigrações internacionais respondem, cada vez mais, às
demandas “temporárias” por força de trabalho e aos deslocamentos de grupos
de pessoas expulsas de suas comunidades e/ou de seus países devido a fatores
ambientais, guerras e outras consequências geradas pela hegemonia mundial
neoliberal.
Dentro do sistema atual de imigração no Cone Sul, a partir da década de
1980, o Brasil e a Argentina passaram a constituir países de atração e recepção
de imigrantes dos países que compõem suas linhas de fronteira: Bolívia,
Paraguai e Peru. Mais recentemente, imigrantes e refugiados de países africanos,
juntamente com os sul-asiáticos, passaram a compor o conjunto de grupos de
imigrantes em trânsito pelo Cone Sul, alterando as rotas anteriormente dirigidas
aos Estados Unidos e ao continente Europeu2-4.
Observa-se certa tendência de que grande parte destes grupos de imigrantes
desloca-se de seus países de origem e passa a fazer parte de uma economia
informal nos países receptores, estabelecendo-se e concentrando-se em áreas
precárias, ou em condições de moradias insatisfatórias nas cidades de São
Paulo e de Buenos Aires, respectivamente. Esta dinâmica de inserção laboral e
territorial tem sido determinada, sobretudo, pela escassez de recursos materiais
e de ação política de que dispõem estes grupos; e configura, portanto, parte
das desigualdades estruturais que caracterizam as sociedades de destino desses
imigrantes.
Consideramos necessário abordar os processos de violência estrutural
existentes em centros urbanos receptores de imigrantes, como os identificados
em nível regional, e sua relação com diferentes processos de adoecimento
sofridos por indivíduos pertencentes a esses grupos socioculturais subordinados,
cujos estilos de vida, trabalho e moradia têm se desenvolvido em contextos
particulares marcados pela vulnerabilidade social e por situações concretas de
riscos à saúde5-7.
Do ponto de vista da Saúde Coletiva, as cidades de São Paulo e de Buenos
Aires e suas conexões metropolitanas, enquanto unidades de análise, têm
sido privilegiadas em nossas observações. Nestas regiões são encontrados
perfis etnoepidemiológicos específicos entre os variados grupos de imigrantes.
Assim, podem ser observados: diversos indicadores de saúde que apontam
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):229-32
229
o incremento de iniquidades como consequência das desigualdades e modos
de vida e de trabalho precários; a prevalência de doenças infecciosas, como a
tuberculose; a transposição, pelas fronteiras, de doenças endêmicas, como a
doença de Chagas; ou, mesmo, barreiras no acesso aos cuidados de saúde, para
listar alguns dos problemas já identificados. Além disso, resultados preliminares
de investigações têm evidenciado que, de maneira geral, os imigrantes vêm
mantendo, ressignificando ou mudando suas concepções e práticas sobre o
processo saúde-doença-cuidados desde suas origens em relação às concepções
e práticas vivenciadas no contexto sociossanitário de destino, com o agravante
de que utilizam, com menor frequência, os serviços públicos de saúde quando
comparados aos “nativos”4-10.
Constatamos uma relativa escassez de pesquisas sobre o assunto produzidas
pelas disciplinas que formam o campo da Saúde Coletiva. É necessário produzir
contribuições inovadoras que se debrucem sobre aspectos empíricos, conceituais
e metodológicos das investigações sobre processos migratórios internacionais
contemporâneos e da saúde destes grupos, reconhecendo suas especificidades
e as particularidades dos contextos históricos, sociais e geográficos em que se
desenvolvem.
As hipóteses em nossas investigações, concluídas ou em andamento, dizem
respeito a casos de imigrantes e refugiados sul-americanos e africanos nas regiões
metropolitanas de São Paulo e Buenos Aires. Parte dos processos de adoecimento
que sofrem os grupos mencionados constituem complexos resultados de seus
modos de vida e trabalho em contextos de vulnerabilidade social dessas duas
áreas urbanas que, com frequência, envolvem situações de risco concreto à
saúde, inerentes a sua inserção como imigrantes nessas sociedades.
Outra hipótese é a de que os processos de atenção aos padecimentos e
sofrimentos decorrentes desse processo são interdependentes à situação descrita
anteriormente, sendo, também, influenciados pela situação de imigração e
suas consequências administrativas, que resultam na oscilante capacidade de
exercício de direitos e de condições de acesso aos serviços públicos de saúde para
imigrantes e/ou refugiados em cada uma dessas cidades; bem como no âmbito
das relações entre profissionais de saúde e pacientes, e da qualidade dos cuidados
oferecidos pelos sistemas de saúde.
Propomos que análises sobre o contexto sociocultural dos problemas de saúde
desta população (os imigrantes e refugiados das Américas Central e do Sul, da
África, do Sul da Ásia e, mais recentemente, pessoas oriundas de áreas de guerra
no Oriente Médio) não podem constituir, simplesmente, mais uma variável a ser
incorporada aos estudos sobre processos migratórios e de saúde, encerrando,
dessa maneira, um modelo interpretativo reducionista desses processos. Pelo
contrário, geralmente, estas variáveis que indicam processos de adoecimento e
patologias específicas ​​podem identificar importantes situações de vulnerabilidade
e ​​de risco para a saúde desses grupos específicos. As desigualdades sociais, que
resultam em desigualdades na saúde, não devem se estabelecer apenas como
indicadores unicamente em relação a determinados processos de adoecimento
e/ou patologias específicas, mas, fundamentalmente, em relação a acesso aos
serviços públicos, diagnóstico e tratamento a que se submetem os imigrantes.
O objetivo de somar contribuições às abordagens sobre os processos
migratórios internacionais e a saúde teria de ser dirigido não somente ao
230
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):229-32
conhecimento das experiências de vida desses sujeitos (com evidentes episódios
de violação de seus direitos fundamentais; submissão a processos de exploração,
discriminação, estereótipos e criação de estigmas) e dos problemas específicos
(desconhecidos e, em muitos casos, invisíveis). Deve, também, permitir o
desenvolvimento de ferramentas conceituais e enfoques metodológicos
que inovem por meio de abordagens transnacionais e interdisciplinares na
problemática da saúde dos imigrantes, a partir das perspectivas do campo da
Saúde Coletiva e do recurso do método comparativo nos estudos regionais no
Cone Sul. Os esforços deveriam ter por objetivo caracterizar aspectos clínicos e
socioculturais de grupos de imigrantes, viabilizando a geração de informações
qualitativas e quantitativas que, de forma articulada, possam ser transferidas
para as políticas de saúde e para a reorganização dos serviços de saúde, com a
reformulação de ações mais específicas de proteção e promoção nas intervenções
de saúde pública.
Como objetivo em médio prazo, contribuir para a construção de uma política
de saúde pública com uma abordagem regional, baseada na prevenção, e
que reconheça o pluralismo de cuidados existentes na sociedade e as diversas
experiências culturais dos imigrantes, para que não sejam considerados grupos
homogêneos, e para garantir a acessibilidade a uma saúde universal de qualidade.
Convidamos os pesquisadores do campo da Saúde Coletiva ao desafio da
produção de investigações sobre as complexas tramas evidenciadas nas relações
entre os processos migratórios e de saúde.
Alejandro Goldberg
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica de
Santos. Santos, SP, Brasil.
Denise Martin
Cátedra Sergio Vieira de Mello, Universidade Católica de Santos.
Santos, SP, Brasil.
Cássio Silveira
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):229-32
231
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Saude Publica. 2013; 29(10):2017-27.
232
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):229-32
Towards a specific field of studies on migratory
and health processes within Public Health
Construction of an approach for comprehending the phenomenon of migrations
over the course of human history, focusing exclusively on international flows,
leads us to define them, in the way in which they are manifested today, as
a consequence of so-called globalization, thought of as the current stage of
development of the worldwide capitalist system.1 International migratory
flows constitute sociopolitical and economic changes with local and global
consequences that are constantly brought into action and deepened under the
sway of the globalization process.
Unlike the transatlantic migratory processes that occurred during the
nineteenth century and at the beginning of the twentieth century, to Brazil,
Argentina, Australia, Canada and the United States, among other countries,
which were of “definitive” nature and took place in connection with population
growth policies and the specific requirements of the local employment markets,
international migration today occurs increasingly as a response to “temporary”
demands for a labor force and to displacement of groups of people who are
expelled from their communities and/or countries due to environmental factors,
wars and other consequences generated through the worldwide neoliberal
hegemony.
Since the 1980s, within the current migratory system in the “southern cone”
of South America, Brazil and Argentina have become countries that attract and
receive immigrants from countries along their borders, i.e. from Bolivia, Paraguay
and Peru. More recently, immigrants and refugees from African countries, along
with people from southern Asia, have come to form part of the immigrant groups
in transit in the southern cone, thereby altering the routes that previously had
been directed towards the United States and the European continent2-4.
A certain trend can be seen among these groups of immigrants who have
been displaced from their counties of origin, in which a large proportion of these
people become part of the informal economy of the receiving countries. They have
become established and concentrated in precarious areas, under unsatisfactory
housing conditions, in the cities of São Paulo (Brazil) and Buenos Aires (Argentina).
This dynamic of inclusion in the labor market and in their physical setting has
been determined especially by the shortage a material resources and political clout
that these groups have. It therefore forms part of the structural inequalities that
characterize the societies that these immigrants end up in.
We consider that it is necessary to address the processes of structural violence
that exist in the urban centers that receive immigrants, along with those identified
at regional level. Moreover, the relationship of these processes with different
illness processes suffered by individuals belonging to these socioculturally
subordinated groups need to be examined. These individuals’ lifestyle, work and
housing have developed in particular contexts marked by social vulnerability and
by concrete situations of risks to health5-7 .
From a public health point of view, the cities of São Paulo and Buenos Aires
and their metropolitan connections have a prominent place in our observations,
as analysis units. These regions present specific ethno-epidemiological profiles
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):233-6
editorial
DOI: 10.1590/1807-57622015.0194
233
for the various immigrant groups. Thus, different health indicators show that
the consequence of the inequalities and the precarious ways of life and work
has been greater inequity, with high prevalence of infectious diseases such as
tuberculosis, transposition of endemic diseases like Chagas disease across borders
and even barriers against access to healthcare, to list just some of the problems
already identified. In addition, preliminary results from investigations have shown
that in a general manner, the immigrants have maintained or resignified or
changed their conceptualizations and practices relating to the health-disease-care
process from their origins, with regard to those experienced within the social and
healthcare context of their new location. However, the complicating factor within
this is that they use public healthcare services less often that the “natives” do4-10.
We have observed that there is a relative scarcity of research on this subject,
produced within the disciplines that form the field of public health. There is a
need to make innovatory contributions that address the empirical, conceptual and
methodological aspects of investigations on contemporary international migratory
processes and on the health of these groups. The specific nature and the
particular features of the historical, social and geographic contexts within which
these groups develop need to be recognized.
The hypotheses in our investigations that have been concluded or that are
still in progress relate to cases of South American and African immigrants and
refugees in the metropolitan regions of Sao Paulo and Buenos Aires. Part of the
process of becoming ill among these groups consists of complex results from
these individuals’ ways of life and work, within the contexts of social vulnerability
in these two urban areas. Their ways of life and work frequently involve situations
of material risk to health that are inherent to the way in which they have been
included as immigrants in these societies.
Another hypothesis is that the processes of attending to the suffering
and distress resulting from this are interdependent on the situation described
previously. They are also influenced by the immigration situation and its
administrative consequences, which has the result that immigrants and/or
refugees in each of these cities experience varying capacity to exercise rights and
have access to public healthcare services. The scope of relationships between
healthcare professionals and patients and of the quality of care provided by the
healthcare system is also a variable.
We propose that analyses on the sociocultural context of the health
problems of this population (immigrants and refugees from Central and South
America, Africa and southern Asia and, most recently, people coming from war
areas in the Middle East) cannot simply constitute an additional variable to be
incorporated into studies on migratory and health processes, thereby ending
up as a reductionist interpretative model of these processes. On the contrary,
these variables that indicate processes of becoming ill and specific pathological
conditions are generally able to identify important situations of vulnerability and
risk to health in these specific groups. Social inequalities that result in health
inequalities should not be established just as indicators that relate solely to certain
processes of becoming ill and/or specific pathological conditions. Rather, they
should fundamentally be determined in relation to the access to public services,
diagnoses and treatments that immigrants are subjected to.
The objective of adding contributions to the approaches towards international
234
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):233-6
migratory processes and health has to be directed not only towards finding out
about these individuals’ experiences of life (with evident episodes of violation
of their fundamental rights and submission to processes of exploitation,
discrimination, stereotyping and stigmatization) and specific problems (which
will be unknown and, in many cases, invisible). Such contributions also need
to make it possible to develop conceptual tools and methodological foci that
innovate through transnational and interdisciplinary approaches towards the
problem of immigrants’ health, starting from the perspectives of the field of
public health and the resource of comparative methods in regional studies within
the southern cone. These efforts should have the aim of characterizing the
clinical and sociocultural aspects of immigrant groups, thus making it possible
to generate qualitative and quantitative information that, when joined together,
can be transferred to healthcare policies and used for reorganizing the healthcare
services, with reformulation of actions so as to provide more specific protection
and to promote public healthcare interventions.
The medium-term objective should be to contribute towards construction
public healthcare policies with a regional approach based on prevention. The
pluralism of care existing within society and the immigrants’ diverse cultural
experiences should be recognized, so that these individuals are not considered
to be a homogenous group, and so as to ensure accessibility to quality universal
healthcare.
We invite researchers within the field of public health to take on the
challenge of producing investigations on the complex processes observed in the
relationships between migratory processes and health.
Alejandro Goldberg
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Católica de
Santos. Santos, SP, Brasil.
Denise Martin
Cátedra Sergio Vieira de Mello, Universidade Católica de Santos.
Santos, SP, Brasil.
Cássio Silveira
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):233-6
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Referências
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alrededor del significado de ser inmigrante (y argentino) en España. Buenos Aires:
Prometeo Libros; 2007.
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236
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):233-6
DOI: 10.1590/1807-57622014.0436
artigos
O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial
Rafael Antônio Malagón Oviedo(a)
Dina Czeresnia(b)
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D. The concept of vulnerability and its biosocial nature.
Interface (Botucatu). 2015; 19(53):237-49.
One of the theoretical exercises relating to
public health comprises the necessary and
continuing task of discussing the concepts
that underlie its practices. A critical analysis
on the uses of the concept of vulnerability
in relation to health, based on a systematic
review, provides the underpinning for
a discussion on its content, scope and
boundaries, with the aim of strengthening
the theoretical and practical potential
of the concept and the implied dialogue
between the different fields of knowledge.
This concept has high heuristic capacity
and can be applied in different fields. In
this article, it is characterized based on the
complex processes of biosocial fragility that
inextricably express biological, existential
and social values. This perspective
considers vulnerability to be an ontological
dimension constitutive of human life that
necessitates a diversity of complex security
systems.
Keywords: Health-related vulnerability.
Theoretical aspects of vulnerability.
Vulnerability studies.
Um dos exercícios teóricos da Saúde
Pública diz respeito à necessária e contínua
tarefa de se discutirem os conceitos nos
quais se ancoram suas práticas. Uma
análise crítica sobre os usos do conceito de
vulnerabilidade em saúde, com base em
uma revisão sistemática, serve de suporte
para uma discussão sobre seu conteúdo,
alcances e limites, no sentido de fortalecer a
potencialidade teórica e prática do conceito
e o diálogo entre as distintas áreas de
conhecimento implicadas. O conceito de
vulnerabilidade apresenta alta capacidade
heurística e aplicação diferenciada. Neste
artigo, ele é caracterizado com base em
complexos processos de fragilização
biossocial que exprimem, de maneira
inextrincável, valores biológicos, existenciais
e sociais. Esta perspectiva considera
vulnerabilidade como dimensão ontológica
constitutiva e constituinte da vida humana,
que reclama distintos e complexos sistemas
de segurança.
Palavras-chave: Vulnerabilidade em saúde.
Aspectos teóricos da vulnerabilidade.
Estudos sobre vulnerabilidade.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Departamento
de Saúde Coletiva,
Faculdade de
Odontologia,
Universidade Nacional
de Colômbia. Cidade
Universitária. Bogotá,
Colômbia, FOUN.
Bolsista Capes.
ramalagono@
unal.edu.co
(b)
Departamento
de Epidemiologia e
Métodos Quantitativos
em Saúde, Escola
Nacional de Saúde
Pública, Fundação
Oswaldo Cruz. Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
[email protected]
2015; 19(53):237-49
237
o conceito de vulnerabilidade ...
Introdução
Há mais de duas décadas, o conceito de vulnerabilidade goza de prestígio
no campo da saúde pública. Sua incorporação foi apresentada como alternativa
analítica e como abertura promissora frente à indiscutida hegemonia alcançada
pelo conceito de risco, originário da abordagem epidemiológica. Com vista a uma
leitura mais compreensiva dos complexos processos de saúde e enfermidade e,
portanto, auxiliadora de respostas sociais mais efetivas e integrais, a preocupação
com a vulnerabilidade encontrou plena vigência.
O estudo da vulnerabilidade esteve associado à história da epidemia de HIV/
AIDS, na década de 19901, quando foram realizados desenhos de intervenção
norteados por enfoques da atenção integral e processos de mobilização social
fundamentados nos Direitos Humanos. Essa foi a porta de entrada do conceito na
área da Saúde Pública.
Ancorada em uma expectativa renovada das práticas preventivas e de
promoção da saúde, e abrindo importantes possibilidades para a discussão
epistemológica e ético-jurídica em relação ao cuidado em saúde, a vulnerabilidade
se apresenta como fecunda elaboração conceitual capaz de alcançar um vasto e
heterogêneo universo de reflexões e práticas.
Porém, o uso estendido do conceito – inserido na construção de
problemas vinculados a múltiplas áreas, como saúde ambiental, saúde mental,
envelhecimento e saúde, doenças infecciosas e crônicas, estágios críticos de
fragilidade clínica, reflexões sobre a bioética etc. – aponta diversos caminhos
e perspectivas onde a sua aplicação apareceria carregada de ambiguidades e
contradições. Qual é o objeto que se designa quando estudos recentes no âmbito
clínico apoiam-se nesse conceito para nomear um estado clínico particular de
fragilidade? Qual era o objeto, quando os clássicos estudos da vulnerabilidade em
HIV/Aids pretendiam – mediante a pesquisa sistemática e a rigorosa observação
empírica – descrever as situações que melhor explicavam comportamentos sociais
que aumentam o perigo de transmissão?
Para além dessa circunstância, dado seu reconhecido valor heurístico(c), o
conceito é usado, há mais tempo, em outros campos afastados da área da saúde,
o que aumenta sua polissemia. As ciências jurídicas, a informática, as ciências
econômicas, a geografia, a geologia etc. empregam o conceito de vulnerabilidade
para designar objetos e situações diversas. No contexto da economia, por
exemplo, vulnerabilidade significa instabilidade financeira, crises, volatilidade de
preços etc., ou seja, situações que perturbam um curso desejado de eventos antes
existentes.
Analisar e discutir criticamente o conceito de vulnerabilidade no campo da
saúde é o objetivo do presente artigo. Para atingi-lo, na primeira parte, são
apresentados alguns dos usos mais relevantes da vulnerabilidade no campo
sanitário. Essa parte está baseada em uma pesquisa sistemática de artigos que
fazem referência expressa ao conceito. Foram incluídos 24 artigos de livre acesso,
correspondentes ao período de 2005 a 2012.
Na segunda parte, examinam-se abordagens teóricas que inspiraram
estudos empíricos sobre o tema. Por fim, na última parte, com o propósito de
fundamentar uma crítica geral sobre o conceito e explorar outros possíveis
desenvolvimentos, apresenta-se uma discussão sobre a vulnerabilidade como
dimensão ontológica constitutiva e constituinte da vida humana, apoiada em
reflexões de: Hanna Arendt, Hans Jonas, George Canguilhem, Paul Ricoeur e
Norbert Elias.
238
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
(c) O valor heurístico de
um conceito refere-se
à sua capacidade de
iluminar campos, a seu
valor “descobridor” e
inovador. A palavra
“heurístico” deriva
da expressão grega
“εὑρίσκειν”, a mesma
raiz do vocábulo
“eureka”, que tem por
significado “encontrar”,
“descobrir”.
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D
artigos
Vulnerabilidade em saúde: além da heurística do conceito
Respondendo a considerações pragmáticas, os termos científicos podem ser questionados pelos
seus usos2, na tentativa de se reconhecerem as lógicas em que são inseridos nos discursos e práticas. O
uso exprime o conteúdo semântico dos termos científicos, e define, por consequência, a capacidade de
determinação sintética dos objetos que referem.
Apesar dos avanços conceituais apontados a partir da década de 1990, o termo vulnerabilidade,
no campo sanitário, não foi utilizado segundo uma linha de análise definida, como se observou em
pesquisa sistemática realizada para este artigo, nas bases PUBMED e SciELO, usando como expressõeschave: vulnerability concept; vulnerabilidade conceito; vulnerabilidad concepto e vulnerabilidade e
risco.
Algumas publicações estudadas tomaram por referência determinantes muito globais, como
gênero, etnia, classe, com suporte na hipótese da distribuição desigual da vulnerabilidade na interseção
de tais variáveis. Esses estudos partem de prescrições ancoradas em determinismos históricos ou
causalistas, e fixam sua atenção nos pontos de convergência entre variáveis, visando descrições
mecanicistas ancoradas no dualismo indivíduo/estrutura. Por exemplo, as mulheres jovens, negras, que
moram em favelas, são mais vulneráveis às DST/Aids3. A praticidade dessa perspectiva tem contribuído
para uma rápida instrumentalização, auxiliando políticas públicas interessadas na focalização e
racionalização de investimentos.
Na mesma linha, estudos inspirados no conceito de “exposição cumulativa” consideram
convergências de várias ameaças (sociais, econômicas, políticas etc.), simultaneamente por diferentes
mecanismos e ao longo do tempo. Esses fatores podem exacerbar a experiência de vulnerabilidade
em certos lugares e populações. Ver Huang e London4, Buscail et al.5 e Alves6.
Outros tipos de estudos, interessados em descrever variáveis relativas às condições de vida –
tais como renda, qualidade da moradia, nível educativo, iniquidade de gênero etc. – que incidem
na ocorrência de eventos adversos, são intitulados com alguma frequência como relativos à
vulnerabilidade. Nesses casos, considera-se que as variáveis ocupam um lugar na cadeia causal.
A hipótese implícita nessa conjetura pode ser formalizada segundo a seguinte equação: pobreza
= vulnerabilidade = perigo = risco7. Esses estudos pressupõem, por convenção, que déficits de
capacidades sociais são imediatamente referidos a um quadro de vulnerabilidade. Ver, entre outros:
Xavier et al.8, Aguilar et al.9, Bendo et al.10, Imbiriba et al.11 e Varela et al.12. Nessa mesma linha,
apresentam-se estudos sobre saúde e velhice nos quais características cognitivas, redes sociais de
suporte, fragilidade física etc. são associados a níveis de vulnerabilidade13-15.
Por fim, na literatura interessada em equidade e saúde, existe a tendência de se equiparar
iniquidade a vulnerabilidade. Mesmo sendo aceito que existem relações entre vulnerabilidade e
iniquidade, tomar uma pela outra pode ser enganoso. Sob uma perspectiva pragmática, nem sempre
uma situação de vulnerabilidade corresponde a uma estrutura de iniquidade. Por exemplo, perfis
característicos de saúde associados à idade ou situações de vulnerabilidade relacionadas a redes
sociais de apoio muito fracas não podem ser imputadas, em qualquer caso, a uma iniquidade. Aliás,
vulnerabilidade e iniquidade são categorias de origem diferente, a primeira empírico/analítica, a
segunda, de fundamento moral.
Esses estudos não desvendam nem as configurações (inter-relações entre variáveis em diferentes
níveis), nem os processos que conduzem a uma situação de vulnerabilidade. Nesse contexto analítico,
a pergunta pelos dispositivos de produção e reprodução dessas situações fica ofuscada. Além disso,
foge do escopo desses trabalhos a análise sobre as formas de os indivíduos e grupos enfrentarem
situações de vulnerabilidade (resiliência).
Essa crítica não diminui a importância desses estudos; pelo contrário, esclarece seu âmbito de
intervenção e o recorte da realidade que assumem, ao privilegiar a lógica do risco como o eixo
estruturante. Apesar disso, um uso pouco cauteloso do conceito pode levar a confusões que
restringem sua força teórica. Não há como negar que, no contexto descrito, os estudos assinalados
apenas fazem uso da vulnerabilidade como uma simples noção.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
239
o conceito de vulnerabilidade ...
A abordagem mais característica da vulnerabilidade procura desvendar como dinâmicas sociais e
culturais mais abrangentes, em conexão com aspectos individuais, criam condições que acrescentam
a possibilidade de certos perigos e ameaças concretizarem-se. Essa é a perspectiva assumida pela
maior parte dos estudos sobre vulnerabilidade e HIV/AIDS, na tentativa de dar luz sobre as causas
profundas da pandemia16. Estudos sobre violência, doenças crônicas etc. também desenvolvem essa
perspectiva17-20.
Vulnerabilidade: aproximação ao conceito e desafios
A vulnerabilidade como categoria política e social ganhou presença desde finais da década de
1970. Crises contemporâneas do mundo do trabalho, com mobilidade, trajetórias laborais de percurso
descontínuo e enfrentamento individual das contingências, constituem traços firmes das sociedades
atuais, produzidos pela erosão dos sistemas de proteção social. A inseguridade social ou vulnerabilidade
aparece como uma dimensão consubstancial à coexistência dos indivíduos na sociedade moderna,
como um horizonte insuperável da condição do homem moderno21. Contudo, o desenvolvimento
conceitual da vulnerabilidade no campo da saúde pública tem uma história muito particular.
Movimentos contestatórios ligados a agentes e agências científicas tiveram protagonismo, na
década de 1980, na luta contra a discriminação e rejeição generalizada a que eram submetidos os
portadores de HIV16,22-24. A epidemia era relacionada a identidades sociais muito específicas, e isso
criava condições para outros grupos populacionais desconsiderarem perigos. Nesse contexto, a
vulnerabilidade, inicialmente ligada às lutas civis e ao discurso jurídico, tornou-se uma preocupação
científica no campo sanitário. O enfoque da vulnerabilidade chamou atenção para a necessidade de se
atuar sobre os determinantes políticos, econômicos, sociais e culturais envolvidos no HIV/Aids, melhor
entendidos sob os princípios universais dos Direitos Humanos16,25, visando estratégias de intervenção
mais amplas, em consonância com o caráter indivisível e sinérgico dos direitos.
A incorporação da vulnerabilidade como objeto de reflexão sistemática no campo da saúde
pública foi influenciada por esse contexto social, ainda que a chamada Epidemiologia Social tivesse
desenvolvido conceitos afins desde a década de 1950. Nessa época, Cassel26 propôs o conceito de
susceptibilidade, relacionado com a condição nutricional, fadiga, sobrecarga laboral, cuja lógica produz
um deslocamento da preocupação com a etiologia específica para o estudo de uma predisposição
generalizada. Enxergar os fenômenos estruturantes que medeiam processos específicos de saúdedoença, levando em conta condições e capacidades de agência dos próprios indivíduos e grupos, é a
especificidade dos estudos sobre vulnerabilidade.
Modelos de análise marcantes no princípio da década passada estruturaram-se articulando
“aspectos micro” com “dimensões macroambientais”. A hipótese subjacente é de que os
comportamentos, práticas de risco ou condições adversas são condicionados pela interação ou
interferência de variáveis localizadas em dimensões mais envolventes, que aparecem entrelaçadas,
mesmo que não se procure revelar uma associação empírica direta (ver, por exemplo, Delor, Hubert24).
Essa característica pode ser considerada a maior contribuição conceitual frente às análises de risco
da epidemiologia clássica, basicamente por três considerações: a primeira, porque inclui categorias
gerais e abstratas, possíveis de serem associadas a eventos ou situações específicas; por exemplo,
articulações entre regras morais, estigma, discriminação e eventos infectocontagiosos; segundo, por
estudar a copresença e interferência entre configurações em distintos tempos e espaços, na tentativa de
uma leitura sintética, contrária à visão analítica do risco, e, por fim, por procurar certa universalidade a
partir de estudos particulares norteados por métodos qualitativos e quantitativos23.
Os aportes desenvolvidos por Ayres e colaboradores contribuíram substancialmente para a
elaboração teórica da vulnerabilidade, ao longo da última década, no contexto latino-americano (ver,
entre outros: Ayres et al.22, Ayres et al.23, Ayres et al.27 e Guerreiro et al.28). Esse desenvolvimento
foi inspirado, sobretudo, nas preocupações sobre a compreensão da vulnerabilidade relativa aos
determinantes envolvidos na pandemia de HIV/Aids, e em reflexões sobre cuidado, prevenção e
promoção da saúde baseadas no enfoque dos Direitos Humanos.
240
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
artigos
A perspectiva analítica elaborada propõe superar, sem negar, práticas preventivas ancoradas
no conceito do risco, e captar as interferências entre as múltiplas dimensões (aspectos individuais,
coletivos e contextuais) envolvidas no processo saúde/doença. As distintas situações de vulnerabilidade
podem ser particularizadas levando-se em conta três componentes interligados:
Individual - referido a conhecimentos e informações sobre problemas específicos e a atitudes para
se assumirem condutas ou práticas protetoras, dando destaque ao viés comportamental e racional,
ancorado em relacionamentos intersubjetivos;
Social ou coletivo - diz respeito ao repertório de temas vinculados a aspectos contextuais, tais
como: relações econômicas, de gênero, étnico/raciais, crenças religiosas, exclusão social etc.;
Programático ou Institucional - relacionado aos serviços de saúde e à forma como estes lidam
para reduzir contextos de vulnerabilidade, dando destaque ao saber acumulado nas políticas e nas
instituições para interatuar com outros setores/atores, como: a educação, justiça, cultura, bem-estar
social etc.23.
A originalidade desse quadro analítico é a tentativa de considerar como unidade a dimensão
indivíduo-coletivo ou indivíduo-âmbito social, levando em conta como interferências em diferentes
níveis acrescentam tanto a exposição quanto a susceptibilidade ao contágio ou agravo. Os níveis
se apresentam desde uma lógica pragmática, e a sua avaliação é conduzida no sentido da síntese
hermenêutica23.
Desenvolvimentos das ciências sociais também contribuíram para o enriquecimento do conceito.
Segundo Parker e Aggleton29, o deslocamento dos estudos comportamentais para análises de fatores
socioculturais e estudos norteados pelas dimensões estruturais envolvidas (políticas, culturais,
econômicas, de gênero etc.) possibilitou uma compreensão crescente de fenômenos: “[...] interativos
e sinérgicos, como pobreza, opressão sexual, racismo, a exclusão social, genericamente descritos como
formas de violência estrutural” (p. 24), mas comprometidos com o curso da epidemia.
A gradativa mudança de perspectiva, ainda que não linear, resultou na construção paradigmática da
vulnerabilidade, na tentativa não só de “superar” a leitura proposta pela epidemiologia do risco, mas,
também, na possibilidade de contar com uma base conceitual com capacidade de articular agências
públicas e privadas no cuidado integral e na prevenção do HIV/Aids, e fornecer um marco programático
para as militâncias relacionadas com os Direitos Humanos das pessoas que vivem com HIV/Aids.
Referências indicativas desses desenvolvimentos podem ser encontradas em Parker e Aggleton29
e Delor e Hubert24. Estes últimos autores apresentam, também, uma matriz sobre a vulnerabilidade
usada em pesquisa com pessoas que vivem com HIV/AIDS. Descrevem, de outro modo, três
níveis analíticos, combinando dimensões socioestruturais e simbólico-estruturais: 1) trajetórias dos
indivíduos; 2) interações e cenários problemáticos e, por fim, 3) aspectos contextuais relativos a
formas de discriminação, iniquidade, tipos de relações sociais etc.
Os aportes tanto das ciências sociais quanto da saúde pública foram construídos no contexto da
epidemia do HIV/Aids e estão imbricados na construção paradigmática da vulnerabilidade. Ambos
entendem que comportamentos e condutas interagem com aspectos individuais, contextuais e
situacionais, inclusive, os serviços de saúde.
Os avanços conseguidos foram significativos, e foge ao escopo deste artigo pretender elaborar uma
concepção alternativa sobre a vulnerabilidade. Contudo, é possível formular algumas questões ainda
em aberto nas conceituações mencionadas:
1. Para além dos comportamentos, como a posição relativa dos indivíduos nos grupos sociais e
entre os próprios grupos – identidades, configuração de vínculos, estratégias de ação – interfere na
conformação de situações de vulnerabilidade?
2. Resiliências são elementos coexistentes nas dinâmicas que constituem situações de
vulnerabilidade. É possível construir um olhar processual capaz de apreender a complexidade das
formas de agir envolvidas no enfrentamento das contingências?
3. Considerando a diversidade, e complexidade dos processos que conduzem à vulnerabilidade,
como relativizar diretrizes programáticas e explorar outros possíveis desenvolvimentos para lidar com
situações singulares?
241
o conceito de vulnerabilidade ...
A elaboração conceitual da vulnerabilidade é uma tarefa ainda em aberto. As importantes
elaborações já realizadas ancoram-se em uma reflexão de ordem epistemológica/metodológica, e vale
a pena retomar o caminho da reflexão filosófica para um olhar ontológico sobre ela.
A questão da vulnerabilidade
A crescente exigência de operacionalização dos conceitos científicos faz com que estes sejam
propostos como desenho de intervenção. Demandas de efetividade e eficiência tendem a criar
um distanciamento entre ciência e filosofia. Apesar disso, o campo científico não tem como evitar
a “visita” recorrente do saber filosófico para revisar criticamente seus conceitos. O conceito de
vulnerabilidade pode ser aprofundado considerando-se sua dimensão ontológica, ligada à vida.
Em que sentido se afirma que a vulnerabilidade constitui uma dimensão inextricavelmente
vinculada à vida? Os seres humanos têm a marca da existência, materializada no fato de uma vida
individual, com uma história de nascimento e morte30; uma história, ademais, em que contingências
e “injúrias” do entorno desvelam uma fragilidade originária e mais fundamental: a constatação
primordial de uma vida finita.
A finitude é condição da vida experimentada por cada um. Nas palavras de Hans Jonas31: “[a] vida
é mortal, mais precisamente porque é vida segundo sua mais primitiva constituição, pois a relação de
forma e matéria em que ela se baseia é desta espécie revogável e inafiançável” (p. 15). Vida e morte
são uma realidade paradoxal, uma reafirmação permanentemente negada.
Essa constante contradição expressa o caráter vulnerável da existência. A vulnerabilidadeé
uma marca fundamental que não pode ser superada; uma realidade manifesta e atualizada
permanentemente em toda ordem biológica e simbólica da vida humana, que se exprime como uma
inquietação permanente na existência, por vezes mais sutil, por vezes mais evidente e incontestável,
que notifica nossa finitude.
Explorar a experiência de vulnerabilidade diz respeito a “algo” que desafia a capacidade de o
vivente afirmar-se no mundo. Essa é a linha de reflexão que se desenvolve a seguir.
Vulnerabilidade e normatividade vital
No livro “O normal e o patológico” (1943), Georges Canguilhem considera o exercício de uma
normatividade biológica como característica peculiar dos seres vivos, desde os mais elementares aos
mais complexos. Segundo o autor, a vida é polaridade e, portanto, uma posição inconsciente de valor.
Afirma Canguilhem32: “É característico dos seres viventes responderem espontaneamente
[...] de lutar contra aquilo que apresenta um obstáculo para a sua persistência e para os seus
desenvolvimentos considerados como normas” (p. 92).
A capacidade normativa é um atributo irredutível, próprio aos seres vivos, e que lhes permite
realizar operações seletivas entre o que é favorável e adverso. Por conseguinte, não existe uma
indiferença biológica. Normatividade vital diz respeito a uma característica peculiar do vivente no que
concerne ao estabelecimento de normas que asseguram a persistência e desenvolvimento da vida. Essa
polaridade da vida é movimento ou ação intencionada, e o é em referência ao seu meio.
Aqui se funda, ainda que instável, um “compromisso”, uma deferência mútua, em contínua
mudança, entre vivente e meio: “O meio ambiente é normal pelo fato que o ser vivo desenvolve nele
melhor sua vida, mantém nele melhor sua própria norma”32,33 (p. 106).
O meio e o vivente estabelecem uma relação mutuamente constituída, portanto, ativa em dupla
mão, mas, também, constituinte. Meio e vivente são uma unidade dinâmica e inseparável.
A relação expressa nesse “compromisso” habilitaria a possibilidade de os organismos estabelecerem
orientação ou propósito para suas ações de regulação, modulação, distinção, seleção, mas, também,
para a capacidade de constituir estratégias e mecanismos de permanência, mudança, integração etc.,
tanto nos organismos quanto nas espécies, ou empreender ações de implicação-afastamento com
relação ao meio. Todos esses mecanismos, dispositivos e normas revelam que o acontecer do vivente
mergulha entre situações de certeza-incerteza. Em termos gerais, o “compromisso” com o meio
242
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D
imprimiria as características de recursividade e de “emoção” ou “entusiasmo”(d),
no vivente. Manifestações impossíveis se as relações entre vivente e meio fossem,
por princípio, de oposição e luta. Acrescenta Canguilhem (apud Ricoeur34),
falando dessa relação: “Esta relação não consiste essencialmente como se
poderia pensar, em uma luta, em uma oposição, isso diz respeito de um estado
patológico”34 (p. 174).
Por conseguinte, toda fonte de vulnerabilidade vital funda-se como
infração desse princípio relacional de “compromisso” entre meio e vivente. A
vulnerabilidade emerge não simplesmente como desequilíbrio ou inadequação
entre uma “potência” do vivente e um “desafio” do meio, mas, sim, como uma
configuração particular do vínculo entre eles.
O exemplo da hemofilia, citado em “O normal e o patológico”, é muito
revelador nesse sentido. Essa anomalia, entendida como um estado de fragilidade
determinado por uma alteração na cascata da coagulação, deve seu eventual
caráter patológico às relações habituais do hemofílico com o meio ambiente32.
Uma eventualidade pode conduzir a um fato catastrófico, mas a ameaça eficiente
de sofrer um dano (a vulnerabilidade) é permanente na vida do hemofílico, tanto
que modela, em diferentes graus, o curso da existência.
Uma capacidade reduzida para administrar ameaças, perigos ou exigências
do ambiente refere-se a aspectos relativos da vulnerabilidade vital sempre que
se entenda que aquela capacidade não é um atributo em si mesmo do vivente,
mas, sim, uma qualidade relacional. A capacidade seria, usando uma linguagem
econômica, a oportunidade efetiva e exercida de manter o “compromisso” entre
o vivente e o meio.
Em cada situação de vulnerabilidade, o organismo, em referência a seu meio,
experimenta as consequências da transgressão do preceito relacional. Mas não
qualquer tipo de transgressão, senão aquela que signifique possibilidade de dano.
A vulnerabilidade vital evoca, por vezes mais sutil ou, ainda, mais definida, o
evento da morte.
A vulnerabilidade vital demanda do vivente flexibilidade, recursividade e,
até, engenho para superar as circunstâncias de insegurança criadas. As palavras
‘recursividade’ e ‘engenho’ parecem aqui apropriadas, mas com advertências,
primeiramente, porque, qualquer que seja a resposta do vivente ou sua inventiva,
ela se dá no marco de possibilidades oferecido pela sua atividade normativa;
qualquer resposta está condicionada às suas circunstâncias. E, em segundo,
porque está sempre mediada por uma ‘atitude prática ou vontade de ação
do vivente’. De outra parte, o meio é sempre relativo à condição do vivente.
Por exemplo, um doente, um velho ou uma pessoa com uma deficiência etc.
apresenta, em sua relação com o meio, uma nova norma; em muitos casos, uma
característica relação com um ‘meio reduzido’. Mas essa nova situação pode
guardar um equilíbrio, ainda que débil e instável, e se prolongar no tempo, até
mesmo, dar curso para uma vida renovada.
É postura comum relacionar a priori doença, velhice, deficiência etc. com
seres vulneráveis. Apenas quando declina a capacidade normativa do vivente,
como uma constante, pode-se falar em instituir ou acrescentar uma situação
de vulnerabilidade e, por conseguinte, um processo de fragilização biológica,
existencial e social.
O termo ‘fragilização biológica’, ainda que metafórico, pode mostrar-se mais
definido. Corresponde à diminuição da capacidade relacional para lidar com
ameaças, perigos ou com a própria doença. Na clínica, se fala, por exemplo, de
estado frágil, para descrever uma situação em que o paciente registra a perda
de recursos em vários domínios de funcionamento, com efeito na capacidade
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
artigos
De fato, expressões
como “emoção” ou
“entusiasmo” vêm de um
léxico metafórico para
descrever a característica
própria dos seres vivos
de serem impulsionados
para a ação.
(d)
243
o conceito de vulnerabilidade ...
de lidar com estressores35. Corresponde ao que Canguilhem chama de
desgaste do asseguramento biológico inicial32. A insegurança biológica significa
vulnerabilidade.
Contudo, uma análise da vulnerabilidade no nível existencial e social exige
especificações. A expressão “fragilização” é uma metáfora tomada da física e da
metalurgia(e), mas guardada aqui certa analogia com o nível biológico; pode-se
afirmar que perdas nas seguranças existenciais e/ou sociais podem ser entendidas
como processos de fragilização.
A segurança existencial ou ontológica refere-se, sobretudo, a uma condição
psicobiológica manifesta em um sentimento de certeza e confiança de que os
mundos sociais são tais como parecem ser, incluindo os parâmetros existenciais
básicos do próprio ser e da sua identidade social (memória, autoestima,
pertencimento, certeza sobre o mundo etc.). Essas ancoragens psicoafetivas,
cognitivas etc., podem ser afetadas, criando insegurança existencial,
trazendo angústias, desconfianças e fragilização dos vínculos bioemocionais.
Para Giddens36, as sociedades contemporâneas atravessam processos de
distanciamento gerados pelas novas formas de intercomunicação social,
acrescentando expressões de incerteza existencial.
Por sua vez, seguranças sociais dizem respeito ao mundo das instituições
sociais que intermedeiam relações protetoras e de agenciamento das pessoas37.
Por exemplo, nos níveis de sociabilidade primária, operam relações familiares e
comunitárias. Por contraponto, as instituições sociais impessoais representam
o mundo das relações contratuais, tais como as relações de trabalho ou dos
sistemas de proteção social e de saúde etc.
Fragilidades na ordem existencial ou social se referem tanto aos aspectos que
questionam as certezas sobre o curso da vida no dia a dia (as trajetórias críticas de
um doente, por exemplo) quanto às inter-relações sociais que limitam o potencial
de atuação(f) dos indivíduos. Desenhos institucionais e formas de organização social
que impedem o asseguramento presente e futuro da existência e da filiação social
também limitam o exercício de poder e sustentam situações de vulnerabilidade.
É evidente que tanto a vulnerabilidade biológica quanto a existencial e social
se apresentam como uma constelação de eventos que ameaçam conduzir a uma
precipitação catastrófica, que se apresenta de duas formas: como a situação
originária de uma limitação normativa vital (isso no nível biológico) ou como a
impossibilidade de afirmação e exercício da liberdade e autonomia relativa (nos
níveis existencial e social). Se acreditarmos que essas dimensões são inextricáveis,
então, a vulnerabilidade é multidimensional e inespecífica, porque seus efeitos e
desenlaces perturbam o indivíduo como um todo.
De acordo com Jonas, todo ser vivo apresenta-se constitutivamente frágil,
porque é finito. É possível acrescentar a essa ideia que a vida humana está imersa
em ameaças de fragilização, resultantes das inevitáveis redes de poder que
constituem a sua existência.
Vulnerabilidade e resiliência
Uma situação de vulnerabilidade inscreve a possibilidade de trajetórias
individuais ou grupais conduzirem a desenlaces indesejados. Mas não existe
relação causal e mecânica entre uma situação de vulnerabilidade e processos
de fragilização. No curso de uma doença, nem sempre é possível predizer o
desenlace ou as consequências de uma deficiência física. Ante tais eventos,
cabe esperar o que seja plausível ou razoável. A experiência dita prudência e os
‘epílogos’ são sempre variados.
244
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
(e)
O termo designa
materiais atacados, em
suas propriedades físicas,
por causa da ação do
hidrogênio, por exemplo,
mas em sua configuração
estrutural. Conduz a uma
perda da segurança do
material. Em português,
tem a significação de
se tornar fisicamente
fraco e pouco resistente
ou emocionalmente
abalado e vulnerável. O
uso metafórico, porém,
apresenta a dificuldade
de falar de uma mudança
do estado, e não
propriamente de um
processo que pode até se
reverter.
A atuação social
não se refere aqui aos
desempenhos sociais
das pessoas (atos
prescritivos), mas,
sim, à ação humana,
entendida desde um
plano antropológicoexistencial.
(f)
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D
(g) A capacidade de
agência diz respeito à
expansão das liberdades
das pessoas para fazerem
realizações valoradas
como significativas.
artigos
Uma doença considerada simples, como a gripe comum, pode causar,
anualmente, um número alto de mortes em todo o mundo; ao mesmo tempo,
uma pessoa com uma deficiência física pode construir parâmetros, novas normas,
para se movimentar.
O que é experimentado como dúvida ou perplexidade no plano da vida social
encerra um paradoxo que comporta a condição do ser humano. Fragilidade e
capacidade resiliente coexistem. É o mesmo ser humano quem as experimenta.
Uma opera como condição de possibilidade da outra; as duas pertencem ao
mesmo nível de realidade. A resiliência implica persistir, provar variantes, afirmarse, sem deixar de reconhecer a fragilidade que é inerente à condição do ser
vivo. Ela só pode se explicar pela característica normatividade do vivente; por
contraponto, fragilização significa decréscimo dessa característica.
Na literatura, o termo ‘resiliência’ tem diferentes acepções. Apresenta-se
conceituado como: suportes sociais, fatores protetores, estresse, adaptação,
superação, ajuste, capacidade de resistência etc38. Essas expressões são usadas
como equivalentes da resiliência, mas evidenciam perspectivas analíticas,
campos de aplicação e até posturas epistemológicas divergentes (ver Reppold et
al.39), fato que pode exprimir deficiências teóricas. Talvez uma abordagem que
considere o paradoxo existente entre fragilização e resiliência como unidade
conceitual e metodológica possa resultar em um caminho promissor para superar
essa limitação.
O que é específico da resiliência é a capacidade afirmativa do ser vivo com
assistência de um percurso criativo ou inovador, dentro dos limites que as
circunstâncias permitem. Ser saudável é ter capacidade resiliente em qualquer
nível. Canguilhem escreve: “O homem saudável não se escamoteia frente
aos problemas... até mesmo falando fisiologicamente a sua saúde é medida
pela capacidade de superar as crises orgânicas a fim de estabelecer uma nova
ordem”32 (p. 152).
A capacidade de afirmação do vivente humano expressa, no plano existencial,
múltiplos domínios de intervenção, tais como: poder dizer, poder atuar, poder
intervir no curso da própria existência, ou poder influir em outros protagonistas
da ação34. No plano social, essa capacidade de afirmação emerge como uma
condição de possibilidade que diz respeito à ordem material e simbólica (expressa
em normas culturais, desenhos institucionais e relações de poder), que garante
segurança aos indivíduos e coletivos, incluída a própria capacidade de agência(g).
Vulnerabilidade, indivíduos e interdependência
Para os humanos, a relação com o meio inclui formas de organização, sociais e
institucionais, historicamente estabelecidas. Esse mundo social é possível porque
existe uma dependência originária no convívio com outras pessoas. Norbert
Elias40 afirma:
[e]sta inclinação emocional profunda pelos membros da mesma
espécie obedece a impulsos biologicamente prefigurados, mas
extraordinariamente modificáveis através da aprendizagem, da
experiência e os processos de sublimação. (p. 162)
Valores afetivos unem os seres humanos uns aos outros e formam parte
constitutiva de seu mundo, inclusive do seu corpo. Uma perda afetiva ou a morte
de um ser querido, por exemplo, produz experiências anímicas e psicossomáticas
evidentes na existência dos indivíduos. Então, uma parte do corpo morre
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
245
o conceito de vulnerabilidade ...
em sentido simbólico e as fronteiras entre corpo físico e corpo emocional
revelam-se inexistentes. Os seres humanos vivem na urdidura de relações de
interdependência afetiva que denunciam, ao mesmo tempo, a dinâmica de
relações de poder, na qual a existência humana está imersa.
Relações contratuais também ocupam lugar importante na vida humana. Estas
aparecem como uma exigência; são inevitáveis do ponto de vista de um eu, em
contraponto com os relacionamentos afetivos. Como condição da existência, os
humanos estabelecem relacionamentos de poder em equilíbrios mais ou menos
instáveis de tipo variado, como os estabelecidos nas instituições (famílias, escolas,
cidades etc)40.
Relações de poder não podem ser entendidas unicamente por meio de
atuações contratuais ou da ação de um domínio sem restrições. O uso da força e
a violência não podem explicar tais adesões. A função primária da união entre os
indivíduos na configuração de instituições é a proteção41.
As instituições exprimem demandas psicossociais de segurança ancoradas
em realidades biológico/existenciais profundas(h); nelas podem se gerar relações
de interdependência recíproca em posições sociais hierárquicas de poder e
submetimento. Por consequência, o poder de atuação (capacidade de ser e fazer)
institui-se de modo não equitativo, o que possibilita a configuração de situações
que conduzem ao estigma, à exclusão e à invisibilidade42; ou, em palavras de
Ricouer, que conduzem à intimidação, manipulação e instrumentalização35; fatos
estes que estabelecem relações empíricas, causais, com situações de insegurança
e vulnerabilidade.
Portanto, a vulnerabilidade no plano social se refere à existência de relações
que limitam a capacidade de atuação das pessoas e que retiram os suportes
institucionais de segurança social, ou seja, situações que negam o exercício
efetivo de direitos e, portanto, insegurança presente e evanescência de projetos
futuros.
Em síntese...
A última década evidenciou um crescente interesse pelos estudos sobre
vulnerabilidade em saúde e avanços significativos na sua conceituação com
inegáveis aportes para as práticas sanitárias nela baseadas. Aliás, a análise da
dimensão ontológica da vulnerabilidade pode iluminar o debate sobre os usos do
conceito e contribuir para esclarecer questões ainda em aberto.
Sob esse olhar, a vulnerabilidade se configura em uma dinâmica de
interdependências recíprocas que exprimem valores multidimensionais –
biológicos, existenciais e sociais. Uma situação de vulnerabilidade restringe as
capacidades relacionais de afirmação no mundo, incluídas as formas de agência
social, gerando fragilização.
De outra parte, a existência humana é frágil porque é finita, mas, além disso,
está imersa em permanentes processos de enfraquecimento consubstanciais às
ordens de poder. Captar esta complexidade é um desafio tanto pelas implicações
práticas no âmbito clínico ou da saúde pública quanto pelos desafios em torno da
crítica geral das instituições sociais contemporâneas, ancoradas em um projeto
biopolítico norteado pelo controle, que conduz a formas de exclusão, segregação
e negação de direitos.
246
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
Esta afirmação não
autoriza desconhecer o
processo histórico e social
das instituições, mas
essa história será sempre
limitada quando se
fazem apagamentos das
dimensões bioexistenciais
que lhe dão suporte.
(h)
Malagón-Oviedo RA, Czeresnia D
artigos
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do texto.
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Interface (Botucatu). 2015; 19(53):237-49.
Uno de los ejercicios teóricos de la Salud Pública se refiere a la necesaria y continua tarea
de discutir los conceptos en los que se basan sus prácticas. Un análisis crítico sobre los
usos del concepto de vulnerabilidad en salud, con base en una revisión sistemática, sirve
de soporte para una discusión sobre su contenido, alcances y límites, en el sentido de
fortalecer la potencialidad teórica y práctica del concepto y el diálogo entre las distintas
áreas de conocimiento envueltas. El concepto de vulnerabilidad presenta alta capacidad
heurística y aplicación diferenciada. En este artículo, se caracteriza con base en complejos
procesos de fragilidad bio-social que muestran, de forma inextricable, valores biológicos,
existenciales y sociales. Esta perspectiva considera la vulnerabilidad como dimensión
ontológica constitutiva y constituyente de la vida humana que reclama distintos y
complejos sistemas de seguridad.
Palabras clave: Vulnerabilidad en salud. Aspectos teóricos de la vulnerabilidad. Estudios
sobre vulnerabilidad.
Recebido em 03/07/14. Aprovado em 29/09/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):237-49
249
DOI: 10.1590/1807-57622014.0083
artigos
Estrutura, organização e processos de trabalho
no controle da tuberculose em municípios
do estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil*
Natasha Ventura da Cunha(a)
Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti(b)
Maria Lúcia Freitas dos Santos(c)
Vanusa de Lemos Andrade Araújo(d)
Débora Medeiros de Oliveira e Cruz(e)
Gabriela Fonte Pessanha(f)
Pauline Lorena Kale(g)
Antonio José Leal Costa(h)
Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha
GF, et al. Structure, organization and working processes within tuberculosis control
in municipalities in the state of Rio de Janeiro, RJ, Brazil. Interface (Botucatu). 2015;
19(53):251-63.
In 2011, the state of Rio de Janeiro
presented the highest tuberculosis
incidence rate nationwide. We conducted
a qualitative study on the structure,
organization and working processes
within the tuberculosis control program
(TCP), by means of thematic analysis on
interviews with the TCP coordinators of 13
municipalities in this state. Decentralization
of the TCP, through incorporation of its
guidelines by the family health strategy
(FHS) teams, demands reorganization
of the working processes within the
TCP. Continuous substitution of FHS
professionals and the insufficient structure
of the TCP impair tuberculosis control. In
order to go beyond a control model based
on specialized tuberculosis treatment
services, the TCP needs to be integrated
with all levels of the Brazilian National
Health System and autonomy needs to
be given to the coordinators, regarding
decision-making.
Keywords: Tuberculosis. Public health.
Health services administration. Qualitative
research.
Em 2011, o estado do Rio de Janeiro (ERJ)
apresentou a mais alta taxa de incidência
de tuberculose do país. Realizamos uma
pesquisa qualitativa sobre a estrutura, a
organização e os processos de trabalho
no Programa de Controle da Tuberculose
(PCT), por meio de uma análise temática de
entrevistas com coordenadores do PCT em
13 municípios do ERJ. A descentralização
do controle da tuberculose – por intermédio
da incorporação de suas normas pela
Estratégia de Saúde da Família (ESF) – exige
a reorganização dos processos de trabalho
do Programa. A substituição contínua
de profissionais da ESF e a estrutura
insuficiente do PCT prejudicam o controle
da tuberculose. A superação do modelo
baseado em um serviço de tratamento
especializado requer a integração do PCT
a todos os níveis do Sistema Único de
Saúde, e atribuição de autonomia aos
coordenadores, para tomarem decisões.
Palavras-chave: Tuberculose. Saúde Pública.
Administração de Serviços de Saúde.
Pesquisa qualitativa.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
*
Elaborado com apoio
do Projeto Fundo Global
Tuberculose Brasil.
(a,b,d,e,f,g,h)
Instituto de
Estudos em Saúde
Coletiva (IESC),
Universidade Federal
do Rio de Janeiro
(UFRJ). Av. Horácio
Macedo, s/n,
Próximo à Prefeitura
Universitária da UFRJ,
Ilha do Fundão,
Cidade Universitária.
Rio de Janeiro, RJ,
Brasil. 21941-598.
natasha_ventura2@
hotmail.com;
[email protected].
br; vanusalemos@
ig.com.br; debora.
sanitarista@gmail.
com; [email protected].
br; [email protected];
[email protected]
(c)
Curso de Graduação
em Enfermagem e
Obstetrícia, UFRJMacaé. Macaé, RJ,
Brasil. marialf.santos@
gmail.com
2015; 19(53):251-63
251
estrutura, organização e processos de trabalho ...
Introdução
A tuberculose (TB) é, ainda hoje, um dos principais agravos à saúde a ser enfrentado em âmbito
global. Em 2009, o Brasil ocupava a 18a posição entre as 22 nações responsáveis por 80% dos casos
de tuberculose no mundo¹. Em 2011, o estado do Rio de Janeiro (ERJ) apresentou uma taxa de
incidência de tuberculose de 72,3 casos por 100.000 habitantes, a maior do país, correspondendo
praticamente ao dobro da média nacional². A maioria dos casos de tuberculose no ERJ concentra-se
em treze municípios da Região Metropolitana, considerados prioritários pelo Fundo Global Tuberculose
(FGTB) Brasil.
A atuação do Programa Nacional de Controle da Tuberculose envolve estratégias que visam
estender as ações de controle da doença, privilegiando a descentralização para a atenção básica,
bem como a articulação com outros programas governamentais. Desta forma, amplia o acesso da
população em geral e dos grupos populacionais mais vulneráveis às medidas de controle³.
Na esfera municipal, o Programa de Controle da Tuberculose (PCT) possui uma coordenação
responsável por: monitorar os indicadores epidemiológicos e o cumprimento de metas propostas nos
pactos; coordenar e supervisionar a busca ativa de sintomáticos respiratórios e o controle de contatos;
notificar os casos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), e acompanhá-los por
meio do sistema de informação, gerando boletins de acompanhamento mensal; assegurar o diagnóstico;
participar da operacionalização do tratamento supervisionado; da provisão de medicamentos; da
articulação com as unidades de saúde, a fim de aperfeiçoar as ações de controle da doença; organizar
a rede de laboratórios e capacitar as unidades básicas com ações de controle da TB e unidades de
referência secundárias e terciárias³. Sendo assim, é necessário que os serviços de saúde municipais
possuam estrutura organizacional adequada e suficiente para desenvolver a contento as atividades de
controle da doença, decorrentes do trabalho coordenado entre pessoas, tecnologias e recursos4.
Este artigo apresenta uma análise de aspectos estruturais e organizacionais relacionados às ações de
controle da tuberculose nos treze municípios do ERJ considerados prioritários segundo o FGTB Brasil,
complementando trabalho sobre sistemas de informação concernentes à tuberculose nos mesmos
municípios5. Ambos resultam da pesquisa “Avaliação do sistema de informação da tuberculose nos 13
municípios de abrangência do Fundo Global Tuberculose Brasil no estado do Rio de Janeiro” (Edital
Fundo Global Tuberculose Brasil/FGTB – Núcleo Fiotec/Ensp/Fiocruz/MS Nº 1/2009), aprovada pelos
Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – IESC/UFRJ e da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro.
Metodologia
Utilizou-se a metodologia qualitativa, baseada em entrevistas semiestruturadas, para apreender a
visão dos coordenadores dos PCTs a respeito de aspectos estruturais, organizacionais, e dos processos
de trabalho concernentes ao controle da TB nos serviços de saúde dos treze municípios de abrangência
do FGTB no ERJ: Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaboraí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Niterói,
Nova Iguaçu, Queimados, Rio de Janeiro, São Gonçalo e São João de Meriti.
Foi elaborado um roteiro de entrevista voltado para o sistema de informação de tuberculose, cuja
primeira pergunta “Como está organizado o Programa de Controle da Tuberculose neste município?”
visava conhecer a organização do programa na esfera municipal, as atividades do PCT realizadas
pelas diversas unidades de saúde, e a relação entre a coordenação do PCT e essas unidades. O
roteiro continha, ainda, perguntas relativas à estrutura e à organização da coordenação do PCT no
nível central, à análise e divulgação das informações sobre tuberculose, bem como ao treinamento e
à capacitação dos profissionais para realização das ações previstas no programa. O último bloco de
perguntas versava sobre a percepção do coordenador a respeito dos entraves existentes no PCT, em
especial, as dificuldades relacionadas à coleta, ao registro e ao fluxo das informações.
252
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):251-63
Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha GF, et al.
artigos
Foram entrevistados os coordenadores ou responsáveis pelo PCT nos 13 municípios e, no Rio de
Janeiro, também a coordenadora do SINAN. As entrevistas foram realizadas no local de trabalho dos
entrevistados, entre dezembro de 2009 e agosto de 2010, tendo sido gravadas e transcritas mediante
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Desenvolveu-se um estudo exploratório utilizando-se a análise temática, modalidade da análise de
conteúdo em que, a partir da leitura sistemática do material de campo (transcrições das entrevistas), se
procede à identificação dos núcleos de sentido e categorias empíricas norteadoras da análise6.
Neste artigo são apresentados os resultados referentes à estrutura e organização das ações
de controle da TB nos serviços de saúde dos municípios; treinamento e capacitação para o
desenvolvimento das atividades do PCT; e percepção e avaliação dos coordenadores sobre o PCT.
Com base nas informações do censo de 2010, os municípios foram classificados segundo o porte
populacional (Tabela 1), em três grupos: menor porte, com menos de duzentos e vinte mil habitantes;
porte intermediário, com população entre duzentos e vinte mil e quinhentos mil habitantes; e
maior porte, com mais de quinhentos mil habitantes. Visando preservar a confidencialidade, esta
terminologia foi adotada na apresentação dos resultados, e o Rio de Janeiro foi incluído entre os
municípios de maior porte5.
Tabela 1. População residente nos municípios prioritários para o
controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro, 2010
Porte*
Menor
Intermediário
Maior
Município
Japeri
Queimados
Nilópolis
Mesquita
Itaboraí
Magé
São João de Meriti
Niterói
Belford Roxo
Nova Iguaçu
Duque de Caxias
São Gonçalo
Rio de Janeiro
População**
91.933
131.163
154.232
159.685
210.780
218.307
439.210
441.078
455.598
767.505
818.432
945.752
5.946.224
Menor porte: menos de 220 mil habitantes; porte intermediário: entre 220 mil e 500
mil habitantes; maior porte: mais de 500 mil habitantes. ** Disponível em: http://
www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/RJ2010.pdf
*
Resultados
Estrutura e organização das ações de controle da tuberculose
Entre os municípios investigados, o profissional de enfermagem (seis) é o mais frequente na
coordenação do PCT, seguido pelos médicos (três) e assistentes sociais (dois). Dois municípios não
possuem um coordenador exclusivo do PCT. Em Belford Roxo, a Chefe da Divisão de Doenças
Transmissíveis, e, em Duque de Caxias, a Chefe da Divisão de Programas, respectivamente uma
geógrafa e uma médica, respondem pela coordenação do PCT. Quatro coordenadores são especialistas
em pneumologia sanitária, quatro possuem formação em saúde pública (especialização, residência ou
mestrado) e dois fizeram curso de gestão em saúde (Tabela 2).
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estrutura, organização e processos de trabalho ...
Tabela 2. Categoria profissional, tempo de permanência na coordenação e titulação dos coordenadores do Programa de
Controle da Tuberculose (PCT) nos municípios prioritários para o controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro
Categoria profissional do
coordenador ou responsável
pelo PCT
Tempo de permanência
na coordenação do
PCT (anos)
Enfermagem
Medicina
Serviço Social
Geografia
14
10
4
2
1
1
8
8
1*
Sem gerência formal
9
2
Sem gerência formal
Titulação dos coordenadores
Sem informação
Sem informação
Especialização em Promoção da Saúde/
Especialização em Gestão em Saúde
Especialização em Pneumologia Sanitária
Especialização em Saúde Pública
Especialização em Pneumologia Sanitária
Especialização em Saúde Pública
Curso de Gestão em Saúde
Mestrado em Saúde Pública
Residência em Saúde Pública
Especialização em Pneumologia Sanitária
Residência em Saúde Pública/
Especialização em Pneumologia Sanitária
Curso de Informática
Município
Nova Iguaçu
Nilópolis
Magé
Queimados
São João de Meriti
Mesquita
São Gonçalo
Itaboraí
Rio de Janeiro
Duque de Caxias**
Japeri
Niterói
Belford Roxo**
Antes de assumir a coordenação, foi substituta da gerente anterior por 11 anos. ** Responsável pelo PCT sem exercer, formalmente, a
coordenação do programa.
*
Constata-se a qualificação dos coordenadores do programa na formação especializada por meio de
pós-graduação. O tempo mediano de permanência na coordenação do PCT, nestes municípios, é de
quatro anos. Cinco coordenadores exerciam a função há, no máximo, dois anos, e outros cinco há, pelo
menos, oito anos, um dos quais há mais de 14 anos. Esses aspectos reforçam uma observação que se
deu no decorrer do trabalho de campo: por um lado, o comprometimento dos profissionais envolvidos
com as ações de controle da TB nos municípios, mas, por outro, a ausência de uma equipe com a qual
compartilhar e dividir responsabilidades e atribuições.
Em relação aos demais membros das equipes do PCT, os municípios de maior porte ou
melhor organização incluíam outros médicos e enfermeiros, bem como técnicos de enfermagem,
administrativos (digitadores) e de laboratório.
O coordenador do PCT nos municípios de menor porte, ou com restrita estrutura organizacional,
é um “faz tudo” do programa, responsável por todas as atividades que compõem o processo de
atenção e controle da tuberculose. É ele(a) quem responde, em última instância, pelo provimento dos
insumos (às vezes, até mesmo laboratoriais), pelo encaminhamento de material para o laboratório e
pela devolução dos resultados nas unidades de saúde. A essas tarefas somam-se as funções relativas à
análise da qualidade e consolidação das notificações, ao monitoramento e envio das informações para
o nível estadual, e à produção de relatórios.
“Atendo, eu faço consulta, eu faço a mesma coisa que todo mundo. Quando a técnica de
enfermagem tá de férias eu assumo, eu venho pra segunda-feira e eu que assumo o papel
dela, eu que lanço no livro, eu faço tudo. Então eu sou mais assistência do que coordenação”.
(município de porte menor)
“A gente liga pro celular da enfermagem pra saber se tem escarro, isso seria para o laboratório
fazer, passar nas unidades e recolher, mas isso ainda não acontece, nós aqui do programa
estamos assumindo mais essa tarefa”. (município de porte intermediário)
Ao comentar suas atribuições, a responsável pelas atividades do programa em um município de
porte intermediário refere:
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artigos
“Você não tem nem noção... Tudo, tudo! Ver se não está faltando azul de metileno no
laboratório, e eu sei que isso não é minha parte, [...] Se o paciente ficou sem medicação, isso
não é problema meu... Isso é problema da farmácia”. (município de porte intermediário)
Deve-se sublinhar que, no Rio de Janeiro, a estrutura de coordenação do programa praticamente
não difere da encontrada nos demais municípios, especialmente em relação à equipe, o que é
insuficiente em uma cidade com mais de sete mil casos notificados de tuberculose anualmente, e mais
de seis milhões de habitantes distribuídos em um território extenso, com longas distâncias entre o nível
central e os serviços.
De modo geral, a infraestrutura para a realização das atividades do PCT é bastante frágil. A
escassez de insumos se estende a todas as atividades do programa, os coordenadores aludiram à
falta de corante para pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), falta de pote para coleta de
escarro, e, até mesmo, à falta d’água como acontecimentos não tão inusitados quanto o esperado.
Telefone, acesso à internet e carro são equipamentos compartilhados com outras coordenações e
setores das secretarias municipais de saúde. É comum o uso de celulares pessoais dos profissionais das
unidades para comunicação com a coordenação do PCT. Alguns utilizam computador, internet e e-mail
pessoais, para enviar e receber, de casa, informações relativas ao programa; e, pelo menos, um técnico
relatou a utilização de lan houses para enviar informações à Secretaria Estadual de Saúde:
“Nós temos bastante impressora, não tem é tinta. Nós temos uma base de umas 10
impressoras, tudo sem tinta”. (município de porte intermediário)
“A gente não tem estrutura nenhuma. Não tem água, não tem papel, não tem nada. Em relação
à informação também, essas máquinas capengas, ele trouxe o HD da casa dele pra consertar
pra gente poder ter, não tem memória, não aguentam gerar...”. (município de porte menor)
Em um município em que não há computador conectado à internet na sala do PCT, a coordenadora
comenta:
“Eu abro e-mail em casa [...] Quando eu quero responder alguma coisa, antigamente eu
liberava o e-mail lá da saúde coletiva, mas todo mundo liberava o mesmo e-mail, então na hora
de você abrir tinha e-mail de todo mundo, aí você perdia um tempo imenso para procurar o
que era seu”. (município de porte menor)
Quanto à organização e funcionamento do PCT, é comum entre os coordenadores considerar,
como descentralização do programa, a realização de tratamento diretamente observado (DOTS)
nas unidades de saúde da família, e, em menor proporção, também em outros serviços de atenção
básica (postos, unidades, ou centros municipais de saúde, a nomenclatura varia entre os municípios),
não necessariamente acompanhada da descentralização dos instrumentos de registro, tais como o
Livro de Registro de Sintomáticos Respiratórios, Ficha de Notificação/Investigação, Livro de Registro
e Acompanhamento de Pacientes, ficha de contatos e quimioprofilaxia, entre outros. Assim, a
descentralização do PCT está, em parte, vinculada à expansão da estratégia de saúde da família (ESF)
nos municípios.
