1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NEY LUIZ TEIXEIRA DE ALMEIDA EDUCAÇÃO E INFÂNCIA NA CIDADE: DIMENSÕES INSTITUINTES DA EXPERIÊNCIA DE INTERSETORIALIDADE EM NITERÓI Niterói 2010 2 NEY LUIZ TEIXEIRA DE ALMEIDA EDUCAÇÃO E INFÂNCIA NA CIDADE: DIMENSÕES INSTITUINTES DA EXPERIÊNCIA DE INTERSETORIALIDADE EM NITERÓI Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação. Área de concentração: Políticas Públicas e Movimentos Instituintes em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Célia Frazão Linhares Niterói 2010 3 NEY LUIZ TEIXEIRA DE ALMEIDA EDUCAÇÃO E INFÂNCIA NA CIDADE: DIMENSÕES INSTITUINTES DA EXPERIÊNCIA DE INTERSETORIALIDADE EM NITERÓI Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação. Área de concentração: Políticas Públicas e Movimentos Instituintes em Educação. Aprovada em 25 de março de 2010. BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Célia Frazão Linhares Universidade Federal Fluminense (Presidente) Profª Drª Maria Cristina Leal Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Dr. Luis Antonio Baptista Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Luiz Cavalieri Bazílio Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Dr. Gaudêncio Frigotto Universidade do Estado do Rio de Janeiro 4 Para Nina, João Pedro e Luma que cotidianamente imprimem novos sentidos à educação e à infância em minha vida. Para todos os profissionais que atuam na construção das políticas públicas em Niterói forjando experiências que desenham horizontes de esperança e de desejos nas ruas da cidade. Para Ney e Liana que reinventam a vida transformando-a em um eterno aprendizado. 5 AGRADECIMENTOS À Célia Linhares pela sensibilidade acadêmica e poética com que transformou a minha experiência de doutoramento em um processo de profundas descobertas e ricos reencontros, mostrando a potência e a generosidade das palavras. Aos Professores Luis Antonio Batista, Gaudêncio Frigotto, Luiz Cavalieri Bazílio, Maria Cristina Leal, Vanda Maria Costa Ribeiro e Iduína Mont’ Alverne Chaves por terem aceitado participar da banca examinadora e pelas contribuições intelectuais, solidariedade e carinho que demonstraram em diferentes momentos de minha trajetória acadêmica. Aos professores do Curso de Doutorado em Educação da UFF pela seriedade e compromisso com a nossa formação. À Isabela Santacruz Lima, o anjo da guarda que zelou por mim a cada semestre e a cada dúvida. Aos companheiros da turma de doutorado-2006 e do Aleph pelas trilhas que ajudaram abrir, em especial Ruth, Andréia, Isabel, Paolo, Rita e Rose. Ao Geraldo pela amizade e pelo jeito mineiro de ser. À Rosana Ribeiro, Márcia Nico e Ana Paula pela cumplicidade e ousadia na condução dos cursos que subsidiaram esta pesquisa. À Verônica e Larissa que nunca deixaram de partilhar os bons e desafiadores momentos deste percurso de forma amável e companheira. À Ingrid, Viviane, Michele Didier, Natália, Mariana, Marco Antonio, Conceição, Patrícia Minatogau, Lidiane, Ana Paula Pereira, Fabíola e Sabrina pela valiosa contribuição nos levantamentos, transcrições e debates, dando sentido coletivo a momentos que costumam ser tão solitários. 6 À Ana Ribeiro, Ana Lúcia Schilke, Solange Santiago, Marta Varela, Omar e Luis Fernando pela acolhida carinhosa e contribuições em momentos cruciais deste trabalho. À Heloísa Mesquita e Waldeck Carneiro pela consideração e disponibilidade. À Fernanda, Celso, Maria José, Teresa Lago, Fernanda, Maria Luiza, Elaine, Márcia Cristina, Marina, Nelma, Lauane, Priscila, Renata, Ronald, Verônica, Leila, Neilson, Maria Márcia, Romana, Rosely, Alessandra, Alessandro, Poliana, Liliane, Juliana, Vanessa, Marcos, Carlos Alberto, Graça, Fábio, Cristiane, Maria de Fátima e tantos outros que compartilharam suas experiências e trajetórias. Aos meus queridos estudantes que durante esses últimos quatro anos contribuíram com essa caminhada da forma mais encantadora possível: ensinando-me. Às companheiras de trabalho e luta da UERJ, da UCB e da UNIPLI pela solidariedade e carinho: Rosângela, Tatiane, Jurema, Elaine Marlova, Beth Queiroga, Beth Félix, Necilda, Mônica Santos, Nedda, Ana Puga, Cristina, Roberta, Elisa, Glória, Simone Paúra, Reinaldo e Janaína. À Mônica pelo apoio e incentivo em momentos importantes deste processo. Aos assistentes sociais e psicólogos do DEGASE, do TJ, do TRF e da RPE que não só compreenderam os momentos de maior dificuldade como parte de um processo formativo como também contribuíram de diferentes formas, em especial Maria Angela, Tereza Cruz, Tula, Ana Garcia, Alena, Felipe, Rosângela, Márcia, Josiane, Amparo, Eduardo, Ana Cristina e Flávia. À Nanci e Andrea Zoca que deram à distância um componente de fortalecimento do carinho com que me apoiaram e acompanharam essa trajetória. 7 RESUMO A presente pesquisa resgata a trajetória da experiência de intersetorialidade na cidade de Niterói no Estado do Rio de Janeiro, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2008, analisando as dimensões instituintes dos movimentos empreendidos nos campos da educação e da infância. A partir de uma abordagem teórica sobre a temática da cidade e de como que as relações entre o Estado e a sociedade civil e entre a esfera da produção e da reprodução social na atualidade têm articulado a esfera local à dinâmica global da sociedade capitalista, trata das tendências de descentralização e da importância do território no campo das políticas públicas. As diferentes compreensões sobre a intersetorialidade, como concepção e como experiência, são analisadas com o objetivo de destacar tanto a possibilidade de expressar apenas um esforço de racionalização como vir a indicar mudanças importantes no sentido de se ultrapassar a fragmentação das políticas públicas. Analisa as principais particularidades da área de educação no Brasil em suas relações com a progressiva atuação dos organismos multilaterais no diagnóstico e proposição de políticas para este setor, no intuito de favorecer a compreensão de como a política educacional tem sido organizada na esfera local. O tema da infância é abordado a partir da contribuição de diferentes campos do conhecimento com maior destaque para a sua compreensão como categoria social e como experiência humana que permite potencializar práticas sociais. Através de levantamentos de dados, da análise documental e da realização de entrevistas com diversos profissionais que atuam nas instâncias de coordenação e execução das políticas de saúde, educação e assistência social assim como com representantes da sociedade civil que atuam nos conselhos de direito e de políticas da cidade, a experiência de intersetorialidade foi resgatada e problematizada revelando que sua dimensão instituinte se apóia, particularmente, na autonomia que os profissionais do campo das políticas públicas conquistaram e na capacidade de compreensão das dinâmicas de cada território na cidade e como que neles se relacionam o Estado e a sociedade civil. Palavras-Chave: Educação; Infância; Cidade. 8 ABSTRACT This search retrieves the path of the experience of intersectional in Niterói in Rio de Janeiro, during the period between 2006 and 2008, examining the dimensions of the movement that promoted efforts in education and childhood. From a theoretical approach to the theme of the city and how the relations between state and society and between the sphere of production and social reproduction in the news have articulated both local and global dynamics of capitalist society, these trends decentralization and the importance of territory in the field of public policy. The different understandings of the intersectional approach, as a concept and as experience, are examined in order to highlight both the opportunity to have only one attempt to rationalize and come to indicate major changes in order to overcome the fragmentation of public policies. Discusses the main features of the area of education in Brazil in its relations with the progressive role of multilateral organizations in the diagnosis and propose policies for this sector in order to promote understanding of how educational policy has been organized at the local level. The theme of childhood is approached from the contribution of different fields of knowledge with more emphasis to understanding how social class and how human experience can enhance social practices. Through survey data, documentary analysis and interviews with various professionals working in the international coordination and implementation of health policies, education and social assistance as well as representatives of civil society that act on the advice of legal and policy the city, the experience of intersectional was rescued and problematic revealing that its size instituting relies particularly on the autonomy of the professional field of public policies and gained the ability to understand the dynamics of each area in the city and how relate them the state and civil society. Keywords: education; childhood; city. 9 RESUME La présente recherche reprend le parcours de l’expérience d’intersectorialité de la ville de Niteroi dans l’Etat de Rio de Janeiro sur la période de 2006 à 2008, analysant les dimensions constitutives des actions entreprises dans le secteur de l’éducation et de l’enfance. Sont abordés les tendances de décentralisation et l’importance du territoire dans le domaine des politiques publiques à partir d’une approche théorique sur la thématique de la ville et de comment les relations entre l’Etat et la société civile et entre la sphère de la production et de la reproduction sociale lient, aujourd’hui, la sphère locale à la dynamique globale de la société capitaliste. Les différentes conceptions de l'approche intersectorielle, comme concept et comme expérience, sont examinés en vue de mettre en évidence aussi bien l’expression d’un effort de rationalisation, comme d'indiquer des changements majeurs dans le sens de dépasser la fragmentation des politiques publiques. Dans le but de favoriser la compréhension de comment la politique éducationnel est organisée dans la sphère locale, cette étude analyse les principales particularités du secteur de l’education au Brésil dans ses rapports avec l’intervention progressive des organismes multilatéraux dans le diagnostique et dans les propositions des politiques pour ce secteur. La thématique de l’enfance est abordée à partir de la contribution de différents domaines de connaissance, en mettant l’accent sur sa compréhension en tant que catégorie sociale et expérience humaine qui permet la potentialisation des pratiques sociales. Par le biais de la récuperation de données, de l’analyse documentaire, de la réalisation d’entrevues avec divers professionnels qui interviennent dans les instances de coordination et d’exécution des politiques de santé, d’éducation et d’assistance sociale, ainsi que des représentants de la société civile intervenant dans les instances de droit et l’expérience d’intersectorialité des politiques de la ville, a été abordé et problématisé. Ceci a mis en évidence que sa dimension constitutive prend, particulièrement, appui dans l’autonomie acquise par les professionnels du domaine des politiques publiques, dans la compréhension des dynamiques de chaque territoire dans la ville et de comment se nouent les rapports avec l’Etat et la société civile. Mots-clef: Education; Enfance; Ville. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO A cartografia de uma caminhada 19 Capítulo 1- A CIDADE COMO TERRITÓRIO DA PRODUÇÃO E DA POLÍTICA 1.1 – O local e o global na delimitação dos territórios da produção e da reprodução social 47 1.2 - Territórios da política: Estado e sociedade civil 68 1.3- As políticas públicas e o cotidiano da cidade: dimensões do trabalho profissional 82 Capítulo 2- POLÍTICAS PÚBLICAS E INTERSETORIALIDADE 2.1- Descentralização e intersetorialidade nas políticas públicas: sobre discursos, desejos e esperanças 97 2.2- Os desafios da educação na cidade 125 2.3 – As políticas da infância e a infância da política 159 Capítulo 3 – EDUCAÇÃO E INFÂNCIA NA CIDADE DE NITERÓI 3.1- As dualidades da cidade das águas escondidas 194 3.2- A construção da intersetorialidade em Niterói: diferentes pontas de uma mesma trama 226 3.3- Dimensões instituintes da ação intersetorial em Niterói: a educação que encontra a cidade 265 3.4- A infância que se forja entre as políticas e as redes na cidade 288 CONSIDERAÇÕES FINAIS A infância da política na cidade 353 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 359 ANEXOS Anexo I – Proposta do Curso de Extensão Universitária “A interface das políticas sociais de educação, assistência e de atenção à criança e ao adolescente no município de Niterói”. Anexo 2- Mapa da Cidade de Niterói. Anexo 3 – Mapa da Rede Física de Saúde do Município de Niterói. 12 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABRAPIA - Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência ACAVV - Programa de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima de Violência AFAC – Associação Fluminense de Amparo aos Cegos AFR - Associação Fluminense de Reabilitação AMAS - Associação Metodista de Ação Social ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação APADA - Associação de Pais de Amigos dos Deficientes da Audição APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais ARENA - Aliança Renovadora Nacional ASEMA - Ações Socioeducativas em Meio Aberto BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento BNH - Banco Nacional de Habitação BPC – Benefício de Prestação Continuada BPM - Batalhão da Polícia Militar Cacs - Conselhos de Acompanhamento e Controle Social CadÚnicio - Cadastro Único da Assistência Social CAPs – Centro de Atenção Psicosocial CAPS AD - Centro de Atenção Psicosocial – Álcool e Drogas CAPsI - Centro de Atenção Psicosocial – Infanto Juvenil CBIA - Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência CEDCA - Conselhos Estaduais de Direitos da Criança e do Adolescente CEDEPLAR - Centro de Planejamento e Desenvolvimento Regional CEJOP - Centro Juvenil de Orientação e Pesquisa CIACs - Centros Integrados de Atendimento às Crianças CLIN - Companhia de Limpeza Urbana de Niterói CMAS - Conselho Municipal de Assistência Social 13 CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CME – Conselho Municipal de Educação CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social CNE - Conselho Nacional de Educação CNSS - Conselho Nacional de Serviço Social COESE - Coordenação de Estudo e Supervisão Escolar COMAD - Conselho Municipal de Políticas e Atenção às Drogas COMDEPI - Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa COMPEDE - Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência CONAE – Conferência Nacional de Educação CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONED - Congresso Nacional de Educação COVIG - Coordenadoria de Vigilância e Saúde CRAS - Centros de Referência da Assistência Social CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social CRIAA - Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente CRIAAD - Centro de Recursos Integrado de Atendimento ao Adolescente CRIAM - Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor CTs - Conselhos Tutelares DEAM - Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher DNCr - Departamento Nacional da Criança DPCA - Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente DPCA - Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente DRU - Desvinculação de Recursos da União ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente ENADE - Exame Nacional de Desempenho de Estudantes FAMNIT - Federação das Associações de Moradores de Niterói FEBEM - Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor FENASE - Fundação de Assistência Social El-Shadai FGV - Fundação Getúlio Vargas FIA - Fundação Para a Infância e Juventude 14 FIRJAN - Federação das Indústrias do Rio de Janeiro FME - Fundação Municipal de Educação FMI - Fundo Monetário Internacional FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Fórum DCA - Fóruns Permanentes de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente FPE - Fundo de Participação dos Estados FPM - Fundo de Participação dos Municípios FUNABEM - Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização dos Profissionais do Magistério GBT - Grupos Básicos de Trabalho GEPAR - Grupo Espírita Paz Amor e Renovação IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IDE - Instituto de Desenvolvimento para a Educação IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDH - Índice de Desenvolvimento Humano IFET - Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INEP - Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos INOCOOP- Rio - Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores ITCM - Imposto de Transmissão “Causa Mortis” ITR - Imposto sobre Propriedade Territorial Rural IUPIexp - Imposto sobre Produtos Industrializados Proporcional às Exportações LA - Liberdade Assistida 15 LBA - Legião Brasileira de Assistência LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social LOS - Lei Orgânica da Saúde MAC - Museu de Arte Contemporânea MDB - Movimento Democrático Brasileiro MDB/PDS – MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEC - Ministério da Educação MNMMR - Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua MP - Ministério Público NAECA - Núcleo de Atendimento Especializado da Criança e do Adolescente NAFs - Núcleos de Atendimento às Famílias NEST - Núcleo de Estágio OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ONGs - Organismos não-governamentais ONU - Organização das Nações Unidas OP - Orçamento Participativo PAC - Programa de Aceleração do Crescimento PAIF - Programa de Atenção Integral à Família PBF - Programa Bolsa Família PCC - Programa Criança na Creche PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais PDDE - Programa Dinheiro Direto na Escola PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação PDS - Partido Democrático Social PDT - Partido Democrático Trabalhista PEC - Proposta de Emenda Constitucional PEJA - Programa de Apoio aos Sistemas de Ensino para a Educação de Jovens e Adultos PELE - Promoção de Leitura 16 PETI - Programas de Erradicação do Trabalho Infantil PGRM - Programa de Garantia de Renda Mínima PIB - Produto Interno Bruto PMDB -.Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDE - Programa de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental PMF - Programa Médico de Família PNAA - Programa Nacional de Acesso à Alimentação PNAD - Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAS - Política Nacional de Assistência Social PNATE - Programa Nacional de Transporte do Escolar PNE - Plano Nacional de Educação PNLD - Programa Nacional do Livro Didático PNRM - Programa de Nacional de Renda Mínima PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PPS - Partido Popular Socialista PROJOVEM - Programa Nacional de Inclusão de Jovens PRONAICA - Programa de Atendimento Integral à Criança PROUNI - Programa Universidade para Todos PSC - Prestação de Serviços à Comunidade PSDB - Partido Social Democrata Brasileiro PSF - Programa de Saúde da Família PT – Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro RECIZON - Rede Comunitária de Integração da Zona Norte REUNI - Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais SAEB - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica SAM - Serviço de Assistência a Menores SEEs - Secretarias Estaduais de Educação 17 SENARC - Secretaria Nacional de Renda e Cidadania SESC - Serviço Social do Comércio SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SP – São Paulo SUAS - Sistema Único de Assistência Social SUS - Sistema Único de Saúde UBS – Unidade Básica de Saúde UFERJ - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UFF - Universidade Federal Fluminense UMEI - Unidades Municipais de Educação Infantil UNESCO - Programa das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência 18 LISTA DE QUADROS E TABELAS I. Relação da quantidade de entrevistados por vínculo institucional e tipo de inserção 43 II. Número de matrículas e de escolas por nível de ensino e por tipo de dependência no Município de Niterói 230 III. Crescimento da Rede Física Escolar Pública de Niterói 232 IV. Atendimento na Rede Física Escolar 242 V. Capacidade Física Instalada – unidades ambulatoriais e hospitalares 245 VI. Ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Assistência Social 253 VII. Metas, Ações e Prazos relativos à Educação Infantil no Plano Municipal de Educação de Niterói 291 VIII. Relação de instituições que desenvolvem ações socioeducativas em meio aberto, público atendido e área de abrangência 312 19 INTRODUÇÃO A cartografia de uma caminhada Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perderse numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro. Essa arte aprendi tardiamente; ela tornou real o sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros vestígios. Walter Benjamin, 1985. Nenhum caminho é de um só andarilho. Por mais solitária que pareça a caminhada, algumas trilhas já foram abertas. Os gravetos pisados, as marcas dos pés que antes passaram misturam-se ao barro da estrada formando pequenas poças por onde se revelam vestígios de diferentes destinos. Quais vingaram? Quais ainda estão aguardando definições? Voltar a estudar em Niterói1, cidade onde nasci e vivo, não representou apenas uma mudança de itinerário no cotidiano das idas e vindas que a vida numa grande cidade nos impõe. Configurou uma oportunidade que se assemelha às experiências assinaladas por Walter Benjamim de perder-me nessa cidade, de aguçar a curiosidade e o medo da descoberta, das ruas e dos lugares, do movimento da paisagem que parecia inerte, sem tempo, sem aroma, pois havia se transformado apenas em passagem2. 1 Refiro-me aqui à minha inserção no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense no curso de Doutorado em 2006. 2 Richard Sennett assinala que cada vez mais o espaço urbano tem se tornado para muitos “um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele” (2006:17) 20 Não posso afirmar tratar-se de uma direção perseguida com extrema rigidez, como tão pouco, reputar como obra do acaso, mas um caminho forjado por confrontos, descobertas e, sobretudo, aberturas e errâncias. Uma conjunção de diferentes sensibilidades e percursos, dentre os quais destacaria as orientações coletivas com a Professora Célia Linhares, a partir das quais tomou forma a preocupação sobre a dimensão instituinte das práticas profissionais que entrelaçam políticas públicas, educação e infância. Mas o que passou a pulsar na paisagem de forma a mobilizar a minha atenção? Que mudança foi operada na minha relação com a cidade? Como se deu o processo de perder-me por onde já caminhei com tanta “familiaridade”? Recorro a Milton Santos (1997a: 61), inicialmente, para situar alguns dos elementos que possibilitam compreender os traços mais marcantes dessa mudança: “a paisagem toma escalas diferentes e assoma diversamente aos nossos olhos, segundo onde estejamos”. Embora destaque a força da percepção na relação do sujeito com a paisagem, ela tem uma dimensão primária a partir da qual se entrelaçam conhecimento, ação e imaginação. Assim, as imagens que passo a reter das paisagens combinam reminiscências e aspirações. O ingresso no curso de doutorado e a elaboração do projeto de tese foram decisivos para a mudança de relacionamento com as paisagens de Niterói, visto que a elas se somaram outras, originárias de outras cidades e de outras experiências. Pude, então, realizar um investimento mais rigoroso de reflexão que apreendia os traços mais acentuados daquelas paisagens, ou seja, as mediações históricas que os tornavam traços presentes naquelas e em muitas outras e que ressaltavam a importância do entrelaçamento entre as políticas públicas e a cidade no processo de visibilidade das categorias sociais que mais sofrem com as desigualdades sociais e que, geralmente, encontram maiores dificuldades de organização social. restringindo cada vez a possibilidade de construção de experiências com os diferentes espaços e fluxos da cidade a uma rotina que nos condiciona a olhar a paisagem sem qualquer tipo de envolvimento. 21 As políticas públicas, em decorrência da complexificação do Estado e das relações sociais, assim como em função da própria extensão das racionalidades e tecnologias de gerenciamento que marcam a sociedade capitalista, a partir das duas últimas décadas ganharam novos contornos. Em particular destacamos que as novas feições da relação entre o Estado e a sociedade civil contribuíram para um singular processo de descentralização de suas ações que, por conseguinte, abriram outras perspectivas para as instâncias de controle social. O percurso dessa construção que combina maior participação democrática e mecanismos mais aperfeiçoados de gestão social esteve longe de ser linear e foi marcado por experiências políticas que imprimiram ao período uma dinâmica contraditória e bastante diversificada. A questão local passa a fornecer novos significados políticos e teóricos para se pensar a constituição dos novos enfrentamentos e arranjos entre as diferentes políticas públicas e as ações no âmbito das esferas pública e privada nos diferentes territórios da cidade. Em particular, as políticas setoriais voltadas para os segmentos sociais mais vulneráveis, dentre as quais destaco as de assistência social e a de atenção à infância e a adolescência, se estruturam a partir de princípios que prevêem a interface com outras políticas públicas. Essa interface foi fortemente potencializada pela tendência de articulação das políticas de enfrentamento da pobreza, alicerçada nos programas de garantia de renda mínima que assumiram papel destacado não só no Brasil. A educação se constitui, neste percurso, em uma das políticas centrais para se projetar uma perspectiva de superação das ações de proteção social para o âmbito da promoção e do desenvolvimento social. A trajetória da organização das políticas públicas em Niterói também expressa essa tendência. Deste modo, em 2006 a cidade começou a desenvolver de forma mais sistemática uma experiência nesta direção. A partir da preocupação em dar unidade à articulação das ações das políticas públicas de educação, assistência social e saúde uma nova proposta de organização territorial foi elaborada no sentido de favorecer a discussão e 22 enfrentamento dos problemas e questões afetas às três áreas. A emergência desses espaços na dinâmica da gestão das políticas públicas no âmbito municipal constitui uma construção ainda recente e complexa, apresentando um amplo leque de interrogações e dificuldades quanto à avaliação das mudanças que todos esses esforços vêm produzindo na constituição da esfera pública. Por se tratar de uma experiência recente e que pela dinâmica do processo político na cidade já se previa a sua interrupção, resgatar esta experiência representou um grande desafio intelectual e político que, por essa mesma razão, acionou uma preocupação investigativa bastante instigante. Quais os processos históricos e institucionais que contribuíram para que vários profissionais da educação convergissem seus esforços para esta experiência? Como se combinaram os investimentos decorrentes da autonomia, dos assombros e das inquietudes dos diferentes trabalhadores das políticas públicas que dela participaram com aqueles que se desdobram das gestões governamentais e das experiências de valorização da realidade local? A crescente despolitização da vida social e a extensão de uma lógica mercantilista a um conjunto cada vez mais amplo das relações sociais colocam, de forma bastante contundente, a possibilidade de que experiências como essas se descolem dos horizontes das lutas sociais por políticas públicas que garantam direitos sociais e que forjem uma efetiva e democrática esfera pública para o das práticas racionalizadoras dos recursos e das demandas que caracterizam um padrão hegemônico que reduz a gestão política da questão social às políticas de gestão que hoje contabilizam a realidade social. Contudo, essas experiências também abrem a possibilidade para que sujeitos tornados “invisíveis” recriem formas de participação institucional, abrindo perspectivas para a construção de outras possibilidades de ação política. Quais feições se desenharam a partir desta experiência no trato da intersetorialidade das políticas públicas que não reproduziram apenas uma preocupação de ordem gerencial? Poderia essa experiência contribuir para evidenciar os limites de uma concepção de 23 educação que não considera o acesso aos direitos sociais como condição de uma sociabilidade mais humanizadora e vivente? A paisagem ganhava novos contornos com o processo de abstração teórica, com o reconhecimento da universalidade de seus traços: as políticas públicas e as novas feições da relação entre o Estado e a sociedade civil. Os traços universais precisavam ser delimitados historicamente e a escolha foi feita a partir de um marco presente na cultura política brasileira, privilegiando na abordagem da relação entre Estado e sociedade civil as suas contradições. Esse marco foi o processo de redemocratização brasileiro que atravessou os anos 80, momento singular da história de nossa cultura política que, apesar de marcada por processos de transição acordados entre as elites e de cunho autoritário3, expressava a força das contradições sociais e das práticas sociais de resistência. Não se tratava apenas de uma luta contra o regime militar, mas da afirmação de uma sociedade civil mais dinâmica e plural (COUTINHO, 2006), sobretudo, com a entrada em cena de novos sujeitos, conforme sinalizou Eder Sader (1988). As disputas travadas em torno de projetos societários diferentes tornaram-se transversais aos debates realizados em diferentes dimensões da vida social: no âmbito da cultura, da educação, assim como no da esfera dos direitos sociais, expressando, portanto, uma nova potencialidade da sociedade civil no Brasil como arena das lutas sociais. O cenário político, econômico e cultural que se desenhou a partir de então esteve, contudo, longe de representar uma paisagem com cores e tons embaçados. Ao contrário, sublinhou as contradições de um processo a partir do qual se reconhecia e ampliava uma série de direitos sociais que, embora, expressasse o resultado de uma intensa mobilização social não esteve apoiado em uma correspondente distribuição da riqueza. O que se observa, a partir de então, é o alargamento dos direitos sociais em um plano legal 3 Estes traços são destacados por Coutinho (1990) ao analisar as particularidades da cultura política brasileira, afirmando a tendência das transições negociadas “pelo alto” sem a participação e a inclusão das massas. 24 que, até o presente momento, não pode ser materializado em toda a sua extensão em função da intensificação do processo de concentração de renda no país. A arquitetura da Constituição de 1988 apontava, mesmo sem expressar uma radicalização no trato dos direitos sociais, para o reconhecimento de um Estado de Direito, pós-ditadura, que, em última instância, decorria de uma ampliação tanto do espectro quanto das formas de atuação de forças políticas democráticas. Ao final dos anos 80 a sociedade brasileira já vivia uma intensa polarização na sua primeira eleição direta para presidente da república. Contudo, esse antagonismo no plano político-eleitoral convivia com ambivalências e hibridismos cada vez visíveis, em especial na esfera da cultura. Aquela recente experiência democrática era indicativa de como a sociedade civil se tornou decisiva para a construção dos consensos necessários à afirmação dos projetos societários. Os anos 90 foram marcados tanto pelas desenfreadas expansões do desemprego, pela consolidação da hegemonia do neoliberalismo e pelas novas configurações da pobreza - expressões do mais recente esforço de recomposição do capital diante de suas próprias crises - quanto por um novo estágio das lutas dirigidas para a ampliação e democratização dos espaços de atuação política, dos direitos sociais e das liberdades individuais. Dentre as principais contradições e desafios que emergem nesse período ressaltamos, por exemplo, o empenho de vários segmentos políticos em dar materialidade às conquistas legais em um aparato institucional que passou a ser fortemente sucateado, prosseguindo na construção de uma cultura política democrática mesmo diante dos avanços de uma ideologia individualizante. As políticas públicas em razão de suas funções econômicas, culturais e ideológicas constituem um importante campo de disputa dos distintos projetos sociais, visto que, mesmo diante de seus limites estruturais – relativos à sua gênese e constituição no âmbito das estratégias de enfrentamento da questão social na sociedade capitalista – encerram 25 condições objetivas de acesso da população aos direitos civis, políticos e sociais. As práticas que se organizam a partir delas passaram a expressar intensa e extensivamente as contradições aludidas, impondo a necessidade de uma leitura mais atenta da dinâmica societária que permita apreender a dialética de seu movimento, apontado tanto as possibilidades quanto os limites dos percursos e discursos políticos partidários, das mutações dos movimentos sociais, das novas redes de serviços sociais e das práticas profissionais voltadas para a afirmação dos projetos de sociedade que se contraponham e superem o atual. Um dos desafios postos hoje para diferentes profissionais que trabalham nas políticas públicas é o de compreender a dinâmica institucional que as caracterizam em suas diferentes instâncias e interfaces. Um leque bem diversificado de sujeitos coletivos, como entidades profissionais e sindicais, associações de pesquisadores e programas universitários, entre outros, têm empreendido esse esforço ao longo dos últimos anos. Esforço que compartilho com tantos outros profissionais: o de pensar criticamente o potencial instituinte das práticas profissionais realizadas no âmbito de instituições implementadoras de políticas públicas, em especial aquelas que são dirigidas à infância. Políticas que, contraditoriamente, integram, hoje, os espaços de sociabilidade de largos segmentos sociais que têm nos serviços sociais um componente estratégico na luta pela sua sobrevivência. Expressariam essas práticas possibilidades de desenvolvimento de formas de sociabilidade emancipatórias? Será possível a partir das relações que os segmentos populacionais mais pobres estabelecem com as políticas públicas contribuir para a vivência de experiências com um significado político distinto daqueles que tendem a perpetuar sua condição de subalternidade? A opção por pesquisar as ações sociais dirigidas para a infância na cidade tendo como preocupação central resgatar como esse movimento vem sendo produzido pela área de educação se deu em função da necessidade de delimitação de uma das categorias sociais para as quais fossem dirigidas tanto as ações decorrentes da relação entre a educação e as demais 26 políticas públicas quanto das experiências intersetoriais em curso em Niterói. Assim as ações organizadas a partir do trabalho de diferentes profissionais em instituições, programas e projetos voltados para as crianças e adolescentes, sobretudo as que se encontram em situação de risco ou vulnerabilidade social, passaram a requer a interface de diferentes políticas públicas. As diretrizes e trajetórias das políticas de educação, assistência social e de saúde na garantia e defesa dos direitos da criança e do adolescente, as instâncias de articulação interinstitucional, gestão e controle social existentes na cidade de Niterói demarcavam novos arranjos territoriais, nos quais diferentes profissionais forjaram a construção de experiências intersetoriais. A motivação que orientou a realização desta pesquisa se sustentou na interrogação sobre a dimensão instituinte da experiência de intersetorialidade em Niterói, ou seja, de como se deu a articulação entre educação e política na construção de possibilidades civilizatórias que se anteponham ao processo de desumanização e desvitalização de nossa sociedade4. Em função do curto percurso dessa experiência e de termos tido a oportunidade de acompanhá-la ainda em sua construção não nos propusemos a investigar seus resultados e impactos, mas sim resgatar sua trajetória a partir das próprias inquietações, incertezas e descobertas dos profissionais que ao participarem dessa via de articulação das políticas públicas forjaram uma experiência particular em relação aos movimentos em curso na sociedade que tomam a cidade como uma mediação importante das práticas de formação humana (GADOTTI e PADILHA, 2004). Uma importante consideração a tecer é a de que há uma dimensão da infância hoje, principalmente aquela assistida pelas políticas públicas, que guarda, por certo, relação com as distintas expressões da pobreza na atualidade. Primeiro porque o acesso à educação escolarizada passa a ser mediado por alguma política pública que não a de educação apenas. Em 4 Processo denunciado de forma contundente nas reflexões de Mészáros (2005) e Linhares (2002) e como preocupação com a qual devem se debruçar os educadores e a própria educação. 27 seguida, a observação de que representa um dos segmentos sociais mais vulneráveis frente aos fenômenos da expansão do narcotráfico como modalidade objetiva de estratégia de sobrevivência ou acesso ao consumo, dos processos de desestruturação familiar, da entrada precoce no universo do trabalho explorado e da exposição às distintas formas de violência. A compreensão da trajetória das políticas dirigidas à infância no Brasil nos últimos anos requer situar em que medida o acirramento das desigualdades sociais e as feições assumidas pela relação entre o Estado e a sociedade civil conformaram um quadro institucional favorável às elaborações teóricas e programáticas que articulam a política de educação às estratégias de enfrentamento da pobreza e de garantia dos direitos da infância. Para dar conta do alcance e das possibilidades dessas pistas e da própria reflexão teórica sobre esse problema de pesquisa é preciso situá-los no âmbito das mudanças que vêm ocorrendo na dinâmica entre as esferas da produção e da reprodução social, desvelando como os fenômenos como o desemprego estrutural, a contra-reforma do Estado e a hegemonia de uma elaboração cultural pautada na lógica da produção da mercadoria incidem sobre as políticas públicas e, conseqüentemente, sobre as formas de enfrentamento da pobreza, as experiências educacionais e as condições de garantia dos direitos humanos e sociais. Há de se destacar, portanto, a compreensão de que são estruturais as relações entre o aumento e as novas configurações da pobreza e a lógica da acumulação capitalista, o que diante de um quadro de ruptura com as relações de trabalho em bases salariais e do desemprego estrutural, a atuação do Estado no campo da regulação social torna-se um fator decisivo em relação à efetivação das condições de sobrevivência da grande maioria da população que, por diferentes parâmetros, experimentam a condição de pobreza. Contudo, o próprio Estado também participa deste grande esforço de recomposição do capital, atuando na pavimentação da estrada que reverte os fluxos dos investimentos públicos e do seu próprio papel em relação ao campo da proteção social. 28 A ofensiva neoliberal dos anos 90 acabou por desestruturar as principais experiências de proteção social organizadas em torno do Estado de Bem Estar Social nos países centrais e impingiu o sucateamento e o esfacelamento da precária rede de serviços sociais em países como o Brasil. A experiência brasileira, sobretudo a partir da proposta de Reforma Gerencial do Estado, significou, na verdade uma Contra-Reforma (Behring, 2003), por representar não só a drástica redução dos recursos do fundo público, destinados às políticas públicas, como o seu deslocamento para financiar o próprio capital através dos processos de privatização e pagamento de juros da dívida externa. Em síntese, o Índice de Gini mede fundamentalmente a realidade da desigualdade no interior da renda do trabalho, deixando de fora, portanto, as outras formas de renda que mais tem crescido no Brasil, como juros, lucros, renda da terra e aluguéis. Dessa forma, a desigualdade de renda e riqueza no Brasil tem sido maior, sobretudo quando a política monetária do Governo Federal garante uma renda mínima para cerca de 20 mil clãs parentais por meio do pagamento dos juros da dívida pública. Enquanto programas como o Bolsa Família garante a 8 milhões de famílias o acesso a um benefício monetário, cujo montante representa somente 0,3% do PIB, a política de juros do Governo Federal transfere anualmente a poucas famílias ricas uma quantia monetária equivalente a 7% do PIB. Por conta disso, torna-se muito difícil conter a desigualdade de renda e riqueza no Brasil. Nesse mesmo sentido, pode-se também destacar que os efeitos do gasto social não são maiores porque há justamente uma restrição importante que deriva do pagamento dos encargos da dívida pública, equivalente, em 2005, a 56% de todo o volume de recursos comprometidos com a área social do Governo Federal. Além de improdutivas, as despesas financeiras deprimem a geração do emprego (perda de 521 mil novas vagas em 2005) e contribuem para a maior transferência de renda aos segmentos mais ricos da população (POCHMANN, 2007: 77). As tendências no campo da análise e do enfrentamento da pobreza acabam concentrando, ou restringindo, em muitos casos, os diferentes aspectos que envolvem a pobreza, em particular a inserção desigual na esfera da produção, da cultura e da política, à necessidade de elevação dos patamares de consumo da população. Esse fenômeno ganha um significado 29 que vai muito além das diretrizes que têm orientado os programas de transferência de renda, visto que envolve, sobretudo, uma subordinação das políticas públicas à lógica da sociedade de consumo, destituindo da esfera política e da participação política da população sua dimensão de uso (AGAMBEN, 2007), de ação protagonizada por um sujeito coletivo para se deslocar para o campo do consumo, do acesso mediatizado por uma esfera que perde sua feição pública em detrimento das práticas mercantis. Ocorre, portanto, no bojo deste processo uma radical alteração na forma de conceber a esfera pública e o papel do Estado, difundindo mediante um amplo processo de desregulamentação e ideologização a concepção de um Estado com perfil mais gestor do que executor. O deslocamento de parte das ações do campo da proteção social do Estado para a esfera privada filantrópica ou comunitária é decorrente de uma orientação de organismos mundiais, gestores da nova ordem econômica dirigida pelo capital financeiro. Ao tratar da participação do Estado no acirramento da instabilidade social, Valla ressalta: Diante dos problemas criados para a população brasileira – desemprego estrutural, condições de vida precária -, as recomendações do Banco Mundial e do FMI têm como pressuposto, na verdade, a idéia de que as pessoas e suas comunidades devem ser “criativas” e “se virar” para compensar os problemas criados por essa lógica de individualismo e lucro que prejudica os mais fracos e vulneráveis (2005: 51). As estratégias postas em curso para o desmonte do ideário e das estruturas pautadas na concepção do estado de Bem Estar Social segundo Laurell foram implementadas pelos governos neoliberais no sentido da “privatização do financiamento e da produção dos serviços; redução dos gastos sociais, eliminando programas e reduzindo benefícios; canalização dos gastos para os grupos carentes; e a descentralização em nível local”. A autora ressalta, ainda, que: (...) A condição política para o êxito deste projeto é a derrota ou, pelo menos, o enfraquecimento das classes trabalhadoras e das suas organizações reivindicatórias e partidárias. Nesse contexto, torna-se primordial destruir as instituições de bem-estar social, por constituírem 30 uma das bases da ação coletiva e solidária que diminuem a força desagregadora da competição entre os indivíduos no mercado de trabalho (1995: 164). Chamamos a atenção para o fato de que todo o esforço empreendido pelos movimentos sociais e de trabalhadores do campo das políticas públicas no sentido da garantia dos direitos sociais encontrou e ainda encontra fortes resistências na operação de desmonte do Estado e que transfere para uma rede de proteção privada parte de suas responsabilidades no campo da proteção social. Se por um lado este processo possibilitou a emergência de novas experiências, oriundas de parcela da sociedade civil que conseguiu manter sua capacidade de mobilização e de crítica a esta tendência, sem sucumbir às armadilhas da terceirização das políticas públicas, por outro, revelou uma avalanche ideológica em torno de novas concepções da relação entre o que é público e o que é estatal que, de um modo geral, vem servindo para a afirmação de uma cultura política que retira os contornos coletivo do enfrentamento da pobreza e os repõe de forma individualizada nas esferas da família, da escola e das instituições, públicas ou não, que implementam programas sociais. Temos então, um processo que além de econômico e político tem forte conteúdo cultural, visto que opera com formas de compreensão dos problemas que atingem largos extratos da sociedade e que fazem parte dos modos de vida e das formas como são pensadas e articuladas as estratégias de sobrevivência desses mesmos segmentos sociais. Assim fica caracterizada a centralidade da esfera da reprodução social como um conjunto complexo de práticas sociais necessárias à garantia de um dado modo de organização social da produção e que, por sua vez, são por ele determinados. As mudanças na esfera da reprodução não se esgotam nas condições de regulação social do Estado em função da ofensiva neoliberal, mas apontam para a necessária produção de novos modos de pensar a realidade 31 social e suas intensas e rápidas transformações. Neste sentido, também o campo cultural experimentou profundas e decisivas mudanças. A mais determinante pode ser demarcada em torno das múltiplas significações da pós-modernidade, apreendidas por Frederic Jameson (1996) como a “lógica cultural do capitalismo tardio”, ou seja, como a expressão de uma cultura sintonizada às radicais mudanças do modo de produção de capitalista onde a lógica da produção da mercadoria penetra de forma visceral os processos de produção e difusão cultural, assim como as visões de mundo. Esta lógica cultural atenderia a uma condição da produção: a valorização do capital a partir de mercadorias de novo tipo, como os serviços, a cultura e a informação. Trata-se, portanto, de uma mudança que combina a esfera da produção e da reprodução em novos patamares, ou seja, favorecendo uma espécie de “fordismo” no campo da produção cultural para atender às exigências da acumulação por “novos” meios de valorização do capital articulado à produção de “novas” visões sobre a realidade. Assim a lógica da produção da mercadoria atravessa indistintamente a produção cultural, quer no sentido das “novas” mercadorias, quer das “novas” elaborações sobre a realidade, tornando uma e outra completamente descartável, assim como ocorre hoje com qualquer mercadoria, subsumida à tendência de diminuição do tempo de duração do valor de uso. Mas também atravessa os serviços sociais inscrevendo sua produção e distribuição na lógica da produção da mercadoria e do consumo. Partindo da compreensão gramsciana da cultura como visão de mundo, resgatamos neste autor uma ponderação substantiva para a compreensão da extensão e significados destas mudanças, quando afirma que: Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico do conformismo e do homem-massa do qual fazemos parte? (GRAMSCI, 1987: 12). 32 O pertencimento a diferentes tipos de homem-massa é produto de um processo histórico que, segundo o autor, deve ser superado com a crítica a própria concepção de mundo. A pergunta que se constrói nesse processo é exatamente em relação à possibilidade desta crítica estar presente nas experiências educacionais desenvolvidas junto a segmentos sociais que, pelas suas condições de vida - aqui tomadas em suas formas concretas de inserção nos processos de produção e reprodução das desigualdades sociais – têm, contraditoriamente, nas políticas públicas, neste cenário neoliberal e de privatização da esfera pública, seus limites e suas possibilidades. A tendência de subordinação dos processos de produção e difusão cultural à lógica da produção da mercadoria em articulação com a disseminação das perspectivas individualizantes do ideário neoliberal nas instituições que desenvolvem programas sociais conforma um determinado tipo de consenso, ao qual algumas experiências educacionais não só não se rendem, resistem e se confrontam, como recriam as possibilidades de construção de outras práticas sociais. Esta tarefa determinados não segmentos pode ser compreendida profissionais e nem como restrita exclusiva aos a âmbitos institucionais em que se localizam. A articulação desses processos institucionais aos processos históricos de elaboração cultural é um pressuposto pedagógico e político e que não pode desconsiderar as condições objetivas de sua realização, ao contrário, deve tomá-las como condição central de sua dimensão instituinte: Em outras palavras: os movimentos necessários para forjarmos outras formas de conviver, produzir, pensar e compartilhar a vida, mais solidariamente, não se encontram num além, sobreposto ao nosso cotidiano de mulheres e homens, esperando apenas que os sagazes e geniais os “descubram” para usá-los e aplicá-los, mas está entre nós, como relações integrantes de nossas vidas, que cobram sempre outras elaborações, capazes de ressignificar práticas sociais de forma criadoramente ética. Trata-se, desta maneira, de processos de diferir que vão na contramão de pressões excludentes e homogeneizadoras – ainda hegemônicas – afirmando-se na busca por 33 desativar e demolir esquemas que sustentam a manutenção e o aprofundamento das desigualdades sociais (LINHARES, 2004: 16). Alerta a autora para o significado dado a expressão “instituinte” como uma diferenciação do que seria “novo” e que tão bem serve à lógica cultural subordinada à produção da mercadoria. As experiências instituintes adensariam, desta forma, um processo de elaboração cultural que se forja em outra direção, imprimindo um conteúdo ético e potencializando as condições de uma produção autônoma em distintas dimensões da vida social. (...) A força dos movimentos políticos instituintes não está nas decisões que uma assinatura pode legalizar. Sem prescindir desses gestos, entendemos sua vitalidade e legitimação vem dos movimentos históricos que carregam sonhos, desejos e projetos que foram marginalizados e até interditados em outros períodos, clamando por serem reapropriados para a pavimentação de uma cultura, sustentada de forma mais plural e emancipatória (IBIDEM, 2002: 119). A vitalidade dessas experiências é a base para a construção coletiva de uma educação não atrelada aos ditames do capital, evidenciando a sua própria potencialidade no âmbito dos processos históricos de emancipação humana, ou seja, antagônicos à desumanização crescente imposta pela subsunção do trabalho ao capital em larga escala. Ao destacar a dimensão histórica que envolve o esforço de se reverter este processo, Isteván Mészáros chamou a atenção, durante a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação realizado em Porto Alegre no ano de 2004, para o papel a ser cumprido pela educação: (...) Portanto, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração das estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (2005: 65). Se a valorização do sujeito no processo de automudança consciente é uma condição destacada por Mészáros para se compreender o papel da educação no curso da construção de uma sociedade diferente da atual, ela 34 impõe uma ênfase completamente distante daquelas experiências educacionais pautadas na lógica da produção da mercadoria. A formação utilitarista e individualmente empreendedora resultante dos ajustes de uma educação atrelada à nova condição de desemprego estrutural, conforme demonstra Gentili (1998) ao analisar a “desintegração da promessa integradora”, não pode ser tomada como referência para a condução de práticas instituintes. Ao contrário, estas práticas apontam para uma perspectiva de educação que valorize o sujeito e não que o submeta a um processo de alienação e desumanização naquilo que consiste sua potencialidade criativa: o trabalho. A inversão provocada por uma sociedade que educa para a submissão deve ser o foco de uma ação também educativa de sentido oposto, conforme defendia Paulo Freire: É necessário, porém, que o trabalhador social se preocupe com algo já enfatizado nestas considerações: que a estrutura social é obra dos homens e que, se assim for, a sua transformação será também obra dos homens. Isto significa que a sua tarefa fundamental é a de serem sujeitos e não objetos de transformação. Tarefa que lhes exige, durante sua ação sobre a realidade, um aprofundamento de sua tomada de consciência da realidade, objeto de atos contraditórios daqueles que pretendem mantê-la como está e dos que pretendem transformá-la (1979: 48). Há de se chamar a atenção para o fato de que a subordinação da própria educação à lógica da produção da mercadoria expressa um dos limites impostos às experiências educacionais, uma vez que transfigura a noção da educação como direito na concepção de um serviço que pode ser comercializado ou cuja produção se submeta a critérios outros, distantes da esfera de luta pela garantia e ampliação dos direitos sociais (Frigotto, 2001). Da mesma forma que a progressiva complexificação da vida e das formas de produção social têm levado a um incessante movimento de fragmentação do real, quer das práticas sociais e profissionais, quer dos conhecimentos que as orientam. Investigar as experiências educacionais como práticas instituintes é essencialmente reconhecer suas potencialidades quanto à superação da lógica fragmentária hegemônica de organização do fazeres e 35 dos saberes, com seus endereçamentos para as concentrações de bens e acumulações de privilégios. Não podemos deixar de perceber nesses movimentos teóricometodológicos da interdisciplinaridade um sentido de rearticulação de saberes e fazeres que vai contra toda aquela lógica do fracionamento e da divisão. Se não existe uma vacina que impeça que seu uso seja distorcido ou isolado, extraviando possibilidades transformadoras, por outro lado, esses movimentos também podem produzir contribuições para a criação de uma nova cultura, que se alimente de uma pluralidade de lógicas, que assuma as indivisibilidades que entrelaçam sujeitos e objetos do conhecimento (LINHARES, 1999: 28). Pensar a dimensão instituinte das experiências educacionais requer, portanto, reconhecer suas possibilidades de “transbordamento” para além das fronteiras disciplinares e setoriais. Em que pesem todos os entraves e descaso para com a educação pública e, por extensão, em relação à escola, as experiências instituintes, conforme aponta Linhares, sem desconsiderar “os embates, as contradições e as ambigüidades” que as atravessam, podem ser identificadas a partir de alguns componentes centrais: (...)1) Empenho pela construção de uma participação democrática expansiva, com especial destaque para a concretização e as ressonâncias do Orçamento participativo; 2) Processos de participação de professoras, professores, estudantes equipes dirigentes e auxiliares, pais nos rumos da escola, com interlocuções com sindicatos e associações científicas da educação; 3) Processos de participação dos familiares e da própria comunidade nos rumos da escola; 4) Busca de aproximação com a vida social; 5) Estímulo ao desenvolvimento da autonomia dos professores; 6) Atenção voltada para a construção permanente de processos democráticos na escola (2006: 20). Nesta direção, as experiências que hoje são realizadas em diferentes localidades voltadas para a articulação da educação com as demais políticas públicas assim como com a própria dinâmica política e cultural da cidade expressam possibilidades de construção não apenas de ações intersetoriais ou interdisciplinares, mas de experiências políticas e pedagógicas que sublinhem a dimensão educadora da cidade como movimento instituinte. O que envolve um amplo e diversificado campo de experiências que tanto remete às reflexões e orientações resultantes do I Congresso Internacional 36 das Cidades Educadoras realizado em Barcelona em 1990 como àquelas que pautam as produções do Instituto Paulo Freire e as tendências de articulação da educação com o espaço da cidade em dezenas de municípios com nítidas preocupações com a construção de uma esfera pública alicerçada em novas relações entre as diversas esferas da realidade social e as ações coletivas. Cada instância do Poder Público ligada à educação, cada escola, cada professor ou professora, cada coordenador ou coordenadora deve estar inserido em um projeto político-pedagógico que expresse a intencionalidade de garantir o reconhecimento entre todos esses atores e atrizes. Sem esta intencionalidade, não será possível para a escola, assim como para a cidade, converter seus problemas em soluções, seus conflitos em projetos coletivos (VIANNA, 2004:33). Prevista em diferentes instâncias das políticas públicas, conforme sinalizam Westphal e Mendes (2000), a intersetorialidade desponta como uma resultante de esforços contraditórios que imprimem marcas ao mesmo tempo democráticas, participativas e coletivas como as que derivam de uma hegemonia cultural e política que afirma a necessidade de uma lógica gerencial mais técnica e ocupada com a gestão interinstitucional. A dimensão instituinte desses processos reside no potencial de construção de espaços e experiências que ultrapassem as concepções de intersetorialidade e de territorialidade que restrinjam a esfera política, particularmente através de sua subordinação à lógica do consumo que atravessa hoje o campo das políticas públicas. A preocupação com a dimensão instituinte das práticas sociais e profissionais que se forjam na articulação e aproximação entre as políticas públicas serviu para produzir outro tipo de relação com a paisagem. Assim os objetivos desta pesquisa foram delimitados ao longo da própria caminhada, nos contatos com uma experiência repleta de sinais e convites, aberta às descobertas e aos perigos que ela encerrava. Não se constituíram, portanto, em propósitos fechados, ao contrário, em possibilidades que a pesquisa 37 abriu em consonância com a dinâmica da realidade e da própria experiência em curso: Investigar as relações entre a construção de práticas intersetoriais e as particularidades das políticas públicas de educação, assistência social e saúde em Niterói. Analisar as relações entre a experiência de intersetorialidade das políticas públicas em Niterói e os processos políticos e culturais de gestão da cidade. Analisar as particularidades da relação entre Estado e sociedade civil nos processos institucionais de construção das políticas voltadas para a infância em Niterói. Deste modo o resgate da trajetória histórica dessas ações intersetoriais constitui o principal movimento no processo de pesquisa. Movimento que situa a apreensão da realidade não como uma decorrência de fatores exatos, mas como singularidade que se constrói a partir de relações contraditórias e dinâmicas, nas quais se revelam os traços universais dos processos sociais: a paisagem local e suas marcas globais. A condução da pesquisa se deu a partir de processos de aproximação à realidade sustentada no reconhecimento da importância das categorias teóricas como recursos intelectuais que abrem perspectivas de análise e de reflexão e não como mecanismos de enquadramento. Deste modo, no primeiro capítulo, apresentamos os diálogos estabelecidos com as contribuições de Milton Santos (1997a, 1997b e 2007) e de Henri Lefebvre (1999, 2001 e 2004) para situarmos a centralidade da cidade e do território para a compreensão de como que as dinâmicas da produção e da reprodução social incidem sobre os processos de formulação e condução das políticas públicas, articulando a esfera local aos fenômenos globais na atualidade. Tomando como referência central as reflexões de Gramsci resgatamos parte do percurso intelectual em torno da relação entre Estado e sociedade civil para nos aproximarmos de suas manifestações concretas na 38 cidade, ressaltando-lhes a condição de territórios da política. Procuramos deste modo, apresentar sobre quais perspectivas abordamos as relações sociais, econômicas e culturais da cidade de Niterói, tratando de suas particularidades sem perder de vista suas vinculações à esfera da produção e da reprodução social assim como às relações entre sociedade política e sociedade civil. A partir deste esforço teórico apontamos para a necessidade de resgate das trajetórias das políticas públicas na cidade como espaços contraditórios onde se traduzem tanto as disputas pela hegemonia quanto as estratégias de reprodução da força de trabalho e de suas condições de vida e modos de sociabilidade. Dando destaque às funções intelectuais que os profissionais das políticas públicas podem desempenhar neste sentido. As abordagens sobre a intersetorialidade, a educação e a infância adquiriram um significado especial no percurso da pesquisa, o que se revela no segundo capítulo. A reflexão sobre os significados e alcances da intersetorialidade serviu para ampliar os horizontes de tratamento das experiências que se forjam na cidade de Niterói. O resgate da política educacional permitiu situar como a dinâmica de articulação do global e do local ganha contornos particulares neste campo de política pública. E procuramos considerar, a parir de diferentes perspectivas, como que a produção sociológica e filosófica situa a infância, possibilitando um resgate de como vem se forjando a infância no Brasil a partir de diferentes políticas públicas e formas de intervenção do Estado e da sociedade civil. Assim como podemos também pensar a infância, a partir das reflexões de Benjamin (1985) e Agamben (2005), como metáfora política capaz de contribuir qual a análise das dimensões instituintes da experiência construída em Niterói. No terceiro capítulo, o resgate da história de Niterói foi fruto de uma pesquisa bibliográfica fortemente marcada pelas reminiscências de uma infância e juventude que se constituíram em memória da cidade. A singularidade das águas escondidas brotou por entre as idas e vindas da política partidária e dos esforços de construção das políticas públicas e de suas redes. Em seguida resgatamos as diferentes pontas da trama que 39 favoreceu a organização da Ação Intersetorial, situando as particularidades de cada política setorial na cidade. A experiência da Ação Intersetorial foi apresentada e analisada a partir das narrativas de vários de seus participantes no sentido de destacar como os movimentos produzidos na área de educação e por um leque de profissionais potencializam o movimento da educação em direção à cidade. Prosseguindo, destacamos as infâncias que são produzidas socialmente com a dinâmica das políticas públicas e das redes na cidade para afirmarmos a dimensão instituinte dessa experiência em consonância com a infância da política na cidade. A condução da pesquisa envolveu processos que contêm particularidades importantes do ponto de vista metodológico como: o levantamento e análise documental; a realização de um curso de extensão universitária como parte das Atividades Programadas de Pesquisa (disciplina obrigatória no curso de doutorado) que articularam o processo de entrevistas com o de reflexão parcial das aproximações entre a base conceitual da pesquisa e a dinâmica da cidade; e a própria condução das pesquisas e análise das narrativas a partir das reflexões produzidas nos processos de orientação e de produção textual dos principais temas abordados nesta investigação. A pesquisa documental se deu a partir do levantamento dos Relatórios de Gestão das Secretarias de Assistência Social e de Saúde nos anos de 2006, 2007 e 2008, do Plano Municipal de Educação de Niterói, da Lei Orgânica do Município, das Atas dos Conselhos Municipais de Educação, Assistência Social e dos Direitos da Criança e do Adolescente nos períodos de 2006, 2007 e 2008, da Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação, dos Relatórios do Colegiado Intersetorial referentes aos anos de 2006 e 2007, dos Cadernos de Subsídios para a elaboração do Plano Municipal de Educação do Plano Diretor da Cidade de Niterói, das Deliberações das Conferências Municipais de Assistência Social e dos Direitos da Criança e do Adolescente (da segunda até a sétima). As principais preocupações que orientaram a coleta e análise dos dados e 40 informações estavam relacionadas ao esforço de compreensão da dinâmica das políticas e ações dos sujeitos sociais no tocante às particularidades da cidade e as tendências contemporâneas de organização das políticas públicas. Neste sentido as preocupações que presidiram esta análise estavam relacionadas com as temáticas da: descentralização, intersetorialidade, organização e composição das redes de serviços, relação entre o público e o privado, concepções e diretrizes que orientam as políticas na cidade, principais marcos das políticas públicas e referências à infância. Durante o processo de pesquisa desenvolvemos uma Atividade Programada de Pesquisa em 2008/2 que subsidiou o processo de coleta de dados e de realização das entrevistas com as discussões dos principais temas referentes à pesquisa. Esta atividade contou com a participação de profissionais e estudantes das áreas de Serviço Social e Educação e que contribuíram significativamente com o processo de aproximação aos diferentes personagens que participaram da experiência intersetorial assim como de diferentes instituições da cidade. O curso foi realizado através de uma parceria do Grupo de Pesquisa Aleph coordenado pela Professora Célia Linhares da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) com o “Projeto de Extensão Educação Pública e Serviço Social” da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), oferecido em Niterói na Faculdade de educação da UFF com a ciência e aprovação da Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. O curso “A interface das políticas sociais de educação, assistência e de atenção à criança e ao adolescente no município de Niterói” contou com a participação da Professora da FME e mestranda em Educação pela UFF, Márcia Nico Evangelista, e da Professora Rosana Ribeiro, assistente social da Coordenação de Educação e Saúde da FME, que atuou na Ação Intersetorial de Niterói, e versou sobres as seguintes temáticas: Estado e sociedade civil; narrativas; experiência, políticas de educação, assistência social e criança e adolescente; projeto político-pedagógico, plano 41 municipal de educação; infância, cidade e política; controle social e conselhos de políticas públicas (ver proposta completa no Anexo 1). O resgate da trajetória da Ação Intersetorial se deu a partir da compreensão da importância das narrativas como forma de socialização das experiências profissionais. Neste sentido construímos um roteiro geral que permitia a introdução de diálogos a partir do desenvolvimento da própria entrevista, buscando desta forma apreender, ao máximo, elementos que pudessem orientar novos contatos e produzir novas descobertas. Os eixos estruturadores das entrevistas foram: 1- A caracterização do profissional com destaque para sua trajetória de formação, na rede municipal, função que desempenha ou já desempenhou, vinculação com a cidade e com a experiência de intersetorialidade. 2- A compreensão do trabalho que cada profissional realiza, destacando as formas de organização e condução do trabalho, a equipe com quem atua e as atividades desenvolvidas. 3- As informações e percepções acerca da política setorial e da intersetorialidade. É neste momento que o entrevistado aborda a composição e história da rede, da secretaria, da ONG ou do Conselho onde atua. São informações que contribuíram para montar um mosaico das ações e dos documentos que ainda deveriam ser consultados. 4- A análise da cidade e das gestões municipais. Procuramos explorar neste momento a compreensão dos entrevistados sobre Niterói, as administrações municipais e suas particularidades frente aos partidos políticos e as principais particularidades da dinâmica cultural e política da cidade. 5- A trajetória da experiência de intersetorialidade. Neste momento da entrevista os profissionais situam como tomaram conhecimento das ações intersetoriais, de que atividades participaram e como participaram, situam as particularidades dos territórios e apontam os 42 atores envolvidos. Procuramos neste momento da entrevista compreender as diferentes redes e que sujeitos sociais e integrantes deveríamos também entrevistar em outro momento. 