SOCIEDADE DE CONSUMO: A FIGURA DO BRICOLEUR EM DIÁLOGO COM OBJETOS NARRADORES Mariana Resende Corrêa [email protected] Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia Cláudia Maria França da Silva [email protected] Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia Resumo A partir da contextualização da sociedade de consumo que envolve a figura do bricoleur, esse artigo pretende analisar e refletir sobre uma importante operação no processo de criação da série Objetos Narradores. Essa operação, anterior às minhas ações, compreende a coleta de objetos descartados que se tornam matrizes objetuais sobre as quais interfiro, dando-lhes outra significação em função de conteúdos autorreferenciais agregados à sua fisicalidade. Para isto, é importante deter-me na figura que coleta – o bricoleur. A análise desta figura abarca questões político-sociais atuais como o consumo e o descarte. Palavras-chave: consumo, bricoleur, descarte de objetos, processo de criação. Abstract From the contextualization of the consumer society that surrounds the figure of the bricoleur, this article intends to analyze and reflect on an important operation in the creation process of the series Objetos Narradores. This operation, anterior to my actions, involves the collect of discarded objects that becomes objectual matrix on which I interfere, giving them another signification according to autoreferential contents aggregated to its physicality. For this, it is important to detain in the figure that collects - the bricoleur. The analysis of this figure includes political and social issues as the consumption and discard. Keywords: consumption, bricoleur, discard of objects, creation process INTRODUÇÃO O bricoleur se apresenta como um personagem importante na sociedade atual marcada pela cultura do consumo e do descarte. Na definição do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, o bricoleur trabalha a partir de um conjunto de utensílios, materiais e resíduos que coleta, reaproveita e conserva ao longo da vida. Por meio desse repertório material e instrumental, ele se arranja com o que possui, segundo o princípio de que “isto sempre pode servir” e compondo assim um “tesouro de ideias” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 38-40). A escolha das peças e do trabalho a ser desenvolvido é determinada pelas significações que cada objeto reporta ao bricoleur. Portanto, as probabilidades de arranjo se vinculam à história e ao que subsiste de predeterminado em cada peça pelo uso original e pelas adaptações que sofreu 637 para o desempenho de outras funções. Essas significações específicas de cada objeto contribuem para que a escolha de uma peça por outra acarrete resignificações na reorganização total da estrutura final. O principal objetivo desse estudo é, partindo da compreensão do papel desempenhado pelo bricoleur dentro da cultura do consumo e do descarte, analisar e refletir sobre essa operação no processo de criação da série Objetos Narradores. Essa operação, anterior às minhas ações, compreende a coleta de objetos descartados, os quais se tornam matrizes objetuais sobre as quais eu interfiro, dando-lhes outra significação em função de conteúdos autorreferenciais agregados à sua fisicalidade. Entendemos que para pensar sobre a figura do bricoleur nos dias atuais é preciso compreender o contexto da sociedade em que vivemos, marcado pelo consumo, o qual influencia diretamente na cultura e no modo de vida cotidiano. A reflexão sobre esse contexto se baseará nas discussões dos pensadores Zygmunt Bauman, Michel de Certeau e Jean Baudrillard, a partir da referência basal, que vem de Claude Lévi-Strauss. Estes abordam especificidades diferentes da modernidade que complementam a ideia de sociedade de consumo e do efêmero, meio em que se encontra o bricoleur. Tal compreensão dessa figura e sua relação com o contexto atual nos permite pensar sobre o percurso do objeto desde a sua venda e consumo até o seu descarte: como é o meu “encontro” com esses objetos descartados por outra pessoa ou que perderam a sua função original? Como ocorre o processo de coleta desses objetos? DOS OBJETOS DESCARTADOS PARA A SÉRIE OBJETOS NARRADORES Antes da análise do processo de coleta dos objetos descartados em Objetos Narradores é importante apresentar essa série de trabalhos em seu processo de criação. Trata-se de objetos do mobiliário descartados, os quais passam a ser denominados “matrizes objetuais”. A maioria desses objetos é de madeira, compensado e MDF; são treze gavetas, sete cadeiras, quatro