FORMAÇÃO MÉDICA, RACIONALIDADE E EXPERIÊNCIA: O DISCURSO MÉDICO E O ENSINO DA CLÍNICA Alicia Regina Navarro Dias de Souza Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Ciências da Saúde - Área de Concentração em Psiquiatria, do Curso de Pós-Graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Eustachio Portella Nunes Filho TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM CIÊNCIAS DA SAÚDE - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM PSIQUIATRIA. BANCA EXAMINADORA: Prof. Eustachio Portella Nunes Filho (Presidente da Banca) Prof. Rodolpho Paulo Rocco Profa. Monica Rabello de Castro Prof. Miguel Chalub Prof. Marco Antonio Alves Brasil Profa. Diana Maul de Carvalho Prof. Pedro Gabriel Godinho Delgado Rio de Janeiro, RJ - BRASIL setembro de 1998 SOUZA, Alicia Regina Navarro Dias de Formação médica, racionalidade e experiência: o discurso médico e o ensino da clínica. Rio de Janeiro, UFRJ, IPUB, 1998. xiv, 290 f. Tese: Doutorado em Medicina (Psiquiatria) 2 1. Psicologia Médica 2. Formação médica Racionalidade e experiência clínicas 5. Teses I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPUB. II. Título 3. Discurso médico 4. Para minha mãe. Agradecimentos Esta tese teve três interlocutores fundamentais. Prof. Eustachio Portella Nunes, meu orientador, Dr. Horus Vital Brazil e Profa. Monica Rabello de Castro. Agradeço a eles a generosa troca de idéias e a acolhida respeitosa, carinhosa e solidária que implicou, inclusive, o compartilhar a ausência presente de minha mãe, Circe Navarro Vital Brazil, que orientou os primeiros passos deste trabalho. Aos alunos e professores que comigo se aventuraram nas Reflexões, em especial os sujeitos da pesquisa, pela estimulante troca de palavras, pelo prazer na experiência compartilhada. Aos colegas do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental/HUCFFº, em especial Sergio, Lucia, Munira, Pedro Gabriel, Liana e Marco Antônio que resistem e insistem no inquieto e desconfortável ofício que tentamos cotidianamente realizar. A eles não só por existirem, mas também por terem por mim trabalhado enquanto eu desenvolvia este trabalho. A meu filho Pablo e a Margarida, que sem sua tolerante, carinhosa e efetiva presença não teria sido possível realizar este trabalho. A amiga Sylvia e tia Carmen, cuja presença nestes últimos anos não tenho palavras para agradecer. A meu pai, Liana, Aglaé, Rosalia e todos da família pela comprensão, apoio e torcida. As amigas Rachel, Luciana, Munira e Aurea, cujas trocas foram importantes nos caminhos e descaminhos que construiram minhas escolhas. A Elvira, Diana, Brasil, Sonia, Edelyn, Ione e Celia Therezinha pela disponibilidade amiga, leitura atenta e sugestões realizadas. A Marilia pela cuidadosa leitura de minha aventura na escrita. A Katia e Suely, cuja inestimável ajuda possibilitou meu convívio tão íntimo e harmonioso com meu computador. A todos amigos, enfim, que ora suportaram minha ausência, ora meu monotema, ora minhas aflições, pela paciência e carinho. RESUMO Esta tese pretende discutir a formação clinica, associando um método de pesquisa a uma experiência pedagógica, ao reunir em um grupo de reflexão, organizado em torno do questionamento da prática clínica, alunos na fase inicial do ciclo clínico, um professor de Clínica Médica e um professor de Psicologia Médica. Para situar, inicialmente, as coerções do discurso a que estão submetidos os sujeitos em nossa pesquisa, apresentamos a racionalidade anátomo-clínica e o poder disciplinar que, na análise de Foucault, informa e conforma o discurso do saber no sistema institucional da medicina. A investigação de argumentos no processo de apropriação do discurso médico, usando a Teoria da Argumentação de Perelman, nos possibilitou melhor compreender a formação de uma identidade profissional ao valorizarmos que é na linguagem e pela linguagem que o aluno estrutura a experiência e constitui, para além de um olhar anátomo-clínico, uma perspectiva com a qual exercerá a prática médica. 3 Pelo isolamento de temas na análise do discurso, nos referindo ao princípio dialógico de Bakhtin, pudemos descobrir o valor operatório dos conceitos psicanalíticos para a interpretação do sentido e chegar a interpretações que, sem pretenderem ser únicas ou exclusivas, enriquecem a nossa crítica e podem influenciar a formação dos médicos em uma prática extremamente complexa e difícil, mantendo a tensão doente/doença e se opondo à redução da prática clínica a uma aplicação de um saber exclusivamente sobre a doença. SUMMARY This thesis intends to discuss the transmission of clinical knowledge to medical students, at the time of the medical course when they are introduced to their practice in internal medicine. A pedagogical experience in association to a method of research was created by the organization of a discussion group, that brought together medical students and two professors, one of Internal Medicine and another of Medical Psychology. To distinguish relationships of communication from power relations, that submits the subjects of our research by means of language or any other symbolic system, we used Foucault’s analytic theory of disciplinary power that structures the transmission of medical knowledge. This structure of power relations constitutes the discourse of knowledge in the institutional system of medical practice and medical education based on an anatomic-clinical perspective, which tends to be dominant in medical education reducing medical knowledge to knowledge about the disease. By using Perelman’s theory of argumentation we searched for the different arguments in the process of transmission of knowledge in the teaching of clinical practice, which led us to a better understanding on the formation of a professional identity by the medical discourse. It is in language and by language as an effective symbolic system that medical students organize knowledge about their practice, and this knowledge becomes structured, in our critical pedagogical experience, beyond an anatomic-clinical gaze and could acquire a new and more inclusive perspective referred to the patient. In the analysis of the discourse in our discussion group we isolated themes using the dialogic principle of Bakhtin, and could apply the operational value of psychoanalytic concepts to the interpretation and deconstruction of meanings. The resulting interpretations in our pedagogical experience - which cannot be said unique or exclusive - shows how this experience can contribute to a critical analysis in maintaining the tension and the production of knowledge between diseased and disease, and can furthermore influence medical formation in a highly complex practice by its opposition to any reductive thinking of an exclusive knowledge about pathology and disease. SUMÁRIO Introdução 1 1. A medicina moderna e a ordem do discurso n A racionalidade anátomo-clínica n O discurso médico numa prática institucionalizada 13 16 25 2. Psicanálise e medicina n Sobre a interseção entre psicanálise e medicina n Sobre o ensino da Psicologia Médica e a formação médica n A transmissão na formação clínica 33 34 47 55 3. A razão argumentativa na análise de discurso n As premissas da Nova Retórica n Reflexão crítica e formação clínica 67 70 82 4. A pesquisa: a tensão estruturante doente/doença n Contexto institucional n Procedimentos metodológicos n Os quatro temas 89 89 93 105 4 n n n n O sofrimento psíquico O corpo erotizado A identidade técnica A experiência de sujeição 108 127 137 157 Considerações finais Bibliografia 180 185 Anexos n Programa da disciplina de escolha condicionada Reflexão sobre a Prática Médica n Corpus de análise 199 200 202 INTRODUÇÃO Quem se aventura na experiência de sofrimento inerente à doença, ao risco de perda da saúde e da vida, ao limite da morte, se defronta com o desamparo inevitável da condição humana. De imediato buscamos lidar com esse desamparo pelo alívio do sofrimento. O conhecimento surge logo em cena, não raro como um Deus protético a nos salvar. E, na experiência de sustentar a promessa de cura, aparecem graves e grandes problemas quando descobrimos que o conhecimento não é todo-poderoso, o sujeito que o produz, ou dele lança mão, tampouco o é e o desamparo, a angústia da incerteza são raramente suportáveis. Não é preciso ser médico, estudante de medicina ou profissional da área da saúde para saber de que experiência de desamparo, angústia, frustração e sofrimento estamos falando. Mas, sem dúvi da, os profissionais que buscam conhecimento e exercem seu ofício nesse campo da saúde se defrontam, cotidianamente, com essa promessa, muitas vezes insustentável, por estarem inseridos nesse cenário de exigências impossíveis. O campo da prática médica envolve a todos nós. Nos seus limites fascina e aterroriza e, pelo menos, inquieta o suficiente para que tantos pensem sobre ele. Discursos e mais discursos são produzidos sobre a saúde e a doença, a vida e a morte e suas experiências de enfrentamento pelo homem, e neles, raramente, se excluem os médicos como atores desta cena. No campo da produção de saber, filósofos, escritores, psicanalistas, antropólogos, sociólogos e também médicos estão entre os autores desse mar de produção discursiva, de argumentos e contra-argumentos, e se debatem numa retórica que, não podendo ser exaustiva, pretende apreender os temas centrais associados à vida e à morte. As questões são tão demasiadamente humanas, e por isso mesmo muito relevantes e candentes, que até se poderia interrogar: quem é silenciado nessa produção discursiva? Como nos diz Foucault: “nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens - sejam elas racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas - um sentido que nos domina tomou corpo, conduz nossa cegueira, mas espera, na obscuridade, nossa tomada de consciência, para vir à luz e pôr-se a falar. Estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito” (FOUCAULT, 1977a, p.XIV-XV). Para construir este discurso, uma tese de doutoramento, é preciso dizer de uma trajetória na qual ouvi uma parte do que já foi dito, construí e reconstruí inquietações, compartilhei muitas perplexidades, troquei algumas perguntas e encontrei poucas soluções. * * * Pensando sobre a minha experiência como médica, psicanalista, professora de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina/UFRJ, diria que venho experimentando um 5 crescente mal-estar - que aliás compartilho com alguns dos meus colegas - que se refere tanto à atividade docente que realizamos com os alunos de graduação como à atividade docenteassistencial quando, ao sermos chamados pelos médicos que prestam assistência a pacientes internados, participamos da prática médica como é exercida no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFFº)/UFRJ. Há cerca de 18 anos, parecerista1 praticamente das mesmas enfermarias de Clínica Médica, observamos que, inicialmente, com bem maior freqüência, havia um misto de curiosidade e apreensão nos encontros com estudantes e médicos que nos chamavam para discutir alguma situação clínica. Não raro os médicos responsáveis pelas enfermarias que nos recebiam eram professores ou médicos com tarefas docente-assistenciais, já com alguns anos de trabalho. Hoje somos predominantemente chamados e recebidos pelos médicos residentes. Anteriormente, quando chegávamos à enfermaria, de um modo geral, os médicos sabiam mais sobre seus pacientes e, portanto, estavam mais sabidamente implicados na relação com estes, o que também se refletia na apreensão e na curiosidade quanto ao que teríamos a dizer. Éramos vistos como profissionais que detinham um conhecimento sobre os “mistérios da alma humana”; representávamos, de certa forma, a presença do estranho, do insólito do qual médicos e estudantes se aproximavam com curiosidade e receio. Nos últimos anos, parece que fomos neutralizados na posição de especialistas. Especialistas em pacientes com “alteração de comportamento”, "depressão", "ansiedade" - expressões freqüentemente usadas nos pedidos de parecer - e, supostamente, especialistas em sofrimento quando, nos pareceres, nos solicitam um "acompanhamento do paciente" após fazer referência a uma situação clínica que implica ameaça, limitações, enfim, sofrimento. Somos predominantemente vistos como os psiquiatras de hospital geral, os quais detêm um olhar sobre as reações de pacientes como algo em termos do normal e do patológico, portanto, diagnósticos a fazer, tratamentos especializados a instituir. Mas, sobretudo, registraríamos a redução de uma tensão produtiva nos nossos encontros com estudantes e médicos na cena clínica. O mal-estar passou a ser outro: o nosso mal-estar, nos levando inclusive a nos perguntar sobre a nossa participação nessa mudança. Para ilustrar esse mal-estar, relataremos uma situação clínica, onde poderemos apreciar as vicissitudes, os limites e as possibilidades de termos um diálogo produtivo numa prática institucionalizada, a partir de uma demanda impossível de ser pensada no modelo médico estrito. Um paciente de 14 anos apresentou um quadro de mielite transversa de origem infecciosa e se encontrava internado no CTI há cerca de três semanas. De um estado gripal evoluiu rapidamente para uma tetraplegia. Lúcido todo o tempo, no entanto, não podia falar por estar traqueostomizado. Ao ser possível retirar a assistência ventilatória nos chamaram ao CTI. Como de hábito conversamos com a equipe antes de nos dirigirmos ao paciente e, dessa vez, tivemos a oportunidade de encontrar a equipe da rotina do CTI reunida ao redor de uma mesa discutindo casos. Após relatar as informações acima a equipe acrescentou o prognóstico: não sabiam o quanto o paciente poderia se recuperar do quadro neurológico. Ao perguntarmos o que havia sido dito ao paciente sobre seu estado, a resposta foi “nada”. Rapidamente um outro médico complementou a resposta dizendo que ali não se tem muito tempo para conversar com os pacientes. Perguntados por que nos chamaram, dizem que, na verdade, todos os pacientes do CTI precisariam de um atendimento nosso, embora eles não nos chamem, não sabem porquê. Mas como esse paciente tem 14 anos, é muito jovem, a equipe ficou com “pena”. É importante frisar que o diálogo não se passa de forma tão sintética e direta como apresentado aqui, pois se assim fosse não ouviríamos muito mais do que o escrito no pedido de parecer. Perguntamos mais uma vez por que não haviam conversado com o paciente, e a resposta é que essa é uma atitude habitual da equipe. Eles não costumam conversar com os pacientes, nem mesmo comunicar o que se passa clinicamente com eles. 1 Parecerista - denominação usada para designar o médico especialista que é chamado pelo médico assistente a dar um parecer sobre um paciente internado em enfermaria clínica ou cirúrgica sob sua responsabilidade. 6 A cânula de traqueostomia já era fina o suficiente de forma a permitir que se entendesse, com algum esforço, o que o paciente falava. Começamos perguntando como ele se sentia. O paciente nos olhava atentamente e nada dizia. Desdobramos a pergunta em perguntas que podiam ser respondidas por apenas sim ou não. Você sente alguma dor? Algum desconforto? E o paciente respondeu que não. Você sabe onde está? Sua família tem podido vir aqui? Quem tem vindo vê-lo? Etc. O paciente foi nos respondendo e, após um certo tempo, as respostas não mais se resumiam a sim ou não. Falou-nos de sua família, falou-nos da escola, do seu trabalho num supermercado e ao falar dos amigos e do que gosta de fazer - jogar futebol, videogame - começou a chorar. Acolhemos seu choro e em seguida dissemos que devia estar difícil para ele de repente se ver num hospital, precisando de tantos cuidados, sem poder viver os seus dias como antes. Pôde então perguntar. Perguntou quando ia sair dali. Falamos que breve ele deveria sair do CTI para uma enfermaria e, não sabíamos bem, mas seria necessário ficar mais algum tempo no hospital. Perguntou se podia comer. Começou a sorrir e a dizer o que tinha vontade de comer. Sua dieta era restrita e não sabíamos exatamente o que era possível e o que havia de disponível. A partir dessa demanda do paciente voltamos à equipe. Relatamos o que ouvíramos do paciente, o que se passou no nosso diálogo. Eles ouviram atentamente. A impressão que tínhamos é de que estávamos apresentando a pessoa do paciente a seus médicos, não no sentido de apresentar uma história da pessoa do paciente mas, sobretudo, no sentido de poder mostrar que o paciente, ao falar, não transmitia um estado de desespero inominável, tampouco fazia exigências ou experimentava um ódio, que poderia ser dirigido à equipe, em função de seu estado. O paciente, diríamos, não expressava uma demanda impossível. Conseguimos que um médico viesse estar com ele, alimentá-lo, mas é importante que se diga havia uma preocupação ligada ao risco de ele engasgar e aspirar. Se tivéssemos chegado há pouco tempo nesse hospital geral universitário poderíamos concluir apressadamente que, no CTI, a gravidade e a transitoriedade da relação médico-paciente, restrita àquele contexto, parecem determinar uma função médica restrita a intervenções sobre um corpo para salvar uma vida. A pouca idade do paciente talvez seja um dos poucos fatores que legitimam a preocupação do médico que se volta para uma vida e uma morte significadas. O CTI é, sem dúvida, um contexto da prática médica onde facilmente nos defrontamos com o preço a pagar pelo progresso tecnológico e a instrumentalização do ato médico e, não raro, concordamos que esse é um mal necessário. Mas um médico de CTI não pode dedicar um pouco do seu tempo para conversar com um paciente lúcido com quem ele convive há três semanas? E agora que ele, após um trabalho médico, volta a poder falar, fato que não passa despercebido pela equipe, que então chama a Psicologia Médica, somos nós que devemos conversar com o paciente? Qual é a função de um médico junto a um paciente? Qual é a função de um profissional de Psicologia Médica junto aos médicos e seus pacientes? Como compreender a demanda dos médicos dirigida ao profissional de Psicologia Médica? Poderiam argumentar que escolhemos uma situação médica muito adversa num contexto de CTI. Até certo ponto é um bom argumento, o CTI tem particularidades, mas o que experimentamos na nossa atividade docente-assistencial nas enfermarias de Clínica Médica, como dissemos, não nos tranqüiliza, pois não está muito distante desse exemplo e traz o mesmo questionamento da relação médico-paciente e da função do profissional de Psicologia Médica. Mas o objeto da Psicologia Médica não é o campo dinâmico da relação médico-paciente? Não é sobre esse campo que precipuamente os seus profissionais detêm um conhecimento específico, não podendo, é claro, negar a sua função como psiquiatras, quando também o são, até porque freqüentemente são os mesmos a exercer essa função no hospital? E assim considerando, o que nos foi possível fazer? Compreendemos que a falta de tempo dos médicos do CTI ao longo de três semanas é uma racionalização. A negação da existência da pessoa do paciente, reduzida a um corpo, que parece ter predominado até sermos chamados, está presente de forma conflitiva, como a nossa presença testemunha. O sentimento de pena mobilizado pela idade e situação clínica do paciente pôde ser experimentado, e redundou numa ação que é uma busca de alívio para o conflito: caberia ao profissional de Psicologia Médica saber sobre o sofrimento e lidar com o sofrimento do doente? E aos médicos o que caberia? Portadores de um saber eficaz que salvou uma vida, mas a salvou para um projeto de vida muito provavelmente 7 limitado pelas seqüelas neurológicas, o que suscita pena em relação ao paciente, os médicos estariam vivendo a angústia em relação à potência limitada desse conhecimento, angústia que só pode ser vivida se a função médica tem seu sentido na resposta ao sofrimento de um doente, o que indica um para além do valor de eficácia de um saber. Podemos supor uma realização, no ato médico, restrita à aplicação de um conhecimento sobre a doença, com a obtenção de resultados no nível estritamente biológico, corporal pois, evidentemente, o exercício de um saber traz alguma realização narcísica, mas... e o paciente? Foi silenciado e tornou-se para o médico uma existência quase virtual às custas de uma negação tão eficiente? Sabemos que algumas pessoas podem, por razões de sua estrutura defensiva, ser capazes de tão eficiente negação. Sabemos também que a prática clínica implica um sofrimento que requer alguma estruturação defensiva por parte dos médicos. Sabemos que os grupos têm uma dinâmica. Mas nada disso dá conta da presença de um determinismo de outra ordem, que opera no discurso e no exercício da prática social da medicina. A prática médica é uma prática social, onde médicos e pacientes se relacionam em um campo de significações e valores, o qual exige a interpretação do sentido. Voltando à cena da situação clínica, sentimos uma satisfação em poder promover um encontro mesmo que singelo, pretendendo mostrar ao médico que o paciente não estava desesperado, apesar de tudo que vem passando, ao nível do corpo e das relações com os médicos e que, portanto, o médico não seria posto contra a parede, nem teria de dizer o prognóstico pessimista. O paciente não estava revoltado com a equipe e, portanto, o médico não ia ser alvo de uma agressão violenta, da qual talvez tivesse dificuldades para se defender, porque apesar de parecerem conseguir negar eficientemente a pessoa do paciente, não raro os médicos experimentam culpa pelos resultados insatisfatórios do tratamento e pela relação impessoal, de pouco amparo e conforto para o paciente. Passamos, então, à ação, e avaliamos essa ação como sendo limitada à singeleza de uma simples apresentação, pois não nos pareceu possível explicitar a nossa compreensão do que se passava na relação médico-paciente, o que nos fez sair de cena com o nosso mal-estar. Dois dias depois voltamos e uma outra equipe assumiu o paciente que fora transferido para a enfermaria de Neurologia. O que fizemos pelo paciente, na continuidade do atendimento na enfermaria até sua alta hospitalar, nos parece, dependeu, mais essencialmente, de uma disponibilidade subjetiva. O que não quer dizer que não tenhamos lançado mão de algum conhecimento, seja de psicopatologia, psicofarmacologia ou psicanálise, que nos permitiu diagnosticar a ausência de uma reação patológica por parte do paciente, a não necessidade de prescrever psicotrópicos e, também, a não pretensão de uma intervenção psicoterápica sem que houvesse demanda para tal. Qual foi nossa ação terapêutica? Permanecemos acompanhando o paciente, atentos à sua demanda de uma psicoterapia de apoio, se importa nomear, a ele e à sua mãe, bastante presente na enfermaria; e uma intermediação na comunicação entre médicos/paciente/família, sendo agora o cenário a enfermaria de Neurologia, onde também os jovens neurologistas pouco conversavam espontaneamente com eles. Enfim, com relação ao paciente e sua mãe não realizamos nada que nos pareça fora da função de um médico, se podemos considerar a função psicoterápica presente em qualquer relação que se pretenda terapêutica. Estaríamos então sendo convocados a realizar uma dimensão da função médica? Como compreender a demanda dos médicos? Como os médicos compreendem a sua função e a função de um profissional de Psicologia Médica? Como não podemos situar a nossa questão no âmbito do verdadeiro ou falso, nem estamos à procura do que seria o certo ou o errado, mas do razoável no exercício de uma prática na qual conflitam valores, opiniões, que implicam inclusive uma ética, nos parece necessário investigar os argumentos, a lógica dos valores no campo da prática clínica como ela se realiza num hospital geral universitário. Seria razoável pensar que, se convivêssemos diariamente com as equipes de rotina, inclusive a do CTI, poderíamos ter um diálogo mais íntimo com os médicos. Isso propiciaria talvez maior explicitação dos conflitos da relação dos médicos com os pacientes, o que poderia repercutir nas suas possibilidades de exercer a função médica junto aos pacientes. Mas assim estaríamos postulando a presença de um profissional de Psicologia Médica em cada enfermaria. Há quem considere que essa deva ser a proposta de exercício de uma prática em Psicologia Médica. Para nós não. A nós esta proposta implica uma psicologização indevida da prática médica, pois essa não é uma demanda dos médicos nem dos pacientes, os principais atores 8 sociais dessa prática. Os pacientes querem ter seus médicos, querem ser vistos por eles como pessoas, querem se sentir tratados, amparados e, às vezes, nem exigem muito no sentido de serem compreendidos na sua singularidade. E os médicos o que querem e o que podem querer os médicos? Parece-nos que há algo que ultrapassa o campo da transferência, embora nele se inscreva, a determinar a atitude dos médicos. Não há espaço de legitimidade para se discutir a subjetividade, entendida como os sentimentos despertados na relação com o paciente, que estariam presentes e interferindo na realização do ato médico e definindo o campo da transferência. Aliás não há nem mesmo o reconhecimento e, por conseqüência, um espaço de legitimidade para se discutir a clínica enquanto um campo intersubjetivo onde a subjetividade opera pela interpretação. Ao usarmos concepções como angústia, conflito, defesas, transferência/ resistência, poderíamos optar por pretender realizar uma relação terapêutica com o paciente por uma prática interpretativa de descoberta do recalcado; e com os médicos, dependendo de sua demanda singular em cada situação clínica, faríamos o possível para esclarecer e informar uma posição subjetiva. O campo da transferência se centraria na relação profissional de Psicologia Médica/paciente e não na relação médico/paciente. Essa é uma proposta que, a nosso ver, carreia mais problemas que soluções, pois implica uma psicologização da prática médica e o aumento e institucionalização do conhecido fosso corpo/mente, médicos do corpo/médicos ou profissionais da mente, etc. Como profissionais da clínica, concordamos com Clavreul e vários outros psicanalistas, que a clinica psicanalítica e a clinica médica, embora entrem muitas vezes em interseção, são ofícios completamente opostos, assim como é inconciliável pretender desenvolver o ofício psicanalítico na ordem médica. Os psicanalistas, profissionais de Psicologia Médica, deveriam, portanto, voltar à sua profissão de base, médicos psiquiatras ou psicólogos, e exercer uma prática compatível com a ordem médica? Ficamos pensando... E o mal-estar? E a crise da prática médica? Reformista, cooptada pela ordem médica, enfim sob o risco de ver-me seriamente criticada pelos psicanalistas, mas não aceitando ser reduzida à função de psiquiatra especialista e não podendo reduzir-me ao silêncio enquanto escuto um grito parado no ar, resolvi arriscar-me. Não era marinheira de primeira viagem, afinal já havia coordenado um “grupo de arrisco” nomeação dada ao grupo por um médico que dele participou - quando trabalhei com profissionais da equipe de saúde na reflexão da prática assistencial a pacientes com AIDS (SOUZA, 1989). Mas quem, desta vez, se arriscaria comigo? Na década de 90, a direção da Faculdade de Medicina lidera um processo de reforma curricular, que será oportunamente mais detalhado, levando à maior participação de professores de Psicologia Médica ao longo do curso médico, especialmente através de sua participação em PCIs (Programa Curricular Interdepartamental) clínicos, em atividades conjuntas com professores do Departamento de Clínica Médica. Nesse momento e contexto institucionais, escolhemos, para a construção desta tese, investigar uma contribuição possível à formação médica. Era possível redirecionar a pergunta a partir do mal-estar: como compreender a demanda de estudantes de medicina? O que querem e o que podem querer estudantes de medicina no aprendizado da clínica, orientados pelos seus ideais do que seja ser médico e pelos modelos de identificação que seus professores oferecem ao realizar a prática médica no hospital geral universitário HUCFFº? * * * Iniciaremos este trabalho com Foucault para falar da racionalidade da medicina moderna, a racionalidade anátomo-clínica. A medicina moderna se esteia na racionalidade anátomo-clínica, ou seja, ela explica pela fisiopatologia e pela anatomia patológica, referidas às ciências básicas, os mecanismos patogênicos, revelando ao médico evidências nas quais ele se apóia como o conhecimento possível a informar suas escolhas na clínica. Mas a prática clínica está para além das evidências anátomo e fisiopatológicas, na medida em que a singularidade da expressão das doenças por um corpo biológico, cujo "dono" também se expressa e, ao se expressar, também o 9 expressa e o transforma num corpo simbólico, está a solicitar do médico observação, decodificação e interpretação. Na atualidade, a epidemiologia clínica, reconhecendo a incerteza no exercício da clínica, pretende fazer “uma ciência da arte médica” (SACKETT e cols, 1994). É no campo controverso da “medicina baseada em evidência” (evidence-based medicine) que os médicos buscam resolver a “discrepância clínica”, ou seja, a inconsistência entre observações de dois ou mais médicos ou de um mesmo médico repetidas em dois momentos distintos, o que nos indica o limite da objetividade na prática clínica. A nosso ver, a clínica traz ao médico a tensão subjetividade/objetividade, singularidade/universalidade, doente/doença, as tensões inevitáveis dentro das quais o difícil ato médico se produz, considerando-se a oposição inclusiva entre esses pares antinômicos. Em seguida, trabalharemos também com Foucault para pensar o discurso médico como expressão da microfísica da equação saber/poder, tomando o discurso no seu nível estratégico e polêmico numa prática institucional. No 2º capítulo, a partir da psicanálise e de sua postulação central de um inconsciente dinâmico, consideraremos a condição do sujeito do conhecimento/desconhecimento, ou seja, um sujeito cindido na sua constituição, que não pode pretender nem o conhecimento do real em si, nem mesmo que um campo de conhecimento possa constituir toda a verdade sobre uma problemática. Um sujeito que é a cada instante fundado e refundado na intersubjetividade e na história. O psicanalista, profissional que na clínica convive com a incerteza e o desamparo, tem a possibilidade indiciária de perceber gritos, sussurros que paredes pretendem encerrar, e os facilita acontecer ao pé de uma parede aparentemente sem porta. Drummond, solidário na solidão dos psicanalistas, pôde ouvir de um anjo a inexorabilidade de sua transgressão: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”. É a partir dessa perspectiva que pretendemos fazer uma contribuição à formação e prática médicas, à centralidade do ofício médico: a clínica. Associando um método de pesquisa a uma experiência pedagógica no campo da psicanálise em extensão, escolhemos nos centrar no aprendizado da clínica, no plano discursivo onde surgem as perplexidades e o questionamento a partir das expectativas do desejo, sendo os sujeitos da pesquisa estudantes de medicina na sua primeira fase do ciclo clínico, alguns professores de Clínica Médica e a pesquisadora, pela sua implicação no desenho da pesquisa. No 3º capítulo apresentaremos a Teoria da Argumentação ou a Nova Retórica de Chaïm Perelman, que também nos respaldou e orientou na complexa discussão razão/emoção, objetividade/subjetividade. Perelman, com sua teoria da argumentação, suas noções de auditório, objetos de acordos referidos a premissas e sua tipologia de argumentos e técnicas argumentativas, forneceu não só um instrumento para realizarmos a análise de discurso no seu nível estratégico, mas também consubstanciou o referencial teórico-metodológico de nossa pesquisa em articulação com a psicanálise e o pensamento crítico de Foucault. No 4º capítulo apresentaremos a pesquisa realizada. Iniciaremos situando o contexto institucional que possibilitou as experiências de ensino e pesquisa empreendidas, em seguida detalharemos sua metodologia para, por fim, expormos a análise de discurso do material em quatro subtemas relacionados ao tema central: a tensão doente/doença na reflexão de alunos e médicos no exercício do ensino/aprendizagem da clínica. No 5º e último capítulo, as conclusões parciais e temporárias que o trabalho acadêmico nos exige. A MEDICINA MODERNA E A ORDEM DO DISCURSO “O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, 10 uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz.’ E a instituição responde: ‘Você não tem porque temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém." Michel Foucault, A Ordem do Discurso A produção de discursos numa sociedade é historicamente situada e, ainda, organizada e controlada mediante procedimentos, como bem foram investigados por Foucault em sua obra A Ordem do Discurso. Ao nos falar dos procedimentos - “os rituais da palavra, as sociedades de discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais” - que dizem respeito às condições de funcionamento dos discursos, ou seja, às exigências impostas aos indivíduos que, portanto, selecionam aqueles que têm acesso a um determinado discurso, Foucault nos diz que esses são “os grandes procedimentos de sujeição do discurso” (FOUCAULT, 1996a, p.44). O discurso médico, por exemplo, não pode ser dissociado da prática de “rituais da palavra” que está a determinar, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos para os sujeitos que falam. Nesse sentido, o ritual não só prescreve a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam, mas também define todo o conjunto de signos que deve acompanhar o discurso como gestos, comportamentos e circunstâncias. Estabelece, pode-se dizer, leis do discurso com relação ao fato mesmo da enunciação e ao conteúdo e forma do enunciado. Por exemplo, numa situação de diálogo, só exerce o ato de interrogar quem tem o poder de interrogar e, ainda, não poderá interrogar qualquer coisa. Os “rituais da palavra” influenciam, ainda, a eficácia suposta das palavras em termos de seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem. O ato de tomar a palavra não é, de fato, nem um ato livre nem gratuito. Certas condições devem ser preenchidas para que determinado sujeito tenha o direito de falar e de falar desta ou daquela maneira, deste ou daquele assunto, num determinado contexto. E tão pouco é gratuito, pois toda a fala deve se apresentar como motivada, como resposta a algo ou visando a certas finalidades. Diferenciando o discurso dos médicos do discurso da medicina, destacaríamos, no primeiro, seu aspecto de pertinência doutrinária, que coloca em questionamento, ao mesmo tempo, o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro. O sujeito que fala é questionado através e a partir do enunciado que ele profere. Já o discurso da medicina, enquanto “disciplina” científica, teria procedimentos de controle discursivo referidos apenas à forma ou ao conteúdo do enunciado e não ao sujeito que fala. Sistema anônimo à disposição de quem possa se servir dele, o discurso da medicina não constitui tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença, pois a medicina como uma “disciplina” se define por “um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos” (FOUCAULT, 1996a, p.30). No entanto, Foucault adverte que o sistema institucional da medicina e, ainda, qualquer sistema de ensino são sistemas de sujeição do discurso, onde os quatro grandes procedimentos citados se encontram articulados, justo para garantir a distribuição e apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. Como ele nos diz: “O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?” (FOUCAULT, 1996a, p.44-45) Esses procedimentos articulados como um conjunto de relações de expressão, os quais têm um poder determinativo, senão coercitivo, no diálogo, indicam o valor da retórica e da razão argumentativa no estabelecimento dos grupos de discussão como está proposto em nossa 11 pesquisa, possibilitando expor as perplexidades, as antinomias e os conflitos produzidos por um saber sempre parcial, que denuncia a incompletude de qualquer discurso. Para compreender as coerções do discurso a que estão submetidos os sujeitos em nossa pesquisa valorizamos, também, dois momentos da obra de Foucault. Em O Nascimento da Clínica, Foucault investiga a constituição da racionalidade anátomo-clínica que possibilitou a construção do saber médico nas sociedades modernas, saber que tem por objeto a doença ou o indivíduo como corpo doente. Esse saber informa e conforma o discurso dos sujeitos da pesquisa na sua referência de adequação ao discurso da medicina enquanto “disciplina” científica. Num hospital de ensino, nosso campo de pesquisa, o saber médico com sua racionalidade anátomo-clínica é transmitido numa economia discursiva que implica uma “polícia de enunciados” e também um “controle de enunciações”. É a partir dos trabalhos de Foucault em sua fase genealógica, em especial, Vigiar e Punir e História da Sexualidade I, que tentaremos situar a produção discursiva que se dá em nosso campo de pesquisa, quando os sujeitos falam não só conforme uma racionalidade dada por um saber mas também conforme “dispositivos institucionais e estratégias discursivas”, que fazem funcionar “discursos múltiplos, entrecruzados, sutilmente hierarquizados e todos estreitamente articulados em torno de um feixe de relações de poder” (FOUCAULT, 1985, p.32). A Racionalidade Anátomo-clínica As histórias factuais da medicina, desde o século XVIII, vêem a clínica como “um puro e simples exame do indivíduo”, sem se preocupar com a estrutura conceitual específica de cada tempo, experiência e olhar médicos. Para Foucault, a “velhice da clínica” encobre e mascara a complexidade da história e da constituição da experiência e métodos clínicos da medicina moderna, querendo fazer crer que a “pureza da evidência clínica” sempre esteve lá no leito dos doentes de onde, portanto, teria sido possível que “as verdades se elevassem uma a uma” uma vez afastada a especulação dos sistemas e teorias, como se fosse possível o acesso à experiência clínica fora da “ordem arriscada do discurso”. Foucault se contrapõe assim à explicação das histórias factuais da medicina que atribuem a mutação ocorrida em fins do século XVIII à transformação da medicina em uma ciência empírica por simples aproximação progressiva entre o sujeito e o objeto do conhecimento tornando, assim, seu conhecimento científico. Para o autor, a transformação não ocorreu porque, enfim, a medicina moderna pôde encontrar seu objeto, mas se operou ao nível da relação entre aquele que fala e aquilo de que se fala, quando a partir de uma mudança nos planos do visível e do invisível, e sua relação com o enunciável, se operou uma reformulação no próprio saber, expressa na mudança do discurso médico que passa a falar, numa nova linguagem, sobre um outro domínio da experiência médica. Em O Nascimento da Clínica, Foucault realiza uma investigação arqueológica sobre a produção do conhecimento da medicina e a transformação operada na estrutura de sua racionalidade e no domínio de sua experiência. Nessa investigação, a mutação ocorrida no saber médico é articulada às práticas sociais, em especial, à reorganização do ensino, do exercício da profissão médica e da instituição hospitalar. As práticas sociais foram relevantes na estruturação de uma experiência médica coletiva, na qual ensino e assistência se conjugaram e os fatos patológicos passaram a poder ser observados, ao mesmo tempo, na sua condição de acontecimento singular e como parte de uma série no campo hospitalar. Essa reorganização se associa ao desenvolvimento do método clínico, quando o olhar médico não se contenta mais em constatar, mas busca descobrir. Em fins do século XVIII, na passagem da época clássica à modernidade, o objeto do saber médico, a doença, sofre uma reconfiguração saindo do espaço de representação, ideal, taxonômico, superficial, para o espaço concreto, objetivo, profundo do corpo reificado do indivíduo doente. O “olhar em profundidade” que se realiza no conhecimento da anatomia patológica se articula ao “olhar de superfície” da observação da doença, transpondo o olhar médico do espaço ideal das categorias nosográficas da medicina classificatória, ou das espécies, para a espessura e o volume do espaço corporal da medicina anátomo-clínica. 