Cultura & Arte
PUBLICAÇÃO QUINZENAL
Barbacena (MG), sábado, 27 de junho de 2015
JORNAL DE SÁBADO
Editores: Edson Brandão e Sérgio Cardoso Ayres
Waterloo 200 anos: o que Minas tem com isso?
Ilustração: Edson Brandão
João Amílcar Salgado
[email protected]
E
ntre os dias 18 e 21 de junho
foi encenada com fidelidade a
batalha de Waterloo, ocorrida
há 200 anos, em território entre a Bélgica e a Holanda. Nela Napoleão foi derrotado e foi trazido preso
para a ilha de Santa Helena, não
muito distante do Brasil. Os vencedores foram os ingleses, sendo glorificado o irlandês Wellington, comandante contra um inimigo considerado invencível. Que relação
tem isso com Minas Gerais?
Há estrategistas que estudam a simulação da batalha e concluem que
tecnicamente Napoleão a venceu.
Quando, num jogo de guerra, o inimigo tecnicamente ganha e de fato
perde, a primeira hipótese é traição.
Quem teria traído Napoleão? Aí entra Minas Gerais. Acontece que grande parte dos bandeirantes eram de
origem flamenga, ou seja, belga. As
famílias mais tradicionais de Nepomuceno têm forte ascendência flamenga, inclusive de gente originária
de Waterloo. Em 1815, os controladores do ouro mineiro concluíram que
a extração na superfície escasseava e
deveria passar ao subsolo. A tecnologia para isso era britânica e, se Napoleão vencesse, a nova modalidade extrativa seria retardada. Melhor seria
que Wellington vencesse. Deslocaram
o desfecho da guerra para território
flamengo e ali deram um jeito de Napoleão perder.
Depois de 1815, os ingleses chegaram a Minas Gerais e minas de subsolo, como Morro Velho, se multiplicaram. Implantaram também o lucrativo trenzinho caipira. Em retribuição,
,
Se um professor perguntar a um aluno se Napoleão esteve
no Brasil e se a resposta for não, o aluno deve tomar zero
o Império Britânico perguntou aos
traidores que mais recompensa
queriam,a troco de tão farto benefício. Como estavam ligados aos negros
do Congo pela habilidade deles na
mineração, os belgas pediram e receberam maravilhosa porção da
África, que passou a chamar-se
Congo Belga. Mais tarde chegaria a
Minas o rei da Bélgica para inaugurar a Companhia Belgo-Mineira.
Não se sabe se chegou a ver uma
exibição de congado.Foi inaugurado também o Instituto do Radium
(depois Borges da Costa) para uso
médico do radium, tecnologia revolucionária da época. E o radium era
extraído de minério na época só
existente no Congo Belga. Em 17 de
agosto de 1926 a descobridora do
radium, a polonesa Madame Curie,
seria enviada pelos belgas para visitar o Instituto do Radium em Belo
Horizonte, ao lado de sua filha Irene Curie.
Há ainda dois fatos que ligam o
tema ao Brasil. Assim como o ouro de
Minas entrou na derrota de Napoleão, este pode ter morrido por causa da presença de seus sequazes no
Brasil. Estes pretendiam sequestrar
o prisioneiro da ilha de Santa Helena, mas o serviço secreto francês, ao
tomar conhecimento da viagem deles a nosso país, ordenou envenenar
o imperador com arsênico. O outro
fato faz parte da história da medicina
legal brasileira. Segundo o historiador Cristobaldo Mota, se um professor perguntar a um aluno se Napoleão esteve no Brasil e se a resposta
for não, o aluno deve tomar zero.
Isto porque o cadáver de Napoleão,
indo da ilha à França, passou pelo
Brasil.
TURISMO
Um passaporte para a Estrada Real
s Barbacena já dispõe de três locais para documentar a passagem de caminhantes que percorrem o caminho histórico
D
esde o dia 28 de abril, Barbacena é uma das cidades mineiras do roteiro da Estrada Real
que está apta a fazer os registros nos passaportes dos viajantes da
Estrada Real. O projeto, desenvolvido pelo Instituto Estrada Real (IER) e
mantido pela Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), tem
como objetivo fortalecer a identidade do destino como um caminho a ser
percorrido por cicloturistas, caminhantes, cavaleiros e pilotos off-road.
Ao passarem pelas cidades dotadas
de pontos credenciados, os viajantes
apresentam os passaportes que são
carimbados autenticando e documentando cada ponto percorrido da viagem. Desde o lançamento do passaporte no Caminho dos Diamantes e
Velho, na região de Ouro Preto e Diamantina, já foram retirados 2000 pas-
saportes e 500 certificados. Segundo
a turismóloga do IER, Daniele Teixeira, cada ponto recebe um kit com carimbo, almofada para carimbo, adesivo, folhas de controle do passaporte, 50 passaportes e 50 certificados. E
os já viajantes começaram a registrar
sua passagem pela cidade. No último
dia 17 de junho, passaram por Barbacena cinco caminhantes da Estrada
Real. Eles carimbaram seus passaportes na sede da Biblioteca Pública, um
dos pontos credenciados na cidade.
