A CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE NOS CASOS DE FILIAÇÃO HÍBRIDA Gustavo André Guimarães Medeiros SUMÁRIO: Introdução. 1 Da Lacuna do Art. 1.832 do Código Civil. 2 Das Correntes Doutrinárias; 2.1 1ª Corrente: Identificação dos Descendentes Exclusivos como se Fossem Também Descendentes do Cônjuge Sobrevivente; 2.2 2ª Corrente: Identificação dos Descendentes Comuns como se Fossem Descendentes Exclusivos do Cônjuge Falecido; 2.3 3ª Corrente: Subdividir Proporcionalmente o Monte Partível sobre o qual Incide a Concorrência Segundo a Quantidade de Descendentes de cada Grupo. 3 Da Fórmula Tusa. 4 Da Aplicação da Fórmula Tusa à Concorrência do Cônjuge. 5 Da Fórmula Adequada ao Cálculo do Quinhão Hereditário do Cônjuge Sobrevivo quando em Concorrência Sucessória com Filiação Híbrida; 5.1 Demonstração Matemática. Considerações Finais. Referências Bibliográficas. Introdução O Código Civil de 2002 (CC/02) trouxe consideráveis alterações no que tange ao sistema sucessório brasileiro. Dentre elas, pode-se destacar o importante instituto da concorrência sucessória, ausente nos diplomas civilistas anteriores. Ao implementar esse novel instituto, o CC/02 o fez para dar primazia, privilégio e, antes de tudo, proteção ao cônjuge. Por essa razão, a Lei Civil também concedeu-lhe status de herdeiro necessário e, além disso, garantiu a ele uma quota mínima da herança quando em concorrência com herdeiros comuns, conforme estabelecido no art. 1.832 do referido diploma. O dispositivo em comento tem desencadeado intensos debates no seio doutrinário. O legislador fixou que a quota do cônjuge, quando em concorrência com os filhos do de cujus que também são filhos seus (do cônjuge sobrevivo), não pode ser menor que 1/4 do total da herança objeto de concorrência sucessória. O 1 malsinado dispositivo, entretanto, nada fala a respeito de como deve se dar a concorrência sucessória no caso de haver filhos comuns ao de cujus e ao cônjuge sobrevivo e filhos exclusivos do falecido. Essa hipótese, em que existem filhos comuns e exclusivos, é denominada pela doutrina de filiação híbrida. Diante dessa omissão legal, surge o questionamento de como se dará aplicação da quota mínima de 1/4 da herança objeto de concorrência sucessória quando o cônjuge concorrer com filiação híbrida. Existem três correntes doutrinárias que tentam responder esse tormentoso problema: 1) identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente - o que implica aplicar a quota de 1/4 a todos os filhos, e não somente aos comuns; 2) identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido - o que implicaria excluir a quota mínima de 1/4, herdando o cônjuge parcela idêntica a de cada filho; e 3) composição pela solução intermediária, subdividindo-se proporcionalmente o monte partível sobre o qual incide a concorrência, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo. Assim, o presente trabalho tem por escopo o estudo do citado art. 1.832 do Código Civil, bem como o exame minucioso da lacuna legal, que nada dispõe a respeito das regras de concorrência sucessória do cônjuge quando a prole se tratar de filiação híbrida, discorrendo-se sobre as soluções apresentadas pela doutrina. Importa, para finalizar este breve introito, frisar que, por uma questão de delimitação do tema, excluíram-se deste estudo discussões outras (mas não menos instigantes), como: a quais regimes de bens aplica-se a concorrência do cônjuge, e qual a base de incidência do instituto (se o direito de concorrência incidiria sobre a totalidade da herança, sobre os bens particulares ou somente sobre os bens comuns). 2 1 Da Lacuna do Art. 1.832 do Código Civil Na sucessão dos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivo, a legislação vigente estabelece que se destine pelo menos uma quarta parte (1/4) do monte partível ao viúvo, quando em concorrência com herdeiros que sejam também descendentes seus. Assim, se o autor da herança houver tido filhos tão somente com o cônjuge sobrevivente, ao cogenitor dos descendentes do autor da herança será destinada a quota de, pelo menos, 25 % do monte partível. É isso que se extrai do art. 1.832 do Código Civil, in verbis: "Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer." De outra banda, percebe-se que a concorrência do cônjuge com descendentes dos quais não seja ascendente implica a atribuição de quinhão idêntico àquele destinado aos descendentes do morto, sejam quantos forem, sem reserva, portanto, da quarta parte; não havendo, neste ponto, vozes dissonantes na doutrina 1. Assim, se existirem um, dois ou três filhos não é preciso questionar a origem da filiação. Eles e o viúvo recebem a mesma quota-parte. Quando o número dos herdeiros for superior a três, é preciso, de antemão, identificar-se a natureza da filiação para, somente então, calcular-se o quinhão de cada qual: se forem todos filhos comuns, o viúvo receberá não menos que 1/4 (um quarto) do monte partível; se forem todos filhos exclusivos do autor da herança, o viúvo receberá o mesmo que cada um dos enteados - a divisão é feita, nesse caso, entre todos, por cabeça. 1 Cf. Washington de Barros Monteiro, Carlos Roberto Gonçalves, Zeno Veloso, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Arnaldo Rizzardo, dentre outros. 