12 No entanto, “a clínica, olhar neutro sobre as manifestações, freqüências e cronologias, preocupada em estabelecer parentesco entre os sintomas e compreender sua linguagem, era, por sua estrutura, estranha a esta investigação dos corpos mudos e atemporais; as causas ou as sedes a deixavam indiferente: história e não geografia” (FOUCAULT, 1977a, p.143-144). Para que a medicina estabelecesse sua racionalidade anátomo-clínica, a clínica precisou encontrar “um novo modo de ler o tempo” e, também, a anatomia patológica, “novas linhas geográficas”. Nesse sentido, operou-se uma “litigiosa estruturação”, não por serem as autópsias proibidas pela religião e a moral como as histórias factuais da medicina nos fazem crer, mas pela dificuldade de articulação de até então dois saberes: a clínica, essencialmente uma leitura temporal de signos, como era compreendida e praticada em fins do século XVIII, e a anatomia patológica. Foi apenas com a anatomia de Bichat e a introdução de sua noção de tecido que foi possível se chegar a um método analítico sobre as formas patológicas gerais acima das repartições geográficas dos órgãos já realizada, há 40 anos, por Morgagni, maior expoente da investigação anátomo-patológica no século XVIII. Assim, Bichat desvela na ordem do corpo a ordem das superfícies, estabelecendo para as doenças um sistema de classes analíticas, onde o tecido como elemento universal, com suas alterações, passa a ser o princípio de generalização das espécies mórbidas. Partindo, portanto, de uma preocupação clínica de definir as “estruturas do parentesco patológico”, aplicando o princípio diacrítico, de que só existe fato patológico comparado, a uma dimensão bem mais complexa, que inclui a história patológica e as alterações do cadáver, a noção de “classe” acabará sendo substituída pela de “sede”, estabelecendo-se o valor de localização do fato patológico como “foco primitivo”, independente da noção de causa, o que leva o olhar médico a buscar verticalmente correlações entre sintomas e lesão. Mas as lesões no cadáver não permitiam distinguir o que se devia a traços da doença do que pertencia à morte. Através da investigação de Bichat, facilitada pela organização hospitalar que propiciava a realização de autópsia imediatamente à morte, essa questão é então trabalhada, quando ele busca distinguir as manifestações contemporâneas da doença das que antecedem a morte. Repartindo a vida, no tempo e no espaço corporal em “formas de morte a varejo”, Bichat integra a morte conceitual e tecnicamente à doença e à vida, levando o pensamento médico a não mais estar de costas para a morte em sua busca de eliminação da doença e restauração da vida, pois “não é porque caiu doente que o homem morre; é fundamentalmente porque pode morrer que o homem adoece” (FOUCAULT, 1977a, p.177). Com o olhar anátomo-clínico, modificações se deram na apreensão do “corpo visível da doença”, levando a semiologia a alterar sua leitura, pois “o signo não fala mais a linguagem natural da doença; só toma forma e valor no interior das interrogações feitas pela investigação médica” (FOUCAULT, 1977a, p.185). A semiologia pode, então, fazer surgir um signo onde não há sintoma ou solicitar uma resposta quando a doença não fala de si mesma. Dessa forma passa a ter um valor relevante um conjunto de técnicas que constitui uma “anatomia patológica projetiva”, na busca de signos patognomônicos que remetem à lesão. O médico passa de uma posição predominante de espectador do espetáculo da doença à posição de alguém que participa na produção do que se mostra. No desenvolvimento dessas técnicas se incorporam o tato e audição enriquecendo os recursos sensoriais na observação e surgem os primeiros instrumentos, como o estetoscópio, cuja mediação técnica iniciam uma semiologia armada. Os sentidos procuram contornar e superar o véu, que é a vida, a encobrir, paradoxalmente, a verdade sobre as doenças. Pois, “a estrutura perceptiva e epistemológica que fundamenta a anatomia clínica, e toda a medicina que dela deriva, é a da invisível visibilidade” (FOUCAULT, 1977a, p.190). “...estranha característica do olhar médico [...] dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; conseqüentemente, para conhecer, ele deve reconhecer”, diz Foucault ao nos falar do olhar médico na medicina das espécies (1977a, p.8). Só nela? 13 Na medicina das espécies, a singularidade, as “histórias particulares” eram creditadas sobretudo aos “temperamentos” dos pacientes, podendo também se dever às influências do meio ou às intervenções terapêuticas que imprimiam “variações qualitativas das qualidades essenciais que caracterizam as doenças” (p.14). Portanto, na medicina da Idade Clássica, constituída apenas pelo “olhar de superfície”, o conflito já se colocava: "Médicos e doentes não estão implicados, de pleno direito, no espaço racional da doença; são tolerados como confusões difíceis de evitar: o paradoxal papel da medicina consiste, sobretudo, em neutralizá-los, em manter entre eles o máximo de distância, para que a configuração ideal da doença, no vazio que se abre entre um e outro, tome forma concreta, livre, totalizada enfim em um quadro imóvel, simultâneo, sem espessura nem segredo, em que o reconhecimento se abre por si mesmo à ordem das essências" (FOUCAULT, 1977a, p.8). Na medicina anátomo-clínica, a possibilidade de variação individual está integrada à própria estrutura da doença, ao seu desenvolvimento na individualidade viva do doente e as singularidades desempenham um papel relevante na leitura diferencial dos casos. Este “invisível das modulações individuais” encontra em descrições qualitativas minuciosas, nuançadas, sua possibilidade de visibilidade, que o descortino anatômico, com a morte, acabará de desvelar. A linguagem médica passa a realizar um “trabalho que faz ver”. Foucault considera a linguagem e a morte decisivas na possibilidade de um saber sobre o indivíduo, enquanto corpo doente. No entanto, para o autor, na idade moderna: "A experiência clínica - esta abertura, que é a primeira na história ocidental, do indivíduo concreto à linguagem da racionalidade, este acontecimento capital da relação do homem consigo mesmo e da linguagem com as coisas - foi logo tomada como um confronto simples, sem conceito, entre um olhar e um rosto, entre um golpe de vista e um corpo mudo, espécie de contato anterior a todo discurso e livre dos embaraços da linguagem, pelo qual dois indivíduos vivos estão "enjaulados" em uma situação comum mas não recíproca" (FOUCAULT, 1977a, p.XIII). Em O Nascimento da Clínica, obra de sua fase arqueológica, o campo de investigações de Foucault é o “saber”, ou seja, a “formação discursiva”, cuja positividade é uma “prática discursiva”, que encerra regras de formação dos objetos, dos modos enunciativos, dos conceitos, dos temas e teorias. Os elementos assim formados se encontram num sistema de relações menos estrito que na ciência. Embora o saber possa dar lugar à ciência, este não é seu destino necessário. Em sua análise arqueológica, o saber está sempre referido a uma “prática discursiva”, que o autor define como: “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1995a, p.136). O saber é, portanto, um domínio onde “o sujeito é necessariamente situado e dependente” e nesse sentido, por exemplo, o saber da medicina clínica define para o sujeito do discurso médico o conjunto das funções de observação, interrogação, decifração, registro, decisão (Cf. FOUCAULT, 1995a, p.206-207). Em sua investigação, Foucault descobre no discurso dos médicos, no século do XIX, a coexistência de enunciados heterogêneos como, por exemplo, descrições qualitativas, narrações 14 biográficas, interpretação e recorte dos signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas estatísticas, verificações experimentais. A diversidade das modalidades enunciativas presentes no discurso clínico são compreendidas, pelo autor, como manifestação de sua dispersão, cuja articulação se dá num sistema de relações estabelecido pela especificidade de uma prática discursiva. Sobre a experiência histórica do nascimento da clínica e, portanto, do discurso clínico da medicina moderna, deixemos Foucault concluir: “a medicina clínica não deve ser tomada como o resultado de uma nova técnica de observação – a da autópsia que era praticada desde muito antes do século XIX; nem como o resultado da pesquisa das causas patogênicas nas profundezas do organismo – Morgagni já o fazia nos meados do século XVIII; nem como o efeito desta nova instituição que era a clínica hospitalar – ela já existia há dezenas de anos na Áustria e na Itália; nem como o resultado da introdução do conceito de tecido no Traité de Membranes, de Bichat. Deve, sim, ser considerada como o relacionamento, no discurso médico, de um certo número de elementos distintos, dos quais uns se referiam ao status dos médicos, outros ao lugar institucional e técnico de onde falavam, outros à sua posição como sujeitos que percebem, observam, descrevem, ensinam, etc. Pode-se dizer que esse relacionamento de elementos diferentes (alguns são novos, outros, preexistentes) é efetuado pelo discurso clínico; é ele, enquanto prática, que instaura entre eles todos um sistema de relações que não é ‘realmente’ dado nem constituído a priori” (FOUCAULT, 1995a, p.60). O conjunto de descrições do discurso clínico não parou de se deslocar com os progressos do conhecimento das ciências básicas que apóiam a clínica e “o médico, pouco a pouco, deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da informação, e porque, ao lado dele, fora dele, constituíram-se massas documentárias, instrumentos de correlação e técnicas de análise que ele tem, certamente, que utilizar, mas que modificam, em relação ao doente, sua posição de sujeito observante” (FOUCAULT, 1995a, p.38). O estarmos "talvez” no “limiar de uma nova medicina” aparece incidentemente nesse contexto da argumentação de Foucault2, o que nos faz pensar na desvalorização da prática clínica como produção de conhecimento sobre as doenças no contexto significativo da relação médico-paciente. Como analisa Madel Luz (1988), o surgimento de uma racionalidade anátomo-clínica, inscrita na racionalidade científica moderna mecanicista e organicista, levou a uma transformação progressiva da medicina no sentido de um “deslocamento epistemológico” de uma arte de curar indivíduos para uma disciplina das doenças, passando a configurar para o médico, na sua prática clínica, uma tensão conflitiva entre o “artesão da cura” e o “cientista da doença”. O cientista da doença está referido a um paradigma analítico que busca o universal através da objetivação da doença. O artesão da cura está referido a um paradigma indiciário, que postula a exigência da interpretação dos dados e a relevância dos fatos singulares na clínica, em referência a um conhecimento construído pela acumulação de experiências singulares e particulares ao diagnosticar e tratar inúmeros pacientes. Esse paradigma indiciário é uma postulação de Ginzburg ao pretender contribuir para a discussão da produção do conhecimento em ciências humanas, tentando ”sair dos incômodos da contraposição entre racionalismo e irracionalismo” (GINZBURG, 1989, p.143). Para esse autor, 2 Por duas vezes surpreendemos a referência pouco explícita desse autor de estarmos “talvez” no limiar de “uma nova experiência da doença” ou de “uma nova medicina”. Cf. Foucault, 1977a, p.XIV e 1995a, p.38, respectivamente. 15 tal paradigma passou a ter expressão a partir do final do século XIX e ele nos mostra, inclusive, como Freud foi reconhecidamente influenciado por ele, como nos ilustra uma passagem em O Moisés de Michelangelo (1914). E o próprio Ginzburg nos fala da importância desse paradigma na medicina: “Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias (incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos, situações e documentos individuais, enquanto individuais, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma margem ineliminável de casualidade; basta pensar no peso das conjeturas (o próprio termo é de origem divinatória) na medicina” (GINZBURG, 1989, p.156) (grifos do autor). A racionalidade anátomo-clínica, que organiza as diferenças dos “casos” individuais na construção da doença enquanto modelo descritivo e explicativo, quando articula o olhar à linguagem, “o olhar loquaz” que investiga e descobre, não pode excluir a questão da interpretação dos sintomas e sua transformação ou não em signos de doença no raciocínio diagnóstico realizado pelo médico na sua prática clínica. Consideramos importante apontar o surgimento recente de um discurso sobre a clínica que pretende fazer “uma ciência da arte médica” ao estabelecer uma racionalidade a partir da articulação dos conhecimentos clínico e epidemiológico sobre as doenças. A epidemiologia clínica, admitindo explicitamente que no exercício da clínica estão presentes “a arte e a ciência”, e entendendo por arte “crenças, juízos, intuições”, pretende formular “os princípios da apreciação crítica da evidência médica”. Ela reconhece “com humildade” que não pretende substituir a arte da medicina, mas contribuir para o “maior rigor científico” da prática clínica que, podendo ser “explicada e ensinada”, libertaria os estudantes e médicos da “velha tirania da arte da medicina não transmissível” (SACKETT e cols., 1994, p.12). A “medicina baseada em evidência”, na condição de um conhecimento recente e de apropriação controversa pelos clínicos, não se faz presente expressivamente em nossa pesquisa, seja no discurso dos professores de Clínica Médica seja no dos alunos. No entanto, seu desenvolvimento crescente e, sobretudo, sua pretensão de maior racionalidade no campo da prática e discurso clínicos justificam, a nosso ver, sua referência. Sackett e colaboradores (1994) apontam, baseados em vários estudos de diversos autores, o que eles denominam “discrepância clínica”, ou seja a inconsistência entre observações quer de dois ou mais médicos (inconsistência interobservador) quer de observações repetidas pelo mesmo médico (inconsistência intraobservador). Esses estudos falam das ambigüidades e incompatibilidades no julgamento clínico, revelando a “discrepância clínica” tanto a cerca de elementos da história clínica como do exame físico, da interpretação de provas diagnósticas e, claro, do diagnóstico formulado e da escolha da conduta terapêutica (Cf. p.38-48). O crescimento exponencial do conhecimento na área médica, sua conseqüente especialização e, ainda, o desenvolvimento acelerado da tecnologia, aumentam as exigências para o médico na realização de suas escolhas e decisões em sua prática clínica. A “medicina baseada em evidência”, pretendendo uma racionalização das decisões médicas, é uma tentativa de resposta que, objetivando uma prática mais útil, eficiente, menos cara e pretensamente mais científica, vem tendo uma penetração privilegiada, mas não sem controvérsias. Entre outros, há um curioso conflito: alguns médicos estão saindo em defesa da arte médica. Estariam se sentindo ameaçados de perder um ideal? Seriam a perda da autonomia de decisão e a questão de ser reduzido a um mero técnico o que está em jogo? É curioso porque se, por um lado, a criação de protocolos, rotinas diagnósticas e terapêuticas diminui a autonomia de decisão dos médicos, por outro, alivia sua responsabilidade. E também é curioso porque afinal seria, entre outros aspectos, apenas mais um movimento de normalização e homogeneização das ações 16 médicas e de seus atores, o que nos confronta com o fato de que os médicos desconhecem o quanto já foram normalizados, o quanto já perderam de autonomia e liberdade de decisão. O Discurso Médico numa Prática Institucionalizada Ao investigar uma prática pedagógica referida ao ensino da clínica, discutindo situações da prática médica num hospital de ensino, não podemos desconsiderar que não só um saber se exerce, mas também um poder normaliza. É em Vigiar e Punir que Foucault investiga e detalha os mecanismos disciplinares como um conjunto de técnicas que visam a sujeição dos indivíduos de forma a que eles se tornem úteis e obedientes, ou melhor, tanto mais úteis quanto mais são obedientes, e inversamente. Nessa investigação, o objeto de estudo para Foucault é a tecnologia disciplinar. O hospital e a escola, como a prisão, nas sociedades modernas, são, para Foucault, apenas exemplos, expressões articuladas de práticas mais gerais que visam disciplinar os indivíduos e as populações. O hospital como a escola são, portanto, parte do que Foucault grosso modo chama “uma sociedade disciplinar”, cuja formação se deu através do desenvolvimento e extensão de mecanismos disciplinares ao longo dos séculos XVII e XVIII, possibilitando que, a partir do início do século XIX, o poder disciplinar passe a operar regularmente através de um: “duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc.)” (FOUCAULT, 1977b, p.176) (grifos nossos). Na análise das práticas sociais do período histórico em que localiza o nascimento da clínica e a constituição do saber médico moderno com sua racionalidade anátomo-clínica, Foucault investiga as transformações pelas quais passaram os hospitais e as escolas médicas. O hospital do século XVII, abrigo para a miséria e a morte próxima, um espaço administrativo e político, aos poucos se articula em espaço terapêutico, mas apenas ao final do século XVIII, passa a formar médicos e produzir conhecimento. “O hospital bem ‘disciplinado’ constituirá o local adequado da ‘disciplina’ médica; esta poderá então perder seu caráter textual e encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de objetos perpetuamente oferecidos ao exame” (FOUCAULT, 1977b, p.166). O saber está sempre articulado ao poder, e na microfísica ou microprática de uma instituição hospitalar e pedagógica vemos o saber médico se articulando ao poder disciplinar, normalizador, cujo alvo não se limita aos pacientes, mas também aos estudantes e médicos, cujas técnicas servem como instrumento essencial na realização de seus fins institucionais determinados. Com “o jogo moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os comportamentos” (FOUCAULT, 1977b, p.170), o poder disciplinar pretende a homogeneização, a normalização e, nesse sentido, as diferenças individuais são, para ele, não só pertinentes como úteis. Através do esquadrinhamento das diferenças individuais e de seu controle efetua-se o “poder da Norma”. Ao longo do século XVIII, na Alemanha, os médicos foram os primeiros indivíduos a serem normalizados: “Um fenômeno importante de normalização da prática e do saber médicos. Procura-se deixar às universidades e sobretudo à própria corporação dos médicos o encargo de decidir em que consistirá a 17 formação médica e como serão atribuídos os diplomas. Aparece a idéia de uma normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas. A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico” (FOUCAULT, 1986, p.83) (grifos nossos). Os instrumentos principais da tecnologia disciplinar são a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Detalharemos essas técnicas pois elas constituem um pressuposto teórico que enriquecerá a análise do material de nossa pesquisa. A vigilância hierárquica se constitui num jogo de olhares que se efetua na rede de relações múltiplas e entrecruzadas, mesmo quando sua organização possui uma forma piramidal, como num hospital de ensino, de forma que se instituem “fiscais perpetuamente fiscalizados”. Os efeitos de poder da vigilância hierarquizada se realizam de forma integrada, ou seja, ela se insere na essência da prática seja, por exemplo, do ensino ou da produção, como um mecanismo que, tornando-se inerente a essa prática, multiplica sua eficiência. O poder disciplinar estabelece um campo de “micropenalidades” que se refere à inobservância ou inadequação com relação a regras, portanto, a desvios, enfim ao “campo indefinido do não-conforme”. As sanções normalizadoras na investigação de Foucault incidem, principalmente, sobre o uso do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), sobre aspectos do como se realiza a atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), sobre a maneira de ser (grosseria, desobediência), sobre os discursos (tagarelice, insolência), sobre o corpo (atitudes “incorretas”, gestos não-conformes, sujeira) e sobre a sexualidade (imodéstia, indecência) (Cf. FOUCAULT, 1977b, p.159-160). Sobre a maneira de punir, para Foucault, as disciplinas inventaram um novo funcionamento punitivo, através de cinco operações, que realiza o poder da Norma: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto; diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros; medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos (a escola, em especial, desenvolveu particularmente esse recurso); fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de uma conformidade a realizar; traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (Cf. FOUCAULT, 1977b, p.164). “Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor.” (grifos nossos) [...] “A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (grifos do autor) (FOUCAULT, 1977b, p.162-163). A terceira técnica que Foucault descreve é o exame. O exame, num hospital de ensino, se refere tanto aos pacientes como aos profissionais que nele trabalham, em especial os alunos num processo de ensino. Sendo um procedimento “altamente ritualizado, nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade” (FOUCAULT, 1977b, p.164-165). Em relação ao paciente, a técnica do exame, através da anamnese, do exame físico, da constituição do caso médico e de seu registro, além de possibilitar a constituição do indivíduo como objeto descritível e analisável, ao mesmo tempo, através do acúmulo dos registros dos vários casos, permite também a constituição de um sistema comparativo que facilita a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa população. O exame capta o indivíduo doente numa “objetivação limitadora” e o sujeita a verdades de um campo de saber que, ao mesmo tempo, ele ajuda a construir. Dito de outra forma, o exame, num só mecanismo, possibilita a formação de um certo tipo de saber e o exercício de uma certa forma de poder. Assim, é o exame que resolve “o 18 problema dos hospitais, onde era preciso reconhecer os doentes, expulsar os simuladores, acompanhar a evolução das doenças, verificar a eficácia dos tratamentos, descobrir os casos análogos e os começos de epidemias” (FOUCAULT, 1977b, p.168). Historicamente, foi através da maior freqüência e regularidade das “visitas” de médicos ao espaço hospitalar que o hospital se tornou um espaço de observação médica permanente, através da técnica do exame, quando acabou por se inverter a relação hierárquica entre os religiosos e os médicos, passando estes ao primeiro plano, estabelecendo a subordinação daqueles, surgindo a figura do enfermeiro. Na atualidade, numa complexa rede de relações hierarquizadas num hospital de ensino, podemos privilegiar o round como o ato ritualizado, onde se realiza o exame, sobretudo, de estudantes, quando também professores, médicos e alunos produzem uma verdade sobre o caso médico referido ao paciente. “A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível” (FOUCAULT, 1977b, p.165). O indivíduo “fabricado” pelo poder disciplinar, alvo desse poder discreto, modesto mas, ao mesmo tempo, profundamente indiscreto e contínuo, que, ao ter como objetivo tornar o indivíduo dócil e obediente, toma o indivíduo como objeto e como instrumento de seu exercício, e, num funcionamento capilar, leva a que: “Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, [...] inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição” (FOUCAULT, 1977b, p.179). Como alerta Roberto Machado, a análise de Foucault é histórica e específica. Nem todo poder individualiza, o poder disciplinar é uma forma específica de dominação e, ainda, é datado: “A existência de um tipo de poder que pretende instaurar uma dissimetria entre os termos de sua relação, no sentido em que se exerce o mais possível anonimamente e deve ser sofrido individualmente é uma das grandes diferenças entre o tipo de sociedade em que vivemos e as sociedades que a precederam” (MACHADO, 1986, p.XX). Para Foucault, em sua análise genealógica, as técnicas do poder disciplinar, em especial o exame, configuram uma tecnologia específica de poder que ele chama “disciplina” que, a seu ver, teve uma “importância decisiva” na “liberação epistemológica das ciências do indivíduo”, “ciências ‘clínicas’ ”, enfim na “entrada do indivíduo no campo do saber” (FOUCAULT, 1977b, p.169). A medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia, a pedagogia são saberes que foram possíveis a partir do momento em que o indivíduo é constituído “como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber”. (FOUCAULT, 1977b, p.171). A ordem médica, compreendida como o funcionamento de um saber/poder de uma disciplina, implica, na sua dimensão discursiva e na prática, a recusa e desqualificação da subjetividade e da singularidade do fato clínico como o aspecto insubmisso, ameaçador, do qual se quer escapar, que está referido tanto às paixões na relação médico-paciente como à angústia em relação aos limites de um saber científico que se pretende totalizante. E nós psicanalistas, os “outros” tolerados pela ordem médica, estaríamos no seu interior para, estrategicamente sujeitados e cooptados, na economia dos discursos que ela promove sustentada por seus “interesses”, realizarmos a tarefa de contermos o transbordamento, o excesso e, numa solução de compromisso, incitados a um discurso sobre o sofrimento da alma, mantermos o projeto lírico, religioso, humanitário e normalizador da função médica? Em nossa proposta pretendemos discutir um modelo de transmissão de conhecimento da clínica que leve em conta do que se quer escapar na formação e práticas médicas. Do que se quer escapar? Do sofrimento. Do sofrimento do paciente que é potencialmente o do médico. Mas não só isso. Das decisões e escolhas que conflitam o médico pela imperfeição de seu saber, que não pode ser permanentemente atribuído ao outro inominado, seja a medicina ou o sistema público de saúde, cujas limitações também importam nos resultados de seu ato médico. Quando os resultados, efeito de suas escolhas possíveis, não correspondem aos por ele, médico, desejados, nem sempre ele pode virar as costas para não vê-los. E o risco é de vivenciar a culpa. E como se escapa? As soluções individuais vão interagir com algo que está num outro nível, no 19 nível do coletivo, que é a negação da subjetividade e da singularidade no exercício de um saber, na produção, na apropriação e no uso do conhecimento. Como nos diz Foucault: “É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. [...] Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas também afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras” (FOUCAULT, 1985, p.95-96). Conseguimos com nossa proposta pedagógica e de pesquisa referida ao pequeno teatro do dia-a-dia ir além do que as instituições de saber e poder encobrem com seu discurso solene? Cientes de que o poder, no seu aspecto positivo, também cria, engendra realidades, realidades subjetivas e sociais, e não só interdita, será que conseguimos, como produção de saber e poder, sustentar a dúvida produtiva possibilitando uma reflexão crítica com efeitos sobre a formação profissional? Como nos diz Foucault, “a menor eclosão de verdade é condicionada politicamente" . E não se podem esperar os efeitos do valor de verdade de uma simples prática médica nem de um discurso teórico, por mais rigoroso que seja, sem contar com o contexto político institucional onde esses saberes de uma prática teorizada se realizam. A vontade de saber com seus interesses numa microfísica de uma instituição médica de ensino encontra apoio no narcisismo dos médicos expresso coletivamente no seu desejo de certeza e de onipotência, levando à prática a ser o que é, normalizada apesar do discurso parecer sempre ser ambivalente em relação à tensão doente/doença. E a solução de compromisso ou o "sintoma" está nos próprios médicos, quando apreendemos, em seu discurso, um ideal romântico, apesar da desvalorização do ato na clínica como um ato simbólico e, em sua prática, o exercício de uma prática normalizada sem romantismo. 20 PSICANÁLISE E MEDICINA “A fé com que ele [o paciente] enfrenta o efeito imediato de um procedimento médico depende, de um lado de seu desejo de curar-se e, de outro, da certeza de que deu os passos corretos nessa direção - isto é, em seu respeito geral pela técnica médica - e, mais, do poder que atribui à personalidade do médico e mesmo da simpatia puramente humana nele despertada por este” . Freud, Tratamento psíquico (ou mental) [1905] A presença da dimensão psicossocial do homem no processo saúde/doença é reconhecida e pensada de diferentes formas ao longo da história. O processo saúde/doença implica a relação normal/patológico, que é questionada quando o pensamento crítico na modernidade denuncia o reducionismo do modelo médico, que pretende diferenciar nitidamente o normal do anormal usando categorias que estabelecem parâmetros de normalidade e postulando, com um critério normativo, um ideal de higidez que desconsidera o homem inscrito em um cenário dinâmico, social e histórico, produzindo seus efeitos. No século XX, o desenvolvimento do conhecimento, tanto na área médico-biológica como na área social, vem produzindo efeitos sobre a formação e a prática médicas. No entanto, a hegemonia de um pensamento que mantém, implicitamente, o exercício de um poder, não pode ser compreendida apenas como efeito do desenvolvimento das áreas de conhecimento envolvidas na prática médica. Esse desenvolvimento se associa ao valor que diferentes saberes têm na comunidade acadêmica, onde se reproduz e se difunde o conhecimento médico. É o pensamento crítico que descobre um reducionismo no modelo médico que pretende exercer um domínio sobre qualquer produção do psiquismo impondo, portanto, uma redução ao dado anátomo-patológico como fundamento de qualquer saber sobre o indivíduo doente. Isso resulta na manutenção de uma ilusão objetivista, impõe uma razão identificada com a consciência excluindo o fato da significação e, ainda, exclui o sujeito do desejo inconsciente desvalorizando a atividade interpretativa da subjetividade. Na medida em que possamos fazer uma oposição inclusiva entre sujeito e objeto, a questão da subjetividade se associa ao pensamento crítico para que esse se oponha a qualquer reducionismo e mantenha a tensão produtiva na produção de conhecimento. Essa valorização da subjetividade implica o reconhecimento de um determinismo psicossocial no processo saúde/doença, na prática médica e na formação dos médicos. Para a ciência médica, na sua prática de só considerar a realidade material em termos anatômicos e fisiológicos, o problema da interação mente e corpo permanece, e a solução do modelo médico é a fragmentação no conhecimento dos órgãos buscando uma eficácia na prática que, se chega a resultados, não possibilita uma integração das diferentes disciplinas que contribuem para o conhecimento do homem como ser biopsicossocial. Sobre a Interseção entre Psicanálise e Medicina Com o surgimento da psicanálise, em particular com os trabalhos de Freud sobre a histeria, certos sintomas físicos relacionados à inervação voluntária e sensorial passam a ser compreendidos como expressões simbólicas de conflitos emocionais. Isso se fez possível a partir da descoberta do inconsciente dinâmico e dos mecanismos de repressão e conversão. A psicanálise, confrontada com a psicopatologia da histeria, fala de um corpo simbólico, referindose ao problema da significação, ao dizer que "o histérico sofre de reminiscências". E a "cura pela palavra" decorre desse fato, da simbolização expressa no corpo em sofrimento, em um corpo erógeno, evidenciando que o psiquismo pode, como efeito de determinação inconsciente, afetar o corpo, e não só no sintoma histérico. Outros psicanalistas, em especial Groddeck, Deutsch e 21 Ferenczi, prosseguiram na investigação de representações psíquicas de expressões somáticas, através de estudos de caso. Para a psicanálise o corpo não é o corpo da biologia. Para a medicina, enquanto prática clínica, também não deveria ser, uma vez que uma redução organicista desconsidera completamente a realidade psíquica, a realidade social e, portanto, o fato da significação. A medicina tende a negar o corpo do simbólico e fragmenta o corpo nos órgãos que o compõem, ficando referida a uma concepção ingênua do real - a uma racionalidade anátomo-clínica que, se torna mais fácil a tarefa para os médicos, acarreta, por vezes, sofrimento aos pacientes e dificuldades na realização do projeto terapêutico. Mas essa crítica que a psicanálise pode fazer ao reducionismo do modelo médico não deve colocar a psicanálise contra a medicina. Como já nos dizia Freud: "Toda a ciência é unilateral" e "é uma insensatez, na qual eu não tomaria parte, lançarmos uma ciência contra outra"; no entanto, essa "característica" reducionista da medicina, que a psicanálise denuncia, pode se transformar numa "censura [...] se passarmos da medicina científica para a terapêutica prática" (FREUD, [1926] 1976, p. 262). Freud, em sua conferência de 1904, ao defender “a causa da psicoterapia”, já havia pontuado que a psicoterapia “é a forma mais antiga de terapia existente na medicina” e que, mesmo diante de outros recursos terapêuticos, “esforços psicoterápicos jamais desapareceram completamente da medicina”, basicamente pela existência da “fé expectante”, por parte do paciente, e da simples “palavra de conforto”, quando médicos, até sem o saber de sua intenção e mesmo de sua ação, praticam psicoterapia (Cf.268-269). É enfatizando a diferenciação entre psicanálise e psicoterapias, que Freud coloca em jogo uma antítese usando as metáforas de Leonardo da Vinci, que diferenciam escultura e pintura. A psicanálise funcionaria, como a escultura, per via di levare, procurando desconstruir significados, deixando ao paciente o trabalho de reconstrução em torno de sua verdade - a verdade parcial do desejo inconsciente -, enquanto as psicoterapias, como na pintura, se fariam per via di porre, incluindo a sugestão da orientação médica atenta para os efeitos de cura. Essa diferença pode ser associada, segundo Vital Brazil, ao valor de eficácia da psicoterapia, que pode se dar no ato médico bem sucedido, ou ao valor de verdade no discurso do ato psicanalítico, ao considerarmos essas práticas sempre se realizando num campo de valores. Como escreve esse autor: "A diferença entre psicanálise e psicoterapias, se põe, portanto, nas suas respectivas práticas, como uma diferença qualitativa, constrangendo o psicoterapeuta a exercer um poder, um poder curativo desde sempre atribuido ao modelo médico associado à ambição de cura, e que lhe é outorgado pela sociedade que exige dos seus membros participação na força produtiva. O psicoterapeuta, prescrito o seu trabalho na demanda social, deve pensar no fim de um processo que tem um sentido nitidamente adaptativo, que não dissimula um jogo parcial de poder, de atender a uma normalidade estatística do que é prevalente no valor de como se deve ser em um determinado contexto sócio-cultural, retirando da psicanálise o seu valor de verdade, necessariamente subversivo e contestatório, e substituindo este valor de verdade por um valor de eficácia, esclarecimento e influência" (VITAL BRAZIL, 1997, p.281) (grifos do autor). Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud [1919] nos fala do “valor” da psicanálise em relação à formação médica, embora não se restrinja a ela. Referindo-se à existência de críticas que apontam a perspectiva “parcial” com que essa formação dirige os alunos fundamentalmente ao estudo da anatomia, da física e da química, Freud destaca, como conseqüências, não só a “falta de interesse pelos problemas mais absorventes da vida humana, na saúde ou na doença”, como também a inabilidade do futuro médico no tratamento de pacientes de forma que “até mesmo charlatães e ‘curandeiros’ terão mais efeito sobre esses pacientes do que ele” (p.217-218). Freud chega a propor a existência de dois cursos: um “introdutório”, “que trataria detalhadamente das relações entre a vida mental e a vida física - a 22 base de todos os tipos de psicoterapia -, descreveria as várias espécies de procedimentos sugestivos” e os distinguiria da psicanálise propriamente dita; e um “curso para psiquiatras” que teria a finalidade de fornecer a compreensão dos fatos observados pela psiquiatria essencialmente descritiva (p.218). Freud ressalva os limites desse ensino que, através apenas de aulas teóricas, só pode se pretender “dogmático e crítico” e conclui: “o estudante de medicina jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita [...] Mas, para os objetivos que temos em vista, será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise” (FREUD, [1919] 1976, p.219-220) (grifos do autor). Nas Conferências Introdutórias, Freud (1916 [1915]) nos fala do abismo entre as operações de conhecimento na medicina e na psicanálise: o ver e o escutar. E se associamos o ver à eficácia de uma ação sobre o real, que é passível de uma redução demonstrativa aos dados sensoriais, e o valor de verdade no discurso ao escutar, que se dá na descoberta interpretativa entre curso associativo e atenção flutuante, tornamos ainda mais precisa a diferença entre o ato médico e o ato psicanalítico. “Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. [...] Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada um. Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista" (FREUD, [1916 [1915]] 1976, p.28-29). Além da diferença entre os modos de conhecer e a questão do valor de verdade nas duas práticas teorizadas, Freud denuncia o preconceito em relação ao valor da palavra, e nos remete à diferença entre a cura pela palavra - a palavra realizando-se como ato na transferência - e a cura na clínica médica, que se realiza como ação sobre o real sem necessariamente desconsiderar o campo transferencial, quando em seqüencia nos fala: “Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua 23 influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente” (FREUD, [1916 [1915]] 1976, p.29-30). Se a psicanálise não se subordina à prova demonstrativa ou à verificação empírica, e tem que ser considerada como um processo interminável por definição de princípio, uma vez que o inconsciente é inesgotável e o conflito permanente, a questão da cura, sempre exigida pelo modelo médico, vai nos referir a uma outra diferenciação entre o ato psicanalítico e a ação eficaz da clínica. Desde Freud e a sua famosa frase que fala sobre a diferença entre os resultados da prática médica, que pretende realizar a ambição de cura pela eliminação da doença, e a referência aos resultados da psicanálise, que só pode aspirar a "transformar a angústia neurótica em sofrimento humano comum", a psicanálise como uma prática social diferenciada não pode se confundir com a prática da medicina. O psicanalista como "praticante da função simbólica", mantendo o deslocamento do desejo inconsciente em relação a objetos substitutivos, objetos simbólicos produzidos na história individual que singulariza o paciente, se diferencia do médico constrangido a obter, no exercício do poder curativo, resultados que satisfaçam a demanda social de manutenção da vida, referidos exclusivamente à doença. Como nos diz Vital Brazil: “O psicanalista seria aquele que suporta a demanda sem atendê-la, que mantém uma promessa insustentável até que ela se denuncie como irrealizável, e a psicanálise não atende a nenhuma demanda que não seja a demanda de análise, nem mesmo a demanda social de apresentação de resultados, na qual o psicanalista estaria constrangido a buscar o reconhecimento possível do valor social de sua prática, pretendendo ter garantido o reconhecimento social do seu saber. Já as psicoterapias exigiriam que o psicoterapeuta se engajasse na intersubjetividade de uma relação que corresponde mais ao modelo médico, isto é, que se define como terapêutica por antecipação a qualquer ato [...] e que teria, portanto, um objetivo claramente definido de remitir sintomas ou que responda à aplicabilidade de um critério de cura" (VITAL BRAZIL, 1997, p.276-277) (grifos do autor). A questão das relações entre a doença e a pessoa doente e entre esta e a ordem social ganham destaque no século XX. Na década de 20, na Alemanha, emerge um discurso médico antropológico, cujos representantes mais expressivos foram Weizsäcker, Schwartz e Krehl. Esse discurso médico antropológico, usando o modelo compreensivo, articula a enfermidade internamente com a história de vida do paciente, formulando-a como uma "patologia biográfica". A enfermidade passa a ser considerada não só no plano da causa, onde ela é explicada pelo discurso biológico, mas também no plano da significação, onde ela é compreendida como experiência na temporalidade de uma existência. Movimento humanista, relacionado a progressivas críticas à prática clínica pelo seu desinteresse na pessoa do doente, teve seus suportes teóricos na filosofia alemã kantiana e neo-kantiana. Na década de 30, surge uma contribuição, cuja expressão e difusão associada à denominação Medicina Psicossomática, diferentemente da Medicina Antropológica, restringe-se à postulação de uma causalidade psíquica. Em particular os trabalhos de Alexander e French, psicanalistas do Instituto Psicanalítico de Chicago, propuseram a presença de "conflitos básicos", "conflitos típicos" da úlcera duodenal, colite ulcerativa, asma brônquica, neurodermatite, hipertensão essencial, artrite reumatóide e tireotoxicose - as sete doenças conhecidas, a partir de então, como doenças psicossomáticas. Em nenhum momento, esses autores interrogam o estatuto social da enfermidade somática. Alexander e Szasz (1962), distinguindo a histeria da "neurose vegetativa" (organoneurose), consideram que: "A neurose vegetativa... não expressa nenhum significado psicológico. O sintoma vegetativo não é uma expressão substitutiva da emoção e sim 24 seu concomitante fisiológico (normal). ...Ao estar submetido a estímulos emocionais contínuos provenientes de conflitos sem resolver, as respostas vegetativas se tornam crônicas. Às vezes, podem conduzir a fenômenos teciduais irreversíveis que originam sindromes orgânicas definidas" (ALEXANDER e SZASZ em ALEXANDER e ROSS, 1978, p.313). A postulação de doenças psicossomáticas baseada na psicogênese de certos transtornos orgânicos aprisiona-se no modelo explicativo-causal, o que contribuiu para a sua aceitação e difusão no meio médico. No entanto, no meio psicanalítico, essa aceitação é mais problemática, chegando mesmo a ser entendida como um reducionismo inaceitável. Na estrutura etiológica da enfermidade passam a participar outras séries causais além da causalidade linear biológica, quais sejam as causalidades de ordem psíquica e as de ordem sociológica e antropológica em sentido estrito. Como escreve Joel Birman: "A Medicina entra na região da interdisciplinaridade, adquirindo neste campo de práticas o mesmo estatuto ambíguo, do ponto de vista epistemológico, que em outros campos teóricos. Com efeito, este conjunto de discursos não se refere ao mesmo objeto científico, mas a uma pluralidade de objetos que encontram a sua delimitação e as suas verdades nos saberes de origem: Psicologia, Sociologia, Antropologia, Psicanálise e Biologia. Eles não se articulam na sua intimidade conceitual, construindo um outro objeto para o saber médico, mas se justapõem, tendo como referente empírico os indicadores da saúde e da doença. Pluralidade discursiva, dispersão de novos objetos, eis o contexto significativo da questão se a encaramos da perspectiva da estrita lógica conceitual de cada um dos saberes referidos" (BIRMAN, 1980, p.25-26) (grifos do autor). Na década de 50, o psicanalista húngaro Michael Balint desenvolve na Clínica Tavistock os Seminários de treinamento e pesquisa sobre problemas psicológicos na prática da clínica geral, numa tentativa de resposta à demanda social constituída por clínicos gerais que apontavam a insuficiência da formação médica com relação à grande demanda de doentes funcionais. Balint, considerando que "a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico", parte para uma proposta interdisciplinar de estudo da "farmacologia da substância médico", empreendendo uma investigação-treinamento das possibilidades de aplicação da teoria psicanalítica no campo dinâmico da relação médico-paciente. Com o objetivo de estudar e desenvolver a função psicoterápica dos clínicos gerais em sua relação com seus pacientes - no interjogo das "ofertas" dos pacientes e das "respostas" dos médicos - Balint centrava-se na contratransferência dos médicos, ou seja, no "modo como o médico utiliza sua personalidade, suas convicções, seus conhecimentos, seus padrões habituais de reação, etc." (BALINT, 1975, p.255). A reconstrução elaborada pelo grupo, nos seminários, sobre um determinado encontro clínico poderia ser avaliada, compreensivamente, na evolução dessa relação clínica, em analogia ao processo psicanalítico, validando a interpretação como se faz na seqüência das sessões psicanalíticas. Nesse sentido, não é suficiente levar em conta apenas a evolução da doença, mas o paciente como um todo nessa relação clínica com seu médico. Balint postula a patologia da pessoa total ou a medicina da pessoa total, o que nos leva ao problema da interpretação na atividade psicoterápica do médico clínico, a qual possibilitaria ao paciente "compreender-se a si mesmo". Balint diferencia "dois tipos de medicina": a medicina científica ou hospitalar, ensinada e praticada na sua forma mais pura nos hospitais universitários, e a que ele denominou de prática médica. A medicina da pessoa total seria aplicável à prática médica, sendo constituída por um diferente tipo de objetividade científica e, nesse sentido, novos critérios deveriam ser desenvolvidos. A medicina científica ou hospitalar deveria manter-se referida ao diagnóstico 25 preciso e à terapêutica nele baseada e validada pelo modelo do "experimento duplo cego" (BALINT e BALINT, 1961, p.127). Nesse contexto histórico surgem a Medicina Antropológica de Weizsäecker, a Medicina Psicossomática de Alexander e French, os Dois Tipos de Medicina de Balint como, também, o Modelo Clínico Situacional de Luchina (1982) e, entre nós, a Medicina da Pessoa de Perestrello (1974). Desses modelos, sem dúvida, o que mais se difundiu foi o proposto por Michael Balint, embora a Medicina Psicossomática ainda se faça presente na representação das "sete doenças psicossomáticas". Evidentemente, os saberes emergem, se difundem e se instituem em maior ou menor grau, na medida em que respondem a certas demandas que se ordenam no espaço social, determinando mudanças significativas nas práticas sociais nesse cenário sempre dinâmico. No último pós-guerra, rompe-se um silêncio de um século com relação à Medicina Social. A Medicina passa por um processo de mudança de seu lugar social, retomando "um espaço político pertinente à moderna fase do Capitalismo" (BIRMAN, 1980, p.45). Surge, nessa época, a Organização Mundial da Saúde, que não define a saúde negativamente, mas a define muito além da "vida no silêncio dos órgãos" (LERICHE apud CANGUILHEM, 