CINEMA · 1, 2, 14, 15, 28, 29, 30 DE ABRIL, 5 E 6 DE MAIO DE 2005
18h30 e 21h30 · Pequeno Auditório e Grande Auditório · 2 Euros (Preço único)
Figuras da Dança
no Cinema
2º Módulo – 14 de Abril • 18h30
Dance in the Sun de Shirley Clarke
In Paris Parks de Shirley Clarke
Bridges-go-Round de Shirley Clarke
Rome is Burning: A Portrait of Shirley Clarke de Noël Burch
e André S. Labarthe
O texto a seguir reproduzido é uma biografia resumida da cineasta,
escrita por Bérénice Reynaud, igualmente especialista na obra
cinematográfica de Yvonne Rainer.
O percurso de Shirley Clarke é de algum modo paradigmático das
dificuldades sentidas por inúmeros cineastas que trabalham à margem
da produção comercial de cinema, não só no que diz respeito aos
constrangimentos à produção dos seus filmes mas sobretudo pelos
seus modos de visibilidade.
Regressar a Maya Deren oferece igualmente a possibilidade de
apresentar três dos primeiros filmes de Shirley Clarke, influenciados
pela sua concepção de filme-dança, os quais, apesar de não resumirem
a sua produtividade deste período, correspondem a um momento
iniciático de um percurso cinematográfico informado pela ideia de
coreografia mesmo, nos filmes em que isso não parece ser evidente.
Assim, os filmes que vamos ver correspondem primeiro a uma
necessidade de tradução para o cinema das formas coreográficas, no
caso de Dance in the Sun, um bailado de Daniel Nagrin que retoma o
ponto de partida dos filmes-tese de Maya Deren e a sua ideia de
espacialização do movimento. Os restantes, nomeadamente In Paris
Parks, acusa a contribuição de um pensamento coreográfico segundo
o princípio de Deren de utilizar “movimentos informais, de tipo
espontâneo, para criar um todo formalizado”.
O retrato de Shirley Clarke, filmado por Noël Burch e intercalado
com imagens de alguns dos seus filmes, é um exercício de mimetismo
com o próprio estilo habitualmente atribuído à cineasta, em que a
mobilidade do gesto e a improvisação do olhar articulam a sua
experiência (convoluta) nas fileiras do cinéma vérité com uma relação
muito particular com o sujeito filmado e o primado da sua presença
(vejam-se as figuras de Duke em The Cool World ou de Jason no retrato
que dele faz Shirley Clarke).
1967: um quarto no lendário hotel Chelsea, meca-refúgio de marginais,
drogados, músicos, artistas, drag-queens, génios, snobs e esquecidos
da história, cuja mundanidade fora capturada um ano em The Chelsea
Girls de Andy Warhol. Roda-se outro filme mas aqui o sujeito está
sozinho frente à câmara com uma garrafa de whiskey e uma provisão
de haxixe. É um negro de meia idade com óculos escuros e um sorriso
atraente. A primeira coisa que diz é uma mentira: “Chamo-me Jason
Holliday”. Ri como uma criança apanhada em flagrante com os dedos
dentro do frasco da compota e confirma que se chama Aaron Paine.
Atrás da câmara, um homem e uma mulher – um negro e uma branca
– observam-no e, à medida que a noite se escoa, vão interrompendo
o seu monólogo com questões ou comentários. O homem chama-se
Carl Lee, é actor, amigo de Jason/Aaron e tornou-se conhecido numa
peça off-off Broadway do The Living Theater intitulada The Connection
(1959). A mulher chama-se Shirley Clarke: roda a sua terceira longametragem, Portrait of Jason.
Shirley Clarke faleceu em Setembro passado em Boston. Apenas
os avanços na doença de Parkinson a fariam largar o seu quarto no
Hotel Chelsea, onde vivia desde 1965. Depois de ela se ter tornado
uma figura central no meio do cinema independente de Nova Iorque,
tínhamos perdido o seu rasto, sobretudo na Europa, e depois de termos
bebido o licor cruel destilado em Portrait of Jason. As dezenas de
vídeos realizados entre 1970 e 1984 (Harry Smith at the Chelsea, 1970;
Angel of Light, 1972; Make up Magic…Wendy and Shirley, 1973; Four
Journeys Into Mystic Time, 1978-79; Savage / Love, 1981…) ou a sua
última longa-metragem, Ornette: Made in America (segundo prémio
do Festival de Moscovo em 1985), nunca encontraram o “seu” público.
