SOCIEDADE DE CONSUMO: A FIGURA DO BRICOLEUR EM DIÁLOGO
COM OBJETOS NARRADORES
Mariana Resende Corrêa
[email protected]
Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia
Cláudia Maria França da Silva
[email protected]
Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia
Resumo
A partir da contextualização da sociedade de consumo que envolve a figura do bricoleur, esse
artigo pretende analisar e refletir sobre uma importante operação no processo de criação da
série Objetos Narradores. Essa operação, anterior às minhas ações, compreende a coleta de
objetos descartados que se tornam matrizes objetuais sobre as quais interfiro, dando-lhes outra
significação em função de conteúdos autorreferenciais agregados à sua fisicalidade. Para isto,
é importante deter-me na figura que coleta – o bricoleur. A análise desta figura abarca
questões político-sociais atuais como o consumo e o descarte.
Palavras-chave: consumo, bricoleur, descarte de objetos, processo de criação.
Abstract
From the contextualization of the consumer society that surrounds the figure of the bricoleur,
this article intends to analyze and reflect on an important operation in the creation process of
the series Objetos Narradores. This operation, anterior to my actions, involves the collect of
discarded objects that becomes objectual matrix on which I interfere, giving them another
signification according to autoreferential contents aggregated to its physicality. For this, it is
important to detain in the figure that collects - the bricoleur. The analysis of this figure includes
political and social issues as the consumption and discard.
Keywords: consumption, bricoleur, discard of objects, creation process
INTRODUÇÃO
O bricoleur se apresenta como um personagem importante na sociedade
atual marcada pela cultura do consumo e do descarte. Na definição do
antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, o bricoleur trabalha a partir de um
conjunto de utensílios, materiais e resíduos que coleta, reaproveita e conserva
ao longo da vida. Por meio desse repertório material e instrumental, ele se
arranja com o que possui, segundo o princípio de que “isto sempre pode servir”
e compondo assim um “tesouro de ideias” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 38-40).
A escolha das peças e do trabalho a ser desenvolvido é determinada
pelas significações que cada objeto reporta ao bricoleur. Portanto, as
probabilidades de arranjo se vinculam à história e ao que subsiste de
predeterminado em cada peça pelo uso original e pelas adaptações que sofreu
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para o desempenho de outras funções. Essas significações específicas de
cada objeto contribuem para que a escolha de uma peça por outra acarrete
resignificações na reorganização total da estrutura final.
O principal objetivo desse estudo é, partindo da compreensão do papel
desempenhado pelo bricoleur dentro da cultura do consumo e do descarte,
analisar e refletir sobre essa operação no processo de criação da série Objetos
Narradores. Essa operação, anterior às minhas ações, compreende a coleta de
objetos descartados, os quais se tornam matrizes objetuais sobre as quais eu
interfiro,
dando-lhes
outra
significação
em
função
de
conteúdos
autorreferenciais agregados à sua fisicalidade.
Entendemos que para pensar sobre a figura do bricoleur nos dias atuais é
preciso compreender o contexto da sociedade em que vivemos, marcado pelo
consumo, o qual influencia diretamente na cultura e no modo de vida cotidiano.
A reflexão sobre esse contexto se baseará nas discussões dos pensadores
Zygmunt Bauman, Michel de Certeau e Jean Baudrillard, a partir da referência
basal, que vem de Claude Lévi-Strauss. Estes abordam especificidades
diferentes da modernidade que complementam a ideia de sociedade de
consumo e do efêmero, meio em que se encontra o bricoleur.
Tal compreensão dessa figura e sua relação com o contexto atual nos
permite pensar sobre o percurso do objeto desde a sua venda e consumo até o
seu descarte: como é o meu “encontro” com esses objetos descartados por
outra pessoa ou que perderam a sua função original? Como ocorre o processo
de coleta desses objetos?
DOS OBJETOS DESCARTADOS PARA A SÉRIE OBJETOS NARRADORES
Antes da análise do processo de coleta dos objetos descartados em
Objetos Narradores é importante apresentar essa série de trabalhos em seu
processo de criação.