Provenientes de Ouro Preto, onde saíram no dia 6 de junho, eles passaram
por Lavras Novas, Itatiaia, Ouro
Branco, Conselheiro Lafaiete, Queluzito, Carandaí, Ressaquinha, Barbacena e terminaram o dia em Antônio
Carlos. Os caminhantes Ione, José
Carlos e Maria Lúcia vieram de São
Paulo, já Marta e Maria de Lourdes
vieram de Porto Alegre, Rio Grande
do Sul. Segundo Edson Brandão, vicepresidente da Agência Municipal de
Desenvolvimento Integrado de Barbacena e Região (AGIR), sob orientação
do IER foram credenciados na cidade
para fornecer os passaportes e fazer
os registros de viagem os seguintes
locais: Hotel Serra das Vertentes, na
rua General Osório, bairro São Geraldo, Casa da Cultura (Biblioteca Municipal), rua General Câmara, 11 e Museu
Municipal, Praça Conde de Prados, 55.
“Além da facilidade de acesso para os
viajantes, sendo o hotel com funcionamento 24 horas, em comum estes pontos tem a localização exatamente no
trecho original da Estrada Real que
corta a cidade,” disse Brandão.
Para saber mais sobre as viagens
na Estrada Real, visite o site www.
estradareal.org.br.
Fotos: Divulgação/AGIR
Ione, José Carlos e Maria Lúcia
vieram de São Paulo e tiveram
seus passaportes autenticados
pela chefe da Biblioteca
Municipal, Simone Paulucci
As viajantes gaúchas Marta e
Maria de Lourdes mostram
seus passaportes carimbados
registrando sua aventura
pela Estrada Real
2 l Cultura & Arte
Barbacena, sábado, 27/06/2015
n ARTIGO
n TRADIÇÃO
Um evento cultural só
para mulheres quilombolas
CAMÕES, presença e
imanência de um clássico hoje
Paulo Roberto Maia Lopes
[email protected]
T
radicionalmente feita, a cada
ano, no mês de junho, que marca, no dia 10, o aniversário da
morte de Camões, a celebração
do “Dia da Raça”, também Dia das Comunidades de Língua Portuguesa, a sessão solene da Academia, em que a presente conferência foi apresentada, na reunião do dia 18 de junho de 2015 da ABL,
buscou mostrar a atualidade da obra camoniana em seus aspectos universalistas,
como a sendo a primeira expressão literária de um mundo que se tornava mais
amplo, com as viagens e descobrimentos
marítimos dos séculos XV e XVI, e ao
mesmo tempo, pela primeira vez na História, “globalizado”, tornado único, de
certa maneira, pelo encurtamento das
distâncias e contato entre os povos separados pela vastidão dos oceanos.
O cenário do épico “Os “Lusíadas”, a
expressão maior da literatura em língua
portuguesa e uma das obras-primas da
literatura universal, é o de um mar que
se estende da Europa ao Japão e da Groenlândia até a Terra do Fogo. Começando por trajetórias modestas, no espaço de
menos de um século a aventura dos navegantes na Era das Grandes Descobertas completaria a exploração metódica do
Atlântico Sul e de toda a costa oeste da
África. Subjacente a esta exploração estava o sonho de velejar em torno de um
continente, a África, que era ainda pouco conhecido para os europeus, a fim de
alcançar as Índias.
Como variante plena
de futuro desta rota, os
portugueses se afastaram para leste e encontraram o Brasil. A característica mais surpreendente desta empresa foi o fato de ter
sido perseguida, por
longo tempo, por um
único país, Portugal,
que muitas vezes colocava estrangeiros, enquanto nações muito
mais ricas e mais poderosas, que também
possuíam uma tradição marítima, não fizeram, nos primórdios, tentativa alguma
de seguir o exemplo.
A principal razão para isso foi que a
maioria das viagens portuguesas não
eram empreitadas de caráter privado,
como era a norma entre os genoveses, catalães e os poderosos empreendedores
marítimos venezianos, na mesma época,
e mais tarde ocorreria com os navegantes franceses e ingleses. O modelo lusitano foi desde o início uma iniciativa estatal ou, mais precisamente, para-estatal,
como se vê na figura paradigmática do
Infante Dom Henrique, o Navegador, que
era o Grão-Mestre da Ordem de Cristo,
sucessora dos Templários, e não se subordinava diretamente ao rei.
A aventura marítima portuguesa era
moderna, tanto em seus meios como em
seus resultados, mas, paradoxalmente,
foi “medieval” no caráter. Em outros termos, era simultaneamente técnica e mercantil, mas revestida de um profundo caráter religioso. Quando Camões escreveu
seu épico, cerca de um século e meio após
o início das explorações marítimas, inserido num contexto que já era totalmente
moderno, o medievalismo dominava ainda sua visão de mundo.
O objetivo perseguido pelo Navegador Português era equivalente a uma cruzada. A cruz cristã, estampada no velame de suas caravelas, era mais do que
meramente simbólica. No período em
que, a partir de um ponto de vista realmente burguês, “moderno”, como a dos
genoveses ou dos venezianos, um emblema desse tipo teria sido visto como um
obstáculo para a comunicação com os
povos de outras culturas e religiões. Mas
as viagens portuguesas de exploração no
século XV foram realizadas por iniciativa de uma instituição que foi tanto religiosa e militar, para não dizer militante.
Mas o aspecto religioso das descobertas
estava sempre presente, o que faz delas
um episódio extremamente complexo na
história da Cultura ocidental.
Ninguém entendeu essa complexidade melhor do que Camões. Ele saudou
os Descobrimentos como aventure extraordinária do espírito humano, um fantástico avanço em nosso conhecimento
do universo e seus mistérios, um desafio
assumido por homens contra os deuses
e como uma cruzada empreendida por
cristãos, portadores de uma fé que, muito recentemente, em seu tempo, fora desestabilizada, pela Reforma protestante,
em outras partes da Europa, e agredida,
pela expansão islâmica, nos domínios do
antigo império bizantino.