3 Consoante Hironaka, "trata-se de uma opção do legislador que se explica pela presunção legal de que a reserva da quarta parte apenas ao ascendente dos descendentes comuns (ao falecido e ao sobrevivente) será, mais cedo ou mais tarde, deferida a estes descendentes, posto que serão eles os herdeiros do ascendente-herdeiro concorrente" 2. Questão mais tormentosa que se busca solucionar, relativamente a essa concorrência prevista pelo dispositivo em comento, é aquela que vai desenhar uma hipótese em que são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) e os descendentes exclusivos do autor da herança, todos herdando em concorrência com o cônjuge sobrevivo. Tal circunstância foi batizada por Hironaka de filiação híbrida 3. O legislador do Código Civil de 2002, embora inovador na construção legislativa de hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros de convocação anterior à sua própria, infelizmente, não fez a previsão da hipótese agora em apreço - filiação híbrida; chegando, até mesmo, a causar espanto a existência dessa lacuna, haja vista tratar-se de situação bastante comum. Dessa forma, a omissão legal gera o questionamento a respeito da permanência ou não do direito do cônjuge à quota de 1/4 (um quarto) da herança. As respostas encontradas na doutrina dividem-se em três correntes, a seguir analisadas pormenorizadamente. 2 Das Correntes Doutrinárias Como mencionado, existem três correntes doutrinárias que tentam responder ao questionamento acerca da aplicação da quota de 1/4 (um quarto) - se é que deve ser aplicada - no caso de filiação híbrida; a saber: 1) identificação dos descendentes 2 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. O sistema de vocação concorrente do cônjuge e/ou do companheiro com os herdeiros do autor da herança, nos direitos brasileiro e italiano. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. 7, n. 29, abr./maio 2005, p. 51. 3 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit, p. 55. 4 (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente; 2) identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido; e 3) composição pela solução intermediária, subdividindo-se proporcionalmente o monte partível sobre o qual incide a concorrência, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo comuns e exclusivos. 2.1 1ª Corrente: Identificação dos Descendentes Exclusivos como se Fossem Também Descendentes do Cônjuge Sobrevivente 4 Por essa corrente, que considera todos os descendentes do de cujus como sendo descendentes também do cônjuge sobrevivo, em qualquer hipótese em que o número de filhos igual ou superior a quatro - não importando se de filiação híbrida ou não - dever-se-ia reservar a quarta parte do monte hereditário (sobre o qual incide a concorrência) a favor do cônjuge concorrente. Segundo Gonçalves, essa solução "representa, todavia, apreciável prejuízo aos descendentes exclusivos do falecido, uma vez que, por não serem descendentes do cônjuge com quem concorrem, são afastados de parte considerável do patrimônio de seu ascendente falecido" 5. Além disso, o art. 1.832, in fine, é claro ao dispor que a quota referente ao cônjuge sobrevivente não pode ser inferior à quarta parte (1/4) da herança "se for ascendente dos herdeiros com que concorrer". Se o Código Civil de 2002 pretendesse conferir a quota mínima de 1/4 (um quarto) independentemente do tipo de filiação, teria colocado um ponto-final no lugar da última vírgula, suprimindo-se, assim, a expressão "se for ascendente dos herdeiros com que concorrer", deixando claro que tal reserva se aplicaria em todo e qualquer caso. 4 De fato, essa corrente é a que menos tem adeptos. E, ao que parece, é mencionada nas obras de Direito das Sucessões tão somente a título didático. Cf. Hironaka (2005). 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. v. VII. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 157. 5 2.2 2ª Corrente: Identificação dos Descendentes Comuns como se Fossem Descendentes Exclusivos do Cônjuge Falecido 6 Segundo essa segunda corrente, havendo filiação híbrida, todos os descendentes devem ser considerados exclusivos do de cujus, e o cônjuge sobrevivo receberia quota idêntica a de cada filho, sem qualquer tipo de reserva. Da mesma forma com a qual se cuidou de refutar a proposta anterior - alegando que os filhos comuns teriam notável prejuízo caso a reserva de 1/4 fosse aplicada em todos os casos - também aqui se pode chegar à mesma conclusão, só que em relação ao cônjuge. É o que assevera Berenice Dias ao afirmar que: "esta solução gera injustificável prejuízo ao viúvo, ao menos frente ao direito que tem com relação aos seus filhos. O argumento é que a regra, como está redigida, tem caráter restritivo (CC, art. 1.832). Ao cônjuge somente é assegurada a quarta parte da herança se for ascendente de todos os herdeiros com quem concorre. Sempre que haja outros herdeiros, dos quais o cônjuge não é ascendente, as quotas da herança são partilhadas sem distinção de valor, entre todos os descendentes e o cônjuge, por cabeça, com manifesta simplificação da partilha e fiel observância do princípio isonômico com relação às quotas de herança dos filhos" 7. Tratar os descendentes todos, comuns e exclusivos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que certamente desconhecerá o sentido do dispositivo legal em comento. Nesse sentido, assevera Hironaka que: "embora padeça do defeito de não ter feito a previsão de aferição matemática para a hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros descendentes comuns e exclusivos, inegavelmente contém uma carga positiva a favor do cônjuge concorrente, quando lhe garante, minimamente, a reserva da quarta parte do acervo hereditário sobre o qual incidirá a concorrência" 8 (destacamos). 