Trata-se de objetos do mobiliário descartados, os quais passam a ser
denominados “matrizes objetuais”. A maioria desses objetos é de madeira,
compensado e MDF; são treze gavetas, sete cadeiras, quatro tamboretes
(sendo um de plástico), uma caixa média (tipo baú), um criado mudo e
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dezesseis fragmentos (partes de gavetas, abajures, mesinhas, cadeiras,
armário e cama).
Eu interfiro sobre tais matrizes objetuais, dando-lhes outra significação em
função de conteúdos autorreferenciais agregados ao seu corpo. Ao torná-los
receptáculos das minhas memórias, considero que me aproprio também das
histórias advindas de seu uso, de suas marcas e do ambiente a que
pertenceram. Desse modo, percebo-os em sua alteridade, como narradores
que contam minhas experiências, além de eles contarem de si próprios.
Essa série em processo constitui-se, até o momento, de seis trabalhos
ainda não intitulados: três cadeiras, um tamborete, uma prateleira e um criado
mudo. Esses seis objetos foram, no
entanto,
escolhidos
dentre
um
repertório pessoal de dezenas de
outros objetos coletados ao longo de
um ano. A partir desse conjunto
maior formado é que a série de
trabalhos está sendo pensada e
desenvolvida.
O conjunto (figura 1) é resultado
de diferentes processos de coleta e
de agenciamento, pois envolvem
mais
de
um
agenciador
e,
consequentemente, vários níveis de
relações. Essas relações referem-se
tanto aos tipos de vínculo que
Figura 1 – Repertório dos objetos
descartados e coletados. Fotos da autora
possuo com os agenciadores que
intermediam
meu
acesso
aos
objetos descartados, quanto à relação dos mesmos com os objetos que me
entregaram.
O foco desta análise centra-se no ato de coletar propriamente dito, mas
abrindo para as relações intersubjetivas que têm se construído a partir da
operação de coleta. Tal questão é importante porque me insere, como autora,
em diversos níveis ou papeis dentro do percurso criativo, a partir dos sujeitos
com os quais eu lido na construção da série Objetos Narradores.
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DO CONSUMO E SEU CONTEXTO
As discussões científicas atuais sobre a sociedade, o fenômeno pósmoderno e as consequências da globalização são marcadas por diversas
questões centrais, dentre elas a do consumo, cuja influência social é refletida
na cultura e na identidade coletiva e individual. O filósofo francês Jean
Baudrillard (2008) define o consumo como uma modalidade característica da
nossa sociedade industrializada; é um modo ativo de relação com o objeto,
com o mundo e com os outros.
Baudrillard esclarece que os objetos de consumo não são objetos da
necessidade; estes sempre existiram. A diferença que o autor aponta entre eles
está na relação de interioridade e de exterioridade, respectivamente. Enquanto
nos objetos de satisfação ou necessidade existe uma relação vivida - sendo
objetos impregnados de conotação - nos objetos de consumo a relação não é
vivida, é abstrata; o que se consome é a “ideia de relação” (BAUDRILLARD,
2007, p. 207), ou seja, consomem-se os desejos, os sonhos, as paixões, as
exigências, enfim, as relações que se abstratizam e se materializam em objetos
a serem comprados e consumidos.
Essa sociedade de consumidores, segundo o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman (2007), se dirige praticamente a todos os seus membros como
consumidores aptos a satisfazerem seus desejos. Estes gastam a grande parte
de seu tempo e esforço para o consumo, considerado uma atividade agradável
e prazerosa. Os objetos, retomando o pensamento de Baudrillard, são
significativos aos consumidores pela ideia da relação que, no entanto, não é
dada a viver. Nesses objetos de consumo, de “materialidade fugaz”, é indicado
“o próprio projeto de viver” (BAUDRILLARD, 2007, p. 210). Por essa razão não
há limites no consumo, pois se trata de uma “prática idealista” fundada numa
“realidade ausente” que nunca chega a uma satisfação, tornando-se uma
compulsão e uma “razão de viver” (Ibidem, p. 210-211).