Japeri é o único município em que o PCT permanece totalmente centralizado e, significativamente,
também é o único em que não há unidades vinculadas à ESF. O PCT funciona em uma unidade mista
distante do centro, o espaço físico é partilhado com a equipe do programa de hanseníase e há somente
um turno semanal de atendimento por médico pneumologista.
Nos municípios restantes, se encontra em andamento o processo de descentralização do tratamento
supervisionado da tuberculose para as unidades de saúde da família e outras unidades de atenção
básica, variando o número de serviços que assistem pacientes com tuberculose. A Tabela 3 apresenta
as unidades de saúde com ações de controle da TB implantadas por município, segundo a informação
dos entrevistados.
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estrutura, organização e processos de trabalho ...
Tabela 3. Unidades de saúde e laboratórios com ações de controle da tuberculose implantadas nos municípios prioritários
para o controle da tuberculose no estado do Rio de Janeiro*.
Unidades de Saúde
Município
Belford Roxo
Duque de Caxias
Itaboraí
Japeri
Magé
Mesquita
Nilópolis
Niterói
Nova Iguaçu
Queimados
Rio de Janeiro
São Gonçalo
São João de Meriti
Unidade de Saúde
da Família
5
5
44
--62
10
1
36
3
7
54
179¥
11
Unidade Básica
de Saúde
----------6
9
4
9
3
90
-----
Laboratórios
Unidade de
Referência
2
1
1
1+
1
1
1
2
1
1
1
2
1
Laboratório
para baciloscopia
Laboratório
para cultura£
1
1
1
1§
1
1
1
6
2
1§
14
2
1
--------------3
----3
-----
Informações referentes a agosto de 2010 para o RJ e janeiro de 2010 para os demais municípios. + Tratamento centralizado. § Unidade
terceirizada. ¥ Nem todas as unidades atendem pacientes com tuberculose. £ Os municípios que não possuem laboratório para realização de cultura
o fazem no Laboratório Central de Saúde Pública Noel Nutels - LACEN/ERJ.
*
Também há atendimento a pacientes com tuberculose nos hospitais (especializados, federais,
estaduais, militares e universitários) situados no Rio de Janeiro e em Niterói, bem como no sanatório
penal, no Rio de Janeiro. Em Niterói, o Hospital Getúlio Vargas Filho e o Hospital Ary Parreiras são
referência, respectivamente, da Região Metropolitana II para tratamento de crianças e do ERJ para
adultos. E o Centro de Referência Prof. Hélio Fraga, pertencente à FIOCRUZ/RJ, é referência nacional
para tratamento de Tuberculose Droga-Resistente (TBDR).
Todos os municípios possuem, pelo menos, um centro de referência secundária para atenção
à tuberculose com presença de pneumologista. Essas unidades, além de assistirem aos casos de
maior complexidade, recidivantes e infantis (quando há profissional especializado), também tratam
pacientes que poderiam ser absorvidos pela rede de atenção básica. No Rio de Janeiro, os Centros
Municipais de Saúde (CMS) e as policlínicas constituem a referência para os pacientes em retratamento
por abandono ou recidiva, enquanto as unidades de saúde da família e os postos de saúde são
responsáveis pelo tratamento dos casos novos.
Todos os municípios possuem laboratório para realização de baciloscopia. Em Japeri e Queimados, a
baciloscopia é realizada em laboratório terceirizado, dificultando o controle das atividades por parte do
programa:
“O laboratório é tão bom que eles não colhem amostra lá, fica de responsabilidade do PCT,
então todo mundo que tiver pedido de escarro, tem que ir lá no PCT levar até 8:30h”.
(município de porte menor )
“O que a gente queria? Colocar a coleta em cada PSF, só que como a gente tá com o
laboratório terceirizado, só colhe uma vez por semana, por que demora um tempão pra chegar
o resultado e a gente não tem veículo pra ir lá buscar o escarro [...]. Então o que acontece?
Eles detectam o sintomático, anotam no livro de registro e mandam vir”. (município de porte
menor)
Em Niterói, a baciloscopia é realizada em dois laboratórios ambulatoriais e quatro hospitalares,
dos quais três fazem exame de cultura para o bacilo de Koch (BK), mas, se positiva, a mesma é
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artigos
encaminhada ao Laboratório Central de Saúde Pública Noel Nutels (LACEN/SESRJ), para realização
do teste de sensibilidade. Apenas Rio de Janeiro e Niterói realizam cultura para BK em laboratórios
próprios, nos outros municípios, a cultura para BK é realizada no LACEN/SESRJ (Tabela 3).
Observou-se que a busca de sintomáticos respiratórios ainda não foi plenamente incorporada
como uma atividade essencial para o controle da TB. Não faz parte da rotina dos serviços a solicitação
de baciloscopia de escarro para todos os sintomáticos respiratórios, mas apenas para aqueles que
apresentem história clínica e/ou outros sinais e sintomas compatíveis com TB.
“Lá a gente faz tudo porque é a referência, [...] a gente só não consegue fazer busca ativa,
só detecção ali no local, a gente vê alguém que tá tossindo ou alguma coisa, a gente aborda,
conversa, mas não faz busca ativa”. (município de porte menor)
“Esses cinco PSFs são capacitados pra isso, pra fazer a busca dos sintomáticos, então [...]
quando [...] não tá tendo escarro durante uma semana, é por que eles não estão fazendo [...].
Mas essa dificuldade maior é nos PSFs”. (município de porte intermediário)
Vários fatores são alegados na tentativa de justificar o descaso em relação à busca de sintomáticos
respiratórios:
“O que é dificuldade, [...] a questão do 1% em cima da população deles [...], aí eles até falaram
‘ah, vamos produzir tuberculose’. Não é questão de produzir tuberculose, mas você tem uma
população estimada que você tem que examinar pra você saber os possíveis, não é que você
vai achar tuberculose naqueles ali, […] mas você tem que examinar uma quantidade maior”.
(município de porte menor)
“Por quê? Porque não se dá a devida atenção ao tossidor, embora na maioria das nossas
unidades nós tenhamos uma faixa lá indicando ‘se você tem tosse há mais de três semanas...’
aquela coisa toda, mas nós sabemos que isto é bastante falho”. (município de porte maior)
Somente em um município foi relatada a implementação de estratégias para aumentar a busca de
sintomáticos respiratórios:
“Ano passado a gente fez uma grande campanha de sintomáticos. Porque campanha não é uma
coisa boa, mas quando a coisa está meio morna a gente faz uma campanha, porque dá uma
levantada no astral do pessoal. A gente fez uma campanha com busca a cada casa, a gente
entregava um panfleto de casa em casa (os agentes comunitários)”. (município de porte menor)
Se a busca de sintomáticos respiratórios está em segundo plano em meio às diversas atribuições
dos profissionais de saúde, o recolhimento de material para baciloscopia constitui uma atividade
bastante irregular, sem uma normatização precisa quanto ao fluxo de coleta e envio de escarro para o
laboratório. A falta de um fluxo definido de coleta e envio de escarro para realização de baciloscopia,
bem como a demora na devolução dos resultados para a unidade, expressa a baixa prioridade desta
atividade pelos gestores municipais.
Com relação às culturas encaminhadas ao LACEN/SESRJ, os resultados demoram cerca de um a três
meses para retornar, via e-mail.
A dispensação de medicamentos é responsabilidade da coordenação do PCT e varia entre os
municípios. Em Niterói e São Gonçalo, a liberação da medicação para as unidades de saúde está
vinculada à notificação.
O tempo transcorrido entre o encerramento dos casos acompanhados nas unidades e a chegada da
informação no nível central, responsável pelo registro dos dados no SINAN, varia entre um mês (em
Nova Iguaçu), seis meses (Duque de Caxias) a até um ano (Rio de Janeiro).
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estrutura, organização e processos de trabalho ...
Treinamento e capacitação para o desenvolvimento das atividades do PCT
Com relação à capacitação de profissionais da rede, ao se descentralizar o programa, são
realizados treinamentos, geralmente divididos entre profissionais de nível superior e de nível médio,
auxiliares e agentes comunitários de saúde, abrangendo as diversas atividades do PCT. No entanto, os
coordenadores referem que os treinamentos costumam ser condensados, com uma quantidade muito
grande de informações novas transmitidas em curto espaço de tempo.
Também foi enfatizado que a substituição contínua dos profissionais, especialmente da ESF, traz
sérios prejuízos ao programa, pois só é possível manter o PCT nas unidades em que os profissionais
foram treinados, inclusive médicos. Desse modo, por mais que sejam realizadas capacitações, nunca
são suficientes, e se perpetua a necessidade de treinamento para os profissionais de saúde. No
município do Rio de Janeiro, a coordenação refere, como uma das principais atividades da equipe do
PCT, a organização e implementação de treinamentos.
Percepção e avaliação dos coordenadores sobre o PCT
A deficiência de profissionais, tanto na esfera local quanto no nível central, foi o aspecto mais
mencionado entre os entrevistados como um entrave ao PCT:
“O mais difícil é você conseguir comprometer as pessoas, conseguir alguém que diga: ‘não,
eu vou assumir isso dentro da unidade’; ‘eu vou tomar conta’ […] acho que esse é um dos
maiores problemas. A unidade não se responsabilizar nem por seus próprios pacientes que estão
abandonando”. (município de porte médio)
“O nosso RH tá muito deficitário [...]. Ainda mais com os recursos humanos precários que
nós estamos aqui vivendo. Nesse momento ainda tá havendo contratação, mas isso aí é um
processo muito lento, e o programa não espera, a doença não tá esperando ‘ah, vou esperar
primeiro a secretaria se estruturar’, não acontece isso, então a gente fica doidinho mesmo”.
(município de porte médio)
O envolvimento dos profissionais foi recorrente na fala dos coordenadores, explicando tanto as
dificuldades quanto os aspectos positivos do programa. Em Itaboraí, “a reestruturação dos recursos
humanos foi o ponto crucial para o sucesso do programa” (coordenador do PCT).
Questões de logística e estrutura precária, tais como equipamentos e insumos, comunicação e
transporte, vieram em segundo lugar entre as dificuldades enfrentadas pelos coordenadores do PCT. A
intermediação de interesses políticos na indicação de funcionários e na gestão da saúde, a remuneração
insuficiente e a substituição contínua dos profissionais, também foram citadas como fragilidades:
“Tem entraves nas três esferas. Entrave em nível de município, que se reflete no país todo, é
essa instabilidade política. No Brasil cada um que senta na cadeira tem um processo criador que
vai solucionar todos os problemas, que a gente sabe que não vai solucionar nada. Se mantivesse
uma política pelo menos, bem planejada, já estaria ótimo para o povo, mas não é assim, quem
senta na cadeira tem uma fórmula maravilhosa e isso não é aqui não, qualquer lugar que você
vá. O discurso é dizer que o passado não prestou, todos que tiveram aqui até agora são muito
ruins ‘vocês são muito ruins’. Só que ele tem os entraves todos, porque funcionário público não
tem o que fazer, ele vai ter que conviver com essa gente toda, isso é em qualquer município
[...] Quando você chega ao nível do estado, as indicações não são por competência, o amigo,
companheiro de fé, vai ganhar o dinheiro X, raramente são indicações técnicas, um ou outro é
indicação técnica. Uma nata de pessoas é de indicações políticas, partidárias e aí acho que isso
é no ministério... Fora toda a corrupção, é só ligar a TV, técnico mesmo sobra pouco, os que
sobram vão se desmotivando, se olhar hoje, esse grupo aqui é um grupo técnico”. (município
de menor porte)
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artigos
Discussão
A substituição contínua e a escassez de recursos humanos, somadas à insuficiência de insumos e
equipamentos, destacaram-se entre as principais barreiras ao pleno desenvolvimento da coordenação
dos PCT nos municípios prioritários do ERJ, de acordo com os coordenadores entrevistados. A despeito
da existência de serviços ambulatoriais de referência e de laboratórios para realização de baciloscopia
em todos os municípios prioritários, percebeu-se a necessidade de aprimoramento dos processos
de trabalho afins ao controle da tuberculose, em especial no que concerne à busca de sintomáticos
respiratórios, e tratamento precoce dos casos bacilíferos. Em curso em todos os municípios, exceto
Japeri, a descentralização das ações de controle da TB para a atenção básica torna ainda mais
imperativa a necessidade de reorganização dos processos de trabalho, assim como a redefinição de
atribuições e responsabilidades em todos os níveis da rede de saúde, com vistas à ampliação do acesso
e da adesão ao tratamento, elementos estes essenciais para o sucesso no controle da TB.
Limitações e problemas de infraestrutura e organização do PCT também foram verificados em
estudos realizados em diferentes regiões do Brasil. A indisponibilidade de viaturas exclusivas para
a realização oportuna de visitas domiciliares foi destacada como um entrave à implementação da
estratégia DOTS em municípios prioritários do interior paulista7. Dificuldades impostas pela escassez
e pela substituição contínua de pessoal qualificado para o desenvolvimento de ações de controle da
TB foram descritas no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e Salvador8, e em municípios prioritários de São
Paulo7 e da Paraíba4,9.
Um aspecto repetidamente mencionado em nosso estudo refere-se à necessidade permanente
de treinamentos, devido à ausência de fixação dos profissionais de saúde aos postos de trabalho.
A substituição contínua dos profissionais implica a realização recorrente de treinamentos, os quais,
entretanto, não preenchem a lacuna decorrente do insuficiente acúmulo de experiência profissional.
A qualificação do trabalho na área da saúde requer, além da formação específica, idealmente sob
forma de educação continuada, o acúmulo de experiência profissional. Quanto mais amplo o espectro
de situações vivenciadas, mais profundo e completo será o exercício e a reflexão por parte dos
profissionais na interpretação e na aplicação das normas e recomendações afins ao controle da TB.
Deve-se considerar que o comprometimento dos profissionais, referido como um fator crucial para
o êxito do PCT, reflete, em certa medida, a atitude dos gestores com relação ao enfrentamento da
tuberculose nos respectivos municípios. No estudo de Cunha et al.10, a falta de estrutura organizacional
e logística, bem como a substituição contínua de recursos humanos e pouco comprometimento
profissional, foram apontados como aspectos que dificultam a operacionalização das ações de controle
da TB, assim como o processo de descentralização para a ESF em um bairro de São Gonçalo, RJ.
Trigueiro et al.4 analisaram, segundo a perspectiva dos gestores de saúde, as práticas que norteiam
as ações de controle da TB em municípios da região metropolitana de João Pessoa, PB. Os resultados
apontaram a frequente substituição de profissionais como um agravante no planejamento das ações
de controle da TB, além de formas inadequadas de contratação de profissionais de saúde. Apesar
de a Constituição Brasileira recomendar a realização de concursos públicos para a contratação
de profissionais de saúde, não estabelece isso como norma, deixando, a cargo das prefeituras, o
mecanismo de contratação e o salário de seus funcionários, favorecendo, assim, o fisiologismo político
e a contratação por conveniência, também observados por Cunha et al.10. A deficiência de recursos
humanos no Sistema Único de Saúde (SUS) constitui um desafio cuja superação está vinculada à opção
por um determinado modelo assistencial a ser consolidado11. Com relação ao vínculo empregatício dos
trabalhadores da saúde, são recentes novas modalidades de contratação cuja efetividade poderá ser
avaliada daqui há algum tempo.
O controle da TB baseia-se, essencialmente, no diagnóstico oportuno e tratamento imediato dos
casos bacilíferos, de forma a evitar a ocorrência de novas infecções. Porém, mesmo promovendo a
ampla identificação de sintomáticos respiratórios e o tratamento oportuno dos casos bacilíferos, dada a
elevada prevalência de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis ainda vigente em regiões endêmicas,
esperar-se-ia a ocorrência de grande contingente de casos por décadas à frente. O efetivo controle
da TB requer, portanto, a garantia da continuidade do desenvolvimento das ações previstas no PCT
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estrutura, organização e processos de trabalho ...
a médio e longo prazos. A expansão da atenção básica, em curso nos municípios investigados, assim
como em todo o país, pode configurar um cenário favorável ao controle da TB – e, também, de outras
doenças de natureza crônica, como a hanseníase, o diabetes melito e a hipertensão arterial sistêmica,
especialmente mediante a realização dos atributos da longitudinalidade e da integralidade na atenção
à saúde, assim como do vínculo entre pacientes e profissionais, equipes e unidades de saúde. Nesse
sentido, o estabelecimento de vínculo profissional constitui uma necessidade insubstituível para o
controle da TB12,13, tendo em vista a (boa) organização do sistema de saúde, justamente por possibilitar
o acúmulo de experiência profissional, em seus aspectos técnico, político e social.
O fato de a busca de sintomáticos respiratórios não ter sido incorporada na rotina dos profissionais
de saúde dos municípios estudados corrobora o estudo de Cardozo-Gonzales et al.14. Nesse estudo,
a prática da busca de sintomáticos respiratórios foi analisada na visão dos profissionais da ESF em
um município de médio porte do sul do Brasil. Os autores apontam a falta de envolvimento dos
profissionais com esta atividade, além da dificuldade na realização de treinamentos. O estudo ainda
ressalta o modo como são gerenciados os processos de trabalho no contexto da atenção básica, o que
pode potencializar ou inibir a realização da busca de sintomáticos respiratórios. A simplificação desta
atividade também foi questionada pelos autores, pois, na teoria, parece ser simples, mas, na prática, é
uma atividade complexa que requer muito mais que conhecimento técnico, e, sim, a sensibilização e
humanização dos profissionais que estão lidando diretamente com a população14.
A busca de sintomáticos respiratórios é uma atividade-chave para que as equipes de saúde passem
a ter o controle da TB incorporado à sua rotina diária de trabalho. Se esta busca não é feita, não há
como completar o ciclo de detecção precoce, tratamento e cura. Trata-se de atividade preconizada
pelo Ministério da Saúde para que os casos bacilíferos sejam detectados o mais precocemente possível,
potencializando, assim, o tratamento e a possibilidade de cura. O controle da TB, sobretudo para
interromper a cadeia de transmissão da doença, inclui diagnóstico oportuno e tratamento imediato
dos casos bacilíferos. A oportunidade de tratamento e cura efetivas podem acontecer, também, mais
tardiamente, mas só com a recomendação da busca de sintomáticos respiratórios é possível instituir,
precocemente, o tratamento e reduzir o tempo em que os pacientes atuam como fonte de infecção
para os suscetíveis. A inclusão da busca de sintomáticos respiratórios no rol de registros do Sistema de
Informação da Atenção Básica (SIAB) pode constituir um incentivo para a sua realização nas unidades
de saúde e, também, nas comunidades a elas vinculadas, corroborando, assim, o caráter ativo, por
parte do PCT, na identificação oportuna de novos casos de tuberculose.
Vale ressaltar a ausência de menção às ações e iniciativas de caráter intersetorial relacionadas ao
controle da TB pelos coordenadores entrevistados. Embora não tenham sido destacadas no roteiro das
entrevistas, as ações intersetoriais têm a sua importância reconhecida para o controle da TB, tendo
em vista os inúmeros determinantes sociais, econômicos e culturais associados ao risco de infecção
e adoecimento, assim como ao prognóstico de indivíduos doentes15. Este achado pode ser indicativo
da preponderância ainda vigente do modelo tradicional de controle da TB, centralizado e vertical,
em detrimento da concepção do modelo assistencial da vigilância da saúde, calcado no atributo da
integralidade da atenção e na descentralização dos serviços de saúde. Novamente, a integração entre
as coordenações dos PCT e da ESF pode servir como estímulo ao desenvolvimento e aprimoramento
da intersetorialidade no controle da TB.
Historicamente, a atenção à tuberculose no Brasil foi estruturada de modo fortemente centralizado
e baseado no controle de todas as atividades do programa16. A implantação do SUS tornou premente
a descentralização, e a expansão da ESF, apoiada na perspectiva da vigilância da saúde, pode ajudar
a superar esse desafio15. A incorporação das ações de controle da TB pelas equipes da ESF encerra
um grande potencial de ampliação da sensibilidade do PCT, em especial, para identificação de casos
bacilíferos. Entretanto, a descentralização das ações do PCT para as equipes da ESF não resultou em
melhoria do acesso ao diagnóstico em municípios das regiões Nordeste e Sudeste17.
Por outro lado, a precariedade estrutural e organizacional encontrada em alguns municípios faz
pensar no significado da descentralização. Essa situação evidencia duas alternativas de políticas de
saúde, com riscos e benefícios peculiares. A descentralização, ao criar novas demandas, pode se
apresentar como instrumento de pressão pela qualificação dos serviços e consequente melhoria da
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha GF, et al.
artigos
atenção; ou, no pior cenário, resultar na deterioração de uma atividade até então desempenhada
em unidades especializadas, ainda que não plenamente. A manutenção do modelo centralizado
pode resultar na limitação do SUS a espaços e territórios restritos, inviabilizando, a longo prazo, a
concretização do sistema universal e igualitário instituído constitucionalmente.
É preciso reconhecer a complexidade desse processo, a fim de identificar o que deve ser
preservado, bem como as mudanças necessárias. Nesse contexto, deve ser considerada, como
plausível, a alternativa de investimento no gerenciamento e fortalecimento de determinadas unidades
com tradição no controle da tuberculose, e a sensibilização para a realização da busca de sintomáticos
respiratórios e da estratégia DOTS nas demais.
Considerações finais
A partir dos resultados, observa-se que, nos municípios estudados, a infraestrutura precária dos
PCT constitui um entrave no enfrentamento da TB. A substituição contínua de profissionais e escassez
de recursos humanos são fatores que prejudicam o processo de trabalho em saúde, contribuindo
para as falhas encontradas nos PCTs investigados. Além disso, cada município tem o seu contexto e
particularidades, que podem favorecer ou prejudicar o andamento de um programa ou atividade.
A superação do modelo centralizado e dos processos de trabalho fragmentados passa pela
integração do PCT a todas as esferas do SUS, em especial à atenção básica, assim como por uma maior
aproximação entre coordenadores e gestores com vistas à ampliação da autonomia nos processos
de decisão envolvendo tanto a alocação como o gerenciamento de recursos. Os principais entraves
e limitações ao pleno desenvolvimento das ações de controle da TB identificados em nosso estudo
apontam para a necessidade de uma atuação mais abrangente dos coordenadores dos PCT, para
além das práticas gerenciais de ordem técnico-burocrática, centradas na racionalização e utilização de
recursos4. Entretanto, falta, a estes técnicos, autonomia para orientar suas ações em uma perspectiva
mais consequente. Pelo contrário, um traço comum às coordenações dos programas que constituem
as linhas de ação sanitária em nível municipal, é o respeito aos limites estabelecidos pela contingência
de recursos humanos, financeiros e tecnológicos disponíveis para os propósitos da atenção à saúde
pública.
O processo de construção, organização e consolidação do SUS é permeado por conflitos, disputas
de interesse, diversidade de concepções sobre a causalidade do processo saúde-doença e visões
divergentes a respeito da melhor forma de organizar e realizar a atenção integral à saúde da população
brasileira. Essas diferenças se traduzem, em última instância, no financiamento do SUS, insuficiente
para prover atenção universal, igualitária e integral, conforme estabelecido constitucionalmente. Nesse
contexto, a tuberculose pode ser considerada expressão síntese da determinação social da doença, e
em certa medida, as dificuldades históricas no seu enfrentamento evidenciam o grau de iniquidade
presente em nossa sociedade.
Colaboradores
Natasha Ventura responsabilizou-se pela revisão bibliográfica, concepção, elaboração
e revisão do artigo. Maria de Lourdes Cavalcanti responsabilizou-se pela concepção,
elaboração e revisão do texto. Maria Lúcia Santos, Débora Medeiros, Vanusa Lemos,
Gabriela Pessanha e Pauline Lorena Kale responsabilizaram-se pela revisão do texto.
Antonio José Leal Costa responsabilizou-se pela concepção, elaboração e revisão do texto
e dos resumos.
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estrutura, organização e processos de trabalho ...
Agradecimento
Ao professor Marcos Fernandes da Silva Moreira (ISC/UFF), pela redação do título e do
resumo em espanhol e pela revisão dos títulos e resumos em português e inglês.
Referências
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Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha GF, et al.
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Cunha NV, Cavalcanti MLT, Santos MLF, Araújo VLA, Oliveira e Cruz DM, Pessanha GF,
et al. Estructura, organización y procesos de trabajo en el control de la tuberculosis en
municipios del estado de Río de Janeiro, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):251-63.
En 2011, el Estado de Río de Janeiro (ERJ) presentó el más alto índice de incidencia
de tuberculosis del país. Realizamos una encuesta cualitativa sobre la estructura, la
organización y los procesos de trabajo en el Programa de control de la tuberculosis
(PCT), por medio de un análisis temático de entrevistas con coordinadores del PCT en 13
municipios del ERJ. La descentralización del control de la tuberculosis – por intermedio de
la incorporación de sus normas por parte de la Estrategia de Salud de la Familia (ESF) –
exige la reorganización de los procesos de trabajo del programa. La sustitución continua
de profesionales de la ESF y la estructura insuficiente del PCT perjudican el control de la
tuberculosis. La superación del modelo basado en un servicio de tratamiento especializado
requiere la integración del PCT en todos los niveles del Sistema Brasileño de Salud y la
atribución de autonomía a los coordinadores para tomar decisiones.
Palabras clave: Tuberculosis. Salud pública. Administración de servicios de salud. Encuesta
cualitativa.
Recebido em 28/02/14. Aprovado em 10/08/14.
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DOI: 10.1590/1807-57622014.0331
artigos
Planejamento Estratégico como exigência ética para
a equipe e a gestão local da Atenção Básica em Saúde
José Roque Junges(a)
Rosangela Barbiani(b)
Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli(c)
Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. Strategic planning as an ethical requirement for primary
healthcare teams and local management. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):265-74.
The premises that individuals cannot be
cared for without meeting group needs
and that attendance and management
cannot be separated show that moral
deliberations on clinical action regarding
individual care cannot be dissociated from
strategic planning by local teams and
management. This planning needs to be
integrated with surveillance, to detect
health-related needs within the attendance
context. It should be linked to municipal
central management so as to make
agreements regarding the intersectoral
actions necessary for expanding
individuals’ and populations’ healthcare.
For moral decisions involving clinic
deliberation to be made, certain conditions
that depend on strategic planning in this
field are required. It can be seen that the
processes of moral deliberation proposed
by Gracia and strategic planning proposed
by Matus present cognitive, valuationrelated, operative and evaluative stages
that are largely homologous. This paper
ends with a complex concrete case of
primary care in which these different stages
were implicated.
Keywords: Primary healthcare. Ethics.
Management. Surveillance. Strategic
planning.
As premissas de que não se pode cuidar
de indivíduos sem atender seus coletivos
e atenção e gestão são indissociáveis,
mostram que a deliberação moral da
clínica no cuidado individual não pode
dissociar-se do planejamento estratégico da
equipe e gestão local. Esse planejamento
precisa estar integrado com vigilância
para detectar necessidades em saúde
do contexto de atendimento, articulado
com a gestão central do município para
pactuar ações intersetoriais necessárias
para o cuidado da saúde ampliada dos
indivíduos e da população. Decisões
morais de deliberação clínica exigem, para
sua concretização, de condições e meios,
dependentes do planejamento estratégico
no território. Consultando o processo de
deliberação moral proposto por Gracia e
de planejamento estratégico por Matus,
descobre-se grande homologia entre suas
etapas: cognitivo; valorativo; operativo;
avaliativo. Conclui-se com a apresentação
de um caso concreto complexo de atenção
básica onde estão implicadas essas etapas.
Palavras-chave: Atenção Básica à Saúde.
Ética. Gestão. Vigilância. Planejamento
Estratégico
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Programa de PósGraduação em Saúde
Coletiva, Universidade
do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos).
Avenida Unisinos,
950. São Leopoldo,
RS, Brasil. 93022630. roquejunges@
hotmail.com
(b)
Programa de
Pós-Graduação em
Enfermagem, Unisinos.
Porto Alegre, RS, Brasil.
[email protected]
(c)
Departamento
de Enfermagem em
Saúde Coletiva, Escola
de Enfermagem,
Universidade de São
Paulo. São Paulo, SP,
Brasil. [email protected]
2015; 19(53):265-74
265
planejamento estratégico como exigência ética ...
Introdução
As políticas públicas incentivam e a prática do atendimento demonstra a necessária integração entre
clínica e vigilância nos serviços de Atenção Básica à Saúde (ABS), porque o foco é a resolutividade das
necessidades em saúde de uma população adscrita. Essas necessidades precisam ser detectadas pela
vigilância no âmbito sanitário daquele território e respondidas, individual e coletivamente, pela clínica e
por ações intersetoriais sanitaristas.
Essa constatação aponta para um primeiro pressuposto da atenção básica: não se consegue atender
as pessoas individualmente em suas necessidades de saúde se elas não são cuidadas e acompanhadas
no coletivo por meio de ações de prevenção e promoção para aquele território; e, por outro lado,
não se protege e promove o coletivo em sua saúde se os indivíduos desse coletivo não são cuidados
em suas necessidades individuais1. Esse primeiro pressuposto ancora-se num segundo, que é uma
exigência do anterior: a indissociabilidade entre atenção e gestão2, porque, para se integrar o foco no
indivíduo e no coletivo da atenção, é indispensável aproximá-la da gestão, já que é necessário integrar
atividades de atendimento e de planejamento nos serviços.
Contudo, essa integração entre clínica e vigilância na atenção básica e a consequente necessidade
da aproximação entre atenção e gestão têm demonstrado dificuldades de execução, pois cada uma
delas responde a lógicas diversas. A clínica está focada nas necessidades subjetivas do indivíduo e a
vigilância nos riscos à saúde de um coletivo; a primeira obedecendo mais a uma racionalidade clínica
de interpretação ampliada de uma queixa subjetiva, e, a segunda, a uma racionalidade epidemiológica
e sanitarista de riscos que tem bases objetivas e científicas e, em muitos casos, consequências jurídicas.
Por outro lado, a atenção caracteriza-se pela lógica do atendimento individual e coletivo aos usuários,
enquanto a gestão está preocupada com uma lógica organizacional de racionalização e distribuição
equitativa dos diversos recursos necessários à saúde.
A aproximação e integração dessas racionalidades e lógicas diversas interagindo na atenção básica
são um desafio, porque se trata de interfaces que necessitam ser construídas por usuários, profissionais
e gestores, já que elas não estão dadas. Por isso, elas se tornam desafios éticos que se traduzem em
exigências morais. Daí a necessidade de se refletir sobre o papel da bioética nessas interfaces das redes
de atenção à saúde.
A bioética apresenta-se como um processo de deliberação individual e coletiva, a fim de buscar a
melhoria da vida humana individual e, sobretudo, coletiva. Na bioética, já está bem desenvolvida a
aplicação do método de deliberação moral para a clínica hospitalar3,4, que pode ser considerada como
mais voltada as melhorias individuais. Entretanto, a clínica adequada e ampliada para a atenção básica
depende da vigilância, para definir as necessidades em saúde coletivas daquele território, e da gestão,
para transitar nas redes de atenção à saúde. Em outras palavras, não basta deliberar moralmente,
é necessário planejar estrategicamente, porque a deliberação da resposta depende de condições
coletivas, organizacionais e intersetoriais construídas pelo planejamento. Por isso, uma bioética da
atenção básica não pode reduzir-se às exigências morais do deliberar clínico, mas precisa incluir o
planejar estratégico como exigência moral advinda das suas interfaces com a vigilância e com a gestão.
Pode parecer que a questão ética se reduz à deliberação, porque se trata de um sujeito singular
que, finalmente, toma a decisão e executa o melhor curso de solução; enquanto o planejar implica
uma equipe, um sujeito coletivo, que participa da formulação do plano, das suas estratégias de ação e
da sua consecução. As normas de assistência à saúde nos sistemas, como o brasileiro, implicam validez
universal, então, estas devem se decidir com a efetiva participação de todos que podem ser afetados
por elas, em espaços onde: os expertos são assessores; os políticos, gestores; os usuários, pessoas
titulares de direitos humanos5.
Tendo presente que a atenção básica não existe sem processos de trabalho em equipe e, portanto,
sem um sujeito coletivo de corresponsabilidade, tanto na deliberação quanto no planejamento,
pode-se entender que os problemas morais da atenção básica necessitam de uma reflexão ética na
perspectiva do sujeito coletivo.
O que é esse sujeito coletivo? Trata-se de um coletivo de subjetividades que detém um “idioma”
comum, no sentido chomskiano, isto é, a competência social que permite a troca comunicativa entre
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Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP
artigos
indivíduos distintos de uma mesma cultura, e a representação e expressão criativa do pensamento
desse contexto de relações6. Esses indivíduos se organizam reflexivamente em vista do alcance de um
objetivo comum, e se subjetivam a partir das interações desse coletivo7. A equipe de atenção básica é
um exemplo típico de um sujeito organizativo profissional, pois seus membros possuem: competência
social comunicativa, organização estratégica para a consecução de um fim, e subjetivação a partir do
seu coletivo. Esses elementos são a base para a consciência sanitária, isto é, o reconhecimento e o
pertencimento à identidade e à corresponsabilidade nos processos de produção da saúde.
Se esses atributos são centrais para a equipe da atenção básica, enquanto sujeito coletivo
profissional, sua ética correspondente terá como referência moral os resultados e as consequências
das suas ações implementadas, e não a boa intenção, pois se trata de uma ética da responsabilidade8,9.
Essa dimensão ética aproxima-se do conceito de “ecologia da ação” de Morin10, isto é, qualquer
ação escapa à vontade dos seus autores, porque sofre as retroações do ambiente no qual ela se
insere, podendo ser desviada e distorcida do seu sentido original. Por isso, os efeitos de uma ação
dependem não apenas da intenção do autor, porém, mais das condições do meio no qual ela acontece.
Daí a necessidade de uma estratégia para concretizar os efeitos visados10. Por isso, não basta pura
deliberação moral, é necessário complementá-la com planejamento estratégico do ambiente coletivo
no qual acontecem e incidem as ações.
Considerando esse cenário, o artigo tem o objetivo de discutir, no âmbito da bioética, a
necessidade de a atenção básica complementar a deliberação moral da clínica com a exigência ética
do planejamento estratégico da gestão local, articulado com as ações da vigilância em saúde e a
macrogestão do sistema de saúde.
Deliberação moral na clínica
Diego Gracia3,4 desenvolveu uma metodologia adequada e pertinente para a deliberação moral
no âmbito da clínica. Parte da constatação de que toda deliberação clínica, exercício essencial para
o médico chegar ao juízo clínico, é, ao mesmo tempo e sempre, uma deliberação moral, porque
permanentemente estão implicados deveres, bens e valores da profissão, do profissional e do paciente
que está sendo atendido. Nesse sentido, pode-se afirmar que toda deliberação clínica é sempre,
também, uma deliberação moral. Para formular essa metodologia de deliberação moral na clínica,
Gracia inspira-se na tradição aristotélica da fronesis, traduzida, para o latim, como prudentia, mas que
seria melhor traduzir, nas línguas modernas, por discernimento ou deliberação.
Gracia3,4 propõe três momentos do procedimento deliberativo: momento cognitivo, que aponta
e sopesa os fatos que configuram o caso clínico; momento valorativo, que discerne e estima os bens
e valores implicados no caso; e o momento da realização, que é o momento propriamente moral,
que consulta e pondera os deveres que dizem respeito ao caso. Assim, o procedimento deliberativo,
segundo Gracia, engloba uma deliberação sobre fatos a serem esclarecidos, sobre valores a serem
identificados, sobre deveres para se encontrar o melhor curso de ação para esse caso concreto, e, por
fim, sobre as responsabilidades, submetendo esse melhor curso de ação para o problema, às provas de
consistência, viabilidade e legalidade11.
Para Gracia3,4, a maior dificuldade para esse procedimento deliberativo encontra-se no terceiro
momento, quando é necessário ponderar e deliberar o melhor curso de ação para o problema moral
que se apresenta no caso clínico em análise. Na operacionalização do processo, a tendência é dar-lhe
uma solução dilemática, fixando-se apenas em dois cursos extremos de ação, que convergem para
os dois valores em conflito. Por exemplo, partindo do conflito de valores morais no caso clínico da
necessidade de transfusão de sangue num paciente que seja testemunha de Jeová, o dilema estaria
entre respeitar a autonomia do paciente, não dando sangue, ou aplicá-lo para salvar a vida do paciente
por beneficência11.
Para Gracia3,4, essa fixação nos cursos extremos de ação impede de ver e ponderar os cursos
intermediários, transformando o que é um problema moral em um dilema moral. A deliberação é
justamente uma metodologia que ajuda a não transformar, em dilema conflitivo, o que é um problema
moral, exigindo a ponderação dos vários cursos de ação11.
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planejamento estratégico como exigência ética ...
Na atenção básica, esses diversos cursos de ação para resolver um problema dependem, para sua
efetividade, de condições coletivas sanitaristas e intersetoriais, e da conectividade e acesso aos diversos
pontos da rede de atenção à saúde. Por isso, não basta apenas deliberar para o caso particular, é
necessário planejar estrategicamente para criar e dar as condições ambientais e estruturais para que
esses cursos de ação possam ser assumidos e trilhados efetivamente por usuários e profissionais na
busca da solução de uma necessidade em saúde.
Na atenção básica, tanto o deliberar quanto o planejar dependem da cultura organizacional vigente,
nos níveis macro e micro de gestão do sistema. A gestão local e central dos processos de trabalho e da
organização dos serviços determina, em grande escala, a dinâmica de relacionamento da rede. A gestão
participativa – com reuniões semanais, para discutir, planejar e pactuar o atendimento à população,
a implementação da metodologia do apoio matricial, a criação de conselhos locais, a participação das
equipes na gestão municipal e no controle social – é um curso de ação construtor da indissociabilidade
entre atenção e gestão e da interação estratégica de corresponsabilidade necessária às deliberações
morais resolutivas.
Planejamento estratégico na gestão
Para uma ética da responsabilidade, agir moralmente pela deliberação significa sempre e, ao mesmo
tempo, agir estrategicamente pelo planejamento, porque a referência moral se traduz nos resultados
da ação visada. Nesse sentido, o planejamento estratégico torna-se uma exigência e um imperativo
ético do sujeito coletivo da equipe de atenção básica, considerando a indissociabilidade entre atenção e
gestão.
Para introduzir o planejamento no âmbito da ética, é necessário definir como se entende a
metodologia do planejar. O planejamento pode ser uma pura tecnologia ou ferramenta aplicada e
direcionada para a construção de um plano de ação por quem tem expertise técnica, sem a participação
de um sujeito coletivo, identificado com a realidade que se quer transformar. A lógica operante
nesse modelo é a da razão instrumental. Ou o planejamento pode ser um dispositivo, onde o mais
importante não é o produto, isto é, o plano ou projeto de ação, mas o processo, isto é, o caminho de
sua produção, possibilitando uma nova subjetivação dos participantes, com suas potencialidades de
estabelecer contratos e compromissos na seleção de prioridades em vista da consecução do fim visado.
Nesse segundo sentido, o planejamento segue a lógica da razão crítica e propositiva, constituída
pela prática contínua da equipe numa perspectiva teleológica de fins a construir, exigindo pensar a
permanente interação entre gestão e processos de trabalho7. Só esse modelo de planejamento, pela sua
dimensão de reflexividade e subjetivação, pode fazer parte de uma ética da responsabilidade.
A discussão sobre o planejamento na área da saúde pública já tem um longo percurso de
experiências e análises no Brasil12-16. A tendência que mais se adéqua à compreensão do planejamento
como dispositivo para potencializar a participação é a do agir comunicativo, pois a racionalidade do
processo gerencial vai além dos fins a alcançar, incluindo “o mundo da vida dos atores envolvidos
numa postura dialógica que motive a construção de projetos que possam ser assumidos coletivamente
como compromissos”17 (p. 357).
Para esse processo, é importante levar em consideração as estruturas mentais da cultura
organizacional dos ambientes de trabalho que influenciam as práticas rotineiras, e a possibilidade da
construção de novas representações por meio da participação no processo comunicativo e da gestão
por compromisso. Para isso, é essencial valorizar a reflexão para não cair numa padronização mecânica
das práticas e distribuição fragmentada do poder, apontando para um modelo de gestão negociada.
Nesse modelo, é indispensável estratégia de negociação cooperativa e competência para a liderança
interativa17.
Uma das principais referências dessa tendência para a explicitação da proposta metodológica é a
obra clássica de Matus18 sobre planejamento estratégico situacional. Para esse autor, o planejamento
depende de uma gestão descentralizada, a definição de objetivos a partir de problemas e a análise
da viabilidade e da estratégia de sua solução. Ele prevê quatro momentos em seu planejamento
estratégico situacional: explicativo, normativo, estratégico e tático-operacional. O primeiro momento
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Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP
artigos
é a seleção e análise dos problemas relevantes que pedem solução na visão dos atores envolvidos.
O segundo momento é a definição da situação-objetivo futura que se quer atingir e quais são
as operações necessárias para se obterem resultados, tendo presente os nós críticos dos cenários
possíveis. O terceiro momento é a análise da viabilidade desse plano de operações em suas diferentes
dimensões: política, econômica, cognitiva e organizativa. O quarto momento é a gestão e o
monitoramento operacional da execução do plano16.
A deliberação clínica e o planejamento estratégico
como exigências éticas complementares da atenção básica
A equipe de atenção básica, como porta de entrada do sistema de saúde, está preparada para
desenvolver a prática clínica na resposta às necessidades em saúde da população, mas uma clínica
ampliada de cunho generalista, que não se identifica com a clínica hospitalar e especializada e,
portanto, não utiliza tecnologias duras mais sofisticadas para o diagnóstico e a proposta terapêutica.
Por isso, pode parecer que ela não enfrenta conflitos e problemas morais por não usar e aplicar
instrumentos tecnológicos e não lidar com situações-limite de início e fim de vida. Ao contrário,
a atenção básica, em sua prática clínica, também enfrenta conflitos e problemas morais não
caracterizados pela densidade tecnológica, mas pelas complexas interações longitudinais dos processos
de saúde-doença, pelos determinantes sociais da saúde e suas expressões no território. Existe menos
sensibilidade e consciência para a necessidade de deliberação moral sobre esses últimos problemas
do que para os primeiros. O desafio neste contexto de cuidados primários é realizar uma deliberação
moral em equipe, enquanto sujeito coletivo do processo de decisão e da corresponsabilidade clínica e
sanitária.
Quanto aos problemas a enfrentar, é importante ter presente que a atenção básica lida tanto com
problemas-fim, que se referem ao estado de saúde dos indivíduos e da população adscrita, quanto
com problemas-meio que dizem respeito ao funcionamento e acesso à rede de serviços de saúde e
a outras instâncias intersetoriais, necessários para o equacionamento resolutivo das necessidades de
saúde da população14,16.
Para responder aos problemas-fim, é necessário conhecer as condições de saúde da população por
meio da coleta de dados e da produção de informações, investigadas e desenvolvidas pela vigilância
em colaboração com a atenção básica. Os problemas-meio precisam ser equacionados pela equipe
local nas instâncias de gestão governamental e de controle social, com vistas à construção e pactuação
das condições para o cuidado da população.
Tanto as respostas aos problemas-fim, referentes às condições de saúde, como as soluções
aos problemas-meio, concernentes aos serviços necessários à saúde da população, necessitam de
planejamento, porque o seu equacionamento significa criar as condições organizacionais e materiais
para um diagnóstico individual e coletivo adequado (vigilância) e para uma proposta de cuidado clínico
e sanitarista integral (gestão). Portanto, o planejamento é a base para uma integração da atenção
básica com a vigilância e para uma indissociabilidade dessa atenção com a gestão.
Considerando as contribuições teórico-metodológicas de Gracia e de Matus, e seus respectivos
objetos de estudo (deliberação moral e planejamento estratégico), propõe-se um quadro de referência
para a integração dessas dimensões da deliberação e do planejamento nas ações da Atenção Básica e
da Vigilância em Saúde, por meio da mediação de quatro momentos/etapas, conforme apresentado no
Quadro 1.
Em permanente movimento dialético, esses dispositivos constituem processos de construção e de
desconstrução de fluxos de ação, cada um deles interferindo com sua especificidade: o cognitivo opera
com o levantamento dos fatos e dos problemas implicados no caso que se quer resolver; o valorativo
ausculta os valores que estão em conflito, que incidem nas respostas ao caso, e os bens/fins que se
querem atingir na resposta; o operativo aponta as operações necessárias para encaminhar a solução
do caso, ou seja, os cursos de ação; e o avaliativo acompanha e monitora a execução do plano de
operações deliberado ou planejado, para dar conta da responsabilidade ética. Esses processos hão de
se guiar por um tipo de racionalidade que permita a participação de todos os implicados no processo
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):265-74
269
planejamento estratégico como exigência ética ...
de deliberação dos problemas práticos, pois passamos da imposição à autogestão, o que requer hábitos
deliberativos e de planejamento19. Com isso, se introduz o planejamento na ética e se fomenta a
bioética como ética da responsabilidade.
Quadro 1. Homologia entre as etapas da deliberação e do planejamento
Momentos/etapas
Deliberação moral (clínica)
Planejamento Estratégico (vigilância e gestão)
Cognitivo: fatos
Fatos relevantes para entender o caso clínico Problemas relevantes que pedem solução
Valorativo: valores
Valores implicados na decisão sobre o caso
Situação-objetivo, que é o fim que se quer atingir
Operativo: operações
Deveres que incidem na solução do caso
Plano de operações, que aponta para a sua
viabilidade
Avaliativo: responsabilidades Responsabilidades assumidas na execução
Gestão e monitoramento da execução do plano
Para entender essa interação e implicação mútua entre deliberação e planejamento, nas ações de
Atenção Básica e Vigilância à Saúde, toma-se como exemplo um caso concreto de atendimento de
uma equipe que atua na atenção primária do SUS. Os nomes das pessoas são fictícios. Essa equipe
atende Judite e sua família. Antes de mais nada, é necessário conhecer os fatos implicados no caso. É o
momento cognitivo.
Judite tem trinta anos, é solteira e sem filhos, e, há dez anos, convive com o diagnóstico de
esquizofrenia. Sua mãe, Dona Vera, sofre de problemas de coluna e tem deficiência auditiva, e seu pai
sofre de artrite e caminha com dificuldade. Judite tem uma irmã mais jovem, Marta, que não apresenta
nenhuma patologia, levando uma vida independente, não se envolvendo com os problemas familiares.
Ela formou-se em pedagogia e está procurando trabalho. Junto com a família vive uma tia-avó que
sofre de diabete e teve a perna amputada. A família tem sua condição de saúde agravada pela situação
de extrema vulnerabilidade social. Ocupa um apartamento cedido pelo Departamento Municipal de
Habitação (DEMHAB), do qual receberam uma ordem de despejo por irregularidades, decisão que
foi sustada pela justiça, devido à situação da tia-avó em cadeira de rodas e com muita idade, porque
não tinham para onde ir. Após dois meses da retomada do apartamento, a tia-avó faleceu e a família
estava, novamente, com o direito à moradia ameaçado.
No processo de acompanhamento da usuária, outra situação-limite fora desvelada, colocando a
equipe diante de diversos problemas morais. A equipe, que apostava no pai como membro cuidador,
foi descobrindo, aos poucos, que ele boicotava o tratamento psiquiátrico da filha, porque abusava
sexualmente dela.
Nesse período e, na sequência de episódios de perda e sofrimento extremo, o pai de Judite veio a
óbito. Tendo falecido a tia-avó e o pai, a família nuclear ficou reduzida a três pessoas: a mãe, Sra. Vera,
com dificuldades de locomoção e com deficiência auditiva; Judite, com sofrimento mental crônico, e a
sua irmã, Marta, professora.
Nessa nova configuração familiar, agravada pela privação socioeconômica, a equipe da saúde
da família começou a aproximar-se dessa filha mais jovem para tentar encontrar um apoio como
cuidadora.
O que significa deliberar clinicamente e planejar estrategicamente neste caso?
Tendo explicitado os fatos, começa o momento valorativo que aponta para o fim que se quer
atingir. Pela complexidade da situação apresentada, fica evidente que uma clínica baseada na avaliação
queixa-conduta-prescrição está fadada ao fracasso. Mesmo a deliberação moral não pode reduzir-se
ao dilema entre defender a dignidade de Judite e acusar o pai devido aos abusos, nem tampouco à
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artigos
omissão de ação, porque, na época, o pai era o único sustentáculo e arrimo possível. Com a morte da
tia-avó e do pai, a deliberação moral assume novos contornos, porque abre outros cursos de solução
cujas condições de realização dependem de planejamento estratégico. Nesses casos, as deliberações
interpelam os limites da própria clínica e da moral, convocando a equipe a um olhar ampliado, que
requer não só uma leitura atenta da rede-território, mas a compreensão das necessidades em saúde
na ótica da esfera pública, isto é, no âmbito dos direitos humanos e de cidadania. Esse pressuposto
implica conceber a saúde como direito que vai muito além do acesso aos serviços (esfera individual),
para pensá-la em seu espectro mais amplo, de satisfação das necessidades humanas básicas, como: o
trabalho, a moradia, a educação, o saneamento, o ambiente, o transporte etc. Isso só é possível com
planejamento.
A necessidade de uma visão ampliada como valor aponta para a definição de ações do momento
operativo. No caso de Judite, os tradicionais encaminhamentos às redes não seriam resolutivos, pois os
vínculos socioinstitucionais não estavam construídos. A equipe precisava ser a referência e vínculo para
essa família que enfrentava tantas perdas e dificuldades. Por isso, o planejamento foi uma ferramenta
potente para guiar a ação da equipe para além do espaço circunscrito da rede de saúde local.
Integrando a microrrede da região, a equipe pôde articular uma gama de possibilidades/
dispositivos socioterapêuticos para a família. Em um primeiro momento, analisou-se a precariedade
do atendimento prestado pelo CAPS da região, que estava com a equipe incompleta, inviabilizando
a oferta adequada de serviços. As condições de saúde de Judite, vontade e impulsos preservados,
permitiam que ela pudesse ser incluída em atividades terapêuticas laborais, e essa abordagem estava
suspensa há um ano no CAPS. Representantes da equipe de saúde da família e agentes sanitários
trouxeram dados atuais sobre o número de pessoas com sofrimento psíquico na região, descobertas
pelo atendimento em saúde mental, o que gerou uma reivindicação encaminhada à Conferência
Municipal de Saúde, que ocorria naquele semestre, e à Secretaria de Saúde do Município. Nucleouse uma comissão de representantes da microrrede (ONGs e serviços públicos) para monitorar os
“itinerários” dessa demanda legítima e necessária à população.
O plano terapêutico de Judite incluiu, ainda, a supervisão coletiva do agente de saúde com a
equipe do CAPS, no sentido do apoio à adesão ao tratamento e à família. Quanto ao núcleo familiar,
a deliberação da microrrede foi a de fortalecer o papel da irmã de Judite, como cuidadora responsável,
mas, também, a de resgatar a importância da presença da mãe, no cuidado da família como um todo.
Apesar de a deficiência auditiva dela ser severa, a família desenvolveu uma linguagem básica de sinais
que permitia uma comunicação fluente entre si. A questão identificada como “situação-objetivo” era
o empoderamento de dona Vera para retomar os cuidados com as rotinas domésticas, das quais havia
sido afastada por muito tempo, pela iniciativa do marido. Com o passar do tempo e pela forma como
a família lidou com suas dificuldades, ela foi se tornando um membro passivo e sem interferência na
vida familiar. Avaliando esse histórico, a equipe entendeu que os impeditivos físicos da mãe de Judite,
a deficência auditiva e uma hérnia de disco lombar, poderiam receber uma atenção especializada.
Consultas com especialistas foram marcadas com o Centro de Referência da cidade.
Uma diretora de escola do bairro, participante da microrrede, próxima da residência de dona Vera,
abriu a possibilidade de sua participação no grupo de idosos que ocorria semanalmente, especialmente
nas oficinas com acompanhamento do educador físico da escola, que tinha conhecimento da
linguagem de libras. A assistente social do CRAS ficou de verificar a elegibilidade do caso para o
recebimento do Benefício Previdenciário (BPC), o que proporcionaria, à família, uma melhoria de sua
situação socioeconômica e, à mãe, uma função de coprovedora do lar.
Uma vez definidas as ações planejadas, é necessário apontar responsabilidades que possibilitam o
momento avaliativo. Para Marta, irmã de Judite, foi proposta a supervisão dos cuidados de saúde da
família, com a precaução de não sobrecarregá-la com a responsabilização por todas as providências
e encaminhamentos necessários. Marta estava trabalhando em uma escola municipal, e seu salário
era o único meio de sustento da família. A equipe pactuou com Marta a corresponsabilização clínica,
proporcionando a criação de um vínculo de confiança indispensável à resolutividade do caso. Além
disso, Marta foi estimulada a desenvolver, com a irmã e com a mãe, atitudes educativas de apoio e
autonomia, num processo de aprendizagem mútua de superação e resiliência.
271
planejamento estratégico como exigência ética ...
Marta, após três meses de contatos regulares com a Unidade de Saúde, mais confiante em relação
aos propósitos da equipe e da rede, e com os resultados que já sinalizavam melhoras, se dispõe a
participar das reuniões quinzenais da comissão local de saúde e, com isso, passa a ser uma usuária
militante de seu território. Ela começa a perceber a dimensão coletiva da saúde e, com ela, que as
necessidades abarcam dimensões culturais, epidemiológicas, históricas do território, e, ao mesmo
tempo, os “carecimentos” individuais da ordem do adoecimento, do sofrimento e da cura.
Nesse processo, traz para a sua escola o debate sobre educação em saúde, saúde e ambiente,
e organiza, no final do ano, junto com a microrrede, a primeira Olimpíada da Promoção da Saúde.
Motivada pela equipe de referência, ela traz sua família para colaborar na organização, fortalecendo,
ainda mais, os vínculos comunitários. Um dos temas tratados foi à inclusão na escola, onde
especialistas e educandos com deficiências puderam expor seus trabalhos e conquistas. Judite organiza
a vinda dos usuários do CAPS a uma das palestras e, também, a exposição dos trabalhos com couro
(bolsas, chaveiros, marcadores de livros) produzidos pelo seu grupo.
Os movimentos construídos em um processo de planejamento participativo trouxeram à família a
possibilidade de conviver novamente no bairro, não apenas em círculos viciosos de institucionalização,
mas em um processo de ocupação do território como espaço social, como contexto dos processos de
vulneração e de resiliência. Nesses espaços e relações, se construíram processos coletivos de produção
de saúde e de vida.
Com essa reflexão, chama a atenção que, apesar de os “problemas-meio” escaparem à capacidade
resolutiva individual da rede local, a gestão da produção da saúde no território requer que sejam
reconhecidos e tomados como uma responsabilidade sanitária, no sentido de politizá-los e trazê-los ao
coletivo, à trama de relações sociais capaz de direcionar sua resolução.
Esse foi o caso do CAPS da rede que foi devidamente reestruturado, podendo atender os usuários
de forma integral. Nessa experiência, ainda pode ser destacado que, pelo protagonismo dos sujeitos
coletivos instituídos, a Vigilância em Saúde da região passou a ter uma presença efetiva nas reuniões
de microrrede e em todas as escolas municipais e estaduais do território, tornando-se fonte de
elementos e informações para a deliberação e o planejamento rumo ao curso ótimo para solução do
caso. O convite de Marta para que as equipes integrassem a Semana de Promoção da saúde em sua
escola abriu muitas outras portas à Vigilância, para além do puro registro de eventos de morbidade,
porque possibilitou outros acessos ao território. Trabalhar com a comunidade escolar ampliou o raio
de ação das equipes, que passaram a ter agendas e demandas no âmbito da educação em saúde.
A Atenção Básica e a Vigilância, conduzidas pelo “caso Judite”, com os recursos da deliberação e
planejamento estratégico, descobriram outras formas e itinerários de produzir saúde, junto ao território
vivo onde as necessidades brotam e demandam atenção e cuidado.
Saúde e doença são fatos objetiváveis cientificamente, mas as ideias sobre saúde e doença são
construções, individuais e coletivas, que variam segundo o modo de entender e gerir fatos, valores e
deveres, implicados no caso concreto20. O processo saúde-doença, portanto, trata de fatos e valores/
fins ao mesmo tempo, que confluem na operacionalização da produção de saúde. É disso que a
atenção básica deveria dar conta no território, tendo, as equipes, de lançarem mão de recursos da
clínica e da vigilância, do planejamento e da gestão, que permitam plasmar as diferentes dimensões da
realidade que possibilitam a decisão e a operação dos cursos de ação.
Considerações finais
Essa experiência tornou-se um ícone para a equipe e para a microrrede, pois os processos de
trabalho foram se orientando pela aprendizagem do planejamento coletivo realizado em torno das
necessidades de uma família, como uma exigência ética da própria deliberação clínica. Apostar
no potencial de uma família extremamente vulnerada social e clinicamente, exigiu planejamento
estratégico por parte da equipe e da rede e disponibilidade de “querer fazer”, engajando e implicando
técnicos, agentes e demais membros da rede para trilharem caminhos virtuosos de sabedoria prática,
que foram se abrindo na processualidade do cuidado deliberado e planejado com corresponsabilidade.
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Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP
artigos
Diante dessa experiência, pode-se defender a tese de que a efetividade da deliberação moral da
clínica, no âmbito da atenção básica, precisa incorporar, em seus cursos de ação, os processos de
planejamento estratégico em interação com a macrogestão e com a vigilância em saúde.
Colaboradores
José Roque Junges responsabilizou-se pelo tema, argumentos, discussão e escrita do
artigo. Rosangela Barbiani responsabilizou-se pela discussão, elaboração do caso concreto
e melhoria da redação do texto. Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli fez a revisão final e
aperfeiçoou os argumentos e a redação do manuscrito.
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Junges JR, Barbiani R, Zoboli ELCP. La Planificación Estratégica como exigencia ética para
el equipo y la gestión local de la Atención Básica en Salud. Interface (Botucatu). 2015;
19(53):265-74.
Las premisas de que no se puede cuidar de los individuos sin atender a sus colectivos
y de que atención y gestión son inseparables muestran que la deliberación moral de la
clínica en el cuidado individual no puede separarse de la planificación estratégica del
equipo y de la gestión local. Esta planificación precisa estar integrada con la vigilancia
para detectar necesidades en salud del contexto de atención, articulada con la gestión
central del municipio para pactar acciones intersectoriales necesarias para el cuidado
de la salud ampliado de los individuos y de la población. Las decisiones morales de
deliberación clínica exigen, para hacerse concretas, condiciones y medios dependientes de
la planificación estratégica en el territorio. Al consultar el proceso de deliberación moral
propuesto por Gracia y de planificación estratégica propuesto por Matus se descubre una
gran homología entre sus etapas: cognitivo, valorativo, operativo, evaluativo. El artículo
concluye con un caso concreto complejo de atención básica en donde están implicadas
esas etapas.
Palabras clave: Atención Básica de la Salud. Etica. Gestión. Vigilancia. Planificación
Estratégica.
Recebido em 01/05/14. Aprovado em 09/09/14.
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2015; 19(53):265-74
DOI: 10.1590/1807-57622014.0221
artigos
A violência na vida de mulheres
em situação de rua na cidade de São Paulo, Brasil
Anderson da Silva Rosa(a)
Ana Cristina Passarella Brêtas(b)
Rosa AS, Brêtas ACP. Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo,
Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85.
This survey aimed to bring out reflections
regarding situations of violence in the lives
of women who were living on the streets
in the city of São Paulo, Brazil. During the
fieldwork, the researcher interacted with
about 100 homeless women and recorded
perceptions in a field diary. Subsequently,
22 women were interviewed in a shelter.
We gathered from the results that these
women’s homeless condition was related
to violence suffered within the domestic
and family context, insufficient income
to ensure their own and their children’s
needs and breakdown of social ties. On
the streets, they experienced violence in
territorial disputes, gender oppression, lack
of privacy, drug trafficking and hygienist
practices. This study deconstructed the
stereotypes of fragility and dependence
among homeless women. In the relational
process, they too were instigators of
disputes over space and power.
Keywords: Women. Homeless people.
Violence. Cartography.
Esta cartografia objetivou trazer à
reflexão situações de violência na vida de
mulheres em condição de rua na cidade
de São Paulo, Brasil. Durante o trabalho
de campo, o pesquisador interagiu com
cerca de cem mulheres em situação de
rua, sendo as percepções registradas
em diário de campo. Posteriormente, 22
mulheres foram entrevistadas em um
albergue. Depreendemos, dos resultados,
que a situação de rua para as mulheres
foi relacionada a: violências sofridas no
contexto doméstico e familiar, a renda
insuficiente para garantir o próprio sustento
e o dos filhos, e a ruptura dos vínculos
sociais. Nas ruas, conheceram a violência
nas disputas territoriais, opressões de
gênero, falta de privacidade, tráfico de
drogas e nas práticas higienistas. O estudo
desconstruiu os estereótipos de frágeis
e dependentes para as mulheres de rua;
no processo relacional, elas também
protagonizavam disputas por espaço e
poder.
Palavras-chave: Mulheres. Sem-teto.
Violência. Cartografia.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a,b)
Departamento
de Administração e
Saúde Coletiva, Escola
Paulista de Enfermagem,
Universidade Federal
de São Paulo. Rua
Napoleão de Barros,
754. São Paulo, SP,
Brasil. 04024-002.
anderson.rosa@
unifesp.br; acpbretas@
ymail.com
2015; 19(53):275-85
275
a violência na vida de mulheres ...
Introdução
No Brasil, ainda é incipiente uma abordagem específica das peculiaridades das mulheres que vivem
nas ruas, inclusive, na área acadêmica, na qual encontramos poucas publicações a respeito do tema.
Elas estão em menor número nas ruas comparadas aos homens; a porcentagem de mulheres em
situação de rua é de, aproximadamente, 18% no cenário nacional1 e de 13% na cidade de São Paulo,
sendo 1.885 mulheres em um universo de 14.478 adultos ou idosos em situação de rua2.
Em Nova York, uma pesquisa envolvendo 141 mulheres em situação de rua revelou um alto índice
de violência física e estupro; 21 mulheres relataram terem sido estupradas; 42 foram estupradas e
agredidas; e 62 foram agredidas, mas nunca sofreram abuso sexual. Grande parte das necessidades de
assistência à saúde é decorrente desta realidade, seja para cuidar dos traumas físicos, ou dos problemas
de saúde mental associados3.
Estudo realizado em Los Angeles, com 974 mulheres em situação de rua, revelou que 13%
relataram história de estupro no último ano. As mulheres que vivenciaram este tipo de violência
apresentaram um pior estado geral da saúde: houve aumento dos sintomas ginecológicos, aumento
do uso e abuso de álcool e outras drogas, e acentuado aumento dos casos de depressão4. Já na cidade
de Toronto no Canadá, Ambrosio et al.5 verificaram que 43,3% das mulheres da amostra tinham sido
vítimas de estupro no último ano, em detrimento a 14,1% dos homens.
Estudo de coorte realizado em Toronto, no Canadá, acerca do risco de morte entre mulheres em
situação de rua, analisou os dados comparando com outras publicações semelhantes das cidades de
Montreal, Copenhagen, Boston, Nova York e Brighton. Os dados revelaram que essas mulheres, entre
18 e 44 anos de idade, têm entre oito e trinta vezes mais chances de morrer do que as mulheres da
mesma faixa etária da população em geral. Para as mulheres com mais de 44 anos, este índice cai para,
em média, 1,5 vezes mais chances de morrer. Essas mortes estão relacionadas a: doenças mentais, vício
em drogas e overdose, infecção por HIV, tuberculose e traumas; e a uma maior dificuldade de acesso a
atendimento e tratamento para a saúde de qualidade6.
Daisk7, a partir de relatos de mulheres em situação de rua no Canadá, descreveu que, para elas,
a saúde e suas necessidades de saúde tinham um sentido holístico. Relataram preocupações com
doenças físicas, saúde mental, vícios e estresse. A vida nos albergues promoveu a propagação de
doenças e falta de privacidade. A violência era premente em abrigos e nas ruas, levando ao medo
constante. Houve sofrimento emocional sobre a exclusão social e despersonalização. Queriam
trabalhar e serem alojadas em segurança. Sentiam-se presas em um sistema desumanizante.
No Brasil, informações oficiais com relação à violência sofrida por mulheres de uma forma geral são
subnotificadas. Temem denunciar o agressor, uma vez que não confiam na segurança que o Estado
deveria lhes oferecer. O mesmo acontece com as mulheres em situação de rua, quiçá de forma mais
grave, mas ainda não temos a real dimensão desse problema. Empiricamente, observamos que viver na
rua, para as mulheres, perpassa pela necessidade de construírem relações que assegurem a viabilidade
da sua vida cotidiana, uma vez que sozinhas são mais vulneráveis às violências presentes na rua. Não
pretendemos colocar as mulheres na condição de frágeis e dependentes, tampouco como vítimas
por estarem em situação de rua. A vida na/e da rua não permite clichê; ela é múltipla, é complexa,
é lócus de conflito e contradição social; aliás, viver na/e da rua per si é uma violência e escancara a
desigualdade de direitos dentro de uma sociedade.
Este artigo é um recorte temático da tese de doutorado “Mulheres em situação de rua na cidade
de São Paulo: um olhar sobre trajetórias de vida”, defendida no Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo8. Foi construído com o objetivo de trazer à reflexão
situações de violência na vida de mulheres em condição de rua, quiçá subsidiar a crítica sobre esta
questão, que engloba três grandes temas que, quando juntos, evidenciam a desigualdade social:
mulheres, sem-teto, violência.
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Rosa AS, Brêtas ACP
artigos
Percurso metodológico
A pesquisa foi realizada por meio do método da cartografia, que visa acompanhar um processo,
mais do que representar um objeto. O cartógrafo quer estudar a vida em movimento, quer analisar
o processo de constituição de novas realidades, pois paisagens sociais são cartografáveis. Na esfera
micropolítica, valoriza os devires, imprevisíveis e incontroláveis, que transfiguram, imperceptivelmente,
a paisagem vigente9.
A pesquisa de campo para o cartógrafo requer a habitação de um território que, em princípio,
ele não habita. Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica. O pesquisador
cartógrafo participa da vida das pessoas que estuda, modificando e sendo modificado pela
experiência10.
A cartografia utiliza a análise foucaultiana do discurso, na qual devemos ter o compromisso de
considerar duas manifestações do discurso: o enunciável e o visível. O enunciável é composto pela
palavra, pela língua e pela escrita. Já o visível é constituído pelas práticas sociais e pelos objetos
criados para conduzir o comportamento do sujeito11. Sendo assim, neste estudo, nos atentamos não
apenas para os discursos das mulheres com as quais interagimos, mas, sobretudo, para a produção de
significados e devires que o próprio território da rua produz ao ser habitado por pessoas.
O estudo foi construído em dois cenários. O primeiro foi desenvolvido nos logradouros da região
central da cidade de São Paulo no período de maio de 2010 a março de 2011. Foram escolhidos os
três distritos com maior quantidade de pessoas em situação de rua: República, Sé e Santa Cecília,
todos localizadas na região central da cidade. O segundo, em um Centro de Acolhida que abrigava
homens e mulheres em situação de rua, entre abril e julho de 2011. Está localizado nas proximidades
do centro da cidade e é denominado Centro de Acolhida tipo II, pela prefeitura de São Paulo, uma vez
que funcionava 24 horas. O serviço tinha capacidade de abrigar 172 homens e cinquenta mulheres,
divididos em oito dormitórios masculinos, e um dormitório feminino.