6- Por último os entrevistados abordam as políticas para a infância na cidade. Nesta parte da entrevista procuramos durante as entrevistas procuramos apreender a dinâmica das políticas, das instituições e dos territórios. As entrevistas não foram conduzidas com o objetivo de realizar uma análise do discurso, aferir categorias e suas freqüências, mas como forma de aproximação à realidade das experiências de intersetorialidade e da política pública na cidade conduzida a partir das narrativas de quem participou e forjou nesse processo uma experiência que fosse capaz de transmitir. A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre, as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais, contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e que conhece suas histórias e tradições (BENJAMIN, 1985: 198-9). A condução metodológica da pesquisa, portanto, apoiou-se no reconhecimento e valorização das categorias como processo que auxilia a reprodução no plano do pensamento do próprio movimento da realidade, que serviram para estabelecer as mediações entre as experiências em curso na cidade e os processos sociais, políticos e econômicos mais gerais de forma aberta, ou seja, como possibilidade de narrar teórica e criticamente uma experiência a partir da articulação das narrativas resultantes do encontro de um “viajante” que nasceu e vive em Niterói com os “homens que ganham sua vida honestamente” na cidade. As entrevistas foram analisadas a partir de um mosaico tecido a partir das narrativas que indicavam fenômenos, processos e sujeitos, e que ao final 43 dessa montagem apresentava os diversos entrelaçamentos das experiências intersetoriais e que nos possibilitou: 1- Resgatar as diferentes experiências intersetoriais e suas linhas de proximidade e diferenciação; 2- Elencar os protagonistas dessas experiências ampliando o leque de entrevistados; 3- Reunir e confrontar com os documentos mais significativos de cada área; 4- Confrontar as particularidades das narrativas em relação a cada política setorial e delimitar os momentos históricos em que são produzidas alterações nos seus rumos. Ao final do processo de contatos e realização das entrevistas (de março de 2008 até junho de 2009) tínhamos um mosaico construído a partir da análise documental, das narrativas e das discussões realizadas ao longo do primeiro curso de extensão, conforme consta na tabela que se segue: QUADRO I Relação da quantidade de entrevistados por vínculo institucional e tipo de inserção. Vínculo institucional Tipo de inserção Quantitativo Equipe da Coordenação de Regional Centro (Centro-Norte) 01 Educação da Regional Largo da Batalha (Leste) 01 de Regional Santa Rosa (Sul-Leste) 01 Regional Fonseca (Norte) 01 Regional Itaipú (Leste-Oeste) 01 Representante da Educação – Coordenação 01 Fundação e Saúde Municipal Educação (FME) Colegiado da Ação Intersetorial de Educação e Saúde Coordenações da Fundação Coordenação de Educação Especial 01 Municipal de Educação (FME) Coordenação de Estudo e supervisão Escolar 01 Coordenação de Educação Infantil 01 Programa Criança na Creche Coordenação do Programa da FME Creche Profissionais que atuaram na Regional Centro (Centro-Norte) Criança na 01 04 44 Ação Intersetorial Regional Largo da Batalha (Leste) 01 Regional Santa Rosa (Sul-Leste) 01 Regional Fonseca (Norte) 01 Regional Itaipú (Leste-Oeste) 01 Governamentais 01 Não-Governamentais 01 Profissionais que atuam em Regional Centro (Centro-Norte) 01 Organizações Regional Fonseca (Norte) 01 Governamentais Regional Itaipú (Leste-Oeste) 02 Conselhos Tutelares Conselheiros do Conselho Tutelar 1 02 Equipe técnica do Conselho Tutelar 1 01 Conselheiros do Conselho Tutelar 2 01 Equipe técnica do Conselho Tutelar 2 02 Conselheiros do Conselho Tutelar 3 02 Equipe técnica do Conselho Tutelar 3 01 CRAS 04 Juizado da Infância Equipe técnica 01 Conselhos Municipais Educação 01 Assistência Social 01 Criança e Adolescente 02 Participantes do fórum DCA 01 Secretaria Municipal de Educação 01 Secretaria Municipal de Assistência Social 01 Equipe de assessoria 01 Participante da Rede Municipal de atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói Secretaria Não- Municipal de Assistência Social Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA) Secretários Municipais Sub-Secretaria do Orçamento Participativo 14 TOTAL 46 Fonte: Elaborado pelo próprio pesquisador. Outras instituições foram também identificadas como importantes para o processo de pesquisa, contudo não conseguimos estabelecer o contato com os participantes indicados ao longo das narrativas de vários de nossos 45 entrevistados, enquanto que em outras situações os contatos foram feitos, mas por motivos diversos as entrevistas não puderam ser realizadas. A condução da investigação e a análise do material empírico reunido possibilitaram o resgate de uma experiência construída por diferentes sujeitos e que procuramos apresentar a partir de uma narrativa teórica que sublinhasse também a dimensão instituinte do processo de produção de conhecimento. Foi com esta intenção que desde os primeiros momentos de orientação coletiva no doutorado no campo de confluência “Política públicas, movimentos instituintes e educação”, procuramos dar ao processo investigativo feições coletivas e criativas. Ia a filha muda guiando o pai cego quando, depois de muito caminhar, chegaram ao deserto. E sentindo o pai a areia nas sandálias acreditou ter chegado ao mar e alegrou-se. O mar estava para sempre gravado na sua memória, disse ele à filha que nunca o havia visto. E contou como podiam ser altas as ondas, e obedientes ao vento. E como, coroadas de espuma, faziam e desfaziam seu penteado. O mar, contou ainda, ocupa nossos olhos por inteiro e, se o vemos nascer, o fim não vemos. O mar sempre nos move e sempre está parado. O mar, à noite, veste-se de lua. O mar pareceu duas vezes belo à menina, pelo que era e pelas palavras do pai. Olhou à sua frente, viu as altas dunas e chamou-as ondas no seu coração. Elas obedeciam ao vento e no alto entregavamlhe seus cabelos para que as desmanchasse com dedos ligeiros. Sentaram-se os dois, o pai olhando no escuro o mar que guardava na memória, a filha deixando que o mar de luz sem fim ocupasse todo o espaço do seu olhar. Parado diante dela, ainda se movia. E quando a noite chegou, vestiu o cetim que a lua lhe entregava. Dormiram ali os dois, pai e filha, ditados na areia, sonhando com o que haviam visto. E ao amanhecer seguiram caminho, afastando-se do deserto. Andaram, que o mundo é vasto. Até que um dia, numa curva do caminho desembocaram na praia. O velho, sentindo a areia nas sandálias, alegrou-se, certo de ter chegado ao deserto, talvez o mesmo deserto que atravessara quando jovem. Sentaram. O deserto, disse o pai à menina, é filho do sol. E a menina olhando à frente, viu os raios deitando na superfície, partindo-se mosaico de sol, e sorriu. Os pés afundam no deserto, acrescentou o pai, e ele acaricia nossos tornozelos. A menina soltou sua mão da dele e foi molhar os pés, deixando que a água lhe acariciasse os tornozelos. O deserto, disse ainda o pai, é plano e como um lençol ao vento, sem montanhas, ondeando nas costas das dunas. A menina correu o olhar pela linha do horizonte que nenhuma montanha interrompia, viu as ondas, e em seu coração chamou-as dunas. 46 No deserto, disse ainda o pai à filha tentando explicar o mundo sobre o qual ela não podia fazer perguntas, anda-se sempre em frente porque não há caminhos, e a pegada do pé direito já se apaga quando o pé esquerdo pisa adiante. Levantaram-se, caminhando. E porque o velho pisava seguro no deserto da sua lembrança, e porque a menina pisava tranqüila no deserto que lhe havia sido entregue pelo pai, seguiram adiante serenos por cima da água que lhes acolhia os pés acariciando os tornozelos, enquanto suas pegadas se apagavam no caminho inexistente (2005: 209-11). Destacamos, assim, com a poética ajuda de Marina Colassanti em “No caminho inexistente”, que o conhecimento é uma experiência humana sempre inconclusa e que pode ser potencialmente criadora e criativa se apoiada em aberturas e partilhas. 47 Capítulo 1- A cidade como território da produção e da política. 1.1 – O local e o global na delimitação dos territórios da produção e da reprodução social. Antes de tornar-me cidadão do mundo, fui e sou um cidadão do Recife, a que cheguei a partir do meu quintal, a que se juntaram ruas, bairros, cidades. Quanto mais enraizado na minha localidade, tanto mais possibilidades tenho de me espraiar, me mundializar. Ninguém se torna local a partir do universal. O caminho existencial é inverso. Eu não sou antes brasileiro para depois ser recifense. Sou primeiro recifense, pernambucano, nordestino. Depois, brasileiro, latino-americano, gente do mundo. Paulo Freire, 1995. Nos dias atuais, em que profundas transformações ocorrem em escala planetária com uma rapidez marcada temporalmente em minutos ou segundos, a relação entre o local e o global pode parecer uma simples antinomia. Talvez soe anacrônico pensar no badalar dos sinos da igreja como modo de marcar as horas quando frações de segundo são registrados por relógios digitais com precisão atômica em esquinas nas quais transitam, por hora, quase a população inteira daquelas pequenas cidades em que a passagem do tempo tem uma sonoridade quase que ritual. Contudo, se a velocidade com que ocorre hoje o deslocamento de grandes contingentes de pessoas, as transformações culturais e a própria paisagem do planeta, demonstra como essas alterações assumem feições globais, seja pelo alcance, seja pela intensidade, não se pode afirmar que essas ondas atravessam os sete mares transformando em uma Atlântida contemporânea os modos de vida locais. Não se trata de uma maré unidirecional e linear imposta pela globalização econômica e cultural, mas de um movimento composto de 48 continuidades e descontinuidades das formas que a sociedade assume. “Como existiriam descontinuidades absolutas sem continuidades subjacentes, sem suporte e sem processo inerente? Reciprocamente, como existiria continuidade sem crises, sem o aparecimento de elementos ou de relações novas?”, argüi Lefebvre (2004: 15-6) ao tomar essa relação como central para a compreensão da “sociedade urbana” como uma possibilidade teórica e prática à forma ampliada que tomou o processo de industrialização. Processo que não destituiu o campo de significado e importância na dinâmica social, mas o subordinou a uma nova lógica diante da cidade, em um modo de vida em sociedade de novo tipo: urbano. As fronteiras tradicionais entre o campo e a cidade e entre as próprias cidades, são redesenhadas historicamente por fluxos que encerram continuidades e descontinuidades do ponto de vista cultural, econômico e político. Não se trata de identificar uma tendência urbanística - segundo Lefebvre, uma forma de subordinar o urbano ao industrial e seus modos peculiares de intervir racionalmente sobre o espaço -, mas o surgimento de uma sociedade urbana que em função da industrialização não só reorganiza diferentes espaços como os articula de modo a atender às exigências de uma lógica cada vez mais global que ao expandir os modos próprios de organização da produção capitalista também potencializa as suas contradições. O local, deste modo, não deve ser tomado como o arcaico em confronto com o moderno, nem tão pouco o diminuto diante do gigantismo da globalização, mas uma dimensão da organização da vida em sociedade na qual se preservam e se alteram relações sociais não mais por necessidades que lhes sejam exclusivas, mas por aquelas que, sob formas heterogêneas, se articulam aos processos globais. Se o local não deve ser deduzido do global, também não se deve abstrair o global da realidade local. O elemento de unidade dessa relação não estaria assentado, assim, nas possíveis identidades ou recíprocas condensações, mas na constituição de uma sociedade urbana que articula o local e o global como conseqüência de um amplo processo de industrialização e que, por não se esgotar nele, contém 49 outras possibilidades de interpretação e ação sobre a realidade sócioespacial. O êxodo do campo para as cidades, as grandes concentrações populacionais em metrópoles, a planificação do espaço habitado, a especulação fundiária e a tendência à segregação sócio-espacial da pobreza são processos que compõem o fenômeno urbano, que articulam o campo à cidade assim como as cidades de pequeno e grande porte às metrópoles e megalópoles, parte de um crescente incremento da capacidade de produção e da exacerbação do consumo que a sociedade experimentou no último século. A vertiginosa capacidade de expansão do modo de produção capitalista constituiu-se numa enorme força transformadora da paisagem, dos viventes e dos próprios valores sociais. Uma força “incontrolável e destrutiva”, conforme sublinha Mészaros (2002), haja vista mover-se pela lógica da acumulação incessante do capital, pondo em risco, de forma estrutural, através de grandes ondas cíclicas, as próprias bases materiais de sua existência: a natureza e os homens. A industrialização, nesta perspectiva, não se restringe a uma das etapas do percurso de expansão do capitalismo. Trata-se, antes de tudo, da singularidade que adquire o modo de organização das relações e dos processos produtivos na sociedade capitalista madura, capaz de gerar cada vez mais valores de uso necessitando cada vez menos determinados meios de produção, sobretudo, a força de trabalho humana, convertendo, em escala crescente trabalho vivo em trabalho morto. É o que podemos chamar de uma produção que libera o homem não como expressão de sua liberdade, mas de acirramento de seu aprisionamento, já que possui cada vez menos opções de viver do trabalho, ainda que do trabalho opressor e alienante. O aumento progressivo da capacidade de produção de bens consumíveis tornou-se possível não apenas em decorrência de condições econômicas, mas de sua combinação com determinadas decisões políticas, como bem se observa nas estratégias de superação da crise de superacumulação dos anos 70 no século passado com as formulações em 50 torno do ideário neoliberal e da reestruturação produtiva (ANTUNES, 1999). No entanto, a lógica que movimenta esse sistema não está apoiada na produção em si de valores de uso, mas na acumulação que advém da produção de valores de uso que contenham valor de troca estendido. A sociedade que se consolida a partir deste tipo de industrialização tem uma dupla dimensão. De um lado adquire uma enorme capacidade de produção de bens e de riqueza material que, em virtude da lógica contraditória da acumulação incessante, devem durar cada vez menos, além de não serem de usufruto direto daqueles que os produzem. De outro, produz uma quantidade descomunal de objetos e artefatos cuja finalidade essencial não é a satisfação, em primeiro lugar, das necessidades sociais, mas a da própria acumulação, ou seja, da própria reprodução e ampliação do capital. A produção de mercadorias que se descolam de forma cada vez mais veloz e que “oprimem” aqueles que as produziram. A produção de valor de troca que subsume o valor de uso ao consumo alienado e alienante. Se, por um lado, a cidade é o espaço onde se materializa a produção de diferentes valores, materiais e simbólicos, sendo sua própria existência a expressão objetiva dessa produção nas suas ruas, praças, monumentos, edificações, instituições sociais, equipamentos públicos e fábricas, ela também é um espaço regido e atravessado pela lógica da produção dos valores de troca, ou seja, pelas relações mercantis de compra e venda, pelo modo de vida social voltado para produzir e reproduzir a própria capacidade de acumulação. A cidade não é apenas o espaço da produção em sentido estrito, mas das suas condições de existência e continuidade, da reprodução. Como produção e reprodução social constituem uma unidade do ponto de vista teórico e histórico5, a cidade também materializa e reproduz suas relações constitutivas. 5 Apoiamos nossa concepção na formulação que caracteriza o pensamento de Marx sobre a unidade dialética entre as esferas da produção e da reprodução social: “Qualquer que seja a forma social do processo de produção, tem este que ser contínuo ou de percorrer, periódica e ininterruptamente, as mesmas fases. Uma sociedade não pode parar de consumir nem produzir. Por isso, todo 51 As relações de produção são essencialmente relações sociais que organizam o modo pelo qual uma sociedade produz e se reproduz enquanto organismo social, dinâmico e contraditório. Assim a reprodução das relações sociais de produção é ao mesmo tempo reprodução das contradições de classe, em suas dimensões econômicas, culturais e políticas. A materialização dessas relações, no entanto, tem sido compreendida de forma reducionista, circunscrevendo a produção à fábrica, a ideologia às instituições sociais e a reprodução social ao Estado e à família como locus privilegiado da reprodução da força de trabalho. Deste modo, a economia, as ideologias e o poder aparecem como dimensões da vida social que se mantêm restritas a determinadas instituições e espaços. Tanto as reflexões de Antonio Gramsci sobre a relação entre o Estado e a sociedade civil (2007) como as de Michel Foucault (1979) sobre a relação dos micro-poderes com os processos de dominação e disciplina do corpo apontam o quanto essas relações apresentam muito mais porosidades e interfaces entre si do que a rigidez que tais análises mecanicistas sugerem. Destarte, a cidade é antes de tudo um espaço que combina instituições e territórios de forma não a estabelecer fronteiras rígidas, mas relações e processos sociais híbridos, ou seja, não necessariamente coesos e unitários, embora subordinados a uma lógica dominante de organização da vida social, do tempo e do espaço: a lógica urbana. A cidade expressa como que espacial e socialmente essas relações são forjadas em cada momento histórico e a partir de condições préexistentes, revelando que o espaço não é um vazio a ser ocupado, mas, sobretudo, um “espaço político, lugar e objeto das estratégias, uma projeção do tempo, reagindo sobre ele e permitindo dominá-lo, e, por conseguinte, atualmente, explorá-lo até a morte” (LEFEBVRE, 2004: 50). Ao passo que implica formas concretas de ocupação e uso do espaço, constituindo-se desse modo como um território com suas dimensões geopolíticas, é também processo social de produção, encarado em suas conexões constantes e no fluxo contínuo de sua renovação é, ao mesmo tempo, processo de reprodução“ (1998:661). 52 constituída por vários territórios, visto que não se habita e vive na cidade de modo único e homogêneo. As classes sociais, suas frações, os movimentos sociais urbanos, os segmentos populacionais compostos por crianças, jovens, mulheres, negros e idosos enquanto sujeitos coletivos produzem estratégias e ações políticas que têm impactos diferentes sobre o espaço. Do mesmo modo que em relação a eles são também produzidas respostas diferentes, seja por parte de outros segmentos sociais, dos gestores públicos ou dos aparatos repressores e legisladores. As práticas de segregação sócio-espacial têm se caracterizado, neste sentido, uma constante na história das cidades, assim como a constituição de modos de vida que se particularizam de acordo com os bairros, nos centros comerciais ou de poder, nas favelas e nas periferias. É a partir da centralidade que têm os modos próprios de relacionamento dos sujeitos sociais com o espaço que Milton Santos concebe o território. O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população (2007: 96-7). A cidade ao se constituir, a partir de determinadas relações sociais, como espaço da produção e da reprodução social manifesta seu dinamismo e historicidade através de uma articulação complexa de diferentes territórios que se organizam mediante a combinação de diferentes níveis da divisão do trabalho, não respondendo a uma lógica linear. A cada momento, cada lugar recebe determinados vetores e deixa de acolher muitos outros. É assim que se forma e mantém a sua individualidade. O movimento do espaço é resultante deste movimento dos lugares. Visto pela ótica do espaço como um todo, esse movimento dos lugares é discreto, heterogêneo e conjunto, “desigual e combinado”. Não é um movimento unidirecional. Pois os lugares assim constituídos passam a condicionar a própria divisão do trabalho, sendo-lhe, ao mesmo tempo, um resultado e uma condição, senão um fator. Mas é a 53 divisão do trabalho que tem a precedência causal, na medida em que é ela a portadora das forças de transformação, conduzidas por ações novas ou renovadas, e encaixadas em objetos recentes ou antigos, que as tornam possíveis. (SANTOS, 2002: 133). Historicamente a relação entre o campo e a cidade tem sido fundamental para a compreensão dos processos de especialização da divisão do trabalho, em especial a divisão entre o trabalho material e o intelectual, entre as funções de produção e as ligadas à sua organização e controle. “À cidade incumbe o trabalho intelectual: funções de organização e de direção, atividades políticas e militares, elaboração do conhecimento teórico (filosofia e ciências)” (LEFEBVRE, 2001: 28-9). Mas a divisão do trabalho não se expressa apenas a partir da separação entre o campo e a cidade. Ao longo da história ela foi decisiva para promover determinadas especializações no interior da própria cidade assim como entre as cidades. Essa precedência causal, como Milton Santos sinaliza, da divisão do trabalho reporta à importância que a organização das condições de produção da vida - sejam elas materiais ou espirituais - tem no desenvolvimento do próprio homem, conferindo - em particular nos marcos de nosso campo de investigação - ao trabalho, à linguagem, à política e à educação uma dimensão ontológica6, que marca a própria trajetória do que concebemos 6 O desenvolvimento das forças produtivas ao longo da história da humanidade tem sido uma constante que não expressa, de forma alguma, uma trajetória linear ou resultante apenas de um suposto e idealizado “progresso humano”. Antes e ao contrário, tem sido o resultado de intensas disputas e exercícios de poder, ou seja, não se trata apenas de uma dimensão técnica da vida social, mas de uma dimensão técnica indissociável da esfera política, dos processos de exercício do poder em diferentes instâncias, sejam elas macro ou micro-sociais. Neste percurso cumpre papel decisivo as mudanças sofridas pela capacidade humana de se relacionar com o ambiente modificando-o em favor da satisfação das necessidades de sobrevivência dos homens. Processo que é impensável como desarticulado das relações sociais dominantes em cada época histórica. Neste sentido, ao abordarmos a relação entre as esferas da produção e da reprodução social reconhecemos em determinadas instâncias da vida social uma dimensão ontológica, que particulariza o ser social e imprime, sobretudo, às práticas humanas um significado social, coletivo e histórico. Desse desenvolvimento, contraditório e pleno de continuidades e descontinuidades, e, mesmo sobre ele, resultam e incidem diferentes complexos da vida social: a linguagem, o Estado, a ideologia, a filosofia, as artes e as ciências, dentre tantas outras que conformam o vasto e implicado campo das relações sociais (LUKÁCS, 1979). Para efeito, de nosso esforço de pesquisa, não podemos ignorar essa complexidade, mas situamos aquelas que são mais centrais à compreensão e abordagem de nossas inquietações investigativas. Por essa razão, apontamos o trabalho, a política, a linguagem e a educação para enriquecer a abordagem que estamos realizando sobre a relação entre produção e reprodução social na compreensão do território. 54 como processo de humanização. Sinalizamos, assim, os riscos de se pensar o relacionamento do homem com o espaço, enquanto um ser social que produz distintas formas de criação do espaço habitado, seja ele a aldeia, a cidadela ou a cidade, separando as condições de produção de sua existência de sua própria forma de viver. Como pensar a cidade como uma pluralidade de territórios, ou seja, em suas diversas formas de pertencimento e uso, sem considerar o espaço habitado como expressão dos modos de organização das condições de produção e dos meios e processos que lhe dão sustentação? Como pensar a cidade como espacialização da divisão do trabalho sem considerar sua relação com a espacialização das formas de transmissão dos valores, das crenças e das idéias? Por isso a importância de compreendermos a cidade como território onde o trabalho, a linguagem, a política e a educação, dentre outras instâncias da vida social, constituem a trama cotidiana que expressa à unidade entre a produção e a reprodução social. Vale resgatar, neste sentido, na minuciosa investigação de Lewis Mumford sobre a cidade na história, a seguinte ilustração: A própria noção de uma divisão fixa do trabalho, de fixação de muitas atividades naturais numa única ocupação de vida, de confinamento a um único ofício, data provavelmente como indica Childe, da fundação da cidade. O homem urbano, por essa vasta expansão coletiva do poder e controle do ambiente, pagou com uma contração da vida pessoal. A antiga comunidade da Idade da Pedra, penetrando na cidade, foi desmembrada em dezenas de partes: castas, classes, profissões, ofícios, artes. Conforme se pode admitir, a primeira prova de especialização e divisão do trabalho talvez remonte à época paleolítica, nos poderes especiais exercidos pelo mágico ou chefe do ritual; e isso pode ter ocorrido numa época em que talvez houvesse também alguma especialização ocupacional entre aqueles que se dedicavam à mineração ou a lascar a pedra. Hocart sugeriu que a divisão do trabalho foi, originalmente, a divisão hereditária das funções do ritual; e como os povos primitivos consideram o ritual como não menos importante que o trabalho, ou melhor, como a forma de trabalho mais eficaz, não há necessidade de presumir que as duas formas de especialização se excluíssem; pelo contrário, deveríamos esperar que se misturassem e confundissem, assim como os ritos mágicos de fertilização se misturavam com a prática da semeadura e a irrigação das colheitas (2004:118). 55 Na história das cidades as práticas sociais, sejam elas as destinadas aos ritos, ao trabalho, à transmissão dos valores e da cultura, ao poder decisório, à proteção interna das pessoas e contra as invasões, sempre se manifestaram, de acordo com as relações sociais dominantes em uma determinada organização sócio-espacial. Para Mumford, a trajetória milenar que vai do povoado, dos esconderijos nas cavernas até as aldeias e, por fim à cidade, revela que a “vida humana agita-se entre dois pólos: movimento e repouso”. A necessidade de fixação não anula o desejo à expansão e à descoberta. O novo atrai, mas também impõe temor. O ritual adquire significado histórico quando a relação do homem com o espaço passa a ser movida pela necessidade de se exercer um domínio, por um tipo de uso com expectativas de resultados. A ritualização da vida em sociedade cria novas formas de relacionamento com o espaço, uma forma singular de experiência espaço-temporal. O culto aos mortos e aos deuses, os jogos, as guerras e as festas passam a inscrever na dinâmica da vida social modos próprios, em cada cultura ou povo, de relacionamento com a organização da produção, com o trabalho. Assim como forjam códigos e canais de comunicação que se mesclam à linguagem cotidiana, criando formas de comunicabilidade decisivas para a produção dos sentimentos de pertencimentos, para a delimitação dos territórios. Vale ressaltar que em diferentes períodos históricos a língua se constituiu no fator preponderante para a identificação de um povo e o auto-reconhecimento de uma nação. Mas se o rito pode ser tomado como uma forma de aproximação de práticas sociais que possuem naturezas diferentes, também pode ser a chave para a compreensão de muitas de suas cisões. Se o ritual em torno da fertilização se manteve associado ao período de semeadura – traço que podemos identificar como penetrando certas culturas da antiguidade até o século XX – evidenciando que a dimensão espiritual da vida humana está enraizada na vida material, outros ritos foram se dissociando desta materialidade, criando uma esfera da vida social que foi deixando de pertencer ao homem e habitando o reino do divino, não mais “humano”. 56 Alguns ritos passaram a compor um elemento central na passagem da esfera do humano para a esfera divina, do sagrado. A constituição de uma nova instância da vida social: a religião tornou-se decisiva para a separação do homem daquilo que antes lhe pertencia7. As reflexões de Giorgio Agamben abrem uma perspectiva bastante interessante para o adensamento desta forma de abordagem ao problematizar o significado do termo religio do qual deriva a palavra religião, contudo não em seu significado mais usual. O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de separação que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a incredulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” – ou seja, desvinculada da religio das normas – diante das coisas e do seu uso, diante das formas de separação e do seu significado (2007: 66). O religio fundado na separação do homem daquilo que lhe pertencia traz uma dimensão bastante provocativa para nos aproximarmos das diferentes formas e práticas históricas, ao longo do percurso da humanidade, 7 Não poderíamos deixar de nos reportarmos aqui, ainda que pontualmente, às reflexões de Friedrich Engels em “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem” - em que pese as polêmicas contidas no texto, fundamental para a compreensão da ontologia na tradição marxista sobre as inversões que a complexificação da vida social produziu a partir do advento de algumas de suas novas instâncias, contribuindo significativamente para produzir separações entre os homens que se ampliaram a partir de instituições com forte peso na reprodução das relações sociais de produção: “Graças à cooperação da mãos, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar operações cada vez mais complexas, a se propor e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades. À caça e à pesca veio juntar-se a agricultura e mais tarde, a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política e, com eles o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião. Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a seguindo plano, tanto mais quanto numa fase muito recuada do desenvolvimento da sociedade (por exemplo, já na família primitiva) , a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos alheias a realizar o trabalho projetado por ela.” (ANTUNES, 2004: 24-5). 57 que de um modo ou de outro acentuaram a negligência para com as coisas e seu uso, aprofundando os processos sociais de separação dos homens de suas criações, assim como de sua capacidade criadora, e fortalecendo o entendimento de que além de não lhes pertencerem, lhes são estranhas e superiores. Invertendo os significados dos processos sociais, transformando os viventes em coisas e as coisas em entes portadores de ânima. Apoiado na leitura de Walter Benjamin, Agamben compreende o capitalismo como uma religião da modernidade e que, como tal, possui três características fundamentais: é “uma religião cultural cujo fundamento é o cumprimento a um culto e não a um dogma”; esse “culto é permanente” e, por fim, o fato de que “o culto capitalista não se volta para a redenção, mas para a própria culpa” (IBIDEM: 70). Se o capitalismo assume na modernidade o significado de uma “religião”, enquanto promove e amplia a separação do homem dos meios, dos conhecimentos e do produto de seu trabalho, o processo de produção da mercadoria tem uma importante contribuição histórica na promoção dessa condição. Embora nas sociedades divididas em classes, em especial naquelas em que o trabalho deixa de ser um meio de criação e satisfação das necessidades sociais e converte-se a partir da exploração de uma classe sobre a outra em meio de dominação, onde uma classe é obrigada a trabalhar para outra, como nas sociedades escravocratas, é na sociedade capitalista que esta dominação adquire feições inteiramente novas. A diferença central, portanto, apóia-se nos efeitos sobre as formas de consciência que advém de processos que submetem os homens a produzirem sob circunstâncias distintas de opressão, conforme salienta Marx a respeito do mistério da mercadoria. A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente à margem deles, entre os produtos do seu 58 próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. (...) Mas a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantêm relações entre si e com seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias (2006: 94). O fetiche da mercadoria projeta para as demais instâncias da sociedade inversões que, embora oriundas da forma peculiar da produção capitalista, se generalizam como condição mesma da continuidade desse modo de produção. O capitalismo se metamorfoseia em religio, estendendo e ampliando o fetiche oriundo da esfera da produção em modos de relacionamento entre os homens, como modo de vida e dinâmica das instituições sociais. Muito embora o Estado cumpra um papel decisivo na garantia das condições necessárias à continuidade dessa expansão, ela não reside exclusivamente nessa instituição. A família, a escola, as organizações sociais, a vida na cidade em si, são subsumidas à lógica da produção da mercadoria, às relações que caracterizam o mercado, onde a vida passa a gravitar de forma cada vez mais intensiva aos ditames do capital. A expansão desse modo de vida em sociedade que submete a humanidade em maior quantidade e em menor tempo a uma condição de produção de nossa própria desumanidade, visto que separa do homem aquilo que lhe confere a sua condição humana: a capacidade de criar, de viver, de experimentar, de ser livre e de dar significados, está diretamente associada ao desenvolvimento das forças produtivas sob o domínio do capital, ou seja, sob a forma de aperfeiçoamento da capacidade de produzir riqueza em oposição às condições de emancipação dos viventes. 59 (...) A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa – na verdade, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, “totalitário” do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidades de seu “microcosmo” até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos. (MÉSZÁROS, 2002:96) (grifos do autor). A expansão da lógica da mercadoria e a conseqüente subsunção da vida social às necessidades do capital encontraram no processo de industrialização um importante elemento de dinamização espacial da produção capitalista. A industrialização implicou - em diferentes ciclos da expansão do capital - novas especializações do trabalho, que tendencialmente articularam a realidade local a necessidades cada vez mais globais, gerenciadas por empresas e organismos transnacionais e atendendo à dinâmica e às requisições da universalização desse modo de produção de uma desumanização crescente como modo hegemônico de organização da vida em sociedade. As cidades se transformaram forjando práticas sociais cada vez mais organicamente vinculadas à prática industrial. Ainda que em boa parte das cidades não se tenha uma indústria instalada em seu território, seu modo peculiar de organizar a produção e a reprodução social acaba incorporando elementos que instituem modos de vida que são característicos de uma sociedade regida pela industrialização, ou seja, regida pela necessidade incessante de produzir mercadorias que possam ser consumidas em um curto espaço de tempo. Benjamin (2006) na sua análise sobre o significado das passagens parisienses do século XIX atenta para as funções que cumpre do ponto de vista arquitetônico e na esfera do consumo ao afirmar 60 que foram projetadas para a exposição das mercadorias de luxo e que “para expô-las a arte pôs-se a serviço do comerciante”. A vida cotidiana passa a sofrer rápidas e significativas mudanças. As racionalidades próprias da industrialização como a planificação, a burocracia, a tecnologia, a programação e a padronização imprimem à cotidianidade a condição de lugar social essencial à produção e reprodução das condições de exploração que particularizam a vida social organizada em torno da necessidade de uma acumulação crescente. Com especial destaque às transformações urbanas decorrentes das mudanças espaço-temporais que visam garantir a aceleração da rotação do capital como as que têm sido experimentadas desde o final do século passado. As crises de superacumulação, como as vivenciadas nos anos 30 e nos anos 70 têm como justificativa central a formulação elaborada por Marx acerca da lei tendencial da queda da taxa de lucro, ou seja, uma conseqüência do incremento das forças produtivas do capital que se confronta com a sua própria lógica: a necessidade da acumulação incessante. Tais crises, a bem dizer, cíclicas na história da sociedade capitalista produzem: de um lado excedente de capital e de outro excedente de força de trabalho. Ambos precisam ser transferidos territorialmente, impulsionando a movimentação de fluxos de capitais e de mão de obra. O ponto central nesse processo cíclico de crises não é exatamente a existência dos excedentes, mas sob a lógica do capital, a ausência de condições de sua valorização, ou seja, de assegurar o aumento da capacidade de acumulação. A diminuição do tempo de rotação geral do capital torna-se uma estratégia vital à sobrevivência do sistema, o que tem provocado ao longo do século XX uma profunda alteração da paisagem mundial através: das ondas migratórias, das novas fronteiras que se abrem para a exploração do capital – como os diferentes tipos serviços, antes quase que exclusivamente públicos – da exploração indiscriminada dos insumos naturais, da concentração urbana com a criação das megalópoles, da tendência a uma territorialização segregacionista da pobreza, do soterramento das funções 61 dos Estados nacionais e da aceleração dos meios de comunicação e transportes (HARVEY, 2003). Ainda que não respondam exclusiva e passivamente a esta lógica, como deixar de pensar a organização do trânsito, da escola, as estratégias de sobrevivência familiar, os planos diretores das cidades, a especialização da burocracia estatal e os novos contornos da esfera pública, dentre uma infinidade de outros elementos que compõem a vida em sociedade hoje em qualquer cidade, sem levar em conta seus significados na institucionalização de uma cotidianidade tipicamente urbana? Ou então, como parte de uma tendência de universalização da cultura própria e necessária a uma produção cada vez mais ampliada do valor de troca estendido? Uma produção progressivamente dependente das condições de aceleração e primazia do processo de consumo, ou como diria Fredric Jameson, em uma sociedade que sustenta no efêmero, na paródia, no pastiche, no aprisionamento a um eterno presente que se desvencilha do passado, uma lógica cultural própria ao capitalismo tardio, essa etapa contemporânea que se desenvolve a partir das ondas cíclicas de sua crise estrutural, soterrando na produção, na história e na política o sujeito. Creio que a emergência do pós-modernismo está estreitamente relacionada com a emergência desse novo momento do capitalismo tardio multinacional ou de consumo. Acredito também que seus aspectos formais expressem de muitas maneiras a lógica mais profunda desse sistema social específico. Só conseguirei, no entanto, demonstrar isso no tocante a um grande tema, qual seja, o desaparecimento do sentimento da história, o modo como todo o nosso sistema social contemporâneo começou, pouco a pouco, a perder sua capacidade de reter seu próprio passado, começou a viver num presente perpétuo e numa mudança que oblitera o tipo de tradições que todas as formações sociais anteriores, de um modo ou de outro, tiveram que preservar (1993: 43). A prevalência do presente em detrimento de uma capacidade de preservar o passado produz um impacto cultural bastante relevante nas condições de elaboração do pensamento crítico, na formulação de alternativas e proposição de caminhos distintos do que se forjam hoje 62 hegemonicamente. A destituição dos sujeitos de sua capacidade criadora, não necessariamente produtora, ou reprodutora, configura um traço da lógica cultural de nossos tempos, que se amplia em larga escala em função da capacidade que a sociedade capitalista em sua atual fase tem em fixar o consumo como pólo irradiador das formas de pensar e produzir o próprio homem contemporaneamente. Formas que para habitarem o imaginário e pulsarem nas mentes e nos corações, se espraiam pelo espaço, produzindo uma relação de espectador aos homens, subtraindo a potência de sua relação com o espaço, transformando a relação territorial em uma relação passiva e subordina à paisagem urbana. (...) A acumulação dos objetos acompanha a da população e sucede a do capital; ela se converte numa ideologia dissimulada sob as marcas do legível e do visível, que desde então parece ser evidente. É assim que se pode falar de uma colonização do espaço urbano, que se efetua na rua pela imagem, pela publicidade, pelo espetáculo dos objetos: pelo “sistema dos objetos” tornados espetáculos (LEFEBVRE, 2004:31). A visibilidade que as práticas sociais na cidade fornecem hoje não é a paisagem da produção, mas do consumo. Não são mais as fábricas, ou os lugares da produção que predominam na paisagem urbana, mas as vias expressas, os shoppings centers, as lojas, as ruas ornamentadas, ou seja, a esfera da circulação e do consumo. As praças, as feiras, os eventos, os museus, os centros culturais transformam-se, sobretudo, em espaços conde o encontro não forja a troca de experiências, de memórias e de criação, e sim o encontro de infinitos corpos desejosos pelo consumo, das trocas das mercadorias, sejam elas produtos ou força de trabalho. Não o uso, mas o consumo. Não o sujeito, mas aquelas subjetividades assimiladas ao ritual da separação das coisas, do uso, da experiência e da história. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado 63 para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. (AGAMBEN, 2007: 71). Pensar a cidade como espaço onde se materializa a produção e a reprodução social capitalista na atualidade parece apontar para a compreensão de um espaço onde se reproduz cotidianamente um grande ritual religioso que conforme Agamben “não é possível distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa em que o trabalho coincide com celebração do culto” (IBIDEM: 70). Essa reflexão requer, portanto, alguns cuidados. Primeiro para que o sentido dado à produção não se reduza ao da produção de mercadorias, muito embora, seja esse o significado herdado da economia clássica e que de fato orienta os valores e as práticas sociais na sociedade capitalista. A produção numa concepção mais ampla, filosófica, na qual se apóia as idéias de Marx e Engels, alude à noção de criação e não se restringe à esfera econômica, mas envolve as artes, a ciência e toda a gama de práticas sociais. Conforme destaca Lefebvre “a divisão do trabalho que fragmenta a produção e faz com que o processo escape à consciência é ela mesma uma produção, como a consciência e a linguagem” (1999: 46). Destarte, a produção que se manifesta na cidade, em sua cotidianidade, não deve ser pensada apenas em termos da produção econômica, mas como produção das formas de consciência, de comunicação e das relações sociais como um todo. Trata-se da produção de um modo de vida social, da própria vida na cidade. O segundo cuidado a ser observado está diretamente vinculado ao primeiro, e diz respeito à compreensão da produção como instância contraditória da vida social, ou seja, como espaço onde se movimentam, em intensas disputas, formas de produção material e espiritual da vida em sociedade. A hegemonia da produção material e espiritual da vida social no modo de produção capitalista não lhe impõe a condição de modalidade única ou exclusiva. O que observamos nos dias atuais, em virtude do esgotamento 64 do padrão fordista de organização social da produção é a combinação de diferentes formas de produção tidas como arcaicas ou não-capitalistas como a produção por conta própria, artesanal, familiar e mesmo escravista, que passaram a cumprir um importante papel na recomposição da taxa de acumulação que tende, pela própria lógica da produção capitalista, a decrescer. Sendo a produção uma instância contraditória da vida social a produção capitalista, em sentido amplo, não apenas como processo de produção de mercadorias, mas como modo histórico particular de organizar a vida em sociedade contém, ela mesma, as condições de sua negação: o fato de apoiar-se na contínua e progressiva exploração do trabalho e do próprio homem. A produção da condição de exploração do homem só se torna efetiva quando se produz e dissemina a idéia de que esse mesmo homem é “livre” para vender sua força de trabalho. Deste modo, a contradição sobre a qual se acomoda a sociedade capitalista sustenta uma relação de interdependência entre as condições materiais e espirituais da produção que de forma alguma se esgotam na concepção restrita de produção ligada à produção de mercadorias. A principal decorrência desta contradição é a centralidade que passa a ter a compreensão da unidade entre reprodução e reprodução social como constitutiva de uma concepção de produção ampliada. Aqui reside o terceiro cuidado a ser observado: a esfera da reprodução social é ela mesmo espaço de produção das condições de existência e de continuidade de um dado modo de produção8. Configura-se, desta forma, uma perspectiva importante do ponto de vista teórico: cada modo de produção subsiste enquanto preserva suas condições de sua continuidade. A dimensão contraditória da produção deve ser, por essa razão, tomada em sua dimensão ampliada, também como contradição das formas de reprodução social. 8 Cabe sinalizar como a análise gramsciana foi decisiva para a compreensão da relação entre essas esferas ao abordar o período fordista em “Americanismo e Fordismo”, ressaltando que “a hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários, profissionais da política e da ideologia” (2001: 247-8). 65 As práticas sociais que caracterizam a sociedade urbana encerram, portanto, contradições que adensam a vida cotidiana. A dinâmica dos espaços escolares, familiares, das ruas, das repartições públicas, das atividades culturais, das festividades e das manifestações populares é atravessada pelas contradições centrais da sociedade, pelo antagonismo das forças sociais. Sobre este prisma a diversidade das práticas sociais que se manifestam no cotidiano das cidades e que lhe imprime uma marca cultural particular, é também uma diversidade com fortes traços universais que estabelecem nexos entre a dinâmica própria de cada cidade e a dinâmica da sociedade capitalista como um modo de estruturação da vida social em escala global. Modo que pelas características orgânicas e capilares de sua expansão e penetração nos processos cotidianos das mais diferentes cidades se constituiu - conforme denominou Mészáros (2002) – em um “sistema de metabolismo societal de segunda ordem” visto que subordina qualquer processo produtivo à lógica da acumulação. As cidades constituem espaços concretos onde as tensões resultantes desse intensivo processo de subordinação afloram através de manifestações estéticas, artísticas e políticas que não são fácil e imediatamente decifradas apenas pelas suas formas aparentes. A rua que possibilita a circulação é o espaço de encontros e de realização das utopias. É o espaço do carnaval, das expressões coletivas, das redes que se formam solidariamente na vizinhança e nas rodas de amigos. Espaço que anima e se anima com a apropriação que dela fazem as pessoas que se tornam sujeitos em seus diferentes encontros e trocas. Mas a rua é também a vitrine das mercadorias expostas, das relações cotidianas que se mercantilizam e dos encontros sem sujeitos, do medo, da violência e das esquinas dos tempos de pressa, negócios e isolamento de que nos fala Paulinho da Viola em “Sinal Fechado”. A cidade conserva e altera as particularidades do que é local, da mesma forma que resiste, subsume ou assimila o que é global. A cidade comporta ao mesmo tempo o velho e o novo, o arcaico e o moderno, a riqueza e a pobreza, não como traços que se sucedem linearmente no tempo 66 e no espaço, conforme idealizado nos projetos de reforma urbana, mas como expressão da própria urbanização, ora como resultante e ora como condição de um processo de alteração global da paisagem. A paisagem urbana reúne e associa pedaços de tempo materializado de forma diversa, autorizando comportamentos econômicos e sociais diversos. Enquanto as áreas “luminosas” são o teatro da ação dos vetores da modernidade globalizadora, as frações urbanas que “envelhecem” podem ser operadas sem maior submissão a tais nexos, escapando à regulação direta dos atores econômicos e sociais hegemônicos. Para um mesmo bem ou serviço, instalam-se diversos modos produtivos, várias modalidades de intercâmbio e múltiplas formas de distribuição e de consumo, segundo níveis de capital, de trabalho, de informação e de organização. Na mesma cidade, há lógicas específicas a cada um desses níveis de atividade. A superposição dessas lógicas individuais e complementares produz, em cada aglomeração, uma lógica urbana unitária (SANTOS, 2002: 308-9). A paisagem urbana ao reunir diferentes e contraditórios pedaços de uma relação espaço-tempo local articulada e subordinada a uma lógica global penetrante faz emergir não só os processos que têm transformado as cidades em territórios de livre troca das mercadorias, mas também aqueles que conservam através de tradições, memórias e lutas as possibilidades de resistência ao imperativo do mercado. Nos marcos do presente estudo que toma a cidade como ponto crucial para a compreensão das interfaces que vêm sendo produzidas entre as políticas públicas na esfera local deve-se colocar em questão se as tendências que ganham maior visibilidade, na atualidade, expressam um tipo de territorialidade com potencial humanizador, emancipador. Se a delimitação dos territórios na e da própria cidade supõe relacionamentos e sentimentos de pertencimento e envolvimento, como não deixar de questionar se a noção e as práticas de territorialidade das políticas públicas, em curso hoje, confluem para o fortalecimento dos processos culturais e políticos que afirmam a supremacia do consumo como modo de separação dos viventes de seus direitos, de suas possibilidades históricas e modos de construção de experiências políticas coletivas e éticas?! 67 As noções e práticas que materializam o paradigma da territorialidade no campo das políticas públicas não podem ser examinadas de forma dissociada da dinâmica que particulariza a organização espacial e política das cidades numa conjuntura extremamente subordinada às tendências de globalização do mercado, às quais paulatinamente se submetem tanto os interesses e fronteiras do Estado-Nação, quanto os costumes e as racionalidades técnicas nas quais se apóiam as intervenções urbanas. Como e a partir de quais lógicas e interesses os territórios estão sendo delimitados em torno da relação entre a população e as políticas públicas? Que pedagogia orienta e emana dessas práticas? Se a concepção de território está assentada na produção de pertencimento, de uso, como podemos pensar uma territorialidade que envolve a população pobre das cidades sem colocar a preocupação se esse processo pode ter como vetor a restituição de sua capacidade de uso, de não perpetuação de sua separação e estranhamento com relação às coisas, à esfera pública, à política e à vida na cidade? Agamben aponta a profanação como caminho para resistir e se contrapor ao religio em que o capitalismo se transformou e a sacralização do pensamento único que os tempos de consumo impõem. Para o autor “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (2007: 75). Lefebvre ao pensar a “sociedade urbana” como possibilidade teórica e prática a compreendia como alternativa que emerge e se opõe a industrialização, ou seja, como condição de uma utopia na qual a concepção do urbano se volte para “a re-apropriação pelo ser humano, de suas condições no tempo, no espaço, nos objetos”, visto que elas “lhe eram, e lhe são arrancadas, para que só se reencontre mediante a compra e a venda” (2004:163). A possibilidade de uma territorialidade emancipatória dos sujeitos, não reverterá, isoladamente, a tendência de subsunção que impera numa sociedade de consumo, e que ordena a própria espacialização das políticas 68 de forma a reproduzir e a ampliar a pobreza como condição necessária de sua existência, transformando progressiva e amplamente o direito em serviço, as relações políticas em relações de troca e o uso em consumo. Mas aponta uma contramaré: espaços de esperanças que se inscrevem na dinâmica sócio-espacial da realidade local sem perder a referência dos movimentos globais, das grandes correntes oceânicas que trazem às paisagens das cidades as mudanças e as forças da história e não apenas a moldura que hoje congela o presente. 1.2 - Territórios da política: Estado e sociedade civil. A tendência em submeter o conjunto da vida social à dinâmica da vida econômica, sobretudo ao imperativo das relações de compra e venda9, alcança hoje na sociedade de consumo uma dimensão bastante expressiva, em razão de ser forjada por uma globalização econômica e cultural sem precedentes na história da humanidade. Revela a consolidação da hegemonia de um modo de vida da sociedade do capital que se expande sem se intimidar diante de qualquer tipo de fronteira: geográfica, ética ou cultural. Modo de vida esse que tende a ocultar, a partir de diferentes estratégias, a importância da esfera política da vida social. Contudo, não se trata da eliminação da política da dinâmica social, mas da constituição de uma esfera extremamente reduzida em suas potencialidades, sobretudo, em relação à participação de diferentes sujeitos políticos nos processos decisórios e de legitimação do exercício do poder. Essa tendência confere à atualidade uma particularidade histórica nas relações entre as esferas da economia e da política. Duas instâncias 9 Esta perspectiva presente de forma bastante clara nos dias atuais, de forma alguma pode ser tomada como nova. Ela está enraizada na própria base de sustentação do pensamento político moderno, na qual a sociedade é vista como uma instância onde se relacionam homens livres a partir de um contrato social. O contratualismo da relação dos cidadãos com o Estado, que com variações ocupou lugar de destaque no pensamento político de Hobbes, Locke e Rousseau, só pode ter existência concreta numa sociedade onde predominam as relações de compra e venda, numa sociedade de livres proprietários, onde se compra e se vende mercadorias e força de trabalho. 69 centrais da vida social cujas relações configuram um campo temático e de preocupações no âmbito da larga tradição da filosofia política. Compreendemos, portanto, que essa tendência, cada vez mais acirrada na sociedade de consumo, precisa ser problematizada histórica e conceitualmente. Em especial, para que possamos sublinhar o quanto ela é decisiva para uma aproximação às atuais experiências de articulação da educação com as políticas públicas no âmbito das cidades. A esfera política da vida em sociedade talvez tenha sido um dos primeiros temas a ocupar um lugar de destaque nas reflexões filosóficas. A clássica definição de Aristóteles acerca do homem como um politikón zôon, um “animal político”, possui, neste sentido, um duplo significado do ponto de vista histórico e conceitual. Primeiro por ressaltar uma diferença específica do gênero zôon e não um atributo do vivente, na verdade, uma qualificação da vida de um tipo de zôon e não a própria vida. Conforme sinaliza Agamben, os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que hoje definimos em torno da palavra “vida”. Neste sentido, as definições de Platão e, em particular, as de Aristóteles sobre a distinção da “vida contemplativa do filósofo (bíos theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política (bíos políticós)”, segundo o autor, jamais poderiam ter sido referidas a partir do emprego do termo zoé (o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos: animais, homens ou deuses), pois além dessa palavra carecer de um plural em grego, aqueles filósofos não tratavam da vida natural, mas “de uma vida qualificada, de um modo particular de vida” (2004: 09). Em segundo lugar porque a vida dos homens na polis era tomada como o modo de vida particular daquela espécie de zôon. A política, assim, era uma das particularidades daquele modo de viver, a esfera na qual gravitavam as preocupações em torno do “viver bem”, não podendo, deste modo, ser tomada em seu sentido específico moderno (GUARESH, 2005). A política que deriva da polis não traz, de imediato, conceitual e historicamente, a noção de poder com a amplitude e complexidade que hoje encontramos. Mas contribui para a compreensão de que a vida na polis tinha 70 sua multiplicidade, na qual a política era sua dimensão fundamental, ainda que não a única. (...) No início de sua Política, Aristóteles usa de todo zelo para distinguir o oikonómos (o chefe de um empreendimento) e o despótes (o chefe da família), que se ocupam da reprodução da vida e de sua subsistência, do político e escarnece daqueles imaginam que a diferença entre eles seja de quantidade e não de espécie. E quando, em um trecho que deveria tornar-se canônico para a tradição política do Ocidente (125b, 30), define a meta da comunidade perfeita, ele o faz justamente opondo o simples fato de viver (to zên) à vida politicamente qualificada (tò eu zên): ginoméne mèn oún toú zên héneken, ousa dê tóu eu zên “nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem” (...) (AGAMBEN, 2004: 10). A esfera da política se opunha à esfera do simples viver, à esfera da sobrevivência e da reprodução, tanto à zoé quanto à oikós. A tradição filosófica aristotélica – resguardada suas particularidades históricas contribuía, deste modo, para o pensamento ocidental com as bases de identificação da economia à esfera das relações privadas e da vida política à esfera da vida pública. A vida na polis tinha sua essência na política, muito embora a vida, enquanto bíos comportasse outras dimensões10. Essa centralidade, no entanto, deve ser confrontada com a própria composição social da vida na polis, na qual o demos, o povo - aqueles viviam a política para quem se dirigia e de quem emanava a condição dirigente da cidade – a base da democracia grega - não englobava o universo dos viventes, como os escravos e as mulheres. O viver bem e não o apenas viver natural tornava a vida politicamente qualificada, o modo mais elevado de viver, para o qual deveriam convergir os esforços e os valores na polis. A esfera da política não se isolava de outras dimensões da vida, mas a elas não se reduzia ou se subordinava. A esfera da oikós constituía, portanto, outra dimensão da vida, mas não sua 10 Henry Lefebvre (2001) nos alerta para o fato de que filosofia nasce com a cidade, com a divisão do trabalho e suas múltiplas modalidades. A filosofia clássica de Platão e Hegel visa através de uma sistematização especulativa resgatar a perspectiva de totalidade da cidade. Deste modo, a cidade, e suas diferentes dimensões, se transformam em linguagem, em campo de reflexão que se eleva a partir da filosofia. Para o autor, embora a filosofia nasça com a cidade, na busca de sua totalidade, a cidade se separa da filosofia com o advento das ciências que tendem a especialização constante. 71 dimensão central. Política e economia conformavam vidas qualificadas, distintas da zoé, da vida natural. Conformavam dimensões da vida de uma determinada espécie de zôon. A afirmação, portanto, do politikoòn zôon significava a afirmação de uma política humana que ao se preocupar com o viver bem estabelecia através da linguagem uma política sobre a comunidade, afirmava o humano como algo distinto do que era apenas natural. Adquiria uma dimensão de vida não apenas natural, mas qualificada pela dinâmica entre cada homem e a comunidade de homens que viviam na polis. As reflexões sobre a vida comum, sobre a natureza própria da vida humana, assim como sobre a constituição do poder a partir de relações e instituições que articulam a vida dos indivíduos ao soberano e ao Estado passaram a constituir a própria vida política, alçada a partir da filosofia, em especial da filosofia política, a uma esfera na qual a preocupação com o viver bem foi gradativamente cedendo lugar às preocupações centradas na compreensão e formulação de estratégias de localização e exercício do poder11. Tal esforço tem uma inflexão crucial na crítica que Marx formula em relação à compreensão de Estado de Hegel como “evolução geral do espírito humano”, ao procurar sublinhar a inadequação dessa formulação idealista com as condições objetivas de desenvolvimento das formas históricas de Estado. Marx afirma que “as relações jurídicas, assim como as formas de Estado não podem ser explicadas por si mesmas”, mas a partir das “condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende pela designação do conceito de sociedade civil”. E complementa ressaltando que “a anatomia da sociedade 11 Tais reflexões percorreram um longo caminho no âmbito da filosofia política desde as contribuições de Nicolau Maquiavel e as tematizações em torno da passagem do poder natural ao poder civil de Hobbes, Espinosa, Locke e Rousseau, até as formulações de Hegel, Marx, Weber, Gramsci e mais recentemente Foucault. Como não se pretende aqui inventariar esse extenso legado intelectual e político, tomamos como questão primordial seguir na problematização das implicações que a tendência de redução do político à esfera da vida econômica produz na condução da política educacional na atualidade. 72 civil deve ser procurada na economia política” (2003: 4-5). Esta compreensão, bastante criticada por “sugerir” um aprisionamento do conceito de sociedade civil a uma perspectiva economicista, na verdade aponta um caminho metodológico de apreensão da esfera política como uma instância que não deve ser pensada isoladamente do modo de vida particular de uma dada sociedade, do modo de organização das formas de produção da vida social, conforme ele destaca em A ideologia alemã: A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em todas as fases históricas anteriores e que, por sua vez, as condiciona, é a sociedade civil; esta última, como se depreende do anteriormente exposto, tem como pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, o que se costuma chamar de tribo, cujas determinações mais precisas foram dadas anteriormente. Vê-se, já aqui, que esta sociedade civil é a verdadeira fonte, o verdadeiro cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que, negligenciando as relações reais, limitava-se às ações altissonantes dos príncipes e dos Estados. A sociedade civil abrange todo intercâmbio material dos indivíduos, no interior de uma determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas (1989: 52-3). Marx, portanto, não afirma que a esfera econômica seja idêntica à sociedade civil e sim que a sociedade civil não se constitui como uma instância desvinculada da esfera econômica; do mesmo modo que o Estado não se reduz a um movimento intestino ao soberano ou da evolução do espírito humano, sem vinculações efetivas com as formas concretas de organização da vida social. Suas reflexões apontam para um tipo de reconhecimento da política mais enraizado e historicamente articulado com a esfera da economia. A oikós deixa de ser pensada como uma esfera desvinculada da polis, com uma significação menor. E a política adquire uma dimensão menos idealizada, ultrapassando a vida politicamente qualificada (tò eu zên) do viver bem ou da evolução do espírito humano na forma do Estado. 73 A força da perspectiva histórica na reflexão de Marx ganha maior destaque ao abordar a bürgerliche Gesellshaft, ou seja, a “sociedade civil” que emerge com a sociedade burguesa12. Segundo Jorge Luis Acanda: Marx refere-se expressamente ao conceito de burgerliche Gesellshaft de Hegel, fazendo menção ao pensamento do século XVIII e à economia política como anatomia da sociedade civil burguesa, colocando em primeiro plano o que o tratamento hegeliano do tema teve de original, quando incorporou o pensamento de Adam Smith e o marco referencial da economia política – o mundo das necessidades e do trabalho – ao conteúdo de um conceito que até aquele momento era exclusivamente ético e político (2006: 136). A análise de Marx capta, portanto, a dupla dimensão presente na formulação de Hegel sobre o conceito de sociedade civil: sua feição estrutural, vinculada à dinâmica da economia e, naquele contexto em particular, às relações que caracterizavam a vida econômica burguesa, e a sua feição superestrutural, vinculada ao Estado, desvinculada de uma realidade histórica concreta, formulação contra a qual Marx dirigiu sua crítica. A transição entre o indivíduo na condição de Bürger (membro privado da sociedade onde prevalecem os interesses particulares e as livres relações de compra e venda) e o indivíduo na condição de citoyen (cidadão, membro da sociedade política), para Hegel se resolveria no Estado, síntese da própria sociedade. Solução que para Marx não tinha sustentação em função do caráter classista do Estado na sociedade burguesa. Deste modo, para Marx o Estado não figurava como uma possibilidade de realização dos indivíduos sociais, assim somente sua superação contribuiria para esta finalidade. A política na esfera do Estado condensava apenas o potencial de exercício do poder de dominação unidirecional, da burguesia sobre a classe trabalhadora. 12 A expressão bürgerliche Gesellshaft designa sociedade burguesa muito embora em inúmeras traduções se refira ao conceito de sociedade civil. Isso se deve à tradução lingüística e teórica de Kant e Hegel do termo civil society. Na verdade Marx ao tratar da sociedade civil burguesa se vale da expressão bürgerliche Gesellshaft, mas ao abordar o significado mais amplo da sociedade civil, para além das particularidades que assume na sociedade burguesa, Marx usa o termo francês société civile (ACANDA, 2006). 74 As reflexões de Antonio Gramsci - apoiadas nas elaborações originais de Hegel e Marx - favoreceram uma apreensão da relação entre a política e a economia e entre o Estado e a sociedade civil que não recaísse ou no idealismo hegeliano ou no ceticismo marxiano. Gramsci conseguiu, em um contexto histórico diferenciado, onde a dinâmica da realidade social se mostrava mais pulsante e complexa, apreender de forma diferenciada a relação entre Estado e sociedade civil, reconhecendo a centralidade da estrutura, mas tomando o momento superestrutural em sua relativa autonomia. (...) Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma representação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). Numa doutrina do Estado que conceba este como tendencialmente capaz de esgotamento e de dissolução na sociedade regulada, o tema é fundamental. Pode-se imaginar o elemento Estadocoerção em processo de esgotamento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícios de sociedade regulada (ou Estado ético, ou sociedade civil) (2007: 244). Suas reflexões abriram uma nova perspectiva para se pensar o poder de um modo inteiramente novo até então. Para tanto, o conceito de hegemonia foi decisivo, visto que a partir da compreensão de como as classes sociais constroem uma direção moral e intelectual no estabelecimento de processos de consensos sociais, o autor foi capaz de apreender que o domínio burguês não se estenderia apenas pela imposição da força e que como classe dirigente conseguia preservar e ampliar sua liderança através não apenas dos aparelhos coercitivos do Estado, mas também mobilizando os aparelhos denominados privados da sociedade civil. A esfera da sociedade civil pôde ser compreendida como um espaço contraditório e não homogêneo em virtude da própria politização que sofrera com as lutas sociais organizadas pelos movimentos de massa. Deste modo, o Estado não se organiza apenas em torno dos aparelhos de governo, 75 incorpora também os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil. Deixa de ser apenas coerção, para ser também um Estado educador, que busca o estabelecimento de consensos sociais. E, sobretudo, para que possa exercer suas funções centrais na garantia da continuidade de um determinado modo de produção, ele precisa ser legitimado, incorporando, deste modo, os interesses não de apenas uma classe. O poder, a partir da reflexão gramsciana, deixou de ser apenas imposição para ser também consenso e, conseqüentemente deixou de ser visto como restrito apenas no aparato do Estado, se localizando também em diversas instituições sociais como a família, a escola, a Igreja, a arte, a ciência e a moral. Deste modo a esfera política não mais se concentra no Estado-governo, - ainda que nele tenha um importante espaço de realização -, não compreende apenas a ação coercitiva e adquire capilaridade nas instituições da sociedade civil. O conceito de sociedade civil passou a ocupar um lugar de destaque na filosofia política moderna, assim como nas elaborações das estratégias concretas das lutas sociais protagonizadas ao longo do século XX, quando se evidenciou a força dos processos ideológicos e a capilaridade do poder, não exclusivamente restrito à sociedade política. Contudo, seu largo uso não significou apenas uma forma de apreensão dos processos políticos que se organizavam fora do aparelho de Estado, nela também se engendrou, adquirindo uma amplitude que em muito se afastou das elaborações de Hegel, Marx e Gramsci, ainda que a elas referidas direta ou indiretamente, outra possibilidade histórica: a de esvaziamento do próprio conteúdo social do Estado. Em uma sociedade marcada por intensas disputas de poder e interesses contraditórios o próprio universo conceitual não aflora como uma instância impermeável a essa disputa. Hoje se observa a presença de uma tendência de compreensão da sociedade civil em sua relação com o Estado como que a cindir a ampliação proposta por Gramsci, resultando numa polarização que situa o Estado como espaço da força e das restrições da liberdade e a sociedade civil como 76 espaço da liberdade e da emancipação dos indivíduos. A ampliação efetiva da sociedade civil nas últimas décadas, conforme Acanda (2006) destaca não é um resultado mecânico da expansão do capitalismo, mas da intensa disputa pelo poder a partir de um conjunto cada vez mais amplo de sujeitos e instituições sociais. Não representa, portanto, uma mudança apenas conceitual, mas da relação entre as formas de apreensão teórica em consonância com o movimento histórico real. O fortalecimento de uma concepção de Estado em oposição à sociedade civil tem um forte amparo nas experiências históricas de autoritarismo que marcaram as experiências dos países do leste europeu, da ofensiva neoconservadora de controle do “Estado mínimo” e redistribuição de suas funções com a “sociedade civil”, assim como na expansão e superação das experiências ditatoriais militares em vários países da América Latina e África ao longo do século XX. A partir dos anos 80 e 90, organicamente vinculado ao avanço do ideário neoliberal, se expande essa compreensão da sociedade civil como um espaço não político e oposto ao Estado. Nela devem prevalecer as relações voltadas ao “bem comum”, os “laços de solidariedade” e de “protagonismo e empreendedorismo” dos grupos sociais e dos próprios indivíduos. Historicamente põe-se em curso um enorme esforço de esvaziamento da dimensão política da sociedade civil, estabelecendo-se uma identificação entre sociedade civil e o termo emergente de terceiro setor13. Terceiro setor não é termo neutro. Em primeiro lugar – mais do que o transnacional ONG, por exemplo – tem nacionalidade clara. É de procedência norte-americana, contexto onde o associativismo e voluntariado fazem parte de uma cultura política e cívica baseada no individualismo liberal, em que o ideário dominante é o da precedência da sociedade com relação ao Estado. (...) E se analisarmos os canais através dos quais a expressão vem sendo utilizada sobretudo por empresas, fundações e organizações dedicadas à chamada filantropia empresarial, ou investimento social, campo que se desenvolve 13 O primeiro setor seria o Estado e o segundo o mercado. O terceiro setor decorreria da necessidade de se ter um espaço público, mas não necessariamente estatal, combinado as forças e iniciativas privadas, porém distintas do mercado. 