Jean Poirier, etnólogo francês, coloca-nos que a substituição do objeto
duradouro pelo objeto dissipável se dá pelo custo da conservação gerada pelo
custo da mão-de-obra.
No entanto, essa fugacidade dos objetos se dá,
principalmente, pela economia do tempo e da procura do mínimo esforço, o
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que leva, por exemplo, ao uso de copos e talheres de plástico, lâminas de
barbear descartáveis e canetas esferográficas (1999, p. 38).
A vida social, ainda de acordo com Bauman, é modificada segundo o
pensamento consumista que estabelece uma economia do “logro, do excesso e
do lixo”. A lógica para se prosseguir com esse tipo de economia é manter a
insatisfação com expectativas sempre vivas, de modo que após um desejo de
consumo saciado e descartado, outro venha a preencher o “vazio” deixado
pelas expectativas anteriores frustradas. Em outras palavras, “o caminho da
loja à lata de lixo deve ser curto, e a passagem, rápida” (BAUMAN, 2007, p.
108).
A transitoriedade e o valor da novidade são imperantes nessa sociedade,
ou seja, a apropriação seguida do descarte rápido prevalece sobre os objetos e
prazeres duradouros. Bauman chama esse modo de vida de “síndrome
consumista” que ele descreve como “uma questão de velocidade, excesso e
desperdício” (Ibidem, 2007, p. 111). Segundo o sociólogo, os consumidores
acostumados a esse modo de vida não se importam de jogar as coisas no lixo,
pois consideram normal a curta duração dos produtos. Ele enfatiza que a
“sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da
fartura – e portanto da redundância e do lixo farto” (Idem).
O destino final do “objeto de consumo” é, portanto, a lata de lixo. “O lixo é
o produto final de toda ação de consumo” (Ibidem, 2007, p. 117). Todo esse
processo de efemeridade dos produtos e objetos cujo fim é tornarem-se
resíduos reflete a “vida líquida” de uma “modernidade líquida”. De acordo com
Bauman, os membros dessa sociedade agem sob condições que mudam antes
que seja possível a consolidação de hábitos, rotinas e formas de agir. Trata-se
de uma vida de mudanças e incertezas constantes, que pode ser descrita como
“uma sucessão de reinícios” (Ibidem, 2007, p. 8).
REAPROPRIAÇÕES DO DESCARTE
Em meio a esse contexto de consumo, Michel de Certeau, teólogo e
historiador francês, discorre sobre o consumidor que também produz nos
processos de utilização dos produtos, não como um usuário passivo ou dócil,
mas como alguém que “fabrica” a partir de tudo o que consome. Segundo ele,
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existem “maneiras de fazer” pelas quais os usuários praticam o cotidiano; são
maneiras de se reapropriar do sistema produzido e uma “tática desviacionista”
(DE CERTEAU, 1994, p. 52).
“O trabalho com sucata”, ou seja, a recuperação de materiais descartados
para proveito próprio, como um trabalho livre e não lucrativo, é uma das
possíveis “táticas desviacionistas”. Localizada no mesmo lugar da indústria, a
arte da “sucata” possui como variante da atividade, fora desse lugar, a forma
da bricolagem. Essas “maneiras de fazer” são formas de utilizar a ordem
imposta do lugar, estabelecendo ali criatividade e pluralidade.
Essa visão de Michel de Certeau é importante por analisar que o
consumidor não apenas faz uso dos produtos que consome, como também
produz a partir deles, assimilando-os, modificando-os, subvertendo-os, entre
outras operações. Dentre essas táticas utilizadoras percebemos a bricolagem
como uma maneira de praticar o cotidiano, de reapropriar o produto final de
toda ação de consumo para resignificá-lo em uma estrutura nova.