tamboretes (sendo um de plástico), uma caixa média (tipo baú), um criado mudo e 638 dezesseis fragmentos (partes de gavetas, abajures, mesinhas, cadeiras, armário e cama). Eu interfiro sobre tais matrizes objetuais, dando-lhes outra significação em função de conteúdos autorreferenciais agregados ao seu corpo. Ao torná-los receptáculos das minhas memórias, considero que me aproprio também das histórias advindas de seu uso, de suas marcas e do ambiente a que pertenceram. Desse modo, percebo-os em sua alteridade, como narradores que contam minhas experiências, além de eles contarem de si próprios. Essa série em processo constitui-se, até o momento, de seis trabalhos ainda não intitulados: três cadeiras, um tamborete, uma prateleira e um criado mudo. Esses seis objetos foram, no entanto, escolhidos dentre um repertório pessoal de dezenas de outros objetos coletados ao longo de um ano. A partir desse conjunto maior formado é que a série de trabalhos está sendo pensada e desenvolvida. O conjunto (figura 1) é resultado de diferentes processos de coleta e de agenciamento, pois envolvem mais de um agenciador e, consequentemente, vários níveis de relações. Essas relações referem-se tanto aos tipos de vínculo que Figura 1 – Repertório dos objetos descartados e coletados. Fotos da autora possuo com os agenciadores que intermediam meu acesso aos objetos descartados, quanto à relação dos mesmos com os objetos que me entregaram. O foco desta análise centra-se no ato de coletar propriamente dito, mas abrindo para as relações intersubjetivas que têm se construído a partir da operação de coleta. Tal questão é importante porque me insere, como autora, em diversos níveis ou papeis dentro do percurso criativo, a partir dos sujeitos com os quais eu lido na construção da série Objetos Narradores. 639 DO CONSUMO E SEU CONTEXTO As discussões científicas atuais sobre a sociedade, o fenômeno pósmoderno e as consequências da globalização são marcadas por diversas questões centrais, dentre elas a do consumo, cuja influência social é refletida na cultura e na identidade coletiva e individual. O filósofo francês Jean Baudrillard (2008) define o consumo como uma modalidade característica da nossa sociedade industrializada; é um modo ativo de relação com o objeto, com o mundo e com os outros. Baudrillard esclarece que os objetos de consumo não são objetos da necessidade; estes sempre existiram. A diferença que o autor aponta entre eles está na relação de interioridade e de exterioridade, respectivamente. Enquanto nos objetos de satisfação ou necessidade existe uma relação vivida - sendo objetos impregnados de conotação - nos objetos de consumo a relação não é vivida, é abstrata; o que se consome é a “ideia de relação” (BAUDRILLARD, 2007, p. 207), ou seja, consomem-se os desejos, os sonhos, as paixões, as exigências, enfim, as relações que se abstratizam e se materializam em objetos a serem comprados e consumidos. Essa sociedade de consumidores, segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2007), se dirige praticamente a todos os seus membros como consumidores aptos a satisfazerem seus desejos. Estes gastam a grande parte de seu tempo e esforço para o consumo, considerado uma atividade agradável e prazerosa. Os objetos, retomando o pensamento de Baudrillard, são significativos aos consumidores pela ideia da relação que, no entanto, não é dada a viver. Nesses objetos de consumo, de “materialidade fugaz”, é indicado “o próprio projeto de viver” (BAUDRILLARD, 2007, p. 210). Por essa razão não há limites no consumo, pois se trata de uma “prática idealista” fundada numa “realidade ausente” que nunca chega a uma satisfação, tornando-se uma compulsão e uma “razão de viver” (Ibidem, p. 210-211). Jean Poirier, etnólogo francês, coloca-nos que a substituição do objeto duradouro pelo objeto dissipável se dá pelo custo da conservação gerada pelo custo da mão-de-obra. No entanto, essa fugacidade dos objetos se dá, principalmente, pela economia do tempo e da procura do mínimo esforço, o 640 que leva, por exemplo, ao uso de copos e talheres de plástico, lâminas de barbear descartáveis e canetas esferográficas (1999, p. 38). A vida social, ainda de acordo com Bauman, é modificada segundo o pensamento consumista que estabelece uma economia do “logro, do excesso e do lixo”. A lógica para se prosseguir com esse tipo de economia é manter a insatisfação com expectativas sempre vivas, de modo que após um desejo de consumo saciado e descartado, outro venha a preencher o “vazio” deixado pelas expectativas anteriores frustradas. Em