6 Nesse sentido, Zeno Veloso, Carlos Roberto Gonçalves, Washington de Barros Monteiro, Maria Helena Diniz, entre outros. 7 DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: RT, 2008. p. 165. 8 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 72. 6 Com efeito, depreende-se que tal "carga positiva" não pode ser desconsiderada em virtude de uma omissão legislativa. Quando o Código Civil de 2002 inova ao introduzir o instituto da concorrência sucessória - e mais, reserva ao cônjuge pelo menos uma quarta parte do monte sucessível - o faz com o claro sentido de proteger o cônjuge sobrevivente. Se esse é o espírito que norteou a concreção legislativa no Código Civil de 2002, ele deve ser preservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótese híbrida não considerada pela norma, na qual são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge sobrevivo e ao de cujus) e exclusivos do de cujus. 2.3 3ª Corrente: Subdividir Proporcionalmente o Monte Partível sobre o qual Incide a Concorrência Segundo a Quantidade de Descendentes de cada Grupo 9 9 Hironaka, com a precisão que lhe é peculiar, explica como funcionam as regras dessa terceira via: "Primeiro dividir-se-ia o monte partível em dois submontes, proporcionalmente ao número de descendentes de cada um dos grupos (comuns e exclusivos). O submonte que fosse destinado a compor os quinhões hereditários dos descendentes exclusivos seria dividido em tantas quotas quantos fossem os herdeiros desta classe, mais uma (corresponde à quota do cônjuge concorrente, conforme determinação do art. 1832, primeira parte), entregando-se a cada um dos herdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. A seguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, o submonte destinado a compor os quinhões hereditários dos descendentes comuns, pelo número deles, mais um, destinado ao cônjuge que com eles concorre. Supondo que a soma das quotas deferidas ao cônjuge sobrevivente - em concorrência com descendentes comuns (1º submonte) e em concorrência com descendentes exclusivos (2º submonte) - fosse menor que a quarta parte do total do monte partível (sobre o qual incidisse a concorrência), é provável que o aplicador de uma tal interpretação determinasse a reorganização da divisão, para que o preceito do legislador ordinário pudesse ser observado. Para tanto, é provável que a saída escolhida pelo hermeneuta fosse a de se abater do submonte atribuível aos descendentes comuns o quanto fosse necessário para - somando-se o quinhão do cônjuge obtido pela partilha do submonte dos descendentes exclusivos - consolidar o 7 Essa terceira via tem como objetivo conciliar a regra da quota mínima de 1/4 (aplicável quando em concorrência com descendentes comuns) com a regra da igualdade dos quinhões dos filhos e cônjuge sobrevivente (aplicável quando a concorrência se dá unicamente com descendentes exclusivos). Prima facie, seria a solução mais adequada, pois atende ao sentido da lei (proteger o cônjuge sobrevivo com a reserva de um quarto), buscando-se, todavia, resguardar, ao máximo, a parte que seria destinada aos descendentes exclusivos (já que não sofreria a constrição do 1/4 - que atinge somente o submonte reservado aos descendentes comuns). Entretanto, a solução traz um problema intrínseco, aparentemente intransponível, qual seja: para se atender a reserva de 1/4 (um quarto), cada filho comum acabaria recebendo quinhão menor que o de cada filho exclusivo. Como o art. 1.832 do CC/02, ao estabelecer a reserva mínima da quarta parte, refere-se tão somente aos filhos comuns, o submonte destinado a eles (filhos comuns) seria sacrificado, para se atender à reserva mínima do cônjuge. Tal solução, portanto, seria inconstitucional, já que infringiria a regra disposta no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, que proíbe o tratamento discriminatório entre filhos; impedindo a partilha desigual entre eles. Veja-se, por oportuno, a norma contida no citado dispositivo constitucional, ipsis litteris: "Art. 227. [omissis] (...) § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação." De outra banda, Berenice Dias afirma haver uma possibilidade em que se resguardaria a quarta parte do cônjuge sobrevivente em relação aos filhos comuns e afasta-la-ía quanto aos filhos exclusivos do de cujus, de tal modo que os quinhões de todos os filhos sejam iguais. equivalente a 25% do total do monte partível (atendendo, assim, ao que dispõe a segunda parte do mesmo dispositivo legal em comento, o art. 1.832 do Código Civil brasileiro)". 8 Segundo a autora, bastaria adequar a Fórmula Tusa (fórmula matemática que envolve alguns cálculos algébricos), elaborada para atender situação similar que ocorre na união estável, aos casos de concorrência sucessória do cônjuge; tema a seguir analisado. 3 Da Fórmula Tusa O art. 1.790 do Código Civil de 2002, que trata da sucessão no caso de união estável, assim dispõe: "Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - (omissis); IV - (omissis)." Como se verifica do dispositivo legal, na concorrência do companheiro sobrevivente com os descendentes existem duas regras. Primeira: o companheiro recebe parte igual a de seus filhos; ou seja, herda como se fosse um deles. Segunda: os filhos somente do falecido recebem o dobro do quinhão do companheiro sobrevivente; os enteados fazem jus a uma quota dupla e o sobrevivente a uma quota simples. Dessa forma, se todos os herdeiros forem filhos do casal, ou seja, filiação comum, a fração que recebe o companheiro é igual a de seus filhos, uma vez que a herança é dividida por cabeça entre todos. Ou seja, conta-se como se o companheiro fosse mais um filho. 