Essa “tática desviacionista” está presente em Objetos Narradores pela
utilização de objetos que foram descartados pela sociedade do consumo, ou
seja, pela ordem imposta. A utilização desses objetos de descarte como
matrizes objetuais surgiu pela possibilidade de “praticar o cotidiano”, de me
apropriar do que nele há de perene em contraposição a sua efemeridade de
uso. Ao trabalhar minhas memórias, esses objetos que sempre foram
significantes no que se refere ao cotidiano e ao ser humano vieram a somar ao
corpo dessas memórias pessoais.
Jean Poirier (1999, p.37) aponta-nos uma importante característica do
espírito de conservação e economia na antiga sociedade europeia:
Nas quintas e nas casas do campo, guardava-se tudo e nada
se destruía; aos cantos dos pátios, ou nos recôndidos dos
celeiros e das cocheiras, empilhavam-se telhas, pranchões de
madeira, pedaços de ferro, rodas e partes de ferramentas: tudo
podia ainda servir. Os mesmos hábitos vigoravam nas cidades,
e os inventários das adegas e dos sótãos, com esses montões
de objetos, dos mais simples aos mais heteróclitos, dão-nos
testemunho da persistência deste estado de espírito.
Este espírito se assemelha com o do bricoleur que trabalha com um
repertório extenso de elementos heteróclitos; um conjunto de resíduos de obras
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humanas com os quais ele renova e enriquece o seu estoque e,
consequentemente, os seus trabalhos. Esse espírito de conservar diferentes
elementos pelo princípio de que “isto sempre pode servir” (LÉVI-STRAUSS,
1976, p. 39) está presente tanto nessa sociedade tradicional quanto na
atividade do bricoleur.
No entanto, Poirier distingue que na sociedade contemporânea o
pensamento é outro, marcado pela fugacidade dos objetos. Diante dessa
diferença, podemos dizer que o ato de acumular objetos heteróclitos é pouco
frequente, mas está presente em muitos trabalhos realizados sem uma
intenção artística e em espaços separados da arte sancionada, mas que pela
originalidade e uso repetido de materiais achados em uma forma artística de
arranjo, se tornam referências na história da arte. Um exemplo desse tipo de
trabalho é a série de moradias - Bottle Village (1955-88) - que Grandma
Prisbrey construiu a partir de materiais descartados e coletados por ela, como
lápis, bonecas, conchas, e garrafas de vidro. Ao ser questionada sobre como
Bottle Village surgiu, ela respondeu que começou porque ela simplesmente
precisava de um lugar para guardar sua coleção de lápis (SUDERBURG, 2000,
p. 10).
Figura 2 - Grandma Prisbrey. Bottle Village, 1955 – 1988.
A partir de um ato de coleta e acúmulo, Grandma Prisbrey e muitos
outros como Simon Rodia (1921-54) e Ferdinand Cheval (1879-1912)
construíram, respectivamente, uma vila, torres e um palácio; monumentos que
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são referências no mundo da arte e nos lugares onde os detritos e materiais
locais serviram de base para sua construção. Esses resíduos utilizados
carregam suas próprias histórias advindas de seus usos originais para os quais
elas foram criadas, assim como das adaptações que sofreram para outros fins,
ou seja, esses objetos descartados são “subconjuntos da cultura” (LÉVISTRAUSS, 1976, p. 40).
Segundo o crítico inglês Lawrence Alloway, os objetos possuem uma
história: “primeiramente eles são bens novos; depois eles são possessões,
acessíveis a poucos, submetidos, muitas vezes, ao uso íntimo e repetitivo;
depois, como resíduo, eles são marcados pelo uso, mas disponíveis outra vez”
(apud SEITZ 1963, p. 73). Essa história marcada de acontecimentos de que
Lévi-Strauss se refere faz parte de cada objeto descartado e é trabalhada pelo
bricoleur em seus projetos. Ele os torna “disponíveis outra vez”, mas não da
mesma forma de quando eram novos; os objetos como resíduos ganham
outras funções, características e outros significados além daqueles que ele já
possui.