1978, p.67), numa concepção muito mais ambiciosa: "A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste somente em uma ausência de doença ou enfermidade" (OMS). A saúde é, mais uma vez, mas de certa forma inédita, enfatizada não como um estado dado pela natureza, mas sim um estado também construído pelos indivíduos socialmente. A ênfase passa a ser colocada na promoção da saúde referida ao bem-estar social e à felicidade humana, ganhando, portanto, a dimensão preventiva da medicina maior relevância estratégica em relação à dimensão terapêutica. É, então, somente na década de 50, que o pensamento psicanalítico se articula de forma original ao pensamento médico, criando práticas específicas na instituição médica (BIRMAN, 1980, p.31). Como analisa Joel Birman: "se as séries sociológica e psicanalítica mantiveram-se isoladas da prática médica até este momento, elas são então ativamente transformadas pela perspectiva da Medicina. O reencontro ultrapassa o plano do fundamento arqueológico, se bem que nele apoiado, possibilitando a homogeneidade discursiva em torno da problemática do normal e do patológico, e atinge o plano de prática: regulação ativa dos corpos e de suas inter-relações no espaço social" (BIRMAN, 1980, p.45). No último pós-guerra, com as novas concepções de cidadania e saúde, passando a saúde a ser um direito de todos e um dever do Estado, a questão da promoção da saúde e bemestar social emerge com maior destaque. A psiquiatria incorpora o discurso psicanalítico, por ela transformado, e desenvolve a psiquiatria comunitária. Processa-se, então, uma reforma nas instituições psiquiátricas no sentido de transformar o ambiente asilar em um meio terapêutico que, nesse momento histórico, privilegia a "atuação sobre as microrredes das inter-relações pessoais, atingindo diretamente a individualidade" (BIRMAN, 1980, p.78). A psiquiatria trará, então, para a medicina o dispositivo das inter-relações, cuja expressão mais clara se encontraria nas contribuições de Michael Balint. Com um valor de humanização da prática médica geral, a psiquiatria, numa mudança de articulação com a medicina, passa a instituir um discurso sobre a relação médico-paciente, a partir da década de 50, que atravessa os tempos atuais dando mesmo a ilusão de que a medicina sempre foi, imutavelmente, uma prática humanista. A análise realizada por Joel Birman (1980) tem seu valor no sentido do questionamento do uso de um saber psicanalítico ativamente transformado na prática social da medicina, 26 aprimorando e justificando o controle sobre os indivíduos e suas relações interpessoais, embora tenhamos dúvidas quando ele postula que o "saber das inter-relações" historicamente chegou a se transformar na "racionalidade hegemônica da medicina", deslocando a um plano secundário a racionalidade anátomo-clínica (p.140). Se a psiquiatria, a partir da influência de uma psicanálise diluída no seu valor crítico e subversivo, ampliou o poder médico, não só o instrumentando para uma finalidade adaptativa dos indivíduos aos seus ambientes sociais, mas chegando a possibilitar um "acesso abusivo às pessoas" que nada tem a ver com o projeto freudiano, ao mesmo tempo, como o autor reconhece, ela trouxe um questionamento ao projeto ético e terapêutico da medicina, limitando seus excessos pragmáticos reduzidos à "maquinária corporal" (p.73). É, sem dúvida, reconhecendo esses dois perigos na inter-relação entre psicanálise e medicina, que se pode trabalhar criticamente. Nesse sentido, concordamos com Birman que a relação médicopaciente assume configurações que não são só função das biografias de seus atores, mas, também, função do "lugar social designado para o médico, o paciente e a enfermidade" historicamente situados e não "essências trans-históricas como se ilude até hoje a visão positivista do saber" (p.176). Uma expressão do prestígio social da articulação dos discursos das ciências sociais com o discurso médico foi o surgimento de Departamentos de Psicologia e Sociologia Médicas nas instituições universitárias, a partir da década de 50. Esse processo se iniciou nos EUA e rapidamente se difundiu a outros países. Na Faculdade de Medicina da UFRJ, onde realizamos nossa pesquisa, a disciplina de Psicologia Médica foi introduzida pelo Prof. Danilo Perestrello, ainda nos anos 50. No entanto, como esses saberes se articulam numa prática particularizada? Desde 1980, como professora da disciplina de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal e em atividades docente-assistenciais no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, nunca tive a oportunidade de me deparar com uma "História da Pessoa" - item da anamnese instituído na folha padrão do prontuário médico - preenchida, exceto nos seus aspectos referidos aos chamados "hábitos (fumo, álcool, tóxicos, anticoncepcionais)", padrões de "alimentação" e características de "moradia". A título de ironia comentaríamos, ainda, que por vezes o espaço se encontra totalmente em branco e, uma vez, foi assim preenchido: "nada de relevante". Sob a epígrafe "História da Pessoa" encontramos o silêncio ou a rara explicitação registrada: "nada de relevante". Na medicina hospitalar, que se realiza sob o primado da racionalidade anátomo-clínica, a subjetividade tende a sucumbir num discurso médico tecnicista, no qual a tecnologia triunfante, que tem como valor privilegiado a eficácia da ação, se associa ao conhecimento científico referido redutivamente ao biológico. Na medicina ambulatorial, que se constitui como um projeto médicosocial distinto do referido à medicina hospitalar, a subjetividade sucumbe num discurso médicosocial, cujo valor predominante é a promoção de saúde regida pelas noções sanitárias e psicológicas colocadas numa prática pedagógico-assistencial, na qual a racionalidade anátomoclínica nem sempre se realiza. Os chamados doentes funcionais, que constituem uma parte expressiva dessa clínica - 50% a 60% da clientela, segundo alguns autores (ALMEIDA, 1988) não deveriam representar um mero nonsense para a racionalidade médica. Alguns médicos, privilegiando a racionalidade anátomo-fisiopatológica, investem nos corpos desses pacientes, e buscam uma negatividade que, se referenciada à concepção de que a saúde é "a vida no silêncio dos órgãos", evita a dúvida que o próprio grande clínico Leriche (1939) nos aponta: "Há em nós, a cada instante, muito mais possibilidades fisiológicas do que a fisiologia nos faz crer. Mas é preciso haver a doença para que elas nos sejam reveladas" (LERICHE apud CANGUILHEM, 1978, p.75). Dialeticamente, esses pacientes são uma expressão do processo de medicalização na cultura. Após a Segunda Grande Guerra, com as novas concepções de cidadania e direito à saúde, o Estado ampliou significativamente a rede assistencial ambulatorial numa ideologia de promoção da saúde, implicando a dimensão psicossocial na prática médica. Parece fundamental, portanto, que os médicos hesitem no seu pensamento reducionista e passem a se interrogar sobre o que eles entendem por saúde e por sua ação terapêutica sobre os pacientes. 27 Sobre o Ensino da Psicologia Médica e a Formação Médica O campo da Psicologia Médica tem merecido críticas por parte de psicanalistas e cientistas sociais, as quais resumiríamos dizendo que o discurso psicanalítico, nessa prática social, teria sido cooptado pela ordem médica, perdendo, portanto, a marca que o referenciaria na psicanálise (CLAVREUL, 1983 e BIRMAN, 1980) e, ao se centrar exclusivamente na dimensão das relações interpessoais, seria um discurso “descontextualizado” histórico e socialmente (RAMOS e cols., 1989), podendo mesmo ser reduzido, ainda, a uma “ideologia” (BRAZ, 1994). Situando o campo da Psicologia Médica, pois esse não tem uma homogeneidade discursiva, parece-nos importante citar a investigação de Botega (1994) sobre o Ensino de Psicologia Médica no Brasil que, em 1992, através de uma enquete postal dirigida às 78 escolas médicas do país, obteve informações de 57 escolas, apontando que 93% dessas escolas dispõem de uma ou mais disciplinas exclusivamente dedicadas ao ensino de Psicologia Médica. É importante destacar que o referencial teórico predominante dessa disciplina é o psicodinâmico/psicanalítico e que a equipe de docentes é geralmente formada por médicos psiquiatras, com atuação em psicoterapia psicodinâmica. Ressalte-se, ainda, que em 53% delas há “psicanalistas formados ou em formação”, em 49% há “psicoterapeutas de grupo” e em 11% “psicoterapeutas de linha comportamental”. Psicólogos e médicos não psiquiatras participam da equipe docente em 44% e 17% escolas, respectivamente. Por parte dos médicos, poderíamos talvez dizer que a principal representação ligada a esse discurso se refere a algo que falta aos médicos, mas cuja eficácia é duvidosa, não só em relação a seus pacientes como também aos próprios médicos na compreensão da clínica. Isso colabora para que, entre outras razões, os médicos quase não hesitem em convocar o psicanalista como um especialista encarregado de exercer, junto aos pacientes, um conhecimento e uma função que pouco ou nada teriam em comum com o conhecimento e a função do médico. Fernandes escreve: “Para a maioria dos clínicos, a questão da relação com seus clientes [...] mostra-se despossuída de qualquer conteúdo positivo ou intrínseco às aptidões objetivamente exigidas para o cuidado dos doentes”. Seria, então, necessário “contrariar a tradição de distância entre este debate e a prática médica, e levantar questões que atendam aos interesses dos colegas e colaborem com sua atividade profissional”. Ao explicitar essas questões, o autor interroga: “quais as possibilidades de inserção da RMP dentro do próprio campo clínico [...] qual é a importância do sujeito na prática do médico?” (FERNANDES, 1993, p.21-22). Por parte dos psicanalistas professores que trabalham no campo institucionalizado da Psicologia Médica, sua prática não é vista como menos problemática. Coser (1986), a partir da questão sobre quem deveria tratar os pacientes da medicina geral que padecem de transtornos psíquicos, os quais - como seu estudo o levou a concluir muitas vezes representam a expressão do recalcamento do psíquico enquanto campo, espaço, domínio que então retorna como sintoma psicopatológico, não podendo mais ser ignorado (Cf. p.87), levanta a questão da formação psicológica do médico. Considerando que “é no hiato entre a medicina enquanto campo de conhecimento e campo de prática que aparecem as dificuldades”, na medida em que no encontro médico-paciente não existe apenas a “demanda de cura da doença enquanto entidade anatomofisiopatológica, mas além disso uma demanda de amor [...] que remete o sujeito a mecanismos, formas e processos inconscientes” (p.68), Coser aponta o grupo Balint como o modelo existente para reflexão a posteriori de uma prática na qual o médico poderia levar em conta as outras “razões”, além das estabelecidas pela racionalidade anátomoclínica, implicadas nos fatos da clínica (Cf. p.65-93). A partir do 3º ano, o aluno em sua primeira experiência de acompanhamento de pacientes é, freqüentemente, solicitado por eles a dar uma palavra de reasseguramento, de alívio, e como Coser observa na sua experiência docente: “o estudante [...] defrontando-se com a potencialidade ‘curativa’ da palavra médica” [...] assusta-se com a possibilidade de vir a dizer algo 28 que possa ser nocivo, e não terapêutico. [...] Iludidamente ele pensa que esse temor lhe ocorre porque é um principiante que não sabe o que dizer aos pacientes, e acha que a experiência lhe ensinará. [...] Às vezes dominado por essa angústia e no seu esforço de minimizá-la, exagera na dose e reativamente ridiculariza o próprio campo do psíquico: ‘isso é coisa de psiquiatra’.” (COSER, 1986, p.75) Com relação à formação de grupos psicoterapia, é importante assinalar que Departamento de Medicina Psicológica do Londres, considera que a menor experiência que tornam esse trabalho menos promissor com estudantes de medicina visando ao ensino de Balint (1975), baseado em sua experiência no University College Hospital, na década de 60 em de vida e o caráter obrigatório do ensino são fatores do que o realizado com clínicos gerais (Cf. p.247- 248). Também Sapir (1994), avaliando o grupo Balint no ensino de Psicologia Médica, nos diz de sua experiência e dificuldades encontradas: “Elas [inúmeras tentativas] nos ensinaram, entre outras coisas, que o estudante em começo de formação, demasiado identificado com o paciente, demasiado preocupado com o êxito de seus estudos teóricos ou com problemas surgidos pelo final da adolescência, está inapto para participar de um grupo Balint. É preciso que ele seja promovido a uma responsabilidade, mesmo que limitada” (SAPIR, 1994, p.129). Muniz e Chazan (1992) realizando o ensino de Psicologia Médica, nos três primeiros anos do curso médico na Faculdade de Ciências Médicas/UERJ, privilegiam o uso de técnicas grupais, ao lado de aulas expositivas, constituindo grupos de 15 a 20 alunos, tendo cada um a coordenação de dois professores de Psicologia Médica. Na visão dos autores, esse espaço pedagógico, também nomeado de “grupos de reflexão”, contribui para a elaboração de conflitos, e mesmo crises, ao longo da formação médica, e para o encorajamento no sentido da aceitação e da possibilidade de lidar com a dimensão emocional, a partir da experiência na relação professoraluno propiciada no grupo, com repercussões na relação estudante-paciente. No 1º ano, as discussões no grupo pretendem promover a reflexão das vivências emocionais relacionadas à entrada do estudante na Faculdade de Medicina e, também, a experiência com o cadáver no aprendizado da anatomia e com o acompanhamento de um paciente em sua trajetória ao procurar, pela primeira vez, o ambulatório do hospital universitário. No 2º ano, os grupos alternam a discussão sobre entrevistas com pacientes e profissionais, constituindo a parte prática do curso motivada pela investigação de temas, com a discussão de temas teóricos a partir de textos previamente oferecidos. No 3º ano, momento em que os alunos iniciam mais expressivamente sua prática clínica, são priorizadas as discussões de casos clínicos através da apresentação de anamneses ou situações vividas pelos estudantes na relação com os pacientes, estimulando-se a troca de experiências entre os alunos, valorizando-se a História da Pessoa do paciente colhida pelos alunos. Os professores, coordenadores do grupo, acrescentam sua experiência, enquanto alunos ou médicos já formados, junto a seus pacientes. No relato dos alunos, focaliza-se a discussão, sobretudo, sobre os pacientes, deixando que “o estudante fale, só se assim o desejar, de suas vivências”, pois os professores observaram que o “assinalar as ansiedades do estudante” as intensifica, pela insegurança e vulnerabilidade à crítica desse momento de formação. Os autores destacam que, no 3º ano: “as questões voltam-se mais para a identidade médica propriamente dita. Que médico serei? Quero ser médico? Estas questões são reforçadas pelas observações que fazem nas enfermarias, onde, por vezes, repudiam práticas observadas. [...] Pacientes não ouvidos, excessivamente examinados, discussões à beira do leito, pacientes 29 sendo tratados pelos seus diagnósticos (às vezes graves) em voz alta, etc., tudo isso contribui para o desconforto sentido pelo estudante” (MUNIZ e CHAZAN, 1992, p.41-42). Reconhecem esses autores que o ensino, no 3º ano, constitui “o maior desafio”. Estando os alunos, nesse momento, “efetivamente” em busca de “um modelo” para sua relação com o paciente, como o professor de Psicologia Médica poderia estimulá-lo a “desenvolver uma abordagem, uma escuta não usual de seu paciente?” (p.40). Valorizando a experiência na relação professor-aluno no grupo, a realização da História da Pessoa com implicações no modo de ouvir o paciente e as reuniões entre professores, nas quais são discutidas as dificuldades dos coordenadores, principalmente, com “expressões de grande resistência dos grupos em aceitar vivências emocionais dos pacientes ou dos próprios alunos ou do material teórico em si” (p.43), os autores, trabalhando, vão construindo seu presente. Quanto ao futuro, esperam, sobretudo, estender sua atividade de ensino, especialmente, ao Internato e, também, alcançar uma integração com outras disciplinas do ensino médico, de forma a realizar seu objetivo, qual seja de formação de médicos essencialmente voltados para a dimensão humana da medicina. Muniz e Chazan nos fornecem assim seu relato de 13 anos de experiência de ensino de Psicologia Médica numa “tentativa de procurar definir o lugar da Psicologia Médica na formação em Medicina” (p.44). Claudio Eizirik (1994), ao escrever especificamente sobre o ensino de Psicologia Médica, com o qual está envolvido há mais de 20 anos, realizando “uma reflexão mais livre, a partir de uma experiência vivida continuamente com estudantes de Medicina, professores da Faculdade e pacientes”, observa que “não queremos ensinar e que os alunos não querem aprender Psicologia Médica”. Concordamos com Eizirik, quando ele situa essa “afirmação provocadora” como um sintoma do conflito de valores que, na formação e prática médicas, se coloca entre “o objetivo e o subjetivo, entre o quantitativo e o qualitativo, um dos campos de batalha preferidos da Psicologia Médica”. Nos últimos tempos, o desenvolvimento tecnológico tem permitido uma instrumentalização do ato médico que associado à ilusão, muito presente em certos meios pragmatistas e positivistas, de que os fatos falam por si sós, vem levando a uma desvalorização mais intensa da atividade de interpretação dos sujeitos implicados na prática clínica. A oposição subjetivo/objetivo é tomada como uma oposição exclusiva e o campo da prática médica é reduzido a um conjunto de relações necessárias, de tal forma que o singular, o contingente, o histórico, apesar de estarem sempre a instigar, não encontram facilmente um espaço de reflexão. Sua afirmação, no entanto, de que “não queremos ensinar e os alunos não querem aprender, na medida em que nossa matéria se propõe a desvendar, reconhecer, estudar e propor a discussão sobre o mundo interno, o mundo das fantasias inconscientes de nossos pacientes e de nós mesmos, como médicos e como professores”, é mais problemática; e nos dá uma oportunidade de discutir as vicissitudes do ensino da Psicologia Médica, na medida em que nele está implicado o que podemos, informados pela psicanálise e autorizados por uma prática discursiva, realizar na atividade docente-assistencial nesse contexto da formação e prática médicas. Podemos perguntar se há essa demanda por parte de alunos e médicos e se há possibilidade de respondê-la no exercício institucional de nossa prática. Podemos, ainda, nos perguntar o que é possível ensinar teoricamente sobre psicanálise a estudantes de medicina. Não menos problemática é a proposta de que nesse ensino se encontra “como que a alma ou o espírito ou o núcleo central desse complexo fenômeno que denominamos de identidade médica”. No entanto, o próprio autor, relatando o fascínio de um residente em relação aos comentários sobre “razões e motivações que estão subjacentes ao processo de adoecer” feitos por um experiente professor de Clínica Médica, se interroga: “quem ensina Psicologia Médica de verdade? Nós ou eles?” Esse nos parece ser um aspecto muito importante, pois entendendo a formação de uma identidade médica como reflexo de um discurso hegemônico numa Faculdade de Medicina, aquele exercido por professores das especialidades clínicas e cirúrgicas, em especial os de Clínica Médica, não cremos estar investidos numa “mesma tarefa” e, portanto, pretendemos investigar as contradições, os impasses, as concordâncias que se dão nessa tarefa quando a realizam conjuntamente um clínico e um psicanalista. 30 Eizirik, ao nos a f lar da “atitude de nossos colegas de outras áreas”, inclusive alguns professores de psiquiatria, com relação aos professores de Psicologia Médica, refere experimentar uma “cortina de cordial polidez intransponível”, enquanto seus alunos encontram no corpo docente “uma atitude generalizada de descaso e descrença na Psicologia Médica”, que se expressa nas mensagens recebidas pelos alunos sobre a representação desse discurso como “frivolidade”, “inutilidade”, frescura” e “blá blá blá”. O artigo de Eizirik é, sem dúvida, um testemunho franco e corajoso do mal-estar do psicanalista professor de Psicologia Médica. Zaidhaft (1997), escrevendo sobre sua experiência como professor de Psicologia Médica há 17 anos, também elegendo dar seu “depoimento o mais livremente possível”, levanta as seguintes perguntas: “o que vem a ser psicologia médica? é uma especialidade médica como outra qualquer? uma especialidade psicológica? uma psicologia de cunho médico, científico? uma psicologia para tratar da medicina? não seria apenas questão de bom senso? virtude que vem - ou não - do berço? isto pode ser ensinado? coisa de país sub-desenvolvido que se extingüirá com o avanço da psiquiatria “científica”? [...] quais os limites de minha função, a razão mesmo de sua existência, meus objetivos, meu objeto, quais as repercussões futuras do que ensino (ensino?)" (ZAIDHAFT, 1997, p.71). Já nos avisando que quem puder respondê-las merecerá o Prêmio Nobel, ele nos diz, no entanto, algo central sobre o ofício do profissional nesse campo institucionalizado: “a construção de nossa identidade profissional está sempre por se fazer”, estando o profissional permanentemente a se perguntar a cada interconsulta “qual a demanda do profissional que pede o parecer”, “que lugar ocupo em cada caso atendido”, de forma que “cada caso é como se fosse o primeiro” assim como “cada aula é um novo desafio” (p.71-72). Zaidhaft preocupado, sobretudo, com a “abolição da escuta em favor do olhar médico” que, numa busca equivocada de evidências empíricas para uma construção explicativo-causal, pode não só desvalorizar a palavra de sofrimento do doente, mas colocá-la num outro registro, que não é mais o da escuta de uma verdade histórico vivencial, traz dois exemplos expressivos do que considera o efeito da "(de)formação médica" (p.82). O "interesse" de uma residente em Cirurgia pelos estudos que estabelecem associações entre "a eclosão de câncer e eventos da vida, depressão, luto, etc.", que a levou a interrogar a paciente e a solicitar a investigação de um profissional de Psicologia Médica, sobre "as razões psicológicas que a fizeram produzir um tumor". E a expressão utilizada por um profissional "psi" que, solicitado a realizar o diagnóstico diferencial numa paciente que apresentava sintomatologia sugestiva de crises convulsivas, concluiu tratar-se de um "quadro somatoforme" e, entre outros aspectos, registrou no prontuário "como provável motivo do quadro": "apresentou perda do pai há um mês" (Cf. p.73-78). Considerando os textos de Eizirik (1994), Zaidhaft (1997) e Muniz e Chazan (1992), professores de Psicologia Médica de três instituições públicas de ensino médico de nosso país, poderíamos dizer que há uma crise nesse campo onde o professor se confronta com os alunos quase cooptados por um pragmatismo, que exclui qualquer outro valor que não o da eficácia da ação e desconsidera o valor de verdade no discurso, como desconsidera o valor da palavra. A Transmissão na Formação Clínica A formação médica, lugar de reprodução do saber e lugar privilegiado de reprodução da prática médica, foi por nós escolhida para trabalhar as contradições a que nos vimos referindo. A formação médica passa, além da aquisição de conteúdos e habilidades técnicas, pela apreensão do cenário social onde se desenrola a prática assistencial institucionalizada e pela busca de uma identificação do aluno com o seu professor. É sobretudo nas atividades práticas em ambulatórios 31 e enfermarias, sob responsabilidade das várias disciplinas clínicas e cirúrgicas, que o aluno, de maneira implícita e sem nenhuma clareza de consciência, vai construindo sua identidade profissional no que concerne aos valores sociais de uma prática com suas implicações no modo de vivenciar e realizar essa prática. Alguma coisa acontece para transformar o olhar e a escuta curiosa, dócil e inquieta, de tão jovens estudantes dos primeiros anos em uma busca obstinada de aquisição de conhecimento e habilidades técnicas, como se o único significado fosse curar, controlar ou reduzir sintomaticamente as manifestações das doenças. A medicina, para os quase médicos, não parece ser, de forma predominante, pensada como uma prática social onde tudo ganha sentido, mas sim como uma prática de sentido único, qual seja, uma oportunidade de exercício de um saber como poder que cura, controla ou reduz as manifestações das doenças, cujos sucessos maiores ou menores são unicamente dependentes do estágio de desenvolvimento de um conhecimento técnico, passível de ser aprendido nos últimos artigos publicados e no trabalho com profissionais mais experientes, onde as dúvidas e incertezas se redimem e a angústia do desconhecimento tem seu horizonte de finitude. A especialização do conhecimento médico colabora, evidentemente, para o sonho do domínio total de um determinado campo e para a atomização da prática médica, cada vez mais reduzida a uma intervenção imediata de uma técnica sobre um pedaço de corpo, como se nada fosse mediado pela relação entre os sujeitos sociais dessa prática. Essa prática restritiva e reducionista, que deforma a formação médica, não se sustenta nem mesmo na medicina hospitalar, onde se realiza mais amplamente a racionalidade anátomo-clínica, que pretende dispensar outras formas de racionalidade e nega a “razão argumentativa” (PERELMAN, 1996a) que se confronta, no campo da prática clínica, com a incerteza na decisão. O exercício da clínica não dispensa a razão argumentativa. Ela se faz presente seja quando as provas lógicas ou empíricas, que fundamentam o discurso da medicina, mostram seus limites em relação a decisões clínicas que se impõem em casos singulares, seja, last but not least, quando o médico, em seu discurso dirigido ao paciente, precisa argumentar em busca de sua adesão para os procedimentos de investigação ou de terapêutica propostos. O campo específico de nossa pesquisa não propiciará uma investigação mais ampla da lógica argumentativa no exercício da clínica, na medida em que os sujeitos de nossa pesquisa não estão diretamente implicados na tomada de decisões nas situações clínicas apresentadas. No entanto, a apreciação dessas situações trazidas pelos alunos sujeitos da pesquisa - que estão a meio caminho de uma identidade profissional, poderíamos dizer a meio caminho entre médicos e pacientes num processo de apropriação do discurso médico - pode evidenciar a presença simultânea de razões diversas no exercício da clínica. É que a clínica, embora apoiada na lógica científica positivista, está a exigir soluções que não podem estar referidas apenas ao modelo matemático baseado na clara distinção entre verdadeiro/falso, mas que se colocam também no âmbito do modelo jurídico, do duvidoso que impõe a decisão e a escolha justificadas na argumentação, estando o trabalho do médico a criar jurisprudência em relação aos procedimentos terapêuticos. Parece-nos bastante aplicável ao campo da clínica o que nos diz Motta Pessanha sobre a teoria da argumentação de Perelman, a filosofia e as ciências humanas: “...diante de diferentes argumentos dotados de força diversa, a função do intelectual é julgar, não como matemático, mas como juiz: arbitrar com a responsabilidade do árbitro que jamais se defronta com a alternativa absolutamente certo ou absolutamente errado, mas com construções argumentativas diferentes, muitas vezes litigantes, e cuja força deve comparar, sopesar, ponderar. E como não há instância última de julgamento, a filosofia e as ciências humanas inevitavelmente permanecem como processos abertos à revisão, à acolhida de novas provas, novos depoimentos, novas arbitragens” (MOTTA PESSANHA em CARVALHO, 1989, p.238). 32 A presença de diversas lógicas e razões justificadas pela argumentação no exercício da clínica, demonstrando a função de julgamento na decisão, pode ser exemplificada no seguinte fragmento de uma discussão retirada de nossa prática docente-assistencial: Uma adolescente de 15 anos, após quatro anos de evolução de uma retocolite ulcerativa, encontra, após um ano de procura, diagnóstico e tratamento. Quase dois meses de internação, o tratamento clínico não resulta suficiente, como sugerem sobretudo ou evidenciam a retosigmoidoscopia, a urocistografia, o clister opaco - o olhar anátomo-clínico. A indicação cirúrgica, ou melhor, a escolha entre uma colostomia provisória ou definitiva se coloca em discussão. A indicação cirúrgica é consensual. Os cirurgiões proctologistas são favoráveis à colostomia definitiva, enfatizando as lesões vistas no trato distal do cólon. Os clínicos experimentam a dúvida, mostrando alguma hesitação que é seguida do reconhecimento de um saber supostamente maior por parte dos especialistas. O profissional de Psicologia Médica, a partir da comunicação do clínico, compartilha com ele sua dúvida, ampliando-a e tentando dar-lhe maior legitimidade. O clínico conclui que ele, na condição de médico-residente, não pode dizer dessa sua dúvida ao especialista cirurgião. Pensamos, então, que poderíamos dizê-la a um professor de clínica médica e este aos cirurgiões. O professor clínico optou por "dar uma chance à paciente, que tem 15 anos, não tem uma patologia maligna e, depois, tem uma doença que, sabe-se, tem um componente emocional importante". A paciente é, então, submetida a uma colostomia provisória. Segue em tratamento clínico. Passa-se um mês, repetem-se os exames invasivos. A melhora apresentada nas lesões do cólon são apreciadas como menores do que se esperava. Disso resulta uma alteração no tratamento clínico. A pergunta, presente desde o início do processo clínico, mais uma vez, se faz expressar: amputa-se o trato distal do cólon ou insistese no tratamento clínico acompanhando a evolução? Dessa vez, ao perguntarmos ao médico responsável pela paciente e, portanto, pela equipe clínica que a trata, que elementos seriam considerados para se chegar a essa conduta, escutamos uma rara reflexão: "é uma decisão ética, porque não temos nenhum estudo de caso controle que nos diga qual a conduta definitiva". Abriu-se a possibilidade para um outro olhar em profundidade, não o olhar do corpo anátomopatológico, mas aquele que aponta para a disponibilidade subjetiva vivenciada na relação do médico com sua paciente na complexa rede de relações institucionais. Em função das significações produzidas em uma história singular, isto é, na contingência do campo onde se realiza o julgamento clínico, decide-se a conduta médica. E, assim, dá-se o caminho da clínica. O conhecimento e o desconhecimento dos sujeitos operam numa prática que não admite adiamento de decisão, obrigando os médicos a realizarem escolhas na incerteza que, pela racionalidade dos argumentos, podem aceitar o duvidoso nos limites da razão, sem elidir o risco do engano e do erro, chegando à definição de procedimentos quase sempre com conseqüências definitivas. Cada um por si e Deus contra todos, título original da obra de Herzog sobre Kaspar Hauser, nos faz pensar na prática médica, em que a pressuposição de que ela sempre foi e é orientada por uma ética humanística, certamente, teria de ser arduamente argumentada. Quantos de nós não poderíamos supor momentos fugidios de intensa angústia, quando rapidamente procuramos palavras para significá-la, ao nos vermos envolvidos com a experiência do adoecer e do curar. Médicos presididos por uma razão instrumental, tratando doentes como objetos da natureza que, sem dúvida, seus corpos também o são, em busca de prever, predizer e controlar as doenças, cujo conhecimento tem trazido benefícios inegáveis, ao desconhecer os limites dessa razão instrumental, realizam uma ação considerada eficaz, que nos coloca claramente um risco ligado à ética instrumental do pragmatismo, como nos aponta Jurandir Freire Costa: “é que ela [a ética instrumental] facilmente pode resvalar do sujeito definido taticamente como objeto de intervenção instrumental para um sujeito que ganha o estatuto de objeto, e ponto final. E por quê? Porque a moral do objeto é a moral absolutamente invasiva, pervasiva da nossa cultura. A tentativa de nos definir como objetos de circulação, seja em cadeias de lucro, seja em cadeias imaginárias de produção de desejo, é uma constante. O funcionamento do objeto é muito pregnante no imaginário social” (COSTA em FIGUEIREDO e SILVA, 1996, p.33). 33 O discurso da medicina leva os médicos, como seus agentes, a transformar sujeitos em meros objetos da natureza nesse pensamento pragmático e reducionista. Os psicanalistas implicados na formação dos médicos, poderiam influenciar na transmissão do discurso médico denunciando esse modelo redutivista, problematizando e enriquecendo a prática da medicina de forma a não reproduzir um céptico dar de ombros na consideração da complexidade do fenômeno do adoecer, que resulta em médicos, psicanalistas e pacientes "cada um por si e Deus contra todos". A medicina científica moderna, elegendo a doença como seu objeto, constrói um discurso que determina e constitui o médico, impondo limites no exercício de sua prática. Como nos diz Lebrun: “O discurso médico é em efeito um pouco como uma língua que não nos permitirá ouvir senão o que ela autoriza enunciar” (1993, p.42). No entanto, isso não livra necessariamente o médico, enquanto sujeito no seu encontro com outro sujeito, o paciente, de sofrer o impacto do sofrimento que esse segundo sujeito enuncia. As palavras trocadas nesse encontro não estariam assim limitadas a apenas comunicar, mas nos referem ao valor de significância do discurso, valorizando a atividade interpretativa da subjetividade e colocando, assim, o conflito que se dá na prática clínica. Pois, o discurso da medicina, como nos diz Clavreul, acaba “constituindo o que faz seu objeto (a doença) como sujeito de seu discurso", e "apaga a posição do enunciador do discurso que é a do próprio doente no enunciado do sofrimento, e a do médico na retomada desse enunciado no discurso médico”; o que o permite concluir, enfatizando a exclusão do sujeito, que para a medicina científica positivista “a relação ‘médico-doente’ é substituída pela relação ‘instituição médica-doença’ ” (CLAVREUL, 1983, p.49-50). Sem dúvida, é na relação dialética doença/doente que o médico pode vivenciar alguma contradição, pois se ele, ao exercer a clínica, só se constitui como médico pela existência de um paciente, ao mesmo tempo, ele está referido ao conflito que, negando a razão dialética que o constitui, o coloca entre se identificar com o doente no seu sofrimento ou se identificar com a instituição e o discurso da medicina. A medicina é uma prática social, que exige mais do que a simples aplicação de um saber sobre a doença, e temos que considerar a Psicologia Médica, como o campo institucionalizado de uma prática docente-assistencial de psicanalistas numa Faculdade de Medicina, como uma oportunidade de enfatizar o sujeito da doença, o paciente, como um sujeito desejante irredutível à dimensão de um conhecimento conceitual sobre a doença, um sujeito que nos apresenta a dimensão transferencial no campo dinâmico da relação médico-paciente, a qual encontra seus modelos teóricos calcados na psicanálise, em especial os propostos por Balint, Perestrello, e Luchina. A práxis social na qual estamos situados nos determina, e é através da linguagem que caracteriza a comunidade semiótica onde estamos inseridos, que poderemos estudar os limites da interação de distintos discursos, como o psicanalítico e o médico, na discussão da transmissão na formação clínica. Poderíamos dizer, com a psicanálise, que o discurso médico cujo objeto é a doença realiza a exclusão do sujeito - médico e paciente - pois o sujeito, muito além de um agente da sua própria fala, se constitui na palavra que ele enuncia sempre provisoriamente num vir-a-ser, sempre no campo intersubjetivo onde se realiza a enunciação. Enquanto sujeitos, o paciente é indissociável de seu sintoma, de sua história, e o médico, nas palavras que enuncia para dizer alguma coisa a seu paciente a partir de seu conhecimento sobre a doença, tenta negar qualquer vivência conflitiva para agir diretamente sobre o “corpo da doença”. Para a psicanálise, o conflito é permanente e a autonomia e a independência da razão, postuladas no Iluminismo, são ilusões objetivistas da ciência positivista. O sujeito, diferenciado do Eu pronominal, é um "sujeito pretendido" (VITAL BRAZIL, 1988), sujeito do conhecimento/desconhecimento, que aparece como emergente na razão dialógica de um campo intersubjetivo. Nessa perspectiva psicanalítica, o advento do sujeito do conhecimento, irredutível à dimensão da consciência, se dá na linguagem, associado a uma alienação primária, que é alienação do próprio corpo, implicando o desconhecimento, ao admitirmos o valor operatório do conceito de inconsciente na interpretação do sentido. Ao valorizarmos a contribuição de Bakhtin (1981), que produz uma teoria da enunciação que se efetiva na interação social, na dialógica, estamos nos situando em relação a essa 34 complexidade da relação sujeito/linguagem, na sobredeterminação do sujeito pelos valores sócioideológicos da linguagem. “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (BAKHTIN, 1981, p.123) (grifos do autor). Para Bakhtin e, poderíamos dizer, para Blikstein (1985) e todos os autores que defendem a centralidade da linguagem, “os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência” (BAKHTIN, 1981, 108). A enunciação é o produto da interação de pelo menos dois indivíduos socialmente organizados. Referida sempre a um interlocutor, mesmo a um interlocutor potencial, a enunciação é sempre “função” desse interlocutor. Toda a enunciação está referida a um certo “horizonte social” definido, que determina a criação ideológica do grupo social assim como da época a qual este pertence, um horizonte contemporâneo de uma certa literatura, de uma ciência, de uma moral e de um direito. Bakhtin nos introduz a dialógica, considerando que a enunciação monológica é “uma abstração de tipo ‘natural’ ”. “Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. [...] Uma inscrição, como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante” (BAKHTIN, 1981, p.98). Compreendendo a fala com seu valor de ato social, ela é um ponto de encontro entre indivíduo e sociedade, um ponto de tensão. A fala é, portanto, “o produto da interação do locutor e do ouvinte” e, nesse sentido, ainda que ela não pertença totalmente ao locutor, “cabe-lhe contudo uma boa metade” (BAKHTIN, 1981, p.112-113). Assim como toda enunciação é de natureza social, a palavra também é um signo ideológico para Bakhtin. Para o falante nativo, as palavras que ele pronuncia ou escuta não são para ele um item do dicionário, no sentido de um signo imutável, sempre idêntico a si mesmo, mas sim um signo variável e flexível, parte de enunciações apresentadas em contextos precisos, quer sejam suas ou de outros locutores de sua comunidade lingüística. A palavra, portanto, é polissêmica havendo “tantas significações possíveis quantos contextos possíveis” (BAKHTIN, 1981, p.106). A unicidade da palavra, dada não só por sua composição fonética como também por uma unicidade inerente a todas as suas significações, se relaciona dialeticamente com sua polissemia. “A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra” (BAKHTIN, 1981, p.130). Cada enunciação completa contém um sentido definido e único, que Bakhtin chama de “tema”, que é determinado não só pelas formas lingüísticas, mas também pelos elementos nãoverbais da situação concreta, histórica, na qual a enunciação é produzida. “O tema da enunciação é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não reiterável. [...] O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir” (BAKHTIN, 1981, p.128-129). O tema que as enunciações concretas nos trazem está presente na história viva dos grupos. A compreensão de um tema de uma enunciação, é sempre um processo ativo, uma réplica no diálogo social, só podendo, portanto, se dar contextualmente. 