16 de junho de 2013. Ao Senhor James E. Carter, Jr. The Carter Center 453 Freedom Parkway NE Atlanta, GA 30307 Estados Unidos da América Estimado Sr. Carter: Somos duas irmãs que escrevemos esta carta em homenagem a Talyta, apelido carinhoso pelo qual os mais próximos chamam Denise, uma jovem com a qual temos muitos pontos em comum. A começar pela nossa idade, já que há pouco entramos na casa dos vinte anos. Depois, a nossa origem sul-americana. Talyta é boliviana, nós brasileiras. Escolhemos as três cursar uma faculdade de Direito. Dividimos muitas das pessoas nas quais nos espelhamos. Como qualquer jovem de bom coração e com o espírito carregado de grandes esperanças, sonhamos com justiça e liberdade. Mas, Sr. Carter, num aspecto em particular entre Talyta e nós existe uma distância muito maior que aquela que separa La Paz e Brasília, as cidades onde moramos. Talyta é filha do senador da República da Bolívia Roger Pinto Molina, asilado há um ano na Embaixada do Brasil em La Paz. Nós, numa posição diametralmente oposta, somos filhas do advogado que luta para libertar o pai de Talyta da sua prisão sem grades. Então, paradoxalmente, a distância entre as nossas posições é o que nos aproxima. Em menos de nove horas podemos voar de Brasília a Atlanta e com umas duas horas e pouco mais chegar até a sua querida Plains. A vida moderna tornou curtas as distâncias. Isso não torna necessariamente as pessoas parte de um padrão único – embora pareça ser que as coisas caminhem nessa direção – e grandes distâncias continuam ainda existindo entre as formas como as pessoas se relacionam com o mundo exterior. Recorremos a um exemplo banal para ilustrar o que estamos falando: nunca nos imaginamos tirando a vida de um animal (não obstante o fato de eu, Juliana, depois de cinco anos de frágil resistência, ter sucumbido na batalha por me tornar vegetariana), mas admiramos a sua franqueza, especialmente nesses tempos onde a imposição do politicamente correto às vezes supera o limite do racional, quando em um dos seus livros o Sr. defende, sem medo de ser submetido ao escrutínio público, o quanto eram importantes para o crescimento espiritual daquele menino da Geórgia rural as saídas para caçar, na companhia do pai. Procuramos respeitar, portanto, a sua verdade, ainda que não seja a nossa verdade. Mais que isso, fizemos um esforço considerável para enxergar através dos seus olhos como o Sr. chegou até ela. Foi aí que percebemos que a sinceridade e a convic- 2 ção pura com que defendeu uma posição tão distante da nossa era justamente o que mais nos aproximava. Não ousamos, no entanto, dizer que estamos à altura de nos compararmos com um ex-presidente dos Estados Unidos da América. Quando estava à frente da nação mais poderosa do planeta, as suas decisões, Sr. Carter, tinham o poder de mudar a vida de milhões dos nossos semelhantes. E ainda hoje na Igreja Batista, no exercício do mesmo magistério do senador asilado, as suas decisões ainda continuam a mudar a vida de outros tantos. Já as nossas apenas causam efeitos nas pessoas que estão ao nosso lado, senão unicamente em nós mesmas. Mas nem por isso acreditamos que não possamos dar a nossa pequena contribuição para fazer deste um mundo melhor. Ou ao menos fazer com que o mundo de Talyta fique menos pior. Vendo essas manifestações exteriores da alma – franqueza, sinceridade e pureza – e, sobretudo, ao estarmos seguras de que nos dirigiríamos a um homem virtuoso, resolvemos, Sr. Carter, escrever-lhe a presente carta. Roger Pinto Molina exercia, como Chefe de Bancada da Convergência Nacional, a liderança da oposição na Bolívia. Apresentou provas de corrupção contra autoridades do alto escalão do seu país. Em outras ocasiões denunciou a ligação de pessoas próximas do círculo presidencial com o narcotráfico. Uma dessas acusações dizia respeito a um ex-diretor do organismo dedicado ao combate ao tráfico de drogas na Bolívia, que acabou preso, na Cidade do Panamá, numa operação que contou com a participação da Força Administrativa de Narcóticos (DEA). Desde que Evo Morales ascendeu ao poder, o pai de Talyta foi processado mais de vinte vezes, a maioria por crimes de desacato e sedição, chegando a ficar quase dois