Cultura & Arte PUBLICAÇÃO QUINZENAL Barbacena (MG), sábado, 27 de junho de 2015 JORNAL DE SÁBADO Editores: Edson Brandão e Sérgio Cardoso Ayres Waterloo 200 anos: o que Minas tem com isso? Ilustração: Edson Brandão João Amílcar Salgado [email protected] E ntre os dias 18 e 21 de junho foi encenada com fidelidade a batalha de Waterloo, ocorrida há 200 anos, em território entre a Bélgica e a Holanda. Nela Napoleão foi derrotado e foi trazido preso para a ilha de Santa Helena, não muito distante do Brasil. Os vencedores foram os ingleses, sendo glorificado o irlandês Wellington, comandante contra um inimigo considerado invencível. Que relação tem isso com Minas Gerais? Há estrategistas que estudam a simulação da batalha e concluem que tecnicamente Napoleão a venceu. Quando, num jogo de guerra, o inimigo tecnicamente ganha e de fato perde, a primeira hipótese é traição. Quem teria traído Napoleão? Aí entra Minas Gerais. Acontece que grande parte dos bandeirantes eram de origem flamenga, ou seja, belga. As famílias mais tradicionais de Nepomuceno têm forte ascendência flamenga, inclusive de gente originária de Waterloo. Em 1815, os controladores do ouro mineiro concluíram que a extração na superfície escasseava e deveria passar ao subsolo. A tecnologia para isso era britânica e, se Napoleão vencesse, a nova modalidade extrativa seria retardada. Melhor seria que Wellington vencesse. Deslocaram o desfecho da guerra para território flamengo e ali deram um jeito de Napoleão perder. Depois de 1815, os ingleses chegaram a Minas Gerais e minas de subsolo, como Morro Velho, se multiplicaram. Implantaram também o lucrativo trenzinho caipira. Em retribuição, , Se um professor perguntar a um aluno se Napoleão esteve no Brasil e se a resposta for não, o aluno deve tomar zero o Império Britânico perguntou aos traidores que mais recompensa queriam,a troco de tão farto benefício. Como estavam ligados aos negros do Congo pela habilidade deles na mineração, os belgas pediram e receberam maravilhosa porção da África, que passou a chamar-se Congo Belga. Mais tarde chegaria a Minas o rei da Bélgica para inaugurar a Companhia Belgo-Mineira. Não se sabe se chegou a ver uma exibição de congado.Foi inaugurado também o Instituto do Radium (depois Borges da Costa) para uso médico do radium, tecnologia revolucionária da época. E o radium era extraído de minério na época só existente no Congo Belga. Em 17 de agosto de 1926 a descobridora do radium, a polonesa Madame Curie, seria enviada pelos belgas para visitar o Instituto do Radium em Belo Horizonte, ao lado de sua filha Irene Curie. Há ainda dois fatos que ligam o tema ao Brasil. Assim como o ouro de Minas entrou na derrota de Napoleão, este pode ter morrido por causa da presença de seus sequazes no Brasil. Estes pretendiam sequestrar o prisioneiro da ilha de Santa Helena, mas o serviço secreto francês, ao tomar conhecimento da viagem deles a nosso país, ordenou envenenar o imperador com arsênico. O outro fato faz parte da história da medicina legal brasileira. Segundo o historiador Cristobaldo Mota, se um professor perguntar a um aluno se Napoleão esteve no Brasil e se a resposta for não, o aluno deve tomar zero. Isto porque o cadáver de Napoleão, indo da ilha à França, passou pelo Brasil. TURISMO Um passaporte para a Estrada Real s Barbacena já dispõe de três locais para documentar a passagem de caminhantes que percorrem o caminho histórico D esde o dia 28 de abril, Barbacena é uma das cidades mineiras do roteiro da Estrada Real que está apta a fazer os registros nos passaportes dos viajantes da Estrada Real. O projeto, desenvolvido pelo Instituto Estrada Real (IER) e mantido pela Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), tem como objetivo fortalecer a identidade do destino como um caminho a ser percorrido por cicloturistas, caminhantes, cavaleiros e pilotos off-road. Ao passarem pelas cidades dotadas de pontos credenciados, os viajantes apresentam os passaportes que são carimbados autenticando e documentando cada ponto percorrido da viagem. Desde o lançamento do passaporte no Caminho dos Diamantes e Velho, na região de Ouro Preto e Diamantina, já foram retirados 2000 pas- saportes e 500 certificados. Segundo a turismóloga do IER, Daniele Teixeira, cada ponto recebe um kit com carimbo, almofada para carimbo, adesivo, folhas de controle do passaporte, 50 passaportes e 50 certificados. E os já viajantes começaram a registrar sua passagem pela cidade. No último dia 17 de junho, passaram por Barbacena cinco caminhantes da Estrada Real. Eles carimbaram seus passaportes na sede da Biblioteca Pública, um dos pontos credenciados na cidade. Provenientes de Ouro Preto, onde saíram no dia 6 de junho, eles passaram por Lavras Novas, Itatiaia, Ouro Branco, Conselheiro Lafaiete, Queluzito, Carandaí, Ressaquinha, Barbacena e terminaram o dia em Antônio Carlos. Os caminhantes Ione, José Carlos e Maria Lúcia vieram de São Paulo, já Marta e Maria de Lourdes vieram de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Segundo Edson