Pelas anotações do diário de campo, na primeira fase do estudo, houve observações e/ou interação
com cerca de cem mulheres. Já no equipamento social, entrevistamos 22 mulheres, de um universo
de 49 que estavam abrigadas naquele período. A opção em gravar apenas as entrevistas das mulheres
que estavam no albergue se deu pela dificuldade em realizar esta ação nos logradouros da cidade.
O barulho, a falta de privacidade, as interferências de pessoas que transitavam e a timidez pela
exposição eram fatores que julgamos comprometer a qualidade da coleta de dados. Os únicos critérios
de inclusão para realizar as entrevistas foram: ser mulher, ter mais de 18 anos de idade, e estar em
situação de rua.
Vale salientar que as narrativas gravadas não divergiram das que foram registradas em diário de
campo. A habilidade em dialogar com essas mulheres, buscando a imersão no nosso objeto de estudo,
foi construída gradualmente. Certamente, sem a observação sistemática de suas vidas nas ruas, não
teríamos a sensibilidade para apreender os devires presentes em seus discursos.
No que diz respeito aos procedimentos éticos inerentes às pesquisas científicas na área da saúde,
bem como a vigilância rigorosa das condições de utilização das técnicas e a sua adequação ao
problema posto, informamos que estiveram presentes em todas as etapas do estudo. O projeto de
pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo.
Resultados
Constatamos que as histórias de vida pregressas à situação de rua, apesar de possuírem fortes
pontos de conversão, mantiveram, em si, suas individualidades. São vidas permeadas por: pobreza,
experiências de violências, transtornos mentais, dependência de álcool e outras drogas, falta de amor
e rupturas dos vínculos familiares e sociais. Cada mulher que conhecemos vivenciou, no mínimo, duas
dessas situações.
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a violência na vida de mulheres ...
A violência figurou, nos discursos, como tema transversal e de grande impacto na deteriorização das
relações sociais que contribuíram para o ingresso à vida nas ruas. Muitos foram os relatos de violência
praticada pelos próprios parceiros.
Essas mulheres adquiriram certa tolerância a formas não físicas de violência. Quando questionadas
a respeito das violências que sofreram, nas ruas ou fora delas, relataram, quase sempre, situações de
agressão física e/ou sexual. Mas, no decorrer de suas falas, inúmeras outras situações de violências
psicológicas, verbais, negligências são relatadas como fatos de menor importância, mesmo sendo
responsável por grande sofrimento.
“O que aconteceu foi que ele me deu uma facada embaixo do peito, e eu fui para o hospital.
No hospital depois que me trataram, que eu estava com os pontos tudo, a assistente social veio
conversar comigo e perguntar como tinha acontecido aquilo. E ai eu conversei com ela, e toda
hora ela falava – mas essa é a sua escolha, depois que você ficar boa vai voltar para casa? E
toda vez que você volta, você volta com um problema. Você vai bem, depois volta porque ele
te bateu, ou volta porque ele te botou para fora, ou volta porque ele te esfaqueou. Ai eu falei
que não ia mais, e realmente não fui mais. Não fui, converso com a minha família normal pelo
telefone, mas não fui mais e estou na rua”. (Paula, 41 anos, dez em situação de rua)
Entender a sujeição, às vezes prolongada, de um relacionamento conjugal pautado pela violência
exige uma análise cuidadosa das condições de vida que agem sobre a respectiva família. Apesar
da violência e do sofrimento, a maioria das mulheres teve dificuldade de enfrentar e reverter sua
própria situação de vida. Apontaram a falta de independência financeira para o seu sustento e
para o dos filhos, e a falta de apoio familiar e/ou institucional para enfrentar essa situação. Muitas
tiveram dificuldades para trabalhar, seja pela proibição do parceiro ou pela necessidade de cuidar
dos filhos. Viviam sob ameaças de violência e até de morte, fato que as imobilizaram e perpetuaram
seus sofrimentos ao lado do agressor. Também relataram que o amor que tinham ou que tiveram
pelo parceiro nutria a esperança de que a violência era um fato passageiro e que seria superado pelo
casal. Para algumas dessas mulheres, a vida na rua foi a saída encontrada para se livrar da violência
doméstica.
Para outras mulheres, o uso de drogas foi apontado como o principal responsável pela situação
de vida nas ruas. Gradualmente, deterioraram seus vínculos familiares; comprometeram sua
responsabilidade em relação ao trabalho, estudo, cuidado aos filhos; deixaram-nas mais expostas
à violência e a criminalidade; além de mais vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis,
gravidez indesejada e prostituição. O vício em drogas criava um ciclo que se retroalimentava e,
progressivamente, degradava as condições de vida da mulher. O desfecho do consumo de drogas
ilícitas, quase sempre, foi a perda da guarda dos filhos, que gerava sofrimento e tristeza, que
aumentava o consumo de drogas e a vulnerabilidade social da mulher.
“Aí mataram ele [companheiro]. O moço chegou drogado no assalto, ai ele foi tentar acalmar
e levou um monte de bala. E ai depois disso eu comecei a passar pelos abrigos. Bom eu estou
resumindo porque a história é muito longa e triste e eu não gosto nem de lembrar”. (Vanessa,
34 anos, gestante, dois anos em situação de rua, três filhos)
As mulheres descreveram as principais formas de violência física vividas nas noites em que
pernoitaram nas ruas. A primeira foi a violência praticada por pessoas ou grupos intolerantes com a
situação de pobreza vivida pelas pessoas em situação de rua; relataram histórias de agressão e morte
de forma cruel – a violência pela própria violência. A segunda foi a violência praticada entre as próprias
pessoas que se encontravam na rua, e tinham como principais motivações: as dívidas com traficantes,
disputas por espaço, pequenos furtos, infidelidade conjugal e desavenças pessoais. A terceira, um
tipo de violência planejada, de cunho higienista, praticada por policiais, pessoas contratadas por
comerciantes ou moradores que se sentiam prejudicados pela presença das pessoas em situação de
278
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artigos
rua nos arredores dos domicílios, comércios, monumentos e cartões postais da
cidade. Por último, a violência sexual, relatada com frequência pelas mulheres
que participaram do estudo, quase sempre, praticada por homens, em situação
de rua ou não, e com potencial de causar danos físicos e mentais irreparáveis na
mulher.
“A noite dormia na rua, às vezes nem dormia. Às vezes ficava acordada
a noite inteira com medo. Como já passou várias vezes na televisão,
gente, mendigo que estava dormindo na calçada e passou as pessoas
e botou fogo nele, tudo. Fora outras coisas também que pode, tem
homem ou mulher também que pode te abusar, ou matar por nada”.
(Vitória, 25 anos, oito em situação de rua)
“Já, já fiquei na rua. A noite que eu dormi na rua eu me senti como
uma barata. Eu não consegui dormir, eu vi um cara deitar na praça e eu
fiquei por ali toda assustada”. (Paula, 41 anos, dez em situação de rua)
O universo das usuárias de crack possuía características próprias. As mulheres
relataram ficar concentradas em regiões específicas do centro da cidade, onde
o acesso à droga era garantido. Geralmente, todo o dinheiro que conseguiam,
seja por trabalho, benefício social, doação e/ou roubo era consumido em drogas.
Com o tempo, deixavam de se preocupar com a higiene, alimentação e descanso.
Nesta situação, potencializavam-se as situações de violência, uma vez que ocorre
entre os próprios usuários da droga, entre os usuários e os traficantes, e entre os
usuários e policiais.
(c)
Termo derivado
da palavra paranoia,
comumente utilizado na
rua para designar pessoas
em estado avançado de
dependência de drogas,
sobretudo o crack.
“Era para mim não estar nem aqui hoje nesta mesa contando da minha
vida, era para mim ter morrido mesmo porque para a gente que mora na
rua é mais fraco que papelão, e a gente quando é nóia(c) fica ainda pior.
Tem algo na gente que quando você fuma quer sempre mais e mais e
mais, ai você não come, você não dorme, você não para, fica para lá e
para cá na brisa”. (Madalena, 24 anos, dois em situação de rua)
As limitações impostas pelas regras de cada serviço e as dificuldades de
convivência causavam insatisfação em algumas mulheres. Eram obrigadas
a adequarem seus hábitos e costumes de cuidado com o corpo, higiene,
alimentação, entre outros, em compatibilidade com as condições que os serviços
lhes ofereciam e com as regras que tinham.
“É triste, é cruel porque você tem que dividir o espaço com as outras
mulheres. Elas não te respeitam. Se a luz é para ficar acesa elas querem
que apaga. Na hora de dormir elas começam a gritar, a falar palavrão,
brigar, discutir. Começam a jogar coisas pela janela. A gente tem que
ter privacidade, e aqui você não tem. Para elas tudo é puxar uma faca.
Você não pode falar nada que elas já vêm com esse palavreado”.
(Beatriz, 42 anos, seis em situação de rua)
“Eu tenho essa convicção de que estou em um regime semi aberto
prisional. É isso que eu sinto, eu estou presa. Presa por horários, presa
por nãos, presa por pedir, pedir eu posso, por favor”. (Daniela, 33 anos,
nove meses em situação de rua)
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a violência na vida de mulheres ...
Também ouvimos relatos de violência física e ameaças praticadas pelos próprios parceiros de
relacionamentos que começaram na rua. Por medo e por gostarem do agressor, essas mulheres se
sujeitavam a manter este tipo de relação.
“Ele me batia ali perto do bagageiro, ali perto da mesa, ali perto da sala de televisão todo
mundo via. E os outros falavam pra mim, vai falar pro monitor e eu ficava com medo dele fazer
alguma coisa comigo. Então, eu ficava quieta”. (Juliana, 49 anos, mais de dez em situação de
rua)
Ao contrário do que imaginávamos encontrar, as mulheres não relataram iniciar um relacionamento
no intuito de terem alguém que as protegesse, para isso, cunhavam apenas amizades. Relacionavamse sexualmente quando se sentiam atraídas, quando eram conquistadas ou conquistavam, quando
sentiam desejo.
Discussão
A partir dos resultados encontrados e dos caminhos teórico-conceituais que percorremos,
propusemos, aqui, uma possibilidade, dentre tantas outras, de compreender situações de violência,
sentimentos, dificuldades e devires que compartilhamos junto às mulheres que fizeram parte do
estudo.
Sabemos que todo conhecimento produzido é resultado de um jogo de compromissos, posturas
e ideias. Ele aparece como efeito do choque e afrontamento de experiências heterogêneas que, ao
lançar feixes de luz sobre horizontes, esclarece certos contornos e, ao mesmo tempo, sombreia outras
paisagens. E, neste sentido, todo conhecimento é sempre um desconhecimento12.
Este estudo reforçou o desafio de superar a concepção acerca da situação de rua como decorrência
direta da falta de moradia e renda. Em consonância com Snow e Anderson13, a análise das trajetórias,
percursos e histórias de vida relatadas complexifica e, ao mesmo, tempo, constata que há um conjunto
de ações e fatos, componentes estruturais e biográficos, que, conjugados, acabaram conduzindo a
mulher à situação de rua.
Nas trajetórias de vida das mulheres em situação de rua, destacamos os embates de forças e
poderes no contexto familiar. Parentes, companheiro e/ou companheira tentaram exercer funções
disciplinadoras sobre suas vidas. Cerceavam suas escolhas e não contribuíam, ou, até mesmo,
dificultavam o alcance da autonomia. Colocar a mulher na condição de dependência reiterava e
reforçava o poder exercido. Falamos de disputas de poder no âmbito simbólico, mas, também, físico.
Muitas das mulheres que conhecemos traziam, na mente e no corpo, as marcas de violências sofridas.
Para Foucault14, relações matrimoniais apresentam resquícios de jogos agonísticos entre os envolvidos.
Movimentos de disputas de poder em forma de reciprocidade ou de igualdade versus o desejo de
manifestar a superioridade sobre o outro.
No processo relacional, a mulher também protagonizava a disputa por espaço e poder. Chegava
a apoiar-se nos estereótipos de fragilidade para subverter situações a seu favor. Mas, na medida em
que expunham suas contrariedades e resistiam à dominação, violentavam e eram violentadas. Estas
dinâmicas de vida, permeadas por manifestações descomedidas de força, saturavam-se pelo desgaste
dos corpos e mentes. Neste sentido, algumas mulheres que ouvimos chegaram ao limite das violências
que conseguiram suportar no contexto doméstico e/ou familiar. Escolheram, por falta de outras
opções, abandonar o lar e tentar a vida nas ruas, apontando para a fragilidade da execução da Lei
Maria da Penha.
Esses dados assemelham-se aos encontrados em outros estudos15,16, em que a situação de rua
para a mulher era, frequentemente, o resultado de agressões e violências, dentre elas, a sexual,
praticada no contexto doméstico e familiar. A ruptura desses vínculos sociais e a não-existência de
outros suficientemente fortes para subsidiar a reorganização da vida, somada à escassez de recursos
financeiros e a ausência de instituições que lhe garantissem segurança e proteção, moldaram seu
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trajeto de vida até a situação de rua. Desta forma, julgamos necessário transcender a discussão sobre a
situação de rua para as mulheres a partir do prisma das vulnerabilidades de renda e habitação.
Assim como Frangella17, ouvimos histórias de vida contadas com uma cronologia irregular, mas que
denotava os mecanismos de inteligibilidade criados pelas narradoras para significar suas trajetórias.
Com o decorrer da conversa, os tempos dos discursos começavam a se sobrepor, possibilitando
delinear os eventos e sentimentos presentes nas histórias de vida.
Em alguns casos, sobretudo para as mulheres que estavam há mais tempo nas ruas, notamos
tendências à construírem uma história adaptativa, resiliente, que valorizava a capacidade de encontrar
soluções para situações extremas18. E, com isso, valorizavam um saber feminino de rua.
A situação de rua, quase sempre, foi narrada como decorrência de eventos específicos. Houve a
valorização dos fatos mais marcantes que antecederam a perda ou abandono do lar, em detrimento a
uma sequência progressiva de fragilizações e rupturas sociais. Algumas, desde a infância, careceram
de referências familiares, de cuidado e amor. Quase sempre, deram mais relevância às carências
subjetivas e sentimentais do que às privações materiais, mesmo que estas também tenham permeado
sobremaneira suas condições de vida. Nesta perspectiva, Ralston19 reforça a importância de ouvir, das
mulheres em situação de rua, suas próprias necessidades, e entender as marcas que suas trajetórias de
vida deixaram no processo.
Como ponto de convergência nas trajetórias de vida, as mulheres partilharam da insuficiência no
âmbito das capacidades de renda, em manterem seus espaços domésticos, suas casas20. Mesmo que
abandonar o lar tenha sido uma opção, não encontraram saídas para reconstrução de outro. Alcançar
a liberdade e autonomia sonhada outrora, que encorajava desbravar o mundo da rua, se mostrou mais
difícil do que previam.
A partir do recorte gênero, depreendemos que homens e mulheres apresentaram diferenças
substanciais nas formas que vivem e internalizam a situação de rua8,21. Dentre elas, destacamos que,
para o homem, a rua foi o desfecho de uma condição terminal de ruptura e degradação social; neles
mantinham-se vivos o desejo de retornar às condições de vida perdidas21. Já para algumas mulheres,
representou uma solução inicial para situações de violências e insatisfações com o espaço doméstico.
Não nutriam o desejo de voltar para o lar perdido ou abandonado, mas de construir outro. Enfim, a
experiência de terem sido vitimizadas permitiu a elas conferir significados a sua experiência e constituir
a si mesmas22.
Assim como em Frangella17, encontramos a violência como um dos elementos intrínsecos ao
universo das moradoras de rua – seja implícita ou explícita. A violência pode ser enfocada nos conflitos
territoriais, nas práticas sexuais ou opressões de gênero entre os próprios habitantes de rua, nas
intervenções materiais e simbólicas agressivas concretizadas pelos agentes urbanísticos, ou no discurso,
no plano da ofensa recorrente dirigida a esse segmento, alimentando o ciclo estigmatizante de sua
imagem.
A despeito da violência vivida nas ruas por mulheres, encontramos, neste estudo, uma maioria que
optou em garantir sua própria segurança – o que contrariou os achados de Tiene23, que apontaram
certa vinculação necessária a um ou mais homens na rua para proteção. Subverteram, de certa forma,
estereótipos de frágeis e dependentes. Apontaram outra concepção sobre relacionamentos conjugais
nas ruas. Escolhiam seus parceiros por atração física, desejos sexuais e de afeto, por afinidade de
objetivos de vida, ou por semelhanças nos modos de vida na rua. Reforçaram a ideia de poderem
escolher, e até trocar de parceiro com facilidade, pela quantidade superior de homens vivendo nas
ruas. Nesta conjuntura, eram menos tolerantes às agressões praticadas pelos companheiros. Não
receavam mais a perda do espaço doméstico, como outrora. No entanto, relataram temor e dificuldade
para romper com uma relação violenta quando ameaçadas de morte.
Dentre os modos de vida adotados pelas mulheres em situação de rua, destacamos as usuárias
de crack e habitantes da cracolândia como as mais expostas e vulneráveis às violências. Uma vez
que usar crack nas ruas era mais que uma dependência química, era a incorporação de modos de
vida específicos24. Encontravam-se inseridas em contextos complexos de: tráfico de drogas, disputas
por territórios, estratégias lícitas ou ilícitas para conseguirem dinheiro e manterem a dependência,
prostituição, com descuido ao corpo e à saúde.
281
a violência na vida de mulheres ...
Este foi o único grupo de mulheres que, de forma substancial, se associou a um ou mais homens
para garantir segurança e proteção. Na relação, compartilhavam, com o(s) parceiro(s) ou pessoas do
convívio, o dinheiro para consumir o crack. Em geral, tinham pouca afinidade a se associarem a outras
mulheres. Cada mulher mantinha certo repertório de estratégias e vínculos sociais que lhe garantia a
manutenção do vício e segurança.
A vulnerabilidade deste grupo de mulheres não residia, apenas, nas dinâmicas intrínsecas aos
modos de vida do crack. Sobretudo, eram alvos da discriminação e intolerância social frente ao uso de
drogas e habitação de pontos específicos da cidade.
Somam-se a coerção do Estado, ações de grupos de intolerância ou segurança privada
que, frequentemente, assassinam as pessoas em situação de rua. É o instante extremo em que
representações e práticas levam à exclusão do outro, tido e havido como encarnação da periculosidade
e, portanto, passível de ser eliminado25.
Desta forma, compreender a situação de rua para mulheres perpassa pela necessidade de se
relevarem as dinâmicas de poder e violência nas quais estão inseridas. Sendo que, conforme apregoa
Foucault26, os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social.
Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não
existe exterior possível, limites ou fronteiras. Sendo que o poder não existe isoladamente, sempre se
constitui por uma prática ou relação de poder.
Considerações e caminhos a percorrer
Enquanto profissionais que assistimos esta população, devemos estar atentos ao impacto que os
modos de vida na rua têm sobre o processo saúde-doença-cuidado para estas pessoas. Este estudo
reforçou as nossas crenças quanto à prática de um cuidado ético, ontológico, que tenha a plasticidade
de respeitar as vontades e de se adaptar às realidades de cada um. A complexidade da situação de
rua para as mulheres demanda a ampliação do próprio conceito de cuidado, incorporando, em sua
essência, a interdisciplinaridade e intersetorialidade.
A convivência com estas mulheres que estavam em situação de rua ampliou a nossa visão em
relação à problemática da violência no espaço urbano. Denunciou que, apesar das peculiaridades do
universo feminino relacionadas às suas necessidades, desejos e capacidades, não existe, de maneira
consistente, a inclusão dessas diferenças nas políticas e programas de atenção à população em
situação de rua. Tampouco há estudos sobre diferentes formas de violência que acometem essas
mulheres. Defendemos um maior entendimento do fenômeno para ampliar a discussão junto aos
diferentes atores envolvidos no processo de formulação de políticas, estratégias assistenciais e de
empoderamento social.
A Lei Maria da Penha representou um avanço na tentativa de coibir a violência familiar e doméstica
contra as mulheres, entretanto, ainda precisa ser cumprida com mais rigor. Mulheres vítimas de
violência precisam de proteção efetiva para sentirem-se encorajadas em denunciar o agressor em meio
às ameaças e riscos de serem novamente violentadas e até mortas. Para tal, a resposta do Estado e da
justiça precisa ser mais ágil na punição do agressor, e a mulher ter, à disposição, alternativas para se
livrar da violência doméstica, na ausência de apoio familiar e autonomia de renda, sem que a vida nas
ruas lhe figure como única possibilidade.
Precisamos incluir, no cuidado às pessoas em situação de rua, possibilidades de saída desta condição
de vida, sempre que elas desejarem. Fato que exige sinergia, no mínimo, entre as políticas e ações
das áreas de assistência social e saúde. Bem como, a incorporação de redes formais e informais de
assistência oferecidas por outros setores da sociedade civil e estatal, que também englobam: circuitos
ligados à religião, arte, cultura, educação, trabalho, esportes, movimentos sociais e políticos, dentre
tantos outros. As somatórias dessas ações convergentes podem aumentar as chances de alternativas às
ruas para essa população.
No que tange à área da saúde, em especial a Atenção Básica, defendemos a ampliação da
Estratégia da Saúde da Família (ESF) especial para atendimento da população de rua. Em seus poucos
282
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artigos
anos de atuação na cidade de São Paulo, são notáveis os avanços, sobretudo, na garantia do acesso
aos serviços de saúde e incorporação dos modos de vida na rua nas práticas de cuidado. Destacamos
a necessidade de se flexibilizarem os horários de atendimento das equipes. Ações noturnas, sobretudo
nos albergues, ampliariam a cobertura da população e o impacto das ações de promoção à saúde. A
nosso ver, o recém-lançado modelo nacional de consultórios de rua, apesar de representar um avanço
nas cidades que estão iniciando uma abordagem específica à população de rua, pode representar um
retrocesso para São Paulo se não incorporar, em suas estratégias, o cuidado longitudinal.
Associado ao trabalho da atenção básica, é preciso ampliar a rede de cuidado específica à saúde
mental, direcionando ações aos problemas e contextos sociais mais frequentes nas ruas. Nesta área, o
maior desafio é o tratamento da dependência ao álcool e outras drogas, uma vez que essa doença está
relacionada ao ingresso e cronificação da situação de rua para muitas pessoas.
Cremos que os equipamentos destinados às pessoas em situação de rua devem contribuir com
práticas locais de caráter comunitário; serem menores, destinados a um número menor de pessoas no
intuito de favorecerem a convivência, troca de experiências e somatória de potencialidades. Grandes
instituições possuem o risco de massificar suas ações, tendendo à terceirização e a impessoalidade.
Este trabalho demonstrou diferenças substanciais entre as causas do fenômeno “situação de rua”,
modos de vida, fontes de sofrimento e cuidados ao corpo entre mulheres e homens. Desta forma, tais
diferenças precisam ser consideradas na criação e/ou adequação dos espaços e ações destinados às
mulheres em situação de rua.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito.
Referências
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artigos
Rosa AS, Brêtas ACP
Rosa AS, Brêtas ACP. La violencia en la vida de mujeres que viven en la calle en la ciudad
de São Paulo, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):275-85.
Esta cartografía tuvo el objetivo de plantear la reflexión sobre situaciones de violencia en
la vida de mujeres que viven en la calle en la ciudad de São Paulo, Brasil. El encuestador
interactuó con casi cien mujeres que viven en la calle, siendo las percepciones registradas
en un diario de campo. Posteriormente, se entrevistó a 22 mujeres en un albergue. La
situación de vivir en la calle para las mujeres está relacionada con violencias sufridas en el
contexto doméstico y familiar, la renta insuficiente para asegurar el propio sustento y el
de los hijos y la ruptura de los vínculos sociales. En las calles, conocieron la violencia en las
disputas territoriales, opresiones de género, falta de privacidad, tráfico de drogas y en las
prácticas higienistas. El estudio desconstruyó los estereotipos de frágiles y dependientes
para las mujeres que viven en la calle; en el proceso de relaciones, ellas también
protagonizaban disputas por espacio y poder.
Palabras clave: Mujeres. Vivir en la calle. Violencia. Cartografía.
Recebido em 18/03/14. Aprovado em 07/09/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):275-85
285
DOI: 10.1590/1807-57622014.0564
artigos
Atuação do psicólogo em situações de desastre:
reflexões a partir da práxis
Ana Cecília Andrade de Moraes Weintraub(a)
Débora da Silva Noal(b)
Letícia Nolasco Vicente(c)
Felícia Knobloch(d)
Weintraub ACAM, Noal DS, Vicente LN, Knobloch F. Psychologists’ actions in disaster
situations: reflections based on practice. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):287-97.
From a series of work experiences in
disaster situations, especially in the
mountainous region of the state of Rio de
Janeiro, Brazil, in early 2011, this paper
aims to present some reflections regarding
the actions of psychologists in the context
of disasters. It begins with a brief historicalinstitutional summary of this issue in Brazil
and then presents some conceptual and
practical reflections on mental health
in this regard. Lastly, it discusses the
principles and guidelines for interventions
in disaster situations, with the backdrop of
the scenario in the state of Rio de Janeiro
in January 2011. The aim is to argue
that interventions by psychologists in the
context of disasters need to be linked with
interventions of other types, contextualized
and detached from the notion of trauma as
the main operator in the clinical approach.
A partir de uma série de experiências
de trabalho em situações de desastre,
notadamente na região serrana do Rio
de Janeiro, Brasil, no início de 2011, este
artigo pretende contribuir com a reflexão
a respeito da atuação do psicólogo em um
contexto de desastres. Inicia-se por uma
breve retomada histórico-institucional da
questão no Brasil, para, então, apresentar
algumas reflexões conceituais e práticas da
saúde mental a esse respeito; e, por fim,
discutir princípios e diretrizes de intervenção
em situações de desastre, tendo como pano
de fundo o cenário fluminense de janeiro de
2011. Pretende-se, com isso, argumentar
que a intervenção do psicólogo num
contexto de desastres deve ser articulada
com outras instâncias, contextualizada e
descolada da noção de traumatismo como
principal operador da clínica.
Keywords: Disasters. Emergencies. Mental
health. Humanitarian action. Health Care.
Palavras-chave: Desastres. Emergências.
Saúde Mental. Ação humanitária. Cuidado
em Saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Departamento de
Filosofia, Faculdade
de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas,
Universidade de São
Paulo. Av. Prof. Luciano
Gualberto, 315, sala
1007. São Paulo, SP,
Brasil. 05508-010. ana.
[email protected]
(b)
Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília,
campus Universitário
Darcy Ribeiro.
Brasília, DF, Brasil.
[email protected]
(c)
Psicóloga. São Paulo,
SP, Brasil. nolasco.
[email protected]
(d)
Departamento
de Psicodinâmica,
Faculdade de Psicologia,
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
(a)
2015; 19(53):287-97
287
atuação do psicólogo em situação de desastre: ...
Introdução
Este artigo busca refletir sobre a atuação do psicólogo em situações de desastre. Para tanto,
percorre uma breve recapitulação das publicações e análises sobre desastres nos últimos anos, tanto
no Brasil quanto no exterior, bem como sobre o papel da saúde mental nesses contextos. Em seguida,
apresenta um relato de uma intervenção realizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro,
em janeiro de 2011, como exemplo para um breve debate sobre eixos fundamentais do trabalho
dos profissionais de saúde mental – notadamente o psicólogo – neste tipo de situação. Ao fazer esse
percurso, este artigo visa contribuir de maneira crítica com o crescente campo de reflexão e prática
sobre os diversos momentos que envolvem a atuação em situações de desastre no Brasil, em particular,
no campo da saúde mental.
Conforme Blanchot1, o desastre é um fenômeno que – do ponto de vista individual e coletivo – nos
atravessa, nos arrebata, nos excede: não nos permite alcançá-lo totalmente, dá-se como um algo para
além do que é possível pensar e representar naquele momento, exigindo um tempo e uma distância
para ser, talvez, compreendido e elaborado. Nomeia-se como desastre aquele tipo de acontecimento
trágico que é, por definição, coletivo, que envolve uma comunidade e/ou uma localidade. O que o
termo ‘desastre’ circunscreve? Pode-se percorrer essa definição a partir, por exemplo, do histórico
jurídico-institucional sobre o tema no Brasil.
A preocupação com os chamados socorros públicos a situações de calamidade pode ser encontrada
no país desde a sua primeira carta constitucional, de 1824, ainda no período do império2. Essa
preocupação irá se repetir em todas as cartas constitucionais subsequentes, porém foi apenas na
década de 1940, em meio à Segunda Guerra Mundial e vendo-se tomando partido no conflito, que
o governo brasileiro criou um órgão responsável pela proteção civil e pela atuação em situações de
emergência e calamidade pública.
Desativada ao final da guerra, a Defesa Civil foi reestabelecida institucionalmente em meados de
1960, em decorrência de diversos episódios graves de seca na região nordeste do país e seguidos
episódios de enchentes, sobretudo no então estado da Guanabara. Foi na década de 1970 que
a Defesa Civil começou a constituir-se como órgão perene, não apenas vinculado a respostas
assistenciais a desastres internos. Desde então, envolta em crescente debate nacional e internacional
sobre o tema dos desastres, a Defesa Civil no Brasil veio se constituindo nos âmbitos federal, estadual
e municipal2.
Atualmente vinculada ao Ministério da Integração Nacional, a Defesa Civil é pensada como um
sistema que envolve órgãos e entidades: da administração pública federal, dos estados, do Distrito
Federal, dos municípios e entidades públicas e privadas de atuação significativa na área de proteção e
defesa civil, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, órgão do Ministério da
Integração Nacional3,4. Pretende-se propor um conjunto de ações de prevenção, resposta e recuperação
cujo objetivo é evitar e minimizar desastres, socorrendo a população e retomando a normalidade².
Da perspectiva internacional, ainda na década de 1990, passou-se a valorizar a dinâmica da
comunidade no sentido de minimizar os desastres e recuperar as perdas e danos, atentando-se para
aspectos de vulnerabilidade econômica e social. Investiu-se, por exemplo, em estratégias de ação para
a redução das vulnerabilidades, por meio da educação das comunidades. A Organização das Nações
Unidas (ONU) estabeleceu os anos de 1990 a 1999 como a Década Internacional de Redução dos
Desastres5.
Na sequência, a conferência de Hyogo, em 2005, consolidou e promoveu estratégias de redução
dos riscos e de desastres no âmbito internacional6. Essas estratégias buscam salientar a importância
de perceber e atuar em todo o ciclo que envolve o desastre: a prevenção, a mitigação, a preparação,
a resposta e a recuperação. Há, então, uma tentativa de refletir sobre os riscos, atuais e futuros, e
sobre o papel das instituições e da sociedade em evitar novos desastres, trabalhando articulada e
participativamente com as comunidades mais vulneráveis.
Tanto as mudanças internas na concepção e institucionalização da Defesa Civil no Brasil quanto os
debates internacionais são marcados pela constatação de que, apesar de os desastres não serem novos
para a humanidade, é notória a crescente compreensão de que muitos elementos contribuem para a
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artigos
existência de desastres, entre eles, as mudanças climáticas globais e a crescente vulnerabilidade das
comunidades, provocada pela urbanização sem planejamento, pelo aumento da população global, das
zonas de risco e das epidemias, além da crescente degradação do meio ambiente7. A modernidade
é, então, equiparada ao aumento dos desastres, já que está intrinsecamente relacionada com a
produção de riscos8,9. Conforme o órgão específico para desastres nas Nações Unidas, nas últimas duas
décadas, mais de 200 milhões de pessoas foram afetadas por desastres, entre eles: enchentes, ciclones,
furacões, tufões e deslizamentos de terra10. No caso do Brasil, pode-se observar que, nas últimas duas
décadas, houve um aumento da ocorrência de desastres, de 8.671, nos anos 1990, para 23.238, na
década seguinte, segundo dados governamentais11.
A fim de categorizar um fenômeno por “desastre”, a proposta atual da Defesa Civil é relacionar
indicadores, dimensões e magnitude desse fenômeno, para possibilitar a elaboração de planos e
estratégias compatíveis com a demanda real. Assim, a nomenclatura ‘desastre’ relaciona-se com a
magnitude do impacto e com a capacidade existente no local para lidar com ele2. Valencio et al.12 (p.
5) sintetizam esse conceito: “[...] é, antes de tudo, um fenômeno de constatação pública, de uma
vulnerabilidade na relação do estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que
não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos”.
Em outro trabalho, Valencio, Siena e Marchezini8 salientam que o significante ‘desastre’ precisa ser
enunciado como crise, como ocorrendo em um tempo e em um contexto social, levando em conta,
não menos do que os elementos quantitativos, o ponto de vista dos afetados pelo acontecimento.
Já Quarantelli13 afirma que o desastre não é apenas um ‘acidente mais grave’ do que usualmente
acontecia em uma dada região: ele é caracterizado por quatro elementos importantes, tanto do ponto
de vista individual como social:
 numa situação de desastre, mais instituições e grupos sociais são envolvidos no seu manejo, de
maneira rápida, se comparado à situação de normalidade;
 durante um desastre, a comunidade atingida deve lidar com a perda relativa de sua autonomia e
de sua liberdade de ação, ficando sujeita a normas excepcionais no que diz respeito, por exemplo, ao ir
e vir e à sua rotina diária;
 a resposta a desastres costuma ser medida por indicadores diferentes dos da normalidade, por
exemplo, no que diz respeito ao atendimento em saúde, aos prazos dados para a gestão de benefícios
sociais e para a concessão de recursos para obras públicas;
 um desastre redefine as linhas divisórias entre o público e o privado: o desastre torna público
o privado; é preciso, muitas vezes, intensificar e salientar a magnitude do sofrimento privado para
legitimar a nomenclatura do evento público enquanto desastre13,14.
A saúde mental enquanto parte integrante da atuação
em gestão de riscos e de desastres
Apesar do investimento de diversos países nas áreas de monitoramento e acompanhamento
de possíveis desastres, é somente no final do século XX, com o amadurecimento da percepção do
processo saúde/doença, que equipes internacionais de intervenção emergencial passam a incorporar,
em seus trabalhos, o eixo da saúde mental14. No Brasil, sobretudo na última década, começou-se
a considerar a saúde mental como ação crucial nas respostas a desastres8. A psicologia brasileira
tem reunido esforços para refletir sobre o tema, como, por exemplo: com a realização do 1º e 2o
Seminários Nacionais de Psicologia das Emergências e dos Desastres em 2006 e 2012; a criação da
Associação Brasileira de Psicologia de Emergências e Desastres (ABRAPED) em 2012, e diferentes
encontros organizados pelo sistema Conselhos de Psicologia desde 201015 .
De maneira mais ampla, a atuação em emergências e desastres insere-se na lógica da ajuda
humanitária14,16. Por mais que não seja o objetivo deste artigo realizar uma genealogia deste campo de
forças, é importante, para a compreensão e atuação do profissional de saúde mental em uma situação
como essa, conhecer esse contexto.
A ajuda humanitária forma-se como campo de intervenção a partir da criação de organismos e
legislações internacionais, sobretudo: o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, as Conferências de
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atuação do psicólogo em situação de desastre: ...
Genebra e, mais recentemente, as grandes entidades humanitárias, como a Médicos Sem Fronteiras e
a Médicos do Mundo16,17. Essa lógica de intervenção tem como princípios, ao menos em sua base, a
atuação imparcial, independente e neutra; no entanto, na prática, observa-se como esses princípios são
dificilmente objetivados, até porque é cada vez mais comum o uso desse mesmo discurso humanitário
por parte dos interessados nas situações de calamidade e conflito, como, por exemplo, os exércitos e os
governos.
Para alguns autores, as ações de ajuda humanitária podem ser descritas por meio da existência de
contradições inerentes ao seu discurso, tais como: a desigualdade (entre aquele que ajuda e aquele
que é ajudado), a compaixão (que, além de servir de pretexto, serve, também, como mecanismo de
controle e estratégia de poder a partir da moralidade inerente a ele), e os diferentes valores atribuídos a
vidas diferentes16,18.
No campo da saúde mental, é o conceito de ‘traumatismo’ que aparece como operador
fundamental do cenário de cuidado produzido em desastres, dentro deste contexto humanitário.
Constatamos a existência de duas correntes de pensamento e intervenção que valorizam a ideia do
traumatismo como principal resultado do desastre, e, assim, direcionam sua intervenção para lidar
com ele de maneira individual ou em grupo, excluindo, por consequência, a intervenção nos fatores
mais sociais e comunitários19. Encontramos, por outro lado, outras correntes que buscam valorizar
justamente estes dois fatores, reservando a noção de ‘trauma’ para situações mais específicas, dadas
sua menor incidência, e também – não menos importante – o risco de ele tornar-se a única forma de
reação válida, no nível individual e social, para uma situação de desastre14,18,20. É nesta segunda forma
de pensar (valorizando o contexto mais amplo) que se inserem as autoras do presente artigo.
A partir daí, como pensar a atuação do psicólogo em uma situação de desastre? Concordamos
com Bezerra Júnior21, que afirma que há cada vez menos espaço em nossa cultura para significar o
sofrimento. Dessa forma, a atuação do psicólogo nestas situações transita a tênue linha divisória entre
a normalidade da reação de dor à perda e à crise, e a patologia, frequentemente usada como único
mecanismo de legitimação da experiência do desastre.
Além disso, como chamaram a atenção Valencio et al.8, esta atuação deve levar em conta não
apenas o sofrimento singular da pessoa afetada, mas, também, as políticas públicas que norteiam
as ações de todo o ciclo de gestão de riscos e de desastres, procurando, assim, escapar de um olhar
individualizante que deixe de lado o contexto sócio-histórico-político em que o ‘traumatismo’ pode se
dar. Na medida em que estes pontos elencados acima são considerados, se faz importante ponderar
ainda que a saúde mental precisa ser pensada como algo indelegável a um sujeito único, mas pensado
de forma múltipla, analisando-se os distintos significados atribuídos de forma singular e coletiva ao
evento experienciado.
As situações de emergências e desastres, na medida em que geram, muitas vezes, grandes
deslocamentos populacionais, também tocam o campo de debates da psiquiatria cultural e da
etnopsiquiatria, sobretudo no contexto internacional. Tal corrente de pensamento, representada por
autores como Frantz Fanon, Georges Devereux, Tobie Nathan e Marie-Rose Moro, entre outros22, apesar
das diferentes nuances que apresenta, procura basear sua compreensão do sofrimento do ‘estrangeiro’
(do ‘desconhecido’) em seus próprios modos de vida e explicações culturais, religiosas e morais.
Esta vertente da saúde mental, que tomou força com o final da colonização de vários países
africanos no século XX, e do consequente aumento do volume de estrangeiros que buscam nova
vida nas metrópoles europeias, tem sido importante para a reflexão sobre a atuação do psicólogo em
emergências e desastres: esta ação também precisa se fundamentar nas experiências, nos modos de
vida, nos modelos de cura e de elaboração das pessoas a quem ocorre viver uma emergência, e não,
simplesmente, de modelos ocidentais previamente impostos ou delimitados internacionalmente.
Este debate – que não se restringe, no campo da saúde mental, à área das emergências – sem
dúvida mostra-se fundamental quando se pensa que boa parte dos grupos que atuam no momento em
emergências de grande porte é constituída por profissionais externos ao local do desastre. Stolkiner23
também apresenta alguns indicadores de saúde mental que podem auxiliar a pensar estratégias
de atuação em desastres, tais como: a preocupação em analisar o nível de participação social e de
estruturas organizadas para possibilitar essa efetiva participação, a adequada percepção do sentido de
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ser protagonista na produção do próprio cuidado, bem como a inserção em redes de solidariedade
comunitárias.
Foi observando o cenário nacional concernente aos desastres, bem como a necessidade de
ampliação dos diálogos e estudos que permeiam esta temática, e fomentado por algumas das
produções das autoras20 em diversos âmbitos e instituições em diferentes países, que pensou-se em
apresentar uma situação prática de intervenção realizada por duas das autoras (Silva e Vicente) do
presente artigo, entre outros profissionais, como dispositivo de análise sobre intervenções em saúde
mental em situações de desastre. Para este fim, relatamos, a seguir, uma experiência de intervenção na
Região Serrana do Rio de Janeiro.
Contexto da intervenção
O acontecimento tratado aqui pode ser explicado por uma conjunção de fatores, como a
combinação de chuvas intensas e intermitentes com as características geológicas de um solo instável,
as condições precárias de moradia, a falta de planejamento urbano e de prevenção a desastres.
Observou-se, na Região Serrana do Rio de Janeiro, no início de 2011, um deslizamento de centenas
de milhares de toneladas de terra após fortes chuvas na região, causando, ao menos, 912 óbitos, e
deixando mais de 45 mil pessoas desabrigadas e desalojadas11.
As áreas mais afetadas se concentraram nas cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo,
e, embora situação similar já tivesse ocorrido nos anos 1980, quando centenas de deslizamentos
ocasionaram a morte de vinte pessoas nas proximidades de Teresópolis, este foi considerado o pior
desastre já registrado em território nacional até o momento11.
No âmbito de uma organização de ajuda médico-humanitária internacional existente há quatro
décadas, presente no Brasil desde 1991 (que se propõe a agir de forma independente, imparcial e
neutra), as autoras atuaram na frente de saúde mental como parte de uma equipe que era composta
por: uma coordenadora de Saúde Mental, um coordenador médico, um coordenador logístico, duas
psicólogas, dois médicos, uma enfermeira e um logístico.
Destacamos, abaixo, no relato desta situação prática de intervenção, os principais eixos norteadores
usados para a produção do cuidado de saúde mental na cidade de Nova Friburgo, realizado em
parceria com: a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Nova Friburgo, Universidade
Estácio de Sá, Conselho Regional de Psicologia e voluntários municipais, especificamente nos bairros de
Alto da Floresta, Amparo, Campo Coelho, Centro, Chácara do Paraíso, Córrego Dantas, Jd. Califórnia,
Olaria, Ruy Sanglard, São Geraldo, Stucky e Village:
 Tomada de conhecimento do Plano de Contingência Municipal de Saúde e do Plano de
Contingência Nacional para Desastres por meio da identificação e diálogo com representantes da
Coordenação de Saúde Mental de Nova Fribugo nas primeiras 72h após o desastre e, posteriormente,
por meio do contato com o Comitê Operativo de Emergência em Saúde do Ministério da Saúde (COE).
Os planos destacavam a medida de direcionamento do “atendimento às pessoas vítimas de trauma
e estresse”, porém não se remetiam à preparação das equipes locais para o atendimento de saúde
mental em situação de desastre;
 A primeira avaliação realizada pela equipe de nossa organização externa que chegou no território
e constatou a magnitude do desastre e as demandas de atendimento à saúde correlatas;
 Esta equipe também realizou um diagnóstico e avaliação da estrutura existente para resposta
ao desastre, levando em conta: organização do sistema de saúde local que havia antes e durante
o desastre, estrutura da gestão local, estadual e federal, profissionais disponíveis (voluntários e/ou
contratados), qualificação dos profissionais, estrutura física e funcional dos serviços, política pública
implantada, acesso da população aos serviços, planejamento geral de resposta no território;
 Com base nisso, nossa equipe estabeleceu o modelo da intervenção, com ênfase: 1) Na
população (cuidado na perspectiva pragmática e não intrusiva, considerando o nível de participação
social e estruturas organizadas, como associações de moradores e instituições religiosas); 2) Nos
gestores (auxílio na estruturação da estratégia intersetorial junto ao coordenador de saúde mental do
município, adaptada de acordo com resultados do diagnóstico e demais percepções do gestor); 3) Nos
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atuação do psicólogo em situação de desastre: ...
trabalhadores (suporte técnico às equipes da rede SUS, voluntários e/ou demais cuidadores, por meio
de treinamentos e discussão de casos); 4) Na qualificação dos atores de saúde (formação em ato);
5) Na sensibilização à população (informação em saúde mental com uso de panfletos e contato com
líderes locais).
Partindo do princípio de que a coordenação de uma intervenção em situação de desastre deve ser
única e articulada com todos os órgãos, instituições e pessoas que dele fazem parte2, grande parte
da intervenção foi baseada no fomento à articulação em torno do Comitê Operativo de Emergência
(organizado pela Defesa Civil) e de uma estratégia de saúde mental adaptada às necessidades da
população e compatível com a execução pelos atores regionais e nacionais disponíveis. Participamos
e articulamos reuniões com os psicólogos locais e regionais, entre outros integrantes de universidades
federais e privadas, somados aos trabalhadores do SUS dos municípios afetados e a outros voluntários
que se apresentaram na região.
Para estabelecer um alinhamento entre conhecimentos técnicos e visão estratégica do projeto, com
o intuito de disponibilizar novas ferramentas para operar o trabalho em saúde mental, fomentamos
encontros de formação e trocas de experiências entre os psicólogos que já haviam iniciado os
atendimentos aos afetados, além de simulações de possíveis cenários para as semanas que se
seguiriam. Esses encontros tiveram como principal objetivo refletir sobre princípios básicos acerca de
como trabalhar em uma situação de emergência e desastre, e foram nomeados como ‘treinamentos’.
Para se compreenderem as demandas oriundas do sofrimento psíquico e as possibilidades de cuidado
efetivo, num caráter coletivo, comunitário, familiar e individual, a estratégia proposta e acordada em
conjunto com os psicólogos locais foi realizada, no território, por meio da busca ativa conduzida por
um grupo de psicólogos voluntários, que tinham, como papel principal, a articulação com atores sociais,
dentre eles Agentes Comunitários de Saúde, líderes espirituais e líderes comunitários.
Em contato com a Defesa Civil local, Secretaria Municipal de Saúde e tendo participado
previamente de um treinamento para um primeiro acolhimento psicológico em situações de desastres,
que contribuiu para a adoção de uma escuta diferenciada, esse grupo pôde informar às comunidades
sobre o fenômeno do desastre, realizar grupos de escuta e informar sobre os pontos de atendimento
em saúde mental da rede SUS.
Essa estratégia também funcionou como um dispositivo para se compreenderem: as demandas
emergenciais da população local, os meios já disponíveis na cidade, a qualificação técnica dos
profissionais e voluntários que ali se encontravam, a rede de saúde pública disponível e operante
no terreno, além da compreensão dos instrumentos e mecanismos de enfrentamento utilizados
pela população local. Tendo em vista a presença das três instâncias federadas de governo durante a
intervenção, essa atividade se deu por meio de encontros sistemáticos com as três esferas, a fim de se
compreenderem as linhas de cuidado a serem desenvolvidas para a resposta ao desastre.
Como forma de apoiar a intervenção dos atores locais, optou-se por acompanhar os psicólogos
do SUS e voluntários durante essas primeiras aproximações pós-desastre com as comunidades, em
locais como igrejas e abrigos nos bairros citados. Essa foi uma das maneiras encontradas para apoiar o
trabalho das equipes locais.
Durante as visitas e nas discussões com os profissionais locais foram utilizadas, na abordagem
direta com a população afetada pelo desastre, informações escritas sobre o fenômeno, por exemplo:
o que é um deslizamento, como ocorreu, reações físicas e psíquicas esperadas, orientações sobre
como se preparar emocionalmente para enfrentar as dificuldades vivenciadas naquele momento e nas
semanas que se seguiriam, entre outros conteúdos, sempre em companhia dos profissionais locais e
direcionando a população afetada às estruturas comunitárias e municipais existentes.
Nossa intervenção durou, no total, cerca de trinta dias; findo este prazo, optou-se por delinear
uma estratégia de saída da organização do município afetado, ao ser constatado que: (1) já havia
um número suficiente de atores responsáveis pelo cuidado em saúde mental atuantes na região, (2)
os atores envolvidos no processo participaram da construção da estratégia de atendimento em saúde
mental para a cidade de Nova Friburgo, e conheciam as reações esperadas após um desastre, além, é
claro, de já serem profissionais qualificados para atuarem na área, (3) já haviam iniciado os trabalhos
de maneira articulada junto às comunidades, e, por fim, (4) os atendimentos dos serviços de saúde
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mental da rede do Sistema Único de Saúde já haviam sido reestabelecidos dentro da rotina padrão do
município.
O acompanhamento técnico virtual (por e-mails) e telefônico (para gestores e/ou voluntários)
foi mantido por quatro semanas por nossa equipe após a saída da região. Como atividade de
encerramento da estratégia, realizou-se uma apresentação da intervenção desenvolvida para os
gestores do Ministério da Saúde e Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, para que os
responsáveis pela coordenação geral deste processo de cuidado estivessem cientes do que foi feito.
Considerações gerais sobre a intervenção
Sobre essa intervenção, quatro pontos específicos merecem maior atenção: o objetivo da
intervenção, o tempo de duração, a relevância e o impacto.
O objetivo da intervenção citada como exemplo foi apoiar o restabelecimento das redes
comunitárias e públicas de saúde mental, atuando com os profissionais e com a gestão da intervenção,
mais do que intervindo diretamente com as comunidades afetadas. Avaliou-se, no momento do
diagnóstico, que era uma região que contava não só com redes de cuidado em saúde estabelecidas,
como com profissionais qualificados e com comunidades relativamente organizadas em seus modos de
solidariedade e apoio psicossocial.
Quanto ao tempo de intervenção, de cerca de trinta dias, iniciado logo após o acontecimento
trágico, considerou-se que, dado o contexto local e o volume de entidades governamentais e não
governamentais presentes, o prazo de trinta dias tornava-se adequado para cumprir com o objetivo
principal da intervenção. Desenvolver um cuidado a médio e longo prazo poderia se constituir em
uma fragilização das estruturas locais; visto que poderia ser criado um ambiente de ‘competição’
pela clientela e, ainda mais, causar uma falsa percepção de ausência de problemas de saúde mental
nos municípios, já que atividades realizadas por outras instâncias não passariam por instrumentos de
registro e avaliação específicos do sistema de saúde local. Entendeu-se, também, que uma intervenção
longa e apenas baseada no ‘atendimento às vítimas’ poderia estimular a dependência de auxilio
externo e constituir um desestímulo às equipes locais.
De acordo com as considerações das equipes locais sobre a relevância da intervenção, esta foi de
importante apoio para os primeiros atendimentos aos afetados, visto que parte dessas equipes locais
encontrava-se com dificuldades de compreender as demandas prioritárias das comunidades atingidas
nas primeiras 72 horas pós-desastre.
Assim, o impacto da intervenção que realizamos pode ser analisado em duas vertentes: a individual
e a comunitária. Do ponto de vista do sujeito individual, o impacto de uma estratégia terapêutica pode
ser analisado dentro de parâmetros físicos, mentais ou emocionais. Partindo do princípio de que um
desastre causa rupturas e/ou perdas abruptas das redes socioafetivas, destruição de bens materiais,
adoecimentos, entre outras significações pessoais, espera-se que muitas reações, interpretadas, em
situações rotineiras, como bizarras e/ou graves, sejam desencadeadas num curto período após o marco
zero do desastre, potencializando, mas não necessariamente acarretando, possíveis transtornos e/ou
reações exacerbadas e surpreendentes. As manifestações psicológicas podem se apresentar de forma
multifacetada, como, por exemplo, episódios de desorganização psíquica e ansiedade com duração e
temporalidade variável. Situações de grandes mudanças inesperadas e abruptas, como as vividas em
desastres, em geral, excedem a capacidade de respostas das pessoas e as confrontam com uma grande
sensação de angústia, desamparo e desconhecimento18. De acordo com os relatos dos profissionais
locais, reações como essas foram encontradas durante a presente intervenção. Frente a situações
decorrentes de perdas repentinas de referências, as equipes locais do Sistema Único de Saúde, em
colaboração com outros voluntários, foram estimuladas a elaborarem dispositivos de atenção e cuidado
para auxiliar no enfrentamento dos desafios de reconstrução da vida física, pessoal, familiar, social e
comunitária dos afetados.
Neste sentido, os impactos comunitários, assim como os impactos individuais, podem ser
significados de distintas formas, a depender do histórico sociocultural, bem como das estruturas que
impactam na resiliência de seus integrantes. A perda de muitos membros de uma comunidade, de
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atuação do psicólogo em situação de desastre: ...
seus símbolos e referências materiais, acarreta impactos que podem dificultar na reconstrução a curto
e médio prazo, mas que, também, podem potencializar a capacidade de fortalecimento social, criando
novas oportunidades de fortalecimento de laços sociais que despertem o sentimento de pertença
e cuidado coletivo. Percebeu-se como fundamental a participação da comunidade no processo de
reflexão sobre a reconstrução local, tanto do ponto de vista da garantia de seus direitos quanto como
maneira de elaborar suas perdas e necessidades de reorganização emocional naquele coletivo.
Considerações finais
Por meio dessa estratégia de intervenção e cuidado, procurou-se salientar a importância de
se estruturar uma intervenção de forma contextualizada e articulada com os mecanismos locais
(públicos, essencialmente, mas, também, de organizações privadas) de manejo da crise. As sugestões
e considerações feitas aqui são baseadas nessa experiência e em outras realizadas pelas autoras,
como possibilidade de servir de base para outras intervenções, porém, é claro, de maneira adaptada e
contextualizada com cada situação a ser enfrentada.
A ação do psicólogo, independentemente de onde ela parta (se profissional do Sistema Único
de Saúde; se voluntário; se membro de alguma universidade ou outra instituição de ensino; se
como membro de alguma organização não governamental), deve estar articulada de forma integral
a uma estratégia que envolva diferentes atores na resposta ao desastre. Em outros termos, é de
suma relevância que o/a profissional não aja sozinho, tampouco desconheça a estratégia a priori
determinada nos níveis social, de saúde e educação, para mitigar e/ou responder à demanda gerada
pelos desastres.
Em situações de emergência, as necessidades básicas das pessoas – comida, água, abrigo, um
mínimo de conforto físico e emocional – devem estar supridas em primeira instância, assim como não
se deve perder de vista o horizonte da garantia de direitos sociais básicos. Essas são, também, ações de
saúde mental, ainda que não desempenhadas exclusivamente por psicólogos.
A intervenção deve ter, como um de seus pilares fundamentais, propostas de elaboração dos
sofrimentos gerados pelo desastre (realizada pelos vários atores, e não só pelo psicólogo) e, também,
a construção da autonomia e dos laços sociais (das comunidades, grupos de pessoas e autoridades
envolvidos). O papel do profissional da saúde mental é composto por: escutar as demandas, conhecer
o local para conhecer a oferta de serviços, articular e pensar formas de sustentabilidade destas ações,
levando sempre em consideração os fatores já mencionados da presença – lógica e esperada – do
desespero, da tristeza, da dor e do luto.
Grande parte da população atingida padecerá de sofrimento intenso, mas encontrará conforto
e apoio em suas estratégias comunitárias e cotidianas. Em seguida, haverá casos que poderão ser
beneficiados com uma escuta especializada, onde poderá estar o psicólogo, e, em muito menor
volume, haverá casos que necessitarão, até mesmo, de uma intervenção médico-farmacológica
específica em saúde mental.
Vale ressaltar, como mostram Fassin e Rechtman14, que, frequentemente, são aqueles já mais
vulneráveis – como os pacientes psiquiátricos, os moradores de rua, os desassistidos antes da catástrofe
– que mais sofrem e que são menos percebidos pelas ações humanitárias.
A falta de segurança e o medo provocados pela situação emergencial podem ocasionar conflitos
de várias espécies: sociais, grupais, familiares. Porém, não cabe ao psicólogo externo o papel de
substituto do serviço de saúde existente, e sim o de articulador – especialmente, levando-se em conta
os psicólogos voluntários e/ou membros de organizações não governamentais que se apresentam
a agir nestas situações –, pois esta ação termina apenas por ‘beneficiar’ ao psicólogo ele próprio, e
não à comunidade atingida, uma vez que, ao término da intervenção deste voluntário, a comunidade
perderá com o não-fortalecimento de uma rede de apoio local.
O psicólogo pode e deve colaborar com as ações de prevenção e avaliação da atuação das
entidades (governos, ONGs, grupos) em situações de emergência. A emergência exige rapidez de
atuação e de resposta, e, por isso, o processo de ensino e aprendizagem precisa ser desencadeado,
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preferencialmente, antes da existência de um desastre, visando a preparação e a reflexão sobre a
saúde mental e seus mecanismos de intervenção.
Nesse sentido, cabe a advertência fundamental de Valencio24: a intervenção do profissional de
saúde mental irá depender de sua concepção e compreensão dos diversos discursos que envolvem a
conceituação de uma situação como um “desastre”. Dessa forma, é imprescindível atentar para o risco
de estigmatização e culpabilização da população afetada pela sua própria condição de “vulnerável”,
apostando, ao contrário, em uma abordagem socioparticipativa e de garantia de direitos, a fim de
minorar, efetivamente, a existência dos riscos de desastres.
Ao considerar o cuidado direto da saúde mental para com a população afetada, o psicólogo conta
com uma gama extensa de propostas terapêuticas nas mais diversas linhas teóricas e ideológicas,
sobretudo a partir do uso e abuso da noção de traumatismo. A presente intervenção pretendeu estar
de acordo com uma perspectiva crítica a esse respeito, buscando se afastar da perspectiva de sujeito
“traumatizado” e restrito a um coletivo de sintomas.
É fundamental reforçar a posição da importância de se considerarem: o sujeito, o contexto, o
drama, a história, as relações, o entorno, as condições e estratégias comunitárias e sanitárias do
local. A recuperação das referências, a reorganização social, a colaboração com as equipes, com as
estratégias as mais diversas de suporte às instâncias da vida cotidiana, são fatores essenciais para a (re)
produção das identidades dos afetados nessas situações e, por conta disso, a ação do psicólogo precisa
se inserir nessas estratégias de articulação.
Um marco do debate sobre a ação humanitária, em geral, e a ação em emergências, mais
especificamente, é o seu caráter multidisciplinar. Quase como um ‘sinal dos tempos’, a discussão
sobre a atuação nestas situações não deve se furtar à transversalidade dos saberes, olhares, pontos
de vista: deve ir além das disciplinas clássicas e saber ‘ler’ e ‘integrar’ outras formas de pensar. Não
é justamente este um dos pontos que se demanda àquele que sofreu uma crise (inesperada, não
avisada, violenta, súbita)? Que (re)construa seu olhar sobre o mundo articulando (e não negando,
apagando, subtraindo) estas outras vivências? Tem sido este o caminho da construção e desconstrução
de vários operadores da ação em emergências, e é fundamental observar a amplitude dos campos
de pensamento sobre o assunto para poder promover, enquanto profissional de saúde mental, a
elaboração e a construção de uma nova vida para além da crise.
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
Referências
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atuação do psicólogo em situação de desastre: ...
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e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de
sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nos 12.340, de 1o
de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de
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Weintraub ACAM, Noal DS, Vicente LN, Knobloch F. Actuación del psicólogo en
situaciones de desastre: reflexiones a partir de la praxis. Interface (Botucatu). 2015;
19(53):287-97.
A partir de una serie de experiencias de trabajo en situaciones de desastres, especialmente
en la región de la sierra de Río de Janeiro, Brasil, a principios de 2011, este artículo intenta
contribuir para la reflexión sobre la actuación de psicólogo en un contexto de desastres.
Comienza con una breve reanudación histórico-institucional de la cuestión en Brasil para
después presentar algunas reflexiones conceptuales y prácticas de la salud mental en ese
sentido y, finalmente, discutir principios y directrices de intervención en situaciones de
desastre, teniendo como telón de fondo el escenario en Río de Janeiro en el mes de enero
de 2011. Se pretende, de esa forma, argumentar que la intervención del psicólogo en un
contexto de desastres debe articularse con otras instancias, contextualizarse y separarse de
la noción de traumatismo como principal operador de la clínica.
Palabras clave: Desastres. Emergencias. Salud mental. Acción humanitaria. Cuidado en
salud.
Recebido em 29/07/14. Aprovado em 10/09/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):287-97
297
DOI: 10.1590/1807-57622013.0976
artigos
Comunicação e saúde nos manuais
dos organismos internacionais para situações
de emergência e desastre: intervenção e hegemonia
Luciana Lindenmeyer(a)
Carla Macedo Martins(b)
Lindenmeyer L, Martins CM. Communication and health in international organizations’
manuals for emergency and disaster situations: intervention and hegemony. Interface
(Botucatu). 2015; 19(53):299-310.
The paper analyzes international
organizations’ discourse on health
communication in emergency and disaster
situations, starting from two manuals:
one produced by the World Health
Organization (WHO) and another by
the Pan-American Health Organization
(PAHO). The analysis focuses on the actions
of these organizations, as determined
through the logic of ‘intervention’, which
tends to erase the social inequalities that
are produced through society’s form of
capital, both nationally and globally. This
logic is expressed in the manuals through
the notions of ‘population’, ‘emergency and
disaster’ and ‘communication’. The paper
concludes by indicating that the following
discursive-ideological effects are produced:
disconnection between emergency and
disaster and social life; legitimation of
inequality between nations; disengagement
of the nation state in relation to
inhuman social health conditions; and
linear and instrumental perspectives on
communication.
Keywords: Discourse analysis. Ideology.
Hegemony. International organizations.
Health manuals.
O artigo analisa o discurso dos organismos
internacionais sobre comunicação em saúde
na situação de ‘emergência e desastre’, a
partir de dois manuais, um produzido pela
Organização Mundial de Saúde (OMS),
outro pela Organização Panamericana
de Saúde (OPAS). A análise considera
a atuação destes organismos como
determinada pela lógica da ‘intervenção’,
que tende a apagar as desigualdades sociais
produzidas pela forma societária do capital
em âmbito nacional e mundial. Tal lógica
se expressa, nos manuais, nos sentidos
de ‘população’, ‘emergência e desastre’ e
‘comunicação’. O artigo conclui indicando
que são produzidos os seguintes efeitos
discursivo-ideológicos: uma desconexão
entre a emergência e o desastre e a vida
social; uma legitimação da desigualdade
inter-nações; uma desresponsabilização do
Estado nacional em relação às condições
sociais de saúde desumanas; e uma
perspectiva linear e instrumental da
comunicação.
Palavras-chave: Análise do discurso.
Ideologia. Hegemonia. Organismos
internacionais. Manuais de saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Serviço de Gestão
do Trabalho, Instituto
de Comunicação e
Informação Científica e
Tecnológica em Saúde,
Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz). Av.
Brasil, 4365, Pavilhão
Haity Moussatché,
sala 211, Manguinhos.
Rio de Janeiro, RJ,
Brasil. 21040-360.
luciana.linden@icict.
fiocruz.br
(b)
Pós-Graduação em
Educação Profissional
em Saúde, Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio,
Fiocruz. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil.
[email protected]
2015; 19(53):299-310
299
comunicação e saúde nos manuais ...
Introdução
A dominação de cunho capitalista em um contexto mundializado, expressa na ideia de
‘intervenção’ e sustentada ou legitimada pelos organismos internacionais, tem sido amplamente
discutida pela literatura. A lógica da intervenção tem sido problematizada, inclusive, na sua articulação
com o discurso da defesa dos direitos humanos, considerado na sua versão acrítica, em que tanto
‘intervenção’ quanto ‘direitos humanos’ tendem a justificar as relações de subordinação entre nações
ou blocos de nações1.
Em paralelo, a questão da comunicação como espaço scioeconômico de produção de relações
de poder, na era da indústria cultural e da política mediatizada, atravessa a literatura crítica sobre a
contemporaneidade, que afirma a comunicação como um espaço contraditório, tanto de reprodução
das formas hegemônicas do capital2 quanto de disputa e luta na direção de uma sociedade que supere
a desigualdade3. O campo da comunicação e saúde4 não se situa à parte deste contexto, sendo
também condicionado, inerentemente, pelas características de uma sociedade não igualitária5.
O presente artigo se inscreve nesta discussão sobre as formas societárias hodiernas produzidas e
reproduzidas pelo campo da comunicação e saúde, tomada em um contexto de formas de dominação
amplamente mundializadas. Nesta direção, o artigo tem como objetivo analisar o discurso sobre
comunicação e saúde em manuais de emergência e desastres produzidos por dois organismos
internacionais de saúde, ou seja, Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização Panamericana
de Saúde (Opas).
A análise demonstra, em última instância, que a lógica da intervenção dos organismos
internacionais de saúde, no campo da comunicação, se constrói a partir de processos discursivosideológicos que buscam, em alguma medida, apagar e legitimar as desigualdades inerentes ao
capitalismo. Para tal, o discurso destes organismos internacionais define e (re)significa noções e
categorias centrais ao trabalho em comunicação e saúde, como ‘população’ e situações de ‘emergência
e desastre’, assim como da própria concepção de comunicação.
No primeiro item do artigo, apresentamos o conceito gramsciano de hegemonia, buscando situar
os meios de comunicação na sociabilidade do capital. No segundo, discutimos as conquistas e tensões
na comunicação e saúde, problematizando a concepção linear e instrumental que atravessa o campo.
No terceiro, enfocamos os organismos internacionais no capitalismo contemporâneo, voltando-nos
para aqueles atuantes diretamente no campo da saúde (OMS e Opas). No quarto, apresentamos os
pressupostos teórico-metodológicos para a análise dos manuais enfocados, estes últimos sendo objeto,
por sua vez, do quinto, sexto e sétimo itens. Nas considerações finais, apontamos o conjunto de
discussões críticas que a análise abre no que tange à formação do comunicador em saúde.
Comunicação e hegemonia
O processo de dominação na sociedade capitalista é tratado, na obra de Antonio Gramsci, com
referência no conceito de hegemonia. Para Gramsci,
O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar,
caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado,
sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que
a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião
pública – jornais e associações [...].6 (p. 95)
É relevante enfatizar que a perspectiva gramsciana de hegemonia se dá na própria produção
da sociabilidade, que tem a comunicação, em inúmeras dimensões, como um espaço crucial na
contemporaneidade. É também importante observar, para os fins de nossa análise, que o conceito não
se restringe à análise no âmbito dos Estados nacionais, mas constitui, de fato, uma forma de produção
social que se dá, inclusive, na relação entre nações ou regiões. Nas palavras do autor, “Toda relação
de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de
300
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):299-310
Lindenmeyer L, Martins CM
artigos
uma nação, entre diversas forças que compõem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre
conjuntos de civilizações nacionais e continentais”7 (p. 399).
A área de comunicação, na América Latina e no Brasil, não tem ignorado a tradição gramsciana,
reafirmando a perspectiva de que a hegemonia, como um processo contínuo e complexo, se relaciona
à capacidade de um determinado bloco em articular um conjunto de fatores que pode levá-lo a dirigir,
moral e culturalmente, e de modo sustentado, a sociedade como um todo8.
Para a compreensão de tais processos na totalidade da produção da sociabilidade, faz-se necessário,
ainda, nos remetermos à articulação entre ‘Estado’ e ‘sociedade civil’. Para Gramsci,
[...] podem-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de
‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como ‘privados’) e
o da ‘sociedade política ou Estado’, planos que correspondem, respectivamente, à função de
‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’
ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’.7 (p. 20-1)
Em outras palavras, para Gramsci, o Estado utiliza também, para manutenção do status quo, a
partir da sociedade civil, os chamados aparelhos privados de hegemonia9, apontando para a construção
de uma concepção de mundo em favor dos segmentos sociais dominantes. Ademais, a perspectiva de
Gramsci, inclusive com o desdobramento posterior do conceito de Estado ampliado9, supõe uma forma
mais dinâmica e dialética de análise dos movimentos de reprodução e transformação social, em que
Estado e a chamada sociedade civil não estão em oposição: nem o Estado é o espaço unicamente da
dominação, nem a sociedade civil é o espaço da liberdade.
Não é nossa proposta, no âmbito deste artigo, mapear os movimentos atuais em torno do tema
comunicação e democracia no âmbito da saúde. Contudo, é inevitável apontar a centralidade do tema
no contexto brasileiro, por exemplo, nas recentes discussões sobre o Marco Civil da Internet (sobre
a qual o campo da saúde no Brasil tem se posicionado, por exemplo, por intermédio da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva10) ou, ainda, nas novas formas de organização e participação política a
partir da mídia denominada alternativa, em contraponto à oligopolizada11.
Em suma, identificamos a comunicação e os meios de comunicação (de massa) como poderosos
espaços de produção de hegemonia. Oriundos de processos de natureza contraditória, tais meios
são, ao mesmo tempo, também produtores de contra-hegemonia, conforme indicado na dinâmica de
movimentos contestatórios atuantes no campo da comunicação e saúde, tratado no item a seguir.
