Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
A CIDADE IMAGINÁRIA: MACONDO, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, E
ANTARES, DE ÉRICO VERISSIMO.
Yamicela Torres Santana (CODAP-UFS)
América Latina tem sido vista, desde os textos dos colonizadores, como um
território surpreendente, que beira entre a realidade e a magia; um espaço às vezes
alheio às regras que regem o resto do mundo e onde tudo pode acontecer. Para o
escritor Alejo Carpentier é a terra do real maravilhoso porque a própria realidade
americana fornece os elementos necessários para fazer dela matéria básica para que
o maravilhoso aconteça: a mistura de crenças e culturas forma uma realidade histórica
totalmente diferente aos padrões europeus, quase sempre norteadores de nossa
literatura.
Para Carpentier, essa profissão de fé que deve acompanhar a todo escritor,
deveria se voltar para o potencial que o continente oferece. Com o fenómeno do
“boom”, embora de forma diversa à ideia do real maravilhoso, o imaginário dos povos
da região começou a ser colocado no mesmo status que a realidade.
No contexto da literatura latino-americana, seja esta considerada mágica,
maravilhosa, fantástica ou realista, a cidade tem sido considerada como espaço ideal,
como “expresiones simbólicas de sus moradores más que como construcciones
materiales; desde sus imaginarios se afirman y desvanecen permanentemente
lenguajes y relatos que intentan comprender el mundo.” (ESCOBAR, 2004, p.14)
A cidade, desde a impressionante Tenochtitlán até a procurada El Dorado, tem
sido o cenário de incontáveis histórias, reais ou imaginadas, que tem tentado
descrever os sonhos, medos e desejos de seus habitantes, porque cada cidade é o
reflexo de quem a habita, lugar de encontros e desencontros. Desde megalópoles
como Ciudad de México ou a projetada Brasília, até outras menos conhecidas ou
ideadas, as cidades representam diferentes experiências humanas, um constante
diálogo de culturas. Para Ángel Rama
la ciudad latinoamericana ha venido siendo básicamente un parto de
la inteligencia, pues quedó inscrita en un ciclo de la cultura universal
en que la ciudad pasó a ser el sueño de un orden y encontró en las
tierras del Nuevo Continente, el único sitio para encarnar. (RAMA,
1998, p.10)
1
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Cidades imaginárias
A linha entre cidade real e cidade imaginária pode parecer tênue se
consideramos que cada espaço escrito é já um território imaginado: a Buenos Aires de
Borges, La Habana de Carpentier, o Rio de Oswald de Andrade, são outras através
dos olhos e palavras destes escritores. Entendemos, então, por cidades reais, as que
existem ou existiram, isto é, segundo Alberto Manguel, no Prefacio ao Dicionário de
Lugares Imaginários,
lugares [que] existem e figuram nos mapas do mundo real, que os
autores olharam para paisagens verdadeiras e instalaram nelas suas
visões: as personagens e os acontecimentos são imaginários, não os
lugares. (MANGUEL, 2009, p.VIII)
A cidade imaginária, em contraposição com o conceito anterior, seria o espaço
inventado, reprodução ou não de um lugar real, que tem autonomia própria dentro da
narrativa. Para Castilhos (2008) “em uma cidade imaginária ocorrem fatos que não
seriam verossímeis em uma cidade real” (CASTILHOS, 2008, p.65). Podem utilizar
elementos de cenários reais, mas podem ser manipulados para desenvolver eventos
de natureza ilusória. (JIMÉNEZ, 2006, p.112)
Para este trabalho, nos interessam duas destas “construções mentais e
simbólicas”, Macondo e Antares, espaços criados por dois autores latino-americanos e
onde acontecem fatos de natureza mágica e fantástica, respectivamente.