Brandão, vicepresidente da Agência Municipal de Desenvolvimento Integrado de Barbacena e Região (AGIR), sob orientação do IER foram credenciados na cidade para fornecer os passaportes e fazer os registros de viagem os seguintes locais: Hotel Serra das Vertentes, na rua General Osório, bairro São Geraldo, Casa da Cultura (Biblioteca Municipal), rua General Câmara, 11 e Museu Municipal, Praça Conde de Prados, 55. “Além da facilidade de acesso para os viajantes, sendo o hotel com funcionamento 24 horas, em comum estes pontos tem a localização exatamente no trecho original da Estrada Real que corta a cidade,” disse Brandão. Para saber mais sobre as viagens na Estrada Real, visite o site www. estradareal.org.br. Fotos: Divulgação/AGIR Ione, José Carlos e Maria Lúcia vieram de São Paulo e tiveram seus passaportes autenticados pela chefe da Biblioteca Municipal, Simone Paulucci As viajantes gaúchas Marta e Maria de Lourdes mostram seus passaportes carimbados registrando sua aventura pela Estrada Real 2 l Cultura & Arte Barbacena, sábado, 27/06/2015 n ARTIGO n TRADIÇÃO Um evento cultural só para mulheres quilombolas CAMÕES, presença e imanência de um clássico hoje Paulo Roberto Maia Lopes [email protected] T radicionalmente feita, a cada ano, no mês de junho, que marca, no dia 10, o aniversário da morte de Camões, a celebração do “Dia da Raça”, também Dia das Comunidades de Língua Portuguesa, a sessão solene da Academia, em que a presente conferência foi apresentada, na reunião do dia 18 de junho de 2015 da ABL, buscou mostrar a atualidade da obra camoniana em seus aspectos universalistas, como a sendo a primeira expressão literária de um mundo que se tornava mais amplo, com as viagens e descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI, e ao mesmo tempo, pela primeira vez na História, “globalizado”, tornado único, de certa maneira, pelo encurtamento das distâncias e contato entre os povos separados pela vastidão dos oceanos. O cenário do épico “Os “Lusíadas”, a expressão maior da literatura em língua portuguesa e uma das obras-primas da literatura universal, é o de um mar que se estende da Europa ao Japão e da Groenlândia até a Terra do Fogo. Começando por trajetórias modestas, no espaço de menos de um século a aventura dos navegantes na Era das Grandes Descobertas completaria a exploração metódica do Atlântico Sul e de toda a costa oeste da África. Subjacente a esta exploração estava o sonho de velejar em torno de um continente, a África, que era ainda pouco conhecido para os europeus, a fim de alcançar as Índias. Como variante plena de futuro desta rota, os portugueses se afastaram para leste e encontraram o Brasil. A característica mais surpreendente desta empresa foi o fato de ter sido perseguida, por longo tempo, por um único país, Portugal, que muitas vezes colocava estrangeiros, enquanto nações muito mais ricas e mais poderosas, que também possuíam uma tradição marítima, não fizeram, nos primórdios, tentativa alguma de seguir o exemplo. A principal razão para isso foi que a maioria das viagens portuguesas não eram empreitadas de caráter privado, como era a norma entre os genoveses, catalães e os poderosos empreendedores marítimos venezianos, na mesma época, e mais tarde ocorreria com os navegantes franceses e ingleses. O modelo lusitano foi desde o início uma iniciativa estatal ou, mais precisamente, para-estatal, como se vê na figura paradigmática do Infante Dom Henrique, o Navegador, que era o Grão-Mestre da Ordem de Cristo, sucessora dos Templários, e não se subordinava diretamente ao rei. A aventura marítima portuguesa era moderna, tanto em seus meios como em seus resultados, mas, paradoxalmente, foi “medieval” no caráter. Em outros termos, era simultaneamente técnica e mercantil, mas revestida de um profundo caráter religioso. Quando Camões escreveu seu épico, cerca de um século e meio após o início das explorações marítimas, inserido num contexto que já era totalmente moderno, o medievalismo dominava ainda sua visão de mundo. O objetivo perseguido pelo Navegador Português era equivalente a uma cruzada. A cruz cristã, estampada no velame de suas caravelas, era mais do que meramente simbólica. No período em que, a partir de um ponto de vista realmente burguês, “moderno”, como a dos genoveses ou dos venezianos, um emblema desse tipo teria sido visto como um obstáculo para a comunicação com os povos de outras culturas e religiões. Mas as viagens portuguesas de exploração no século XV foram realizadas por iniciativa de uma instituição que foi tanto religiosa e militar, para não dizer militante. Mas o aspecto religioso das descobertas estava sempre presente, o que faz delas um episódio extremamente complexo na história da Cultura ocidental. Ninguém entendeu essa complexidade melhor do que Camões. Ele saudou os Descobrimentos como aventure extraordinária do espírito humano, um fantástico avanço em nosso conhecimento do universo e seus mistérios, um desafio assumido por homens contra os deuses e como uma cruzada empreendida por cristãos, portadores de uma fé