9 Portanto, se há um só filho, a herança é dividida por dois. Sendo dois filhos, eles recebem juntos 2/3 (dois terços) da herança e o companheiro 1/3 (um terço). O mesmo ocorre se forem três os filhos: cada um recebe uma quarta parte e assim por diante. A divisão é sempre igual entre os filhos e o seu genitor sobrevivente. Quando os herdeiros são filhos somente do autor da herança, eles recebem o dobro do companheiro sobrevivente. Ou seja, este faz jus à metade do que recebe cada um dos enteados. Para proceder à partilha, multiplica-se por dois o número de filhos e soma-se 1 (um), que corresponde à fração do cônjuge sobrevivente. Assim, se dois forem os filhos exclusivos, a herança será dividida por cinco, recebendo cada filho duas partes e o companheiro uma. No entanto, assim como na concorrência sucessória do cônjuge, a lei é omissa quanto hipótese de filiação híbrida em relações de união estável. Com efeito, o mesmo questionamento que se fez em relação à hipótese de filiação híbrida no casamento faz-se em relação à união estável. Ou seja, havendo filiação híbrida, o companheiro receberia quinhão igual ao dos filhos ou apenas metade do referido quinhão? Em sede doutrinária, semelhante à situação do casamento, há inúmeras propostas e várias são as soluções apresentadas. Tusa 10 apresenta uma solução que busca uma composição entre as duas hipóteses legais, de modo a preservar o direito do sobrevivente sem desrespeitar a norma constitucional que impede discriminação entre filhos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 10 TUSA, Gabriele. Sucessão do companheiro e as divergências na interpretação dos dispositivos referentes ao tema. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Coord.). A outra face do Poder Judiciário. Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. v. 2, p. 330. 10 Segundo a autora, concorrendo o companheiro sobrevivente com filhos comuns e filhos exclusivos do falecido, se a maioria da prole for comum, o companheiro deve receber, proporcionalmente, quantia que se aproxima da parcela destinada a cada filho. De outro lado, se for maior o número de enteados, menor o quinhão do padrasto. Para se chegar a uma homogeneidade de resultados são necessários alguns cálculos matemáticos. Esta equação passou a ser denominada pela doutrina civilista de "Fórmula Tusa". Corresponde esta à média ponderada entre a quantidade de filhos comuns e exclusivos. Significa dizer que a participação do convivente aumenta à proporção em que a quantidade de filhos comuns aumenta. Ao seu revés, a participação do convivente diminui à medida que aumenta a quantidade de filhos exclusivos do de cujus. Matematicamente, a fórmula é expressada pelas seguintes equações: x = s + nc 2.s ; f= h ; e=f.x s+x Onde: h = valor da herança; nc = número de filhos comuns; s = número total de filhos; x = proporção a ser recebida pelo companheiro em relação a cada filho; f = valor a ser recebido por cada filho; e = valor a ser recebido pelo companheiro. A primeira fórmula representa a percentagem a ser recebida pelo companheiro (x), que corresponde ao número total dos filhos (s), somado ao número de filhos comuns (nc). O valor obtido deve ser dividido pelo dobro do número total de filhos (2.s). 11 A segunda fórmula representa quanto cada um dos filhos (f) vai receber, e corresponde à divisão do valor da herança (h) pela soma do número total de filhos (s) com o resultado encontrado na primeira fórmula (x). A terceira fórmula identifica o quinhão do companheiro (e), que corresponde ao valor devido a cada um dos filhos (f), multiplicado pela fração a ser recebida pelo companheiro (x). A título de elucidação, serão ofertados a seguir alguns exemplos práticos lembrando-se que, na união estável, a concorrência se dá em relação aos bens comuns (aquestos), excluída a meação do companheiro sobrevivente, conforme o disposto no art. 1.790 do Código Civil. Exemplo 1: Filhos Comuns Suponha-se que José e Paula constituíram união estável, tiveram 2 (dois) filhos e amealharam, durante a união, patrimônio de 18 mil reais. José falece. Paula recebe 9 mil reais a título de meação. O restante, os outros 9 mil reais, compõem o acervo hereditário a ser dividido entre os herdeiros, em concorrência com a companheira sobrevivente. Aplicando-se a primeira fórmula, que identifica proporção a ser recebida pela companheira (x), tem-se o seguinte: x = s + nc 2+2 = 4 =1 2.s 2.2 4 Aplicando-se a segunda fórmula, que identifica o valor do quinhão de cada filho (f), tem-se: f= h 9 s+x 2+1 = 9=3 3 Finalmente, aplicando-se a terceira fórmula, que calcula o quinhão da companheira (e), que se traduz na mera multiplicação do valor recebido por cada um 12 dos filhos (f) pela porção a ser recebida pelo cônjuge sobrevivente (x), tem-se o que segue: e=f.x g 3.1 = 3 mil Assim, como os herdeiros são filhos do companheiro sobrevivente, todos recebem partes iguais. Cada um dos filhos é contemplado com 3 mil reais, e Paula também recebe 3 mil reais. Exemplo 2: Filhos Exclusivos do De Cujus Se os 2 (dois) filhos forem somente descendentes de José (exclusivos), Paula concorre com os enteados, recebendo metade de cada um deles. A operação para saber a fração de Paula é facilitada pelo fato de não haver filhos comuns, e representa metade da fração que vai receber cada enteado. Registra-se que o cervo hereditário a ser dividido é de 9 mil reais. Aplicando-se, portanto, a primeira fórmula, que identifica proporção a ser recebida pela companheira (x), tem-se que: x = s + nc 2+0 = 2 =1 2.s 2.2 4 2 Aplicando-se a segunda fórmula, que identifica o valor do quinhão de cada filho (f), tem-se: f= h 9 = s+x 2+1 9 = 3,6 mil 2,5 2 Finalmente, aplicando-se a terceira fórmula, que calcula o quinhão da companheira (e), que se traduz na mera multiplicação do valor recebido por cada um dos filhos (f) pela porção a ser recebida pelo cônjuge sobrevivente (x), tem-se o que segue: e=f.x 3,6 . 