Comunicação e saúde
Nossa análise considera a comunicação como estruturante das políticas públicas em saúde, inclusive
por sua estreita articulação com a promoção12. Seguindo a definição proposta por Araújo e Cardoso4, o
campo “trata da comunicação nos processos de elaboração, implantação e gestão de políticas públicas
nos domínios onde se requer uma ação pública, incluído, aí, o da saúde” (p. 22). Por esta razão, fazse necessário discutir as concepções hegemônicas sobre comunicação e suas implicações na produção
coletiva e política do conhecimento em saúde.
Torres13 indica que o campo da comunicação e saúde no Brasil tem sido palco de disputas de
sentido, que se expressam em termos epistemológicos, isto é, na própria concepção de comunicação.
Para a autora, a comunicação – na sua interface com a saúde – é ainda fortemente pautada, por
sua utilização estratégica, para informar e para persuadir, buscando apenas promover mudanças
comportamentais. A autora relaciona tal prática a uma concepção ou um modelo caracterizado como:
desenvolvimentista, instrumental, informacional e transferencial. Esta constatação não elide o fato de
que, pelo volume de discussões deste campo no contexto brasileiro, a comunicação e saúde tem sido
resgatada na sua dimensão dialógica, ou seja, como fato de mediação e de alteridade, contrapondo-se
aos modelos positivistas de comunicação nos termos mencionados.
Araújo e Cardoso4 seguem esta linha de crítica, ao apontarem que o modelo linear e polarizado,
que busca excluir o equívoco como ‘ruído’, influenciou a abordagem específica na área da saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):299-310
301
comunicação e saúde nos manuais ...
Neste contexto, a escuta e o diálogo tendem a não existir, ficando, somente, o emissor com direito de
voz e expressão.
Podemos afirmar, concordando com os autores mencionados, que o modelo de dois polos é o
predominante no campo da comunicação, com contornos superficiais de incorporação do diálogo.
Permanece a ideia fundamental de produção da informação para ser transmitida, de forma linear, de
um emissor a um receptor, com desigualdade entre ambos14.
Tal crítica ao campo da comunicação e saúde não ignora o conjunto de lutas que marca o setor.
Como é amplamente reconhecida, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é fundamentada nos
princípios básicos de universalidade, integralidade e equidade, com ênfase na participação popular e na
estruturação da rede de serviços de saúde, de forma descentralizada, regionalizada e hierarquizada. A
partir dessa conquista, poderia se compreender a comunicação como forma de aperfeiçoar o sistema
de saúde, estimulando a participação popular na efetivação desses princípios. Em particular, após a
criação do SUS, destacamos a 12ª Conferência Nacional de Saúde15, que contou com uma importante
participação da população e que apresentou, entre seus principais eixos temáticos, a comunicação
e informação em saúde. Neste contexto, contudo, deve-se reiterar que persiste a necessidade de
se ampliar o debate, apontada por Pitta16, ainda na década passada, em função de uma ausência
de definição de políticas governamentais de comunicação, inclusive, na relação com as instituições
democráticas na América Latina.
Retomando a análise do campo em um contexto mais global e, em particular, latino-americano,
referimo-nos ao trabalho de Rojas-Rajs e Soto5. Para os autores, a comunicação em saúde – ou ‘para
a saúde’ – constitui um campo ainda em construção, pois seu impulso decisivo se originou a partir da
década de 1980, e sua afirmação, como campo acadêmico, ocorreu apenas na década de 1990. O
caráter recente do campo justificaria o conjunto de análises e estudos, que se restrigem a indicar a
precariedade das estratégias, metodologias e avaliações do campo, assim como a marcar a relevância
de considerar as perspectivas e os modos de vida dos destinatários da comunicação5. Na ausência de
uma perspectiva que recupere a complexidade dos processos de determinação social, o próprio campo
pode reproduzir as desigualdades em saúde, “ao considerar que o simples fato de possuir informações
possibilita às pessoas tomar decisões distintas sobre sua saúde e forma de viver”5 (p. 589).
Ou seja, articulam-se o paradigma comunicacional hegemônico e as concepções de saúde que
elidem as determinações histórico-sociais. Em outras palavras, há uma estreita relação entre formas de
dominação e modelo comunicacional, numa sociedade estruturada em termos de desigualdade e de
classes sociais, inclusive, entre nações.
Organismos internacionais e saúde
Em linhas gerais, a relação entre os países centrais, periféricos e os organismos internacionais é
pautada pela perspectiva ideológica de que os países considerados desenvolvidos têm o conhecimento,
a intenção e a experiência necessários para elaborar proposições no sentido de que os demais países
alcancem, também, o mesmo patamar de desenvolvimento. Apaga-se, neste percurso, que as
diferenças históricas, econômicas, políticas, culturais e sociais – produzidas pelas próprias contradições
do capitalismo – são entraves estruturantes para as iniciativas de intervenção aplicadas às nações.
Além disso, não se colocam em questão os ideais de progresso, desenvolvimento e civilização
hegemônicos, que acabam funcionando como legitimação de políticas de dominação sobre estes países,
muitas vezes, sob a capa da defesa dos direitos humanos e de um ideal de democracia anistórico e
eurocêntrico1,7,17,18.
A OMS, criada em 1948, pode ser identificada como uma agência internacional que, para
influenciar, monitorar e avaliar as políticas de saúde em todo o mundo, emprega a cooperação técnica
e científica como principal estratégia19. Em 1902, foi criada a Opas, por meio da Convenção Sanitária
Internacional, sendo reconfigurada no contexto de Guerra Fria pós-Segunda Guerra. Neste sentido,
pode-se compreender a atuação da OMS em termos da “saúde global” como parte da perspectiva de
que a globalização econômica e as forças de mercado produziriam a homogeneização da riqueza e do
desenvolvimento; e estas mudanças econômicas contribuiriam para o desaparecimento dos ‘egoísmos
302
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):299-310
Lindenmeyer L, Martins CM
artigos
nacionais’ e para a construção de um governo democrático e global, responsável pela paz dos
mercados e dos povos20.
Assim, observa-se uma tendência de que trajetórias históricas de dominação e exploração entre
nações sejam apagadas, reproduzindo a perspectiva ideológica de que o desenvolvimento homogêneo
é possível, desde que sejam aplicadas medidas consideradas eficazes e pontuais.
Por fim, voltando ao estudo de Rojas-Rajs e Soto5, é de se observar que, no âmbito da Opas e
da OMS, a perspectiva de saúde como uma dimensão individual (e não social) se relaciona com a
lógica de enfocar a população como consumidor (de produtos e serviços de saúde) e como receptor
(de informações no campo da comunicação e saúde). Portanto, podemos supor que, na atuação dos
organismos internacionais, concepções de saúde, modelos de comunicação e formas de relações sociais
encontram-se imbricados, reiterando a articulação entre política, modelos comunicacionais e formas de
dominação contemporâneas, tratadas no item anterior.
Análise discursiva dos manuais (OMS e Opas)
Na área da saúde e, em particular, no âmbito das políticas públicas de comunicação e saúde, guias,
cartilhas e manuais podem ser considerados como um dos balisadores da prática profissional. Os textos
produzidos e divulgados, provenientes de organismos internacionais, além de organizarem o trabalho,
apresentam um objetivo instrucional evidente.
Em particular, podemos afirmar que os manuais constituem, hoje, um importante material didático
e uma ferramenta de gestão do trabalho, assim como um espaço de produção discursivo-ideológica.
Especificamente em relação à comunicação e saúde, estes materiais de saúde podem atuar na
afirmação de determinadas formas de comunicação e na legitimação das políticas públicas de saúde
em curso21.
Compuseram o corpus da pesquisa os dois únicos manuais produzidos pelos organismos
internacionais de saúde cujas temáticas tratavam do objeto delineado, por ocasião da configuração e
organização do material de análise (2010-2011).
O primeiro, intitulado manual ‘Comunicação eficaz com a mídia durante emergências de saúde
pública’, foi traduzido e publicado pela Editora do Ministério da Saúde, em 2009, em português, tendo
sido publicado, originalmente, pela OMS em 2007. Na página da ficha catalográfica, constam dois
autores (Randall N. Hyer e Vincent T. Covelho). São descritos, como público-alvo, o pessoal de campo
(escritórios) da OMS, que não estaria familiarizado com a mídia, os agentes de saúde pública e os
comunicadores de saúde pública. Este manual é organizado em torno de sete passos para se alcançar
o objetivo de comunicação eficaz com a mídia. O texto apresenta, ainda, inúmeros quadros, tabelas
e modelos com as indicações a serem seguidas pelos profissionais e conteúdos no treinamento de
equipes22.
O segundo manual analisado foi ‘Gestión de la Información e Comunicación en emergencias y
desastres’, publicado pela Opas, em 2009, somente em inglês e espanhol. Trabalha-se, nesta pesquisa,
com a versão em espanhol de autoria da própria Opas. Na página de Agradecimentos, é mencionado
que o conteúdo é resultado de intenso processo de participação e consulta regional. Identificou-se,
neste, um direcionamento mais específico para o que chamam de “equipes de resposta aos desastres”,
“mas também aos profissionais nacionais ou internacionais de comunicação e informação que tenham
interesse ou trabalhem em ações de preparação ou de resposta a desastres no setor saúde”23 (p. 8).
A análise dos manuais segue a orientação teórico-epistemológica da análise do discurso
franco-brasileira24. Tal orientação implica que consideremos estes materiais como espaços políticos
contraditórios que legitimam, produzem e fazem emergir sentidos sob a lógica da sociabilidade
hegemônica, embora não deixem de ser espaço e objeto de luta social.
Assim, enfocamos o discurso como um campo de disputa, no caso, atrelado às políticas de saúde
em curso e a outros processos de reprodução e transformação social. O processo de reprodução se
expressa, sobretudo, pela noção de ideologia, que, na análise do discurso, se traduz pela ‘evidência
de sentido’24 – ou seja, pela produção discursiva da obviedade de significado, remetendo, em
última instância, à (suposta) impossibilidade de uma forma de sociabilidade diferente da capitalista.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):299-310
303
comunicação e saúde nos manuais ...
Ademais, para a AD, por sua inscrição teórica no marxismo e na psicanálise, a evidência de sentido
aponta, contraditoriamente, para o não-dito: aquilo que se tenta silenciar, mas cuja emergência se dá
exatamente neste processo.
Como ruptura e superação – de natureza ontológica e epistemológica – das teorias idealistas
e positivistas produzidas pela Linguística, a AD está longe de se limitar ao estabelecimento de
procedimentos metodológicos. A rigor, a AD se oporia ao estabelecimento de metodologias
fetichizadas, que isentariam o analista do trabalho interpretativo, histórico e ideológico da língua. Em
outras palavras,
[...] Análise do Discurso é um campo de pesquisa que não possui uma metodologia pronta. Isso
significa que ao lançar mão [...] do arcabouço teórico, [...] o analista estará ao mesmo tempo
alçando os dispositivos metodológicos. [...] Desse modo, as pesquisas neste viés possuem
sempre um caráter qualitativo-interpretativista. Não há análise quantitativa de dados. Buscase, no geral, realizar uma ‘exaustividade vertical’ como dispositivo analítico [...] considerando
os objetivos da pesquisa, que podem incluir os efeitos de memória, da história, as ideologias,
as heterogeneidades constitutiva e mostrada, os não-ditos. [...] Na AD, a metodologia de
análise não consiste em uma leitura horizontal, ou seja, em extensão, do início ao fim do texto,
tentando compreender o que o mesmo diz, uma vez que todo texto é incompleto. Mas, realizase uma análise em profundidade, que é possibilitada pelo batimento descrição-interpretação em
que se verifica, por exemplo, posições sujeito assumidas, imagens e lugares construídos a partir
das regularidades discursivas evidenciadas nas materialidades.25 (p. 62)
Esta matriz epistemológica apontou para a análise do discurso dos manuais em seu papel na
(re)produção e consenso social – portanto, nos processos de hegemonia –, enfocando as noções
relacionadas à sociedade, saúde e comunicação também como efeitos ideológicos.
A ‘exaustividade vertical’ possibilitou, assim, formular a discussão dos manuais em foco a partir
dos sentidos de: ‘população’; ‘emergências e desastres’; e ‘comunicação’. As duas primeiras noções
constituem a base das próprias ações propugnadas nos manuais, ou seja, que grupos sociais serão
considerados ‘em risco’, e o que define uma situação como excepcional. Estas duas categorias se
articulam para produzirem um discurso que atua na naturalização e legitimação de determinadas
perspectivas sobre a comunicação e saúde e, consequentemente, sobre a própria instituição políticoideológica do campo, o que explica seu destaque na nossa análise.
População
Uma primeira categoria de análise é, portanto, ‘população’. Partindo desta categoria, podemos
afirmar que se observa um discurso que suscita o controle da informação e participação nos processos
da comunicação em saúde. Este aspecto pode ser observado a partir da caracterização e definição
da população nos manuais, delineadas com o objetivo de adequar a comunicação e a gestão da
informação a públicos-alvo específicos.
Assim, em trecho do manual da OMS, as ‘populações especiais’ são apresentadas como uma das
limitações com que a mídia pode se deparar no processo da comunicação eficaz:
Jornalistas são quase sempre mal preparados para atender às necessidades de informação de
populações especiais durante emergências relacionadas à saúde. Eles também podem não ver
como o seu trabalho ou papel comunicar diretamente com estes públicos. Populações especiais
incluem as pessoas idosas, portadores de deficiências, sem teto, pessoas confinadas em suas
casas, minorias raciais e culturais, minorias lingüísticas, analfabetos, populações transitórias (por
exemplo, turistas, viajantes a negócios e trabalhadores migratórios) e populações encarceradas.
Porque os veículos de comunicação de massa adaptam seus conteúdos para alcançar grupos
demográficos particulares, é papel dos órgãos de saúde pública transmitir sua mensagem
para as mais variadas audiências pelos mais diferentes canais possíveis. Isto inclui audiências
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artigos
especiais, que não podem ou não irão receber, entender ou agir de acordo com a mensagem da
saúde pública.22 (p. 29)
Conforme se pode constatar, as populações especiais se referem a conjuntos que representam
grandes quantidades de grupos sociais, pois, quando se unificam pessoas idosas, sem teto, portadores
de deficiência, minorias raciais, as minorias deixam de ser quantitativamente minoritárias na
contemporaneidade. Seria o caso, inclusive, de explicitar o não-dito: quem estaria incluído como
população ‘não especial’ e a que parcela da sociedade esta categorização se refere?
A não-definição destas categorizações das parcelas da sociedade – a partir do rótulo supostamente
neutro de ‘população especial’ – recobre conflitos e desigualdades. Não se trata de um equívoco
técnico-linguístico, e sim de construção do discurso e da ideologia calcada no não-dito e na evidência
de sentido. O que se apaga é que a população especial não constitui uma exceção, mas resulta de uma
forma de sociabilidade, em que a vulnerabilidade é, na verdade, massiva.
Em outras palavras, o objetivo de buscar controlar o que é divulgado e apresentado para a
população não é per se problemático. Na verdade, em situações de epidemia, por exemplo, a
divulgação descontrolada das informações pode gerar culpabilização dos doentes pela população;
como consequência, os atingidos tendem a não reportar a doença ou a não se dirigir às instituições de
saúde responsáveis, agravando o quadro epidêmico.
O que está em questão aqui são os sentidos construídos em torno do que subjaz a estas
formas de controle, no caso, a própria definição da exceção em termos de ‘população especial’. Tal
categoria tende a apagar os processos de produção social da (falta de) saúde e, portanto, legitima o
descompromisso com a garantia dos direitos (de saúde). Contraditoriamente, os manuais, em alguma
medida, ao buscarem garantir a qualificação dos quadros e o estabelecimento de normas de atuação
profissional, promovem, também, a naturalização da desigualdade – e da intervenção pontual como
única solução.
Emergências e desastres
No que tange às noções de emergência e desastre, observam-se dois movimentos discursivoideológicos: num primeiro plano, a tentativa de silenciar o político; num segundo plano, a legitimação
da desobrigação por parte do Estado em cuidar de problemas de saúde pública previsíveis, passíveis de
serem alvo de medidas de prevenção, com investimentos e ações permanentes, de forma a minimizar
os denominados riscos.
No manual da OMS, consta a definição de emergência como “uma situação séria, inesperada e
potencialmente perigosa que demanda ação imediata”24 (p. 17). No manual da Opas, não há definição
para desastre ou emergência. O da OMS24 apresenta, ainda, um quadro com as causas de emergência
em saúde pública, que, em tradução livre, seriam:
Ponto de informação – Causas de emergências de saúde pública
• Agentes de risco de transmissão respiratória;
• Agentes de risco de transmissão por alimentos;
• Agentes de risco de transmissão pela água;
• Agentes de risco de transmissão por vetores;
• Agentes infecciosos desconhecidos;
• Agentes de risco químicos;
• Materiais tóxicos;
• Agentes de risco biológicos; e
• Material radioativo.
Emergências podem também aparecer rapidamente como resultado de:
• Desastres naturais;
• Atividades militares;
• Atividades terroristas;
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comunicação e saúde nos manuais ...
• Revoluções políticas;
• Acidentes, incidentes ou explosões em indústrias ou usinas nucleares que causem ferimentos,
mortes, dano de propriedade e perdas econômicas;
• Investigação de mídia que descobre ações erradas;
• Vazamentos oficiais de informações sigilosas;
• Brechas de segurança (deliberadas ou acidentais); e
• Escândalos.24 (p. 97)
Para iniciarmos nossa análise destas concepções, é necessário recuperar o conceito ampliado de
saúde, em sua historicidade, resultante da luta do conjunto de trabalhadores, incluindo os de saúde.
Desta forma, hoje, pode-se concordar que:
Em sentido amplo, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da
terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de
organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de
vida.26 (p. 4)
Todavia, quando um manual voltado para treinar os comunicadores na área da saúde caracteriza
inúmeras situações como emergência, pode-se questionar como estas podem ser compatíveis com o
primeiro conceito de emergência, definido, no mesmo texto, como ‘situação séria e inesperada’. Um
‘risco químico’ é ‘inesperado’, se considerarmos a atual escalada tecnológica do capitalismo? Uma
‘revolução política’ é para ser tratada como algo a ser combatido, como um ‘desastre’? Ou ainda:
‘atividades militares’ e ‘atividades terroristas’ constituem, hoje, exceção na lógica de um mundo que
permanece polarizado?
O manual da Opas, mesmo não apresentando uma definição explícita de emergência ou desastre,
aponta na mesma direção a respeito das situações que devem sofrer intervenção, como emergências
de saúde pública. Ou seja, o que deve ser tratado como prioridade (como emergência) em saúde
pública, é definido, em conjunto, pelos organismos internacionais e pelos Estados nacionais.
Cabe destacar que, desta forma, uma situação previsível, porém não totalmente evitável, como
um desastre natural (terremoto), é colocada no mesmo patamar de uma situação prevenível (como
epidemias de dengue). Assim, a produção social da saúde fica apagada nesta formulação. Em última
instância, silencia-se a sociabilidade que explica as condições precárias de existência, assim como
justifica-se a falência do Estado – e, consequentemente, sua desresponsabilização – em resolver
situações correntes de agravos à saúde, na medida em que estariam na ordem do incontrolável e
do não-humano. Ou seja, ‘intervenção’ e ‘desresponsabilização do Estado’, neste caso, produzem,
também, um efeito ideológico-discursivo que naturaliza a produção histórica das condições precárias
de vida.
O segundo movimento discursivo – a legitimação da desobrigação, por parte do Estado, em cuidar
de problemas de saúde pública previsíveis – se expressa na transferência de responsabilidade para o
âmbito da sociedade civil, tratada, no texto da OPAS, no que diz respeito à busca de ajuda externa,
cuja tradução livre é:
Aos atores humanitários tradicionais – como as agências das Nações Unidas e o Movimento
da Cruz Vermelha – se somam cada vez mais organizações não governamentais com uma
grande capacidade logística e de mobilização de recursos. Os doadores, quer sejam privados
ou públicos, individuais ou corporativos, também tem aumentado e diversificado sua
participação.23 (p. 48)
Numa forma social cindida em classes, seguindo a perspectiva gramsciana, podemos afirmar
que os aparelhos privados de hegemonia e seus mecanismos de financiamento não são neutros:
neste caso, eles tendem a buscar reproduzir a lógica na qual um conjunto de problemas sociais,
306
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artigos
incluindo os de ‘saúde’, são tratados como exceções ou emergenciais. O manual contribui para este
processo, na medida em que produz os sentidos até aqui analisados e coloca, de forma positiva, tais
aparelhos no cenário decisório da gestão da saúde, inclusive, lado a lado das organizações de caráter
governamental.
Em suma, a concepção de emergências e desastres, nos manuais analisados, apaga o caráter
histórico e social da produção da saúde, seja por figurar conflitos sociais, como ‘atividades terroristas’,
‘revoluções políticas’ e ‘atividades militares’, como situações de exceção, seja por naturalizar uma
suposta impossibilidade de um tratamento público, pelo Estado, das questões coletivas de saúde.
Comunicação
Observa-se, nos manuais analisados, um tratamento da produção e circulação do conhecimento
que tende a estabelecer uma sinonímia entre comunicação e ‘emissão de mensagens’, e que aponta
para um apagamento da informação como uma relação social.
Um primeiro trecho a ser ressaltado, na análise da concepção de comunicação nos manuais em
foco, ocorre na introdução do manual da OMS22, como nota de rodapé. Esta esclarece que o termo
‘comunicação’ é entendido como “um meio de enviar ou receber informações. Também – o processo
pelo qual informação é trocada entre grupos ou indivíduos por sistemas mutuamente compreendidos
de linguagens, símbolos, sinais ou comportamentos” (p. 17).
Procura-se, assim, estabelecer uma concepção de comunicação dialógica, que envolve troca.
Todavia, a análise sugere que essa definição e concepção de comunicação não se sustenta. Se
estabelecermos um diálogo entre os dois manuais, podemos destacar um trecho do manual da OPAS,
quando este apresenta que uma das responsabilidades das equipes de resposta é de “coordenar as
ações de divulgação e distribuição oportuna e eficiente da informação”23 (p. 17), o que entra em
contraponto com o segmento anteriormente destacado no outro manual.
Com a multiplicação das formas impulsionadas pelas tecnologias de informação e comunicação, os
meios de comunicação têm incorporado algumas estratégias que indicam o ‘diálogo’ com o público;
contudo, essas estratégias acabam se resumindo, por exemplo, a pesquisas para votar o que se deseja
assistir na programação ou fazer comentário sobre programas com formato preestabelecido pelas
corporações midiáticas. Estas estratégias não apontam uma real possibilidade de participação popular,
estando tal impossibilidade condicionada por uma desigualdade na produção da informação, da
comunicação e do saber. Reiteramos que, neste contexto, a teoria emissor-receptor não desapareceu.
Centrando nossa análise no manual da OMS, destacamos uma referência direta à necessidade da
aplicação de uma concepção de comunicação como linear, pela referência à teoria do ruído:
A preparação de todos os tipos de mensagem acima deve ser guiada por teorias e princípios da
comunicação eficaz com a mídia. Por exemplo, ‘a teoria do ruído mental’ é uma das principais
construções da literatura de comunicação em emergência. Esta teoria reconhece que quando
as pessoas estão preocupadas elas freqüentemente têm dificuldades para compreender e
lembrar-se das informações. Este efeito pode reduzir a habilidade da pessoa para processar
informações em mais de 80%, e o desafio para a comunicação de risco, desta forma, é: superar
as barreiras que o ruído mental cria; produzir mensagens precisas para várias audiências em
diversos contextos sociais e culturais; e alcançar o máximo de eficácia da comunicação dentro
das restrições impostas pelo ruído mental.22 (p. 78)
Por fim, ainda sobre a concepção de comunicação, destaca-se, já no manual da OPAS, o capítulo
que trata dos meios de comunicação. O capítulo é apresentado da seguinte forma23, em tradução livre
do original:
4. Como trabalhar com os meios de comunicação?
4.1 Os meios de comunicação durante as emergências e desastres
4.2 Entendendo os meios de comunicação?
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4.3 O que buscam os meios?
4.4 Como chegar aos meios?23 (p. 61)
Os meios de comunicação, neste caso, são apresentados de forma fetichizada, dotados de vida
própria e formulados de modo independente da produção social. Inevitável nos remetermos aqui a
outro mecanismo discursivo-ideológico que atravessa a sociabilidade capitalista: a personificação do
‘mercado’. Ou seja, neste caso, os grandes oligopólios da comunicação deixam de ter proprietário e
passam a existir com uma vida autônoma, independente das relações sociais efetivamente produzidas
pelos homens; neste contexto, nada mais evidente do que se adaptar a estes meios.
Em suma, um ponto crucial aqui consiste em apontar que a comunicação dialógica requer,
dialeticamente, uma mudança estrutural na sociedade, onde quem fala e quem escuta estejam em
igualdade social. Esta contradição é apagada nos manuais em foco.
Considerações finais
O artigo almejou analisar o discurso sobre comunicação e saúde em manuais de emergência e
desastres produzidos por dois organismos internacionais de saúde (OMS e Opas). A partir da análise,
podemos afirmar que, nos manuais mencionados, as noções de ‘população’, ‘emergências e desastres’,
e ‘comunicação’ são destituídas de seu caráter histórico, social e político e, portanto, também o são
as situações de saúde, pelos processos discursivos que têm como efeito ideológico a tentativa de
apagamento da realidade social da cisão de classe.
Como conclusão, podemos indicar que são produzidos os seguintes efeitos discursivo-ideológicos
nos manuais analisados: uma desconexão entre a emergência e o desastre e a vida social; uma
legitimação da desigualdade inter-nações; uma desresponsabilização do Estado nacional em relação às
condições sociais de saúde desumanas; e uma perspectiva linear e instrumental da comunicação.
Em linhas gerais, podemos afirmar, portanto, que os manuais contribuem para a desconexão entre
saúde e produção da vida social. As concepções de comunicação desempenham papel relevante neste
processo, na medida em que os manuais, embora explicitem uma busca pela reversão do paradigma
unilinear e transferencial, reproduzem, em grande medida, nos termos analisados no artigo, tais
modelos hegemônicos.
Contraditoriamente, ao buscarem aperfeiçoar os vínculos de comunicação com a população,
reproduzem e naturalizam as formas de desigualdade social, nas quais se incluem os modelos
hegemônicos de comunicação. Em última instância, tais contradições expressam a dinâmica dos
processos de dominação em jogo no campo da comunicação e saúde, nos quais a disputa permanece
aberta, porém sob a lógica das determinações da sociabilidade capitalista.
Neste contexto, em que a população tende a ser reduzida à condição de receptora de informações
de saúde esvaziadas de sua dimensão política, apontamos a necessidade de aprofundar a discussão
sobre as concepções de qualificação e trabalho reproduzidas e produzidas no material em questão,
na medida em que estes são escritos na perspectiva de ocuparem, também, uma função formativa.
Uma pesquisa futura deveria analisar, portanto, tais manuais à luz das relações entre capitalismo e as
teorias hodiernas de formação profissional, enfocando, em particular, a ideologia das ‘competências’,
já que esta aponta para uma perspectiva comportamentalista do humano, em coerência com o modelo
comunicacional dominante, discutido no presente artigo.
Colaboradores
Luciana Lindenmeyer se responsabilizou pela configuração do corpus. Carla Macedo
Martins trabalhou em conjunto nas demais etapas de produção do manuscrito.
308
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artigos
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Lindenmeyer L, Martins CM. Comunicación y salud en los manuales de los organismos
internacionales para situaciones de emergencia y desastre: intervención y hegemonía.
Interface (Botucatu). 2015; 19(53):299-310.
El artículo analiza el discurso de los organismos internacionales sobre comunicación en
salud en la situación de ‘emergencia y desastre’ a partir de dos manuales: uno producido
por la Organización Mundial de la Salud (OMS), otro por la Organización Panamericana
de Salud (OPAS). El análisis considera la actuación de estos organismos como determinada
por la lógica de la ‘intervención’ que tiende a apagar las desigualdades sociales producidas
por la forma societaria del capital en ámbito nacional y mundial. Tal lógica se expresa en
los manuales, en los sentidos de ‘población’, ‘emergencia y desastre’ y ‘comunicación’. El
artículo concluye indicando que se producen los siguientes efecto discursivo-ideológicos:
una desconexión entre la emergencia y el desastre y la vida social, una legitimación de la
desigualdad inter-naciones, una des-responsabilización del Estado nacional en relación a
las condiciones sociales de salud deshumanas y una perspectiva lineal e instrumental de la
comunicación.
Palabras clave: Análisis del discurso. Ideología. Hegemonía. Organismos internacionales.
Manuales de salud.
Recebido em 07/02/14. Aprovado em 14/10/14.
310
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):299-310
DOI: 10.1590/1807-57622013.0552
artigos
Comunicação entre trabalhadores de saúde
e usuários no cuidado à criança menor de dois anos
no contexto de uma unidade de saúde da família*
Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus(a)
Rebecca Soares de Andrade(b)
Lidia Ruiz-Moreno(c)
Luciane Soares de Lima(d)
Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS. Communication of
healthcare workers and users in caring for children under two years old in the context of a
family health unit. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):311-23.
The study aimed to ascertain the
conceptions that health workers and users
have regarding communication in caring
for children under two years old using the
Habermas Communicative Action Theory.
This was a qualitative study in which the
data-gathering technique consisted of
semi-structured interviews with healthcare
workers and the caregivers of children
under two years old in order to obtain
support for studying communication. The
data were subjected to thematic content
analysis. Two thematic categories were
identified an instrumental category, given
that its characteristics were geared to the
domain and information transfers; and
another one called the shared category,
since it was understood as communion of
knowledge between healthcare workers
and users, containing approximations to
the assumptions of Communicative Action
Theory. It was suggested that changes
to the context studied should be made,
from the perspective of constructing of
communicative dialogue practices.
O estudo teve como objetivo conhecer a
concepção que trabalhadores de saúde e
usuários possuem sobre a comunicação
no cuidado à criança menor de dois anos,
adotando a Teoria da Ação Comunicativa
de Habermas. Trata-se de estudo qualitativo
que teve como técnica de coleta entrevistas
semiestruturadas com trabalhadores de
saúde e cuidadoras de crianças menores de
dois anos, de modo a obter subsídios para
o estudo da comunicação. Os dados foram
submetidos à analise de conteúdo temática.
Identificaram-se duas categorias temáticas,
a partir do referencial teórico proposto:
uma instrumental, por suas características
voltadas ao domínio e repasse de
informações; e outra, denominada
compartilhada, por ser entendida como
comunhão de saberes entre o trabalhador
de saúde e usuário, contendo aproximações
aos pressupostos da Teoria da Ação
Comunicativa. Sugerem-se mudanças
no contexto estudado, na perspectiva
de construção de práticas comunicativas
dialógicas.
Keywords: Communication. Family health.
Child care. Health education.
Palavras-chave: Comunicação. Saúde da
Família. Cuidado da criança. Educação em
Saúde.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
*
Elaborado com base
em “Comunicação entre
trabalhadores de saúde
e usuários no cuidado à
criança menor de dois anos
no contexto da Estratégia
Saúde da Família”, tese
de doutorado da primeira
autora, com financiamento
do Edital Capes Pró-Ensino
na Saúde.
(a)
Departamento de
Enfermagem, Universidade
Federal de Pernambuco.
Av. Moraes do Rego, s/n,
campus da UFPE, Cidade
Universitária. Recife,
PE, Brasil. 50670-420.
[email protected]
(b)
Centro de Pesquisas
Aggeu Magalhães,
Fundação Oswaldo
Cruz. Recife, PE, Brasil.
rebecca_soaresandrade@
yahoo.com.br
(c)
Centro de
Desenvolvimento do
Ensino Superior em
Saúde, Universidade
Federal de São Paulo.
São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
(d)
Programa de PósGraduação em Saúde da
Criança e do Adolescente,
Universidade Federal
de Pernambuco.
Recife, PE, Brasil.
[email protected]
2015; 19(53):311-23
311
comunicação entre trabalhadores de saúde ...
Introdução
O estudo propõe-se ao estudo da comunicação entre trabalhadores de saúde e cuidadoras de
crianças menores de dois anos no contexto da Estratégia Saúde da Família, tendo em vista que a
Atenção Primária à Saúde constitui-se em lócus privilegiado para a construção de práticas que devem
possuir, no seu cerne, a troca de informações, a humanização do cuidado, com formação de laços
solidários entre trabalhadores de saúde e população1,2.
Nessa conjuntura, o Ministério da Saúde, em 2004, reforça a necessidade de ampliação do controle
social no Sistema Único de Saúde (SUS), enfatizando, dentre os princípios norteadores da Política
Nacional de Humanização (2004): a valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas
de atenção e gestão, o fortalecimento do trabalho em equipe, a atuação em rede de forma conectada,
a valorização da informação, comunicação e educação permanente, na construção da autonomia e
protagonismo de sujeitos e coletivos2.
Neste mesmo ano, amplia, também, o escopo de atenção à criança em linhas de cuidado definidas
na Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil, com
ênfase em ações voltadas à saúde da criança desde o pré-natal, com vistas a garantir um crescimento
e desenvolvimento adequados, por meio de várias ações que contemplem o cuidado integral e
multiprofissional3.
Compreende-se comunicação como todo e qualquer encontro que se efetiva entre os trabalhadores
de saúde da ESF e usuários do SUS (cuidadoras e crianças) como momentos em que esta se efetiva.
Algumas dificuldades têm sido apontadas como entraves para a comunicação ser conduzida de
forma horizontal e multidimensional. Craco4 aponta a impessoalidade na prestação dos cuidados, o
mecanicismo e a rotinização. Estes acarretam uma comunicação na qual o trabalhador de saúde controla
e conduz o discursar do “outro” (usuário), guiando sua expressão, interrompendo sua fala e buscando
apreender dele o que já lhe é familiar, ou seja, demandas conhecidas e reconhecidas cientificamente.
No universo estudado, adotou-se, como referencial teórico, a Teoria da Ação Comunicativa de
Habermas para abordar a concepção de comunicação.
Essa teoria diferencia dois tipos de racionalidade: a comunicativa, considerada emancipatória, e
a estratégica ou instrumental. Enquanto a ação estratégica é orientada a partir de um ponto de vista
utilitarista, a ação comunicativa dirige-se para a resolução de conflitos, por meio de um acordo mútuo,
no qual os falantes desejam harmonizar seus planos de ação5.
Em face das recentes políticas de saúde que preveem a humanização da assistência, o vínculo e
acolhimento que devem ser estabelecidos entre trabalhadores de saúde e população, enfatiza-se a
necessidade de estudos que possam descrever as relações estabelecidas entre esses atores sociais, para
implementação de novas práticas em saúde que promovam o compartilhamento de saberes, com vistas
ao cuidado integral.
O estudo tem como objetivo conhecer qual a concepção que trabalhadores de saúde e usuários
possuem sobre a comunicação no cuidado à criança menor de dois anos no contexto da Estratégia
Saúde da Família.
Método
Estudo qualitativo, fundamentado nos conceitos da Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen
Habermas (2012), como referencial teórico.
A coleta de dados foi desenvolvida no período de abril a agosto de 2011, em uma Equipe de Saúde
da Família no município de Jaboatão dos Guararapes - Pernambuco. A equipe foi escolhida de forma
intencional, em virtude de estabelecimento de vínculo entre pesquisadora e membros da equipe, por
meio de coleta de dados de uma pesquisa anterior.
O município de Jaboatão dos Guararapes está situado no litoral do Estado de Pernambuco. Tem
extensão territorial de 256 quilômetros quadrados. Faz parte da Região Metropolitana do Recife
(RMR). A população do município, segundo estimativas do ano de 2008, é de 678.346 habitantes6.
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artigos
A pesquisadora esteve presente na Unidade de Saúde da Família nos dias de segunda a quintafeira, em um dos turnos de trabalho da equipe, alternando-se entre o turno matutino e vespertino.
A Equipe de Saúde da Família possuía, no período de coleta, uma população de 1.204 famílias
adstritas. O número de crianças de zero a dois anos, no momento da coleta de dados, era de 118, das
quais entrevistamos 19 cuidadoras, selecionadas de acordo com a disponibilidade no momento em
que aguardavam consultas de puericultura, vacinação; bem como as que se dispuseram a participar
mediante a realização de visitas domiciliares pela pesquisadora, conduzida por agentes comunitárias de
saúde, compondo uma amostra do tipo intencional.
A equipe era composta pelos seguintes trabalhadores de saúde: um médico, uma enfermeira, duas
técnicas de enfermagem, seis agentes comunitárias de saúde, uma dentista, uma auxiliar de consultório
dentário, dois atendentes e uma auxiliar de serviços gerais. Destes, participaram 11 trabalhadores de
saúde, sendo: um médico, uma enfermeira, uma dentista, uma técnica de enfermagem, um atendente
e seis agentes comunitárias de saúde.
Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, nas quais foram utilizados
roteiros específicos para trabalhadores de saúde e cuidadoras, abordando questionamentos de modo
a obter subsídios para o estudo da comunicação. A entrevista abordava questões ligadas: à concepção
de comunicação, ao relacionamento entre trabalhador de saúde e cuidadora, a pontos facilitadores e
dificultadores de uma comunicação efetiva. O critério para limitação da amostra foi a saturação dos
dados.
As entrevistas foram gravadas e, logo em seguida, transcritas para posterior análise de dados,
adotando-se a técnica da Análise de Conteúdo na modalidade temática, com as etapas de: leitura
de cada entrevista, leitura comparativa entre as entrevistas, identificação de núcleos de sentido,
subcategorização e categorização final7.
Para interpretação do material analisado, adotou-se a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen
Habermas8,9.
A pesquisa obedeceu às normas que regem as pesquisas com seres humanos, adotando o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido para todos os sujeitos participantes.
Os participantes foram identificados por nomes fictícios e por letras: as cuidadoras foram
identificadas de C1 a C19; o médico, M1; a Enfermeira, E1; a dentista, D1; as agentes comunitárias de
saúde de A1 a A6; a técnica de enfermagem, T1, e o atendente, At1.
A pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Oswaldo Cruz/Pronto
Socorro Cardiológico de Pernambuco.
Resultados e discussão
No perfil das cuidadoras, a faixa etária predominante foi a de vinte a trinta anos (13), uma era
menor de vinte anos, e cinco possuíam mais de trinta anos. Quanto à renda familiar, a maioria tinha
a renda de um salário-mínimo (11), proveniente, sobretudo, do trabalho dos esposos: seis possuíam
renda de menos de um salário-mínimo e duas possuíam renda de um a dois salários-mínimos.
Tratava-se de uma população de baixo poder aquisitivo, na qual todas as cuidadoras entrevistadas
não possuíam atividade remunerada, sendo as atividades ligadas ao cuidado com os filhos e casa.
Em relação à escolaridade: uma possuía o Ensino Fundamental incompleto, três possuíam Ensino
Fundamental Completo, cinco Ensino Médio Incompleto e dez Ensino Médio Completo. Quanto à
idade das crianças cujas cuidadoras participaram do estudo, dez eram menores de um ano e nove
tinham idade entre um ano a um ano e 11 meses. O acompanhamento das cuidadoras pela Unidade
de Saúde da Família variou de quatro meses a dez anos.
Quanto ao perfil dos trabalhadores de saúde, em relação à faixa etária, a maioria possuía quarenta
anos ou mais (sete), três possuíam de trinta a quarenta anos, e um era menor de vinte anos. O tempo
de trabalho variou de seis meses a 21 anos, a maioria possuía mais de dez anos de experiência (seis).
Em relação à escolaridade, três possuíam pós graduação lato sensu; seis, Ensino Médio completo; um,
Ensino Médio incompleto, e um, ensino técnico.
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A partir da análise dos dados, as falas dos participantes corroboraram as concepções de
comunicação exploradas por Habermas, as quais dividimos em duas categorias denominadas:
1) A comunicação no aspecto instrumental: o saber científico como verdadeiro;
2) A comunicação compartilhada: aproximações à ação comunicativa.
Categoria 1: a comunicação no aspecto instrumental:
o saber científico como verdadeiro
A percepção de comunicação no aspecto instrumental abrangeu, na visão das usuárias, o repasse de
informações, dificuldades de escuta às suas demandas e falta de diálogo.
A fala da cuidadora 6 exemplifica – na visão do grupo de entrevistadas que entendem a
comunicação sob a ótica instrumental – as dificuldades no estabelecimento de uma relação bilateral de
troca e escuta às suas demandas durante as consultas.
“tem dúvida que eu quero tirar lá e num consigo, quando chega aqui com minhas amiga eu
consigo falar tudo da minha vida [...]. Eles {trabalhadores de saúde} num conseguem, tem
gente que eles consegue tirar as dúvida diretin, mas tem gente que não, e a gente fica é cum
medo de tirar as dúvida”. (C6)
Para C6, a comunicação estabelecida não responde às suas expectativas, pela falta de confiança e
dificuldades em estabelecer uma relação de troca, em contraposição ao relacionamento que estabelece
com amigas e vizinhas.
Este modelo comunicativo representa características do modelo de comunicação unilinear,
caracterizado por práticas comunicativas, que se movimentam de um emissor a um receptor10.
As falhas encontradas no processo comunicativo do presente estudo se deram no âmbito da
escuta e no modo de emissão da fala por parte de alguns trabalhadores de saúde, o que acaba
comprometendo a confiança e inviabiliza a abertura de canais comunicativos para que ocorra uma
relação dialógica. Esses aspectos terminam reforçando as relações de poder entre os trabalhadores de
saúde e a população assistida, a qual se considera apenas demandatária de cuidados, mas não participa
de forma proativa na gestão do seu autocuidado.
Para a cuidadora 16, o principal entrave para uma comunicação efetiva estava na dificuldade de
escuta do profissional médico e na inviabilização do diálogo.
“[...] cum a minina da vacina e cum o agente de saúde eu num tenho o que dizer não. Cum
o médico, o fato dele se expressar melhor, num é que ele seja agressivo, mas ele num sabe se
expressar, ele divia ter mais paciência”. (C16)
Para a comunicação ser considerada satisfatória, a cuidadora 6 aponta a necessidade de algumas
mudanças:
“Uma pessoa cunversar cum eles {trabalhadores de saúde}, né? Explicar que eles tem que tirar
as dúvida dos paciente, que eles tão ali já pra tirar as dúvida da gente, que a gente num sabe,
porque eles são profissionais, tá ali pra tirar dúvidas, né? chamar a atenção, né? Explicar o que
tá errado, a pessoa fala, eles já tão com ignorância, acha que sabe de tudo, mas num é assim,
né?”. (C6)
A precariedade da comunicação é uma problemática que pode resultar em desentendimento,
desconfiança, distorção de ideias e situações de dominação11.
Numa situação de fala, existe um falante que se comporta como um eu (ego), que faz um
proferimento em relação ao mundo, aos outros homens ou a si mesmo, para o qual busca o
assentimento de outro eu (alter). Nesse caso, é necessário que alter compreenda o que ego diz,
demonstrando conhecimento do sentido dos termos utilizados por ego (que corresponde à dimensão
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semântica da linguagem), sendo ainda relevante a dimensão performativa ou pragmática, na qual alter
assume uma posição de reação ao proferimento de ego, e na qual a linguagem assume uma dimensão
de ação social, por meio do estabelecimento de uma relação entre atores sociais por intermédio da
fala12.
Contudo, na concepção de alguns sujeitos da pesquisa, a comunicação não tem assumido a função
de integração entre os vários atores sociais envolvidos, tendo em vista que, para algumas cuidadoras,
existem temores perante o posicionamento dos trabalhadores de saúde que os assistem.
Essa realidade gera reflexos na concretude do princípio doutrinário de controle social do SUS,
pois, ao passo que os usuários se intimidam perante o serviço de saúde que os assiste, isso dificulta o
alcance do direito à saúde de forma plena, universal, integral e equitativa.
Quando questionamos os trabalhadores de saúde sobre a comunicação, para muitos deles, esta
também se revestiu numa visão instrumental, voltada ao repasse de informações dentro do universo
biomédico. Foram apontados, como entraves para a comunicação satisfatória, a falta de êxito às
recomendações e orientações que são prestadas à clientela, evidenciados nas falas da Enfermeira e da
agente comunitária de saúde 6:
“As orientações que a gente dá, elas seguirem, às vezes, o aleitamento materno, a gente fala,
quando vê, elas já tão dando outras coisas”. (E1)
“Eu acredito que é isso mesmo, o objetivo é esse: trabalhar cum prevenção, vacina, gestante,
pra elas se interessarem em vir pro pré-natal, o aleitamento materno, que às vez a vó desvia
esse objetivo principal que é amamentar pelo menos seis meses e chega a avó: ‘não, criei meu
filho sem isso’ e a gente tenta fazer isso, num sair do objetivo do programa, porque se deixar
sai. As palestra já num tem mais, as criança num tem mais tanta prioridade, mas o progama é
isso, trabalhar cum orientação, palestra”. (A6)
O posicionamento de E1 demonstra a preocupação com o êxito técnico, enquanto a dimensão
relacional poderá estar secundarizada.
Em estudo abordando a comunicação entre médicos e pacientes, por meio de entrevistas e
observação das consultas, os autores destacam que, quando os pacientes não conseguem resultados
bem-sucedidos, eles consideraram como pontos importantes a compreensão, consolo e encorajamento
por parte do médico13.
Desse modo, é relevante a motivação do trabalhador de saúde e a compreensão do usuário quando
um resultado não é bem-sucedido.
Destaca-se a importância do processo de formação dos profissionais da área de saúde, tendo
em vista que as Diretrizes Curriculares Nacionais14 enfatizam novas competências e papéis a serem
desenvolvidos nos graduandos para o futuro exercício profissional. O objetivo principal constitui
levar os alunos dos cursos de graduação em saúde a aprender a aprender que engloba aprender a
ser, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a conhecer, garantindo a capacitação de
profissionais com autonomia e discernimento para assegurar a integralidade da atenção e a qualidade
e humanização do atendimento prestado aos indivíduos, famílias e comunidades.
Para A6, por sua vez, há menção sobre a relevância da ação educativa em saúde, embora essa
receba uma conotação prescritiva e tradicional, mencionada sob a forma de palestra. Além disso, as
diretrizes da ESF poderão estar recebendo uma interpretação rígida e normativa, com objetivos e
metas a serem rigorosamente cumpridos, o que compromete a criatividade, os aspectos de troca e
atenção para com os saberes e crenças da população.
Pelos discursos de E1 e A6, representando o grupo de trabalhadores de saúde que enxergam
a comunicação de forma instrumental, a relação que é estabelecida junto às cuidadoras visa
predominantemente resultados de mudanças de comportamento para adoção de práticas saudáveis,
como, por exemplo, a adesão ao aleitamento materno. Na visão das entrevistadas, o modelo de
comunicação adotado não se mostra eficaz, por não trazer resultados satisfatórios no que se refere aos
aspectos de promoção da saúde da população.
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comunicação entre trabalhadores de saúde ...
Sob o parâmetro da teoria da ação comunicativa de Habermas, o mundo da
vida, em algumas situações, pode ser colonizado, quando ações estratégicas são
implementadas em detrimento de atos comunicativos, sendo que, enquanto a
comunicação procura o entendimento mútuo, a ação estratégica visa o sucesso,
no caso do discurso biomédico, objetiva o diagnóstico e a cura15. Porém, a missão
dos trabalhadores de saúde deverá perseguir a busca de um diálogo horizontal
para a conquista de um cuidado humanizado e integral.
Em trabalho16 sobre concepções de educação em saúde por trabalhadores de
ESF, os choques entre culturas que se dão entre trabalhadores de saúde e usuários
são fenômenos usuais, já que a consulta ou outros momento de interação,
como grupos de educação em saúde e visitas domiciliares, requererem troca de
informações. Embora os profissionais encontrem contribuições no conhecimento
popular, na maioria das vezes, não estão preparados para lidar com outros
saberes, inclusive o popular, sentindo-se pouco reconhecidos e valorizados,
quando, na verdade, a não-adesão do usuário ao procedimento explica-se
porque o que é proposto não faz sentido ao seu universo de representações.
Percebe-se que, mesmo os Agentes Comunitários de Saúde, que pertencem
ao cenário de vida das famílias sob sua responsabilidade, acabam incorporando o
saber técnico nas suas visitas domiciliares e no processo de educação em saúde,
como menciona a agente comunitária de saúde 4:
“É assim, sempre a gente andar cum a verdade, é isso que eu faço
quando eu vou pra minhas visitas, eu vou, informo, se num souber,
pergunto a Beth(e){Enfermeira}, pergunto às colegas {agentes
comunitárias de saúde}”. (A4)
Para A4 há uma preocupação com um “saber verdadeiro” a ser conduzido
durante suas visitas domiciliares, porém é preciso que não esqueçam que estes
saberes precisam fazer sentido à população assistida para a incorporação de uma
prática solidária e autônoma. Estes conhecimentos vão ser somados a outras
fontes, como mídia, vizinhança e familiares.
Reforça-se a importância de uma prática educativa com foco na reflexão
crítica sobre a prática exercida, de forma a melhorar as práticas futuras. Desse
modo, entendemos a importância da construção do papel crítico do agente
comunitário de saúde, de forma a ser o elo entre equipe de saúde e população.
Para D1, o discurso é visto sob o aspecto monológico, no qual o papel dos
trabalhadores é repassar a orientação às cuidadoras.
“[...) como elas {mães} vem e se interessam no que a gente tem pra
falar, eu acho que a gente sai ganhando, a maioria faz, higienização,
escovação, eu acho interessante, eu acho positivo”. (D1)
É relevante que a ação comunicativa resulte em significado para todos
os atores que dela participam. O ato comunicativo não pode ser uma via de
condução simples, na qual apenas os trabalhadores tenham algo a transmitir e
informar, deve ser uma via de mão dupla, que resulte em significados para todos.
Corroborando nossos achados, Araújo e Cardoso18 abordam essa
dificuldade em quebrar a natureza linear e unidirecional da comunicação entre
trabalhadores de saúde e usuários. Quando a comunicação é interpretada de
forma unidirecional, esse aspecto contribui para a manutenção de um processo
vertical que não consegue captar as singularidades de cada sujeito, dificultando a
experiência de um cuidado integral e participativo.
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Nome fictício dado à
enfermeira.
(e)
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No discurso de A6, por sua vez, percebe-se que uma outra dificuldade está na comunicação que
é estabelecida dentro da equipe, a qual ocorre num processo de hierarquização “daqueles que mais
sabem” para “aqueles com conhecimentos inferiores”, e que, posteriormente, pode ser reproduzido
pelo ACS no exercício do seu trabalho.
“A gente tira logo a dúvida, porque a gente sabe que a turma é ignorante de informação, ou
melhor, é humilde de informação, então a gente procura não misturar”. (A6)
Resultados semelhantes foram apontados por outros trabalhos realizados pelos autores19-21,
nos quais se constatou que a metodologia de trabalho dos ACS tem privilegiado a prescrição
comportamental, sem a problematização com os sujeitos sociais, o que pode ser um dos pontos
dificultadores para incorporação dos ensinamentos na prática das famílias.
Possíveis causas da unilateralidade da comunicação e educação em saúde são questões externas
relacionadas ao modelo biomédico, que possui as características normalizadora, intervencionista,
positivista e medicalizadora, que afetam as dimensões cognitiva, moral e afetiva, resultando na nãoutilização da comunicação como dispositivo de troca. Além disso, possíveis causas internas estão nas
debilidades teóricas e epistemológicas dos trabalhadores de saúde, os quais ainda não compreendem
as potencialidades de um modelo dialógico22.
As causas das dificuldades dos trabalhadores de saúde em responder aos desafios e pressupostos do
SUS constituem responsabilidade das instituições formadoras em saúde, que ainda reproduzem a lógica
fragmentada do cientificismo, deixando de lado o mais rico da educação e da inter-relação: as relações
entre professor e aluno, que, mais tarde, vão se refletir nas relações entre profissionais de saúde e seus
pacientes23.
Desse modo, aponta-se a necessidade de abordagem explícita da comunicação e dos aspectos
relacionais durante a formação de todos os profissionais de saúde, seja por meio de disciplina
específica ou de forma transversal em várias disciplinas, com vistas a modificar a compreensão da
comunicação nas práticas de saúde, além de provocar mudanças nas atividades cotidianas junto aos
usuários do SUS.
As Diretrizes Curriculares Nacionais14 apontam esse caminho ao elencarem algumas competências
gerais a serem desenvolvidas nos graduandos da área de saúde: a comunicação, que envolve
acessibilidade e confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com outros
profissionais de saúde e o público em geral, por meio de uma adequada comunicação verbal, não
verbal, de escrita e leitura. Além dessa, mencionam a Educação Permanente, que pressupõe a
capacidade de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na prática.
Destaca-se, ainda, como papel da Educação Permanente em Saúde, a abordagem e presença da
comunicação em todos os encontros relacionais que se efetivam entre os trabalhadores de saúde
e usuários, com a proposição e discussão de subsídios compatíveis a cada realidade, de forma a
construir, de maneira solidária, laços mais horizontais e bidirecionais, com uma comunicação voltada
ao entendimento, na tentativa de superação da comunicação sob a racionalidade instrumental, como
atividade meio-fim.
Categoria 2: a comunicação compartilhada: aproximações à ação comunicativa
A comunicação em saúde tem sido interpretada, para alguns entrevistados, como instrumento
que conduz: à escuta, esclarecimento, acolhimento, entendimento, partilhamento, troca de saberes e
acesso às subjetividades e singularidades do outro envolvido no ato comunicativo.
Os depoimentos das cuidadoras 1 e 15 mencionam a comunicação com a enfermeira e a técnica de
enfermagem, respectivamente, como satisfatória, pelo vínculo e acolhimento estabelecidos durante as
consultas de enfermagem e as ações de vacinação, o que pode ser considerado como ponto positivo
para o relacionamento dentro da proposta da ESF.
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“[...] o que eu pergunto e ela {Enfermeira} me responde, se for uma coisa que ela não sabe,
ela me diz. Eu pergunto o que eu quero. Eu pergunto tudo, porque se eu num pergunto fico na
dúvida [...]”. (C1)
“Comunicação é assim, a pessoa saber conversar com você, você fazer uma pergunta e a
pessoa te responder. Você chegar aqui e perguntar: ‘ah, eu gostaria de saber sobre a vacina
hoje’ e ela vai lá e diz: ‘ah, peraí fia, eu tenho que ver e a comunicação é assim, perguntar e ter
a resposta certa”. (C15)
O enfermeiro, ao estabelecer uma relação social com o usuário, deve, ultrapassando a
superficialidade de um atendimento, promover acolhimento em relação ao que é falado pelo
cliente, para facilitar a compreensão ampliada de sua história de vida, sendo fundamental algumas
características, como a linguagem verbal e não verbal24.
Pelas características do trabalho que se efetiva na Estratégia Saúde da Família, o cuidado
longitudinal permite, aos atores sociais, o estabelecimento de vínculos concretos no estabelecimento
de planos de ação, porém, ressalta-se que este vínculo necessita apresentar uma via de mão dupla, na
qual todos contribuam para a ação comunicativa.
Walseth, Abildsnes e Scgei13, ao abordarem a relevância da relação médico-paciente e do
aconselhamento nas práticas do cuidado em saúde, destacam a teoria da ação comunicativa de
Habermas para a abordagem desta questão, tendo em vista que o comportamento do usuário perante
o aconselhamento médico é influenciado por uma gama de fatores, dentre os quais se incluem
questões psicológicas, sociais, comportamentais, sendo importantes, neste processo: uma boa relação
profissional-paciente, o diálogo respeitoso em busca da compreensão mútua, e o envolvimento do
usuário no processo de decisões compartilhadas para o exercício da sua autonomia.
Corroborando a integração do usuário nas tomadas de decisões, para a cuidadora 18, a
comunicação foi definida como entendimento e compreensão das mensagens produzidas pelos
interlocutores: “Comunicação é quando as pessoa tão cunversando e uma intende o que a outra dá
dizendo, é você perguntar e intende o que elas tão falando” (C18).
Habermas8,9, ao estruturar a teoria da ação comunicativa, concebeu que a comunicação
estabelecida entre os sujeitos, mediada por atos da fala, diz respeito sempre a três mundos: 1. o
mundo objetivo das coisas: que corresponde a pretensões de validade referentes às verdades das
afirmações feitas pelos participantes no processo comunicativo; 2. o mundo social: corresponde
a pretensões de validade referentes à correção e à adequação das normas; 3. o mundo subjetivo:
corresponde às vivências e sentimentos: a pretensões de veracidade, ou seja, que os participantes do
diálogo estejam sendo sinceros na expressão dos seus sentimentos.
Na relação comunicativa, é imprescindível o entendimento da mensagem produzida pelos
interlocutores, os quais precisam realizar afirmações verdadeiras, dentro de um contexto social
coerente, além de serem sinceros na manifestação dos seus enunciados. Possíveis falhas em alguma
dessas pretensões conduzirão a ruídos que comprometem o entendimento mútuo e a compreensão
entre os falantes.
A natureza interativa do conhecimento científico e popular que se materializam no universo da ESF
permite que conhecimentos originados na cultura popular complementem o saber científico, por meio
de um processo de ancoragem e de transferência do universo cultural para o universo científico. Essa
complementação demonstra a possibilidade de se integrarem diferentes conhecimentos na prática,
promovendo uma assistência resolutiva e comprometida com a realidade da população assistida16.
Assim, a comunicação deve ocorrer de forma bidirecional, gerando um compromisso de transformação
dos saberes de cada um.
Freire17 corrobora esta percepção de comunicação ao realçar o ato de educar como um diálogo
horizontal que se nutre de amor, humildade, esperança, fé e confiança. O diálogo é visto como uma
exigência existencial, que possibilita a comunicação e permite ultrapassar o conhecimento adquirido,
vivido.
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Na visão do nosso outro grupo de participantes, os trabalhadores de saúde, a comunicação também
foi percebida como possibilidade para trocas, com escuta do usuário na sua singularidade, para
apreensão de demandas nem sempre explícitas, como demonstra a agente comunitária de saúde 3: “A
gente aprende muito cum a comunidade, é um aprendizado, é uma troca de conhecimento, eu acho
muito importante” (A3).
Para A3, o processo educativo em saúde é mediado por trocas na construção de um conhecimento
compartilhado, sendo reconhecido que, nessa ação, tanto o educador (trabalhador de saúde) como o
educando (usuário) sempre têm algo a oferecer na mediação ensino-aprendizagem.
A partir da afirmativa de Freire25 (p. 22), de que “o conhecimento não se estende do que se
julga sabedor até aqueles que se julga não saberem”, entendemos a importância de uma educação
emancipatória no contexto da Estratégia Saúde da Família.
Com essa postura, somos conduzidos ao compartilhamento de saberes, que consiste em respeitar o
saber de senso comum e reconhecer a incompletude do saber profissional; o que não significa abdicar
do conhecimento científico ou submetê-lo ao senso comum, mas entender que há diferentes saberes,
dentre eles, o saber profissional, que também é incompleto e inacabado, pois se mantém em constante
construção e necessita ser permanentemente revisto, contextualizado, confrontado e aproximado a
outros saberes, sobretudo, o de senso comum, para se transformar em conhecimento útil26.
Para a agente comunitária de saúde 6, a comunicação entre o ACS e a comunidade apresenta
algumas particularidades, como maior proximidade e vínculo com as famílias por meio das visitas
domiciliares, além de uma linguagem mais acessível e de maior apropriação por parte das famílias.
“Eu acredito que seja boa {a comunicação}, também cum 13 anos que trabalho, elas escutam,
elas confiam, elas acreditam muito na gente, nós é que tamo todo dia, todo dia entre aspa, pelo
menos uma vez por mês, então, é uma boa comunicação, falar cum elas duma maneira mais
clara, talvez a cunversa do médico seja mais diferente, eles falam mais tecnicamente, a gente
fala mais a lingua deles”. (A6)
Para Habermas, a linguagem enquanto veículo de comunicação interessa do ponto de vista da
prática social. Tomando os atos de fala enquanto sentenças de um proferimento, o autor considera a
existência de três tipos de atos de fala: 1 atos locucionários (o falante, simplesmente, diz algo, expressa
um estado-de-coisas), 2 ilocucionários (realiza uma ação enquanto diz algo), e 3 perlocucionários
(causa um efeito sobre o ouvinte, produz algo no mundo)8,9,12.
Nesse caso, a agente comunitária de saúde menciona a realização de atos ilocucionários e
perlocucionários, por pertencer ao universo cultural daquela população e conhecer, com profundidade,
a linguagem, os costumes e necessidades, tornando-se um trabalhador de saúde apto a produzir uma
comunicação mais efetiva dentro da sua prática profissional.
Na compreensão do médico da equipe, entende-se como comunicação efetiva aquela que propicia
uma escuta qualificada por parte dos trabalhadores de saúde, tendo em vista as necessidades e
carências da população:
“Tudo é comunicação [...] até você ouvir o outro é comunicação, agora uma boa comunicação
é você esquecer os seus problemas e procurar compreender quem tá precisando de ajuda,
embora tenha gente que queira tá aqui todo dia, não importa, tem que tentar ouvir e só o fato
de atender bem, já ajuda”. (M1)
No trabalho de Oliveira et al.27, na visão de trabalhadores de saúde e usuários do SUS, a
comunicação foi interpretada como habilidade que deveria ser trabalhada entre todos os atores
envolvidos nas práticas de saúde, de forma franca e objetiva, visando a criação de vínculo por meio de
uma escuta empática, tendo como objeto final um atendimento resolutivo.
Bastidas Acevedoa et al.22, considerando a pedagogia de Freire como subsídio para uma prática
educativa e comunicativa, que ressignifique a comunhão entre educando e educador, apontam o
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diálogo como fundamental no processo comunicativo, mediante o qual os participantes devem ter a
intenção de compreensão mútua. Esta comunhão implica reconhecer o outro como alguém diferente,
com conhecimentos e posições distintas.
Na visão da técnica de enfermagem, há o reconhecimento das diversidades dos sujeitos e situações
na sua prática cotidiana, exigindo, consequentemente, o entendimento dessas peculiaridades
existentes no cenário da Estratégia Saúde da Família.
A técnica de enfermagem exemplifica uma situação que considerou relevante para demonstrar o
papel de uma comunicação bidirecional para práticas em saúde de forma satisfatória. Na situação em
que a técnica de enfermagem estava diante de uma condição na qual a cuidadora não queria aceitar
a administração de uma vacina a seu filho, o papel da técnica foi o de compreender as angústias
e necessidades da mãe, abrindo possibilidades para um consenso entre os interlocutores, que não
prejudicasse a promoção da saúde.
“Tem mãe que pergunta, tem mãe que não, tem o choro da criança, tinha uma mãe que não
queria vacinar a criança, não por causa da vacinadora, mas porque ela morria de pena, aí eu
disse: ‘eu vou perder tempo, mas vai valer a pena’, aí eu disse: ‘olhe, a senhora tem pena dele
porque? A gente só faz se o responsável autorizar, mas eu garanto que não vai acontecer nada
cum ele.’ Aí ela: ‘não mulher, é porque eu tenho pena de duas, três furadas’. Aí eu disse: ‘olhe,
pois vamos fazer assim, eu faço uma hoje e outra pra 15 dias’. Aí ela disse: ‘não, marque pra 1
mês’. Aí eu ixplico que a vacina é boa pra isso, quais são as doenças de 6 meses, por exemplo,
que a DTP, difteri, tétano, aí a mãe deixou eu fazer, era a DTP e a hepatite, e ela veio depois, o
importante é que ela deixou eu fazer”. (T1)
Feudner28, ao abordar a comunicação colaborativa no cuidado em saúde, enfatiza a necessidade
de substituição da compreensão da comunicação como “transmissão de mensagens” por uma
conceituação que incorpore tanto a troca de informações como a natureza da relação de colaboração
entre os falantes que estão se comunicando, sendo essencial a reciprocidade e a sinergia. Aborda,
ainda, cinco objetivos primordiais, que são: estabelecer um objetivo comum ou um conjunto de
objetivos que orientam nossos esforços de colaboração para com o usuário; expor o respeito mútuo
e a compaixão pelo outro; desenvolver uma compreensão suficientemente completa das nossas
diferentes perspectivas; garantindo a máxima clareza e exatidão do que comunicamos uns com os
outros, e gerenciamento de processos intrapessoais e interpessoais que afetam a forma como enviar,
receber e processar informações.
Reconhecemos, no nosso estudo, na situação apresentada pela técnica de enfermagem, que,
embora a solução da problemática tenha partido, sobretudo, da trabalhadora de saúde, esse
comportamento abre perspectivas para novas situações nas quais os usuários se sintam protagonistas
e gestores do seu cuidado, apontando um cuidado dialógico, compreendido como encontro amoroso
dos homens, que, mediatizados pelo mundo, o transformam, e transformando-o, o humanizam para a
humanização de todos25.
Desse modo, a situação apresentada pode ser caracterizada como agir comunicativo, tendo em
vista que a coordenação desta ação bem-sucedida dependeu de força racionalmente motivadora para
o entendimento e para o consenso entre os atores sociais, resultando em prática efetiva de promoção
da saúde.
320
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):311-23
Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS
artigos
Conclusão
Os resultados apontaram para concepções distintas de comunicação, com predominância da
racionalidade instrumental, com uma compreensão da comunicação enquanto instrumento de repasse
de informações para o alcance de êxito técnico nos comportamentos dos indivíduos e nos indicadores
de saúde.
Para outros entrevistados, exaltamos a compreensão da comunicação voltada ao entendimento, à
escuta e à valorização dos usuários no cuidado em saúde, aproximando-se dos pressupostos da Teoria
da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas.
A Teoria da Ação Comunicativa, já utilizada em outros estudos na área de Educação e Saúde, se
mostra relevante para o estudo da inter-relação entre trabalhadores de saúde e usuários (cuidadoras/
mães) no contexto da Estratégia Saúde da Família, pela sua aproximação aos pressupostos e diretrizes
estabelecidos pelo SUS e pela ESF, fundamentalmente: a integralidade da atenção, escuta qualificada,
acolhimento, vínculo e responsabilização, embora constitua um desafio a sua concretude na prática
diária dos serviços de saúde.
Aponta-se a necessidade de instrumentalização da comunicação dos profissionais de saúde desde
a graduação, além da continuação deste processo por meio da Educação Permanente, de forma a
responder as necessidades e demandas propostas pelo SUS.
Diante da realidade apresentada, ressalta-se a necessidade de incorporação da educação em saúde
e da comunicação no relacionamento entre trabalhadores de saúde, de forma a aprenderem, no
seu cotidiano de trabalho, de forma integrativa, para a produção de uma comunicação que valorize,
com maior propriedade, as demandas e necessidades das cuidadoras e crianças, com foco na escuta
qualificada e na participação de processos que promovam a emancipação dos sujeitos assistidos.
Sugere-se a realização de estudos posteriores que possam analisar efeitos de intervenções
no âmbito da comunicação nas práticas em saúde, de modo a serem concretizadas práticas mais
dialógicas voltadas à compreensão e ao consenso entre todos os atores sociais envolvidos nos atos
comunicativos.
Colaboradores
Maria Wanderleya de Lavor Coriolano-Marinus responsabilizou-se por: concepção da
pesquisa, coleta de dados, análise dos dados, redação da versão final. Rebecca Soares de
Andrade participou da coleta de dados, análise dos dados, redação da versão final. Lidia
Ruiz-Moreno participou da análise dos dados, redação da versão final, e Luciane Soares de
Lima responsabilizou-se por: concepção da pesquisa, orientação da pesquisa, análise dos
dados, redação da versão final.
Referências
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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comunicação entre trabalhadores de saúde ...
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Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS
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Coriolano-Marinus MWL, Andrade RS, Ruiz-Moreno L, Lima LS. Comunicación entre
trabajadores de la salud y usuarios en el cuidado a niños menores de dos años en el
contexto de una unidad de salud de la familia. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):311-23.
El objetivo del estudio fue conocer la concepción que trabajadores de la salud y
usuarios tienen sobre la comunicación en el cuidado a los niños menores de dos años,
adoptando la Teoría de la Acción Comunicativa de Habermas. Estudio cualitativo que
tuvo, como técnica de colecta, entrevistas semi-estructuradas con trabajadores de
la salud y cuidadoras de niños menores de dos años, para obtener subsidios para el
estudio de la comunicación. Los datos se sometieron a análisis de contenido temático.