que, muito recentemente, em seu tempo, fora desestabilizada, pela Reforma protestante, em outras partes da Europa, e agredida, pela expansão islâmica, nos domínios do antigo império bizantino. “Os Lusíadas”, mais que um clássico português, é um patrimônio da literatura universal de todos os tempos, nascida numa época em que os horizontes da terra ampliavam-se em extensões jamais vistas. O próprio Camões, em sua décima “Canção” diz que sua vida foi quebrada “em pedaços espalhados pelo mundo”. Sua obra fala de um “chamado” distante, muito além de Portugal e das influências costumeiramente citadas, que presidiram à sua produção. Camões, o viajante, refez o lírico e o épico sob a égide de suas experiências na Índia, no Mar Arábico e no Estreito de Ormuz. Este “perfume do Oriente”, encontrado nos “Lusíadas”, revela uma forte marca da experiência na Índia, e talvez a influência literária persa. Na forma da poesia autobiográfica de exílio, “Os Lusíadas” emerge como um poema das viagens de Camões, em vez da viagem de Vasco da Gama. Em um poema que se propõe celebrar a condução da luz do cristianismo para a Índia, surge de repente um testemunho de simpatia de Camões pelas culturas “pagãs” da Índia. Este é o ponto onde o poema eleva um épico nacional à dignidade de um mito universal, não se contentando em transpor as viagens portuguesas em um episódio heroico na história da descoberta planetária. Este mito, ele o transmutou em um nobre hino a Eros, um “naturalis”, traindo a influência da visão neoplatônica do grande poeta italiano Petrarca, um “Triunfo do Amor Universal”, em que os Portugueses desempenham, em certo sentido, o papel de Argonautas. “Os Lusíadas” está longe de ser um mero elogio dos descobrimentos portugueses. É mais do que um grande hino a um glorioso momento no destino de Portugal. É o épico do movimento europeu para novas praias, a infinitas possibilidades, no espaço e no tempo, e na visão abstrata de um planeta Terra como lar comum de todos os seus habitantes, irmanados pelo intercâmbio entre os distantes e uma forma extensamente compreensível de se comunicar. Nas mãos de Camões, torna-se um hino dionisíaco, um laço e um ponto de harmonia, não só entre o Céu e a Terra, mas entre as várias divisões da humanidade, até então separadas pelo espaço, a raça e os preconceitos. No épico camoniano, este sonho de unidade e congraçamento adquire cores alegóricas nos pontos altos da narrativa da viagem ao Oriente. Toda a Natureza participa da festa de marinheiros que coroa as façanhas de Vasco da Gama. Na “Ilha dos Amores”, o episódio narrado nos Cantos IX e X do poema. Começando como um hino de nacionalismo, o regozijo da tripulação, ali descrito, se torna um épico de amor, em que o espírito e os sentidos se misturam. A aventura heroica, a luta do homem contra os elementos hostis, termina nesta alegórica ilha, um sonho do paraíso, onde a força e a violência da guerra assumem as cores do amor, e o amor assume o comando da frota dos heróis conquistadores. Palestra proferida na Academia Barbacenense de Letras - junho/2015 s Comunidade de Ponto Chic realiza o seu 1º Encontro Cultural das Mulheres do Quilombo dos Candendês Registrada como patrimônio cultural imaterial do município de Barbacena, a quilombola dos Candendês se prepara para realizar o 1º Encontro Cultural das Mulheres do Quilombo dos Candendês. O evento, programado para o dia 11 de julho, em Ponto Chic, distrito de Barbacena, marca a implantação de um amplo projeto de pesquisa e fomento da identidade e da memória de uma das mais tradicionais comunidades barbacenenses. “Nossa comunidade, como tantas outras neste imenso Brasil, sofre com a ausência de infraestrutura e de políticas públicas. Este evento tem por objetivo resgatar a luta das famílias afrodescendentes tendo as mulheres como referência. Elas são o esteio de nossos lares e guardam em seus corações uma cultura secular na culinária, na dança, na música e, principalmente, na arte de educar seus filhos”, disse Alexandre do Carmo, presidente da Associação das Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais da Comunidade Rural Remanescente Quilombola dos Candendês. Para Sérgio Cardoso Ayres, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Barbacena – COMPHA, o evento tem uma importância fundamental para a localidade e o quilombo. “ A cultura afrodescendente em nossa região tem um traço marcante e secular que remonta ao início dos primeiros povoados nesta localidade, fato um pouco esquecido por nossa historiografia. Essa identidade necessita ser fomentada com o intuito de valorizar a memória e buscar a riqueza das tradições culturais da comunidade. Vale destacar que Ponto Chic, com o quilombo, e Padre Brito, com a Comunidade Remanescente de Índios Puris, repre- Foto: Sérgio Ayres Alexandre do Carmo: evento cultural para mulheres quilombolas sentam o foco principal de um projeto que busca a geração de trabalho e renda através da economia criativa”, disse ele. O arquiteto destaca que o Projeto Candendês é uma iniciativa das famílias de Ponto Chic