35 Para Bakhtin é fundamental distinguir tema e significação e compreender sua interrelação dialética. Cada enunciação concreta possui um tema “não reiterável” e uma significação dada pelos vários elementos que são “reiteráveis e idênticos” presentes na enunciação. A enunciação, portanto, é passível de ser analisada através das significações, de aspectos da língua tais como suas formas morfológicas e sintáxicas, entoação expressiva, etc... Só que, para Bakhtin, a significação só se realiza no tema. “A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto” (BAKHTIN, 1981, p.131) de uma enunciação, de uma interação verbal historicamente situada. Para Bakhtin, o fenômeno lingüístico para o falante nativo não é o sistema normativo da língua, que é uma “abstração científica”, mas sim a enunciação e, portanto, a significação da palavra como elemento da enunciação que põe em questão o sujeito e não pode se restringir à investigação da palavra dicionarizada. Sendo assim, toda palavra, como elemento de uma dada enunciação, tem uma significação e um acento apreciativo, e a pluralidade de acentos é o que confere vida à palavra, produzindo e atestando seu caráter polissêmico. Toda enunciação tem uma orientação apreciativa e está referida, portanto, a um juízo de valor. A linguagem é uma prática social que constitui e revela os recursos que os sujeitos usam para elaborar, construir o seu conhecimento, a sua visão de mundo. A linguagem se articula à experiência vivida de modo essencial e não como uma estrutura acessória à vivência. Não é possível pensar o ensino da Psicologia Médica como um saber que se somaria a outro, mas sim como um conhecimento que vai problematizar outro saber dialogicamente e a razão presente é, sobretudo, argumentativa. E a possibilidade de problematização se dá pela existência de uma prática clínica, pois os saberes de origem têm objetos distintos e essa pluralidade discursiva não se articula no sentido de uma lógica estritamente conceitual. Não é casual que esse campo, usualmente chamado de Psicologia Médica, tenha nascido de uma tentativa pioneira de Balint, numa busca de reflexão conjunta sobre a prática médica realizada por um psicanalista e clínicos gerais, isto é, na interseção entre saberes que se diferenciam por suas respectivas práticas. Foucault faz uma observação interessante sobre o discurso científico e literário a partir do século XVII e “a função do autor”: no primeiro, ela se enfraqueceu e, no segundo, ela se reforçou. Ora, médicos iludidos como homens de uma prática científica não podem pretender “a função de autor”, mas apenas se tornarem conhecedores competentes de um “sistema anônimo” - a medicina enquanto disciplina - cuja aplicação no caso singular, no cotidiano de uma prática personalizada, mesmo que institucionalizada, convoca o sujeito como função da intersubjetividade e implica o conflito das escolhas responsáveis sobretudo para os médicos que, por sua vez, lidam também com dificuldade com as possíveis escolhas responsáveis dos pacientes. Nesse sentido é importante citar a busca do trabalho interdisciplinar de médicos e professores de literatura na formação médica, a partir da década de 70, no sentido de sensibilizar os estudantes de medicina à dimensão narrativa, problematizando “a função de autor” na prática médica. Atualmente cerca de um terço das escolas médicas dos Estados Unidos têm em seus currículos cursos de literatura e medicina, a maioria sendo oferecida nos anos pré-clínicos, como parte do currículo obrigatório ou como módulo eletivo, em geral, integrando o ensino de humanities que contempla estudos em filosofia, história, direito, religião, etc. (CHARON e cols., 1995). Com o estudo da literatura pretende-se desenvolver a “competência narrativa”, aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção empática a pacientes. Por competência narrativa os autores enfatizam a capacidade de adotar outras perspectivas, de seguir o encadeamento de histórias complexas, por vezes caóticas, tolerar ambigüidade e reconhecer os múltiplos, freqüentemente contraditórios, significados dos acontecimentos vivenciados pelas pessoas. Participam como professores doutores em literatura e doutores em medicina, fortemente interessados na contribuição da literatura à prática clínica, sendo esse trabalho conjunto, na opinião dos autores, a estratégia ideal para todas as iniciativas no ensino de humanities no curso médico (HUNTER e cols., 1995). Os autores consideram como um dos elementos mais importantes, ausente nos cursos de graduação de literatura assim como nas outras disciplinas do curso médico, a exploração explícita das associações e respostas emocionais dos leitores suscitadas pela leitura de textos 36 literários. A partir do texto, propicia-se que os estudantes discutam percepções, crenças e valores. Essa iniciativa se aproxima de nossa proposta, na qual pretendemos discutir um modelo de transmissão de conhecimento na formação médica que leve em conta estarmos numa prática como participantes, exercendo a função crítica em um outro nível que não o de desconsiderar diferentes valores, incluindo o valor de eficácia que a prática clínica descobre para si mesma como não sendo o único valor do próprio discurso que enuncia. Entre nós, em 1987, Zaidhaft e Spitz introduziram o uso de textos literários na avaliação dos alunos na disciplina de Psicologia Médica. Selecionaram textos das obras A morte de Ivan Ilitch de Leon Tolstoi e Uma morte muito suave de Simone de Beauvoir que nos falam da experiência do adoecimento, da proximidade ou da antecipação da morte e das relações vivdas entre enfermo, familiares e médicos. Analisando a experiência pedagógica, os professores sublinham a originalidade, a criatividade nas respostas dos alunos, que não teriam se limitado a escrever “simplesmente o que imaginaram que o professor gostaria de ler” (p.149). Tendo em mente seu auditório, Zaidhaft (1990) explicita “as questões inevitáveis: o que tudo isso tem a ver com Medicina? Filmes, romances, respostas originais?” (p.149). Para o autor, a possibilidade de narrativas sobre como os médicos são vistos por pacientes e seus familiares, como as decisões médicas repercutem e “podem determinar o rumo” da vida e da morte de uma pessoa teriam o objetivo de contribuir para a reflexão crítica dos alunos sobre sua prática e de preservar a sensibilidade, a capacidade de perceber a si próprios e a seus pacientes como seres humanos (Cf. ZAIDHAFT, 1990, 143-149). A RAZÃO ARGUMENTATIVA NA ANÁLISE DO DISCURSO “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” Michel Foucault, A Ordem do Discurso Foucault, ao falar do que ele considera “procedimentos de controle e de delimitação do discurso” que “concernem, sem dúvida, a parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo” (1996a, p.21), nos aponta três grandes sistemas de exclusão: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade, dando primazia ao último que, como ele destaca, vem “atravessando” os dois primeiros que se tornam cada vez “mais incertos”. É quando, sobretudo, Foucault nos fala da vontade de verdade que podemos aproximá-lo da psicanálise e da teoria da argumentação de Perelman. Foucault distingue dois níveis ao nos falar da oposição do verdadeiro e do falso. No primeiro considera que uma proposição, no interior de um discurso, pode ser passível de uma distinção “não arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta”. No entanto, num outro nível, que ele assinala como regendo historicamente o que ele denomina nossa “vontade de verdade” ou “vontade de saber”, Foucault considera essa oposição entre o verdadeiro e o falso como “um sistema histórico, institucionalmente constrangedor” (1996a, p.14). 37 Foucault situa no século V a.C. o estabelecimento de uma constituição histórica dessa separação, que “deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade de saber, mas não cessou, contudo, de se deslocar”, quando, em suas palavras: “a verdade a mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência” (FOUCAULT, 1996a, p.15) (grifos do autor). E como assinala Foucault nessa referência à verdade retórica, à verdade como relevância no discurso, descoberta na singularidade do contexto, “tudo se passa como se, a partir da grande divisão platônica, a vontade de verdade tivesse sua própria história, que não é a das verdades que constrangem” (1996a, p.17). E o autor conclui: “E, contudo, é dela sem dúvida que menos se fala. Como se para nós a vontade de verdade e suas peripécias fossem mascaradas pela própria verdade em seu desenrolar necessário. E a razão disso é, talvez, esta: é que se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e liberta do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la” (1996a, p.19-20). Perelman ao reabilitar a retórica, cujo pioneirismo é unanimemente reconhecido, retoma a argumentação “dialética” de Aristóteles, cuja desvalorização em relação ao raciocínio por demonstração analítica só pode ser compreendida no contexto da história. A distinção proposta por Aristóteles entre esses dois modos básicos de raciocinar não encerra qualquer hierarquização. Diz respeito, fundamentalmente, ao fato de que no silogismo analítico parte-se de uma proposição evidente, cuja demonstração leva à conclusão verdadeira, enquanto no silogismo dialético parte-se de uma premissa provável, que possibilita conclusões apenas verossímeis. Para Aristóteles, as proposições evidentes são aquelas que por si mesmas garantem a própria certeza, sendo que as premissas prováveis são as que enunciam opiniões aceitas por todos, pela maioria ou pelos sábios (Cf. 1996a, p.XI-XII). Acreditando que “o estudo do opinável”, do silogismo dialético, nos Tópicos de Aristóteles ganha maior sentido no contexto da retórica, cuja idéia essencial, já presente nas antigas teorias, é a de que a argumentação só se desenvolve em função de um auditório, Perelman desenvolverá uma Nova Retórica, privilegiando o estudo da argumentação filosófica, já que para seu auditório presumido, a sugestão, a pressão ou o interesse não têm maior ascendência. No entanto, se dizendo “um lógico desejoso de compreender o mecanismo do pensamento” e não “um mestre de eloqüência cioso de formar praticantes”, Perelman investiga vários textos, analisando inclusive os meios de prova utilizados pelas ciências humanas, e conclui por uma afinidade das estruturas argumentativas dos textos filosóficos às discussões cotidianas. Como nos lembra Perelman: “...enquanto nossa civilização, caracterizada por sua extrema engenhosidade nas técnicas destinadas a atuar sobre as coisas, esqueceu completamente a teoria da argumentação, da ação sobre os espíritos por meio do discurso, esta era considerada pelos gregos, com o nome de retórica, a τ ε χ ν η [tecné] por excelência” (1996a, p.9). 38 Perelman opõe-se à distinção tradicional entre a “ação sobre o entendimento” e a “ação sobre a vontade”, por considerar um “erro” conceber o homem como que constituído de faculdades separadas e por acreditar que essa distinção leva ao impasse, no sentido de não admitir que uma ação fundada na escolha possa ter uma justificação racional. Assim, considera como “um caso particular”, embora reconheça toda a sua importância, o processo argumentativo onde “a prova da verdade ou da probabilidade de uma tese pode ser administrada no interior de um campo formal, científica ou tecnicamente circunscrito, de comum acordo, por todos os interlocutores” (1996a, p.52). E nos campos que escapam ao cálculo, onde nem a experiência nem a dedução lógica podem fornecer a solução de um problema, a argumentação tenderá a provocar uma ação que resulta de uma escolha deliberada entre vários possíveis, sem que haja acordo prévio sobre um critério que permita hierarquizar as soluções. Perelman, estabelecendo assim a questão do preferível, nos permite promover a aproximação da psicanálise à teoria da argumentação, uma vez que esse preferível, escapando ao contexto da prova, é o que mostra, depois da ação realizada, a determinação do desejo inconsciente na escolha. A prova retórica jamais é totalmente necessária e, portanto, aquele que dá sua adesão às conclusões de uma argumentação o faz por um ato de decisão, mas não inteiramente redutível à determinação da consciência; um ato que envolve o seu desejo e que o envolve e pelo qual é responsável, não permitindo a exclusão do sujeito, como função da intersubjetividade, e do valor da diferença entre enunciação e enunciado. As Premissas da Nova Retórica Lógico e filósofo por formação, além de doutor em direito, Perelman se dedicou à pesquisa de uma “lógica dos julgamentos de valor”, discordando da limitação imposta à idéia de razão na tradição cartesiana pretendendo, assim, um alargamento da concepção de razão, de modo a resgatar a racionalidade no campo dos empreendimentos humanos, no qual intervém nossa faculdade de raciocinar e de provar, que escapam ao domínio da certeza, do rigor e do cálculo. Escreve Perelman: “A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável” (1996a, p.1). A teoria da argumentação de Perelman tem como objeto o estudo das técnicas ou recursos discursivos que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes são apresentadas. Todo discurso, oral ou escrito, se dirige a um auditório, e é em função do auditório a que se dirige o orador que sua argumentação se desenvolve. Perelman distingue os auditórios em função de quem o orador quer influenciar com sua argumentação. Nesse sentido, o auditório não se define pelas pessoas com quem concretamente o orador dialoga. Na medida em que o auditório é sempre um auditório presumido, isto é, uma construção do orador, o orador só se dirige ao auditório considerado universal quando pretende que seus argumentos sejam aceitos por todos os seres dotados de razão e, ao dirigir-se a um auditório especializado, elabora argumentos que crê serem aceitos por aqueles que caracterizam esse determinado auditório particular. Ciente de que a “qualidade dos espíritos” na adesão a certos argumentos confere “uma garantia do seu valor”, o autor pesquisou argumentações apresentadas por filósofos em seus tratados, advogados em seus arrazoados, juízes em suas sentenças, políticos em seus discursos, publicitários em seus jornais, etc. E Perelman conclui que “as mesmas técnicas de argumentação se encontram em todos os níveis, tanto no da discussão ao redor da mesa familiar como no do debate num meio muito especializado” (1996a, p.8). A partir dessa sua pesquisa em textos escritos, Perelman elabora uma tipologia de acordos em relação às premissas, ou seja, o que é aceito como ponto de partida para o desenvolvimento da argumentação, e elabora, 39 também, uma tipologia de técnicas argumentativas, ou seja, um conjunto de processos de ligação e de dissociação entre elementos do discurso que são utilizados, ao longo da argumentação, de forma a que se realize sua finalidade qual seja a de transferir a adesão concedida às premissas para as conclusões. Perelman, ao analisar os objetos de acordo que podem servir de premissas numa argumentação, distingue dois tipos de acordo, em função do papel que desempenham no processo argumentativo. O primeiro diz respeito a tudo que versa sobre o real - fatos, verdades e presunções - e que se caracteriza por pretender ter validade para o auditório universal. O outro tipo de acordo versa sobre o preferível e sua validade está sempre referida a um auditório particular. Na argumentação, a noção de fato indica um gênero de acordos que está referido ao auditório universal, portanto é determinado pelo modo como é concebido esse auditório. Para Perelman, só estamos em presença de um fato se podemos postular a seu respeito um acordo universal não controverso, sendo a atitude dos ouvintes o único critério que permite conferir a alguma coisa o estatuto de fato. “A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos” (1996a, p.75). Mas nenhum enunciado goza de um estatuto definitivo de fato, pois depende de um acordo que é passível sempre de ser questionado. O acordo, a adesão em relação a um fato não só não necessita justificação, como também não pode depender de argumentação, pois isso implicaria a perda do estatuto de fato. Dentre os fatos podemos ter fatos de observação, fatos supostos, fatos convencionais e fatos possíveis ou prováveis. As verdades, para Perelman, têm as mesmas características dos fatos na argumentação, só que, diferentemente destes, transcendem a experiência e se referem a sistemas como teorias científicas, concepções filosóficas ou religiosas. As presunções, terceira categoria de objetos de acordo que versam sobre o real, se referem, portanto, também ao acordo do auditório universal mas, ao contrário dos fatos e verdades, sua adesão não é máxima e espera-se que ela seja reforçada. Portanto, ao lado de fatos e verdades, habitualmente nos baseamos em presunções que, no mais das vezes, estão associadas àquilo que normalmente se produz e sobre o que é razoável pressupor. Por exemplo, são presunções de uso corrente: a presunção de que a qualidade de um ato revela a qualidade da pessoa que o realizou; a presunção de credulidade natural que nos faz, num primeiro momento, admitir como verdadeiro tudo o que nos é dito, salvo quando se tenha motivos para desconfiar, etc. Perelman destaca como uma presunção de caráter mais geral, admitida por todos os auditórios, a existência para cada categoria de fatos, notadamente para cada categoria de comportamentos, de um aspecto considerado normal que, funcionando como uma presunção, serve de base para nosso raciocínio. Essa “presunção do normal” raramente pode ser reduzida a características determinadas pela distribuição estatística, embora ela esteja sempre referida a um grupo de referência, o qual quase nunca é explicitamente designado. No entanto, não só as presunções ligadas ao normal são objeto de acordo, mas também o grupo de referência no qual se baseiam. A segunda categoria de objetos de acordo, que versa sobre o preferível, pretende apenas a adesão de auditórios particulares e é constituída pelos valores, hierarquias e os lugares do preferível. Perelman, portanto, distingue os argumentos que dizem respeito ao real, conhecido ou presumido, daqueles que afirmam o que é preferível - os juízos de valor. Os valores como objetos de acordo possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir entre os membros de um determinado grupo. Na argumentação, recorre-se aos valores para levar alguém a fazer certas escolhas em lugar de outras e, principalmente, para justificar essas escolhas de maneira a torná-las aceitáveis e aprovadas por outrem. Numa discussão não é possível recusar a presença de valores; pode-se desqualificar um valor, subordiná-lo a outros ou mesmo buscar que se admitam outros valores. Por vezes, inseridos num sistema de crenças o qual se pretende valorizado pelo auditório universal, alguns valores podem, assim, ser tratados como fatos ou verdades. Ao longo da argumentação, por vezes, não se chega a reconhecer que se trata de objetos de acordo que não podem pretender a adesão do auditório universal. Perelman argumenta que os valores considerados universais ou absolutos, tais como o Verdadeiro, o Bem, o Belo, o Absoluto, só podem ter essa pretensão de acordo universal 40 conquanto não lhe sejam especificados conteúdos. Se tentarmos precisá-los, já não encontraremos senão a adesão de auditórios particulares. Para Perelman, os valores se fazem presentes em todas as argumentações. “Nos raciocínios de ordem científica, eles são geralmente restringidos à origem da formação dos conceitos e das regras que constituem o sistema em questão e ao termo do raciocínio, na medida em que este visa ao valor de verdade. O desenvolvimento do raciocínio é, tanto quanto possível, isento deles; essa purificação atinge o auge nas ciências formais. Mas nos campos jurídico, político, filosófico os valores intervêm como base de argumentação ao longo de todo o desenvolvimento” (1996a, p.84). As hierarquias de valores são, para Perelman, mais importantes do que os valores na estrutura da argumentação, pois o que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza. Na argumentação, a hierarquização dos valores se coloca particularmente explícita quando valores aceitos são incompatíveis numa dada situação e, portanto, a hierarquização apontará aquele que decidimos sacrificar. Os lugares do preferível, na proposta de Perelman, são as premissas mais gerais que permitem fundar valores e hierarquias. São, portanto, os primeiros acordos no campo do preferível, dos quais todos os outros poderiam ser deduzidos ou justificados. Geralmente se encontram subentendidos e são eles que intervêm para justificar a maioria de nossas escolhas. Não pretendendo ser exaustivo e baseando-se na importância na prática argumentativa que revelam certos lugares, Perelman destaca: lugares da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência, da pessoa. Os lugares da quantidade afirmam a superioridade daquilo que é proveitoso ao maior número, daquilo que é mais durável, mais estável e daquilo que é útil nas situações mais variadas. Os lugares da qualidade se opõem aos da quantidade dando preferência ao que é único, singular, raro. Além desses lugares mais freqüentes, Perelman ainda destaca os lugares da ordem, que afirmam a superioridade da causa sobre o efeito, do anterior sobre o posterior; os lugares do existente, que conferem superioridade ao que é em comparação ao apenas possível; os lugares da essência, que dão preferência ao que melhor representaria a essência e os lugares da pessoa, que afirmam a superioridade a tudo que está ligado a pessoas em comparação ao que diz respeito às coisas ou aos outros seres. Para Perelman, analisar esquemas argumentativos ou a estrutura de argumentos isolados é sempre construir uma hipótese mais ou menos provável, não só pelo caráter ambíguo da linguagem natural, mas também pelas motivações de uma argumentação não serem quase nunca explicitadas. Além disso, um mesmo enunciado pode traduzir diferentes esquemas argumentativos que podem atuar simultaneamente sobre os vários ouvintes ou até mesmo sobre um mesmo ouvinte. Apenas um trabalho de explicitação daria ao orador, como aos ouvintes, a consciência sobre os esquemas intelectuais que utilizam ou a cuja ação estão sujeitos. A tipologia de esquemas argumentativos elaborada por Perelman é por ele considerada “lugares da argumentação” e, portanto, apenas o acordo sobre o valor que esses lugares encerram pode justificar a sua aplicação a casos particulares. Nessa tipologia, que não pretende ser única nem exaustiva, Perelman distingue os argumentos quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que visam a fundar a estrutura do real. Os argumentos quase -lógicos são aqueles que lembram, pela sua estrutura, os raciocínios formais, lógicos ou matemáticos e, nesse sentido, retiram sua força argumentativa, retórica, especialmente do prestígio desses modos de raciocínio, não contestados porque considerados rigorosos por grande parte dos auditórios. Perelman procura evidenciar o esquema formal que serve de modelo à construção de vários argumentos quase-lógicos e sugere que é importante explicitar as operações de redução que permitem inserir os dados, uma vez tornados comparáveis, semelhantes e homogêneos, nesse esquema argumentativo, pois é sobre a redução que poderá se dar a controvérsia. As reduções exigidas são de duas naturezas. Uma refere-se aos termos do discurso que são tratados como entidades homogêneas e, como não se trata de signos unívocos da linguagem lógico-matemática mas sim signos polissêmicos da linguagem 41 natural, não há, portanto, garantia de consenso. A outra redução diz respeito à própria estrutura do argumento que, assemelhada a relações lógicas ou matemáticas, põe em questão ligações necessárias entre temas ou proposições que serão ou não objeto de acordo. Dentre os argumentos que apelam para estruturas lógicas, destacamos a incompatibilidade, que se assemelha à contradição formal, e caracteriza-se por duas teses entre as quais é preciso escolher, a não ser que se renuncie a ambas, em uma dada circunstância. Seu risco é a exposição ao ridículo, nunca ao absurdo. A incompatibilidade é sempre relativa a circunstâncias contingentes. Já os argumentos baseados na estrutura do real retiram sua força retórica dessa própria estrutura, valendo-se dela para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se quer fazer admitir. É importante ressaltar que, para Perelman, não se trata de uma “descrição objetiva do real, mas da maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele concernentes” (1996a, p.298). Essas opiniões podem ser tratadas na argumentação como fatos, verdades ou presunções. A maior parte desses argumentos se referem a ligações de sucessão ou de coexistência. Ligações de sucessão ligam um fenômeno a suas causas ou conseqüências e ligações de coexistência unem, por exemplo, uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele fazem parte e, em geral, uma essência a suas manifestações. O argumento pragmático, aquele que permite apreciar um ato ou acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis, está situado no âmbito das ligações de sucessão. Destacamos esse argumento porque dada a sua importância na argumentação, segundo Perelman, certos autores o consideraram como o único esquema argumentativo da lógica dos juízos de valor. Quanto aos argumentos que se baseiam em ligações de coexistência, Perelman assim os denomina para diferenciá-los das ligações de sucessão onde a ordem temporal é essencial. No entanto, não se trata primariamente de uma relação de simultaneidade, mas sim de “uma solidariedade entre duas realidades sendo uma mais fundamental, mais explicativa do que a outra”, cujo “protótipo”, para o autor, são as relações existentes entre a pessoa e seus atos (1996a, p.333-334). Na argumentação, a idéia de pessoa introduz um elemento de estabilidade por oposição aos atos, manifestações transitórias, variadas e mutáveis, embora essa estabilidade nunca esteja totalmente assegurada. A correlação entre a pessoa e seus atos, parcialmente solidários e parcialmente independentes, é que possibilita a utilização freqüente de argumentos baseados nessa relação de coexistência. Tanto os atos repercutem na concepção que se tem de uma pessoa, podendo reformulá-la, como essa concepção pode ser utilizada como premissa para avaliação de um de seus atos. Nesse caso, quando a pessoa serve como contexto para a interpretação do ato, geralmente lança-se mão da noção de intenção. Quando existe uma incompatibilidade entre o que se pensa de uma pessoa e a apreciação de um de seus atos busca-se utilizar “técnicas de refreamento ou ruptura opostas à interação ato-pessoa”. Dentre as relações entre ato e pessoa, encontra-se o discurso como ato do orador, interação característica da argumentação, opostamente à demonstração, já que o papel do orador se torna mais relevante “à medida em que a linguagem utilizada se afasta da univocidade, à medida que o contexto, as intenções e os fins adquirem importância” (1996a, p.361). A pessoa do orador é o contexto mais relevante para a apreciação do sentido e do alcance de suas afirmações, mesmo quando são reproduzidas citações de outros autores, pois não há simples transferência de valores, mas reinterpretação num novo contexto. Dentre outras ligações de coexistência que resultam da transposição da relação atopessoa, Perelman destaca a interação entre ato e essência. “A noção de essência, elaborada em filosofia, é não obstante familiar ao pensamento do senso comum, e suas relações com tudo quanto a expressa são concebidas com base no modelo da relação da pessoa com seus atos” (1996a, p.372-373). Essência, portanto, pode ser uma noção vaga ou precisa, mas introduz um recurso a uma certa estabilidade “que exprime o modo normal como as coisas se apresentam” (1996a, p.373), possibilitando reportar certos acontecimentos como manifestações de uma estrutura. Duas noções são correlativas à noção de essência: as de “falta” e de “abuso”, que correspondem no plano do conhecimento à noção de “deformação”. A utilização das noções de falta ou abuso na argumentação geralmente sugere o desejo de preservar a essência, que não 42 estaria em questão. A falta é característica da argumentação sobre valores, sobre o que deve ser feito, pois é definida em referência a uma norma, quer se trate do normal ou do ideal. Dentre os argumentos que se baseiam na ligação de coexistência ato-pessoa destaca-se o argumento de autoridade, cujo alcance é totalmente determinado pelo prestígio de uma pessoa ou de um grupo de forma que seus atos ou juízos podem ser utilizados como meio de prova a favor de uma tese. Essa utilização é muito freqüente e Perelman considera sua participação “essencial em todos os domínios em que não se dispõe de um procedimento admitido para o estabelecimento dos fatos e das verdades” (1987b, p.256). As autoridades passíveis de serem invocadas são variáveis e não se restringem a autoridades designadas pelo nome ou a determinados grupos como “os cientistas”, “os filósofos”, “os médicos”. A autoridade pode se constituir pelo “parecer unânime” ou “a opinião comum” e, até mesmo, pode ser impessoal como, por exemplo, “a física”, “a religião”, “a Bíblia”. Em se tratando de pessoas, freqüentemente sua autoridade é reconhecida por um auditório especializado. Quando há conflito entre autoridades, surge a questão dos fundamentos e, atualmente, a competência tem sido o fundamento mais alegado em favor da autoridade. O argumento de autoridade, no mais das vezes e como todo argumento, não constitui a única prova e pode ser contestado, inclusive quanto ao valor de seu uso numa dada argumentação. No entanto, pode ser utilizado de maneira abusiva, quando se concede a ele um valor coercitivo, como se as autoridades invocadas fossem infalíveis. Nesse sentido, muito se criticou o argumento de autoridade quando, em verdade, era a autoridade daqueles a quem se fazia apelo o alvo da contestação. Mais importante, no entanto, é que esse argumento é o modo de raciocínio retórico que mais intensamente foi atacado. Como nos diz Perelman: “Atacaram o argumento de autoridade em nome da verdade. E isso porque, na medida em que toda proposição é considerada verdadeira ou falsa, o argumento de autoridade já não encontra lugar legítimo em nosso arsenal intelectual. Mas será sempre esse o caso? Poderíamos reduzir todos os problemas de direito, por exemplo, a problemas científicos, nos quais se trata apenas de verdade? (1996a, p.349) Analogicamente fazemos nossa a questão de Perelman: poderíamos reduzir todos os problemas da medicina, mais especificamente da clínica, a problemas científicos, nos quais se trata apenas de verdade? Não seria “uma ilusão deplorável” crer que os professores de medicina, ao realizarem e ensinarem a clínica, “se ocupam unicamente com a verdade” sobre as doenças e que o sofrimento do doente, inscrito no campo intersubjetivo da relação médico-paciente, não importa nas apreciações e difíceis escolhas dos médicos no processo diagnóstico e terapêutico? Por fim, os argumentos que fundam a estrutura do real tratam de ligações que se fundamentam pelo recurso ao caso particular, que inclui o exemplo, a ilustração e o modelo, ou pelo recurso à analogia. Na argumentação, o recurso ao caso particular desempenha funções diversas conquanto esse seja utilizado como um exemplo, uma ilustração ou um modelo. A argumentação pelo exemplo permite uma generalização, uma regra que o uso do exemplo serve para fundamentar, mas que, no entanto, poderá ser posta em dúvida, o que faz Perelman ressalvar que não está tratando do problema filosófico da indução. Nem sempre a descrição de um caso particular pode ser considerada um exemplo, mesmo quando o orador diz ser essa sua intenção explícita. Muitas vezes não se chega à enunciação de nenhuma regra, mas sim a uma conclusão igualmente particular. O caso invalidante, ou o exemplo em contrário, tem um papel fundamental na argumentação, impedindo uma generalização indevida, restringindo o seu alcance, apontando a direção em que somente a generalização é permitida. O caso invalidante pode também ter a função, na argumentação, de colocar uma regra em evidência. Quando vários exemplos são utilizados, Perelman chama a atenção para a interação entre eles, ou seja, um novo exemplo pode modificar o significado dos exemplos anteriores no sentido de melhor especificar o ponto de vista sob o qual os fatos anteriores devem ser apreciados. O fato de se recorrer à argumentação pelo exemplo implica, pelo próprio fato de a ela se recorrer, um certo desacordo sobre a regra que o exemplo é convocado a fundamentar e, ao mesmo tempo, um acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generalização a partir de casos particulares. 43 A diferença entre exemplo e ilustração é sutil, porém relevante. Se o exemplo tem como função fundamentar a regra, a ilustração reforça a adesão a uma regra conhecida e aceita. Nesse sentido, a ilustração serve para esclarecer o enunciado geral, mostrar seu interesse através das várias aplicações possíveis e, sobretudo, promover a presença da regra na consciência dos ouvintes, quando a ilustração é escolhida pela repercussão afetiva que pode ter. Na argumentação, a ilustração inadequada não tem o mesmo efeito do caso invalidante, pois uma vez que a regra não está em questão, a ilustração inadequada repercute sobre aquele que a fornece, como um desconhecimento ou uma incompreensão da regra que a ilustração pretenderia corroborar. Para Perelman, “um homem, um meio, uma época serão caracterizados pelos modelos que se propõem e pela maneira pela qual os concebem” (1996a, p.414). A argumentação pelo modelo ou antimodelo é utilizada quando se pretende estimular ou evitar uma ação inspirada num comportamento particular. Isso não quer dizer que a técnica argumentativa seja vinculada a uma dada situação social ou a determinados valores, o que é claramente evidenciado pela possibilidade da “indiferença ao modelo” servir como modelo na argumentação. Uma segunda possibilidade de ligações que fundamentam o real, investigada por Perelman, se dá através do raciocínio por analogia, do qual se destaca a metáfora considerada por ele uma “analogia condensada”. Perelman postula que a analogia é uma “semelhança de relações” entre dois pares de termos. Denomina de “foro” o par que geralmente é mais conhecido e serve de ponto de apoio para o raciocínio que busca esclarecer, precisar ou avaliar o outro par, por ele chamado de “tema”, sobre o qual repousa a conclusão. Para haver a analogia o “tema” e o “foro” devem pertencer a domínios heterogêneos, ou seja “a especificidade da analogia reside no confronto de estruturas semelhantes embora pertencentes a áreas diferentes” (1996a, p. 447). A metáfora sendo “resultante da fusão de um elemento do foro com um elemento do tema” (1996a, p. 453), ao deixar no não-dito dois elementos, leva a que apenas o contexto possa permitir uma escolha entre as várias analogias que podem se fazer presentes simultaneamente e se influenciar mutuamente. Para o autor, “a conivência entre orador e ouvinte sempre é apenas parcial; nenhum dos dois tem, o mais das vezes, uma idéia precisa da gênese de uma expressão metafórica. A força desta provém ao mesmo tempo da familiaridade com ela e do conhecimento bastante impreciso da analogia que está em sua origem” (1996a, p.463). A riqueza e a ambiguidade de uma metáfora, dada pelo fato de poder corresponder simultaneamente a mais de uma analogia, “fecunda o pensamento”, exercendo um efeito poderoso em nossa imaginação e emotividade. O papel da analogia nos domínios que escapam ao controle da experiência não se restringe ao seu valor heurístico comumente aceito, “andaimes de uma casa em construção que são retirados quando o edifício está terminado” (PERELMAN, 1987a, p.208), pois a justificação da preferência conferida a uma dada analogia em detrimento de uma outra, por exemplo no contexto filosófico, deverá levar a se falar de “ ‘verdade metafórica’, aquela que exprime o real da maneira mais adequada” (1987a, p.210). Reflexão Crítica e Formação Clínica Para Foucault, as instituições escolares, como os hospitais, na sociedade disciplinar moderna, são “blocos” nos quais as capacidades técnicas, o jogo das comunicações e as relações de poder estão ajustados uns aos outros, constituindo um sistema regulado. O que Foucault chama de capacidades técnicas é “o domínio das coisas, da técnica finalizada, do trabalho e da transformação do real”. Já as relações de comunicação constituem o domínio “dos signos, da comunicação, da reciprocidade e da fabricação do sentido”. E o da relações de poder é o campo “da dominação dos meios de coação, de desigualdade e de ação dos homens sobre os homens” (Cf. FOUCAULT, 1995b, p. 240-242). As relações de poder se articulam com as capacidades técnicas e as relações de comunicação nesses “blocos” com diferentes proeminências. Num hospital de ensino, temos tanto a proeminência das atividades finalizadas referida à capacidade técnica, quando enfocamos o exercício do trabalho assistencial, quanto a proeminência das relações de comunicação, típica das instituições de ensino, quando privilegiamos o trabalho pedagógico. 44 O que caracteriza as relações de poder para esse autor é “um modo de ação de alguns sobre outros” no sentido de que “o poder só existe em ato” e, ainda, não se efetua numa ação direta e imediata sobre os outros, mas é “uma ação sobre a ação”, quer sejam ações eventuais, futuras ou presentes. Para Foucault, “o poder só se exerce sobre sujeitos ‘livres’, enquanto ‘livres’ - entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (FOUCAULT, 1995b, p.244). “O outro” sobre o qual uma ação se exerce numa relação de poder é, portanto, alguém que necessariamente precisa ser reconhecido como sujeito de ação e não mero pólo de passividade. (Cf. 242-245) O exercício do poder é, portanto: “um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 1995b, p. 243). Os sujeitos da pesquisa não estão ali para falar a verdade sobre si mesmos, mas falam a partir da verdade parcial do desejo inconsciente. No entanto, as falas dos participantes do grupo não foram objeto de interpretação nesse nível de decifração, pois nos encontramos num contexto pedagógico que, embora peculiar, não possibilita nem comporta esse tipo de análise. Esse reconhecimento, no entanto, é importante porque, tanto ao propormos a experiência pedagógica como ao realizarmos a análise de seu material discursivo, após seu registro visando à pesquisa, nos situamos entre o individual e o coletivo, ou seja, buscamos não colocar esses dois níveis em oposição exclusiva ao admitirmos os efeitos de determinação da história singular, do discurso e das práticas sociais sobre o sujeito e na constituição do sujeito. Estamos em busca da particularidade do saber desses sujeitos sociais - estudantes de medicina, professores de Clínica Médica e psicanalistas professores de Psicologia Médica - que aderem à discussão da prática clínica coordenada por um psicanalista, de onde emerge como tema central a tensão doente/doença no exercício de aprendizes da clínica. E daí o nosso recorte de temas emergentes nas enunciações com Bakhtin que também considera o sujeito determinado pelos valores sócio-ideológicos da linguagem, cuja razão dialógica situa o sujeito da enunciação no contexto social e histórico. Ao investigarmos esse saber que põe em tensão conhecimento e opinião, em cuja produção procuramos evidenciar as estratégias argumentativas, consideramos as possibilidades de transmissão e resistência desse “saber dominado”3, cuja desqualificação está presente nos três discursos de nossa pesquisa, embora através de marcas distintas, tanto pelo lugar institucional e técnico quanto pelo status que estudantes, clínicos gerais e psicanalistas detêm na ordem médica em funcionamento num hospital universitário. E ao considerarmos sua desqualificação no domínio do discurso clínico podemos interrogar, com Foucault: “Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem ‘menorizar’ quando dizem: ‘Eu que formulo este discurso, enuncio um 3 Por “saber dominado” Foucault (1986), ao se referir ao “saber das pessoas”, cita “os saberes do psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do deliqüente, etc.” (p.170). Parece-nos possível considerar o saber que se produz na estrutura dialógica de nossa pesquisa como um saber que tende a ser dominado, subordinado, desqualificado pelo saber médico. 45 discurso científico e sou um cientista?’ Qual vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas circulantes e descontínuas formas de saber?” (FOUCAULT, 1986, p. 172). E como nos diz ainda Foucault: “a partir do momento que há relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa. [...] Para resistir é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha ‘de baixo’ e se distribua estrategicamente” (FOUCAULT, 1986, p.241). Os sujeitos de nossa pesquisa “necessariamente situados e dependentes” em relação ao domínio do saber médico e às relações de poder em seu funcionamento capilar, ao darem seu “consentimento” a essa proposta “eletiva” e ao desenvolverem os temas analisados em nossa pesquisa, se situam, nos parece, como atores de um certo embate dentre as “formas de resistência” a “uma técnica, uma forma de poder”. Essa forma de poder de que nos fala Foucault “aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele” (FOUCAULT, 1995b, p.235). Em nossa pesquisa o que está em questão, a partir da fala dos alunos, é a “identidade” de paciente e a “identidade” de médico, produzidas pelo saber/poder médicos e reproduzidas pela formação médica, quando os alunos na experiência de aprendizado da clínica se defrontam com a tensão doente/doença no exercício e na apreciação do ato médico. A amplificação da voz de pacientes pelos alunos, como indica nossa análise da pesquisa, em especial no 4º tema, talvez se deva a uma identificação na experiência conflitiva de sujeição. Os alunos, sujeitos de nossa pesquisa, num processo de formação que implica a ambivalência do medo e do desejo na apropriação do saber/poder médicos, vivenciam o conflito entre “afirmar o direito de ser diferente” e, ao mesmo tempo, ser alguém que se “liga à sua própria identidade de um modo coercitivo”, em busca de um reconhecimento, no caso a identidade profissional de médico, tal como é definida pela instituição. E o paciente “sujeito a alguém pelo controle e dependência” experimenta conflitos, cujas formas de resistência à ordem médica, estudadas por Herzog (1987), nos indicam que o que o paciente “reivindica, nesta contestação, é a possibilidade de emitir sobre si mesmo uma fala singular” (p.129).4 O paciente “sujeito a alguém pelo controle e dependência” na relação médico-paciente e o estudante da mesma forma na relação professor-aluno mas, sobretudo, sujeito a estar “preso à sua identidade por uma consciência ou auto-conhecimento”, no caso, a identidade profissional em formação, se encontram aproximados numa experiência conflitiva de sujeição. Dentre os aspectos mais específicos dessas lutas contemporâneas que configuram formas de resistência a uma forma de poder, Foucault destaca serem elas batalhas contra “o governo da individualização”, “contra os privilégios do saber” ou melhor “os efeitos de poder relacionados ao saber” e, ainda, que “giram em torno da questão: quem somos nós?” (Cf. FOUCAULT, 1995b, p. 234-235). A oposição ao poder da medicina sobre a população - a "medicalização" da cultura - é uma das lutas que se desenvolveram nos últimos anos, e Foucault ao citá-la como exemplo explicita que a crítica à profissão médica não se dá “essencialmente por ser um empreendimento 4 Sobre as formas de resistência ver Herzog (1987), p.114 à 129. Dentre outros estudos, com referenciais teóricos diferentes, sobre formas de resistência de pacientes ao poder médico, podemos citar Ribeiro da Silva (1976). 46 lucrativo, porém, porque exerce, um poder sem controle, sobre os corpos das pessoas, sua saúde, sua vida e morte” (FOUCAULT, 1995b, p. 234). Para esse autor, um dos aspectos da crise atual da medicina é o risco associado, não à ignorância, mas ao desenvolvimento do conhecimento, das tecnologias e do poder político. “o verdadeiro problema é o que eu chamaria, não de iatrogenia, mas de iatrogenia positiva: os efeitos medicamente nocivos que se devem, não a erros de diagnóstico ou à ingestão casual de medicamentos, mas à própria ação da intervenção médica no que ela tem de racionalmente fundada. [...] Não é mais o não-saber que é perigoso, mas o próprio saber. E o saber é perigoso não somente por suas conseqüências imediatas ao nível do indivíduo ou de grupos de indivíduos mas ao nível da própria história. Esta é uma das características fundamentais da crise atual” (FOUCAULT, 1974, 1ª Conferência). Não analisamos aqui a postulação de Foucault sobre o biopoder ou a biohistória que enfatiza o papel regulador exercido pela medicina sobre a população, a espécie e sua articulação com a racionalidade política, por estar fora do escopo de nosso estudo. 5 O discurso ou as opiniões que teriam sido desqualificados como incompetentes, insuficientemente elaborados ou ingênuos, colocados abaixo do nível de "cientificidade", que Foucault chama de "saber das pessoas", não é de forma alguma um saber comum, um bom senso mas, ao contrário, "é um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unaminidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam" (FOUCAULT, 1986, p.170). Esse saber é um saber que informa o pensamento crítico que não põe em exclusão opinião e conhecimento, enriquecendo um saber da prática que reúne doente e doença, que nos diz que a doença não pode ser uma abstração desligada de uma prática terapêutica, desligada da dimensão do vivido em uma prática que incide sobre um corpo doente, e que se reconhece operando em um campo de significações. Citando Foucault: “Poder-se-ia dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar em uma mesma categoria de saber dominado os conteúdos do conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e estes saberes locais, singulares, estes saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que foram deixados de lado, quando não foram efetivamente e explicitamente subordinados. Parece-me que, de fato, foi este acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu à crítica destes últimos anos sua força essencial” (FOUCAULT, 1986, p.170). Situando, mais uma vez, que é a prática clínica que leva o médico a vivenciar a tensão doente/doença na produção do ato médico, pretendemos a seguir, com a análise do material produzido em nossa pesquisa, apresentar uma contribuição possível à formação médica quando, ao promover um espaço que privilegia o ato de fala do estudante na sua experiência de aprendizado na clínica, facilitamos que ele se ponha à escuta de seu desejo de ser médico e possa refletir criticamente sobre uma prática que o poder médico instituído pretende limitar, redutivamente, aos pressupostos anátomo-patológicos da doença. A PESQUISA: A TENSÃO ESTRUTURANTE DOENTE/DOENÇA 5 Sobre biopoder ver Foucault (1985) cap. V e (1997) p.213-235. 