77 recentemente enquanto nova forma de atuação do empresariado, através do repasse de recursos a projetos de ação social, ou cultural (LANDIN, 1999: 63). A constituição de um amplo espaço de atuação de organizações sociais, de naturezas distintas, por si só não configura um processo de esvaziamento político da sociedade civil. Esta dimensão, no entanto, ganha destaque em razão das relações que estabelecem com o próprio Estado. A sociedade civil que se quer construir com a ampliação do terceiro setor envolve, na verdade, uma forma de enfraquecimento do Estado em sua dimensão social, de espaço de regulação dos conflitos sociais, para se transformar num grande gestor das ações que são deslocadas para aquele setor que, por não ser estatal, assumiria uma feição de fato mais “pública”. A sociedade civil, através do terceiro setor representaria a redenção do Estado que não “conseguiu” enfrentar, pela sua “inoperância e ineficiência” os graves problemas sociais. Para que este processo se efetive é fundamental rever as funções às quais o Estado deve limitar sua atuação e garantir uma reorientação do fundo público para o financiamento das ações, agora, empreendidas pela sociedade civil. Essa concepção pressupõe a despolitização da vida social, seja no âmbito do Estado e da sociedade civil. Neste último caso ao transformar as disputas políticas das forças sociais em disputas pelos recursos que garantirão a sobrevivência de uma ampla rede de serviços não estatais. A ampliação do conceito e de práticas concernentes ao terceiro setor determina, portanto, um duplo deslocamento. O primeiro em relação ao espaço em que se devem travar e assegurar os efeitos das disputas e dos conflitos sociais, do Estado para a sociedade civil, transformando o que deveria ser direito e obrigação do poder público, num serviço que depende para ser acessado de uma concorrência pelos próprios recursos públicos. O segundo em relação à natureza das disputas que se esvaem de seu conteúdo político e conflituoso para assumirem feições econômicas e de “harmonização”. 78 Podemos, de certo modo, ponderar que a partir dos anos 80, ao passo que a sociedade civil se afirmou, em todo o mundo, como um espaço central das disputas pelo estabelecimento de determinados consensos, se articulando de forma mais ou menos gradual à dinâmica de ampliação do Estado - assegurando a sua dimensão educativa - ela passou a ser não só espaço, mas alvo das próprias disputas em curso, das diferentes estratégias de ocupação e condução desse espaço. Como um conjunto de inúmeras “corporações” que direta e indiretamente expandem a lógica do mercado para outras instâncias da vida social e como um conjunto de sujeitos e forças sociais que procuram se organizar e atuar coletivamente. Ambos os movimentos propõem relações com ênfases distintas em relação ao Estado, seja como uma instância com a qual se deve relacionar do ponto de vista da defesa dos interesses privados econômicos, seja como uma instância na qual os direitos sociais devam ser afirmados, reconhecidos e garantidos. O esvaziamento tanto do significado político da sociedade civil quanto da concepção de Estado como espaço político onde se expressam os conflitos de interesses aponta para uma relação entre Estado e sociedade civil cada vez mais mercantilizada e restrita nas suas formas de condução democrática. O neoconservadorismo liberal que se revigora desde as últimas décadas do século passado restitui à vida política uma dimensão historicamente distinta da política enquanto viver bem, visto que acentua a prevalência da oikós e em uma nova dimensão dada à vida natural, à zoé, à esfera do simples viver. A privatização da esfera pública tem se intensificado tanto pela prevalência dos interesses estritamente privados do ponto de vista econômico, seja pela assunção da vida natural ao patamar de preocupação pública. Fenômeno que tem decisivas implicações no que concerne à dinâmica cultural e nos modos de compreensão dos processos de deslocamentos do poder. Do ponto de vista cultural a vida natural, o simples viver, se torna o foco de atenção numa sociedade que nega a história e o sujeito, a capacidade de criação e a força instituinte da política, transformando 79 encontros em eventos, e a vida em espetáculo. A vida natural ganha dimensão pública a partir do momento em que a esfera pública passa a ser fortemente dominada pelos interesses privados14. A cultura do espetáculo conforme sinaliza Fredric Jameson (1993), transforma as relações privadas e a produção cultural em mercadorias, que passam a ser acessadas através do consumo de massa. Do ponto de vista dos processos que envolvem os deslocamentos do poder, a vida natural passa a ocupar um lugar de destaque nos mecanismos de institucionalização da vida política, de forma bastante contraditória. Giorgio Agamben ao analisar a trajetória e particularidade desse processo em nossa sociedade sinaliza não se tratar de um fenômeno novo, para tanto sublinha a singular contribuição de Foucault em apreender como a vida natural nos “limiares da Idade Moderna passa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, se tornando uma biopolítica”. Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua submissão. (...) Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender por que, justamente no instante em que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja liberação e felicidade havia dedicado todos os seus esforços (2004: 17). Para Agamben a democracia moderna procurou de forma incessante organizar uma vida em sociedade a partir de um relacionamento entre os indivíduos e o Estado de forma a constituir uma vida política na qual o politikón zôon fosse o centro da organização da polis, mas essa 14 Embora estejamos tratando, neste parágrafo de uma implicação do ponto de vista cultural, não podemos deixar de referir às reflexões de Hannah Arendt (2005) e de Richard Sennett (1986) sobre os processos de subordinação da esfera pública à esfera privada ou da perda de sua centralidade na sociedade moderna. 80 transformação colocou em curso não apenas a liberação da zoé, mas também a sua subordinação, seu aprisionamento às relações e aos novos espaços de poder. O que se queria atuante e vivo, foi sendo calado e morto. Deste modo, a vida natural, ou a vida nua, conforme denomina o autor, ganha hoje destaque não apenas por representar um fenômeno inédito, mas por expressar uma contradição essencial de nosso tempo. (...) O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em se apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele. Tudo ocorre como se, no mesmo passo do processo disciplinar o próprio objeto específico, entrasse em movimento um outro processo, que coincide grosso modo com o nascimento da democracia moderna, no qual o homem como vivente se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do poder político. Estes processos sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparência) em conflito acerbo entre eles, convergem, porém no fato de que em ambos o que está em questão é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade (IBIDEM: 16-7) (grifos do autor). A vida natural que se encontra na base da democracia moderna é, portanto, elemento central de uma modalidade de política que, de modo complexo e contraditório, articula o indivíduo aos mecanismos de poder da sociedade do capital, aos distintos significados dados à esfera pública e à esfera privada, assim como os contornos que assumem, neste mesmo processo, o Estado e a sociedade civil. É ela fonte de possibilidades de ação política, mas também, foco das políticas de Estado e que se articula com diferentes forças sociais atuantes na sociedade civil. Cabe argüir como que hoje, diante de uma intensa disputa em torno do lugar que a política deve ter na vida social, a vida natural - que implica para o cidadão se constituir quer como objeto, quer como sujeito da política - tem se relacionado com as diferentes instituições e instâncias do poder no Estado e na sociedade civil? Como a vida natural tem sido produzida e reproduzida numa sociedade em que a política gravita entre um Estado que a 81 circunscreve a diferentes campos de seu domínio através das políticas públicas e uma sociedade civil composta tanto por forças que buscam sua emancipação quanto por aquelas que a subordinam a uma vida em sociedade esvaziada de significado político e extremamente mercantilizada? O processo de esvaziamento da política em nossa sociedade coloca em tela as formas como as instituições e as forças sociais têm atuado em relação a este processo. Como que dele participam, se resistindo ou a ele se subordinando e contribuindo com sua expansão. As políticas públicas cumprem uma função muito singular neste processo - destacadamente para o nosso estudo a de educação - visto que elas representam certo estágio de reconhecimento das conquistas sociais como elemento que funda e orienta suas práticas como formas institucionais de regulação da vida social, como formas institucionais de reprodução social. Constituem, portanto, no âmbito do Estado e da sociedade civil, práticas articuladas às disputas sociais e aos processos de estabelecimento dos consensos sociais. Práticas que, por um lado, se voltam para organizar e, mesmo controlar, a vida natural, tomando os indivíduos como objeto de uma vida social intensa e amplamente mercantilizada. Mas também por práticas que se voltam para a produção de formas de sociabilidade que resgatem a dimensão política das várias instâncias da vida social. As instituições sociais e as políticas públicas conformam uma importante dimensão da dinâmica social na medida em que expressam historicamente como se articulam em cada época e diante de cada correlação de forças as relações entre Estado e sociedade civil, a disputa pela hegemonia e as medições entre os diversos graus e instâncias de exercício e localização do poder na sociedade. Deste modo, compreender o significado e o alcance da relação entre as políticas públicas e a educação na cidade implica compreender em que medida o esvaziamento da política da vida social é parte de um processo que torna a vida natural, a vida do homem comum, em um dos mecanismos da articulação entre os vários lugares de poder na consolidação do processo de subordinação da vida 82 social à lógica da mercadoria. Uma relação que exige que o relacionamento do vivente com as instituições sociais e as políticas públicas se concretize em práticas mediadoras entre esferas distintas do poder, conformando experiências particulares entre o corpo e o espaço, ou seja, a partir de um determinado tipo de territorialidade. 1.3-. As políticas públicas e o cotidiano da cidade: dimensões do trabalho profissional. O homem moderno volta para a casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes – entretanto nenhum deles se tornou experiência. Agamben, 2005. A vida cotidiana na cidade é um enlace de várias tramas, visto que expressa as diferentes instâncias da vida social: a economia, a política e a cultura, por exemplo, assim como as diversas formas de relacionamento que os viventes produzem a partir delas moldando modos particulares de organização de sua sobrevivência, de aproximações e distanciamentos com os demais viventes – sejam eles conhecidos ou não – e de deslocamento e ocupação do espaço. É no cotidiano que se entrelaçam, de modo singular, a vida natural de cada vivente à da cidade, mediada pela dinâmica de um leque bastante amplo e complexo de instituições sociais e pelo trabalho dos profissionais que atuam nas políticas públicas. Pensar a relação entre as políticas públicas e a cidade significa tomar os diferentes tempos e espaços que a constituem, mas, sobretudo, tecer aproximações em direção ao seu substrato material, sua manifestação e organização no cotidiano, na vida daqueles que se encontram diretamente vinculados às tramas institucionais, em uma dimensão singular, própria à 83 realidade de cada grupo social e de cada política pública. O cotidiano da cidade dispõe de uma dinâmica que articula e integra o cotidiano dos viventes, em geral impondo-lhes um ritmo que aliena da vida natural sua auto-significação, os sentidos construídos a partir das necessidades e desejos próprios. Contudo, dialeticamente, é ele um momento de interação, no qual outros sentidos podem ser atribuídos, expressando possibilidades de percursos e relacionamentos das políticas públicas na cidade produtoras de sociabilidades não necessária e compulsoriamente vazias de significação política. O cotidiano como conjunto de atividades em aparência modestas, como conjunto de produtos e de obras bem diferentes dos seres vivos (plantas, animais, oriundos da Physis, pertencentes à Natureza), não seria apenas como aquilo que escapa aos mitos da natureza, do divino e do humano. Não constituiria ele uma primeira esfera de sentido, um domínio no qual a atividade produtora (criadora) se projeta, precedendo assim criações novas? Esse campo, esse domínio não resumiria nem a uma determinação da subjetividade dos filósofos, nem a uma representação objetiva (ou ‘objetal’) de objetos classificados em categorias: (roupas, alimentação, mobília etc.). Seria algo mais: não uma queda vertiginosa, nem um bloqueio ou obstáculo, mas um campo e uma renovação simultânea, uma etapa e um trampolim, um momento composto de momentos (necessidades, trabalho, diversão – produtos e obras – passividade e criatividade – meios e finalidades etc.), interação dialética da qual seria impossível não partir para realizar o possível (a totalidade dos possíveis). (LEFEBVRE, 1991: 19-20). Para os segmentos mais pobres, o cotidiano na cidade envolve não apenas uma relação espaço-temporal típica à vida natural: os cuidados com o corpo, a organização dos utensílios e das tarefas domésticas e as ações vinculadas à reprodução de um modo em geral, visto que a própria vida natural tem sido constante e gradualmente articulada com a esfera da política a partir de práticas e saberes institucionais, assim como de distintas formas de poder, que a capturam ou a elevam à cotidianidade das políticas públicas na cidade. Estamos, nos referindo, portanto, à esfera da reprodução social não apenas em suas dimensões privadas, mas em seu sentido amplo, integrante das relações sociais que emolduram a relação entre o Estado e a 84 sociedade civil como processos institucionais concretos e localizáveis na dinâmica da cidade, temporal e espacialmente. Portanto, formas de relacionamento dos viventes com as instituições e espaços da cidade a partir de suas condições de classe, de gênero e demais tipos de vínculos e pertencimentos com os quais se identificam ou são identificados, ou seja, formas determinadas de territorialidades. Ao tomarmos as políticas públicas como referência teórica e empírica centrais para a abordagem da articulação entre a vida natural e a dinâmica das instituições que conformam o cotidiano da cidade enquanto uma totalidade contraditória e pulsante da vida social cabe destacar os elementos de diferenciação e articulação entre os conceitos de políticas públicas e políticas sociais. As políticas sociais se originam de um conjunto de respostas historicamente elaboradas pelo Estado no enfrentamento da questão social que, do ponto de vista econômico, expressavam um conjunto de ações dirigidas para a manutenção, dentro de limites que não comprometesse a própria lógica da acumulação crescente do capital, patamares mínimos de consumo da classe trabalhadora. Ideologicamente cumprem a função de realizar esse processo de redistribuição de parte da riqueza socialmente produzida de forma a produzir mecanismos de estabelecimento de consenso social junto àqueles que participando da produção dessa riqueza não usufruam seus benefícios, assim como em relação àqueles que fora da esfera da produção, possam permanecer, temporária ou estruturalmente, sem que se comprometa a continuidade desse modo de produção. Resultam, portanto, de respostas sociais às disputas políticas em um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista, quando a organização da classe trabalhadora produz não apenas a entrada em cena de um sujeito social, mas de um sujeito político, que cobra seu reconhecimento pelo Estado enquanto instância de regulação dos conflitos sociais (IAMAMOTO e CARVALHO, 1982). As políticas sociais encerram uma decisiva e central contradição: elas integram os esforços políticos, econômicos e ideológicos de não 85 reconhecimento da classe trabalhadora como sujeito que produz a riqueza social e que dela não se apropria e, ao mesmo tempo, constituem formas históricas e concretas através das quais se produzem o reconhecimento e a incorporação dos direitos sociais dessa mesma classe. Desta forma, as políticas sociais ao mesmo tempo em que são determinadas pela contradição que movimenta a sociedade capitalista potencializam um conjunto outro de contradições que materializam territorialmente na cidade os contornos da relação entre o Estado e a sociedade civil, um campo de diferentes lugares e possibilidades de exercício do poder, em conjunturas históricas particulares. O percurso histórico de consolidação das políticas sociais está longe de poder ser representado por uma cronologia que contenha marcos temporais precisos. No entanto não se pode ignorar que determinados processos são imprescindíveis para a compreensão de sua emergência e expansão na sociedade capitalista. As lutas sociais protagonizadas pelos movimentos dos trabalhadores em relação às denúncias das péssimas condições de trabalho e à sua organização autônoma, a dinâmica que o capitalismo assume com a Revolução Industrial e as crescentes intervenções do Estado na regulação dos conflitos sociais conformam um quadro básico para uma abordagem das contradições sociais que sustentam a formulação de legislações sociais européias e, posteriormente, de políticas de alcance social como alternativas concretas de seu enfrentamento. As políticas sociais, embora resultem de processos históricos determinados no campo da luta pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores não podem ser consideradas fora de um contexto particular de institucionalização e organização legal e material. Elas são resultados de ações localizáveis no âmbito do Estado, ainda que as determinações de sua existência enquanto estratégia socialmente formulada em muito ultrapasse as fronteiras da sociedade política. É focando a relação do Estado com a sociedade civil que Potyara Pereira demarca as particularidades do termo política social: 86 Conclui-se, portanto, que apesar de o termo política social estar relacionado a todos os outros conteúdos políticos, ele possui identidade própria. Refere-se à política de ação que visa, mediante esforço organizado e pactuado, atender necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada, individual e espontânea, e requer deliberada decisão coletiva regida por princípios de justiça social, que por sua vez, devem ser amparados por leis impessoais e objetivas, garantidoras de direitos. Trata-se, pois, do que, na língua inglesa, é grafado como policy para diferenciar de politics (referente aos temas clássicos da política, como eleição, voto, partido, parlamento, governo) e de polity (forma de governo ou sistema político). Portanto, se na língua inglesa os diferentes significados de política já estão especificados graficamente, na língua portuguesa tem que se ter o cuidado preliminar de qualificá-lo para evitar confusões conceituais e analíticas. Contudo, a política está inextrincavelmente relacionada ao Estado, governos, políticas (no sentido de politics e de polity) e aos movimentos da sociedade (2008: 171-2). Observamos, portanto, que a afirmação do conjunto das políticas sociais em sua dimensão pública não pode ser tomada como decorrência direta das ações do Estado, embora seja seu principal promotor, e nem tampouco do reconhecimento de sua inscrição apenas aos circuitos de controle social das classes dirigentes sobre a classe trabalhadora, mas como produto histórico de uma luta entre projetos societários distintos, assumindo assim, também um significado estratégico nos processos de reconhecimento dos direitos das classes subalternizadas. Por combinarem diferentes funções na dinâmica da vida social, as políticas sociais foram organizadas em decorrência do estágio de correlação de forças em que os sujeitos sociais se encontram em cada contexto histórico, ora ampliando, ora restringindo o processo de incorporação dos direitos sociais e as formas de seu acesso em relação às diferentes frações da classe que detêm a condição de produtora da riqueza social, mas que têm sido alijadas dos processos de sua apropriação. Suas funções e estrutura articulam racionalidades técnicas, políticas e sociais que resultam do desenho com que a relação entre o Estado e a sociedade civil se expressa em cada país, estado ou cidade, haja vista que embora tenham uma instância central na esfera do Estado vinculada ao 87 governo federal, elas articulam, em quase todas as áreas, ações e dinâmicas entre os diferentes entes federativos, assim como em relação a um conjunto amplo de instituições não governamentais. Assumem deste modo, conforme sinaliza Potyara Pereira, também a feição de política de ação. Ao contemplar todas as forças e agentes sociais, comprometendo o Estado, a política social se afigura uma política pública, isto é, um tipo, dentre outros, de política pública. Ambas as designações (política social e política pública) são policies (políticas de ação), integrantes do ramo de conhecimento denominado de policy science, só que a política social é uma espécie do gênero política pública (public policy). Fazem parte desse gênero relativamente recente na pauta dos estudos políticos, todas as políticas (entre as quais a econômica) que requerem a participação ativa do Estado, sob o controle da sociedade, no planejamento e execução de procedimentos e metas voltados para a satisfação de necessidades sociais (IBIDEM: 173). As políticas públicas constituem campos de tensão que resultam da própria composição dos espaços e esferas públicas em cada conjuntura assim como produzem efeitos e significados bastante concretos nos modos de compreensão social da coisa pública. Não devem ser concebidas, nesta linha de raciocínio, numa perspectiva instrumental, muito embora possuam uma dimensão operacional na medida em que são formas concretas de intervenção social, esforços dirigidos ao enfrentamento de necessidades sociais que são reais e socialmente reconhecidas. Deste modo, constituem meios para se alcançar um resultado social, frutos de um determinado estágio de pactuação social. Contemporaneamente as políticas públicas respondem a um desenho arquitetônico determinado por um novo patamar de relacionamento do Estado com a sociedade civil em que se combinam contraditoriamente elementos de uma lógica globalizante das relações econômicas com a perspectiva de valorização da dimensão política na esfera local. A mediação dos chamados Estados Nacionais em relação aos processos de pressão externos e internos aponta para uma diversidade conceitual e política dos processos de descentralização política e participação social, tornando as 88 políticas públicas campos que além de condensarem uma intensa disputa ideológica expressam enormes dificuldades de concretização dos direitos sociais. Assim, a compreensão das formas territoriais assumidas pelas políticas públicas na atualidade depende de como determinados fenômenos se articulam na realidade social. Já ressaltamos anteriormente que a dinâmica da realidade local não deve ser examinada de forma descolada dos processos mais globais que caracterizam hoje a sociedade regida pela lógica do capital. A própria preocupação com a realidade local e a sua centralidade no debate sobre o papel dos governos, por seu turno, expressa uma tendência mundial, visto que para a própria expansão globalizada do capital assim como a redefinição, ou melhor, a destituição das fronteiras econômicas, jurídicas e políticas é uma condição fundamental. Paradoxalmente, as correntes que têm acentuado a importância inexorável de redefinição e de diminuição do papel do Estado Nacional vêm revalorizando o papel do governo local como aquele capaz de dar respostas a esse novo cenário econômico e social. Para tanto, seria necessário operar algumas mudanças na gestão das cidades, essenciais à sua maior eficiência e competitividades econômicas, de forma atrair investimentos e inseri-las na dinâmica da globalização. É nesse contexto que se assiste ao surgimento de novas representações teóricas sobre a gestão das cidades, entre as quais evidenciam-se as ancoradas na idéia de cidades estratégicas e na reinvenção do governo, que tentam dar respostas ao diagnóstico elaborado por essas correntes, de crise de sustentação estarem fortemente comprometidas pelas transformações econômicas e sociais em andamento (SANTOS JÚNIOR, 2001: 30). O destaque que vem sendo dado ao governo local faz parte de uma agenda política, econômica e intelectual, amplamente socializada, e que coloca em cheque a capacidade de governabilidade das cidades em termos de suas efetivas condições de aproveitamento e adaptação às oportunidades e exigências criadas a partir do processo de globalização. Trata-se, portanto, da produção de um conjunto de paradigmas, valores e diagnósticos que integram o esforço de estabelecimento de um consenso em relação às condições necessárias de ampliação da lógica da acumulação capitalista que, a partir do avanço do ideário neoliberal esteve diretamente 89 associada aos demais embates e estratégias que tendem a reduzir a esfera política, nesse caso, em particular, a uma questão político-administrativa, ao âmbito das condições de governabilidade (SANTOS JÚNIOR, AZEVEDO e RIBEIRO, 2004). Contudo, não podemos deixar de considerar alguns processos que particularizam as tendências que se desenham, também em âmbito mundial, no campo contra-hegemônico à expansão e consolidação das teses liberais que apontam para uma dimensão bastante restrita de democracia15. A questão local, deste modo, inscreve-se também, contraditoriamente, como forma de resistência aos movimentos expansionistas do capital, especialmente no que concerne às possibilidades que encerra em relação à construção de experiências democráticas que não se alinhem à tendência hegemônica de “redução de suas vias de realização” aos processos de “sufrágio universal nos momentos exclusivos de alternância de poder” (LOSURDO, 2004 e COUTINHO, 2006). Para Leonardo Avritzer “a luta pela redemocratização no Brasil desenvolveu-se fundamentalmente em âmbito local, uma vez que as cidades brasileiras foram o centro da construção do projeto autoritário no país” (2002: 17), visto que parte das grandes cidades constituiu não só o locus do processo de modernização industrial e urbana empreendido pela ditadura burguesa-militar como da emergência de uma sociedade civil mais complexa em termos da composição e prática dos sujeitos políticos. As grandes 15 Domenico Losurdo expõe de forma bastante contundente as fissuras das argumentações que sustentam as teses que afirmam o “desenvolvimento espontâneo do liberalismo em direção à democracia”. Confrontando-as com uma penetrante e consistente investigação histórica ele procura destituir de sentido o mito da associação da democracia ao liberalismo, resgatando suas vinculações históricas aos movimentos de crítica e luta pela superação da dominação burguesa. Para o autor a tradição liberal sempre forjou processos bastante restritivos no tocante à democracia, provocando um enquadramento formalista e atomizado da participação política. “Nos nossos dias, assiste-se a um paradoxo: os que agitam a palavra de ordem da ‘democracia direta’, naturalmente não a que intervém nas fábricas e nos postos de trabalho mas a que prescinde da mediação dos partidos, são precisamente os adeptos do bonapartismo soft, segundo os quais quem designa o líder da nação (no âmbito do regime presidencial) ou o líder de um determinado colégio eleitoral (no âmbito do sistema uninominal) deve ser diretamente o povo atomizado, privado dos seus meios mais modestos de autônoma produção espiritual e política e entregue, inerme, ao poder totalitário dos mass-media monopolizados pela grande burguesia. (2004: 329)”. 90 cidades, em particular, reafirmaram sua condição de expressão dos conflitos sociais, sobretudo daqueles que resultaram no processo de redemocratização, assim como dos decorrentes desse processo, manifestos em “inovações introduzidas pelos movimentos sociais e nos elementos de continuidade próprios aos mecanismos de reprodução do sistema político brasileiro” (IBIDEM: 18). A complexificação da vida social a partir da expansão de uma lógica industrial, cujo alcance não se limita às cidades industrializadas, consolida um modo de vida tipicamente urbano, conforme aponta Henry Lefebvre. Destarte, a conseqüente emergência de novos sujeitos sociais, decorrentes das contradições e lutas desencadeadas na a partir da progressiva especialização da divisão social e técnica do trabalho peculiar a essa nova realidade das cidades, favorece, em confronto com as condições objetivas de acesso ou restrição aos bens e serviços necessários à sua reprodução, a transformação de muitos desses sujeitos sociais em sujeitos políticos. Essa mudança se amplia e se diversifica de forma mais intensa nas grandes cidades e se traduz na proposição de formas de participação que alteram profundamente o significado do processo de redemocratização em curso, na medida em que favorecem a ocupação de novos espaços institucionais, alargando as relações entre o Estado e a sociedade civil. A principal característica desse tipo de participação é a tendência à institucionalização, entendida como inclusão no arcabouço jurídico institucional, a partir da criação de estruturas de representação novas, em termos de objetivos, finalidades, práticas e composição social. Essas estruturas são compostas pela sociedade civil e por representantes do poder público. Os conselhos gestores, conselhos da cidade ou conselhos de representantes distritais, os fóruns metropolitanos ou interestaduais, as câmaras distritais regionais etc. são exemplos das novas formas de participação. Elas pressupõem a existência de uma nova cultura política que fundamente as relações Estado/sociedade civil; relações democráticas em que o debate via argumentação e confronto da idéia entre ideologia se projetos sociais, estejam sempre presentes. Todas as demandas são, em princípio, tidas como legítimas. O espaço de interação entre os diversos atores pode alterar as posições e opiniões desses atores e novos sujeitos políticos se constroem por meio de interpelações recíprocas (GOHN, 2004: 59). 91 As mudanças decorrentes desse processo de redemocratização se traduzem numa nova arquitetura institucional das políticas públicas que passa a incorporar uma dinâmica de maior articulação entre os entes federativos, como a ter na realidade local o foco de sua implantação efetiva. Embora o governo federal ainda mantenha um peso maior no exercício das funções gerenciais, visto que lida com duas dimensões desse processo que são decisivas: o planejamento e a captação dos recursos. Deste modo, o processo de descentralização das políticas públicas que se desenhou no âmbito dessa redemocratização dos espaços públicos - particularmente em função das novas feições assumidas pela relação entre a sociedade política e a sociedade civil, na ampliação do Estado no Brasil -, apoiado nessa característica e na sua vinculação aos processos de valorização do governo local em escala mundial, acabou se configurando num híbrido entre descentralização e municipalização. Se o primeiro termo expressa uma arquitetura institucional mais democrática, o segundo acaba reatualizando um centralismo, mesmo que disfarçadamente, na medida em que a autonomia do poder local é bastante relativazada em função de que o processo de descentralização tem se efetivado mais na órbita da execução das políticas públicas do que em relação aos mecanismos de captação e definição das formas de uso dos recursos. Podemos afirmar que a descentralização constitui uma das expressões e das possibilidades a serem exploradas no que concerne à democratização da vida na cidade, uma mediação das vias institucionalizadas de participação política no âmbito da experiência urbana, visto que se estende para todos os tipos de cidade, ainda que em ritmos diferentes, delimitados pelo perfil que o Estado e a sociedade civil adquirem em cada realidade local. A força do argumento democrático, contudo, não se separa do econômico do ponto de vista teórico e real. O pressuposto que orienta essa concepção é o de que a maior proximidade dos governos em relação aos cidadãos possibilita o aumento da accountability do sistema político. De fato, o controle sobre 92 os governantes pode ser facilitado pela descentralização, já que, com ela, é maior a possibilidades de disseminação das informações, de criação de canais de debates e mesmo de instituição de mecanismos mais efetivos de fiscalização governamental, para citar três dos elementos básicos do processo de responsabilização democrática do Estado. Formas de democracia semidireta, também têm muito mais chances de se realizar no plano real (ABRUCIO, 2006: 85). A busca pela maior eficácia e eficiência no campo das políticas públicas, encerra uma dimensão política da qual não devemos separar as suas conotações econômicas, compreendendo o processo de descentralização apenas do ponto de vista político como potencialmente democrático. Porém, ela se constrói em um contexto no qual a contrareforma do Estado a partir do ideário neoliberal sublinha traços nitidamente restritivos das possibilidades de experiências democráticas que alarguem as perspectivas de ampliação do Estado através de uma sociedade civil mais politizada. A descentralização adquire conceitual e empiricamente dimensões diferentes que não necessariamente se anulam, mas cujas ênfases, de certo, correspondem a um maior ou menor alcance das práticas institucionais que as materializam na esfera local. Pode indicar graus e qualidades distintas de participação dos cidadãos nos diferentes níveis de implantação das políticas sociais, assim como perfis mais ou menos variados de sujeitos sociais e políticos, definindo a extensão dos contornos democráticos dos espaços públicos locais. A definição mínima de descentralização torna-se mais necessária pelo fato de esse termo designar correntemente outros três fenômenos. Um deles envolve o aspecto administrativo. Trata-se de funções de órgãos centrais a agências mais autônomas, o que na verdade é um processo de descentralização administrativa, ou ainda da responsabilidade da cúpula dos gerentes e funcionários da ponta. Além dessa caracterização, descentralização é igualmente utilizada para denominar a transferência de atribuições do Estado à iniciativa privada – privatização ou concessão de serviços públicos – e do governo para a comunidade ou para ONGs. Esses três processos não devem ser simplesmente equiparados à descentralização em seu sentido estrito, embora possam conviver com ela ou mesmo ser impulsionados por mudanças políticas descentralizadoras (IDEM, IBIDEM:79). 93 Os processos de gestão das políticas públicas na realidade local ao passo que expressam tendências e fenômenos que se inscrevem na dinâmica global das relações entre a política e a economia e entre o Estado e a sociedade civil também ganham pulsações próprias, demarcando práticas sociais que singularizam a relação dos sujeitos políticos com e na cidade. A intersetorialidade é uma das práticas sociais que se articula na mediação institucional entre diferentes políticas públicas na esfera municipal. Expande-se a partir do fenômeno da descentralização e como uma decorrência concreta das dificuldades e possibilidades que se apresentam nos processos cotidianos de oferta dos serviços sociais prestados no âmbito das políticas públicas na esfera local. As ações intersetoriais articulam, portanto, práticas e saberes, estabelecem relações entre instâncias de governo diferentes, assim como relações entre diferentes profissionais, podendo, deste modo, materializar perspectivas concretas de organização dos processos de trabalho institucionais no multidisciplinares âmbito ou das políticas trans-disciplinares. sociais Segundo interdisciplinares, Junqueira a “intersetorialidade é uma lógica para a gestão da cidade, buscando superar a fragmentação das políticas e considerar o cidadão na sua totalidade, nas suas necessidades individuais e coletivas” (1998: 14). Como prática que se forja nos processos sócio-institucionais e políticos que se dá, sobretudo, na esfera local, na gestão das cidades e de suas políticas públicas (WESTPHAL e MENDES, 2001), a intersetorialidade revela uma experiência ainda em curso e aberta, podendo sofrer diferentes tipos de apropriações e formas de condução. Pode, deste modo, reforçar as práticas políticas e institucionais que apreendem da vida natural dos sujeitos sociais sua própria potencialidade enquanto sujeito político, reforçando as instituições sociais e as políticas públicas não só como espaços públicos, mas como forma de constituir uma esfera pública. Como pode, também, verter-se como uma racionalidade técnica e administrativa sintonizada aos 94 consensos sociais em torno da restrição da política no cotidiano da cidade, contribuindo para que a vida natural se mantenha disciplinadamente vinculada a uma esfera privada que continuamente se traveste de dimensão pública, organizada em torno de valores e comportamentos funcionais à expansão da lógica da produção da mercadoria. Por estarmos tratando de processos que encerram compreensões e modos de agir social que são distintos no âmbito da vida social, que ganham as ruas e as instituições demarcando formas de viver cotidianas e relacionamentos específicos com as políticas públicas, ou seja, de formas de delimitação dos territórios da cidade que podem ampliar ou não o significado da esfera pública, também estamos nos referindo às práticas e às funções de distintos tipos de sujeitos políticos. Estamos tratando não apenas daqueles que têm nas políticas públicas um componente de suas estratégias de sobrevivência e formas de acesso aos direitos sociais, mas daqueles que através delas operacionalizam processos gerenciais, profissionais e políticos que se sintonizam às disputas ideológicas e aos consensos e dissensos sociais. Aqueles que desempenham funções intelectuais e não os que possuam habilidades intelectuais, segundo Gramsci. A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários” (2000: 20). Os intelectuais individuais ou coletivos, como no caso dos partidos políticos, atuam nos processos de estabelecimento dos consensos sociais, participam tanto das atividades no interior da sociedade política quanto da sociedade civil. Contribuem, através de diferenciados graus de hierarquização de suas funções, dos processos políticos e sócioinstitucionais que dão unidade às classes e suas frações, assim como articulam o conjunto de valores e as formas de apreensão da dinâmica da realidade social a partir de uma diversificada e extensa rede de instituições 95 sociais, constitutivas tanto do aparato do Estado em sentido estrito, ou seja, da sociedade política, quanto dos aparelhos privados de hegemonia que formam a sociedade civil. Vários dos intelectuais modernos se localizam na complexa gama de instituições sociais que, em particular naquelas que cumprem um papel importante na regulação dos modos de vida e das perspectivas de leitura da realidade, como as que compõem as políticas públicas, que desempenham funções destacadas em relação à consolidação e ampliação da hegemonia, mas que são também espaços nos quais as práticas e os valores contrahegemônicos são produzidos e reproduzidos. As práticas dos intelectuais que atuam nas políticas públicas e que moldam as tensões nelas presentes possuem, portanto, uma clara dimensão pedagógica, enquanto práticas de natureza profissionais e sociais que contêm significados concretos no processo de organização da vida social. Práticas que articulam diferentes saberes de forma a tecer o campo das políticas públicas como territórios onde se produzem consensos e dissensos. Os intelectuais, deste modo, cumprem funções organizativas, mobilizadoras ou difusoras com relação aos principais vetores que orientam a vida política, ou seja, a política que se constrói enquanto ação de emancipação e de subordinação dos sujeitos sociais. A captura da vida natural pela trama institucional das políticas públicas não prescinde, portanto, das práticas e saberes dos diferentes intelectuais e de suas diversas funções e formas de organização na cidade. Seja o profissional da educação, da saúde ou da assistência social, sejam os sindicatos de trabalhadores ou patronais, ou ainda os partidos políticos, os intelectuais desempenham essencialmente funções que subsidiam a organização da vida social em suas diversas esferas: a econômica, a política ou cultural. Como pensar as formas como as experiências de descentralização e a intersetorialidade das políticas públicas estão sendo formuladas e conduzidas sem nos interrogarmos sobre as práticas e saberes mobilizados pelos diferentes tipos de intelectuais – individuais ou coletivos - 96 que atuam cotidianamente nas instituições sociais que as materializam na cidade? Quais os relacionamentos que vêm sendo construídos entre esses intelectuais e os segmentos mais pobres da cidade? Como eles têm atuado na delimitação dos territórios das políticas públicas? Se as práticas dos intelectuais são essencialmente pedagógicas, voltadas para a construção de consensos sociais, ou seja, modos particulares de se relacionar e compreender a realidade ergue-se dessas práticas uma singular esfera da vida social que articula política e educação, em sentido amplo. Formas histórica e socialmente produzidas de relacionamento dos viventes com a cidade e mediadas pelas instituições sociais que materializam as políticas públicas. Formas que, como sinaliza Giorgio Agamben, podem ser comunicadas através da linguagem entre os viventes e, portanto, constituírem uma experiência política, como um momento infantil da própria política, ou formas que apenas revelam a incapacidade dos sujeitos produzirem experiências no cotidiano das cidades, posto que estejam separados de qualquer capacidade de uso, na medida em que participam da vida social através da condição de consumo. A apreensão da vida natural pelas políticas públicas nas cidades é uma das estratégias da hegemonia da sociedade de consumo, que deste modo, demarca territórios onde se relacionam não cidadãos com os direitos sociais, não viventes com a política, mas consumidores, capturados através de seus corpos ávidos pelo consumo, com os serviços sociais que lhes são acessados mediante práticas e saberes mobilizados por intelectuais que operam com as políticas públicas através de sua função hegemonicamente institucionalizada nos dias atuais: o consumo. 97 Capítulo 2- Políticas públicas e intersetorialidade. 2.1- Descentralização e intersetorialidade nas políticas públicas: sobre discursos, desejos e esperanças. Pode-se observar que em geral, na civilização moderna, todas as atividades práticas se tornaram tão complexas, e as ciências se mesclaram de tal modo à vida, que toda atividade prática tende a criar uma escola para os próprios dirigentes e especialistas e, conseqüentemente, tende a criar um grupo de intelectuais especialista de nível mais elevado, que ensinam nestas escolas. Assim, ao lado do tipo de escola que poderíamos chamar “humanista” (e que é o tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em cada indivíduo humano a cultura geral ainda indiferenciada, o poder fundamental de pensar e de saber se orientar na vida, foi-se criando paulatinamente todo um sistema de escolas particulares de diferente nível, para inteiros ramos profissionais ou para profissões já especializadas e indicadas mediante uma precisa individualização. Antonio Gramsci, 1989. O ato de acordar, ao se morar em uma cidade não é apenas um simples despertar de uma noite de sono. Acordar em uma cidade é ser despertado por uma organização temporal da vida na cidade, marcada por fluxos, tarefas e responsabilidades que compõem as esferas da produção e da reprodução social de forma particular, típica da vida urbana como sublinha Lefebvre. A organização das atividades cotidianas envolve um conjunto de práticas sociais que são cada vez mais percebidas pelos viventes como se fosse algo íntimo, próprio e pessoal, quando na verdade os 98 fios que as movimentam e as entrelaçam têm um pertencimento histórico às esferas sociais, aos modos de sociabilidade e de vida das classes e suas frações. A vida urbana contemporânea tem potencializado um tipo de subjetividade na qual os pertencimentos sociais são encobertos pela fragmentação e exacerbação do individualismo. Os fios, portanto, não são visíveis e compreensíveis de imediato. Parte desta trama imperceptível é tecida formando o enredo da vida na cidade e resulta de um trabalho coletivo e especializado que, em muitas situações, é exercido por profissionais cuja formação requer escolas estruturadas para produzirem práticas e discursos singulares, como os de professores, psicólogos, assistentes sociais, médicos, terapeutas entre tantos outros. Profissionais que exercem funções políticas e pedagógicas nas instituições públicas prestadoras de serviços sociais, organizações não governamentais, conselhos de política e entidades filantrópicas, atuando na mobilização de vários segmentos sociais, na difusão de idéias e valores, ou seja, subsidiando os processos de elaboração ou reprodução da visão de mundo desses segmentos, no sentido que nos aponta Antonio Gramsci. Parte significativa desses profissionais e dos fios e teias que seus discursos e práticas movimentam só são acessíveis para a maior parte da população pela mediação concreta das instituições sociais, em especial aquelas que materializam as políticas públicas. A satisfação de parcela de suas necessidades sociais depende de um trabalho coletivo, complexo em sua extensão e especializado em sua hierarquia, realizado no âmbito de políticas de ação que as enfrentam de modo singular, a partir de racionalidades que decorrem das disputas dos projetos societários e das dinâmicas burocráticas, ou seja, da grande e da pequena política. Do mesmo modo dependem da maior ou menor visibilidade e movimentação dos próprios fios por parte dos especialistas e dos viventes que despertam a cada dia nas cidades. Por essa razão compreendemos que as tendências de descentralização e intersetorialidade das políticas públicas além das vinculações que possuem com os processos mais gerais da dinâmica 99 societária encerram discursos, desejos e esperanças que se não escapam a essas lógicas mais gerais contêm outra potência. Não podem ser tomadas única e exclusivamente como resultados ou de um processo de democratização ou de racionalização administrativa sintonizada aos ideais neoliberais. Elas comportam pulsações que revelam como essa disputa ganha nuances específicas em cada realidade local, em cada cidade, nos discursos e práticas de distintos viventes. Visto que elas atuam como força criadora sustentadas ao mesmo tempo em medos e esperanças. As possibilidades que as práticas institucionais tecidas por diferentes profissionais e seus discursos têm de superar o sentido fragmentário que a vida urbana movida pelo consumo e pelo individualismo imprime não prescindem das tramas que são articuladas contraditória e institucionalmente nos espaços públicos pelos viventes que ainda insistem em forjar modos coletivos e solidários de enfrentamento dos problemas da cidade, uma subjetividade que não se esvazia de um conteúdo político. A perspectiva de diálogo que se abre com as ações intersetoriais na cidade aponta para um diversificado campo de possibilidades conceituais e práticas, além de sua vinculação a outros fenômenos que ganham densidade teórica e histórica a partir das últimas décadas. Não é por acaso que as reflexões produzidas sobre o tema da intersetorialidade invariavelmente apontam para a sua necessária articulação com o fenômeno da descentralização. O balanço realizado por Ckagnazaroff e Mota (2003: 3-5) acerca do tema aponta, nesta mesma linha de argumentação, para a dificuldade de abordagem da descentralização como um conceito absoluto. Resgatando diferentes contribuições teóricas presentes na literatura sobre o tema, destacam alguns eixos de reflexão sobre esse conceito que tomamos como ponto de partida em nosso estudo: 1- Iniciam considerando a descentralização como estratégia de mudança nas relações entre o Estado e a Sociedade, iniciado nos anos 70 como alternativa desenvolvida pelos países centrais à crise do Estado de Bem-Estar Social, fator determinante para a grande expansão do 100 aparato burocrático da gestão das políticas sociais e, consequentemente, sua ineficácia segundo Junqueira, Inojosa e Komatsu (1997:6). Deste modo a descentralização seria uma resposta voltada para o aprimoramento do funcionamento das políticas sociais. 2- Apontam também as direções distintas que a descentralização da administração pública pode tomar em relação à instância governamental. Neste caso, os autores se referem à classificação de Pimenta (1995:174,175) que elenca como primeira possibilidade a descentralização interna, aquela que se daria em um nível intragovernamental, ou seja, dentro de uma mesma estrutura administrativa; como segunda a que se realiza de dentro para fora, envolvendo tanto os processos de parceria com sociedade como os processos de terceirização, descentralização para ONGs e outras organizações e, ainda, as privatizações; e, por último, a descentralização intergovernamental na qual se processam a federalização, a municipalização e a micro-regionalização. 3- E destacam ainda o sentido da descentralização como transferência de poder por parte do governo central para as suas unidades subalternas. Esta transferência, segundo Pedro Jacobi (1983), implica em dotar os órgãos intermediários de gestão de competências e recursos que permitam desenvolver as ações administrativas de modo mais próximo do cidadão e dos grupos sociais. Os eixos levantados pelos autores em relação ao tema da descentralização sugerem níveis diferenciados de abordagem do fenômeno, seja em relação aos vínculos estruturais com os processos econômicos e políticos mundiais, seja em relação aos elementos mais conjunturais, nos quais as particularidades dos projetos societários conformam desenhos e extensão peculiares à relação entre o Estado e a sociedade civil em determinados contextos históricos. Neste sentido, enquanto uma modalidade de ação de cunho institucional, a descentralização resulta da combinação de processos cujas raízes ultrapassam as necessidades localizadas em um 101 projeto de governo com aqueles que singularizam a realidade social e econômica de cada país e trazem as marcas e tradições de sua estrutura federativa e as feições públicas e privadas que tomam a manifestação dos diversos interesses no campo da sociedade civil. Destarte, para além dos formatos institucionais que possam ter tomado a partir dos anos 90, considerando os projetos governamentais que se sucederam no período, devemos tratar as experiências de descentralização levando em conta que o contexto internacional e nacional em que elas emergem como estratégia de gestão e organização do aparato estatal é profundamente marcado por processos sociais e políticos de grande amplitude e que, emprestam marcas decisivas para a compreensão de seus alcances teóricos e práticos nas últimas duas décadas. Conforme já sinalizado a crise do Estado de Bem-Estar Social figura como um elemento a ser destacado. Contudo suas implicações não repercutem de forma homogênea nos diferentes países e, em particular, no caso brasileiro, cuja experiência de organização de um sistema de proteção social passou ao largo daqueles alicerçados na universalização de serviços e em mecanismos de garantia de mínimos sociais característicos dos países centrais. Mas não podemos ignorar que o desmonte do sistema de proteção social construído nesses países e a construção de alternativas de gestão mais eficazes com relação aos custos de operacionalização da burocracia estatal não tenham tido qualquer impacto entre nós. A busca de uma nova racionalidade gerencial não pode ser analisada de forma deslocada do avanço e consolidação do ideário neoliberal em escala mundial, ainda que sua expansão tenha ocorrido em ritmos diferenciados entre os países centrais, nos países periféricos e mesmo no âmbito continental, conforme destaca Laura Tavares Soares em relação à América Latina. A entrada dos países latino-americanos no processo de ajuste e das reformas é variável no tempo. O Chile, país onde ocorreu a mais radical ruptura político-institucional do continente, inicia o ajuste nos anos 70. Diversos países iniciam seus processos de ajustes nos anos 102 80, com reformas parciais como a financeira e renegociação das dívidas. Mas é a partir do final dos anos 80 e sobretudo início dos 90 que a maioria dos países latino-americanos desencadeia e/ou avança nos ajustes e nas reformas. O “receituário” do ajuste imposto pelos organismos multilaterais de financiamento também sofre mudanças. Na década de 80, o ajuste da economia, com “saneamento” das contas públicas e corte de salários, gastos e investimentos, era para gerar enormes saldos na balança comercial para saneamento da dívida externa. Já na década de 90 muda a fórmula: mantendo-se o corte nos gastos públicos e salários, em vez de produzir saldos comerciais a ordem era importar muito (sob o argumento de que com isso se aumentaria nossa competitividade), passando a pagar o rombo das contas externas com os crescentes fluxos de capital externo que entravam nos países em busca de lucro fácil co títulos públicos e privados, fruto das privatizações e da especulação organizadas e colocadas à disposição pelos Estados Nacionais (2000:23). Sob essas condições a estruturação de um aparato de proteção social, como o que se desenhou a partir das conquistas dos movimentos sociais nos anos 80 e que foram consolidadas na nova arquitetura institucional das políticas públicas com a aprovação da Constituição Federal de 1988, principalmente a partir da afirmação de uma concepção mais ampla de seguridade social16, se desenvolveu sob condições não só adversas, mas a partir de paradigmas antagônicos. A estruturação de uma rede de serviços sociais a partir do Estado amparada na nova concepção de seguridade social vicejou, durante anos, como pauta de luta dos movimentos sociais e de trabalhadores urbanos, como parte das agendas das propostas de reforma do Estado, nos embates político-partidários e nas análises e estudos acadêmicos. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como, mais recentemente, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), por exemplo, expressam o difícil e conflituoso percurso de construção de uma estrutura organizacional 16 A Constituição Federal, aprovada em 1988, em seu título VIII que trata da Ordem Social introduz, pela primeira vez, a concepção de seguridade social alicerçada nas políticas de saúde, previdência social e assistência social. Embora represente um avanço em relação ao reconhecimento do papel do Estado na garantia de direitos sociais básicos da população se manteve muito distante da realidade já alcançada pelos países que experimentaram o Estado de Bem-Estar Social e cujo alcance no campo dos direitos sociais básicos teve uma tradução mais abrangente. 103 de proteção social de âmbito nacional a partir dessa nova concepção de seguridade social. A organização do aparato estatal prestador de serviços sociais a partir da nova Constituição Federal se deu em meio aos processos de disputa pela incorporação das reivindicações dos movimentos sociais na dinâmica institucional do Estado, o que intensificou a ampliação da participação social de diferentes segmentos da sociedade civil nos mecanismos e instâncias de gestão das políticas públicas, em particular na esfera urbana (GOHN, 2001a). Mas também ocorreu em um cenário árido de devastação neoliberal, no qual o entendimento de que não cabe ao Estado o provimento universal dos direitos sociais se articulou a um conjunto de ações dirigidas para o corte dos gastos públicos, a privatização, a centralização dos gastos sociais públicos e a descentralização em nível local. O processo de descentralização, deste modo, aparece como componente importante tanto da agenda democrática quanto do ordenamento ditado pelas teses neoliberais, expressando, portanto, como que lógicas completamente distintas se fizeram presentes na construção da experiência brasileira. Porém cabe ressaltar que: (...) a descentralização neoliberal não tem por objetivo democratizar a ação pública, mas, principalmente, permitir a introdução de mecanismos gerenciais e incentivar os processos de privatização, deixando em nível local a decisão a respeito de como financiar, administrar e produzir os serviços. Foi essa uma das orientações centrais do Novo Federalismo reaganiano, o qual enfrentou uma feroz resistência por parte dos estados confederados, já que era pretexto para diminuir recursos federais destinados aos serviços públicos. Na América Latina, uma descentralização com estas características tem sido enfaticamente defendida pelos organismos financeiros internacionais, condicionando empréstimos para programas sociais à descentralização das administrações das políticas locais, geralmente, em 30% do orçamento total. Fica difícil compreender como esta política poderia gerar equidade em países com desigualdades regionais graves (LAURELL, 1995: 174). A leitura produzida pela autora aponta para aspectos importantes como a vinculação das tendências de descentralização aos processos 104 macroeconômicos e políticos, no caso em relação ao ideário neoliberal, como bem destaca em sua análise, a partir de uma peculiar relação entre a dinâmica global e local ancorada na forte presença dos organismos multilaterais, em especial o Banco Mundial, que desempenharam destacado papel no processo de descentralização a partir do condicionamento imposto a partir dos empréstimos para o desenvolvimento de programas sociais. A descentralização induzida pela incorporação das estratégias neoliberais produziu efeitos significativos no plano concreto e que também resvalou no campo teórico, visto que tal processo representou na esfera local a existência de dilemas, presentes até hoje, sobre as formas de organização das políticas públicas que, impulsionadas pela descentralização administrativa, não dispunham efetivamente de condições financeiras autônomas para a execução de programas e serviços mais diretamente vinculados às necessidades de cada cidade. A alternativa construída em larga escala no plano municipal em todo o país foi a da organização de redes de serviços locais, formando um sistema híbrido de prestação de serviços sociais alicerçados em órgãos de gestão estatal, mas com forte presença de ONGs, instituições filantrópicas e comunitárias que se ocuparam majoritariamente do atendimento direto da população. Do ponto de vista teórico isso acarretou a incorporação nas classificações sobre as formas de descentralização de que as “parcerias” entre o poder público municipal e a diversidade de instituições não estatais na condução das políticas públicas representassem uma das possibilidades efetivas de descentralização, conforme se verifica na abordagem de Pimenta (1995). Para além do escopo neoliberal que induziu a adoção de um determinado padrão de descentralização, combinando a racionalização das políticas públicas, financiamento internacional e processos de privatização17 17 Utilizamos o termo privatização aqui não no seu sentido mais usual quando se refere ao ideário neoliberal, ou seja, como processo mercantil, de compra e venda, mas como um conjunto de ações institucionais em que o Estado se isenta ou diminui suas funções com relação ao desenvolvimento de ações que são constitucionalmente de sua competência, destituindo dos serviços prestados a sua dimensão pública ao transferir ou dividir a sua condução e oferta com outras instituições sociais que 105 dos serviços sociais na esfera local, não podemos deixar de considerar que mesmo numa perspectiva diametralmente oposta, como a que se desenhou a partir da agenda de outros sujeitos coletivos apoiada nas lutas pela democratização do acesso e da gestão das políticas públicas, o processo de descentralização no Brasil encontrou e ainda encontra enormes desafios em razão das particularidades da constituição de nosso sistema federativo e da magnitude de nossas desigualdades sociais, determinadas pela forma singular com que os processos de produção social e concentração privada da riqueza tomaram por aqui. Desta forma, cabe interrogar sobre quais as possibilidades efetivas de descentralização em um país com dimensões continentais? Em que medida a descentralização pode ser uma estratégia de enfrentamento ou de reprodução das desigualdades sociais que se materializam regionalmente? Essas indagações ganham maior destaque ao resgatarmos o estudo realizado por Marta Arretche sobre os diferentes determinantes no processo de descentralização das políticas sociais no Brasil. Assim tomamos o ponto de partida das reflexões da autora como uma aproximação à realidade federativa brasileira que não se esquiva das determinações até então aludidas, mas que sinaliza outros fatores também decisivos. Contudo, se por força da recuperação das bases federativas do Estado brasileiro, União, Estados, e municípios passaram a ser autônomos e independentes no plano político-institucional, no plano econômico, social e administrativo, o Brasil é estruturalmente um país marcado por profundas desigualdades. Vale dizer, os Estados e os municípios brasileiros são profundamente desiguais entre si, seja no que diz respeito à capacidade administrativa para a gestão de políticas públicas, seja ainda no que diz respeito à sua tradição cívica. Mais do que isto, o Brasil caracteriza-se pela existência de uma esmagadora maioria de municípios pequenos, com reduzida densidade econômica, dependentes de transferências fiscais e sem tradição administrativa e burocrática. Tais atributos dos Estados e municípios brasileiros podem ser decisivos na decisão local por assumir a responsabilidade pública pela gestão de programas sociais? Além disto, o conceito de Sistema Brasileiro de Proteção Social é, na verdade, uma agregação de políticas setoriais, cujo não possuem a mesma prerrogativa constitucional, determinando, deste modo um processo de privatização do que é de natureza pública. 106 desenvolvimento institucional ocorreu de modo bastante independente. Isto significa que, para além das distinções derivadas de sua engenharia operacional, estas políticas sociais também divergem no que diz respeito às regras constitucionais pelas quais sua oferta é normatizada e aos mecanismos de policy feedback que interferem no processo setorial de reformas. Tais atributos institucionais das políticas sociais podem ter alguma importância para a extensão da adesão dos governos locais à descentralização? (2000: 17-8) (grifos do autor). Seu estudo situa a descentralização apenas na esfera intergovernamental e, exatamente em função desta delimitação, ilumina aspectos relevantes para podermos pensar a intersetorialidade das políticas públicas na esfera local. O primeiro deles é o de que as desigualdades sociais e administrativas presentes nos municípios e Estados brasileiros impõem fortes obstáculos a uma efetiva adesão ao processo de descentralização visto que a ausência de condições econômicas, recursos humanos qualificados e o tipo de cultura cívica na relação entre Estado e a sociedade civil se não inviabilizam tal processo produzem efeitos que variam expressivamente de uma realidade local para outra. Em segundo lugar, chamamos a atenção para o uso do termo adesão pela autora como decorrência da compreensão de que a descentralização não é um processo espontâneo, mas resultante de uma política deliberada que pode ter contornos claros e precisos ou não, assim como incentivos que na análise da relação entre custos e benefícios podem não ser atrativos aos municípios e Estados na gestão de uma política ou programa social. Destaca a autora que o grau de descentralização, alcançado pelos municípios e Estados, depende do nível de “barganha federativa” que se constrói ao longo do processo. Assim como as diferenças identificadas em relação ao grau de descentralização variam também de acordo com a natureza e complexidade de cada política social setorial. Sob um Estado federativo, em um país caracterizado por expressivas desigualdades regionais e um grande número de municípios fiscal e administrativamente fracos – para os quais pretendese transferir atribuições de gestão de política social – um processo de reforma do Estado capaz de reconfigurar o formato centralizado prévio 107 de um sistema nacional de prestação de serviços sociais não pode ser, sob hipótese alguma, um processo espontâneo. De um lado, o sucesso de uma reforma dessa extensão depende decisivamente da ação deliberada dos níveis mais abrangentes de governo que, interessados na reforma, tenham: i) disposição para implantar um programa descentralizado de atribuições; ii) capacidade burocrática para formular programas adequados e compatíveis com esta decisão; e, finalmente iii) recursos – financeiros e administrativos – para tornar a adesão à descentralização uma opção efetivamente atrativa para os governos locais. De outro lado, o escopo desta reforma depende diretamente de um cálculo dos governos locais, cálculo este no qual os custos e benefícios prováveis derivados da decisão de assumir atribuições são considerados (IDEM, IBIDEM: 248). Considerando as perspectivas abertas pelo estudo de Arretche o processo de descentralização no Brasil se encontra diante de desafios que não o invalidam enquanto estratégia de organização em nível local das políticas públicas seja no âmbito municipal ou estadual. Contudo, alguns desses desafios se colocam em função de uma concepção de proteção social que se forjou a partir da tipicidade de como o Estado se organizou no Brasil e, sobretudo, das suas formas de intervenção nos conflitos de classes. Deste modo, o curso dos processos de descentralização se situa em um período histórico em que os diferentes entes governamentais passaram a assumir um conjunto mais amplo e diversificado de funções na condução dos programas sociais enquanto passavam a lidar não só com as pressões exercidas por forças sociais de diferentes espectros como também com novos canais institucionais de participação social e processos de ajustes fiscais. Por essa razão seria imprudente tomar o processo de descentralização como homogêneo e espontâneo, riscos já assinalados em nossa abordagem, mas também como imune aos avanços e recuos que as correlações de forças de cada conjuntura determinam. É neste sentido que Viana (1998) aponta três períodos bem demarcados para a análise do processo de descentralização no Brasil. O primeiro período tem início no final dos anos 70 no qual se destacam tanto o “movimento municipalista quanto as mudanças na repartição de recursos em favor das instâncias subnacionais”. Neste período foram decisivos, para a autora, o processo de redemocratização e as mudanças constitucionais em 108 1983/84 que ampliaram a participação dessas instâncias no Fundo de Participação de Estados e Municípios. O segundo período tem como marco inicial a aprovação da Constituição Federal em 1988. A principal marca desse ciclo seria o conjunto de iniciativas descentralizadoras de todos os entes governamentais associado ao desenvolvimento de projetos de descentralização no campo das políticas públicas, dentre os quais o grande destaque seria o SUS. Contudo, concorrem também para a particularização desse período, em razão da nova institucionalidade que demarca o campo das políticas públicas, a criação e organização dos conselhos de políticas e programas sociais. O último período apontado pela autora se iniciaria ao longo dos anos recentralização, 90, tendo expressa, como sobretudo, particularidade em relação a tendência de aos recursos da seguridade social. Muito embora a periodização apresentada por Viana contenha uma limitação em função do próprio período em que sua reflexão foi produzida, ao final dos anos 90, não podemos deixar de considerar a peculiaridade de sua análise. Sob seu ponto de vista os anos 90 representaram um retrocesso no processo de descentralização se comparado aos períodos anteriores. Seria a ênfase neoliberal na condução do orçamento das políticas públicas dos governos de Fernando Henrique Cardoso? No entanto, observamos que suas reflexões não deixam de captar as estratégias de descentralização, em particular na esfera municipal, que se desenvolveram apesar das artimanhas orçamentárias que concentraram ou restringiram os gastos públicos a partir de um aparato legal construído em torno da necessidade de ajuste fiscal. Este olhar esteve atento para a dimensão mais política do que organizacional do processo de descentralização. As experiências mais ricas e bem-sucedidas no processo de descentralização das políticas sociais estão fortemente amparadas na mobilização e organização das comunidades, no sentido não só do controle social, mas mais do que isso, de criação de cooperação social (cidadania ativa e responsável). 