que conta com o apoio da Associação Cultural Sétimo Degrau, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barbacena – SINTER, Associação dos Amigos dos Museus de Barbacena e Diretoria de Cultura e Turismo da AGIR. Para Márcio José, presidente do SINTER – Barbacena, a valorização da mulher da zona rural e de uma quilombola através de um encontro cultural é a chance delas cultuarem a sua história de vida. “Acreditamos neste trabalho que, passo a passo, com seriedade, vai abrir e conquistar o seu espaço na cidade”, disse ele. O evento, que promete reunir dezenas de trabalhadoras e donas-de-casa, tem o foco na própria comunidade, com brincadeiras, música, dança, poesia, contação de história e oficinas que buscam a valorização da tradição cultural local. “O encontro vai acontecer no salão paroquial da Igreja de Nossa Senhora Aparecida e será um momento especial exclusivamente das mulheres quilombolas dos Candendês e suas crianças”, disse Maria Aparecida, uma das coordenadoras. n SHOW Cia Elas Por Elas canta o amor no Gino’s s Show do dia 3 de julho tem repertório com canções de vários compositores da MPB Falando de amor. Este é o tema e título do novo show que a Cia Elas Por Elas vai apresentar no dia 3 de julho no Gino’s. O espetáculo tem em seu repertório musical canções de vários compositores da MPB: Gonzaguinha, Tom Jobim, Caetano Veloso, Lulu Santos, Marina, Pixinguinha. Dorival Caymi, Kleiton e Kledir, Fagner e Djavan, entre outros. As releituras musicais ficam a cargo de Bárbara Kelmer, Cláudia Valle e Lúcia Lewer, que interpretam e executam a percuteria do show ao lado de Juninho de Sá - violão - músico que assina com elas os arranjos musicais. O sopro fica a cargo de Cássio Oliveira, parceiro de longa data da Cia Elas Por Elas. “O show vai passear por vários ritmos e falar de amor das mais variadas formas - os que deram certo, os que não deram, os que fazem sofrer e aqueles que são de subir pelas paredes, como disse o poeta”, explicou a cantora Cláudia Valle. As Foto: Divulgação Cia Elas Por Elas: show com o tema "falando de amor" no Ginos's, dia 3 de julho mesas já se encontram à venda. Maiores informações: (32) 33316339 - 9136-9612 e 9909-1919 - com Margot Valle. O espetáculo começa às 22 horas e a classificação etária é 18 anos. Cultura & Arte l 3 Barbacena, sábado, 27/06/2015 n ESPECIAL A vida de Georges Bernanos em Barbacena s Livro de Maria Eugênia Tollendal aborda passagens curiosas do escritor francês e de sua família na cidade M uito se sabe sobre as obras do escritor francês Georges Bernanos (1888-1948), autor de livros como “Sob o Sol de Satã” e “O Caminho da Cruz das Almas”, entre muitos outros. Bernanos, que residiu muitos anos em Barbacena na década de 40, teve também ativa participação na resistência aos horrores da segunda guerra mundial, com textos de sua autoria sendo transmitido para o campo de batalha pela BBC, de Londres. Porém, de sua estadia em Barbacena, no sítio da Cruz das Almas, hoje museu e centro de atividades culturais, pouco se comenta. Em seu livro “Uma tríade história”, publicado em 1989, a odontóloga e escritora Maria Eugênia Tollendal, que conviveu em sua infância com a família do escritor francês, relata passagens da vida de George Bernanos, de sua esposa e de seus seis filhos na cidade. Entre as curiosidades, vistas sempre pelo olhar de uma criança, estão a personalidade do escritor, a doença de um de seus filhos, o parentesco da esposa com Joana D’Arc e as visitas que a família francesa fazia com frequência à casa da escritora, situada no jardim municipal. Leia um trecho do livro, que também aborda Emeric Marcier e Hugo Simon. Fragmentos Maria Eugênia Tollendal Ouço ainda com nitidez, lá no fundo de meu arquivo de memória, o ranger daquela articulação metálica que fazia junção com uma perna de pau. Tem-se que considerar que tais ruídos metálicos, que assim soavam ásperos e agressivos, era aos intrigados ouvidos de uma criança que causavam tal impressão. Apesar da mutilação, aquele homenzarrão que mancava tinha passadas largas que o realçavam e para aquela observadora-mirim mais parecia uma figura fantástica saída das páginas de um livro de histórias. Para completar aquela bizarra figura, estava sempre de culote e bota, usava um chapelão, tinha um vastíssimo bigode, olheiras sulcadas, se apoiava em uma bengala que já havia concavado uma calosidade em sua mão direita e montava um alto cavalo castanho. Com olhos esbugalhados eu via com admiração seu esforço para fazer genuflexão na Matriz da Piedade, onde sempre o via entrar, ou quando desmontava de seu cavalo “Osvaldo”, nome que recebera em homenagem ao amigo que o havia presenteado, o embaixador Oswaldo Aranha. Certa vez, ao descer de seu cavalo na Praça Central da cidade, desequilibrou-se e caiu; logo dele se aproximaram muitas pessoas para o ajudar. Entre essas, havia uma senhora de cabelos grisalhos, D. Eugênia Diniz Carneiro, aqui ainda viva com seus 90 anos, que cortesmente apanhou-lhe o chapéu que havia rolado mais distante. Quando veio entregá-lo, ouviu um