Fundação de Macondo
Macondo, criação do escritor colombiano Gabriel García Márquez, embora
apareça em obras anteriores a Cem anos de solidão, é neste romance que alcança
sua
maior
significação,
onde
sabemos
de
sua
fundação,
esplendor
e
desaparecimento. Muitos acham que Macondo representa Aracataca, cidade natal do
escritor, mas, apesar das coincidências, não se pode afirmar isto. O próprio autor
disse:
Macondo es más bien el pasado, y bueno, como ese pasado había
que ponerle calles y casas, temperatura y gente, le puse la imagen de
este pueblo caluroso, polvoriento, acabado, arruinado, con unas
casas de madera, con techos de zinc. (CASTILHOS apud Vargas
Llosa, 2008, p.10 )
2
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Macondo é fundada por um grupo de famílias encabeçadas por José Arcadio
Buendía que, depois de vinte e seis messes de fracassada procura pelo mar, decidem
construir a cidade para não fazer o caminho de regresso. Pelo oriente, Macondo tem a
serra, e depois desta se encontra a cidade de Riohacha; ao sul estavam os pântanos
que se confundiam ao ocidente com o rio. Ao início, as vinte casas foram construídas
de tal forma que todas pudessem ter os mesmos privilégios. Um grupo de ciganos,
liderados por Melquiades, foram os responsáveis do contato inicial de Macondo com a
civilização e de que os moradores descobrissem novidades como o imã e o gelo.
Castilhos assinala, sobre a fundação de Macondo, alguns elementos de
interesse para este trabalho. Por um lado, a autora se refere à intertextualidade bíblica
que o fato representa, neste caso, a modo de paródia. As famílias que fazem a
peregrinação buscam uma terra que ninguém prometeu, e não sabem o que
encontrarão, muito pelo contrário, a incerteza os leva a desistir do seu objetivo e
fundar o povoado. Além disso, o motivo principal que os leva a essa aventura não é
um impulso divino, mas o assassinato de Prudencio Aguilar. (CASTILHOS, 2008,
p.35).
Para a autora, Macondo representa o povo esquecido de Deus, como seus
semelhantes latino-americanos, pois, embora os habitantes de Macondo participem da
história da Colômbia, e cheguem à cidade diversos sinais de desenvolvimento, estes
sinais são questionáveis porque de alguma maneira representam a chegada de novas
formas de intervenção na vida da população (Companhia bananeira), e estas formas,
também de exploração, mostram o papel de companhias e empresas estrangeiras,
que tem explorado os recursos e riquezas dos países da América Latina.
Por outro lado, a fundação da cidade estabelece um diálogo com a descoberta
de América. Macondo é fundada como um ato de desistência: como não podem
encontrar o mar, decidem fundá-la. Colón não consegue chegar às Índias, que era seu
objetivo, mas descobre América. As famílias descobrem uma terra onde começarão a
construir um lar, uma nova vida, e os descobridores, tanto da América quanto de
Macondo, tem um caráter empreendedor, que nem sempre os leva ao sucesso.
(CASTILHOS, 2008, p.40).
3
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Fundação de Antares
Antares, por sua vez, é a cidade do romance Incidente em Antares, de Érico
Verissimo, pertence a Rio Grande do Sul, na fronteira de Brasil com Argentina,
próxima a São Borja. O povoado era chamado de Povinho da Caveira, antes da visita
de um naturalista francês, que é recebido por Francisco Vacariano. Este personagem
fala sobre a estrela Antares, nome que o patriarca achou bonito, “melhor que Povinho
da Caveira”. (VERISSIMO, 1988, p.6). Também existe a versão de que o nome se
deve à quantidade de antas que havia na região. Os primeiros proprietários de terras
foram os Vacarianos, mas depois se instala a família dos Campolargos e começam os
problemas entre eles.
Antares cresce a se converte em município, e sua participação na vida política
do estado e do país também aumenta. A cidade seria como qualquer outra se não
acontecessem os fatos que são anunciados desde o início: o incidente da sexta- feira
13 de dezembro de 1963. Na primeira parte do romance conhecemos a história da
cidade junto com a rivalidade das duas famílias; já na segunda parte é contado o fato
fantástico e o que o provocou.
Confluências
Macondo e Antares, ambas em território latino-americano, apresentam outros
pontos em comum, além de sua localização. Um desses elementos é que as duas
cidades são cenários de fatos extraordinários e estes as determinam. Tudo o que
acontece em Macondo nos parece uma realidade hiperbolizada, onde se sucedem
personagens com os mesmos nomes, relações incestuosas, comportamentos
inesperados, porém, todos agem com naturalidade ante qualquer situação. Quando
ocorrem os fatos mágicos, eles são assumidos como parte da realidade. A ascensão
aos céus de Remedios, a chuva interminável, a doença da insônia que provoca o
esquecimento, a volta de Melquiades da morte porque se encontrava sozinho, são
vistos com a normalidade das coisas comuns.