1 = 3,6 = 1,8 mil 13 2 2 Dessa forma, da herança de 9 mil reais, cada filho do de cujus recebe 3,6 mil reais, enquanto Paula recebe 1,8 mil reais - exatamente a metade do que cabe a cada um dos seus enteados. Exemplo 3: Filiação Híbrida Se um dos filhos for somente descendentes de José (exclusivo), e o outro for filho dele com Paula (comum), deve-se proceder como segue. Lembrando-se que o acervo hereditário a ser dividido é de 9 mil reais. Aplicando-se, portanto, a primeira fórmula - que identifica proporção a ser recebida pela companheira (x) - tem-se que: x = s + nc 2+1 = 3 2.s 2.2 4 Aplicando-se a segunda fórmula - que identifica o valor do quinhão de cada filho (f) - tem-se: f= h 9 = 3,27 mil s+x 2+3 4 Finalmente, aplicando-se a terceira fórmula - que calcula o quinhão da companheira (e) -, tem-se o que segue: e=f.x 3,27 . 3 = 2,45 mil 4 Dessa forma, da herança de 9 mil reais, cada filho do de cujus recebe 3,27 mil reais, e Paula, 2,45 mil reais. O valor do quinhão a ser recebido pelo sobrevivente varia conforme a existência de maior ou menor número de descendentes, comuns ou exclusivos. 14 Quanto mais numerosa for a prole comum, maior a participação do companheiro sobrevivente. De outra banda, o quantum diminui à medida que concorre com mais filhos exclusivos do de cujus. Somente para ilustrar essa relação, segue quadro comparativo onde se condensam várias situações possíveis dentro de uma prole de 8 (oito) filhos, com um monte partível equivalente a 68 mil reais (observação: omitiram-se os cálculos utilizados, já que foram amplamente demonstrados nas linhas acima): Quando o número de O quinhão do cônjuge O quinhão de cada filhos comuns for igual será de: filho será de: a: 0 4 mil 8 mil 1 4,19 mil 7,98 mil 2 4,93 mi 7,88 mil 3 5,38 mil 7,83 mil 4 5,83 mil 7,77 mil 5 6,27 mil 7,72 mil 6 6,70 mil 7,66 mil 7 7,13 mil 7,60 mil 8 7,55 mil 7,55 mil Como se vê do quadro acima, o mínimo que o companheiro sobrevivo pode receber ocorre quando o número de filhos comuns é igual a 0 (zero) - ou seja, os oito filhos são exclusivos; e, nessa mesma hipótese, o seu quinhão é exatamente a metade do quinhão de cada filho - ou seja, o companheiro sobrevivo recebe 4 mil reais, enquanto cada filho recebe 8 mil reais -, atendendo, assim, ao disposto no inciso II do art. 1.790 do Código Civil 2002 11. 11 "Art. 1.790. (omissis) 15 Ainda, o máximo que pode o companheiro sobrevivente receber ocorre quando o número de filhos comuns for igual a 8 (oito), ou seja, só existem filhos comuns; e, nessa hipótese, o seu quinhão é o mesmo do de cada filho - recebe 7,55 mil reais, e cada filho, 7,55 mil reais -, hipótese igual à prevista no inciso I do art. 1.790 do novo Código de 2002 12 . Os demais casos (que são intermediários, configurando-se hipóteses de filiação híbrida) foram calculados levando-se em conta a proporção do número de filhos comuns em relação ao número total de filhos. Toda essa exposição feita acima a respeito do funcionamento da Fórmula Tusa teve por escopo introduzir o assunto que será tratado no capítulo seguinte, qual seja: aplicação da tal fórmula à concorrência do cônjuge nas relações matrimoniais, como proposto por Berenice Dias no seu manual de Direito das Sucessões. 4 Da Aplicação da Fórmula Tusa à Concorrência do Cônjuge Muitos autores sustentam a impossibilidade matemática de partição da herança objeto de concorrência na hipótese de filiação híbrida 13 . Berenice Dias, entretanto, afirma haver uma possibilidade em que se resguardaria a quarta parte do cônjuge sobrevivente em relação aos filhos comuns e afastá-la-ia quanto aos filhos exclusivos do de cujus, de tal modo que os quinhões de todos os filhos sejam iguais. Segundo a autora, basta utilizar a Fórmula Tusa - aplicável inicialmente à união estável - na concorrência das relações matrimoniais. (...) II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;" 12 "Art. 1.790. (omissis) I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;" 13 Dentre eles, Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves e Giselda Hironaka. 