47 Contexto Institucional O campo desta pesquisa está referido à Faculdade de Medicina - UFRJ. Esta escola médica é uma instituição complexa, associada a hospitais e laboratórios, onde se desenvolvem atividades de ensino, assistência e pesquisa. A estrutura curricular do curso médico é organizada através do sistema de créditos, mas a Faculdade de Medicina sugere “planos de estudos” que considera a “seqüência mais recomendável das Disciplinas ou PCIs (Programa Curricular Interdepartamental)” (UFRJ, 1997, p.24) para os vários períodos programados ao longo dos 6 anos, ou 12 semestres, que configuram a duração mínima do curso. É importante destacar que a grande maioria dos alunos percorre os planos de estudos sugeridos, realizando o curso médico de forma expressivamente homogênea no que tange à estrutura curricular de cada período, geralmente concluindo o curso nos 12 semestres previstos. O curso médico, nos seus dois primeiros anos, compreende fundamentalmente disciplinas básicas sob a responsabilidade dos Departamentos pertencentes aos Institutos de Ciências Biomédicas, de Microbiologia, de Biofísica e de Biologia - unidades ou órgãos suplementares que, como a Faculdade de Medicina, pertencem ao Centro de Ciências da Saúde UFRJ. A partir do terceiro ano, o curso médico é essencialmente constituído por disciplinas que integram o ciclo profissional oferecidas pelos dez departamentos da Faculdade de Medicina cujas atividades incluem o treinamento em serviço que se desenvolve principalmente no complexo hospitalar da UFRJ, em especial no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, mas também no Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira, Maternidade Escola, Instituto de Ginecologia e Instituto de Psiquiatria. Nessas disciplinas do ciclo profissional é que os alunos desenvolvem mais expressivamente a competência clínica e cirúrgica, quando interagem com pacientes tendo como docentes médicos que exercem a profissão. A Faculdade de Medicina empreendeu uma reforma curricular ao longo da década de 90. Conforme o documento “Proposta de Mudança Curricular” elaborado pela direção da Faculdade, em 1991, esta proposta encerra: “proposições concretas de maior integração entre os ciclos básico e profissional do curso médico, de flexibilização curricular, de interdisciplinaridade na geração e na transmissão do saber, de adoção de práticas pedagógicas que confiram maior autonomia e preparo científico aos estudantes, a fim de que possa haver uma futura adaptação ao desenvolvimento exponencial do conhecimento e da tecnologia.” Os objetivos gerais do curso médico foram reafimados e consistem em: “O curso médico de graduação visa à formação de profissionais que: - estejam habilitados a prevenir, diagnosticar e tratar as doenças prevalentes da população; - sejam capazes de estabelecer boa relação com os pacientes e com os demais integrantes da equipe de saúde; desenvolvam conduta ética adequada; - tenham pensamento crítico, saibam raciocinar cientificamente e adquiram capacidade de autoinstrução; - estejam aptos a desenvolver-se com aproveitamento em cursos de especialização, mestrado ou doutorado” (UFRJ, 1997, p.24). Em 1991, na primeira etapa da implantação da reforma, estabeleceu-se o currículo pleno composto pelas disciplinas obrigatórias do currículo mínimo e pelas disciplinas complementares de escolha condicionada. O objetivo era uma maior flexibilização do currículo e um aumento da participação ativa do alunado, que passou a poder escolher as disciplinas de escolha 48 condicionada ou “eletivas”, como são mais conhecidas, de acordo com seus interesses, tendo apenas de ser atendida a exigência quantitativa de 16 créditos nessas disciplinas - 5% do total ao final do curso médico. A flexibilização do currículo através da criação de disciplinas eletivas propiciou a alunos e professores a oportunidade de desenvolvimento de novas propostas pedagógicas, quer no seu conteúdo, quer na sua metodologia. Essas disciplinas foram sendo criadas conforme “princípios básicos” explicitados no documento “Proposta de Mudança Curricular”, quais sejam, “sua relevância para a formação do médico [...] a interdisciplinaridade, a prioridade para o treinamento em serviço com pequenos grupos de alunos e possibilidade de incorporação futura no currículo obrigatório.” Em 1994, a Faculdade de Medicina iniciou a implantação da reforma curricular no que diz respeito às mudanças do currículo mínimo ou obrigatório, norteada por quatro aspectos fundamentais já pontuados no documento “Proposta de Mudança Curricular”: “antecipação do treinamento prático junto aos serviços de saúde; ampliação e priorização do ensino nas áreas de conhecimento relacionadas às condições de maior prevalência e importância; mudança de metodologia que viabiliza participação mais ativa do estudante no processo de aprendizagem, com ampliação de carga horária prática por aluno; inserção de conteúdos relacionados às áreas de Psicologia Médica, Ética e Medicina Preventiva em diferentes disciplinas ao longo de vários períodos do curso.” Conforme referimos na Introdução deste trabalho, a maior participação de professores de Psicologia Médica no curso médico, proposta pela reforma curricular empreendida ao longo da década de 90, consistiu numa importante motivação na realização de nossa pesquisa. Como professora da disciplina obrigatória de Psicologia Médica (5º período), a cada início de semestre, vivemos o desafio renovado de pretender um diálogo produtivo com os alunos. Todo semestre há sempre algumas vozes a nos dizer: “isso é tudo subjetivo”... “é uma questão de bom senso”... “os médicos não têm tempo para ouvir os pacientes”... “sempre ouvi que na Psicologia Médica é tudo viagem”... E o desafio se mostra quase intransponível em relação àqueles que, no início do curso, nos transmitem um bem-estar, um sentimento de certeza, uma convicção de que não há ali nada de realmente importante a ser aprendido ou a ser discutido conosco. Por outro lado, na avaliação do curso realizada ao fim do semestre, não raro alguns alunos se dizem “surpreendidos” no sentido do curso ter superado suas expectativas e, também, há sempre alguns que sugerem a continuidade do curso. Em 1991, com a implantação das disciplinas eletivas pela Faculdade de Medicina, criouse, então, uma oportunidade de valorizar essa demanda de alguns alunos de continuidade do curso, demanda que vinha especialmente associada à experiência de assunção de pacientes que estava por vir. Nesse sentido propusemos a disciplina eletiva Reflexão sobre a prática médica, que consiste num grupo de reflexão, que se aproxima da forma de seminário, instituído como “atividade prática”, sem pretensão de fornecer conteúdos teóricos pré-estabelecidos, coordenado por nós com a colaboração de um professor do Departamento de Clínica Médica, centrado na experiência clínica dos alunos, nas situações por eles vividas na relação com o paciente, sua família e a equipe de saúde (ver Anexo, p.200-201). Oferecida desde 1992, ao longo de cinco semestres, observamos que a demanda à disciplina Reflexão sobre a Prática Médica se restringia basicamente a alunos do 6º e 7º períodos, apesar de nela poderem se inscrever alunos de quaisquer períodos a partir do 6º período. Na estrutura curricular, os alunos de 8º e 9º períodos cursam disciplinas referidas a especialidades médicas, quando não estão implicados na experiência de assunção de pacientes, diferentemente dos estudantes de 6º e 7º períodos. Já os alunos de 10º, 11º e 12º períodos se encontram no Internato, que se organiza de forma rotatória nas consideradas quatro grandes áreas (Clínica Médica, Cirurgia, Pediatria e Gineco-Obstetrícia) e, como internos, eles desenvolvem uma experiência clínica intensa em enfermarias e ambulatórios. 49 No 2º semestre de 1995, quando realizamos nossa pesquisa de campo, os alunos sujeitos da pesquisa se encontravam cumprindo o currículo obrigatório prévio à reforma curricular, pois esta não os atingiu com relação ao currículo obrigatório. Para os alunos sujeitos da pesquisa, portanto, a Faculdade de Medicina é um espaço onde o aluno encontra formalmente definido o modo de adquirir conhecimento sobre as dimensões psicológicas e sociais do processo saúde/doença nas disciplinas obrigatórias: Mecanismos Básicos de Saúde e Doença (4º período), Psicologia Médica (5º período) e Medicina Preventiva I e II (5º e 6º períodos). Em 1992, a partir das propostas de reformulação curricular da direção desta faculdade, cuja primeira etapa já estava implantada, esse espaço sofreu uma expansão com a introdução das disciplinas eletivas: Atenção Primária à Saúde (2º, 3º ou 4º período), Reflexão sobre a Prática Médica (a partir do 6º período), Introdução à Psicanálise (a partir do 8º período), História da Medicina e Saber Médico, Corpo e Sociedade (ambas a partir do 2º período). Procedimentos metodológicos Esta pesquisa foi realizada na Faculdade de Medicina/UFRJ e tem como sujeitos 14 estudantes do 6º e 7º períodos do curso médico, três professores do Departamento de Clínica Médica e a pesquisadora, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal. Os alunos de 6º e 7º períodos, sujeitos da pesquisa, se encontram curricularmente em atividades de treinamento, principalmente, no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/UFRJ, passando a maior parte do tempo em suas enfermarias clínicas, onde se desenvolve a parte prática das disciplinas Medicina Clínica II e III, o que propicia a experiência clínica que é objeto de discussão em nossa pesquisa. Os sujeitos da pesquisa reuniram-se em torno da proposta da disciplina “eletiva” Reflexão sobre a Prática Médica, tendo sido realizados 15 seminários, com freqüência semanal, com duração de 1 hora e 30 minutos cada seminário, ao longo do 2º semestre de 1995. No primeiro seminário solicitamos aos participantes o seu consentimento para a gravação das discussões, o que nos foi concedido, tendo sido explicitado o nosso interesse de pesquisa em relação à contribuição de professores de Psicologia Médica à formação médica. O registro do 2º ao 15º seminários resultou em 17 horas de gravação. Para a apresentação do corpus de análise da pesquisa, criamos códigos de ocultação dos nomes dos sujeitos da pesquisa e das pessoas por eles citadas. Para os sujeitos da pesquisa utilizamos letras maiúsculas para identificar o grupo ao qual o sujeito pertence e um número a seguir para diferenciar os locutores de um mesmo grupo. Foram classificados os seguintes grupos: M6 - alunos do 6º período do curso médico M7 - alunos do 7º período do curso médico CM - professor de Clínica Médica PSM - professor de Psicologia Médica Com relação aos alunos, chama a atenção a participação expressiva de 9 dentre os 14 que estiveram presentes e, ainda, o fato de haver a presença de estudantes não necessariamente condicionada à inscrição formal na disciplina, o que não chega a ser um fato excepcional nessa disciplina. Gostaríamos de acrescentar que todos os M6 são homens e dentre os M7, três são homens (M7-3, M7-6 e M7-11) e as demais são mulheres (M7-1, M7-2, M7-4, M7-5, M7-7, M7-8, M7-9, M7-10). REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA MÉDICA Grade de participação - 2º semestre/1995 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 11º 12º 13º 14º 15º 50 PSM CM-1 CM-2 CM-3 X X +M6-1 *M6-2 º M6-3 +M7-1 +M7-2 +M7-3 +M7-4 *M7-5 *M7-6 *M7-7 *M7-8 *M7-9 *M7-10 *M7-11 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X PSM - professor de Psicologia Médica CM-1, CM-2, CM-3 - professores de Clínica Médica M6 - alunos do 6º período M7 - alunos do 7º período ( + matriculados na disciplina oficialmente) ( º trancou a matrícula na disciplina) ( * participaram sem compromisso curricular) No 2º semestre de 1995, quando realizamos a pesquisa, tivemos a participação de três professores de Clínica Médica alternadamente, fato que aponta para dificuldades de adesão a essa proposta. No entanto, é importante ressaltar que, em nossa experiência global de trabalho conjunto com professores do Departamentos de Clínica Médica nessa disciplina “eletiva”, a regra tem sido a permanência de um mesmo professor colaborador durante todo o semestre e até por mais de um semestre, ainda que com algumas faltas. A justificativa dos professores em relação à sua dificuldade em manter o compromisso com essa atividade é sempre a priorização de outras atividades que surgem sem programação antecipada na dinâmica de uma instituição hospitalar de ensino. No 2º semestre de 1995, no 2º seminário, CM-1 manda nos avisar de sua impossibilidade de estar presente por quatro semanas. Diante dessa excepcionalidade, convidamos CM-2, como substituto temporário, até podermos resolver diretamente com CM-1 a continuidade ou não de sua participação. Quando do retorno de CM-1, no 6º seminário, conversamos com ele a respeito do impacto negativo que sua ausência causou no grupo e decidimos - PSM e CM-2 - sua substituição por CM-3, já que CM-2 havia aceito ser apenas um substituto eventual. Dessa forma, os seminários 2º, 3º e 13º foram realizados sem a presença de um professor colaborador, como apontado na grade de participação dos seminários apresentada. Apesar da justificativa para as ausências, por parte dos três professores desse semestre, ter sempre sido a priorização de outras atividades que lhes são mais habituais, não podemos deixar de assinalar que a decisão de gravar o material com fins de pesquisa nesse semestre pode ter contribuído para maiores dificuldades. Em relação aos professores, acreditamos ser de importância acrescentar as seguintes informações: X X X X 51 CM-1 - homem, graduado em medicina em 1975, concluiu pós-graduação em uma especialidade no exterior, e realiza prática privada. CM-2 - homem, graduado em medicina em 1983, concluiu mestrado em Clínica Médica, e não realiza prática privada. CM-3 - mulher, graduada em medicina em 1974, concluiu mestrado em Clínica Médica, e não realiza prática privada. PSM - mulher, graduada em medicina em 1977, concluiu mestrado em Psiquiatria, e realiza prática privada. Elaboramos, também, um código para ocultação dos nomes dos sujeitos citados nas falas. Com relação aos pacientes, as expressões Seu ou Dona foram utilizadas quando os pacientes eram habitualmente referidos com um pronome de tratamento antes de seu nome. O sexo do paciente, quando seu nome não era precedido por pronome, fica claro pelo relato. Não foram alterados quaisquer dados em relação aos pacientes, uma vez que julgamos só ser possível a identificação pelo próprio, por seus familiares ou pelas pessoas diretamente envolvidas em seu tratamento, e ainda assim atenuada pelo tempo decorrido entre a realização e a divulgação da pesquisa através da tese. Os dados clínicos e de identificação dos pacientes não foram alterados, apenas um ou outro dado foi omitido, quando se referia a características muito peculiares da pessoa do paciente, que poderiam facilitar a identificação por outros que não o próprio, seus familiares ou profissionais diretamente envolvidos em sua assistência. Ao todo foram referidos pelo nome 29 pacientes. Exemplos: Seu W, Dona M, C, etc. Os profissionais referidos no material foram identificados através de um símbolo indicando a categoria profissional, seguido do gênero e de um número de acordo com sua ordem de aparição num dado seminário, para permitir a identificação das referências ao mesmo profissional no contexto de um mesmo seminário. Os médicos e professores foram identificados com o mesmo símbolo, uma vez que ou estão em atividade docente, ou funcionam igualmente como modelo de identificação para os alunos, sendo que eventuais diferenças significativas podem ser depreendidas do próprio relato. Dessa forma acreditamos estar evitando uma caracterização por demais precisa, e desnecessária, já que os alunos, por várias vezes, consideram, indistintamente, estes médicos como professores, além de preservar os profissionais de uma maior probabilidade de identificação. Foram citados cerca de 45 professores de cinco Departamentos - Clinica Médica, Medicina Preventiva, Ginecologia e Obstetrícia, Psiquiatria e Medicina Legal e Cirurgia - e aproximadamente 15 médicos. Exemplos: & H1, & M3, etc. Os 17 médicos residentes, no entanto, foram mantidos numa categoria à parte, pois nos pareceu que os alunos mantêm com eles uma relação diferenciada comparada à que mantêm com os demais médicos e professores. No dizer do grupo, os residentes são “internos com CRM”, e, os internos, são “residentes sem CRM” ou ainda “residentoblastos”. Exemplos: ξ M4, etc. ξ H1, Foram ainda citados pelo menos cinco médicos que não trabalham na Faculdade de Medicina. Dentre os profissionais de enfermagem, três foram citados nominalmente. Um funcionário administrativo teve seu nome algumas vezes referido. Com relação aos alunos, 20 colegas dos sujeitos da pesquisa foram citados. Exemplos: @H1, @M3, etc. Criamos, ainda, a categoria de Outros constituída por amigos ou familiares dos alunos sujeitos da pesquisa e amigos ou familiares de pacientes. Dessa forma contemplamos todo o universo das pessoas nominalmente citadas. Seguem abaixo os símbolos utilizados: & ξ µ Professores ou médicos em função docente Médicos residentes Médicos que não trabalham na UFRJ 52 ª 1 @ = Enfermeiros Funcionários administrativos Alunos Outros Ao realizarmos a revisão do material transcrito das fitas de áudio, optamos por adotar nas nossas transcrições apenas três normas que marcam a oralidade do discurso e que, praticamente, se impõem: - o uso de reticências para indicar a quebra ou desvio temático dentro de uma fala e, também, para assinalar o fim de uma fala quando esta é interrompida por uma outra; - a utilização de parênteses para eventuais comentários descritivos do transcritor e observações sobre o contexto realizadas pelo pesquisador elucidativas em relação às falas; - o uso de certas contrações, muito presentes no discurso oral, como “tá, tou, pra, pro, né, pera, ó...” Como reconhecem os especialistas, tendo em vista as especificidades da fala em relação à escrita, editar materiais gravados de linguagem oral não é tarefa simples nem fácil. “Não existe a melhor transcrição. Todas são mais ou menos boas. O essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e não deixe de assinalar o que lhe convém. De um modo geral, a transcrição deve ser limpa e legível, sem sobrecarga de símbolos complicados” (MARCUSCHI, 1991, p.9). (grifos do autor) As discussões do grupo foram gravadas e as falas constituem nosso material para a análise do discurso, no duplo sentido de análise, das estratégias argumentativas utilizadas pelos interlocutores, e de uma análise fundamentada no valor operatório dos conceitos psicanalíticos. A demanda espontânea por essa disciplina eletiva nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de adesão de alunos, em função do momento de sua formação, a uma proposta que visa à reflexão da relação médico/paciente como um campo dinâmico numa práxis social. Pensamos que essa demanda de estudantes de 6º e 7º períodos se associa à sua experiência de desamparo pelo confronto com o sofrimento e a morte de seus primeiros pacientes associada a um saber reconhecidamente mais limitado que possuem. Eles se encontram praticamente no início do ciclo profissional e constituem o grau mais inferior na hierarquia da equipe médica de uma enfermaria clínica e, portanto, ainda muito vulneráveis às incertezas e às situações angustiantes da prática clínica. Esses alunos ao integrarem pela primeira vez uma equipe de saúde estão assim convocados a participar do exercício da função médica, que não depende apenas dos conhecimentos calcados na racionalidade anátomo-clinica, mas também de uma série de valores que atravessam e constituem a prática médica, permitindo que os médicos se reconheçam como pertencendo a um grupo social. Como nos diz Bakhtin, aproximando-se de Perelman, “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc.” (BAKHTIN, 1981, p.112-113) (grifo do autor). Esse momento da formação médica é reconhecido por vários autores como uma fase de maior intensidade conflitiva. Associado a isso, o fato de o curso ser uma escolha espontânea de alunos para uma disciplina eletiva constitui uma oportunidade privilegiada para esta pesquisa centrada na argumentação. Perelman nos fala das condições para a “formação de uma comunidade efetiva dos espíritos” (PERELMAN, 1996a, p.17-19) quando se pretende o diálogo, a argumentação. Não só é necessário uma linguagem em comum e a possibilidade dada pelas próprias normas da vida social, como é também preciso haver o desejo referido a o que e com quem se pretende discutir, além do apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento. Algumas dessas condições estão presentes no contexto de nossa pesquisa, mas importa ressaltar que a alternância de três professores da Clínica Médica assim como a “visita” (presença irregular, eventual) de seis alunos 53 nos apontam para dificuldades de adesão. A proposta do professor de Psicologia Médica assim como a adesão de alunos e de professores de Clínica Médica para discutirmos conjuntamente a clínica não constitui, a princípio, nenhum dos participantes como possuidor da “palavra do Evangelho”, o que significa dizer que os professores implicados não estão tão investidos da autoridade de quem diz o indiscutível, como em contextos mais habituais, embora a hierarquização se faça, obviamente, presente no grupo. Escolhemos realizar a investigação sistemática nesse grupo de reflexão, na medida em que o grupo é um espaço onde se dá a oportunidade de reunir sistematicamente professores e alunos, dialetizando, em muitos momentos, o instituído ao colocá-lo em jogo com o instituinte, criando-se condições para o discurso vivo de uma prática compartilhada, construindo-se uma práxis. A participação conjunta de professores de Psicologia Médica e Clínica Médica em painéis sobre temas que envolvem o exercício da clínica ou na discussão de anamneses de alunos vem sendo realizada no transcorrer de disciplinas obrigatórias. No entanto, é uma outra coisa a adesão a uma proposta que implica reuniões semanais durante todo um semestre, sem temas pré-fixados, nas quais se pretende, com a bússola dos conhecimentos médico e psicanalítico, lidar com o desafio de discutir problemas que alunos experimentam no inesperado de sua aventura clínica. Para participar dessa proposta, nos parece ser preciso uma certa destituição narcísica pois, como mostram os alunos, não é a mera “afinidade” ou o “interesse” pela psiquiatria o que gera e sustenta essa adesão. É a inquietação com o “descaso” pelos pacientes, com a quase ausência de reconhecimento dos seus direitos como cidadãos, é a “frieza” dos médicos, é a eficácia relativa da ação médica numa prática social, é a perplexidade diante da certeza com que certas soluções são ditas necessárias e portanto indiscutíveis, é o ter que “se acostumar” a tantas coisas, são as respostas que eles encontram a algumas de suas perguntas, são, enfim, as suas falas que, em outros contextos, não podem ser ditas e nem mesmo pensadas. A proposta encerra, de alguma forma, a possibilidade de cada participante ser reconhecido na sua singularidade nessa experiência compartilhada. Isso nos parece importante se compreendemos que a possibilidade de se reconhecer a singularidade do paciente e de sua relação com o estudante ou médico é o cerne do discurso da Psicologia Médica. Pretender que futuros médicos reconheçam a dimensão do sujeito, em cada paciente e em si mesmo, como organizadora do encontro clínico, sem que isso se passe na relação professor-aluno durante a formação médica seria mesmo um paradoxo. Nesse sentido, estamos falando, a partir da psicanálise, de uma experiência que se passa no campo da formação médica, isto é, no campo da educação. Ao valorizarmos que o médico não é mais o mestre de sua medicina mas sim um agente do discurso médico, é a partir da experiência conflitiva de alunos, envolvendo inclusive seus ideais em relação ao exercício profissional, que podemos investigar a possibilidade de uma experiência pedagógica se pondo além da mera formação de técnicos presidida pelo valor de eficácia. Pretendemos, ao desenhar esta pesquisa, investigar os limites e as possibilidades de produção de novas significações numa prática institucionalizada de psicanalistas no campo da Psicologia Médica, quando buscamos numa dialógica construir um intertexto com alunos e professores de Clinica Médica, cientes que dialeticamente: “a escola arbitra sobre o educando fazendo-o objeto passivo do conhecimento e não o lugar do desejo, da curiosidade livre mobilizando um processo educacional. A escola institui uma autoridade que nega a sua dúvida e o seu desconhecimento e está presa ao dever de transmitir a eficácia de um saber. Como sujeito da certeza, o professor faz uma aliança com o poder, desconhecendo a relação alteritária e a dimensão do inconsciente. Na sua atividade a lei preside, a norma espreita e as regras racionalizadas produzem socialmente uma relação de submissão, de desigualdade e não de mútua determinação” (VITAL BRAZIL, C. 1990). A nosso ver, todos os sujeitos implicados na pesquisa pertencem a um mesmo grupo semiótico no sentido não só de fazerem parte de uma mesma comunidade lingüística mas, 54 também, de uma mesma classe social e, sobretudo, por ambos os professores terem formação médica, e os alunos estarem num processo de apropriação do discurso médico. No entanto, apesar das identidades existem diferenças. Poderíamos dizer, com Bakhtin, que as classes sociais não recobrem exatamente os grupos semióticos. E, ainda, com Perelman que, para um orador, cada ouvinte pertence, simultaneamente, a diferentes auditórios. No contexto de nossa pesquisa, as diferenças estariam, sobretudo, no fato de termos professores e alunos, de um dos professores ser um psicanalista e o outro ser um clínico geral e, entre os alunos, de uns serem calouros e outros veteranos, já que alguns pertencem ao 6º e outros ao 7º período do curso médico. Podemos assim considerar três discursos presentes, em uma relação dialógica, em nossa pesquisa: o de alunos de medicina em uma primeira fase do ciclo profissional, o de um professor de Clínica Médica e o do pesquisador, que se diferencia do outro professor por ser um psicanalista, professor de Psicologia Médica. Trabalharemos, sobretudo, com a organização retórica do discurso, revelando estratégias argumentativas e possibilitando a interpretação do sentido produzido no contexto concreto de nossa pesquisa, a partir da Nova Retórica. Assim como para Bakhtin a enunciação é sempre “função” de um interlocutor, mesmo um interlocutor potencial, e está sempre referida a um certo “auditório social”, para Perelman também o discurso, na sua forma e conteúdo, é função de um auditório, um auditório presumido pelo orador, definido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN, 1996a, p.22). Ao reconhecermos a contribuição de Bakhtin e Perelman, apesar desses autores não fazerem referência explícita à psicanálise, estaremos, através da dialogia na teoria da enunciação de Bakhtin e da concepção perelmaniana de orador e discurso inerentemente ligados à de auditório, aproximando esses dois filósofos da psicanálise, na medida em que o que está em jogo é o sujeito, como função da intersubjetividade, e o sentido, exposto à interpretação, se produzindo no trabalho discursivo. Para a psicanálise todo ato de linguagem implica um sujeito não só falante como desejante e, como nos dizem Kristeva e Rudelic-Fernandez, “o estudo da enunciação é, hoje em dia, o ponto de encontro privilegiado entre a lingüística, as teorias da linguagem e a psicanálise” (KRISTEVA e RUDELIC-FERNANDEZ em KAUFMANN, 1996, p.670). Nossa pesquisa está voltada para o discurso do médico e não para o discurso da medicina entendido como o discurso de uma disciplina. 6 Nesse diálogo entre professores e alunos, o que está em jogo centralmente é a formação da função médica no exercício da clínica. Estamos interessados em investigar a formação dessa identidade médica, na qual professores de Clínica Médica e Psicologia Médica estão envolvidos com essa tarefa a partir das falas dos alunos sobre sua experiência clínica, que envolve pacientes e familiares, internos, residentes, médicos não-professores, professores de medicina, enfermeiros, assistentes sociais, enfim todos os membros de uma equipe de saúde de um hospital universitário. Cada um dos participantes confronta suas hipóteses e pressuposições com as réplicas provocadas por sua fala, por sua ação. O confronto entre os ideais de cada um dos participantes e a práxis está permanentemente em questão nas discussões. As semelhanças e diferenças entre os participantes desse grupo semiótico se expressam nos acordos desse auditório especializado, nas premissas e nos argumentos com suas réplicas de maior ou menor intensidade de adesão ou mesmo de não adesão. A pesquisa se centra no discurso dos alunos enquanto revelador dos conflitos experimentados no processo de apropriação do discurso médico. Estamos assim sendo coerentes com a própria metodologia proposta para a disciplina eletiva, que constituiu o campo de nossa pesquisa, na qual os alunos trazem as situações conflitivas, os temas relacionados à sua experiência clínica, alvo de incerteza, dúvida e angústia para eles. Analisaremos, através dos argumentos e réplicas, o discurso dos dois professores e o dos alunos em suas semelhanças e diferenças na ação pedagógica, buscando identificar aspectos que facilitam ou dificultam réplicas de adesão entre professores e entre professores e alunos. Cada professor e cada aluno têm suas hipóteses em relação à função médica, ao ato médico, à formação e à prática médicas, enfim ao 6 Cf. distinção feita neste trabalho no capítulo “A medicina moderna e a ordem do discurso”, p.14. 55 que seja ser médico em nosso atual contexto histórico e social. Cada professor, no entanto, argumenta e age conforme suas hipóteses sobre os alunos, ou melhor sobre o que supõe pensarem os alunos e o outro professor. Os alunos também têm suas hipóteses - e em função delas argumentam - sobre cada um dos professores. Tais hipóteses estão relacionadas, sobretudo, às disciplinas que eles lecionam, aos papéis institucionais que eles exercem. Teremos, portanto, também a oportunidade de investigar a demanda expressa em pressuposições de alunos e professores de Clínica Médica referidas ao professor de Psicologia Médica que, no grupo, ocupa um lugar central, em termos do campo transferencial. OS QUATROS TEMAS “Lutar com as palavras é a luta mais vã, no entanto lutamos mal surge a manhã.” Carlos Drummond de Andrade Valorizar a discussão de casos clínicos nos parece relevante, pois coloca uma questão, a nosso ver, central na formação da identidade médica. Concordamos com Byron Good7, quando ele diz que as atividades de apresentação oral e escrita sobre pacientes realizadas pelos alunos são “práticas formativas”, que não descrevem meramente a realidade, mas constituem formas de construí-la: a construção do paciente como caso clínico, como um projeto médico - informações apreciadas como relevantes para a elaboração do diagnóstico e das decisões terapêuticas (Cf. GOOD, 1994, p.76-83) Os alunos do 5º período iniciam a apresentação oral e escrita de casos clínicos realizando anamneses e exames físicos os quais são apresentados, rotineiramente, aos instrutores, professores de Clínica Médica, para serem avaliados. Nos 6º e 7º períodos, nos quais se encontram os alunos sujeitos da pesquisa, eles passam a escrever nos prontuários suas anamneses, exames físicos mas, sobretudo, as evoluções clínicas diárias. Começam, também, a participar dos rounds da enfermaria e, mais eventualmente, de sessões clínicas dos postos ou serviços, onde os internos e residentes são os principais relatores de casos clínicos. Desnecessário dizer que nas apresentações habituais de casos clínicos, a pessoa do paciente é essencialmente um lugar “geográfico” que sedia a doença e não um lugar enunciativo ou de um agente narrativo. As apresentações orais e escritas são, portanto, fundamentais, tanto na construção da identidade médica do aluno, quanto na construção da “identidade” do paciente como caso médico ou como objeto do olhar e do discurso médicos. A medicina constrói, assim, os seus objetos como objetos de conhecimento na formação dos médicos, que informam a direção de um olhar que pressupõe o que deve ser visto. Estas apresentações narrativas geram efeitos importantes: estruturam o diálogo com o paciente em todo o processo clínico, da anamnese à alta, e estruturam, também, o diálogo entre os alunos e outros estudantes ou profissionais da equipe de saúde. E, evidentemente, esse diálogo, na hierarquia de uma instituição médica de ensino, determina que os alunos, ao serem alvo de um controle disciplinar, aprendam falas, gestos prescritos e proscritos. 7 Byron Good é antropólogo e conduziu extensa pesquisa sobre a formação médica na Harvard Medical School, cujas conclusões a que tivemos acesso se encontram publicadas em GOOD, B. (1994, p.65-87) e GOOD, B. e GOOD, M. (1993, p.81-107). 56 Assim, no âmbito de nossa pesquisa, a apresentação de um caso clínico se coloca dialogicamente em relação aos outros modos de apresentação de casos em contextos mais habituais durante a formação médica. É um sistema dialógico complexo porque o aluno, ao apresentar o caso, tem como interlocutores o professor de Psicologia Médica (PSM), o professor de Clínica Médica (CM-1, 2 ou 3) e os outros alunos; mas para além dos interlocutores sempre presentes há os auditores presumidos que, como destinatários, são presenças imanentes e que, portanto, se fazem presentes nos três discursos, que diferenciamos nesse grupo. Há ainda os personagens do “mundo médico” - os pacientes, os familiares, os interlocutores do round, os outros profissionais da equipe de saúde - freqüentemente citados nas falas, e os personagens do mundo pessoal do aluno. No contexto de nossa pesquisa foram objeto de discussão vários casos clínicos, sendo que alguns, por privilegiarem a discussão diagnóstica, como veremos no 1º e 4º temas, se aproximam mais e, portanto, dialogam de forma mais expressiva com o gênero narrativo cuja estrutura convencional é uma tradição relevante na produção e transmissão do conhecimento médico, conforme foi estudado por Hunter (1991).8 No 2º e 3º temas, os casos clínicos são relatados sob a forma de fragmentos de situações clínicas, na medida em que objetivam a ilustração de alguma questão do processo clínico que importa aos alunos. Os temas, compreendidos como “ápices multideterminados” conforme o conceito de Bakhtin, foram isolados em nossa análise, determinando uma perspectiva de interpretação que, não pretendendo ser única, oferece a todos que a lerem a possibilidade de produção de um novo texto, não verdadeiro ou falso, mas mais ou menos enriquecedor da leitura, colocando-se em jogo a questão da equação pessoal na disponibilidade interpretativa de qualquer subjetividade, como nos postula a psicanálise e a teoria da argumentação de Perelman. 9 O SOFRIMENTO PSÍQUICO Extratos de análise retirados dos 2º, 8º e 9º seminários Corpus: p.202-218; p.258-265; e p.266-273 O contexto Esse primeiro tema se relaciona com o sofrimento psíquico, sua nomeação e apreciação por estudantes no contexto do hospital geral, quando privilegiaremos a discussão sobre dois casos clínicos: Seu W e Dona M. Os alunos iniciaram o 8º seminário falando sobre “alunos com comportamento diferente”, tendo se dado uma discussão controversa envolvendo o normal e o patológico em saúde mental e o saber e o poder médicos. O estudante de medicina é formado, como todos os outros, numa rede de relações de um poder disciplinar, no entanto, acreditamos que, por estar num processo de apropriação de um saber que traz em si a questão da normalização, ele experimenta de uma forma mais aguda, na instabilidade de seu momento de formação, a ambivalência do medo e do desejo por esse poder que advém de um saber. Dessa forma, estão em jogo, não só o valor de seu comportamento, com implicações na avaliação de seus professores e no seu reconhecimento pelo grupo profissional por ele almejado, mas também, no limite, a questão de sua normalidade. 8 Kathryn Hunter, professora de teoria literária, trabalhando na University of Rochester School of Medicine and Dentistry, no campo de literatura e medicina, realizou na década de 80 uma pesquisa etnográfica sobre o uso da narrativa na produção e transmissão do conhecimento médico. 9 As categorias da tipologia de acordos referentes a premissas e das técnicas argumentativas conforme a Nova Retórica de Perelman (1996a) serão assinaladas em negrito ao longo da análise apresentada neste capítulo. 57 Houve, desde o início desse 8º seminário, uma demanda por parte dos alunos em relação aos professores, em especial à PSM, para que distinguissem nitidamente o normal do anormal, até que CM-3, próxima à hora de deixar a discussão, resolve dar um diagnóstico com relação ao aluno mais referido pelo grupo, e sua escolha recai sobre uma hipótese de diagnóstico neurológico. PSM aponta, então, que o “evitar o diagnóstico psiquiátrico” não se dá apenas por parte dos professores médicos em relação a alunos, mas também por parte dos alunos do grupo em relação a pacientes, reintroduzindo o caso de Seu W a título de ilustração. No entanto, os alunos não concordam que o caso de Seu W seja uma ilustração dessa regra, e reinicia-se a controvérsia entre os alunos e PSM, cujo início se deu no 2º seminário, por conta da hipótese diagnóstica de uma síndrome mental orgânica, levantada pela equipe médica responsável, ter sido corroborada por PSM. Seu W, um senhor de 72 anos, hipertenso, diabético, internado numa enfermaria de Clínica Médica há mais de um mês, sendo investigado quanto ao sítio primário de um tumor maligno, cuja metástase óssea na coluna vertebral produz dores que o restringem ao leito, foi avaliado pela equipe responsável como apresentando “demência e labilidade emocional” o que gerou uma prescrição de psicofármacos. Os alunos, em especial M6-1 e M6-2 que o acompanham na enfermaria, mobilizados com a prolongada investigação diagnóstica que não havia ainda possibilitado medidas terapêuticas, trazem o caso ao grupo, no 1º seminário, por considerarem que “sonhou, já está tomando Haldol”. Do ponto de vista dos alunos, ao medicalizar uma expressão de sofrimento do paciente, a equipe teria imputado a ele um diagnóstico psiquiátrico, cuja medicação teria o efeito não só de acalmá-lo, mas calá-lo num sofrimento que envolvia um protesto justo, tranqüilizando assim a equipe e, ainda, os outros pacientes, que tinham seu sono perturbado pela expressão de sofrimento desse paciente. Como a pesquisadora é, também, a parecerista responsável pelo posto clínico onde se encontrava o paciente internado, esta foi pessoalmente à enfermaria avaliar o paciente junto com a equipe, inclusive M6-1 e M6-2, a partir da demanda desses alunos. PSM considerou possível a hipótese de uma síndrome mental orgânica, no caso uma demência vascular, embora tenha ponderado que o uso de Tylex na dose empregada e a ansiedade do paciente por sua condição clínica e pelo tempo de internação prolongado sem resultados terapêuticos deveriam estar importando nas manifestações psicopatológicas de Seu W. Concordou com a iniciativa da equipe médica quanto ao uso de Haldol em baixas doses, que trouxera alívio sintomático ao paciente, já que esta informava que o paciente havia apresentado efeito paradoxal ao Diazepam. No 2º seminário, em grande parte dedicado à discussão desse aspecto do caso de Seu W, os alunos não concordam com essa hipótese diagnóstica, ponderando vários fatores que estariam concorrendo para o sofrimento do paciente e, ao final desse seminário, PSM levanta uma hipótese para compreender a reação dos alunos, mas essa discussão retorna no 8º seminário. PSM, então, levanta outra hipótese, qual seja, o “evitar o diagnóstico psiquiátrico” pelo quanto ele imputaria de dor ao paciente em função da “desqualificação”, do “estigma social” de um diagnóstico psiquiátrico. Nesse momento do 8º seminário, a questão do diagnóstico psiquiátrico passa a estar referida a pacientes. Dá-se então a controvérsia entre os alunos e PSM, que parece ter ficado parcialmente resolvida, com a adesão de M6-1 e M7-4 à essa hipótese de PSM, quando se inicia a discussão de um outro caso, Dona M, mas deve-se registrar que M6-2, M7-1, M7-2, M7-3 e M7-7 haviam se mantido em silêncio. Após o 1º fragmento do caso de Dona M, a discussão do caso de Seu W retorna. É importante destacar que Seu W já havia tido alta quando realizamos o 8º seminário, sendo o móvel da discussão a compreensão da apreciação dos alunos. O caso da Dona M surge, então, como uma tentativa de diminuir a tensão conflitiva do grupo, deslocando o conflito temporariamente para fora, para a cena da enfermaria, quando M7-7 vai buscar a coesão do grupo supondo uma adesão à sua apreciação do caso. E o que se passa em nível argumentativo? Surge a enunciação de M7-7 “Até a propósito ... é muito continuidade disso do que a gente conversou hoje ... uma paciente que foi minha na Hemato que é Dona M”, introduzindo o caso clínico de Dona M como um recurso ao caso particular, onde temos um exemplo que se busca para fundamentar uma regra sobre a qual há um certo desacordo, senão não se recorreria ao exemplo. Podemos considerar o caso da Dona M como um novo exemplo, que sendo capaz de interagir com os anteriores, “permite especificar o 58 ponto de vista sob o qual os fatos anteriores deveriam ser considerados” (PERELMAN, 1996a, p.404). Ao mesmo tempo, nesse contexto argumentativo, ao se aceitar discutir o caso particular, há um acordo prévio referido à possibilidade de, a partir do recurso ao caso particular, se chegar a uma generalização, no caso, a uma regra (PERELMAN, 1996a, p.399). A regra é a desvalorização do sofrimento psíquico, “o pouco caso que se faz” nas palavras de M7-7, no 9º seminário, ao dizer porque introduziu o caso Dona M no 8º seminário. No diálogo sobre Dona M... M7-7, a aluna que relata o caso, não está mais na enfermaria de Hematologia, onde a paciente novamente se encontra internada. É importante destacar que a mobilização afetiva que a relação com Dona M pôde despertar justifica o interesse de M7-7, o que está para além da organização institucional das atividades. O mesmo pode ser dito de M6-1 em relação ao Seu W que, no entanto, não tendo “administrado” tão bem seu tempo, leva “uma bronca” da R3, que tem função de staff da enfermaria e de instrutora dos alunos, como podemos apreciar nesse fragmento do 2º seminário: M6-1 “Eu tomei uma bronca hoje de manhã, porque ontem eu não fiz a evolução... Olha o que eu fiz ontem: eu evoluí esse cara aí eu falei assim: “exame físico não realizado”, no prontuário. (RISOS) Eu sabia que eu não podia fazer isso. Aí tomei uma bronca, hoje, da ξM1. Ela chegou pra mim hoje e falou: “não fez, manda alguém fazer, avisa, mas não põe no prontuário”. Eu: “tudo bem, desculpe”. Porque estava todo mundo olhando pra mim como se eu fosse um criminoso. Eu não imaginava que aquele negócio... M7-6 Porque escrever no prontuário que o exame não foi realizado, parece que ninguém olhou o paciente naquele dia. [...] M7-5 Uma das razões porque ele ‘tá internado aqui é porque ele tem que ser examinado toda hora, entendeu? Por isso é que não pode... M7-6 Tem que acompanhar ele. M6-1 Sim, mas eu botei: “lamento, mas eu não...” (RISOS) Eu lamento não ter podido realizar. Eu tinha que ir pra aula. Eu não sou o interno, eu não fico lá o dia inteiro. (RISOS) Eu lamento muito não ter realizado, eu sei disso. Você acha que eu acho que não precisa fazer. (RISOS) PSM Em tempo: não houve tempo pra realizar o exame físico. Mas por que não deu tempo, você ficou conversando com o doente? M6-1 Eu acho que eu perco tempo demais conversando. Não é que eu perco tempo. A minha administração... O W, por exemplo, eu já tenho o maior plá com ele, entendeu, eu já consigo... M7-1 Você ‘tá com dois pacientes? M6-1 Pois é, esse é o meu problema. Eu mudei de leito com o W. Eu estava com o W, aí o M6-2 passou a ser do W, porque a instrutora anterior ela rodava os alunos de dez em dez dias. M7-2 É, esse é o esquema. M6-1 Então eu rodei mas fiquei preso... Não porque eu fiquei preso, eu me interessei pelo caso do W. M7-6 Claro, isso acontece. M6-1 E ‘tou interessado até hoje. M7-2 Sempre acontece isso.” O “esquema”, a critério do instrutor, que privilegia o conhecimento da doença em detrimento da relação com o doente, roda os alunos de leito, por exemplo de dez em dez dias, numa mesma enfermaria, não considerando que o aluno pode rodar “com” o paciente, como diz M6-1. A presunção entre médicos de que se adquire maior experiência e conhecimento clínicos quanto maior o número de doenças que se tem para diagnosticar e tratar - é conhecido o enfado do qual se queixam vários médicos quando têm de tratar vários doentes com uma mesma doença, em especial, em ambulatório de Clínica Médica - é o que, nos parece, fundamenta “o esquema”, propiciando a uma norma que, no caso, pode se estabelecer sem ser necessária a 59 sua discussão, pois essa não ocorreu no âmbito do departamento de Clínica Médica sendo, portanto, uma escolha de alguns instrutores. “a passagem do que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma, parece, para muitos, ser natural. Apenas o lugar da quantidade autoriza essa assimilação, essa passagem do normal, que expressa uma freqüência, um aspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que tal freqüência é favorável e que cumpre conformar-se a ela” (PERELMAN, 1996a, p. 99) (grifos nossos). Voltando ao 8º seminário, a M7-7 e Dona M, esta havia retornado do CTI, onde foi tratada durante um mês em razão de uma sepsis, logo após o 2º ciclo de quimioterapia para leucemia linfóide aguda diagnosticada recentemente, em sua primeira internação, quando M7-7 era a aluna de seu leito. M7-7 “...Estou na Pneumo. Aí fui ver a Dona M. Levei um susto. É uma paciente que mudou completamente a fisionomia, eu não tinha visto ela quase no CTI, e apática, ela era uma pessoa extremamente comunicativa, assim, em choque, eu acho, fiquei chocada. PSM Em choque que você quer dizer ou chocada? M7-7 Chocada, mau. E eu mais ainda. (RI) PSM E você chocada também. M7-7 Fui para casa, sonhei aquelas coisas todas. Hoje eu voltei lá, e igual, sabe. E ela respondeu a mim, não está respondendo ao médico, ao residente, sabe, e comigo ela tentou sorrir, e eu fiquei bem mexida com isso tudo, fiquei lá um tempão, depois fui conversar com o residente. ... A gente começou a conversar e ele era o único residente que ela gostava um pouco mais, ele falou assim: “ela nem respondeu a mim, ela não quis falar comigo”. A gente foi falando, falando e ele falou assim: “é, porque eu não tenho coragem de continuar esse tratamento nessa paciente, porque eu acho que é muito sofrimento, mesmo que ela saia dessa é muito sofrimento”. Aí eu: “ah é”? Ele: “é, não tenho, mas está todo mundo querendo continuar”. O papo foi indo, ele falou assim: “é, porque eu acho que a Dona M está deprimida”. Eu falei assim: “eu não acho, eu tenho certeza que ela está muito deprimida, está muito triste”. “Ah, você acha?” Mas ele não estava em nenhum momento mostrando que ele estava com certeza disso, ele estava muito inseguro, parecia que ele estava falando uma coisa assim para mim que eu ía cair em cima dele. PSM Deixa eu fazer uma pergunta: insegurança de conhecimento ou insegurança de ser legítimo ele afirmar que ela está em depressão?” PSM, ao fazer essa pergunta, enfatiza a questão dos valores na prática médica, que importam na apreciação das reações dos pacientes e dos colegas, inclusive na realização ou não de um diagnóstico psiquiátrico, muito mais vulnerável ao campo de significações e valores em jogo nas situações clínicas num hospital geral do que outros diagnósticos. Isso gera um certo impacto no grupo, até que M6-1 coloca a questão: “O que seria ser legítimo?” Uma regra é, então, enunciada por PSM: “Em certas situações médicas, certos médicos ou estudantes têm dificuldade de achar legítimo e, portanto, comunicar ao colega ... um sintoma ou um diagnóstico ou nem uma coisa nem outra, uma expressão que diga do sofrimento emocional do paciente. ... ‘Você está falando disso com tantas outras coisas tão mais sérias: sepsis, câncer, CTI...’ ” As réplicas de adesão se dão por parte de M6-1, M7-1, e M7-7, que nos diz: M7-7 “Acho que foi exatamente isso que aconteceu, porque eu acho que ele se sentiu no direito de falar para mim ... eu senti que ele chegou em mim porque ele sabia que eu tinha uma visão diferente em relação a isso. Aí ele falou assim: “é, porque engraçado né, eu falei isso no round...” - e olha que a Hemato é um grupo, que eu já falei aqui, que é fantástico na relação com o paciente, nas piores patologias, nos piores esquemas de tratamento, os mais agressivos, os mais traumáticos, eles conseguem dar um apoio, sabe, familiar, pessoal, incrível - ele, no round, com a Dona M na frente, ele falou assim: “olha, eu acho que essa paciente está deprimida”. E ele falou assim: “Na hora que eu falei isso no round, me ridicularizaram”. 60 PSM Por isso que eu fiz a pergunta. M7-7 “Na hora que eu falei isso no round me ridicularizaram”. Eu falei: “ai, que absurdo!” Aí falaram - que absurdo - que isso aí é uma questão - essa foi a palavra que ele usou - ridícula. Eu falei: “ridícula como?!” PSM Vocês estão entendendo bem? O absurdo é terem ridicularizado. Eu não estou dizendo que a paciente está deprimida ou não está, eu não sei. M7-7 É a abordagem. Imagina! Ele falou assim: “ela acabou de chegar, ela ‘tá com mil problemas orgânicos - ele falou que eles falaram - mil problemas orgânicos e remédios, ela deve estar dopada”. Eu falei: “mas independente de ser problema orgânico, independente dela ter tomado mil sedativos, essa paciente passou um mês no CTI! Você acha que uma pessoa..., você não pode estar..., não sei se deprimida a ponto de você dar um Prozac, não sei, mas alguma coisa, mas é uma paciente lógico que tem um componente emocional.” Para Perelman, o ridículo desempenha na argumentação um papel análogo ao do absurdo na demonstração e, nesse sentido, ele é a principal arma na argumentação. Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita, uma regra habitualmente admitida. O orador pode até afrontar o ridículo, o que constitui para esse autor uma prova de que a argumentação, diferentemente da demonstração, jamais é coerciva (Cf. PERELMAN, 1996a, p.233-238). A “visão diferente” de M7-7, que possibilita o diálogo nos termos relatados com o residente, é a presunção da legitimidade referida aos afetos de médicos e pacientes em relação. M7-7, sensibilizada com Dona M e, também, com o residente, apresenta a situação clínica no grupo pressupondo um acordo com seus interlocutores. Mas a pergunta de PSM: “insegurança de conhecimento ou insegurança de ser legítimo ele afirmar que ela está em depressão?” causou um efeito surpresa, desconsertando M7-7. Poderíamos supor o receio ao ridículo pelo quanto a hierarquia de valores hegemônica, supostamente presente no round, possa estar presente no grupo? A questão da hierarquia de valores na prática médica, que sacrifica o valor qualitativo do único, do singular, do precário, é habitualmente considerada sem conseqüências. Não se leva em conta, por exemplo, que o médico residente poderia interromper o tratamento se essa decisão fosse principalmente dele ou ele tivesse a última palavra, o que não é o caso, mas seria passível de ocorrer, mesmo nessa estrutura hospitalar, como ilustram inclusive outros casos de nosso material. E a paciente? Não poderíamos cogitar a possibilidade dela vir a interromper o tratamento ou... Dona M voltou para o 3º ciclo de quimioterapia, como nos mostra o último fragmento sobre o seu caso em nosso material. Mas essas questões, só agora levantadas, nos remetem ao argumento pragmático que tem uma importância direta para a ação e cuja força retórica na argumentação é lembrada por Perelman ao nos dizer que “certos autores quiseram ver nele o esquema único da lógica dos juízos de valor. Para apreciar um acontecimento, cumpre reportarse a seus efeitos” (PERELMAN, 1996a, p.303). Mas esses efeitos estariam na escala do caso individual e seu desprestígio, não raro, é argumentado contrapondo-se ao lugar da qualidade o lugar da quantidade. O argumento pragmático habitual aparece na fala de M7-7: “... Mas aquele paciente no CTI, que eles ‘tão tendo que armar um novo protocolo, que eles estão discutindo, e percebendo que a partir da Dona M esse protocolo tem que ser mudado, eles não têm tempo de pensar que ela possa estar extremamente deprimida.” A questão do tempo é uma racionalização muito freqüente que reflete e refrata a hierarquia de valores do mundo médico. Como nos diz Perelman: “O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza” (1996a, p.92). O lugar da quantidade se confronta ao da qualidade: o trabalho com relação ao protocolo que será útil a vários pacientes, o uso do tempo de forma a pensar questões diagnósticas ou terapêuticas em relação a um maior número de pacientes tornado um conjunto homogêneo em torno de uma categoria diagnóstica. A reação de Dona M, do residente, de M7-7, o valor do qualitativo, do precário, do singular é, então, amplificado através de um argumento a fortiori: 61 M7-7 “... Eu falei assim: “é engraçado, então põe a mãe deles - eu falei isso mesmo - põe a mãe deles um mês no CTI e faz um round aqui embaixo e fala que ela não vai estar deprimida. Ele vai estar deprimido junto com ela.” A possibilidade de enunciação dos sentimentos de perplexidade e angústia de M7-7 presentes em sua fala - “levei um susto”, “fiquei chocada”, “sonhei” - a discussão dos argumentos colocando os diversos valores em jogo, legitima a questão colocada por M7-7 sobre a “depressão” de Dona M, possibilita alguma elaboração e, portanto, a diferenciação entre a aluna e a paciente também “chocada”, gerando efeitos em sua ação junto à Dona M, o que é melhor explicitado no 2º fragmento do caso, que abre o 9º seminário. Podemos supor que o médico residente, podendo nomear o que estava se passando em sua relação com a paciente em termos apenas de um diagnóstico exclusivamente referido ao estado da paciente - “depressão” -, em função das regras na apresentação e discussão dos casos que importam nos acordos de um auditório especializado, ficou mais limitado aos seus próprios recursos e a comunicações informais com aqueles que, a seu ver, têm “uma visão diferente”. No 9º seminário, em função da presença de CM-2 e de alguns alunos que não estavam presentes no 8º seminário, M7-7 reapresenta o caso clínico, iniciando pelos dados anamnésticos, a busca por atendimento médico, o diagnóstico, a evolução na primeira internação e a sua apreciação sobre a pessoa da paciente e sua família. Sobre a internação atual, M7-7 destaca os sintomas neurológicos, volta a falar do diálogo com o residente nos mesmos termos, pergunta a CM-2 sobre as conseqüências da entubação, sobre a escara que Dona M apresenta e, após relatar os quatro encontros, onde M7-7 buscou “ver qual era a reação dela”, ela própria conclui sobre sua questão referida à hipótese de “depressão”: M7-7 “...Tudo começou porque eu fui vê-la, porque eu não tive coragem de ir ao CTI vê-la. Aí, eu fui vê-la na Hemato ... era outra pessoa fisicamente - eu nunca tinha visto paciente pós-CTI, falam que muda muito, né - mas era outra pessoa, que eu reconheci através da irmã, que estava e que era muito parecida com a Dona M que eu conheci e não aquela pessoa. E a Dona M estava completamente apática, não respondia a ninguém, é, ela estava com uma tetraparesia, estava deitada, totalmente restrita, e o que eu achei interessante que quando cheguei lá ... e todo mundo foi falando: “ela não está respondendo, ela não está bem, não está nada bem” - ela tinha chegado dois dias antes do CTI - e quando eu entrei eu vi que ela se manifestou de alguma maneira pra mim, sabe, ela deu um olhar assim, eu cheguei perto, ela fez uma expressão que eu vi que tinha comunicação, aí eu: ‘tá bem, Dona M?” Ela fechou o olho assim, sabe? Tipo: “não, não ‘tou bem”. Depois, quando chegou o médico ou a enfermeira perguntou alguma coisa pra ela - alguém, não sei quem foi que nesse dia chegou - ela não estava nem aí.” [...] M7-7 “...Quando eu voltei segunda-feira lá, eu entro na enfermaria, e ela ‘tá encostada, assim, já está levantada, e quando eu entro: “Dona M!!” da porta assim. Aí ela falou assim: “M7-7” (FALA SUSSURRANDO SEU PRÓPRIO NOME, IMITANDO A PACIENTE RESPONDENDO). Falou, sabe? M7-2 Ela falou baixinho? M7-7 Não, com a mímica: “M7-7” (SUSSURRANDO). Aí eu entrei, eu fiquei super emocionada assim: “como é que a senhora ‘tá?” Fiz a maior festa. “A senhora ‘tá melhor, ‘tá ótima.” Aí ela fez assim de que ‘tava melhor, sabe. Aí eu fiquei 40 minutos com ela, segurando a mão dela, sentada assim, sabe: “‘tá sentindo dor?” E ela não estava me respondendo. Aí eu falei: “o que que houve? A senhora está com dificuldade de falar? Aí ela: “é” (SUSSURRANDO). Aí eu: “por que ‘tá doendo?” Ela: “não” (SUSSURRANDO). Aí eu soube que era por causa da entubação mesmo.” E M7-7 conclui: M7-7 Dona M ‘tá melhorando a cada dia. Ela tem uma força, sem brincadeira, conversei com ela: “você ‘tá com medo ainda? Como é que foi?” Ela não me responde, ela não faz frases. “Você ‘tá com medo ainda?” Ela fez que sim. “Mas você está com muita força, Dona M, ou não está? Está com força?” Fez que estava. “Você quer sair logo daqui?” “Quero”.(BALBUCIANDO) Do jeito que ela era. 62 O desejo de certeza, a aspiração de se trabalhar apenas com categorias universais, o que na clínica significaria poder resumir sempre os sinais e sintomas numa síndrome já conhecida, aparece na expressão de M7-7 “eu nunca tinha visto paciente pós-CTI”, como se houvesse essa entidade, e reaparece na fala de CM-2 ao tentar dar conta da pergunta de M7-7 sobre a possível entidade nosológica “polineuropatia devido a doença grave”. M7-7 “...tinham pedido um parecer da Neuro pra ela. Estava pedindo assim: como apatia e tetraparesia, e que a paciente tinha ficado no CTI durante 30 dias, tendo feito uso de curare e micozan, pode ser? CM -2 Midazolam. M7-7 Midazolam. É o que? CM -2 Benzodiazepínico de ação rápida. Dormonid. M7-7 Ah, Dormonid. Então era esse o parecer, era esse o pedido. E o parecer é que ela ‘tava com uma polineuropatia devido a doença grave. E que eu não achei nos livros. PSM Não achou? M7-7 Não achei. Por doença grave, não. Aí eu perguntei pros residentes e eles falaram que era pelo traumatismo, pela questão do estado de sepsis, que ninguém sabia me explicar. Não sabia nem se era reversível ou se não era. Você já ouviu falar disso? CM -2 Especificamente dessa doença - polineuropatia por doença grave - certamente deve ser uma coisa multifatorial, deve ter carências vitamínicas nisso, paciente que fica no CTI um mês com aquela dieta de CTI, deve ter carência vitamínica, deve ter algum componente talvez paraneoplásico da neoplasia dela de base, deve ter talvez algum componente de trauma. Deve ser multifatorial. Polineuropatia de doente grave, não existe essa entidade nosológica.” O ato falho, poder-se-ia dizer, de CM-2 ao trocar doença por doente, fala da complexidade da clínica que nem sempre pode ser reduzida facilmente à taxonomia. O poder disciplinar de que nos fala Foucault nas instituições modernas, dentre as quais o hospital é exemplar, aparece, por exemplo, no relato do encontro entre a assistente social, a aluna e a paciente: M7-7 “...fiquei 40 minutos lá, eu até..., uma assistente social perguntou o que eu queria de comida, pensou que eu fosse a acompanhante dela... (RISOS) Aí eu fiquei lá o maior tempão com ela, e ela já ‘tava assim, sabe, pressionando a minha mão. PSM Por que você achou que ela achou que você era acompanhante dela? M6-2 Você não ‘tava de branco. M7-7 Não! Eu ‘tava de branco, de casaco. Eu falei: “não, eu sou estudante”. Ela: “ah não, porque você ‘tava com tanto carinho que eu achei que você fosse acompanhante”. PSM Ah, foi a atitude de carinho. M7-7 É. PSM Vocês vêem como existem códigos implícitos na vida institucional. Para a moça da alimentação gente de equipe de saúde não fica... M7-4 Não tem carinho. PSM ...com muito carinho. (JÁ RESPONDENDO A M7-4 QUE FALA AO MESMO TEMPO ) Com muito carinho. M7-7 Mas é porque não tem muito tempo também de ficar sentado ali dando a mão. PSM A questão do tempo também. M7-7 É. E da relação também. Só tive essa relação com ela porque ela foi minha paciente durante um mês, né. Então... E era outra paciente. PSM Uma paciente que solicitou de você, mobilizou... M7-7 É ela me mobilizou desde o início. PSM ...uma relação particular, aliás as relações são sempre particulares mesmo, singulares.” O conflito entre pertencer ao grupo social de estudantes de medicina, futuros médicos, cujo reconhecimento se dá através das falas, atitudes e gestos e responder à dimensão transferencial na relação com a paciente se expressa. M7-7 justifica seus colegas médicos ou profissionais da equipe de saúde que “não têm muito tempo de ficar sentado ali dando a mão”. No entanto, não consegue se justificar razoavelmente - esteve acompanhando um mês a paciente, 63 mas mobilizou-se desde o início; a paciente era uma outra pessoa, mas mesmo assim merece 40 minutos do seu tempo - pois o encontro com uma outra “fiscal” a confronta com sua falha na auto-vigilância no contexto das relações instituídas. Como nos diz Foucault, no poder disciplinar somos “fiscais perpetuamente fiscalizados” (1977b, p.158). No diálogo sobre Seu W... Após a apresentação, a título de exemplo, do caso de Dona M, a controvérsia entre PSM e os alunos, em especial, M6-1 e M6-2 se esclarece: PSM “...eu achei muito expressivo que saíram (DO 2º SEMINÁRIO ) vários de vocês dizendo: “então eu deliro, então eu sonho, então eu alucino, então eu sou doido”. Eu digo: gente, a gente não pode falar de maluquice - foi logo na primeira aula, na segunda aula - eu não posso falar de maluquice que eles dizem que também são malucos, que coisa curiosa. Sabe? M7-7 É verdade. M6-2 Sabe o que eu acho daquele caso? Eu acho que a gente questionou isso sabe por quê? Porque a gente achava, eu acho, que era o contrário. A minha revolta era a seguinte: então a gente vai justificar com um quadro neurológico a depressão por ele ‘tar deitado há 50 dias, essa era a minha revolta, na época. PSM Ah! Você ficou com medo que eu, que você até escolheu para fazer disciplina de Reflexão comigo, fosse reducionista, fosse virar para vocês e dizer: “olha gente, tudo que vocês estão sofrendo junto com o doente, pelo que ele está manifestando ... M6-2 ...fosse uma metástase. PSM ...se reduz, se resume em três palavrinhas: síndrome mental orgânica. M6-1 Foi isso que eu quis dizer pra você. PSM Ia ser uma decepção na entrada da área do curso! É isso? M6-2 É isso. M6-1 Eu ‘tava protegendo, eu também ‘tava falando no sentido de proteger, exatamente... M6-2 A questão do sentimento.” Só nesse 8º seminário compreendi que a minha preocupação, como parecerista e professora, de dizer da pertinência da hipótese diagnóstica e da prescrição farmacológica foi compreendida pelos alunos como corroborando um trabalho médico que “simplificou” o sofrimento do paciente e o próprio trabalho médico, o que acredito pode ser melhor compreendido se levarmos em conta que pouco se fez terapeuticamente por esse paciente e isso constituía a principal angústia e, portanto, demanda dos alunos, como do paciente. O paciente saiu de alta, após 50 dias de internação, sem a caracterização e localização do tumor primário, com uma orientação de realizar radioterapia em outro hospital público. Os diversos aspectos de seu caso clínico foram trazidos ao grupo em vários seminários. No interjogo dos papéis institucionais, convivendo com o sofrimento e limitações de várias naturezas, apesar de os alunos, por vezes, terem dificuldade de aceitar certos limites em função de seu desejo e de seu desconhecimento, são eles que, quando se dispõem, estão mais expostos ao convívio compartilhado com o doente e seu sofrimento. E como “curar quando possível, aliviar freqüentemente, consolar sempre” não parece ser uma máxima freqüentemente compartilhada pelos médicos, numa visão irônica, que articula a fragmentação da profissão médica em suas especialidades e a organização do trabalho médico com seus papéis institucionais compartimentados num hospital de ensino, os alunos se dizem “os minipsiquiatras”. Se a desvalorização do sofrimento psíquico é a regra, aqueles que com ele se importam podem ser apreciados como “os bobalhões da corte”, principalmente nesse momento quando, a posteriori, compreendemos que nossa atuação deixou um vazio em relação à expectativa do desejo dos alunos. Ao fim da discussão sobre Seu W no 2º seminário: M6-2 “Ah! Isso aí foi legal. Ah, isso aí eu não contei. Pô, ele me pediu pra ligar - no dia eu até te falei, lembra? (DIRIGINDO-SE A M6-1) No início do dia - antes de eu comentar o caso contigo (DIRIGINDO-SE A M6-1) - eu acho que foi o que me motivou a falar essa história, ele falou assim: “olha, liga...” - no dia antes da biópsia, da biópsia da coluna - ele falou: “pô, deixa eu falar, quero 64 falar com a minha esposa hoje, eu ‘tou preocupado com o negócio da biópsia, e quero pedir pra ela trazer roupa e tal. Liga pra minha casa, anota o telefone, por favor, doutor, liga”. Aí eu falei, pô, eu não posso ligar assim, vou pedir autorização, aí fui pedir. Aí ela falou: “não, é labilidade emocional, não precisa ligar pra família não, deixa aí”. Aí, fui eu que... PSM Foi a preocupação de vocês inicial aqui, vocês viram o grupo como ficou preocupado quando eu comecei a... M6-1 Não era labilidade emocional coisíssima nenhuma. M7-2 Óbvio que não. O cara vai fazer uma biópsia, entendeu. É supernatural que... M6-2 Ela falou: “se precisar mais tarde a gente pede pra...” PSM Eu acho importante vocês entenderem o seguinte: quando eu entrei com a questão do diagnóstico, se há uma síndrome mental orgânica, é porque isso tem uma importância no raciocínio clínico, entende? M7-2 (FALA AO MESMO TEMPO QUE PSM) Eu sei, mas qualquer pessoa que vai fazer uma cirurgia, uma biópsia, fica assim. PSM Agora, não é - isso que eu acho que é fundamental, que é o cerne pra mim, inclusive, desse curso - você fazer diagnóstico, você encontrar organicidade em sintomas, não é botar uma pedra em cima, entende? E nada mais do que o paciente diz, e ainda a família, tem qualquer sentido. Afinal de contas vocês estão convivendo diariamente com essas pessoas, participando de um processo clínico terapêutico, você ‘tá ali pra tratar alguém. M7-6 A gente vê assim, às vezes interno, residente falando assim: “ah, essa enfermaria ‘tá chata”. Porque ele já deu todos os diagnósticos, ‘tá terminando os tratamentos e eles falam que a enfermaria ‘tá chata, como se fosse sei lá... M6-2 A busca é pela doença, não é pela cura do doente. M6-1 Exatamente, professora. É isso aí. ‘Tou revoltado. M7-2 Mas olha só, PSM, uma coisa que eu fico preocupada... PSM Isso aí é muito sério. M7-2 Porque eu no começo era muito emotiva também, lembra? M7-6 É. M7-2 Eu não podia ver ninguém sentindo dor, que eu chorava não sei o que tal. Aí, agora, outro dia, eu ‘tava na M6, a paciente morreu, eu ‘tava fazendo aquele negócio do ambu lá, ela morreu, e eu..., não mudou a minha alteração. Depois eu fiquei me questionando, eu não era assim quando eu entrei na faculdade, entendeu, eu me emocionava muito fácil, entendeu, e agora ‘tá morrendo e eu ‘tou! Entendeu? M6-2 Você hoje tem o estudo, né? M7-1 Você acostuma. M6-2 Isso é normal. M7-2 Então eu ‘tou com medo de mudar a minha mentalidade, e passar... M7-6 E passar a ficar assim. M7-2 Será que eu vou ficar assim: só vendo doença, só querendo saber se é o vírus tal ou esse ou esse ou esse, entendeu? M7-1 Eu acho que a própria equipe faz a gente mudar. Porque você chega e fala: “ah...” Eu ‘tou na Nefro agora, e todos os pacientes são crônicos, daí você chega e fala assim: “ah, o paciente ‘tá com algum...” - porque os pacientes da Nefro tem alguns que tem umas alterações neurológicas, então: “ah, o paciente ‘tá se queixando disso”. “Ah, isso aí é da uremia dele”, eles sempre falam “não, isso aí é do problema dele”. Não param pra conversar, não param pra ver o que que ele tem, se a dor é por isso mesmo se a dor não é, entendeu? Não, não deve ser por isso mesmo. Como é crônico, tudo que ele tem eles botam no mesmo quadro. M7-2 Ou então: “ela chora muito”. Olha o que falam pra mim: “ela chora muito”, a minha paciente. E não quer mais saber. M6-1 Eu tenho medo de alguém da equipe que é superior a mim chegar pra mim e dizer: “ó, pára de conversar aí e vamos começar a fazer exame físico, vamos começar a evoluir o doente”. M7-1 É verdade. Eu também tenho. M7-6 É cobrado que a gente não tenha muito envolvimento. M7-2 É cobrado sim. Eu fui falar assim: puxa mas ela ‘tá aqui há dois meses e ninguém resolve nada. Aí começa: “Não porque na Doença de Crohn parará...” Ninguém me escuta, entendeu? 65 M6-2 Mas é cobrado, é cobrado de uma forma tão linda, que para a maioria das pessoas isso não é. Porque todo mundo senta cara e conversa e fala: “pô, mas tem que escutar o paciente”. Todos eles falam: M7-6 Mas aí é blá, blá, blá. M6-2 “Você tem que escutar o paciente, você tem que..., não, o paciente é fundamental. O M6, você é o M6, você é aquele cara que tem o contato”. Mas na hora de discutir contigo ele não quer saber o que o paciente falou não, mas ele bate o discurso. O discurso é este, o discurso é bonito. M6-1 É como se fosse uma parte da formação isolada, entendeu. Nessa fase que vocês sabem menos clínica, menos medicina... M7-2 Pois é. Quando chegar no Internato você não vai mais conversar com ninguém. M6-1 Você vai ser aquela figura que vai estabelecer uma relação melhor, que vai falar: “oi e aí meu amigo...” M7-2 É uma função, é uma função. Quando eu chegar no Internato eu vou ter outra função. M6-2 É toda a discriminação da tarefa do hospital. Nós somos os minipsiquiatras. PSM Minipsiquiatras! M6-1 Nós somos os bobalhões da corte. M6-2 Todo mundo aqui: “pô, não quero conversar contigo não, mas pô tem o M6”. O 11º seminário, tem início com os alunos convocando M7-7 para contar o recente gesto de Dona M que, ao internar-se para o 3º ciclo de quimioterapia, pediu que a chamassem e entregou-lhe um presente pelo Dia dos Médicos. Nessa ocasião, em 25 de outubro, morre Seu W, em sua casa, de embolia pulmonar. M6-2 telefonou-lhe para saber notícias em dezembro, quando os seminários já haviam terminado. M6-1 e M6-2 relatam o fato em seus trabalhos de conclusão da disciplina. O CORPO EROTIZADO Extrato de análise retirado do 6º seminário Corpus: p.243-257 O contexto Falava-se do lugar da Psicologia Médica na assistência, quando em especial M7-4 e M75 discordavam quanto à pertinência da solicitação de parecer para dois pacientes de sua enfermaria - Seu A, capoeirista, diabético que corria o risco de uma amputação dos dedos do pé e Dona Y, obesa com 140 kg. A controvérsia dos alunos ilustra uma questão cotidiana num hospital geral quanto à solicitação do trabalho de profissionais de Psicologia Médica. Na discussão do grupo, argumentos sobre a intensidade do sofrimento decorrente da condição clínica ou de procedimentos terapêuticos ou, ainda, sobre a presença de uma suposta psicopatologia - portanto, argumentos centrados no doente - se opõem a argumentos referidos à dificuldade do médico de entrar em contato com o sofrimento de seu paciente, de valorizar suas palavras, provendo um cuidado não só referido à doença - argumentos, portanto, centrados na função do médico e suas motivações ao solicitar a Psicologia Médica. A colocação de PSM, que aponta para a existência de uma relação entre médicos e pacientes cujas dificuldades são objeto da Psicologia Médica, é seguida por falas de M7-5, M6-1 e M6-2 em acordo sobre a existência de dificuldades dos profissionais na assistência a seus doentes, quando então M6-2 introduz sua experiência recente de realizar o primeiro toque retal. No diálogo sobre a experiência do toque retal... O acordo inicial e a controvérsia Apesar de haver um acordo inicial em relação ao “diagnóstico” de que estudantes e profissionais têm dificuldades na relação com seus pacientes, o que propicia M6-2 “dar um 66 exemplo claro de nossa falta de acompanhamento”, quando M6-2 começa a falar de sua angústia relacionada à homossexualidade, que a experiência de realização do primeiro toque retal em seu paciente mobilizou, surge, de imediato, uma controvérsia. A controvérsia básica parece estar relacionada ao direito de M6-2 de atribuir outros sentidos à experiência do toque retal que não apenas um sentido técnico, e isso ser legítimo nesse contexto. O valor do exame como procedimento de investigação diagnóstica e a hipótese diagnóstica implícita de um câncer de próstata no caso singular não se encontram em discussão. Também o valor da aprendizagem desse exame pelos estudantes e o valor de tal exame ser realizado “de rotina” em homens acima de 45, 50 anos, em função da importância do diagnóstico precoce do câncer de próstata e de sua prevalência, são referidos ao longo da discussão e não são objeto de controvérsia. A controvérsia se resolve quando os participantes do grupo chegam a um acordo que se expressa na presunção de que o toque retal não é realizado com a freqüência devida em consonância às normas técnicas: a escolha de realizar ou não o toque retal não é determinada apenas por verdades médicas, mas também por significados inscritos na cultura e na história individual, passando a experiência de M6-2 a ser ressignificada como uma ilustração do comportamento freqüente de estudantes e médicos expressos no grupo. A dinâmica e as estratégias argumentativas M6-2 enuncia através do argumento de autoridade de uma mulher - a R3 (que sabemos, por discussões anteriores, ser a autoridade máxima em sua enfermaria) - um argumento que contribuiu para sua decisão de realizar o exame “por fazer parte da sua formação médica”. A pertinência do exame para o paciente e a necessidade de aprendizado desse exame por parte dos estudantes são argumentos pragmáticos com ênfase na relação meio-fim explicitamente apontados por M6-2, M6-1 e M7-2: M6-2 ...“o meu paciente... resolveram fazer um toque retal nele... um paciente que tem câncer, chegou lá emagrecido 20 quilos em seis meses” M6-1 “Faz parte do exame físico.” M7-2 “Homem a partir de 40 anos tem que fazer.” No entanto, M6-2, em parte, não queria fazer o exame, ou melhor, viveu a dificuldade em função da significação homossexual veiculada no gesto. Inicialmente aponta que soube de “uma historinha homossexual” do paciente. M6-1, M7-6 e CM-1 apontam que a referência à homossexualidade diz respeito tanto ao paciente como a ele nesse contexto. No entanto, M6-1 e M7-6, alunos homens, apontam a questão da homossexualidade, em solidariedade a M6-2, dando sua adesão a M6-2 que introduz a questão. Já CM-1 e as alunas mulheres M7-2 e M7-4 tentam desqualificar M6-2. CM-1 inicialmente usa como argumento de autoridade “a incompetência do competente”, caso curioso, como nos diz Perelman, em que a força do argumento se dá através de uma pretensa incompreensão ou ignorância. CM-1 ao perguntar à M6-2: “Foi feito em você ou no cara?” “Deprimido por quê?” expressa como: “A incompetência do competente pode servir de critério para desqualificar todos aqueles que não temos razão alguma de acreditar mais competentes do que aquele que se confessou incompetente” (PERELMAN, 1996a, p.352). PSM, referida ao acordo do grupo de discutir as dificuldades dos estudantes/profissionais, usa de seu prestígio de autoridade para qualificar a expressão e o entendimento do conflito de M6-2. Amplia-se o espaço para as ansiedades com relação à homossexualidade reaparecerem na fala dos alunos homens do grupo. M7-6 “Rolou um clima.” M6-2 ...“pode ser até, até um machismo... eu ficava tocando e olhando a cara do cara, olhinho dele brilhando assim. ... E eu me senti invadindo o cara assim com o dedo.” As alunas mulheres M7-2 e M7-4 se opõem à M6-2 e, na sua tentativa de desqualificação e conseqüente redução a uma dificuldade singular de M6-2, M7-2 repete razões técnicas e M7-4 se oferece como modelo iniciando um argumento quase -lógico: 67 M7-2 “Que isso, gente. Isso faz parte da prática médica. ... qualquer homem acima de 40 anos tem que fazer toque retal.” M7-4 “Espera aí. O primeiro toque que eu dei numa mulher, eu não fiquei pensando que se ela era homossexual, se eu era...” M7-4 só pôde trazer sua experiência num argumento de comparação, a partir da consideração de si e de M6-2 como partes iguais de um todo - os estudantes de medicina sendo a igualdade uma redução que só é possível a partir da negação da diferença sexual: a reação do aluno de medicina de qualquer sexo realizando exame dos órgãos genitais ou áreas erógenas do corpo de um paciente de mesmo sexo. CM-1, em adesão à M7-4, contribui para o argumento quase-lógico ao comparar as experiências de M6-2 relativas ao primeiro toque vaginal e ao primeiro toque retal, promovendo mais uma redução: a reação deve ser igual com pacientes de sexos diferentes. CM -1 “Você ficou tão mobilizado quando fez toque vaginal quanto quando fez toque retal?” M6-2 “Pô, na hora eu fiquei meio bolado. Se eu fiquei tão mobilizado quanto? Não, não. ... Foi tranqüilo.” M7-4 “Ah, então, esclareceu. O problema é trabalhar este seu problema.” M7-4 conclui, assim, o argumento quase-lógico. Como nos diz Perelman ao falar do uso de uma argumentação quase-lógica, uma das possibilidades em jogo é contrapô-la a um discurso considerado passional se prevalecendo do prestígio de um raciocínio rigoroso. No entanto, a argumentação quase-lógica só se realiza a partir de reduções que permitem inserir os termos do discurso num esquema formal, que serve de molde, de modo a transformá-los em termos comparáveis, semelhantes, homogêneos e é justo sobre essa redução que poderá incidir a controvérsia (PERELMAN, 1996a, p.219-221). M6-2 se utiliza, então, de um argumento de autoridade, como nos diz Perelman, a autoridade da “opinião comum” ou a do “grande número”, ao procurar saber o que pensa “a galera da enfermaria” (colegas homens) de forma a reverter o até então “seu problema” em um problema “normal” e, com isso, a posição de desqualificação em que se encontrava. A estratégia de M6-2 sensibiliza CM-1, que desloca a crítica, “a falha”, para a “formação” dos alunos e para “nossa medicina”, mudando sua estratégia argumentativa do argumento ad personam para o argumento pelo modelo numa tentativa didática de fundar o real. CM-1 deixa assim a posição de crítica e desqualificação em relação à M6-2 que, a nosso ver, exemplifica uma tentativa de normalização de um desvio temido na formação de um médico, qual seja uma intensidade de erotização da relação médico-paciente com conseqüências na realização da função médica. CM-1 passa, então, a explicar o que se passou na experiência de M6-2 e o que deve se passar em experiências como essa quando se tem uma “postura mais profissional”. Nesse momento, CM-1 apresenta o corpo do paciente como um corpo biológico deserotizado, o suposto corpo ideal com que se encontrarão os estudantes de medicina ao completarem esta “fase de transição de uma postura mais juvenil para uma postura mais profissional.” O corpo do paciente como um objeto construído pela medicina, não só preexistente no conhecimento, mas também construído na formação dos médicos. CM -1 ...“O toque retal, eu acho que vocês precisam encarar isso da mesma forma que vocês estão palpando um fígado...olhando outros orifícios tipo ouvido, boca, nariz, etc. Quer dizer, você não ‘tava invadindo o cara, e nem o fato do cara ser homossexual, ele certamente não estava com olhos brilhando. [...] É como você pensar que o toque vaginal é um momento de prazer da mulher. [...] Não é nada disso. O fato do cara ser homossexual, ele não tem prazer de receber um dedo no, no reto.” M6-2 Não foi bem assim. CM -1 Então isso - não, eu sei - porque às vezes essa fantasia passa na cabeça... PSM Passou na cabeça. 68 CM -1 ...do estudante de Medicina, da maioria dos estudantes de medicina, não é só com você. ... você mesmo falou que perguntou pra galera, e você certamente não contou aqui as piadas que devem ter surgido disso etc., etc., que eu já até imagino. M6-2 O pessoal perguntou: ‘teve coragem?’ Nego perguntou se eu tive coragem. CM -1 Não sei se é um ato de coragem não. M6-2 Não, hoje, eu acho que já estou mais apto a tocar novamente. Até porque eu fiquei feliz... Eu fiquei até tranqüilo pro meu próximo toque, porque eu consegui reconhecer todas as estruturas que me foram propostas antes do toque.” Sem dúvida a fala de CM-1 foi um reconhecimento decisivo no sentido de término de argumentos ad personam por parte de vários dos participantes do grupo em relação à M6-2. M6-2 afrontou o ridículo ao confessar uma experiência que é contra uma norma: a investigação e a conseqüente manipulação do corpo do paciente pelo médico é um meio cujos fins são justificados por um valor absoluto se pensarmos no valor da preservação da saúde e da vida. No entanto, dificilmente os valores absolutos mantêm esse estatuto quando estamos em situações concretas, contingentes, históricas, em que outros valores entram em jogo a decidir escolhas. No caso, não podemos negar a relativização do fim em si, em se tratando de um estudante numa primeira experiência nesse procedimento e sua razoável incerteza com relação a sua possibilidade de consecução da finalidade do exame para o paciente. Nada sabemos do que foi dito ao paciente sobre esse exame. Há referências por parte do aluno M6-2 de seu aprendizado com o residente em relação ao exame como procedimento, mas não há referências de um aprendizado desse mesmo aluno com relação à comunicação da equipe médica com o paciente sobre o ato de realização desse exame. O contexto de relação da equipe com o paciente, no qual o aluno se insere, é significativamente apreciado também pelo aluno. A experiência cotidiana nesse hospital nos informa, com freqüência, de dificuldades dos médicos e estudantes de informarem seus pacientes de diagnósticos de doenças incuráveis. Estamos diante de uma situação clínica de provável diagnóstico de câncer e da necessidade de toque retal como um dos procedimentos diagnósticos. Se supomos que, na avaliação do aluno, esse paciente não mereceu da equipe uma atenção respeitosa, podemos imaginar que isso possa ter contribuído para aumentar a experiência de sofrimento, numa relação de poder, onde M6-2 não relata nenhum dito do paciente, mas nos diz do olhar do paciente que, para ele, não passou despercebido: CM -1 ...