109 Por outro lado, é essa mobilização que pode neutralizar a tendência de aprisionamento da política pelas elites locais, porque, como bem salientou Putnam (1996), a construção de leis nacionais (externas aos governos locais) não é suficiente para causar mudanças estruturais, pois o desempenho das instituições será condicionado pelo ambiente social, político e econômico em que se inserem essas mesmas leis. Isto é, a efetividade das políticas no plano municipal é dependente da cultura política e institucional local, e somente interesses solidamente organizados podem se opor ou alterar o curso dado pelas instituições (locais) (1998: 30-1). A importância da cultura política local, ou seja, da forma como Estado e sociedade civil se articulam em nível local, constitui um fator que reforça ainda mais a centralidade da cidade como uma mediação fundamental para a análise das experiências intersetoriais. Esse destaque se justifica em larga medida em função de que é na cidade que os viventes produzem relações concretas entre si e com as instituições sociais públicas e privadas que ofertam a gama de serviços sociais que parcela significativa da população utiliza como componente de suas estratégias de enfrentamento das múltiplas expressões da questão social. A proximidade que se experimenta na cidade das dificuldades de operacionalização das políticas públicas, das suas carências administrativas, materiais e financeiras, assim como das condições de participação dos espaços de discussão e de gestão dessas mesmas políticas potencializam a cidade como território privilegiado dos processos de descentralização e das práticas de intersetorialidade. Conforme afirma Junqueira “a descentralização e a intersetorialidade na gestão da cidade trazem implícito a idéia do território. O espaço que as pessoas ocupam e onde manifestam seus problemas e necessidades” (1997: 39). A relação entre a dinâmica global e a esfera local encontra nos fenômenos da descentralização e da intersetorialidade algumas das formas concretas através das quais a vida nas cidades adquire feições políticas da vida urbana contemporânea, aquela na qual os traços universais das mudanças que configuram a sociabilidade típica da sociedade de consumo ganham tonalidades diferentes face às experiências singulares de gestão da vida nua. Ou seja, frente aos modos como que em cada cidade, dada a 110 diversidade de sua cultura política, se produzem formas de resistência dos viventes, se ampliam as capacidades inventivas e se potencializam práticas solidárias e coletivas que não chegam a superar os processos de destituição provocados pela reprodução ampliada da pobreza, mas apontam para outros tipos de relacionamento entre seus modos de vida, sua cotidianidade e as redes de serviços sociais, tecidos por fios e tramas que não apenas reproduzem a fragmentação decorrente da setorialização da vida social. Em escala ampliada as formas como esses traços universais se singularizam na esfera local revelaram, ao longo dos anos 90, as dificuldades do processo de construção da hegemonia de um padrão de vida urbana amparado nos valores neoliberais. Para além da dimensão econômica, nos referimos aqui à universalização de um modo de pensar e de organizar a própria vida em sua cotidianidade. Um processo que confrontava uma vida construída na cidade a partir de formas de sociabilidade que contavam com um mínimo de segurança amarrada por cordões de proteção como o emprego, a família e com a perspectiva de ampliação do acesso ainda restrito aos serviços públicos. Um padrão de vida que passou a escorrer por entre os dedos das mãos como água, refletindo a fluidez e a insegurança dos novos tempos. As dificuldades de organização desse novo padrão hegemônico de vida urbana foram paulatinamente identificadas e incorporadas aos processos de formulação dos mecanismos de gestão governamentais, em particular pelos organismos multilaterais cujas funções ideológicas se ampliaram de forma imensurável no período. A universalização das necessidades da nova ordem do capital sejam elas em relação aos processos de ajustes macroeconômicos ou ideológicos carecia de novas ferramentas conceituais e operacionais que não só superassem as forças de resistência que afloravam como as submetessem à sua tutela. No plano da gestão estatal um desses esforços empreendidos foi o do enfrentamento da crise de governabilidade, termo que passou a ocupar a agenda acadêmica e política em um contexto de dificuldades. 111 Formulada inicialmente como um problema teórico, ligada às condições de legitimação de um governo democrático, a governabilidade rompeu os muros da agenda acadêmica e passou a constituir um problema da agenda política contemporânea, em que ganha seu conteúdo normativo estratégico: como manter a legitimidade de governos que adotam medidas impopulares vinculadas às reformas liberais conservadoras? Nessa perspectiva, as proposições para a superação das situações de instabilidade e de crise de governabilidade passariam pela redução das demandas das demandas sociais e fortalecimento da autoridade do Estado, principalmente no que diz respeito à gestão da política macroeconômica, de forma a enfrentar os desequilíbrios fiscais, o que, de resto resultaria em reduzir as arenas políticas que conformavam os pactos redistributivos associados aos regimes do Welfare State. Dito de outra forma, seria necessário reduzir a dinâmica democrática para conter os excessos de demandas sociais (SANTOS JÚNIOR, 2001: 53). Ressaltamos que o campo conceitual sempre foi tencionado pelos processos de disputas societárias. Não estamos tratando, neste sentido, de nenhuma novidade. O elemento que deve ser destacado, no entanto, diz respeito ao fato de que a forte atuação dos organismos multilaterais na produção de um aparato conceitual para o enfrentamento dos desafios que se descortinavam em um contexto de rápidas e contínuas mudanças decorrentes do processo de globalização foi também rapidamente incorporado no meio acadêmico e subsidiou uma série de reflexões e proposições sobre os processos de gestão no âmbito do Estado e, em particular, na esfera local. Conforme destaca Orlando Alves dos Santos Júnior além das preocupações com relação à crise de governabilidade, cunhada por esses organismos, o próprio conceito de governança, largamente utilizado hoje para tratar das questões relativas à relação do Estado com a sociedade civil na esfera local, também compôs esse elenco categorial forjado fora do universo acadêmico. Em relação ao conceito de governança, percebe-se a mudança de enfoque na abordagem originada nas agências multilaterais, quando esse debate passa a fazer parte da agenda acadêmica e a ser tematizado teoricamente, principalmente no âmbito dos estudos urbanos. Assim, o eixo de análise se desloca da discussão sobre a eficiência e as condições de exercício do bom governo e passa a incorporar outras questões, vinculadas às transformações nas 112 instituições de governo local, de modo a captar a emergência de novas formas de governo que articulam diversos processos políticos e administrativos (IBIDEM: 59). As estratégias de enfrentamento, no plano teórico e administrativo, das dificuldades experimentadas pelo Estado numa conjuntura que demandava um leque de ajustes fiscais e, sobretudo, diante das mudanças no âmbito da sociedade civil, em muito potencializadas pela diversificação de interesses, formas de manifestação e participação social dos sujeitos coletivos, esteve longe de se expressar apenas na órbita nacional. A esfera local ganhava cada vez mais visibilidade visto que “o sistema de relações econômicas globais emergente adquire forma particular, tipicamente urbana, em localidades sob diversas formas enredadas no sistema global” (IANNI, 1996: 69). Ainda que não seja correto generalizar esse traço para a totalidade das cidades, na medida em que de certa forma elas mantêm entre si determinadas relações de interdependência e hierarquia, sintonizadas à nova divisão social e técnica do trabalho, as mudanças e dificuldades decorrentes do processo de globalização acabam por se estender, ainda que não homogeneamente, para o conjunto delas. Deste modo, em maior ou menor grau os problemas relativos aos processos de descentralização, de organização do aparato prestador de serviços sociais, de criação e articulação de redes sociais, assim como as formas de relacionamento do Estado com a sociedade civil, passaram a ocupar lugar de destaque dentre o leque de preocupações das cidades, independentemente de seu porte. A intersetorialidade emerge nesse cenário como uma resposta construída em diferentes experiências de gestão, sobretudo municipais, em relação aos processos de organização das políticas públicas em nível local. Uma modalidade de intervenção alternativa aos padrões tradicionais de enfrentamento dos problemas sociais que pelas próprias condições econômicas e políticas se tornaram mais complexos, revelando a ineficácia dos modelos setorializados. Nesta direção a intersetorialidade é entendida como: 113 (...) a articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social. Visa promover um impacto positivo nas condições de vida da população num movimento de reversão da exclusão social (JUNQUEIRA, INOJOSA e KOMATSU, 1997: 24). Cabe sublinhar que a literatura que trata da temática da intersetorialidade tem sido produzida a partir de um movimento bastante singular atrelado ao esforço de sistematização teórica de experiências desenvolvidas em diferentes regiões do país, mas afirmando uma conotação política que a distancia da perspectiva de tratamento dos processos de descentralização pela via das teses neoliberais. Neste sentido esta produção vai adquirindo uma densidade teórica sintonizada aos esforços societários de consolidação de novas possibilidades de gestão democrática e participativa das cidades. Algumas marcas acabam particularizando essa produção: i) o fato de que as reflexões sobre o significado e alcance da intersetorialidade sejam elaboradas a partir da sistematização de experiências de gestão municipal, em especial em prefeituras com projetos no campo democrático-popular como as de Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Fortaleza e Porto Alegre entre outras; ii) a afirmação da intersetorialidade como uma lógica totalizante e não fragmentária de se pensar não só as políticas públicas, mas a própria cidade; iii) a necessidade de uma mudança de enfoque na proposição e condução das políticas públicas deslocando o foco de interesses do âmbito meramente administrativo para o do atendimento e participação do cidadão. As temáticas da exclusão e do desenvolvimento social aparecem como desdobramento essencial da combinação dessas marcas. (...) É uma nova lógica para a gestão da cidade, buscando superar a fragmentação das políticas, considerando o cidadão na sua totalidade. Isso passa pelas relações homem/natureza, homem/homem que determinam a construção social da cidade. Nessa perspectiva, é interessante ressaltar que a intersetorialidade não é um conceito que engloba apenas as dimensões 114 das políticas sociais, mas também a sua interface com outras dimensões da cidade, como uma infra-estrutura, ambiente, que também determinam a sua organização e regulam a maneira como se dão as relações entre os diversos segmentos sociais (JUNQUEIRA, 1997: 37). A discussão em torno da intersetorialidade figura, deste modo, não como parte de uma agenda acadêmica no campo da administração pública que busca apresentar alternativas de modelos compatíveis com as exigências de modernização administrativa que a vida urbana passa a exigir. Ela se situa em um espectro de preocupações teóricas que se encontra diretamente envolvida com os esforços realizados na dinâmica das cidades, mas não de quaisquer cidades, e sim daquelas em que a combinação de alguns fatores passa a ser decisiva para o desenvolvimento dessas experiências. Concorrem nesta direção: a cultura política local, sobretudo determinada pela ampliação sofrida pelo Estado com a atuação mais organizada e sistemática da sociedade civil, os projetos de governo de partidos de esquerda em sua grande maioria, a capacidade de mobilização e de intervenção dos segmentos profissionais e organizados da população nos processos de formatação e condução das políticas públicas. A intersetorialidade tem como pressuposto prático, semântico e conceitual a própria setorialização das políticas públicas, ou seja, só é possível pensarmos a intersetorialidade como uma tentativa de superação de uma lógica a partir da qual ela adquire significação, a negação de uma tese, enquanto antítese, na medida em que representa uma unidade contraditória. A trajetória das políticas públicas na esfera local sedimenta o terreno sobre o qual as experiências de intersetorialidade se constroem. Ainda que a própria literatura aborde e aponte a necessidade de mudanças em diversos níveis da gestão governamental como forma de assegurar uma efetiva lógica intersetorial, foi no cotidiano das instituições sociais, nas tramas e fios que se tecem nas redes sociais e nos espaços públicos que ela surgiu não só como necessidade, mas como possibilidade, como processo que se constrói no curso das próprias ações dos profissionais e viventes que 115 se relacionam em torno das diferentes dificuldades presentes no acesso e na capacidade resolutiva das políticas públicas na cidade. Os problemas sociais sendo de natureza diversas afetam uma mesma pessoa ou grupo de pessoas, situadas, em geral, no mesmo espaço social. Essa é uma maneira de ver os problemas sociais que ainda não ocasionou mudanças nas práticas de solucioná-los, pois cada política social tem um olhar próprio de ver os problemas sociais e de encaminhar solução. Esse processo desconsidera o cidadão na sua totalidade e tão pouco os serviços públicos, pois estes são oferecidos de maneira fragmentada. Como não uma maneira integrada de ver os problemas, conseqüentemente, sua solução não passa por uma gestão integrada dos serviços públicos (JUNQUEIRA, 2005:1). Não podemos esquecer que as políticas públicas, em que pese adquirirem essa denominação em razão de sua incorporação por diversos sujeitos coletivos em sues processos de luta, não surgiram historicamente como um componente do projeto societário das classes subalternizadas, muito ao contrário, decorrem das formas de controle social sobre essas mesmas classes, como parte das estratégias de enfrentamento pelo Estado da questão social. Estratégia que se particularizou exatamente pela dimensão fragmentária de enfrentamento da questão social, setorializando as necessidades sociais e, consequentemente, a própria realidade social. Se esquecermos ou nos afastarmos dessa dimensão histórica e conceitual corremos o risco de imputar às ações intersetoriais possibilidades que nunca se realizarão, por esbarrarem em limites estruturais, organicamente vinculados à dinâmica da sociedade capitalista e às formas históricas com que a reprodução das condições de produção e distribuição social da riqueza têm se dado. Do mesmo modo não podemos ignorar que se até o momento as experiências de intersetorialidade têm correspondido a processos reais desenvolvidos no campo de gestões municipais com correlações de força favoráveis ao fortalecimento de um esforço coletivo de superação das fragmentações postas pela racionalidade setorial hegemônica das políticas públicas, sua vinculação histórica aos processos de descentralização não 116 inviabilizam ou impedem que outras experiências de organizem afinadas aos paradigmas de eficácia e eficiência que tanto sucesso fizeram nos discursos e práticas governamentais diretamente influenciados pelas bases conceituais produzidas pelos organismos multilaterais. O debate sobre a intersetorialidade assim como a sistematização das experiências concretas compõem também a arena das disputas políticas. As implicações decorrentes das experiências de intersetorialidade assumem um significado singular na trajetória das reflexões teóricas sobre esse tema, visto que passam a servir como parâmetros para a organização e condução novas ações. Neste sentido é bastante compreensível que se estabeleçam quadros de análises comparativas sobre as racionalidades que incidem sobre os dois modelos, evidenciando que esse tipo de debate não se isenta em momento algum de expor suas vinculações políticas e ideológicas. Longe de se firmar como uma produção de caráter normativo ou prescritivo trata-se, antes de tudo, de um tipo de reflexão que pela própria proximidade das questões que afetam o cotidiano dos viventes e dos profissionais que atuam na execução das políticas públicas expõe as feridas da vida na cidade, aborda questões que, embora conceitualmente tratadas, não soam distantes ou assépticas. Elas produzem de imediato uma implicação entre os autores, os leitores e os cidadãos de um modo em geral com as temáticas que examinam. Considerando o exposto, dentre as inúmeras perspectivas abertas por esse tipo de abordagem, destacamos quatro apontamentos referidos na literatura que tomamos como centrais ao longo de nosso processo investigativo. O primeiro diz respeito às mudanças nos processos de gestão administrativa no interior das instâncias governamentais e nos processos de trabalho dos profissionais que atuam no campo das políticas públicas. O segundo refere-se ao campo do conhecimento e das práticas profissionais a partir da afirmação de que a construção de uma experiência de intersetorialidade é também um processo de construção de práticas inter ou transdisciplinares. O terceiro apontamento envolve a mudança de enfoque no 117 tratamento dos problemas sociais que ao se romper com a lógica setorial requer uma nova perspectiva de abordagem, condução e avaliação das políticas, programas e projetos. E, por último, a compreensão de que as experiências intersetoriais possuem um alcance para além da esfera governamental e das próprias políticas públicas, atingindo e envolvendo, sobretudo, a cidade como um todo. A gestão governamental é sempre o resultado da combinação de elementos mais ou menos estruturais, que decorrem do aparato legal de um Estado federativo e das complexas estruturas que emanam do desenho institucional das políticas públicas, com elementos mais conjunturais que variam de acordo com os projetos de governo, os acordos político-partidários e o conseqüente loteamento político dos diferentes escalões da administração pública. Sem perder de vista este marco introdutório as experiências de intersetorialidade acabam por mexer, ainda que pontual e reduzidamente, em alguns processos, quase sempre de natureza administrativa, nas estruturas e fluxos que diretamente passam a ser pensados sustentados nessa outra lógica. As estruturas organizacionais em nossa realidade ainda apresentam, em geral, com um formato piramidal, composto de vários escalões hierárquicos, e departamentalizadas setorialmente por disciplinas ou áreas de especialização. A essas características soma-se um conjunto de práticas de organização do trabalho, como: centralização decisória, planejamento normativo, dicotomia entre planejamento e execução (planos de papel), sigilo e ocultação de informações, formalização excessiva (grande produção de papéis que circulam em rotas horizontais e verticais, para receberem, no mais das vezes, meros encaminhamentos), e distanciamento do cidadão e mesmo usuário, dificultando o controle social (INOJOSA, 1998: 38). A extensão das mudanças nas estruturas organizacionais varia de acordo com o grau de adesão e autonomia que o processo intersetorial vai adquirindo. Embora seja um dado real a correlação de forças que caracteriza o processo de gestão governamental não podemos deixar de considerar que algum tipo de mudança se faz necessário para tornar efetiva a nova 118 racionalidade de operacionalização das ações no campo das políticas públicas. Destarte, reafirmamos que o grau de mudanças provocadas pela nova lógica depende decisivamente do alcance das correlações de forças existentes em cada instância governamental, particularmente em função dos acordos que se costuram em relação ao loteamento político-partidário dos órgãos, secretarias, coordenações e chefias da administração pública. Se por um lado as mudanças neste nível têm limites políticos bem evidentes, por outro no que tange às mudanças nos processos de trabalho as resistências gravitam em outras órbitas: a burocracia interna, os lugares de poder alicerçados nos saberes profissionais, as rotinas fadigadas, mas cristalizadas na cultura organizacional e o sempre incômodo medo de mudar. Contudo é no plano dos processos de trabalho que as experiências intersetoriais se tornam um fato real, ganham visibilidade e expressam a mudança de racionalidade. No modelo tradicional o trabalho é organizado por equipes especializadas para o planejamento, a realização e a avaliação de ações e serviços específicos, em cada secretaria setorial. Essa dinâmica supõe um planejamento geral, com base territorial, acima das secretarias, que articule os planos particulares de cada uma delas e as respectivas redes de serviço. O novo modelo supõe uma outra dinâmica. Haverá, necessariamente, em cada secretaria, um planejamento referido à sua base geográfica e populacional próprias. A articulação desses planos, coordenada através de um colegiado, deverá mediar as eventuais desigualdades regionais, com caráter redistributivo, privilegiando os grupos populacionais em situação ou risco de exclusão social (IDEM, IBIDEM: 44). As mudanças na lógica de organização do processo de trabalho coletivo não se restringem, no entanto, aos momentos de planejamento, execução, monitoramento e avaliação, tão pouco às redefinições das bases territoriais de atuação. Para Rose Marie Inojosa a intersetorialidade ou transetorialidade, como ela prefere referir, tem implicações decisivas no campo do conhecimento, dos saberes e no seu grau de articulação, como uma condição fundamental para a mudança na perspectiva de organização das práticas institucionais. Esse destaque dado pela autora tem uma 119 importância vital para a compreensão do alcance do conceito e das mudanças que são produzidas a partir dessa nova referência pelo fato de que a intersetorialidade não envolve apenas mudanças de forma, mas, também de conteúdo. Não pode ser pensada apenas como um rearranjo organizacional, mas como um enfoque diferente dos problemas sociais que exige uma mudança de comportamento institucional, expressa em processos de trabalhos organizados sob outra lógica. Processos que têm modificado não apenas seus fluxos, mas seus conteúdos, suas linguagens, seus resultados. Por isso que para a autora: Transpondo a idéia de transdisciplinaridade para o campo das organizações, o que se quer, muito mais do que juntar setores, é criar uma nova dinâmica para o aparato governamental, com base territorial e populacional (2001: 105). A mudança nos processos de trabalho mexe, sobretudo, com a linguagem, com as formas de comunicação que se estabelecem na relação dos profissionais com a população. Essa mudança determina uma profunda alteração nos padrões de acessibilidade, conhecimento e relacionamento da população com as instituições sociais. Uma das razões para essa alteração nas formas de comunicação é a ênfase que passa a ser dada à focalização das ações em segmentos populacionais. Não se trata mais de pensar serviços específicos para um conjunto amplo e diversificado de segmentos populacionais, mas pensar o conjunto de ações de saúde, educação, assistência social, entre outras, que devem ser mobilizadas para atender às necessidades de idosos, crianças de 0 a 6 anos de idade, adolescentes do sexo feminino e, assim por diante. Sob esta nova perspectiva as questões referentes às condições de vida de um dado segmento social ganham mais visibilidade, sendo decisivo para se pensar o conjunto de ações que possam atender às suas reais necessidades. Uma perspectiva de trabalho intersetorial implica mais do que justapor ou compor projetos que continuem sendo formulados e realizados setorialmente. Intersetorialidade, ou transetorialidade, não é 120 isso. As vezes, as pessoas usam a expressão intersetorialidade para se referir a conjuntos de projetos que eventualmente estabelecem algum diálogo na hora da formulação ou da avaliação. Mas aqui estamos falando de uma perspectiva muito maior do que essa e que tem um conjunto de implicações para a ação do Estado, seja ela direta ou indireta. Duas coisas são fundamentais sobre formulação, a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos intersetoriais ou transetoriais: - a focalização, com base regional, em segmentos da população, e - a preocupação com resultados e impactos (IDEM, IBIDEM: 105). O último apontamento a que nos referimos em relação à produção teórica sobre a intersetorialidade diz respeito à sua amplitude para além da esfera governamental e das políticas públicas. O entrelaçamento que hoje particulariza as próprias políticas públicas em si já aponta para as dificuldades e limitações de sua compreensão nas fronteiras da esfera governamental. Seja em função da forte presença das ONGs e das instituições filantrópicas nos processos de prestação direta de serviços sociais, seja em razão da criação de novos canais de articulação da sociedade política com a sociedade civil. A própria diversidade de sujeitos coletivos e possibilidades de organização e manifestação de seus interesses: política, associativismo, voluntariado, corporativismo e comunitarismo já revelam que a sociedade civil comporta um leque abrangente e plural de forças sociais. O que acaba se traduzindo em potenciais interlocutores no desenvolvimento das ações intersetoriais, a depender da dinâmica da cultura política em cada cidade ou território. Sob esse prisma os espaços de diálogo entre aqueles que operam com as políticas, programas e projetos sociais e os segmentos sociais aos quais os mesmos se dirigem se não chegam a constituir novidades no cenário da cidade, encerram, invariavelmente, um grande potencial de se transformarem em espaços públicos, nos termos que Maria da Glória Gohn aponta: 121 (...) O espaço público é um espaço de encontro de cidadãos, seres humanos plurais, refletindo e agindo no mundo da vida, exercitando a condição humana. Ele resulta da convivência entre seres humanos e constrói uma arena de liberdade para as interações entre esses seres. Essa concepção está muito próxima de Hannah Arendt, que denomina as relações travadas no espaço público como “ser com os outros” (2004: 71). Trata-se de uma possibilidade e que, portanto, precisa ser construída e que necessita compor a agenda de preocupações tanto dos profissionais quanto dos segmentos sociais a quem as ações se dirigem. Não se trata de um processo simples e tão pouco automático. A construção desta perspectiva se articularia aos esforços já em curso na própria dinâmica da cidade de produção de subjetividades com uma conotação política, em confronto, com a perspectiva hegemônica de exacerbação do individualismo, da perda gradativa dos vínculos e pertencimentos sociais. Embora esta não seja a tarefa central no escopo do processo de construção das experiências de intersetorialidade, não podemos debitá-la dos esforços que a sustentam e particularizam como uma modalidade de intervenção social de outra magnitude política. A construção de espaços públicos nos termos referidos passa a ser um componente, um dos fundamentos que fazem transbordar a experiência de intersetorialidade para além da esfera governamental, alcançando a cidade não como um território demarcado por sistemas, fluxos e áreas programáticas, mas como território vivido, experimentado, em plena demarcação pelas práticas societárias e institucionais dos profissionais e dos viventes que se articulam na trama e nos fios cotidianos da cidade, não apenas reproduzindo a racionalidade consumista, mas emprestando outras possibilidades de ser à vida urbana. Um dos grandes desafios no desenvolvimento das experiências intersetoriais, partindo das premissas teóricas e políticas que temos ressaltado a partir dos autores aqui referenciados, é o de que a construção desses espaços públicos, ancorados numa mudança de perspectiva e alcance dos processos de trabalho institucionais das e nas políticas públicas, 122 possa além de provocar algum grau de superação das fragmentações decorrentes de sua setorialização também contribuir para os processos de produção de formas de sociabilidade mais solidárias e coletivas na dinâmica das cidades, conforme destaca Junqueira. A gestão da cidade exige mudanças e articulação dos diversos atores políticos para a construção do espaço público. Os problemas sociais urbanos que se multiplicam demandam soluções integradas e não setorializadas, pois a realidade social não se materializa de maneira dicotômica. Com a descentralização e a intersetorialidade como estratégias de gestão da cidade permite-se que os diversos segmentos sociais passem a ser sujeitos das soluções dos problemas que afetam a cidade (2005: 7). Cabe destacar que a abordagem das perspectivas abertas pelas experiências de intersetorialidade não pode ser feita de forma isolada dos demais processos sociais, o que acarretaria um recorrente risco de interpretação de enaltecer os méritos de um processo desvinculando-o parcial ou completamente das condições objetivas em que a realidade se movimenta. Conforme já aludimos, trata-se de um campo de disputa conceitual e político e, por isso mesmo, aberto e atravessado de contradições. A linha que seguimos neste resgate da produção tem caminhado na direção de apreender tantos as suas lacunas e contradições, quanto as suas dimensões concretas, propositivas e potenciais. Não há, portanto, vinculação mecânica entre as experiências de intersetorialidade e a construção do espaço público. O que existe é a perspectiva e o desejo daqueles que sistematizaram algumas dessas experiências de que essa dimensão seja incorporada, constitua de forma central parte do esforço a ser empreendido, por se visualizar um potencial criativo nessa direção. O que, sob um olhar não diretamente voltado para o tema em tela, é também percebido e valorizado nas reflexões de Maria da Glória Gohn ao destacar a possibilidade de que os espaços que se forjam a partir de uma dinâmica não estatal, amparado no que ela denomina de “instituições urbanas informais”, possam vir a consolidar a esfera pública. 123 A esfera pública é o lócus do processo de publicização e portanto parte integrante do processo de democratização, por meio do fortalecimento da sociedade civil e da sociedade política. Trata-se de uma esfera que comporta a interação entre os grupos organizados da sociedade, originários das mais diversas entidades, organizações, associações, movimentos sociais etc. A natureza dessa esfera é essencialmente política argumentativa, é um espaço para o debate e crítica, inclusive em instituições urbanas informais, diferenciado do debate no espaço estatal propriamente dito (2004: 74). Portanto, potencialmente, cabe frisar, que as experiências intersetoriais podem se somar aos esforços já em curso na dinâmica política das cidades de afirmação da esfera pública ao colaborarem com a ampliação dos espaços públicos nos quais diferentes segmentos sociais expressem suas opiniões, formulem alternativas e, sobretudo, pensem sobre suas condições de vida estabelecendo diálogos com aqueles que de alguma forma têm responsabilidades sobre os modos como os problemas sociais são enfrentados. Indubitavelmente, envolve um potencial bastante singular na dinâmica da cidade, visto que requer um debruçar-se sobre aspectos concretos que afligem diretamente os viventes, ou seja, tem um atrativo que em tempos de enormes dificuldades de participação social e política não pode ser desconsiderado: a possibilidade de enfrentamento e resolução de problemas que atingem não apenas um indivíduo, mas um grupo social. A interface que a ação intersetorial pode produzir com cidade, no sentido aludido por Junqueira, conforme observamos não se restringe à dinâmica das estruturas organizacionais e nem às políticas públicas. A cidade se organiza a partir de diferentes territórios, modos de vida e canais de manifestação muito diferenciados. A combinação dessas diferentes realidades culturais, econômicas e políticas é que compõe a forma singular com que a vida na cidade flui, mas não necessariamente como ela é pensada e incorporada nos planos, nas políticas e nas instâncias de decisão. Deste modo, não podemos deixar de sinalizar também a importância de que as mudanças provocadas pelas experiências intersetoriais possam ser consolidadas para além de uma gestão de quatro 124 anos ou até menos. Como garantir que conquistas no campo da qualidade de vida de uma cidade não sucumbam às alternâncias de poder? Como construir um certo grau de estabilidade nas formas de relacionamento da sociedade política com as diferentes forças da sociedade civil considerando a tendência de pulverização de interesses em ambas as esferas? Não há uma resposta pronta e acabada e nem se trata aqui de imputar à intersetorialidade essa condição. O que nos interessa é ponderar sobre a importância dos processos de controle social na construção dessas alternativas. Em particular considerando o controle social como: (...) o acesso aos processos que informam decisões da sociedade política, que devem viabilizar a participação da sociedade civil organizada na formulação e na revisão das regras que conduzem as negociações e arbitragens sobre os interesses em jogo, além da fiscalização daquelas decisões, segundo critérios pactuados (RAICHELIS, 2000b: 64). As conquistas sociais, em particular, aquelas que representam significativos avanços nas condições de vida da população mais pobre devem ser pactuadas, garantindo-se a sua continuidade para além dos propósitos iniciais radicados numa plataforma político-partidária ou nas propostas de gestão de algum quadro técnico ou político que tenha conseguido com sua equipe obter êxito no desenvolvimento de determinadas políticas ou programas sociais. Ao longo de nossa investigação ficou patente essa necessidade e por essa razão que damos esse destaque à importância de que os mecanismos institucionais, em particular os conselhos de políticas públicas, sejam parte atuante desse processo de garantia de continuidade das ações públicas. Assim, podem cumprir decisivo papel na própria proposição e acompanhamento de novas lógicas de enfrentamento dos problemas sociais. Deste modo, a ação intersetorial pode ser não só o elemento fomentador de questões a serem tratadas nos espaços de controle social, mas ter ela mesmo nesses espaços o seu ponto de partida institucional. 125 Estamos abordando uma possibilidade ainda muito distante da realidade desses espaços, dada a particularidade de sua atuação ainda muito dependente da dinâmica do poder executivo e a pouca clareza de seus membros sobre sua dimensão propositiva. Mas a referência a esta possibilidade surge a partir do confronto das reflexões teóricas até aqui apresentadas e as particularidades observadas em nossa pesquisa na realidade experimentada na cidade de Niterói. A produção de subjetividades no cotidiano das cidades não é um processo casual, privado de intencionalidades. Acordar na cidade pode passar a significar o pertencimento a um tipo de vida urbana onde os medos e as esperanças sejam a base do desejo de criar. Afinal, por que se produzem teses? 2.2- Os desafios da educação na cidade. A crise atual da educação esconde o seu caráter político. No projeto de sociedade futura diminuem os espaços de participação coletiva: a escola vê interditado o objetivo de promover a criação de um novo tempo para o qual todos deveriam se preparar para participar. Muitas são as evidências presentes em nossa sociedade: não há como negar que faltará emprego para todos que a ele virão a recorrer, já que, atualmente, nem os que se apresentam aptos para o exercício do trabalho encontram lugar na sociedade. Do mesmo modo, não há casas para todos os que precisam morar. O pão, ainda que potencialmente seja capaz de saciar a fome de todos, vem sendo concentrado, como riqueza que não pode parar de crescer, na mão de elites. O sonho virou pesadelo. Célia Linhares, 1993. 126 A educação na cidade se constitui em uma preocupação teórica e política presente hoje na agenda de diferentes sujeitos sociais. Seja em função da tendência de reorganização das atividades regulares que demarcam o campo da política educacional a partir da articulação entre os diferentes entes governamentais, seja em razão do desejo de se imprimir outros rumos à sua relação com os demais direitos sociais e humanos, como nas mobilizações que marcaram a trajetória de incontáveis movimentos sociais e de intelectuais e seus grupos de pesquisa. Por isto é importante pensarmos a cidade também como um território que se forja a partir de práticas educativas contraditórias que expressam nas diferentes instâncias da vida cotidiana tanto formas de sociabilidade que conformam os viventes à lógica do capital, submetendo os valores, as referências morais e as habilidades a serem adquiridos à incessante necessidade de acumulação, como também aquelas que fazem pulsar forças capazes de resistir criando outras possibilidades pedagógicas e civilizatórias, num curso sempre tenso e intenso entre suas dimensões instituídas e instituintes. Contém, assim, uma dimensão educativa, a partir da qual os viventes aprendem, produzem e socializam modos de vida. Neste sentido, quais as práticas educativas que as cidades vêm produzindo e reproduzindo no esforço de organizar as políticas públicas de educação? Quais os territórios que interfaces das políticas públicas estão auxiliando a demarcar no cotidiano da cidade? Estas e outras indagações apontam um caminho repleto de possibilidades e descobertas, visto que articulam algumas das inquietações que hoje gravitam nos horizontes de reflexão e estudos de todos aqueles que se ocupam com a relação entre a educação e a cidade. Contudo, esta abordagem aponta necessariamente para o estabelecimento de uma mediação central: a política. Particularmente em razão de que há um contingente de questões que envolvem a compreensão dos projetos de educação na atualidade e que, conforme sublinha Célia Linhares, devem ser tratadas desvelando seu caráter político. Temos assim uma preocupação fundante em torno de que educação e de qual política estamos tratando 127 quando abordamos as tendências contemporâneas de constituição das experiências de educação pública que vêm sendo forjadas nas cidades. Sobretudo se considerarmos que elas articulam as particularidades da realidade local com os traços mais marcantes do processo de globalização econômica e cultural. A progressiva perda de significado e a descrença que hoje cerca a esfera do que é público e da própria política são duas das dimensões do processo de subsunção da vida social e de suas instâncias à lógica da produção da mercadoria. A mercantilização das relações sociais como parâmetro de organização da vida cotidiana e da dinâmica das instituições é, ao mesmo tempo, produto e forma de produção de uma pedagogia típica e própria da sociedade do capital. Sociedade que ao se constituir a partir do protagonismo revolucionário da burguesia acenou com inúmeras promessas e possibilidades de realização e participação, até hoje não cumpridas e, na maioria das situações, abandonadas ou negadas. A escola, ao invés de um braço político, de um instrumento privilegiado de revolução que se propunha formar um povo de “alguéns” – cidadãos que iriam “vencer na vida” – passa a puro mecanismo de fabricação de “ninguéns”, com único enraizamento na mesma luta titânica pela mera sobrevivência. Em conseqüência, o discurso político sobre a escola torna-se mudo. Fala-se, então, da escola para o conhecimento de qualidade, de qualidade global, voltado para o desenvolvimento de tecnologia e para a ampliação de capital (LINHARES, 1993: 4) (grifos da autora). A escola que figurou como um espaço de construção de “oportunidades iguais ao povo” e de “emancipação da nação” em diferentes discursos e contextos históricos foi paulatinamente transformada numa instituição estratégica no processo de aprofundamento das desigualdades sociais. Enquanto mantinha acesa a expectativa de “dias e condições melhores” contribuía para a produção de subjetividades conformistas aos diferentes dispositivos institucionais de dominação e exclusão na sociedade do capital. Se as políticas educacionais até hoje revelam essa marca, assim o fazem a partir da ocultação de sua dimensão política sob os enunciados de 128 projetos pedagógicos com ênfases variadas na tecnologia, no conhecimento, nas habilidades e nas vocações. Impôs-se, deste modo, ao logo de décadas uma perspectiva de abordagem da escola, assim como da própria educação, como uma instância alheia e estranha à esfera política. Uma tarefa cotidiana e ideologicamente forjada em embates, normas e interdições. Como o movimento histórico é essencialmente contraditório, a escola que surgiu das promessas burguesas tornou-se uma escola real na qual a luta pela conquista da cidadania também passou a ser travada. A escola se transformou numa instituição bastante singular, haja vista se organizar a partir de projetos de educação massificadora e alienante, mas comportar os desejos de uma educação autônoma e criadora. Não apenas ser guiada pelas lógicas excludentes e dominadoras que corporificam a assimetria do poder econômico e político entre as classes sociais em tantos outros dispositivos de poder, mas também habitada por práticas solidárias e implicadas com formas democráticas de se produzir conhecimentos e a própria vida. A escola se torna um singular espaço de disputas tanto quanto em objeto de disputas na sociedade, revelando-se uma instituição ainda potente em meio às inúmeras crises, ameaças e perdas que sofre. Para aquilatar o quanto a escola é atraente e promissora, basta escutar os depoimentos de tantas mães, tantos pais e tantas crianças que, mesmo se encontrando sob os limites da miséria, e, portanto, com fome, sem teto, sem terra e sem trabalho, expressam que seu maior desejo é freqüentar ou fazer os filhos freqüentarem uma escola. Outro indicador, igualmente eloqüente, é a insistência com que tantos estudantes permanecem na escola ou para ela retornam depois de sucessivos insucessos. Por outro lado, os ricos também valorizam, a seu modo, a escola. Caricaturando a questão, é possível dizer que entregam à escola a educação dos seus filhos, esperando não só que esta confirme alguns dos distintivos de classe, como que os ensine algo que os habilite para a vida (IDEM, 2001: 146). A educação enquanto dimensão da vida social - na qual a escola se integra com suas práticas, saberes e relações contraditórias - não tem uma existência independente das demais instâncias da sociedade, como também não é impermeável às esferas da política, da cultura e da economia. 129 Destarte, essa aparente separação ou isolamento apenas traduz a tendência de subtração do político das demais instâncias da vida social, reduzindo-as às particularidades da vida econômica, ou, melhor definindo, da vida econômica que caracteriza a sociedade do capital: uma vida determinada pela alienação. A dinâmica do modo de produção capitalista se estrutura a partir da separação entre aqueles que produzem a riqueza dos meios e condições necessários a esta produção. Esta separação não só sustenta objetivamente os processos formais de trabalho sob a égide do capital como se torna condição essencial para o seu funcionamento contínuo, de sua existência não só como modo de produzir coisas, mas como modo de produzir uma determinada maneira de viver. Para tanto, esta separação que se opera junto aos produtores da riqueza deve ser estendida para outras dimensões da vida social, determinando, em princípio, as mesmas condições de não pertencimento, de estranhamento entre os sujeitos e as coisas que produzem, entre os sujeitos e os meios de que precisam para produzir, entre os sujeitos e suas formas de pensar, projetar e sonhar. Em suma, entre os próprios sujeitos, que pela dinâmica característica ao modo de produção capitalista passam a perceber e a se perceber na realidade de forma invertida: tomando-os como coisas e as coisas como anima, num contínuo processo de desumanização. Vivemos sob condições de uma desumanizante alienação e de uma subversão fetichista do real estado de coisas dentro da consciência (muitas vezes também caracterizada como “reificação”) porque o capital não pode exercer suas funções sociais metabólicas de ampla reprodução de nenhum outro modo (MÉSZÁROS, 2005: 59). Por esta razão o modo de produção capitalista é ao mesmo tempo modo de reprodução social, um modo de viver e de reproduzir as condições necessárias à sua continuidade enquanto tal. Onde a dinâmica da vida social se estrutura e se reproduz a partir da subsunção das relações sociais à lógica da produção da mercadoria, tecendo as tramas das instâncias que a 130 compõe de forma a produzirem visões de mundo que a ampliem e a aprofundem em processos cada vez mais capilares e que atomizam os indivíduos em um “ilusório” modo de vida, como se lhe fosse “único”. A atomização dos indivíduos decorre de um amplo processo de encobrimento dos vínculos de pertencimento que a sociedade capitalista produz de forma cada vez mais ampla e perversa, apoiada em processos ideológicos que esvaziam o sentido da vida pública enquanto a esfera privada é enaltecida, que subtraem das relações sociais sua dimensão política enquanto as traduzem em relações mercantilizadas. Assim, diferentes instituições sociais como a família, o Estado, a justiça e a escola, entre outras, atuam de forma decisiva na internalização dos valores e das formas de conceber a realidade, produzindo e alargando os consensos necessários à reprodução do modo de viver típico à sociedade do capital. A educação, enquanto uma das instâncias da vida social onde a internalização dos valores referentes à lógica do capital se efetiva, envolve, por seu turno, práticas sociais de diversificado espectro. Dentre elas, destacamos o papel da educação formal, que se dá pela via escolarizada, enquanto um dos componentes desta instância da vida social, conforme já abordamos em reflexões anteriores sobre o tema: A assunção da educação no capitalismo ao patamar de campo de regulação por parte do estado não elimina o caráter ontológico da educação e nem a restringe a sua dimensão escolarizada. Por esse motivo, enfatizamos a importância dessa abordagem para a compreensão da relação entre política e educação, pois não se trata apenas de pensarmos a educação escolarizada, polarizada pelas disputas das classes sociais, mas de sua relação com os demais processos que constituem a educação como dimensão da vida social e que sob o sistema do capital tendem a subsumir-se à lógica da mercadoria. É fundamental, neste sentido, pensar que toda educação tem uma função política e que sob o capitalismo se organizou um tipo novo de intervenção e um esforço de controle da vida social, em especial da educação alçada à qualidade de política pública e, por essa mesma razão, à qualidade de direito social. Ressaltamos, portanto, a complexidade adquirida por essa instância, que denominamos de educação, e que, ao se articular organicamente à reprodução da vida social no modo de produção capitalista, passa a ser determinada por suas ricas e pulsantes contradições (ALMEIDA, 2008: 86-7). 131 A educação formal, organizada sob a forma de política pública é, portanto, uma das formas instituídas de internalização dos valores hegemônicos na sociedade capitalista e que a partir das lutas sociais, em especial da classe trabalhadora pelo reconhecimento de seus direitos sociais, tornou-se também condição importante nos processos de produção de uma consciência própria, autônoma desta própria classe e de suas frações. Um território disputado pelas classes sociais fundamentais, cujas lutas se expressam em diferentes contornos e processos que a política educacional assume ao longo da história. Não uma história marcada por legislações e mudanças institucionais intestinas, mas uma história onde a política educacional se relaciona dialeticamente com a dinâmica e as crises da sociedade do capital, a partir de sua singular inscrição nos processos de estabelecimento de consensos e de reprodução da força de trabalho na realidade brasileira. Em sintonia com a perspectiva de análise que adotamos ao longo da pesquisa, estabelecendo as relações entre a dinâmica global do capitalismo e as particularidades da realidade local – em seus diferentes níveis de mediação, seja a realidade brasileira, seja a realidade municipal –, a compreensão da política educacional no Brasil remete, necessariamente, às considerações sobre como que se combinam e se articulam os traços mais universais da relação entre a educação e as mudanças no modo de produção capitalista, em suas dimensões políticas e ideológicas, com as marcas próprias de nossa formação social e econômica. Deste modo, afirmamos que a relação entre a educação e a cidade deve ser examinada a partir da consideração da política educacional como mediação importante que traduz como os processos mais gerais que caracterizam a dinâmica global do capital hoje se articulam com processos institucionais organizados no sentido de assegurar certos graus de consensos sociais e as condições de reprodução da força de trabalho, cujos efeitos e alcances apesar de não se esgotarem na esfera local têm nela uma condição basilar de materialidade. 132 Inegavelmente os horizontes postos para a educação brasileira têm sido desenhados a partir do papel desempenhado pelos organismos multilaterais na formulação de diagnósticos da realidade social e educacional e das diretrizes para as políticas públicas dos países periféricos. Muito embora o papel do Banco Mundial, por exemplo, já se desenvolva desde os anos 50, a partir das ações de financiamento ao desenvolvimento de projetos de educação no Brasil, sua atuação mais estratégica se afirma nas últimas duas décadas do século passado em função do avanço do ideário neoliberal (SOARES,1996). As diretrizes apontadas pelo Banco Mundial condensam um conjunto de interesses oriundos de diferentes frações da burguesia internacional que, sob a hegemonia do capital financeiro, atuam na ampliação de seus negócios e que, por esta razão, necessitam de aparatos institucionais que diminuam a interferência dos Estados Nacionais. Concorrem para o novo papel assumido pelo Banco a combinação de um conjunto bem amplo de processos e necessidades econômicas globais, dentre as quais destacamos: a forte expansão do setor privado de serviços, a demanda por mão de obra cada vez mais qualificada, a consolidação de novos paradigmas de gestão da qualidade dos produtos e serviços, a flexibilização das relações e processos de trabalho, a desterritorialização das unidades produtivas e a disseminação de uma cultura de valorização do consumo. Os diferentes interesses em questão são incorporados nas diretrizes do Banco Mundial que apontam para a necessidade de adoção, por parte dos países do Terceiro Mundo, de medidas que visem uma ampla reforma educacional, sustentada em alguns pilares como: priorizar o ensino fundamental, o desenvolvimento de processos de gestão voltados para a “qualidade e a eficiência” da educação, a condução de reformas dos sistemas educacionais com forte ênfase nas dimensões financeiras e administrativas, a promoção da descentralização e o incentivo à organização de instituições escolares “autônomas” e responsáveis por seus resultados, a convocação de pais e da comunidade para exercerem maior 133 responsabilidade sobre os assuntos escolares, o impulso ao setor privado e aos organismos não-governamentais (ONGs) como co-participantes dos processos educativos e das decisões que lhes afetam, a mobilização e alocação de recursos adicionais para a educação básica, a definição de políticas e de prioridades baseadas em análise econômicas e, ainda, abordarem a ênfase do tratamento da educação numa perspectiva eminentemente setorial (TORRES, 1996). Estas diretrizes elaboradas para um amplo conjunto de países foram em grande medida adotadas no Brasil a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso e mantidas no governo Lula. Mas a sua adoção acabou por reforçar processos de exclusão já consolidados em nossa trajetória política e educacional, o que revela que o processo de subordinação do país à nova ordem internacional alicerçada no plano político na expansão neoliberal e no plano econômico na flexibilização dos padrões de produção tem ressonâncias para além daquelas que de imediato possam ser projetadas, visto que estamos lidando com uma realidade já marcada por profundas desigualdades sociais. O que queremos realçar do exposto nesta seção é que a defesa da educação básica para uma formação abstrata e polivalente pelos homens de negócio – condição para uma estratégia de qualidade total, flexibilização e trabalho integrado em equipe – é uma demanda efetiva imposta pela nova base tecnológico-material do processo de produção. Esta perspectiva sinaliza o horizonte e os limites de classe, os dilemas e os conflitos em face da educação e formação humana que, historicamente vêm reforçados por uma sobredeterminação do atraso e do caráter oligárquico, parasitário e perversamente excludente das elites econômicas e políticas. Por outra parte, a natureza da materialidade histórica das relações capital-trabalho em face da nova base científicotécnica, situa o embate contra-hegemônico no campo da educação e formação humana, na perspectiva democrática e socialista, num patamar com uma nova qualidade. O conhecimento e sua democratização é uma demanda inequívoca dos grupos sociais que constituem a classe trabalhadora (FRIGOTTO, 1995: 170). O processo de globalização, ao longo dos anos 90, produziu uma agenda ampla a partir das demandas geradas pela nova ordem mundial que foi incorporada pelos organismos multilaterais e pautou os debates dos 134 fóruns mundiais e regionais promovidos, sobretudo, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, além do Banco Mundial - conforme já destacamos - o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), representando as agências de financiamento, como também os órgãos de cooperação técnica como o Programa das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), influenciaram decisivamente a política de educação no Brasil. O Plano Decenal de Educação para Todos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização dos Profissionais do Magistério (FUNDEF), a proposta governamental de Plano Nacional de Educação (PNE) e o Programa de Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação – Bolsa Escola (PNRM) foram elaborados em consonância com as diretrizes dos organismos multilaterais e com as recomendações e deliberações oriundas de conferências promovidas pelos órgãos de cooperação técnica sobre temas centrais para a condução das políticas públicas. Dentre elas destacamos: a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, também conhecida como a Conferência de Jomtien, em função do local onde foi realizada (Tailândia, em 1990), a Cimeira Mundial em Favor da Infância (Nova York, em 1990), a Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, em 1993), a Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, em 1995) e a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, em 1995). Cabe destacar que de um modo geral as referidas conferências abordaram questões que já se encontravam nas pautas de mobilização e luta dos movimentos sociais brasileiros e que parte das recomendações aprovadas também representarem coincidiu passos com importantes os interesses para a deles, construção além de de um 135 reconhecimento, em escala mundial, dos direitos humanos e dos segmentos sociais envolvidos. No entanto, as contradições deste processo são também muito flagrantes em razão da capacidade dos organismos multilaterais interferirem na produção destas agendas e fornecerem os subsídios conceituais para a abordagem, muitas vezes genérica, dos problemas tratados, como também de proporem formas de enfrentamento alicerçadas em uma ação que não cobra a responsabilidade pública do Estado e apela à participação comunitária, empresarial e familiar, esvaziando o conteúdo político e as condições de participação da sociedade civil organizada. Nesse contexto é que se deu a formulação o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003) que, segundo Saviani, tinha como propósito “servir de instrumento que viabilizasse a integração das três esferas governamentais no enfrentamento dos problemas da educação”, contudo acabou adquirindo o sentido “pragmático de atender a condições internacionais de obtenção de financiamento para a educação, em especial aquele de algum modo ligado ao Banco Mundial” (SAVIANI, 2008: 183). Tratou-se, portanto, de um documento que serviu apenas para reafirmar algumas ações do governo federal, sem produzir qualquer outro impacto de maior alcance. Diferentemente de planos anteriores esse se voltou exclusivamente para o ensino fundamental18, incluindo a educação infantil, especialmente na faixa de 04 a 06 anos, expressando sua forte inspiração nas deliberações da Conferência de Jomtien (1990) e a preocupação em incorporar as prioridades alinhavadas pelos organismos multilaterais para o campo educacional. O impacto das diretrizes do Banco Mundial no campo educacional se tornou bastante visível a partir da aprovação da nova LDB em 1996. Ainda que sua implantação tenha se dado em um cenário de resistências tanto no campo político quanto no educacional e sua estrutura em si não possa ser 18 Demerval Saviani destaca na análise que produziu sobre o plano que, seguindo as referências da “Declaração Mundial sobre Educação para Todos” proclamada em março de 1990 em Jomtien, o mesmo se refere à educação básica como expressão equivalente de educação fundamental (2008). 136 referida como aquela que determinou as mudanças mais significativas que a política educacional sofreu, trata-se de um marco que baliza o confronto entre projetos educacionais distintos. O próprio processo de sua tramitação no congresso revelou uma conjuntura extremamente desfavorável à mobilização empreendida pelos movimentos sociais e, em particular, da comunidade educacional em torno do Fórum em Defesa da Escola Pública na LDB, que reunia cerca de 30 entidades de âmbito nacional (SAVIANI, 1997). Embora a LDB aprovada contemplasse algumas inovações importantes e assegurasse certas conquistas no campo educacional19, acabou por favorecer a adequação da legislação educacional ao processo de flexibilização da esfera da produção e às novas feições assumidas pelo Estado. A arquitetura da política educacional posterior à aprovação da LDB se estruturou a partir de uma série de legislações complementares aprovadas, majoritariamente, na forma de decretos e portarias. Cabe destacar que a política de educação, em que pesem as particularidades desta área, não se distanciou do projeto de “reforma gerencial20” do Estado que se forjava no período e que forneceu características bem acentuadas à organização das políticas públicas. No campo organizativo e da gestão, consagra-se o dualismo e a fragmentação, potencializa-se uma democracia formal e tecnocrática e uma pseudodescentralização e autonomia financeira, de gestão e polítco-pedagógica. O Estado estabelece um rígido controle mediante os mecanismos de avaliação e de financiamento. A educação transita da política pública para a esfera do mercado ou para a assistência e a filantropia (FRIGOTTO, 2001: 70-1). 19 Referimo-nos aqui, particularmente ao reconhecimento da educação especial e da educação infantil como áreas da política educacional e que trilharam historicamente um caminho de luta que, não se esgota no seu reconhecimento legal, mas tem nele uma etapa importante desta trajetória de mobilização social e educacional. 20 O alinhamento da proposta de “modernização” do Estado brasileiro sempre foi explicitamente vinculado à dinâmica da globalização e o escopo teórico e ideológico desta “reforma”, conceituada por Luiz Carlos Bresser Pereira, como de cunho “gerencial”, se sustentou em princípios como: a busca pela qualidade da gestão; a redução de gastos, a terceirização, a criação de agências executivas e o incentivo à atuação das organizações sociais na condução das políticas públicas (PEREIRA, 1998). 