Isto significa que nos resta agora (re)descobrir, atrás da heroína do
underground americano, a verdadeira Shirley Clarke.
Culturgest, uma casa do mundo.
Informações 21 790 51 55 · Edifício Sede da CGD, Rua Arco do Cego, 1000-300 Lisboa
[email protected] • www.culturgest.pt
Shirley Clarke · 2 de Outubro 1919 – 23 de Setembro 1997
Figuras da Dança no Cinema – 2º Módulo
Shirley Brimberg chega ao cinema por acaso. Não fosse a sua
obstinação em ser bailarina, esta rapariga, filha de um industrial judeu
de Nova Iorque, poderia não ter passado de outra poor little rich girl
warholiana. Apesar da desaprovação violenta do seu pai, seguiu cursos
de dança moderna (Martha Graham, Doris Humphrey, Hanya Holm)
e casou em 1944 com o artista Bert Clarke, quinze anos mais velho,
que seria o operador de câmara nos seus primeiros filmes - a sua filha
Wendy (videasta com quem colaborará mais tarde) nasce em 1946.
Em 1948, Shirley Clarke apercebe-se que nunca seria uma grande
bailarina. Seguem-se cinco anos de crise da qual emerge realizando o
seu primeiro filme, Dance in the Sun (1953), brilhante tradução
cinematográfica de uma dança de Daniel Nagrin. O filme chama a
atenção de Maya Deren (grande sacerdotisa da vanguarda nova-iorquina
e do filme de dança). Sob a sua influência, Clarke realiza In Paris Parks
em 1954, poema abstracto que reproduz o ritmo da cidade em tons de
jazz. O seu terceiro filme, Bullfight (1955), intercalava as danças de
Anna Sokolow com imagens de uma tourada; foi projectado nos Festivais
de Edimburgo e de Veneza. Em 1957, é convidada pelo cineasta Willard
Van Dyke a integrar a sua equipa (que inclui D. A. Pennebaker e Richard
Leacock) para realizar uma série de pequenos filmes destinados ao
Pavilhão Norte-Americano da Exposição Universal de Bruxelas de 1958.
Shirley Clarke realiza três filmes e monta doze (entre os quais, Neon
Signs, rejeitado pelo governo norte-americano pelo seu “radicalismo”
estético). Com filmagens não utilizadas no projecto, realiza outro filme
de montagem, Bridges-go-Round (1958), cujo sucesso consagra a sua
importância no meio experimental nova-iorquino.
A colaboração com Willard Van Dyke (marcada pela co-realização
de Skyscraper, documentário sobre a construção do Edifício Tishman
em Manhattan) abrira as portas de outro mundo, o do cinéma vérité
da escola de Nova-Iorque – Leacock, Pennebaker, os irmãos Maysles,
fundadores da Filmmakers Inc. em 1958. Outros cineastas gravitam
nesse universo, entre os quais John Cassavetes, a quem Shirley Clarke
empresta a câmara para a rodagem de Shadows. No entanto, a sua
visão do cinéma vérité diferia da de Leacock, contra o qual afirmava
a necessidade de um ponto de vista subjectivo, de uma “ficcionalização”
do sujeito. Foi assim que surgiu a ideia de adaptar The Connection.
A peça de Jack Gelber permitiu-lhe desenvolver um momento de
“falso cinéma vérité” com um cineasta e uma câmara que filmam o
momento, desdobrando de modo irónico o acto cinematográfico.