Os fatos que marcam Antares, por sua vez, podem ser considerados de
fantásticos, porque, além da definição dada pelo próprio narrador, os acontecimentos
vêm da normalidade, que é quebrada por algo inesperado e desencadeiam medo e
incerteza.
4
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Devido a uma greve, que envolve vários setores da cidade, as pessoas que
morrem não podem ser sepultadas. Isto provoca que os mortos se levantem dos
caixões e comecem a exigir o sepultamento. Aqui se inicia uma situação ameaçadora,
pois os mortos-vivos, além de entrarem em decomposição, expressam seu julgamento
público dos moradores, todos falam o que pensam sobre os vivos, sem medo de dizer
a verdade, denunciando a sociedade.
O fantástico, o inesperado, se converte de alguma forma em ameaça, pois o
retorno dos mortos não só inspira horror como provoca uma espécie de Juízo Final em
Antares. Quando a greve acaba os mortos se retiram e são enterrados, e também é
enterrada a verdade que só eles foram capazes de revelar, embora de forma limitada.
Neste momento, a situação volta à normalidade e os vivos retomam o controle da
cidade.
Outro elemento comum a estas duas cidades é a constatação de sua
existência a partir de documentos que pretendem dar autenticidade ao lugar onde
acontecerão os fatos, sejam estes mágicos ou fantásticos. No caso de Antares, na
primeira parte do romance, um narrador irritado pelo esquecimento dos cartógrafos
apresenta provas que pretendem comprovar a existência da cidade. Ele cita dois
documentos: o livro do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville e a carta de um
padre jesuíta, missionário de Buenos Aires.
O interesse do narrador é dar credibilidade à trama, a partir da inclusão da
cidade, não só nestes documentos, como também na história do estado e do país,
pois não se explica como pode ter sido esquecida constantemente. Mas da mesma
forma que os historiadores esqueceram Antares, ele centra a narração nos dois clãs
que governam a cidade e esquece os outros moradores, dando importância àqueles
que têm o poder e nunca às classes mais baixas.
O próprio fato fantástico, cuja principal consequência é o julgamento dos vivos
pelos mortos, pode ter influenciado no esquecimento da cidade. Para Bastos “pode-se
concluir que a História, isto é, a versão que os vivos poderosos dão da verdade,
subjuga a realidade”. (BASTOS, 2008, p.24). Talvez por isso os fatos daquela sextafeira 13, assim como Antares, tenham sido convenientemente apagados, pois
incomodam aos vivos.
No caso de Macondo, o narrador conhece os fatos do presente, passado e
futuro, mas só no final descobrimos que a história está escrita nos pergaminhos de
5
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
Melquiades e, junto com o último da estirpe dos Buendía, sabemos o fim da família e
de Macondo. Ana Pizarro assinala que
“...el desciframiento de estos manuscritos por Aurealiano Babilonia
coincide con la extinción de la estirpe, dibujando un juego temporal
que se cierra casi en redondo, y donde el ciclo de la existencia
recorre las instancias del nacimiento, desarrollo, auge y destrucción.
(PIZARRO, 1992, p.192)
O narrador é alguém que participa dos fatos mágicos, que tem a capacidade de
voltar dos mortos e também de cifrar a história para que só o último da estirpe possa
descobrir que Macondo e sua própria linhagem que se repete circularmente, tem um
fim, estão condenados ao fracasso desde o seu nascimento incestuoso.
Os pergaminhos são a única prova de tudo o que acontece em Macondo, mas
eles são suficientes para a narração. A intenção não é inserir a cidade na história, mas
mostrar a predestinação do seu futuro, sobre o qual nada pode ser feito.