O objeto funciona, portanto, como um testemunho, como um portador de
signos capaz de personalizar, de representar a sociedade. Compreendemos,
portanto, que os objetos e fragmentos descartados e apropriados pelos
bricoleurs na contemporaneidade abarcam em si o contexto de consumo atual,
de forma que esse repertório facilmente formado pelo bricoleur retrata a
materialidade e a efemeridade dos resíduos de trabalhos humanos.
Podemos considerar como bricoleurs, hoje, os artesãos que coletam e
reutilizam peças descartadas e/ou que usam os materiais e instrumentos que
têm ao alcance; as pessoas comuns que catam, juntam e guardam objetos
aleatórios que encontram nas ruas, por alguma identificação pessoal, em
arranjos próprios; os artistas que elaboram e constroem seus trabalhos a partir
de elementos que encontram por onde andam ou procuram para comprar em
antiquários; dentre outros. Todos eles possuem um repertório de objetosresíduos próprios carregados de história, mesmo que a duração de seu
processo desde a loja até o lixo tenha sido breve. Essa história é preservada e
resignificada por meio de outro arranjo, outro espaço, tempo e associação com
outros elementos também descartados.
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O bricoleur se apresenta, portanto, como um personagem importante na
sociedade contemporânea diante da enorme quantidade de resíduos
produzidos pelo ser humano em meio à cultura do consumo de produtos
efêmeros. Os bairros, as ruas e as lixeiras das cidades estão repletos de
“tesouros de ideias” a serem descobertos e reutilizados pelo olhar atento do
bricoleur. Assim, a bricolagem é percebida como uma “tática desviacionista” da
sociedade de consumo, transformando o resíduo em algo de valor (no sentido
de importância); o transitório em duradouro.
DAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS DADAS POR MEIO DA COLETA
Nesse processo de coleta e construção de um projeto próprio, o bricoleur
acaba sempre colocando algo de si mesmo. Ao utilizar resíduos e fragmentos
de acontecimento, histórias de um indivíduo ou de uma sociedade, ele não só
“fala” com eles, como também conta por meio deles: “[...] este bricoleur,
elabora estruturas ordenando os acontecimentos, ou antes, os resíduos de
acontecimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 41).
No que diz respeito ao meu processo de criação, todos os agenciadores
que fizeram parte desse processo de coleta formam o que chamamos de laço
social, pois todos os envolvidos (incluindo eu, Mariana) “doam” o que
encontraram ou o que possuem para o sujeito receptor Mariana. Esses
agenciadores
são,
exceto
o
dono
do
antiquário, pessoas conhecidas do sujeito
receptor: Fátima (mãe), Cláudia (orientadora),
Silvana (madrinha) e dona Dionísia (catadora
de reciclados). Os tipos de vínculos vão desde
o de cliente e vendedor, o de parentesco e o
de amizade, por questões de comércio e
auxílio.
A relação de cada um com os objetos
que fazem parte do repertório registrado na
figura 1 (p. 8) é diferente e, por vezes, similar.
Figura 3 – objeto coletado em
2011. Foto da autora
Cada “doador” efetuou um mínimo ato de
escolha de resíduos de matrizes, ou mesmo
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objetos inteiros, ao oferecê-lo(s) a mim. Nesse sentido, posso pensar que, além
das informações constantes na própria matriz, tenho que lidar com informações
implícitas de outros sujeitos, bem como aquilo de autorreferencial que quero
passar no objeto como trabalho realizado.
Esse conjunto de objetos se iniciou com o auxílio de dona Dionísia, que
recolhe reciclados na rua da casa onde moro. Há alguns anos que a ajudamos
juntando-lhe reciclados e a pedi que, caso encontrasse objetos do mobiliário
descartados nas ruas, os recolhesse para mim. Assim, ela trouxe logo no dia
seguinte uma cadeira que tirou de sua casa para me dar (figura 3), a qual faz
parte de um dos seis trabalhos da série Objetos Narradores.