“ele certamente não estava com os olhos brilhando, não é? M6-2 Podia ‘tar chorando.” Acolhida a angústia introduzida por M6-2, ela circula no grupo: CM -1 “Quando você pára para pensar, justamente está aí uma clara falha da nossa Medicina: você tem os doentes internados, que estão no hospital e não tem toque retal, não tem exame neurológico feito de rotina, não tem exame articular feito de rotina. Então, isso são exames que deveriam ser - e exame de mama e fundo de olho - isso deveria ser feito, porque isso é feito em um monte de lugares, inclusive em alguns hospitais em São Paulo se exige que o residente, o interno, quer dizer, que você faça o exame clínico completo do doente. [...] M6-2 ...Antes, o residente que ia fazer o toque me chamou e falou: “você vai olhar isso, isso, isso e isso, isso, isso. Tenta ver.” Pô, eu consegui - acho - relacionar tudo que me foi proposto, mas, agora com certeza... PSM Como se isto tivesse dado um sentido... M6-2 É deu um sentido. Eu acho que se eu tivesse botado o dedo ali e não tivesse entendido nada, eu teria ficado pior. PSM Deu um sentido a este gesto e distinguiu de um gesto apenas... M6-2 Promíscuo. PSM ...sexual. Olha: promíscuo!? Sexual. Olha como entra... M6-2 Promíscuo. Eu joguei todo o meu, todo o meu preconceito em cima. M7-4 Eu acho que o problema mais sério é porque, tipo assim, eu nunca fiz um toque retal aqui, na Faculdade, num homem. Mas eu acho que o problema é que, é chato, porque é uma situação difícil pra aprender, porque pro paciente é constrangedor: chega um grupo, você vai aprender a 69 palpar o fígado, tá, vai o grupo todo mundo palpa, agora o toque retal é uma, acho que exige um... M7-5 Da mesma forma que você não faz exame ginecológico... M6-1 Um preparo maior.” A lembrança da “rotina” de um “exame físico completo” por CM-1 e do “grupo” de alunos no aprendizado da semiotécnica por M7-4 são a expressão de um desejo que implica na despersonalização do gesto, evitando a angústia de um estudante/médico autor de um toque retal num dado paciente, bem evidenciada no sentido “promíscuo” introduzido por M6-2. A questão da intensidade da erotização na relação é colocada por M6-2 num contexto onde a questão de gênero havia sido destacada por PSM e a questão da autoridade médica por CM-1: M6-2 “E você pode levar a coisa pra um outro lado que é... Você fala assim: você faz um exame físico, como médico, profissional, num paciente, ausculta, faz tudo, e aí você fica, você perde esse seu profissionalismo na hora do toque. Isso é uma forma de ver a coisa. Você se sente embaraçado. Agora, outra forma de ver que eu acho é a seguinte: quando você vai fazer o toque, você se vê como profissional, e ao contrário, você banaliza, pô, o exame físico de uma paciente. Será que também não é tão complicado, se você for avaliar a moral que ‘tá te levando a questionar um toque, você pegar e abrir a blusa da paciente, botar o seu esteto? Isso você faz.” CM-1 insiste que essas questões trazidas pelos alunos apontam para uma falha em sua formação, no sentido do ensino de uma postura profissional. M7-5, então, ilustra com uma situação onde um médico realiza o toque retal e o grupo conclui, enfim, a presunção: M7-5 “Eu acho que não é só estudante, não. No ambulatório uma vez eu vi isso, uma situação ridícula, não sei se era um residente ou era médico já, ele constrangido de fazer um toque no paciente, e porque era ambulatório, maior movimentação e tal, e acho que não era especialidade dele - ele era dermatologista e ia fazer o toque no cara, um negócio que não tinha nada a ver com a especialidade dele - então, ele virou assim: “ô, seu fulano - sem saber como se comportar com o paciente - senhor fulano vira aí, a gente vai ter que fazer uma contramão agora”. (RISOS) CM -1 Não é à toa que o toque retal não é feito de rotina nas enfermarias. Uma das coisas, não é uma coincidência, uma das coisas é, é justamente talvez uma dificuldade cultural e a outra coisa é o achar que não é necessário fazer. Porque, se as pessoas achassem que é tão necessário quanto tirar a pressão arterial no seu exame físico, talvez seja até mais necessário, porque a pressão arterial a enfermeira tira e você olha na papeleta, as pessoas no fundo não acham que o exame retal é necessário. Por que acham isso, juntam as coisas todas culturais, etc. etc. etc., não sei, não é o momento, mas isso é uma postura de século passado... M7-4 Ah, mas tem coisas que tem dificuldade. CM -1 ...no sentido de que não é necessário um toque retal. Imagina! O câncer do colo retal ele é um dos mais prevalentes. E o retal especificamente, do colo retal, é um dos maiores percentuais que existe, e você, e você não toca. M6-1 Isso é uma realidade. CM -1 Isso é uma realidade.” Em seguida, PSM introduz a outra verdade de que falava o grupo: o corpo erógeno. Valoriza a fala de M6-2 com relação ao risco que a negação da sexualidade pode levar: a “banalização”, a “vulgarização” do exame físico, cuja “moral” é o desrespeito ao paciente com conseqüências para a relação médico-paciente. O efeito da fala de PSM se faz sentir em especial em CM-1, que passa a falar, com maior liberdade, das fantasias e da sexualidade entre estudantes, médicos e pacientes. A instância de repressão se desloca para a Faculdade de Enfermagem - a “Anna Nery”, quando CM-1 pode então fazer uma crítica quanto ao seu excesso. Na análise desse 2º tema - o corpo erotizado - podemos apreciar como o relato de uma experiência referida ao corpo simbólico no exercício de um saber sobre o corpo biológico pôde ser compreendido como um “desvio”, um comportamento “não-conforme”, não só por um professor 70 de Clínica Médica como também por alunos. Na estratégia argumentativa utilizada, a presença de argumentos ad personam pode então ser compreendida: o problema não está no ato, mas na experiência que é posta em discurso, o que gera uma desqualificação que incide sobre a pessoa que realiza a enunciação e não sobre o ato. O professor de Clínica Médica ao representar mais legitimamente o discurso hegemônico, o que se relaciona à sua experiência de comprometimento com a formação de uma identidade profissional, lidera o momento da discussão, no qual uma sanção normalizadora está em jogo através de argumentos ad personam, mas alguns alunos se associam a ele, outros não, mostrando também a instabilidade, a mobilidade, a dinâmica enfim das relações de poder numa microprática, quando o poder não só “diz não”, não só reprime, mas opera nas suas dimensões positiva e negativa, que atravessam a teia de relações engendrando realidades. Assim, o que num primeiro momento foi controversamente tomado como um comportamento “não-conforme” passou a ser um recurso ao caso particular, uma ilustração, que esteia uma regularidade já estabelecida, embora não facilmente aceita, qual seja a não realização do procedimento na freqüência indicada pelas normas técnicas. A IDENTIDADE TÉCNICA Extrato de análise retirado do 5º seminário Corpus: p.221-242 O contexto Falava-se, a partir da experiência no ambulatório, de situações onde os alunos se viam de alguma forma envolvidos com a “responsabilidade” da comunicação do diagnóstico de câncer ao paciente. Percebe-se um efeito de surpresa na fala dos alunos, sugerindo a negação da morte, que é repetidamente confrontada nos vários relatos, nas várias situações vividas. Dos diversos exemplos citados, destacamos o que nos pareceu mais expressivo na ilustração de um momento reconhecidamente difícil para alunos, pacientes e médicos, exemplos da trágica vulnerabilidade diante dos impasses da clínica, das defesas mobilizadas e das difíceis escolhas. M7-4 “A gente ‘tá fazendo ambulatório de Pneumo, aí aconteceu uma coisa dessa comigo e com a @M1, a gente ‘tá no ambulatório do &H4. Chegou um paciente, quer dizer a primeira vez dele a gente que fez, e aí foi pedido - tinha um RX com uma massa - foi pedido a broncofibro (BRONCOFIBROSCOPIA), pesquisa de células, e aí tinha células malignas, e ele já veio com o laudo na mão. Aí a gente atendeu ele, né, porque a gente sempre atende sozinho, e foi a gente que atendeu a primeira vez. Depois vai discutir com o &H4. E a gente: “&H4, e agora?” Aí ele, aí o &H4: “e agora ele vai ser encaminhado pro ambulatório de Onco-pneumo”. A gente: “e agora o que que a gente faz!?” Aí o &H4: “não, ‘pera aí”. E o paciente viu que a gente, eu e a @M1, que a gente ‘tava assim nervosa, sem saber o que fazer, né. PSM Essa conversa se passou dentro da sala? M7-4 Não, dentro da sala não. Fora, mas ele via que eu às vezes olhava pra @M1, ela olhava pra mim. Ele viu que a gente ‘tava constrangida sem saber o que falar. Aí o &H4 chamou o filho dele... PSM Constrangidas não, embananadas. M7-4 É embananadas, completamente embananadas. Aí o &H4 chamou o filho dele e aí o senhor falou assim: “ora, @M1 e M7-4, vocês não precisam ficar assim nervosas, eu sei que eu ‘tou com câncer”. PSM Os pacientes ajudam, né? CM -2 Ele deu a notícia pra vocês.” (RISOS) A reação não esperada do paciente, que rompeu com a presunção do que seja o normal da reação de pacientes na iminência de receber o diagnóstico de um câncer num contexto de um hospital público é o fato mais enfatizado no relato, apontando para a singularidade do paciente e da relação estudante ou médico-paciente. A resposta do paciente contrasta com a resposta do professor a quem os alunos pediram explicitamente ajuda. A 71 primeira resposta do professor, que não satisfaz os alunos, indica a despersonalização dos cuidados e a burocratização da assistência, relacionada à forma de organização do trabalho médico, no caso docente-assistencial, onde o professor supervisor está no caso fora do campo intersubjetivo da relação médico-paciente: “e agora ele vai ser encaminhado pro ambulatório de Onco-pneumo.” Mas esse ato do professor não leva a uma reação em que poderíamos pressupor uma crítica ao professor, implicando uma perda na expectativa dos alunos de atendimento à sua demanda, o que nos é compreensível se pensarmos que os alunos já se encontram situados num campo de relações complexo. As alunas, então, insistem, sublinhando sua condição de sujeito, implicitamente referidos à relação com um outro, o paciente : “e agora o que que a gente faz!?” O professor então compreende que a demanda das alunas está referida ao campo intersubjetivo da relação médico-paciente, quando sugere que elas aguardem, enquanto ele, sem a presença delas, falaria com o filho do paciente. A tensão doente/doença, estruturante do ato médico, intensamente vivida por estar em jogo uma morte anunciada, é desfeita de forma inusitada pela possibilidade singular do paciente na relação com as alunas “constrangidas, embananadas”, propiciando o compartilhar da difícil verdade, produzindo-se o desfecho da situação. A valorização da diferença reafirmando a relação singular, que implica a criatividade do aluno ou médico na relação assistencial, as trocas simbólicas, que acontecem nessa estrutura de relações pedagógica no aqui agora do grupo, são o percurso possível, num campo onde o verdadeiro e o falso, o certo e o errado só nos dizem de um desejo de certezas que, no caso, levaria à construção de estereótipos - o paciente com câncer; o médico como aquele que tudo sabe e o paciente ser passivo, impotente - como se tudo pudesse estar dito e escrito em manuais. Mas voltemos à cena do 5º seminário, no ponto em que havíamos interrompido, quando PSM através de outra ilustração reafirma o compartilhar por parte de pacientes do valor da relação médico-paciente e de suas dificuldades. PSM “Vocês sabem que isso me lembra um paciente da Santa Casa quando eu era estudante, que dizia assim: “nós não podemos desanimar os médicos”. Sempre que você chegava ele procurava te dizer que ‘tava bem e tudo, “porque nós não podemos desanimar os médicos, sabe doutora”. Então, realmente, há pacientes que têm uma possibilidade de ajudar aos estudantes ou médicos, mesmo quando eles estão numa situação tão difícil e dolorosa, e aí a gente vê também como que as pessoas reagem de formas diferentes. Não necessariamente reagem como a gente imagina que alguém reagiria, esse alguém tem muito a ver conosco, né, porque não existe este alguém em tese, como que alguém reage a um diagnóstico de câncer? Cada um é um, tem lá a sua história. Aí a gente vê o quanto que a gente imagina, e dá poder a nossa imaginação, acha que o que a gente imagina realmente vai acontecer. É bom porque a realidade nos surpreende, as pessoas nos surpreendem, esse paciente, por exemplo, resolveu o problema pra vocês. O &H4 já ia falar com o filho dele? M7-4 É, o &H4 tinha chamado o filho dele pra conversar, só que nisso ficou eu e a @M1 com o paciente que era a questão, a pessoa em jogo, sem saber o que fazer, entende. PSM E o &H4 também não conhecia o paciente, porque ‘tava supervisionando vocês? M7-4 Exatamente. PSM Não tinha um contato prévio com o paciente. M7-4 Exatamente. Sei lá, acho que num caso assim quem ia ter que dar era, sei lá, a gente, sei lá. PSM As pessoas mais ligadas ao paciente eram vocês mesmas. M7-4 É. Foi horrível. Foram minutos assim de total tensão. PSM É uma situação difícil mesmo. Vocês vão pro ambulatório, vão pras enfermarias, mas não..., paradoxalmente vocês não imaginam muito que isso vai acontecer com vocês. De repente acontece.” A discussão do grupo segue em relação a dar ou não “plantão fora” das unidades hospitalares da Faculdade. Nesse momento, os alunos alternam a angústia relacionada à culpa referida a ações inexperientes que possam trazer dano aos pacientes, e a angústia de adoecer e morrer em conseqüência do exercício da prática médica, através, por exemplo, da contaminação pelo HIV. Os alunos se sentem “desprotegidos” e a experiência de desamparo é temporariamente acalmada por CM-2 que, respondendo à intensidade da demanda, usa do argumento de autoridade para realizar uma orientação. 72 CM -2 “Olha só, concordo contigo. Acho que a hora - vocês ‘tão todos no 6º período (vários corrigem: 7º) 7º período - eu acho que a hora, não é hora pra vocês darem plantão fora. Todo mundo que me pergunta do M6: “eu devo trabalhar no pronto-socorro do Souza, do Andaraí?” Eu digo que não. Vocês não estão preparados para darem plantão. Vocês estarão preparados depois que vocês tiverem sido treinados o suficiente, para serem jogados a..., né? Quando é que é isso? Eu acho que é a partir do 8º período pelo menos, que você já terminou a Clínica Médica, pelo menos já terminou toda a Clínica Médica. Acho que tem que sair sim, acho que não pode ficar só aqui na ilha da fantasia, tem que sair sim, mas tem que sair no momento certo. Sair antes, você além de estar colocando a vida do doente em risco, você também ‘tá aprendendo errado. E a pior coisa que tem é aprender errado. Você fazer a coisa errada mas você sabendo o que é certo, é uma coisa. Sabe, eu ‘tou fazendo isso aqui errado porque eu não tenho isso, não tenho aquilo, ‘tou fazendo o melhor possível. Mas eu sei qual é o ideal. Outra coisa é você ver o errado e achar que isso é o certo, que isso é o normal de todos os lugares. Então eu acho que você, que ela ‘tá correta, não é hora de dar plantão não.” Ao afirmar que a aquisição de conhecimento e o treinamento obtidos até, no mínimo, a conclusão das disciplinas de Clínica Médica possibilitam o aluno distinguir “o certo”, “o normal”, “o ideal” do “errado”, CM-2 lança mão de um argumento baseado na estrutura do real, introduzindo em relação ao ato médico e à prática médica a noção de um ideal, que para Perelman é uma ligação de coexistência entre essência e suas manifestações, que exprime o modo normal como as coisas se apresentam, e tem como noções correlativas as noções de “falta” e “abuso”. (Cf. PERELMAN, 1996a, p. 372-377) CM-2 se utiliza também de uma metáfora, “ilha da fantasia”, um tipo de argumento que fundamenta a estrutura do real, analogia condensada no dizer de Perelman, onde se dá a fusão de um termo do “foro” a um termo do “tema”, termos esses que não devem ser considerados subentendidos e “apenas o contexto permitiria uma escolha, raramente desprovida de toda ambigüidade e de toda indeterminação”. (PERELMAN, 1996a, p. 455) Os pares “dever de casa/vida real”, “dentro/fora”, “seguro/ desprotegido” já vinham sendo utilizados pelos alunos ao falarem da presunção de um contraste entre a experiência médica de estudantes nas unidades hospitalares da Faculdade e no sistema público de saúde em geral. A idéia de “essência”, de um ideal referido à formação profissional realizável pela escola médica e a recomendação sensata de CM-2 são aceitas pelos alunos, mas uma outra dimensão de seu desamparo não pode ser atendida, dado que há uma outra “essência” em jogo, que os alunos enunciam com o “acidente”. O inesperado, o incontrolável e o trágico da condição humana. Os limites da “ilha” não garantem a fantasia de imortalidade, não protegem da angústia de desamparo vivida pelos alunos confrontados com sua vulnerabilidade humana. As fronteiras da “ilha” nem mesmo garantem, de forma indubitável, o aprendizado do certo, como se verá na controvérsia mais a frente, mas a “falta” só está sendo objeto de discussão, e não a “essência”, porque espera-se que algo se possa fazer, nesse momento inclusive, através do dizer. A angústia dos alunos tem sua expressão máxima quando do relato da morte do irmão de uma aluna, num pronto-socorro de um hospital público universitário, em conseqüência de um acidente de carro, quando no dizer do grupo: “Ela na situação da vida real vendo o dever de casa ... vendo os estudantes olhando pro irmão dela como ela olhava pros pacientes ... aquele olhar de curiosidade ... E ela quase largou a Faculdade ... E ela viu ... que não adianta nada fazer nada disso, que mesmo estudando todo mundo não salvaram o irmão dela.” A questão da identificação com o paciente e de uma certa estruturação defensiva, que permita a diferenciação da dor do outro sem uma negação da vulnerabilidade e da mortalidade, de forma a não cortar o laço de identificação com o paciente, é apontada por PSM e seguida da pergunta tema, que se fará presente durante todo o restante dessa reunião do grupo: M7-2 “E, PSM, será que essa frieza que muitos médicos criam, será que é pra isso? ... Parece que, conforme as pessoas vão ascendendo na profissão, interno, residente, staff, não sei o 73 que lá, parece que vão ficando mais assim técnico, assim preocupados com os órgãos, lembra que eu te falei isso, não estão mais preocupados com o paciente em si . Será que é uma defesa, você não quer se envolver sentimentalmente com uma vida que pode estar acabando? Ou então... Porque a maioria dos médicos são tão frios, não sei o que, não ligam pro estado emocional do paciente, ficam mais preocupados se o rim dele ‘tá funcionando, se o fígado não sei que, entendeu? Será que vai acontecer isso com a gente? É essa a minha preocupação. Eu não quero ficar assim. M7-3 Se você vai ficar fria também. M7-2 Pois é. Eu vou ficar fria também? Ah! (INTERJEIÇÃO NO SENTIDO DE DESCASO , COMO SE ESTIVESSE DIZENDO: E NÃO VOU NEM ESQUENTAR COM ISSO !) Entendeu? M6-2 Frígida. M6-1 É tudo relacionado. (RISOS) PSM O que vocês acham? M7-2 Eu acho, eu não quero ficar, então eu acho que não, eu... Mas a maioria dos alunos que não ‘tão aqui participando destas aulas...” Da frieza, como defesa em relação à morte, enunciada como uma razão primeira por M72, passa-se rapidamente à frieza com relação à vida, mas não sem conflito, como veremos na controvérsia logo a seguir. Como dizem os alunos: “fria ... frígida, é tudo relacionado”. É só a partir do contexto que podemos surpreender o sentido analógico da expressão “frígida” que confere força argumentativa através do uso de uma metáfora. A metáfora da sexualidade “fria/frígida” nos remete a indiferença/impotência e nos faz pensar na força de determinação inconsciente na histeria, quando a oposição de satisfação como resposta ao desejo de um outro leva à frustração vivida no encontro, a impossibilidade de um prazer compartilhado. Como a psicanálise nos mostra, a estruturação de defesas com relação ao sofrimento não é uma escolha consciente. Estariam os alunos expressando também isso através da metáfora “fria/frígida”? Diante da presunção, aceita como premissa, da “frieza da maioria dos médicos”, estruturada coletivamente numa identidade eminentemente “técnica” referida ao profissional que detém um conhecimento e realiza uma ação exclusivamente voltados para a doença, M7-2 expressa ainda a opinião de que o que caracterizaria os alunos desse grupo, diferentemente da maioria, seria o fato de eles não só reconhecerem mas, sobretudo, valorizarem a dimensão simbólica de uma prática que envolve o sofrimento de pacientes, estudantes e médicos, o que os tornaria sensíveis à demanda de sofrimento dos pacientes, com conseqüências na sua ação junto a eles. M7-2 expressa o desejo, a suposição de uma homogeneidade dentre os participantes do grupo, que seria uma garantia de não existência de maiores conflitos no grupo. No entanto, logo a seguir teremos um embate, quando os alunos buscam as diversas razões que se apresentarão vinculadas às difíceis escolhas que se operam na prática médica, movidos pela dúvida do que se passa e se passará com cada um, ou seja, quem são como estudantes e quem serão como médicos. Duas controvérsias: “Meu Nome é Ninguém” Uma mãe em início de trabalho de parto à procura de uma maternidade para parir. Até então a discussão evoluía num clima marcadamente de solidariedade, afinal, todos tinham sua experiência de angústia e dor ancorada em exemplos da prática médica para contar. A controvérsia mais expressiva dessa reunião surge quando, após terem aceito a questão enunciada por M7-2, havendo um acordo portanto sobre a presunção de que a maioria dos estudantes e médicos ficam frios no decorrer de sua formação ou prática profissional, a presença no grupo de alunos calouros e veteranos - os M6 e os M7 - possibilita um exemplo em que M7-4 “já ‘tava muito mais fria” do que M6-1 e M6-2, em função das situações já vividas pelo maior tempo de formação, num mesmo contexto de aprendizado - a prática em plantões de Obstetrícia na unidade hospitalar da universidade. 74 A controvérsia escolhida é importante não só pela relevância do tema - a presunção da frieza dos médicos e a busca de suas razões e suas conseqüências, mas porque ela incide sobre o processo da formação da identidade profissional numa complexa rede de relações. A primeira razão apresentada, de que os médicos se defendem da angústia relacionada à morte, o que os coloca como seres também vulneráveis diante do sofrimento imposto pela natureza, é logo cotejada por uma segunda razão, qual seja, a do sofrimento imposto pelos homens aos outros homens, no caso, a dor do abandono infligida à paciente, a “frieza” conflitiva de M7-4, em plena “ilha da fantasia”. Inevitável lembrarmos de Freud a nos dizer: “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encarálo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes” (FREUD, [1930[1929]] 1976, p.95). M7-4 “Eu acho que você se acostuma. M7-2 Se acostuma, isso é verdade. (OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE) M7-4 Eu acho, eu faço estágio na Maternidade Escola. Eu acho que as primeiras vezes que eu vi um, um natimorto, sabe, ou um abortamento ou, sabe, um neném prematuro, muito prematuro nascer inviável. M6-1 Ou uma mãe ter que ir embora porque não tem vaga. (RISOS) M7-4 Ou uma mãe ter que ir embora... Exatamente, eles (REFERINDO-SE A M6-1 E M6-2) viram isso, uma mãe ter que ir embora porque não tem vaga, eles ‘tavam rodando na matéria eletiva, eu já ‘tava lá há muito tempo... PSM Uma mãe que está prestes a parir? M6-2 E a gente é que tinha que mandar a mãe embora. PSM Vocês viram o vídeo “Meu nome é ninguém”? M6-1 É igualzinho. M6-2 Passa direto lá na Maternidade. PSM Não é cinema, é realidade. M6-1 É realidade. M6-2 E é de dez anos atrás. (REFERINDO-SE AO TEMPO DO VÍDEO ) M7-4 No começo eu ficava com isso, eles viram. No começo, quando tinha que mandar uma paciente embora... A chefe do plantão, um dia, chegou pra mim e disse: “M7-4, você não pode ficar internando paciente assim, porque se você interna uma paciente com 2cm no único leito que tem e aí chega uma com 8cm e aí, vai ficar aonde, no chão?” Ela chegou pra mim e falou isso. Então, quando..., teve uma vez que a gente mandou, né, uma paciente embora, eles ficaram assim revoltados... M6-1 Porque às vezes ainda tem leito. M7-4 Mas você tem que controlar os leitos, porque se você não controla, realmente é horrível, mas o que que você vai fazer? Entende? Tem que ter isso. Eles ficaram assim revoltados e eu acho que eu já ‘tava muito mais fria. Eu acho que... PSM E manda embora numa boa, quer dizer, numa boa, eu quero dizer o seguinte: sem saber para onde vai? M6-2 A gente orienta pra vários lugares e manda procurar. (RI) PSM E manda a paciente procurar? M7-4 E mais, não tem como... PSM Não tem uma assistente social que telefone? M6-2 Não. De noite?! 75 M7-4 Não. A Maternidade Escola não tem assistente social... M6-1 Nem ambulância.” Os alunos discordam quanto a escolha de mandar ir embora uma paciente em início de trabalho de parto (2cm de dilatação), reservando o único leito disponível para uma possível paciente em franco trabalho de parto (8cm de dilatação) que poderia vir a chegar nesse plantão. M7-4, orgulhosa de sua experiência obstétrica como acadêmica, desejosa de reconhecimento pelos pares e com prazer de ser veterana no grupo, é porta voz do discurso dos médicos da cena do plantão na maternidade, fazendo seu o argumento pragmático que decidiu uma ação. O argumento pragmático transfere para a causa o valor das conseqüências. No caso duas conseqüências se contrapõem. Na consideração de uma paciente com 8cm de dilatação, cuja existência, se não hipotética, não permitiria escolha, pois imporia a imediata realização do parto pelos médicos, e como nos diz Perelman “não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência”, é o valor que é transferido para a causa da ação ou o motivo da escolha. Mas a paciente com 8cm tem uma existência hipotética, provável, ao passo que a paciente com 2cm não. O lugar da qualidade, que se refere ao valor do único, no caso, destacando-se o sentido de irreparável, irremediável, é colocado em confronto com o lugar do existente, que afirma a superioridade do que existe, do que é atual sobre o possível, e uma escolha se impôs. A decisão tomada e a ação decorrida é defendida por M7-4, apoiada pelo argumento de autoridade dos médicos obstetras. M6-1 e M6-2 discordam e recebem a adesão da autoridade PSM no grupo. M7-4 vulnerável à critica por sua escolha, nesse auditório, procura deslocar a critica para as psicólogas do local, ilustrando como nem esses profissionais de saúde, profissionais dedicados ao sofrimento psíquico, acolhem o sofrimento da paciente. Ao contrário, tamponariam as demandas das pacientes, calando seu sofrimento e o sofrimento possível dos profissionais. As frases supostamente reconfortantes são avaliadas pela aluna como “um apelo ao esquecimento, uma incitação a suprimir pela segunda vez o filho morto. Uma incitação a perdê-lo de novo, não mais na realidade, mas ‘no coração’ ” (NASIO, 1997, p.13). Mas M7-4 não escapa à desvalorização que seu ato implica em relação à sua pessoa: M7-4 “...as psicólogas de lá são mais furadas do que nunca. (RISOS) Ó, 2ª feira, falando sobre a psicóloga da Maternidade Escola: uma paciente tendo neném... M7-2 Uma denúncia. M7-4 Denúncia, denúncia, porque olha só. A paciente... Eu ‘tava na sala de parto, lá são duas, né, eu ‘tava acabando de fechar uma, e a outra interna - a @M2 - estava fazendo, ia começar a fazer um outro parto. M6-1 Já estava fazendo os procedimentos. M7-4 Ham? M6-1 Nada. M7-4 Aí, só que o outro parto era de um... PSM (REPETINDO) Você já ‘tava fazendo os procedimentos, você mesma ‘tava fazendo? M6-1 Luluzinha (APELIDO DE M7-4 E NOME DE PERSONAGEM DE REVISTA EM QUADRINHOS PARA CRIANÇAS) é a maior obstetra da... M7-4 Claro que não. Parteira! (EM TOM DE RAIVA, REFERINDO-SE À GOZAÇÃO - INAUDÍVEL - QUE UM COLEGA FEZ ) (RISOS) Aí... Só que o neném, tipo assim era um feto morto, entende, e a mãe ‘tava chorando. Sabe o que que a psicóloga ‘tava falando? “Não chora não, você é tão nova”. M7-2 Você vai poder ter um monte! (IRONICAMENTE) (RISOS) M7-4 Olha só que absurdo! Eu acho que isso, nem em M4 quando a gente teve aula com a &M2 (PROFESSORA DE PSICOLOGIA MÉDICA), era a primeira coisa que a gente aprendeu a nunca fazer é mandar o paciente não chorar, porque “não chora não, você já tem filho” ou então “você pode ter mais”. A psicóloga... Então, não tem nada lá, não tem nada. Elas vão embora. (RISOS) O que que vai fazer? Não podia fazer nada ali.” 76 A desvalorização feita à M7-4 incide sobre o seu desejo de reconhecimento. M7-4 é particularmente interessada em obstetrícia, sendo a aluna do grupo que, por ter esse interesse, mais conhecimentos e experiência tem nessa especialidade, numa fase da formação onde os alunos, de um modo geral, não têm uma participação destacada em especialidades. Ao não atentar para suas escolhas, limitando-se a reproduzir o argumento de autoridade enunciado em sua prática, M7-4 é vista pelo grupo como uma quase profissional com recursos mais limitados, afeita eminentemente ao fazer. O uso da palavra “parteira” em oposição à “obstetra” nesse contexto, nos parece, refere-se à oposição técnico x médico, apontada por M7-2 ao enunciar a presunção. M7-4 justifica seu ato com o argumento baseado na estrutura do real evocando a noção de “falta” com relação à “essência” da prática assistencial cuja razão de ser é o sofrimento do doente, buscando a solidariedade do grupo através de um ideal compartilhado. Nesse momento dá-se uma atenuação da controvérsia, sobretudo, entre M6 e M7-4, a partir da identificação de M7-4 não só como parte de uma equipe obstétrica, mas também como parte do grupo de estudantes de medicina e desse grupo. A enunciação de M6-2, que introduz a questão da dor associada à quebra da onipotência, indica a possibilidade de algum sofrimento, um sofrimento suportável e, portanto, uma menor intensidade de negação do sofrimento, abrindo a possibilidade de uma ressignificação para o tão conhecido “se acostumar” na prática médica. Há mais de uma possibilidade ao “se acostumar”, tornar-se “fria/frígida” ou “dolorido”, dependendo do vivido na experiência médica, quando deixa-se de ser “virgem”. M6-2 “Eu acho que existe uma diferença entre se tornar frio e se tornar dolorido. É aquilo... Chega uma hora que você se acostuma à dor também, porque levando tanta pancada, você assimila melhor aqueles golpes. Isso é diferente de se tornar uma pessoa fria. M7-1 Eu também acho. M7-4 Mas aquele dia na Maternidade vocês me acharam fria. M6-1 Eu passei por um episódio... M6-2 Mas era a primeira vez, a gente era virgem. M7-4 Mas vocês chamaram, vocês falaram: “como é que pode?!” Eles ficaram revoltados comigo. (DIRIGINDO-SE A PSM) PSM Como é que você mandou uma paciente embora com 2cm!” M6-1, pressionado pela angústia de sua experiência, já sinaliza a sua entrada, e nos trará uma outra ilustração relacionada à presunção enunciada por M7-2, quando então se dará uma segunda controvérsia, onde M7-4 se oferece novamente como porta-voz dos médicos, já que a controvérsia anterior apenas se atenuou, deixando-a angustiada com a apreciação do grupo em relação a sua pessoa e seus atos e, ao mesmo tempo, com sua identidade profissional em formação nesse campo de forças. Um filho morto: um aborto ou um natimorto? A questão técnica dos 500 gramas. Essa controvérsia nos parece exemplar de como a angústia frente à morte pode gerar defesas, que se estruturam num discurso, cujos argumentos nos mostram o uso do conhecimento médico como certezas universais e inquestionáveis, livrando o sujeito de sua difícil e, por vezes, dolorosa experiência, quando suas escolhas são vividas não como escolhas, pois a complexidade da estruturação defensiva, no nível individual e no coletivo, se institucionaliza sob a forma de normas, mais ou menos explícitas, de cuja obediência depende o reconhecimento do sujeito por seus pares. O defender-se da morte e do sofrimento levando a um nível de insensibilidade alteritária é o alvo dessa controvérsia. M6-1 “Eu passei por um episódio assim: eu e aquele obstetra - como é o nome dele? M7-4 O &H6. M6-1 O &H6. O &H6 fez o parto, morto o neném. Lembra uma vez uma mulher? (REFERINDOSE A M6-2) Aí o cara tirou o neném, botou lá, foi embora. 77 M7-4 E o &H6 é um cara assim super, super-humano, assim ele é... Ele faz parto humanizado. M6-2 Nego pegou pra pesar, porque se fosse menor que 500 gr... M6-1 Vai pro lixo! M7-4 Não. M6-2 Menor de 500 gr vai pro lixo. M7-4 Mas ele não falou... Duvido que o &H6 falou isso. M6-2 Não, nego perguntou quanto é que era, quanto é que era. Aí eu perguntei: “mas qual é a diferença”. Aí eles falaram: “ah, menor de 500 gr não tem que fazer certidão de óbito”. M7-4 Aí não é, não é natimorto, é aborto. M6-2 É aborto. (ECOANDO A FALA DE M7-4) M7-4 Ah, mas é questão técnica. O &H6 não falaria isso assim.” M7-4 preocupada, como assinalamos, com seu ato no plantão de Obstetrícia e seu ato de discurso no grupo, no sentido da repercussão sobre a apreciação de sua pessoa pelo grupo, consegue, nessa controvérsia, usar a técnica mais eficaz, segundo Perelman, de ruptura à interação ato-pessoa, qual seja a consideração do ato como expressão de uma verdade médica - “é questão técnica”. A independência de um ato em relação ao que se pensa de uma pessoa só é possível quando esse ato expressa um fato ou uma verdade que, enquanto são reconhecidos como tais, escapam ao domínio da argumentação (Cf. PERELMAN, 1996a, p.353-361). A necessidade de qualificação - “parto humanizado” - pressupõe uma parto não humanizado, o que nos remete, nesse contexto, à oposição técnico x médico, e nos lembra uma crítica à medicina atual em que ela estaria se tornando uma medicina veterinária. Como nos diz Perelman, “a simples qualificação, ao evocar a essência, pode fazer compreender quanto a realidade se afasta dela” (1996a, p.376). Lembro da minha perplexidade ao ouvir os alunos sobre os 500 gramas e a certidão de óbito10 e a questão técnica que se destaca quando, no relato, todos os envolvidos vivem a morte de uma criança. Mas o peso do sentimento mantém a discussão e o questionamento, ficando implícita a relativização do valor da norma nesse contexto. M6-1 “E eu fiquei conversando com ela algumas coisas. Fiquei conversando assim vários minutos com ela. Perguntei em que situação tinha ocorrido aquela gravidez. O que que ela achava daquilo tudo. E ela ‘tava chorando, sabe, muito, e no final do nosso papo ela parou um pouco de chorar. Ela, ela..., eu falei até isso assim: “você ainda é uma menina nova, você não pensa em ter outros filhos?” (RISOS) PSM Mas aí vocês estão apontando uma esperança. M7-4 Mas aí é diferente. M6-1 E ela falou assim: “nunca mais quero ter filho na minha vida, nunca mais quero fazer isso, nunca mais quero passar por essa situação”. Eu falei: “calma, calma”. M7-4 É diferente de “não chora porque você pode ter outros filhos”. Você chora, mas você pode ter outros filhos. M6-1 Até que ela chegou pra mim e falou assim: “eu quero ver, quero ver, cadê meu filho, cadê meu filho?” E já tinham levado. O &H6 naquele dia não ‘tava muito legal, ele tirou, enrolou num 10 Legalmente é facultado ao médico fazer ou não declaração de óbito em caso de perda fetal precoce ou intermediária consideradas aborto. As perdas fetais precoces se caracterizam por idade gestacional até 20 semanas, peso de até 500 gr, estatura abaixo de 25 cm. As perdas fetais intermediárias se referem à idade gestacional entre 20 a 27 semanas, peso entre 500 e 1000 gr, estatura entre 25 a 35 cm. Os critérios são independentes em função da possibilidade de desconhecimento da idade gestacional por parte do médico que realiza o parto. Cf. GOMES, H. Medicina Legal, 32ª ed. atualizada por Hygino Hércules, 1997, pp. 42-3. 78 pano e levou. E ela queria ver o filho. Até que uma das obstetras, eu fui falar isso com ela, me explicou até que tinha uma síndrome psiquiátrica, que se a mãe pedisse pra ver o filho, você tinha que levar, mostrar o filho pra mãe, que existia uma síndrome, uma doença lá, psiquiátrica que ela ia ficar achando que foi ela..., que o filho ‘tava vivo ainda. M7-4 Eu acho que é assim: que o próximo filho que ela for gerar que ela pode ficar achando que era este, entendeu? Tipo assim, quando ela..., não conseguir desassociar uma coisa da outra. PSM Isso tudo é fantasia. (RISOS) O que existe, em termos de síndrome psiquiátrica, em puérpera, que tem uma freqüência grande, é a depressão puerperal, e menos freqüentemente a psicose puerperal, mas que não tem relação se a pessoa teve um natimorto ou se teve um bebê saudável. Agora, o que ela ‘tava querendo, me parece, se referir é que talvez ficasse mais difícil isso não é só pra filho - mas pra filho, enfim, a puérpera é uma pessoa que está vivendo..., o ser saiu de dentro do corpo dela, era uma parte dela, então mais no sentido de facilitar que não haja uma negação, que pode até haver durante algum tempo, sem que seja nenhuma síndrome psiquiátrica típica. Não é isso. Agora isso vocês vêem em outros pacientes, em outro momento também, pedindo pra ver a pessoa que morreu. Isso faz parte de uma elaboração do luto, de uma realização de que aconteceu a perda. M6-1 Aí eu mostrei. Não sei se eu tinha essa autoridade de pegar a criança e mostrar. M7-1 Ninguém mostrou? M7-4 Mas o certo é perguntar se quer ver... M6-1 Não, eu perguntei! M7-4 ...e preparar a mãe - pelo menos foi assim que me ensinaram - tipo assim, você tem que perguntar se quer ver, e preparar a mãe, antes de mostrar, que aquele neném ‘tá morto, que ele não vai ser um neném bonitinho igual os outros nenens. Tipo assim, não com estas palavras, mas preparar, porque de repente ela acha que o neném ‘tá morto mas é um bebê Johnson e ela vai ver aquele ratinho morto. M6-2 Eu sei que não tem muito a ver, mas me falaram que na Emergência eles fazem o anti-HIV de rotina, assim não pergunta ao paciente. CM -2 Qual Emergência, aqui? M6-2 É. CM -2 Isso não é permitido. M6-2 Obrigado, essa era a minha dúvida.” Quando ouvi que a decisão de levar o filho morto à mãe, que acabara de parir e queria vêlo, se pautava na existência de uma síndrome, uma doença psiquiátrica, sofri um desconforto súbito cuja lembrança me ajudou a dar sentido a minha expressão: “isso tudo é fantasia”. Como um obstetra precisa recorrer a um conhecimento do patológico num momento tão demasiadamente humano!? Que saber/poder médico é esse? Pergunta M6-2. Um saber que se pretende totalizante, um poder autoritário, que lança M6-2 no conflito entre o desejo e o medo desse saber/poder, o que o faz convocar CM-2 para saber dos limites desse poder, e agradecer formalmente, indicando que seu alívio só pode advir da existência da lei. CM-2 representa a lei e ao dizer que reconhece a lei, o limite, realiza essa função simbólica, mesmo que não seja de fato assim - o que vai se dizer em outra discussão mais à frente, a partir do retorno a essa pergunta sobre o anti-HIV por parte dos alunos (7º seminário). Nesse momento, a não realização do anti-HIV sem consentimento do paciente é aceito como um fato, em função do contexto que está a exigir simbolicamente o exercício da lei, e a preservação de alguma “ilha da fantasia”, no caso a do hospital geral onde mora CM-2, já que a “ilha da fantasia” da obstetrícia foi, mesmo que temporariamente, invadida pelo oceano. No entanto, os alunos nadaram. M6-1, na omissão dos médicos sugerida no relato, escolheu entre se identificar com os médicos e abandonar a cena ou atender à demanda de uma mãe em dor, arriscando uma atitude solidária, que deu sentido ao não sentido da morte. PSM parte para buscar modelos que se contraponham aos antimodelos trazidos pelos alunos. Indica a presença de CM-2. Os alunos de imediato, mais uma vez, o convocam. CM-2 utiliza o argumento de ligação de coexistência pessoa-ato, privilegiando sobremodo a estabilidade da pessoa, e obtém a adesão de M7-1, M7-3 e M7-4. 79 CM -2 “Não, eu acho que você não fica frio, não. Eu não fiquei. Você cria... vai criando alguns mecanismos de defesa, de autopreservação, mas eu trato todos os meus doentes atualmente, os meus doentes do ambulatório do hospital - faço ambulatório aqui no hospital há 10 anos, não, 12 anos; estou formado há 12 anos, faço ambulatório há 12 anos - eu trato os doentes da mesma forma hoje do que eu tratava quando era residente. Da mesma forma. Eu trato da minha forma. ... Agora, tem alguns locais que você tem que se proteger mais. O trabalho na Emergência é o grande protótipo, né, porque primeiro é um contato rápido, segundo ... é um sofrimento mais intenso, né. Então você tem que... Isso você aprende, você adquire com a sua prática médica. Mas aquele, aquele médico, que existe lá, que entra numa sala de grande emergência, vê cinco doentes gravíssimos e vira as costas e vai embora. Esse médico já era assim no primeiro ano de formado, no primeiro ano de formado.” PSM dá sua adesão parcial à CM-2, mas relativiza ao considerar como um dos aspectos a estrutura defensiva da pessoa. Dando continuidade a pergunta tema sobre o tornar-se ou não frio, os alunos chegam ao relato de sua primeira experiência com a morte de seus pacientes. A surpresa e a angústia são compartilhadas, na cena, com colegas e familiares do paciente e, no grupo, mais uma vez as alunas se emocionam. Nessa referência à elaboração de um luto compartilhado lembramos o trabalho de Mannoni (1995) que nos diz: “Socializar a morte, portanto, previne os lutos patológicos, ampliando a experiência humana do sobrevivente” (p.123). As ações médicas não são só limitadas pelo biológico e seu conhecimento, mas também pelo social e, em situações concretas, médicos e estudantes operam escolhas. O conflito vivido pelo grupo tem uma importância maior se considerarmos a problemática da responsabilidade do profissional que estamos formando, no contexto da qualidade da assistência médica atualmente oferecida, onde já estão imersos nossos estudantes. Essa problemática é objeto de preocupação de vários autores dos quais destacamos, neste momento, Lilia Schraiber: “Reconhecemos aqui as recentes e constantes críticas sobre a qualidade da assistência médica. A falta de compromisso surge como situação na qual o profissional se crê isento da responsabilidade individual. Isto ocorre, senão frente ao conjunto de repercussões de seu ato, ao menos da parte que entende, ou representa para si próprio, como mais “externa” à sua técnica, a qual geralmente repassa ou à instituição em que trabalha, ou ao grupamento mercantil (médico ou não) e empresa a que se filia, ou até ao governo, cindindo-se como ser técnico, trabalhador e ser social. Essa situação freqüentemente é relacionada à despersonificação dos cuidados e desumanização da assistência” (SCHRAIBER, 1997, p.128). A EXPERIÊNCIA DE SUJEIÇÃO Extratos para análise retirados dos 4º, 10º, 12º e 14º seminários Corpus: p.219-220; p.274-275; p.276-285; e p.286-290 O contexto Desde o início do 12º seminário, falava-se de conflitos entre as várias categorias profissionais da equipe de saúde, enfatizando-se as conseqüências desfavoráveis sofridas pelos pacientes, o que angustia os alunos, que sentem uma “raiva impotente”, pois “a corda estoura no lado mais fraco”. Nas relações hierarquizadas do trabalho hospitalar, além da desqualificação, há a impessoalidade, muitos não tem “nome”: (enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, alunos.) M6-1 “...O enfermeiro, na verdade, a gente não tem contato, na enfermaria a gente sabe disso. O contato é: nem “oi” se fala. Nem “oi” se fala, parece que eles são invisíveis.” M7-2 “Aí você vai pedir alguma coisa às vezes pra ele, às vezes você não sabe: “aonde tem seringa?” No começo era assim. “Ali”. Não olha pra sua cara, entendeu? De graça. E é de graça 80 isso. Eu nunca fiz nada, a pessoa não me conhece, entendeu? No primeiro contato não é pra falar: “ali”. Era pra falar assim: “tem ali na gaveta”.” M7-3 “A gente não sabe nome de nenhum enfermeiro, sabe nome de interno, de todo mundo, mas não sabe de enfermeiro, sabe da chefe, mas do resto...” CM -3 “...O doente nem conhece nem o nome dela [assistente social], não conhece.” O “descaso”, em especial com relação aos pacientes, e a “raiva”, por vezes totalmente “impotente”, não só frente a ações, mas também diante de ditos como o tão freqüente “você tem que se acostumar” que os alunos ouvem de seus superiores hierárquicos médicos, são questões que percorrem toda a discussão, estando a incitar a apreciação de razões assim como a busca de ações possíveis, nesse contexto de relações hierarquizadas, cuja finalidade é o ensino e a assistência. É importante que se diga que o cenário principal dos relatos na primeira parte desse seminário é o plantão de Emergência no hospital universitário, o que nos indica uma maior intensidade de angústia por parte de todos, em especial pacientes e estudantes, o que se reflete no modo da experiência: M7-2 “...E eles [os médicos] sempre falaram que a evolução da noite é uma coisa mais rápida: “não precisa fazer aquele exame físico que vocês gostam de ficar fazendo”, não sei o que e tal, mas a gente gosta de ficar conversando pra entender também a história. Bom. Aí eu fui chamar o enfermeiro pra me ajudar a levantar o paciente. E nesse dia era dia de jogo do Brasil. Então ele se sentiu meio incomodado e foi de má vontade. Na hora que a gente conseguiu colocar o paciente pra cima, ele teve um acesso de tosse, começou a tossir, tossir muito, começou a vomitar. Eu fiquei nervosa, com medo dele fazer broncoaspiração, não sei, fiquei segurando ele, e isso assim - até ontem as meninas riram quando eu ‘tava contando isso - quando a minha irmã vomita eu nunca fiquei do lado porque eu tinha nojo, entendeu, e ontem eu tive uma coisa, quartafeira eu tive uma coisa que não era eu, entendeu, que ‘tava ali, porque eu fiquei segurando ele, e ele vomitando, vomitando, vomitando, vomitando, vomitando, eu não senti nada, lógico espirrou em mim e tudo mais, mas eu permaneci ali.” (RISOS) Os alunos, em função de seu saber mais limitado, vivem uma dimensão de dependência e identificação na relação com os pacientes, pois é mais difícil para eles negarem que precisam dos pacientes para aprender semiologia, clínica, cirurgia, enfim medicina. Isso os aproxima dos pacientes e os coloca mais vulneráveis à culpabilidade quando, na dissimetria da relação assistencial, os pacientes não têm suas demandas atendidas. M7-2 “Mas então, CM -3, aí eu fui, eu fui... A paciente continuou reclamando: “eu ‘tou evacuada, ‘tou toda evacuada”. E realmente, aquela paciente - a T que tinha hepatoesplenomegalia - eu fiquei palpando horas ela. Então, quer dizer, ela me viu palpando e depois ela não me viu limpando, entendeu? Como é que essa menina entra aqui, me cutuca, não sei o que lá, faz tudo que ela quis pra ela, entendeu, e na hora que eu ‘tou precisando não tem uma ajuda, entendeu? Porque ela ‘tava se sentindo mal, óbvio que ela ‘tava se sentindo mal. Aí eu fui novamente lá, aí eu já bati no braço dele [enfermeiro] e pedi pra ele ir lá. Aí ele não foi, continuou sentado vendo televisão. Então eu também não podia chegar pra ele e falar assim: “você vai agora e pronto”.” O estudante, como destinatário da demanda do paciente, procura amplificar a voz desqualificada do paciente sendo seu mensageiro para a equipe de saúde, no entanto, nem sempre a soma das vozes é suficiente na busca da ação desejada. No contexto dessa discussão no grupo, são os professores que invocam a autoridade médica tanto na sua possibilidade de interagir com outros profissionais de saúde visando ao bemestar do paciente quanto na sua responsabilidade enquanto modelo para o aluno, como por exemplo neste trecho em seqüência à fala acima citada: CM -3 “Não, você não. M7-2 Porque vai causar... No novo plantão ele vai ‘tá lá e eu também, entendeu? Então eu teria que me dirigir à enfermeira chefe ou o médico se dirigir à enfermeira chefe. 