outras palavras, “o caminho da loja à lata de lixo deve ser curto, e a passagem, rápida” (BAUMAN, 2007, p. 108). A transitoriedade e o valor da novidade são imperantes nessa sociedade, ou seja, a apropriação seguida do descarte rápido prevalece sobre os objetos e prazeres duradouros. Bauman chama esse modo de vida de “síndrome consumista” que ele descreve como “uma questão de velocidade, excesso e desperdício” (Ibidem, 2007, p. 111). Segundo o sociólogo, os consumidores acostumados a esse modo de vida não se importam de jogar as coisas no lixo, pois consideram normal a curta duração dos produtos. Ele enfatiza que a “sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura – e portanto da redundância e do lixo farto” (Idem). O destino final do “objeto de consumo” é, portanto, a lata de lixo. “O lixo é o produto final de toda ação de consumo” (Ibidem, 2007, p. 117). Todo esse processo de efemeridade dos produtos e objetos cujo fim é tornarem-se resíduos reflete a “vida líquida” de uma “modernidade líquida”. De acordo com Bauman, os membros dessa sociedade agem sob condições que mudam antes que seja possível a consolidação de hábitos, rotinas e formas de agir. Trata-se de uma vida de mudanças e incertezas constantes, que pode ser descrita como “uma sucessão de reinícios” (Ibidem, 2007, p. 8). REAPROPRIAÇÕES DO DESCARTE Em meio a esse contexto de consumo, Michel de Certeau, teólogo e historiador francês, discorre sobre o consumidor que também produz nos processos de utilização dos produtos, não como um usuário passivo ou dócil, mas como alguém que “fabrica” a partir de tudo o que consome. Segundo ele, 641 existem “maneiras de fazer” pelas quais os usuários praticam o cotidiano; são maneiras de se reapropriar do sistema produzido e uma “tática desviacionista” (DE CERTEAU, 1994, p. 52). “O trabalho com sucata”, ou seja, a recuperação de materiais descartados para proveito próprio, como um trabalho livre e não lucrativo, é uma das possíveis “táticas desviacionistas”. Localizada no mesmo lugar da indústria, a arte da “sucata” possui como variante da atividade, fora desse lugar, a forma da bricolagem. Essas “maneiras de fazer” são formas de utilizar a ordem imposta do lugar, estabelecendo ali criatividade e pluralidade. Essa visão de Michel de Certeau é importante por analisar que o consumidor não apenas faz uso dos produtos que consome, como também produz a partir deles, assimilando-os, modificando-os, subvertendo-os, entre outras operações. Dentre essas táticas utilizadoras percebemos a bricolagem como uma maneira de praticar o cotidiano, de reapropriar o produto final de toda ação de consumo para resignificá-lo em uma estrutura nova. Essa “tática desviacionista” está presente em Objetos Narradores pela utilização de objetos que foram descartados pela sociedade do consumo, ou seja, pela ordem imposta. A utilização desses objetos de descarte como matrizes objetuais surgiu pela possibilidade de “praticar o cotidiano”, de me apropriar do que nele há de perene em contraposição a sua efemeridade de uso. Ao trabalhar minhas memórias, esses objetos que sempre foram significantes no que se refere ao cotidiano e ao ser humano vieram a somar ao corpo dessas memórias pessoais. Jean Poirier (1999, p.37) aponta-nos uma importante característica do espírito de conservação e economia na antiga sociedade europeia: Nas quintas e nas casas do campo, guardava-se tudo e nada se destruía; aos cantos dos pátios, ou nos recôndidos dos celeiros e das cocheiras, empilhavam-se telhas, pranchões de madeira, pedaços de ferro, rodas e partes de ferramentas: tudo podia ainda servir. Os mesmos hábitos vigoravam nas cidades, e os inventários das adegas e dos sótãos, com esses montões de objetos, dos mais simples aos mais heteróclitos, dão-nos testemunho da persistência deste estado de espírito. Este espírito se assemelha com o do bricoleur que trabalha com um repertório extenso de elementos heteróclitos; um conjunto de resíduos de obras 642 humanas com os quais ele renova e enriquece o seu estoque e, consequentemente, os seus trabalhos. Esse espírito de conservar diferentes elementos pelo princípio de que “isto sempre pode servir” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 39) está presente tanto nessa sociedade tradicional quanto na atividade do bricoleur. No entanto, Poirier distingue que na sociedade contemporânea o pensamento é outro, marcado pela fugacidade dos objetos. Diante dessa diferença, podemos dizer que o ato de acumular objetos heteróclitos é pouco frequente, mas está presente em