Desta forma, enquanto Verissimo coloca a sua narração num narrador que
recorre a provas históricas para dar veracidade à história e à cidade, García Márquez
se vale de alguém com poderes mágicos e sobrenaturais, que domina os destinos dos
personagens e de Macondo através de pergaminhos escritos por ele mesmo. Os
documentos que comprovam, ou tentam comprovar, a existência destes espaços, não
existem, desapareceram por predestinação ou conveniência dos que tiveram o poder
de escrever a história.
Conclusões
Macondo e Antares, a pesar de suas diferenças, conseguem superar os limites
do seu status de imaginárias para representar qualquer cidade ou espaço latinoamericano. Ambas as cidades se envolvem nos acontecimentos históricos dos seus
países. Nos dois casos, os personagens, descendentes dos patriarcas fundadores,
vão à guerra e sofrem suas consequências: mutilações ou loucuras. Eles têm
participação na agitada vida política da região e do país, mas ao final tem que cumprir
o seu destino: serem esquecidos, isolados.
Estes espaços além da terra firme estão marcados por uma violência que é
parte do cotidiano, algo natural, como se fossem lugares malditos, à semelhança de
muitos países latino-americanos, mas de uma forma própria, “a solidão, o abandono, a
6
Realização:
Apoio:
Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
impossibilidade de mudança marcam Comala, como marcam Macondo, Antares,
Santa Maria e as cidades imaginárias voltam a alegorizar a humanidade”.
(CASTILHOS, 2008, p.113).
Macondo está predestinada a desaparecer, Antares a ser deixada de lado,
como se não existisse, ambos os lugares condenados à solidão e ao esquecimento,
porque “las estirpes condenadas a cien años de soledad no tenían una segunda
oportunidad sobre la tierra.” (GARCIA MÁRQUEZ, 2004, p.559).
REFERÊNCIAS
BASTOS,Alcmeno. O jogo do real e do irreal em Incidentes em Antares, de Érico Veríssimo.
Diadorim. Volume 3. 2008. Disponível em:
http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br/index.php/revistadiadorim/article/viewFile/153/161
CASTILHOS LUCENA, Karina de. Macondo: além da terra firme (Um estudo sobre a cidade
imaginária). 2008. Disponível em: http://tede.ucs.br/tde_arquivos/1/TDE-2008-09-01T132736Z214/Publico/Dissertacao%20Karina%20de%20Castilhos%20Lucena.pdf
ESCOBAR ARAUJO, Ana Milena. Ciudad y literatura. III Encuentro de nuevos narradores de
América Latina. Editorial Convenio Andrés Bellos, Colombia, p. 11-14, 2004. Disponível em
http://books.google.com.br/books?id=B_iSaPCzDtgC&pg=PT7&lpg=PT7&dq=Ciudad+y+literatu
ra.+III+Encuentro+de+nuevos+narradores+de+Am%C3%A9rica+Latina.&source=bl&ots=o7CT
F-tioT&sig=wCJhyIacnYJOvDo2Q5llWJUJZXk&hl=ptBR&sa=X&ei=4Hd3U6GcHM7LsASav4CQBg&ved=0CC4Q6AEwAA#v=onepage&q=Ciudad%2
0y%20literatura.%20III%20Encuentro%20de%20nuevos%20narradores%20de%20Am%C3%A
9rica%20Latina.&f=false
GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Cátedra, Madrid, 2004.
JIMÉNEZ HERNÁNDEZ, Jorge. Filosofía de ciudades imaginarias. Em: Revista de Filosofía de
la Universidad de Costa Rica. Número especial 113, volumen XLIV. Sept- Dic, 2006.
MANGUEL, Alberto e Gianni Guadalupi. Dicionário de lugares imaginários. Companhia das
Letras, São Paulo, 2009.
PIZARRO, Ana. De la ficción a la historia Cien años de soledad. Em: JUAN GUSTAVO COBO
BORDA (org.). Gabriel García Márquez, testimonios sobre su vida, ensayos sobre su obra.
Bogotá: Siglo del hombre editores, p.188- 204,1992.
RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Arca. Montevideo. 1998.
VERISSIMO, Érico. Incidente em Antares. Editora Globo, São Paulo, 1998.
7
Realização:
Apoio:
Download

1 A CIDADE IMAGINÁRIA: MACONDO, DE GABRIEL GARCÍA