ruidoso xingatório, o que a fez largar o chapéu no chão e sair apressada dizendo: “Cruz credo, não gosto de ouvir blasfêmias!” Na verdade, Bernanos era temperamental e se irritava facilmente, porém com uma dubiedade marcante. Ao mesmo tempo em que seus olhos faiscavam no ardor de uma discussão, se mostravam passivos, ternos e quase suplicantes. Este contraste caracterizava-o, e aliás deixou sempre transparecer em sua obra a luta constante entre o bem e o mal, a virtude e o pecado, o êxtase e a absoluta depressão. A colina onde se situa o bairro Cruz das Almas é bem distante do centro da cidade onde moramos, em um casarão de amplas salas e largos corredores que a família Bernanos costumava frequentar. Apesar dos detalhes fisionômicos já terem se diluído, recordo-me de muitos fatos ligados a eles, e irei buscá-los no sótão da memória onde se acumulam. Lembro-me bem de um dia em nossa casa, na sala de visitas, quando a senhora Joanne Tobbert D’Arc Bernanos, uma senhora de porte elegante, alta, magra, puxando um cordão que trazia no pescoço, se curvou para alcançar o meu tamanho e me mostrou uma medalha, dizendo: “Veja, essa é Joana D’Arc de quem sou parente”. Puxa, fiquei encantada, pois já nutria grande admiração por aquela moça-guerreira da qual ouvia contar histórias fantásticas. Verifica-se que, de certa forma, esta ligação era cultuada por eles, como demonstra a mensagem escrita por Bernanos, na Cruz das Almas, e transmitida pela BBC de Londres no dia da festa de Santa Joana D’Arc, em junho de 1941. Destacamos a seguir alguns trechos da mensagem, nos quais se percebe um tom de intimidade: “Joana, os Cristãos vos chamam de licioso doce de sagu. Receoso, mais curioso, resolveu arriscar e provar “seulement un petit, petit et petit peu”, como ele disse grifando e troçando. Qual não foi nossa surpresa quando, com olhar matreiro, pegou na compoteira e perguntou: “Posso comer aqui?” E não é que de fato raspou o doce até o fim? Chantal e Yves eram os mais velhos. Chantal era de uma beleza selvagem e participava de programas com o grupo de meu irmão José Theobaldo. Era alegre e comunicativa. Yves, sabia-se que sofria de uma neurose de guerra. Era muito magro, pálido, bonito e vivia trancado em seu quarto. Mantinha permanentemente uma das mãos enroladas e alegava que havia perdido em combate, totalmente, seu movimento. Papai, que além de amigo era o médico da família, frequentemente era chamado nas mais diferentes horas, inclusive de madrugada, para vê-lo. Entretanto, papai também não era um médico comum, era sim um sacerdote da medicina e não se detinha apenas nos sintomas físicos apresentados e nas aparências, porém se preocupava sobretudo com o estado psíquico de seus clientes. Atendia a todos com desvelo, atenção e carinho, não apenas com a ciência mas antes de tudo com o coração, buscando devolver o equilíbrio integral de seus pacientes. Era uma tarde fria, de neblina baixa, típica do outono barbacenense, quando papai foi ao sítio da Cruz das Almas e demorou muito tempo. Quando chegou, porém, estava radiante e disse a mamãe; “Estou muito contente, consegui hoje ganhar uma batalha na qual vinha lutando há tempos; a terapia venceu”. Não sem relutância, porém com persuasão e segurança havia arrancado o ensebado invólucro que há longos anos Yves mantinha em sua mão, sob a alegação de que estava paralítico. Papai havia conseguido convencê-lo, com muita dedicação, competência e apoio psicológico, de que ele não era maneta, que a mão paralisada era apenas fruto de seu psiquismo. Sem dúvida, devolveu àquele jovem muito mais destreza perante a vida. Claude era outra filha, moça exubeFoto: Reprodução O escritor francês Georges Bernanos Santa e vos honram como tal. Mas todo soldado da França tem o direito de vos chamar Joana, porque é sob este nome que os guerreiros vos conhecem. Joana, entre o inimigo e nós, o que conta está em aberto e nós o resolveremos cedo ou tarde. O que nós imploramos hoje de Vossa Graça é que ela não nos deixe curvar o dorso, que ela nos livre dos traidores, dos covardes e dos imbecis”. (George Bernanos) Mais tarde, quando entrei para as fileiras das Bandeirantes, novamente me reencontrei com Joana D’Arc, que era nossa patrona, e sempre me recordava deste fato de criança. Seus filhos menores, Dominique e Jean Loup, brincavam conosco; Angela Maria, minha irmã, preferia o pique de enconder, e eu, como era a menor dos quatro, estava sempre perdendo e sendo a que procurava. Eles gostavam muito de vir em nossa casa, se dependuravam na sacada da frente, apreciando a rua, o movimento e o jardim central. Aí, nas seculares árvores, havia macacos, e uma preguiça que, de tanta lentidão, nunca lhes permitiu que dela se aproximassem. Recordo-me de Michel com simpatia. Numa cena bem familiar, estava em nossa sala dos fundos, tomando um lanche conosco. Com ares de repugnância perguntou que era aquilo que comíamos, que parecia uma cola; tratava-se de uma compoteira alta, cheia de um de- rante, extrovertida e amiga de minha irmã Maria Laura, de semelhante temperamento. Juntas