16 Conforme já analisado, a concorrência sucessória do cônjuge deve obedecer a alguns critérios: 1) havendo apenas filhos comuns, o cônjuge receberá exatamente 1/4 da herança (desde que a prole seja composta por mais de três filhos); 2) havendo somente filhos exclusivos, receberá quota igual as da prole. Ou seja, o valor da quota do cônjuge será, no mínimo, igual ao valor recebido por cada filho (nas situações em que há apenas filhos exclusivos), e, no máximo, sua quota será de 1/4 (um quarto) da herança (quando houver apenas filhos comuns). O que se pretende neste tópico é averiguar se realmente a Fórmula Tusa é aplicável à concorrência do cônjuge (relação matrimonial), obedecendo-se os pressupostos de que sua quota seja, pelo menos, igual a de cada filho e, no máximo, de 1/4 (um quarto) da herança. Para tanto, lançaremos mão de um exemplo prático, que segue. Imagine-se que José seja casado com Paula sob o regime de comunhão parcial de bens. José falece. A herança objeto de concorrência sucessória corresponde ao valor de 45 mil reais. A prole corresponde a 4 (quatro) filhos. Dessa forma, utilizando-se a Fórmula Tusa, tem-se que: Quando o número de O quinhão do cônjuge O quinhão de cada filhos comuns for igual será de: filho será de: a: 0 5 mil 10 mil 1 6,08 mil 9,73 mil 2 7,10 mil 9,47 mil 3 8,08 mil 9,23 mil 4 9 mil 9 mil 17 O quadro acima revela algumas conclusões importantes. O mínimo que o cônjuge recebe é 5 mil reais, sendo que, nessa situação, cada filho recebe 10 mil reais - o dobro, portanto. Ora, como se sabe, na concorrência matrimonial a quota do cônjuge sobrevivente deve ser, pelo menos, igual à dos filhos (quando todos são exclusivos). Ainda, na concorrência sucessória do cônjuge, quando todos os filhos são comuns tanto do de cujus quanto do cônjuge sobrevivente, este último recebe, no mínimo, 1/4 (um quarto) da herança partível, que, no caso em tela corresponde ao valor de 11,25 mil reais (45/4). Entretanto, utilizando a Fórmula Tusa, como pretende Berenice Dias, o máximo que o cônjuge recebe é o quinhão de 9 mil reais - valor exatamente igual ao que recebe cada filho nessa hipótese. Conclui-se, portanto, que a pretensão da eminente autora - de aplicar a Fórmula Tusa aos casos de concorrência do cônjuge - não se mostrou correta. Em verdade, essa fórmula é adequada apenas para se calcular o quinhão do companheiro nos casos de união estável, onde os pressupostos e regras de concorrência sucessória são diversos dos da concorrência do cônjuge nos casos de matrimônio. Essa distorção ocorre em toda e qualquer situação, não somente no exemplo anterior. Poder-se-ia aqui ocupar várias e várias linhas deste estudo com diversos exemplos para se demonstrar cabalmente a inaplicabilidade da Fórmula Tusa aos casos de concorrência conjugal, o que será dispensado, por uma questão de economia - de templo e de papel - uma vez que parece por demais claro que dita fórmula foi elaborada tão somente para casos de concorrência na união estável. Entretanto, o fato de se constatar que a Fórmula Tusa não se aplica aos casos de concorrência sucessória do cônjuge não implica dizer que o problema quedou-se sem solução. Berenice Dias, dispondo-se a enfrentar o impasse (da concorrência em filiação híbrida nas relações matrimoniais), apresenta resposta que pretende atender tanto à intenção do Código Civil/2002 de proteger o cônjuge quanto a de onerar o 18 mínimo possível os filhos herdeiros. Não obstante, a simples aplicação direta da referida fórmula aos casos de concorrência sucessória em filiação híbrida nas relações matrimoniais apresenta-se como insatisfatória. Na realidade, a grande maioria da doutrina dispensa o uso da matemática para se efetivar e ponderar direitos. 14 Como se viu, de fato, não se trata de cálculos de simples execução. Por essa razão, os doutrinadores - de uma forma geral elegem argumentos de valor questionável para evitar o uso da álgebra. Neste trabalho, pretende-se seguir a linha adotada por Berenice Dias, enfrentando a tormentosa questão da concorrência sucessória do cônjuge no caso da filiação híbrida. No capítulo que segue, será apresentada fórmula capaz de atender aos anseios da ilustre autora gaúcha. 5 Da Fórmula Adequada ao Cálculo do Quinhão Hereditário do Cônjuge Sobrevivo quando em Concorrência Sucessória com Filiação Híbrida Trata-se do derradeiro capítulo deste trabalho, que tem por escopo apresentar fórmula adequada ao cálculo do quinhão hereditário do cônjuge sobrevivo (relação matrimonial), quando em concorrência sucessória com filiação híbrida. Como já explicado, o essencial é atender a duas condições básicas: 1) que o quinhão mínimo do cônjuge seja, pelo menos, igual ao quinhão recebido por cada filho; e 2) que o quinhão máximo do cônjuge seja de até a quarta parte da herança objeto de concorrência sucessória. Tratam-se de verdadeiros limites à parcela do cônjuge, sendo que o da condição 1 é alcançado quando o número de filhos comuns for mínimo (ou seja, não haveria filhos comuns, somente exclusivos); e o da condição 2 é atingido quando o 14 Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. v. VI: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2009. 19 número de filhos comuns for máximo (ou seja, não haveria filhos exclusivos, somente comuns). E, havendo filhos comuns e exclusivos, o valor do quinhão do cônjuge variará entre este máximo e mínimo apresentados, proporcionalmente à quantidade de filhos comuns, que tem a função de aumentar a quota do cônjuge, aproximando-a de 1/4 da herança (e, consequentemente, distanciando-a do valor do quinhão de cada filho). Melhor explicando (e exemplificando): imagine-se um quinhão equivalente a 60 mil reais a ser divido entre 5 filhos e o cônjuge supérstite. Se todos esses filhos forem exclusivos, o cônjuge receberá o quinhão mínimo, qual seja, o mesmo quinhão que será destinado a cada filho (a divisão aqui é feita por cabeça - 60/6), o que representa 10 mil reais. Entretanto, se todos os filhos forem comuns, o cônjuge receberá o quinhão máximo, qual seja, 1/4 da herança, o que representa 15 mil reais. É importante observar que a diferença entre o quinhão máximo e mínimo do cônjuge é de 5 mil reais (15 mil