Dona Dionísia trouxe muitos outros objetos que ela encontrou nas ruas
em que andava com o seu carrinho de mão em busca de materiais recicláveis,
os quais compõem a maioria do repertório. Tudo o que ela encontrava e
achava que pudesse me servir, ela recolhia para me entregar ou deixar no
portão de entrada da casa: cadeiras sem encosto ou desmontadas,
tamboretes, pranchas de compensado, prateleiras de armários, etc.
De sua casa, Dionísia trouxe também um
criado mudo azul que servia de suporte para a
sua televisão, mas que ela resolveu me dar
porque tinha conseguido outro suporte para o
eletrodoméstico. Este objeto-matriz compõe
um dos seis trabalhos da série.
O dono do antiquário, por outro lado,
coleta diversos tipos de objetos antigos, desde
utensílios e móveis a peças decorativas, com
o fim de comercializá-los. Minha visita ao
antiquário ocorreu apenas uma vez e o
Figura 4 – objeto coletado em
2011. Foto da autora
objetivo era conhecer os materiais que ele
possuía. Lá eu encontrei uma cadeira infantil
antiga (figura 4) que comprei e que faz parte da série.
Outro agenciador que faz parte do laço social é Fátima, minha mãe, a
qual se tornou uma agenciadora atenta na procura por objetos descartados nas
ruas para contribuir com a composição de meu repertório pessoal. Nos
momentos em que ela dirigia pela cidade, quando via algum objeto que
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pudesse ser importante para a construção dos trabalhos, ela parava para
recolhê-lo. Às vezes me chamava para ajudá-la caso eu me interessasse pela
peça e, então, íamos até o local e recolhíamos o material como, por exemplo,
uma porta de armário que se encontrava no passeio.
A orientadora Cláudia também intermediou o meu encontro com alguns
dos objetos do conjunto. Ela me avisava quando encontrava objetos
descartados nas calçadas em que ela passava no seu caminho diário da casa
para o trabalho e vice-versa. Assim, eu ia até o local e recolhia. Do primeiro
objeto, uma cadeira, conseguimos apenas duas ripas do encosto que ela
pegou antes de conseguir me avisar. Chegando ao lugar com ela, outra pessoa
já estava recolhendo a cadeira. Além das coletas, Cláudia me doou um
tamborete de plástico e duas gavetas pequenas que pertenceram a ela. Do
mesmo modo, Silvana, minha madrinha, me doou duas cadeiras que
pertenciam à sua casa.
Por
último,
agenciadora
à
enquanto
procura
de
uma
objetos
descartados, percebi a abundância dos
mesmos nas calçadas e nos terrenos
baldios,
desde
estado
a
condição
objetos
objetos
de
uso.
em
em
péssimo
considerável
Encontrava-os
em
momentos de atenção e procura, ou em
momentos de distração e acaso. Quando
não podia recolhê-los, assim que me
deparava com um objeto descartado,
voltava depois para apanhá-lo; foi o caso
Figura 5. Objeto encontrado em lote
vago, 2012. Foto da autora
da cadeira em condições muito ruins
jogada num terreno baldio (figura 5) e da
qual levei apenas as ripas do encosto que servirão de pé para outra cadeira da
série recolhida num contexto similar, mas encontrada em boas condições.
Percebemos, assim, que a primeira etapa de operações, que é a coleta de
objetos descartados para a elaboração e construção da série Objetos
Narradores, envolve processos de composição de um repertório variado e
dinâmico que todo bricoleur necessita para o desenvolvimento de seus
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projetos. Este processo corresponde ao conjunto de utensílios, materiais e
resíduos que o bricoleur coleta, reaproveita e conserva ao longo da vida para
operar, ele próprio, uma tarefa mais ou menos delineada, mas em vias de
alteração, em função dos elementos que encontra e recebe de outros.