81 CM -3 Exatamente. PSM O médico responsável pelo plantão tinha que se dirigir à enfermeira chefe. CM -3 E se o médico não fizer, até pode você fazer. Mas você chega para a enfermeira que é responsável por aquele plantão do dia, e diz: “por favor está tendo um problema assim com aquela paciente...” Se ela vai mandar ele mesmo, aí não compete mais a você. Ela pode, de repente, ver que ele não vai mesmo, não vai se indispor com ele e manda outro. Mas o doente não fica sujo, entendeu. E é uma omissão também, se um médico ‘tá lá orientando um grupo de alunos, se vem um grupo de alunos e te mostra um problema que ‘tá acontecendo e ele não toma uma providência, ele ‘tá dando um exemplo que não é bom, ele já ‘tá te ensinando a ser omissa numa situação dessa. Entendeu? PSM Isso é que eu acho mais grave. CM -3 Isso é muito grave no ensino, no aprendizado de vocês, quando vocês estão aqui pra mudar atitude. Como vai mudar atitude desse jeito? PSM Mais. Estão formando atitude deformada. CM -3 Isso é que é o pior. PSM Por que é que vocês acham que as coisas se passam assim?” No terço final desse 12º seminário, a discussão se desloca dos conflitos envolvendo os vários profissionais de saúde para conflitos entre os integrantes da equipe médica, quando então é apresentado um caso clínico, que propicia mais uma ilustração em relação à posição do estudante na dinâmica das relações institucionalizadas, esse difícil lugar, diríamos, de “marisco” entre a rocha e o mar. Temos, então, um relato de M7-1 que, sofrendo o impacto das demandas da paciente, valoriza seu conhecimento da doente e das doenças, o que se expressa inclusive no diálogo com os médicos na enfermaria e no round. Irritada com os médicos, pela desqualificação de suas demandas assim como as da paciente que ela tentou amplificar, M7-1 traz sua “dúvida” para o seminário, buscando uma estratégia argumentativa também no contexto do grupo. A possibilidade de M7-1 realizar críticas não só a professores como médicos residentes, seus superiores hierárquicos, nesse contexto do grupo se refere, entre outros aspectos, a sua presunção de acordo por parte das autoridades presentes no grupo. No contexto mais imediato desse seminário, diríamos que o fato de CM-3 e PSM terem não só invocado a autoridade médica na sua dupla responsabilidade de ensino e assistência como criticado sua “omissão” através do argumento pelo modelo é uma importante sustentação da presunção de M7-1. Nesse sentido a maneira como M7-1 inicia sua argumentação é reveladora: M7-1 “Tira uma dúvida aqui. Quando a pessoa, a minha paciente essa semana... Aliás essa semana eu fiquei irritada a semana inteira lá na Pneumo, eu ‘tava adorando, só que... Foi assim, eu vou contar a história da paciente.” M7-1 ao iniciar solicitando “tira uma dúvida aqui” enfatiza a relação professor-aluno no grupo. Esboça então uma pergunta sobre a paciente sem sucesso, quando diz ter ficado “irritada”, de forma semelhante à M7-2 no início desse seminário, a qual obteve uma expressiva acolhida do grupo quando se mostrou ambivalente quanto a falar ou não de sua “raiva” em função de conflitos com os profissionais da equipe de saúde a partir dos episódios ocorridos no plantão de Emergência. Antes de explicitarmos a “dúvida” de M7-1 e a dinâmica das controvérsias ocorridas na enfermaria e no grupo, vamos considerar o contexto ampliado, na estrutura dialógica desse grupo, citando exemplarmente enunciações que apóiam a presunção de M7-1 em relação aos professores do grupo, quando esses falam da tensão doente/doença na valorização dos sintomas na anamnese, no raciocínio diagnóstico e na dimensão terapêutica do ato médico, num fragmento do 10º seminário: PSM “...e uma coisa muito bonita que vocês apontaram é isso, quer dizer, e apontaram através das próprias palavras do &H1: que numa relação, digamos a dois, é claro que tem toda a equipe, mas pensando no médico e no paciente, cada um tem o seu interesse, o seu investimento, o seu desejo naquela relação. É isso que o &H1 diz pro residente: “bom, você 82 atendeu ao seu conhecimento, a sua curiosidade etc. e tal, e o paciente?” E vocês vêem que isso é uma coisa que tanto a Clínica Médica quanto a Psicologia Médica enfatizam; na Clínica Médica, isso pelo menos de forma formal, aparece claramente na questão da queixa principal, e a gente vê como que os alunos, alguns nem aprendem, eu acho, outros custam um certo tempo, até viver a prática, a compreender porque ... M7-2 A atender também. PSM ... porque aquele espaço é dedicado às palavras do doente. M7-7 E as principais palavras dele. PSM Porque, vejam, do ponto de vista formal e de forma instituída, a queixa principal é o espaço para que o paciente diga ao que ele veio, qual é a demanda dele, o que incomoda principalmente a ele, ao que ele está pedindo a ajuda. M7-7 Eu já vi várias vezes perguntar... O paciente tem uma... a doença dele é X, e a queixa principal dele é A. Aí então o aluno vai faz a anamnese, começa com a queixa principal, então já põe lá entre aspas, depois quando faz tudo, vê exame, lê prontuário, vê que não tem nada a ver com a queixa principal, aí fica preocupado: “mas, vem cá, eu ponho aquela queixa principal mesmo?” (RI) Enfim, o erro vai ser dele, sabe, se ele não... CM -3 Isso é uma coisa muito freqüente, quer dizer, na prática médica às vezes o médico ele quando identifica uma situação orgânica, uma causa orgânica, pra ele é um alívio até: eu descobri o que é. PSM Cumpri minha parte. CM -3 Eu sei isso. Eu sei isso. Então, quando o doente às vezes vem queixando pra você de tonteira, cefaléia, principalmente se os sintomas são bem vagos, ou então uma dor, uma dor qualquer, que não é característica de nada que você aprendeu, então você começa a ficar muito preocupado - pôxa isso eu não sei, isso eu não sei, que dor é essa, que queixa é essa - então você vai fazendo a anamnese do doente, vai sempre tentando dirigir, dirigir, dirigir a anamnese com perguntas, com perguntas, pra ver se você consegue diagnosticar, te dá uma ansiedade muito grande, isso é óbvio. Então, é muito comum no exame físico no momento que você examina o doente, se você encontra, por exemplo, uma ponta de baço ou um fígado um pouco aumentado - pô! encontrei uma anormalidade, então eu tenho como ganhar um tempo aqui, vou pedir uns exames, saber que fígado grande é esse - por aí começa, aí esquece que a queixa do doente foi a tonteira, não orienta o doente pra nada da tonteira. Pede uma lista lá de exames, aí o doente vai voltar daqui a não sei quanto tempo com aquela lista, continua tendo tonteira, pô! Entende? Então aí é que tá, o médico ele tem que valorizar é o que o doente conta, é o que se queixa. Não interessa se o meu doente tem cirrose hepática, mas ele veio pra mim, hoje, ele ‘tá sentindo é tonteira, eu tenho que cuidar daquela tonteira, eu tenho que dar um alívio pra aquela tonteira... PSM Uma resposta. CM -3 Uma resposta, uma orientação, não precisa ser um remédio, uma orientação. "Olha o senhor ‘tá tendo muita tonteira, quando o senhor mobiliza a cabeça, quando o senhor levanta, então vai levantar mais devagar, vai aos poucos, se ‘tá deitado, senta primeiro na cama, pra depois você ficar de pé, não fica imediatamente que é pra não ter tonteira." E começa a orientar o doente, pô. Você pode não saber o que é aquilo, mas você tem que saber orientar o doente. Por isso que o sintoma, se trata sintoma, nem todo sintoma é uma doença. Quantos mal-estares a gente sente na vida e não está doente? ... Porque a gente que tem conhecimento médico começa a valorizar essas coisas. E passa aquele dia e você não encontra explicação pra aquilo. PSM Você quer sempre fazer um... M7-7 ...diagnóstico, e às vezes o doente se adapta a esse diagnóstico e vai... Por exemplo, a minha madrinha, ela teve há uns quatro meses ela ‘tava com uma dor muito forte em região coxofemural...” (segue a discussão através do caso clínico) A consideração de “erro” na queixa principal do doente, quando esta não expressa um sintoma compatível com a síndrome ou doença hipotetizada no raciocínio diagnóstico do aluno, sugere uma pretensão de total dissociação entre a narrativa do doente e a construção narrativa de uma história clínica, o que nos remete a uma contradição, apontada por Hunter (1996) no ensino da clínica, entre a ênfase que é dada à boa colheita da história relatada pelo paciente e a 83 freqüente suspeição em relação às palavras do doente. De fato, suas palavras não só podem ser meramente desvalorizadas, como também, muitas vezes, são apreciadas como fonte de equívoco, como resume a conhecida e freqüente expressão “o paciente informa mal”, o que aparecerá inclusive na situação clínica trazida por M7-1. CM-3, numa fala para além do certo e do errado no raciocínio clínico, através do argumento pelo modelo, abre um espaço de legitimidade à experiência de incerteza na clínica, admitindo a angústia de desconhecimento no processo de investigação que busca a identificação de um padrão no caso clínico individual - o diagnóstico. Este, passa pela interpretação dos sintomas que ganham seu significado predominante ora na narrativa do paciente ora na do médico, ambas, entretanto, presentes na interação médico-paciente, a produzir respostas, nem todas dadas a priori pelo conhecimento médico. “O a priori convém ao anônimo” (p.390), nos diz Canguilhem (1994) num belo texto em que o autor defende que é da natureza do ato clínico ser um ato de experimentação. “Uma medicina preocupada com o homem na sua singularidade viva pode apenas ser uma medicina que experimenta. Não podemos não experimentar no diagnóstico, no prognóstico e na terapêutica” (p.389). A dinâmica das controvérsias Voltando à questão que nos traz M7-1, no fragmento selecionado do 12º seminário, evidenciam-se pelo menos dois ou três cenários onde se dão controvérsias dialogicamente articuladas: a enfermaria, o round e o grupo. No round, como na enfermaria, as controvérsias estão referidas às diferentes interpretações e valorações de dados clínicos. No entanto, na apreciação da aluna, essas diferentes impressões clínicas não são propriamente argumentadas, mas meramente cotejadas, prevalecendo a avaliação dos médicos de maior prestígio e experiência, numa clara expressão da equação saber/poder. A situação conflitiva para M7-1 se inicia desde a colheita da história clínica, onde ela descobre diferenças entre a sua história e a da residente, que atribui ao fato de ela ter conversado “muito mais tempo” com a paciente o que teria possibilitado que a paciente contasse “mais alguns detalhes”. M7-1 se deixou impressionar mais fortemente pelo sofrimento crônico da paciente assim como pelas suas múltiplas queixas. M7-1 “...Na história da residente, há um mês ela começou com tosse, expectoração, tipo um quadro de pneumonia. [...] Só que na minha história ela contou que teve infecção respiratória, ela tinha infecção respiratória de repetição de dois em dois meses, de três em três meses mais ou menos [...] ela disse que tinha problema de pulmão. Ela falava como se fosse uma coisa meio crônica. Ela falou pra mim que ela teve um episódio de hemoptóico, então eu cheguei pro &H3 que é o médico e falei esta história do hemoptóico, ele falou que estava desconfiado de BK. Fizeram o BAAR dela duas vezes e deu negativo.” No primeiro round em que o caso da paciente foi discutido, M7-1 se fez expressar e, no seu relato, destaca-se o uso repetitivo da expressão “ignoram”, como resposta à consideração de um aspecto da situação clínica que não está sendo priorizado na apreciação de quem detém maior prestígio nas relações hierárquicas. M7-1 “PSM, daí chegou no round, a residente contou a história, daí, tipo assim, ela não contou nada do que eu tinha falado pra ela e pro médico, ela ignorou... M7-2 De repente ela não sabia, entendeu? Ela ‘tava contando o que ela sabia realmente. M7-1 É exatamente. Daí tudo bem. Daí eu lembrei, o &H3 foi e completou, o médico foi e completou o que eu tinha falado [...] Nisso a gente ‘tá falando da paciente há meia hora, eu falando que ela tinha infecção de repetição... Daí o &H4 ‘tava do meu lado, ele virou e perguntou: “ah, ela tem problema de disfagia?” Aí, pra mim, ela contou que tinha problema de disfagia, ela tinha queixa de artrose. Só que neguinho ignora isso, ela só tem problema de pulmão, na Pneumo só tem pulmão, o resto eles ignoram mesmo, ignora. Ela tem queixa de disúria [...] Eu comentei isso com a residente, a residente: “ah não, isso aí ela já fez tratamento, isso aí não vale nada, ignora”. Aí tudo bem, isso aí é outra história. PSM O &H4 é o que, interno? 84 CM -3 Não, é médico. M7-4 É um dos ferões, é um dos ferões. M7-1 Só que ele ‘tava do meu lado, então como eu ‘tava falando, comentando com a M7-2, ele prestou mais atenção. Ele falou assim: “podia até pesquisar...” Daí ele comentou até a conduta, depois virou pra mim e falou assim: “podia pesquisar melhor essa história dela de artrose, essa história da disfagia dela, porque de repente ela pode ter até uma colagenose, uma coisa assim, pesquisa melhor, vê o remédio que ela toma, vê se é artrose mesmo”. Eu: “ ‘tá.” Isso ele falou pra mim. PSM Baixinho? M7-1 Foi. Falou assim conversando comigo. Pensando alto, falando comigo. Daqui a pouco, a gente ‘tá discutindo há uma hora, aparece, chega não, ele ‘tava lá, outro ferão, olhando pro RX: “que coisa engraçada, que isso aí parece um RX de..., parece um quadro meio crônico, né?” Gente, a mulher tem problema pulmonar, ou bem ou mal ela tem infecção de repetição, há dois anos. Daí eu virei pra residente e falei assim: “dois anos não é considerado quadro crônico?” Ela: “é, lógico que é.” Ele fala, todo mundo ignora, tudo bem. Levantaram, foram embora, disseram que devia fazer BAAR de novo, pesquisar pneumonia... PSM Para alguns a paciente não tem nem só pulmão, tem só RX. (RISOS) M7-1 É. Não conhecem nem paciente, não olham a paciente. Ignoraram a história da disfagia, ignoram mesmo.” Numa visão perelmaniana, o argumento de autoridade estaria sendo usado em alguns momentos, de forma até certo ponto implícita, quando há uma presunção de que se está diante de uma suposta evidência de natureza empírica, quando então não caberia argumentação, como neste fragmento sobre a interpretação da imagem radiológica: 11 M7-1 “...Eles [professor staff da enfermaria e médicos residentes] tinham combinado entre si que uma mancha que eles viram lá no pulmão dela, uma cavidade, aquilo era uma cavidade talvez até com nível hidroaéreo. CM -3 Combinaram? M7-2 Antes! M7-1 Chegaram dois ferões lá [no 1º round], olharam: “Não que...!” Daí todo mundo fica quieto, ninguém discute se é ou não é. Eles falaram que não é, então todo mundo: “é então não é”. Tudo bem.” Na enfermaria, o professor responsável (&H3) é quem decide o ato médico a ser executado principalmente pelos médicos residentes e também pelo estudante de medicina junto à paciente. Quando ele hierarquiza os vários aspectos da situação clínica, a partir do conjunto de enunciações numa dialogia complexa, as vozes dos “ferões” no round podem ser relativizadas, porque como eles não conhecem a paciente, eles podem se esquecer no próximo round de suas próprias impressões e hipóteses. A expressão da aluna “pensando alto, falando comigo” em referência a &H4, um dos “ferões”, pode então ser compreendida, pois a palavra de um dos ferões, no caso valorizando o conjunto de queixas da paciente levando à formulação de uma hipótese diagnóstica “colagenose”, não gerou necessariamente uma ação. 11 Sobre a utilização de recursos visuais nas práticas acadêmicas na Faculdade de Medicina da UFRJ ver a pesquisa etnográfica de ROCHA PINTO (1997) que nos aponta, entre outros aspectos, como essas práticas freqüentemente “levam a um apagamento do processo de construção das imagens, as quais são apresentadas como meramente decorrentes de uma ‘reprodução’ da realidade empírica, ela própria dotada de uma existência concreta desvendável pela observação direta” (p.68). 85 M7-1 “E eu falei que o &H4 tinha dado mais atenção, daí chegou essa semana no round, como ele não conhecia a paciente, na hora que eles botaram o RX, ele não se tocou que era a mesma pessoa, ele ignorou também, entendeu, ele não se tocou. Ele não conhecia a paciente, porque a gente tinha o round não na enfermaria, os sintomas que..., os sintomas de disfagia e coisa ninguém sabe, a única pessoa que sabe, né, sou eu, ele não se tocou que era a mesma paciente, ninguém falou nada e nem eu. ... Como foi, era uma semana depois, ele não se tocou que era a mesma paciente, então como não é ele que fica na enfermaria, ele não pesquisou. Aí a residente... E ele [&H4] falou pra mim, que devia se pesquisar melhor artrose, pra mim. Acho que a residente ouviu, ele chegou a falar alto no round, quarta-feira passada. A residente virou pro &H3 essa semana e falou: “não tem que pesquisar, não ficou decidido no round que a gente tinha que pesquisar melhor essa artrose?” Aí o &H3 pra ela: “não, não, não precisa não”. No segundo round, M7-1 não consegue mais se expressar: M7-1 “...Eu acho que ela tem mais alguma coisa, entendeu? Daí resumindo a história. Chegou agora, ela tem um monte de queixas, ninguém dá a menor atenção, já encaminharam pra Gineco... Então ela melhorou do quadro pulmonar, deram antibiótico nela, ela ‘tava com infecção urinária, deram antibiótico, só que ela ficou internada mais uns três dias porque ‘tavam tentando conseguir antibiótico de graça pra ela ter alta. Daí teve o round essa semana de novo, e como ela melhorou do quadro pulmonar... Só que se você pergunta: “o que aconteceu?” Ela há três meses atrás teve a mesma coisa, teve pneumonia. E ela falou pra mim que teve 5 vezes já pneumonia. Só que ela não informa... assim ela não é uma pessoa que informa muito bem. Tudo bem pode não ser verdade o que ela fala. Mas o que você tem que fazer? Ela diz que tem uma mãe que até, ela falou: “ah, eu vou perguntar pra minha mãe.” Podiam chegar e chamar a mãe dela, chamar alguém e perguntar melhor a história. Não fazem. Ninguém ‘tá nem aí. Eu cheguei nesse round agora, ela vai ter alta, vai ter alta porque melhorou do quadro pulmonar, então ‘tá tudo bem. Então eu fiquei assim no round: pôxa mas ela melhorou, porque ela melhora sempre, mas daqui a três meses ela vai ter isso de novo, porque ela tem sempre, o que que me garante que ela não vai ter de novo? Então eu fiquei assim, eu fiquei com a maior vontade de falar, no round. Só que aquele round, eu fiquei com medo de falar e passar, como se ‘tivesse passando por cima do &H3, porque eu não tinha falado com ele, entendeu? Aí eu fiquei assim: falo ou não falo, acabei não falando. Fiquei até meio chateada. Não falei.” O grupo dá adesão à M7-1 tanto em relação a sua apreciação sobre o funcionamento do round quanto a sua crítica no sentido de uma simplificação, um reducionismo empobrecedor da realidade clínica, importando desfavoravelmente na transmissão do conhecimento médico assim como na assistência à paciente. M7-1 “...nesse dia era o round. Só que o round da Pneumo é assim: primeiro que todo mundo fica estre (ESTRESSADO) - todo mundo não, eu não fico assim - as residentes e os médicos estressados, porque o round em vez de ser uma discussão pra resolver os problemas dos pacientes, aquilo ali parece discussão pra ver quem sabe mais, sabe... M7-2 É exatamente. M7-1 ...pra um humilhar o outro. É verdade, na Pneumo é assim, entendeu? Eu nunca vi um round igual aquele. M6-1 É mesmo? M7-1 É sim. Juro por Deus. M7-2 É sim. Quem leu o último artigo? M7-1 Quem leu... exatamente. Daí chega os médicos fera. Nesse dia ‘tava lá quase todo mundo. Daí... (OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE) M6-1 O clima da parada é tenso? M7-2 É tenso. É tenso. M7-5 Eles treinam antes. M7-1 Só que agora... PSM Os residentes treinam? 86 M7-1 É eles treinam. Ainda por cima, só que agora, não é mais perto do paciente, é na sala, então nem o paciente, eles não sabem nem quem é o paciente, ainda piora, piorou a história. Porque parece que antes era na beira do leito.” E quanto à realidade clínica, CM-3 conclui ironicamente, após o relato dos dois rounds, antes de se retirar do seminário, um pouco antes de seu final: PSM “E qual foi o diagnóstico que eles fizeram? M7-1 Disseram que era pneumonia! Não, pra mim era pneumonia, eu fiquei com isso na cabeça. CM -3 Mais uma pneumonia e alta hospitalar! M7-1 É. Alta hospitalar.” Para além da estrutura de relevância do olhar médico numa enfermaria de especialidade associada à estrutura de poder das relações na equipe médica, há a singularidade dos sujeitos a fornecer uma pluralidade de falas e gestos que importam na transmissão do conhecimento e no ato médico resultante para a paciente. Na estrutura dialógica do grupo, ao termos a presença de dois professores CM e PSM, estende-se a pluralidade de opiniões. Como nos diz Perelman, “toda argumentação é seletiva” expondo-se inevitavelmente à crítica de ser parcial. Isso é particularmente relevante quando a argumentação se pretende válida para o auditório universal. Considerando “uma ilusão” supor que “a totalidade dos elementos relevantes poderá ser esgotada” a partir da existência de um critério, o autor argumenta: “a passagem do subjetivo ao objetivo só pode ocorrer através de ampliações sucessivas, das quais nenhuma pode ser considerada a última. Quem efetuar uma nova ampliação enfatizará necessariamente o fato de que as exposições precedentes haviam procedido a uma escolha dos dados e decerto conseguirá mostrá-lo com relativa facilidade. Cumpre acrescentar que nas ciências humanas, como nas ciências da natureza, essa escolha não é, aliás, somente seleção, mas também construção e interpretação” (PERELMAN, 1996a, p.136). É importante destacar que CM-3 pertence ao subgrupo de professores de Clínica Médica que não se especializaram - clínicos gerais ou generalistas - cujas tensões com o subgrupo de especialistas clínicos os alunos apreendem, pela primeira vez, especialmente, no contraste entre a experiência de treinamento em serviço nos 6º e 7º períodos, na passagem de uma enfermaria de Clínica Médica para a de especialidades, como nos mostra esse fragmento do 4º seminário: M6-2 “Fala da enfermaria aí. M6-1 Eu quero interagir... O que que ‘tá acontecendo comigo? Eu quero interagir com o meu doente, completamente, eu quero ter uma relação boa médico-paciente, eu quero fazer o exame físico dele, quero evoluir ele diariamente, quero fazer o exame físico dele completo, quero fazer uma anamnese completa. E eu estou começando agora a fazer uma anamnese de um doente que eu vou acompanhar, agora que eu vou começar, que eu ‘tou começando a fazer um exame físico num doente que eu vou acompanhar a evolução dele. PSM Você entrou na equipe de saúde. M6-1 Claro. No período passado eu fazia, eu fazia manobras de exame físico, sem nenhuma ligação com qualquer doente em quem eu fazia, e fazia anamneses também sem nenhuma... M7-2 Sem um vínculo. M6-1 É, pra entregar ao professor uma anamnese, tudo bem, mas sem nenhum vínculo. E o que ‘tá acontecendo agora? Está me sendo cobrado que eu faça a anamnese, o exame físico, em todo doente novo que eu pegar no meu leito, que eu evolua o meu doente no meu leito, que eu faça os exames, enfim, que eu evolua, que eu saiba do caso dele completamente, que eu veja a prescrição, veja a conduta, veja a impressão, tudo, e que eu ainda saiba de todos os doentes da enfermaria, dos casos, pra gente discutir, não sei o que, não sei o que lá... Isso de sete e meia às dez e meia da manhã. 87 M7-2 Olha só. Agora, você vai chegar numa parte pior, que é você estar de sete e meia até às dez, porque vai diminuir, pra você fazer uma evolução, como você aprendeu lá no M6, aquela evolução com todos os órgãos, pra chegar o meu orientador ou mestrando lá: “você escreve demais no prontuário, você não acha?” M6-1 Vocês falaram isso. M7-2 “O principal aqui é Gastro.” PSM O quê? M7-2 “O principal aqui é Gastro. Você escreve demais no prontuário”, ele falou pra mim. O principal era colocar o exame daqui, e se você for ver, PSM, se você abrir o prontuário dos pacientes, não tem aparelho respiratório... M6-1 Isso é um absurdo. M7-2 A minha paciente tem sopro no coração, tem várias coisas, só que ‘tá lá: “rítmo cardíaco regular”. M6-1 E como é que eles pedem parecer então, se eles não examinam? M7-2 Não, mas aí começa. Aí descompensa o coração, chama a Cardiologia. Entendeu? Aí começa os fragmentos, eu acho que o ser humano é uma pessoa inteira. Eu aprendi, com a &M2 da M7, que a impressão, principalmente, é aquela coisa gigantesca. A impressão lá é aquela: paciente estável, mantida. Ele pediu pra eu resumir. (“&M2 DA M7” É UM ATO FALHO. &M2 NÃO É ESPECIALISTA E FOI SUA PROFESSORA NO M6.) PSM A impressão é a conclusão da evolução. M6-1 Impressão subjetiva sua. M7-2 Minha. Minha. Como é que eu ‘tou vendo a minha paciente, sabe. Então, tipo assim, se eu for colocar que ela ‘tá deprimida, ele vai rir da minha cara. Entendeu? Porque o que interessa é como o fígado dela ‘tá funcionando, como é que o estômago dela ‘tá funcionando. Não ‘tá interessando o resto. PSM É o tubo digestivo. M7-2 É o tubo digestivo. Então, M6-1, se você ‘tá se decepcionando agora, se prepara, porque daqui a pouco sua evolução vai se resumir ao órgão, entendeu?” M7-1 calou-se no round, mas não se esquecendo das próprias demandas nem as da paciente, embora falando da posição mais baixa na hierarquia da equipe médica, insiste, na enfermaria, argumentando com as médicas residentes pelo encaminhamento da paciente ao ambulatório de Reumatologia, exercendo sua participação no ato médico junto à paciente. No grupo, a controvérsia então se dá com relação a essa escolha de M7-1. Como o questionamento dessa escolha partiu de PSM com adesão de alunos, M7-1 inibiu-se parcialmente, declarou não saber o que fazer, mas não deu adesão à argumentação a favor do encaminhamento da paciente ao ambulatório de Clinica Médica sugerido como alternativa ao múltiplo atendimento especializado à paciente. PSM “Porque o que você trouxe é o problema do olhar fragmentário da especialidade, que não é uma obrigatoriedade, você pode ser especialista em Pneumologia, e não precisa ter um olhar tão fragmentário, né. M6-1 É verdade. PSM Mas é um viés, um bias, que a gente ‘tá acostumado a ver aqui e fica como um alerta pra vocês que, provavelmente, vão escolher especialidade, que realmente por isso que a CM-3 se bate tanto, como ela já disse, nós todos, pelo menos uma parte da faculdade, em termos de uma formação de um médico generalista que tenha a capacidade pra poder fazer uma boa anamnese, como essa daí, como você insistiu em fazer, um bom exame físico... M6-1 Nós quando vamos ao médico, a gente às vezes escolhe um especialista. M7-1 Eu fiquei revoltada, eu não sei o que fazer. M6-1 Acho que há uma cultura do especialista, você não acha? O meio mesmo. Todo mundo: “Ah, eu vou num ... patologista!” (RISOS) (OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE) PSM Tem. Isso já passou pra sociedade de forma geral. Tem que ir a um especialista porque esse sabe mais sobre o meu problema do que o clínico. (OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE) 88 M7-3 Eu acho que o clínico é muito desvalorizado. Você fala que vai fazer clínica, todo mundo fala que você vai morrer de fome. Todo mundo sabe disso. O clínico não ganha dinheiro, a consulta é mais barata. Eu acho que um país pobre como o Brasil não podia ser assim. M6-1 Porque o sistema, exatamente, o modelo... M7-3 O modelo não ‘tá adequado. M7-1 O que eu fiquei chateada... M6-1 O modelo ‘tá errado. Eu ‘tava lendo aquele livro do Balint - ‘tou lendo aos poucos ele assim. Na Inglaterra é diferente. PSM Porque o sistema de saúde é todo organizado diferentemente. O clínico geral, que é o general practitioner, é quem encaminha pro especialista e volta... M7-2 ...pro clínico. M6-1 É obrigatório... PSM É obrigatório. M6-1 ...que passe por um generalista antes de ser encaminhado a qualquer especialista. M7-1 PSM, eu fiquei meio chateada porque eu não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo que a paciente ficava me cobrando, cobrando não, me perguntando as coisas, eu não sabia explicar pra ela, porque eu não tinha entendido direito o que tinha acontecido e ela me perguntando se ia ficar boa.” A caricatura, o cômico da argumentação na busca do exemplo probatório como nos fala Perelman (1996a, p.404), pode ser vista na enunciação de M6-1 sobre o privilégio do conhecimento do especialista. No limite, o objeto inerte do patologista, o cadáver, metaforicamente horizonte das certezas. Cuidar do vivo, sem dúvida, é muito mais difícil. A controvérsia, que poderíamos nomear “quem cuida do vivo?”, levanta um questionamento sobre um projeto médico institucionalizado num hospital de ensino que, reduzindo a paciente ao conhecimento de uma doença, de uma patologia, de uma imagem, sem nome, sem história, suscita, primeiro na aluna, e depois no grupo, a pergunta: e o futuro? Qual o futuro dessa paciente no sistema público de saúde, mesmo no seu segmento universitário? Qual o futuro desse projeto médico recém-iniciado nessa internação? Na anomia institucional, creditase um futuro, após a alta, muitas vezes, reduzido ao texto do prontuário, como se sua construção fosse unívoca e as relações intersubjetivas e o contexto não tivessem maiores influências no desenvolvimento de um projeto médico passível de ser realizado por qualquer médico referido a qualquer paciente. Poder-se-ia argumentar que esse caso não é exemplar e só nos possibilita conclusões particulares, tratando-se de uma argumentação do particular ao particular, como diria Perelman (1996a, p.401-402). Vamos mais uma vez recorrer ao material, dando a palavra ao clínico, representante do discurso hegemônico nessa instituição, num fragmento do 14º seminário, no qual a negação da construção interpretativa do caso clínico - a “impressão” - reduz a clínica a um suposto conjunto de evidências que, associada à sedução da tecnologia privilegiando a semiologia armada, tende a apagar a tensão doente/doença no ato clínico com repercussões no ensino e na assistência. A partir de uma “confissão” de M7-5 feita na abertura desse 14º seminário de que há duas semanas não tem ido à enfermaria de Cardio “porque na minha lista de prioridades a enfermaria ficou no último lugar”, CM-3 nos diz: CM -3 “...em relação a esse treinamento em serviço de vocês, eu estou sentindo que o alunado ele está se envolvendo pouco com o paciente, porque o alunado ele está querendo discutir muito a doença. Então o que está acontecendo? Não é atrativo, porque lá você não tem um professor que te fique falando sobre as últimas coisas que ele sabe sobre ecocardiografia e insuficiência cardíaca. ... O ensino de enfermaria, nós já detectamos no departamento e está sendo um desespero para mudar essa coisa, porque nós estamos com um grupo muito jovem, muito jovem que eu digo são todos professores, médicos, mais jovens em enfermarias, e você vê que mesmo nas enfermarias de especialidade os staffs são jovens. ... Então eles estão fazendo a coisa tudo mais tecnicamente. Então o que é importante, o professor, o médico, o staff, ele não chega do lado do doente que ele está acabando de conhecer dentro daquela enfermaria, ele não colhe a 89 anamnese dele, ele não bota a mão, não examina, então ele não tem a impressão dele. Ele tem a impressão do outro, que já teve a impressão de um outro que internou, e a coisa está em um círculo vicioso. Então a gente tem descoberto coisas assim horripilantes, tipo descobrir sopros que nunca existiram... Bulhas que o doente nunca teve a mais, entendeu? Quando você chega na enfermaria e pergunta assim a um aluno que está lá: “como é o exame do abdômen do seu doente?” “O ultra-som revelou...” Se fala assim! A terminologia aqui no momento é essa. Então, não está tendo atrativo, porque vocês não estão se envolvendo com o doente, porque mesmo que o staff fosse ruim, ausente, se vocês tivessem envolvimento com o doente ia ter atrativo. Porque o doente é atraente, sempre é atraente, entendeu? Então vocês não estão chegando, não estão vendo ainda ali internou, ontem, o Seu Severino, chegou ali, no leito 5, vou conversar com o Seu Severino. Chegar: “bom dia Seu Severino, sou fulano de tal, o senhor está aqui desde ontem, por que o senhor veio para cá?”, e começar uma anamnese. Não está sendo mais feito isso. Não é? Isso não está existindo. Então existem esses paradoxos que você acabou de falar.” 12 M7-1 finaliza seu relato clínico expressando sua “dúvida” que nos revela como a ordem médica na pretensão de exclusão da subjetividade na construção do caso médico, reduzindo a realidade clínica à doença cuja verdade seria toda ela evidente, reduz a experiência do doente e a experiência clínica de investigação semiológica da aluna a uma ficção. A repetição imposta pelo desejo de alívio da paciente encontra o desejo de cura da aluna e não as deixa calar. Até quando? M7-1 ...“Essa disfagia dela, ninguém, acho que devem ter achado que é mentira minha, eu inventei. Porque eu já perguntei várias vezes, então: ah, de repente ela ‘tá viajando, de repente ela não tem nada disso. Já perguntei. Já tentei caracterizar várias vezes. É verdade, sabe! A pessoa informa mal, mas ela não inventa a mesma coisa um milhão de vezes, entendeu, igual. Mas ninguém dá a mínima atenção pro que você fala, entendeu? A maior raiva. Dá até... nem dá vontade de você, pô você colhe a maior história enorme, sabe, examina o paciente, estuda, pra você perguntar as coisas e discutir, e ninguém te dá a menor atenção. [...] M7-1 Eu achei, pensei vai ver eu que ‘tou ficando muito cri-cri, entendeu? ... ‘tou querendo descobrir coisa aonde não tem, entendeu, como eles devem saber muito mais que eu, entendeu, e ‘tão falando que não tem nada, e eu ‘tou aqui discutindo. Por isso que eu não falei nada no round, porque eu falei além d’eu ‘tá passando por cima, parece que eu ‘tou, sabe, querendo descobrir coisa na paciente que não existe. Não sei, de repente não existe mesmo, mas eu acho que tinha que ser estudado.” 12 Como nos diz PORTO (1995): “A tecnologia de imagens ... instauram na prática médica uma espécie de cultura do virtual, onde a imagem é a verdadeira realidade do paciente, e este, uma espécie de realidade fantasmática” (p. 107). 90 Lembramos aqui o importante estudo de Renée Fox 13 quanto ao “treinamento da incerteza” do estudante de medicina, em seu processo de socialização na escola médica, associado à sua experiência de maior responsabilidade como estudante que a atividade clínica implica. No entanto, a incerteza vivida pela aluna ganha maior complexidade numa dimensão não estudada na pesquisa de Fox, qual seja a estrutura de relevância construída pelo olhar médico numa enfermaria de especialidade associada à estrutura de poder das relações na equipe médica. Nesse sentido nos aproximamos da apreciação feita por Byron Good que também destaca em sua pesquisa, como a relação de confiança do estudante com a figura de autoridade sustenta ou não a arbitrariedade na constituição da realidade clínica (GOOD, 1994, p.82-83). CONSIDERAÇÕES FINAIS A conclusão desta pesquisa tem necessariamente uma parte inconclusiva, uma parte interminável. A experiência compartilhada pela qual passaram alunos e professores tem seus efeitos, dos quais só podemos falar sobre os que se podem depreender na dinâmica das discussões no tempo da experiência do grupo, que expressa o possível de nosso conhecimento na impossível tarefa de educar. A racionalidade anátomo-clínica que possibilitou, e ainda possibilita, um conhecimento científico sobre o indivíduo doente, informa e conforma o olhar médico unilateralmente, diria Freud, ou constitui uma objetivação limitadora que produz uma rarefação no discurso médico, que não diz tudo de verdadeiro nem sequer sobre a doença, nas palavras de Foucault. A prática clínica assim como o ensino da clínica estão para além de uma experiência de aplicação do conhecimento que essa racionalidade possibilita alicerçada no desenvolvimento das ciências básicas. Na prática se exerce a teoria num campo de valores e nela se expressa a apropriação que os profissionais fazem do conhecimento, não só na aplicação técnica, mas também na construção de argumentos para justificação de escolhas ao exercerem o ato médico. A investigação dos argumentos no processo de apropriação do discurso médico nos possibilita melhor compreender a formação de uma identidade profissional se valorizamos que é na linguagem e pela linguagem que o estudante estrutura a experiência e constitui, para além de um olhar anátomo-clínico, uma perspectiva com a qual exercerá a prática médica. É sobre essa experiência posta em discurso que a prática pedagógica e de pesquisa que realizamos pretendeu incidir, mantendo a tensão doente/doença no ato médico, propiciando a articulação e a investigação do que foi referido como um duplo discurso: o discurso do cuidar e o da competência técnica. Para investigar o que querem e o que podem querer estudantes de medicina, construimos um espaço que privilegiou a argumentação, onde alunos movidos pelos seus ideais do que seja ser médico exercem o desejo e o poder em seu discurso, onde a tensão doente/doença na clínica se encontra colocada, em princípio, pela simples presença de dois professores, o de 13 Renée Fox foi a pesquisadora responsável pelo trabalho de campo na investigação sobre o processo de socialização médica realizada na década de 50, pela Columbia University Bureau of Applied Social Research. De sua contribuição destaca-se o estudo dos processos que a autora cunhou como “training for uncertainty” e “detached concern”. A autora considera três tipos básicos de incerteza com os quais o estudante se defronta: as incertezas originadas da incompletude de seu domínio do vasto e crescente conhecimento médico; as incertezas advindas das lacunas, limitações e ambigüidades que também caracterizam o corpus da técnica e conhecimento médicos; e as incertezas relacionadas às dificuldades do estudante em distinguir os limites de seu conhecimento da dimensão “intrinsecamente imperfeita e enigmática” da medicina. Cf. FOX em MERTON et al (1957), p. 207-241 e FOX, 1989, p. 72-107. 91 Psicologia Médica e o de Clínica Médica. Considerando que esses dois professores falam de diferentes lugares, não só em função de sua experiência profissional como também de sua posição na economia discursiva da instituição hospitalar de ensino, é neste espaço, entre dois discursos, que os alunos tem oportunidade de discutir suas perplexidades, angústias, dúvidas e as apreciações de sua experiência clínica. É também a partir dessa estrutura de relações que chegamos a algumas respostas. Os alunos querem ser ouvidos, sobretudo, quanto a seus conflitos que expressam a ambivalência do medo e do desejo de apropriação do saber e poder médicos. No 1º tema, onde dois casos são apresentados exemplarmente, os alunos buscam argumentativamente explicitar a regra da desvalorização do sofrimento psíquico. Os alunos falam da incompatibilidade que descobrem no discurso de professores médicos, que enfatizam o escutar o paciente e, ao mesmo tempo, não se colocam disponíveis para ouvir os alunos sobre essa escuta. Minipsiquiatras, bobalhões da corte, os alunos se descobrem realizando uma função temporária prescrita pelo esquema, apesar de um discurso que é bonito. Falam, assim, de um ideal romântico enunciado no discurso médico e do exercício de uma prática normalizada sem romantismo. Os alunos arriscam-se, vivendo o conflito entre responder à demanda transferencial na relação com o paciente e serem reconhecidos pelos pares como pertencentes ao grupo social, hoje estudantes de medicina, amanhã médicos. No 2º tema emerge o corpo erotizado que implica em inibições, sintomas e angústia. Se o objeto do saber médico é a doença e seu acontecimento num corpo redutível às necessidades biológicas, o objeto de investigação do médico na clínica é, no mínimo, o corpo de um doente, que é, em princípio, erotizável num campo intersubjetivo. Por isso o risco associado a uma maior intensidade de erotização ou sua negação - banalização. A presunção de que o objeto do médico é exclusivamente um corpo biológico e que essa redução é o que identifica uma postura profissional é central na argumentação que pretende calar a inquietação do aluno em sua primeira experiência de realização de um toque retal. Essa presunção é posta em questão e, ao fim, o grupo chega a uma outra presunção: o toque retal não é realizado com a freqüência devida na medida em que a decisão de sua realização não é determinada só por verdades médicas, mas também por significados inscritos na cultura e na história individual. No 3º tema, vemos fatos e verdades médicas na construção de argumentos que engendram a identidade técnica quando, na estrutura dialógica do grupo, foi possível questionar. É uma norma técnica que define se houve uma morte ou uma perda fetal, na experiência de uma parturiente e de uma equipe obstétrica? É a existência de uma síndrome psiquiátrica que decide a escolha de mostrar ou não o filho morto à mãe? A surpresa vivida pela negação da morte e a angústia de desamparo experimentada pelos alunos confrontados com sua vulnerabilidade humana colocam em questão a frieza dos médicos. A mobilização de certa estrutura defensiva que permita a diferenciação da dor do outro sem cortar o laço de identificação com o paciente, quando não se seria frio/frígido mas dolorido, não impossibilita que os alunos compartilhem, inclusive, a experiência da morte de seus primeiros pacientes. No 4º tema, o que está em foco é o relato do caso clínico e as práticas formativas, que implicam a construção da identidade médica articulada ao objeto do olhar e do discurso médicos. Os alunos vivem o conflito entre ter que se acostumar ou amplificar a voz desqualificada do paciente, entre o desejo de aprovação por seus pares e, ao mesmo tempo, a identificação com o paciente na experiência de sujeição que põe em questão os ideais e a ambição de cura. Muitas vezes, inclusive, o aluno vive um conflito mais intenso por se perceber como o principal destinatário da demanda do paciente. Na incerteza do difícil aprendizado da clínica, a distância entre a experiência narrada pelo paciente e o vivido pelo próprio aluno, com seu paciente e com seus superiores hierárquicos na enfermaria como no round, coloca a dúvida do aluno entre fato e ficção: o paciente informa mal e o aluno está inventando ou viajando? Ou a complexidade da clínica impõe uma investigação mais abrangente que a realizada nessa experiência ocorrida numa enfermaria de especialidade? Ao associarmos os quatro temas, a desvalorização do sofrimento psíquico, a negação do corpo simbólico, o engendramento de uma identidade técnica e a experiência de sujeição de que nos falam os alunos, podemos surpreender uma coerência que nos remete, com Foucault, à hipótese de uma estratégia sem estrategista presente na formação médica. 92 Gostaríamos que alguns professores de medicina soubessem pelo que passam pelo menos alguns de seus alunos, afora o enorme esforço de apreensão de um conhecimento cada vez mais extenso e de toda a habilidade técnica necessários ao exercício da profissão. É importante situar que dos nove alunos que expressivamente participaram deste grupo de reflexão apenas um interessou-se pela especialidade de psiquiatria. Acreditamos que a análise das falas já propiciou o questionamento da conhecida presunção de que só se interessam por aprender com professores de Psicologia Médica os alunos que já têm afinidade por isso, que na falta de nomeação fácil, freqüentemente é dito afinidade pela psiquiatria. Acreditamos que, do ponto de vista pedagógico, o professor de Psicologia Médica pode contribuir para o pensamento crítico e o desenvolvimento da relação médico-paciente - objetivos institucionais - numa perspectiva que, mantendo a tensão doente/doença, problematiza o ato médico como um ato não só técnico mas também simbólico, com as conseqüências de referir o sujeito, como função da intersubjetividade, às estruturas de significação e à criatividade do simbólico. É assim que a Psicologia Médica, mantendo a interrogação da prática clínica, tem a possibilidade de criar um espaço compartilhado com o professor de Clínica, que constitui o modelo preferencial de identificação para o aluno e pode, ao compartilhar a experiência, legitimar a pertinência da dúvida e o questionamento de sua própria prática. No contraste entre a permanência e eternidade do real e a fugacidade da realidade secundária que nós chamamos de realidade psíquica, não podemos deixar que o pensamento reducionista e o valor de eficácia de uma ação sobre o real neguem ou levem à desvalorização dessa realidade que descobrimos no nível das significações produzidas entre doente e doença, entre doente e médico, e entre médicos e aprendizes de médicos. BIBLIOGRAFIA ALEXANDER, Franz & SZASZ, Thomas S. El infoque psicosomático en medicina. In: ___ & ROSS, Helen (dir.). Psiquiatria dinâmica. 4.ed. Buenos Aires, Paidós, 1978. p. 309-337. ALMEIDA, Eduardo Luiz Vieira de. 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