Se identificaron dos categorías temáticas: una instrumental, por sus características
enfocadas en el dominio y traspaso de informaciones y la otra denominada compartida,
por entenderse como comunión de saberes entre el trabajador de la salud y el usuario,
conteniendo aproximaciones a los supuestos de la Teoría de la Acción Comunicativa. Se
sugieren cambios en el contexto estudiado, en la perspectiva de construcción de prácticas
comunicativas dialógicas.
Palabras clave: Comunicación. Salud de la familia. Cuidado de los niños. Educación en
salud.
Recebido em 18/06/13. Aprovado em 10/09/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):311-23
323
DOI: 10.1590/1807-57622014.0146
artigos
Da invisibilidade à epidemia:
a construção narrativa do autismo na mídia impressa brasileira
Clarice Rios(a)
Francisco Ortega(b)
Rafaela Zorzanelli(c)
Leonardo Fernandes Nascimento(d)
Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF. From invisibility to epidemic: the narrative
construction of autism in the Brazilian press. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):325-35.
Although autism is not a contagious
disease, the term “autism epidemic” is
used in allusion to the dramatic increase in
the number of new cases in only a short
period of time. This paper provides an
overview of the socially shared conceptions
surrounding autism in Brazil, through the
narratives that have given visibility to this
topic in the Brazilian press between 2000
and 2012. We regard these narratives
not as representations of a reality a priori,
but through their function of structuring
human experience. On the one hand,
such narratives shape and give content
to the issues and controversies that
surround autism in Brazil, while on the
other hand, they also actively contribute
to such debates, given that they affect the
meaning that readers place on them.
Keywords: Autism. Narrative. Media.
Embora o autismo não seja uma doença
contagiosa, fala-se de uma “epidemia
de autismo”, em alusão ao aumento
vertiginoso do número de casos num
período curto de tempo. O artigo traça
um panorama das concepções socialmente
partilhadas sobre o autismo no Brasil, a
partir das narrativas que vêm conferindo
visibilidade ao tema na mídia impressa
brasileira no período de 2000 a 2012.
Entendemos tais narrativas não como
representações de uma realidade a
priori, mas em sua função estruturante
da experiência humana. Por um lado,
essas narrativas dão forma e conteúdo
às questões e às controvérsias ligadas ao
autismo no Brasil, e, por outro, contribuem
ativamente para esses debates, pois
produzem determinados efeitos de sentido
nos leitores.
Palavras-chave: Autismo. Narrativa. Mídia.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Departamento
de Planejamento e
Administração em
Saúde, IMS/UERJ. Rua
São Francisco Xavier,
524, Pavilhão João Lyra
Filho, 7º andar, blocos
D e E, Maracanã. Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
20.550-900. clarice.r@
gmail.com
(b,c)
Departamento de
Políticas e Instituições
de Saúde, IMS/UERJ.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
[email protected];
[email protected]
(d)
Programa de
Pós-Graduação em
Sociologia, Faculdade
de Filosofia e Ciências
Humanas, UFBA.
Salvador, BA, Brasil.
[email protected]
2015; 19(53):325-35
325
da invisibilidade à epidemia: ...
Introdução
Embora o autismo não seja uma doença contagiosa, fala-se de uma “epidemia de autismo”, em
alusão ao aumento vertiginoso do número de casos num período curto de tempo. De uma forma
geral, atribui-se esse aumento a uma mudança no modo como a psiquiatria passou a descrever
e a classificar um conjunto de comportamentos e de características que já se apresentavam com
determinada frequência na população anteriormente1, expandindo os casos classificados sob essa
alcunha nosológica2. Especula-se, também, que a dita epidemia seja fruto de uma reconfiguração na
rede de cuidados a essa população, que teve como marco inicial a desinstitucionalização do retardo
mental no final dos anos 1960 nos Estados Unidos3. Tal argumento não aponta, exclusivamente, para
uma substituição diagnóstica do retardo mental por autismo mas, sobretudo, para o efeito que a
rede de cuidados que se formou em torno do autismo teve no sentido de conferir mais visibilidade a
esse diagnóstico. Assim, segundo esses autores, “não foi a epidemia que fez o autismo visível, mas a
visibilidade do autismo que fez a epidemia”3 (p. 2).
Exemplos dessa ebulição do tema do autismo proliferam tanto na mídia impressa quanto na
audiovisual. No universo ficcional, autistas aparecem cada vez mais como personagens de livros, de
filmes e de seriados televisivos4-7.
Ao longo da década de 2000, ganham espaço, também, as narrativas não ficcionais em primeira
pessoa, sobretudo de origem anglo-saxã8-10. Além disso – e este é o principal foco deste artigo –, o
autismo tem sido cada vez mais objeto de atenção e discussão na mídia, na forma de notícias e em
matérias de caráter eminentemente jornalístico.
Há, certamente, uma atenção crescente no campo das pesquisas neurocientíficas e das políticas
públicas, mas o autismo ainda é um transtorno permeado por controvérsias. A principal delas é,
sem dúvida, em relação à etiologia do transtorno. Por um lado, um número crescente de pesquisas
em neurodesenvolvimento e genética vem sendo realizado em busca de um marcador biológico
que contribua para a detecção precoce e o tratamento do autismo11,12. Por outro lado, não se pode
afirmar que haja uma única causa orgânica para esse transtorno, nem que as descrições diagnósticas
de manuais como o DSM e a CID sejam suficientes para esclarecer o amplo universo de suas
manifestações clínicas13. Há, portanto, uma evidente complexidade e uma heterogeneidade nas
manifestações do transtorno, além de debates e incertezas quanto a sua etiologia e seu tratamento – o
que dificulta a generalização das características próprias de um autista para os demais.
Levando essas asserções em consideração, o filósofo Ian Hacking afirma que, se você conhece uma
pessoa com autismo, você conhece uma pessoa com autismo5,14. Essa frase aparentemente tautológica
pretende ressaltar quanto o autismo é um terreno de particularidades, em que biografias e experiências
de pais e de pessoas acometidas por essa condição colocam-se sempre em tensão com uma definição
mais ampla a respeito do que seja o autismo.
O presente artigo utiliza a noção de narrativa como principal categoria de análise, procurando,
com isso, mapear os sentidos específicos que se constroem em torno desse universo complexo e
heterogêneo que é o autismo. Desse modo, partimos da premissa de que as incertezas e os debates
acerca do autismo ganham contorno no texto midiático ao se organizarem em narrativas, agregando,
também, elementos de ordem cultural e sociopolítica. Segundo Motta, “as narrativas midiáticas não
são apenas representações da realidade, mas uma forma de organizar nossas ações em função de
estratégias culturais em contexto”15 (p. 3).
Dessa forma, o artigo tem como objetivo analisar notícias e matérias sobre autismo e autistas em
quatro veículos da mídia impressa, aqui consideradas como “fragmentos desconexos de sentido”15 (p.
4). A partir disso, tentaremos recompor os enredos e as intrigas que estruturam tais fragmentos em
narrativas, a fim de esboçar um panorama, ainda que parcial e mediado pela imprensa, das concepções
socialmente partilhadas sobre autismo no Brasil. Entendemos tais narrativas não como representações
de uma realidade a priori, mas em sua função estruturante da experiência humana. No caso do
autismo, por um lado, essas narrativas dão forma e conteúdo às questões e controvérsias ligadas a essa
condição no Brasil; e, por outro, contribuem ativamente para esses debates, produzindo determinados
efeitos de sentido nos leitores.
326
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Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF
artigos
É importante destacar ainda que, mesmo quando contestadas e debatidas por leitores na seção
de cartas, muitas dessas notícias são reproduzidas em sua versão digital em blogs e nas redes sociais,
gerando uma difusão que vai além dos leitores do veículo em que foram originalmente publicadas,
pois, nesses casos, o texto jornalístico adquire, também, um caráter eminentemente político.
Tais grupos – compostos, em sua maioria, por familiares de autistas e, em menor número, por
profissionais e pelos próprios autistas –, além de ajudarem a disseminar informações sobre o autismo e
assuntos a ele relacionados, têm também um papel importante na luta por direitos e na constituição de
políticas públicas16-20.
O texto jornalístico como narrativa
Segundo Garro e Mattingly21 (p. 1), a “narrativa é a forma fundamentalmente humana de dar
sentido à experiência”. Dizer que a narrativa tem uma função estruturante na experiência humana não
significa, entretanto, reduzi-la meramente à sua dimensão subjetiva. A produção e a compreensão de
uma narrativa são processos que dependem: de recursos pessoais e culturais; do mundo interior dos
pensamentos e sentimentos; e do mundo exterior de ações observáveis e dos sentidos socialmente
compartilhados21.
Há, na própria organização narrativa, um recorte parcial da realidade, dando-se maior ou menor
ênfase e visibilidade a certos temas, perspectivas e atores sociais. Tal recorte gera efeitos de sentido
em seus leitores, que podem, pelo menos em parte, ser inferidos a partir da própria estrutura de
uma narrativa e do contexto sociocultural em que ela se desenrola. Segundo Motta15 (p. 2), “quando
o narrador configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força
ilocutiva responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário”. No contexto da narrativa
midiática, isso implica pensar as notícias como algo mais do que simples relatos de uma realidade
objetiva preestabelecida.
Outro elemento central na configuração de uma narrativa, o qual teve papel importante na análise
dos dados aqui apresentados, é o que Motta chama de “conflito”, e que outros autores chamam,
simplesmente, de “problema”. O problema é o elemento estruturador de qualquer relato, o que
também equivale a dizer que todas as narrativas têm, em seu núcleo, algum tipo de problematização
acerca da realidade22,23.
Um problema, tomado num sentido amplo, pode ser um evento específico que merece ganhar
as páginas de um jornal simplesmente para informar os leitores, mas pode incluir, também, um
julgamento de valor a respeito desse evento. É o problema que torna a narrativa necessária como
forma de ordenação da realidade que merece ser relatada e compartilhada, e que, no caso da mídia
impressa em especial, assume-se que vá interessar aos leitores.
Entretanto, nem todas as narrativas, nem mesmo as jornalísticas, apresentam um problema
explicitamente articulado. Ochs e Taylor distinguem ‘narrativas orientadas para um problema’ de
um simples relato, em que não há orientação explícita para problemas. No contexto deste artigo,
entendemos por ‘narrativas orientadas para um problema’ aquelas que são associadas a um julgamento
de valor a respeito de determinado assunto ou evento24. Tal julgamento funciona como um importante
princípio organizador do relato, mobilizando, assim, ainda mais a atenção do leitor. Por exemplo:
incluímos, nessa categoria, matérias nas quais há algum elogio ou alguma crítica a descobertas
científicas, políticas públicas ou terapias; e/ou histórias de preconceito e de discriminação, superação
individual de algum autista, ou luta por parte dos pais. Observamos que, além de apresentarem um
problema mais facilmente identificável, tais narrativas frequentemente suscitavam outras narrativas a
respeito do tema. Quando isso acontecia, passávamos a denominá-las narrativas-gatilho.
Metodologia
A pesquisa foi realizada a partir de uma base empírica de 476 matérias coletadas no arquivo
digital de quatro veículos de mídia impressa de circulação nacional: Folha de S. Paulo, O Estado de
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da invisibilidade à epidemia: ...
S. Paulo, O Globo e Veja. Esses veículos têm linhas editoriais diferentes e trazem também notícias
locais, configurando uma base de dados numerosa e satisfatória para um estudo exploratório. As
palavras-chave de busca foram autista e autismo, e os textos coletados incluem: reportagens, editoriais,
entrevistas, colunas, resenhas de livros ou filmes, artigos de opinião e cartas de leitores. Embora tais
textos tenham formatos e tamanhos diferentes, serão referidos aqui pelo termo matérias. Foram
excluídas da base de dados matérias nas quais esses termos apareciam em sentido metafórico e em
contextos muito distantes do autismo como condição clínica, ou seja, aquelas em que o termo aparece
como categoria de acusação no âmbito da política brasileira. Embora esses usos dos termos ‘autismo’
e ‘autista’ sejam passíveis de análise no contexto das percepções do público leigo sobre autismo, a
inclusão de tais matérias em nossa base demandaria um tipo de análise específica e diferente da que
nos propusemos a conduzir aqui.
O recorte temporal foi de janeiro de 2000 a outubro de 2012, de forma a contemplar marcos
importantes na história do autismo no Brasil e no mundo. Entre esses marcos, estão: a III Conferência
Nacional de Saúde Mental, ocorrida em dezembro de 2001, quando a questão do autismo alavancou
a produção de uma política de saúde mental voltada especificamente para crianças25, e a promulgação
da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Organização das Nações
Unidas (ONU), em dezembro de 200626.
Em 2011, o tema ganhou destaque novamente, com o lançamento de um plano nacional de direitos
das pessoas com deficiência, o “Viver sem limites”27. Embora nem a convenção da ONU nem o “Viver
sem limites” lidem especificamente com o tema do autismo, seu impacto na luta pelos direitos dos
autistas pode ser observado especialmente no debate sobre inclusão escolar. Mais recentemente, em
dezembro de 2012, a inclusão do autismo na agenda dos direitos da pessoa com deficiência ganhou o
estatuto de lei, com a aprovação da Lei no 12.764, em que os autistas são reconhecidos como pessoas
com deficiência para todos os efeitos legais.
As matérias foram analisadas por meio de um questionário elaborado com o auxílio de uma
ferramenta para análise de dados quantitativos e qualitativos. O questionário permitiu o registro e o
cruzamento de informações previamente categorizadas como relevantes, tais como: o contexto ao
qual a matéria se referia (nacional, internacional ou ambos), os temas abordados, os problemas que
suscitavam as narrativas jornalísticas, e as principais esferas e os atores sociais envolvidos.
Além disso, o questionário foi formulado de maneira a identificar elementos que compunham as
estratégias retóricas do texto, como, por exemplo, se a matéria continha relatos pessoais, opiniões de
especialistas, informações sobre tratamento, diagnóstico etc. As matérias em que o autismo aparece
como tema central ou secundário foram separadas daquelas em que há apenas uma simples menção do
termo autismo ou autista, sem que nenhuma discussão ou aprofundamento seja feito a esse respeito.
Por fim, o questionário continha também perguntas que visavam identificar as narrativas orientadas
para um problema, mapeando as matérias que mostravam julgamentos de valor mais evidentes.
A análise das matérias consistiu, inicialmente, na quantificação de certos elementos narrativos, de
forma a identificar continuidades e justaposições temáticas, recompondo, a partir daí, os enredos mais
amplos que perpassam nossa base de dados. Em um segundo momento, estreitou-se ainda mais o
foco para as chamadas narrativas-gatilho e para o modo como elas articulavam problemáticas diversas
em torno do tema do autismo. Entendemos que essas narrativas pontuavam temas e discussões
importantes no campo do autismo, suscitando, portanto, o interesse público e ganhando destaque
nesses veículos de mídia impressa.
Na discussão dos resultados apresentada a seguir, procura-se traçar uma anatomia das principais
narrativas que compõem o texto jornalístico sobre autismo, identificando seus elementos mais comuns,
as estratégias retóricas utilizadas para sua composição e os principais problemas que as movem. Tal
discussão não se pretende exaustiva, tendo em vista a amplitude da base, mas procura traçar os
contornos gerais da construção narrativa da dita “epidemia de autismo” na mídia escrita brasileira, e
apontar seu possível efeito no ativismo político dos pais de autistas.
328
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Rios C, Ortega F, Zorzanelli R, Nascimento LF
artigos
Resultados e discussão
A análise geral dos resultados obtidos mostrou que houve um aumento significativo no número de
matérias sobre autismo no conjunto dos veículos analisados entre 2000 e 2012, como demonstrado no
Gráfico 1.
95
100
80
65
60
56
42
40
20
34
26
9
14
19
20
2003
2004
24
49
23
0
2000
2001 2002
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Gráfico 1. Número de matérias publicadas por ano
Entre as 297 matérias em que o tema central é o autismo, ou há alguma discussão a respeito, a
ciência – e, mais especificamente, as neurociências – aparece como o contexto mais frequente no
qual se desenrolam as narrativas jornalísticas da amostra analisada, com 32%, seguida da saúde, com
23,5%. Embora ciência e saúde sejam áreas bem próximas no que tange à questão do autismo, fez-se
uma distinção entre esses dois campos, de forma a destacar as matérias que tratam, primordialmente,
de pesquisas e de achados científicos relativos, direta ou indiretamente, ao autismo. Assim, as matérias
ligadas à pesquisa científica de uma forma geral serão chamadas de relativas à ciência. Também serão
denominados dessa forma: os achados relacionados ao funcionamento do cérebro de indivíduos
autistas, além dos estudos sobre diagnóstico precoce e tratamento, as possíveis causas genéticas ou
ambientais e, mais recentemente, a perspectiva de cura.
Conforme se observa no Gráfico 2, há um crescimento significativo no número de matérias que têm
o campo científico como foco principal.
Por outro lado, há também um número significativo de matérias que falam do autismo como
uma condição que exige cuidados em saúde. Tais matérias variam em formato e em objetivo, mas
são, geralmente, informativas, descrevendo as características do autismo de uma forma mais ampla,
informando sobre instituições e associações que oferecem tratamento e apoio para as famílias, ou
divulgando um ou outro tratamento específico. Esse tipo de matéria foi classificado como pertencente
ao campo da saúde.
Encontramos, ainda, outras formas de abordagem do assunto autismo, quais sejam: direito
(10,2%), arte e entretenimento (8,8%), educação (7,5%), política (5,7%), entre outros (trabalho, vida
pessoal, tecnologia etc.). Entre aquelas em que há uma simples menção ao termo autismo ou autista,
as de ciência também lideram como tema principal (31,3%), seguidas pelas da saúde (14,5%). Se
considerarmos o percentual de aparecimento desses dois assuntos juntos, chegamos a 45,8% do total
das matérias.
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Gráfico 2. Número de matérias com foco principal no campo científico
Embora a divulgação de informações sobre o autismo de forma abstrata e generalizante seja
comum na base de dados, observa-se, também, o uso frequente (21,64%) de relatos pessoais de
autistas e familiares como estratégia retórica na confecção das matérias. Todavia, percebe-se uma
escassez de relatos de autistas em primeira pessoa (6,1%) e um número ainda menor de relatos de
autistas brasileiros (1,7%). A maioria dos autistas que aparecem falando em primeira pessoa é de
estrangeiros, e conhecidos internacionalmente por terem escrito biografias famosas, militarem pela
causa autista, aparecerem em documentários ou serem profissionais de destaque.
Entretanto, a maior parte dos relatos pessoais não trata de biografias extraordinárias, mas cumpre
uma função ilustrativa, servindo como exemplo singular para algum tema tratado na matéria em
questão. Tais relatos oscilam entre breves comentários pessoais e narrativas biográficas mais extensas.
Neste último caso, o narrador principal acaba sendo o próprio jornalista, que cita trechos do relato
original do ator social entrevistado para a matéria (em quase metade dos relatos, essas citações são de
mães de autistas).
O papel meramente ilustrativo dos relatos pessoais é bastante evidente nas matérias que traçam
um panorama sobre o autismo, ou que versam sobre os benefícios de determinado tratamento. Por
exemplo, uma matéria publicada na revista Veja, com o título de “Olhos nos olhos”, traz uma visão
geral sobre o autismo, tratando mais especificamente da importância do diagnóstico e do tratamento
precoce. A matéria traz fotos, um pequeno quadro com estatísticas, e uma linha do tempo indicando
sinais que podem estar associados ao autismo em cada etapa do desenvolvimento infantil. A história
de um menino autista é o ponto de partida dessa matéria, que se inicia da seguinte forma:
Rafael tem 9 anos. Com dificuldade para se comunicar, só consegue cumprir as tarefas mais
prosaicas do cotidiano se seguir um passo a passo ilustrado com figuras e frases curtas. É
assim para tomar banho, pôr a roupa, escovar os dentes e arrumar a mochila para a escola
– e até para brincar. Alegre e amoroso, está o tempo todo beijando e abraçando a irmã mais
velha, Carolina. [...] Rafael tem autismo e, até pouco tempo atrás, seu comportamento seria
inimaginável para uma criança portadora do distúrbio. As conquistas do menino devem-se ao
diagnóstico precoce da doença.28 (p. 108)
O tema das políticas e dos serviços públicos no Brasil para o tratamento dos autistas apareceu
com razoável frequência na base de dados (19,5%) e foi o que mais gerou as já mencionadas
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narrativas-gatilho. Além disso, em 79,6% dos casos em que uma matéria discute serviços e políticas
públicas, observa-se uma apreciação claramente crítica desses aspectos.
As duas principais áreas em que o autismo é discutido no âmbito das políticas públicas são: saúde
e educação dos indivíduos diagnosticados com transtorno do espectro autista. Entre as menções a
políticas públicas, 44,8% dizem respeito à área de saúde; 37,3%, à área de educação; e o restante se
divide em menções sobre políticas de investimento em pesquisa sobre o autismo, inclusão no mercado
de trabalho, entre outras.
Nas reportagens relacionadas à área da saúde, as críticas focam, sobretudo, no descumprimento,
por parte do governo, de leis e portarias que garantem o atendimento a autistas. Nesse caso, as
narrativas jornalísticas são inicialmente motivadas por batalhas jurídicas para que o Estado cumpra
seu dever de proporcionar atendimento universal, mas acabam misturando queixas em torno da
insuficiência de serviços de saúde de uma forma geral e a respeito da inadequação dos serviços já
oferecidos; ou seja, a percepção de que falta tratamento para os autistas mistura-se à observação de
que os tratamentos oferecidos pelo Estado estão longe de serem adequados.
Uma matéria publicada pelo jornal O Globo, com o título “Os meninos do porão”29, é um bom
exemplo desse tipo de enredo narrativo. Ela funciona também como uma narrativa-gatilho, motivando
várias outras reportagens e cartas de leitores ao longo de algumas semanas. O problema que acionou
a narrativa original foi a história de uma empregada doméstica em São Paulo e sua luta na Justiça para
garantir o tratamento de seu filho, que, nesse caso, necessitava ser internado. Mesmo ganhando uma
liminar que obrigava o governo a custear a internação do menino, o governo se negou a cumprir a lei,
o que gerou ainda mais desdobramentos no caso. Na chamada que o jornal publicou para a matéria
principal, lê-se que a repórter “investigou esse mundo subterrâneo e conheceu o drama de pelo
menos trinta meninos autistas sem tratamento e de suas famílias aterrorizadas e esquecidas pelo poder
público”30 (p. 2). Seguindo esse mesmo tom, as matérias subsequentes trouxeram não apenas o relato
da luta dessa mãe para fazer valer seus direitos como cidadã, mas as histórias de várias outras mães de
autistas de baixa renda e suas dificuldades cotidianas.
O retrato dos autistas descritos nessas matérias difere bastante da matéria da revista Veja
anteriormente citada, e serve para ilustrar outra face da questão do autismo no Brasil – a falta de
atendimento e o descaso do poder público para com os autistas. O texto jornalístico também se inicia
com um breve relato biográfico, não somente de um, mas de alguns autistas:
Rafael, de 25 anos, finge que é passarinho, mas passou a vida trancado. André, 20 anos, reza
dias inteiros e grita o tempo todo. Leandro, 29, engole esponjas de aço e cremes de cabelo.
João Guilherme, 11, come compulsivamente. Eles se automutilam e agridem até suas mães.
Apesar de adultos, serão sempre meninos. Eles têm autismo, transtorno que atinge até 1,8
milhão de brasileiros, segundo estimativas médicas.29 (p. 19)
Há também, nessas matérias, uma breve descrição da estrutura de atendimento para autistas na
rede pública, sem que haja, no entanto, uma discussão mais profunda a esse respeito. Nas matérias
publicadas nos dias seguintes, aparecem os pontos de vista de juristas, representantes do Ministério da
Saúde e de outros pais de autistas não incluídos na matéria original. Em todas as matérias, há apenas
uma breve menção a controvérsias quanto ao tipo de tratamento a ser oferecido na rede pública. De
acordo com um deputado, essa discussão ainda estava sendo feita pela rede pública na época, “são
metodologias estrangeiras e há divergências sobre sua aplicação”31 (p. 12).
Consideradas em seu conjunto, essas matérias se organizam em uma estrutura narrativa de
indignação com o descaso do poder público, em que o autismo não tratado configura uma crise de
saúde pública, o tratamento oferecido pela rede pública é inexistente ou inadequado e, além de tudo,
o governo recusa-se a cumprir a lei.
Embora esse conjunto de matérias tenha sido publicado em 2006, e o debate público sobre o
atendimento às pessoas com autismo tenha avançado desde então, a mesma controvérsia continua
a aparecer em outras matérias. Por exemplo, em 2012, um incidente na Grande São Paulo chegou
aos jornais e levantou, novamente, a discussão sobre o atendimento a pessoas com autismo na rede
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pública. A notícia fala de um adolescente autista que foi esquecido em um centro de reabilitação social.
Um problema de comunicação entre o centro e os pais do adolescente fez com que ele fosse dado por
desaparecido até as 23h do mesmo dia, quando foi encontrado em uma sala escura dentro do centro.
A notícia, que tem como manchete, no topo da página, “Aluno autista é esquecido em sala escura”,
divide-se em matérias32. Logo abaixo da notícia principal, o leitor é informado sobre “o outro lado”
em uma matéria com o título “Secretaria de Assistência Social diz que instaurou sindicância”32. Ao
lado, um pequeno infográfico, com o título “Entenda o autismo e suas formas – apesar de elementos
comuns, efeitos do problema variam muito”32 (p. C5), esclarece ao leitor o que é o autismo. Alguns
desenhos e tópicos com pequenos textos explicativos fornecem estatísticas, sintomas e possíveis
causas. Em outro pequeno quadro, onde se lê “Saiba mais”, outra matéria, com o título de “Em SP,
governo tem que garantir atendimento”, faz críticas ao governo e ao atendimento da rede pública:
Em São Paulo, o governo estadual é responsável por garantir atendimento de saúde, escolar
e assistencial aos autistas, segundo uma decisão da Justiça de 2006. Mas, na prática, o tema
ainda é alvo de ações administrativas e judiciais. São mães que reclamam que os filhos não
recebem as terapias necessárias, que pedem inclusão em escolas adequadas ou o fornecimento
de transporte.32 (p. C5)
Logo abaixo, há uma nota sobre o projeto que define o autista como deficiente. A deputada
federal Mara Gabrilli (PSDB), relatora do projeto, é citada nessa nota, dizendo que “o Brasil nunca
teve nenhum tipo de política pública voltada para o autismo e eles não eram incluídos na legislação
para deficientes”32 (p. C5). Embora o fato que motivou a matéria central não dissesse respeito à falta
de atendimento nem às brigas judiciais para garantir acesso ao tratamento e à educação, a narrativa
jornalística construída em torno dessa notícia é bastante semelhante àquela estruturada a partir da
matéria “Meninos do porão”.
No campo da educação, o tema geral das narrativas é o impacto das políticas ligadas à inclusão
escolar, e prevalece, também, um tom fortemente crítico. Nesse caso, as narrativas a respeito de um
Estado faltoso em fazer cumprir decisões judiciais e em criar condições de implementação das políticas
públicas na área de educação se entrecruzam com uma discussão sobre a própria validade das políticas
de inclusão escolar. A maior parte das reportagens fala do despreparo das escolas públicas para receber
alunos com necessidades especiais, assim como da dificuldade dos pais de encontrar vaga na rede
privada, e trazem relatos de mães sobre o preconceito sofrido por seus filhos no contexto escolar.
Um achado importante da análise é que a fronteira entre serviços de saúde e de educação nem
sempre é clara no caso do autismo, seja nas reportagens sobre autismo de uma forma mais geral,
seja nas reivindicações dos pais por atenção especializada para autistas. As matérias que criticam
a falta de atendimento no sistema público, geralmente, fazem referência à saúde e à educação de
forma conjunta quando mencionam tratamentos: “Não há unidades especializadas para o tratamento
nas redes públicas de saúde e educação”33 (p. A26). Ou, como se vê adiante, ainda na mesma
matéria: “Por trás da falta de programas voltados para o autismo está a desinformação, até mesmo
de autoridades e profissionais de saúde e educação, sobre uma síndrome que não é tão rara”33 (p.
A26). Além disso, há uma tendência dos pais em ver a escola como parte de uma “terapêutica” para
autistas. Por exemplo, ao descrever sua saga em busca da melhor escola para seu filho, uma mãe fala
sobre sua decisão de tentar matriculá-lo numa escola regular: “Como os psicólogos e médicos de
meu filho sugerem que ele tenha um referencial de relacionamentos sociais normais, procurei outras
escolas”34 (p. A3). Nessa perspectiva, a escola é vista menos como um espaço de desconstrução do
preconceito em relação ao autista e como local de possível afirmação da diferença, conforme propõe
a perspectiva da educação inclusiva, e mais como espaço de uma terapêutica focada na adequação do
autista às expectativas sociais mais amplas.
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artigos
Considerações finais
Observamos que o autismo se tornou objeto de crescente atenção na mídia de duas formas
distintas, porém relacionadas. A primeira acontece em função de uma ênfase, cada vez maior, em
sua dimensão neurobiológica, observada no aumento de matérias a respeito de pesquisas científicas
sobre o autismo, especialmente no campo da genética e das neurociências. As matérias que falam do
autismo como uma condição que exige cuidados de saúde também dialogam de perto com a visão
neurobiológica. Por sua vez, esses dois tipos de matéria acabam por reforçar certa narrativa sobre o
autismo em que este é concebido como “uma entidade objetiva independente da sua incorporação em
indivíduos particulares”35 (p. 411). Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto cumprem
uma função ilustrativa, mantendo uma relação próxima com descrições psiquiátricas e neurocientíficas
a respeito do transtorno. Por outro lado, esses relatos facilitam a identificação do leitor com o texto
jornalístico, apresentando respostas e desfechos narrativos possíveis para os desafios que esses leitores
possam estar vivendo em relação a seus filhos.
A segunda forma de visibilidade alcançada pelo autismo, ao longo desse período, destaca-se
pelo efeito dramático que produz nos leitores. As matérias que fazem críticas às políticas públicas,
especialmente nas áreas de saúde e de educação, trazem casos limites de pais desesperados e de
autistas desassistidos pelo poder público. Os relatos sobre autistas que aparecem nesse contexto
abordam o autismo como uma condição extrema que necessita de atenção específica e intensiva.
Tomando-se essas duas formas de visibilidade no contexto de uma discussão mais ampla sobre
as estratégias em saúde e educação para o autismo no Brasil, é possível notar como a percepção de
que há uma epidemia de autismo em curso torna-se ainda mais premente. Diante da abundância de
matérias que falam de pesquisas e tratamento estrangeiros, agrava-se a percepção da escassez de
recursos para lidar com o autismo no Brasil. A mobilização política dos pais e familiares no Brasil vem
se construindo justamente em torno desses dois pilares – a denúncia da falta de serviços especializados
e a divulgação de estudos e metodologias estrangeiras.
Naturalmente, não se pode afirmar que a mídia impressa seja a única responsável por essa
configuração. As redes sociais também têm desempenhado um papel importante nesse sentido16. Mas
o uso da narrativa como categoria de análise nos permite afirmar que a mídia impressa assume um
papel importante nas concepções socialmente partilhadas sobre o autismo no Brasil, não apenas por
veicular informações de cunho científico sobre o tema. Em sua dimensão mais dramática, a narrativa
midiática também sensibiliza o leitor para causas políticas. Tal efeito é especialmente evidente entre
familiares que militam pela causa dos autistas, que não raramente recorrem a clippings de jornais e
revistas para legitimarem e autorizarem suas reivindicações políticas36.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Os autores
agradecem às alunas de pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social
da UERJ, Barbara Costa, Clara Feldman, Fernanda Nunes, e à bolsista de iniciação científica
do curso de Psicologia da UERJ, Tatiana Soares, pelo auxílio na coleta e análise dos dados.
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construcción narrativa del autismo en los medios impresos brasileños. Interface (Botucatu).
2015; 19(53):325-35.
Aunque el autismo no sea una enfermedad contagiosa, se habla de una “epidemia de
autismo”, aludiendo al aumento vertiginoso del número de casos en un corto período
de tiempo. El artículo esboza un panorama de las concepciones socialmente compartidas
sobre el autismo en Brasil, a partir de las narrativas que otorgan visibilidad al tema en los
medios impresos brasileños en el período de 2000 a 2012. Entendemos tales narrativas no
como representaciones de una realidad a priori, sino en su función estructuradora de la
experiencia humana. Por un lado, esas narrativas dan forma y contenido a las cuestiones y
a las controversias vinculadas al autismo en Brasil y, por el otro, contribuyen activamente a
esos debates, puesto que producen determinados efectos de sentido en los lectores.
Palabras clave: Autismo. Narrativa. Medios.
Recebido em 26/05/14. Aprovado em 28/08/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):325-35
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DOI: 10.1590/1807-57622014.0474
artigos
Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE):
elementos para avaliação de projetos sociais em Juazeiro, Bahia, Brasil
Marcelo Silva de Souza Ribeiro(a)
Carla Valois Ribeiro(b)
Ribeiro MSS, Ribeiro CV. Health and prevention at schools: elements for evaluating social
projects in Juazeiro, Bahia, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):337-48.
“Health and prevention at schools” was
a course completion project presented
by this author at the time of being a
student in the multidisciplinary family
health residency program. It was a health
education initiative that promoted a
sexual and reproductive health activity
for adolescents in the municipality of
Juazeiro, Bahia, Brazil. The present
study aimed to analyze the conception,
methodology and results of this project,
taking into consideration its intersectoral
action, health-education interface and
social effectiveness. Timely completion of
this work ensured sustainability for the
project and encouraged participation by
the school community. The ramifications
of the project are shown in the healthcare
and education macropolicies that today
direct the major intersectoral pacts within
this scenario. Thus, an understanding of its
construction is required so that it can be
strengthened.
Keywords: Health. Education. Intersectoral
action. Social effectiveness.
O SPE, à época, apresentado como trabalho
de conclusão de curso (TCC) de Residência
Multiprofissional em Saúde da Família,
pela autora, então discente do programa,
representou uma iniciativa de saúde e
educação, promovendo uma atividade
de saúde sexual e reprodutiva para
adolescentes no Município de Juazeiro/
BA, Brasil. O objetivo deste trabalho
foi analisar o SPE em sua concepção,
metodologia e resultados, considerando
a intersetorialidade, a interface saúde e
educação e a efetividade social. Concluiuse que foi oportuna a garantia da
sustentabilidade do projeto e o fomento
à participação da comunidade escolar. Os
desdobramentos do SPE são visualizados
nas macropolíticas de atenção à saúde e
educação que hoje direcionam as principais
pactuações intersetoriais deste cenário,
demandando a compreensão de sua
edificação para seu fortalecimento.
Palavras-chave: Saúde. Educação.
Intersetorialidade. Efetividade social.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Universidade
Federal do Vale do
São Francisco. Av. José
de Sá Maniçoba, s/n,
Centro. Petrolina, PE,
Brasil. marcelo.ribeiro@
univasf.edu.br
(b)
Secretaria de Saúde de
Pernambuco. Petrolina,
PE, Brasil. carla_valois@
hotmail.com
2015; 19(53):337-48
337
Saúde e prevenção nas escolas (spe): elementos para avaliação...
Introdução
Este estudo está inserido no âmbito da avaliação das políticas públicas diretamente relacionadas à
saúde materno-infantil, por meio da qual é possível compreender as necessidades humanas com vistas
à tomada de decisões neste contexto. Particularmente, a interface saúde-educação tem impactado, nas
politicas públicas e nas ações, temas como: sexualidade, desenvolvimento infantil, relações familiares,
condição de gênero, dentre outros considerados significativos para a superação dos desafios sociais.
Este trabalho partiu, portanto, do entendimento de que as políticas públicas em saúde devem estar
articuladas com a educação, elegendo estratégias de construção coletiva e solidária, sobretudo para
garantir a intersetorialidade das ações e, consequentemente, sua efetividade social. A seguir, alguns
pontos sobre essa articulação e seus respectivos desdobramentos serão depreendidos.
Do ponto de vista das recentes conquistas políticas, a Saúde e a Educação foram considerados
direitos fundamentais e garantidos segundo a Constituição Federal¹, para a qual essas conquistas
também concebem uma relação indissociável em Saúde e Educação incluindo, também, os
pressupostos de cidadania e empoderamento. Um outro ponto a ser destacado é o conceito de
Território segundo Faria e Bartolozzi², que torna possível reconhecer a dinâmica e os dispositivos sociais
que, de modo integrado, subsidiam o enfrentamento das principais vulnerabilidades.
Acredita-se que, na essência da educação, encontram-se os valores de formação humana e social,
sendo a saúde entendida como essencial condição de dignidade humana que requer, para além de
limites orgânicos, dimensões sociopolíticas, territoriais, de convivência e singularidades.
A relação Saúde e Educação para Freire³, portanto, com base no território, dialoga com o mesmo,
problematiza e elabora um saber relacional, como síntese entre os saberes apreendidos na escola da
vida e os proclamados na vida da escola.
A compreensão da relação entre Saúde e Educação, ao constituir-se de direitos de cidadania,
propõe a elaboração de políticas públicas que deem concretude aos compromissos em pauta,
justificadas pela integralidade, e que não podem ser concebidas de forma fragmentada.
O processo de integração entre os setores, portanto, caracteriza-se como um processo de educação
permanente. Considerando a educação como emancipação que propicia o diálogo e aprendizagens
mútuas que facilitam a compreensão da saúde em sentido ampliado, sitiados em um território definido,
segundo o qual Fonseca4 concebe a intersetorialidade, possível a partir da convergência solidária e
corresponsável.
Uma ação governamental que busca apreender todo esse processo de integração é o Projeto
Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE). Tal projeto, lançado pelo Ministério da Saúde5, é uma iniciativa
interministerial, criada em 2003 pelos Ministérios da Saúde e da Educação, cujo objetivo é a promoção
da saúde sexual e reprodutiva com vistas à redução das vulnerabilidades de adolescentes e jovens: às
doenças sexualmente transmissíveis (DST/HIV/Aids), à gravidez não planejada, ao uso de psicoativos.
Além disso, visa fomentar o protagonismo juvenil na participação da elaboração de políticas públicas.
A partir do que foi colocado, este trabalho apresentou uma análise do Projeto Saúde e Prevenção
nas Escolas (SPE), implementado no município de Juazeiro – Bahia, nos anos de 2009, 2010 e 2011, na
perspectiva da interface Saúde e Educação.
A afinidade da pesquisadora, profissional de saúde, com o tema foi motivada pela participação da
mesma nos processos disparados pelo SPE junto a profissionais de saúde e educação. Na oportunidade,
a vivência em discussões relacionadas aos setores saúde e educação suscitou interesse em pesquisar
sobre o assunto. Estudar esta relação é importante quando se vislumbra a potencial ferramenta de
intersetorialidade, essencial para a elaboração de práticas integrais e integradas. A escassez de estudos
que analisem políticas públicas e projetos sociais torna iminente o uso deste tipo de ferramenta de
avaliação, tendo em vista o impacto político e social que estes produzem em seus contextos.
Quanto ao objetivo geral, pretendeu-se analisar o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas em
Juazeiro – Bahia, em sua concepção, metodologia e resultados, disponíveis em documentos oficiais
e institucionais. Dentre os objetivos específicos, buscou-se analisar o Projeto Saúde e Prevenção nas
Escolas considerando os seguintes conteúdos: a intersetorialidade, a interface Saúde e Educação e a
efetividade social.
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artigos
Este estudo apoiou-se em alguns pressupostos. O primeiro é a ideia de que inserir o SPE nas
agendas políticas potencializa práticas já existentes e possibilita a elaboração de novas ofertas,
integrais e integradas. O segundo seria o de que o SPE aproxima sujeitos e subjetividades dos atores
que o protagonizam. Finalmente, o terceiro tem a ver com a ideia de relacionar Saúde e Educação
utilizando o dispositivo SPE promovendo ações intersetoriais socialmente efetivas.
Métodos
O presente estudo constituiu uma pesquisa de base documental de fontes impressas, na
qual, segundo a obra de Laville6, os documentos utilizados incluíram publicações de organismos,
correspondências, dossiês e publicações científicas relacionadas ao Projeto Saúde e Prevenção nas
Escolas. A análise também contemplou a vivência da pesquisadora nos processos disparados pelo
projeto.
Os dados foram acessados a partir de consultas a arquivos públicos situados nas Secretarias
Municipais de Saúde e Educação de Juazeiro – BA. O acesso aos mesmos foi facilitado por ser a
pesquisadora então membro do Grupo Gestor Municipal do SPE. Estes documentos foram relevantes
construções intersetoriais e por tal razão foram selecionados. Optou-se por incluir produções oficiais
e institucionais, nacionais, consonantes aos objetivos da pesquisa, coerentes com a temática SPE,
excluindo-se todos os demais que não convergiam com a mesma. A conveniência do acesso e a
pertinência da escolha foram valiosos critérios de inclusão.
Os conteúdos basilares ao desenvolvimento deste estudo utilizaram como referência: 1) Guia para
a formação de profissionais de saúde e educação do SPE, de elaboração do Ministério da Saúde em
2008, que apresenta uma proposta estrutural e metodológica para implementação do Projeto5; 2)
Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE, constructo que direciona a proposta políticoideológica do Projeto, publicação do Ministério da Saúde do ano 20087; 3) Caderno de Atenção Básica
Saúde na Escola, elaborado pelo Ministério da Saúde em 2009, enuncia o Programa Saúde na Escola
e demonstra estratégias de articulação intersetorial para a promoção da saúde escolar8; 4) Projeto
municipal do SPE, de construção do GGM de Juazeiro em 2009, apresenta a versão preliminar do
processo de trabalho a ser implementado9; 5) Decreto Municipal número 489/2009, da Prefeitura
Municipal de Juazeiro – Bahia, institui o Grupo Gestor Municipal para a implantação e implementação
do SPE, demonstrando suas funcionalidades e nomeando representações intersetoriais para a
composição do referido grupo10; 6) O informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011, de
construção do GGM em 201111, e 7) o instrumento de monitoramento, elaborado pelo GGM em 2011
e apresentado ao Grupo Temático Selo UNICEF12.
Segundo Gil13, a pesquisa documental utiliza materiais que ainda não receberam tratamento
analítico ou ainda podem ser reelaborados. Os documentos considerados de primeira mão, neste
estudo, configuraram-se a partir das publicações oficiais, o projeto municipal de Juazeiro e o decreto
municipal que discorre sobre o SPE. Os documentos de segunda mão, obedecendo aos critérios do
autor, constituíram relatórios de pesquisa e avaliação interinstitucionais, de elaboração do Grupo
Gestor do SPE de Juazeiro.
A análise destes documentos foi imperativa à confecção de aproximações e distanciamentos entre
as fontes, assegurando o alcance dos objetivos desta pesquisa.
O tratamento dos dados seguiu a técnica da análise de conteúdo, sobre a qual Gil13 considerou
possibilitar a elucidação do conteúdo expresso e latente das comunicações. A análise de conteúdo
é desenvolvida em quatro fases: a) pré-análise, com a escolha de documentos; b) elaboração de
hipóteses e preparo de materiais; c) exploração do material que consiste na escolha das unidades,
enumeração e classificação; d) e o tratamento, inferência e interpretação dos dados.
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Saúde e prevenção nas escolas (spe): elementos para avaliação...
Resultados
Os documentos acessados, por suas características elementares, foram aproximados e agrupados da
seguinte forma:
1. Publicações e documentos oficiais: produções interministeriais que discorreram sobre projetos
e programas intersetoriais na perspectiva da interface saúde e educação – Guia para a formação de
profissionais de saúde e educação do SPE5; Manual Diretrizes para a implementação do projeto SPE7;
Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola8.
2. Construtos elaborados pelos atores sociais locais: publicações locais pautadas nas vivências e
demandas locais – Projeto municipal do SPE9; Decreto Municipal 489/200910.
3. Relatórios de avaliação: documentos situacionais para o monitoramento de implementação
do projeto – Informativo Relação das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 201111; Instrumento de
Monitoramento12.
1 Concepção
1.1 Quanto às concepções do primeiro grupo de documentos, o Guia5 orientou a construção
de um saber compartilhado, concebendo o SPE como um marco de integração saúde-educação,
pressupondo a articulação de políticas com vistas à produção de transformações efetivas nas condições
de vulnerabilidade; enquanto o Manual Diretrizes7 contemplou o processo planejado e participativo
das ações e consolidação das políticas públicas norteadas a partir de elementos de intersetorialidade,
apresentando o projeto como um convite a esta integração e demais organizações da sociedade civil,
privilegiando o espaço da escola como cenário de reorientação e inclusão de práticas e construção de
espaços de diálogo como resposta social às vulnerabilidades. O Caderno de Atenção Básica8, por sua
vez, apresentou conceitos de: cooperação e respeito às singularidades, estímulo à intersetorialidade,
compromisso com a integralidade, fortalecimento da participação social.
1.2 Dentre os construtos do segundo grupo, quanto às concepções, o Projeto municipal9 destacou
o SPE como marco de integração saúde-educação, privilegiando a escola como espaço de participação
dos sujeitos: estudantes, famílias, profissionais da educação e da saúde. O Decreto10, em consonância
com o primeiro, instituiu o Grupo Gestor Municipal do SPE considerando seu caráter intersetorial para
a formulação de políticas públicas articuladas, prevendo as atribuições do GGM à luz da efetividade
social, enfatizando a educação inclusiva e a participação da comunidade escolar para a construção do
papel democrático da escola.
1.3 Dentre os relatórios de avaliação, o Informativo11 tabulou a relação nominal das escolas que
participaram da formação SPE nos períodos 2009, 2010.1, 2010.2 e 2011.1, dispondo: a quantidade
de alunos por unidade escolar, a implantação do SPE na unidade, a visita de monitoramento e a
quantidade de professores formados. Sitiou a implantação do SPE no setor educação, sendo as
informações, portanto, limitadas a este setor. A condicionalidade da efetividade social do projeto foi
demonstrada timidamente pela formação de professores e consequente implantação ou não do SPE na
unidade escolar. O documento foi de produção do GGM. O Instrumento de Monitoramento12 também
relacionou escolas e implantação do projeto SPE. Foi elaborado por membros do GGM, mas configurase como um olhar sobre o território da escola. O Quadro 1 sintetiza a Concepção do SPE quanto aos
elementos de intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.
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Quadro 1. Concepções do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.
Concepções
Documentos
Intersetorialidade
Interface Saúde-Educação
Efetividade social
Publicações e
documentos
oficiais
SPE como processo planejado
e participativo das políticas
públicas – elementos de
intersetorialidade (MD)
Estímulo à intersetorialidade,
escola como espaço de
relações (CAB)
SPE como marco de integração
saúde-educação (GF)
Território como espaço de produção
de vida e da saúde, ESF no processo
de cuidado (CAB)
Articulação de políticas com vistas
às transformações efetivas nas
condições de vulnerabilidades (GF)
A escola como cenário de
reorientação e inclusão de práticas
e construção de diálogo como
resposta social (MD)
Construtos
elaborados
pelos atores
sociais
Caráter intersetorial do GGM
(Dec)
Escola como espaço de participação
dos sujeitos (PrM)
GGM para a formulação de políticas
articuladas e integradas (Dec)
Efetividade social a partir do
GGM pela construção do papel
democrático da escola (Dec)
Relatórios de
avaliação
Olhar sobre o Setor Educação
Relação nominal por ano das escolas
e suas peculiaridades (IR)
Relação nominal de escolas
relacionadas à implantação do SPE
(IM)
Pela formação de professores e
implantação do SPE (IR)
GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE;
CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação
das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento
2 Metodologia
2.1 Quanto à metodologia do primeiro grupo, o Guia5 direcionou uma sequência de oficinas que
requer planejamento conjunto e de formação intersetorial para profissionais de saúde e educação,
propondo a inclusão de outros dispositivos sociais, utilizando de metodologia participativa pautada
na emancipação. O Manual Diretrizes7 apoiou a concretização do projeto na formação continuada
de profissionais de saúde e educação, enunciou a formação de grupos de trabalho e elaboração de
Plano de Ação, com suas condições de efetividade. Articulou o impacto das iniciativas na elaboração
dos projetos político-pedagógicos das escolas e da programação das ações em saúde do município. O
Caderno de Atenção Básica8 apresentou conteúdos de intersetorialidade e interface saúde-educação
pelas ofertas de: avaliações clínicas, nutricionais, oftalmológicas, de saúde e higiene bucal, auditiva
e psicossocial, promoção da alimentação saudável, da saúde sexual e reprodutiva, da cultura de
prevenção, redução da morbimortalidade por acidentes e violências, atualização do calendário vacinal,
prevenção e redução do consumo de álcool e do uso de drogas, controle do tabagismo, educação
permanente em saúde, atividade física e inclusão das temáticas de educação em saúde no projeto
político-pedagógico das escolas.
2.2 No segundo grupo de documentos, quanto à metodologia, o Projeto municipal9 demonstrou
o processo de trabalho estruturado a partir de oficinas temáticas com professores e profissionais de
saúde, estabelecendo a formação de periodicidade quinzenal, com as temáticas seguintes: sexualidade,
família, saúde e escola; relações de gênero; anatomia e fisiologia do sistema reprodutor masculino
e feminino/gravidez na adolescência; escola e comunidade juntas na prevenção das DSTs; métodos
contraceptivos e avaliação. O Decreto10 estruturou a composição do Grupo Gestor Municipal do SPE e
normatizou o seu funcionamento.
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Saúde e prevenção nas escolas (spe): elementos para avaliação...
2.3 No terceiro grupo de documentos, o Informativo11 relacionou o quantitativo de 66 escolas
municipais (Gráfico 1) e a evolução histórica do projeto. Em dez escolas, a formação ocorreu em
2009. Em 2010.1 a mesma foi promovida em 11 unidades. Em vinte unidades, a formação ocorreu
em 2010.2. Em 2011.1, 25 escolas foram contempladas com a formação SPE. Dez escolas foram
convidadas e não participaram da formação do SPE (Gráfico 1).
30
25
20
15
10
5
0
2009
2010.1
2010.2
2011
Gráfico 1. Relação das escolas formadas pelo SPE em Juazeiro, Bahia, no
período de 2009 a 2011.
Fonte: GGM, 2011
O Instrumento12 questionou: as parcerias porventura desenvolvidas, a interação unidade escolar X
unidade de saúde da família, o envolvimento da comunidade escolar, as atividades desenvolvidas, as
dificuldades e as sugestões. O Quadro 2 demonstra os principais aspectos abordados pelos documentos
avaliados no que se refere à metodologia utilizada pelo SPE, e o alcance de intersetorialidade, interface
saúde-educação e efetividade social de suas ações.
3 Resultados
3.1 No primeiro grupo de documentos relacionados, o Guia5 direcionou-se ao fomento de
processos de educação permanente de profissionais de saúde e educação, utilizando-se da interface
saúde-educação baseada na intersetorialidade como instrumento de efetividade social das práticas,
superando iniciativas pontuais e gerando projetos inovadores, permanentes e integrados. Já o
Manual Diretrizes7 fundamentou-se na criação e instrumentalização dos Grupos de Trabalho, que
assumiriam compromissos para a efetividade da proposta, destacando a importância da criação de
espaços de participação social e do respeito à autonomia e responsabilidade compartilhada entre
Federação, estados e municípios. Compreendeu as finalidades do projeto com vistas: à redução das
vulnerabilidades às DST, HIV/Aids, gravidez não planejada e a evasão escolar a esta relacionada, o uso
de psicoativos, o fomento ao protagonismo juvenil. O Caderno de Atenção Básica8 enunciou o PSE,
programa que se propunha a alcançar a integração com ensino de competência, a instrumentalização
técnica de professores e funcionários das escolas e dos profissionais da Estratégia de Saúde da
Família, para apoiar e fortalecer as iniciativas, a identificação e a vigilância das práticas de risco, o
monitoramento e a avaliação da efetividade de suas iniciativas, visando melhorar o compromisso das
escolas com a promoção de saúde da comunidade escolar.
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Quadro 2. Metodologia do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.
Metodologia
Documentos
Intersetorialidade
Interface Saúde-Educação
Publicações e
documentos oficiais
Oficinas de planejamento
conjunto, inclusão de
dispositivos sociais (GF)
GTM, GTE, GTF e suas
atribuições (MD)
CAB
Formação para profissionais de
saúde e educação (GF)
Integração saúde-educação
(MD)
Articulação de políticas que
assegurem ações em saúde de
crianças, adolescentes e jovens
(CAB)
Construtos
elaborados pelos
atores sociais
Oficinas temáticas (PrM)
Composição do GGM (Dec)
Formação para profissionais de
saúde e educação (PrM)
Relatórios de
avaliação
Parcerias, envolvimento da
comunidade escolar (IM)
Interação unidade escolar x
unidade de saúde da família
(IM)
Efetividade social
Metodologia participativa e
emancipatória (GF)
Impacto das ações nos projetos
político-pedagógicos das escolas e
ações em saúde (MD)
Inclusão das temáticas de
educação em saúde nos projetos
político-pedagógicos (CAB)
GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE;
CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação
das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento
3.2 O segundo grupo discorreu, em relação ao Projeto9, que, dentre os resultados esperados,
encontravam-se: o apoio técnico, percepção da postura dos profissionais com o tema sexualidade
e relações de gênero, troca de experiências, reflexão sobre os arranjos familiares e a violência intra
e extrafamiliar, sensibilização da comunidade escolar à adoção de condutas preventivas em DST/
HIV/Aids, e reflexão sobre métodos contraceptivos para o exercício da sexualidade com liberdade e
responsabilidade. O Decreto Municipal10 antecipou a ampliação de parcerias visando: a integração de
esforços para a formação integral do educando, fomento à participação juvenil, construção de uma
rede integrada saúde-educação, contribuindo para a sustentabilidade das ações do SPE e consolidação
das políticas públicas de proteção à adolescência e à juventude brasileiras.
3.3 O terceiro grupo de documentos apresentou, no Informativo11, que, em 2009, quatro
escolas (40% das escolas com profissionais formados pelas oficinas do projeto) implantaram o SPE,
e o monitoramento ocorreu em sete escolas, o que representa 80% delas. Em 2010.1, apenas três
escolas (27% das escolas) implantaram o SPE, ao passo que o monitoramento ocorreu em sete
escolas. Em 2010.2, a implantação do SPE ocorreu em três escolas (15% das unidades escolares), e
o monitoramento das ações foi realizado em cinco unidades. Em 2011, nenhuma escola implantou o
SPE, e o monitoramento foi feito em uma escola (4% do total das unidades escolares), o que pode ser
visualizado no Gráfico 2.
O Instrumento12 espacializou que, das 53 escolas relacionadas, 21 implantaram o SPE, o que
indica um percentual de 40%. Dentre as parcerias citadas, encontravam-se: Programa Saúde da
Família (PSF), Guarda Municipal, Universidade, Polícia Militar, Conselho Tutelar, Comunidade Escolar,
Secretaria de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente (SEADRUMA), entre outras. O
Setor Saúde e a interação unidade escolar X unidade de saúde da família foram expressivamente
citados, assim como o envolvimento da comunidade escolar: assistindo palestras e peça teatral,
reuniões, organizando as ações, participando das oficinas, informes, videos, buscando parcerias,
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Saúde e prevenção nas escolas (spe): elementos para avaliação...
em visitas domiciliares, entrega de panfletos, dando suporte aos eventos. Quanto às atividades
desenvolvidas, foram citadas: palestras com pais e alunos, divulgação e elaboração do projeto, danças,
teatros, cordéis, jogos e brincadeiras em sala, confecção de cartazes, seminários, paródias, produções
de texto, projeção de filmes, ação cidadania, produção de CD e DVD.
25
20
15
10
5
0
2009
2010.1
2010.2
2011
Escolas formadas pelo SPE
Escolas que implantaram o SPE
Escolas monitoradas pelo SPE
Gráfico 2. Situação de implantação e monitoramento do SPE.
Fonte: GGM, 2011.
Dentre as dificuldades, foram citadas: restrições no acesso à saúde, centralização da formação
na figura de um profissional, e a consequente não-socialização do conhecimento, ausência de
profissional especialista para ministrar palestra, despreparo de professores para manejar a temática,
espaço físico, distanciamento, falta de interesse e compromisso dos participantes, dificuldade de firmar
parcerias relacionada ao tempo disponível dos profissionais, e o agendamento sucessivo de palestras
não realizadas. Como sugestões, o documento elencou o envio de palestrantes para: a implantação,
união dos núcleos próximos, solicitação de apoio do PSF para realização de palestras, divulgação da
implantação do projeto dentro da escola, inclusão de visitas de profissionais da Unidade de Saúde
da Família no cronograma de horário de trabalho destes profissionais, formação de parcerias com
os postos de saúde. O Quadro 3 espacializou os principais resultados encontrados na avaliação dos
documentos mencionados acima na perspectiva da intersetorialidade, interface saúde-educação e
efetividade social.
Discussão
Quanto às concepções, os documentos do primeiro grupo convergiam para a integração saúdeeducação. O Manual Diretrizes7 para a implementação do projeto SPE aponta para a intersetorialidade
construída a partir da articulação solidária e participativa, o que convergiu com o Caderno de Atenção
Básica Saúde na Escola, que retomou, também, a ferramenta do território para o alcance da efetividade
social entre as ações propostas. Este conteúdo também foi apontado por todos os documentos
analisados do primeiro grupo.
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Resultados
Documentos
Intersetorialidade
Publicações e
documentos
oficiais
Interface Saúde-Educação
Efetividade social
O GF utiliza a interface saúde-educação baseada na intersetorialidade como instrumento de efetividade
social de práticas
O MD fundamenta-se na criação de grupos de trabalho que assumem compromissos com a efetividade da
proposta
O CAB enuncia o PSE como integração escola-ESF visando melhorar o compromisso das escolas com a
saúde da comunidade escolar
Construtos
elaborados
pelos atores
sociais
Relatórios de
avaliação
artigos
Quadro 3. Resultados do SPE sob a luz da intersetorialidade, interface saúde-educação e efetividade social.
Parcerias PSF, NECOM,
Guarda Municipal, UNIVASF,
PM, Conselho Tutelar, ACS,
Comunidade Escolar, CAPS,
Secretaria de Agricultura,
SEADRUMA, SIAN,
Agrovale, Secretaria de
Desenvolvimento (IM)
Rede integrada saúde-educação para
redução dos agravos à saúde da
população jovem (Dec)
Exercício da sexualidade com
liberdade e responsabilidade (PrM)
Fomento à participação juvenil para
transformação da realidade (Dec)
A parceria com o setor saúde foi citada
no IM. A interação unidade escolar x
unidade de saúde da família.
A restrição do acesso à saúde,
ausência de profissional especialista.
Sugestão de apoio técnico do PSF,
inclusão de visitas do PSF, formação de
parcerias com os postos de saúde (IM)
Implantação do SPE (IR)
Compromisso dos partícipes,
interesse, tempo disponível
dos profissionais, interesse da
comunidade sobre a questão
ambiental, centralização da
formação na figura de um
profissional, e a não-socialização do
conhecimento (IM)
GF= Guia para a formação de profissionais de saúde e educação do SPE; MD= Manual Diretrizes para implementação do projeto SPE;
CAB= Caderno de Atenção Básica Saúde na Escola; PrM= Projeto municipal do SPE; Dec= Decreto Municipal 489/2009; IR= Informativo Relação
das Escolas – SPE – 2009, 2010 e 2011; IM= Instrumento de Monitoramento
O território, para Fonseca4, é espaço e lugar construído socialmente, de conteúdo social, político e
ambiental sobre o qual é possível atuar, eleito como estratégia para a coleta e organização de dados
sobre ambiente e saúde, considerando os processos sociais e ambientais que transcendem esses
limites. Sua peculiaridade mais importante é ser uma área de atuação, de fazer, de responsabilidade. O
território é espaço comum para o qual convergem todos os setores sociais, sendo, portanto, elemento
precioso para a compreensão das condições de vida e da dinâmica social. Esta fundamentação parece
sustentar o seu uso pelos documentos analisados, sobretudo para a construção de planos de ação para
a efetividade das práticas sugeridas.
A compreensão de território precede a compreensão de intersetorialidade, relacionada à interação
e articulação entre todas as coisas, fazendo daquele um lugar saudável. A intersetorialidade é
um processo de construção partilhada no qual diversos setores conjugam saberes e modos de
fazer nucleares, porém abertos ao diálogo e à corresponsabilidade e cogestão para a melhoria do
aparelhamento público. Segundo Barros e Castro14, deve responder às necessidades em saúde da
população, sendo precedida de processos de levantamento diagnóstico, planejamento e avaliação
participativa.
A efetividade social, entre os documentos do segundo grupo, foi apontada apenas pelo Decreto
municipal7. Este conceito, segundo Belloni15, refere-se a critério de avaliação em políticas públicas
que procura dimensionar os resultados da política pública, tanto econômicos quanto sociais. Estes
resultados têm de ser compatíveis com as necessidades sociais e técnicas do mundo do trabalho.
Já a interface saúde-educação foi também prevista pelo Projeto municipal9, de modo similar
ao Decreto10, que se direciona para a formulação de políticas integradas a partir de elementos de
intersetorialidade.
A intersetorialidade foi parcialmente prevista, entre os documentos do terceiro grupo, por serem
estes propostas relacionadas diretamente ao setor educação. Enquanto o Informativo11 apontou para
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Saúde e prevenção nas escolas (spe): elementos para avaliação...
um panorama geral do SPE na educação no município, o Instrumento apresentou possiveis articulações
com outros setores da sociedade. A efetividade social, em ambos os documentos, foi condicionada
pela implantação do SPE a partir da formação de profissionais. A interface saúde-educação foi
timidamente visualizada no Instrumento pela relação da interação das unidades escolares e unidades
de saúde da família e envolvimento da comunidade escolar, atividades desenvolvidas, dificuldades e
sugestões apontadas pelo documento.
No primeiro grupo de documentos, a intersetorialidade foi contemplada por todos os documentos
analisados, bem como a interface saúde-educação. A efetividade social também foi apontada por
todos os documentos, orientados para a inclusão das políticas pelos projetos político-pedagógicos das
escolas e na programação em saúde.
A efetividade social esteve presente, também, no segundo grupo de documentos, objetivada mais
claramente pelo Decreto10. A interface saúde e educação foi prevista por ambos os documentos, e a
intersetorialidade é assegurada pela organização do GGM, planejamento e implementação do projeto.
Ainda relacionado à intersetorialidade, o terceiro grupo de documentos lançou um olhar sobre o
setor educação no município de Juazeiro, limitando a visualização deste elemento em seus conteúdos.
A interface saúde e educação também foi timidamente apresentada pelo Instrumento12, enquanto a
efetividade social, também limitada nesse estudo, foi apresentada pelos dois documentos.
No primeiro grupo de documentos, assim como no segundo grupo, a intersetorialidade, a interface
saúde e educação, e a efetividade social foram previstas em todos os documentos analisados.
No terceiro grupo de documentos, o Informativo apresentou a efetividade a partir da formação
e consequente implantação do SPE pelas unidades escolares, nos anos 2009, 2010 e 2011, sendo
este indicador demonstrado a partir de baixos percentuais entre a quantidade de escolas formadas
pelo SPE e a quantidade de escolas que o implantaram. O monitoramento desenvolvido nas escolas
formadas também é indicador de efetividade do projeto. O mesmo, segundo o documento em
questão, também apresentou números pouco significativos. Para o Instrumento12, a efetividade social,
traduzida parcialmente nos 40% de implantação do SPE pelas escolas formadas pelo processo SPE,
demonstrou pouca adesão ao projeto. Quanto à intersetorialidade, a presença de outros segmentos
da sociedade civil nos processos de planejamento e execução de atividades demonstrou que este
elemento esteve presente nos espaços disparados pelo SPE. A articulação com o Setor Saúde e a
interação unidade escolar X unidade de saúde da família surgiu de modo significativo na relação
nominal, demonstrando que os atores que protagonizam o SPE talvez desconheçam que já faz parte
do seu processo de organização e implementação, além de previsto e pré-requisito que o Setor Saúde
o operacionalize de modo solidário com o Setor Educação. A participação da comunidade escolar foi
citada de modo incipiente, sendo importante salientar, dentre as dificuldades citadas, a necessidade
de disponibilização de profissionais de referência para a realização de palestras. O projeto SPE
pressupunha a sustentabilidade de sua proposta, o que talvez não tenha sido esclarecido aos atores.
Desse modo, são os próprios sujeitos e dispositivos sociais que integraram o SPE que o desenvolviam,
inclusive metodologicamente.
Conclusão
A conclusão do presente estudo coincidiu com a aposta de inserir o Projeto Saúde e Prevenção
nas Escolas (SPE) como políticas e práticas potentes, fortalecendo ações e orientando processos de
educação permanente que conjugam atores e suas itinerâncias.
A experência SPE em Juazeiro apontou para o desenrolar de uma ação coplanejada por dois
segmentos sociais, o setor saúde e educação. Sua construção e implementação apoiou-se nesta
configuração, sendo, portanto, uma aposta intersetorial que, em sua concepção e metodologia,
apresentou-se coerente com a proposta inicial, interministerial. Em seus resultados, o SPE emergiu por
intervenções e reorientações que ressignificassem a essência do projeto e a colocassem em pauta junto
aos protagonistas que o operam.
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A avaliação do SPE enquanto um projeto social contemplou admitir que a interface saúde e
educação é possível considerando quais transformações sociais ela pode realizar, quem as realiza e por
quê. Nesse sentido é que a avaliação permite elencar as melhores estratégias para que se alcancem
os objetivos aos quais uma política está relacionada. Em Juazeiro, a integração saúde e educação
foi possível e as transformações alcançadas, justamente porque houve efetivação da educação
permanente e a implantação do SPE pelas escolas formadas.
Este estudo demandou a construção de espaços destinados à educação permanente, garantindo
o encontro e a multiplicação das iniciativas pelos sujeitos implicados com o SPE, além de assegurar
sua sustentabilidade reafirmando as ações encabeçadas por seus protagonistas. A pesquisa considerou
oportuno fomentar a participação da comunidade escolar, sobretudo o protagonismo juvenil, e
partilhar da responsabilidade sanitária com os demais segmentos sociais que compõem cada território.
Este trabalho, ao relatar a experiência do SPE em Juazeiro, reconheceu a limitação do seu estudo
por se optar pela pesquisa documental, sendo de especial valia uma varredura mais detalhada sobre
estes discursos, por quem fez o SPE acontecer. Por este motivo, este estudo não se esgotou por aqui, e
carece de informações que o complementem.
É importante ressaltar o incansável trabalho do Grupo Gestor Municipal de Juazeiro que,
aprendendo com os próprios passos, soube mediar e conduzir o projeto SPE, com persistência,
coragem e enfrentamento.
Saúde e educação, hoje, dialogam como instrumentos de cidadania, que se relacionam entre
si, conjugando a fluidez de uma rede, as práticas integrais e integradas, reorientações para o
empoderamento e a transformação social. As iniciativas em saúde precisam contemplar, ainda, o setor
educação, e vice-versa. Esta é uma relação indissociável para a garantia dos direitos fundamentais, tão
inclusos nas agendas políticas atuais, e que para, se tornar realidade, demandam esforços coletivos.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
Referências
1. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Brasília (DF):
Senado Federal; 1988.
2. Faria RM, Bortolozzi A. Espaço, território e saúde: contribuições de Milton Santos para o
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19(53):337-48.
El SPE presentado por la autora como TCC de Residencia Multi-profesional en Salud de
la Familia, que en aquella época era alumna del programa, representó una iniciativa de
salud y educación, promoviendo una actividad de salud sexual y reproductiva para los
adolescentes en el municipio de Juazeiro/Estado de Bahia, Brasil. El objetivo fue analizar
el SPE en su concepción, metodología y resultados, considerando la intersectorialidad,
la interfaz entre salud y educación y la efectividad social. Este trabajo concluyó que era
oportuna la garantía de sostenibilidad del proyecto y del fomento para la participación de
la comunidad escolar. Los desdoblamientos del SPE se visualizan en las macro-políticas de
atención a la salud y educación que hoy dirigen los principales pactos intersectoriales de
este escenario, exigiendo la comprensión de su construcción para su fortalecimiento.
Palabras clave: Salud. Educación. Intersectorialidad. Efectividad social.
Recebido em 09/07/14. Aprovado em 27/08/14.