“Os Lusíadas”, mais que um clássico
português, é um patrimônio da literatura universal de todos os tempos, nascida
numa época em que os horizontes da terra ampliavam-se em extensões jamais
vistas. O próprio Camões, em sua décima “Canção” diz que sua vida foi quebrada “em pedaços espalhados pelo
mundo”. Sua obra fala de um “chamado” distante, muito além de Portugal e
das influências costumeiramente citadas, que presidiram à sua produção. Camões, o viajante, refez o lírico e o épico sob a égide de suas experiências na
Índia, no Mar Arábico e no Estreito de
Ormuz.
Este “perfume do Oriente”, encontrado nos “Lusíadas”, revela uma forte
marca da experiência na Índia, e talvez
a influência literária persa. Na forma da
poesia autobiográfica de exílio, “Os Lusíadas” emerge como
um poema das viagens
de Camões, em vez da
viagem de Vasco da
Gama. Em um poema
que se propõe celebrar a
condução da luz do cristianismo para a Índia,
surge de repente um testemunho de simpatia
de Camões pelas culturas “pagãs” da Índia.
Este é o ponto onde o
poema eleva um épico
nacional à dignidade de
um mito universal, não se contentando
em transpor as viagens portuguesas em
um episódio heroico na história da descoberta planetária. Este mito, ele o transmutou em um nobre hino a Eros, um
“naturalis”, traindo a influência da visão
neoplatônica do grande poeta italiano Petrarca, um “Triunfo do Amor Universal”,
em que os Portugueses desempenham, em
certo sentido, o papel de Argonautas.
“Os Lusíadas” está longe de ser um
mero elogio dos descobrimentos portugueses. É mais do que um grande hino a
um glorioso momento no destino de Portugal. É o épico do movimento europeu
para novas praias, a infinitas possibilidades, no espaço e no tempo, e na visão abstrata de um planeta Terra como lar comum de todos os seus habitantes, irmanados pelo intercâmbio entre os distantes e uma forma extensamente compreensível de se comunicar. Nas mãos de Camões, torna-se um hino dionisíaco, um laço
e um ponto de harmonia, não só entre o Céu
e a Terra, mas entre as várias divisões da
humanidade, até então separadas pelo espaço, a raça e os preconceitos.
No épico camoniano, este sonho de
unidade e congraçamento adquire cores
alegóricas nos pontos altos da narrativa
da viagem ao Oriente. Toda a Natureza
participa da festa de marinheiros que coroa as façanhas de Vasco da Gama. Na
“Ilha dos Amores”, o episódio narrado
nos Cantos IX e X do poema. Começando como um hino de nacionalismo, o regozijo da tripulação, ali descrito, se torna um épico de amor, em que o espírito e
os sentidos se misturam. A aventura heroica, a luta do homem contra os elementos hostis, termina nesta alegórica ilha,
um sonho do paraíso, onde a força e a violência da guerra assumem as cores do
amor, e o amor assume o comando da frota dos heróis conquistadores.
Palestra proferida na Academia
Barbacenense de Letras - junho/2015
s Comunidade de Ponto Chic realiza o seu 1º Encontro
Cultural das Mulheres do Quilombo dos Candendês
Registrada como patrimônio cultural imaterial do município de Barbacena, a quilombola dos Candendês se
prepara para realizar o 1º Encontro
Cultural das Mulheres do Quilombo
dos Candendês. O evento, programado para o dia 11 de julho, em Ponto
Chic, distrito de Barbacena, marca a
implantação de um amplo projeto de
pesquisa e fomento da identidade e da
memória de uma das mais tradicionais
comunidades barbacenenses. “Nossa
comunidade, como tantas outras neste imenso Brasil, sofre com a ausência de infraestrutura e de políticas
públicas. Este evento tem por objetivo resgatar a luta das famílias afrodescendentes tendo as mulheres
como referência. Elas são o esteio de
nossos lares e guardam em seus corações uma cultura secular na culinária, na dança, na música e, principalmente, na arte de educar seus filhos”,
disse Alexandre do Carmo, presidente da Associação das Trabalhadoras e
Trabalhadores Rurais da Comunidade Rural Remanescente Quilombola
dos Candendês.
Para Sérgio Cardoso Ayres, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Barbacena – COMPHA, o evento tem
uma importância fundamental para a
localidade e o quilombo. “ A cultura
afrodescendente em nossa região tem
um traço marcante e secular que remonta ao início dos primeiros povoados nesta localidade, fato um pouco
esquecido por nossa historiografia.
Essa identidade necessita ser fomentada com o intuito de valorizar a memória e buscar a riqueza das tradições
culturais da comunidade. Vale destacar que Ponto Chic, com o quilombo,
e Padre Brito, com a Comunidade
Remanescente de Índios Puris, repre-
Foto: Sérgio Ayres
Alexandre do Carmo: evento cultural para mulheres quilombolas
sentam o foco principal de um projeto que busca a geração de trabalho e
renda através da economia criativa”,
disse ele. O arquiteto destaca que o
Projeto Candendês é uma iniciativa
das famílias de Ponto Chic que conta
com o apoio da Associação Cultural
Sétimo Degrau, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barbacena – SINTER, Associação dos Amigos dos
Museus de Barbacena e Diretoria de
Cultura e Turismo da AGIR.
