A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA PARA O ENSINO SUPERIOR Donizett Pereira Coordenador do Curso de Direito da FIPA Um homem do chapéu pra baixo, montado num cavalo do rabo pra frente, vagava na trilha, mais para o fim do que para o começo da lida, de medonha fadiga. Ao lado correndo um cachorro do focinho pra trás que, desconfiado, olhava fixamente para o gato das patas pra cima, com medo de que o bichano cismasse em lhe aprontar uma, já que o fôlego se esfacelara. Um carcará observava do fundo do lago sua esquelética magreza refletida e por espirais alçava por vezes um ponto ao céu, espreitando migalhas vindas d’alguma obra cabalística que certamente viria daquela trágica cena bizarra. O mini texto acima, extraído de alguma memória da infância, traduz a grandeza de nossa língua, cuja beleza teima em persistir à era das mensagens eletrônicas, da insensatez dos 140 toques do twitter, do desmesurado imediatismo da atual juventude, tratada a pão-de-ló e, por isso mesmo, desinteressada dos métodos de aprendizado que secularmente tipificaram nossa cultura, seduzidos que estão pelas resenhas e resumos propiciados pela era digital. Estivemos sempre propensos a acreditar que a informação é reproduzida de forma multifacetária, mas somente a obstinada disciplina produz o conhecimento, e agora não encontramos meios para retransmitir tal ensinamento aos nossos adolescentes, confusos com a quantidade dos pretensiosos métodos de facilitação da existência humana a que estão diuturnamente submetidos pela via digital. Tiveram estendidas suas infâncias, com a proibição de trabalho até os 16 anos e a ―obrigação‖ de freqüência a um curso superior, atividade facilitada por inúmeras políticas públicas, o que representa um imensurável salto para melhoria na qualidade de vida, traduzindo-se em ganho de tempo, que deveria ser utilizado para o aprimoramento e compreensão sobre a condição humana e qualificação profissional, o que não vem ocorrendo, já que gastam grande parte do dia distraídos com a correspondência digital. A par disso, tiveram aumentada a transição para a vida adulta, o que reflete na tardia aquisição de responsabilidades e, por isso mesmo, na demora em compreender a necessidade de refletir e aprimorar a experiência vivida pelos que nos antecederam. Adotar procedimentos e instrumentos que possam mitigar essa dificuldade, possibilitando uma comunicação mais eficiente entre o aluno e o universo jurídico, cujo principal objeto de estudo são as relações interpessoais, é tarefa imprescindível para quem assumiu como opção de vida a missão de transmitir o direito. Para ajudar nessa busca, é sempre oportuno lembrar que a experiência de vida e as conquistas da humanidade em todas as áreas são traduzidas pelos grandes clássicos da literatura, que de forma simples e por meio de metáforas e ou transcrição de situações, tangíveis ou não, introduzem o conhecimento jurídico de forma mais acessível, colaborando na compreensão dos grandes temas da existência humana. O acesso à literatura, além de ampliar horizontes, cria condições de superação das dificuldades rotineiras, propiciando um insubstituível universo paralelo de paixões e emoções, de credos e de realizações, que não se compara a nenhum outro método de ensino, ajudando a construir argumentos imprescindíveis para a futura profissão. Rubem Alves, no texto anexo, ―A beleza dos pássaros em vôo‖ (Revista PSIQUE. São Paulo: Editora Escala, Ano V, n.55. p66.) traduz o sentimento de quem utiliza a literatura como hábito e testemunha a plenitude de vida propiciada pela comunhão com os livros. Enquanto educadores, temos a obrigação de criar oportunidades para que o universo literário seja oferecido aos nossos alunos, para que possam usufruir desse mundo de forma mais qualificada e, inclusive, corresponder às expectativas traduzidas na maneira com que foram criados. Esse sentimento precisa encontrar respaldo nas lições e ensinamentos da vida universitária, não somente para a qualificação e desempenho dos cursos, mas principalmente pelo respeito à grande massa intelectual que nos foi colocada sob custódia, o que influirá na formação dos educadores que serão das futuras gerações e fomentadores das atitudes humanas nas próximas eras. Abaixo algumas obras imprescindíveis (literatura ou não) para a compreensão do ambiente em que se desenvolve a atuação do direito: Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley A arte da guerra - Sun Tzu Casa grande e senzala – Gilberto Freyre Cidade antiga - Fustel de Coulanges Contrato social – Jean Jacques Rousseau Dos delitos e das penas – Cesare Beccaria Ensaio sobre a cegueira - José Saramago Germinal – Emile Zola O cortiço – Aluisio Azevedo O Caso dos exploradores de cavernas – Lon L. Fuller O caso dos denunciantes invejosos - Lon L. Fuller (Trad. Dimitri Dimoulis) O nome da rosa – Humberto Eco O príncipe – Maquiavel O processo - Franz Kafka A revolução dos Bichos - George Orwel Vigiar e Punir – Michel Foucaut A BELEZA DOS PÁSSAROS EM VOO – Rubem Alves In: Revista PSIQUE. São Paulo: Editora Escala, Ano V, n.55. p66. Desviei-me de uma das mais influentes escolas da Teologia contemporânea que, sob a inspiração da espiritualidade do martírio, só tinha olhos para a coroa de espinhos, para os cravos e para as feridas, e não tinha olhos para a flor. Assim, abandonei as inspirações éticas e políticas da Teologia — justificação pelas obras — e deixei-me levar pela felicidade — justificação pela graça. Alegria para os olhos, alegria para o corpo. Deus, em oposição aos seus adoradores, que fecham os olhos para vê-lo melhor, abre os seus e se alegra. O ato de ver é uma oração. O visível é o espelho onde Deus aparece refletido sob a forma de beleza. Deus é um esteta. A literatura me chegou sem que eu esperasse, sem que eu preparasse o seu caminho. Chegou-me através de experiências de solidão e sofrimento. A solidão e o sofrimento me fizeram sensível à voz dos poetas. A decisão foi tomada depois de completar quarenta anos: não mais escreveria para os meus pares do mundo acadêmico, filósofos ou teólogos. Escreveria para as pessoas comuns. E que outra maneira existe de se comunicar com as pessoas comuns senão simplesmente dizer as palavras que o amor escolhe? Toda alma é uma música que se toca. Quis muito ser pianista. Fracassei. Não tinha talento. Mas descobri que posso fazer música com palavras. Assim, toco a minha música... Outras pessoas, ouvindo a minha música, podem sentir sua carne reverberando como um instrumento musical. Quando isso acontece, sei que não estou só. A poesia revela a comunhão. O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias — imagens modeladas pelo desejo — diante do assombro que é a vida. Se o Grande Mistério, vez por outra, faz ouvir a sua música nos interstícios silenciosos das minhas palavras, isso não é mérito meu. É graça. Esse é o mistério da literatura: a música que se faz ouvir, independentemente das intenções de quem escreve. Escrevi, faz muitos anos, uma estória para a minha filha de quatro anos. Era sobre um Pássaro Encantado e uma Menina que se amavam. O Pássaro era encantado porque não vivia em gaiolas, vinha quando queria, partia quando queria... A Menina sofria com isso, porque amava o Pássaro e queria que ele fosse seu para sempre. Aí ela teve um pensamento perverso: "Se eu prender o Pássaro Encantado numa gaiola, ele nunca mais partirá, e seremos felizes, sem fim..." E foi isso que ela fez. Mas aconteceu o que ela não imaginava: o Pássaro perdeu o encanto. A Menina não sabia que, para ser encantado, o Pássaro precisava voar... Dei-me conta de que essa estória é uma parábola da Teologia. Existe sempre a tentação de prender o Pássaro Encantado, o Grande Mistério, em gaiolas de palavras. O poeta é aquele que ama o Pássaro em voo. O poeta voa com ele e vê as terras desconhecidas a que o seu voo leva. Por isso não há nada mais terrível para um poeta que ver um Pássaro engaiolado. Daí que ele se dedique, hereticamente, à tarefa de abrir as portas das gaiolas, para que o Pássaro voe. E é para isso que escrevo: pela alegria de ver o Pássaro em voo. Somente na velhice nos reencontramos com a infância. Creio que essas coisas que escrevo são uma tentativa de recuperar a felicidade perdida da minha infância. Agora, na velhice, experimento a alegria de ver muitas gaiolas vazias. E a alegria de ver os amigos que sorriem comigo, ao ver os pássaros em voo. Mas há uma tristeza. Sinto-me como Ravel, que, ao ver aproximar-se o fim, dizia, num lamento: "Mas há tantas músicas esperando ser escritas!‖