348
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):337-48
DOI: 10.1590/1807-57622014.0330
artigos
Residência Multiprofissional em Saúde da Família:
concepção de profissionais de saúde sobre a atuação do nutricionista*
Irani Gomes dos Santos(a)
Nildo Alves Batista(b)
Macarena Urrestarazu Devincenzi(c)
Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU. Multiprofessional residency in family health: the
conceptions of healthcare professionals regarding nutritionists’ performance. Interface
(Botucatu). 2015; 19(53):349-60.
Multiprofessional residency in family health
is developed within the Family Health
Strategy (FHS) and prioritize training and
production of care technologies, thereby
qualifying the Brazilian National Health
System (SUS). In this setting, nutritionists
promote dietary and nutritional actions
aimed towards the local epidemiological
profile. The aim of this study was to show
the conceptions of healthcare professionals
regarding nutritionists’ performance in the
FHS, subsequent to nutritionists’ inclusion
in the residency program. This was a
cross-sectional, exploratory, descriptive and
analytical study, involving the participation
of 13 professionals. The data-gathering
technique comprised semi-structured
interviews and content analysis. It was
shown that the low degree of inclusion of
nutritionists in this strategy contributed
towards poor understanding of their
performance. Nevertheless, their specificity
was valued, considering their differentiated
view of situations concerning nutrition,
thus broadening the possible scenarios for
action, especially towards promotion and
prevention.
Keywords: Nutritionist. Family Health
Program. Internship. Residency.
A Estratégia Saúde da Família (ESF) é o
local para desenvolvimento das Residências
Multiprofissionais em Saúde da Família,
que primam pela formação e produção
de tecnologias do cuidado, qualificando
o Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse
cenário, o nutricionista promove ações
de alimentação e nutrição voltadas para
o perfil epidemiológico local. O objetivo
do trabalho foi mostrar concepções de
profissionais de saúde em relação à atuação
do nutricionista na ESF após sua inserção
em residência. Participaram 13 profissionais.
Trata-se de estudo exploratório, descritivo,
analítico, corte tipo transversal, tendo como
técnica de coleta de dados a entrevista
semiestruturada e a análise de conteúdo.
Evidenciou-se que a pequena inserção de
nutricionistas nesta estratégia contribuiu
para uma compreensão pouco clara de
sua atuação. Porém, sua especificidade
foi valorizada considerando seu olhar
diferenciado para situações voltadas para a
Nutrição, fazendo ampliar possibilidades de
cenários de atuação, sobretudo dirigidas à
promoção e prevenção.
Palavras-chave: Nutricionista. Programa
Saúde da Família. Internato. Residência.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Elaborado com base
na dissertação de
Mestrado da primeira
autora, “Residência
Multiprofissional
e a formação do
nutricionista para o
Programa Saúde da
Família”, defendida
em 2009 na Escola
Paulista de Medicina,
Universidade Federal de
São Paulo.
(a)
Faculdade Santa
Marcelina, Unidade
de Ensino Itaquera.
Rua Cachoeira de
Utupanema, 40.
São Paulo, SP, Brasil.
08062-340. iraninutri@
gmail.com
(b)
Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp).
São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
(c)
Departamento de
Gestão e Cuidados em
Saúde, Campus Baixada
Santista, Unifesp.
Santos, SP, Brasil.
macarena.devincenzi@
unifesp.br
*
2015; 19(53):349-60
349
residência multiprofissional em saúde ...
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído após vários anos de movimento sanitário, em meio à
crise do setor da saúde, com suas incongruências, desarticulação e dificuldades em prestar assistência
razoável à maioria da população. Sua origem data de 1988, após a 8ª Conferência Nacional de Saúde,
que embasou o texto da Constituição do mesmo ano. Desde então, a luta para que seus princípios de
universalidade, equidade e descentralização sejam respeitados1 configura elemento de importância e
destaque na política de saúde.
No entanto, esse sistema não tem sido capaz, por si só, de colocar em prática as garantias
já conquistadas legalmente. É evidente a magnitude dos problemas de saúde do povo brasileiro
ocasionados por fatores ambientais, biológicos, físicos e sociais, decorrentes e permanentemente
agravados pela crise social dos últimos anos, cuja repercussão direta se traduz em aumento da
violência, desemprego e exclusão2.
Devido à necessidade de consolidação do SUS, tem início, em 1994, a implantação do Programa
Saúde da Família – PSF1,3, como instrumento para reorganização do SUS e da municipalização. Em
1997 e 1998, novos documentos publicados pelo Ministério da Saúde reforçam o entendimento do
PSF como estratégia para reorganização da atenção básica, implantada a fim de trazer uma nova
concepção de saúde, voltada para a promoção da qualidade de vida, resgatando, então, os princípios
do SUS, visando melhorar e ampliar o atendimento à população4.
Apesar de ser uma estratégia recente, segundo Mano1, no PSF (agora conhecido como Estratégia
Saúde da Família – ESF), já é possível ver e questionar alguns princípios que fizeram parte de sua
implantação, entre eles: possibilidade de expansão da equipe básica, carência de profissionais (caráter
quantitativo e qualitativo), redimensionamento das áreas e multiprofissionalidade.
Ao se considerar a carência qualitativa dos profissionais, surgem algumas modalidades como
forma de potencializar o trabalho desenvolvido na ESF, como: cursos de Especialização em Saúde da
Família, destinados a profissionais de nível Superior, capacitação da equipe e criação de Residências
Multiprofissionais em Saúde da Família5.
Frente à crescente demanda do setor saúde e à possibilidade de utilizar o espaço desses serviços
como campos para o ensino e pesquisa, foram instituídas as Residências Multiprofissionais (específicas
ou multiprofissionais), com o intuito de formar e produzir tecnologias do cuidado, aspectos
importantes para a qualificação do SUS6.
As Residências Multiprofissionais têm com principal objetivo desenvolvimentos de ações por
profissões voltadas para a área da saúde, sobretudo as áreas prioritárias (Biomedicina, Ciências
Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária,
Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional), visando a qualificação desses
profissionais da saúde no SUS a partir das necessidades de saúde da população, com a finalidade de
transformação da realidade6.
Segundo levantamento realizado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde
(SGTES) e Diretoria Executiva de Gestão do Ensino Superior – DEGES7, os programas de Residências
Multiprofissionais em Saúde, financiados pelo Ministério da Saúde, estão presentes nas regiões Norte
(Rondônia), Nordeste (Bahia, Maranhão, Pernambuco, Sergipe), Sul (Paraná, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina) e Sudeste (Minas Gerais, São Paulo). A proposta das Residências Multiprofissionais em Saúde
vem sendo a cada ano mais conhecida e aprimorada.
Os programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Família diferem das outras Residências
Multiprofissionais, pois têm como loco de atividades o cenário da Atenção Básica; podendo contribuir
com a revisão do modelo assistencial, pois formam um novo perfil do profissional de saúde,
humanizado e preparado para responder às necessidades de saúde dos usuários, família e comunidade,
permitindo a contribuição para a construção de novos paradigmas de assistência à saúde, ampliando a
resolutividade da Estratégia Saúde da Família7.
Em algumas Residências Multiprofissionais em Saúde da Família, o nutricionista encontra-se
inserido, abrindo espaço para desenvolver suas relevantes atribuições diante do atual perfil nutricional
da população brasileira.
350
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):349-60
Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU
artigos
Atualmente, vários países, inclusive o Brasil, vivenciam rápida transição epidemiológica e
nutricional, marcada pela coexistência da desnutrição com o aumento da prevalência da obesidade,
sobrepeso, carências nutricionais e alta incidência de doenças crônicas não transmissíveis8, gerando
sobrecarga ao SUS por demandarem grande número de ações, procedimentos e serviços de saúde,
sobretudo quando envolvem doenças crônicas9.
A transição nutricional associada com a epidemiológica está estreitamente relacionada: ao
sedentarismo, alto consumo de alimentos industrializados, fast food, menor ingestão de frutas,
verduras e legumes, e consumo elevado de gorduras saturadas9,10.
As ações de promoção à saúde e prevenção de agravos são particularmente relevantes diante desse
fenômeno, que traz a inversão na tradicional distribuição dos problemas nutricionais associada ao
padrão de determinação de doenças atribuídas à modernidade11.
Esse fenômeno é atualmente considerado um dos maiores desafios das políticas públicas, uma vez
que faz surgir a necessidade de um modelo de atenção à saúde pautado na integralidade do indivíduo
e sua família, com abordagem centrada na promoção da saúde9.
Considerando que, na ESF, o atendimento ao usuário e sua família é realizado de forma integral e
contínua, buscando desenvolver ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, enfocando
o ambiente físico e social, percebe-se essa estratégia como um espaço de atuação do nutricionista,
por ser um profissional apto a trabalhar conceitos e estratégias que abordem assuntos pertinentes à
alimentação e nutrição12-14, contribuindo para recriar práticas de atenção à saúde no Brasil. O princípio
de integralidade também justifica abordar ações de alimentação e nutrição, uma vez que elas têm por
finalidade elevar a qualidade de vida da população13.
No entanto, esse cenário de atuação para o nutricionista é ainda muito recente, fazendo-nos
questionar como se desenvolve a atuação deste profissional ao ser inserido na ESF. Assim, este artigo
objetivou investigar as concepções de profissionais de saúde, inclusive nutricionistas, em relação
à atuação do nutricionista na Estratégia Saúde da Família após sua inserção em um Programa de
Residência Multiprofissional em Saúde da Família.
Métodos
O estudo apresentado é um recorte da dissertação intitulada Residência Multiprofissional e a
formação do nutricionista para o Programa Saúde da Família, elaborada para obtenção do título de
Mestre Profissional em Ensino em Ciências da Saúde pelo Centro de Desenvolvimento do Ensino
Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O cenário escolhido para o estudo foi a Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF),
desenvolvida em parceria com Ministério da Saúde, Faculdade Santa Marcelina e Casa de Saúde Santa
Marcelina, entre os anos de 2005 a 2007. Nesse período, a referida Residência absorveu noventa
profissionais de dez categorias, com, no máximo, dois anos de formação de nível Superior na área da
Saúde e Serviço Social, sendo elas: Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina,
Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional.
Para atingir o objetivo almejado, os sujeitos da pesquisa foram egressos que participaram da RMSF,
gestão 2005-2007, e que desenvolveram suas atividades juntamente com nutricionistas, totalizando
13 indivíduos, escolhidos em sorteio aleatório. Os participantes incluídos foram: um médico, um
enfermeiro (tutor), um fisioterapeuta, um fonoaudiólogo, um terapeuta ocupacional, um farmacêutico,
um odontólogo e seis nutricionistas (residentes).
O presente estudo é do tipo exploratório, descritivo, analítico, corte tipo transversal, com
abordagem qualitativa. Os dados foram coletados em 2008, tendo, como instrumento de coleta,
a entrevista semiestruturada com igual teor para todos os participantes. As principais questões
contempladas no estudo que se relacionam com a atuação do nutricionista na Estratégia Saúde da
Família foram: a) Em sua concepção, qual é a atuação do nutricionista em Unidades de Saúde da
Família?; b) A partir da vivência com a atuação do nutricionista, descreva uma situação que você
presenciou que demonstre a atuação desse profissional.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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351
residência multiprofissional em saúde ...
As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente, sendo posteriormente analisadas
com base na Análise de Conteúdo, cujo objetivo é obter indicadores que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção de um conjunto de mensagens, por meio
de procedimentos sistemáticos e objetivos. Diante dos pressupostos da técnica de análise de conteúdo,
optou-se pela análise temática, por se perceber que a utilização do tema, enquanto unidade de análise
para a interpretação das respostas de determinados grupos de pessoas, resulta em grande número de
respostas permeadas por diferentes significados15.
A análise dos dados respeitou os seguintes preceitos: pré-análise, definição das unidades de
análise (unidade de contexto e unidade de registro) e categorias de análise. Foi escolhido o critério de
categorização semântica, uma vez que a “proposta foi selecionar categorias, agrupando-as conforme
o significado dos temas, sendo posteriormente confrontadas com achados de outras investigações
sobre o assunto”15 (p. 62). Todas as categorias encontradas na pesquisa emergiram das falas dos
entrevistados, não tendo sido, portanto, criadas a priori.
Para preservar o sigilo dos participantes, eles foram identificados por ordem sequencial de 1 a
13, e suas falas marcadas, também, por ordem sequencial de acordo com a unidade de registro, por
exemplo: entrevistado 1 - unidade de registro 15 (E1- UR15).
O estudo teve aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade Santa Marcelina,
instituição que chancela a Residência Multiprofissional em Saúde da Família, do Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, e aceite por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, assinado pelos participantes do estudo.
Resultados e discussão
Os participantes deste estudo são predominantemente do sexo feminino (92,3%), com idade entre
25 e 35 anos. No que se refere ao tempo de formação dos sujeitos, verificou-se que 53,8% (n = 7)
estão formados há cerca de quatro anos; 23,1% (n = 3) concluíram a faculdade há três anos, seguidos
por 7,7% de profissionais formados há cinco (n = 1) , sete (n = 1) e 11 (n = 1) anos.
Ao serem questionados sobre maior titulação, foram encontrados 100% de especialistas, sendo
também unânime a participação em Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família
de caráter lato sensu. No momento da pesquisa, apenas três profissionais (23,1%), participantes
do estudo, trabalhavam na Estratégia Saúde da Família, há dez, quatro ou dois anos. Os demais
aguardavam processo seletivo ou haviam mudado o campo de atuação.
As questões apresentadas neste estudo fizeram emergir a concepção dos entrevistados sobre
a atuação do nutricionista na ESF, considerando sua vivência durante o período de Residência
Multiprofissional em Saúde da Família. Foram encontradas 68 unidades de contexto, que resultaram em
111 unidades de registro, das quais, por sua vez, emergiram seis categorias de análise: Compreensão
pouco clara da atuação do nutricionista; Valorização da atuação específica; Visão ampliada de cenários
de atuação; Atuação na promoção e prevenção; Atuação na perspectiva multiprofissional; Atuação
favorecida pela dinâmica do processo de trabalho da ESF. A seguir, cada categoria é apresentada e
discutida à luz da literatura científica.
Compreensão pouco clara da atuação do nutricionista
As falas sinalizam que a atuação do nutricionista ainda é pouco conhecida. Vale ressaltar que como
46,2% (n = 6) dos entrevistados eram nutricionistas, as respostas puderam expressar a necessidade
que os próprios profissionais possuem em ter suas atribuições conhecidas e serem reconhecidos pelos
demais da equipe de saúde. Contudo, ao se analisarem os dados não diferenciando as profissões,
percebe-se que a presença desse profissional pode levar a uma abrangência de atendimento,
independentemente da complexidade ou linha de cuidado em que o usuário se encontra. As falas
analisadas manifestam que essa compreensão incipiente certamente é potencializada pela Ausência
352
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU
artigos
do profissional na ESF, repercutindo na dificuldade, em alguns momentos, de entendimento de quais
atividades são, de fato, pertinentes à atuação do nutricionista, visto que esse profissional encontravase inserido no momento do estudo apenas no programa de pós-graduação.
“[...] se espera muito do nutricionista por ser um profissional novo e quando a equipe não
consegue dar suporte para aquilo, acaba sendo dele”. E1 - UR4
Outro ponto apreendido diz respeito à dificuldade de se desenvolverem ações quando se
desconhece o caminho a seguir, ou seja, falta de direcionamento para a atuação na ESF, tanto de
atividades específicas (área de Nutrição) quanto pela pouca compreensão dos demais profissionais
inseridos nessa estratégia, podendo, às vezes, limitar o desenvolvimento das ações. Vale ressaltar que
a subcategoria intitulada falta de direcionamento para a atuação está intimamente atrelada à ausência
do profissional Nutricionista na Estratégia da Família durante o desenvolvimento da Residência
Multiprofissional no momento da coleta desses dados. Portanto a ausência desse profissional como
parte integrante da ESF fez com que houvesse a inexistência de um trabalho estruturado, no qual o
residente pudesse se espelhar para desenvolver ou aprimorar suas ações diárias. Essa condução para
desenvolvimento de atividades foi criada a partir da demanda local e ações propostas pela Politica
Nacional de Alimentação e Nutrição.
A pequena inserção do nutricionista na ESF foi considerada, por Santos13, como um dos motivos
da falta de conhecimento de suas funções e atribuições por outros profissionais, mesmo considerando
o atual perfil epidemiológico da população brasileira, caracterizado pelo assustador crescimento de
doenças crônicas não transmissíveis, deficiências nutricionais, e sua estreita relação com hábitos de
vida e alimentação não saudáveis8,16.
Tais dados vão ao encontro de um levantamento realizado pelo Conselho Federal de
Nutricionistas17, em que se constatou que a área de abrangência do Conselho Regional de
Nutricionistas (CRN7), a qual contempla os estados de Pará, Rondônia, Roraima, Amazonas, Amapá
e Acre, é onde se verifica o maior índice de inserção do nutricionista em Saúde Pública, sendo de
19%. Apesar de ser considerada uma porcentagem baixíssima, esse valor é ainda mais expressivo se
comparado a outras regiões onde a frequência é inferior a 12%. Esse fato também foi verificado na
pesquisa realizada por Akutsu18. Dos 587 nutricionistas brasileiros que participaram do estudo, apenas
sessenta atuam na área de Nutrição Pública.
Percebe-se que os estudos citados reforçam a pequena inserção deste profissional em Saúde
Pública. Ressalta-se ainda que, nessa área, não foram encontrados trabalhos demonstrando quantos
nutricionistas atuam especificamente na ESF em todo o Brasil. Esses números atualmente encontram-se
alterados tendo em vista a criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), onde é possível a
inserção deste profissional. O NASF é constituído por uma equipe multiprofissional agindo diretamente
no apoio às equipes e na unidade de saúde da família, com o objetivo de ampliar a abrangência e o
foco das ações de atenção básica, melhorando a qualidade e a resolutividade da atenção à saúde19.
Em 2005, o Conselho Federal de Nutricionistas20 estabeleceu as atribuições do nutricionista em
diversos campos de atuação, nos quais está incluída a Saúde Pública, considerando a ESF como
integrante desse cenário. É fato que a resolução emitida pelo CFN representou um importante ganho
para a profissão; no entanto, quando os relatos abordam a falta de direcionamento para atuar na
ESF, referem-se à dificuldade de se desenvolverem essas atribuições, uma vez que, dificilmente, há
diretrizes sobre como atuar especificamente nessa estratégia. Para Boog21, apesar de a resolução estar
em vigor, faz-se necessário considerar que o processo de institucionalização depende da criação de
uma nova realidade de atuação.
Diante desse cenário, Santos13 pontua o momento da Residência em Saúde da Família como
oportuno para a atuação do nutricionista em equipes de saúde da família, para divulgar suas ações
e ampliar seu campo de trabalho. Essa nova área de atuação deve possibilitar que o profissional
demonstre desprendimento, ousadia, envolvimento e criatividade.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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residência multiprofissional em saúde ...
Valorização da atuação específica
Apesar de a ESF constituir um campo de atuação no qual o trabalho multiprofissional é
fundamental, as falas dos entrevistados ressaltam a necessidade de atuação específica como ponto
primordial nas ações desenvolvidas pelo nutricionista, uma vez que sua especificidade traz um
conhecimento técnico próprio de sua profissão. Vejamos algumas:
“[...] com a presença da nutri, como ela já conhece mais específico de alimentos, a pessoa
começa a entender melhor, capta melhor tudo isso, e é mais completa a abordagem [...]”. E8 UR67
“[...] segundo SIAB, a gente tinha nenhum ou um ou dois desnutridos, então a intervenção
e o olhar com ela na equipe pôde permitir que a gente fizesse esse diagnóstico e intervenção
direcionada”. E11 - UR90
Os destaques dos relatos referentes ao conhecimento específico do nutricionista vêm ao
encontro das competências previstas em sua formação, que contemplam, entre outras vertentes: a
capacidade de avaliar, diagnosticar e acompanhar o estado nutricional; planejar, prescrever, analisar,
supervisionar e avaliar dietas e suplementos dietéticos para indivíduos sadios e enfermos; bem como
realizar diagnósticos e intervenções na área de alimentação e nutrição, considerando as influências
socioculturais e econômicas que determinam a disponibilidade, o consumo e a utilização biológica dos
alimentos pelo indivíduo e pela população22.
Diante do conhecimento específico do nutricionista, do seu olhar para situações que envolvem
a alimentação e nutrição, torna-se muito mais fácil detectar problemas nesse sentido. Em estudo
desenvolvido por Santos13, médicos e enfermeiros referem que, com a inserção do nutricionista, ocorre
melhora no atendimento do usuário, uma vez que os entrevistados citaram dificuldades em abordar
temas relacionados à alimentação e nutrição.
Assis12 reafirma este fato ao perceber o nutricionista como um profissional com participação
relevante na ESF, uma vez que possui conhecimento específico que o instrumentaliza a observar
valores socioculturais, realizar diagnóstico e, assim, propor as devidas orientações dietéticas, sempre
adequadas à realidade familiar.
Considerando-se a demanda proveniente da transição epidemiológica e nutricional que se encontra
estreitamente associada a hábitos alimentares inadequados, sobretudo a partir das décadas de 1980 e
1990, com baixo consumo de fibras e micronutrientes, e ingestão excessiva de gorduras saturadas10,
é primordial que o nutricionista desenvolva apoio constante para a promoção de uma alimentação
saudável, culminando na prevenção e tratamento da obesidade e de outros distúrbios nutricionais8.
Diante desse cenário e pautando-se nos conhecimentos técnicos do nutricionista, faz-se necessário
um planejamento para ações de prevenção às doenças relacionadas à alimentação e de intervenções
nutricionais, visando promover um melhor estado nutricional da população, no qual o trabalho com
outros profissionais só engrandece e potencializa os resultados.
O nutricionista, em trabalho com a equipe multiprofissional, deve agir como: formador de outros
profissionais, articulador de estratégias de ação junto aos equipamentos sociais da área de abrangência
territorial, contribuindo para a promoção da alimentação saudável, da Segurança Alimentar e
Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada16.
Considerando a ESF como uma estratégia voltada para a promoção da qualidade de vida, Assis12
reforça que uma assistência de saúde cujo objetivo seja transformar a história das práticas alimentares
e dos resultados de intervenção não poderá ser desenvolvida sem a atuação do nutricionista.
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Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU
artigos
Visão ampliada de cenários de atuação
As falas dos sujeitos também permitem observar uma visão ampliada de cenários de atuação nos
quais o nutricionista pode contribuir somando seus conhecimentos a uma gama de atividades, todas
pautadas na ampla estrutura de ações desenvolvidas pela ESF.
“[...] não só focado em atendimento como se fosse ambulatorial e não trabalhar grupo
educativo, visita domiciliar, envolver a família, outros profissionais que trabalhem na unidade”.
E3 - UR25
“[...] orientações com grupo, comunidade e tudo que abrange no PSF (ESF), as visitas
domiciliares, consultas individuais, o trabalho com o indivíduo e a família como um todo [...]”.
E7 - UR57
Espera-se que o nutricionista exerça suas atribuições em diversos cenários de atuação, pois é
considerado um profissional capacitado a atuar, visando à segurança alimentar e atenção dietética,
em todas as áreas do conhecimento em que a alimentação e a nutrição se apresentem como
fundamentais20.
Ao se ampliarem os cenários de atuação em Saúde Pública, abre-se um leque de possibilidades,
permitindo: ações educativas sobre a alimentação e nutrição, diagnóstico populacional da situação
alimentar e nutricional, estímulo à produção e ao consumo de alimentos saudáveis produzidos
regionalmente, e atendimento para doenças relacionadas à alimentação e à nutrição23.
Essas atribuições podem ser desenvolvidas na ESF, reconhecendo o território como um local propício
para tanto, sempre considerando os espaços comunitários, trabalhando com a intersetorialidade e com
abordagem multiprofissional.
A amplitude desses cenários de atuação do nutricionista na atenção primária responde à demanda
da responsabilidade de se promover o ensino de práticas alimentares saudáveis aos serviços e equipes
de saúde, estabelecidas pela Política Nacional de Alimentação e Nutrição e pela Política Nacional de
Promoção da Saúde, somando-se à vertente da ESF que almeja promoção à saúde e prevenção de
agravos.
Atuação na promoção e prevenção
As falas revelaram, de forma predominante, que um trabalho voltado à promoção e prevenção é o
que mais se espera da atuação de um nutricionista. Consideram que deva ainda contemplar ações no
sentido de despertar a conscientização das pessoas quanto ao estilo de vida saudável, possibilitando
reduzir ou evitar agravos à saúde, extrapolando o caráter assistencialista, pautado na necessidade de
educar e orientar para a promoção da saúde e prevenção de doenças.
“[...] a atuação do nutricionista é na prevenção, atuando mesmo em ações de alimentação,
segurança alimentar, mas principalmente em prevenção e promoção, não só a questão
curativa”. E4 - UR28
“[...] a área de atuação é a mesma da nossa, atuação na forma de preferência preventiva [...]”.
E7 - UR56
Para conseguir desenvolver as premissas de promoção e prevenção, as unidades de registro trazem,
de forma muito expressiva, a necessidade de diversidade de estratégias de educação como ferramenta
utilizada pelo nutricionista, responsável por tentar modificar hábitos alimentares ou fazer com que
compreendam a necessidade de melhorá-los.
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residência multiprofissional em saúde ...
Com respaldo nos relatos que defendem a participação do nutricionista em ações de promoção
e prevenção, surge a necessidade de entendimento desses dois termos: no âmbito de prevenção,
consideram-se ações que privilegiem intervenções voltadas a evitar o aparecimento de doenças
específicas. Nessa perspectiva, devem minimizar a incidência e a prevalência de doenças associadas
à má alimentação nas populações, objetivando controlar a transmissão de moléstias infecciosas e
promover a redução do risco de doenças degenerativas24. Em se tratando de promoção à saúde,
há uma visão ampliada, considerando ações direcionadas não a uma doença específica, mas com o
propósito de contribuir para a saúde e bem-estar social.
Todavia, a diferenciação de prevenção e promoção ainda é pouco entendida devido ao modo
como que elas ocorrem, sendo que, para Czeresnia24, alguns projetos de promoção de saúde também
utilizam conceitos de doença, transmissão e risco, mesmo discurso, portanto, da prevenção. As mudanças sociais, políticas e culturais, o esgotamento do paradigma biomédico e a mudança
do perfil epidemiológico tornam urgente a proposta de Promoção à Saúde, sendo fundamental que as
estratégias utilizadas adaptem-se às necessidades locais e às possibilidades de cada região, percebendo
sempre as diversidades em seus sistemas sociais, culturais e econômicos.
Diante da ampla demanda relacionada aos cuidados da atenção primária, Silva23 e Santos13
ponderam que os principais problemas de saúde no Brasil poderiam ser evitados por medidas
preventivas, uma vez que a prevenção, o controle e o tratamento dos agravos à saúde estão
intimamente ligados à alimentação dos indivíduos, suscitando a relevância da participação do
nutricionista, tendo em vista sua dedicação à promoção de uma alimentação saudável no intuito de
evitar o agravamento de doenças crônicas não transmissíveis.
Reconhecendo este importante papel, recentemente, o Ministério da Saúde lançou a Matriz de
Ações de Alimentação e Nutrição na Atenção Básica de Saúde, cujo propósito é orientar o nutricionista,
por meio de conhecimento técnico específico, sobre como proceder nas ações de promoção e
prevenção em saúde diante dos sujeitos das ações (indivíduo, família e comunidade), a respeito dos
níveis de intervenção que contemplam a gestão das ações de alimentação e Nutrição e, também, no
que se refere ao cuidado nutricional, compreendendo diagnóstico, promoção da saúde, prevenção de
doenças, tratamento, cuidado e assistência16. Essas ações devem ser desenvolvidas em todo o ciclo de
vida, pois exposições nutricionais, ambientais e padrões de crescimento durante a vida intrauterina e
nos primeiros anos de vida podem repercutir diretamente nas condições de saúde quando adulto9.
Atuação na perspectiva multiprofissional
O trabalho realizado em conjunto com outros profissionais emerge como outra importante prática
na vertente de atuação do nutricionista. É pontuado que as ações, fossem elas consultas, visita
domiciliar, grupos educativos, entre outras, durante o período da RMSF, seriam realizadas com a
interface multiprofissional, possibilitando ampliar e qualificar a atuação desse profissional.
“[...] possibilitou ampliar mesmo a atuação no sentido de ter mais práticas coletivas, de
conseguir trabalhar efetivamente em equipe [...]”. E11 – UR92
Czeresnia24 nos alerta para os preceitos da multiprofissionalidade, ao considerar ser primordial que
o profissional desenvolva suas atividades baseado na delimitação dos problemas, o que possibilitará
implementar práticas eficazes, pois, caso contrário, o enfoque ficará restrito a sua especialidade.
Ao se buscar ampliar o olhar além da especificidade, surge a necessidade da vivência com outros
profissionais. A forma e a intensidade da interação entre as profissões intitularão e caracterizarão sua
estrutura de atuação.
Para Ceccim e Feuerwerker25, considerar o complexo fenômeno – no caso, o processo
saúde-doença – reforça a necessidade de um trabalho em que as equipes interajam de forma
multiprofissional, uma vez que um modelo de saúde centrado no usuário e sua família, como o da
ESF, impõe a ressignificação do processo de trabalho para a integralidade, sendo fundamental um
adequado trabalho da equipe multiprofissional.
356
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Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU
artigos
Nessa perspectiva, buscar o desenvolvimento de programas que contemplem o modelo de atuação
multiprofissional, pode, para Gil26, caracterizar oportunidade para uma reflexão, considerando
alternativas que propiciem rever os caminhos para a formação dos profissionais, objetivando um
trabalho integrado, em equipe, com trocas mais efetivas de saberes e práticas, como pode ser
verificado nas Residências Multiprofissionais.
O nutricionista encontra espaço no trabalho multiprofissional, compartilhando seus conhecimentos
voltados para o cuidado nutricional na atenção básica, contribuindo para a efetividade das ações de
Nutrição, com base na construção compartilhada de conhecimentos16, tendo em vista a dimensão da
alimentação na vida do indivíduo/ família/ comunidade. Beneficia-se, por sua vez, dos saberes dos
outros profissionais, aprimorando sua especificidade e ampliando seus conhecimentos.
Atuação favorecida pela dinâmica do processo de trabalho
do Programa Saúde da Família
Observa-se que, para os entrevistados, a atuação do nutricionista foi potencializada quando
considerada a dinâmica de trabalho da ESF, decorrente da formação de vínculo com o usuário, sua
família e comunidade. Ressalta-se, também, que atuar com outros profissionais, da equipe mínima
(médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, agente comunitário de saúde) ou ampliada (odontólogo,
fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo), agrega força para o desempenho do
nutricionista.
“[...] ter aquela população pronta, como se eles tivessem me aguardando, as demandas, os
pacientes estavam ali, a facilidade de você chegar nas casas”. E4 - UR33
“[...] o trabalho dela foi importante aqui pra população porque quando acabou o pessoal vinha
perguntar e agora como vai ser minha vida daqui pra frente sem a orientação dela [...]”. E12 UR104
Atuar na ESF fez com que o nutricionista conhecesse as diretrizes desse programa que se
desenvolve guiado pelo caráter substitutivo, no qual o novo processo de trabalho deixa para trás as
práticas convencionais e se estabelece centrado na vigilância em saúde; trabalha com a integralidade
e hierarquização, de modo que a unidade de saúde da família insere-se no primeiro nível de
ações e serviços do sistema local de saúde, e realiza as ações de forma integral; desenvolve suas
práticas de saúde considerando o território de abrangência e sempre com o auxílio de uma equipe
multiprofissional6.
Assim como outros profissionais da ESF, o nutricionista residente pode desenvolver ações que
extrapolem sua especificidade por vários motivos, entre eles: vivenciar o processo de territorialização
e mapeamento da área adscrita, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos; realizar
cuidados em saúde dessa população, considerando, também, espaços comunitários; notificar doenças
e agravos por busca ativa; desenvolver, planejar e avaliar ações da equipe de saúde com base no
levantamento de informações disponíveis, entre outros6.
Além disso, agrega-se a proposta do acolhimento, responsabilização e trabalho sobre as
necessidades de saúde, propiciando, aos profissionais que lá desenvolvem seu trabalho, a oportunidade
de estabelecerem relações mais satisfatórias, humanas, comprometidas e eficazes junto à população27.
Essas relações estabelecidas na ESF permitem a interação com o indivíduo e a comunidade,
possibilitando conhecer suas necessidades por meio do estabelecimento de vínculo e de um enfoque
não mais voltado apenas para o indivíduo, mas para sua família, a qual se torna objeto de atenção.
Machado et al.28 consideraram a relevância desse vínculo durante experiência observada
em uma residência multiprofissional em saúde da família, onde esse aspecto possibilitou, ao
nutricionista, desenvolver ações exitosas de promoção à saúde no que se refere à sensibilização e ao
empoderamento dos usuários.
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357
residência multiprofissional em saúde ...
Considerações finais
O Programa Saúde da Família, estratégia para a consolidação do SUS, surge como campo
fundamental para a atuação do nutricionista, possibilitando a aproximação com premissas que
ancoram essa estratégia, bem como sua inserção em um programa de Residência Multiprofissional em
Saúde da Família.
Na convivência com os outros profissionais, o nutricionista foi percebido como agente de promoção
à saúde e prevenção de agravos na amplitude de cenários em que a ESF permite desenvolver
estratégias. A valorização de seu conhecimento específico tornou-se relevante diante de seu olhar
diferenciado para a alimentação e sua estreita relação com os fatores culturais, sociais e psicológicos.
Por outro lado, a estrutura da Residência, somada ao processo de trabalho da ESF, possibilitou a
esse profissional desenvolver ações que extrapolaram sua especificidade, resultando em um ganho de
atuação, permitindo ampliar seu olhar e práticas por meio da vivência multiprofissional.
Apesar do relato de compreensão pouco clara da atuação do nutricionista na ESF, acredita-se
que essa visão pode ser modificada, com a inserção deste profissional em outros espaços, além das
residências multiprofissionais. Trata-se de uma oportunidade possível em virtude da implantação dos
Núcleos de Apoio à Saúde da Família, os quais sugerem a presença do nutricionista, considerado
necessário diante do perfil epidemiológico e nutricional do Brasil.
A experiência de inserção do nutricionista no Programa Saúde da Família, por meio da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família, oportunizou que exercitasse, na prática, preceitos exigidos em
seu perfil, ou seja, o programa buscou desenvolver uma formação generalista, humanística e crítica,
ampliando conhecimentos, habilidades e atitudes suficientes para atuar na diversidade das demandas
sociais, econômicas, políticas e educativas.
Todavia, ao se considerarem os diversos fatores que envolvem a vida de um indivíduo e de sua
família, fica a recomendação para olhar com cuidado a atual formação do nutricionista, visando uma
maior interprofissionalidade, para que, após graduado, esse profissional consiga navegar por este novo
campo de atuação.
Colaboradores
Irani Gomes dos Santos, em desenvolvimento de sua tese de mestrado, compôs o
artigo, que foi devidamente analisado e corrigido pelos orientadores. Nildo Alves Batista
foi o coorientador da tese de mestrado, assim como no artigo em questão. Macarena
Urrestarazu Devincenzi foi a orientadora da tese de mestrado, assim como orientadora na
confecção deste artigo.
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Santos IG, Batista NA, Devincenzi MU. Residencia multi-profesional en Salud de la Familia:
concepción de profesionales de salud sobre la actuación del nutricionista. Interface
(Botucatu). 2015; 19(53):349-60.
La Estrategia Salud de la Familia (ESF) es el local para el desarrollo de las Residencias
Multi-profesionales en Salud de la Familia que se destacan por la formación y producción
de tecnologías del cuidado, calificando al Sistema Brasileño de Salud (SUS). En ese
escenario, el nutricionista promueve acciones de alimentación y nutrición enfocadas
en el perfil epidemiológico local. El objetivo fue mostrar concepciones de profesionales
de la salud en relación a la actuación del nutricionista en la ESF después de su inserción
en la residencia. Participaron trece profesionales. Se trata de un estudio exploratorio,
descriptivo, analítico, con corte tipo transversal, que tiene como técnica de recolección
de datos la entrevista semi-estructurada y el análisis de contenido. Se mostró que la
pequeña inserción de nutricionistas en esta estrategia contribuyó para una comprensión
poco clara de su actuación. No obstante, su especificidad se valorizó considerando su
mirada diferenciada hacia situaciones enfocadas en la nutrición, ampliando posibilidades
de escenarios de actuación, dirigidas principalmente a la promoción y la prevención.
Palabras clave: Nutricionista. Programa Salud de la Familia. Internado. Residencia.
Recebido em 10/05/14. Aprovado em 13/09/14.
360
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):349-60
DOI: 10.1590/1807-57622014.0107
artigos
Novos espaços de reorientação para formação em saúde:
vivências de estudantes
Juliana Alves Leite Leal(a)
Cristina Maria Meira de Melo(b)
Rafaela Braga Pereira Veloso(c)
Iraildes Andrade Juliano(d)
Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Juliano IA. New reorientation spaces for healthcare
education: students’ experiences. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):361-71.
The aim of this paper was to analyze the
meaning of the experiences of students
in undergraduate healthcare courses who
participated in new education spaces
resulting from strategies for reorientation
of health education, from the perspective
of the Brazilian Health System. (SUS) In
producing data for qualitative exploratory
research, we used semi-structured
interviews with 12 students from different
courses. For data analysis, thematic content
analysis was used. For the students,
participating in PET-Health and in SUS
internship experiences is important because
they learn meaningful content that is not
addressed at university and develop joint
activities with students from different
courses. The learning that results from
this linkage motivates them to develop
professional work in the public system,
since it allows them to experience the daily
work; generates feelings of anxiousness,
restlessness and struggle; and represents
an incentive for seeking knowledge.
Keywords: Public health. Professional
education in public health. Human
resources education.
Pretendeu-se analisar o significado
das vivências dos estudantes de cursos
de graduação da área da saúde que
participaram de novos espaços de
formação, resultantes de estratégias de
reorientação da formação em saúde na
perspectiva do Sistema Único de Saúde
(SUS). Na produção dos dados da pesquisa
exploratória de tipo qualitativo, utilizouse a entrevista semiestruturada com 12
estudantes de diferentes cursos. Para análise
dos dados, adotou-se análise de conteúdo
temática. Para os estudantes, participar
do PET-Saúde e do Estágio de Vivências
do SUS é importante, pois aprendem
conteúdos significativos que não são
abordados na universidade; desenvolvem
atividades conjuntas com estudantes
de diferentes cursos, e o aprendizado
resultante desta articulação motiva-os
para o desenvolvimento do trabalho
profissional no sistema público, pois permite
vivenciar o cotidiano do trabalho; gera
sentimentos de angústia, inquietação e luta;
e representa um incentivo para a busca de
conhecimentos.
Palavras-chave: Saúde Pública. Educação
Profissional em Saúde Pública. Formação de
Recursos Humanos.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Doutoranda,
Programa de PósGraduação em
Enfermagem, Escola
de Enfermagem,
Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Rua
Basílio da Gama, s/n,
Canela. Salvador, BA,
Brasil. 40110-907.
[email protected]
(b)
Escola de
Enfermagem, UFBA.
Salvador, BA, Brasil.
[email protected]
(c)
Enfermeira. Salvador,
BA, Brasil. rafabveloso@
hotmail.com
(d)
Departamento de
Saúde, Universidade
Estadual de Feira de
Santana. Feira de
Santana, BA, Brasil.
[email protected]
2015; 19(53):361-71
361
novos espaços de reorientação ...
Introdução
A formação dos profissionais de saúde continua sendo uma área crítica no processo de reorientação
do trabalho no campo da saúde. No entanto, desde a implementação do Programa de Saúde da
Família, o discurso político-governamental tem mudado, o que demonstra que os gestores do Sistema
Único de Saúde (SUS) começam a intervir politicamente na ordenação da formação em saúde.
As políticas na formação e capacitação dos profissionais de saúde sempre foram voltadas para
aqueles inseridos ou em fase de inserção nos serviços. Dentre as intervenções do Ministério da Saúde
(MS) para cumprir seu papel constitucional de ordenador da formação em saúde, destacam-se algumas
iniciativas como: VerSUS, AprenderSUS e EnsinaSUS de 2003 a 2005, e o Pró-Saúde I, Pró-Saúde II e
o PET - Saúde posteriormente1. Essas iniciativas coadunavam com a necessidade de modificação das
práticas de saúde e das práticas pedagógicas no processo de formação, o que exige uma articulação
entre o SUS, em suas três esferas de governo e as instituições formadoras.
Destaca-se, como uma das estratégias utilizadas para redirecionar a formação, desde 2005,
o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), que tem
como objetivo induzir a transformação do ensino de saúde no Brasil2,3. Em 2008, na formulação do
segundo Pró-Saúde, assume-se como estratégia prioritária o Programa de Educação pelo Trabalho
para a Saúde (PET-SAÚDE), inspirado no Programa de Educação Tutorial do Ministério da Educação.
Dessa forma, o PET-SAÚDE foi criado como uma das ações intersetoriais direcionadas não só para a
formação de profissionais da saúde, mas, também, para o fortalecimento da atenção básica em saúde,
redirecionando as práticas dos profissionais que atuam na estratégia saúde da família2,3. O PET-SAÚDE
tem, então, como base, a educação pelo trabalho, e disponibiliza bolsas para: tutores, professores das
universidades públicas e privadas, e preceptores, profissionais da estratégia saúde da família, além dos
estudantes de graduação dos cursos da área da saúde4.
Outra estratégia que integra a Política de Educação para o SUS é o Projeto de Vivências e Estágios
na Realidade do SUS – VER-SUS/Brasil, construído por meio de parceria entre o Ministério da Saúde e
o Movimento Estudantil dessa área, e que tem, como principal objetivo: proporcionar, aos estudantes,
a vivência e a experimentação do cotidiano da rede de sistemas de serviços do SUS5. É necessário
acrescentar que esse projeto promove o encontro entre estudantes dos vários cursos de graduação em
saúde de todo o Brasil em estágio de vivências na gestão do Sistema Único de Saúde, e possibilita o
intercâmbio entre os estudantes.
Outra versão do PET - Saúde/Redes de Atenção em Saúde (PET-Saúde/Redes) foi lançada ainda
em 2013, propondo uma aproximação das Instituições de Ensino Superior (IES) com os níveis mais
complexos da atenção à saúde, buscando o fortalecimento dos níveis mais complexos do sistema de
saúde. Esta estratégia se apresenta como: instrumento de qualificação em serviço dos profissionais da
saúde, aprimoramento e promoção de redes de atenção em saúde, de iniciação ao trabalho e formação
dos estudantes dos cursos de graduação na área da saúde6.
Tais estratégias governamentais demonstram que, para se alcançarem as transformações necessárias
ao bom funcionamento do SUS, investimentos em adequação física da rede de serviços, em tecnologia
em medicamentos, por si só, são insuficientes, sem que esteja somado a isso, grande investimento
nas mudanças das práticas dos trabalhadores do SUS e na formação política e técnica dos futuros
profissionais de saúde.
Diante desse contexto, esta pesquisa partiu do questionamento de como os estudantes dos cursos
de graduação em saúde vivenciam as estratégias de formação.
Assim, o objetivo deste artigo é analisar o significado atribuído, por alunos de cursos de graduação
da área da saúde, às vivências em espaços de formação resultantes das estratégias de reorientação da
formação em saúde na perspectiva do SUS, a saber: o PET-SAÚDE e o Estágio de Vivências do SUS.
362
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Juliano IA
artigos
Metodologia
Esta pesquisa é de natureza qualitativa do tipo exploratória. Sendo assim, a pesquisa qualitativa
tem por finalidade se aprofundar no universo de significados das ações, vivências e relações humanas,
compreendendo a dinâmica interna de grupos específicos, instituições e atores, permitindo revelar
processos sociais7. A escolha da pesquisa exploratória é justificada, uma vez que permite uma
aproximação do pesquisador ao objeto de investigação, seu significado e o contexto da realidade8,
como é o caso das estratégias de reorientação da formação em saúde vivenciadas por estudantes de
graduação.
No estado da Bahia, existiam, quando foi feito o trabalho de campo, sete instituições de Ensino
Superior (IES) públicas, sendo duas federais e quatro estaduais: Universidade Federal da Bahia
(UFBA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e
Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
Assim, os sujeitos selecionados foram 12 graduandos da área da saúde das IES públicas na Bahia,
incluindo-se uma instituição de Ensino Superior pública de Pernambuco, a Universidade Federal do
Vale do São Francisco (UNIVASF), porque um dos campi desta IES situa-se na cidade de Juazeiro, na
Bahia.
Utilizamos como critérios de inclusão: estudantes que tenham participado do PET-SAÚDE, pelo
menos durante um ano, ou do Estágio de Vivências no SUS, pelo menos em uma das suas edições;
ser estudante de um dos cursos de graduação na área da saúde e estar matriculado em curso de
graduação em uma das IES selecionadas. Adotaram-se como critérios de exclusão: estudantes com
matrícula institucional e/ou desligados do PET-SAÚDE por desempenho insatisfatório. Ressaltamos,
ainda, que os entrevistados que participaram do PET-SAÚDE estiveram em sua primeira versão (saúde
da família, vigilância, álcool e drogas), pois este estudo antecedeu o período de execução do PETSAÚDE/REDES, lançado em 2013.
Do total de entrevistados, todos participaram do Estágio de Vivências do SUS e seis participaram de
ambas as estratégias, PET-SAÚDE e Estágio de Vivências do SUS.
A coleta de dados foi operada durante os encontros mensais do Curso de Formação dos
Mediadores de Aprendizagem para a 5ª edição do Estágio de Vivências no SUS no município de
Salvador, Bahia, promovidos pela Escola Estadual de Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado
da Bahia. A técnica utilizada para a coleta de dados foi a entrevista semiestruturada.
A análise do material extraído das entrevistas foi realizada por meio do método da análise temática
baseada em Bardin9 e Minayo7.
Após as fases de pré-análise, com organização dos dados coletados, e leitura das entrevistas;
de exploração do material e análise temática, o conteúdo das entrevistas foi dividido nas seguintes
categorias centrais: as estratégias para formação como fonte de interação e aprendizagem; a
vivência nas estratégias provoca mudanças no modo de pensar a saúde e a formação; as estratégias
de reorientação da formação e novos modos de ver o SUS. Para tanto, a pesquisa teve aprovação
do Comitê de Ética em Pesquisa, respeitando a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,
vigente quando se desenvolveu o trabalho de campo10.
Resultados e discussão
As estratégias para formação como fonte de interação e aprendizagem
Na compreensão dos estudantes, participar das estratégias PET – Saúde e Estágio de Vivências
do SUS teve um significado positivo. A vivência, segundo os entrevistados, possibilita aprendizagem
de temas que não são abordados nos cursos. Além disso, as vivências permitem a aproximação
com o cotidiano dos serviços e com as práticas dos trabalhadores de diferentes áreas, permitindo a
identificação e ampliação da consciência do estudante com a política do SUS, seu valor e importância
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novos espaços de reorientação ...
para um país como o Brasil. A experiência também proporcionou o intercâmbio entre os estudantes de
variados cursos de saúde, o que não acontece nos espaços formais de práticas e estágios dos cursos
na área da saúde. Portanto, a inexistência ou precária existência de um processo de formação que
permita o desenvolvimento conjunto do trabalho em saúde é uma lacuna identificada no processo de
formação na universidade, dado que a natureza deste é ser compartilhado entre diferentes profissionais
e trabalhadores.
A motivação dos estudantes em participar das estratégias de formação para o SUS estava
relacionada com a expectativa de que tais projetos poderiam aproximá-los de um SUS real, em
diferentes contextos municipais, ampliando a sua formação, visto que afirmam que a formação em
saúde extrapola os muros da universidade.
“queria adquirir conhecimento mesmo na área, poder ter habilidades, conhecer novas
realidades, porque quando a gente está na universidade, a gente fica muito preso aos estágios
que a universidade proporciona, e não tem tanta oportunidade de sair para outras regiões, de
ter contato com outros alunos”. (Ent.4)
Segundo os estudantes, a vivência nos serviços de saúde foi fonte de aprendizagem reflexiva,
ampliando a compreensão dos mesmos sobre o uso dos ensinamentos obtidos no espaço interno
da universidade e a necessidade de que estes permitam a atuação profissional com o objetivo de
corresponder às demandas e necessidades dos sujeitos que buscam os serviços de saúde. Ademais,
os estudantes afirmaram compreender que essas experiências permitem entender como os serviços e
a rede de atenção à saúde estão estruturados, e se estes possuem ou não condições para responder
às necessidades dos indivíduos e das coletividades, bem como os fatores estruturais que limitam os
resultados da produção de ações e serviços de saúde.
O resultante da experiência é um conhecimento consciente de seus limites; um conjunto de
referentes provisórios e mutantes, na medida em que ela – a experiência – problematiza não só o
registro cognitivo de um sujeito, mas, também, seus sentidos, percepções e afetos11.
O termo vivência engloba ambos os sentidos de vivenciar e de vivido. Para Freud, trata-se, ao
mesmo tempo, de uma experiência imediatamente vivida, isto é, não presumida, nem meramente
ouvida, mas direta e pessoalmente realizada; ao mesmo tempo em que se trata de uma experiência
duradoura e significativa12.
Levando isso em consideração, é possível afirmar que, por meio da vivência dos estudantes, foi
possível o alcance de uma articulação teoria-prática. Além disso, enuncia-se um aprendizado mútuo
por intermédio de experiências anteriores de indivíduos diferentes, por meio do compartilhamento de
saberes, já que as estratégias trabalham em grupos de discussão.
Para Henriques13 (p. 152), “o momento de imersão do estudante no cotidiano dos serviços poderia
trazer recursos riquíssimos para o aprendizado do cuidado e da organização dos processos de trabalho
e gestão”.
Os entrevistados afirmam, também, que a participação em uma ou nas duas estratégias
proporcionou abertura de canais de comunicação entre os estudantes de diferentes cursos da área da
saúde. Por meio do diálogo e das intervenções de maneira integrada, foi possível compartilhar saberes
e práticas dos seus núcleos de conhecimentos específicos, e aplicá-los nas vivências.
Sabe-se que o trabalho na saúde requer a participação de diferentes atores. No campo da saúde
coletiva, algumas reflexões têm sido produzidas acerca do trabalho em equipe, como forma de
modificar o modelo de atenção à saúde. A comunicação, portanto, é considerada o denominador
comum do trabalho em equipe. As experiências vividas pelos entrevistados reafirmam que, quando há
comunicação, há interação no trabalho coletivo, menor desigualdade entre os diferentes trabalhos e os
respectivos agentes, e, por conseguinte, ocorre maior integração na equipe14.
À medida que o trabalho em equipe é construído com interação, quanto mais próximo o estatuto de
sujeito ético-social dos agentes, maiores as possibilidades de interagirem em situações livres de coação
e de submissão, na busca de consensos acerca da finalidade e do modo de executar o trabalho14.
Nas entrevistas, a interdisciplinaridade também teve destaque como fator que valoriza e integra o
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artigos
trabalho em equipe na saúde e contribui para a formação dos novos profissionais para atuar na direção
da consolidação do SUS.
“muita gente acha que a interdisciplinaridade é juntar um monte de estudantes de diferentes
cursos em um lugar, e não é. Você só consegue a interdisciplinaridade ofertando serviços
diversos, com agregação de vários profissionais, mas tem que ter diálogo entre esses
profissionais, discussão de casos clínicos em conjunto. E essas estratégias conseguem promover
o diálogo entre os estudantes de vários cursos de saúde”. (Ent.1)
“é muito bom, porque você vê, discute, vivência a interdisciplinaridade. Você conversa com
pessoas de outras regiões, pessoas de cursos diferentes, de idades diferentes, de semestres
diferentes, de instituições diferentes. Você não fica com sua cabeça fechada só na sua
universidade”. (Ent.7)
Os estudantes destacam que a interdisciplinaridade promovida pelas estratégias de formação
contribui para ampliação da visão de mundo, para ampliação das discussões sobre temas relativos à
saúde, na medida em que proporcionou a interação de estudantes de diferentes cursos, formações e
realidades educacionais.
A abordagem interdisciplinar e o trabalho em equipe multiprofissional, muitas vezes, não são
explorados pelas instituições formadoras, cujo ensino ainda é baseado em disciplinas. As disciplinas,
dessa forma, são categorias organizacionais do conhecimento científico que se pautam na
especialização do trabalho15, o que contradiz a própria política de Educação Superior expressa nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Superior no campo da saúde.
A formação universitária tem problemas que remontam à origem do pensamento científico,
configurando-se como paradigma positivista a ser superado, com todas as suas implicações
de natureza política e epistemológica16. Por isso, pode-se afirmar que o ensino por disciplinas,
especializando saberes, nem sempre consegue dar a real dimensão do espaço social ocupado por uma
determinada profissão.
A formação não pode tomar como referência apenas a busca eficiente de evidências para
diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico, etiologia e profilaxia das doenças e agravos. Devese, então, buscar desenvolver condições de atendimento às necessidades de saúde das pessoas e das
populações, da gestão setorial e do controle social em saúde, redimensionando o desenvolvimento da
autonomia das pessoas até a condição de influência na formulação de políticas do cuidado17.
A vivência nas estratégias provoca mudanças no modo de pensar a saúde e a formação
Destacamos a concepção de que esses programas provocam mudanças no modo de pensar dos
estudantes. Por isso, alguns se sentem mais preparados profissionalmente após a participação nas
estratégias de formação do PET-Saúde e do Estágio de Vivências. Tais vivências despertam, também,
uma visão positiva do trabalho no sistema público de saúde.
“acho que é uma iniciativa extremamente interessante, porque ela vai muito além daquilo
que a gente vê na universidade, eles utilizam a realidade, a dinâmica do SUS como fonte de
aprendizagem”. (Ent.6)
“sou muito apaixonada pelo SUS. Na verdade, brotou mais em mim uma sementinha de luta
para que eu passasse para outros estudantes que era possível uma formação diferenciada
através do EVSUS e do PET-SAÚDE”. (Ent.4)
A diversificação dos cenários de aprendizagem, como uma das estratégias para a transformação
curricular e aproximação dos estudantes com a vida cotidiana das pessoas, desenvolve consciência
crítica nos estudantes sobre os problemas da população18. Por conseguinte, a inserção dos estudantes
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novos espaços de reorientação ...
nas estratégias faz com que conheçam os diferentes cenários de atuação profissional. Além disso,
possibilita a aprendizagem dos campos de atuação de outras profissões, o que auxilia na futura
prestação da assistência integral, bem como permite entender quais as atividades que são próprias de
cada profissão, quais as que são complementares e compartilhadas.
“é um espaço articulador de enriquecimento profissional para o estudante, que permite
visualizar o contexto da prática, analisar os perfis do profissionais, entender um pouco da
demanda e do sistema, como funciona”. (Ent.9)
“eu comecei a perceber que dentro das políticas públicas de saúde, dentro da efetivação do
SUS, havia uma grande necessidade de uma atuação do assistente social, dentro das equipes.
Então, é a ação da assistência social para com os usuários e para com a equipe, no trabalho
inter e multidisciplinar nas unidades”. (Ent.6)
A depender da percepção que o estudante tenha sobre as estratégias, esta poderá repercutir em
sua vida de tal maneira, afetando, inclusive, seu desempenho acadêmico, suas relações sociais e
atitudes.
Segundo os entrevistados, após a participação, eles desejam compartilhar com outros estudantes
o que foi vivenciado na tentativa de produzir mudanças, também, naqueles que não tiveram
oportunidade de participar.
“quero levar para universidade como uma forma de revolucionar. Quando eu retornei
do estágio de vivência eu me motivei a me inserir no diretório acadêmico, no movimento
estudantil, eu me enxerguei como ator social para mudança tanto da formação dentro da
universidade quanto como profissional de saúde”. (Ent.2)
O protagonismo estudantil também é um dos pontos fortes dessas estratégias, particularmente no
Estágio de Vivências do SUS. A condução das atividades pelos próprios estudantes estabelece uma
relação mais próxima e dialógica entre eles e os profissionais. Consequentemente, o aprendizado se dá
de maneira mais tranquila e efetiva, pois não é estabelecida uma hierarquia entre os envolvidos.
“a profundidade que a vivência proporciona é de você poder escutar outros profissionais em
formação, assim como você, e não ter aquela questão hierárquica de você ter medo de falar.
Quando você está diante do professor você mede suas palavras. A questão de você estar ali
com iguais é a principal experiência da vivência [EVSUS], de você poder falar, você poder
realmente se manifestar, dizer o que você acha”. (Ent.7)
“acho muito bom essa onda dos mediadores serem estudantes. Você se insere mais ainda. Você
passa não só sua visão, mas a ideia de liderança quando você vê quem está organizando”.
(Ent.8)
Nesse processo, o estudante deixa de ser visto como objeto de aprendizagem e passa a ser sujeito
dela, aquele que aprende, junto ao outro, o que seu grupo social produz, tal como valores e o próprio
conhecimento19. Assim, o mediador de aprendizagem é um elemento-chave que deve cumprir o papel
de estimulador de reflexões críticas entre os outros estudantes a partir de uma realidade concreta.
Este papel é subsidiado, numa perspectiva teórico-prática, pelo Curso de Formação de Mediador e de
Aprendizagem para o Estágio de Vivências no SUS.
Outro destaque pelos estudantes foi a oportunidade de trabalhar em grupos e o estímulo à
construção coletiva no processo de ensino-aprendizagem.
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artigos
“Esse estágio propicia o convívio com outras pessoas, trabalhar em grupo, escutar a opinião
de outros. Você pode também construir e formar uma opinião, e procurar ver o melhor para o
mundo em geral, para a população, o paciente e cliente”. (Ent.12)
Os estudantes revelaram, ainda, que a oportunidade de participar das novas estratégias para
reorientação da formação provocou sentimentos distintos entre eles. Os sentimentos foram desde
esperança, paixão, luta até desânimo, protesto e angústia:
“dá uma angústia que você vai ouvindo as palestras estudando e você vê que é tão difícil
mudar a cabeça de profissionais que estão conformados com o modo de trabalho deles e falam
para gente quando você entrar no sistema você vai ver que você vai acabar se acomodando.
Pessoas com a mente completamente conformadas, moldadas, de que o sistema não vai
mudar”. (Ent.5)
“a maior intenção e vontade foi conhecer outro lugar, outro sistema para continuar acreditando
que ainda pode dá certo, quando você vê coisas darem certo cria a esperança de que ainda
pode ser mudado”. (Ent.6)
Para os entrevistados, o encontro com a população e os profissionais atuantes nos serviços foi
inquietante. Nesses espaços, eles foram estimulados a experimentar novas emoções, a repensar
a realidade, relacionando-a com a vivência prática e confrontando-a com a visão de mundo já
elaborada.
Dentre as propostas do Pró-Saúde, o estímulo à interação ativa do estudante com a população
e com os profissionais de saúde deve ocorrer desde o início do processo de formação, permitindo
atuar sobre problemas reais, e assumir responsabilidades crescentes, compatíveis com seu grau de
autonomia3,18.
As estratégias de reorientação da formação e novos modos de ver o SUS
Os estudantes consideram que as estratégias foram significantes na medida em que provocaram
uma sensibilização em defesa do SUS e sobre os processos de trabalhos de suas profissões. As
participações nas estratégias repercutem, então, na vida dos entrevistados.
No plano acadêmico, a lógica que tem orientado os movimentos educacionais ainda está
significativamente deslocada, tanto da realidade epidemiológica quanto dos propósitos assistenciais
encetados pelo SUS e, na prática, exerce significativa influência no ordenamento futuro dos
profissionais de saúde20.
A vivência do estudante provoca uma crítica a essa lógica que se distancia das necessidades do SUS
e da integralidade da assistência. Dessa forma, evidencia-se o descompasso entre ensino e serviço, o
que inquieta o estagiário para mudança da realidade vivenciada na atuação na futura vida profissional.
Os entrevistados reconhecem que o desenvolvimento do perfil profissional deve estar coerente com
as necessidades do SUS e que dependem tanto do ensino na universidade quanto da experiência no
serviço.
Outra questão que deve ser ressaltada é a de que os entrevistados pensam que é necessário
avançar nos conhecimentos sobre o SUS e políticas de saúde para a melhoria da atenção à saúde. Para
isso, consideram importante ampliar os ensinamentos ofertados nas matrizes curriculares, aproveitando
as novas vivências em contextos diferentes e estratégias diversas.
“A vivência em si tanto no EVSUS, quanto alguns componentes curriculares voltados para saúde
pública e também os PETs nos permite analisar qual o perfil de profissional que a gente vai ser,
e daí, a partir desde a graduação, já desenvolver um perfil mais adequado para as necessidades
do SUS”. (Ent.9)
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novos espaços de reorientação ...
A compreensão sobre vários cenários de aprendizagem e sobre a atuação profissional posterior leva
os estudantes a refletirem sobre: o futuro local de trabalho, a finalidade do seu curso, e o caminho que
será percorrido para atingirem os seus objetivos.
Para um dos entrevistados, o Estágio de Vivências no SUS também desperta reflexões sobre a
importância da gestão em saúde.
“o estágio faz a gente amadurecer, e me fez pensar, refletir sobre gestão, saber gerir,
especificamente meu curso que não tem nenhuma disciplina voltada para gestão em saúde, o
meu papel nessa área enquanto estudante e futura profissional de saúde”. (Ent.2)
O entrevistado, a partir de um dos temas discutidos – nesse caso, a gestão em saúde –, percebeu a
lacuna que a universidade deixa na sua formação referente ao tema.
As falas dos entrevistados demonstraram que a participação nas estratégias de formação estimula
os estudantes a se aproximarem das modalidades de gestão e da possibilidade de, no futuro, se
tornarem gestores. No entanto, reconhecem que precisam de um maior aprofundamento no assunto,
já que, na sua graduação, não há disciplinas específicas de gestão em saúde.
“estou no 3º semestre e eu não tive contato nenhum com o SUS, os únicos contatos que tive
foram proporcionados pelo PET e pelo EVSUS e isso permite um contato precoce com o SUS”.
(Ent.1)
“na verdade o EVSUS para mim foi mais uma comprovação de que eu gosto mesmo de vestir a
camisa, ... eu não vejo desvantagem e acho que o projeto é muito bom”. (Ent.9)
Outro aspecto relevante e identificado nas falas dos graduandos se refere à mudança de visão
sobre o SUS, já que, antes das experiências, muitos possuíam uma concepção teórica sobre o sistema
baseado na imagem retransmitida pela mídia impressa e televisiva.
“[..] para mim teve uma modificação do que era o SUS, eu tinha uma visão de que o SUS era só
o caos, era você chegar numa unidade ou num hospital e ficar horas esperando ainda para ser
mal atendido, esperar a boa vontade dos funcionários de te atender ou o médico que nem olha
para você”. (Ent.5)
“a visão do SUS mudou muito, porque quando a gente pensa, a gente tem a visão da mídia,
de jornal, a fila do SUS, de pessoas que estão sendo internadas em leitos não apropriados, sem
cobertor, a gente pensa: ‘esse SUS é péssimo’”. (Ent.8)
Essas falas revelam a imagem do SUS na sociedade. Essa imagem é influenciada pelas informações
divulgadas pelos meios de comunicação, até mesmo para os estudantes da área de saúde. Além
disso, mostram que alguns estudantes possuíam uma imagem do SUS restrito ao que é propagado
pela mídia, o que pode indicar a discussão ainda elementar sobre o sistema público no conteúdo da
formação em saúde na universidade.
Por meio das estratégias de reorientação da formação para o SUS, o SUS ideal e o SUS real são
confrontados pelos estudantes. Isso colabora para uma nova representação do SUS, concreta, política
e, de fato, vivenciada por meio do seu cotidiano.
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Conclusão
Para estudantes de cursos de graduação da área da saúde da Bahia e Pernambuco, a participação
nas novas estratégias de reorientação da formação em saúde na perspectiva do SUS (PET-SAÚDE e
Estágio de Vivências do SUS) foi considerada como espaços de aprendizagem significativa, permitindo
uma compreensão do seu lugar profissional e da experimentação do trabalho interdisciplinar. Assim,
nota-se que não houve uma diferença de percepção entre os alunos que participaram do VERSUS e
do PET e aqueles que participaram apenas do PET, apesar das estratégias ocorrerem em momentos e
contextos nacionais diferentes.
Os estudantes reconhecem, ainda, que a interação entre serviço e ensino provoca uma
aproximação com a realidade dos serviços de saúde, despertando-os para assumirem, futuramente, o
trabalho no sistema público de saúde.
Eles consideram, também, que as estratégias possibilitam aprendizagem ampliada de temas, e que
as atividades curriculares na universidade não podem contemplar.
É necessário destacar que a vivência nos novos espaços de formação em saúde incentiva a atuação
multiprofissional e interdisciplinar, que é apontada como uma das aprendizagens mais significativas, e
que facilita o trabalho posterior à formação.
Atuando nas estratégias, os graduandos sentem-se parte do processo de ensino-aprendizagem,
pelo uso de metodologias que estimulam a participação e atuação conjunta e não hierarquizada,
permitindo que estes sejam protagonistas desse processo.
A participação provoca reflexões sobre a função da universidade, que, além da qualificação
técnica e científica, é também a de estimular o desenvolvimento do espírito crítico, ético e social. A
inserção precoce dos estudantes nas vivências permite uma reconstrução do que é o SUS para além do
imaginário do senso comum construído pela mídia, francamente contrária a esta política pública.
Por fim, conclui-se que tais estratégias de aprendizagem permitem afirmar que o processo
de ensino-aprendizagem pode e deve romper a fragmentação dos saberes e práticas em saúde,
permitindo identificar as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas de
saúde da população. Além disso, é importante reconhecer que estas experiências devem ser ampliadas,
e suas estratégias operacionais introduzidas nos espaços curriculares sempre que coerentes com os
objetivos da universidade pública e da formação em saúde ordenada pelo SUS.
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
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novos espaços de reorientação ...
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Leal JAL, Melo CMM, Veloso RBP, Juliano IA. Nuevos espacios de reorientación para la
formación en salud: vivencias de estudiantes. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):361-71.
El objetivo de este artículo es analizar el significado de las vivencias de los estudiantes
de cursos de graduación del área de la salud que participaron en nuevos espacios de
formación, resultantes de estrategias de reorientación de la formación en salud, bajo la
perspectiva del Sistema Brasileño de Salud (SUS). En la producción de los datos de la
encuesta exploratoria de tipo cualitativo, se utilizó la entrevista semi-estructurada con
12 estudiantes de diferentes cursos. Para el análisis de los datos, se adoptó el análisis de
contenido temático. Para los estudiantes, participar en el PET-Salud y en la Pasantía de
Vivencias del SUS es importante, puesto que aprenden contenidos significativos que no se
abordan en la universidad, desarrollan actividades conjuntas con estudiantes de diferentes
cursos y el aprendizaje resultante de esta articulación los motiva para el desarrollo del
trabajo profesional en el sistema público, puesto que les permite experimentar el cotidiano
del trabajo, genera sentimientos de angustia, inquietud y lucha y representa un incentivo
para la búsqueda de conocimientos.
Palabras clave: Salud pública. Educación profesional en salud pública. Formación de
recursos humanos.
Recebido em 26/02/14. Aprovado em 29/08/14.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):361-71
371
DOI: 10.1590/1807-57622013.1024
artigos
Paradigmas e tendências do ensino universitário:
a metodologia da pesquisa-ação como estratégia de formação docente
Erica Toledo de Mendonça(a)
Rosângela Minardi Mitre Cotta(b)
Vicente de Paula Lelis(c)
Paulo Marcondes Carvalho Junior(d)
Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Paradigms and trends in higher
education: the action research methodology as a teacher education strategy. Interface
(Botucatu). 2015; 19(53):373-86.
The aim of this paper was to discuss the
paradigms and trends in higher education
today, pointing out strategies for teacher
education. Action research was used
as the method. Data were gathered
using the techniques of up-and-down
panorama, Wordle and class diaries, while
conducting teacher training for mentoring
actions in a discipline involving blended
learning. The participants’ testimonies
indicated dissatisfaction with use of the
traditional teaching model; the importance
placed on teachers being open to new
things; and also that use of innovative
teaching processes was considered to be
an important strategy for changing the
educational paradigm. The process of
training university teachers was shown
to be effective with regard to raising
awareness among these individuals about
the importance of introducing teaching into
the agenda of the university’s priorities.
Keywords: Technology. Innovation.