Acompanhada de Allen Ginsberg e Gregory Corso e por figuras da
vanguarda americana (o que contribuiu para a visibilidade do filme, já
que todos queriam ver os Beatnicks), Clarke estreou The Connection
em Cannes. Ela iria enfrentar a censura americana durante dois anos
para o poder estrear em sala; sucesso triunfal. Foi no processo de
montagem que conheceu Carl Lee, que se tornaria no seu companheiro
durante dezassete anos e cuja colaboração lhe permitiu realizar os
filmes seguintes. Rodado nas ruas de Harlem com uma câmara de
35mm aos ombros e uma Nagra portátil, The Cool World (1963) segue
num estilo semi-improvisado um grupo de adolescentes negros e o
seu líder, o jovem Duke, convencido da necessidade de parecer cool
para obter o respeito dos seus pares. A cineasta inspirou-se no neorealismo de Rosselini, misturando documentário e ficção (à qual
acrescentou o brio da sua montagem sincopada): “Se queremos
movimentos ternos, calmos e íntimos, necessitamos de actores capazes
Culturgest, uma casa do mundo.
Informações 21 790 51 55 · Edifício Sede da CGD, Rua Arco do Cego, 1000-300 Lisboa
[email protected] • www.culturgest.pt
de se exprimirem frente à câmara, mesmo quando desempenham os
seus próprios papéis como em The Cool World”. O filme provocou
reacções pela sua abordagem do racismo e da condição dos negros
nos Estados Unidos, pela intimidade com que Shirley Clarke, com a
ajuda de Carl Lee, se aproximou do Harlem (alguns jornais franceses
tomaram Clarke por uma “jovem mulher negra”), e pela forma de filmar
os corpos e o aspecto contemporâneo da cultura negra. A experiência
fez nascer algumas tensões financeiras entre a cineasta e o produtor,
Frederick Wiseman (então advogado), resultando apesar disso num
triunfo no Festival de Veneza.
Em 1966, Shirley Clarke funda o The Film-maker Distribution Center
(FDC) com Jonas Mekas e Louis Brigante, para distribuir os filmes do
“novo cinema americano”. Mas o único sucesso da distribuidora foi
The Chelsea Girls de Andy Warhol. Apesar da recepção crítica favorável,
os filmes de Shirley Clarke não faziam dinheiro e foi com os seus
próprios meios que financiou Portrait of Jason, um filme de tal modo
“minimal” na sua concepção e realização que não custou mais do que
25.000 dólares. Durante doze horas consecutivas (o filme foi reduzido
para 105 minutos na montagem), Shirley Clarke e uma equipa reduzida
filmaram Jason a drogar-se e a “destruir-se”. Homossexual, mitómano,
sedutor, antigo empregado de brancos endinheirados, gigolo por
necessidade, Jason imita as suas vidas passadas, as palmadas do seu
pai viril, imita Mae West, disserta sobre o passo ondulante das drag-queens de Harlem, chora, ri, oferece-se ao espectáculo, quer controlar
o ecrã, ser controlado por ele – tudo sob o olhar off dos seus amigos,
Carl e Shirley. Anos passados o filme conserva intacto o seu mistério
e fascínio: sadismo dos cineastas? Narcisismo cúmplice de Jason?
Exploração sincera de uma sub-cultura?
Jason marca o “canto do cisne” de um certo período da vida de
Shirley Clarke; em 1970 o FDC fecha as portas com problemas
financeiros. Alguns meses mais tarde, Jonas Mekas funda os Anthology
Film Archives, mas exclui Shirley Clarke do “novo cânone” do cinema
experimental (Deren, Brakhage, Snow…). A cineasta, que tinha
dispendido quase todo o seu dinheiro a fazer filmes, procura produtores
com perseverança mas sem sucesso.
“Toda a minha vida vacilei entre o desejo de ser uma grande bailarina
e o de ser uma líder revolucionária, o que quer dizer que tentei ser ao
mesmo tempo realista e abstracta”, dizia. “Por vezes faço um filme
realista como The Cool World. Mas os movimentos de câmara não são
menos coreográficos que em The Connection, Portrait of Jason ou
mesmo nos meus filmes de dança. Para mim, é isso o cinema.”
Bérénice Reynaud
Agradecimentos a Wendy Clarke
Download

Figuras da Dança no Cinema 2º Módulo – 14 de Abril