137 O acirramento das disputas no campo educacional fica mais evidente no processo de elaboração do Plano Nacional de Educação quando foram apresentados em 1998 na Câmara dos Deputados dois projetos de lei: um decorrente dos esforços empreendidos pelo próprio governo federal e elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) na gestão de Fernando Henrique Cardoso e outro apresentado pela oposição (pelo Deputado Ivan Valente do PT) e cujo processo de elaboração se deu a partir da constituição do Fórum Nacional de Educação que com a perspectiva de ter um caráter permanente deveria não só formular a proposta de Plano como ter a tarefa de acompanhar e avaliar a sua execução. Este plano foi elaborado durante o I Congresso Nacional de Educação (CONED), realizado em agosto de 1996 na cidade de Belo Horizonte, e aprovado em novembro de 1997, na mesma cidade, onde foi realizado o II CONED. A disputa entre os dois projetos prosseguiu durante cerca de três anos e somente em 09 de janeiro de 2001 o Plano Nacional de Educação foi aprovado (Lei nº 10.172), atendendo às disposições contidas no projeto do próprio governo. A preocupação com a elaboração de planos, como forma racional de planejamento no campo educacional já data desde o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” em 1932, contudo a aprovação do PNE de 2001 representa um importante marco na dinâmica da política educacional visto que expressa de forma clara a marca da racionalidade financeira na educação, tornando bastante evidente sua adequação às diretrizes dos organismos multilaterais. Advindas, sobretudo, dos movimentos ligados à defesa da educação pública e que se alinharam na construção do plano apresentado pela oposição, denominado “Plano Nacional de Educação: Proposta da sociedade brasileira”, parte substantiva das críticas que o PNE recebeu recai sobre o detalhismo na abordagem dos temas concernentes à centralização da política e a imprecisão com relação aos prazos e aos meios para se atingir determinadas metas (VALENTE, 2001). Em geral o PNE reafirmou o que já vinha sendo desenvolvido no âmbito da política educacional no governo de Fernando Henrique Cardoso, 138 perdendo deste modo, a sua função como instrumento de planejamento no campo educacional. O que ficou ainda mais acentuado em função do excessivo número de metas e da ausência de clareza nas condições de seu alcance. Compartilhamos das reflexões produzidas por Demerval Saviani (2008) de que a indicação no plano de um grande número de metas vinculadas ao governo federal reforça o papel centralizador assumido por esta instância governamental, previsto para atuar na elaboração de documentos, instrumentos de avaliação e na definição de parâmetros e condições de funcionamento, particularmente no campo da educação básica, área cuja prerrogativa não pertence ao governo federal, mas à esfera municipal. A aprovação do FUNDEF, que também se deu na esteira das orientações dos organismos internacionais, se constituiu em uma intervenção que assegurasse, do ponto de vista da adoção de artifício contábil na definição das bases de financiamento da educação, a prioridade de investimentos no ensino fundamental. Seus resultados apontam que de fato ocorreu um nivelamento de recursos por matrícula dentro de cada estado, um dos objetivos do fundo. Contudo, não representou acréscimo de recursos novos na área de educação, em especial no que tange a participação do governo federal que atuou mais incisivamente na redistribuição de um conjunto de recursos já existentes (DAVIES, 2008). O FUNDEF foi criado em 1996 através da Emenda Constitucional 14 e regulamentado pela Lei nº 9.424/96 e pelo Decreto nº 2.264/97. As alterações na Constituição decorrem da necessidade de uma adequação legal que amparasse as mudanças na política educacional. Visavam também permitir a intervenção da União nos estados e municípios que não aplicassem o percentual mínimo previsto no novo fundo como também alterar de 50% para 60% o percentual de recursos que estados e municípios deveriam aplicar para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental, além de reduzir a contribuição da União de 50% para 30% em relação à mesma finalidade. Cabe ressaltar que esses percentuais incidem 139 sobre os 18% e os 25% que a União e os estados e municípios, respectivamente, são obrigados constitucionalmente a investir em educação e que compõem o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) constituído da arrecadação do salário-educação. Verifica-se que o sentido básico da Emenda foi redefinir o papel do MEC, que ocupava uma posição lateral na questão relativa ao ensino fundamental, de modo a colocá-lo no centro da formulação, implementação, avaliação e controle das políticas voltadas para esse nível de ensino. Como o coração do exercício da prática política consiste na capacidade de alocação de recursos, a questão do central, aí, residia na criação do Fundo, o que se vislumbrou viável pela alteração do artigo 60 das disposições Transitórias (SAVIANI, 2008: 84). A legislação determinava que os recursos do FUNDEF fossem constituídos de 15% dos impostos arrecadados pelos municípios e estados através do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do Fundo de Participação dos Estados (FPE), do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto sobre Produtos Industrializados Proporcional às Exportações (IUPIexp) de que trata a Lei complementar nº 87/96 (Lei Kandir) e complementados, no caso dos estados que não atingissem o valor mínimo nacional por aluno/ano, com recursos vindos da União. O fundo estabelecia, portanto, como prioridades a definição de um valor mínimo por aluno a ser investido, procurando com isso manter um equilíbrio entre o número de matrículas em cada rede de ensino e os recursos a elas destinados, assim como a utilização de 60% desses recursos na remuneração dos profissionais do magistério, mantendo-se, em tese, o mesmo princípio de proporcionalidade. A criação do FUNDEF foi mais um exemplo da prevalência da racionalidade financeira no ordenamento da política educacional. Não se trata de desqualificar a importância dos recursos financeiros em qualquer setor das políticas públicas, muito menos na área de educação, contudo o processo que se forjou no período e se estendeu pelo governo sucessor ao não promover nenhum acréscimo de recurso novo para área, alimentou a 140 tese de que “não faltam recursos na educação”, o que ocorre é que se “gasta mal”. Assim a eleição de prioridade para os investimentos no ensino fundamental, além de atender às orientações dos organismos internacionais, dada a definição das prerrogativas dos entes governamentais em cada nível de ensino definidas na Constituição Federal de 1988 e na LDB de 1996, evidencia que a perspectiva de descentralização apontada pelos mesmos organismos tomou uma feição particular no Brasil, como demonstra o modelo de planejamento e financiamento adotado pela União. Ainda que tal escolha possa ser em parte compreendida pela dimensão federativa de nossa república, na qual cabe de fato à União a responsabilidade de garantir condições de equidade no campo das políticas públicas, o que se desenhou a partir deste formato de atuação na área de educação revela que esta não foi a principal preocupação do governo federal com a criação do FUNDEF. Observamos que o processo de “descentralização” que se operou na área de educação se deu através da diminuição da participação da União no montante de recursos e do aumento da participação de estados municípios, além de uma municipalização induzida pela combinação entre as responsabilidades constitucionais de cada ente com a educação pública e as novas condições de financiamento do setor. O “Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação - Bolsa Escola” foi criado em 11 de abril de 2001 com a aprovação da Lei 10.219, ainda na gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso, expressando uma mudança de postura do governo em relação às estratégias de enfrentamento da pobreza conduzidas até então ao longo dos seus dois mandatos. A partir dessa reorientação, o governo procurou investir, em seu penúltimo ano de mandato, na criação de uma “rede de proteção social” assentada em programas de transferência direta de renda. A introdução dos PGRM na agenda governamental brasileira data do início dos anos 90 quando o senador petista Eduardo Suplicy apresentou no senado um projeto de Lei Federal propondo a criação do Programa de Garantia de Renda Mínima. Ao longo do mesmo período foram desenvolvidas experiências em 141 nível local de programas desta mesma natureza como o Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima da Prefeitura de Municipal de Campinas/SP, o programa, com a mesma denominação, realizado na Prefeitura de Ribeirão Preto/SP, o Programa Bolsa-Escola implantado no Distrito Federal e o Programa “Nossa Família” da Prefeitura de Santos/SP (YASBEK, SILVA e SILVA e DI GIOVANNI, 2004). O Programa Nacional de Renda Mínima, conhecido como “Bolsa Escola”, teve como um dos elementos que lhe conferiram particularidade a sua vinculação institucional ao MEC. Muito embora a tendência de constituição dos programas desta natureza apontasse para a necessária relação entre as estratégias de enfrentamento da pobreza e a política de educação, sua esfera de atuação era sempre recomendada em relação ao nível municipal, como parte dos indicativos de descentralização das ações no campo das políticas públicas (LAVINAS e VARSANO, 1998). No caso brasileiro, as iniciativas de experiências municipais em curso ao longo dos anos 90 antecederam a elaboração de uma política de alcance nacional no âmbito do ensino fundamental que passou a ser coordenada pelo MEC O programa garantia uma bolsa de R$15,00 por cada dependente com idade entre 06 e 15 anos matriculado no ensino fundamental, até o máximo de 03 dependentes por família, sendo exigida uma freqüência escolar igual ou superior a 85%. Além da freqüência escolar eram desenvolvidas ações assistenciais e pedagógicas de natureza “socioeducativas” realizadas pelas administrações municipais em parcerias com as instituições da comunidade e apoiadas pelas Secretarias de Educação, Assistência Social e Saúde. O quadro institucional no qual se desenhou essas ações no campo educacional: a crise fiscal, o projeto de “reforma gerencial” do Estado, a incorporação das diretrizes dos organismos internacionais, as demandas oriundas dos processos de flexibilização da produção, o avanço do ideário neoliberal e a inserção subordinada na dinâmica da globalização econômica se não apontava significativas mudanças para o novo século que se iniciava ao menos parecia que poderia ser enfrentado sob outras condições com a 142 eleição presidencial de Lula e as expectativas em torno de se levar para o governo federal um leque bem promissor de experiências do Partido dos Trabalhadores na esfera local. Em relação ao campo educacional essa expectativa talvez até fosse maior em razão de que a luta travada pelos movimentos da sociedade civil e pelos educadores em relação à aprovação da LDB e do PNE contou com o forte apoio do PT. A expectativa foi sendo frustrada na proporção que os rumos da economia, da organização do Estado e das propostas governamentais para as políticas públicas, ainda que apresentassem alguma novidade em relação ao governo anterior ou resgatassem preocupações comuns entre as agendas dos movimentos sociais e a do PT, não sinalizava nenhuma perspectiva de ruptura com o modelo anterior. Muito embora se tenha identificado uma mudança em relação à dificuldade de diálogo com a sociedade civil organizada que o governo Fernando Henrique Cardoso construiu deliberadamente como parte das estratégias neoliberais de enfraquecimento dos movimentos sociais, ela não chegou a produzir um alargamento ou mesmo a potencialização democrática da sociedade política em relação à sociedade civil. As propostas governamentais para o campo educacional foram construídas a partir de elementos que advinham da manutenção da estrutura neoliberal do Estado e da hegemonia do capital financeiro assim como de uma agenda pactuada entre as forças de composição do governo em torno da necessidade de dotar as políticas públicas de uma dimensão não só inclusiva como redistributiva para o enfrentamento da exclusão social. O que se expressa na extensão do FUNDEF com a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), na unificação de diferentes programas sociais, incluindo o “Bolsa Escola”, no Programa Bolsa Família (PBF), na elaboração do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e mais 143 recentemente na deflagração do processo de elaboração do novo Plano Decenal de Educação (PDE 2011-2020)21. O FUNDEB foi regulamentado pela Lei 11.494 de 20 de junho de 2007 após um longo percurso de alterações desde que foi apresentada pela primeira vez como Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em 1999 por deputados federais do PT (DAVIES, 2008). A justificativa em relação à necessidade constituição do novo fundo se deu em razão de que o anterior deixou de fora as áreas de educação infantil, a educação de jovens e adultos e o ensino médio e os seus respectivos profissionais. A inclusão das novas áreas, ampliando o enfoque do ensino fundamental para a educação básica, de fato representou uma significativa mudança em termos políticos e conceituais, além de expressar uma ação concreta, ainda que com enormes deficiências, no enfrentamento de um dos problemas que sempre esteve presente no horizonte das lutas dos movimentos sociais e dos profissionais e intelectuais vinculados à educação que é o do financiamento daqueles níveis de educação. Apesar das críticas formuladas pelo próprio governo Lula às lacunas do FUNDEF, apresentada na justificativa para a aprovação do FUNDEB, no que tange a falta de recursos novos na área de educação, o 21 Evidentemente a eleição desses programas foi feita em razão do nosso interesse de estudo em abordar a relação entre a educação e a cidade, o que implica, em certa medida, priorizar o tratamento daquelas ações e programas cuja incidência sobre a esfera local e as demais políticas públicas seja mais significativa. Deste modo, as ações em torno do ensino fundamental e da educação infantil acabam tendo mais destaque que as da educação de jovens e adultos ou da educação superior por exemplo. Mas isso não significa reduzir as particularidades dos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula ao conjunto de programas e leis referidos ao longo deste capítulo. Sobretudo porque identificamos elementos que os aproximam e os particularizam em relação a outras dimensões da política educacional como a ênfase na definição de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a organização de sistemas de avaliação e suas extensões como o extinto Provão e o atual Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE), o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), a criação de índices e avaliação como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e o Programa Universidade para Todos (PROUNI), cuja tematização exigiria outra tese. Assim, alguns aspectos da política educacional de um ou outro governo serão referidos ao longo do próximo capítulo em função de sua relação com o nosso problema de estudo, ainda que não apresentados aqui neste momento, cuja preocupação central foi a de destacar marcos que nos auxiliassem na compreensão de como a política de educação nos dois governos se configurou objetivamente numa mediação entre a dinâmica de uma sociedade urbana que se hegemonizava a partir de processos cada vez mais globalizantes e os modos particulares como as cidades, e em nosso estudo, a cidade de Niterói, constroem práticas educativas que podem ou não potencializar sua dimensão educadora. 144 artifício contábil se manteve como uma espécie de traço que particulariza a política educacional brasileira nas últimas duas décadas. Os impostos inicialmente previstos para o FUNDEF permaneceram os mesmos alterandose apenas o percentual que deveria ter um aumento paulatino em relação aos 15% originais. No FUNDEB esses percentuais seriam de 16,66% em 2007, 18,33% em 2008 e de 20% a partir de 2009, lembrando que a legislação determinou a duração do novo fundo por 14 anos, ou seja, até 2020. E o “dinheiro novo” viria da arrecadação provisória, em 2007 e 2008, de 6,66% e 13,33%, respectivamente, até atingir a definitiva também de 20% dos seguintes impostos: Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR), Imposto de Transmissão “Causa Mortis” (ITCM) e das receitas da dívida ativa, multas e juros de mora dos impostos que compõem o fundo. Deste modo, segundo Nicolas Davies o padrão de financiamento não se alterou, pois o único recurso de fato novo resulta apenas da complementação da União quando cada estado não atinge o valor mínimo por matrícula. Já o Programa Bolsa Família acabou por se transformar no principal programa do governo Lula pela magnitude que tomou do ponto de vista de sua cobertura22, por representar uma alternativa construída dentro do governo face ao paralelismo das ações que se desenhava no campo da assistência social – dando continuidade a uma das marcas do governo de Fernando Henrique Cardoso – com o lançamento do Programa Fome Zero, pelos impactos que produziu na redução do número de famílias que se encontrava abaixo da linha da pobreza23 e pela carga simbólica que resultou 22 Dados da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) indicavam a cobertura de 12.472.540 famílias até setembro de 2009 (BRASIL/MDS/SENARC, 2009). 23 Não há um consenso a respeito do real impacto do Programa Bolsa Família sobre a redução dos índices de pobreza, mesmo porque as variações sobre que índices considerar ainda são uma constante nas reflexões teóricas e políticas sobre o tema como observam Sonia Rocha (2005) e Eduardo Stotz (2005). Contudo, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD) de 2004, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta uma redução no número de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza (utilizando os critérios adotados pelos próprios programas governamentais) da ordem de 34,1% para 31,7%, Barros, Carvalho e Franco (2006) em 145 num forte apelo eleitoral. Ele foi criado através da Medida Provisória nº 132 que, posteriormente, foi convertida na Lei 10.836 de 09 de janeiro de 2004 e regulamentada pelo Decreto 5.209 de 17 de setembro de 2004 com o intuito de criar o Cadastro Único e unificar as ações e os programas de transferência de renda do Governo Federal: o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação - Bolsa Escola, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA), o Programa de Renda Mínima vinculada à Saúde (Bolsa Alimentação) e o Programa Auxílio Gás. É destinado às famílias em situação de extrema pobreza e de pobreza e tem como critério a renda mensal per capita de R$60,00 (sessenta reais)24. As famílias que se encontram na condição de extrema pobreza recebem hoje o benefício básico, independente da composição familiar, de R$58,00 (cinqüenta e oito reais). E nas famílias que tenham crianças ou adolescentes de até dezessete anos na escola os benefícios são variáveis: a cada criança ou adolescente entre zero e quinze anos, elas recebem R$18,00 (dezoito reais) por cada um, até no máximo três. Já o benefício variável para as famílias já cadastradas no PBF que tenham adolescente de até dezessete anos na escola é de R$30,00 (trinta reais) por cada um deles, até no máximo de dois beneficiários. O PBF é um programa de transferência de renda que tem como condicionalidades para permanecer recebendo o benefício a realização de exame pré-natal, acompanhamento nutricional, acompanhamento de saúde e freqüência escolar de 85% em estabelecimento de ensino regular. Diferentemente do extinto Bolsa Escola o PBF não é um programa vinculado à área de educação do ponto de vista organizacional, embora mantenha a interface com essa política. A principal mudança operada diz reportagem publicada em O Globo avaliam que 20% da redução da desigualdade verificada na pesquisa do IBGE se devem aos programas de transferência de renda do governo federal. Em estudo coordenado por Neri (2007) pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro o autor também destaca o peso dos programas de transferência de renda na redução dos índices de miséria e de desigualdade social do país durante o governo Lula. 24 Inicialmente a renda per capita era de R$50,00, sendo hoje de R$60,00 para a definição das famílias em situação de extrema pobreza. E as famílias em situação de pobreza são as consideradas com renda per capita que variava entre R$50,01 e R$100,00 e hoje na faixa entre R$60,01 e R$120,00. 146 respeito ao processo de fortalecimento da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que se reorganiza a partir de uma preocupação advinda das lutas sociais pelo reconhecimento da assistência social como política pública integrante da Seguridade Social em conformidade com o que está definido na Constituição Federal de 1988. A unificação dos programas sociais de transferência de renda representou um avanço nesta área, na medida em que antes encontravam-s espalhados por três ministérios diferentes. O lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) se deu em 24 de abril de 2007 sob circunstâncias bem particulares. Primeiro porque ainda se encontrava em vigência o Plano Nacional de Educação elaborado para o período 2001-2010. Em segundo lugar, e talvez seja esta a razão mais importante, porque veio no bojo do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) o que determinou a apresentação por cada ministro das ações que se enquadrariam nesse programa (SAVIANI, 2009). O Plano reunia, inicialmente, um conjunto de 30 ações ampliadas para 41 já no início de 2009. As análises das ações do MEC e as propostas e programas do Plano foram reunidas em um livro denominado “O Plano de desenvolvimento da educação: razões, princípios e programas” e lançado em outubro de 2007 na abertura da 30ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). A regulamentação das ações previstas no Plano se deu a partir de uma sequência de dispositivos legais: Decreto Lei n. 6.094, de 24 de abril de 2007 que institui o PDE; a Lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008 que institui o piso salarial do magistério em todo território nacional; Decreto Lei 6.093, de 24 de abril de 2007 que dispõe sobre a reorganização do Programa Brasil Alfabetizado; Decreto n. 6.095, de 24 de abril de 2007 que estabelece diretrizes para a integração de instituições federais de educação tecnológica para fins de constituição dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFET) no âmbito da Rede Federal de Educação Tecnológica; Decreto Lei n. 6.096, de 24 de abril de 2007 que institui o Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI); e a Lei n. 11.788, de 25 de 147 setembro de 2008 que regulamenta a realização de estágio por parte dos estudantes do ensino superior, da educação profissional, do ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. Trata-se de um Plano bastante abrangente e que envolve todos os níveis de educação. Dentre as ações diretamente relacionadas à educação básica estão: o “FUNDEB”, o “Plano de Metas do PDE-Ideb”, “Piso do Magistério”, “Formação”, “Transporte Escolar”, “Luz para Todos”, “Saúde nas Escolas”, “Guia das Tecnologias Educacionais”, “Educacenso”, “Mais Educação”, “Coleção Educadores”, “Inclusão Digital”, “Conteúdos Educacionais”, “Livre do Analfabetismo”, “PDE Escola”, “Proinfância”, “Provinha Brasil”, “Programa Dinheiro Direto nas Escolas”, “Gosto de Ler”, “Biblioteca na Escola”, “Brasil Alfabetizado”, “Literatura para todos”, contemplando ações voltadas para a Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos. No campo da Educação Especial as ações dirigidas foram: “Sala de Recursos Multifuncionais”, “Olhar Brasil” e “Programa de Acompanhamento e Monitoramento do Acesso e Permanência na Escola das Pessoas com Deficiência Beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social”. Em relação à Educação Tecnológica e Formação Profissional as ações previstas foram: “Educação Profissional”, “Novos Concursos Públicos” e “Cidades-Polo”. O lançamento do PDE revela a perspectiva de tratar as questões referentes à educação em uma dimensão mais integrada ao propor um leque de programas que contemple os diferentes níveis de ensino, muito embora sejam flagrantes as diferenças entre eles, como no caso da educação infantil que só contou com o “Proinfância”. Mas mantém - e de certo modo até amplia - a racionalidade que orienta as ações no campo educacional desde o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso ao enfatizar a apresentação de metas numa pedagogia de resultados que expressa a expansão da lógica de mercado no âmbito das políticas públicas. A questão do financiamento da educação prossegue atrelada à engenharia contábil 148 sem tocar em aspectos decisivos como o aumento efetivo dos recursos destinados à educação, particularmente se considerarmos que o Brasil saiu da condição de devedor para credor do Fundo Monetário Internacional (FMI) à custa de um superávit primário que sangrou anualmente mais de 4% do orçamento e que atualmente são investidos em educação cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto que nos países que mais investem em educação esse percentual circula na casa dos 8%, sem falarmos no exemplo da Coréia do Sul que durante mais de uma década investiu 10% de seu PIB em educação. O marco mais recente da política educacional está relacionado ao investimento do Governo Federal na elaboração do novo “Plano Nacional de Educação para o decênio 2011-2020”. O Conselho Nacional de Educação (CNE) através da Portaria n. 10 de 06 de agosto de 2009 dá publicidade ao documento produzido pela Comissão Bicameral visando subsidiar a elaboração do Plano. Este documento foi utilizado como referência para a realização das Conferências Municipais e Estaduais de Educação ao longo do ano de 2009 e que deverão levantar um conjunto de propostas para a elaboração do Plano Nacional como também incorporarem suas diretrizes ao processo de elaboração dos Planos Municipais e Estaduais. O documento intitulado “Indicações para subsidiar a construção do Plano Nacional de Educação 2011-2020” está estruturado em quatro partes centrais: as considerações iniciais, a educação básica, a educação superior e as considerações finais, que apresentam um histórico dos Planos já elaborados e o significado deste instrumento de planejamento, diagnósticos e prioridades para a educação básica e para a educação superior e as recomendações quanto ao processo de construção do próprio plano. O documento sinaliza alguns problemas em relação ao PNE em vigência com base em avaliações realizadas pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados (2004), do Conselho Nacional de Educação (2005), da Secretaria de Educação Básica do MEC (2005-6), do Centro de Planejamento e Desenvolvimento Regional (CEDEPLAR, 2006) e do Instituto 149 Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP/MEC, 2005) que merecem ser destacados: Com base nesses estudos, alguns problemas foram destacados no PNE, aqui divididos em duas dimensões: (1) dimensões externas ao Plano e (2) dimensões internas ao plano. Como dimensões que analisam a maneira de implementar o PNE e que, portanto, extrapolam seu próprio texto, cabe destacar, entre outros: 1) Pouca utilização do PNE no primeiro triênio após sua aprovação. 2) Pouca consideração dada ao PNE quando do estabelecimento das políticas de governo, gerando algumas concepções, ações, programas e políticas diferentes das estabelecidas no PNE. 3) Desarticulação entre o PNE e os planos setoriais de governo. 4) Dissociação entre o PNE e os Planos estaduais e municipais de educação. 5) Descontinuidade na coleta de informações pelo INEP e secretarias do MEC. 6) Pouca divulgação do PNE. 7) Ausência de normatização do sistema nacional de educação e do regime de colaboração. 8) Articulação tardia do PDE e do PAR com princípios e metas do PNE. 9) Minimização da universalização da Educação Básica como direito. 10) Ausência de mecanismos para acompanhamento e avaliação do PNE. Como questões internas ao texto do PNE, cabe indicar, entre outras: 1) Ausência de indicadores relativos às metas para concretizar a possibilidade de acompanhamento e avaliação do desenvolvimento do PNE. 2) Retirada dos mecanismos concretos de financiamento das metas, expressos no próprio PNE (vetos). 3) Poucas políticas cm capacidade de enfrentar as grandes desigualdades regionais. 4) Desarticulação interna e superposição de metas, dado o formato assumido pelo PNE. 5) Pouca expressividade das políticas voltadas para a diversidade. 6) Focalização excessiva no Ensino Fundamental. 7) Supremacia das metas quantitativas sobre as qualitativas. 8) Excessivo número de metas que acabaram pulverizando e fragmentando as ações (BRASIL/MEC/CNE, 2009: 6-7). Parte dos problemas elencados já foi aqui referida quando abordamos às críticas que o PNE recebeu dos movimentos vinculados à educação, em 150 particular em relação à imprecisão de suas metas e às formas de alcance. Contudo, outra parte dos problemas expressa certas distinções que o atual governo deseja fazer em relação às ações do anterior, principalmente em relação ao fato de que no governo Lula as ações no campo da educação ampliaram o foco dos investimentos do ensino fundamental para a educação básica. E quanto ao último conjunto de problemas devemos aguardar a elaboração do plano para verificarmos se as críticas concernentes ao distanciamento entre o plano e a dinâmica da política educacional, à ênfase quantitativa em detrimento da qualitativa e à ausência de normatização de um sistema nacional de educação, uma enorme e quase secular polêmica no campo educacional brasileiro, representarão de fato uma ruptura com o padrão hegemônico de construção dos planos e demais instrumentos de planejamento até então utilizados na política de educação ou se não passam de pura retórica. Compreendemos que as particularidades da política de educação ao longo das últimas duas décadas se relacionam diretamente como a inserção do país na dinâmica de uma sociedade urbana globalizada a partir da adoção dos condicionamentos apontados pelos organismos multilaterais, impondo-lhe uma racionalidade que combina um novo formato de financiamento com a definição de metas, construção de indicadores quantitativos de avaliação e programas com focos bem delimitados em relação aos problemas a serem prioritariamente enfrentados. Contudo, este enquadramento não se deu a despeito das condições políticas que caracterizam a realidade brasileira e dentre as quais ressaltamos o estabelecimento de um relacionamento entre a sociedade política e a sociedade civil que, embora tenha ampliado desde o período da ditadura a função educativa do Estado e as experiências de constituição da esfera pública, se deu sob a hegemonia de práticas e concepções privatistas, seja no sentido da subordinação das relações sociais à lógica do mercado, seja em relação à valorização dos interesses corporativos e o conseqüente loteamento das políticas públicas pelas instituições filantrópicas, privadas 151 empresariais e organizações não-governamentais que atuam sem nenhum sentido de coisa pública. Não podemos deixar de destacar que ao longo desse período nós caminhamos para uma espécie de americanização da vida partidária visto que no período o processo de disputa pelo poder ficou polarizado entre o Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) e o PT, cujas diferenças programáticas se esvaneceram no trato da gestão pública e na organização do Estado. O que pode ser observado, entre tantos outros exemplos, com relação à aprovação da Desvinculação de Recursos da União (DRU), um artifício que subtraiu 20% do orçamento da educação, assim como de todas as políticas públicas, utilizado pelos dois partidos quando estavam no governo e que foi duramente criticado por cada um deles quando se encontrava na oposição. A mudança de rumo do PT com a eleição de Lula, em nome de uma suposta necessidade de se garantir as condições de “governabilidade”, impactou em diferentes horizontes, mas na educação teve um significado particular dada a trajetória construída pelo partido enquanto um intelectual coletivo atuante nos anos 80 e que contribuiu para a realização de uma série de experiências pioneiras no campo da administração pública local e na articulação da educação com este processo, como no caso das Prefeituras de São Paulo, Porto Alegre, Campinas e Belo Horizonte, entre outras as mais emblemáticas. Talvez no plano federal as diferenças mais evidentes, já que o Governo Lula optou por organizar a política de educação sobre as bases administrativas erguidas no Governo Fernando Henrique Cardoso, sejam a não subordinação total às orientações do Banco Mundial já que o enfoque prioritário da universalização da educação se restringia ao ensino fundamental e o atual governo acena com uma ênfase na educação básica, e a menor resistência ao diálogo com a sociedade civil organizada. Outro traço relevante a ser considerado em relação às particularidades da política educacional diz respeito ao processo de descentralização. A Constituição Federal de 1988 e a LDB de 1996 152 estabeleceram responsabilidades para os diferentes níveis de governo com relação aos gastos do setor público com a educação e mesmo diante da tendência histórica de maior responsabilidade das esferas estaduais e, sobretudo municipal, com a oferta do ensino fundamental e de sua reafirmação nesses dois dispositivos legais, permaneceu inalterado o quadro de dualidade das redes educacionais, ou seja, não se determinou a exclusividade no oferecimento dos níveis de ensino (ARRETCHE, 2000). A ausência dessa decisão em termos de planejamento se verificou tanto nos Planos Nacionais de Educação quanto nos estaduais e municipais. Na verdade essa questão começa a ser enfrentada pela via tortuosa do financiamento através da aprovação do FUNDEF e, posteriormente, do FUNDEB, determinando uma modalidade de descentralização através de uma municipalização induzida do ensino fundamental e da educação básica. Apesar de a Constituição de 1988 definir que os municípios pudessem criar seus sistemas de ensino de forma autônoma em relação à educação infantil e ao ensino fundamental, dadas as características históricas de organização de muitos sistemas de educação vinculados ao governo estadual, a incapacidade de muitos municípios gerirem com recursos próprios suas redes educacionais e de serviços sociais e ao insano processo de emancipação que se instaurou no país nas últimas três décadas, muitos municípios brasileiros não dispunham de uma sistema próprio organizado. Para Donaldo Bello de Souza e Lia Faria (2003) a partir da aprovação do FUNDEF se observou uma corrida à municipalização seja em decorrência do caráter contábil imposto pela lógica do fundo ou pela pressão das Secretarias Estaduais de Educação (SEEs) para que os municípios assumissem a responsabilidade pelas séries iniciais do Ensino Fundamental. Todavia, não se pode reputar apenas aos novos fundos a responsabilidade pelo atrelamento do processo de descentralização ao de municipalização. Os programas federais financiados pelo FNDE também adotaram o desenho da descentralização, ainda que com dinâmicas, 153 alcances e limites25 bem diferenciados, como o Programa Nacional de Transporte do Escolar (PNATE), o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), originalmente denominado Programa de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (PMDE, 1995), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Trata-se, portanto de um modelo de descentralização fortemente apoiado na questão do financiamento, previsto nas legislações que orientam a política educacional, mas que também se deu sob a influência do processo de democratização e de ampliação das formas de participação e de controle sociais que a sociedade civil conquistou junto à sociedade política. Deste modo, ainda que seja inconteste a direção dada pela lógica do financiamento, o processo de descentralização no âmbito da política de educação representa também um espaço de conquistas, disputas e contradições. Uma das principais decorrências deste processo de descentralização, para além do emaranhado institucional e político que os fundos trouxeram para a esfera local, foi a sua valorização como lócus de discussão e debates sobre a questão educacional, posto que a organização de um sistema educacional municipal passou a tratar de questões como as normas e os princípios da gestão democrática, a autonomia pedagógica e administrativa, a valorização dos profissionais da educação, a participação da comunidade (pais, lideranças comunitárias e estudantes) nos órgãos colegiados e nos processos decisórios do sistema escolar (VALLE, 2008). O processo de descentralização foi construído, assim, pela via dos níveis de educação e dos programas educacionais, ambos impulsionados pela lógica do financiamento, determinando, consequentemente, um processo de criação dos chamados Conselhos de Acompanhamento e Controle Social (Cacs). A partir de 2001 a legislação brasileira passou a 25 Vale destacar que Souza e Faria (2003) ao tratarem dessas dificuldades, limites e alcances o fazem a partir de cada um dos programas citados assim como referem uma ampla bibliografia com a mesma preocupação temática e que não reproduzimos aqui por fugir ao foco central de nossa reflexão. 154 exigir a criação desses conselhos e isso se deu em relação aos programas da área de educação como o PNAE, o PNATE e o Programa de Apoio aos Sistemas de Ensino para a Educação de Jovens e Adultos (PEJA), sendo que esses dois últimos foram acumulados pelos Cacs do FUNDEF e depois do FUNDEB. Criou-se, deste modo, uma diversidade de conselhos na esfera local sem contar com o próprio Conselho Municipal de Educação. (...) No entanto, discute-se se esta função não deveria ser mais aproximada ou mesmo realizada pelos conselhos municipais de Educação, mais fortalecidos, para evitar a dispersão de esforços e visões fragmentadas do conjunto de ações e meios implicados nos direitos e deveres da educação básica, sob jurisdição municipal e no território local (LUCE e FARENZENA, 2008: 89). A ponderação das autoras aponta para uma questão bastante interessante hoje: em que media a diversidade de conselhos se torna um elemento de fortalecimento ou de enfraquecimento da democracia na esfera local? Sobretudo considerando-se a dificuldade de participação dos profissionais nesses espaços assim como da própria comunidade educacional. Ao tratar da extinção do programa Bolsa Escola e da conseqüente vinculação do Programas Bolsa Família à área da assistência, Eveline Algebaile nos aponta outro aspecto importante deste debate: Para quem estuda a experiência dos conselhos de acompanhamento no campo educacional, a análise do processo de incorporação do Bolsa Família pelo PBF apresenta um rico campo de problematizações. Um aspecto importante de se ressaltar, primeiramente, é que, nessa incorporação, o setor educacional foi deslocado do lugar central que ocupou na gestão e acompanhamento de programas de renda mínima no contexto do segundo mandato de Fernando Henrique. A educação passou a ser um dentre outros setores que compõem essa gestão e acompanhamento, e não mais o setor institucional de referência para execução e controle do programa, mesmo em nível local. (...) A possibilidade de se atribuir o acompanhamento do programa a conselhos formuladores de políticas, como os conselhos municipais de educação ou de assistência social, pode, de fato, favorecer a discussão de programas de transferência de renda mínima em espaços de debate capazes de propiciar a abordagem mais aprofundada das relações entre escola pública e pobreza, bem como propiciar o revigoramento da rica experiência de monitoramento de 155 políticas, ocorrida no interior de conselhos participativos mais amplos (2006: 132). Os processos de controle social numa perspectiva democrática são ainda muito recentes no Brasil e merecem todo o cuidado no trato das possíveis mudanças institucionais e legais. Nunca é demasiado assinalar que a constituição dos Cacs, assim como a dos conselhos de políticas públicas são expressões recentes de um processo de ampliação do espaço e da esfera pública, e que a própria sociedade civil comporta forças sociais muito plurais do ponto de vista de seus interesses e matiz político. Além de que a tradição dos conselhos na área de educação, com exceção dos Cacs, remete a um período anterior ao que deflagrou o perfil de constituição dos conselhos das demais políticas públicas o que se expressa em muitos casos em uma composição dominada pelas representações governamentais e de instituições privadas de ensino e numa dinâmica fortemente burocrática, distante das possibilidades de fomentar debates e de se constituir de fato em espaço de controle social. A descentralização no campo educacional tende a se capilarizar ainda mais se considerarmos os conselhos EscolaComunidade, os Conselhos de Classe e de Série, os Grêmios Estudantis como espaços que podem produzir uma “gestão participativa que conheça melhor a própria comunidade escolar, seus saberes e práticas” e que “juntos podem fazer uma etnografia da escola e elaborar um projeto políticopedagógico renovados” (GOHN, 2008:106). Considerando os efeitos do processo de descentralização e suas contradições, observamos que as tendências que se desenham na esfera local apontam para direções que não apenas aquelas que saíram das agendas dos organismos internacionais. Há um potencial que pode ser dinamizado ou não no âmbito das cidades se os espaços públicos de controle social se consolidarem e conseguirem romper com a fragmentação dos programas, dos níveis de ensino e, sobretudo, a lógica de setorialização das políticas públicas. Algo que já se desenha de forma concreta em 156 algumas cidades do Brasil e de outros países e que conformam as experiências das Cidades Educadoras. Em congresso realizado em 1990 em Barcelona foi aprovada uma carta contendo os princípios básicos de um modelo progressista de se pensar a cidade. Este movimento se expandiu para os diferentes continentes criando uma rede de cidades educadoras que se auto-reconhecem como tal e que passam a reconhecer novas cidades que se comprometam com os mesmos princípios. Acidade educadora é uma cidade com personalidade própria, integrada no país, onde se encontra. Sua identidade, portanto, é interdependente co ma do território, do qual faz parte. É, também, uma cidade que não se fecha em si mesma, mas sim, uma cidade que se relaciona com seu entorno, outros núcleos urbanos do seu território e cidades parecidas de outros países, com o objetivo de aprender, de trocar e, portanto, de enriquecer a vidas dos seus habitantes. A cidade educadora é um sistema complexo, em constante evolução, e pode ter expressões diversas: porém, sempre dará prioridade absoluta ao investimento cultural e à formação permanente da sua população. A cidade só será educadora quando estabelecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social e política, e de prestação de serviços) uma função educadora, quando assumir a intenção e responsabilidade cujo objetivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os habitantes, começando pelas crianças e pelos jovens (CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS. 1990:1). Não estamos tratando aqui deste movimento como mais uma forma de certificação que a lógica da qualidade total e do consumo imprime a diferentes empreendimentos sociais. Consideramos alguns traços importantes como a compreensão de que a cidade não é um espaço sem vida, ao contrário, se constitui de diferentes territórios que podem ter convergências a partir de um sentido coletivo, não se subordinando apenas aos condicionantes e imperativos de uma globalização pautada no consumo e na valorização da mercadoria, tenha ela qualquer forma, até mesmo “humana”. Na construção das experiências das cidades educadoras a cidade é vista como um espaço de “aprendizagem que sistematiza e aprofunda o conhecimento informal que adquirimos dela espontaneamente na vida cotidiana e que ajuda a descobrir as relações e a estrutura que 157 freqüentemente não se mostram perceptíveis” (BRARDA e RIOS, 2004: 31). A cidade não é apenas educativa, pois não aprendemos apenas espontaneamente, mas educadora porque há um processo de criação, de descoberta que é intencionalmente forjado na cidade. Mas como? A partir das diferentes instituições que a compõe, não somente a escola, mas em todos os espaços onde se exercita a condição de sujeito e de cidadão. Ao sistematizarem a experiência de Porto Alegre como cidade educadora Vianna (2004), por exemplo, destaca a intencionalidade pedagógica que existe em algumas ações do Poder Público na condução dos processos de exclusão social que envolve a participação da própria comunidade escolar. Moll (2004) salienta a experiência do Orçamento Participativo como forma de fortalecimento da esfera pública, um processo político que altera as relações locais e que resulta numa ação educadora da cidade. E Fischer salienta a relação que se constrói entre educação e infância na cidade: Produzir conhecimento no espaço escolar, passa a incluir também a compreensão dos direitos da infância, do radical direito ao tempo de infância negado cotidianamente na vida dos filhos das classes populares ao iniciarem seu processo de escolarização. Nessa perspectiva, também podem ser compreendidos e reconhecidos os esforços no sentido de serem oportunizados seus direitos de cidadania presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), junto aos Conselhos Tutelares, aos projetos participativos nas instâncias políticas do orçamento público etc. (2004: 55). Conforme indagamos no início desta reflexão sobre que práticas educativas estão sendo produzidas na cidade, podemos verificar que a educação não encontra a cidade como um anjo caído das alturas das orientações dos organismos internacionais, nem das artimanhas contábeis dos fundos, assim como dos desdobramentos dos programas e de sua interface com diferentes políticas públicas apenas. Esse encontro tem se dado também por via das experiências de orçamento participativo, dos conselhos de políticas públicas, dos conselhos de acompanhamento e de controle social, dos conselhos escolares e das ações de intelectuais 158 coletivos e individuais que constroem nas dobraduras das políticas novos vínculos e pertencimentos. Nada heróico. Apenas ações que não deixam perder o sentido dos vínculos entre educação e política. Compreendemos que a globalização potencializou as próprias condições de reprodução do capitalismo como modo de produção, não só de mercadorias, mas da própria existência. Ainda que, de certa forma, a expansão crescente do sistema de metabolismo do capital represente um de seus elementos constitutivos, conforme sublinha Mészáros (2005), estamos tratando de condições históricas específicas que intensificam um traço que lhe é particular. Condições que ampliam, nesta mesma perspectiva de análise, não só as condições de dominação que lhes são necessárias, mas também das formas de resistência, ou seja, de suas contradições, sejam as que forjam a dinâmica societária como aquelas que dela derivam. A ampliação das estratégias de estabelecimento de consensos alcançada nos anos 90 com a diversificação da atuação dos organismos multilaterais, com a disseminação das conferências internacionais e a padronização dos processos de gestão das políticas públicas – sobretudo aquelas dirigidas ao enfrentamento da pobreza - também foi acompanhada de uma maior capacidade de aglutinação dos processos de resistência ao imperativo do capital, ampliando os horizontes de possibilidades de interlocução, de agendas e de forças sociais que se não se antagonizam aos fluxos estabelecidos pela nova hegemonia, também não aderem a eles de forma incondicional. Mesmo sem provocar uma alteração na correlação de forças que pende de forma desproporcional em favor da subsunção à lógica da mercadoria, encontramos nesse espectro não tão largo de projetos as esperanças de construção de outras possibilidades civilizatórias. Dispostas entre as formas de resistências que se mantêm ancoradas na alternativa socialista, nos partidos políticos como intelectual coletivo, nas experiências da economia solidária e do valor justo, nos Fóruns Sociais Mundiais e nos movimentos culturais de afirmação de uma humanidade que se perceba plural. 159 Muitas dessas formas de resistência têm no processo de globalização não sua razão de ser, mas sua estratégia de mobilização e disseminação. Em parte o esforço produzido pelos movimentos de articulação entre aqueles que vivem realidades distantes, mas não necessariamente diferentes do ponto de vista das dificuldades que demarcam a vida urbana na contemporaneidade, revela a necessidade do estabelecimento de redes onde a discussão e a troca de experiências aproxime-os, constituindo territórios que tenham uma dimensão educadora no próprio esforço de articulação da realidade local à dinâmica global sobre princípios que ultrapassem a lógica desumanizante de nosso tempo. 2.3 – As políticas da infância e a infância da política. Para todos aqueles que trabalham no campo das políticas públicas, em particular na de educação, a infância constitui numa referência constante. Diferentes imagens sobre a infância habitam os discursos oficiais, os currículos, as práticas pedagógicas e as relações da escola com a família em temporalidades distintas, como memória ou projeto. Elas ressaltam a necessidade de pensarmos a infância no plural considerando que cada tipo de produção sobre a infância: artística, ideológica ou teórica revela como que em determinado momento histórico a infância foi percebida, pensada, desejada, esquecida, negada e reconhecida. Ao concebermos a infância como uma categoria social que se forja a partir de processos sociais concretos também suas imagens devem ser assim compreendidas. A infância é uma construção social, uma produção histórica, ou seja, uma dimensão constitutiva da nossa condição humana e que não se reduz à delimitação cronológica de uma fase da vida. Ela se inscreve no âmbito das práticas, dos saberes e dos discursos produzidos sobre um modo de ser, o que lhe impregna de significados muitas vezes restritivos, negativos, mas também criadores e plenos de devir. 160 Ao nos interrogarmos sobre qual infância tratam os filósofos, os sociólogos, os psicólogos e os educadores, talvez a resposta precise ser construída recorrendo ao plural, aos interstícios, aos silêncios e, especialmente, à linguagem. Manuel Sarmento (2007) chama a atenção para o fato de que a produção de imagens sobre a infância tem revelado mais “o conjunto de sistemas estruturado de crenças, teorias e idéias em diversas épocas históricas” que “a realidade dos mundos sociais e culturais das crianças”, ou seja, enquanto esclarece sobre os produtores dessas concepções oculta a própria realidade da infância. Um jogo de “luz e sombras que tornou a infância invisível do ponto de vista histórico, cívico e científico por muito tempo”. Os estudos de Philippe Ariès revelam não só como a infância passa a ter uma visibilidade na modernidade que não fora produzida antes sobretudo ao analisar as artes medievais, dada a natureza iconográfica de sua pesquisa -, mas como que foi produzido também um sentimento de infância até então inexistente. Contudo, os sentimentos acerca da infância, assim como a própria infância, não surgem historicamente com a modernidade. O que podemos depreender das reflexões de Ariès é que sentimento e qual infância a modernidade produziu. Os modos de perceber e estar no mundo são sempre condicionados pela posição de cada classe na dinâmica societária, em suas relações com o conjunto de instituições e das práticas sociais que atuam no processo de estabelecimento de consensos, das formas partilhadas e internalizadas de ver, sentir, interrogar e representar a própria vida, conforme nos alerta Gramsci. Deste modo, localizar as razões pelas quais na modernidade, ou em outros períodos históricos, se produziu um tipo de percepção da infância e que se manifesta através de certos sentimentos e imagens que não existiam antes indica um percurso metodológico importante. Retornando à contribuição de Ariès observamos que se essa não foi sua preocupação central, de todo ela não esteve ausente em suas abordagens como ao considerar que “a partir do século XV, as realidades e 161 os sentimentos da família se transformariam: uma revolução profunda e lenta, mal percebida tanto pelos contemporâneos como pelos historiadores, e difícil de reconhecer”. As transformações experimentadas pela família não se justificavam como uma mudança interna como destaca o próprio autor: “o fator essencial é bastante evidente: a extensão da freqüência escolar” (2006: 159). Porém, a mudança mais significativa se deu a partir de um período não muito preciso entre o século XVII e o XVIII, quando as crianças, até então vistas como adultos “em miniatura”, passaram a ser retratadas numa outra condição, na qual a família dispôs de uma organização interna diferente e passou a expressar por elas sentimentos que ganharam maior visibilidade social. As imagens sociais da infância foram, ao longo da história, largamente produzidas em sua negatividade, tendo como referência central sua condição diante do mundo adulto. A própria etimologia latina da palavra infans, designando “sem fala”, remete aos múltiplos sentidos que a infância teve e que vigorou por muito tempo em diferentes sociedades, visto que a assimetria de sua relação com o mundo adulto não só se tornou numa constante como se expressou através de traços bem particulares. Deste modo, considerando as possibilidades abertas com os estudos de Philippe Ariès, podemos reconhecer que a infância não representa um único modo de ser imanente a esta categoria social, mas uma construção social mediada pelas práticas e saberes de outras instituições sociais desde os tempos mais remotos, conforme sublinha Walter Kohan: Um detalhe interessante, ainda oferecido pela etimologia, é que os gregos antigos, os que inventaram a filosofia na forma em que hoje a pensamos e praticamos; os mesmos que inventaram a paidéia e tantas outras coisas e tantas outras palavras, não inventaram a palavra “infância”. Não é um dado menor. Inclusive os filósofos, que gostavam de inventar palavras para coisas que só eles percebiam não sentiram necessidade de inventar uma palavra para a “infância”. (...) De modo que, para chamar às crianças, os gregos recorreram a três campos semânticos: um estava ligado ao nascimento; outro estava ligado à alimentação e um terceiro estava ligado à criação, mudança ou novidade. De nenhum desses três campos tiraram um substantivo abstrato como poderiam ter sido teknía, paidía ou neía. Talvez por 162 respeito ao fato das crianças não nascerem apenas de palavras ou delas providos, deixaram a própria infância sem palavra. Porém, não a deixaram sem conceitos, sem idéias, sem filosofia. Muito menos sem educação. Assim, na Grécia Clássica há uma bateria de discursos pedagógicos e filosóficos que supõem ou explicitam um conceito de infância e um lugar para ela, no pensamento e nas instituições (2008: 43). Assim, na antiguidade as imagens construídas sobre a infância como “possibilidade”, “inferioridade”, “outro rechaçado” e “material da política” revelavam na filosofia marcas de uma infância que se encontrava entre a política e a educação (IBIDEM, 2005). Identifica o autor, em sua análise da relação entre a filosofia e a infância na Grécia Antiga, particularmente em Platão, “os elementos básicos de uma clássica pedagogia formadora” assentados em uma “educação voltada para desenvolver certas disposições que se encontram em estado bruto no sujeito a educar” como também a intenção de “conformar, de dar forma, a esse sujeito, a partir de um modelo estabelecido previamente”. A educação teria uma “função normativa”, seria uma “tarefa moral” com a intenção de “ajustar o que é a um dever ser”, posto que a “educação de A República é um modelo de pólis justa, trata-se também ou, sobretudo, de uma normatividade e de uma tarefa política” (IDEM: 57-8). Ao afirmarmos que não faz sentido referirmos a um tipo de infância imanente, sem historicidade, o que dizer das instituições que socialmente organizam as práticas de cuidado, de proteção, controle e de socialização que reafirmam ou negam as diferentes percepções da infância? Com certeza a família desempenha e sempre desempenhou funções destacadas no processo de construção social da infância, mas não necessariamente as mesmas. Ao se resgatar na antiguidade, no medievo ou na modernidade o lugar da infância na dinâmica social não se focalizará isoladamente as crianças, mas práticas sociais que em maior ou menor amplitude estão vinculadas à família e às demais instituições sociais. Se na antiguidade clássica a filosofia foi capaz de ao pensar a infância apontar sua dimensão política em função da vida na pólis, na modernidade a produção de um 163 sentimento de infância teve na família seu terreno de fertilização, entretanto, foi em uma nova instituição que ela encontrou as condições da disseminação desse sentimento para toda a sociedade: a escola. As mudanças no âmbito das relações familiares e a produção de um sentimento novo de infância passam a ser dinamizados, na sociedade capitalista, pela ampliação das funções ideológicas e disciplinadoras de outras instituições como a medicina, a escola e, posteriormente, o próprio Estado com as políticas públicas. Cabe destacar que nesse percurso se produziu um particular deslocamento da infância do espaço público para o privado. Acresce a isto o fato de a Modernidade ter confinado as crianças ao espaço privado, ao cuidado da família e ao apoio de instituições sociais – creches, reformatórios, asilos de menores, orfanatos – cujo impulso eugenista inicial se caracteriza exatamente por retirar da esfera pública os cidadãos mais jovens, especialmente se apresentam indicadores potenciais de desviância ou se a indigência econômica os remete par cuidados assistenciais. A privatização da infância não opera um efeito de ocultamento e invisibilização da condição social da infância - como acontece por exemplo, de forma idêntica, com o trabalho doméstico da mulher, não tematizado como atividade social e não referenciado como tradicionalmente como atividade econômica – como concita um tipo específico de olhar científico: a das ciências do indivíduo, da pessoa, da esfera privada e da intimidade, especialmente a Psicologia e algumas das suas derivações, nomeadamente a Psicopedagogia, a Puericultura, a Pedopsiquiatria, etc. (SARMENTO, 2008: 19). Aponta o autor que a forma institucional como as crianças foram cuidadas e protegidas, pelos adultos, teve como conseqüência o entendimento generalizado de que elas estavam “naturalmente” privadas do exercício de direitos políticos. Concorreram para esta concepção a dimensão de “incompletude”, “imaturidade” e “carência”, ou seja, daquilo que a criança não dispõe em relação a um mundo centrado no adulto, assim como “a concepção de cidadania ancorada na tradição liberal, classificada por Marshall (1967) como o conjunto de direitos civis, políticos e sociais”. Neste caso, a cidadania da infância, tal como a própria criança, estaria incompleta, 164 visto que, sobretudo no campo político, ela não pode votar e nem ser votada. O alcance da cidadania plena esbarrava na condição de “imaturidade social e política”, para a qual a modernidade forjou o caminho institucional a ser trilhado: o da escolarização. A escola passou a representar, contraditoriamente, o caminho de acesso à cidadania e a via de separação das crianças do espaço público. A escola se tornou o lugar central onde a infância adquiriu a dimensão de futuro, onde o presente se tornou apenas uma etapa de preparação para a cidadania “que virá”. A luta pelo reconhecimento da cidadania plena da infância se deu como parte integrante das lutas sociais que atravessaram o final do século XIX e todo o século XX, portanto, não deve ser analisada de forma desvinculada das lutas pela redução da jornada de trabalho, contra a exploração dos trabalhadores, particularmente das crianças e mulheres, pela universalização do direito ao voto, pelo reconhecimento por parte do Estado dos direitos humanos e sociais de vários segmentos sociais e contra uma série de injustiças sociais. E não poderia ser de outro modo se consideramos a infância enquanto uma categoria social justamente em razão de sua vinculação à dinâmica da vida social. Deste modo, não se trata de uma conquista descolada das mudanças e lutas em outras esferas da sociedade, o que não significa desconsiderar as suas particularidades, principalmente em função da força das imagens e das práticas sociais produzidas sobre a infância. Segundo Sarmento, a cidadania da infância sofreu uma redefinição em razão da “mudança de paradigmas na própria concepção de infância, da construção de um arcabouço jurídico renovado e da ampliação das formas de cidadania resultante da atuação contrahegemônica de agentes e ONGs centradas na infância”. A cidadania da infância, neste contexto, assume um significado que ultrapassa as concepções tradicionais, na medida em que implica o exercício de direitos nos mundos de vida, sem obrigatoriamente estar subordinada aos dispositivos da democracia representativa (ainda que estes não sejam, por esse facto, menos importantes). Tão pouco, o reconhecimento dos direitos de cidadania – em que a dimensão da 165 participação das crianças assume um relevo crescente – implica, por esse facto, uma restrição nas experiências de proteção das crianças pelos adultos, nomeadamente pelas famílias e pelo Estado (2007: 42). Neste sentido, a própria delimitação etária se tornou um componente importante dos processos de construção social da infância. A imediata vinculação entre infância e criança, tão usual, é expressão de um tipo de identificação entre a infância enquanto categoria social e o sujeito concreto que tem lhe conferido maior visibilidade. A Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1989, estabeleceu como limite da infância os 18 anos, o que implicou no reconhecimento de um amplo leque de instituições e práticas sociais como necessárias para se assegurar esses direitos. Muito embora tenha sido uma importante referência nos processos de regulamentação dos direitos das crianças no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90, aprovado no ano seguinte, estabeleceu uma distinção etária, reconhecendo dentro daquela faixa etária tanto as crianças quanto os adolescentes. Não se tratou de um preciosismo ou de uma subordinação ao estabelecimento de ciclos e fases dentro dos ciclos da vida26 que a especialização progressiva das ciências sociais e da saúde produz, mas da consideração dos efeitos políticos de sua adoção em uma conjuntura ainda fortemente marcada pelo paradigma da “infância irregular” e pela tendência crescente de criminalização da pobreza. Não podemos ignorar que os dispositivos legais e institucionais criados no campo 26 A progressiva delimitação dessas fases (primeira infância, segunda infância, pré-adolescência, adolescência e adolescentes-jovens – caracterização decorrente da Política Nacional de Juventude que aponta além deste segmento outros dois: jovens-jovens e adultos-jovens) tem levado a um tipo de abordagem, do que antes estava “reunido na idéia de infância”, que exige cada vez mais conhecimentos especializados e que produz recortes cujas fronteiras nem sempre são facilmente identificáveis. Esta tendência diminui consideravelmente o campo de investigação sobre a infância. Aliado a este fator, as baixas taxas de crescimento demográfico nesse segmento, decorrente da queda da taxa de natalidade nos países europeus tem levado a ponderações sobre o “fim da infância”. Ao referir-se à produção desse tipo de afirmação Sandra Corazza (2000) a situa, junto com tantas outras que analisa sobre a infância, como constitutivas de campos de saber e poder que fazem “a questão do infantil ser tão problemática” até se tornar uma “experiência fundamental”. Provocativamente, em função das diferentes perspectivas de produção de discursos sobre a infância e seus usos, ela altera os termos iniciais da questão sobre o “fim da infância” elaborando uma reflexão crítica sobre o que tem determinado uma “história da infância sem fim”. 166 da infância estão diretamente relacionados à dinâmica das classes sociais, produzindo padrões normativos que espelham a imagem hegemônica de infância, vinculada às classes dominantes, e formas de controle e repressão que incidem diretamente sobre as frações da classe trabalhadora. Assim, no Brasil as práticas institucionais dirigidas à infância percorreram um longo e conflituoso percurso histórico determinado pela dinâmica de uma sociedade profundamente desigual. As imagens produzidas acerca da infância “abandonada”, “perigosa”, “irregular”, “criminosa”, “institucionalizada”, “assistida” e “tutelada” tiveram enorme significado na formulação das ações governamentais, assim como foram, em larga medida, por elas consolidadas. Até atingir um novo ordenamento jurídico e institucional, expresso sobre o princípio da “proteção integral”, conforme consta no Estatuto, as lutas sociais pelo reconhecimento da cidadania da infância foram intensamente travadas tanto na esfera internacional quanto no país. Muitas das tensões e dificuldades que hoje encontramos na efetivação desta nova concepção são resultantes de seu confronto com as marcas ainda presentes das imagens e práticas sociais produzidas em outros momentos históricos. Para compreendermos a dimensão da ruptura que se desejou provocar com a aprovação do ECA basta verificarmos a radicalidade de sua proposição se comparada aos principais marcos da trajetória das ações dirigidas à infância no Brasil. Atravessando três regimes de nossa história a primeira e mais longa experiência de enfrentamento dos problemas relacionados à “infância abandonada”, a Roda dos Expostos27, evidencia uma marca que se mantém até os dias atuais: a forte presença das instituições religiosas no trato desta situação. A Confraria da Misericórdia que foi incumbida dos expostos em Lisboa transpôs para as Santas Casas na colônia a mesma tradição, muito 27 A Roda dos Expostos se institucionalizou na Europa como uma forma de abandono de crianças. O nome deriva da forma cilíndrica de um mecanismo, dividido ao meio através de uma espécie de tampa de madeira, fixado no muro ou janela de uma instituição que recebia os bebês abandonados. As crianças eram depositadas no compartimento inferior e externo ao muro. Depois se “rodava” tal mecanismo até a criança estar do lado do outro lado do muro. Então se puxava uma corda com uma sineta avisando ao vigilante da instituição que uma criança acabava de ser abandonada. 167 embora nem todas as experiências de Roda dos Expostos no Brasil tenham sido vinculadas a esta ordem. O que cabe destacar é que durante todo o período de sua existência essa prática representou uma cobertura minoritária em relação ao conjunto da “infância abandonada” no país. A diversificação de instituições passa a ocorrer a partir dos anos de 1860, mas ainda restritas à esfera filantrópica (MARCÍLIO, 2001). Durante os primeiros anos da República essa situação não se alterou. Para um país que transitou de uma forma de produção da riqueza assentada no trabalho escravo para o trabalho assalariado organizado a partir da constituição de uma força de trabalho imigrante em sua maioria, o descaso social com a parcela mais explorada da sociedade se acirrava cada vez mais. A formação da classe trabalhadora urbana foi uma condição histórica e política fundamental para a emergência da questão social no Brasil. Compreendida como “caso de polícia” expressou um conjunto de respostas organizadas pelo Estado, com um forte componente repressivo, em relação às demandas da classe trabalhadora. É nesse contexto que começou a ser desenhado um aparato jurídico e institucional voltado para o enfrentamento dos problemas relativos à “infância abandonada”; ampliada com o agravamento das desigualdades sociais e, portanto, já não restrita à situação dos expostos. A criação do Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e Delinquente em 1921, do primeiro Juízo de Menores do país no Rio de Janeiro em 1923 e a aprovação do primeiro Código de Menor em 1927 ao mesmo tempo em que apontam as primeiras iniciativas do Estado, representando para o período o reconhecimento da dimensão social da questão da infância, tornaram-se estruturas centrais na produção de uma infância “delinqüente”, “irregular” e “perigosa” que marcou profundamente a história das crianças dos extratos mais pobres da classe trabalhadora como “menores”. As questões afetas à infância no início do século XX passaram a ter uma complexidade cada vez maior em razão das próprias condições em que se operou o processo de urbanização e industrialização, devido às precárias 168 condições de moradia e higiene, a falta de serviços públicos essenciais, entre eles a educação pública, e a intensa exploração do trabalho infantil. A situação de abandono ganhou uma dimensão pública ainda mais visível e variada, requerendo que a ação do Estado também tivesse maior amplitude. Em seu nome justificar-se-á a criação de um aparato médicojurídico-assistencial, cujas metas eram definidas pelas funções de prevenção, educação, recuperação e repressão. Em discurso caracterizado pela dualidade – ora em defesa da criança, ora em defesa da sociedade – estabelecem-se os objetivos para as funções acima: de prevenção (vigiar a criança, evitando a sua degradação, que contribuiria para a degeneração da sociedade); de educação (educar o pobre, moldando-o ao hábito do trabalho e treinando-o para que observe as regras do “bem-viver”); de recuperação (reeducar ou reabilitar o menor, percebido como “vicioso”, através do trabalho e da instrução, retirando-o das garras da criminalidade e tornando-o útil à sociedade; de repressão (conter o menor delinquente, impedindo que cause outros danos e visando a sua reabilitação, pelo trabalho) (RIZZINI, 2008:26). A partir dos anos 30 as medidas oficiais em relação à infância se diversificaram em razão da própria complexidade que a realidade assumiu quanto em função da organização de um aparato estatal que se estruturou em uma amplitude já com algumas distinções em relação àquela que existia até então. No campo educacional a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública em 1930, do Conselho Nacional de Educação, da organização do ensino secundário e superior e a criação da Universidade do Rio de Janeiro, que constituíram o escopo da chamada reforma Francisco Campos em 1931, e o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, são ilustrativos de como que a educação foi se tornando um campo de disputa entre as principais forcas sociais e políticas no período: educadores de inspiração liberal, Igreja Católica, movimentos sindicais e as duas principais frações da burguesia, a agro-exportadoras e a industrial, sobretudo, pela centralidade que passou a ter na construção de um projeto de nação, como elemento estratégico na produção de uma identidade nacional que a vida republicana não havia ainda conseguido forjar, quer no plano administrativo da federação, quer no campo cultural (MONARCHA, 169 1989). Nesse processo de disputa a infância ocupou um lugar de destaque, em particular na organização de um sistema educacional público28. As disputas sociais e o antagonismo de classe se revelaram também com a criação, no mesmo período, do Ministério do Trabalho (1932), compondo um quadro institucional onde o campo da regulação social ganhou novos contornos com a atuação mais incisiva por parte do Estado. Esse novo arcabouço do aparato estatal foi forjado em sintonia com a feição corporativista que o Estado foi assumindo. Para tanto, o governo Getúlio Vargas adotou nos anos 40 uma série de medidas de alcance nacional como parte de um esforço de retirar da órbita da relação entre capital e trabalho os conflitos de classe, levando para dentro do Estado os canais de negociação dos conflitos sociais e impregnando-as com sua marca populista. Relacionadas à infância destacamos: a organização de aparelhos nacionais que combinavam a coordenação e financiamento por parte do Estado com o conjunto de instituições privadas existentes como o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS, 1940), o Serviço de Assistência a Menores (SAM, 1941) e a Legião Brasileira de Assistência29 (LBA, 1942). Esta nova estrutura revelava uma divisão de competências e ações dirigidas à infância e, em particular, à infância da classe da trabalhadora: a educação pública a cargo do Ministério de Educação, o estímulo à criação das creches passou a contar com a ação da LBA junto como o Departamento Nacional da Criança (DNCr), enquanto o SAM teve sua atuação voltada para a ordem social. 28 Para Irene Rizzini (2009) a questão da infância passou a ter uma dimensão política no que se denominou de “ideal republicano”. Tal centralidade se deu no sentido de se produzir com urgência intervenções que apontavam tanto para o sentido educacional, reforçando a concepção da criança como futuro da nação, quanto no sentido correcional, neste caso focalizando “os menores”. 29 Cabe frisar que a LBA não surgiu como instituição pública. Ela surgiu como uma instituição privada mobilizadora da população para o esforço de guerra decorrente do ingresso do País no conflito mundial de 1940 (2ª Guerra Mundial). Ela foi reconhecida como órgão de colaboração com o Estado a partir do Decreto nº 4.830 de 15 de outubro de 1942. Em razão de sua ampla e penetrante ação assistencial em todo território nacional, voltada para as famílias dos soldados envolvidos no conflito, e de sua forte atuação ideológica, o governo de Getúlio Vargas se apropriou desta estrutura para dinamizar o campo assistencial. Na prática as funções do CNSS foram assumidas pela LBA, dada a sua maior e mais ágil capacidade de ação no campo assistencial. 