muitos trabalhos realizados sem uma intenção artística e em espaços separados da arte sancionada, mas que pela originalidade e uso repetido de materiais achados em uma forma artística de arranjo, se tornam referências na história da arte. Um exemplo desse tipo de trabalho é a série de moradias - Bottle Village (1955-88) - que Grandma Prisbrey construiu a partir de materiais descartados e coletados por ela, como lápis, bonecas, conchas, e garrafas de vidro. Ao ser questionada sobre como Bottle Village surgiu, ela respondeu que começou porque ela simplesmente precisava de um lugar para guardar sua coleção de lápis (SUDERBURG, 2000, p. 10). Figura 2 - Grandma Prisbrey. Bottle Village, 1955 – 1988. A partir de um ato de coleta e acúmulo, Grandma Prisbrey e muitos outros como Simon Rodia (1921-54) e Ferdinand Cheval (1879-1912) construíram, respectivamente, uma vila, torres e um palácio; monumentos que 643 são referências no mundo da arte e nos lugares onde os detritos e materiais locais serviram de base para sua construção. Esses resíduos utilizados carregam suas próprias histórias advindas de seus usos originais para os quais elas foram criadas, assim como das adaptações que sofreram para outros fins, ou seja, esses objetos descartados são “subconjuntos da cultura” (LÉVISTRAUSS, 1976, p. 40). Segundo o crítico inglês Lawrence Alloway, os objetos possuem uma história: “primeiramente eles são bens novos; depois eles são possessões, acessíveis a poucos, submetidos, muitas vezes, ao uso íntimo e repetitivo; depois, como resíduo, eles são marcados pelo uso, mas disponíveis outra vez” (apud SEITZ 1963, p. 73). Essa história marcada de acontecimentos de que Lévi-Strauss se refere faz parte de cada objeto descartado e é trabalhada pelo bricoleur em seus projetos. Ele os torna “disponíveis outra vez”, mas não da mesma forma de quando eram novos; os objetos como resíduos ganham outras funções, características e outros significados além daqueles que ele já possui. O objeto funciona, portanto, como um testemunho, como um portador de signos capaz de personalizar, de representar a sociedade. Compreendemos, portanto, que os objetos e fragmentos descartados e apropriados pelos bricoleurs na contemporaneidade abarcam em si o contexto de consumo atual, de forma que esse repertório facilmente formado pelo bricoleur retrata a materialidade e a efemeridade dos resíduos de trabalhos humanos. Podemos considerar como bricoleurs, hoje, os artesãos que coletam e reutilizam peças descartadas e/ou que usam os materiais e instrumentos que têm ao alcance; as pessoas comuns que catam, juntam e guardam objetos aleatórios que encontram nas ruas, por alguma identificação pessoal, em arranjos próprios; os artistas que elaboram e constroem seus trabalhos a partir de elementos que encontram por onde andam ou procuram para comprar em antiquários; dentre outros. Todos eles possuem um repertório de objetosresíduos próprios carregados de história, mesmo que a duração de seu processo desde a loja até o lixo tenha sido breve. Essa história é preservada e resignificada por meio de outro arranjo, outro espaço, tempo e associação com outros elementos também descartados. 644 O bricoleur se apresenta, portanto, como um personagem importante na sociedade contemporânea diante da enorme quantidade de resíduos produzidos pelo ser humano em meio à cultura do consumo de produtos efêmeros. Os bairros, as ruas e as lixeiras das cidades estão repletos de “tesouros de ideias” a serem descobertos e reutilizados pelo olhar atento do bricoleur. Assim, a bricolagem é percebida como uma “tática desviacionista” da sociedade de consumo, transformando o resíduo em algo de valor (no sentido de importância); o transitório em duradouro. DAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS DADAS POR MEIO DA COLETA Nesse processo de coleta e construção de um projeto próprio, o bricoleur acaba sempre colocando algo de si mesmo. Ao utilizar resíduos e fragmentos de acontecimento, histórias de um indivíduo ou de uma sociedade, ele não só “fala” com eles, como também conta por meio deles: “[...] este bricoleur, elabora estruturas ordenando os acontecimentos, ou antes, os resíduos de acontecimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 41). No que diz respeito ao meu processo de criação, todos os agenciadores que fizeram parte desse processo de coleta formam o que chamamos de laço social, pois todos os envolvidos (incluindo eu, Mariana) “doam” o que encontraram ou o que possuem para o sujeito receptor Mariana. Esses agenciadores são, exceto