Respondendo às questões iniciais postas na introdução deste texto: como
é o meu “encontro” com esses objetos descartados por outra pessoa ou que
perderam a sua função original? Como ocorre o processo de coleta desses
objetos? – percebo que esse processo é todo permeado de relações
intersubjetivas que se associam às informações da matriz e às minhas
referências a serem “inscritas” nesse corpo. As subjetividades, os acasos, as
intenções e as escolhas que permeiam o processo de coleta me inserem como
autora em diversos níveis ou papeis dentro do percurso criativo.
Portanto, as minhas informações, as dos sujeitos e as da matriz
determinam as ações de triagem dos objetos que recebi e coletei, bem como
as intervenções e combinações entre as matrizes objetuais das quais disponho.
Dessa forma, me coloco como uma “bricoleur em segundo nível” que organiza
de modo não fixo essas matrizes, repensando os materiais que foram
descartados no espaço urbano a partir de um sistema de agenciamentos de
coleta.
CONCLUSÃO
A lógica do consumo nas cidades gera objetos de consumo, ou seja,
objetos “abstratos” que alimentam desejos e sonhos fugazes; substituem
relações e induzem a individualidade. Na sociedade de consumo, marcada pela
transitoriedade, pelo excesso e pelo desperdício, o fim de todos os produtos e
objetos é se tornar resíduo.
O bricoleur, nesse contexto de consumo, se apresenta como um
personagem importante diante da enorme quantidade de resíduos produzidos
pelo ser humano, os quais possuem suas marcas de uso e suas histórias. Por
meio da bricolagem o sujeito exerce, portanto, uma “tática desviacionista” da
sociedade de consumo, tornando os resíduos “disponíveis outra vez” e
resignificando-os por meio do acréscimo de outras funções, características e de
outras possibilidades de arranjos.
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A constituição do repertório de objetos heteróclitos, que todo bricoleur
possui para operar seus trabalhos, é tida como operação fundadora da série de
trabalhos em construção, Objetos Narradores. Esse conjunto é resultado de
diferentes processos de coleta e de agenciamento, e envolve diferentes tipos
de relações com os objetos coletados e com os agenciadores que formam um
laço social.
A maneira como os objetos descartados são encontrados e a intenção
com que os mesmos são recolhidos faz parte do processo de coleta e
“marcam” o momento de elaboração e construção dos trabalhos. Em cada
objeto percebo não apenas as suas marcas de uso e suas condições físicas,
como também o modo como ele foi encontrado, como ele chegou até mim e o
significado que ele possui para o agenciador que o entregou a mim. Todo esse
conjunto de percepções soma ao objeto-matriz, transformado e resignificado
em objetos narradores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Perspectiva, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
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SEITZ, William C. The Art of Assemblage. New York: The museum of Modern
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SUDERBURG, Erika. Introduction: on installation and site specificity. In:___.
Space, site, intervention: situating installation art. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2000, p.1-20.
Currículo
Mariana Resende Corrêa é bacharel em Artes Plásticas (UFU, 2006) e se
graduou em Letras (UFU, 2010). Atualmente é aluna do Mestrado em Artes na
Universidade Federal de Uberlândia, na linha de pesquisa de Práticas e
Processos em Artes Visuais, sob a orientação da professora doutora Cláudia
Maria França da Silva. Participa do Grupo de Pesquisa de Poéticas da
Imagem.
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Cláudia Maria França da Silva é doutora em Artes (Unicamp, 2010), mestre em
Artes Visuais (UFRGS, 2002) e bacharel em Artes Plásticas (UFMG, Desenho
e Escultura, 1990). Professora Adjunta do Instituto de Artes da UFU. É
integrante do grupo de Pesquisa Poéticas da Imagem, com a linha “Desenho
no campo ampliado”. Participa regularmente de exposições coletivas e
individuais e em reuniões científicas com produção textual. Experiência em
Expressão Tridimensional e Desenho: processo criativo em arte, instalação,
objeto e desenho contemporâneo.
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SOCIEDADE DE CONSUMO: A FIGURA DO BRICOLEUR EM