menos 10 mil), e que o seu quinhão aumenta à medida que o número de filhos comuns aumenta. Assim, se houver 1 filho comum (de um total de 5), deve-se multiplicar a referida diferença por 1/5 e somar o resultado ao valor do quinhão mínimo. Se houver 2 filhos comuns, deve-se multiplicar a referida diferença por 2/5 e somar o resultado ao valor do quinhão mínimo. Dessa forma, se todos os 5 filhos forem comuns, deve-se multiplicar a dita diferença (5 mil) por 5/5 e somar o resultado ao valor do quinhão mínimo (5 mil vezes 5/5, mais 10 mil, que é igual a 15 mil reais) alcançando-se assim o valor de 1/4 da herança. Aplicando-se esse raciocínio, tem-se que: se 1 desses 5 filhos for comum (sendo, portanto, 4 exclusivos), a cota do cônjuge será aumentada de forma proporcional, aproximando-se do valor máximo (que é 15 mil reais, equivalente a 1/4 da herança). Nessa nova situação (em que 1 dos filhos é comum), a cota marital deixa de ser 10 mil reais, passando para o valor de 11 mil reais (5 mil vezes 1/5, mais 10 mil). 20 Pois bem, se 2 dos 5 filhos forem comuns, a cota referente ao cônjuge será aumentada de 2 mil reais, passando, portanto, para 12 mil reais. Seguindo essa lógica, se o número de filhos comuns for igual a 3, o novo quinhão do cônjuge será igual a 13 mil reais. Assim, é fácil perceber que, se todos os 5 filhos forem comuns, o cônjuge sobrevivo deverá receber 15 mil reais de quinhão, o que corresponde a exatamente 1/4 da herança. Conclui-se daí que, cada vez que aumentamos em uma unidade o número de filhos comuns, a cota do cônjuge é aumentada de 1 mil reais. Esse valor (1 mil reais) equivale à diferença entre o quinhão máximo do cônjuge (equivalente 1/4 da herança, que é 15 mil reais) e o mínimo (que é de 10 mil reais) multiplicado pela fração de filhos comuns em relação ao total de filhos. Para se encontrar o valor da quota de cada filho, a conta é mais fácil. É o resultado da diferença entre a herança (60 mil reais) e o valor que será destinado ao cônjuge dividido pelo número total de filhos (cinco). Assim, caso haja, por exemplo, 4 filhos comuns, o cônjuge receberia um quinhão de 14 mil reais. O valor restante da herança (46 mil reais) será destinado ao filhos, recebendo cada rebento a mesma quantia de 9,2 mil reais. 5.1 Demonstração Matemática É possível expressar essas contas em linguagem matemática. Para tanto, deve-se considerar: Qc = valor do quinhão do cônjuge Qf = valor do quinhão do filho H = valor da herança objeto de concorrência sucessória S = número total de filhos Nc = número de filhos comuns Nx = número de filhos exclusivos 21 O primeiro passo é estabelecer a diferença entre o quinhão máximo do cônjuge - um quarto da herança -, e o quinhão mínimo - representado pelo valor da herança dividido entre todos os filhos e o cônjuge, por cabeça. H 4 H s+1 Após, deve-se multiplicar a diferença entre o quinhão máximo e mínimo pela fração que representa a proporção de filhos comuns em relação ao total de filhos. A expressão acima corresponde ao valor que será acrescido ao quinhão mínimo, proporcionalmente à quantidade de filhos comuns. Portanto, a ela deve-se somar o valor da expressão que representa o quinhão mínimo. O resultado dessa operação corresponde ao valor final do quinhão do cônjuge (Qc). Importa agora, por uma questão de estética da equação, proceder a algumas simplificações, a seguir demonstradas: 22 Encontrado o valor do quinhão do cônjuge sobrevivo (Qc), calcula-se quinhão de cada filho (Qf), que equivale ao resultado da diferença entre a herança (H) e o valor que será destinado ao cônjuge; dividido pelo número de total de filhos. Essas são, portanto, as equações aptas a se calcular o quinhão do cônjuge (e de cada filho) quando em concorrência sucessória com filiação híbrida. Mas uma importante ressalva deve ser feita: tais fórmulas somente devem ser aplicadas quando o número de filhos for igual ou maior a quatro. 23 Isso por um motivo óbvio: tais equações servem para se calcular a incidência proporcional da reserva de 1/4, que só é passível de existir quando o número de filhos for igual ou maior que quatro. Ora, havendo, por exemplo, somente dois filhos, não há falar em reserva alguma, já que o cônjuge receberá 1/3 da herança - quota esta igual a de cada um dos dois filhos -, ocorrendo a divisão, portanto, por cabeça. Ainda, havendo três filhos, o raciocínio se repete, e o cônjuge recebe exatamente o valor de 1/4 do monte - valor idêntico à quota de cada um dos quatro filhos. Entretanto, se o número de filhos for 4, 5, 6, 7, 8... ou 200 (não importa, desde que seja maior que 3) a divisão por cabeça não serve para garantir o mínimo (ainda que proporcional) do 1/4; devendo-se, nesses casos, aplicar as fórmulas. Valem exemplos. Suponha-se que José e Paula constituíram matrimônio sob o regime de comunhão parcial de bens, tiveram cinco filhos e que o patrimônio particular de José (já falecido) é de 60 mil reais, acervo hereditário a ser dividido entre os herdeiros, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. Neste exemplo, consideremos que seja 1 filho comum e 4 exclusivos. Aplicando-se a primeira fórmula, que identifica o valor do quinhão a ser recebido pelo cônjuge supérstite (Qc), tem-se o seguinte: Assim, o valor que Paula irá receber é de 11 mil reais. Aplicando-se a segunda fórmula, que identifica o valor do quinhão a ser recebido por cada filho (Qf), tem-se que: 24 O valor que cada filho irá receber corresponde, portanto, a 9,8 mil reais. Segue