Para Márcio José, presidente do
SINTER – Barbacena, a valorização da
mulher da zona rural e de uma quilombola através de um encontro cultural é a chance delas cultuarem a sua
história de vida. “Acreditamos neste
trabalho que, passo a passo, com seriedade, vai abrir e conquistar o seu
espaço na cidade”, disse ele. O evento, que promete reunir dezenas de trabalhadoras e donas-de-casa, tem o
foco na própria comunidade, com
brincadeiras, música, dança, poesia,
contação de história e oficinas que
buscam a valorização da tradição cultural local. “O encontro vai acontecer
no salão paroquial da Igreja de Nossa Senhora Aparecida e será um momento especial exclusivamente das
mulheres quilombolas dos Candendês e suas crianças”, disse Maria Aparecida, uma das coordenadoras.
n SHOW
Cia Elas Por Elas canta o amor no Gino’s
s Show do dia 3 de julho tem repertório com canções de vários compositores da MPB
Falando de amor. Este é o tema e
título do novo show que a Cia Elas
Por Elas vai apresentar no dia 3 de julho no Gino’s. O espetáculo tem em
seu repertório musical canções de
vários compositores da MPB: Gonzaguinha, Tom Jobim, Caetano Veloso,
Lulu Santos, Marina, Pixinguinha.
Dorival Caymi, Kleiton e Kledir, Fagner e Djavan, entre outros. As releituras musicais ficam a cargo de Bárbara Kelmer, Cláudia Valle e Lúcia
Lewer, que interpretam e executam a
percuteria do show ao lado de Juninho de Sá - violão - músico que assina com elas os arranjos musicais.
O sopro fica a cargo de Cássio Oliveira, parceiro de longa data da Cia
Elas Por Elas.
“O show vai passear por vários
ritmos e falar de amor das mais variadas formas - os que deram certo,
os que não deram, os que fazem sofrer e aqueles que são de subir pelas paredes, como disse o poeta”,
explicou a cantora Cláudia Valle. As
Foto: Divulgação
Cia Elas Por Elas: show com o tema
"falando de amor" no Ginos's, dia 3 de julho
mesas já se encontram à venda.
Maiores informações: (32) 33316339 - 9136-9612 e 9909-1919 - com
Margot Valle. O espetáculo começa
às 22 horas e a classificação etária é
18 anos.
Cultura & Arte l 3
Barbacena, sábado, 27/06/2015
n ESPECIAL
A vida de Georges Bernanos em Barbacena
s Livro de Maria Eugênia Tollendal aborda passagens curiosas do escritor francês e de sua família na cidade
M
uito se sabe sobre as obras do
escritor francês Georges Bernanos (1888-1948), autor de
livros como “Sob o Sol de
Satã” e “O Caminho da Cruz das Almas”, entre muitos outros. Bernanos,
que residiu muitos anos em Barbacena
na década de 40, teve também ativa participação na resistência aos horrores da
segunda guerra mundial, com textos de
sua autoria sendo transmitido para o
campo de batalha pela BBC, de Londres.
Porém, de sua estadia em Barbacena, no
sítio da Cruz das Almas, hoje museu e
centro de atividades culturais, pouco se
comenta.
Em seu livro “Uma tríade história”,
publicado em 1989, a odontóloga e escritora Maria Eugênia Tollendal, que
conviveu em sua infância com a família
do escritor francês, relata passagens da
vida de George Bernanos, de sua esposa e de seus seis filhos na cidade. Entre
as curiosidades, vistas sempre pelo
olhar de uma criança, estão a personalidade do escritor, a doença de um de
seus filhos, o parentesco da esposa com
Joana D’Arc e as visitas que a família
francesa fazia com frequência à casa da
escritora, situada no jardim municipal.
Leia um trecho do livro, que também
aborda Emeric Marcier e Hugo Simon.
Fragmentos
Maria Eugênia Tollendal
Ouço ainda com nitidez, lá no fundo
de meu arquivo de memória, o ranger
daquela articulação metálica que fazia
junção com uma perna de pau. Tem-se
que considerar que tais ruídos metálicos, que assim soavam ásperos e agressivos, era aos intrigados ouvidos de uma
criança que causavam tal impressão.
Apesar da mutilação, aquele homenzarrão que mancava tinha passadas largas que o realçavam e para aquela observadora-mirim mais parecia uma figura fantástica saída das páginas de um
livro de histórias.
Para completar aquela bizarra figura, estava sempre de culote e bota, usava um chapelão, tinha um vastíssimo
bigode, olheiras sulcadas, se apoiava em
uma bengala que já havia concavado
uma calosidade em sua mão direita e
montava um alto cavalo castanho.
Com olhos esbugalhados eu via com
admiração seu esforço para fazer genuflexão na Matriz da Piedade, onde sempre o via entrar, ou quando desmontava de seu cavalo “Osvaldo”, nome que
recebera em homenagem ao amigo que
o havia presenteado, o embaixador
Oswaldo Aranha.
Certa vez, ao descer de seu cavalo
na Praça Central da cidade, desequilibrou-se
e caiu; logo dele se
aproximaram muitas
pessoas para o ajudar.
Entre essas, havia uma
senhora de cabelos grisalhos, D. Eugênia Diniz Carneiro, aqui ainda viva com seus 90
anos, que cortesmente
apanhou-lhe o chapéu
que havia rolado mais
distante. Quando veio
entregá-lo, ouviu um
ruidoso xingatório, o
que a fez largar o chapéu no chão e sair
apressada dizendo:
“Cruz credo, não
gosto de ouvir blasfêmias!”