170 A atuação da LBA foi decisiva para a expansão das creches em todo o território nacional e se tornou ainda mais emblemática para a forte vinculação da pré-escola ao campo assistencial. Em 1967 o DNCr elaborou um plano de amplitude nacional com o objetivo de desenvolver uma política de assistência pré-escolar, o que não significou uma política de educação para a pré-escola. Como desdobramento desse plano foi desenvolvido nos anos 70 o Projeto Casulo, implantado pela LBA e que a partir de uma série de ações destinadas à maternidade e à infância se configurou como um efetivo programa de educação pré-escolar de massa (ROSEMBERG, 2001). A atuação da LBA no apoio às creches e no campo da assistência social acabou consolidando durante mais de 50 anos, até sua extinção no Governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, uma cultura da pré-escola distante das questões mais afetas ao campo educacional. O SAM que surgiu com a função de orientar a política para a infância teve seu campo de atuação redefinido pelo Decreto Lei nº 6.865 de 1944. Sua vinculação ao Ministério da Justiça e aos juízos de menores acabou determinando outro campo de competência. Dentre suas atribuições podemos situar: a orientação e fiscalização de educandários particulares, a investigação dos menores para fins de internação e ajustamento social, a realização do exame médico-psicopedagógico, o abrigamento e a distribuição dos menores pelos estabelecimentos, o incentivo à iniciativa particular de assistência aos menores e o estudo das causas do abandono (FALEIROS, 2009). De acordo com Irma Rizzini (2007 e 2009), em um contexto ditatorial, com o aumento progressivo do número de internação de “menores”, “desvalidos”, “delinqüentes” e “transviados”, com a feição cada vez mais clientelista da política de indicação de quadros gestores e as denúncias de utilização dos internos como mão-de-obra explorada, maus-tratos e corrupção, o SAM ganhou no imaginário popular, sobretudo a partir dos anos 50, a representação de uma verdadeira “Fábrica de Criminosos”. O desenvolvimento de funções restritas à triagem e à internação de “menores” 171 encaminhados pelo Juízo de Menores caracterizou as ações do SAM, durante 23 anos, como um tipo de atendimento no campo da infância que sequer chegou perto de uma política “preventiva” ou “educativa”, como se clamava nos meios jurídicos à época. As críticas formuladas à falência da estrutura assistencial em torno do SAM e o agravamento das condições sociais e institucionais nas quais os “menores” se encontravam acabou por determinar a organização de uma nova estrutura: a Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor (FUNABEM), regulamentada pela Lei nº 4.513 de 01 de novembro de 1964 e que tinha como objetivos: (...) assegurar prioridades aos programas que visem à integração do menor na comunidade, através da assistência na própria família e da colocação em lares substitutos, a apoiar instituições que se aproximem da vida familiar, respeitar o atendimento de cada região (FRAGOSO apud FALEIROS, 2009: 65). Muito embora a idéia de se criar uma nova estrutura tenha sido amadurecida durante um breve período de vida democrática, marcado por intensas mobilizações sociais em torno das reformas de base que pudessem promover uma condição de maior justiça social, a implantação da FUNABEM e das Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor (FEBEM) ocorreu durante a ditadura militar. As marcas centrais da ditadura no plano ideológico e organizacional não tardaram a produzir fortes impactos nos processos de gestão e nas formas de condução das práticas institucionais dessas unidades. A larga disseminação da ideologia da “segurança nacional”, fortemente amparada do ponto de vista legal e do aparato repressivo do regime militar, associada à perspectiva tecnocrática que engendrou e orientou a dinâmica de funcionamento da burocracia estatal, tiveram forte incidência na estruturação da FUNABEM e das fundações estaduais. Desde a arquitetura dos prédios onde funcionavam essas unidades, que não guardava qualquer diferença com as unidades prisionais, até a consolidação do binômio segurança-disciplina como eixo condutor das 172 ações institucionais, a FUNABEM também incorporou as práticas de maustratos e tortura que marcaram de forma trágica o período de maior recrudescimento da ditadura militar, entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70. A lógica tecnocrática acabou presidindo também o conjunto de reformas educacionais, aprovada através da Lei nº 5.692 de 1971 que organizou o ensino de 1º e 2º grau com uma forte ênfase na formação técnica voltada para o mundo do trabalho. O reconhecimento da condição de aprendiz a partir dos 12 anos de idade, introduzido na Constituição de 1967, aliado à ênfase numa formação tecnicista, favoreceram, em muito, a disseminação da perspectiva de ingresso precoce no mundo do trabalho como a principal “alternativa educativa” de prevenção da condição de “marginalidade” dos “menores”. As ações para a infância sob a ditadura militar contribuíram para a consolidação de algumas tendências históricas e o acirramento de outras. A educação pública se consolidava como elemento de afirmação da dimensão moral do trabalho como perspectiva de ingresso na vida adulta enquanto que o aparato ligado à ordem social potencializou ainda mais a perspectiva de institucionalização das práticas de atendimento, valorizando e reforçando o relacionamento com a própria instituição em detrimento dos vínculos de convivência com a família e a comunidade. A promulgação em 10 de outubro de 1979 do novo Código de Menor, Lei nº 6.697, conservou a denominação que particularizou a condição social e política da infância no Brasil durante quase todo o século XX e incorporou expressamente a doutrina da “situação irregular”. Os fatores que poderiam provocar ou favorecer atos e condutas irregulares eram imputados às ações dos pais ou dos próprios “menores”. Aqueles que eram sentenciados como “irregulares” em função das situações de: “desestruturação familiar”, “abandono”, “carência econômica da família”, “conduta antissocial”, ou, ainda, por cometerem alguma “infração”, por trabalharem ou ficarem na rua em decorrência de terem evadido da escola ou fugido do lar, eram enviados às instituições de recolhimento, triagem, ressocialização ou guarda. A 173 dinâmica da institucionalização do atendimento era fortemente justificada a partir do entendimento de que “se a família não pode exercer ou não falha no cuidado e proteção, o Estado toma para si esta função” (ARANTES, 2009: 195). Um dos aspectos que o novo Código alterou diz respeito à facilitação do processo de adoção. No entanto, não promoveu nenhuma mudança significativa em relação às práticas de atendimento já desenvolvidas pelo complexo de instituições da FUNABEM. O quadro político e institucional não era favorável à adoção de medidas com um escopo ideológico muito diferenciado do que marcou o início de uma “transição, lenta e gradual”, conforme impuseram os dois últimos governos do período de ditadura militar dos generais Ernesto Geisel e João Baptista de Figueiredo. O fim da ditadura, contudo, não ocorreu exatamente sob o formato que o comando militar desejava, seja pelas disputas internas nesse âmbito, expresso em situações de terrorismo como os atentados no show em comemoração ao dia do trabalhador no Riocentro, na cidade do Rio de Janeiro, e nas explosões de bombas em diferentes estabelecimentos públicos, seja pela capacidade de organização de determinados segmentos sociais que atuaram de forma decisiva na resistência à ditadura e no processo de afirmação da sociedade civil como espaço de negociação e de disputas ideológicas. A intensa mobilização de diferentes forças sociais foi um fator decisivo para que uma nova institucionalidade pudesse ser debatida e construída na dinâmica contraditória da sociedade civil que emergiu no processo de redemocratização no início dos anos 80. A atuação da Pastoral da Criança, vinculada à Igreja Católica, as ações do UNICEF e de grupos de defesa dos direitos humanos e das crianças, em especial no plano internacional, a mudança de paradigmas no campo jurídico, o embate travado no congresso e, sobretudo, na sociedade civil pelos partidos políticos de esquerda, a atuação de algumas ONGs no campo do atendimento e da assessoria aos movimentos sociais e os próprios movimentos sociais em defesa dos direitos da infância, com 174 particular destaque ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) exerceram forte pressão social para a discussão da questão dos direitos da infância sob novas bases e contribuíram, sobremaneira, para a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. O cenário institucional também se mostrava mais favorável diante da valorização da cidadania, dos direitos humanos e sociais constantes da Nova Constituição Federal de 1988 e que já pautavam a agenda de mobilização e discussão de vários daqueles grupos, também no processo constituinte. Particularmente no Estado do Rio de Janeiro teve início em 1987 uma experiência de desinstitucionalização do atendimento no bojo das discussões que culminariam na aprovação do ECA. A criação dos Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (CRIAM) fez parte do esforço de diminuir as escolas de internação. A expansão desses equipamentos a partir da criação do Departamento Geral de Ações SócioEducativas, em substituição à antiga FEBEM, acabou por representar uma mudança parcial, visto que após a aprovação do ECA se consolidaram como unidades de cumprimento de medidas de semi-liberdade e liberdade assistida, o que não foi suficiente para substituir as instituições de internação que continuaram a existir. O potencial contido na proposta do CRIAM, em um contexto de transição para o Estatuto, não foi suficiente para reverter as práticas institucionais que se desejava alterar com as ações que seriam realizadas sob uma nova perspectiva pelo então “novo quadro” de “agentes educacionais”. Seja por causa das condições nas quais a proposta foi de fato implantada, diferentes das previstas (SALLES FILHO, 2004), ou porque as dificuldades não se localizavam no âmbito “da qualificação ou tipo de funcionários, mas na natureza do próprio sistema correcional” (VOLPI, 1997). Os primeiros anos de vigência do ECA foram marcados por mudanças institucionais que não tiveram longa duração como a criação da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (CBIA) aprovada pela Lei nº 8.029 de 12 de abril de 1990, dos Centros Integrados de 175 Atendimento às Crianças (CIACs) e que depois passaram a atender pelo nome de Programa de Atendimento Integral à Criança (PRONAICA), criado no governo Itamar Franco pela Lei nº 8.642 de 31 de março de 1993, sob a coordenação do Ministério da Educação, mas que manteve a estrutura dos CIACs do governo Collor de Mello. A mudança institucional mais significativa ocorreu um ano após a aprovação do ECA com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), através da Lei nº 8.242 de 12 de outubro de 1991, e que em uma longa trajetória de lutas sociais se consolidou como um órgão de fato paritário na forma de representação da sociedade civil e do governo, exercendo funções importantes no processo de gestão e controle das políticas voltadas para as crianças e os adolescentes. A afirmação do novo princípio da “proteção integral” como orientação das ações no campo da infância e da juventude exigiu o reordenamento das instituições do judiciário, com a extinção dos Juizados de Menores e a criação dos Juizados da Infância e da Juventude, a atuação do Ministério Público (MP) e a criação das Promotorias da Infância e da Juventude, a criação das Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), a criação dos Conselhos Estaduais e Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA e CMDCA) e dos Conselhos Tutelares (CTs). A partir destas instâncias a política para criança e para o adolescente caminhou com muitas lutas, resistências e dificuldades de várias ordens, para a sua efetivação na esfera local, também se sintonizando à tendência de descentralização impulsionada pelos novos desenhos institucionais das políticas públicas após a aprovação da Constituição Federal de 1988. Compõem também este novo quadro institucional os Fóruns Permanentes de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente (Fórum DCA) de âmbito nacional, estadual e municipal que atuam no processo de mobilização e participação nas instâncias de controle social das instituições da sociedade civil que atuam com a política de atendimento. 176 A implantação do ECA, assim como das demais políticas públicas que tiveram sua arquitetura institucional modificada pelos novos dispositivos constitucionais, como ocorreu na saúde com a aprovação da Lei Orgânica da Saúde (LOS, Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990), na assistência social através da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, Lei nº 8.742 de 07 de dezembro de 1993) e com a própria educação a partir da aprovação da LDB em 1996, se deu em um contexto extremamente contraditório, conforme já sinalizamos, haja vista a tradução das conquistas sociais no plano legal ter ocorrido em um período histórico marcado pelo pleno avanço do ideário neoliberal, que redesenhou numa direção oposta as funções do Estado na garantia dos direitos sociais. A questão do financiamento das políticas públicas se tornou um elemento central para todos aqueles que direta e indiretamente estavam envolvidos com as políticas públicas, revelando, no entanto, lógicas e tratamentos completamente diferenciados. De um lado a adoção de racionalidades de financiamento ancoradas nos diagnósticos e orientações dos organismos multilaterais, como no caso da política de educação, e, de outro, a ausência de vinculações fixas à receita como no caso da política para a infância e para a juventude. (...) O governo federal sai de cena, de forma unilateral, e reduz drasticamente a dotação de recursos para o setor. O fim da FunabemCBIA e a LBA é acompanhado da progressiva diminuição de repasses para estados da Federação, fundações ou entidades privadas. Também as organizações européias, que no momento da elaboração do Estatuto tinham relevante papel estimulando novas estratégias ou programas de intervenção, passam, após a queda do Muro de Berlim, a subsidiar fortemente o Leste de seu próprio continente. E ainda o Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência – passa por profunda crise, com cortes de recursos. Ora, os fundos que, previstos pelo Estatuto, teriam por origem contribuições como doações ou recursos provenientes do orçamento de estados e municípios, encontram-se de fato esvaziados. Não foi pensado em fontes fixas, alíquotas de arrecadação ou taxas e impostos para cobrir custos de sua implantação. Assim, estamos diante do empobrecimento da área. Os programas e projetos deixam de ter continuidade. Vivemos a desresponsabilização e a descontinuidade, a institucionalização do provisório (BAZÍLIO, 2006: 27). 177 As bases éticas, jurídicas, políticas e sociais da política para a infância consolidadas no Estatuto apontavam para a superação de muitas das heranças dos Códigos de Menores, em particular no que se refere à judicialização das questões referentes à infância. A grande inovação, neste sentido, se deu a partir da criação de uma instância não jurisdicional, permanente e autônoma, vinculada à sociedade civil com a finalidade de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, como consta no artigo 131 do Estatuto, o Conselho Tutelar. Sob o prisma da garantia dos direitos e da assessoria ao poder local na elaboração de proposta orçamentária para a condução de planos e programas de atendimentos - conforme consta do artigo 136 que trata das suas atribuições -, os Conselhos Tutelares possuem uma forte dimensão propositiva. Muito embora a concepção que orienta sua atuação seja a de maior envolvimento da sociedade civil, criando um espaço público de intermediação entre as situações identificadas no cotidiano das cidades e a rede de serviços sociais, a consolidação de uma larga tradição cultural autoritária e centrada em interesses privados, produziu uma série de distorções no trato cotidiano das situações de conflito que chegam a essa instância. A partir do Estatuto se reconheceu, pela primeira vez na trajetória das ações dirigidas à infância, a sua cidadania, particularmente através de um conjunto de artigos que afirmam os direitos sociais e individuais das crianças e adolescentes “como pessoas em condição particular de desenvolvimento”. Como também se avançou de forma inovadora em relação ao tratamento das questões relativas à política de atendimento, às medidas protetivas, aos atos infracionais e suas correspondentes medidas socioeducativas, como também quanto às responsabilidades dos pais, do judiciário, do Ministério Público e do Conselho Tutelar, detalhando um conjunto de medidas e procedimentos de forma a não propiciar brechas que possam colocar em risco a garantia dos direitos prescritos. Englobou, ainda, preocupações relativas à garantia de acesso às políticas sociais básicas, à municipalização do atendimento e ao direito à convivência familiar e comunitária, 178 confrontando com aspectos cruciais e duramente criticados na condução das políticas “menoristas”. As mudanças conceituais, pedagógicas e institucionais presentes no Estatuto esbarraram em uma série de obstáculos que vão desde a arraigada cultura de institucionalização do atendimento, equipamentos inadequados face às novas exigências legais, até a falta de clareza sobre o significado e alcance das medidas socioeducativas. Assim, muitos dos programas dirigidos aos adolescentes visando a qualificação para o trabalho, a melhoria das condições de escolarização e a valorização da cultura jovem, ainda esbarram na descontinuidade das ações governamentais, no distanciamento das demais políticas públicas, assim como na falta de subsídios que de fato favoreçam o desenvolvimento das atividades laborativas e de exercício da cidadania tal como previstas em suas proposições originais (LEAL, 2004). Deste modo, se é inegável o avanço provocado pelo ECA em termos da alteração de rumos proposta para a política da infância, também não se pode ignorar as adversidades que tanto as condições institucionais herdadas quanto as produzidas no percurso de sua implementação têm determinado. Temos de olhar com objetividade as ações e, sem meias palavras, afirmar: nas unidades federadas mais populosas, a prática das “medidas socioeducativas” (ou o que se faz em nome delas) não está produzindo os efeitos desejados: a) a violência institucional não foi reduzida – o fantasma “padrão Febem” está longe de ser eliminado; b) do ponto de vista ideológico, grande parte do Judiciário e demais atores envolvidos mantêm opção pela criminologia moderna (positivista), desejam apenação e proporcionalidade ao delito cometido e buscam “brechas” na legislação e trâmites administrativos para assegurar a “merecida punição”; c) boa parte das instituições de internação encontrase desequipada, com quadros insuficientes e/ou malformados ou, ainda, atuando numa perspectiva “corporativista” que unicamente prioriza seus interesses – não desejo confundir sadias práticas sindicais que promovem o respeito do trabalhador com algumas atitudes tomadas para garantir a continuidade dos mecanismos de corrupção e privilégios no interior destas instituições; d) os programas de liberdade assistida não contam com investimentos suficientes e, portanto, não conseguem bom desempenho ou credibilidade para se constituírem em alternativas eficazes, reduzindo o tempo de internação (BAZÍLIO, 2006: 49). 179 A implementação do Estatuto tem se dado, ao longo de seus quase vinte anos, através de intensas disputas travadas no interior das instituições de atendimento, no campo jurídico, no legislativo - especialmente no que tange às sempre recorrentes propostas de diminuição da idade penal, nas instâncias de controle social -, nos três níveis de governo – com certa ênfase nas dificuldades de se viabilizar a municipalização das medidas socioeducativas - e naquelas instituições que tiveram sua dinâmica alterada em função das necessidades desse sistema de garantia de direitos. Cabe destacar que a partir do Estatuto as ações dirigidas à infância ganharam o status de uma política pública cuja gestão e execução se particulariza pela necessidade de combinar esforços envolvendo as políticas das outras áreas sociais. Historicamente organizadas de forma setorial a partir de dois recortes centrais - o temático, como ocorre com as políticas de saúde, assistência e educação, e por segmento social, como nas políticas para a juventude, o idoso e a mulher, entre outras -, invariavelmente, as políticas públicas, a partir do novo quadro constitucional, na sua própria estrutura apontam a necessidade de algum grau de articulação intersetorial, seja no âmbito da gestão, da execução ou em ambos. A política voltada para a infância ganhou, neste sentido, uma dimensão plural, envolvendo as ações e programas das políticas de educação, de assistência social, de saúde, de lazer, de esporte e de cultura que se dirigem a esta categoria social. A perspectiva de intersetorialidade no campo das políticas da infância está posta, preliminarmente, como um princípio estruturador, o que não significa, necessariamente, seu desdobramento para o campo da gestão ou da execução. A sua garantia em todas as dimensões que envolvem uma política pública se tornou, a bem da verdade, mais um dentre os vários desafios postos para aqueles que atuam nesta área. A mutabilidade da vinculação da gestão das políticas dirigidas à infância entre e dentro das diferentes secretarias, subsecretarias, secretarias especiais, coordenações e divisões da gestão governamental, particularmente nas esferas estaduais e 180 municipais, tem sido bastante ilustrativa de como a infância tem sido tratada mais como política de governo do que de estado. No âmbito da execução as dificuldades não são menores, sendo acentuadas pela tendência de deslocamento para a esfera privada, pessoal e familiar, de questões que são de natureza pública, tencionando as relações interinstitucionais que envolvem as unidades de atendimento, as instituições responsáveis pelo cumprimento de medidas socioeducativas, as unidades de saúde, os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e, particularmente, os Conselhos Tutelares e a escola (SCHEINVAR, 2005). Tensões que revelam que há ainda um amplo caminho a ser percorrido no sentido da incorporação do princípio da “proteção integral” e dos direitos da infância enquanto responsabilidade de um amplo leque de instituições que precisam atuar de forma articulada. Historicamente as ações dirigidas à infância consolidaram um tipo de setorialização da realidade, destacadamente, a partir de suas dimensões educacionais, assistenciais e jurídicas, cujos efeitos ainda estão presentes na dinâmica de várias instituições. Romper com as práticas setoriais que mantêm fortes vínculos com a noção de “menor”, e todas as adjetivações dela derivadas, se coloca como uma tarefa político-pedagógica das mais urgentes. Neste sentido, a intersetorialidade não se circunscreve apenas ao campo das ações governamentais e das políticas públicas, adquire o sentido de conhecimento da realidade e se constrói também nas relações com a sociedade civil. A conquista da cidadania da infância tem nas políticas a ela dirigidas um marco central, mas não se restringe às mesmas, tendo em vista o significado histórico e a dimensão estrutural das próprias políticas na sociedade capitalista. Tanto as políticas públicas como as instituições que as materializam são determinadas, em última instância, pelas contradições que particularizam a dinâmica social, mas também, como instâncias mediadoras da própria vida social acabam por atuar na sua reprodução. Portanto, a produção social de outra forma de tratar, pensar e se relacionar com a infância não ocorre a despeito da dinâmica da realidade, das práticas 181 hegemônicas que se reproduzem, destacadamente, naquelas instituições em que a infância significa mais do que um discurso ou uma imagem, mas uma vivência concreta. A criança, ao nascer, necessariamente ingressa no “mundo dos adultos”, que na realidade é um mundo em que existem pessoas de diferentes idades. Se os adultos exercem a hegemonia dos processos sociais, há que se pôr em questão os processos como são recebidos os novos membros da humanidade na vida social, nos diferentes lugares, momentos, grupos sociais, etc. A defesa da necessidade da educação fundada nas instituições familiar e escolar fez dessas instituições o novo “mundo dos adultos” pelo qual elas deveriam passar (KUHLMANN JR. e FERNANDES, 2004: 22). Considerando as funções ideológicas e as práticas pedagógicas que particularizam a família e a escola em nossa sociedade, assim como as contradições que as determinam e aquelas que são reproduzidas pela mediação delas, a construção social de uma da cidadania da infância é ao mesmo tempo uma condição, resultado de conquistas sociais importantes, mas também um projeto, um horizonte de possibilidades que ainda não fazem parte integralmente da vida cotidiana. Por essa razão, as políticas públicas para infância, na sociedade atual, têm na família e na escola duas instituições centrais no processo de reprodução das imagens e práticas hegemônicas e de produção de uma contra-hegemonia que tem fortalecido a concepção de cidadania que se constrói no presente e não aquela que se “educa” apenas para o futuro. O entrelace entre a família e a escola nas políticas públicas para a infância tem marcado profundamente o campo da educação, mas em particular a educação infantil. Há décadas verificamos a mobilização social para que as creches e as pré-escolas sejam equipamentos públicos presentes na maioria das comunidades. Uma trajetória que delimita hoje um campo teórico e político repleto de conflitos, polêmicas e desafios em torno do crescimento mais comunitário do que público de seus estabelecimentos, da dualidade entre as redes públicas e privadas – aqui tomada em toda a sua diversidade: comunitária, filantrópica religiosa e empresarial -, da sua 182 trajetória assistencial e da transferência para a área de educação, do confronto e da articulação entre o cuidar e o educar no cotidiano dos profissionais da educação, da municipalização de sua oferta, da indefinição à insuficiência das fontes de financiamento, da relação com o ensino fundamental e da construção do projeto político-pedagógico. A cidadania da infância tem se forjado também na luta pela consolidação e ampliação da educação infantil como política pública, o que na história da educação representa um grande esforço coletivo voltado para dar visibilidade a uma prática nem sempre reconhecida nas esferas governamentais. Ausência de legislação, no entanto, não significa ausência de política. Ao contrário, ela caracteriza a política educacional voltada para o pré-escolar como estagnada e omissa, plena de medidas concretas de amplo alcance. Nesse contexto onde escasseiam os recursos e o apoio público, alternativas de diversos grupos espalhados por todo o País não podem ser ignoradas, como não se pode ignorar a grande massa excluída de seu atendimento por falta não só de legislação, mas também, e principalmente, de medidas práticas que a efetivem (KRAMER, 1992:94). O acesso à educação infantil é um dos direitos a serem assegurados a partir das ações do poder público municipal e que, apesar de constar em diferentes legislações, ainda não adquiriu a condição de um componente inscrito no cotidiano da maioria absoluta das cidades brasileiras. Diante da insolvência de grande parte dos municípios no Brasil, que não conseguem sobreviver sem os recursos oriundos de diferentes fundos, visto não terem arrecadação suficiente para arcarem com sua folha de pagamentos e, menos ainda, para desenvolverem ações próprias, as políticas para a infância, de um modo em geral, e as de educação infantil, em particular, acabam se restringindo às desenvolvidas pelo conjunto de instituições de natureza filantrópica ou comunitária. A aprovação do FUNDEB embora tenha representado um avanço, com a incorporação da educação infantil, não significou, de imediato, a possibilidade de reversão deste quadro; muito ao contrário, pois permitiu, por quatro anos a contar de sua aprovação, o repasse de recursos para as unidades de educação infantil de natureza 183 filantrópica e comunitária, conforme consta dos parágrafos 1º, 3º e 4º do artigo 8º da Lei nº 11.49430, o que, nessas condições, representa a consolidação e a expansão de uma rede onde os estabelecimentos públicos não necessariamente se tornarão o padrão de referência de sua organização. Nicolas Davies aponta a inconstitucionalidade desse repasse por duas ordens de fatores: primeiro porque não se tratam de instituições públicas, enquanto que o FUNDEB se destina a financiar instituições públicas e, em segundo lugar, pelo fato delas não integrarem nem as redes estaduais e municipais, embora façam parte dos sistemas estaduais e municipais de educação conforme consta da LDB (2008). Garantir o acesso à educação infantil é tão crucial quanto assegurar sua qualidade, o que, por seu turno, exige outra gama de enfrentamentos e investimentos. Embora se relacionem também diretamente à questão dos recursos financeiros não se reduzem a eles. A necessidade de processos contínuos de formação e qualificação dos profissionais da educação infantil é um desafio que assume proporções ainda maiores diante das marcas históricas de desenvolvimento da dimensão assistencial que se revestiu a pré-escola no Brasil, como também pela cambiante institucionalização dos processos de formação em nível superior para os professores da Educação Básica previstas na LDB (LINHARES e SILVA, 2003). 30 Constam dos parágrafos em questão que “§ 1o Admitir-se-á, para efeito da distribuição dos recursos previstos no inciso II do caput do art. 60 do ADCT, em relação às instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o poder público, o cômputo das matrículas efetivadas na educação infantil oferecida em creches para crianças de até 3 (três) anos. (...) § 3o Admitir-se-á, pelo prazo de 4 (quatro) anos, o cômputo das matrículas das pré-escolas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público e que atendam às crianças de 4 (quatro) e 5 (cinco) anos, observadas as condições previstas nos incisos I a V do § 2o deste artigo, efetivadas, conforme o censo escolar mais atualizado até a data de publicação desta Lei. (...) § 4o Observado o disposto no parágrafo único do art. 60 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e no § 2o deste artigo, admitir-se-á o cômputo das matrículas efetivadas, conforme o censo escolar mais atualizado, na educação especial oferecida em instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público, com atuação exclusiva na modalidade.” (BRASIL, 2007). 184 Formação que tem se desenhado no sentido de conjugar o cuidar e o educar como uma particularidade do trabalho dos profissionais da educação infantil e que, não deixando de reconhecer as ações no campo da assistência social e da saúde como direitos sociais importantes e necessários à cidadania da infância, é quem deve orientar as ações pedagógicas nas creches e pré-escolas. Uma concepção que provocou grande polêmica, não apenas pela demarcação de fronteiras com as demais políticas setoriais e seus respectivos profissionais, mas, sobretudo, dentro da própria área de educação. E que, para Sônia Kramer, tem um forte componente político, na medida em que o questionamento em relação à afirmação de um trabalho pedagógico na educação infantil se deu no momento em que a “população antes excluída da educação infantil, começou a freqüentá-la”, vivenciando uma experiência educativa de “ingresso no mundo da leitura e da escrita”. Deste modo, também com forte ênfase política, reconhece a autora que a educação infantil não pode se reduzir a uma antecipação/preparação para o ensino fundamental como muitos desejam. Lembro que infans etimologicamente significa sem voz e alumni quer dizer sem luz. Ora, não nos interessa que a criança passe de uma situação onde está “sem voz” para outra onde permanece “sem luz”, como se em ambas fosse depositária passiva da fala do outro, da razão, do esclarecimento, tendo a creche, a pré-escola ou a escola a função de dar a luz! Não podemos continuar a olhar as crianças como aqueles que não são sujeitos de direitos. Precisamos aprender com as crianças, olhar seus gestos, ouvir suas falas, compreender suas interações, ver suas produções (2006:80). A educação infantil como componente importante de consolidação da cidadania da infância deve estar voltada para a possibilidade de aprendizagem da criança, de seu ingresso no mundo da escrita e da leitura enquanto “imersão e produção na/da cultura”. Políticas para a infância têm o papel de garantir que o conhecimento produzido por todos se torne de todos. É importante fortalecer tradições e laços culturais dos diversos grupos, mas graças ao 185 conhecimento universal poderemos escapar do isolamento, do estreitamento das relações, da perda de humanidade. Políticas para a infância podem exercer importante papel ao reconhecer as diferenças combatendo a desigualdade, ao garantir a posse do conhecimento, questão central à distribuição do poder. O conhecimento universal e a compreensão da história possibilitam superar a particularidade. Falar de conhecimento é falar de cidadania (IDEM, IBIDEM: 98-9). A educação infantil adquire assim uma dimensão não restrita às práticas pedagógicas que se organizam no interior dos seus estabelecimentos e nem à esfera privada dos relacionamentos das famílias com as creches e pré-escolas, tornando-se um componente imprescindível à construção da cidadania da infância a partir de seu reconhecimento como política pública e da conseqüente interface, em outro patamar, com as demais políticas para a infância. A idéia de que, desde cedo, a criança se relacione com o acervo cultural acumulado pela humanidade ressalta nesta concepção de educação infantil sua dimensão pública, como condição de mudança de rumo de um percurso histórico que transformou a escolarização em um afastamento desta esfera, tomando a socialização como uma prática circunscrita ao espaço do privado. É evidente que em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais essa perspectiva se coloca como mais um dos desafios no processo de consolidação da cidadania da infância e que não está descolada das lutas travadas pelos demais segmentos sociais. A possibilidade de ao acessar a cultura de nosso tempo como parte do processo de aprendizado representa a construção de uma experiência que confronta, necessária e pedagogicamente, realidades, modos de vida distintos. Inscreve-se como prática pedagógica em um leque de outras práticas educativas que as políticas públicas, as instituições sociais e a cidade também produzem. Requer um esforço de ressignificação que indique a direção e o modo desses relacionamentos: um projeto políticopedagógico. 186 Para nós, não há sombra de dúvida em torno do direito que as crianças populares têm de, em função de seus níveis de idade, ser informadas e formar-se de acordo com o avanço da ciência. É indispensável, porém, que a escola, virando popular, reconheça e prestigie o saber de classe, de “experiência feito”, com que a criança chega a ela. É preciso que a escola respeite a acate certos métodos populares de saber coisas, quase sempre ou sempre fora dos padrões científicos, mas que levam ao mesmo resultado. É preciso que a escola, na medida mesma em que vá ficando mais competente, se vá tornando mais humilde. O conhecimento que se produz social e historicamente, tem historicidade. Não há conhecimento novo que, produzido, se ‘apresente’ isento de vir a ser superado (FREIRE,2005: 45). A educação infantil, no âmbito da educação básica, se torna um dos pilares da valorização da infância que vem sendo construída como parte de um processo social mais amplo e para o qual contribuiu de forma singular a aprovação do ECA e o reconhecimento da assistência social como política pública integrante da seguridade social, sobretudo a partir da aprovação da LOAS, em 1993, e da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que cria o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 200431. Pois, são essas as condições institucionais que podem garantir a “proteção integral da infância” como um direito de fato. O desenho assumido pelas políticas da infância ganha, assim, tonalidades cada vez mais intersetoriais. A experiência da infância na cidade, em uma sociedade dinamizada por contradições sociais tão gritantes, tem sido mediada por um leque de instituições públicas e privadas que tanto fortalecem quanto esvaziam o conteúdo político e pedagógico de construção de sua cidadania. A infância que se esconde sobre as tramas da vida privada e nelas se busca as causas e as razões de seu porvir não é a mesma que tem nos espaços e na esfera pública sua possibilidade real e concreta de reconhecimento, visibilidade e educação. 31 A assistência social como política pública envolve um conjunto de garantia de direitos de prevenção e proteção social que se estrutura a partir da PNAS e do SUAS em uma rede de proteção social básica e especial fundada na cidadania, na provisão de um conjunto de seguranças (acolhida, de convívio social, de autonomia e rendimento, de equidade e de travessia) e num sistema de monitoramento de riscos e de defesa de direitos, realizados através de serviços, benefícios, programas, projetos, monitoramento e do trabalho social (SPOSATI, 2004). 187 A infância que se forja no entrelace das políticas públicas, na articulação interinstitucional entre a escola, os Conselhos Tutelares, os conselhos municipais de políticas públicas, os organismos de cultura e a vida comunitária é a aquela que afirma os direitos individuais e sociais como resultante de um processo histórico e de ações político-pedagógicas que se confrontam com a hegemonia do consumo, do individualismo exacerbado e da subordinação incondicional a uma vida urbana alienada de pertencimentos e desejos. Por esse motivo, algumas das experiências mais marcantes no relacionamento dos viventes com a cidade, como as da Cidade Educadora, o movimento da Escola Cidadã e do Orçamento Participativo, visto que sublinham na vida cotidiana e seus problemas as perspectivas de enfrentamento como um processo não só coletivo, mas político e educativo acabaram convergindo em uma singular experiência de construção da cidadania da infância, a do “Orçamento Participativo-Criança” da cidade de São Paulo, realizada durante a gestão de Paulo Freire à frente da Secretaria de Educação no início final dos anos 80. Para a maioria das crianças, é a escola que marca o início da sua atuação pública. É na escola que muitas delas vivenciam o primeiro encontro com a sociedade organizada e têm a oportunidade de, por meio da participação, começar a construir sua autonomia. Dessa forma, educar na e pela democracia pressupõe cuidar dos discursos e das práticas cotidianas da escola de modo a oferecer oportunidade às crianças e jovens de se construírem como cidadãos e cidadãs para uma Cidade Educadora e para a construção de urna "rede de proteção social" com a íntima presença e contribuição das crianças e da juventude. Pressupõe, ainda, cuidar da construção de valores, respeito e responsabilidade frente aos espaços públicos e frente às relações democráticas de convivência. Oferecer oportunidades de aprender a decidir coletivamente, de vivenciar e experimentar a validade do diálogo crítico como mediador dos conflitos, a construir, em grupo, acordos provisórios ou mais duradouros, a impacientar-se diante da divergência ou discordância, mas manifestar-se com respeito e justiça, a definir prioridades diante de tantas escolhas. Educar para e pela cidadania e democracia pressupõe criar condições para que o cidadão e a cidadã se construam no cotidiano da escola, nas pequenas ações e relações do dia-a-dia. O Orçamento Participativo-Criança é um “inédito viável” (Paulo Freire) porque propõe uma nova forma de governar, proporcionando às crianças, jovens e adolescentes a oportunidade de vivenciar os princípios da cidadania que defendemos. Os alunos são convidados a 188 pensar sobre si mesmos, sobre a escola, a comunidade, sobre seus desejos e expectativas, sobre seu projeto de vida, sobre o projeto de cidade. São convidados a observar seu entorno e apresentar demandas, justificá-las, discuti-las, orçá-las, priorizá-las. São educados para entender que projetos têm custos, exigem planejamento e tomada de decisões (GADOTTI, 2005:3) (grifos do autor). A cidadania da infância requer não só um conjunto articulado de políticas públicas, ela necessita de práticas diferenciadas que as teçam das tramas da vida social, constituindo outras possibilidades de vida urbana a partir da própria realidade, das condições alienantes da hegemonia do capital. É neste sentido que as reflexões de Walter Benjamin abrem uma nova perspectiva para se pensar a infância. Recorrendo a algo valioso em sua construção metodológica: as reminiscências, ele resgata em seus escritos um conjunto de recordações que se singularizam não por serem as “suas lembranças”, não por indicarem a perspectiva ou o modo de olhar de “uma criança”, mas por representarem um momento histórico, um modo de compreender a sociedade no qual o individual não se desvincula do coletivo. Nele a infância não se reduz a um tempo passado, não se esgota numa linearidade temporal, ao contrário, ganha sentido por fundar a história do homem. A infância para Benjamin não é um esquecimento ou uma memória aprisionada em um tempo, mas a própria possibilidade de se ter uma história. As dimensões do infantil na criação, no ato de brincar, de dar e mudar os nomes, de colecionar brinquedos e de manusear os vestígios e os restos instigando a imaginação, vão sedimentar uma concepção de infância que não se limita ao determinismo etário, não se enclausura numa única etapa da vida humana, pois se torna uma condição da vida humana, da sua capacidade de mudar e dar significado às coisas, à própria vida. O infantil em Benjamin não carrega a pecha do que ficou para trás na história do crescimento do homem, ele descortina a possibilidade dele romper com a linearidade das noções de tempo e impregna a visão triunfalista do progresso. 189 (...) Com efeito, toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e retorno, restauração de uma situação original, que foi seu ponto de partida. “Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer duas vezes as coisas”: a criança age segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela não quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem e mil vezes. Não se trata apenas de assenhorear-se de experiências terríveis e primordiais pelo amortecimento gradual, pela invocação maliciosa, pela paródia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos. O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez, seja esta a raiz da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não ”fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”, é a transformação em hábito de uma experiência devastadora (BENJAMIN, 1985:253). Porém a sociedade capitalista condiciona a repetição a um hábito cujos condicionantes são externos ao próprio sujeito. A repetição se torna uma condição da vida cotidiana e de um modo de produzir essa vida, mas que não expressam a capacidade de criar e recriar, retiradas da produção como condição humana. Trata-se de uma produção que não liga e religa o sujeito em seu ato de criação ao produto do seu trabalho, antes o separa, produzindo uma negação da experiência, da construção de uma apropriação e recriação da produção da própria vida. Para Benjamin, “ficamos pobres”, em virtude de um padrão de vida que esvazia de sentido a perspectiva de comunicação humana, pelo fator dela ter devorado tudo, a “cultura e os próprios homens”: “abandonamos uma depois da outras todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimos de seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (IBIDEM: 119). Seguindo esta mesma trilha Giorgio Agamben desenvolve uma ontologia da infância a partir de sua posição central na relação entre experiência e linguagem. Reconhecendo a força da argumentação de Benjamin sobre a “pobreza da experiência” afirma que nosso esforço não deve ser o de negar a existência de experiências, mas o de reconhecer que 190 elas se efetuam hoje fora do homem, como uma conseqüência de uma dinâmica social que reproduziu no campo da ciência - ao retirar a condição de experimentação do homem e colocá-la no experimento - a mesma separação que fez no homem em relação ao seu trabalho e ao produto que dele deriva. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo, Se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar (2007:71). Se a experiência se tornou algo estranho ao homem, empobrecendoo, a decorrência é também o empobrecimento da linguagem, da condição de se comunicar, de transmitir algo que foi experimentado, vivido, na medida em que a vida tem se convertido numa repetição de eventos, de situações que não precisam ser comunicáveis, pois não nos dizem respeito, não “nos tocam” (LARROSA, 2002). O homem ao perder a condição de elaborar sua própria experiência, perde a condição de falar de si mesmo, perde sua particularidade como vivente, de dar significado ao próprio falar e à própria linguagem. Segundo Walter Kohan (2005) se a infância é o momento do infans, do inefável, da ausência de linguagem, “não é menos verdadeiro que a adultez é a ausência da possibilidade de se inscrever na linguagem, porque já se está dentro dela”, deste modo “a aprendizagem da linguagem está ligada a uma disposição infantil e se abandonarmos a infância também renunciamos à possibilidade de entrar na linguagem”. A negação da experiência e o abandono da condição infantil determinam o aprisionamento da linguagem a uma temporalidade linear na qual nem o passado e nem o 191 presente fornecem qualquer condição para que o homem possa alterar o curso de sua vida enquanto sujeito. A idéia de uma infância como uma “substância psíquica” présubjetiva revela-se então um mito, como aquela de um sujeito prélingüístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito (AGAMBEN, 2005:59). A infância, nesta perspectiva, não é o início da história do homem que depois se desenvolve, tendo no infantil apenas o seu ponto de partida, como as concepções adultocêntricas e pautadas nos ciclos da vida hegemonicamente sustentam. Não se trata de conceber a infância como um momento infans a partir do qual o homem acessa a palavra, experimenta a linguagem e depois se vê acessado por ela, deixando para trás tanto a infância quanto a experiência, como momentos de um percurso em direção à vida adulta. Uma concepção tão forte que retira do infantil sua dimensão de presente, visto que ressalta apenas o futuro – pois é a ele que se dirige – e esvazia o passado de sua potência, restando apenas como lembrança. Como são fortes e presentes as justificativas familiares, políticas, governamentais e não governamentais que atestam a importância da educação hoje para as crianças porque “ela vai ser importante um dia”! Por que a educação não pode servir hoje? Ser atrativa e importante para o tempo presente? Talvez porque a educação da infância não seja ela mesma ainda infantil. A infância que Agamben afirma a partir de Benjamin é aquela que junto com a experiência fundam a nossa humanidade, pois não existe a possibilidade de existirmos como seres humanos, como seres sociais sem 192 elas. A nossa condição de sujeito, a nossa humanidade, se constrói e se afirma com o uso da linguagem, de nossa capacidade de dizermos coisas, de darmos significado às coisas e à vida, inscrevendo nossas ações no curso da história, de uma história que revele nossa humanização e não nossa desumanização, nosso silêncio e não pertencimento. A nossa história só adquire este sentido se formos capazes de usarmos a linguagem na condição de sujeito, a utilizando de forma criadora e não subsumida, através de uma infância que permanece como particularidade de nossa própria humanidade. Essa permanência da infância se coloca em um campo completamente diferenciado daquelas concepções que se limitam a um sujeito concretamente determinado por fixações etárias, ciclos de vida ou sentidos de incompletude diante da vida adulta. Trata-se de uma concepção que não deixa de considerar a infância como uma experiência humana, como fundante desta mesma condição, e que por essa razão tem um ancoramento na realidade, pressupondo uma categoria social que lhe corporifique histórica e socialmente, mas que também alarga essa concepção, uma vez que é a partir desta dimensão concreta, real, que podemos reconhecer os processos mais universais, abstratos, que particularizam a nossa humanidade. Neste sentido, as ações dirigidas à infância, enquanto categoria social, a partir da interface das políticas públicas, em particular aquelas advindas da de educação, podem expressar uma experiência instituinte, uma possibilidade de se inscrever na experiência da cidade com relação às suas políticas públicas como momento de uma infância da política, como possibilidade de ressignificar as práticas profissionais e sociais, de criação das políticas públicas a partir de uma linguagem coletiva. Julgamos que, mais do que examinar que infância se quer educar, proteger, assistir ou cuidar setorialmente, seja necessário hoje pensarmos quais as infâncias que estão sendo construídas a partir das políticas públicas. A sociedade urbana que se expande sob a lógica do capital, subtraindo da educação sua dimensão política e subordinando-a ao imperativo das relações mercantis e 193 de consumo, que fragmenta a realidade a partir de políticas de ação setorializadas e que traz para o cotidiano da cidade “preocupações contábeis” aos processos de acompanhamento das instâncias de controle social, com certeza necessita de um tipo de socialização que permita a reprodução em larga escala de um modo de vida tutelado, “desde a infância”. Mas as experiências instituintes que se gestam na contramão deste processo, não como práticas que se dão em contextos alternativos ou apenas em condições propícias, mas que se constroem nas próprias tramas desse extensivo processo de desumanização, afirmando o contrário, ou seja, uma educação que tenha no homem sua centralidade, não só sugerem outra perspectiva de infância como se afirmam infantis, capazes de criar e não apenas reproduzir. 194 Capítulo 3 – Educação e infância na cidade de Niterói. 3.1- As dualidades da cidade das águas escondidas Apresentar a cidade é sempre um processo que nos coloca diante de opções sobre as formas de tratar as informações e conhecimentos disponíveis e o grau de envolvimento que temos ou não em relação a eles. As tradicionais abordagens sócio-demográficas iniciam pela abrangência da área geográfica, suas divisas municipais, a população e uma série de dados estatísticos que, embora relevantes, dizem pouco do modo de vida de uma cidade. Nas perspectivas historiográficas, daquelas que aprendemos em certa época na escola, nos contam sobre as datas, os personagens, os monumentos e os símbolos. As duas possibilidades não são suficientes para apresentar a cidade como uma totalidade viva. Também abrem poucas possibilidades para que o próprio processo de abordagem revele as particularidades da relação e entre o sujeito que investiga e suas preocupações com a dinâmica da realidade. Nessa pesquisa dois movimentos foram determinantes no processo de aproximação à cidade de Niterói: a perspectiva de “perder-me na cidade”, seguindo a advertência de Walter Benjamim, conforme consta na epígrafe da apresentação desta tese, e a de ser conduzido pelos profissionais e sujeitos políticos que atuam nas e com as políticas públicas, no processo de descoberta de como as tramas da infância e da educação se entrelaçam na cidade. No primeiro sentido a busca combinou memória e experiência, visto que sempre vivi em Niterói, construindo uma relação ao mesmo tempo de pertencimento e de distanciamento. Contudo, o envolvimento com os processos que me interessou pesquisar havia se transformado em conhecimento e experiência em outras localidades. Para avançar para além deste patamar não pude deixar de olhar para o que me singulariza neste processo de descobertas e reconhecer em minhas memórias os traços de um modo de vida citadino, cujas marcas revelam pertencimentos familiares, de classe e de formação intelectual, marcados por aqueles que derivam de 195 nosso tempo, das relações pelas quais a vida na cidade foi profundamente fermentada pela dinâmica particular da política, da produção e da reprodução social no contexto do capitalismo mundial e no Brasil ao longo das últimas décadas. Em relação ao segundo movimento procurei construir uma relação em que pertencimento e distanciamento se invertessem, possibilitando o prazer e a riqueza de descobertas conduzidas pelas narrativas dos profissionais e sujeitos políticos que forjaram através de seus trabalhos e de suas ações algumas das objetivações das políticas públicas em Niterói. Nesse percurso o pertencimento foi se revelando a partir da ressignificação das palavras e das memórias dos narradores, possibilitando entender como o distanciamento que tinha da cidade era algo que me dizia respeito tanto quanto ao tempo em que vivemos. Era singular porque continha os traços de um processo universal. Era distanciamento porque revelava tanto o não pertencimento próprio à vida urbana sob a hegemonia do consumo e da fluidez das relações sociais, como os pertencimentos que profissional e politicamente foram produzidos como parte do processo de alargamento de meu território de vida. Deste modo, apresentar a cidade, nos marcos desta pesquisa, significa abordar como um determinado território foi sendo delimitado pela dinâmica da produção, da reprodução social e da política, produzindo modos de vida a partir das relações de classe e das particularidades do relacionamento entre a sociedade política e a sociedade civil na esfera local, sem perder de vista os processos mais abrangentes que os fomentam. Um território no qual se constroem imagens, sentimentos e práticas sociais relativas às diferentes dimensões da vida social, articulando o local e o global de maneira singular, ou seja, produzindo e reproduzindo as contradições e as possibilidades da vida urbana na cidade, em Niterói. Uma cidade cuja história é marcada política, econômica e culturalmente por processos bem singulares. Quem dentre os habitantes de Niterói algum dia não se fez a pergunta sobre o que teria acontecido “se ao 196 invés das caravelas portuguesas terem atracado do lado esquerdo da Baía de Guanabara tivessem vindo para o lado direito”? Esta curiosidade não habitou o imaginário niteroiense sem algum sentido. Viver em Niterói significou para milhares de pessoas e em diferentes épocas construir na cidade um modo de vida que pela proximidade do Rio de Janeiro, e em virtude da posição que alcançou no cenário brasileiro e mundial, teve fortes implicações na construção de sua própria identidade. Como abordar as políticas públicas em Niterói sem levar em consideração a história de um lugar que do ponto de vista econômico, político e cultural teve na dinâmica de uma cidade tão próxima e tão conhecida uma forte influência no seu próprio modo de vida, na definição dos rumos de seu lugar no cenário fluminense e nacional e na produção social de um leque de sentimentos compartilhados por gerações? A escolha localizando na margem ocidental da baía de Guanabara o núcleo urbano que terá um papel importante na consolidação do território português já instiga a formulação de hipóteses com relação à ocupação de Niterói. A razão da preferência por localizar, na margem ocidental da baía, a cidade do Rio de Janeiro pode ser aventada: na margem oriental os vales eram mais estreitos, os mananciais de água menos generosos e sol poente era mais inclemente. A posse das terras da atual Niterói foi um processo lento. Primeiramente Mem de Sá a destinou ao fidalgo português Antônio Mariz que serviria também nas guerras contra tamoios e franceses, morrendo varado por flechas desfechadas pelos índios no Rio de Janeiro. A sesmaria compreendendo uma légua de terras ao longo do mar por duas do sertão na “Banda d’Além”, começando nas “Barreiras Vermelhas” não foi registrada. Mas em 1568, o fidalgo e sua mulher fez lavrar a escritura de desistência dessas terras para que o governador pudesse passar essa “data” a Araribóia, pelos muitos serviços prestados durante a expulsão dos franceses. Documentos enviados a Roma, como a carta do jesuíta padre Gonçalo de Oliveira, datada de 1570, mostra a existência da aldeia nessa época (AZEVEDO, 1997:21). A “Banda d’Além” não chegou a vingar como uma identificação que se perpetuasse no imaginário da cidade, mas não deixa de ser um traço na construção da história da cidade se tomada a partir de uma memória profundamente marcada pelo sentimento de “menor importância” ou “provinciano” como os que marcaram as auto-representações e 197 representações dos e sobre os niteroienses, respectivamente, durante décadas ao longo do século XX. As origens desses sentimentos podem ser argumentadas a partir da combinação de diferentes processos históricos que, exatamente por serem históricos, expressam as contradições e os hibridismos da dinâmica social. Talvez um dos marcos mais emblemático desses hibridismos, sobretudo no plano cultural, seja a história da fundação da cidade por Araribóia, que significa “cobra feroz”, um índio tupiminó (ou temiminó), nascido por volta de 1523, cuja tribo habitava a Ilha de Paranapuã ou dos Maracajás (gatos bravos), mais tarde conhecida como Ilha do Governador pelo fato de ter sido dada de sesmaria a Salvador Corrêa de Sá, sobrinho de Mem de Sá, e que veio a ser governador do Rio de Janeiro. Fortemente hostilizado pelos índios tamoios Araribóia e sua tribo migraram no ano de 1555 para o norte, para a capitania do Espírito Santo. Recebidos pelos portugueses Araribóia foi catequizado e batizado com o nome de seu padrinho, Martim Afonso de Sousa. Em fins de 1564, vindo da Bahia, o Capitão-Mor Estácio de Sá, também sobrinho de Mem de Sá, passou pela capitania do Espírito Santo em direção à Guanabara para tentar desalojar definitivamente os franceses e os seus aliados, os tamoios. Lá conheceu Araribóia e seu povo, com quem passou a contar naquela empreitada. Como a investida não foi possível de imediato foi buscar ajuda em São Vicente e retornou em 1565, fundando em primeiro de março do mesmo ano aquela pequena povoação como a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A segunda investida contra os franceses (a primeira foi em 1560) e também contras os tamoios ocorreu entre os anos de 1566 e 1567, com o apoio de Araribóia e o reforço dos navios enviados por Mem de Sá. Em 1568 Araribóia transferiu-se com seu povo para as terras da “Banda d’Além”, não retornando nem para a ilha onde ele nasceu e de onde foram expulsos tanto os franceses quanto os tamoios, e nem para a capitania do Espírito Santo (WEHRS, 1984). 198 As terras do outro lado da baía passaram a ter um significado estratégico contra futuras invasões. Araribóia recebeu de forma solene a posse daquelas terras em 22 de novembro de 1573, que ficou sendo a data oficial da fundação da cidade de Niterói, considerada feriado municipal desde 1909. Assim teve início a Aldeia de São Lourenço dos Índios que foi alçada a condição de Vila Real de Paria Grande em 1819, após apelo feito a Dom João VI, em virtude de sua visita à Vila em 1816. E através da Lei Provincial nº 6 de 28 de março de 1835 a capital da província era elevada à condição de cidade, sendo denominada Nictheroy, nome já utilizado pelos índios ao se referirem a essa parte da baía de Guanabara, que originalmente significava “Y-i-teroy”, ou seja, “água que se esconde”. Mas, após o desaparecimento de Araribóia, sua aldeia começou a decair, talvez por não oferecer local adequado para expandirse, e situar-se um pouco distante da povoação maior, que era o Rio de Janeiro. O progresso que vinha do outro lado da Baía de Guanabara localizou-se na parte mais plana, mais fácil de ser alcançada por mar, e sem a necessidade de atravessar os terrenos pantanosos junto à Enseada de S. Lourenço. Assim surgiram os núcleos de S. Domingos, Praia Grande, S. João de Icaraí, S. Sebastião de Itaipú e S. Gonçalo, todos eles acessíveis por via marítima, e que, lentamente foram-se desenvolvendo (IBIDEM, IDEM: 36). Araribóia se tornou um símbolo para Niterói, cujo busto em bronze no centro da cidade, em frente à Estação das Barcas, há décadas contribui para a consolidação no imaginário popular de um “índio guerreiro”. Sua história emprestou à cidade além da simbologia que foi útil para a colonização portuguesa, as marcas da resistência e da assimilação de um povo. Os conflitos com os tamoios, as andanças por terras que não mais pertenciam aos nativos, o confronto com os franceses em nome de uma causa estrangeira, o reconhecimento perante a Igreja e a Corte a partir de um “novo nome” e a fundação de uma aldeia da qual se desenvolveu a cidade que mais tarde lhe transformaria em herói, revelam não uma história qualquer, mas como que naqueles tempos coloniais a vida se organizava entre o poder da cruz e o das armas. As palavras começavam a ser ressignificadas na vida 199 e nos nomes das aldeias, vilas e cidades, como possibilidades de construção de uma nova linguagem, forjada pelos interesses mercantis e exploratórios que brancos europeus impunham pela força das armas ou da “conversão pela fé”, mas também pelas resistências, fugas e a mestiçagem cabocla como condição de vida dos índios. Da Aldeia de São Lourenço (1573) à Vila Real da Praia Grande (1819), composta pelas povoações de São Domingos, Praia Grande e das freguesias vizinhas de São João de Carahy, São Sebastião de Itaipú, São Lourenço dos Índios e São Gonçalo, o embrião da cidade de Nictheroy, a população já atingia 13 mil habitantes. A forte presença da Igreja, através dos jesuítas, foi moldando a vida nas aldeias e freguesias, seja pelos próprios nomes das localidades como pelas construções de capelas e igrejas. A cidade foi talhada nas porções de terra litorâneas pelas construções religiosas e pelas fortalezas, estrategicamente construídas ao longo da entrada da Baía de Guanabara, tanto no lado ocidental quanto no lado oriental. Muitas dessas construções, ainda presentes na cidade, deixaram heranças diversas na cultura, na política e até na preservação ambiental das áreas praianas próximas às encostas onde se localizam as fortalezas32. O século XIX é extremamente significativo para a compreensão de como se deu o processo de urbanização de boa parte da cidade e cujos traços produziram significativos impactos no modo de vida da cidade, permanecendo, em alguma medida, até os dias atuais. O Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande (1833) projetava a criação de oito ruas como prolongamento da Praia Grande em direção à aldeia de São 32 Todos os fortes da cidade, Imbuí, Barão do Rio Branco, Santa Cruz, São Luiz, do Gragoatá e da Boa Viagem (apenas ruínas) são administrados pelas forças armadas e, na sua grande maioria (com exceção do Forte do Gragoatá) são abertos à visitação, ou seja, foram incorporados ao circuito turístico da cidade. Constituem áreas que por razões de segurança impediram a urbanização nas encostas litorâneas, o que produziu um impacto preservacionista importante nas regiões em que se localizam, muito embora o acesso à praia do Forte tenha adquirido uma dimensão privada, restrita aos militares e seus familiares. A dimensão política dessa herança é que marca negativamente a história da cidade, visto que em vários períodos os fortes serviram de prisão para os opositores dos diferentes regimes e, em particular, da ditadura militar. 200 Lourenço dos Índios, São Domingos (já com edificações da época da visita de Dom João VI) e São João de Icaraí e Santa Rosa, formando o que é hoje o centro da cidade de Niterói. Já o Plano da cidade nova de Icaraí (1841) organizava as ruas de Icaraí e Santa Rosa num formato de tabuleiro de xadrez, tendo ao centro o Campo de São Bento. Os dois planos expressavam intervenções urbanísticas bastante significativas e avançadas para o período. A proximidade do Rio de Janeiro mantinha-se como elemento central de dinamização da economia e da expansão da cidade. Um dos marcos desse período foi a diminuição do tempo (para pouco mais de meia hora) e a regularidade da travessia da baía pelas barcas, o que favoreceu a transformação do “terminal hidroviário em elemento irradiador do sistema viário local até a construção da Ponte Rio-Niterói em 1974” (AZEVEDO, 1997). A vida econômica da cidade, no entanto, tomou grande impulso com a instalação da indústria naval pelo Barão de Mauá, em 1845. (...) Ela pode ser identificada como a primeira indústria brasileira nos moldes da revolução industrial, pela sua dimensão e organização da produção. Dez anos depois ela já contava com 411 operários (130 escravos) e dois anos mais tarde, 667. A indústria fabricava peças de artilharia, barcos a vapor, pontes, pequenas embarcações, máquinas e instrumentos agrícolas, navios de guerra etc, implantando na Ponta d’Areia, o que viria a constituir o pólo da indústria naval brasileira (IDEM, IBIDEM: 37) A fabricação de barcos, de bebidas, rapé e cigarros além das várias serrarias e olarias indicavam uma dinâmica pré-industrial voltada para atender às exigências das demais atividades econômicas e de consumo da cidade e das localidades mais próximas. A indústria naval e o complexo instalado na Ponta d’Areia em torno dela, com atividades de fundição, galvanização e de algumas operações químicas “não configurou um processo de industrialização assentado na produção de bens de capital, mas representou um esforço no sentido de copiar e construir máquinas e ferramentas” (HONORATO e BEAUCLAIR, 1997). A instalação da indústria naval foi um fator decisivo para a dinâmica econômica e política da cidade na 201 medida em que representou as condições históricas para a organização de uma classe trabalhadora urbana ligada ao setor industrial e que teve ao longo do século seguinte uma presença ativa em algumas das lutas sociais travadas pelos movimentos sindicais no país. Em que pese a envergadura desse esforço, Niterói não se transformou numa cidade tipicamente industrial, haja vista que a principal característica da cidade estava centrada no comércio e nos serviços, na sua grande maioria vinculados ao governo, como os que são característicos de uma sede de província e, posteriormente, do governo estadual. O advento da República foi marcado por um episódio que transformou a cidade em uma praça de guerra com a Revolta da Armada entre 1893 e 1894. Liderada pela marinha que exigia a renúncia de Floriano Peixoto da presidência a mesma foi rechaçada em Niterói, que foi bombardeada, teve o comércio fechado e as comunicações cortadas. A vida na cidade ganhava contornos cada vez mais urbanos com a instalação de sedes de bancos, jornais locais e atividades vinculadas ao lazer, especialmente para a região que se expandiu a partir das áreas banhadas pela baía. No início do século a cidade começou a ser dotada de uma rede de serviços educacionais e de saúde com a passagem para o município de dois hospitais, a criação de cinco escolas primárias, a cessão de um terreno para a instalação do Colégio Brasil e de terreno para a Faculdade de Farmácia e Odontologia (AZEVEDO, 1997). Nas primeiras décadas do século XX começava a ficar mais bem delineado os diferentes territórios que compunham a cidade. Conforme temos abordado, uma cidade não expressa um território homogêneo e as transformações no seu espaço guardam relação direta com a divisão social e técnica do trabalho (SANTOS, 2002). Espaços que foram valorizados no passado entram em declínio e novas áreas surgem como expressão dos também novos processos econômicos e das formas de acomodação das frações de classe. Em relação à Niterói o formato que seu território foi tomando revelava algumas tendências importantes na construção dos modos 202 de vida de diferentes segmentos sociais. Os bairros começavam a expressar a composição diversificada das classes e suas frações, assim como das atividades culturais e econômicas que imprimiram a feição que a cidade teve ao longo de boa parte do século XX, seguindo um modelo muito próximo ao que se deu no Rio de Janeiro, com a localização do centro em frente a essa cidade e a expansão territorial a partir dele por faixas de renda. A ocupação urbana de Niterói já estava configurando o distanciamento entre a zona norte e zona sul, tendo o Centro multifacetado e multifuncional como divisor de águas. A zona norte se expandia em direção ao Barreto/São Gonçalo, de uso industrial, com uma população predominantemente operária. Os bairros novos como o Fonseca, fruto da abertura da Alameda São Boaventura atraía moradores de renda alta e média por oferecer vantagens de localização como clima, colégios e transportes. No Centro também era expressivo o uso residencial de alta e média renda, com a construção de palacetes, chalés, casas e vilas de aluguel, e a vantajosa proximidade dos melhores serviços e do centro do Rio de Janeiro. A zona sul, onde Icaraí se sobrepunha pelo traçado planejado e regular era também local de veraneio, de ocupação sazonal. A população permanente era dispersa, de renda média e alta, com alguns estrangeiros que buscavam as amenidades do clima e da paisagem. A legislação de incentivos para a implantação do Cassino Icaraí e de balneários nas praias de Icaraí, Flechas e São Francisco evidencia a função dessa região costeira como zona preferencial de lazer (Del. 241/1913) (AZEVEDO, 1997: 43-4). A vida política da cidade foi decisivamente marcada pela sua condição de capital da província e depois do Estado do Rio de Janeiro, além, evidentemente, das mudanças na vida política na cidade do Rio de Janeiro. Assim entre 1835 e 1975, com um pequeno interstício entre 1894 e 1903, Niterói se constituiu como um importante centro político e conviveu a maior parte deste período com duas instâncias de poder: as sedes do governo municipal (a partir de 1904) e estadual (antes da proclamação da república como sede da província). Durante a República Velha até a instauração do Estado Novo a vida política da cidade foi marcada pela intensa proximidade da dinâmica e dos acontecimentos na capital do país. A Revolta da Vacina e a reforma urbana de Pereira Passos no Distrito Federal tiveram grande impacto na cidade que também sofreu com os processos de controle sobre as manifestações populares e que sob o governo estadual de Nilo Peçanha 203 (1903-1906) teve uma reforma urbana aos moldes daquela experimentada na cidade vizinha, da qual originou a reconstituição da Câmara Municipal, a inauguração do teatro João Caetano, a criação de um centro de serviços municipais, a dinamização dos serviços de transportes (bonde e barcas), a substituição do sistema de iluminação de gás pelo de luz elétrica e a instalação da sede do governo no Palácio do Ingá. A proximidade da vida política no Distrito Federal era vista na época como impeditiva de uma maior autonomia municipal, haja vista que as ações do governo estadual expressavam os interesses de extensão do poder político da república no estado, produzindo efeitos de largo alcance na cidade (FERREIRA, 1997). Foi a partir da decretação do Estado Novo que, contraditoriamente, Niterói passou a ter as condições de consolidação de seu papel de centro político do estado, tendo em vista que a nomeação de Ernani do Amaral Peixoto como interventor do estado se estendeu de 1937 até 1945. Além de neutralizar os conflitos internos, a política desenvolvida pelo interventor pautou-se na direção de consolidar a cidade como centro do poder político do estado. O longo período em que Amaral Peixoto esteve à frente do executivo estadual com certeza serviu para a criação de bases políticas cujo alcance ultrapassou o período do Estado Novo. As marcas desse legado político puderam ser sentidas décadas mais tarde com a eleição de Wellington Moreira Franco, seu genro, ao governo municipal. As estratégias repressivas e de cooptação das bases sindicais da ditadura varguista manteve a vida política local em torno dos acontecimentos e decisões do governo estadual. As ações federais no campo assistencial na década de 40 produziram um importante efeito na cidade, com o incentivo da LBA foi criada a primeira Escola de Serviço Social da cidade (1945)33, mais tarde integrada à Universidade Federal Fluminense (UFF). Tratava-se de um componente estratégico no processo de tecnificação da assistência social (IAMAMOTO e 33 A criação da Escola é decorrente de ações da LBA no Estado do Rio de Janeiro, tendo à frente Alzira Vargas, filha de Getúlio Vargas e primeira dama do governo estadual na época. 