o dono do antiquário, pessoas conhecidas do sujeito receptor: Fátima (mãe), Cláudia (orientadora), Silvana (madrinha) e dona Dionísia (catadora de reciclados). Os tipos de vínculos vão desde o de cliente e vendedor, o de parentesco e o de amizade, por questões de comércio e auxílio. A relação de cada um com os objetos que fazem parte do repertório registrado na figura 1 (p. 8) é diferente e, por vezes, similar. Figura 3 – objeto coletado em 2011. Foto da autora Cada “doador” efetuou um mínimo ato de escolha de resíduos de matrizes, ou mesmo 645 objetos inteiros, ao oferecê-lo(s) a mim. Nesse sentido, posso pensar que, além das informações constantes na própria matriz, tenho que lidar com informações implícitas de outros sujeitos, bem como aquilo de autorreferencial que quero passar no objeto como trabalho realizado. Esse conjunto de objetos se iniciou com o auxílio de dona Dionísia, que recolhe reciclados na rua da casa onde moro. Há alguns anos que a ajudamos juntando-lhe reciclados e a pedi que, caso encontrasse objetos do mobiliário descartados nas ruas, os recolhesse para mim. Assim, ela trouxe logo no dia seguinte uma cadeira que tirou de sua casa para me dar (figura 3), a qual faz parte de um dos seis trabalhos da série Objetos Narradores. Dona Dionísia trouxe muitos outros objetos que ela encontrou nas ruas em que andava com o seu carrinho de mão em busca de materiais recicláveis, os quais compõem a maioria do repertório. Tudo o que ela encontrava e achava que pudesse me servir, ela recolhia para me entregar ou deixar no portão de entrada da casa: cadeiras sem encosto ou desmontadas, tamboretes, pranchas de compensado, prateleiras de armários, etc. De sua casa, Dionísia trouxe também um criado mudo azul que servia de suporte para a sua televisão, mas que ela resolveu me dar porque tinha conseguido outro suporte para o eletrodoméstico. Este objeto-matriz compõe um dos seis trabalhos da série. O dono do antiquário, por outro lado, coleta diversos tipos de objetos antigos, desde utensílios e móveis a peças decorativas, com o fim de comercializá-los. Minha visita ao antiquário ocorreu apenas uma vez e o Figura 4 – objeto coletado em 2011. Foto da autora objetivo era conhecer os materiais que ele possuía. Lá eu encontrei uma cadeira infantil antiga (figura 4) que comprei e que faz parte da série. Outro agenciador que faz parte do laço social é Fátima, minha mãe, a qual se tornou uma agenciadora atenta na procura por objetos descartados nas ruas para contribuir com a composição de meu repertório pessoal. Nos momentos em que ela dirigia pela cidade, quando via algum objeto que 646 pudesse ser importante para a construção dos trabalhos, ela parava para recolhê-lo. Às vezes me chamava para ajudá-la caso eu me interessasse pela peça e, então, íamos até o local e recolhíamos o material como, por exemplo, uma porta de armário que se encontrava no passeio. A orientadora Cláudia também intermediou o meu encontro com alguns dos objetos do conjunto. Ela me avisava quando encontrava objetos descartados nas calçadas em que ela passava no seu caminho diário da casa para o trabalho e vice-versa. Assim, eu ia até o local e recolhia. Do primeiro objeto, uma cadeira, conseguimos apenas duas ripas do encosto que ela pegou antes de conseguir me avisar. Chegando ao lugar com ela, outra pessoa já estava recolhendo a cadeira. Além das coletas, Cláudia me doou um tamborete de plástico e duas gavetas pequenas que pertenceram a ela. Do mesmo modo, Silvana, minha madrinha, me doou duas cadeiras que pertenciam à sua casa. Por último, agenciadora à enquanto procura de uma objetos descartados, percebi a abundância dos mesmos nas calçadas e nos terrenos baldios, desde estado a condição objetos objetos de uso. em em péssimo considerável Encontrava-os em momentos de atenção e procura, ou em momentos de distração e acaso. Quando não podia recolhê-los, assim que me deparava com um objeto descartado, voltava depois para apanhá-lo; foi o caso Figura 5. Objeto encontrado em lote vago, 2012. Foto da autora da cadeira em condições muito ruins jogada num terreno baldio (figura 5) e da qual levei apenas as ripas do encosto que servirão de pé para outra cadeira da série recolhida num contexto similar, mas encontrada em boas condições. Percebemos, assim, que a primeira etapa de operações, que é a coleta de objetos descartados para a elaboração e construção da série Objetos Narradores, envolve processos de composição de um repertório variado e dinâmico que todo bricoleur necessita para o desenvolvimento de seus 