Na verdade, Bernanos era temperamental
e se irritava facilmente, porém com uma dubiedade marcante. Ao
mesmo tempo em que
seus olhos faiscavam
no ardor de uma discussão, se mostravam
passivos, ternos e quase suplicantes. Este contraste caracterizava-o, e aliás deixou sempre transparecer em sua obra a luta constante entre o bem e o mal, a virtude e o pecado,
o êxtase e a absoluta depressão.
A colina onde se situa o bairro Cruz
das Almas é bem distante do centro da
cidade onde moramos, em um casarão
de amplas salas e largos corredores que
a família Bernanos costumava frequentar. Apesar dos detalhes fisionômicos já
terem se diluído, recordo-me de muitos
fatos ligados a eles, e irei buscá-los no
sótão da memória onde se acumulam.
Lembro-me bem de um dia em nossa casa, na sala de visitas, quando a senhora Joanne Tobbert D’Arc Bernanos,
uma senhora de porte elegante, alta,
magra, puxando um cordão que trazia
no pescoço, se curvou para alcançar o
meu tamanho e me mostrou uma medalha, dizendo: “Veja, essa é Joana
D’Arc de quem sou parente”. Puxa, fiquei encantada, pois já nutria grande
admiração por aquela moça-guerreira
da qual ouvia contar histórias fantásticas. Verifica-se que, de certa forma, esta
ligação era cultuada por eles, como demonstra a mensagem escrita por Bernanos, na Cruz das Almas, e transmitida
pela BBC de Londres no dia da festa de
Santa Joana D’Arc, em junho de 1941.
Destacamos a seguir alguns trechos da
mensagem, nos quais se percebe um
tom de intimidade:
“Joana, os Cristãos vos chamam de
licioso doce de sagu.
Receoso, mais curioso,
resolveu arriscar e provar “seulement un petit, petit et petit peu”,
como ele disse grifando
e troçando. Qual não
foi nossa surpresa
quando, com olhar matreiro, pegou na compoteira e perguntou:
“Posso comer aqui?” E
não é que de fato raspou o doce até o fim?
Chantal e Yves eram
os mais velhos. Chantal
era de uma beleza selvagem e participava de
programas com o grupo de meu irmão José
Theobaldo. Era alegre e
comunicativa. Yves, sabia-se que sofria de
uma neurose de guerra.
Era muito magro, pálido, bonito e vivia trancado em seu quarto.
Mantinha permanentemente uma das mãos
enroladas e alegava
que havia perdido em
combate, totalmente,
seu movimento. Papai, que além de
amigo era o médico da família, frequentemente era chamado nas mais diferentes horas, inclusive de madrugada, para
vê-lo. Entretanto, papai também não era
um médico comum, era sim um sacerdote da medicina e não se detinha apenas nos sintomas físicos apresentados e
nas aparências, porém se preocupava
sobretudo com o estado psíquico de
seus clientes. Atendia a todos com desvelo, atenção e carinho, não apenas com
a ciência mas antes de tudo com o coração, buscando devolver o equilíbrio integral de seus pacientes.
Era uma tarde fria, de neblina baixa,
típica do outono barbacenense, quando
papai foi ao sítio da Cruz das Almas e
demorou muito tempo. Quando chegou,
porém, estava radiante e disse a mamãe;
“Estou muito contente, consegui hoje
ganhar uma batalha na qual vinha lutando há tempos; a terapia venceu”.
Não sem relutância, porém com persuasão e segurança havia arrancado o
ensebado invólucro que há longos anos
Yves mantinha em sua mão, sob a alegação de que estava paralítico. Papai havia conseguido convencê-lo, com muita dedicação, competência e apoio psicológico, de que ele não era maneta, que
a mão paralisada era apenas fruto de
seu psiquismo. Sem dúvida, devolveu
àquele jovem muito mais destreza perante a vida.
Claude era outra filha, moça exubeFoto: Reprodução
O escritor francês Georges Bernanos
Santa e vos honram como tal. Mas todo
soldado da França tem o direito de vos
chamar Joana, porque é sob este nome
que os guerreiros vos conhecem. Joana,
entre o inimigo e nós, o que conta está
em aberto e nós o resolveremos cedo ou
tarde. O que nós imploramos hoje de
Vossa Graça é que ela não nos deixe curvar o dorso, que ela nos livre dos traidores, dos covardes e dos imbecis”. (George
Bernanos)
Mais tarde, quando entrei para as fileiras das Bandeirantes, novamente me
reencontrei com Joana D’Arc, que era
nossa patrona, e sempre me recordava
deste fato de criança.
Seus filhos menores, Dominique e
Jean Loup, brincavam conosco; Angela
Maria, minha irmã, preferia o pique de
enconder, e eu, como era a menor dos
quatro, estava sempre perdendo e sendo a que procurava. Eles gostavam
muito de vir em nossa casa, se dependuravam na sacada da frente, apreciando a rua, o movimento e o jardim central. Aí, nas seculares árvores, havia macacos, e uma preguiça que, de tanta lentidão, nunca lhes permitiu que dela se
aproximassem.
Recordo-me de Michel com simpatia. Numa cena bem familiar, estava em
nossa sala dos fundos, tomando um lanche conosco. Com ares de repugnância
perguntou que era aquilo que comíamos, que parecia uma cola; tratava-se
de uma compoteira alta, cheia de um de-
rante, extrovertida e amiga de minha
irmã Maria Laura, de semelhante temperamento. Juntas faziam furor, galopando em belos cavalos, pelas pacatas
ruas de Barbacena de então.
Bernanos tornou-se pai no espaço de
1918 a 1933, sabia-se que era jovial e
amoroso com seus seis filhos, o que não
tinha era muito tempo para lhes dedicar. Sendo sempre solicitado para palestras e conferências, viajava muito, o que
combinava com seu espírito nômade.