quadro comparativo onde se condensam várias situação possíveis dentro de uma prole de 7 filhos, sendo que o monte partível equivale a 287 mil reais (observação: omitiram-se os cálculos utilizados, já que foram demonstrados nas linhas acima): Quando o número de O quinhão do cônjuge O quinhão de cada filhos comuns for igual será de: filho será de: a: 0 35,88 mil 35,88 mil 1 41 mil 35,14 mil 2 46,13 mil 34,41 mil 3 51,25 mil 33,68 mil 4 56,38 mil 32,94 mil 5 61, 50 mil 32,21 mil 6 66,63 mil 31,48 mil 7 71,75 mil 30,75 mil Como se depreende do quadro acima, o mínimo que o cônjuge sobrevivo pode receber ocorre quando o número de filhos comuns for igual a 0 (zero) - ou seja, os sete filhos são exclusivos; e, nessa hipótese, o seu quinhão é exatamente ao de cada filho - recebe 35,88 mil reais, enquanto cada filho recebe 35,88 mil reais. Ainda, o máximo que o cônjuge pode receber ocorre quando o número de filhos comuns for igual a 7 (sete) - ou seja, só existem filhos comuns; e, nessa hipótese o seu quinhão corresponde a exatamente 1/4 do total da herança - 71,75 mil reais (287 mil/4), obedecendo ao que dispõe o art. 1.832. Os demais casos (que são intermediários, ou seja, hipóteses em que há filiação híbrida) foram calculados 25 levando-se em conta a proporção do número de filhos comuns (onde se aplica a quota mínima de 1/4) em relação ao número total de filhos. Considerações Finais Para que se possa entender o verdadeiro alcance dos cálculos que foram trazidos a lume no capítulo antecedente, é importante se fazer breve resumo do que foi fixado neste estudo - e qual o nosso entendimento - em relação ao instituto da concorrência sucessória do cônjuge. Diante da omissão da lei no que tange à concorrência do cônjuge com filiação híbrida, demonstrou-se que a doutrina apresentou várias soluções para a averiguação de sua quota na herança; e, dentre estas, a corrente mais adotada (identificada como 2ª Corrente) é justamente a que exclui a reserva mínima de 1/4, concorrendo o cônjuge como se um filho fosse - por cabeça. Data maxima venia, ousou-se discordar dessa corrente. Isso porque não se pode deixar de lado uma das diretrizes traçadas pelo CC/02 em relação ao Direito das Sucessões, qual seja: a proteção do cônjuge. Excluir, de plano, a referida cotamínima, portanto, é decisão que se afigura precipitada, não resolvendo a contento o impasse. Precipitado, da mesma forma, seria aplicar a reserva de 1/4 como pretende a 1ª Corrente; ou seja, de maneira indiscriminada a todo tipo de filiação - comum e exclusiva -, contrariando a norma contida no art. 1.832 do CC/02, que destina a dita reserva ao companheiro sobrevivente quando existentes filhos comuns. Por isso, a solução para o problema é a aplicação proporcional da reserva da quarta parte; de forma que, quanto maior o número de filhos comuns, mais a quota do cônjuge se aproximaria da reserva de 1/4; e quanto maior o número de filhos exclusivos do de cujus, mais sua quota (do cônjuge) se aproximaria do valor do quinhão de cada filho. 26 A única maneira de viabilizar o alcance de tais condições seria lançar mão de cálculos matemáticos, tão evitados por parcela considerável da doutrina civilista de escol. Nesse sentido, estabeleceu-se que os referidos cálculos deveriam obedecer a duas condições básicas: 1) que o quinhão mínimo do cônjuge seja, pelo menos, igual ao quinhão recebido por cada filho; e 2) que o quinhão máximo do cônjuge seja de até a quarta parte da herança objeto de concorrência sucessória. Dessa forma, restou demonstrado que a fórmula hábil a calcular proporcionalmente o quinhão do cônjuge (Qc) quando em concorrência com filiação híbrida é e que, nessa situação, o quinhão de cada filho (Qf) é representado por , registrando-se que tais equações somente devem ser aplicadas quando o número de filhos for igual ou maior que quatro; já que, se houver 1, 2 ou 3 filhos, a divisão será necessariamente por cabeça, não havendo qualquer proporcionalidade a se considerar. Referências Bibliográficas DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: RT, 2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. v. VI: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2009. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. v. VII. São Paulo: Saraiva, 2009. GOZZO, Débora. Nova ordem de vocação hereditária. In: ______; ALVES, José Carlos Moreira; REALE; Miguel (Coords.) Principais controvérsias no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2006. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. O sistema de vocação concorrente do cônjuge e/ou do companheiro com os herdeiros do autor da herança, nos direitos 27 brasileiro e italiano. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. VII, n. 29, abr./maio 2005. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões. v. VI. São Paulo: Saraiva, 2009. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009. RODRIGUES, Lia Palazzo. Direito sucessório do cônjuge sobrevivente. In: SOUZA, Ivone Maria Candido Coelho de (Org.) Direito de família, diversidade e multidisciplinariedade. Porto Alegre: IBDFAM, 2007. TUSA, Gabriele. Sucessão do companheiro e as divergências na interpretação dos dispositivos referentes ao tema. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Coord.). A outra face do Poder Judiciário. v. II. Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. ______. Sucessão do cônjuge no Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. XVII, abr./maio 2003. 28