Vitrais e vidros: um gosto de D. Fernando II
Depois de dez meses de trabalhos de conservação,
restauro e reconstituição, a Parques de Sintra – Monte
da Lua SA (PSML) apresenta, pela primeira vez, um
notável conjunto de vitrais dos séculos XIV a XIX e no
qual se inclui o mais antigo vitral conhecido em
Portugal. A excepcionalidade da ocasião motivou ainda
a reorganização da colecção de vidros do palácio que é
uma das mais representativas colecções da história do
vidro europeu existente no nosso país. Esta mostra
pretende dar a conhecer ao grande público a
diversidade e excelência de duas colecções até hoje
negligenciadas e, ao mesmo tempo, disponibilizá-las à
comunidade científica internacional para que possam
beneficiar de futuros trabalhos de investigação.
Os vitrais
Ao longo da sua vida, o rei D. Fernando II reuniu uma
ampla colecção de obras de arte na qual se incluía um
importante conjunto de vidros e vitrais. Estes últimos
foram agrupados por tamanhos e tipologias e
montados em caixilhos para decorarem os vãos da
Sala de Jantar do Palácio das Necessidades e da Sala
do Bilhar no Palácio da Pena. Os vitrais actualmente
expostos na Sala dos Veados correspondem a tudo o
que chegou até nós proveniente da Sala de Jantar do
Palácio das Necessidades.
Produzidos no centro da Europa, nomeadamente na Alemanha,
Suíça e Países Baixos, estes vitrais foram concebidos para serem aplicados em igrejas,
mosteiros, casas senhoriais e oficinas de artífices. A sua aplicação no Palácio das Necessidades
é apenas um curto e tardio capítulo da sua longa história.
A transferência dos vitrais para a Pena é, só por si, um outro capítulo. Após a implantação da
República, o palácio foi entregue ao ministério dos Negócios Estrangeiros e quase todo o seu
recheio foi dispersado. Os vitrais da Sala de Jantar foram apeados e transferidos para as
reservas do Palácio da Ajuda, onde ficaram até 1949. Nesta data, e depois de um pedido do
Conservador do Palácio Nacional da Pena, os “8 caixilhos de madeira com vitrais” chegaram à
Pena para ser aplicados nas janelas deste edifício. No entanto, acabariam por ficar esquecidos,
em reserva, ao longo das seis décadas seguintes.
Em 2007, a PSML assumiu a gestão do Palácio Nacional da Pena e, desde logo, procurou
restaurar, expor e estudar este importante conjunto de vitrais. Para este fim, foi assinado, em
Novembro de 2010, um protocolo com o Núcleo do Departamento de Conservação e Restauro
da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (NDCR), que tem vindo
a desenvolver vasta experiência nos campos do vidro e do vitral.
O conjunto de vitrais de provenientes do Palácio das Necessidades encontrava-se em
condições muito desfavoráveis, sendo urgente o seu restauro, de forma a garantir a sua
preservação e usufruto para as gerações futuras.
A seguinte metodologia de conservação e restauro foi seguida, de acordo com as Directrizes
para a Conservação e Restauro de Vitral do Corpus Vitrearum Medii Aevii. Foi realizado o
diagnóstico do estado de conservação com mapeamento das principais patologias e
caracterização de produtos de corrosão, após o qual se elaborou um plano de conservaçãorestauro. As superfícies do vidro foram limpas por via seca com pincel de cerda fina para
remoção de partículas de sujidade superficial. Seguiu-se uma limpeza por via húmida com água
e etanol. Quando necessário foi realizada a união de fragmentos de vidro com Paraloid B-72 e
preenchimento das lacunas com vidro fosco ou transparente. No caso da reconstituição de
painéis foi utilizada calha de chumbo de época, encontrada com a colecção.
Foi já iniciado o estudo histórico e artístico destes painéis tendo em vista, não apenas a
identificação dos elementos e cenas representados, mas também estabelecer a sua relação
com outros vitrais da mesma época. Será ainda recolhida informação relevante sobre os
materiais e técnicas de produção destes painéis através da caracterização da composição dos
vidros e elementos decorativos dos vitrais como a pintura a grisalha, amarelo de prata e
esmaltes, pelas técnicas não destrutivas de micro fluorescência de raios-X dispersiva de
energias (EDXRF) e absorção UV-Vis.
Os vidros
As aquisições de vidros para D. Fernando II encontram-se
registadas a partir da década de 1850, mas o interesse do rei terá
aumentado a partir do início da década seguinte. Com efeito, da
sua viagem pela Europa em 1863 ficaram facturas de aquisição de
vários vidros e, em 1864, D. Fernando II mandou adquirir em
Dresden um conjunto de obras de arte, da qual faziam parte
dezasseis peças de vidro venezianas, dois copos possivelmente
germânicos e dois painéis de vitral. No entanto, a maioria das
aquisições poderá ter sido feita em Lisboa, a antiquários como
João José Dantas, Manuel da Costa Araújo e Sá ou Sebastião
Ferreira d’Almeida.
Este interesse pelo vidro era partilhado por outros membros da família Saxe-Coburgo e Gotha.
Os duques Ernesto II e Alfredo reuniram uma extensa colecção de vidros, que actualmente se
conserva no Castelo de Coburgo. Esta continua a ser uma das principais colecções de vidro
europeu da Era Moderna. Em Portugal, o conjunto mais diversificado é, possivelmente, o que
agora se reúne na Sala dos Veados do Palácio Nacional da Pena.
No final do século XIX, os vidros do rei D. Fernando II, sobretudo obras venezianas e
germânicas dos séculos XVI a XVIII, estiveram concentrados numa sala do Palácio das
Necessidades que a documentação refere simplesmente como “Sala dos Vidros”. A colecção
foi dispersada após a morte do rei e, até hoje, a sua composição não foi ainda identificada. No
entanto, o Palácio Nacional da Pena possui um conjunto de vidros de excepcional qualidade
cujo historial se desconhece. Algumas destas peças vieram do Palácio das Necessidades em
1956, pelo que poderão ter feito parte da colecção original do rei-artista. A PSML iniciou já um
processo de investigação sobre esta colecção, que tem contado com o apoio da Fundação Casa
de Bragança que tutela o arquivo da Secretaria Particular do rei D. Fernando II. A apresentação
da colecção de vidros do Palácio Nacional da Pena pretende destacar a diversidade tipológica
do vidro produzido na Europa entre os séculos XVI e XIX e, ao mesmo tempo, suscitar o
interesse da comunidade científica pelo seu estudo.
A mostra de vidros na Sala dos Veados organiza-se em três núcleos essenciais: vidro veneziano
e à la façon de Venise, vidro germânico e vidro ibérico. De todo o conjunto, merecem
particular destaque uma tazza veneziana do século XVII com decoração em filigrana (PNP279),
os Humpen do século XVII (PNP261, entre outros), um cálice em rubi de ouro do século XVIII
(PNP275), um copo em vidro opalino de cerca de 1680 (PNP1182), e um frasco em vidro
calcedonio de produção da Boémia (PNP618).
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