204 CARVALHO, 1982), ou seja, da necessidade de quadros qualificados, nas condições possíveis e particulares à época, de constituição de novos padrões no enfrentamento da pobreza. Ao longo dos anos 50 e 60 a cidade passou por profundas mudanças no âmbito da superestrutura. A presença da sede do governo estadual havia se tornado um fator decisivo para a consolidação de uma rede de equipamentos públicos federais e estaduais de saúde e educação que atenderam às necessidades, sobretudo, das camadas médias urbanas. O fluxo migratório para a cidade passou a ter a concorrência da Baixada Fluminense e das cidades vizinhas em função das pressões exercidas sobre o governo estadual e do conseqüente incentivo ao crescimento industrial dessas regiões. A cidade passou a experimentar um processo da expansão da sua rede de ensino privado com a criação de colégios que viriam a se tornar referências na formação das diferentes frações da burguesia e dos segmentos médios que compunham a classe trabalhadora vinculada ao setor de serviços, fortemente dinamizado pela burocracia estatal. Foi também um período marcado pela unificação de várias faculdades isoladas que passaram a constituir a UFF, fundada em 196034 (WEHRS, 1984). Compõe ainda este quadro a criação de associações e instituições filantrópicas vinculadas ao atendimento a diferentes categorias sociais, mas, sobretudo, às pessoas com algum tipo de deficiência e que consolidaram uma rede se serviços especializados35 com forte impacto nas políticas públicas. 34 A UFF foi criada pela Lei nº 3.848 de 18 de dezembro de 1960 a partir da incorporação de cinco faculdades federais já existentes na cidade (Faculdade de Direito de Niterói, Faculdade Fluminense de Medicina, Faculdade de Farmácia e Odontologia, Escola de Odontologia e Escola de Medicina Veterinária), de estabelecimentos de ensino estaduais (Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro, Escola Fluminense de Engenharia e Escola de Serviço Social do Estado do Rio de Janeiro) e dois estabelecimentos privados (Faculdade Fluminense de Filosofia e Faculdade de Ciências Econômicas de Niterói). Inicialmente denominou-se Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ), passando a ser reconhecida como Universidade Federal Fluminense em 1965. 35 Estamos nos referindo à criação da Associação Pestalozzi de Niterói em 1948, da Associação Fluminense de Reabilitação (AFR) em 1958, do Centro Juvenil de Orientação e Pesquisa (CEJOP) em 1960, da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) em 1965 e da Associação de Pais de Amigos dos Deficientes da Audição (APADA) em 1970. 205 O movimento sindical passou a ter uma forte atuação no cenário nacional, como na organização da Greve Geral dos Marítimos em 1953, nas conquistas trabalhistas, em relação à questão da insalubridade e da extensão da semana inglesa a todos os marítimos, além da manifestação de apoio a Cuba no final dos anos 50. Entre 1953 e 1964 as conquistas desse segmento da classe trabalhadora consolidaram o que se denominou de “época dos operários navais” atingindo um patamar de conquista de direitos que poucas categorias haviam conseguido no país e impactando em um modo de vida que se particularizou no cotidiano da cidade. (...) nessa “época dos operários navais” (como a tradição do setor a cunhou), os trabalhadores certamente viveram experiências de inserção social e política bem mais gratificantes. Os mais velhos, e suas mulheres, recordam esse tempo com satisfação e orgulho, em virtude da importância política de que a categoria gozava, mas também por causa dos “privilégios” desfrutados em termos de uma vida financeiramente mais folgada. Nesses anos, por exemplo, em Niterói, eles adquiriram ou construíram casas próprias em bairros próximos aos estaleiros (como a Ilha da Conceição) e levantaram a espaçosa sede do sindicato, com seus próprios recursos, no bairro do Barreto. Apareciam de tal forma como camada privilegiada dos trabalhadores manuais urbanos que, nos bairros populares da cidade a adjetivação como “de marítimo” era aplicada para indicar a melhor qualidade dos produtos e serviços consumidos: falava-se de carne de “marítimo”, por exemplo, quando se queria uma carne especial... (PESSANHA, 1997: 153). Desde a decisão da transferência da capital federal para Brasília no final dos anos 50 teve início o debate sobre os rumos da cidade do Rio de Janeiro e do Estado da Guanabara e a conseqüente fusão desse estado com o Estado do Rio de janeiro, o que veio a ocorrer em 1975 de forma atropelada pelos governos militares. Assim, durante um breve período de tempo compreendido entre meados dos anos 50 e 60, Niterói teve a perspectiva de, por um longo período, manter-se como centro político, o que foi reforçada com a eleição ao governo do estado de Roberto Silveira em 1958, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), cujas bases políticas estavam fincadas na cidade e na Baixada Fluminense, e com a transferência da capital para Brasília em 1960. A morte prematura do então governador 206 em um acidente de helicóptero causou uma comoção na cidade, produzindo um sentimento de perda e frustração que acabou impactando na vida política da cidade por um longo período. Assim, nos anos 80, seu filho Jorge Roberto Silveira conseguiu mobilizar essa memória ao mesmo tempo política e afetiva em torno de sua candidatura à prefeitura da cidade, inaugurando uma fase profundamente marcante na vida da cidade. A vida política e cultural da cidade no início dos anos 60 teve um impulso em função das heranças deixadas por uma época de retomada da democracia e de intensa disputa político partidária, das mobilizações do movimento sindical e da dinamização da vida educacional, em especial com a criação de uma universidade federal. O campo da superestrutura se ampliava e apontava para uma perspectiva cultural menos dependente do Rio de Janeiro, porém bastante articulada, o que se expressou no plano cultural e na perspectiva de uma produção técnica e científica irradiada a partir da cidade. Contudo, o período da ditadura militar não poupou a cidade das atrocidades cometidas em nome da ideologia da “segurança nacional”. As intervenções na organização sindical, na administração da vida universitária e nos governos estaduais e municipais se sucederam determinando um período de silêncio e medo, o que não foi exclusividade da cidade, mas que foi talvez mais sentido do que em outras cidades brasileiras em função da efervescência cultural e política que caracterizou o Rio de Janeiro ao longo dos anos 60, particularmente protagonizadas pelo movimento estudantil (ALMEIDA, 1996). A ditadura militar, no início dos anos 70, fez a cidade ganhar um “símbolo” com a destruição da Praça da República36, parte de um conjunto arquitetônico do início do século onde se localizam a Câmara de Vereadores, o Palácio da Justiça e a Biblioteca Municipal, para a construção 36 Não bastasse a insensatez de construir o prédio no meio de um conjunto arquitetônico culturalmente importante para a cidade, as peças que compunham o monumento foram atiradas em um vazadouro de lixo em Viçoso Jardim e as demais em terrenos situados perto de uma favela na Avenida Feliciano Sodré, sendo resgatadas, anos mais tarde, por um prefeito que as colocou no fundo de uma repartição municipal (WEHRS, 1984). 207 de um prédio que deveria alojar o novo palácio da justiça que nunca foi concluído, deixando por anos no lugar um “esqueleto” de concreto cercado de mato e tapumes. Encravado no meio daquele belo conjunto arquitetônico aquela estrutura de concreto não deixou a cidade esquecer a força do arbítrio provocada pela inscrição à força do país na nova dinâmica de expansão do capital internacional que em todo o país foi sentida nas vidas emudecidas e subtraídas do convívio cotidiano de centenas de famílias e cidades. Em 1982, já em pleno processo de redemocratização, o Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural tombou aquele conjunto assegurando a permanência do conjunto de prédios. Em 1989, no centenário da república, a partir de movimentos locais e de alguns interesses políticos ocorreu a implosão do prédio o que possibilitou a restauração da praça. Conforme destaca Lefebvre (2004) uma cidade é um contínuo processo de produção de valores de uso. Sua dimensão produtiva é sempre visível pelas transformações que provoca no espaço, seja através dos monumentos, dos prédios, das ruas, ou seja, do conjunto dos equipamentos necessários à vida na cidade. Niterói pode ser caracterizada como uma cidade na qual as intervenções urbanas, aquelas que organizam, mediante alguma racionalidade econômica e política, modificações projetadas sobre o espaço habitado, produzem também fortes mudanças culturais, na forma de sentir e se relacionar com a vida na cidade. Não que isso lhe seja um traço exclusivo, mas o fato é que a história da cidade revela não só uma constante preocupação com planos organizadores do espaço, como o impacto que eles e outras modalidades de intervenção produziram sobre os sentimentos que são compartilhados na cidade. Deste modo, as décadas seguintes (a partir dos anos 70) possuem particularidades no tipo de intervenção urbana que foram decisivas para uma série de mudanças territoriais, que alteraram não só o “espaço habitado”, mas também as “formas de sentir e viver” a cidade (SANTOS, 1997a). Mudanças que impactaram nas formas de convivência e percepção da proximidade com o Rio de Janeiro e no que diz respeito à relação entre sociedade política e sociedade civil na cidade em 208 um contexto inédito até então, pois Niterói deixou de ser a sede do governo estadual, transferida para a cidade do Rio de Janeiro, que, por seu turno, já não era mais a capital federal e nem a sede de um estado que geograficamente coincidia com a própria cidade: a Guanabara. A principal intervenção urbana do período, bastante estratégica para o processo de fusão dos dois estados, foi a construção da Ponte-Rio Niterói, inaugurada em março de 1974. A obra assumiu proporções gigantescas para a época, adquirindo por anos o status de maior ponte do mundo em alguns quesitos. Obviamente, considerando as condições de vida atuais tal construção já se mostra defasada para os fluxos de deslocamento que a rotina não só das duas cidades demandam. Mas nos anos 70 o impacto de tal empreitada foi imediatamente sentido em Niterói, cuja infraestrutura viária pouco foi modificada para adequar-se àquela nova ligação. Entrou, desde então, para a rotina da cidade um acentuado volume de carros e engarrafamentos nos finais de semana e nas segundas-feiras. Já no primeiro final de semana após a inauguração da ponte a cidade parou por conta de um enorme congestionamento. Durante anos o sentimento de menor estima da cidade em relação à cidade vizinha foi acentuado pela provocação bem humorada de que se tratava da “ponte do século”, pois se saía do século XX, no Rio de Janeiro, e se chegava ao século XIX em Niterói. A ponte além de representar uma ligação viária importante favoreceu uma maior integração entre as dinâmicas das duas cidades, se constituindo em um símbolo de uma relação histórica e geográfica que começava a ingressar em uma nova fase. Os impactos da ponte no cotidiano dos processos de deslocamento na cidade vêm revelando ao longo dos anos as novas composições do perfil e do fluxo de diferentes segmentos populacionais entre as duas cidades, ainda que na sua maioria composto por trabalhadores. O transporte hidroviário viveu oscilações importantes desde numericamente e numa proporção que não foi então, aumentando acompanhada de investimentos da ampliação das condições de oferta desse serviço, mesmo 209 após sua privatização em 1997, sendo, nos últimos anos, visível a falta de atendimento com qualidade desse serviço. A ponte, privatizada em 1995, teve um aumento significativo de volume de carros particulares e das linhas de ônibus intermunicipais que diminuíram o fluxo de passageiros que iam das cidades circunvizinhas para o Rio de Janeiro utilizando os serviços de barcas. Além do fato de que o transporte ferroviário entre Niterói e as cidades vizinhas foi desativado há décadas como meio regular de locomoção. Como conseqüência a cidade teve seu desenho viário modificado revelando a ênfase no transporte particular e o pouco investimento nos transportes de massa o que onerou duplamente os trabalhadores: em termos do tempo e do custo do deslocamento, o que tem determinado um fator importante nos processos de territorialização da pobreza, conforme destaca Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro: O conjunto de dados em pesquisas realizadas pelo Instituto de Desenvolvimento e Informação sobre Transportes tem evidenciado a relação entre crise de mobilidade vigente nas áreas metropolitanas e suas conseqüências na constituição de bolsões de pobreza. A parcela mais carente (classes D e E) da população é a que encontra maior dificuldade para realizar deslocamentos. Esse segmento corresponde a quase 45% da população total das metrópoles nacionais, mas representa menos de 30% dos usuários de ônibus urbanos; por outro lado, é o segmento que apresenta maior dependência do trem urbano, fato que indica as longas distâncias que essa população tem que percorrer, como também permite interferir sobre as condições desse transporte, pois trata-se de área que sofreu, nas últimas décadas, com falta de investimentos (2007: 32). A relação entre as duas cidades passou a ser bastante modificada pelo deslocamento de várias repartições públicas de Niterói para o Rio de Janeiro após o processo de fusão. Esse fato não só implicou na perda de referência da cidade como sede do poder estadual como também deu outra dimensão ao histórico deslocamento de parte significativa de trabalhadores para o Rio de Janeiro. Até os anos 70 tanto Niterói quanto São Gonçalo37 e 37 São Gonçalo constituía uma das freguesias de Niterói e foi elevada à condição de Vila em 1890, fazendo com que a cidade perdesse quase 2/3 de seu território, composto essencialmente por áreas 210 outras cidades do entorno do Rio de Janeiro eram consideradas como “cidades dormitórios”, dada o percentual da população de trabalhadores que se deslocavam cotidianamente para trabalhar no Rio de Janeiro. Embora parte do aparato burocrático do estado permanecesse em Niterói a cidade teve que lidar com uma nova realidade de mudanças, ocupação e desocupação de prédios públicos, incluindo o Palácio do Ingá, sede do executivo estadual. Em meio às mudanças administrativas a cidade passou a lidar com uma situação que no final do século XX iria adquirir outra magnitude: a rede de serviços educacionais e de saúde localizadas no município, mas que administrativamente estavam vinculadas ao governo estadual e, em alguns casos, ao governo federal. Este fato passou a ter maior peso em função das tendências de descentralização e municipalização das políticas públicas e da maior autonomia que os municípios passaram ater em função do reordenamento institucional provocado pela aprovação da nova Constituição Federal em 1988. Deste modo, em um primeiro momento a presença de uma extensa rede de serviços públicos, sobretudo estadual, na cidade foi um fator que favoreceu a consolidação das políticas públicas, mas que se revelou, com o tempo, insuficiente para o atendimento do crescimento da população pobre da cidade por algumas razões: i- a localização dessas unidades seguiu um padrão de urbanização de décadas anteriores em que a heterogeneidade da composição de classes sociais da cidade foi atendida mediante os investimentos estaduais e federais38, mesmo não distantes de onde se deu o crescimento da pobreza rurais. Contudo a subordinação aquela localidade continuou subordinada à Comarca de Niterói até 1921 (WEHRS, 1997). 38 Ao analisarem a experiência de Niterói no que se refere à localização das escolas públicas, Pizzolato et alli apontam que: “Quanto à distribuição espacial das escolas, a avaliação do estudo resultou em um diagnóstico muito favorável, mas recomendando cuidadoso acompanhamento gerencial, decorrente do fluxo de estudantes de outros municípios, não devidamente compreendido, e do rápido desenvolvimento de Itaipu, segundo distrito de Niterói, que vem crescendo a taxas superiores a 10% a.a. Por outro lado, foram destacadas algumas áreas em que haveria pequenos desequilíbrios de vagas e áreas com absoluta escassez de vagas, mas em que predomina a população de renda elevada. Naturalmente, se tais segmentos mais privilegiados optarem pela escola pública, poderá haver forte 211 na cidade elas já não ofereciam condições de acompanhar o aumento da demanda sem novos investimentos na ampliação da rede; ii- o crescimento da pobreza se deu em uma conjuntura de retração da capacidade de arrecadação da cidade, sobretudo com o declínio da indústria naval nos anos 80, e de valorização das ações públicas municipais no desenvolvimento das políticas públicas; iii- por conta de uma central contradição da cidade que em função dessas condições históricas criou as bases para o desenvolvimento de um padrão de vida das camadas médias e de grande parte da população assalariada urbana bastante satisfatório em termos de serviços públicos, sobretudo se comparado com a maior parte dos municípios brasileiros, o que possibilitou a disseminação da “falsa idéia” de que a cidade não tem uma população pobre em proporção elevada que justificasse o investimento público municipal em políticas públicas e equipamentos urbanos para esses segmentos. As demais intervenções urbanas dos anos 70 contribuíram para a consolidação dessa forma de percepção, ou melhor, de não percepção da pobreza na cidade. Na gestão de Moreira Franco39, a última antes do fim da ditadura, os investimentos centrais foram dirigidos para a construção do túnel novo de ligação dos bairros de Icaraí e São Francisco, o aterro e a duplicação das pistas da Avenida Rui Barbosa nas orlas de São Francisco e Charitas, os acessos às praias oceânicas de Piratininga, Itaipú e Itacoatiara e a ampliação das galerias de águas pluviais dos bairros mais nobres da cidade. Tratou-se de um montante de investimentos assegurados em parte pelo governo federal, em particular por interesses eleitorais do então Ministro demanda reprimida” (2004: 124). Conforme será abordado no próximo capítulo, de fato a rede pública acabou sofrendo uma expansão nos anos 90 e que, pelas análises dos autores, foi capaz de manter um certo equilíbrio na distribuição territorial das escolas. 39 Moreira Franco foi o primeiro prefeito eleito de Niterói, em 1976, pelo então Movimento Democrático Brasileiro (MDB), com a Reforma Partidária de 1979 que extinguiu o bipartidarismo, ele seguiu seu sogro Amaral Peixoto filiando-se ao Partido Democrático Social (PDS), para onde migrou boa parte dos políticos vinculados à antiga Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e que apoiavam o regime militar. Anos mais tarde Moreira Franco se filiou ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). 212 do Interior Mário Andreazza e do próprio prefeito Moreira Franco, que se candidatou ao governo do estado nas eleições de 1982. Algumas intervenções passaram a ocorrer nas regiões onde a população pobre se concentrava, mas sempre a partir do vetor das obras físicas de urbanização das vias de acesso e logradouros. O crescimento da população residente em favelas se constituiu em um fenômeno que revelava exatamente a ausência de uma política habitacional dirigida a esses segmentos populacionais urbanos. Pela topografia da cidade o crescimento da população pobre se deu particularmente no período nas regiões de encostas, mas em um ritmo não acelerado e de certo modo perceptível ao poder público que produziu essas intervenções mais pontuais e não estruturais. Em função da dimensão reduzida do território da cidade servido com uma infraestrutura básica (transporte, água, luz e esgoto) a alternativa deflagrada foi a construção de alguns conjuntos habitacionais em bairros residenciais da cidade40, cujo público-alvo não era o de segmentos moradores de favelas, também não ocorrendo a prática das remoções, como se deu em larga escala na cidade do Rio de Janeiro. As intervenções produzidas entre os anos 70 e 80 seguiram um padrão bastante parecido de irradiação do crescimento urbano no Rio de Janeiro e em Niterói em direção à Barra da Tijuca e à Região Oceânica, respectivamente (ver mapa no Anexo 2). Em busca de novos padrões e condições de vida, sobretudo aquela proporcionada pelo fato de morar longe do centro e de bairros muito saturados em termos de densidade demográfica e problemas urbanos, famílias da classe média e classe média alta migraram para estas regiões das duas cidades. Em Niterói o processo foi favorecido pela melhoria das condições de acesso à região oceânica e pelo lançamento de condomínios fechados com uma enorme atratividade em torno do trinômio segurança-privacidade-lazer. 40 Parte dos conjuntos foi construída a partir de financiamentos do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP-Rio) fundado em 1966. 213 Parte do processo de expansão da região não se deu exatamente nas áreas litorâneas, abrangendo também uma região intermediária formada por grandes áreas verdes, sítios, posses, loteamentos que não vingaram e que se caracterizavam pela baixa quantidade de moradias e construções, e parte da zona rural da cidade. Esse contexto de expansão iniciado entre o final dos anos 70 e início dos anos 80 se consolidou em fases, produzindo em um primeiro momento a criação dos condomínios fechados em número limitado e com características de veraneio, depois com um novo conjunto de reformas nas vias de acesso, com ampliação das principais avenidas que cortam toda a região oceânica e rural da cidade, a ocupação passou a se dar pelos diferentes extratos de classe, configurando a combinação tão característica de nossas cidades e de nosso modelo econômico que é a de que o percurso da territorialização da pobreza acompanha o da riqueza, e a terceira e atual fase diz respeito ao crescimento acelerado da região, fortemente dinamizado pela especulação imobiliária e pela sedimentação de áreas de extrema pobreza incrustadas no meio das áreas nobres. A combinação da segmentação do mercado de trabalho com imobilidade urbana e a ausência de políticas efetivas de provisão de moradia gera segmentação sócio-territorial das metrópoles, cuja evidência é a pressão pela ocupação das áreas mais centrais. O fundamento dessa pressão é a continuidade da concentração nos municípios pólos da riqueza e da renda, espaços onde os trabalhadores mais precarizados tentam se infiltrar (RIBEIRO, 2007: 33). A expansão da região oceânica nas condições descritas compôs um cenário novo no contexto da cidade: a criação de condomínios e loteamentos que atraíram a migração de contingentes populacionais oriundos dos bairros residenciais de Niterói e até do Rio de Janeiro, que encontravam aqui melhores condições econômicas para arcar com um novo padrão de vida. A região com três praias oceânicas se tornou a principal opção de lazer da cidade nos finais de semana. Contudo essa expansão não foi acompanhada de investimentos na infraestrutura urbana e parte considerável da região continua até hoje sem asfalto, calçamento e rede de 214 coleta de esgoto. Acabou abrindo oportunidades de sobrevivência para a parcela da classe trabalhadora residente na região em ocupações de baixa qualificação e, na maioria, sem a segurança do trabalho formal: caseiros, domésticas, vendedores ambulantes e trabalhadores da rede de comércio local organizada inicialmente em torno das atividades de veraneio. Há de se destacar a emergência de localidades constituídas pela parcela da população mais pobre e migrante de diversas regiões do estado e do país com graves problemas relacionados à violência, em todas as suas formas de expressão, especialmente as decorrentes do alcoolismo e do tráfico e consumo de drogas, o que em certa medida justificará a atuação de várias instituições filantrópicas nesta região. A principal decorrência desse tipo de crescimento urbano foi a ausência de políticas públicas por parte do governo municipal em razão de que essa necessidade não se colocava para a população com altos rendimentos enquanto que as necessidades da população das localidades mais pobres esbarrava na particularidade que se forjou em Niterói decorrente da combinação de um alto padrão de “qualidade de vida”, medido pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com uma pobreza que não tinha muita “visibilidade” na cidade, visto que seu circuito de deslocamento territorial foi extremamente reduzido às próprias áreas de moradia, seja por razões econômicas ou culturais (medo e segregação41). Para uma região afastada e mal servida de transportes públicos o deslocamento se tornou em forte elemento de diferenciação das condições de vida das classes sociais. A população com maiores rendimentos não se ressentia dessa distância e 41 Faz parte do modo de ver e sentir a cidade de alguns segmentos sociais, sobretudo os moradores dos morros e regiões mais afastadas do centro, há décadas, a referência aos deslocamentos entre seus locais de moradia e o centro da cidade como se fosse a um espaço que representasse uma enorme diferença em relação ao local de residência. Assim foi e continua sendo muito comum ouvirmos “eu vou à cidade”, “eu vou lá em Niterói”, como se essas pessoas não estivessem de fato na cidade de Niterói. Tais discursos revelam que em alguma medida há um sentimento de não pertencimento à cidade, como se a cidadania não tivesse, de fato, um componente territorial. Embora tenha crescido na cidade ouvindo isso com algum estranhamento, me surpreendi com as narrativas de muitos profissionais que atuam junto às escolas públicas, nos CRAS e nas unidades de saúde reiterando a força da presença desse discurso na população, particularmente as crianças. 215 deslocamento, pois dispunha de veículos próprios. Tal fato só se tornou uma questão central nos anos 90 com a aceleração do crescimento da região, o que gerou a organização de uma rede privada de serviços (comércio, educação e saúde) que favorecessem o atendimento de certas demandas na região. O impacto da combinação entre o aumento da população com altos rendimentos e de acirramento das condições de pobreza transformou a região oceânica em um lugar com expressões bastante acirradas da questão social: degradação ambiental, exploração do trabalho infantil, violência doméstica, negligência e maus-tratos contra crianças e prostituição infantil. A região produziu respostas diversas ao longo das últimas três décadas. Nos anos 80 se constituiu na região um importante movimento de organização social em torno das questões ambientais, visto que é uma região privilegiada em termos de ecossistema composto de mata atlântica original, morros, duas lagoas, mangues e restinga. Essa mobilização esteve associada à questão da terra e da moradia, sendo protagonizada por associações de moradores e que convergiu, em um determinado momento, para a formação de uma das bases de sustentação do Partido dos Trabalhadores na cidade. Já nos anos 90 se verificou a forte presença e atuação das instituições religiosas, em grande parte ligada ao movimento neopentecostalista e que vai servir de base para a organização de um amplo leque de instituições com atuação na área social. E nos anos 2000 o esboço de uma ação pública com a criação do Fórum da Região Oceânica, do 2º Conselho Tutelar da cidade, com a expansão dos programas sociais, o fortalecimento da atuação das ONGs e a constituição de redes sociais. O crescimento da Região Oceânica de Niterói embora represente um aspecto decisivo para a compreensão da particularidade de como a distribuição da riqueza se expressa na cidade, não deve ser vista em separado da dinâmica das demais regiões. Deste modo o crescimento da pobreza determinou um processo acelerado de aumento da população residente em favelas no Centro, em Icaraí, Ingá, Santa Rosa, Fonseca e em 216 quase todas as regiões da cidade. Segundo reportagem publicada no jornal O Globo, em 21 de janeiro de 2009, Niterói vivenciou em quatro anos, no período compreendido entre 2004 e 2008 o surgimento de 30 novas favelas e ao longo da década a cidade pulou de 43 para 130, o que representa hoje cerca de 20% do total da população, ou seja, 95 mil pessoas morando em áreas de grande concentração de pobreza. Apesar de este processo ficar mais evidente na dinâmica da cidade com o crescimento visível das favelas, do aumento da criminalidade e da violência, a imagem que se construiu da cidade para parte dos habitantes e para fora foi outra: a de uma cidade com “excelente qualidade de vida”, assentadas particularmente na divulgação de alguns indicadores. Não obstante o IDH de Niterói ter aumentado ao longo da última década e hoje ser o maior do Estado do Rio de Janeiro e o terceiro do Brasil com 0,886 e o índice de Gini que mede a desigualdade de renda ser de 0,46 e estar abaixo da média nacional em torno de 0,56, segundo levantamentos realizado pelo PNUD em 2003, a cidade tem um percentual de incidência da pobreza de 12,47% (IBGE, 2008). Diante das condições econômicas da cidade as estratégias de enfrentamento da pobreza já mereciam uma ação governamental mais consistente e articulada, sobretudo no que se refere às questões relativas às condições de habitação e transporte de massa. Em relação à esfera política, ao longo dos anos 80 a cidade experimentou um novo arranjo político em virtude do processo de redemocratização. Ao mesmo tempo em que se fortaleceram os movimentos associativos que imprimiram à dinâmica da sociedade política local a necessidade de diálogo com personagens fora do circuito político partidário tradicional, polarizados por quadros políticos oriundos da conjuntura do bipartidarismo da ditadura e das clássicas forças políticas do estado, se esvaziou gradativamente a força política do sindicato dos marítimos pela profunda crise que o setor viveu naquela década, inclusive com o 217 fechamento de estaleiros e demissões42. A dinâmica partidária apresenta um alto grau de renovação, ainda que as alianças com os setores tradicionais da política estadual se mantenham nos arranjos pré e pós-eleitorais nas sucessivas gestões municipais vinculadas ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). Muito embora essa hegemonia no campo da gestão municipal tenha se desenhado mais em torno da figura de Jorge Roberto Silveira do que do próprio partido, não podemos deixar de considerar o peso que teve a eleição de Leonel Brizola ao governo estadual em 1982, ganhando do ex-prefeito de Niterói Moreira Franco num pleito disputadíssimo e marcado por denúncias de tentativa de manipulação dos resultados. Além é claro, como se deu em todo o país, com a criação do PT. Desde as primeiras eleições para o município o PT lançou candidato próprio o sindicalista e professor Godofredo Pinto que duas décadas mais tarde viria a ser prefeito da cidade. As gestões de Jorge Roberto Silveira e João Sampaio pelo PDT durante 14 anos43 produziram marcas expressivas na cidade. O diálogo com os movimentos sociais de certa forma se construiu oscilando entre as bases que particularizam historicamente o PDT, ou seja, há um reconhecimento dos interlocutores vinculados aos movimentos sociais, mas que não avança para uma perspectiva de gestão mais participativa, e as pressões decorrentes do fortalecimento das mobilizações e reivindicações dos movimentos sociais, em particular no âmbito da questão urbana (creches, saúde e urbanização e regulação fundiária das áreas de favela), do meio ambiente (sobretudo ligadas à região oceânica e à instalação do “Lixão” no 42 A crise vivida pelo setor naval pode ser tomada como expressão de como as mudanças no contexto internacional produz impactos nas cidades que têm algum ramo da atividade econômica integrada aos processos de mundialização da economia. 43 As eleições municipais de Niterói têm apontado para um quadro de alternância partidária no poder muito restrito ao longo das últimas três décadas, ou seja, desde que se retomou o processo de eleição direta para prefeito apenas três partidos políticos tiveram seus candidatos eleitos, com largo predomínio do PDT: Moreira Franco (MDB/PDS, 1977-1982); Waldenir Bragança (PDS, 1983-1988); Jorge Roberto Silveira (PDT, 1989-1993); João Sampaio (PDT, 1993-1997); Jorge Roberto Silveira (PDT,1997-2001); Jorge Roberto Silveira (PDT, 2001-2002); Godofredo Pinto (PT, 2002-2005); Godofredo Pinto (PT, 2005-2008); Jorge Roberto Silveira (PDT, 2009-2012). 218 bairro do Caramujo44), da infância e da violência. A Federação das Associações de Moradores de Niterói (FAMNIT) foi se constituindo em um dos principais interlocutores no âmbito da sociedade civil, passando a ocupar espaços importantes em quase todas as instâncias de controle social da cidade. As intervenções urbanas produziram uma forte reversão no sentimento de menos valia da cidade. Jorge Roberto a partir da contratação de vários projetos ao renomado arquiteto Oscar Niemeyer mexeu com elementos estéticos e simbólicos importantes para a consolidação da imagem da cidade, sendo o mais importante e conhecido o do Museu de Arte Contemporânea (MAC), construído em 1996. Os elevados índices que aferiam a qualidade de vida, a modificação da paisagem urbana da cidade com a extensão territorial das áreas onde residem os segmentos populacionais com altos rendimentos e a construção de novos “símbolos” que mexeram com imaginário da população e que passaram a ser conhecidos no mundo inteiro foram decisivos para que se modificasse a auto-imagem da cidade e a forma como ela passou a ser tratada na mídia. Contudo, se as sucessivas gestões municipais impactaram, indubitavelmente, na imagem da cidade, não podemos deixar de destacar alguns processos que também foram decisivos para as políticas públicas contribuírem para o reconhecimento da cidade no campo social. A forte tradição no campo dos serviços públicos reforçada pela condição de capital deixou mais do que uma herança em equipamentos, mas também uma cultura de gestão de políticas que combinada com a dinâmica das atividades 44 A instalação do aterro sanitário onde é despejado o lixo recolhido da cidade no bairro do Caramujo, mais especificamente no Morro do Céu teve um profundo impacto na região, visto que determinou condições de vida e de saúde muito ruins para a população local assim como o desenvolvimento de uma extensa rede de catadores envolvendo homens, mulheres e crianças que passavam a viver do lixo. Com o aprofundamento das relações privadas e clientelistas que passaram a dominar as favelas do Rio de Janeiro de Niterói, a própria atividade econômica em torno da ”indústria do lixo” também passou a ficar subordinada ao poder exercido pelo narcotráfico. A questão que envolve a região passou a ser alvo de mobilizações sociais por parte da população e objeto das propagandas de diferentes partidos políticos nos pleitos eleitorais do município. 219 intelectuais e profissionais que a forte presença da universidade pública45 imprimiu ao cotidiano da cidade possibilitou que em diferentes áreas a cidade fosse assumindo uma posição de vanguarda ou, ao menos destacada, como no caso do cinema, da saúde pública, da saúde mental, da cultura, da assistência social e da educação. O reconhecimento dessa atuação não pode ser creditado exclusivamente a uma única gestão municipal, mas é preciso reconhecer que em 14 anos de gestão de um partido, em maior ou menor grau, com avanços e retrocessos, essa construção foi fomentada a partir de importantes ações e políticas municipais. O exemplo mais conhecido é o do Médico de Família46, fruto de um convênio firmado com Cuba e que desde 1992 é desenvolvido na cidade com importantes impactos na organização da saúde pública. Em 1989/90, em decorrência da segunda epidemia de Dengue, na iminência do surgimento de casos de Febre Hemorrágica e de outros surtos recorrentes de Meningite Meningocócia no estado do Rio de Janeiro, iniciaram-se uma série de contatos com o Ministério da Saúde Pública de Cuba, na intenção de intercambiar experiências e tecnologias para a resolução da situação epidemiológica em andamento. Esta aproximação permitiu melhor conhecimento sobre a aplicação do plano de Medicina Familiar, implantado com sucesso naquele país desde 1984, resultando em um acordo de assessoria técnica para estudo de viabilidades de adaptação à realidade municipal, com grande empenho dos gestores locais, considerando que a proposta em questão era compatível com as mudanças interpostas pelo processo de municipalização, ampliando a estratégia de regionalização dos serviços, estabelecendo facilidade de acesso à populações situadas em área de risco definidas pelo Diagnóstico ambiental de Niterói elaborado à época (FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE SAÚDE DE NITERÓI, 1992:4). Em grande parte o reconhecimento do “êxito” dessas ações recaía, a cada processo eleitoral, mais ainda sobre Jorge Roberto Silveira, visto que não necessariamente os candidatos do PDT conseguiram o mesmo 45 A consolidação da UFF foi um fator decisivo para a estruturação dos serviços de saúde no município nos anos 70 (BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS MUNICPAIS DE SAÚDE, 2007) e anos mais tarde nas áreas de Educação, Assistência Social e Cultura, entre outras, visto que não só muitos quadros da administração municipal eram oriundos da universidade, assim como parte dos profissionais concursados e que passaram a atuar na rede municipal. 46 Niterói é o único município no Brasil autorizado a desenvolver esse programa ao invés do Programa de Saúde da Família (PSF) do Ministério da Saúde. 220 desempenho nas urnas. A cidade passou a ter um representante político fortemente identificado com as mudanças que a cidade experimentava e que conseguiu mesclar ações que mexiam com os sentimentos da cidade com processos de valorização da gestão na esfera municipal. Mas também uma série de alterações nos padrões de organização das políticas públicas que foram se consolidando na cidade sem sofrerem com as variações na composição política das gestões municipais. Elas assumiam cada vez mais uma feição particular à cidade, resultado da combinação dos processos de descentralização com os de valorização da gestão local, ampliação da participação social e certo grau de inovação no âmbito das políticas municipais. A partir da última década a vida política na cidade se alterou em função da conjuntura nacional. O PT adotou, em função dos processos eleitorais nacionais, particularmente para garantir a eleição e a reeleição de Lula, em 2002 e 2006, respectivamente, uma política de alianças que teve desdobramentos nos estados e nos municípios, muitas vezes conflitivos com as decisões dos diretórios estaduais e municipais. Em Niterói a aliança do PDT com o PT se efetivou para o processo eleitoral de 1999, que teve Jorge Roberto Silveira como candidato a prefeito e Godofredo Pinto como vice. Essa aliança foi possível também em função de que o candidato a viceprefeito assumiria na metade do mandato quando Jorge Roberto concorreria ao governo estadual. Mas não se manteve para os dois pleitos seguintes, o de 2004 e de 2008, quando PT e PDT foram os principais concorrentes. Godofredo Pinto se reelegeu em 2004 e em 2008, o candidato do PT, o deputado estadual e ex-secretario Municipal de Integração e Cidadania de Niterói Rodrigo Neves47 perdeu a eleição para Jorge Roberto Silveira que retorna à prefeitura pela quarta vez. 47 Rodrigo Neves esteve à frente da Secretaria Municipal de Integração e Cidadania durante o governo de Jorge Roberto Silveira (1999-2000). Esta secretaria foi transformada em Secretaria de Assistência Social em 2003, já sob a gestão de Heloísa Mesquita no governo de Godofredo Pinto. Trata-se de um período central para a compreensão do processo de consolidação da assistência social como política pública no município. 221 Nos seis anos de administração petista se mantém algumas das particularidades das gestões anteriores em termos de urbanização e investimento em grandes obras vinculadas ao Caminho Niemeyer48, ainda que sem a centralidade das gestões anteriores. Dadas as mudanças assumidas pelo PT para garantir a chamada “governabilidade” do Governo Lula, e as frustrações causadas pelas expectativas de mudanças mais radicais e de ruptura com o desenho neoliberal do Estado, também no campo municipal se observou um processo de saída de quadros importantes do partido, o ingresso de personagens sem nenhuma vinculação com a história de lutas daquela legenda e a conseqüente dificuldade no relacionamento com alguns dos movimentos sociais, particularmente com o sindicato dos professores da rede pública municipal. O que se observa como elementos diferenciadores da gestão do PT foram: o esforço de estruturação da política de assistência social, a tentativa de instituir o Orçamento Participativo na cidade, uma gestão da política de saúde centrada na saúde pública e com maior amplitude no leque de profissionais de saúde que atuaram na gestão de suas unidades e o direcionamento das ações no campo educacional na perspectiva de construção de uma “escola cidadã” afirmando os princípios das “cidades educadoras”. O que se observou nesse processo é que a administração de Godofredo Pinto expressou uma coalizão de forças políticas que não foi capaz de trazer de modo coeso e extensivo a todas as áreas da gestão municipal as marcas das administrações municipais petistas: a ênfase na área social, a diversidade e inovação em termos de programas sociais e a articulação com os setores mais 48 O Caminho Niemeyer faz parte de um projeto de revitalização do centro da cidade envolvendo a construção de uma série de obras projetadas por Oscar Niemeyer e que se localiza numa longa faixa litorânea, com maior concentração de instalações entre o bairro da Boa Viagem, onde se localiza o MAC, até a Ponta d’Areia. Dentre as obras projetadas que integram o Caminho constam: o Museu de Arte Contemporânea (MAC), a Estação das Barcas de Charitas, o Teatro Popular de Niterói, a Praça Juscelino Kubitschek e o Memorial Roberto Silveira já concluídas, a Fundação Oscar Niemeyer e o Museu do Cinema, ambas em construção, uma capela, a Catedral Batista e a Catedral Católica e a nova Estação das Barcas de Niterói, todas com obras ainda a serem iniciadas. 222 organizados da sociedade civil na proposição de novas modalidades de gestão pública. A gestão municipal petista se deu numa conjuntura de crescimento econômico do país depois de um longo período de crise, como também sob a gestão de um presidente da república do mesmo partido político, o que favoreceu uma série de investimentos na cidade, dentre os quais há de se destacar a revitalização da indústria naval com a contratação de novas plataformas de exploração de petróleo e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Além dos investimentos oriundos do governo federal a arrecadação da cidade aumentou em função do incremento de alguns setores econômicos como o crescimento do setor de serviços que hoje representa o maior volume de recursos na composição do Produto Interno Bruto da cidade com R$ 6.527.941,00, contra R$1.211.871,00 da indústria e R$12.942,00 da agropecuária, sendo o 39º PIB do país e o terceiro do Estado do Rio de Janeiro (IBGE, 2008). Junto com o crescimento da indústria naval a cidade experimentou forte expansão no setor privado de saúde e educação, sobretudo com a criação de novas escolas e universidades, e da construção civil que experimenta uma alta taxa de crescimento nos empreendimentos destinados à população com maior poder de compra, o que por seu turno tem implicado uma profunda e rápida transformação da paisagem de alguns bairros mais atingidos pela especulação imobiliária. O que se observa é um processo de consolidação de importantes frações da burguesia local, vinculadas aos setores de serviços educacionais, de saúde, transportes e às indústrias da construção civil e naval que passam a atuar de forma incisiva na definição dos padrões de desenvolvimento da cidade, como bem observado no documento de sistematização do Plano Diretor de Niterói ao tratar das dificuldades de inclusão territorial na cidade: Embora este trabalho não tenha suporte suficiente para concluir a respeito das razões que levaram a esta conjuntura podemos especular algumas possibilidades que podem ter contribuído. A diferença 223 entre o poder de pressão dos segmentos imobiliários e dos movimentos populares sobre a administração nos parece ser a mais significativa; a organização das áreas afetadas em movimentos organizados e articulados ainda está por ser construída no município; seriam estes os principais interlocutores a pressionar pela efetivação de ações e disputar investimentos. A tradição da relação entre os agentes ligados ao setor imobiliário e a estrutura administrativa é outra barreira de difícil superação. Estes dois pontos reforçam a existência de um terceiro, a dificuldade da administração optar pelo enfrentamento político na aplicação de instrumentos inovadores na política urbana sem o suporte da pressão social para sua aplicação. Vimos que a pressão social, independente dos segmentos que a formulam, obteve êxito tanto para regulamentar o instrumento da OI como para retirá-lo (INSTITUTO PÓLIS, 2005: 48). Se, por um lado, essas alterações aceleradas da paisagem urbana contrastam com os indicadores de crescimento populacional da cidade que, se comparada a outras localidades, como São Gonçalo e Rio de Janeiro, cidades vizinhas, é bem menor49, de outro revelam que a dinâmica da produção modifica também a paisagem política e ideológica, na medida em que o crescimento econômico da cidade foi acompanhado do crescimento da capacidade de atuação daquelas frações da burguesia em diferentes processos de ordenamento da vida social na cidade, contribuindo significativamente para a reprodução da imagem de Niterói em torno dos “altos padrões de qualidade de vida”. O fortalecimento dessa concepção e das próprias condições de atuação política desses grupos econômicos expressam o desafio que é a ampliação das políticas públicas na cidade, seja em termos do aumento da oferta dos serviços sociais, já que parte dos recursos orçamentários vêm sendo sistematicamente destinados para os empreendimentos urbanísticos que reiteram a imagem de uma Niterói “moderna e próspera”, seja no sentido de se pensar as políticas públicas não como políticas para “pobres”, mas como políticas universais, para a cidade. O contraponto a essa tendência tem se dado a partir da maior amplitude dos programas sociais do governo federal na esfera municipal, da 49 Niterói tem uma área geográfica de 129,135 quilômetros quadrados e uma população que sofreu as seguintes variações nas últimas três décadas: 397.123 habitantes em 1980, 436.155 em 1991, 459.461 em 2000 e uma população estimada em 479.384 em 2009 (IBGE, 2008). 224 consolidação dos fundos públicos e dos conselhos de políticas da cidade. O que tem favorecido o desenvolvimento de políticas públicas que, com as inovações introduzidas pela “gestão petista” e a tradição de desenvolvimento de práticas profissionais que conquistaram certo grau de autonomia na esfera local, alcançaram um patamar de institucionalidade mais elevado do que em períodos anteriores. Contudo é visível a falta de homogeneidade nas formas e organização e condução das políticas públicas no município e que se estende também aos processos e às instâncias de controle social, particularmente se compararmos as políticas de saúde, educação e assistência. A organização da rede de saúde do município e sua articulação com as lutas sociais em torno da Reforma Sanitária nos anos 80 criaram as bases para a rápida consolidação na cidade de um padrão de atuação política e profissional bastante avançado em relação aos demais municípios brasileiros. Já a composição profissional e institucional da área de educação em termos mais sólidos começou a se desenhar nos anos 90, com impulsos mais consistentes na primeira década deste século, determinado pela maior proximidade e atuação dos quadros intelectuais da área, oriundos da Universidade Federal Fluminense, nos processos de gestão, assessoria e formação de professores da rede municipal. Enquanto que a área de assistência social só veio a ganhar uma feição de política no início desta década com a criação da Secretaria de Assistência Social, do esforço de implantação da Política Nacional de Assistência Social no município e com a realização de concurso público para suprir com quadros próprios a execução dos programas e projetos sociais. Contudo, essas mudanças, destacadamente importantes, estão longe de fornecer um status de organização institucional a essa área próximo às das outras duas políticas, sobretudo em função de sua dinâmica de funcionamento, envolvendo desde a oferta de serviços até os processos de gestão dos CRAS e contratação de profissionais, ainda estar fortemente vinculada às ONGs. A diversificação da sociedade civil tem expressado na cidade tanto a participação de sujeitos coletivos cujas ações e interesses fortalecem a 225 constituição e consolidação de uma esfera pública quanto àqueles que forjam um neocorporativismo disfarçado de associativismo e que passam a atuar nas esferas de controle social e da gestão municipal a partir de interesses essencialmente privados, ainda que não mercantis. A atuação das ONGs na cidade cresceu vertiginosamente em diferentes setores, mas, sobretudo na área da assistência, conformando um quadro composto tanto por práticas sociais refilantropização da de cunho assistência político 50 social . e democrático quanto Também a atuação de das associações de moradores foi bastante tencionada pelas disputas entre a lógica pública e privada, revelando formas de representação não só dos interesses coletivos dos moradores como dos interesses particulares de seus diretores, dos representantes de instituições religiosas e até do narcotráfico. A sociedade civil comporta hoje diferentes forças sociais cuja diversidade de interesses tem determinado relacionamentos com a sociedade política que tanto contribuem para a ampliação das funções públicas do Estado quanto para o seu progressivo loteamento entre os grupos com maior capacidade de pressão. É nesse contexto político, econômico e cultural que as ações intersetoriais começaram a ganhar espaço, traduzindo na esfera local as tendências nacionais, mas adquirindo feições particulares em virtude da história de organização das políticas públicas na cidade. As particularidades das gestões do PT e do PDT com certeza imprimiram marcas diferentes a esse processo, mas também favoreceram a continuidade de algumas ações. Também é perceptível que na cidade se construiu uma cultura de valorização de determinadas ações profissionais que articuladas aos 50 A trajetória da política de assistência social no Brasil sempre foi marcada pela forte atuação das instituições filantrópicas, contudo, as lutas sociais que possibilitaram seu reconhecimento como política pública, não produziram uma alteração significativa no campo cultural, ideológico e institucional que revertesse o papel, ainda central, da filantropia em algumas instâncias dessa política ou como lógica distinta dela. Nesse sentido, o Estado no Brasil tem se constituído, em seus diferentes desenhos institucionais e políticos, em um importante fator de fortalecimento desse papel o que incide diretamente na maior dificuldade de consolidação da assistência social como política pública (MESTRINER, 2008). 226 processos de luta tanto na dinâmica local quanto nacional se mantêm apesar das alternâncias de poder, ainda que estejam longe de expressar traços que as poderiam caracterizar como políticas de estado e não apenas de governo. A dinâmica das políticas públicas na cidade, determinada pelo relacionamento entre a sociedade política e a sociedade civil, ou seja, pelas ações partidárias, pelas práticas profissionais, pelos movimentos sociais, pelas ONGs, pela intensa participação da UFF em diferentes dimensões da vida na cidade e pelos vários grupos de pressão, evidencia como que diferentes intelectuais coletivos fizeram ressaltar de suas próprias contradições o potencial instituinte da intersetorialidade. Apesar das trajetórias particulares das áreas de saúde, educação e assistência social na cidade e da ausência de deliberações governamentais efetivas que apontem para uma forma de articulação intersetorial, observamos que as práticas de determinados segmentos profissionais vinculados à esfera pública municipal e sujeitos coletivos conseguiram forjar redes sociais e tramas institucionais que, atravessadas pelas contradições e disputas que particularizam as relações entre a sociedade civil e política, favoreceram o desenvolvimento de experiências intersetoriais com características diferentes das que já foram sistematizadas, até o momento, como as de Fortaleza, Belo Horizonte e Porto Alegre, visto que não se constituíram como políticas de governo, mas como um movimento instituinte. 3.2- A construção da intersetorialidade em Niterói: diferentes pontas de uma trama. Recorrentemente utilizamos os indicadores educacionais com referência ao modo como a política de educação se materializa em um determinado território. Trata-se, obviamente, de um esforço explicativo que emoldura com as fronteiras geopolíticas da cidade os índices relativos à rede física e número de matrículas entre outros. Como a cidade vem sendo tomada aqui como um território vivo e plural, em construção permanente pela 227 ação dos sujeitos sociais que nele vivem e nele imprimem as marcas de um modo de vida, ao mesmo tempo em que os modos de vida da cidade também são decisivos para a constituição desses sujeitos, entendemos que a educação, tomada como dimensão da vida social e como política pública, também é resultado desse rico e contraditório processo de produção da cidade como síntese de modos de vida, como articulação de territorialidades diversas. Destarte, reconhecemos que a política de educação enquanto campo de tensão se revela tanto pelos indicadores, legislações, estruturas e programas quanto pelas práticas profissionais e sociais, contribuindo com diferentes possibilidades de organização territorial da cidade. Verificamos que a área de educação em Niterói possui características bem peculiares em função do modo como foi se estruturando as relações entre as classes sociais na cidade a partir da consolidação de seu perfil econômico na esfera dos serviços. Ainda que a indústria naval tenha sempre tido um peso importante no cenário econômico e político da cidade, a constituição desse segmento operário da classe trabalhadora, por conta de sua posição estratégica na produção e na organização sindical, se tornou em mais um dos elementos a reforçar a organização de um sistema escolar com certo grau de homogeneidade, sem distinções gritantes em relação às diferentes frações da classe trabalhadora. A afirmação da escola pública como uma escola voltada para os segmentos mais empobrecidos da classe trabalhadora foi se desenhando na passagem dos anos 70 para os anos 80, quando em todo país afloraram as demandas pela ampliação do acesso à educação por parte dos movimentos populares em função da incapacidade do modelo tecnicista de educação da ditadura militar em assegurar a universalização da educação escolarizada em seus diferentes níveis. Ao longo da segunda metade do século XX o processo de consolidação e expansão do ensino privado na cidade acabou se configurando como uma opção viável de educação escolarizada para os segmentos assalariados do setor de serviços - públicos e privados - que dispunham de melhores oportunidades de mobilidade social, ao passo em 228 que a rede pública consolidada foi se dirigindo progressivamente para determinados segmentos da classe trabalhadora. Já os extratos da classe trabalhadora com pouca ou sem nenhuma qualificação e residentes nas comunidades que apresentavam condições precárias de vida começavam a demandar a ampliação do acesso à educação, dentre outras requisições, instituindo um tipo de pressão nova na cidade pela ampliação da rede pública, particularmente no âmbito da educação infantil. Tomando como base os dados constantes do Quadro II observamos que em 2008, já com o processo de descentralização em curso, a rede de ensino fundamental municipal representa cerca de 25% do total de matrículas e 14% do total de estabelecimentos, enquanto que a rede estadual detém 38% do total de matrículas e 20% do total de estabelecimentos e a rede privada 37% do total de matrículas e 49% do total de estabelecimentos da cidade. Evidentemente, a educação pública no município ainda conta com forte aporte da rede estadual, haja vista que até os anos 60 a cidade não dispunha de estabelecimentos de ensino municipal, sendo todos os existentes de responsabilidade do governo estadual, cabendo como principal atribuição da prefeitura o oferecimento de “bolsas de estudos” para os alunos estudarem nas escolas particulares (TRINDADE, 2004). A rede municipal de educação pública de Niterói tem, portanto, uma história recente e que se, por um lado, isso representa um grande desafio para os gestores municipais, de outro, expressa um traço da educação na cidade que é o da convivência e o da diferenciação com relação à rede estadual. As marcas dessa convivência e referência acabam por interferir em vários processos no cotidiano educacional da cidade sejam pelos encontros, diálogos e aproximações, como pelas comparações, disputas e distanciamentos. Contudo, mesmo recente, a rede municipal se constituiu mantendo um diferencial em relação aos demais municípios, como pode ser observado através de alguns indicadores que tem servido de parâmetro para 229 a avaliação da educação pública, como, por exemplo, o IDEB51, o que de certa forma favoreceu a migração de estudantes dos municípios vizinhos para a rede local. Também é perceptível que a elevação do IDH da cidade decorre de indicadores assentados no setor privado na cidade, cuja expansão esteve alicerçada em grandes colégios vinculados a tradicionais ordens religiosas, escolas vinculadas a grupos familiares com tradição de atuação na área de educação, em unidades novas que surgiram a partir dos anos 90 como consequência da ampliação dos cursos pré-vestibulares e, sobretudo, na emergência de centenas de estabelecimentos de educação infantil. A educação no município, portanto, não pode ser compreendida sem considerarmos tanto o peso de uma herança histórica dos anos em que a cidade foi sede do governo estadual quanto do processo de expansão do setor privado que, mesmo seguindo tendências nacionais, adquiriu um significado bastante estratégico para a potencialização e diversificação do setor de serviços como pólo dinamizador da economia na cidade, tanto na esfera da formação dessa parcela de trabalhadores qualificados quanto como ramo econômico que compõe aquele setor. Cabe ainda destacar a presença das unidades educacionais federais, relativamente pequena em termos de unidades (uma em cada nível de ensino), mas que contribui para os índices de qualidade de vida alcançados pela cidade, em particular se considerarmos que no âmbito da educação superior a cidade conta coma presença da Universidade Federal Fluminense e no ensino médio com o recém inaugurado (2006) Colégio Pedro II. 51 O IDEB de Niterói foi de 3,9 (2005) e 4,4 (2007) para os anos iniciais e de 3,8 (2005 e 2007) para os anos finais, acima do IDEB do Estado do Rio de Janeiro de 3,7 (2005) e 3,8 (2007) para os anos iniciais e de 2,9 (2005 e 2007) para os anos finais e da média do IDEB municipal no Brasil de 3,4 (2005) e 4,0 (2007) para os anos iniciais e de 3,1% (2005) e 3,4 (2007) para os anos finais do ensino fundamental. 230 QUADRO II Número de matrículas e de escolas por nível de ensino e por tipo de dependência no Município de Niterói. Depend ência Nível de ensino Ensino Préescolar Ensino Funda mental Ensino Médio Ensino Superi or Federal Estadual Municipal Privada Total Matrícul as Escol as Matrícul as Escol as Matrícul as Esco las Matríc ulas Escol as Matríc ulas Escola s 12 1 649 8 3.514 33 7.141 144 11.316 186 239 1 24.959 54 16.447 37 24.543 127 66.188 259 540 1 12.794 29 0 0 8.435 52 21.769 82 17.734 1 0 0 0 0 31.734 6 49.468 7 Fonte: Quadro elaborado a partir de dados do IBGE – Cidades (2008). Observação: os dados constantes do IBGE-Cidades não indicam valores para o total de matrículas e número de creches, apenas para a pré-escola. A área de educação nos anos 80 começou a experimentar uma das grandes contradições da cidade: a elevação dos níveis de escolaridade da população e a indisfarçável insuficiência do atendimento das demandas por educação pública, sobretudo no campo da educação infantil, por parte do poder público municipal52. Foi nesse contexto que se deu a mobilização e a atuação dos movimentos sociais, particularmente vinculados às associações de moradores. A pressão pela ampliação do acesso à educação, em especial pela criação de creches, acabou encontrando eco nas gestões municipais dos anos 90, período em que o município experimentou a maior taxa de crescimento de sua rede física. Observando os dados do Quadro III verificamos que o número de estabelecimentos de educação pública em Niterói triplicou entre 1992 e 2007, concorrendo significativamente para este aumento a criação da maior parte das 36 creches comunitárias do município que integram o Programa Criança na Creche (PCC), criado através do Decreto Legislativo nº 287 da Câmara Municipal de Niterói em 03 de dezembro de 1994. 52 Mais adiante quando apresentarmos as narrativas dos conselheiros, psicólogos e assistentes sociais que atuam nos Conselhos Tutelares da cidade poderá ser observado como que essa insuficiência se transformará em uma demanda recorrente para essa instância. 231 Este programa desde a sua criação até o ano de 2006 esteve diretamente vinculado ao gabinete do prefeito, não integrando a estrutura da Secretaria Municipal de Educação e nem da Fundação Municipal de Educação (FME)53. Ao mesmo tempo em que representou uma resposta governamental às reivindicações das comunidades e suas associações de moradores, atendendo à crescente demanda por creches, gerou grandes polêmicas e tensões por não ter sido de imediato incorporado à estrutura de educação infantil do município, constituindo, assim, para muitos, uma rede paralela dentro da própria prefeitura. A alternativa encontrada para promover a aproximação do programa à FME foi a aprovação do Decreto 9.748/2006 que fixou as normas e diretrizes para o seu funcionamento, vinculando sua gestão à Fundação. Nele são estabelecidos os critérios e termos a serem adotados no estabelecimento dos convênios entre a prefeitura e as entidades da sociedade civil mantenedoras das creches comunitárias. A partir deles foram estabelecidos os termos desta cooperação: as creches são gerenciadas pelas suas entidades mantenedoras (associações de moradores, instituições filantrópicas e religiosas) que contratam o pessoal que irá trabalhar nelas, gerenciam os recursos repassados pela prefeitura e se responsabilizam pelo funcionamento das mesmas, enquanto cabe à FME fiscalizar, assessorar e apoiar as ações de treinamento e qualificação das creches. A partir dessas diretrizes as creches que passam obrigatoriamente a contratar um coordenador pedagógico para cada unidade e a contar com o apoio de uma equipe técnica contratada pela Fundação para o programa. 53 A Fundação Municipal de Educação foi criada a partir do Decreto 6.172/91 com o objetivo de “garantir o aperfeiçoamento da gestão educacional e a autonomia necessária para a efetivação de atos administrativos ágeis, especialmente no tocante aos processos relativos às unidades municipais de educação” (FME, 2007). Tal como em tantas outras áreas das políticas públicas (saúde, assistência, cultura entre outras) a criação das fundações se deu sob a justificativa de dar “maior agilidade” à gestão pública, muito embora, no contexto de expansão do ideário neoliberal e de contra-reforma do Estado em que ela foi amplamente utilizada acabou por representar também a porta de entrada dos processos de privatização na esfera pública, seja em termos de contratação de pessoal sem a necessidade de realização de concursos públicos, seja pela via da captação de recursos. 232 QUADRO II Crescimento da Rede Física Escolar Pública de Niterói. Período Número de Unidades Escolares Municipais 1959/1971 13 Percentual de Crescimento em relação ao período anterior _____ 1972/1975 18 38% 1975/1977 18 0% 1977/1982 21 17% 1983/1988 26 24% 1989/1992 29 19% 1993/1996 49 69% 1997/2002 63 28% 2002/2004 74 17% 2005/2007 90 22% Fonte: Quadro elaborado a partir de dados da Fundação Municipal de Educação, Superintendência de Desenvolvimento do Ensino – Assessoria de Estudos e Pesquisas Educacionais – 2007 (www.educacaoniteroi.com.br) Observação: os períodos correspondem ao mandato de cada prefeito com exceção do período compreendido entre 1959 e 1971 que abrange mandatos de cinco prefeitos. O crescimento da rede física escolar pública de Niterói deve ser compreendido a partir de alguns elementos que o singulariza e que acabaram por acentuar muitos dos desafios que a área encerra. Em primeiro lugar destacamos que a rede municipal se institucionalizou no mesmo período histórico em que a rede privada se consolidou como uma alternativa viável de acesso à educação escolarizada para diferentes segmentos da classe trabalhadora e que, em alguma medida, contou com o apoio da própria esfera governamental. Em segundo lugar, a rede de ensino fundamental municipal se expandiu em um cenário com profundas marcas deixadas por uma extensa rede estadual, até então soberana, e pela iniciativa privada que ao longo dos anos incorporou parte do público que poderia ser atendido pela rede pública. E, em terceiro lugar, a forte pressão pela expansão da rede física municipal por parte dos movimentos populares onde ela se mostrou com maior vigor: no campo da educação infantil -, acabou sendo atendida por três canais diferenciados: pela política de 233 assistência social, de onde se originam parte das creches apoiadas com recursos públicos, sobretudo a partir dos convênios feitos com a extinta LBA, pelo Programa Criança na Creche e através das Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI) vinculadas à Secretaria Municipal de Educação. Em função deste quadro a rede municipal de educação cresceu associada à educação dos segmentos mais pobres da população, principalmente levando-se em consideração o padrão de crescimento da educação infantil. A educação na cidade a partir dos anos 90 experimentou tanto o crescimento do ensino privado quanto a expansão da recente rede pública municipal, ainda que não homogeneamente em seus níveis de ensino. Essa dupla expansão também se expressou, no mesmo período, na composição dos quadros dirigentes da Fundação Municipal de Educação, ora vinculados ao setor de educação privado ora ao setor público. Considerando a dinâmica político-partidária que particularizou a gestão municipal ao longo das últimas duas décadas e os traços culturais e políticos que aproximam a dinâmica da Universidade Federal Fluminense à vida da cidade, não podemos deixar de ressaltar o fato de que entre 2003 e 200854 a presidência da FME e a Secretaria Municipal de Educação foram ocupadas por dois professores da Faculdade de Educação da UFF: a Professora Maria Felisberta Baptista da Trindade (2003-2005) e o Professor Waldeck Carneiro da Silva (2005-2008). A presença desses professores na administração municipal pode ser compreendida a partir de alguns condicionantes importantes: eram quadros políticos do PT, vinham de uma trajetória de militância e atuação acadêmica no âmbito da educação pública e da universidade, assim como pela proximidade da UFF, enquanto instituição formadora e produtora de conhecimentos, das questões que marcam o cotidiano da cidade. 