Mergulhado em seus escritos, suas
meditações e sua intelectualidade, vivia
absorto num mundo de ideias, abstraindo-se tanto do concreto próximo
que convivia em sua imaginação muito
mais com as personagens de seus romances que até mesmo com os seus.
Certo dia, confidencialmente questionou a papai: “Onde estão minhas crianças, procurei-as e já não as encontrei
mais!” Elas haviam crescido...
Bem merecia um quadro, retrato por
um competente pincel, aquela figura
imponente e absorta, assentada ao lado
de uma pequena mesa escrevendo.
Pouco abaixo, na mesma rua de nossa casa, havia um bar chamado “Colonial”, o mais movimentado da cidade,
pois, além do entra-e-sai para o tradicional cafezinho, onde os senhores se
reuniam para discutir política e amenidades, tinha também nos fundos um bilhar, que contribuía para aumentar sua
população flutuante, principalmente de
jovens. Era aí, em meio a este burburinho, que Bernanos passava grande parte de seu tempo escrevendo. Entre baforadas de cachimbo, enchia páginas e
páginas de papel com sua letra hieroglífica. Ao contrário da maioria dos escritores, que buscam o estático, o silêncio e o isolamento, ele precisava de fisionomias, de formas variadas, de barulho, de movimento, o que mais uma vez
comprova seu espírito contrastante, pois
era neste rebuliço que ele mais profundo ia buscar subsídios para seus escritos sobrenaturais, repletos de contestação, de indignação, e sobretudo de cristandade e mística, essa sua visão profunda que o fazia antever os fatos. Certamente aí, ou nas longas conversas que
mantinha com papai em nossa casa ou
na Granja das Margaridas, pertencente
a Virgílio de Mello Franco, onde os três
sempre se encontravam, é que com sua
verve inflamada reivindicava a herança integral de sua civilização. Colocouse sempre contra tudo que ferisse ou aviltasse o ser humano em sua alma e sua
pessoa, defendendo para todos uma condição de gente. Colocando-se sob o signo
de criança com o qual certamente eu me
comunicava, sendo por esta ótica que eu
conheci o aristocrata e cavalheiro, o cavaleiro e escritor da Cruz das Almas.
www.novocaminhonovo.blogspot.com
4 l Cultura & Arte
Barbacena, sábado, 27/06/2015
n CRÔNICA
De aforismos e principalmente de incertezas
Sérgio Cardoso Ayres
[email protected]
S
er cúmplice de si mesmo é sinal de falta de
caráter.
l A solidão constrói destruindo abrigos na
quietude do ser.
l Perder a esperança é a única forma de
passar a acreditar em si mesmo.
l Em cada dia vivido morremos um pouco afogados no êxtase do fluxo sanguíneo.
l No retorno à lucidez, prometo não fazer muito barulho além do inevitável ranger dos dentes.
l Viver pede mais do que as análises que fazemos diariamente. A vida é uma sucessão de justificativas.
l Enquanto o mundo lá fora tece os fatos cotidianos, eu invento universos em minha casa.
l Só não peço desculpas a mim mesmo porque
sei que não as aceitaria só por indiferença.
l A vida não passa de uma espera por algo que
nunca chegará a tempo. Mesmo assim, existe um
estranho prazer nesses anos de expectativa.
l Desde que a vida se fez presente, a morte é
quem a desembrulha sempre no dia de seu aniversário.
l Por todos aqueles que tentaram ser o que
não eram é que comemoro o sucesso desta
minha farsa.
l Continuo percorrendo os dias em busca de
mim mesmo. Não esse outro que me leva pela mão,
mas aquele que, apesar dos convites, nunca quis
me acompanhar.
l Pelos caminhos da vida aprendemos lições.
Já pelos descaminhos conhecemos a nós mesmos.
l Peço licença a mim mesmo para dizer que o
sonho muitas vezes é um desejo que não queremos realizar. E que se danem as utopias. Abaixo a
responsabilidade de me manter coerente.
l Não quero mais me perder em pensamentos.
Estou velho demais para recusar a realidade.
Ivone Curi
[email protected]
C
ena 1 - Cama na Calçada – Barbacena - Junho de 2015 - Sigo pela Rua José Bonifácio
sentido bairro compenetradíssima conforme convém a uma senhora. E o mesmo fazem dois jovens só que em sentido centro, só que
distraidíssimos como é próprio da juventude. De
repente avisto uma tenda no meio da calçada. Sob
ela alguma coisa sem pé sem cabeça. Os jovens tão
equidistantes quanto eu da insólita instalação nem
tchum. Diante do obstáculo, só me resta parar. Eles
nem pestanejam, tchibum na Cama Box. Ela pelada, eles com jeans e camisetas. Se o lojista que a
fez montar ali sem a mínima cerimônia e se postava a porta do estabelecimento, se irritou com a
petulância dos jovens, nada falou. Se receou qualquer atitude indecorosa, se enganou redondamente. Os meninos simplesmente aproveitaram para
esticar as pernas e os braços. Diante disso, escafedeu-se. Até que passa um motoqueiro rente ao meio
fio e os provoca: Vocês também estão à venda? A
resposta foi uma sonora gargalhada. Aí então que
eles deitaram e rolaram de rir. Porque os jovens
riem de tudo, de nada, de si, do outro, com os outros. Logo chega a gerente pra render o patrão na
vigília. Cisma que a cama está ligeiramente inclinada. Seria o pé? O passeio? A peraltice? Melhor
verificar! Arvora-se de capitão, faz sinais para alguém dentro da loja. Ninguém capta. Pega então
o celular para ligar para a recepcionista para pedir
a um dos vendedores ir até à oficina e trazer o
montador. Vira prum lado, vira pra outro à cata de
sinal. Desiste. Adentra a loja bufando sob o peso
da responsabilidade. Enquanto a dupla a bordo
vende alegria, saúde e leveza. Uma cena bonita de
se ver. Um riso contagiante que me deixa com um
sorriso nos lábios e com lágrimas nos olhos. Pensamentos e visões passam pela minha mente, deixemme segui- los. Antes, porém me despeço de Eduardo
e Mônica. Pois assim me apraz chamá-los.
