COMENTÁRIOS DA PROVA DA UFPR - 2ª FASE Matéria/Professor: Filosofia - João Paulo A citação abaixo é referência para as questões 01 e 02: "Se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se não escolhemos tudo por causa de algo mais (se fosse assim, o processo prosseguiria até o infinito, de tal forma que nosso desejo seria vazio e vão), evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens. Não terá então uma grande influência sobre a vida o conhecimento deste bem? Não deveremos, como arqueiros que visam a um alvo, ter maiores probabilidades de atingir assim o que nos é mais conveniente? Sendo assim, cumpre-nos tentar determinar, mesmo sumariamente, o que é este bem, e de que ciências ou atividades ele é o objeto. Aparentemente ele é o objeto da ciência mais imperativa e predominante sobre tudo. Parece que ela é a ciência política". (Aristóteles, Ética a Nicômaco,1094a18-28). 01. Com base em que razões Aristóteles afirma que aparentemente o melhor dos bens é o objeto da ciência mais imperativa e predominante sobre tudo? COMENTÁRIO O melhor dos bens é a felicidade, a meta da política; sendo o melhor dos bens deve ser o objeto da ciência política, porque a felicidade é a finalidade última das ações humanas, a realização plena das funções da alma, o bem atingível pela atividade, importante para a conduta da vida, absoluto e autossuficiente, e é o bem supremo que se aperfeiçoa na pólis. destarte, a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas". COMENTÁRIO Porque determina quais ciências devem ser estudadas, quem deve aprendê-las e até que ponto; legisla sobre o que deve e não deve ser feito; e visa o bem do homem; tem a tarefa de infundir certo caráter nos cidadãos, tornando-os bons, nobres e capazes de praticar boas ações para que felicidade seja alcançada. "Pois, enfim, quer estejamos em vigília, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir se não pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação, ou de nossos sentidos". Por que, para Descartes, não devemos nos deixar guiar nem pela imaginação nem pelos sentidos? 04. No parágrafo inicial do Discurso do Método, Descartes escreve: "O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens [...] COMENTÁRIO Porque a imaginação e os sentidos podem enganar e não expressam os fundamentos da verdade das ideias e noções científicas ou a essência dos corpos externos. Tais fundamentos e essência são elaborados pela razão que é capaz de duvidar da imaginação e da percepção sensorial e que usa um método apropriado. 06. Considere a afirmação de Rousseau abaixo: 03. Qual é a razão filosófica que faz com que Descartes, na Quarta Parte do Discurso do Método, tenha que demonstrar a existência de Deus? COMENTÁRIO A existência de Deus é a garantia de possibilidade para que o filósofo passe do conhecimento subjetivo isolado de sua própria existência ao conhecimento claro e distinto das outras coisas, no mundo externo ao eu. Portanto, Deus garante a possibilidade de a verdade sobre o mundo poder ser alcançada. COMENTÁRIO Os homens são igualmente dotados de razão e as causas apontadas podem levar à diversidade de opiniões: a condução do pensamento por vias diversas expressa o uso de métodos diferentes e a não consideração sobre as mesmas coisas expressa a adoção de diferentes pontos de partida ou concepções diferentes sobre essas coisas, mas outros fatores podem levar à diversidade de opiniões, tais como os referentes aos filtros culturais. 05. Na Quarta Parte do Discurso do Método, Descartes afirma: 02. Que razões Aristóteles alega para justificar a afirmação de que a ciência mais imperativa e predominante sobre tudo parece ser a ciência política? Você concorda com essa afirmação? Justifique sua resposta. "Por serem os laços da servidão formados unicamente pela dependência mútua dos homens e pelas necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem sem antes tê-lo colocado na situação de não poder viver sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de natureza, nele deixa cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais forte". (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, primeira parte) Levando em conta o trecho acima, explique: Por que, segundo Rousseau, seria difícil explicar ao homem selvagem o que é a servidão e a dominação? COMENTÁRIO Porque a servidão e a dominação decorrem da vida social, que não ocorre no estado de natureza, em que vive o homem selvagem. A vida do homem selvagem, no estado de natureza, é solitária, não se formam laços contínuos de convivência entre os homens, daí que, para esse homem selvagem, resta difícil entender a dominação e a servidão, que implicam uma existência em condições que ele desconhece completamente. 07. Segundo Rousseau, que efeitos se seguiram à instituição da propriedade privada? COMENTÁRIO Houve o surgimento de ricos e pobres; a renda do trabalho ampliou a desigualdade entre os homens; a coragem e a esperteza causaram a riqueza de alguns; houve o desenvolvimento das artes e das línguas; o trabalho tornou-se necessário; a aparência passou a ser valorizada; houve competição entre os homens, que se tornaram dependentes uns dos outros. A afirmação de Nietzsche citada abaixo é referência para as questões 08 a 10. "Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem (...), quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um novo território para sua atuação e um outro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral, na arte". (Nietzsche, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral) 08. Nietzsche afirma que o conhecimento humano é resultado desse "impulso à formação de metáforas". Em consequência dessa afirmação, como Nietzsche avalia a "verdade do conhecimento", a relação do conhecimento com a "realidade" ou a "essência das coisas"? COMENTÁRIO O conhecimento não é capaz de alcançar a “essência das coisas”. O intelecto produz a ilusão de que o homem conhece a “verdade” na medida em que ocorre o esquecimento da elaboração metafórica do mundo e essas metáforas adquirem o status de verdade absoluta, pura, que têm a pretensão de revelar a essência da realidade, mas que não passam de meras ilusões, criadas pelos próprios homens, a respeito do conhecimento da realidade. 09. De acordo com Nietzsche, a "praça forte" dos conceitos é construída pelo "homem racional" por meio da igualação de impressões distintas e individualizadas, que se transformam assim em "formas" universais. Qual seria a finalidade dessa construção? COMENTÁRIO O homem sente a necessidade de conservação e de viver em sociedade com base num acordo de paz que possibilite a concretização de uma vida de rebanho. Para existir nessas condições, a sociedade estabelece, com base num acordo político entre os homens, que é preciso falar a verdade por meio de “formas” universais elaboradas pela linguagem. 10. Em contraste com o "homem racional", como Nietzsche caracteriza o "homem intuitivo" ou "artístico"? COMENTÁRIO É valorizado, apesar de não ser capaz de afirmar a essência do mundo; é dotado de uma dimensão criativa, mas cria metáforas referentes ao mundo sem esquecer que lida com metáforas ou disfarces, mesmo diante da infelicidade; e percebe o mundo de forma mais livre, individualizada ou concreta, dinamicamente vibrante e não classificatória. COMENTÁRIO GERAL A prova apresentou um ótimo nível e manteve em sua maior parte a tradição de exigir do aluno a compreensão estrita das obras destacadas no Programa do processo seletivo, o que é importante, dada a extensão e a complexidade do debate filosófico ao longo da história. No entanto, é preciso mais cuidado com a formulação de questões como a de número 04, que exigia uma apreciação crítica do aluno a respeito da ideia desenvolvida por um dos filósofos – tal tipo de questão, apesar de prevista no Programa do processo seletivo, é uma novidade que cabe melhor na realidade de um curso de Filosofia na Universidade, mas extrapola os limites do que é possível elaborar satisfatoriamente no Ensino Médio. É preciso ter cuidado também com as indicações bibliográficas, que devem apresentar sempre as melhores traduções e edições, o que não ocorreu no caso da indicação da obra de Nietzsche.