647 projetos. Este processo corresponde ao conjunto de utensílios, materiais e resíduos que o bricoleur coleta, reaproveita e conserva ao longo da vida para operar, ele próprio, uma tarefa mais ou menos delineada, mas em vias de alteração, em função dos elementos que encontra e recebe de outros. Respondendo às questões iniciais postas na introdução deste texto: como é o meu “encontro” com esses objetos descartados por outra pessoa ou que perderam a sua função original? Como ocorre o processo de coleta desses objetos? – percebo que esse processo é todo permeado de relações intersubjetivas que se associam às informações da matriz e às minhas referências a serem “inscritas” nesse corpo. As subjetividades, os acasos, as intenções e as escolhas que permeiam o processo de coleta me inserem como autora em diversos níveis ou papeis dentro do percurso criativo. Portanto, as minhas informações, as dos sujeitos e as da matriz determinam as ações de triagem dos objetos que recebi e coletei, bem como as intervenções e combinações entre as matrizes objetuais das quais disponho. Dessa forma, me coloco como uma “bricoleur em segundo nível” que organiza de modo não fixo essas matrizes, repensando os materiais que foram descartados no espaço urbano a partir de um sistema de agenciamentos de coleta. CONCLUSÃO A lógica do consumo nas cidades gera objetos de consumo, ou seja, objetos “abstratos” que alimentam desejos e sonhos fugazes; substituem relações e induzem a individualidade. Na sociedade de consumo, marcada pela transitoriedade, pelo excesso e pelo desperdício, o fim de todos os produtos e objetos é se tornar resíduo. O bricoleur, nesse contexto de consumo, se apresenta como um personagem importante diante da enorme quantidade de resíduos produzidos pelo ser humano, os quais possuem suas marcas de uso e suas histórias. Por meio da bricolagem o sujeito exerce, portanto, uma “tática desviacionista” da sociedade de consumo, tornando os resíduos “disponíveis outra vez” e resignificando-os por meio do acréscimo de outras funções, características e de outras possibilidades de arranjos. 648 A constituição do repertório de objetos heteróclitos, que todo bricoleur possui para operar seus trabalhos, é tida como operação fundadora da série de trabalhos em construção, Objetos Narradores. Esse conjunto é resultado de diferentes processos de coleta e de agenciamento, e envolve diferentes tipos de relações com os objetos coletados e com os agenciadores que formam um laço social. A maneira como os objetos descartados são encontrados e a intenção com que os mesmos são recolhidos faz parte do processo de coleta e “marcam” o momento de elaboração e construção dos trabalhos. Em cada objeto percebo não apenas as suas marcas de uso e suas condições físicas, como também o modo como ele foi encontrado, como ele chegou até mim e o significado que ele possui para o agenciador que o entregou a mim. Todo esse conjunto de percepções soma ao objeto-matriz, transformado e resignificado em objetos narradores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. 5 ed. Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 2 ed. São Paulo, Ed. Nacional, 1976. MOLES, Abraham A. Teoria dos Objetos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. POIRIER, Jean. O homem, o objeto e a coisa. In:___. História dos costumes. Vol. 3. Lisboa: Ed. Estampa, 1999, p. 13-50. SEITZ, William C. The Art of Assemblage. New York: The museum of Modern Art, 1963. SUDERBURG, Erika. Introduction: on installation and site specificity. In:___. Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, p.1-20. Currículo Mariana Resende Corrêa é bacharel em Artes Plásticas (UFU, 2006) e se graduou em Letras (UFU, 2010). Atualmente é aluna do Mestrado em Artes na Universidade Federal de Uberlândia, na linha de pesquisa de Práticas e Processos em Artes Visuais, sob a orientação da professora doutora Cláudia Maria França da Silva. Participa do Grupo de Pesquisa de Poéticas da Imagem. 649 Cláudia Maria França da Silva é doutora em Artes (Unicamp, 2010), mestre em Artes Visuais (UFRGS, 2002) e bacharel em Artes Plásticas (UFMG, Desenho e Escultura, 1990). Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFU. É integrante do grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, com a linha “Desenho no campo ampliado”. Participa regularmente de exposições coletivas e individuais e em reuniões científicas com produção textual. Experiência em Expressão Tridimensional e Desenho: processo criativo em arte, instalação, objeto e desenho contemporâneo. 650