faziam furor, galopando em belos cavalos, pelas pacatas ruas de Barbacena de então. Bernanos tornou-se pai no espaço de 1918 a 1933, sabia-se que era jovial e amoroso com seus seis filhos, o que não tinha era muito tempo para lhes dedicar. Sendo sempre solicitado para palestras e conferências, viajava muito, o que combinava com seu espírito nômade. Mergulhado em seus escritos, suas meditações e sua intelectualidade, vivia absorto num mundo de ideias, abstraindo-se tanto do concreto próximo que convivia em sua imaginação muito mais com as personagens de seus romances que até mesmo com os seus. Certo dia, confidencialmente questionou a papai: “Onde estão minhas crianças, procurei-as e já não as encontrei mais!” Elas haviam crescido... Bem merecia um quadro, retrato por um competente pincel, aquela figura imponente e absorta, assentada ao lado de uma pequena mesa escrevendo. Pouco abaixo, na mesma rua de nossa casa, havia um bar chamado “Colonial”, o mais movimentado da cidade, pois, além do entra-e-sai para o tradicional cafezinho, onde os senhores se reuniam para discutir política e amenidades, tinha também nos fundos um bilhar, que contribuía para aumentar sua população flutuante, principalmente de jovens. Era aí, em meio a este burburinho, que Bernanos passava grande parte de seu tempo escrevendo. Entre baforadas de cachimbo, enchia páginas e páginas de papel com sua letra hieroglífica. Ao contrário da maioria dos escritores, que buscam o estático, o silêncio e o isolamento, ele precisava de fisionomias, de formas variadas, de barulho, de movimento, o que mais uma vez comprova seu espírito contrastante, pois era neste rebuliço que ele mais profundo ia buscar subsídios para seus escritos sobrenaturais, repletos de contestação, de indignação, e sobretudo de cristandade e mística, essa sua visão profunda que o fazia antever os fatos. Certamente aí, ou nas longas conversas que mantinha com papai em nossa casa ou na Granja das Margaridas, pertencente a Virgílio de Mello Franco, onde os três sempre se encontravam, é que com sua verve inflamada reivindicava a herança integral de sua civilização. Colocouse sempre contra tudo que ferisse ou aviltasse o ser humano em sua alma e sua pessoa, defendendo para todos uma condição de gente. Colocando-se sob o signo de criança com o qual certamente eu me comunicava, sendo por esta ótica que eu conheci o aristocrata e cavalheiro, o cavaleiro e escritor da Cruz das Almas. www.novocaminhonovo.blogspot.com 4 l Cultura & Arte Barbacena, sábado, 27/06/2015 n CRÔNICA De aforismos e principalmente de incertezas Sérgio Cardoso Ayres [email protected] S er cúmplice de si mesmo é sinal de falta de caráter. l A solidão constrói destruindo abrigos na quietude do ser. l Perder a esperança é a única forma de passar a acreditar em si mesmo. l Em cada dia vivido morremos um pouco afogados no êxtase do fluxo sanguíneo. l No retorno à lucidez, prometo não fazer muito barulho além do inevitável ranger dos dentes. l Viver pede mais do que as análises que fazemos diariamente. A vida é uma sucessão de justificativas. l Enquanto o mundo lá fora tece os fatos cotidianos, eu invento universos em minha casa. l Só não peço desculpas a mim mesmo porque sei que não as aceitaria só por indiferença. l A vida não passa de uma espera por algo que nunca chegará a tempo. Mesmo assim, existe um estranho prazer nesses anos de expectativa. l Desde que a vida se fez presente, a morte é quem a desembrulha sempre no dia de seu aniversário. l Por todos aqueles que tentaram ser o que não eram é que comemoro o sucesso desta minha farsa. l Continuo percorrendo os dias em busca de mim mesmo. Não esse outro que me leva pela mão, mas aquele que, apesar dos convites, nunca quis me acompanhar. l Pelos caminhos da vida aprendemos lições. Já pelos descaminhos conhecemos a nós mesmos. l Peço licença a mim mesmo para dizer que o sonho muitas vezes é um desejo que não queremos realizar. E que se danem as utopias. Abaixo a responsabilidade de me manter coerente. l Não quero mais me perder em pensamentos. Estou velho demais para recusar a realidade. Ivone Curi [email protected] C ena 1 - Cama na Calçada – Barbacena - Junho de 2015 - Sigo pela Rua José Bonifácio sentido bairro compenetradíssima conforme convém a uma senhora. E o mesmo fazem dois jovens só que em sentido centro, só que distraidíssimos como é próprio da juventude. De repente avisto uma tenda no meio da calçada. Sob ela alguma coisa sem pé sem cabeça. Os jovens tão equidistantes quanto eu da insólita instalação nem tchum. Diante do obstáculo, só me resta parar. Eles nem pestanejam, tchibum na Cama Box. Ela pelada, eles com jeans e camisetas. Se o lojista que a fez montar ali sem a mínima cerimônia e se postava a porta do estabelecimento, se irritou com a petulância dos jovens, nada falou. Se receou qualquer atitude indecorosa, se enganou redondamente. Os meninos simplesmente aproveitaram para esticar as pernas e os braços. Diante disso, escafedeu-se. Até que passa um motoqueiro rente ao meio fio e os provoca: Vocês também estão à venda? A resposta foi uma sonora gargalhada. Aí então que eles deitaram e rolaram de rir. Porque os jovens riem de tudo, de nada, de si, do outro, com os outros. Logo chega a gerente pra render o patrão na vigília. Cisma que a cama está ligeiramente inclinada. Seria o pé? O passeio? A peraltice? Melhor verificar! Arvora-se de capitão, faz sinais para alguém dentro da loja. Ninguém capta. Pega então o celular para ligar para a recepcionista para pedir a um dos vendedores ir até à oficina e trazer o montador. Vira prum lado, vira pra outro à cata de sinal. Desiste. Adentra a loja bufando sob o peso da responsabilidade. Enquanto a dupla a bordo vende alegria, saúde e leveza. Uma cena bonita de se ver. Um riso contagiante que me deixa com um sorriso nos lábios e com lágrimas nos olhos. Pensamentos e visões passam pela minha mente, deixemme segui- los. Antes, porém me despeço de Eduardo e Mônica. Pois assim me apraz chamá-los. Cena 2 - Cama na Calçada II - São Paulo - Janeiro de 2015 - Calçada do número 105, da Rua l Manhãs longas e dias curtos. Impressões passageiras da vida. Sonhos imperfeitos e realidades impossíveis. Caminhos percorridos em nome do vazio. Quem disser que o andarilho faz a sua jornada nunca saiu de sua cidade natal. l Por todos que souberam fazer da vida uma certeza é que vivo em dúvida entre perder-me no egoísmo ou entregar-me a histeria coletiva. l Desde que despertei daquele velho pesadelo que atormentava meus antepassados, é que descobri o quanto este sangue circula em minha família. l Eu nunca tive o sempre como objetivo. O talvez, sim, algumas vezes serviu de alicerce. Mas o nunca faz do sempre algo passageiro. l Um só louco é capaz de transformar o mundo; basta acreditar em si mesmo. l Quem não tem tempo para desperdiçar não sabe da urgência de viver. l Escrevo o que não consigo viver. Sonho aquilo que a realidade não me proporciona. Mas morrer ainda não consegui. l A exaustão leva ao êxtase. l O ser humano é mais da metade inconsciência. l Numa tarde um pouco abafada para o mês de junho, o inverno me fez constatar que perdemos todas as certezas do verão que passou. l São sempre os mesmos descaminhos, com seus convites e suas promessas ensandecidas l O clamor da carne é a resposta às ditas neces- sidades do espírito. l Dir-se-ia que foi o fim. Mas, contrariando todos os prognósticos, ele começou a tremer, prolongando ainda mais nossa agonia. E ali ficou por horas. Ainda ruminava vida quando retornamos no dia seguinte. E no outro. Foi uma morte lenta aquela do nosso amor... Lenta! l Haveria sempre, se o acaso fosse benevolente com todos nós, uma chance derradeira. Aquela que viria depois da própria esperança vencida, do amanhã subjugado. Mas o acaso é tão irresponsável que nem sequer consegue escolher seus próFoto: Sérgio Ayres prios felizardos. l Terei que abandonar algumas coisas que amo para poder devolver ao meu ser um pouco do que lhe pertence. l Procuro sentidos para desmaios, fugas para encontros e desejos na inconstância. l Tudo daria certo se não fosse esta minha mania de conferir as coisas em seus detalhes mínimos. A perfeição, às vezes, é um retrocesso. l Há uma noite espreitando cada dia ensolarado. Um grito aterrador atrás do silêncio entre as vozes. Alguém sempre te esperando com um assassinato nas mãos e solidão na alma. Esse meu desespero ainda vai te destruir. l A loucura das pessoas que vivem pelas ruas de Barbacena costuma assustar aos que duvidam da própria razão. Já os que não se atormentam com De cama em cama Veiga Filho, de Higienópolis, bairro nobre da maior cidade da América Latina. É aqui que Gabriel encasquetou de morar. Primeiro que nem um passarinho num colchão equilibrando nos galhos de uma árvore. Depois numa barraca improvisada e finalmente na cama que tirou de uma caçamba das redondezas. Ele incomodou e emocionou muita gente. Uns tentaram escorraçá-lo, outros ajudá-lo. Levaram-no pra sua casa, numa cidade do estado do Rio, ele voltou. Levaram-no para um abrigo, escapou. Moradores, então, tentaram acolhê-lo de forma compartilhada, não se adaptou. Numa espécie de exclusão às avessas. Prova irrefutável de que ele vinha de uma família tão boa quanto aquelas. Ficou seis meses nesse vai e vem. Uma proeza. Eureca, eca! Deitou na cama e fez fama! Cena 3 Bed-in - Amsterdã - Março de 1969 - Toda mídia esperava cenas de sexo explícito, considerando que apareceram nus na capa de seu primeiro álbum. No entanto, os recém-casados, John Lennon e Yoko Ono, encontram-se decorosamente vestidos com imaculados pijamas brancos, sentados na enorme cama da suíte 902, do Amsterdam Hilton Hotel, da capital holandesa. Enquanto o resto do quarto é ocupado por flores, cartazes escritos à mão e por fotógrafos e jornalistas que se espremem entre câmeras e tripés para ouvir e registrar o que o casal tem a falar. E assim eles passam sete dias pregando contra a guerra, clamando por amor e cantando Give Peace a Chance. Num protesto pací- fico à la Gandhi. Literalmente fizeram fama e deitaram na cama. Imaginem o big