Teaching. Learning. Mentoring.
O objetivo do trabalho foi discutir sobre
os paradigmas e as tendências do ensino
universitário na atualidade, apontando
estratégias de formação docente.
Utilizou-se como método a pesquisa-ação;
os dados foram coletados mediante as
técnicas do Panorama Sobe e Desce, Wordle
e Diários de Classe, durante a realização
de capacitações docentes para exercício
de tutoria em disciplina semipresencial. Os
depoimentos dos participantes apontaram
para uma insatisfação no uso do modelo
tradicional de ensino; a importância de o
professor estar aberto ao novo; e, ainda,
que a utilização de processos inovadores
de ensinagem foi considerada importante
estratégia de mudança de paradigma
educacional. O processo de capacitação de
docentes universitários mostrou-se eficaz
no que tange à conscientização destes
indivíduos quanto à importância de se
inserir o ensino na agenda das prioridades
da universidade.
Palavras-chave: Tecnologia. Inovação.
Ensino. Aprendizagem. Tutoria.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Departamento
de Medicina e
Enfermagem,
Universidade Federal de
Viçosa (UFV). Avenida
PH Rolphs, s/n, campus
Universitário. Viçosa,
MG, Brasil. 36570-000.
[email protected]
(b)
Departamento de
Nutrição e Saúde, UFV.
Viçosa, MG, Brasil.
[email protected]
(c)
Pró-Reitoria de Ensino,
UFV. Viçosa, MG, Brasil.
[email protected]
(d)
Faculdade de
Medicina de Marília.
Marília, SP, Brasil.
marcondes.paulo@
gmail.com
(a)
2015; 19(53):373-86
373
paradigmas e tendências do ensino universitário: ...
Introdução
Na atualidade, a discussão sobre os paradigmas e as tendências do ensino
no âmbito universitário vem ganhando cada vez mais espaço na agenda da
formação docente. A experiência e vivências dos autores na área de ensino
na saúde, metodologias ativas de ensino, aprendizagem e avaliação, além do
desenvolvimento e implementação de métodos de ensinagem(e) no trabalho com
estudantes e docentes universitários em capacitações e tutorias, especialmente em
ambientes de ensino tradicional, motivaram a realização deste trabalho.
Destarte, é foco deste estudo refletir sobre o processo de transformação
dos métodos de ensino, aprendizagem e avaliação, tendo como referência o
docente como agente de transformação1. Para tal, a pesquisa-ação foi a estratégia
metodológica utilizada, dando voz a estes agentes.
Para uma melhor caracterização do problema, torna-se importante abordar
os paradigmas educacionais vigentes e as tendências preconizadas pelas políticas
públicas para a educação universitária na atualidade.
O modelo de ensino predominante, denominado tradicional, caracterizado
pela transmissão de conhecimentos, pela ênfase na memorização em detrimento
da reflexão crítica, designado por Freire2 como educação bancária, baseiase, essencialmente, em aulas expositivas, onde o professor é o detentor de
conhecimentos e grande protagonista, cabendo, aos estudantes, repetirem
fidedignamente os conteúdos memorizados nas provas classificatórias2-5.
Não obstante, a sociedade do conhecimento atual, altamente influenciada
pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), pelo uso da internet e pela
criação e circulação de um volume cada vez maior, e de velocidade extraordinária,
de conhecimentos e informações, coloca em evidência a urgente superação
deste modelo tradicional, necessitando, para isto, que a universidade invista em
estratégias de desenvolvimento docente, visando capacitá-los ao manejo de
diferentes tecnologias educacionais5.
Nessa perspectiva, destaca-se o uso de metodologias ativas de ensinagem
no que tange ao desenvolvimento de competências necessárias à formação do
estudante-profissional-cidadão, em quaisquer áreas do conhecimento4,6. Estas
metodologias inovadoras dão ênfase ao processo de ensino, aprendizagem e
avaliação, ao darem protagonismo aos estudantes, colocando-os como agentes
proativos, estimulando que busquem respostas para problemas reais e complexos
com liberdade e autonomia, tornando-os, assim, corresponsáveis na tomada
de decisão; o que gera, consequentemente, uma ruptura com a aprendizagem
mecânica e conteudista7,8.
Mais especificamente, no campo da saúde, algumas considerações se fazem
necessárias, tendo em vista as mudanças no perfil profissional exigidas pelo
Sistema Único de Saúde (SUS), segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN)9,10. As DCN preconizam que a formação do profissional de saúde deva
ser condizente com as diretrizes e princípios do SUS – de universalidade,
integralidade, equidade, descentralização, participação e controle social –,
objetivando a formação de profissionais-cidadãos engajados na luta pela vida,
formados a partir de um perfil: generalista, humanista, ético, crítico, reflexivo,
com competência técnica e capacidade de atuar sobre os problemas de saúde
mais prevalentes do país7,10.
Neste contexto, o papel do docente deve mudar drasticamente, passando de
detentor do conhecimento para o de facilitador e provocador epistemológico(f).
Aqui o estudante deve ser estimulado a estabelecer relações e conexões com o
374
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):373-86
Ensinagem: de
acordo com Anastasiou
e Alves5, este termo
indica uma prática
social complexa entre
os sujeitos (professores
e alunos), que engloba
tanto as ações ligadas
ao ensinar quanto ao
aprender, decorrentes de
atividades realizadas em
sala de aula e fora dela;
transcende o simples ato
de transmitir conteúdos,
para um processo no
qual o conhecimento
é construído de uma
maneira consciente
e contratual. Além
disso, este termo evita
a dicotomização dos
momentos do ensinar e
do aprender, visto que
são partes do mesmo
processo. Ele será
empregado no decorrer
do texto, quando houver
referência à expressão
ensino-aprendizagem.
Porém, quando
houver referência a
metodologias ou a
processos tradicionais
de ensino, a expressão
processo de ensino
e aprendizagem será
mantida.
(e)
(f)
Provocador
epistemológico: para
Schon11, o professor
exerce o papel de
mediador, facilitador, problematizador
e ‘provocador
epistemológico’ das
questões concernentes
ao processo de ensino
e aprendizagem,
atuando no sentido de
estimular o aprendiz
a procurar o que não
conhece; para este
autor o conhecimento
não advém de
ensinamentos, mas de
questionamentos.
Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM
artigos
seu objeto de estudo, a partir da escolha das melhores estratégias didáticas, e incentivado a teorizar a
partir de sua experiência em cenários reais de prática.
Investir em processos de formação que rompam com as formas cristalizadas tradicionais de
ensino e aprendizagem na docência universitária e que levem em consideração todas estas questões
– configuração atual da sociedade, avanços tecnológicos, necessidades sociais, DCN, dentre outros –
passa pelo planejamento de arranjos educacionais inovadores. Estes devem mesclar os pressupostos
teóricos das metodologias ativas de ensinagem e da aprendizagem significativa, em interface com as
TIC, propiciando o desenvolvimento de processos críticos e reflexivos, que despertam a criatividade
e se baseiam nela, e que se ancorem na problematização da realidade como ferramenta educacional
estratégica.
Assim, o momento atual sugere novas formas de conceber o modelo educativo, exigindo mudanças
do papel tradicional dos docentes, dos discentes e da própria administração universitária. O ensino de
qualidade exige que a universidade crie condições para o desenvolvimento do docente ao longo de
toda a sua carreira profissional, valorizando aquele que reconhece o papel da educação permanente na
construção de sua expertise enquanto profissional da saúde, pesquisador e educador. O que se propõe,
portanto, é que os docentes realizem um giro significativo desde os pontos de vista pedagógico,
epistemológico e psicossocial4,12,13.
Neste contexto, seguindo as orientações nacionais, inscritas nas DCN10, e as internacionais, inscritas
no Informe da Unesco14 e no Processo de Bolonha15, ressalta-se que a inovação educativa que as novas
orientações demandam não deve vir de fora, mas pelo caminho da reflexão sobre a própria prática e
pelo trabalho que a instituição/administração universitária deve desenvolver junto aos docentes. Isto
exige que as mudanças na práxis educativa não devam existir em contextos solitários, mas, sim, por
meio da construção coletiva de uma nova prática educativa16.
Inspirando-se nesse cenário, este estudo se propõe a refletir acerca da educação universitária
na atualidade, a partir das seguintes dimensões: o que temos; o que queremos; e as estratégias
que devem ser delineadas e mobilizadas para transformação dos processos de ensinagem. Assim, é
objetivo deste estudo discutir sobre os paradigmas e tendências do ensino universitário na atualidade,
apontando estratégias de formação e desenvolvimento docente.
Métodos
Desenho do estudo e referencial teórico-metodológico
Estudo de natureza qualitativa, que utilizou a orientação metodológica da pesquisa-ação, por se
configurar como uma estratégia de pesquisa na qual a intervenção no meio estudado ocorre pela
participação ativa dos pesquisadores e participantes. Neste método, os problemas identificados durante
a pesquisa devem ser resolvidos no decorrer desta, de forma a auxiliar o agente na sua atividade
transformadora (emancipadora); é uma pesquisa que investiga a própria prática com a finalidade de
melhorá-la17,18.
A pesquisa-ação apresenta etapas, que podem ser entendidas como um ciclo (Diagrama 1), que
são: planejamento, implementação, descrição dos resultados e avaliação das mudanças ocorridas para
o aperfeiçoamento da prática17.
O presente estudo foi desenvolvido com base nos resultados oriundos da implementação de
capacitações docentes para atuação como tutores em disciplina semipresencial, que integrou docentes
e estudantes de diferentes áreas de conhecimento e de dois campi da mesma universidade pública,
distantes geograficamente cerca de seiscentos quilômetros. O conteúdo programático desta disciplina
abrangeu temas transversais à formação profissional (políticas públicas de saúde e cidadania), e
utilizou ferramentas pedagógicas fundamentadas nos referenciais teóricos das metodologias ativas de
ensinagem, visando o desenvolvimento de competências pessoais, profissionais e digitais pelos agentes
envolvidos.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):373-86
375
paradigmas e tendências do ensino universitário: ...

AÇÃO
AGIR para implantar
a melhora planejada


Monitorar e DESCREVER
os efeitos da ação
PLANEJAR uma
melhora da prática

AVALIAR os resultados
da ação
INVESTIGAÇÃO
Diagrama 1. Representação em quatro fases do ciclo básico da
investigação-ação
Fonte: Tripp17
O Diagrama 2 apresenta as etapas que compuseram o presente estudo em consonância com os
percursos propostos pela pesquisa-ação.
Etapa 2 (AGIR)

AÇÃO

. Capacitação dos tutores
(Módulos I e II)
Etapa 1 (PLANEJAR)
Etapa 3 (DESCREVER)
. Planejamento da disciplina semipresencial
.
intercampi
. Planejamento da capacitação dos tutores
(docentes da universidade e estudantes de
mestrado e doutorado) para atuação na disciplina.

Observação da participação, dos relatos, dos
depoimentos acerca das vivências e atuação na
docência universitária, das expressões verbais e
não-verbais dos participantes (tutores), das práticas
e percepções sobre os processos de ensinagem,
durante o desenvolvimento dos dois módulos da
capacitação para tutoria.
.
Avaliação das capacitações I e II (avaliação dos
métodos de ensinagem, dos conteúdos abordados
e de sua validade para o desenvolvimento de
competências pelos estudantes, da mudança
de percepção acerca dos métodos de ensino,
aprendizagem e avaliação pelos tutores), por meio
do método do Panorama Sobe e Desce, Wordle e
registros em diários de classe.

Etapa 4 (AVALIAR)
INVESTIGAÇÃO
Diagrama 2. Etapas da pesquisa-ação propostas por Tripp17, aplicadas à formação/capacitação docente na pesquisa apresentada
376
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Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM
artigos
Participantes do estudo
Participaram deste estudo docentes e estudantes de mestrado e doutorado de diferentes áreas de
conhecimento que atuavam nos dois campi da universidade, totalizando 14 indivíduos, que foram
codificados pela letra P (participante), seguidos de um número que os identificou.
Estes agentes não possuíam experiência com processos inovadores de ensinagem, manejo de
ambientes virtuais de aprendizagem e atuação em atividades de tutoria.
Instrumentos de coleta de dados
Os dados aqui apresentados são oriundos dos momentos de desenvolvimento de programas de
formação/capacitação docente para atuação como tutores na disciplina semipresencial intitulada:
Tópicos Especiais em Políticas de Saúde e Cidadania. Caracterizou-se pela utilização de metodologias
ativas de ensino, aprendizagem e avaliação; o manejo de ambientes virtuais de aprendizagem; a
formação docente e discente centrada em competências; além da discussão de temáticas transversais
à formação universitária, como políticas de saúde e cidadania. Viabilizou-se por meio de um desenho
de ensino inovador, que visou integrar atores com formações distintas e distantes geograficamente, e
formá-los para as exigências profissionais contemporâneas com novas ferramentas e tecnologias de
ensino.
Desse modo, a implementação de distintas tecnologias educacionais se configurou como
uma proposta de intervenção (pesquisa-ação), na qual os resultados oriundos do processo de
implementação das capacitações foram descritos e avaliados por distintos métodos. Neste estudo,
serão utilizados os dados coletados por meio das técnicas do Panorama Sobe e Desce, Wordle e Diários
de Classe, que foram utilizados em todos os momentos das capacitações.
O Panorama Sobe e Desce foi criado pelas docentes Lia Márcia Cruz da Silveira e Denise Herdy
Afonso, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); e é uma técnica que visa diagnosticar
fatores motivadores, representados pelo SOBE, e desmotivadores, representados pelo DESCE, de
participação/atuação em algum curso/cenário de trabalho/dentre outros, no qual post-its de duas
cores diferentes são distribuídos aos participantes para que estes possam listar, a partir de suas
visões de mundo e experiências, os fatores que os motivam e desmotivam a participar ou exercitar
determinada ação/atividade. Esse método é muito útil, também, para comparação e avaliação de
processos de ensinagem, ao dar parâmetros avaliativos iniciais e finais.
Os resultados do Panorama Sobe e Desce podem ser representados por um diagrama de palavras
denominado Wordle, no qual o tamanho das palavras e/ou expressões representam o quantitativo de
vezes em que estas foram citadas pelos entrevistados.
O Diário de Classe, por sua vez, de acordo com Zabalza19, é um instrumento narrativo e reflexivo
que possibilita a obtenção de uma perspectiva completa de tudo que foi realizado e de sua sequência;
permite, ainda, que seja realizada uma “leitura” mais profunda e pessoal dos acontecimentos, por
meio do registro de sensações, imagens, experiências, o que leva a uma visão mais ampliada de todo
o processo de trabalho e das relações que se estabeleceram, sendo um recurso de reflexão sobre a
própria prática.
A análise utilizou, como referencial teórico, os estudos desenvolvidos por Blanco12, para o qual
se construíram quadros comparativos (Quadros 1, 2 e 3) entre o que este autor preconiza para a
educação universitária e quais os resultados encontrados no presente estudo, representados na Etapa 4
do Diagrama 1.
Aspectos éticos
Este estudo faz parte do projeto intitulado: “Programa de Inovação em Docência Universitária
(PRODUS): uma proposta de (trans)formação no processo de ensino e aprendizagem para os cursos
da área da saúde na Universidade Federal de Viçosa (UFV)”. Foi aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa com Seres Humanos da UFV em 05/04/2013, em consonância com a Resolução nº
466/2012/CNS, que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):373-86
377
paradigmas e tendências do ensino universitário: ...
Resultados
Os depoimentos dos agentes participantes deste estudo, durante os momentos de capacitação
para o exercício da tutoria, apontam para uma insatisfação no uso do modelo tradicional de ensino
e aprendizagem. Por meio do Quadro 1, pode-se visualizar uma representação gráfica sobre a
“Educação no Ensino Superior: o que temos”, construída a partir dos pressupostos teóricos apontados
por Blanco12. Os dados extraídos dos depoimentos dos participantes que constavam no Diário de
Classe podem ser visualizados na terceira coluna (Práxis), como forma de ilustração dos constructos
teóricos destes autores. Salienta-se a apresentação de dois paradigmas que necessitam ser analisados
pelos atores do cenário educacional contemporâneo – o desenho da sociedade atual e o modelo
tradicional de educação, que se configuraram como pano de fundo das discussões dos docentes/
tutores em formação.
A aplicação de metodologias ativas, no contexto analisado, transcendeu o simples conhecimento
de sua técnica na visão dos participantes. Estes esboçaram uma necessidade de empregá-las, e,
sobretudo, de refletirem acerca de seu contexto de utilização, além de uma análise da viabilidade
de sua aplicação, tendo em vista que todos pertenciam a uma universidade na qual os cursos de
graduação são estruturados sob o formato de currículos tradicionais por disciplinas. Neste contexto,
por meio do Quadro 2, apresenta-se o tema a “Educação no Ensino Superior: o que queremos”,
Quadro 1. Paradigmas educacionais no âmbito universitário: o que temos13,20
EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: O QUE TEMOS...
Paradigmas
Práxis
Características
Desenho da
sociedade atual
Modelo tradicional
de educação
. Sociedade em mudanças constantes (social,
econômica, educação).
. Sociedade do conhecimento/informação.
. Questionamento do papel das universidades
na sociedade frente a estas mudanças.
. Contexto socioeducativo pouco promotor
de uma educação/crescimento voltado à
emancipação e compromisso social e político.
. Sociedade consumista e conformista, com
pouca implicação social e política.
. Contexto de difusão intensa de ideias e
informações.
“Não podemos mais fechar os olhos e fingir que
as mudanças não existem. A era da internet, a
velocidade e a quantidade de informações que
temos hoje nos obriga a estar atualizados e a usar
novas tecnologias (P11)”.
. Metodologias tradicionais: não medem
progresso, não desenvolvem competências.(*)
. Docente sem envolvimento/capacitação em
processos de ensino inovadores.(**)
. Pensamento tradicional: lógico e
convergente em busca de um resultado
esperado/pronto/acabado/inflexível/sem
criatividade.(***)
. Aluno se acostuma com os fatos dados,
conforma-se com qualquer perspectiva, sem
aprofundar-se, sem preocupar-se em ver o
fenômeno sob outro paradigma.
.Ensino carregado de conteúdos, dissociação
entre teoria e prática. Interesse centrado em
resultados de aprendizagem, que ignora o
valor dos processos formativos e variáveis
relacionais e sistêmicas.(****)
. Atuação que gera condutas rotineiras,
dependentes e pouco flexíveis.#
“Viemos de um modelo engessado, que não te dá
asas... o que mudou nesta sala de aula desde que
eu estudei aqui, há anos? (P6)”.(*) (***)
“Temos uma raiz muito profunda no ensino
tradicional. Romper com isso é muito difícil (P14)”.
(**)
“Sensibilizar as pessoas para o ensino não é fácil
(P13)”.(**)
“O paradigma da nossa universidade é só valorizar
pesquisa. Na minha opinião, para o aluno é muito
mais interessante eu estar aqui me capacitando
para dar aulas melhores do que somente
escrevendo artigos (P5)”.(****)
“Quando a gente tá só no nosso ambiente de
trabalho, fazendo sempre as mesmas coisas, a
gente não abre os olhos, não cria possibilidades.
Precisamos fomentar essa necessidade do professor
criar e inovar (P2)”.#
Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.
378
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM
artigos
delineado a partir dos pressupostos teóricos elaborados por Blanco12. Referente ao “Papel do docente”,
destaca-se a importância do ser agente-professor aberto ao novo, com motivação e proatividade.
A utilização de processos inovadores de ensinagem também foi considerada como uma importante
estratégia de mudança de paradigma educacional por todos os participantes do estudo. Verificou-se,
Quadro 2. Tendências educacionais no âmbito universitário: o que queremos13,20
EDUCAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: O QUE QUEREMOS...
Tendências
Papel do docente
Desenvolvimento
de competências
Educação
centrada na
realidadeproblematizadora
Características
Práxis
. Modelo de educação centrado na tolerância, nos valores,
no respeito e diversidade.(*)
. Foco no aluno. Envolver a pessoa que aprende no
processo de ensino.(*)
. Gestor da informação/guia da aprendizagem.(*)
. É necessário prever riscos, planejar, estabelecer
prioridades.
. Responsável pela formação integral.(**)
. Conflito= pontos de vista diferentes= busca de soluções
criativas. Gestão do conflito.
. Promotor de um ensino não somente transmissor de
conhecimentos, mas sobretudo que fomente a capacidade
de decisão e pensamento do aluno.(***)
. Agir de forma criativa → capacidade ou atitude para gerar
alternativas/soluções a partir de uma informação dada
→ cria propostas inovadoras/propõe novos caminhos e
novas soluções a cada problema → dar respostas novas a
problemas já conhecidos.#
. Dar feedback nos processos educacionais, permitindo ao
aluno a revisão de erros.##
“O estudante espera que o tutor seja virtual mas que
não seja um robô. Se o aluno tá perdido, ele quer o
conforto de poder ser guiado pelo tutor. O tutor que
todos procuram deve ter coração, compaixão (P8)”.(*)
“Discutir as formas de ensinar está sendo diferenciado
para mim, me faz pensar e querer ser melhor como
professor (P6)”.(**)
“
As metodologias ativas tiram os resquícios de autoridade
do professor. Temos que desconstruir o perfil dos
docentes (P1)”.(***)
“Para trabalhar com metodologias ativas o professor tem
que querer, e precisa conhecer. Muitas vezes o professor
não quer nem conhecer (P5)”.#
“
Fazer uma avaliação apreciativa estimula o aluno a
querer melhorar (P10)”.##
. Desenvolvimento das competências gerais:
pensamento crítico: atitude de dúvida/interrogação.
Raciocínio, solução de problemas, tomada de decisões
(interpretação, análise, avaliação, inferência, explicação,
autorregulação), que requer flexibilidade, reflexão.(*)
. Autonomia, responsabilidade, autoconfiança, consciência
dos valores éticos, flexibilidade, comunicação, iniciativa,
inovação, criatividade, planejamento, trabalho em equipe.(**)
. Competências secundárias: uso de tecnologias da
informação, manejo de diferentes culturas, dos conflitos, da
negociação.
. Competências específicas (de cada área).
. Novas tecnologias/meios/habilidades de gerir a
informação. Competência: gestão da informação e das TICs.
“Saber estimular as competências de cada um, num
movimento dialético e dialógico está sendo muito
importante para mim enquanto professor (P4)”.(*)
“Sou muito tímida, aqui estou mudando muito
isso; coisas que eu não mudaria se não fizesse esta
capacitação. To vencendo minha timidez. Essa fala
espontânea eu aprendi e desenvolvi aqui. Em termos
pessoais ganhei muita segurança e confiança em ser
docente. Estou muito motivada a buscar mais, sem medo
(P7)”.(**)
. O aluno deve aprender a conhecer a importância/
utilidade do conteúdo em sua via e futuro profissional.(*)
•
Educar com criatividade, para a mudança e formação de
pessoas ricas em originalidade, flexibilidade, perspectiva,
iniciativa, confiança, tolerância, com enfrentamento dos
problemas que se apresentam na vida pessoal, profissional
e social.(**)
. Sociedade formada por pessoas criativas, empreendedoras
e inovadoras nos âmbitos profissionais.(***)
“Tô aprendendo aqui além de metodologias ativas e
políticas de saúde. Tô entendendo as coisas que estão
acontecendo no momento atual no Brasil (P7)”.(*)
“O ensino muitas vezes tá desvinculado da realidade
na formação tradicional. Eu to procurando agora fazer
diferente na minha disciplina. E to aprendendo isso,
fazendo (P5)”.(*)
“Foi muito bom mudar o planejamento de última hora.
Uma aluna disse que é muito bom estudar o que estamos
vivenciando no momento atual (P7)”.(**)
“Não é final de nada. Saímos daqui com mais cidadania
e empoderamento para lutar por uma sociedade melhor
(P9)”.(***)
Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.
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379
paradigmas e tendências do ensino universitário: ...
além dos depoimentos orais e escritos, que a expressão não verbal e os olhares contemplativos dos
indivíduos manifestaram satisfação, alegria e bem-estar, além da abertura ao conhecimento novo,
marcada pela integração, interação e trabalho em equipe (Quadro 3).
Quadro 3. Necessidades e Estratégias educacionais no âmbito universitário13,20
PARA ISSO, HÁ QUE SE DESENVOLVEREM ESTRATÉGIAS...
Necessidades
Estratégias
. Mudanças no paradigma
Desenvolvimento
docente/discente/
institucional
docente.(*)
. Capacitar graduandos para
formação profissional e cidadã.
. Utilização de indicadores de
competências e técnicas que
permitam desenvolvê-las.
. Uso de metodologias
participativas para
desenvolver competências de
responsabilidade, comunicação e
trabalho em equipe.(**)
. Metodologias que gerem o
debate, a discussão dialética, o
encontro de diferentes fontes,
geradoras do pensamento
crítico, do aprendizado dialógico,
cooperativo, autônomo, baseado
em problemas da vida real.(**)
. Criar uma cultura de aula que
estimule o pensamento crítico.(***)
. Estimular em aula e fora
dela situações de reflexão,
interrogação e crítica
fundamentada.(***)
. Intenso debate nos meios
acadêmicos para compreensão
em profundidade quanto ao
desenvolvimento de um projeto
pautado no currículo por
competências.(****)
. Mudanças no planejamento e
desenho curricular.(****)
. Desenhar cenários e
situações de aprendizagem
e articulá-los aos diferentes
níveis de desempenho das
competências.(****)
. Utilização de novas TICs.#
. Desenvolver as competências
em cenários autênticos/reais,
semelhantes aos encontrados
no contexto laboral e da vida
cotidiana.##
. Planejamento: competência
básica= estabelecer objetivos,
eleger meios para alcançá-los,
analisar informações existentes,
estabelecer um plano de
atuação.###
Propostas dos agentes
“A grande questão é que tem que treinar a gente, para que
possamos ter acesso a estas ferramentas de ensino inovadoras
(P3)”.(*)
“Os treinamentos reforçaram a ideia que eu tinha de que os
métodos atuais de ensinagem tem que mudar. Em 5 dias de
capacitação eu aprendi mais que se tivesse feito uma disciplina de
um semestre. Eu li, ri, aprendi, construí, reconstruí [...] (P5)”.(*)
“Estou descobrindo um caminho de solo firme e frutífero. Estamos
conseguindo fazer integração a distância (P2)”.(*)(**)
“Sinto uma grande transposição acontecendo em mim, do estático
ao dinâmico. Está sendo construído um ensino, um trabalho vivo
(P1)”.(*)(**)
“Acho um zelo vocês escutarem os professores. Não estamos
acostumados a isso (P5)”.(**)
“Como foi produtivo olhar os cartazes produtivos e ver o que
fizemos! Como vocês programaram várias estratégias, controle do
tempo [...].
“Adquiri competências para fazer uma análise mais criteriosa do
SUS. Eu não teria esse olhar crítico se não tivesse sido estimulada
a isso. Sem estes momentos aqui não teria tido vontade ou
motivação para ler sobre o assunto. Fui despertada para isso
(P2)”.(***)
“Não achei que ia chegar neste resultado final. Achei que ia ficar
em branco. Interessante trabalhar com o pré-conhecimento (P8,
relatando a satisfação em ver o Mapa Conceitual produzido)”.(***) #
“Antes era difícil trabalhar no ambiente virtual. Só aprendi
mexendo, acessando. E treinar isso como aluno foi fundamental
para eu ter segurança de aplicar junto com meus alunos. As aulas
narradas foram excelentes recursos de aprendizagem (P9)”.#
“[...] precisamos repensar nossas metodologias de ensino para
mostrarmos aos nossos alunos a importância do conhecimento!
(P6)”.(****)
“Aprendi bastante. Me surpreendi. Me modifiquei. Criei (P9)”.(**) #
“Que pena que acabaram as capacitações. Outros colegas tinham
que ter essa oportunidade (P7)”.##
“Adquiri mais confiança em mim como pessoa e como docente
depois que aprendi novas formas de ensinar. Me sinto como se eu
estivesse saindo do armário, desabrochando mesmo (P6)”.(**)
“Organização e sensibilidade foram destaque aqui durante os três
dias da capacitação. Isso traz segurança pra gente que estamos
aprendendo coisas que foram bem planejadas (P11)”.(**) #
“Aprendo aqui a reaprender. Pegar o Mapa Conceitual, refazer,
reconstruir, mudar meus pontos de vista, para melhorar a
autocrítica, para fazer mais reflexão (P6)”.(**)(***)
“Tô aprendendo organização e gestão do tempo. E a discutir as
temáticas na visão do professor e do aluno (P1)”.###
“Sinto agora que o novo é aquilo que me estimula, e não dá mais
medo (P10)”.(*)(**)(***)
“O caminho para a consciência e exercício da cidadania é a
educação (P7)”.(****)(*)
Os símbolos (*) e # foram utilizados como legenda para indicar qual pressuposto cada fala representa.
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O Quadro 3 traz, na primeira coluna, as “Necessidades”, aqui representadas pelo
“Desenvolvimento docente/discente/institucional”, e as estratégias que precisam ser delineadas para
o alcance de objetivos educacionais mais consistentes e duradouros, que contemplem os agentes
inseridos no processo. A necessidade de capacitação e desenvolvimento docente foi apontada por
unanimidade pelos professores. Dentre os principais pontos ressaltados, aparecem: a gestão do tempo,
organização, comunicação, crítica, reflexão, manejo das TIC, conexão de conhecimentos novos com os
prévios, dentre outros, que podem ser comprovados na terceira coluna do Quadro 3.
Os participantes apontam para a necessidade de programas de desenvolvimento docente contínuos
e duradouros, o que, na maioria das vezes, é dificultado pelas inúmeras atividades profissionais,
contexto de trabalho e desafios institucionais. Este fato pode ser observado no Wordle demonstrativo
do DESCE, do Panorama Sobe e Desce, resultado dos Módulos I e II das capacitações (meses abril e
julho de 2013), onde se destacam como fatores desmotivadores para a participação em atividades de
educação permanente: a sobrecarga de trabalho/cansaço, a insegurança quanto ao uso correto das
metodologias aprendidas e a falta de tempo (Figura 1).
DESCE
MEDO-NOVO
DESLOCAMENTO
23/04/2013
TEMPOCANSAÇO
DEMANDA-ALUNO
TRABALHO-INDIVIDUAL
FALTA-COMPROMETIMENTO
TEMÁTICA-DISCIPLINA
TRABALHO-EQUIPE
NÃO COLABORAR
INTERESSE-ALUNO
PREOCUPAÇÃO
Sobrecarga
11/07/2013
Tempo
Figura 1. Wordle “DESCE”, representando os fatores desmotivadores para participação em
cursos de treinamento/capacitação, na visão dos docentes e estudantes de pós-graduação
Por outro lado, quando questionados sobre os fatores que os motivam (SOBE) a participar de
capacitações e desenvolvimento docente, aprender sobre metodologias ativas e o trabalho em equipe
foram os elementos mais citados (Figura 2).
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paradigmas e tendências do ensino universitário: ...
sobe
Aplicabilidade
APRENDER
CAPACITAÇÃO Troca saberes NOVAS-METODOLOGIAS
23/04/2013
Integração
Aprender
aprimoramento
COMPROMETIMENTO Entusiasmo Colaboração
INOVAÇÃO
TRABALHO-EQUIPE
Professores experts
Conhecimentos
Prazer em ensinar
Novas experiências
Relacionamento Dinâmicas
Trabalho-equipe
11/07/2013
Novos conhecimentos
Amizade
Autonomia
Envolvimento-aluno
Interdisciplinaridade Integração
Formação
Aplicação prática
Pró-atividade
Metodologia-ativa
Alegria
Desenvolvimento pessoal
Desafios
Integração-campi
Figura 2. Wordle “SOBE”, representando os fatores motivadores para participação em cursos
de treinamento/capacitação, na visão dos docentes e estudantes de pós-graduação
Discussão
A discussão sobre os paradigmas e as tendências das práticas educativas sob a perspectiva da
pesquisa-ação aponta para um projeto de intervenção que teve por objetivo mudanças concretas, e,
como ponto de partida, problemas advindos da práxis educativa como prática social.
Elaborar um desenho metodológico que seja significativo e coerente com as demandas sociais,
baseado no processamento complexo da informação e na utilização das potencialidades de
determinado entorno, utilizando as tecnologias e meios apropriados, e identificando qual recurso
pode propiciar maior ou menor aprendizagem ao indivíduo, representa o grande desafio das práticas
educativas, e da transformação da sociedade da informação em sociedade do conhecimento. “A
qualidade dos atos que produzimos dependem precisamente da qualidade de nossas competências, da
projeção das mesmas na sociedade e do uso eficiente das TICs”20 (p. 155).
Nesse contexto metodológico, os achados deste estudo, representados nos quadros e figuras
oriundos dos processos de capacitação em tutoria, mostraram o êxito de utilização de um formato
educacional inovador, que combinou o uso de metodologias ativas de ensinagem mesclando AVA e
ambientes presenciais, com foco no desenvolvimento de competências.
A utilização da metodologia da pesquisa-ação, neste estudo, possibilitou a construção de estratégias
de capacitação e desenvolvimento docente (Planejamento - Etapa 1 dos Diagramas 1 e 2), por meio da
observação, registro (Descrição - Etapa 3 dos Diagramas 1 e 2) e avaliação do processo implementado
(Avaliação - Etapa 4 dos Diagramas 1 e 2). O processo de aprendizagem foi avaliado pelos agentes
(coordenadores e tutores em formação) por meio de feedback constante, contínuo e in lócus.
Cabe ressaltar que as técnicas de coleta de dados utilizadas – o Panorama Sobe e Desce, o Wordle
e o Diário de Classe – se complementam como estratégias metodológicas. Enquanto o Panorama Sobe
e Desce é empregado com o objetivo de fazer o diagnóstico estratégico do processo de capacitação,
o Wordle apresenta os resultados deste diagnóstico, de forma dinâmica e de fácil visualização,
constituindo-se em uma representação gráfica da percepção dos participantes. O Diário de Classe, por
382
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sua vez, constitui uma ferramenta de monitoramento do processo de implementação das capacitações,
pautando-se na observação criteriosa e avaliação longitudinais, possibilitando a revisão de estratégias
didáticas adotadas de forma contínua e em tempo hábil, o que vai ao encontro dos pressupostos da
metodologia da pesquisa-ação.
Neste sentido, todo o processo de planejamento envolveu a elaboração de um plano rigoroso
de atividades, distribuídas em tempos precisos, e que foram inúmeras vezes reconfiguradas para
atender às demandas docentes e contextos emergentes. Ademais, a realização de reuniões da equipe
coordenadora da capacitação diariamente – educação permanente –, após o término das atividades,
possibilitou a correção de rumos no que tange à gestão do tempo, temas e técnicas escolhidas, além da
inserção de conteúdos conforme demanda e rumos da capacitação. Trata-se, portanto, de um processo
dinâmico e mutante, configurado segundo a necessidade e interesse identificados.
A partir destas considerações, ressalta-se que a utilização da pesquisa-ação em contextos
educacionais é um método amplamente difundido, e vem ganhando espaço no Brasil, uma vez que as
pesquisas convencionais (que revelam diagnósticos situacionais ou avaliação de rendimentos escolares)
não mais expressam as reais necessidades de conhecimento dentro da área de ensino. O conhecimento,
a partir dos pressupostos desta metodologia, é apropriado como um instrumento indispensável a um
projeto de mudança, de transformação de uma realidade, produzindo informações e conhecimentos
mais efetivos para solução de problemas existentes no mundo atual, ao estabelecer uma conexão com
a sociedade em sua complexidade, seus problemas e desafios18.
Desse modo, conseguir despertar nos docentes: a necessidade de mudança paradigmática no
ensino universitário (identificada pelas falas que demonstraram mudança de olhar, visão e perspectiva);
a motivação intrínseca que foi observada pelo desejo de utilização dos métodos aprendidos e
apreendidos em outras disciplinas que ministram (que pode ser identificada na Figura 2), e, ainda, a
demanda por novas capacitações, sugere que a implementação de programas de desenvolvimento
docente na instituição, aqui representados pelas oficinas de formação de tutores, foi fundamental para
provocar, nos agentes envolvidos, o interesse pela mudança da práxis docente e institucional.
O processo de formação transforma os agentes, e, neste caso, o objeto de estudo foi alvo de
criação e planejamento constantes, possuindo, ainda, uma dimensão conscientizadora4,7,18,21. Assim,
o modelo educacional planejado, executado, descrito e avaliado junto aos docentes e estudantes de
pós-graduação alvos deste estudo produziu, além de um diálogo constante entre os agentes envolvidos
(conforme pode ser observado nos depoimentos que constam nos Quadros 1, 2 e 3, o que levou ao
redirecionamento do planejamento em alguns aspectos), a tomada de consciência sobre a problemática
do ensino na atualidade, bem como das políticas de saúde e cidadania, conforme se ilustra nos
depoimentos que se seguem:
“Adquiri competências para fazer uma análise mais criteriosa do SUS. Eu não teria esse olhar
crítico se não tivesse sido estimulada a isso. Sem estes momentos aqui não teria tido vontade ou
motivação para ler sobre o assunto. Fui despertada para isso”. (P2)
“Como foi produtivo olhar os cartazes produtivos e ver o que fizemos! Como vocês
programaram várias estratégias, controle do tempo [...] Essa semente que está sendo plantada
aqui hoje quero levar pra minha prática docente”. (P2)
Paulo Freire22 destacou os processos de formação de docentes como um movimento dialético, que
compreende o fazer e o pensar sobre o fazer, ou seja, a reflexão consciente da prática. Sob esse ponto
de vista, a prática emancipadora e contextualizada aos fatos reais que foram surgindo no decorrer
da pesquisa, contribuiu para o desenvolvimento de competências pelos participantes, atributos que
servirão de âncora para sua práxis profissional, viabilizando uma formação condizente com as DCN e
com o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos, atitudes e valores.
Por fim, investir em processos de capacitação que estimulem o desenvolvimento docente e a
aquisição de competências exige um conjunto de dimensões que envolvem: o conhecimento do
contexto social da prática docente (sobrecarga de tarefas, ausência de tempo para envolvimento em
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paradigmas e tendências do ensino universitário: ...
novas funções, motivação, investimento institucional, dentre outros – conforme evidenciado nas
Figuras 1 e 2 do Wordle SOBE e DESCE), das atividades desenvolvidas, dos pressupostos teóricofilosóficos que embasam suas ações, além da seleção de métodos de ensinagem que possam contribuir
para uma mudança de visão e atitude perante a vida profissional e pessoal.
Considerações finais
A temática abordada neste estudo inscreve-se em um cenário real, ideológico, político e social
complexo, permitindo a análise e reflexão a partir de múltiplas perspectivas, a saber: da metodologia
utilizada (pesquisa-ação), da relevância do estudo sobre o que se pretendia “ensinar” (metodologias
ativas, manejo de TIC e formação centrada em competências), da valorização dos participantes e
de suas experiências de vida e de ensino como fator gatilho para o processo de revisão de práticas e
tomada de consciência quanto às exigências atuais da sociedade contemporânea.
Ademais, merecem destaque alguns apontamentos acerca da necessidade de envolvimento
institucional no planejamento e oferecimento de programas de desenvolvimento docente, que
despertem, criticamente, nos indivíduos envolvidos, o desejo da mudança, e que os ajude a caminhar
no planejamento e aplicação de novos arranjos metodológicos.
Sob essas perspectivas, compreendeu-se que o processo de capacitação de profissionais que atuam
no âmbito do ensino universitário, desenhado de forma dialógica e participativa, rompeu com as
concepções positivistas dominantes, valorizando e dando voz aos agentes; e mostrou-se eficaz no que
tange à conscientização destes indivíduos quanto à importância de se inserir o ensino na agenda das
prioridades da universidade, visando a (trans)formação de suas práticas de ensinagem.
Falar de paradigmas requer ruptura: ruptura com o pensamento e práticas tradicionais, ruptura
com modos de viver e trabalhar já reconhecidamente obsoletos e que exercem pouca influência sobre
a realidade; o que exige abertura ao novo, àquilo que é capaz de causar inquietação e despertar o
desejo e a motivação de mudança.
Concluímos estas discussões acreditando que as atitudes legítimas se originam de inquietações e
desconfortos, nas quais somos levados à mobilização de sentimentos, visões e percepções por meio da
ação-reflexão-nova ação, o que foi belamente relatado por Rubem Alves23 (p. 11):
A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faca sofrer.
Sofrendo a ostra diz para si mesma ‘Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com
uma esfera lisa que lhe tire as pontas...’ Ostras felizes não fazem pérolas. Pessoas felizes não
sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma
dor. Não é preciso que seja uma dor doída. Por vezes a dor aparece como aquela coceira que
tem o nome de curiosidade.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM
artigos
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Mendonça ET, Cotta RMM, Lelis VP, Carvalho Junior PM. Paradigmas y tendencias de
la enseñanza universitaria: la metodología de la encuesta-acción como estrategia de
formación docente. Interface (Botucatu). 2015; 19(53):373-86.
El objetivo dese articulo fue discutir sobre los paradigmas y tendencias de la enseñanza
universitaria en la actualidad, señalando estrategias de formación docente. Se utilizó
como método la encuesta-acción; los datos se colectaron por medio de las técnicas
del Panorama Sobe e Desce, Wordle y Diários de Classe, durante la realización de
capacitaciones docentes para ejercicio de tutorado en asignatura semi-presencial. Las
declaraciones de los participantes señalaron una insatisfacción en el uso del modelo
tradicional de enseñanza; la importancia de que el profesor esté abierto a lo nuevo y,
también, que la utilización de procesos innovadores de enseñanza se consideró una
estrategia importante de cambio de paradigma educativo. El proceso de capacitación de
docentes universitarios se mostró eficaz en lo que se refiere a la toma de conciencia de
estos individuos en relación a la importancia de inserir la enseñanza en la agenda de las
prioridades de la universidad.
Palabras clave: Tecnología. Innovación. Enseñanza. Aprendizaje. Tutorado.
Recebido em 03/05/14. Aprovado em 30/10/14.
386
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):373-86
DOI: 10.1590/1807-57622014.0155
espaço aberto
Educação, cinema e infância:
um olhar sobre práticas de cinema em hospital universitário
Fernanda Omelczuk(a)
Adriana Fresquet(b)
Angela Medieros Santi(c)
Introdução
Trabalhamos com uma concepção de educação que extravasa a escola. Uma
educação em movimento ativo de aprender e desaprender sobre si mesmo e
o mundo, que é, ao mesmo tempo, inventar a si e ao mundo. Uma educação
criadora, presente em todos os processos da vida cotidiana1,2. Pensamos a
educação tal como Franco3 a define. Quando se refere à educação escolar, a
autora fala apenas em instrução. Educação são transformações mais abrangentes
de visão de mundo/de si/ do outro/comportamentos/atitudes/pensamentos/
sentimentos que emergem de inúmeras experiências.
Educação, neste sentido, pode acontecer em qualquer lugar. E observar as
aprendizagens e experiências que vivenciamos em cada esquina e canto do
mundo, e a forma como as mesmas nos desestruturam e nos (re)inventam, nos
ajuda a recordar que a educação não é exclusividade da instituição escolar.
Sendo assim, apresentaremos, neste artigo, a experiência de introdução do
cinema num ambiente hospitalar, a partir do projeto “Cinema no Hospital?”,
que promove atividades de ver, falar e fazer cinema com pacientes, crianças e
adolescentes, que ficam na enfermaria pediátrica de um hospital universitário. O
projeto está sendo desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro há três anos.
O objetivo inicial é aproximar crianças e adolescentes do cinema; ver filmes
e fazer atividades de criação cinematográfica com inspiração na fotografia, nas
artes visuais, em trechos de filmes, em elementos da linguagem cinematográfica,
em fatos da história do cinema, na ambiência do contexto hospitalar.
Associado a isso, objetivamos pesquisar e investigar as possíveis mudanças
que uma experiência simples e introdutória, como a visualização de filmes e
experimentação audiovisual, traz para a vivência de uma criança ou adolescente
hospitalizado em termos de alteridade, além de, por parte daqueles que
participam do projeto, garantir experimentações em campo ampliado, permitindo
pensar novas possibilidades pedagógicas capazes de produzir mudanças
transformadoras para as crianças internadas e os profissionais envolvidos.
Compartilhamos da hipótese de alteridade de Jaques Lang4, que defende a
entrada do cinema no espaço escolar(c) como um “outro”, como algo diferente,
um estrangeiro que vem quebrar e enriquecer as rotinas e estruturas escolares ao
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
(a)
Doutoranda,
Faculdade de Educação,
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Av.
Pasteur, nº 250, fundos,
Urca. Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. 22290-240.
[email protected]
(b,c)
Departamento
de Fundamentos da
Educação, Faculdade
de Educação, UFRJ. Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
adrianafresquet@
fe.ufrj.br; [email protected]
(c)
No final do ano de
2000, Alain Bergala foi
convidado pelo Ministério
da Educação da França
– no nome de Jacques
Lang – para liderar um
projeto de iniciação à arte
na escola, e organiza,
então, a introdução da
arte cinematográfica nas
escolas públicas francesas.
Essa experiência e a
fundamentação do
trabalho realizado
estão relatadas no livro
A Hipótese-Cinema:
pequeno tratado de
transmissão do cinema
dentro e fora da escola.
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387
educação, cinema e infância: ...
“fazer arte”. Acreditamos que o cinema ocupa, nas instituições que penetra (uma escola, um orfanato,
um asilo, ou um hospital) – no caso dessa pesquisa –, o lugar de um estrangeiro, que provoca e
desestabiliza a verdade com a invenção, a emoção, o irracional e o sonho, dimensões humanas
negligenciadas pelo processo educativo.
O cinema enquanto arte restitui à educação o que Larrosa et al.5 chamam de linguagem indireta,
aquela que se utiliza como máscara e, sabendo-se que é uma máscara, é a linguagem do “como
se”, diferente da linguagem direta, séria, austera: a linguagem professoral ou médica, plenamente
identificada com sua posição, seu poder e sua categoria. O cinema compartilha da função do riso, que,
nas palavras de Larrosa et al5, é aquele que mostra a realidade a partir de outro ponto de vista.
Acreditamos que o cinema permite, ainda, outro exercício de alteridade, ao aproximar o outro no
tempo e no espaço – de fato, conhecemos paisagens, culturas, costumes de outros países e épocas –, e
ainda permite um melhor e mais profundo conhecimento de nós mesmos. Mas não é ensinar uma arte,
é algo mais do que uma prática de oficinas ou de aprendizagem mecânica de recursos tecnológicos
para se obter rapidamente um produto. Trata-se de introduzir crianças, adolescentes e adultos dentro
de uma vivência cinematográfica no contexto hospitalar, no mundo do cinema pelo avesso, pelos
bastidores, pelo que não se vende ou se compra no circuito comercial. É aprender a olhar com olhos de
artista, com o desejo e o envolvimento de um criador, de um cineasta.
A iniciativa de desenvolver um projeto para ver e fazer cinema em uma enfermaria pediátrica nasce
porque acreditamos que crianças e adolescentes, ao “fazerem arte”, são capazes de produzir um
mundo particular, que só o olhar inexperiente – no sentido afirmativo e benjaminiano da expressão
– é capaz de dar. Só eles – e os poetas – são capazes de ver a importância dos objetos mais puros e
infalsificáveis sobre a face da Terra. Só elas – e alguns cineastas – têm o talento de se inclinar a buscar,
no cotidiano mais visível – e difícil –, aquelas coisas que são invisíveis para o mundo adulto, necessárias
para os colecionadores e mágicos, e insubstituíveis para os artistas. O projeto é uma iniciativa de uma
Faculdade de Educação de uma Universidade Pública brasileira comprometida em ampliar suas ações,
ao pensar o poder pedagógico e transformador do cinema, no universo de uma enfermaria pediátrica.
Educação, cinema e infância no hospital: alguns frames teóricos
Vigotski6 e sua compreensão acerca de como funciona a imaginação e a atividade criadora
acompanham a razão de ser do projeto. Para o pensador soviético, a criação é condição necessária da
existência e está em todos os campos da vida cultural, não sendo restrita a ninguém. Não negamos
as doenças ou romantizamos um período sensível e doloroso na vida das crianças internadas e suas
famílias acompanhantes, mas chamamos a atenção para o fato de que as crianças internadas possuem
intensa atividade emocional, imaginativa, curiosidade de aprender e inventar; e isso não pode ser
subestimado.
Segundo Vigotski6, o somatório de nossas experiências fica guardado na memória e essas são
recombinadas pela imaginação que cria o que não existe. De duas figuras reais: o cavalo e um
pássaro, por exemplo, inventamos um cavalo-alado, que não é real. Outra ponte que o autor traça
está relacionado ao caráter emocional entre imaginação e invenção. As imagens geram emoções e a
atividade emocional também gera imagens.
Compartilhamos, com Fontes7, que crianças internadas possuem intensa atividade emocional,
movimento e curiosidade. Segundo a autora, a educação de crianças no espaço hospitalar caminha
entre duas concepções: uma defende a escolarização dos internos nos mesmo moldes do ensino
regular, a fim de diminuir o fracasso e a evasão escolar; a outra entende que uma prática própria deve
ser pensada para este contexto, cujos conhecimentos com maior contribuição para o bem-estar físico,
psíquico e emocional da criança não se encontram em um currículo escolar padrão. Nosso projeto
apoia-se na possibilidade de promover, nesse espaço, uma pedagogia da própria imagem, ao invés de
uma pedagogia com imagens, levando a enfermaria hospitalar a vivenciar a experiência do sensível
proporcionada pelas obras8.
Sendo assim, pretendemos criar um espaço para que uma potente experiência de cinema aconteça
às crianças. Por ser potente e diferenciada, podemos caracterizá-la como estética. As características
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Omelczuk F, Frequet A, Santi AM
espaço aberto
da experiência estética envolvem um peculiar relacionamento do homem com o mundo, numa
dinâmica própria, capaz de produzir uma visão original, capaz de produzir mudança, transformação
e emancipação. Por meio dela, exercita-se uma postura de jogo com os objetos do mundo (e não
uma postura de uso) que, em contrapartida, ativa a criatividade e a imaginação, podendo, assim,
apreender, dos objetos, sentidos e combinações inéditos. Somos estimulados na nossa capacidade
criativa, e o mundo pode se mostrar como fonte inesgotável e multifacetada de significados. Esse
tipo de experiência, no entanto, se viabiliza a partir de uma postura estética, ou seja, de uma postura
contemplativa, “sem finalidade”, receptiva e reflexiva. Tal caracterização potente apoia-se em
categorias desenvolvidas por Kant e, com ele, podemos compreender esse processo que o estético
proporciona como uma nova e autêntica vivência do mundo.
Para Kant9, a experiência estética, a experiência do belo, é diferenciada da nossa experiência com
relação ao conhecimento, à nossa experiência ordinária (onde temos nossas preferências pessoais e
nos relacionamos com as coisas de forma utilitária e mecânica) e com relação a uma dimensão prática,
moral. Por isso, segundo ele, tal experiência foca-se nos objetos considerados em sua originalidade, e
o homem possui, diante deles, uma atitude de despojamento e abertura, que o leva a retornar sempre
ao mundo, para reapreendê-los, de forma intensa e viva, livre de todo olhar condicionado e alienado
de si e do que vê. O belo relaciona-se com a liberdade, na medida em que, por meio da experiência
deste, aprendemos a projetar utopias, imagens de outros mundos possíveis. Analisando Marcuse,
Jamenson afirma que: “[...] a importância da beleza [...] consiste na possibilidade de um aprendizado
prático para a verdadeira liberdade política e social”10 (p. 75).
A reflexão é o estado em que o sujeito se encontra na experiência estética. Ele se abre para a
recepção dos objetos na sua complexidade, como um fato novo: por intermédio da contemplação,
o homem não impõe significados cristalizados às coisas; deixa-as “falar”, dá voz ao mundo, que lhe
expõe mutabilidade e renovação. Por não pressupor ou determinar nada, ela suscita a saída de uma
espécie de sonolência que automatiza o sujeito no ato de ajuizar o mundo. É um olhar incomum,
descondicionado, que permite às coisas que elas se mostrem em sua originalidade inesgotável. É desta
forma que pretendemos que o cinema impacte nas crianças e adolescentes com os quais estamos
trabalhando, produzindo a intensificação da experiência com a imagem e o mundo, da atenção e do
olhar.
Educação, cinema e infância no hospital: a experiência
Começamos na enfermaria pediátrica de um hospital universitário em março de 2011, trabalhando
de março a abril, em todas as segundas-feiras, de 14 às 16 horas. Após esse período, em função de
questões delicadas ligadas à natureza do espaço hospitalar e da adaptação com o campo e com seus
atores, o projeto funcionou com interrupções até retornar ritmicamente em fevereiro de 2012 nas
tardes de sextas-feiras, horário do presente momento.
A primeira atividade é a realização de sessões de filmes nas próprias enfermarias ou em espaços
neutros, como a sala de recreação. Entendemos que o contato com o cinema deve representar, para
os pacientes, uma experiência de cinema. Tal experiência deve representar mais do que uma mera
recepção agradável, passiva, associada a um divertimento eventual, ou seja, a criação de um momento
qualitativo, ímpar, que produza uma marca, uma mudança no olhar e na percepção do próprio cinema
e do mundo, “favorecendo um encontro individual e decisivo com uma obra”4 (p. 62). Para Bergala,
“esse encontro depende mais de uma iniciação do que da aprendizagem”4 (p. 62), sendo o nosso
trabalho o de viabilizar este encontro potente entre o filme e a criança.
Sob o ponto de vista estético, narrativo e linguístico, procuramos o encontro com um cinema
que cause uma espécie de falta de ar, uma apneia de compreensão racional do que se vê para que
se experimente um vazio, uma incompletude, uma rejeição e se aceite ver as coisas com sua parte
de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos. O que Bergala4 propõe é uma relação mais
profunda e intensa com o cinema e seu processo de criação, muitas vezes intuitivo e inconsciente para
o próprio cineasta. Trata-se de aprender a pensar, sentir, intuir, sofrer enquanto se assiste ao filme,
tal como seu criador – essa metodologia é a pedagogia da criação. Perceber um posicionamento de
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educação, cinema e infância: ...
câmera, uma sombra, a disposição dos objetos em cena, os atores, a influência
da luz, a dúvida que fica quando o trecho de um filme acaba e logo em seguida
começa outro... É mais do que ensinar uma arte, é algo mais do que uma
prática de oficinas ou de aprendizagem mecânica de recursos tecnológicos para
se obter rapidamente um produto. Trata-se de introduzir crianças e adultos
dentro de uma vivência hospitalar, no mundo do cinema pelo avesso, pelos
bastidores.
Na seleção do que exibir para as crianças das enfermarias, buscamos
filmes que desafiem o excesso de estímulos, a velocidade e a lógica previsível
e condicionante do olhar nas narrativas clássicas e televisivas, acessíveis no
circuito comercial. Temos, também, uma atenção especial com o potencial
poético das obras e em compartilhar com as crianças produções do cinema
brasileiro, que impulsiona nossa investigação e familiarização com a produção
nacional, ajudando a romper com sua naturalizada desvalorização.
A experiência de outros ritmos, a presença mais efetiva do silêncio, planos
longos que seduzem o telespectador a esperar as imagens surgirem na tela se
chocam com o imediatismo cinematográfico e pedagógico ao qual estamos
acostumados. O olhar automatizado e utilitário do mundo – e, muitas vezes,
das aprendizagens formais – é provocado pela sensibilidade de pequenos gestos
que desfamiliarizam nossa percepção do cotidiano.
Podemos, assim, desaprender, com o cinema, conceitos enrijecidos sobre o
mundo, sobre a vida, sobre os outros e sobre nós mesmos. Podemos aprender,
com o cinema, a ver o que não se via, a pensar o que nunca se havia pensado,
e a impregnar a vida rotineira, mesmo no cotidiano do hospital, com poesia11.
A montagem de uma tela nas salas da enfermaria, com os filmes sendo
projetados por aparelhos de DVD, permitem uma espécie de “limpeza” e de
foco no ambiente audiovisual ao qual as crianças estão acostumadas. Em geral,
as enfermarias possuem uma televisão que está sempre ligada para todos,
ao mesmo tempo em que muitos pacientes têm ainda sua própria televisão e
aparelho de DVD, onde assistem à sua própria programação ou filme.
O ambiente é uma confusão de sons e imagens misturados: televisões
ligadas, o enfermeiro que fala alto ao celular durante a exibição do filme ou
chega para aplicar alguma medicação, o paciente que sente dores e solicita
alguma ajuda, as conversas em geral, entradas e saídas intermitentes. Neste
sentido, a montagem e exibição do filme apresenta-se como um exercício de
concentração, o que, por si só, já representa uma experiência nova, dado que,
em geral, o contato com a imagem e, mais especificamente, com o filme, é
vivido por estas pessoas como mais um elemento em suas rotinas, diluída num
sem número de tarefas e focos de interesse, não sendo nunca objeto de uma
eleição e atenção específica.
Além dos filmes, o olhar automatizado e utilitário do mundo – e, muitas
vezes, das aprendizagens formais – é provocado pela sensibilidade de pequenos
gestos e atividades que desfamiliarizam nossa percepção do cotidiano: brincar
de enquadrar com molduras de cartolina, repousar o olhar pelo orifício apertado
do cubo de papel, ver e fazer Minutos Lumière(d) no ambiente hospitalar, filmar
aquilo que só você vê, dar vida ao ambiente criando histórias com fotografias/
frames, dar vida aos brinquedos e objetos com a técnica de stopmotion(e),
construir sua câmara escura ou recortar seu taumatrópo(f)... São algumas das
atividades que convidam as crianças (e seus acompanhantes) a aprender e fazer
cinema com alguns elementos que esta arte traz em sua essência.
390
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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(d)
“Minutos Lumière” é
uma prática que busca
reinstaurar a vivência de ser
o primeiro cineasta, como
os irmãos Louis e August
Lumière, que, em 1895 em
Paris, começaram a escrever
a história do cinema com
câmera fixa, em películas
de 17 metros que atingiam,
aproximadamente, 52
segundos de filmagem,
registrando cenas cotidianas.
Em nosso caso, projetamos
alguns minutos dos irmãos
Louis e August Lumière.
Projetamos, também,
Minutos Lumière feitos
por outras crianças em
diferentes contextos e,
ainda, algumas partes
do filme Lumière & Cia
(1995), no qual quarenta
cineastas produziram
filmes de um minuto com
o cinematógrafo (aparelho
de filmar do final do
século XIX) dos irmãos
Lumière. Nas enfermarias,
reproduzindo as limitações
do cinematógrafo,
propomos uma filmagem
de um minuto, com câmera
parada, em um único plano,
que não será repetido, nem
editado.
(e)
StopMotion é uma
técnica de animação que
consiste na justaposição de
fotografias de um mesmo
plano, onde alteramos,
pouco a pouco, o objeto
que está sendo fotografado,
e fotografamos: um boneco,
um carrinho. A montagem
de uma fotografia após a
outra sugere a ilusão do
movimento da imagem.
Brinquedo óptico que
consiste em duas figuras
coladas, uma no verso da
outra, atravessadas por
um barbante ou palito. Ao
girar, tem-se a ilusão de um
movimento. No hospital,
trabalhamos com a imagem
de um pássaro de um lado
do papel e, no outro, uma
gaiola. Nesse caso, ao girar,
tem-se a ilusão de que o
pássaro ora está dentro da
gaiola ora fora.
(f)
Omelczuk F, Frequet A, Santi AM
espaço aberto
Frutos e encontros preliminares: resultados
As crianças expressam, como suas preferências, os filmes comerciais, difundidos pela indústria de
entretenimento, que são, mais cedo ou mais tarde, acessíveis no DVD ou na televisão. Entretanto,
os filmes exibidos por nós, seguidos os critérios de seleção já descritos anteriormente, apesar de não
serem conhecidos por aquelas crianças, são bem recebidos, sendo, muitas vezes, motivo de euforia por
parte de crianças e adultos, acompanhantes ou profissionais da saúde. Elas apresentam-se disponíveis
a outras possibilidades fílmicas e estéticas, se envolvendo e se identificando com um filme como “O
Garoto”, de Chaplin. Inferimos, portanto, que o que é tomado como preferência é, na verdade, a
expressão de uma falta de opção. Muitas crianças, ao retornarem para um acompanhamento nas
enfermarias, nos solicitam rever filmes que conheceram naquele espaço.
Ao montarmos a tela e pedirmos a todos que desliguem suas televisões observamos que
produzimos uma relação diferenciada na recepção do filme, que se aproxima do cinema e que permite
uma imersão maior na magia do filme e na construção de uma relação única entre aquilo que lá se
passa e aquele que vê. Na maioria dos casos, este público desconhece a experiência do “ritual” da sala
escura e tudo que dela deriva.
Para muitas crianças e famílias, não é na escola, mas na enfermaria do hospital que experimentam,
pela primeira vez, outro cinema, outro tempo, outra estética, outra possibilidade de ver o mundo. O
projeto apoia-se na possibilidade de promover uma pedagogia da própria imagem, ao invés de uma
pedagogia com imagens, permitindo as crianças da enfermaria hospitalar vivenciarem a experiência
do sensível proporcionada pelas obras8. Oriundas, em sua maioria, de bairros periféricos do grande
centro artístico e cultural da cidade, pode ser também que seja naquele espaço que participam pela
primeira vez desse encontro que nos fala Migliorin: “Encontro em que um indivíduo qualquer, vindo
de qualquer lugar, pode sentir e fruir com o outro na imagem, com o outro da sala [enfermaria] e com
os múltiplos outros que o habitam, em uma experiência na qual sua própria fruição já é um tipo de
criação”12 (p. 135).
Para Migliorin12, o cinema e todo o seu entorno é um espaço privilegiado para a experiência da
coletividade, que, por sua vez, é um problema de participação estética e discursiva para a soberania
popular. Ele acredita que a escola é um espaço possível e desejável para o risco que as invenções
de mundo pelo cinema provocam, e que as crianças têm muito a criar ao verem e fazerem cinema.
A interseção cinema, escola e infância são, para Migliorin12, necessidades da arte e urgências da
soberania popular.
Conhecer múltiplas oportunidades de aprendizagens e vivências do mundo, nos ajuda a voltar para
a escola com outros olhares sobre a forma como ensinamos e aprendemos. Sucede uma ampliação
do campo de atuação das universidades, preparando professores universitários e em formação para
atuarem, de forma socialmente comprometida, ampliando, ao mesmo tempo, o campo de atuação
destes profissionais (no hospital) e a relação destes com a sua formação pedagógica e cultural.
Quando estamos no espaço hospitalar, sentimos que a interseção cinema, escola e infância
extrapola a escola, porque ver e fazer cinema (ainda que com seus primeiros gestos) nas enfermarias
socializa, antes de tudo, a própria aprendizagem. Socializa o lugar reservado para aprender, o
“conteúdo” a se aprender, o tempo (psicológico, afetivo e físico) para aprender, quem deve aprender,
as “condições ideais” para aprender...
O cinema no hospital socializa a aprendizagem porque não escolhe seu público: saudáveis ou
adoecidos, temerosos ou valentes, alegres ou tristes, cansados ou alertas, pequenos ou grandes, jovens
ou velhos. Impregna a todos, adultos e crianças, profissionais da saúde ou usuários que circulam no
espaço hospitalar.
É interessante destacar que, grande parte dos Minutos Lumière produzidos pelas crianças, costuma
enquadrar as janelas e o espaço externo, onde as crianças raramente têm acesso. Seus registros nos
sugerem o isolamento vivenciado durante o período da internação e o desejo da liberdade. Por outro
lado, em algumas atividades de fotografias, observamos que a equipe médica e de enfermagem
costumam ser o foco da atenção dos pacientes, numa demonstração da predominância das relações
com estes, tanto do ponto de vista técnico quanto afetivo.
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educação, cinema e infância: ...
Arte e criação, nos dizem Aidelman e Collell13, são incontroláveis. É preciso valentia para se expor
ao desconhecido, ao que tenha de vir do processo de invenção. Nas enfermarias, as vidas interrompidas
por um acontecimento inesperado, indesejado, muitas vezes incompreensível e sem respostas,
incontrolável como é o adoecer, compartilham, com a arte, essas marcas. Se o cinema usa da matéria
realidade para acontecer, como nos diz Bergala4, a experiência da realidade nesse espaço é ainda mais
favorável para a aventura do fazer artístico.
O fazer artístico tem sua chave no processo de diferenciação, ele instaura nossa condição de sujeito
singular, solitário, com seu núcleo de criação partindo do indivíduo, que pode desenvolver e encontrar
não só o resultado, mas, sobretudo, sua aventura e caminho13. O cinema – como toda arte – cria
representações desestabilizadoras do mundo, abre infinitos modelos de compreensão do real, desfigura
os conceitos que explicam a realidade, articula e interpela verdade e ficção, desdobrando o fluxo da
nossa experiência em novos significados e símbolos.
Desta forma, por tudo o que apresentamos, entendemos que nossa experiência de levar o cinema
ao hospital, permitindo uma experiência com filmes contra-hegemônicos, não disponíveis no circuito
comercial, cria a possibilidade da emancipação, pela construção de outra sensibilidade e de outra
experiência. Sendo potencializada na sua capacidade de se apresentar como uma formação profissional
comprometida com a desestabilização do modus operandi do trabalho universitário, em prol de outros
mundos, de utopias pedagógicas.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
Referências
1. Fresquet, A. Aprender com as experiências do cinema: desaprender com imagens na
educação. Rio de Janeiro: Booklink; 2009.
2. Kastrup V. Flutuações da atenção no processo de criação. In: Borba S, Kohan W, Lecerf E,
organizadores. Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte:
Autêntica; 2007. p. 59-71.
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cinema e educação. Rio de Janeiro: Booklink; 2011. p. 16-33.
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da escola. Rio de Janeiro: Booklink; 2008.
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no hospital. Rev Bras Educ. 2005; (29):119-38.
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espaço aberto
8. Leandro A. Posfácio: uma questão de ponto de vista. Rev Contemp Educ. 2010;
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São Paulo: Hucitec; 1985. p. 225-37.
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de Janeiro: Booklink; 2007.
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5(9):130-6.
13. Aidelman N, Collel L. De las potencias pedagógicas de la creación cinematrográfica.
Rev Contemp Educ. 2010; 5(10):23-33.
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educação, cinema e infância: ...
O artigo apresenta o projeto “Cinema no Hospital?” que investiga o potencial
pedagógico de ver e fazer cinema em enfermarias pediátricas em hospitais universitários.
O cinema permite um exercício de alteridade – é um estrangeiro que entra no hospital
desestabilizando rotinas e estruturas. O filme é pensado não no sentido de um
instrumento ou suporte pedagógico para transmitir um saber, mas como a marca de
um gesto de criação – uma arte. Espera-se encontrar, com o cinema no hospital, outras
naturezas de aprendizagem, conexões e sentidos, que possam contribuir para o fazer da
educação com jeitos renovados de pensar a relação com a aprendizagem, a arte e a saúde.
As primeiras experiências mostram que a maioria dos pacientes desconhece a experiência
do “ritual” da sala escura e que os mesmos se apresentam abertos e entusiasmados a
outras possibilidades fílmicas e estéticas.
Palavras-chave: Cinema e educação. Arte. Saúde e educação. Educação no hospital.
Education, cinema and childhood: a look at cinema practices in a university hospital
This paper presents the project “Cinema at the Hospital?” which investigates the
pedagogical power of seeing and doing cinema in pediatric wards in public university
hospitals. Cinema allows an exercise in otherness: it is a stranger that enters the hospital
and disturbs routines and structures. It is thought of not in the sense of a pedagogical
support for conveying knowledge, but as the mark of a creative gesture: an art. It can be
expected that, together with cinema, other forms of learning, connections and meanings
will be found in the hospital, which may contribute towards conducting education with
renewed ways of thinking about the relationship with learning, art and health. The first
experiments have shown that most patients are unfamiliar with the experience of the
“ritual” of the darkened room and that they are open to and enthusiastic about other
filmic and esthetic possibilities.
Keywords: Cinema and education. Art. Health and education. Education in hospital.
Educación, cine e infancia: una mirada sobre prácticas de cine en el hospital universitario
El artículo presenta el proyecto “¿Cine en el hospital?” que investiga la potencia
pedagógica de asistir y hacer cine en enfermerías pediátricas en hospitales universitarios.