Cena 2 - Cama na Calçada II - São Paulo - Janeiro de 2015 - Calçada do número 105, da Rua
l Manhãs longas e dias curtos. Impressões passageiras da vida. Sonhos imperfeitos e realidades
impossíveis. Caminhos percorridos em nome do
vazio. Quem disser que o andarilho faz a sua jornada nunca saiu de sua cidade natal.
l Por todos que souberam fazer da vida uma
certeza é que vivo em dúvida entre perder-me no
egoísmo ou entregar-me a histeria coletiva.
l Desde que despertei daquele velho pesadelo que
atormentava meus antepassados, é que descobri o
quanto este sangue circula em minha família.
l Eu nunca tive o sempre como objetivo. O talvez, sim, algumas vezes serviu de alicerce.
Mas o nunca faz
do sempre algo
passageiro.
l Um só louco é capaz de
transformar o
mundo; basta
acreditar em si
mesmo.
l Quem não
tem tempo para
desperdiçar não
sabe da urgência
de viver.
l Escrevo o
que não consigo
viver. Sonho aquilo que a realidade não me proporciona. Mas morrer ainda não consegui.
l A exaustão leva ao êxtase.
l O ser humano é mais da metade inconsciência.
l Numa tarde um pouco abafada para o mês de
junho, o inverno me fez constatar que perdemos
todas as certezas do verão que passou.
l São sempre os mesmos descaminhos, com seus
convites e suas promessas ensandecidas
l O clamor da carne é a resposta às ditas neces-
sidades do espírito.
l Dir-se-ia que foi o fim. Mas, contrariando todos os prognósticos, ele começou a tremer, prolongando ainda mais nossa agonia. E ali ficou por
horas. Ainda ruminava vida quando retornamos
no dia seguinte. E no outro. Foi uma morte lenta
aquela do nosso amor... Lenta!
l Haveria sempre, se o acaso fosse benevolente
com todos nós, uma chance derradeira. Aquela que
viria depois da própria esperança vencida, do
amanhã subjugado. Mas o acaso é tão irresponsável que nem sequer consegue escolher seus próFoto: Sérgio Ayres prios felizardos.
l Terei que
abandonar algumas coisas que
amo para poder
devolver ao
meu ser um
pouco do que
lhe pertence.
l
Procuro
sentidos para
desmaios, fugas
para encontros e
desejos na inconstância.
l Tudo daria
certo se não fosse esta minha
mania de conferir as coisas em seus detalhes mínimos. A perfeição, às vezes, é um retrocesso.
l Há uma noite espreitando cada dia ensolarado. Um grito aterrador atrás do silêncio entre as
vozes. Alguém sempre te esperando com um assassinato nas mãos e solidão na alma. Esse meu
desespero ainda vai te destruir.
l A loucura das pessoas que vivem pelas ruas
de Barbacena costuma assustar aos que duvidam
da própria razão. Já os que não se atormentam com
De cama em cama
Veiga Filho, de Higienópolis, bairro nobre da
maior cidade da América Latina. É aqui que Gabriel encasquetou de morar. Primeiro que nem um
passarinho num colchão equilibrando nos galhos
de uma árvore. Depois numa barraca improvisada
e finalmente na cama que tirou de uma caçamba
das redondezas. Ele incomodou e emocionou
muita gente. Uns tentaram escorraçá-lo, outros ajudá-lo. Levaram-no pra sua casa, numa cidade do
estado do Rio, ele voltou. Levaram-no para um
abrigo, escapou. Moradores, então, tentaram acolhê-lo de forma compartilhada, não se adaptou.
Numa espécie
de exclusão às
avessas. Prova
irrefutável de
que ele vinha de
uma família tão
boa
quanto
aquelas. Ficou
seis meses nesse
vai e vem. Uma
proeza. Eureca,
eca! Deitou na
cama e fez fama!
Cena 3 Bed-in - Amsterdã - Março de
1969 - Toda mídia esperava cenas de sexo explícito, considerando que apareceram nus na capa de seu primeiro álbum. No entanto, os recém-casados, John Lennon e Yoko Ono, encontram-se decorosamente vestidos com imaculados pijamas brancos, sentados
na enorme cama da suíte 902, do Amsterdam Hilton Hotel, da capital holandesa. Enquanto o resto
do quarto é ocupado por flores, cartazes escritos à
mão e por fotógrafos e jornalistas que se espremem
entre câmeras e tripés para ouvir e registrar o que
o casal tem a falar. E assim eles passam sete dias
pregando contra a guerra, clamando por amor e
cantando Give Peace a Chance. Num protesto pací-
fico à la Gandhi. Literalmente fizeram fama e deitaram na cama. Imaginem o big acontecimento!