acontecimento! Inimaginável é como os senhores da guerra, os maus governantes e dirigentes, os ladrões dos sonhos e do pão de milhares de pessoas conseguem bater na cama e dormir o sono dos justos. Visão desesperadora. Maior ainda do que ver um faquir deitado numa cama cheia de pregos. Como conseguem? O segredo é distribuir o peso (as responsabilidades) do corpo (dos delitos) entre todos os pregos (comparsas) e deitar de uma vez (sem pôr a mão na consciência). Mais do que mística, é físiFoto: Ilustração ca. Mais do que física é política. Não é política, é ladroagem. Não é acaso, é abuso. Diante dessa cena só posso desejar a cada um dos vampiros bem nutridos que as pulgas de mil camelos infestem seus lençóis de algodão egípcio e que não tenham mãos para se coçarem! Cena 4 Cama Altar Ítaca - Século VIII a.C. - Cama móvel, imóvel, móvel irremovível. Eis a cama que Ulisses fez com as próprias mãos a partir do tronco de uma oliveira enraizada no solo em cujo redor ele ergueu as paredes do quarto nupcial de seu palácio. E não só a construiu a adornou com peles, prata, marfim e ouro. Símbolo de identidade (posto que depois de uma ausência de 20 anos só é reconhecido pela esposa ao descrever o leito conjugal) e altar de sua devoção por Penélope. Admirável um homem construir a cama com as próprias mãos. Se não com o suor do próprio rosto. Admirável a mulher bor- facilidade, estes encontram na insanidade alheia um passatempo: acompanhar estes infelizes em seus trajetos pelas ruas da cidade. É assim que acalmo meu ser mostrando para mim mesmo quão distantes elas podem ir enquanto o que chamo de minha insanidade, no máximo, me leva até a esquina onde elas moram e se divertem zombando, sem saber, da normalidade. l Vamos à vida como quem vai de encontro a si mesmo. E este viajante esbarra no que procura mas não é capaz de reconhecê-lo. E continua sereno em sua jornada da mesma forma que um cão persegue o próprio rabo pensando pertencer a outrem. E depois ainda pede desculpas ao desconhecido. Mas vamos. Vamos à vida. l Viver pede mais do que as análises que fazemos diariamente. A vida é uma sucessão de justificativas. l Quando a liberdade vira uma prisão é sinal de que uma condenação só não bastou. l A vida não passa de uma espera por algo que nunca chegará a tempo. Mesmo assim, existe um estranho prazer nesses anos de expectativa. l Em longas filas desordenadas, caminhamos para o mesmo destino comum: o abismo de nós mesmos que não tem fim quando atinge a coletividade. l Uma manhã enlouquecida. Sem marcas, com nuvens imitando dias claros. A janela deixa entrar um ar abafado que lembra um verão de impossibilidades. O dia não faz promessas e nem proíbe o inesperado de se manifestar. Além do mais, a noite é uma certeza que não precisamos ter. l As ausências são sempre bem-vindas quando estamos repletos de nós mesmos. l Abandonar as certezas é o mesmo que renascer órfão. l Nesta manhã tipicamente outonal, a reflexão é um anzol sem isca. l Quando perdi todos os sonhos ganhei a certeza da realidade. dar os lençóis, o monograma nas fronhas. Se não escolher com carinho o enxoval. Caprichar na escolha da cama, da roupa de cama, da camisola do dia, é muito bonito. Mas não é importante. É um luxo que o amor se dá ao direito. Porque os apaixonados não precisam realmente da cama. Pra eles qualquer superfície basta no exercício do amor. Não é necessidade, é desejo. Cena 5 - Cama Mausoléu - Barcelona - 2008 Mas numa separação a cama é essencial. Seu uso limitado é muito eloquente. É o termômetro que melhor mede a temperatura da relação. Palavras de Pedro Almodóvar ao comentar sobre o seu belíssimo filme A Flor do Meu Segredo. E vale a pena continuar com ele. Nessa história só há uma grande cena de cama entre os protagonistas Leo e seu marido, Paco. A cena é assim: Paco acaba de chegar de viagem. Leo leva-o pro quarto ansiosa para transarem. Ele, não entanto, quer tomar banho. Ela o espera faminta com a toalha e o coração nas mãos. Depois do banho ele comunica-lhe que não dispõe de um dia de licença, mas de apenas duas horas. Dá-se então uma discussão súbita e brutal que nem tempestade tropical. Leo ruge de frustração, mas Paco é militar e diz pra ela: Não tenho de explicar quais são minhas obrigações! Leo rebate: você é o meu marido e talvez eu tenha de lhe explicar quais são suas obrigações comigo! Enquanto Paco se veste, Leo senta na beirada da cama e desfia seu rosário doloroso. Nem percebe que Paco volta ao banheiro e sequer a ouve. A cama muda, enorme, intacta é a única testemunha do imenso abismo entre o casal. De altar se transforma num abismo profundo como o Grand Canyon. E do fundo do precipício, olha-se o céu. E, se diz, ali eu fui feliz! Queda dolorosa, visão redentora! Epílogo - Ia concluir com uma alegoria: Eduardo, Mônica, Gabriel, John, Yoko, Ulisses, Penélope, Paco, Leo, eu, você, eles... Todos no mesmo barco! Porém, lembrei-me, a tempo, que alguém disse ser esta o tipo da fala de quem é o dono do único colete salva-vidas a bordo da canoa furada. Então, fica o dito pelo não dito!