El cine permite un ejercicio de alteridad puesto que es un extranjero que entra en el
hospital desestabilizando rutinas y estructuras. La película se piensa no en el sentido de
soporte pedagógico para transmitir un saber, sino como la marca de un gesto de creación,
un arte. Se espera encontrar, con el cine en el hospital, otras naturalezas de aprendizaje,
conexiones y sentidos, que puedan contribuir para el hacer de la educación con formas
renovadas de pensar la relación con el aprendizaje, el arte y la salud. Las primeras
experiencias muestran que la mayoría de los pacientes desconocen la experiencia del
“ritual” de la sala oscura y que se presentan abiertos y entusiasmados a otras posibilidades
fílmicas y estéticas.
Palabras clave: Cine y educación. Arte. Salud y educación. Educación en el hospital.
Recebido em 25/03/14. Aprovado em 03/09/14.
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DOI: 10.1590/1807-57622014.0607
espaço aberto
Capacitação em álcool e outras drogas
para profissionais da saúde e assistência social:
relato de experiência
Pedro Henrique Antunes da Costa(a)
Daniela Cristina Belchior Mota(b)
Erica Cruvinel(c)
Fernando Santana de Paiva(d)
Henrique Pinto Gomide(e)
Isabel Cristina Weiss de Souza(f)
Leonardo Fernandes Martins(g)
Pollyanna Santos da Silveira(h)
Telmo Mota Ronzani(i)
Introdução
O uso de álcool e outras drogas tem sido problematizado em várias esferas
da sociedade brasileira. As consequências do abuso destas substâncias são
múltiplas e percebidas em vários setores. Por afetar tanto a saúde individual
quanto a coletiva, este fenômeno exige uma abordagem que agregue prevenção,
tratamento, organização de práticas e serviços assistenciais e formulação de
políticas públicas específicas1.
Entretanto, no setor da saúde, a formação profissional para atuação com os
problemas relacionados ao uso de drogas é deficitária, baseada no saber médico,
enfocando a dependência e não priorizando a prevenção2-5. Esse descompasso
entre a relevância da temática e a qualificação insuficiente denota a importância
de propostas de formação profissional, fornecendo, aos usuários e familiares,
cuidados adequados.
Além do campo da saúde, o abuso de drogas está entre os principais
problemas identificados pelos profissionais do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS)6. Em função do avanço das políticas de assistência social e suas
capacidades institucionais, os serviços do SUAS oportunizam a realização de
abordagens preventivas, encaminhamentos de usuários para tratamento, bem
como a assistência e o suporte a familiares6. Nesse sentido, é importante que os
profissionais dos dispositivos socioassistenciais também estejam capacitados para
atender às demandas relacionadas ao uso indevido de drogas.
Visando minimizar o panorama deficitário da formação de profissionais do
Sistema Único de Saúde (SUS) e SUAS, e concretizar novas práticas, os Centros
Regionais de Referência sobre Drogas (CRRs) são criados. Sua implantação é
coordenada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) por meio
do edital nº 002/2010/GSIPR/SENAD do Plano Integrado de Enfrentamento ao
Crack e outras Drogas (PIEC), instituído pelo decreto 7.179 de 20 de maio de
2010. Após reformulação do PIEC, dando origem, em 2013, ao Programa “Crack,
é possível vencer” (PCPV), os CRRs passam a ser uma das estratégias de prevenção
deste Programa, juntamente com outras capacitações à distância na área.
Regidos por editais, os CRRs fornecem uma série de cursos de capacitação
presencial para profissionais com atuação nas políticas sobre drogas. Por
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Departamento
de Psicologia, Instituto
de Ciências Humanas,
Universidade Federal
de Juiz de Fora. Centro
de Referência em
Pesquisa, Intervenção
e Avaliação em Álcool
e outras Drogas.
Rua José Lourenço
Kelmer, s/n, campus
universitário, Bairro São
Pedro. Juiz de Fora,
MG, Brasil. 36036-900.
phantunes.costa@gmail.
com; danibelmota@
yahoo.com.br;
[email protected].
br; fernandosantana.
[email protected];
henriquepgomide@gmail.
com; leomartinsjf@gmail.
com; pollyannassilveira@
gmail.com; tm.ronzani@
gmail.com (bolsista de
Produtividade CNPQ).
(f)
Departamento
de Psicobiologia,
Universidade Federal de
São Paulo. São Paulo, SP,
Brasil. isabel.weiss8@
gmail.com
(ab,c,d,e,g,h,i)
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capacitação em álcool e outras drogas ...
intermédio da capacitação destes atores sociais, espera-se contribuir para a materialização de novas
práticas e processos de cuidado/trabalho. Assim, representam uma nova proposta e, ao mesmo
tempo, a principal estratégia de formação presencial permanente das políticas e programas na área,
agregando uma visão ampliada do problema enquanto questão predominantemente de saúde pública.
Segundo o site do PCPV, são 45 CRRs implantados em todas as regiões brasileiras, vinculados a grupos
de professores e pesquisadores de instituições públicas de Ensino Superior, com alta concentração na
região Sudeste7.
Contudo, sabe-se que o processo de incorporação do conhecimento à prática profissional é
complexo, indo além da mera transmissão da informação ou aquisição de conhecimentos técnicos.
Apesar de a disponibilização de subsídios contextualizados contribuir para aumentar o senso de
autoeficácia dos profissionais ao lidarem com os problemas do uso/abuso de drogas8, somente estes
fatores não resultam diretamente em mudanças práticas9.
Para isso, postula-se a formação de recursos humanos a partir da educação permanente10-12,
somados à pesquisa e prática clínica, tendo como horizonte uma educação que seja reflexiva,
problematizadora e que vise a transformação da realidade social8. Espera-se a superação da primazia
dos procedimentos nos serviços, respaldados pelo saber técnico, abrindo espaço, também, para
reflexões sobre as práticas no cotidiano do trabalho10,11,13.
Nesse sentido, é necessário compreender e refletir criticamente sobre o papel dos CRRs no
cenário de formação e atuação sobre a temática do uso de álcool e outras drogas. Assim como outras
propostas de formação/capacitação governamentais, entende-se que o modelo representado pelos
CRRs possa ter limitações e pontos positivos. Acredita-se que, por meio da explicitação e discussão
de experiências dos CRRs, seja possível visualizar melhor estes fatores, de modo a fortalecer suas
potencialidades e reverter ou minimizar seus obstáculos, contribuindo positivamente para o cenário de
formação profissional na área.
A partir do explicitado acima, o presente artigo objetiva discutir aspectos da capacitação de
profissionais do SUS e SUAS, por intermédio de um relato de experiência de um CRR do estado de
Minas Gerais. Para isso, são descritos e analisados: o perfil dos profissionais, a estrutura, a abordagem
pedagógica dos cursos, o impacto nas concepções sobre a temática e rotinas dos profissionais, bem
como as potencialidades e dilemas a serem superados pelo modelo dos CRRs.
Relato de experiência
Estrutura e perfil dos profissionais
O CRR abrangeu um município de grande porte de Minas Gerais e municípios vizinhos. A equipe
gerencial e pedagógica possuía: um coordenador geral, quatro coordenadores de curso, cinco
monitores, uma secretária e 15 docentes de áreas diversas, com experiência prática e de pesquisa na
rede de atenção aos usuários de drogas.
As capacitações foram desenvolvidas quinzenalmente, com oito horas/aula por encontro,
totalizando sessenta horas. Os alunos, profissionais da rede pública (SUS e SUAS), foram alocados em
quatro modalidades de curso – descritas abaixo – de acordo com seus perfis profissionais. Para receber
certificação de conclusão dos cursos, foi estipulada uma frequência mínima de 75% e a apresentação
de um projeto de intervenção nos serviços. Cabe ressaltar que os cursos e suas formatações (temáticas,
ementas, cargas horárias etc.) foram estabelecidos pelo edital supracitado. A fim de assegurar a
participação dos profissionais e englobar a realidade dos serviços, foram realizadas reuniões de
pactuação com gestores da saúde e assistência social dos municípios de abrangência do CRR. Após
acordos firmados, iniciou-se o processo de inscrição e matrícula dos alunos, respectivamente.
O curso “Gerenciamento de casos e reinserção social para profissionais da rede SUS e SUAS” foi
o curso que recebeu o maior número de inscrições (354). Ao todo, setenta profissionais efetuaram
a matrícula e 54 concluíram o curso, em sua maioria, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e
agentes sociais.
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Foram inscritos 69 profissionais no curso de “Aperfeiçoamento em crack e outras drogas para
profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS)”. Devido ao não-preenchimento das vagas por
médicos, viabilizou-se a participação de enfermeiros com atuação na APS. Entre o total de profissionais
inscritos, 45 concluíram a sua matrícula, sendo que 70% eram médicos e 30% eram enfermeiros.
No curso “Atualização em atenção integral aos usuários de crack e outras drogas para profissionais
de hospitais gerais”, foram disponibilizadas sessenta vagas. Foram inscritos 109 profissionais. Dentre
o total de inscritos, 67 efetuaram a matrícula, com 62 concluintes, sendo a maioria enfermeiros,
psicólogos e assistentes sociais.
Já o curso “Aconselhamento motivacional e intervenção breve” contou com duas turmas, com
sessenta vagas em ambas. A primeira turma contou com 62 inscritos (17 profissionais do SUS e 45
profissionais do SUAS) e 48 profissionais concluíram o curso. Na segunda turma, 67 profissionais se
inscreveram (17 do SUS e cinquenta do SUAS), com 58 concluintes. Participaram das duas turmas:
assistentes sociais, psicólogos, agentes comunitários de saúde, enfermeiros, dentre outros.
Abordagem pedagógica
Pressuposto
Por se tratar de um processo de formação, visando instrumentalizar e estimular o desenvolvimento
de novas práticas de trabalho, a proposta pedagógica do presente CRR foi embasada nos princípios
que orientam a educação permanente em saúde14. As ações objetivaram contribuir para os processos
formativos por meio de práticas pedagógicas que abarcassem a organização dos serviços, identificando
problemas cotidianos e construindo soluções para os mesmos14.
Buscou-se o desenvolvimento do poder de captação dos profissionais sobre suas compreensões de
mundo, abordando suas relações com ele em contínuo movimento. A adoção dos ditames da Educação
Permanente em Saúde foi fundamental às transformações das práticas cristalizadas e naturalizadas
encontradas nos diferentes dispositivos da saúde e assistência social, sinalizando a necessidade de as
pensarmos criticamente.
Assim, as estratégias pedagógicas do CRR foram norteadas pelos princípios abaixo:
1) O processo de construção do conhecimento deve ocorrer a partir da realidade concreta na qual
os profissionais estão inseridos;
2) O processo de formação adota uma perspectiva problematizadora da realidade, buscando
favorecer a conscientização do profissional em relação ao mundo e seu trabalho, afastando-se da mera
transmissão de conteúdos;
3) Compreende-se os profissionais como atores ativos no processo de ensino-aprendizagem,
enquanto o professor atua como um mediador dessa relação, guiando-se por uma postura crítica e
dialógica.
4) Deve-se produzir conhecimento que estimule a construção de processos de ação em sintonia
com a integralidade e intersetorialidade, tendo em vista a natureza multifatorial do uso de drogas.
Estratégias pedagógicas
Para fomentar a capacidade pedagógica do CRR, procurou-se proporcionar, aos profissionais, a
aquisição de novos conhecimentos, redimensionando o problema por meio de análises críticas da
realidade, e ampliando a capacidade de atuação15. Logo, foram delineadas as seguintes estratégias
pedagógicas:
1) Análise da atuação profissional: identificação dos principais problemas e possibilidades nas
práticas e serviços para abordagem aos usuários de álcool e outras drogas.
2) Formulação de propostas de ação: os profissionais dialogaram sobre soluções para o
enfrentamento das necessidades identificadas, fomentando capacidades resolutivas. Como parte do
processo de avaliação do aprendizado, eles apresentaram propostas de intervenção, compatibilizando
os conteúdos abordados com suas realidades e serviços.
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capacitação em álcool e outras drogas ...
3) Adequação à realidade institucional: foram considerados possíveis constrangimentos das
realidades dos serviços para a adoção de novas práticas, questionando quais mudanças nos processos
de trabalho eram viáveis e poderiam repercutir na sustentabilidade das ações.
4) Recursos de aprendizagem: além dos cursos de capacitação presencial, foi desenvolvida uma
plataforma de ensino online, disponibilizando: informações, aulas, materiais, ambientes de interação,
discussão e esclarecimento de dúvidas.
Avaliação do trabalho
A avaliação do CRR foi procedida continuamente, buscando-se compreender as consequências dos
cursos e suas propostas nas concepções e rotinas dos profissionais, bem como levantar potencialidades
e dilemas a serem superados pelo modelo dos CRRs. A observação participante foi uma importante
estratégia, gerando relatórios sistemáticos, e sendo realizada durante a implementação dos cursos,
juntamente com reuniões semanais de planejamento. Para compartilhar o trabalho executado e
aprimorar as estratégias pedagógicas adotadas, a coordenação geral supervisionou os coordenadores
dos cursos que monitoraram o corpo docente.
Como forma de aprofundar as compreensões sobre atitudes, crenças e percepções dos profissionais
sobre o tema, assim como avaliar o impacto do CRR em suas formações e concepções, no início e
no final de todos os cursos, oito grupos focais foram realizados. Estes grupos tiveram média de seis
participantes de diferentes categorias profissionais, serviços e setores, selecionados intencionalmente
a partir de sua assiduidade e envolvimento nas aulas e demais atividades. O material foi transcrito,
sistematizado e analisado a partir da análise de conteúdo temática16. Após leitura do material, as
categorias foram divididas em dois temas: “Potencialidades do CRR” e “Dilemas a serem superados”,
com as inferências baseadas na presença das categorias e referencial teórico.
Resultados e discussão
Potencialidades do CRR
Devido à alta procura por capacitação, e pelo decorrer dos cursos, observou-se que o abuso
de drogas configura-se, para os profissionais, como um grave problema, atingindo várias
pessoas e camadas populacionais. É uma questão que faz parte de suas incursões no âmbito das
políticas de saúde e assistência social. São escassos os subsídios para a capacitação profissional e,
consequentemente, para as ações voltadas à prevenção e assistência aos usuários de drogas17. O
aprendizado acontece por meio de treinamentos rápidos e desarticulados, pela experimentação na
prática (tentativa e erro), ou por intermédio de esforços individuais autodidatas4,5.
A maioria dos profissionais mostrou-se motivada ao longo dos cursos, com expectativa de aumentar
os conhecimentos e técnicas para lidar com usuários de drogas no seu cotidiano. Tal motivação pode
ser percebida pela abertura dos profissionais, durante as aulas, para a aquisição de conhecimentos e a
busca por recursos práticos para o desenvolvimento de intervenções junto aos usuários.
Em suma, os cursos possibilitaram reflexões mais ampliadas sobre a temática, enfocando não
apenas serviços e práticas isolados, mas, também, o trabalho em rede, discussões sobre a gestão,
dentre outros fatores. Para almejar a consolidação de transformações, as capacitações devem
possibilitar mudanças nos processos de trabalho, visando a integração entre profissionais e setores15,
além de estimularem a implementação de novas práticas no dia a dia dos serviços8.
Além disso, a aquisição de conhecimentos esclareceu diversos fatores relacionados ao uso e
abuso de drogas, dando mais segurança para a realização das intervenções. O CRR serviu como
‘desmistificador’ de vários aspectos como, por exemplo, a modificação da visão acerca do usuário.
Tal fator é fundamental para abordagens mais efetivas, auxiliando na reorientação da prática e para a
adesão ao tratamento, rompendo com a cultura do preconceito. O profissional passa, também, a evitar
individualizações do problema, tentando compreendê-lo a partir de um prisma abrangente18.
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O corpo docente e a estrutura pedagógica mostraram-se qualificados, atendendo às expectativas.
O formato dos cursos e das aulas foi avaliado positivamente, agregando grupos heterogêneos
de profissionais com diferentes vivências. Isso possibilitou a abertura de discussões e trocas de
experiências entre os profissionais – que, nos seus cotidianos, aparecem desarticulados, sem integração
no planejamento e compartilhamento das ações – e, também, uma maior noção da realidade,
ampliando a visão sobre os problemas19.
Os fatores referentes à gestão e ao trabalho em rede também foram bem avaliados, situando o
abuso de drogas como uma questão de saúde e não somente de segurança pública. Os profissionais
puderam ampliar a discussão para a pluralidade de ações necessárias, reconhecendo o caráter
multifacetado do abuso de substâncias e rompendo com o senso comum15. Os cursos foram avaliados
como responsáveis por suscitar ou reforçar esta discussão e apresentar, aos profissionais, a importância
da articulação/comunicação entre setores e serviços.
Dentro da proposta pedagógica, se destacaram os projetos de intervenção, onde os alunos
formularam propostas para serem implementadas em seus locais de atuação. Estas propostas foram
elaboradas em grupos e, posteriormente, apresentadas e discutidas juntamente com os demais
integrantes da turma. Neste momento, diversos projetos foram estruturados com aplicabilidade nos
serviços, propiciando reflexão dos papéis e envolvimentos nas ações com usuários de drogas.
Houve um novo dimensionamento da problemática, com os profissionais considerando a maior
complexidade da questão e a importância da integração da rede assistencial. Dessa forma, o CRR
contribuiu para que os profissionais se compreendam em uma rede que engloba os setores da saúde e
assistência social, dentre outros, sendo atores-chave no processo de implementação de ações efetivas
aos usuários de drogas17.
O CRR como promotor de implementação de ações: dilemas a serem superados
Apesar das potencialidades destacadas, dificuldades são percebidas na transposição da aquisição
de conhecimentos para a implantação de novas práticas. Na tentativa de implementação do que foi
aprendido, os profissionais esbarram na própria complexidade da problemática e na incapacidade de
os serviços e rede lidarem adequadamente com essa amplitude20. Afirmam acreditar na prevenção
e no tratamento, mas reconhecem que os problemas existentes e a falta de continuidade das ações
obstaculizam o trabalho. Desse modo, somente a aquisição de conhecimentos não é capaz de superar
a realidade8.
Os profissionais demonstram ver o problema de forma ampliada, mencionam a importância do
trabalho em equipe, de se conscientizar e envolver a comunidade, sobretudo na reinserção social
dos usuários, mas esbarram em como fazer isso. Apesar dos pontos positivos das discussões sobre
os contextos de atenção, eles relatam ter pouco poder de decisão e atuação3. Assim, a qualificação
de recursos humanos deve ser encarada em um contexto amplo, em que pesam a necessidade de
aprimoramentos na estrutura e definição de processos de trabalho que considerem os problemas
relacionados ao consumo de drogas10.
A rede assistencial é descrita como desintegrada e desarticulada, com dificuldade de suprir a
demanda existente, gerando descontinuidade dos atendimentos e encaminhamentos para tratamento.
Há desconhecimento acerca das formas de trabalho dos próprios serviços da rede, problemas no
trabalho interdisciplinar e insuficiência de recursos19. Os profissionais mostraram-se sobrecarregados
e, em alguns momentos, desmotivados, relatando, também, falta de autonomia5. Assim, as ações de
prevenção acompanham a desarticulação da rede de atenção aos usuários de drogas, carecendo de
maior integralidade e intersetorialidade, com o trabalho ainda organizado de forma fragmentada20,21.
A ausência de guias clínicos, que orientem os cuidados nos diferentes níveis de atenção e de
acordo com os casos, foi constantemente mencionada. Entretanto, ao mesmo tempo em que os
direcionamentos sobre “o que fazer” e “como fazer” são escassos, os profissionais relatam ter pouca
autonomia para realizar o trabalho que gostariam, devido aos engessamentos, restrições dos serviços e
das práticas, além da falta de condições/estrutura e problemas na rede.
A gestão aparece desconectada dos serviços e profissionais, sobretudo da APS, com discursos,
muitas das vezes, não representando a realidade do problema. A efetividade da implementação de
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ações preventivas ao uso de álcool e outras drogas aparece associada ao engajamento dos gestores no
processo de implementação de tais estratégias2. Dessa forma, alguns questionamentos são pertinentes,
como: Qual o papel da gestão na implementação das políticas públicas? Como os CRRs podem
impactar nessas questões trabalhando, também, na aproximação entre gestão e profissionais?
Ademais, algumas características dos próprios CRRs dificultam a transformação do conhecimento
em prática. É pressuposto do conceito de educação permanente que o aprendizado ocorra na
prática10,11,14. Contudo, os cursos são propostos sem continuidade. Quando os alunos voltam para suas
realidades, com conceitos adquiridos e ações formuladas, os cursos acabam, não acompanhando a
implementação das intervenções e dificultando sua continuidade. Esse aspecto torna-se frequente nas
capacitações governamentais, com atuações pontuais e sem supervisão, dificultando a incorporação de
mudanças na prática12.
Outro ponto é a necessidade da inserção de outros setores, como a educação e segurança
social. Para uma implementação efetiva das estratégias de prevenção, torna-se imprescindível a
adoção de uma lógica de interação entre diversos setores, a partir da compreensão das demandas e
necessidades sociais6. Além disso, deve-se garantir a participação efetiva de diferentes grupos sociais na
identificação, formulação e implementação das ações. A educação e o âmbito escolar, especialmente na
prevenção ao uso/abuso de drogas, podem favorecer a implantação de políticas públicas voltadas para
os jovens, possibilitando que alunos, professores e comunidade assumam o papel de promotores de sua
própria saúde22. Contudo, na formulação dos CRRs estes setores/dispositivos foram desconsiderados,
nos fazendo questionar a intersetorialidade amplamente difundida nas políticas, mas insuficiente na
implementação das ações.
Apesar da avaliação positiva da proposta pedagógica, foram questionados alguns momentos
de ênfase teórica que, segundo os profissionais, apareceram descolados das realidades práticas dos
serviços. Mesmo com a preocupação de aliar teoria e prática, algumas aulas não conseguiram essa
aproximação do conteúdo teórico ao cotidiano dos serviços. Ademais, considerou-se insuficiente o
tempo de discussão dos projetos de intervenção, em detrimento da sua relevância dentro da proposta
do curso.
Nesse sentido, faz-se necessária a realização de exercícios de planejamento e avaliação constantes,
visando potencializar as propostas dialógicas, explicitando os pressupostos teóricos, mas aliando-os ao
“como fazer”, e considerando contextos que não necessariamente sejam os propagados idealmente
pelas políticas públicas. Contudo, não se deve transformar as propostas em receituários, confundindo
este “como fazer” com algo pronto e acabado. Isto é significativo, tendo em conta a dificuldade dos
profissionais, assim como os demais atores (gestores e acadêmicos), de realizarem avaliações constantes
de suas práxis profissionais e não caírem em naturalizações e reproduções das práticas cotidianas.
Assim, os cursos devem ser oportunidades de conhecimento e de se repensar a ação profissional. As
propostas de qualificação devem priorizar abordagens contextualizadas às realidades dos profissionais8,
além de fortalecê-los para construírem novas estratégias de atuação e as articularem em suas rotinas.
Isto poderá repercutir nas atitudes, possibilitando superar a perspectiva de que a única solução é
transferir o problema para os serviços especializados, via encaminhamento.
Considerando o cenário assistencial obstaculizado, os CRRs, ao proporem ações a partir de
contextos idealizados, acabam fazendo com que os profissionais percebam quão problemático é
o cenário no qual se inserem, e fiquem desmotivados. Questionam-se dois pontos cruciais: 1) a
necessidade de uma descentralização das ementas e conteúdos dos cursos, para que os CRRs possam
adequá-los às características específicas de suas localidades e dos profissionais; e 2) a construção de
alternativas conjuntas com os profissionais a partir da realidade em que estão inseridos.
São necessários direcionamentos aos cursos, não relativizando totalmente os conteúdos
indispensáveis para a atuação no âmbito das drogas. Contudo, é imprescindível uma flexibilização das
ementas para que não se desconsidere o conhecimento prático dos profissionais e suas realidades.
São duas dicotomias: entre a ementa a priori e o estabelecimento de conteúdos a partir da realidade
dos alunos; e entre o conhecimento teórico dos professores e o prático dos profissionais. Aproveitar o
conhecimento de ambos os lados, estabelecendo relações de aprendizagem horizontais, é fundamental
400
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Costa PHA, Mota DCB, Cruvinel E, Paiva FS, Gomide HP, Souza ICW, et al.
espaço aberto
para a construção de práticas contextualizadas e impactantes nos serviços. Como apontam Souza
e Ronzani8, a reflexão contínua sobre as práticas, proporcionada pela educação permanente, pode
propiciar o contato com o desconforto e a disposição para produzir conceitos e alternativas de práticas
transformadoras.
No contexto dos serviços, observou-se, também, uma centralidade das tomadas de decisões
na equipe de saúde e gestão. Sabe-se que o fortalecimento da discussão junto à sociedade é
imprescindível para a construção de políticas mais contextualizadas19. Entretanto, as políticas públicas
e sua implementação, por meio da gestão e profissionais, acabam por considerar a população como
agentes passivos e despreparados para o enfrentamento da questão, e para assumir a posição de
protagonistas de suas próprias vidas, o que demanda, do Estado e profissionais, uma função educativa
da sociedade20.
Ainda, os conhecimentos acadêmicos não podem continuar alienados dos serviços, na contramão
do que hoje se espera numa ação formadora, que é produzir e disseminar conhecimentos que se
sustentem no processo de trabalho11. Dessa forma, como o CRR poderia contribuir para a quebra desse
monopólio entre gestão, academia e profissionais na formulação e implementação das políticas sobre
drogas? Será que o CRR poderia, a partir da ampliação de suas ações, estabelecer agendas de diálogo
com movimentos sociais, instituições de cuidado e o Estado, colaborando para a aproximação, e não
polarização, de tais atores e grupos?
Deve-se pensar na articulação das ações de educação permanente e gestão dos serviços como
forma de contribuir para mudanças no trabalho por meio das capacitações. Tais fatores auxiliam a
qualificar a implementação das ações e possibilitam a construção de estratégias adequadas à realidade
social, o que só poderá ser efetivado a partir da interação entre os diferentes atores que compõem este
cenário das políticas públicas8.
Pensando o processo de educação voltado para a realidade, não é possível abarcar essa realidade
sem considerar quem a constitui e é constituído por ela: a sociedade. Por ser um tema atravessado
por inúmeros determinantes sociais, faz parte do processo inserir, estimular e propagar análises e
intervenções que rumem nesta direção participativa, mesmo tendo clareza de que um curso não será
capaz de abranger toda esta discussão.
Finalmente, visando facilitar a integração entre ações das políticas nos municípios, envolvendo
gestores, profissionais e sociedade, propõe-se a realização frequente de momentos formais de
diálogo e troca de experiências. As seguintes ações podem ser operacionalizadas: 1) oficinas abertas
e com participação de diferentes atores; 2) promoção de encontros entre associações/serviços; e 3)
elaboração de atos compartilhados entre profissionais, grupos sociais e gestão. Tais momentos teriam
como funções: promover espaços de trocas de saberes e integrar a rede de atenção aos usuários de
drogas e suas famílias, por meio do engajamento e enfrentamento coordenado.
Considerações finais
A implantação do presente CRR, a despeito das limitações apresentadas, possibilitou a qualificação
de profissionais, gerando conhecimento para abordagens mais integrais e reflexivas da problemática.
Os cursos possibilitaram troca de experiências, discussão e programação de ações de prevenção e
cuidado em relação ao uso de drogas.
Contudo, deve-se questionar se, para o tipo de formação profissional desejada, o modelo de curso
conteudista seria o mais adequado. Para isso, é necessário pensar os CRRs para além da prevenção
e o cuidado ao usuário de drogas, abertos às demandas profissionais e sociais, e não tão limitados a
ementas preestabelecidas verticalmente. O CRR não pode atuar somente como centro de capacitação
e transmissão de conhecimentos, mas como centro de referência, o que requer reformulações sobre
seu modelo, e uma posição mais bem definida e atuante dentro das políticas sobre drogas, garantindo
continuidade nas ações e auxiliando no processo de readequação da rede e reformulação das práticas.
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capacitação em álcool e outras drogas ...
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
Agradecimentos
À Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas
Gerais (FAPEMIG).
Referências
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(DF): SENAD; 2009.
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primária no interior da Amazônia: sobre a formação de médicos e enfermeiros para
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demandas médico-sociais: dificuldades e estratégias de enfrentamento. Saude Soc. 2012;
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2014 [acesso 20 Set 2014]. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack/
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capacitação. Psicol Estud. 2012; 17(2):237-46.
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capacitação em álcool e outras drogas ...
Como alternativa ao panorama deficitário de formação profissional para atuação na
área do uso de álcool e outras drogas, e visando à incorporação de mudanças práticas,
são criados os Centros Regionais de Referência sobre Drogas (CRRs). Faz-se necessário
compreender e refletir sobre o papel dos CRRs nos cenários de formação e atuação sobre
a temática. A partir disso, o presente artigo pretende discutir aspectos sobre a capacitação
de profissionais do Sistema Único de Saúde e Assistência Social, por meio do relato de
experiência de um CRR de Minas Gerais. A implantação do presente CRR possibilitou
a qualificação de profissionais em direção a abordagens integrais e reflexivas sobre a
temática. Contudo, são necessárias reformulações sobre o seu modelo, com uma posição
mais bem definida e atuante dentro das políticas sobre drogas, garantindo continuidade
nas ações e auxiliando na reformulação das práticas.
Palavras-chave: Capacitação de recursos humanos em saúde. Educação profissional em
saúde pública. Educação continuada. Formação de recursos humanos.
Training on alcohol and other drugs for health and social care professionals:
report on experience
As an alternative to the deficient área of professional education for working on alcohol
and other drug use in Brazil, and in order to incorporate changes in practices, Regional
Reference Centers for Drugs (CRRs) have been created. Therefore, it is necessary to
understand and reflect on the role of CRRs within the scenario of education and action in
this field. This paper aimed to discuss aspects of the education process for professionals in
the Brazilian Health System and Social Assistance System, through a report on experience
from a CRR in the state of Minas Gerais, Brazil. The implementation of this CRR enabled
education for professionals towards comprehensive and reflective approaches in this
field. However, reformulations of the CRR model are needed, with a better-defined and
more active position within drug policies, so a to ensure continuity of actions and aid in
reformulation of practices.
Keywords: Human resources training on healthcare. Professional education on public
healthcare. Inservice education. Human resources education.
Capacitación sobre alcohol y otras drogas para profesionales de la salud y asistencia
social: relato de experiencia
Como alternativa al panorama deficitario de formación profesional para la actuación
en el área del uso de alcohol y de otras drogas y con el objetivo de la incorporación de
cambios prácticos, se crearon los Centros Regionales de Referencia sobre Drogas (CRRs).
Por lo tanto, resulta necesario comprender y reflexionar sobre el papel de los CRRs en los
escenarios de formación y actuación sobre la temática. A partir de esa base, este artículo
tiene el objetivo de discutir aspectos sobre la capacitación de profesionales de los Sistemas
Únicos de Salud y de Asistencia Social, por medio del relato de experiencia de un CRR
del estado de Minas Gerais. La implantación del presente CRR posibilitó la calificación
de profesionales en dirección para abordajes integrales y reflexivos sobre la temática.
No obstante, son necesarias reformulaciones sobre su modelo, con una posición mejor
definida y actuante dentro de las políticas sobre drogas, asegurando continuidad en las
acciones y auxiliando en la reformulación de las prácticas.
Palabras clave: Capacitación de recursos humanos en salud. Educación profesional en salud
pública. Educación continuada. Formación de recursos humanos.
Recebido em 12/08/14. Aprovado em 03/10/14.
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DOI: 10.1590/1807-57622014.0710
teses
Apoio matricial em Saúde Mental: tecendo novas formas de relação e intervenção
Matrix support in Mental Health: constructing new ways of relation and intervention
Apoyo matricial en Salud Mental: tejiendo nuevas formas de relación y intervención
A pesquisa teve por objetivo geral investigar o
processo de trabalho de apoio matricial em Saúde
Mental na Atenção Primária, levando em conta
as diretrizes do Sistema Único de Saúde e da
Reforma Psiquiátrica, com vistas à identificação
das diretrizes, princípios profissionais e valores
que permeiam o processo. O delineamento
do estudo é qualitativo, e foi realizado com
profissionais especialistas em saúde mental e
generalistas da Estratégia Saúde da Família de
Gravataí/RS, Brasil. Os instrumentos utilizados
foram entrevistas semiestruturadas e grupos
focais. Os resultados evidenciam que o trabalho
sustenta-se: no trabalho relacional em ato,
mediante as relações personalizadas instituídas
entre apoiadores e generalistas; nos recursos
imateriais; e na ampliação da clínica. Dois outros
paradigmas foram identificados, o psicossocial
e o de produção de vida. A sistematicidade
dos encontros, o viés de saúde pública dos
especialistas, a identificação com o trabalho, a
descentralização como um ideal de vida foram
identificados como elementos que subsidiam o
trabalho. Um achado, que encontra ressonância
na literatura internacional, é a existência de
liderança em saúde mental, reconhecida pelos
pares e profissionais da APS, que mobiliza
pessoas e intermedeia as relações com os demais
serviços da rede. A complexidade decorre em
razão dos diferentes desejos, interesses e forças
dos distintos agentes envolvidos, e remete às
questões de ordem estrutural, organizacional e de
gestão. Estes podem atuar como obstáculos ao
processo. Dentre os fatores facilitadores, estão:
as relações personalizadas entre os profissionais;
a disponibilidade; o comprometimento;
a comunicação fluida e dialógica; e a
corresponsabilização. Os princípios profissionais
que subjazem às práticas organizam-se em
torno do desejo de trabalhar na comunidade;
não centralizar funções; conhecer a rede; ter
habilidades de escuta; e de construir consensos.
Os valores presentes nas relações e interações
pautam-se: no acolhimento; nas relações de
cuidado intra e interequipes e com os usuários;
na humildade; na generosidade de partilhar o
saber; e no comprometimento. Com relação aos
profissionais da APS, o aporte de conhecimentos
e a retaguarda assistencial contribuem para a
abordagem conjunta e resolução de casos, que,
anteriormente, eram referenciados a serviços
especializados. Evidencia-se que esta metodologia
qualifica as intervenções em saúde mental,
mediante a troca de experiências e saberes,
colaborando para a integralidade da atenção.
O vínculo com o apoiador, a comunicação, a
estrutura das equipes de Saúde da Família, a
sistematicidade dos encontros, a longitudinalidade
e a corresponsabilização foram apontadas como
fatores facilitadores. Um obstáculo ao trabalho
diz respeito à imposição de barreiras de acesso ao
Centro de Atenção Psicossocial, após a instituição
do Apoio Matricial. Os resultados dos dois
grupos investigados evidenciam que o enfoque
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teses
não é sobre o processo propriamente dito, mas,
primordialmente, sobre as pessoas envolvidas
nele. Os dados permitem inferir que a qualidade
das relações, as caraterísticas dos profissionais,
os princípios e valores profissionais e pessoais
envolvidos sustentam uma prática com contornos
singulares.
Alice Hirdes
Tese (Doutorado), 2014
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia
Universidade Católica de Porto Alegre
[email protected]
Palavras-chave: Saúde Mental. Atenção Primária à
Saúde. Assistência Integral à Saúde. Gestão em Saúde.
Estratégias locais.
Keywords: Mental Health. Primary Health Care.
Comprehensive Health Care. Health management.
Local strategies.
Palabras clave: Salud Mental. Atención Primaria de
Salud. Atención Integral de Salud. Gestión en Salud.
Estrategias locales.
Texto na íntegra disponível em:
http://verum.pucrs.br/ppgpsico
Recebido em 25/08/14. Aprovado em 16/11/14.
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DOI: 10.1590/1807-57622015.0180
notas breves
Encontro Arte, Saúde e Cultura:
compartilhando saberes e experiências em interface
Isabel Cristina Lopes(a)
Isabela Umbuzeiro Valent(b)
Renata Monteiro Buelau(c)
Introdução
Psicóloga e sanitarista,
supervisora de políticas
públicas intersetoriais
de saúde, saúde
mental, cultura e meio
ambiente. Idealizadora
do programa municipal
Centros de Convivência
e Cooperativa de São
Paulo; Coordenadora
Geral, Projeto Cidadãos
Cantantes. Rua Maestro
Callia, 84, apto 61E,
Vila Mariana. São Paulo,
SP, Brasil. 04012-1000.
cris.lopes24@terra.
com.br
(b)
Coordenação, Núcleo
de Cultura do Centro
de Convivência É de
Lei; Integrante do GT
Arte, Saúde e Cultura.
São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
(c)
Laboratório de
Estudos e Pesquisa
Arte, Corpo e
Terapia Ocupacional,
Faculdade de Medicina,
Universidade de São
Paulo; integrante do GT
Arte, Saúde e Cultura.
São Paulo, SP, Brasil.
[email protected]
(a)
No dia 1º de dezembro de 2014, na Praça das Artes, no centro de São Paulo,
aconteceu o I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política municipal
de interface. O Encontro foi organizado pelo Grupo de Trabalho Arte, Saúde
e Cultura, constituído por representantes: das Secretarias de Saúde e Cultura
do Município de São Paulo, da sociedade civil organizada, de trabalhadores da
rede de saúde e cultura, e da comunidade acadêmica. O evento contou com a
presença do então Secretário Municipal da Cultura, Juca Ferreira, e do Secretário
Adjunto da Secretaria Municipal da Saúde, Paulo Puccini, além do ator Sergio
Mamberti, histórico militante dos direitos culturais no Brasil. Diversos grupos e
trabalhadores da rede de saúde e cultura de São Paulo construíram um painel
múltiplo e heterogêneo, expressão da riqueza de ações nesta interface na cidade.
A metodologia do Encontro priorizou espaços de troca e debate, organizados
em quatro estações nas quais os participantes puderam transitar construindo
livremente sua forma de contribuição. Os temas trabalhados visavam abranger
a complexidade de um diálogo transdisciplinar que se fortalece nas composições
de diferentes saberes e experiências: 1. os territórios da arte, cultura e saúde;
2. diversidade e grupos heterogêneos; 3. financiamento, fomentos, editais
e legislação; 4. formação, matriciamento e participação popular. A partir das
estações, o encontro produziu um material a ser sistematizado e coletivizado entre
os diversos realizadores de saúde e cultura da cidade, de forma a criar subsídios
para a realização da I Conferência Municipal de Arte, Saúde e Cultura.
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criação
Intervenção fotográfica urbana “É de dentro
e de fora”, realizada pelo Ponto de Cultura É
de Lei que se apresentou no Evento.
Caixa de Poemas. instalação da Oficina
de Escrita e Imagem do Hospital do
Servidor Público Municipal
A riqueza das trocas que tiveram lugar neste encontro evidenciou a
importância de registrar e divulgar seu acontecimento para um público mais
amplo. Daí a iniciativa de publicarmos a fala de abertura do evento, proferida
por Isabel Cristina Lopes em nome do GT Arte, Saúde e Cultura, conforme
segue, juntamente com fotos de Renata Buelau e Isabela Valent que pudessem
dar visibilidade a algumas das performances e participações.
408
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notas breves
Eliana Bolanho com a
intervenção artística
Canto a Canto
Fala de Abertura do “I Encontro Arte, Saúde, Cultura: construindo uma política
municipal de Interface”, por Isabel Cristina Lopes
“Há uma memória política que alimenta e enraíza nosso propósito aqui hoje. Foi
no final da década de 1980, no então Governo de Luiza Erundina, com Marilena
Chauí e Carlos Neder à frente das Secretarias de Cultura e Saúde, respectivamente,
que ocorreu a primeira iniciativa desta amálgama entre saúde e cultura, através do
surgimento dos Centros de Convivência e Cooperativas (CECCO) em nossa Cidade.
Os CECCOs, localizados em espaços públicos facilitadores de encontros, como os
Parques Municipais, têm por premissa a promoção e o desenvolvimento do potencial
criativo e ativo, sobretudo de pessoas em situação de vulnerabilidade social e/ou de
saúde. Em agrupamentos heterogêneos que ali se constituem pela tarefa da arte,
da artesania e do esporte, busca-se, acima de tudo, a fruição, a ampliação de laços
afetivos e de pertencimento. Os encontros dali decorrentes caracterizam-se por
uma força transformadora que promove novas formas de se fazer política pública,
religando saberes. Todos os envolvidos descobrem saberes e potências: trabalhadores
da saúde sabidos para além de suas especificidades, fazedores de arte e esporte
sabidos de mundos internos e novos territórios humanos, e também sabido o povo
frequentador destes espaços que se descobre desejante.
Na época de seu surgimento, artistas, artesãos, educadores físicos e mestres de
práticas orientais trabalhavam em conjunto com assistentes sociais, psicólogos,
terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e outros, criando um novo ofício que ia além
da prática assistencial. Um ofício da ordem da provocação criativa e ativa de sujeitos
que despontavam para a criação, para a descoberta de um corpo de dores e amores,
para a produção de bens e de subjetividades.
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criação
Uma nova conjugação entre saúde e cultura aconteceu em 2003, por iniciativa
do poder legislativo, de autoria do parlamentar Nabil Bonduki, com o Programa para
a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), numa tentativa de consolidação de uma
Política de Cidadania Cultural na cidade. Anos depois, em 2006, na extinta Secretaria de
Participação e Parcerias, o Secretário José Pólice Neto, cria o programa Ofício Social, que,
entre outras ações formadoras, contratou artistas, esportistas, mestres da cultura popular
para os serviços de saúde municipais, que poderiam, assim, se ocupar desses encontros de
saberes promotores de emancipação e saúde.
Nesta genealogia reavivada, a composição do Grupo de Trabalho inaugura, aqui, com
ineditismo, a possibilidade de diferentes atores sociais – Secretarias Municipais de Cultura
e Saúde, comunidade científica (por meio do Laboratório de Estudos e Pesquisa da Arte,
Corpo e Terapia Ocupacional da FMUSP), trabalhadores e gestores da rede de saúde e
de cultura, organizações não governamentais (Ponto de Cultura É de Lei) e a sociedade
civil organizada (Projeto Cidadãos Cantantes, Rede dos Fazedores de Arte) – inscreverem,
com outros representantes desses segmentos, seu compromisso e, acima de tudo, seu
desejo de estabelecer uma verdadeira Política Pública de interface: robusta, enraizada e de
corresponsabilização de todos na construção de um bem comum.
Apresentação do Coral do Gabinete da
Secretaria Municipal de Saúde
410
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notas breves
A receptividade dos dois Secretários Municipais presentes nos impulsiona a construir
uma carta de intenções que referende estratégias de multiplicação dessa discussão nos
territórios da cidade, e, deste modo, crie as condições para a realização da I Conferência
Municipal de Arte, Saúde e Cultura, que terá como meta indicar compromissos
intersetoriais e diretrizes para o poder público neste campo.
Apresentação das ações culturais do Programa De braços abertos
Apresentação do grupo
Mosaico Convivência
Musical do CECCO Bacuri
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criação
Nossas fontes jorram fartas, desde as políticas de valorização de um protagonismo cigano,
quilombola, indígena, feminino, voltado a novas economias afetivas e solidárias, até as experiências
de mais de três décadas da Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA) – que é escola, mas está
na Secretaria de Cultura, que é da Cultura mas habita um Parque Municipal. Esta escola atende a
infância de toda a cidade; infância de todas as cores, credos, filiações e condições mais amplas ou
mais estreitas de se ir pelo mundo. As diversas linguagens que lá se experimenta, por vezes ao mesmo
tempo – música, dança, teatro, artes visuais – promovem, nesses pequenos cidadãos e em suas famílias,
improváveis diálogos instauradores de harmonia e novas sonoridades. Será isso prenúncio de saúde?
Outras experiências que trabalham com população de rua e a redução de danos no uso de drogas,
constroem roteiros e histórias na linguagem cinematográfica. No Ponto de Cultura É de Lei, sujeitos
ressignificam trajetos e afirmam: a arte existe para que a verdade não nos destrua.
Mas a emoção só não se completa no gozo necessário e de direito, pelo ainda frágil lugar que o
artista, o fazedor cultural, ocupa. É preciso que este personagem, que não é onírico, que vive do ofício
de nos ajudar a sonhar e de nos reconhecermos mais saudáveis e menos doentes, mais amantes do
caos que dá a luz a uma estrela dançante – como diz o filósofo Nietzsche – tenha um lugar garantido e
reconhecido nas políticas desta interface.
Para avançarmos em encontros da diversidade arte, saúde e cultura, carecemos de esteio:
desde a formação com apoio da comunidade popular e da comunidade científica, a garantia de
valorização dos profissionais, até, e sobretudo, as políticas de financiamento, fomentos que incentivem
verdadeiramente a inauguração de um novo modo de fazer que qualifique o SUS, a cultura viva em seu
campo simbólico, existencial e material.
Apresentação
do Coral Cênico
Cidadãos
Cantantes
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notas breves
Nossa maior tarefa, hoje, é a de provocarmos encontros. Encontros da diversidade, das inúmeras
tribos que habitam nossa cidade, que habitam nosso inconsciente coletivo, que habitam nosso
imaginário popular e, por vezes, nos assustam em sua diferença, afastando a possibilidade de
encontros criativos. A produção de homogeneidade, por um lado, protege as relações de surpresas e
desconfortos diante do desconhecido, mas, por outro, subtrai da vida a chance de Alice, a chance de
se perder e se achar inusitadamente, a chance do encontro com o chapeleiro lucidamente maluco, com
o coelho senhor de um tempo que nos escapa, da rainha de copas que tem morada cativa em cada
um de nós; subtrai de cada um essa maravilhosa chance de poetizar a vida, de reivindicar a vida, de se
colocar impacientemente diante da vida.
Apresentação da Oficina de Dança e Expressão Corporal do Projeto Cidadãos Cantantes
Temos fome de novos paradigmas para o bem viver, para o bem encontrar, para o bem sonhar,
para o bem fazer. Se são as interfaces de um fazer coletivo, fraterno e auspicioso, não o sabemos, mas
o intuímos, o desejamos, pois a fragmentação, a dor, o isolamento, a abstinência, seja ela qual for,
desumanizam e impedem o canto universal: o choro de quem nasce, o choro que vibra em diversas
tessituras absolutamente compreensíveis do oriente ao ocidente, entre palestinos e israelenses,
chineses e americanos, russos e ucranianos, africanos e europeus, aborígenes, indígenas, indianos,
tibetanos, japoneses ou iranianos, venezuelanos ou chilenos, argentinos, brasileiros: nordestinos ou
paulistanos. Todos somos filhos de Deus, como revela a poesia de André Abujamra, e falamos a mesma
língua!!
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):407-16
413
criação
Integrantes do
GT Arte, Saúde
e Cultura
414
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):407-16
notas breves
Colaboradores
Isabel Cristina Lopes escreveu e proferiu a fala de abertura do I Encontro Arte, Saúde
e Cultura: construindo uma política municipal de interface. Isabela Valent e Renata
Buelau realizaram o registro fotográfico. As três participaram da organização do evento e
trabalharam juntas na produção deste texto.
Esta composição visa registrar e divulgar o I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo
uma política pública de interface, por meio da publicação da fala de abertura, juntamente
com fotos que apresentam alguns recortes das participações e apresentações que
ocorreram ao longo deste acontecimento. O Encontro foi organizado pelo Grupo de
Trabalho Arte, Saúde e Cultura, constituído por: representantes das Secretarias de Saúde
e Cultura do Município de São Paulo, trabalhadores da rede de saúde e cultura, sociedade
civil organizada e comunidade acadêmica.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Cultura. Saúde. Arte. Interface.
Meeting Art, Health and Culture: sharing knowledge and experiences in interface
This paper presents a composition between text and images that aims to record and
publicize the I Encontro Arte, Saúde e Cultura: construindo uma política pública de
interface (I Meeting Art, Culture and Health: building an interface public policy), through
the opening speech, along with pictures that show some clippings of participations
and presentations that took place during the event. The Meeting was organized by the
Working Group Art, Culture and Health, consisting of representatives of the Departments
of Health and Culture of the Municipality of São Paulo, workers of the network of health
and culture, civil society and academia.
Keywords: Public Policies. Culture. Health. Arts. Interface.
Encuentro Arte, Salud y Cultura: compartindo saberes y experiencias de interfaz
Esta composición tiene como objetivos registrar y divulgar lo I Encuentro Arte, Salud
y Cultura: construyendo una política pública de interfaz, a través de la publicación del
discurso de apertura, juntamente con las fotos mostrando algunos de los recortes de
las participaciones e presentaciones que han ocurrido a lo largo de este acontecimiento.
El Encuentro fue organizado por el Grupo de Trabajo Arte, Salud y Cultura, hecho
por representantes de las Secretarias de Salud y Cultura de la ciudad de São Paulo,
trabajadores da la red de salud y cultura, la sociedad civil organizada y la comunidad
académica.
Palabras clave: Política Pública. Cultura. Salud. Arte. Interfaz.
Recebido em 02/03/15. Aprovado em 10/03/15.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
2015; 19(53):407-16
415
INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica
artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas
de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e
veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos
e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de
efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para
adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo.
A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo
sistema Scholar One Manuscripts.
(http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)
Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada
ao atendimento às normas descritas abaixo.
Forma e preparação de manuscritos
SEÇÕES
Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite
dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até
seis mil palavras).
Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de
pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas
de interesse para a revista (até seis mil palavras).
Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou
polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e
debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista,
cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de
abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até
mil palavras; réplica: até mil palavras.).
Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que
problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de
experiência ou informações relevantes veiculadas em meio
eletrônico (até cinco mil palavras).
Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida
ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de
abrangência da revista (até seis mil palavras).
Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob
a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem
organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras).
Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse
para a revista, em interface com os campos das Artes e da
Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos
iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc.,
de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta.
Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos,
projetos inovadores (até duas mil palavras).
Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas
ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil
palavras).
Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros
e excluem-se título, resumo e palavras-chave.
ENVIO DE MANUSCRITOS
SUBMISSÃO DE manuscritos
Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita
colaborações em português, espanhol e inglês para todas as
seções. Apenas trabalhos inéditos e submetidos somente a
este periódico serão encaminhados para avaliação. Não serão
aceitas para submissão traduções de textos publicados em
outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma
autorização para publicação assinada por todos os autores do
manuscrito. O modelo do documento estará disponível para
upload no sistema.
Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado
no sistema.
Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado,
clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão.
Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial
12, respeitando o número máximo de palavras definido por
seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação
devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática
(com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas).
Da primeira página devem constar (em português, espanhol
e inglês): título (até 20 palavras), resumo (até 140 palavras) e
no máximo cinco palavras-chave.
Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título
e palavras-chave.
Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas
sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas
somente quando necessário.
Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá
explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado
de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há
conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres
humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área,
indicando o número do processo e a instituição.
Em texto com dois autores ou mais também devem ser
especificadas as responsabilidades individuais de todos os
autores na preparação do mesmo.
O autor também deverá responder à seguinte pergunta:
No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na
literatura nacional e internacional?
O autor pode indicar dois ou três avaliadores (do país ou
exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho.
Se houver necessidade informe sobre pesquisadores com os
quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo.
CITAÇÕES E REFERÊNCIAS
Interface adota as normas Vancouver como estilo para
as citações e referências de seus manuscritos.
CITAÇÕES NO TEXTO
As citações devem ser numeradas de forma consecutiva,
de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas
no texto. Devem ser identificadas por números arábicos
sobrescritos.
Exemplo:
Segundo Teixeira1,4,10-15
Nota importante: as notas de rodapé passam a ser
identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre
parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando
necessário.
Casos específicos de citação:
a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto
deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da
expressão et al.
b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre
aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original,
substituí-las pelo apóstrofo ou aspas simples.
instruções aos autores
Projeto e política editorial
instruções aos autores
Exemplo:
“Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se,
em grande parte, nas normas de estilo da American National
Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1
c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo
destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo
à esquerda.
Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar
colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...]
quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...].
Exemplo:
Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê
Internacional de Editores de Revistas Médicas
(International Committee of Medical Journal Editors ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para
Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos –
Estilo Vancouver 2.
REFERÊNCIAS
Todos os autores citados no texto devem constar das
referências listadas ao final do manuscrito, em ordem
numérica, seguindo as normas gerais do International
Committee of Medical Journal Editors (ICMJE)
– http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser
abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus
(http://www.nlm.nih.gov/).
As referências são alinhadas somente à margem esquerda e
de forma a se identificar o documento, em espaço simples e
separadas entre si por espaço duplo.
A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser
uniforme para todas as referências.
EXEMPLOS:
LIVRO
Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição).
Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação.
Exemplo:
Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos
de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008.
Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al.,
se exceder este número.
**
Sem indicação do número de páginas.
Nota:
Autor é uma entidade:
Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio
ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001.
Séries e coleções:
Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana;
1993 (Visão do futuro, v. 1).
*
CAPÍTULO DE LIVRO
Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s)
autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número).
Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página
inicial-final do capítulo
Nota:
Autor do livro igual ao autor do capítulo:
Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos
conceituais à prática na análise da implantação dos
programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28.
Autor do livro diferente do autor do capítulo:
Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde
coletiva no internato e na prova de Residência Médica na
Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC,
Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores.
Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São
Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72.
Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al.,
se exceder este número.
**
Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do
capítulo.
*
ARTIGO EM PERIÓDICO
Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico
abreviado. Ano de publicação; volume (número/
suplemento):página inicial-final do artigo.
Exemplos:
Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde.
Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40.
Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida
CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do
autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface
(Botucatu). 2013; 17(44):119-32.
até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se
exceder este número.
**
Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do
artigo.
*
DISSERTAÇÃO E TESE
Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição
onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho.
Exemplos:
Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade
apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde
[tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu;
2013.
Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização
no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP):
Universidade Estadual Paulista; 2010.
TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO
Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In:
editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do
evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data
do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação:
Editora; Ano de publicação. Página inicial-final.
Exemplo:
Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade
[Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação
Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação
Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out
30]. Disponível em: www.google.com.br
Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data
de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico:
Disponível em: http://www......
*
Sem paginação:
Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes:
the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002
Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from:
http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/Wawatch.
htmArticle
Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre
as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da
União, 19 Set 1990.
*
Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com
o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.
*
RESENHA
Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es).
Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final.
Exemplo:
Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro:
Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira
MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde.
Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21.
ARTIGO EM JORNAL
Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data;
Seção: página (coluna).
Exemplo:
Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global.
Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3.
CARTA AO EDITOR
Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal.
Exemplo:
Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu).
2012; 16(43):1143-4.
ENTREVISTA PUBLICADA
Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a
entrada é sempre pelo entrevistado.
Exemplo:
Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural
e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação
[entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM].
Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.
Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é
sempre pelo entrevistador.
Exemplo:
Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da
Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação,
Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström].
Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.
DOCUMENTO ELETRÔNICO
Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora;
data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso
em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:”
Com paginação:
Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an
update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun
1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/science.html.
Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos
(URL) citados no texto ainda estão ativos.
Nota:
Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste
caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o
Doi junto; em outros casos, nem sempre).
Outros exemplos podem ser encontrados em
http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html
ILUSTRAÇÕES
Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff
ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo
16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos
torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos
de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em
programa de imagem (photoshop ou corel draw).
Nota:
No caso de textos enviados para a seção de Criação, as
imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300
dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12
cm e máximo de 18 x 21 cm.
As submissões devem ser realizadas online no endereço:
http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS
Todo texto enviado para publicação será submetido a uma
triagem e pré-avaliação inicial, que inclui a identificação de
pendências na documentação e sistema de busca por plágio.
Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no
mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor
(es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em
caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado
a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o
mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial
(editores e editores de área).
Os textos são de responsabilidade dos autores, não
coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista do Corpo
Editorial da revista.
Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto
quando identificado, está licenciado sobre uma licença
Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução
parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial,
desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link:
http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/
Interface - Comunicação, Saúde, Educação segue os
princípios da ética na publicação contidos no código de
conduta do Committee on Publication Ethics (link: COPE).
instructions for authors
DOCUMENTO LEGAL
Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação
(cidade e data da publicação).
Exemplos:
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
instructions for authors
Project and editorial policy
INTERFACE - Communication, Health, Education publishes
original analytical articles or essays, critical reviews and
notes on research (unpublished texts); it also edits debates
and interviews, in addition to publishing the abstracts of
dissertations and theses, notes on events and subjects of
interest. The editors reserve themselves the right to make
changes and/or cuts in the material submitted to the journal,
in order to adjust it to its standards, maintaining the style and
content.
The manuscript submission is online, by the Scholar One
Manuscripts system.
(http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)
All papers submitted to Interface have to follow the
instructions described below.
Form and preparation of manuscripts
SECTIONS
Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of
the editors, resulting from original study and research (up to
six thousand words).
Articles - analytical texts or reviews resulting from original
theoretical or field research on themes that are of interest to
the journal (up to six thousand words).
Debates - a set of texts on current and/or polemic themes
proposed by the editors or by collaborators and debated by
specialists, who expound their points of view. The editors are
responsible for editing the final texts (original text: up to six
thousand words; debate texts: up to one thousand words;
reply: up to one thousand words).
Open page - preliminary research notes, polemic and/or
current issues texts, description of experiences, or relevant
information aired in the electronic media (up to five thousand
words).
Interviews - testimonies of people whose life stories or
professional achievements are relevant to the journal’s scope
(up to six thousand words).
Books - publications released in Brazil or abroad, in the form
of critical reviews, comments, or an organized collage of
fragments of the book (up to three thousand words).
Creation - Texts reflecting on topics of interest for the
journal, at the interface with the fields of arts and culture,
which in their presentation use formal iconographic, poetic,
literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to
strengthen and give consistency to the discussion proposed.
Brief notes - comments on events, meetings and innovative
research and projects (up to two thousand words).
Letters - comments on the journal and notes or opinions on
subjects of interest to its readers (up to one thousand words).
Note: In case of counting the text words, the tables with text
are included and the title, the abstract and the keywords are
excluded.
SUBMITING ORIGINALS
Interface - Communication, Health, Education accepts
material in Portuguese, Spanish and English for any of its
sections. Only unpublished papers and submitted only to
this journal will be accepted for evaluation. Translations of
texts published in another language will not be accepted.
Submissions must be accompanied by an authorization for
publication signed by all authors of the manuscript. The
model for this document will be available for upload in the
system.
Note: You must do the system registration in order to submit
your manuscript. Go to the link
http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
and follow the instructions. When you have finished the
registration, click “Author Center” and begin the submission
process.
The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12,
respecting the maximum number of words defined per section
of the Journal.
All originals submitted for publication must have an abstract
and keywords relating to the topic (with the exception of
Books, Brief notes and Letters).
The first page of the text must contain (in Portuguese,
Spanish and English): the article’s full title (up to 20 words),
the abstract (up to 140 words) and up to five keywords.
Note: In case of counting the abstract’s words, the title and
the keywords are excluded.
Footnotes: These should be identified using lower-case
superscript letters, in parentheses. They should be succinct
and should only be used when necessary.
NOTE: during the submission process the author needs to
indicate whether the text is unpublished, whether it was the
result of a grant, whether it results from a master’s thesis
or doctoral dissertation, whether there are any conflicts
of interest involved and, in case of research with humans,
whether it was approved by an Ethics Committee in its field,
specifying the process number.
In articles with two authors or more, the individual
contributions to the preparation of the text must be specified.
The author also must answer the following question:
What your text adds to what has already been published in
the national and international literature?
Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad)
who can evaluate your manuscript. If you consider necessary,
inform about researchers with whom there may be conflicts
of interest concerning your paper.
CITATIONS AND REFERENCES
The journal Interface adapts the Vancouver standard as
the style to use for citations and references in manuscripts
submitted.
CITATIONS IN THE TEXT
Citations should be numbered consecutively, according to the
order in which they are presented in the text. They should be
identified using Arabic numerals as superscripts.
Example:
According to Teixeira1,4,10-15
Important note: Footnotes will now be identified by means of
lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should
be succinct and should only be used when necessary.
Specific cases of citations:
a) Reference with more than two authors: in the body of
the text, only the name of the first author should be cited,
followed by the expression “et al.”
b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph
between quotation marks (“xx”). If the citation already came
in quotation marks in the original text, replace them with
single quotation marks (‘xx’).
Example:
“The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely
based on the style standards of the American National
1
Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.”
c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset
from the text (with a one-line space before and after it), with
a 4 cm indentation on the left side.
Note: To indicate fragmentation of the citation use square
brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when
we reread the manuscript, but nothing could be done [...].
Example:
This meeting has expanded and evolved into
the International Committee of Medical Journal
Editors (ICMJE), and has established the Uniform
Requirements for Manuscripts Presented to
Biomedical Journals: the Vancouver Style2.
REFERENCES
All the authors cited in the text should appear among the
references listed at the end of the manuscript, in numerical
order, following the general standards of the International
Committee of Medical Journal Editors (ICMJE)
(http://www.icmje.org). The names of the journals should
be abbreviated in accordance with the style used in Index
Medicus (http://www.nlm.nih.gov/).
The references should be aligned only with the left margin and,
so as to identify the document, with single spacing and separated
from each other by a double space.
The punctuation should follow the international standards and
should be uniform for all the references.
EXAMPLES:
BOOK
Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of
the edition). City of publication: Publishing house; Year of
publication.
Example:
Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos
de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008.
Up to six authors, separated by commas, followed by “et
al.”, if this number is exceeded.
**
Without indicating the number of pages.
Note:
If the author is an entity:
Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio
ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001.
In the case of series and collections:
Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana;
1993 (Visão do futuro, v. 1).
*
BOOK CHAPTER
Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of
the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number).
City of publication: Publishing house; Year of publication.
First-last page of the chapter.
Note:
If the author of the book is the same as the author of the
chapter:
Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos
conceituais à prática na análise da implantação dos
programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28.
If the author of the book is different from the author of the
chapter:
Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde
coletiva no internato e na prova de Residência Médica na
Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC,
Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores.
Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São
Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72.
Up to six authors, separated by commas, followed by “et
al.”, if this number is exceeded.
**
It is obligatory to indicate the first and last pages of the
chapter, at the end of the reference.
*
ARTICLE IN JOURNAL
Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated
title of the journal. Date of publication; volume (number/
supplement): first-last page of the article.
Examples:
Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde.
Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40.
Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida
CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do
autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface
(Botucatu). 2013; 17(44):119-32.
Up to six authors, separated by commas, followed by “et
al.”, if this number is exceeded.
**
It is obligatory to indicate the first and last pages of the
article, at the end of the reference.
*
DISSERTATION AND THESIS
Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it
was presented; year when study was defended.
Examples:
Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade
apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde
[thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu;
2013.
Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização
no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP):
Universidade Estadual Paulista; 2010.
STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT
Author(s) of the study. Title of the study presented. In:
editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the
event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of
the event; city and country of the event. City of publication:
Publishing house; Year of publication. First-last page.
Example:
Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade
[Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação
Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação
Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30,
2013]. Available from: www.google.com.br
*
When the study has been consulted online, mention the
data of access (abbreviated month and day followed by
comma, year) and the electronic address: Available from:
http://www......
LEGAL DOCUMENT
Title of the law (or bill of law, or code...), publication data
(city and date of publication).
Examples:
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.
ELECTRONIC DOCUMENT
Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing
house; date of publication [date of access with the expression
“accessed”]. Address of the website with the expression
“Available from:”
With page numbering:
Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an
update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20,
1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/science.html
Without page numbering:
Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes:
the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002
Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available
from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/
Wawatch.htmArticle
The authors should check whether the electronic addresses
(URLs) cited in the text are still active.
*
Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre
as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da
União, 19 Set 1990.
This follows the standards recommended in NBR 6023 of the
Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira
de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard
adapted to the Vancouver Style.
Note:
If the reference includes the DOI, this should be maintained.
Only in this case (when the citation was taken from SciELO,
the DOI always comes with it; in other cases, not always).
*
REVIEW
Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s).
Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page.
Example:
Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira
MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde.
Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21.
ARTICLE IN NEWSPAPER
Author of the article. Title of the article. Name of the
newspaper. Date; Section: page (column).
Example:
Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global.
Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3.
LETTER TO EDITOR
Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page.
Example:
Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu).
2012; 16(43):1143-4.
PUBLISHED INTERVIEW
When the interview consists of questions and answers, the
entry is always according to the interviewee.
Example:
Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural
e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação
[interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA,
Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.
When the interviewer transcribes the interview, the entry is
always according to the interviewer.
Example:
Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da
Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação,
Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström].
Other examples can be found at
http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html
Illustrations: Images, figures and drawings must be
created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi.
Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9.
Tables and tower graphs can be created as Word files. Other
kinds of graphs must be created in image programs (corel
draw or photoshop).
Note: In the case of texts sent to the Creation section, images
should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be
sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm
and maximum of 18 x 21 cm.
Submissions must be made online at:
http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo
ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS
Every text will will be submited to a preliminary evaluation
by the Editorial Board, that includes the identification of
shortcomings in the documentation and search system for
plagiarism. In case the reviewers have divergent opinions, the
paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The
final decision about the merit of the work is the responsibility
of the Editorial Board (editors and area editors).
The texts are the responsibility of the authors and do not
necessarily reflect the point of view of the publishers.
All content in the approved paper, except where otherwise
noted, is licensed under a Creative Commons Attribution,
type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is
permitted if the source is mentioned. See details in:
http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/
Interface - Communication, Health, Education follows the
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Committee on Publication Ethics code conduct (link: COPE).
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC
EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO
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Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal
Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France
Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica
Uruguaia, Uruguai
Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES
Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp
André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ
Andrea Caprara, UECE
António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal
Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ
Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa
Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma
Metropolitana, México
César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de
Colombia, Colômbia
Charles Briggs, UCSD, USA
Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS
Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp
Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha
Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México
Elisabeth Meloni Vieira, USP
Eunice Nakamura, Unicef
Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP
Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz
George Dantas de Azevedo, UFRN
Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN
Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal
Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr
Gustavo Nunes de Oliveira, UnB
Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina
Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp
Inesita Soares de Araújo, Fiocruz
Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal
Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE
Jairnilson da Silva Paim, UFBa
Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia
John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile
José Carlos Libâneo, UCG
José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI
José Miguel Rasia, UFPr
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP
José Roque Junges, Unisinos
Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN
Laura Macruz Feuerwerker, USP
Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS
Leonor Graciela Natansohn, UFBa
Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa
Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp
Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid,
Espanha
p
es
m
Fa
Luciana Kind do Nascimento, PUCMG
Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai
Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ
Magda Dimenstein, UFRN
Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei
Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa
Márcia Thereza Couto Falcão, USP
Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima
Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ
Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp
Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica
Portuguesa, Portugal
Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz
Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina
Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad
Autónoma Metropolitana, México
Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES
Maria Inês Baptistella Nemes, USP
Maria Isabel da Cunha, Unisinos
Maria Ligia Rangel Santos, UFBa
Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba
Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz
Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz
Miguel Montagner, UnB
Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb
Mónica Petracci, UBA, Argentina
Nildo Alves Batista, Unifesp
Paulo Henrique Martins, UFPE
Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ
Regina Duarte Benevides de Barros, UFF
Reni Aparecida Barsaglini, UFMT
Ricardo Burg Ceccim, UFRGS
Ricardo Rodrigues Teixeira, USP
Richard Guy Parker, Columbia University, USA
Robert M. Anderson, University of Michigan, USA
Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE
Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de
México, México
Roberto Passos Nogueira, IPEA
Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha
Rosamaria Giatti Carneiro, UnB
Rosana Teresa Onocko Campos, Unicamp
Roseni Pinheiro, UERJ
Russel Parry Scott, UFPE
Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC
Sérgio Resende Carvalho, Unicamp
Simone Mainieri Paulon, UFRGS
Soraya Fleischer, UnB
Stela Nazareth Meneghel, UFRGS
Túlio Batista Franco, UFF
APOIO/SPONSOR/APOYO
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico - CNPq
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Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp
Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp
INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN
. Bibliografia Brasileira de Educação
<http://www.inep.gov.br>
. CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales
y Humanidades
<http://www.dgbiblio.unam.mx>
. CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT
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. DOAJ - Directory of Open Access Journal
<http://www.doaj.org>
. EBSCO Publishing’s Electronic Databases
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. EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare>
. Google Academic - <http://scholar.google.com.br>
. LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para
Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y
Portugal - <http://www.latindex.unam.mx>
. LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências
da Saúde - <http://www.bireme.org>
. Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA
<http://www.csa.com.br>
. Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe,
España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/>
. SciELO Brasil/SciELO Social Sciences
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. SciELO Citation Index (Thomson Reuters)
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. SciELO Saúde Pública
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. CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com>
. CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com>
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