Inimaginável é como os senhores da guerra, os
maus governantes e dirigentes, os ladrões dos sonhos e do pão de milhares de pessoas conseguem
bater na cama e dormir o sono dos justos. Visão
desesperadora. Maior ainda do que ver um faquir
deitado numa cama cheia de pregos. Como conseguem? O segredo é distribuir o peso (as responsabilidades) do corpo (dos delitos) entre todos os
pregos (comparsas) e deitar de uma vez (sem pôr
a mão na consciência). Mais do que mística, é físiFoto: Ilustração ca. Mais do que
física é política.
Não é política, é
ladroagem. Não
é acaso, é abuso.
Diante dessa
cena só posso
desejar a cada
um dos vampiros bem nutridos que as pulgas de mil camelos infestem seus
lençóis de algodão egípcio e
que não tenham
mãos para se coçarem!
Cena 4 Cama Altar Ítaca - Século VIII a.C. - Cama móvel, imóvel,
móvel irremovível. Eis a cama que Ulisses fez com
as próprias mãos a partir do tronco de uma oliveira enraizada no solo em cujo redor ele ergueu as
paredes do quarto nupcial de seu palácio. E não só
a construiu a adornou com peles, prata, marfim e
ouro. Símbolo de identidade (posto que depois de
uma ausência de 20 anos só é reconhecido pela
esposa ao descrever o leito conjugal) e altar de sua
devoção por Penélope. Admirável um homem
construir a cama com as próprias mãos. Se não com
o suor do próprio rosto. Admirável a mulher bor-
facilidade, estes encontram na insanidade alheia
um passatempo: acompanhar estes infelizes em
seus trajetos pelas ruas da cidade. É assim que acalmo meu ser mostrando para mim mesmo quão distantes elas podem ir enquanto o que chamo de
minha insanidade, no máximo, me leva até a esquina onde elas moram e se divertem zombando,
sem saber, da normalidade.
l Vamos à vida como quem vai de encontro a si
mesmo. E este viajante esbarra no que procura mas
não é capaz de reconhecê-lo. E continua sereno em
sua jornada da mesma forma que um cão persegue o próprio rabo pensando pertencer a outrem.
E depois ainda pede desculpas ao desconhecido.
Mas vamos. Vamos à vida.
l Viver pede mais do que as análises que fazemos diariamente. A vida é uma sucessão de justificativas.
l Quando a liberdade vira uma prisão é sinal
de que uma condenação só não bastou.
l A vida não passa de uma espera por algo que
nunca chegará a tempo. Mesmo assim, existe um
estranho prazer nesses anos de expectativa.
l Em longas filas desordenadas, caminhamos
para o mesmo destino comum: o abismo de nós
mesmos que não tem fim quando atinge a coletividade.
l Uma manhã enlouquecida. Sem marcas, com
nuvens imitando dias claros. A janela deixa entrar
um ar abafado que lembra um verão de impossibilidades. O dia não faz promessas e nem proíbe o
inesperado de se manifestar. Além do mais, a noite é uma certeza que não precisamos ter.
l As ausências são sempre bem-vindas quando
estamos repletos de nós mesmos.
l Abandonar as certezas é o mesmo que renascer órfão.
l Nesta manhã tipicamente outonal, a reflexão
é um anzol sem isca.
l Quando perdi todos os sonhos ganhei a certeza da realidade.
dar os lençóis, o monograma nas fronhas. Se não
escolher com carinho o enxoval. Caprichar na escolha da cama, da roupa de cama, da camisola do
dia, é muito bonito. Mas não é importante. É um
luxo que o amor se dá ao direito. Porque os apaixonados não precisam realmente da cama. Pra eles
qualquer superfície basta no exercício do amor. Não
é necessidade, é desejo.
Cena 5 - Cama Mausoléu - Barcelona - 2008 Mas numa separação a cama é essencial. Seu uso
limitado é muito eloquente. É o termômetro que
melhor mede a temperatura da relação. Palavras
de Pedro Almodóvar ao comentar sobre o seu belíssimo filme A Flor do Meu Segredo. E vale a pena
continuar com ele. Nessa história só há uma grande cena de cama entre os protagonistas Leo e seu
marido, Paco. A cena é assim: Paco acaba de chegar de viagem. Leo leva-o pro quarto ansiosa para
transarem. Ele, não entanto, quer tomar banho. Ela
o espera faminta com a toalha e o coração nas mãos.
Depois do banho ele comunica-lhe que não dispõe
de um dia de licença, mas de apenas duas horas.
Dá-se então uma discussão súbita e brutal que nem
tempestade tropical. Leo ruge de frustração, mas
Paco é militar e diz pra ela: Não tenho de explicar
quais são minhas obrigações! Leo rebate: você é o
meu marido e talvez eu tenha de lhe explicar quais
são suas obrigações comigo! Enquanto Paco se veste, Leo senta na beirada da cama e desfia seu rosário doloroso. Nem percebe que Paco volta ao banheiro e sequer a ouve. A cama muda, enorme,
intacta é a única testemunha do imenso abismo
entre o casal. De altar se transforma num abismo
profundo como o Grand Canyon. E do fundo do
precipício, olha-se o céu. E, se diz, ali eu fui feliz!
Queda dolorosa, visão redentora!
Epílogo - Ia concluir com uma alegoria: Eduardo, Mônica, Gabriel, John, Yoko, Ulisses, Penélope, Paco, Leo, eu, você, eles... Todos no mesmo
barco! Porém, lembrei-me, a tempo, que alguém
disse ser esta o tipo da fala de quem é o dono do
único colete salva-vidas a bordo da canoa furada.
Então, fica o dito pelo não dito!
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Waterloo 200 anos: o que Minas tem com isso?