meses em prisão domiciliar. Não teve outra alternativa senão buscar abrigo, em 28 de maio de 2012, na Embaixada do Brasil em La Paz. Apenas nove dias depois, o Estado brasileiro reconheceu a sua condição de asilado diplomático. No entanto, passado um ano, o Palácio Quemado recusa-se a permitir a sua saída do território boliviano. A saúde desse preso sem pena vem se deteriorando rapidamente, uma vez que, dadas as condições adversas das instalações da Missão Diplomática brasileira – não obstante o empenho do Embaixador Marcel Biato e de seu estafe –, nesse ano inteiro de permanência na Embaixada não tomou uma hora de sol sequer. Além disso, encontra-se confinado em um espaço de aproximadamente vinte metros quadrados, tendo o próprio governo que lhe concedeu o asilo limitado as suas visitas aos seus advogados e às pessoas do seu núcleo familiar. A propósito, toda a sua família está hoje refugiada no Brasil, à exceção de Talyta, que, mesmo tendo sido ameaçada, preferiu permanecer na Bolívia a fim de poder prestar um mínimo de conforto espiritual ao pai. Como bem sabe, Sr. Carter, a possibilidade do asilado deixar o país territorial é prática costumeira no Direito Internacional. Foi pensando nisso que o nosso pai impetrou na Justiça brasileira um habeas corpus extraterritorial em favor do pai de Talyta, tendo como base o precedente da Suprema Corte de seu país, estabelecido no caso de Lakhdar Boumediene, um cidadão de origem bósnia que se encontrava detido na Base Naval da Baía de Guantánamo. 3 A menos que haja a intervenção de um daqueles poucos e raros personagens que detém a prerrogativa de mudar o curso da história, só restará a Talyta depositar todas as suas esperanças no julgamento, que ocorrerá nos próximos dias, do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Isso porque, a depender de uma iniciativa do Governo da Bolívia, o futuro parece não ser dos mais promissores. Embora a Constituição boliviana proíbisse textualmente a hipótese, o presidente Evo Morales conseguiu aprovar uma lei que lhe dá direito a concorrer a um terceiro mandato, podendo com isso ficar no cargo até o ano de 2020. Nesse estado de coisas, chegará o dia em que o pai de Talyta será inevitavelmente comparado ao cardeal húngaro József Mindszenty, que passou, em plena Guerra Fria, quinze anos enclausurado na Embaixada americana em Budapeste. Por acreditar que o Sr. tem a pena e a tinta que podem reescrever a história contemporânea da América Latina, contamos com o seu empenho para solucionar esse tão relevante caso de violação de direitos humanos. Mais do que algumas páginas num livro de história, Sr. Carter, isso significará devolver a luz a uma menina que agora vive sem esperança. Tomamos conhecimento de que o Sr. conversou recentemente com o presidente Evo Morales sobre a iniciativa da Bolívia para alcançar um acordo mútuo com o Chile e o Peru que lhe garanta o acesso ao Pacífico. Não cremos que exista governo na América do Sul, até os próprios Chile e Peru, que não queira encontrar uma solução justa para esse pleito tão justificável, desde que a essa se chegue num clima de harmonia, onde impere a boa-fé e onde haja um firme propósito de integração do subcontinente. Por outro lado, há uma clara contradição no fato da Bolívia buscar na Corte Internacional de Justiça uma solução que lhe garanta o acesso ao mar quando ela própria pode vir a ser questionada na mesma instância pelo Governo brasileiro – por iniciativa própria deste ou como uma imposição da Justiça brasileira a este – por impedir que um asilado deixe o seu território. Colocadas tais palavras, Sr. Carter, esperamos que aceite a nobre missão de ajudar a, num ambiente de fraternidade, devolver o mar à Bolívia e aos bolivianos, assim como esperamos que aceite a não menos nobre missão de fazer com que o pai de Talyta, literalmente, possa ter de novo um lugar ao sol. Em suas memórias espirituais o Sr. fala da importância de estender a mão. Estenda então a sua mão para que a Bolívia possa recuperar o seu acesso ao mar. Mas não deixe, por favor, de estender a mão para que Talyta volte a ter o chão aos seus pés. Com os nossos melhores cumprimentos. Atenciosamente, Juliana e Rafaela Tibúrcio de Miranda