54 Este período corresponde aos mandatos do prefeito Godofredo Pinto filiado ao Partido dos Trabalhadores. 234 Além de produzirem uma referência simbólica diferenciada em razão da própria força do ensino privado na cidade55 essas duas gestões mantiveram uma linha de atuação comum, sem soluções de continuidade, embora com diferenças, em torno da incorporação de alguns princípios que orientam as gestões petistas no campo educacional56 e da consolidação de uma proposta de política educacional que afirmasse Niterói como Cidade Educadora. As principais ações empreendidas nesse período e que apontam nessa direção foram: a instituição em 2003 dos Fóruns Municipais de Educação (Decreto 9.038/03) como modalidade de condução do processo de participação para a elaboração do Plano Municipal de Educação, a realização do I Encontro Municipal de Educação de Jovens e Adultos (2003), a realização de Concurso Público para Professores em 2003 e 2008, o I Encontro de Municipal de Educação Infantil – Niterói pensando a educação dos pequenos (2003), o I Encontro do Ensino Fundamental (2004), a publicação do caderno contendo o Registro das Conferências do Plano Municipal de Educação: rumo à cidade educadora57 (2004), a 55 Durante duas gestões do Prefeito Jorge Roberto Silveira, entre 1998 e 2002, a presidência da FME foi ocupada pelo Professor Plínio Leite Comte Bittencourt - filiado ao Partido Popular Socialista (PPS), vice-prefeito no período de 1997-2001 e ligado ao setor privado de Educação (Centro Universitário Plínio Leite e Colégio Plínio Leite) - e sua equipe. Esse mesmo grupo, vinculado ao setor privado educacional, retorna em 2009 com a eleição de Jorge Roberto Silveira à prefeitura para o período 2009-2012. 56 As administrações municipais vinculadas ao Partido dos Trabalhadores ao longo dos anos 80 e 90, sobretudo, a partir de experiências singulares como as desenvolvidas nas cidades de São Paulo, Santos, Ribeirão Preto, Campinas, Fortaleza, Porto Alegre e Belo Horizonte, as mais emblemáticas, conseguiram produzir um parâmetro de gestão local com todas as suas diversidades, disputas internas e dificuldades que foi moldando um padrão assentado em algumas particularidades: o esforço de democratização e ampliação das instâncias de controle social, a inversão de prioridades no investimento público, a centralidade na articulação de desenvolvimento econômico e enfrentamento dos problemas sociais, a democratização do processo de elaboração do orçamento público e a inovação no campo dos programas sociais. Em relação ao campo educacional essas marcas, expressas particularmente nas experiências da Escola Cidadã de Porto alegre e da Escola Plural de Belo Horizonte, se caracterizam pelo compromisso com uma educação voltada para o fortalecimento da cidadania e com as classes populares, pela valorização da participação dos professores nas decisões políticas e pedagógicas, pela democratização e ampliação à escola pública com qualidade e pela interface com as demais políticas públicas e com a dinâmica social da cidade. 57 Embora os documentos façam referência às conferências preparatórias para a elaboração do Plano Municipal e em alguns espaços institucionais se faça menção à realização de pré-conferências, o fato é que Niterói só foi realizara sua primeira Conferência Municipal de Educação em 2007. Na verdade foram encontros importantes e com produtos que apontaram para a orientação das discussões e deliberações que ocorreram anos mais tarde. 235 realização do Seminário Ciclos em Debate (2005), a realização da I Conferência Municipal de Educação de Niterói (2007), o I Fórum da Família da Rede Municipal de Educação de Niterói (2007) e a aprovação do Plano Municipal de Educação de Niterói (Lei nº 2.610/08). Cabe destacar que embora a filiação político-partidária e a vinculação à universidade tenham se constituído em pontos bastante diferenciadores dessas duas gestões em relação às anteriores, em vários textos e falas institucionais produzidos nesse período, dentre os quais destacamos os documentos elaborados pela Secretaria Municipal de Educação/Fundação Municipal de Educação de Niterói (2003, 2004a, 2004b e 2008), há uma clara referência a um movimento já em curso na rede municipal, do qual, em certa medida, as ações acima elencadas mantêm vínculos importantes. Neste sentido, são destacados: a criação da Fundação Municipal de Educação (1991), a criação do Núcleo Integrado de Alfabetização (1991), do Programa Criança na Creche (1994), a implantação do Sistema de Ciclos (Portaria FME 003/98) como componente de uma nova proposta políticopedagógica em 1999, a aprovação do Plano unificado de cargos, carreiras e vencimentos dos servidores da Fundação Municipal de Educação de Niterói (Lei nº 1.831 de 2001). Durante o processo de realização das entrevistas com os profissionais da FME essas duas gestões foram sempre referidas como marcantes na trajetória recente da política de educação do município. Considerando que parte significativa dos professores entrevistados ocupava funções de coordenação no interior da FME e, que por essa razão, poderiam ter algum grau de afinidade ideológica ou política com as práticas e concepções dos referidos gestores, as menções à importância deles na condução da política não perdem seu peso, mas devem ser balizadas a partir desta condição. Contudo, antes mesmo de iniciarmos as entrevistas esse elemento fora observado nos contatos institucionais preliminares travados com a Fundação e nas aproximações realizadas junto a alguns professores da rede municipal, além de, evidentemente, ficarem bastante claros na documentação e na 236 natureza das ações produzidas no período. Contudo, as diversas narrativas revelam um elemento que no presente estudo afirmou uma de nossas linhas de investigação, a de que a particularidade dessas gestões no trato com os professores e na valorização de sua participação nos processos de deliberação sobre os rumos da política municipal, guarda relação direta com a trajetória e a vinculação dos secretários à universidade. Este fator foi positivamente destacado e, retomando a necessidade de sua relativização em virtude do perfil dos entrevistados, de fato concorreu para que política de educação no município adquirisse feições particulares, especialmente no que se refere à política de capacitação dos profissionais58, ao esforço de sistematização das experiências que envolveram a participação coletiva dos professores, à organização dos ciclos de debate e seminários, e à instalação de um debate mais consistente do ponto de vista teórico em relação às diretrizes e às questões gerenciais da rede. Torna-se ilustrativo dos diferentes impactos dessas inovações no cotidiano da Fundação a seguinte narrativa: Com a entrada dele, como é que eu vou dizer..., houve um grande choque também, porque ele formou a equipe dele e ele é um professor da UFF. E aí eu de cara senti. Até as minhas colegas falaram assim: “agora é a ditadura da academia.” Porque todos os coordenadores passaram a ter mestrado, qualquer coordenador que fosse escolhido teria que ter uma formação acadêmica e isso aí foi a primeira coisa que eu senti. E eu comecei a acordar! Uma coisa que eu nunca imaginei na minha vida, fazer um mestrado, um doutorado, em continuar minha vida acadêmica, naquele momento eu senti vontade. E não somente isso, as reuniões, os encontros, as discussões eram realmente bem diferentes. O nível de reflexão, o nível de aprofundamento das questões, o posicionamento frente a essas questões era diferente, era um posicionamento acadêmico, que eu nunca tinha tido, até então, acesso, nunca tinha tido essa experiência. E a partir da entrada dele, isso foi em 2004, não, foi em 2005 que ele entrou, tanto é que eu prestei concurso para o mestrado em 2006... Foi impressionante. Eu e todas as minhas colegas, a gente sempre quis aquilo ali muito forte pra gente (Professora da Coordenação de Estudo e Supervisão Escolar). 58 A esse respeito cabe destacar a pesquisa realizada por Vania Laneuville Teixeira (2009) que resgata as propostas de formação continuada realizadas por diferentes gestões desde a criação da FME em 1991 até o ano de 2008, revelando além de uma descontinuidade nas ações a prevalência de cursos de formação e eventos que não chegaram a constituir de fato uma política de formação. 237 A vinculação da trajetória dos secretários à universidade, portanto, implicava em mudanças na forma de gestão, sobretudo, no trato das questões educacionais em um nível de elaboração e reflexão diferente. Não que isso tivesse significado a transposição das práticas acadêmicas para a esfera da gestão, mas representou uma mudança de cultura que foi percebida de distintas formas, como possibilidade e como ameaça. Mas a proximidade da UFF à dinâmica da cidade também se revela em outros aspectos, como nos aponta uma das professoras entrevistadas e ao qual já nos referimos anteriormente, ou seja, o fato de que a universidade tem sistematicamente contribuído com a formação dos quadros profissionais das políticas públicas em diferentes níveis, não só dos que estão na gestão, mas também dos concursados que trabalham na própria rede. Eu acho assim essa aproximação com a UFF, tanto na questão das ações da Secretaria hoje, de estrutura... já que teve a Felisberta que também foi Diretora da Faculdade... Eu acho que na própria mentalidade..., meio que as escolas estão impregnadas com a formação da UFF. Eu acho que se você for fazer uma pesquisa dentro das escolas, os pedagogos que a gente tem hoje nas escolas, na própria secretaria, são pessoas que são formadas pela UFF. Não vou falar que são pessoas que pensam iguais. Não é isso, mas que a gente tem proximidade na nossa visão teórica da formação. (Professora do Núcleo de Educação e Saúde – Regional Fonseca - Norte). As duas gestões sedimentaram algumas condições importantes para que o processo de diálogo da educação com as demais políticas públicas da cidade pudesse caminhar na direção de uma ação intersetorial afirmando, para tanto, traços da própria trajetória de discussão e acúmulo da rede, independentemente de terem sido produzidas no âmbito dessas gestões, elegendo formas de participação e discussão coletivas e sintonizadas aos princípios de uma gestão democrática, articulando com os demais setores da administração pública e da sociedade civil e, com maior destaque, imprimindo ao percurso uma dimensão institucional com a realização dos Fóruns, da Conferência Municipal e com a aprovação do Plano Municipal. O 238 fio condutor deste processo, e aqui voltamos a afirmar que não se tratam de gestões homogêneas, se tornou o esforço de reconhecimento de Niterói como uma Cidade Educadora. Quando estabelecemos a relação intersetorial com as demais áreas de vida e de gestão pública, ou seja, com a cultura, a assistência social, a saúde, o meio ambiente, a ciência, a tecnologia e o urbanismo, numa abrangência de objetivos e práticas, com a preocupação da garantia de vivências saudáveis para os niteroienses, estamos numa visão concreta da Cidade Educadora (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI, 2004b: 24). Esta concepção norteou todo o pronunciamento da Professora Felisberta, então Secretária Municipal de Educação e Presidente da FME, na apresentação das diretrizes que iriam nortear a construção do plano nos encontros denominados como Conferências do Plano Municipal de Educação, realizados nos meses de agosto e setembro59 de 2004. Em toda a sua intervenção são elencadas as demais secretarias da administração e como a educação se articulava ou deveria se articular com as mesmas visando a construção de uma Cidade Educadora. A participação e as apresentações dos demais representantes do governo60 são indicativas de que o desenho intersetorial não se configurava até aquele momento como uma política de governo, mas como um desejo que começava a ser alinhavado entre algumas secretarias. Do ponto de vista da gestão da área de educação daquele período a ação intersetorial foi compreendida, 59 Foram realizados 09 encontros, além de uma palestra de abertura, versando sobre os seguintes temas: “As Diretrizes da Política Educacional e a Cidade Educadora”; “Niterói uma Cidade Educadora para uma Cultura Democrática”; Educação para o Desenvolvimento, Trabalho e Justiça Social”; “Educação para uma Cidade Saudável”; “Democratização do Acesso à Educação”; “Democratização da Gestão”; “Qualidade Social e Valorização Profissional dos Trabalhadores da Educação”; “Financiamento da Educação” e “As diretrizes da Política Educacional e a Cidade”. As palestras foram proferidas por secretários de governo, intelectuais da área de educação, representantes da FME, do MEC, do CME e dos Conselhos Tutelares, representantes de entidades da sociedade civil e membros da equipe técnica do Plano Municipal de Educação. 60 Há de se destacar dentre os representantes de governo que estiveram presentes a Secretária Municipal de Assistência Social Heloísa Helena Mesquita Maciel e a Vice-Presidente de Atenção Coletiva, Ambulatorial e de Família da Fundação Municipal de Saúde Maria Célia Vasconcellos que desempenharam funções decisivas na construção da proposta de intersetorialidade envolvendo a educação, a assistência social e a saúde em Niterói. 239 conceitual e politicamente, como um princípio básico para a afirmação da proposta de uma Cidade Educadora. A explicitação e reiteração dessa compreensão no documento que veio a registrar as propostas e reflexões que orientariam a elaboração do plano é um dado relevante de como que toda a equipe envolvida com o aquele processo procurava construir não só as bases teóricas e políticas para a construção da condição de Cidade Educadora como as suas condições institucionais ao articular com gestores estratégicos no âmbito da administração municipal. Em 2005 tem início o segundo mandato do Prefeito Godofredo Pinto lembrando que o primeiro durou dois anos em virtude da saída do então Prefeito Jorge Roberto Silveira para concorrer ao governo estadual – o que gerou uma alteração na gestão da Secretaria Municipal de Educação e da FME, saindo a Professora Maria Felisberta da Trindade e assumindo o Professor Waldeck Carneiro da Silva. Este processo envolveu a composição de uma nova equipe de gestão o que de certa forma impactou no andamento das ações iniciadas na gestão anterior e que desembocariam na aprovação do Plano Municipal de Educação. Os interlocutores nas demais secretarias permaneceram apesar da mudança de gestão, com destaque para a Secretária Municipal de Assistência Social Heloísa Helena Mesquita Maciel, a Vice-Presidente de Atenção Coletiva, Ambulatorial e de Família da Fundação Municipal de Saúde Maria Célia Vasconcellos e a Coordenadora do Programa Médico de Família, também da Fundação Municipal de Saúde, Maria Angélica Duarte Silva, o que favoreceu o avanço da proposta de intersetorialidade. Contudo, observamos que a preocupação com a intersetorialidade que se desenhava a partir dos esforços de construção de uma Cidade Educadora e que tinha no Plano Municipal de Educação um de seus pilares de sustentação acabou não se constituindo no elemento provocador dessa iniciativa. Os investimentos na direção de uma proposta intersetorial viriam a ser justificados com uma acentuação mais forte nas práticas cotidianas das próprias secretarias, ou seja, das demandas 240 concretas advindas das experiências em cada campo da gestão e da execução das políticas públicas. E nesse processo uma das características foi a necessidade absoluta de intercambiar com outras áreas, de compartilhar a política com outras áreas, por várias razões. Primeiro porque a gente tem uma visão moderna de gestão. Segundo, porque o fenômeno da exclusão social ele é multifacético, então é muito difícil, em grande parte dos casos, a gente abordar com uma política pública a exclusão sobre um único prisma porque é difícil entender a inclusão sobre o ponto de vista da educação, da saúde, do lazer, da assistência, enfim, do desporto e essas coisas se entrecruzam com muita facilidade. Fora o fato de que tem de ter intencionalidade política de trabalhar assim. Uma das coisas que dificultaram a intersetorialidade em Niterói foi que não havia, partindo do chefe do executivo, uma iniciativa de articular o governo. Então ocorreram muitas ações articuladas, mas por iniciativa dos órgãos, enfim. Mas a gente não tinha reunião de secretariado. Eu fiquei três anos e dois meses como secretário e fui a duas ou três reuniões de secretariado em 36 meses, compreendeu?! Sequer com o secretariado da área social pelo menos. Então houve um esforço em fazer uma agenda que nunca dava. Mudava, mudava, mudava... Sempre agenda política. Sempre agenda política. Sempre agenda política! Então a agenda da gestão ficou prejudicada e consequentemente a gente não aprofundou uma concepção de política intersetorial, mas fomos assim, ensaiando e errando. E nesses ensaios e erros nós fizemos coisas muito relevantes no campo da saúde: todo trabalho de saúde e assistência, todo trabalho ligado à prevenção da dependência química foi muito importante. Aliais não só intersetorialmente do ponto de vista governamental, mas do dialogo com a sociedade civil, com muitas entidades da cidade que já vinham se debruçando antes de nós sobre a questão (Ex-Secretário de Educação). Essa compreensão situa bem o alcance da perspectiva de intersetorialidade que se queria forjar a partir da nova gestão da Secretaria e da FME, ou seja, como uma via de articulação não apenas interna à esfera governamental, mas que se voltava também para a sociedade civil. Uma concepção que, no entanto, não se constituiu em nenhum momento como uma política articulada pelo governo municipal, mas pelos secretários e, em especial, pelos profissionais da rede. O reconhecimento de que em vários campos a sociedade civil já experimentava movimentos e articulações antes que se desse a presença da esfera governamental reflete, de fato, como que a dinâmica de relacionamento da sociedade civil com a sociedade política não é homogênea e varia também de acordo com as próprias áreas das 241 políticas públicas. Já a narrativa referente à experiência na área de assistência social acaba enfatizando como a intersetorialidade, do ponto de vista de ação vinculada ao campo governamental, teve um forte substrato na própria realidade de execução das políticas municipais. De alguma forma a gente já vinha trabalhando com bastante sintonia... e que depois ganhou o desenho do SUAS, porque o Estado do Rio de Janeiro já trabalhava na base de NAF (Núcleo de Atendimento à Família), que era uma experiência muito peculiar e nós já vínhamos trabalhando a família. É claro que a política veio a ajudar a dar forma, dar o sentido e um padrão nacional, a lógica. Nós já trabalhamos com as unidades descentralizadas e buscando a interface com parceiros do município, que era a melhor referência no município naquela área, onde a gente levava o serviço. Então, por exemplo, o Morro do Céu que é uma área de aterro sanitário controlado da cidade, nós queríamos fazer o trabalho naquela área e nos deparávamos com uma dificuldade física: não tínhamos espaço. Então procuramos a saúde, que tinha o médico de família e tinha um centro de zoonose, explicando a importância do trabalho para eles. Eles desocuparam uma parte do centro de zoonose e cederam para nós. Daí, começamos a fazer o trabalho junto com o Médico de Família com as famílias do Morro do Céu e em cada lugar nós íamos buscando um parceiro. Em outros lugares a educação tinha mais chance de ser o parceiro, mas na maior parte essa experiência era mesmo com a saúde. Depois que nós ganhamos a estrutura e visibilidade eu acho que foi mais fácil trazer a educação. Aí o trabalho melhorou. Um exemplo foi o trabalho de trazer os TELECENTROS para onde agente tinha espaço e a possibilidade de fazer um trabalho integrado. Esses parceiros, saúde e educação, são os grandes parceiros (Ex-Secretária de Assistência Social). Para podermos compreender melhor o processo de construção da experiência de intersetorialidade na cidade, tendo por base alguns dos elementos que a narrativa acima destaca, é preciso situar algumas particularidades das três políticas setoriais que a compõe: educação, saúde e assistência social. Conforme já vínhamos abordando a área de educação no município apesar de ter se estruturado a partir de condições que apontam para uma rede recente e profundamente marcada pela forte presença das redes estadual e privada, ao longo dos anos 90 cresceu significativamente, construindo um lastro de mobilização e discussões que serviram de base para a construção de uma identidade nova, potencializada por duas gestões que procuraram articular as preocupações com a gestão democrática com 242 compromissos intelectuais e políticos em torno da Cidade Educadora. Deste modo, a estruturação da rede municipal, tomando como parâmetro a história da educação na cidade, representa um esforço de democratização do acesso à educação, o que pode ser verificado pelo perfil de sua cobertura e composição, conforme apresentado na tabela que se segue. QUADRO IV Atendimento na Rede Física Escolar. 90 Unidades Escolares da Rede Municipal de Educação (25.900 alunos) 36 Creches Comunitárias (3.577 alunos) 18 Unidades de Educação Infantil UMEIS (4.001 alunos, incluídos os alunos da Educação Infantil, matriculados nas Unidades de Ensino Fundamental) 36 Unidades com Ensino Fundamental (16.225 alunos) Educação de Jovens e Adultos (EJA), atendida em 15 Unidades de Ensino Fundamental (2.097 alunos) Programa de Educação, Leitura e Escrita – PELE, em 50 Instituições e/ou escolas (875 alunos) 100% das Unidades Escolares possuem alunos com necessidades especiais (cerca de 700 alunos) Fonte: Fundação Municipal de Educação, Superintendência de Desenvolvimento do Ensino – Assessoria de Estudos e Pesquisas Educacionais – 2007 (www.educacaoniteroi.com.br) Compõem ainda a rede 05 Bibliotecas Públicas Municipais, 01 Centro de Formação Profissional e Cidadania,vinculado ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM), e 19 Telecentros de Inclusão Digital. Para além da rede física a Secretaria de Educação tem em sua estrutura duas superintendências, a de Planejamento, Orçamento e Gestão e a de Desenvolvimento de Ensino. Estão vinculadas a esta última a Assessoria de Estudos e Pesquisa, a Assessoria de Formação Continuada, o Departamento de Gestão Escolar, o Departamento de Programas e Projetos Especiais, o Núcleo de Estágio (NEST), o Programa Criança na Creche e a Diretoria de Políticas Pedagógicas, dentro da qual se encontram 10 coordenações: a Geral de Educação Infantil, de 1º e 2º Ciclos, de 3º e 4º Ciclos, de Educação e Saúde, de Informática Educativa, de Educação Especial, de Articulação Pedagógica, de Educação de Jovens e Adultos, de Promoção de Leitura (PELE), de Educação e Prevenção; além do Núcleo de Educação e Saúde, do Núcleo de Educação Ambiental e da Formação pela Escola. A 243 coordenação de Educação e Saúde61 foi a instância dentro desta estrutura que integrou de forma mais orgânica a experiência de ação intersetorial. Portanto, a educação pública municipal, em suas diferentes dimensões: rede física, programas, perfil da população atendida, diretrizes e proposta pedagógica foi se particularizando a partir da tendência de ampliação das formas de acesso à educação escolarizada daquelas parcelas da classe trabalhadora com dificuldades ou sem condições de acessar as redes estadual e privada. E, nas duas últimas gestões, essa tendência foi claramente assumida, conforme vinha sendo destacado nos documentos elaborados ao longo do processo de construção do Plano Municipal de Educação, e reafirmada na Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação de Niterói. Essa Proposta Pedagógica afinada com uma concepção progressista de educação propõe uma organização curricular que considere as vozes ausentes na seleção da cultura escolar, potencializando-os como sujeitos falantes, criativos e protagonistas de suas próprias vidas, uma vez que reconhece a diversidade humana e sociocultural. Não só as diferentes fases da vida, ou aquelas que dizem respeito às necessidades educacionais especiais e/ou deficiências, mas também as relacionadas às diferentes etnias, gênero, grupos humanos que vivem abaixo da linha da pobreza, classes populares e classes médias empobrecidas, compõem o conjunto de sujeitos atendidos pela Rede Municipal de Educação de Niterói (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI, 2008: 29). Esta opção política e pedagógica se expressou na organização da rede física através de uma lógica territorial que aproximou a educação às demais políticas setoriais, ou seja, particularmente a expansão da rede de 61 Na estrutura da Secretaria existe uma Coordenação de Educação e Saúde e um Núcleo de Educação e Saúde. Por ocasião do processo de entrevista consideramos que se tratava não de uma repetição na estrutura, mas de uma diferença importante no entendimento e condução das ações dessas duas instâncias: a primeira mais voltada para o trabalho de cunho intersetorial e a segunda numa ação mais focada nas práticas de educação em saúde. Imaginávamos que com a alternância do poder municipal, com a eleição de um novo prefeito e a possível descontinuidade das ações intersetoriais, as duas instâncias convergissem para a existência de uma só. Passados quase dois anos a estrutura com a coordenação e o núcleo permanece inalterada, apesar do fim da ação intersetorial e da migração para outros setores da quase totalidade da equipe que compunha a coordenação, que hoje atua com as atividades de atenção educacional às crianças hospitalizadas. 244 educação infantil, quer a partir das UMEIS ou do Programa Criança na Creche, e a criação dos Telecentros se deu nos bairros e comunidades em que se concentrava a população mais pobre da cidade ou que não dispõe de acesso a esses mesmos serviços pela via do mercado. A territorialização dessas novas unidades seguiu um padrão já incorporado pela saúde na definição dos pólos do Programa Médico de Família e da Assistência Social, primeiramente com os Núcleos de Atendimento às Famílias (NAF) e depois da aprovação da PNAS com os CRAS. Em relação à área de saúde, podemos afirmar que em Niterói ela é profundamente marcada pela trajetória de participação dos profissionais da cidade no Movimento de Reforma Sanitária e na conseqüente estruturação do SUS. Deste modo, a organização da rede municipal guarda relação direta com os princípios de descentralização e regionalização do atendimento em saúde, o que se reflete numa maior presença da rede municipal se comparada, por exemplo, com a área de educação. Segundo dados do IBGE (2008) referentes a levantamento sobre os estabelecimentos de saúde, em 2005 havia em Niterói um total de 272 unidades, sendo 44 públicas e 228 privadas. Do total de estabelecimentos públicos 04 eram federais, 07 estaduais e 33 municipais, o que expressa o peso maior das unidades de saúde vinculadas à Atenção Básica. Enquanto que dentre os estabelecimentos da rede privada 186 tinham fins lucrativos e 42 sem fins lucrativos, sendo que no total, 55 eram conveniados ao SUS. O que demonstra, conforme já salientamos, que a saúde privada, tal como na educação, sofreu forte expansão na cidade, constituindo em uma área altamente rentável do setor de serviços. A capacidade física instalada no município, conforme consta do Quadro V expressa a prevalência de um modelo assistencial pautado nos Módulos do Médico de Família que desde 1992 redesenharam o padrão da saúde pública na cidade contribuindo para o desenvolvimento de práticas de educação em saúde articuladas às particularidades de cada território, conforme destaca um de nossos entrevistados sobre a saúde na cidade. 245 Eu acho que Niterói se antecipou à própria historia da política de saúde no país. Primeiro pelo enfoque voltado para a assistência básica, rapidamente Niterói comprou a idéia de movimento que já acontecia de se abandonar esse modelo hegemônico hospitalocêntrico e partir para uma prática mais ligada à comunidade, valorizando os determinantes sociais causadores da doença, entendendo que a saúde era uma coisa coletiva e não uma coisa individual. Então Niterói trabalhou muito na criação dessa idéia do SUS com essas propostas que a gente chama de éticas – doutrinárias: integralidade, universalidade e eqüidade. A questão do território foi uma coisa que Niterói não abriu mão desde o momento dessa questão da hierarquização da rede, investiu nisso num projeto piloto que é projeto médico de família e que questionando ou não o prefeito da época que era Jorge Roberto da Silveira e o Gilson Cantarino que era o secretário na época junto com a Maria Célia e o papel da Maria Célia era importantíssimo, que estava na gênese do médico de família e foi a pessoa que dirigiu politicamente o projeto ao longo desses 15 anos (Fisioterapeuta Diretor de Policlínica – Território Centro). QUADRO V Capacidade Física Instalada – unidades ambulatoriais e hospitalares. Total de unidades Módulo Médico de Família 32 Unidade Básica de Saúde 10 Policlínica Regional 06 Policlínica Comunitária 02 Policlínicas Especializadas 02 Serviços de Pronto Atendimento 02 Ambulatórios em Hospitais Gerais e Especializados 07 Hospitais Municipais 06 Hospitais Estaduais 02 Hospital Federal – conveniado 01 Hospitais Contratados 03 Fonte: Quadro elaborado a partir de dados do Relatório de Gestão 2007 da FMS de Niterói (FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE SAÚDE DE NITERÓI, 2007) Tal como na área de educação a área da saúde também temos a Fundação Municipal de Saúde como órgão que procura dar agilidade à gestão da rede, sendo o Secretário de Saúde também o presidente da Fundação. Além da Fundação a Secretaria se subdivide em 02 Vice- 246 Presidências, as de Atenção Coletiva, Ambulatorial e de Família e a de Atenção Hospitalar e de Emergência; além de 03 Superintendências, a Ações Jurídicas, de Administração e Finanças e a de Assistência ao Servidor; 03 Coordenadorias, a Executiva, a do Observatório de Saúde e a de Recursos Humanos; um Departamento de Controle, Avaliação e Auditoria e 03 Assessorias, a de Comunicação, Técnica e de Planejamento. É na VicePresidência de Atenção Coletiva, Ambulatorial e de Família que se encontram o Programa Médico de Família e o Núcleo de Atendimento Especializado da Criança e do Adolescente (NAECA). A prestação dos serviços de saúde nessas unidades se dá em articulação com os programas desenvolvidos na cidade de Atenção à Saúde da Mulher (Atenção ao PréNatal, Planejamento Familiar e Prevenção do Câncer Ginecológico), Atenção à Saúde da Criança, Atenção à Saúde do Idoso, Alimentação e Nutrição, Saúde Bucal, Assistência em Fisioterapia, Controle e Prevenção da Hipertensão Arterial e da Diabete Mellitus, Controle de Zoonoses e de Doenças de Transmissão Vetorial, Saúde Mental (Centro de Convivência Oficinas Integradas, Rede de Atenção Psicossocial aos Adultos Portadores de Transtornos Mentais Graves, Atenção aos Portadores de Transtornos Mentais em Regime Ambulatorial, Programa de Atenção à Clientela InfantoJuvenil, Programa de Atenção aos Usuários de Álcool e Drogas). Os investimentos no campo da Atenção Básica acabaram contribuindo significativamente para a constituição da lógica que prevaleceu na saúde municipal através dos Grupos Básicos de Trabalho (GBT) que em 2006 eram 05 e em 2008 foram reagrupados em 04. Cada Grupo Básico se organiza territorialmente segundo a divisão político-administrativa do município, tendo como critérios prioritários: o fluxo viário, a cobertura dos serviços e a acessibilidade dos usuários às unidades de saúde, compostas pelos módulos do Programa Médico de Família e pelas Policlínicas Regionais. O PMF dispõe de uma equipe de medidos e auxiliares de enfermagem que permita a cobertura de aproximadamente 400 famílias para cada médico. O programa no ano de 2008 teve percentuais de coberturas que oscilaram muito em 247 relação aos anos anteriores, o que demonstra algumas dificuldades em relação ao trabalho de campo, enquanto a cobertura da população cadastrada foi bastante elevada chegando a 94,3%, ou seja, 128.584 pessoas atendidas no total de 136.321 cadastradas, englobando tanto as consultas médicas como outros tipos de procedimentos, a cobertura de domicílios visitados caiu de 60,7% em 2007 para 48,0% em 2008, demonstrando a dificuldade de se garantir a presença dos médicos neste tipo de trabalho (FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE SAÚDE DE NITERÓI, 2008). Na análise documental feita nesta pesquisa nos chamou a atenção, em especial com relação ao Relatório de Gestão do Programa Médico de Família - 2006, o detalhamento dos registros concernentes ao item denominado “Desenvolvimento de ações de promoção de saúde e estratégias de gestão participativa” no qual são apresentados os resultados de várias ações referentes a cada Grupo Básico de Trabalho, dentre elas os “Grupos Educativos e/ou Oficinas com a Comunidade”, onde aparecem as “ações intersetoriais” realizadas no ano. Várias foram registradas, mas a leitura dos temas tratados e dos participantes sugere que se tratava de uma dinâmica própria já adotada na área de saúde, sobretudo a partir dos GBTs, cuja lógica de estruturação dos serviços já apontava na perspectiva da intersetorialidade. A área da saúde, portanto, já possuía algum acúmulo organizacional, mediante as ações desenvolvidas, que combinava as temáticas do território e da intersetorialidade62 que foi decisivo para as discussões que depois culminaram na proposta de articulação entre as três secretarias e definição da base territorial de atuação. 62 Cabe destacar que embora a área de educação tenha explicitado em vários de seus documentos a intenção em construir uma Cidade Educadora, esforço para o qual a intersetorialidade se apresentou como um pressuposto teórico e organizacional, ainda que na ação concreta essa construção tenha sido iniciada, sobretudo, a partir das ações da Coordenação de Educação e Saúde em 2006, na área da saúde não encontramos qualquer referência nos documentos e textos oficiais à proposta de Cidade Saudável (WESTPHAL e MENDES, 2001) que também pressupõe a construção de processos de gestão e execução intersetoriais, muito embora, as práticas no município já experimentassem um desenho intersetorial a partir dos GBTs. 248 A estruturação da política de assistência social também é relativamente recente e tem como marcos locais importantes: a Lei Orgânica do Município de Niterói aprovada em 1990, a realização da I Conferência Municipal de Assistência Social em 1998, a criação em 2003 da Secretaria de Assistência Social e a realização do concurso público para a contratação de assistentes sociais em 2007, além, é claro da aprovação da LOAS em 1993 e da PNAS e do SUAS em 2004, que produziram importantes desdobramentos na esfera municipal. A trajetória da assistência social na cidade foi fortemente marcada, do ponto de vista histórico, pelas ações do executivo estadual, sobretudo no período do interventor Amaral Peixoto, depois pela atuação das instituições e ordens religiosas e, por último, pelas instituições filantrópicas e ONGs. Assim nos anos 90, período em que de fato ocorre uma inflexão importante no conjunto das políticas públicas na cidade, tanto pela dinâmica dessas gestões e das pressões advindas dos movimentos populares quanto pela nova arquitetura das políticas públicas pós-constituição de 1988, é que se desenha um tipo de ação no campo da assistência social. Tal como aponta Yazbeck, a assistência social brasileira convive com ambigüidades e a sua afirmação como política pública está diretamente relacionada às lutas sociais travadas pelo reconhecimento dos direitos sociais daqueles segmentos sociais que não conseguem por si só proverem sua sobrevivência. Entendida como área específica de política social, como parte do sistema provedor, quer como conjunto de ações e provisões que estão presentes no conjunto das várias políticas sociais, como mecanismo direcionado a reduzir sua seletividade, a Assistência Social é ambiguamente possibilidade de inclusão social e reiteração da exclusão. Se pode ser considerada política estratégica nas condições de reprodução social de seus usuários, se é campo concreto de acesso a bens, serviços e recursos, se pode favorecer o protagonismo dos excluídos, pode também ser definidora de um lugar social à margem de uma experiência de apartação (2004: 21) As contradições que demarcam o campo da reprodução social têm na política de assistência social uma mediação importante, adquirindo ainda 249 maior expressão de acordo com as concepções e práticas que prevalecem em relação à estruturação do campo assistencial: como política pública ou como um conjunto diversificado de ações “filantrópicas”, “clientelistas” e “assistencialistas”. As tensões entre concepções tão distintas não foram ainda superadas na trajetória da assistência social no Brasil e em Niterói elas imprimiram feições particulares ao processo de estruturação da política municipal. A própria Lei Orgânica do Município ao tratar da assistência social o faz sob o signo da convivência entre a nova racionalidade que deriva do campo da seguridade social e a velha cultura política que sublinha as imprecisões e as indefinições sobre as suas competências e funções na ampla “área social”. Assim, tanto afirma o papel do Município em um conjunto de princípios que emergem da nova ordem constitucional quanto do Estatuto da Criança e do Adolescente, como estabelece, com equívocos, as suas competências ao tratar dos equipamentos referentes à educação infantil, conforme pode ser observado nos artigos 194 e 197 da referida lei. Art. 194 - O Município assegurará à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à alimentação, à educação, à dignidade, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à liberdade, à convivência familiar comunitária, garantindo, ainda: I - primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; II - precedência no atendimento por órgãos públicos de qualquer poder; III - prioridade nos programas de atendimento à criança e ao adolescente, na formulação e na execução das políticas sociais básicas; IV - acompanhamento da gestante, a partir do pré-natal, e estabelecimento de programas educativos, no período pré-nupcial; V - verificação de casos de crianças distróficas, ou portadoras de qualquer anomalia, em hospitais e maternidades, para uma orientação médica adequada imediata e especializada; VI - indicação, encaminhamento e aplicação de vacinas indicadas nas épocas apropriadas; VII - promoção de palestras educativas e orientadoras para a formação de uma mocidade consciente e preparada para a vida. (...) Art. 197 - O Município criará e manterá creches e escolas comunitárias para os filhos dos trabalhadores, preferencialmente nos bairros onde residam, para a guarda e educação das crianças de idade até sete anos, a fim de lhes proporcionar bom acompanhamento biopsicossocial, mediante os seguintes critérios: 250 a) a instalação das creches e escolas comunitárias dar-se-á prioritariamente em comunidades com maior necessidade, definidas por anterior levantamento sócio-econômico, realizado pelos órgãos municipais competentes, em sintonia com as associações comunitárias. b) é imperativo que as creches e escolas comunitárias sejam organizadas oficialmente, sem fins lucrativos (NITERÓI, 1990: 50-51). Enquanto no artigo 194 os direitos da criança e do adolescente são incorporados como uma responsabilidade do Município - muito embora haja oscilações no texto legal sobre as atribuições do Município e do Poder Público estamos considerando-o não como um ente abstrato, mas como um poder constituído -, no artigo 197 atribui-se a este poder uma competência que não lhe cabe, a de criar instituições sem fins lucrativos, além de reiterar a responsabilidade de criação de creches e de escolas para a população empobrecida como uma atribuição da área de assistência social e não como uma prerrogativa da área de educação. Mesmo considerando que a Lei Orgânica do Município foi aprovada antes da LDB, que define e regulamenta o campo da educação infantil, ela sofreu uma revisão em 2005 não alterando nenhum desses dois artigos. Deste modo, ressaltamos que a ausência de compreensão do que de fato constitui a especificidade da política de assistência e de suas interfaces com relação às demais políticas (SPOSATI, 2004) associada a uma trajetória marcada pela presença de setores da sociedade civil, com destaque para as instituições filantrópicas religiosas e ONGs que desenvolvem serviços de natureza social, cujas práticas e concepções se confrontam com o reconhecimento da assistência social como política pública, convive, no município, lado a lado com os esforços de organização desta política tendo como parâmetro a LOAS e a PNAS. A origem da organização da política de assistência social em Niterói se deu a partir de meados dos anos 90 em sintonia com as discussões promovidas pelo governo estadual, pelo governo federal e pela sociedade civil em torno da implementação da Lei Orgânica da Assistência Social. A partir dos NAFs a então Secretaria de Integração e Cidadania passou a oferecer serviços para a população já com centralidade no atendimento à 251 família. Ocorre que a infraestrutura física e de pessoal era bastante precária e em função da forte presença das instituições filantrópicas, do crescimento das ONGs com perfil de prestação de serviços e do processo de contrareforma do Estado, que determinou em larga escala processos de transferência para a sociedade civil da prestação de serviços sociais e a conseqüente contratação de pessoal, a organização da política de assistência social na cidade se desenvolveu a partir de certo grau de dependência do setor público em relação ao privado. Com a aprovação da PNAS e a criação do Sistema Único de Assistência Social a organização desta política passa a se dar a partir da oferta de serviços, programas, projetos e benefícios que em sua grande maioria se vinculam ao governo federal como no caso do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada que representam parte considerável dos recursos da área de assistência, evidenciando a ênfase dada em relação à política de transferência de renda. Dependendo do grau em que se encontra a gestão do município, no caso de Niterói a cidade possui gestão plena63, somente os municípios com arrecadação própria podem arcar com projetos para além daqueles desenvolvidos pelo governo federal. Particularmente Niterói, pela sua arrecadação e pela condição que ocupa em termos de PIB teria condições de desenvolver programas e projetos próprios, o que não foi eleito como prioridade nas gestões municipais até o momento. Em consonância com a particularidade da trajetória da assistência social na cidade e a forte atuação das instituições filantrópicas – aqui estamos nos referindo não apenas às religiosas, mas, sobretudo, aquelas que consolidaram uma rede sócio-assistencial que presta serviços especializados -, o modelo adotado na cidade acabou por sedimentar uma lógica de política 63 Com a Gestão Plena o município além das transferências de recursos asseguradas aos níveis anteriores (inicial e básica) para o desenvolvimento dos programas e serviços da Proteção Social Básica e Especial recebe recursos para a inclusão produtiva. Do ponto de vista das condições de funcionamento e de suas responsabilidades o município tem que ter um sistema de monitoramento e avaliação por nível de proteção, cumprir pacto de resultados, ter política de recursos humanos com carreira para servidores públicos, desenvolver programas e projetos de inclusão produtiva e programa ampliado de CREAS. 252 pública fortemente ancorada no estabelecimento de “parcerias” com diferentes instituições da sociedade civil. A PNAS define dois níveis de Proteção Social: a Básica e a Especial, sendo que esta última se estrutura de acordo com o grau de complexidade, podendo ser de média e alta complexidade. A Proteção Social Básica está voltada para a prevenção de situações de risco pessoal e social “por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” e deve oferecer através dos CRAS: 1Programa de Atenção Integral às Famílias, 2- Programa de inclusão produtiva e projetos de enfrentamento da pobreza, 3- Centros de Convivência para Idosos, 4- Serviços para crianças de 0 a 6 anos, que visem o fortalecimento dos vínculos familiares, o direito de brincar, ações e socialização e de sensibilização para a defesa dos direitos das crianças, 5Serviços socioeducativos para crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de 6 a 24 anos, visando sua proteção, socialização e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, 6- Programas de incentivo ao protagonismo juvenil, e de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e 7- Centros de informação e de educação para o trabalho, voltados para jovens e adultos. Já a Proteção Social Especial é destinada às famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal ou social e através dos CREAS devem prestar atendimento de média complexidade como: 1- Serviço de orientação e apoio sociofamiliar, 2Plantão Social, 3- Abordagem de Rua, 4- Cuidado no Domicílio, 5- Serviço de Habilitação e Reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência, 6- Medidas socioeducativas em meio-aberto (Prestação de Serviços à Comunidade – PSC e Liberdade Assistida – LA); e de alta complexidade como: 1- Atendimento Integral Institucional, 2- Casa Lar, 3- República, 4Casa de Passagem, 5- Albergue, 6- Família Substituta, 7- Família Acolhedora, 8- Medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade (semiliberdade, internação provisória e sentenciada), e 9- Trabalho protegido (BRASIL/MDS, 2004). 253 Niterói hoje tem 08 CRAS (Morro do Céu, Vila Ipiranga, Cubango, Santo Cristo, Centro, Badu, Várzea das Moças e o Núcleo do Cafubá) que foram organizados a partir das estruturas dos NAFs e obedecendo ao princípio da territorialidade estabelecido pelo SUAS, ou seja, atendendo prioritariamente a população que se encontra em áreas com maiores índices de risco e vulnerabilidade social. Neles são desenvolvidas as ações relativas aos serviços, programas e projetos da Proteção Social Básica como as Ações Socioeducativas em Meio Aberto (ASEMAS) que ficam a cargo das ONGs. Cabe destacar que em Niterói o CREAS não se estruturou enquanto uma unidade física diferenciada do CRAS, mantendo-se apenas como instância coordenadora das ações da Proteção Social Especial, o que tem gerado muitas confusões, conforme observaremos mais adiante em algumas narrativas. Niterói tinha em 2008 23.545 famílias registradas no Cadastro Único da Assistência Social (CadÚnicio)64 e 10.080 sendo beneficiárias do Bolsa Família. As ações desenvolvidas pela Secretaria de Assistência Social (Quadro VI) estão voltadas para os diferentes segmentos sociais atendidos pela política de assistência social: crianças e adolescentes, famílias, idosos, portadores de deficiência e população de rua. QUADRO VI Ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Assistência Social. Nível de Proteção Básica 64 Ações Núcleo de Benefício e Renda Segmento Social Família Atividades e projetos Plantão Itinerante; Reuniões Descentralizadas; Cidadania par Todos; Reunião Comitê Intergestor; Atendimento Psicossocial; Reunião Acompanhamento ao PBF; BPC na Escola; Sistema criado para agrupar todas as informações relativas aos beneficiários dos programas sociais da área de assistência unificados a partir do Programa Bolsa Família. 254 Ações Voltadas Juventude Especial de Média Complexidade Especial de Alta Complexidade para a Jovens Ações Voltadas para Pessoas Idosas Ações Voltadas para Pessoas com Deficiência Idosos Ações Voltadas ao Fortalecimento de Vínculos Institucionais e Comunitários e Condições Habitacionais Famílias, instituições sociais e Conselhos de Políticas. ASEMAS Criança, adolescentes e família Família e criança e adolescente Ações de Proteção Especial – Famílias Ações Voltadas para Crianças e Adolescentes Pessoas com deficiência Criança e adolescente Reunião Coordenadores dos CRAS; CAD Único; Inclusão Produtiva Promoção Jovem; Santo de Casa Faz Milagre; Oficinas Culturais-Artes; Silkscreen; Oficinas Esportivas; Rádio Megafone; Barriga Jovem; Me vê na TV; Niterói + Ecológica; Rock na rampa e rock na pista; Avaliação Grupos de Conviência Passe Livre; Transporte Eficiente; Central de Intérprete; Audioteca Núcleo de Ações SócioHabitacionais; Ações Voltadas ao Controle Social Coordenadoria dos Conselhos; Monitoramento. Serviço de abordagem socioeducativa; Projeto Lar para Todos Plantão Social Casa de Passagem Paulo Freire Casa de Passagem de Meninas Projeto Sócio-Educar Ações Voltadas para a Jovens Juventude Ações Voltadas para a População de Casa da Cidadania População de Rua rua Florestan Fernandes Fonte: Quadro elaborado a partir das informações contidas no Relatório de Gestão 2007 e 2008 da Secretaria Municipal de Assistência Social de Niterói (SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE NITERÓI, 2007 e 2008). A política de assistência social em um curto período de tempo, entre 1999 e 2007, particularmente em função das gestões de Rodrigo Neves e 255 Heloísa Mesquita65, saiu de uma condição de extrema precariedade, na qual a assistência social era um campo sem nenhuma feição de política pública, cujas ações eram essencialmente aquelas já executadas pelas instituições filantrópicas, para a organização de uma rede de serviços amparada nos programas do governo federal66 e com ações próprias ao município. Contudo, essa profunda e rápida mudança não foi acompanhada de uma infraestrutura que lhe desse suporte, sendo suprido pelo estabelecimento de parcerias com as ONGs, o que criou um sistema híbrido e bastante questionado por diferentes setores, inclusive pelo Ministério Público e pela Câmara de Vereadores da cidade67. Deste modo, a política de assistência social foi assumindo um traço comum às demais políticas públicas da cidade: a de se destacar pela sua concepção e dinâmica junto aos demais municípios como uma política bem estruturada e avançada ao mesmo tempo em que, internamente, possui um conjunto de problemas que impedem de fato sua efetivação a partir dos marcos e princípios legais. A assistência em Niterói é uma das mais bem estruturadas, apesar de não estar ainda como deveria, mas pelo que a gente sabe que as pessoas falam a assistência em Niterói é boa e bem estruturada. Tem gestão plena, mas mesmo assim cada CRAS tem seus problemas, como local, número de pessoas e etc... Agora com o concurso, que foi cobrado do governo federal, pelos profissionais, isso pode vir a melhorar. Mas mesmo assim a gente é terceirizada. Algumas ONG’s, até para manter a 65 Heloísa Mesquita é assistente social e filiada ao PT, foi subsecretária por duas ocasiões em Niterói, ambas nas gestões de Rodrigo Neves até assumir a Secretaria em 2003, permanecendo até 2007 quando saiu para atuar como Superintendente de Proteção Social Básica e Especial na Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro à convite da Secretária Benedita da Silva. Sua aproximação com a política de assistência social do município se deu a partir de sua atuação na organização do Fórum Estadual de Assistência Social e das atividades de assessoria que desenvolveu em função do mesmo junto a uma série de municípios fluminenses, dentre os quais Niterói. Chamada inicialmente para assessorar a realização da I Conferência Municipal de Assistência Social em 1998, foi convidada no ano seguinte para ocupar a subsecretaria na gestão de Rodrigo Neves. 66 Além do PBF e do BPC já mencionados anteriormente Niterói também desenvolvia os Programas de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Programa Sentinela e o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF) em articulação com o governo estadual. 67 Em 04 de abril de 2009 saiu publicado no Jornal O Globo no suplemento Caderno de Bairros – Niterói reportagem referente à liberação pela Prefeitura de R$4,4 milhões para 37 instituições que atuam na área de assistência, sendo que 11 delas figuram em processos no Tribunal de Contas do Estado, fato que levou à reação de alguns vereadores, dentre os quais o Ex-Secretário de Educação Waldeck Carneiro do PT. 256 gestão do espaço, do material.. é terceirizado. Porque nem toda a assistência dá conta. A Secretaria falou que é melhor estar gerenciando pouco do que ter exclusão do poder de gerenciar tudo. Então ele gerência uma parte e as ONG’s gerenciam outra. Então tem uma ONG que gerencia 4 CRAS que não possuem ASEMA’s, que é o Cubango, Santo Cristo, Vila Ipiranga e Centro, que é a Viva Mais e Melhor. A IDE gerencia os CRAS que tem ASEMA’s, que é do Morro do céu e do Preventório. E o CAMPUS AVANÇADO com o pessoal da juventude. Tais programas vão permanecer até dezembro, então não se sabe se as ONG’s vão permanecer, ainda mais com a mudança de gestão da Prefeitura. Rodrigo Neves criou praticamente a Secretaria de Assistência social aqui em Niterói, que antes tinha outro nome, foi no governo de Jorge Roberto em que Godofredo era Vice. Então eu acho que a assistência em Niterói é uma boa política sim, de boas intenções, não sei daqui para frente como é que vai ficar com a saída dos profissionais (Psicóloga do CRAS Vila Ipiranga - Regional do Fonseca - Norte). Tal como as políticas de educação e de saúde, a política de assistência social também se tornou uma referência para a cidade com relação à sua visibilidade externa. De fato, pela condução dada nas últimas gestões é inegável sua aproximação ao esforço empreendido por diferentes setores da sociedade civil e da sociedade política em âmbito nacional de consolidação da assistência social como política pública. No entanto, a vinculação com as ONGS, não apenas em termos da prestação de serviços, mas, sobretudo, em relação ao modelo de gestão compartilhada, determinou processos institucionais nos quais as fronteiras entre interesses públicos e privados acabam se misturando. A alternativa encontrada pelas outras políticas setoriais para o equacionamento dos problemas que afetam uma rede recente e com a perspectiva de uma rápida expansão como a realização de concursos públicos, qualificação e incorporação dos quadros técnicos nos processos de gestão, já experimentados na educação e na saúde, ainda que com mais lastro nesta última, sequer completou seu primeiro ciclo na assistência, cujo concurso data de 2007 e ainda não atende às necessidades de atendimento das demandas da cidade. Temos então que a afirmação de políticas dirigidas para os segmentos mais empobrecidos da classe trabalhadora se tornou parte do esforço de democratização do acesso aos serviços públicos de saúde, educação e 257 assistência social, coordenado por gestões que claramente assumiram esse compromisso e que imprimiram uma dinâmica na condução dessas políticas que favoreceu ora a consolidação ora a expansão das redes de serviços sociais municipais bastante heterogêneas, mas como a mesma preocupação territorial, potencializando, deste modo, o encontro entre elas e delas com as ações intersetoriais já em curso mobilizadas pela sociedade civil, sobretudo no cotidiano das ações institucionais e profissionais. É nesse contexto que a Ação Intersetorial ganha expressão. É difícil precisar, com base nas diversas narrativas, o início efetivo da Ação Intersetorial governamental na cidade. Obviamente cada grupo de profissionais possui pontos de referências que emprestam às suas memórias peculiaridades próprias e que consideramos válidas por expressarem formas de apropriação da própria experiência. Neste sentido, preferimos indicar não um ponto de início, mas as pontas que se entrelaçaram, possibilitando imprimir a essa prática social múltiplos sentidos e significados, evitando, assim que incorramos em demarcações que ao atentarem para as similitudes apagam as ranhuras, aquilo que não se encaixa, as diferenças e os traços que tornam a experiência instituinte. Nesta direção, identificamos como pontas deste traçado: as práticas profissionais que no cotidiano das instituições rearticulavam os territórios da saúde, da assistência e da educação a partir de necessidades concretas que surgiam do desejo de superar a fragmentação imposta pela lógica setorial; as experiências produzidas em algumas regiões da cidade, particularmente na Região Oceânica, de intersetorialidade envolvendo profissionais da rede municipal e entidades da sociedade civil; as propostas de trabalho que foram esboçadas entre 2005 e 2006 em coordenações, núcleos e centros das respectivas secretarias; a articulação entre gestores das diferentes secretarias e as articulações interinstitucionais que convergiram para a realização em 03 de maio de 2006 do Seminário Ação Intersetorial no Território: Saúde, Educação e Assistência Social. Tais processos revelam como que essa experiência adquiriu dimensões distintas visto que a intersetorialidade foi 258 sendo forjada tanto no plano da intervenção cotidiana através de ações articuladas pelas equipes profissionais, no nível da gestão com a institucionalização do Colegiado Intersetorial formado por representantes das áreas da saúde, educação e assistência social, nas ações articuladas pelas redes já constituídas na cidade e a partir dos esforços empreendidos pelas secretarias para transformá-la em uma efetiva política de governo. A realização do seminário deve ser balizada como um momento chave no sentido de que representou um investimento integrador dos demais processos, ou seja, considerou as ações que se desenhavam no caminho da intersetorialidade, reuniu as instâncias decisórias68 que poderiam assegurar sua dimensão como política de governo e, sobretudo, instituiu um espaço de debates, exercícios e acordos que se desdobrou na condução institucional da ação. Os desdobramentos desse encontro apontaram para a institucionalização do Colegiado Intersetorial que passou a se reunir periodicamente com a incumbência de coordenar as ações intersetoriais, desenvolver estudos sobre o tema e realizar o planejamento e a avaliação dos trabalhos realizados, formado por um representante de cada secretaria: pela saúde integrou a Coordenação do Programa Médico de Família vinculado à Vice-Presidência de Atenção Coletiva Ambulatorial e da Família, Maria Angélica Duarte Silva, pela assistência a Coordenação do Núcleo de Benefício Renda e Cidadania e Coordenação dos CRAS, Ubirajara Bento Marques e pela educação a Coordenação de Educação e Saúde, Ana Lúcia Tarouquella Schilke. O Colegiado funcionou de 2006 a 2008, quando em virtude do processo eleitoral e da eleição de Jorge Roberto da Silveira para a prefeitura as ações foram interrompidas pela profunda alteração na composição das equipes e coordenações, assim como pelo fato de que tal proposta não conseguiu lograr o intento de se constituir em uma política que sobrevivesse à alternância de poder. 68 O Seminário contou com cerca de 200 participantes entre profissionais das áreas de Saúde, Educação e Assistência Social a mesa de abertura foi formada pelo Prefeito Godofredo Pinto e pelos Secretários de Saúde Luiz Roberto Tenório, de Educação Waldeck Carneiro da Silva e de Assistência Social Heloísa Mesquita. 259 Em relação ao desenvolvimento da experiência o Seminário, que foi gestado entre os meses de janeiro e abril de 2006, contribuiu tanto com a deflagração do processo de discussão conceitual sobre intersetorialidade e território quanto com a definição da base territorial comum para a realização da ação intersetorial. Como cada política setorial tinha uma lógica própria de definição de seu território de atuação, não havendo uma composição comum, optou-se por adotar a divisão territorial da saúde (ver mapa no Anexo 3) para o desenvolvimento da experiência, sem que representasse a extinção das divisões anteriores que continuaram a existir como referência para cada área setorial. Esta opção já trazia um sentido para o conceito de território próximo ao que Milton Santos define como “território vivido”, na medida em que a área da saúde pela experiência do Programa Médico de Família já tinha um enraizamento, práticas sociais amparadas em vínculos comunitários e com os próprios sujeitos coletivos do território. Assim em cada território havia uma Policlínica Regional de referência para várias unidades do PMF e das Unidades Básicas de Saúde (UBS) as quais foram identificadas os CRAS, UMEIs e escolas, pela rede se serviços municipais, assim como as instituições da sociedade civil, divididas em cinco regionais: 1- Regional de Itaipú – Leste-Oeste; 2- Regional Centro – Centro-Norte; 3Regional do Largo da Batalha – Leste; 4- Regional Santa Rosa – Sul - Leste; e 5- Regional Fonseca – Norte. A atuação do Colegiado Intersetorial se deu a partir de reuniões mensais com os delegados de cada secretaria. No ano de 2006 a prioridade foi a estruturação da própria experiência com a organização do seminário, a realização de discussões sobre o conceito de território, elaboração de estratégias de trabalho coletivo, troca de experiências relatando os êxitos e entraves das ações realizadas em cada território, resgate do processo histórico do grupo e estudo sobre a abordagem do problema, estudo sobre planejamento estratégico, apresentação dos trabalhos realizados nos territórios e avaliação do trabalho e indicativo de metas para 2007, conforme 260 consta do Relatório da Ação Intersetorial relativo ao ano de 2006 e do qual extraímos a concepção de território que passou a orientar os trabalhos. A realidade de cada território está sempre em movimento e é determinada não só pelas relações, mas também pelos indivíduos e grupos populacionais de cada localidade. Assim, conhecendo melhor nossos espaços poderemos propor estratégias de ação que ultrapassem um fazer específico disciplinar e objetivem, em última instância, estreitar parcerias e propor alternativas para os problemas cotidianos. A complexificação do conceito de território onde a escola encontra-se circunscrita ultrapassa a idéia de entender este espaço apenas como um limite geográfico. Para além disso, o espaço é transformado constantemente pelas implicações sociais, econômicas, culturais, políticas, o que permite percebê-lo como produto de todas estas relações. O território, enquanto espaço que possui limites, fronteiras e conflitos, favorece a interlocução entre a escola e os espaços que disponibilizam serviços diversos. Mapear a rede de saúde e assistência social, propondo uma lógica que ultrapassa a compreensão deste espaço como um dispositivo meramente geográfico, sendo concebido, ao contrário, como lugar em permanente construção e reconstrução, produto de uma dinâmica social, econômica e política específica e, portanto, inacabado faz com que a escola possa, de acordo com suas necessidades, interesses e possibilidades, interagir com atores que compõem seu encontro na busca que promovam a saúde e melhoria da qualidade de vida da comunidade escolar (NITERÓI-COLEGIADO INTERSETORIAL, 2006: 2). Muito embora a concepção de território aponte para sua função estratégica na condução das políticas públicas ressaltando que a delimitação geográfica por si só não é suficiente para se pensar a dinâmica de cada política, as discussões sobre a melhor forma de delimitar os territórios a partir dos quais a ação intersetorial se constituiria não se esgotou no Seminário e nem se deu por completa com essa sistematização. No cotidiano dos profissionais a realidade mostrava todo o seu dinamismo, o que exigia o confronto permanente entre as diretrizes que foram sendo construídas e os desafios e interrogações que brotavam das condições particulares de cada intervenção e de cada território, como destaca um das profissionais entrevistadas ao abordar como esse conceito foi tratado em sua experiência. E de território a gente também estudou um pouquinho. Então território é pensado de uma forma afetiva também, não só geográfica, de 261 como as pessoas se localizam afetivamente, simbolicamente em relação àquele território. A gente fez essa discussão. A gente tem algumas questões aqui com relação a território, por exemplo: nós temos áreas do nosso território que são geridas por São Gonçalo. Então nós temos assim: alunos e famílias que estudam numa escola em frente. Só que essas famílias não podem ser atendidas pelo CRAS, porque elas são de São Gonçalo. Então ela tem que procurar o CRAS de São Gonçalo. (Psicóloga da Coordenação de Educação e Saúde –Regional do Fonseca - Norte). A dimensão afetiva e social que devem ser levadas em conta na organização territorial, como parte de uma concepção mais ampla que favorecesse a realização de ações integradas, no cotidiano esbarrava em elementos concretos impeditivos de outro tipo de relacionamento, seja em função de que a expansão urbana implicou em um rompimento das fronteiras geopolíticas, tecendo outros territórios diferentes daqueles que a cartografia oficial rascunhou para a definição do alcance de suas redes de serviços, seja porque os profissionais da escola, do CRAS ou da unidade básica de saúde que atuavam em lado da rua não pertencem à mesma rede que os que atuavam do outro lado da mesma rua. Ao longo da pesquisa e ouvindo atentamente às dúvidas e preocupações dos profissionais foi ficando cada vez mais claro que as discussões sobre território, embora tenham avançado significativamente em termos do debate teórico e político, ainda careciam de uma mediação importante sobre os novos contornos da urbanização, sobretudo nas regiões metropolitanas, ainda que tal preocupação sirva para qualquer região onde a desigualdade nas condições de ofertas de serviços se traduza em fluxos populacionais em busca de condições adequadas de atendimento. As dificuldades não são necessariamente impedimentos à realização da experiência, elas podem se transformar em conhecimento, em componente pedagógico do próprio do trabalho e elemento propulsor de mudanças e aperfeiçoamentos, desde que existam condições de sistematização da mesma. As dificuldades, em certo grau, bastante previsíveis para os que se lançaram nessa experiência, não foram 262 limitadoras das ambições do grupo em relação aos seus objetivos políticos e culturais, conforme podemos verificar em relação aos que foram elencados. A gestão intersetorial das políticas tem o potencial de contribuir para construção integral entre o interno e o entorno das pessoas e a organização integradora dos projetos individuais e coletivos. Esta é uma política que materializa experiências pedagógicas e sociais que trabalha com valores integradores, com o desenvolvimento sócio-afetivo e com o compromisso social e político. • Desta forma a proposta de Ação Intersetorial no Município de Niterói objetiva: • Promover condições onde os cidadãos construam seu projeto de emancipação e autonomia; • Promover a auto-estima e consciência crítica do cidadão por identificar-se com sua cidade; • Contribuir para a promoção da cidade onde seus agentes públicos e privados tenham condições de desenvolver toda sua potencialidade; • Promover o espaço da cidade como espaço de integração, comunicação, intersubjetividade e convivência; • Espaços de possibilidades de exercício da democracia participativa – formulação e proposição de políticas intersetoriais; • Espaço de construção/fortalecimento de instituições e organizações que servem para agenciar movimentos de transformação – potencializando os Equipamentos Sociais. • Espaço de disputa de micropoderes; • Espaço de subversão da ordem global – o resgate da cultura e das manifestações culturais (IDEM, IBIDEM: 1-2). Observamos que o interesse do grupo que sistematizou a proposta era o de que a Ação Intersetorial não se resumisse a uma estratégia de racionalização de recursos e esforços institucionais, assim como não se restringisse a uma experiência gerencial. Ainda que não tão claramente definido para todos aqueles que dela participaram nos vários territórios, havia uma conotação política de longo alcance e que, em certa medida, extrapolava o próprio campo das políticas públicas e da ação governamental. Conceitualmente a Ação Intersetorial não se limitaria à esfera governamental e politicamente foi compreendida como espaço de tensão e de disputas, podendo configurar-se, deste modo, como um espaço público estratégico 263 para as políticas públicas, visto que não se voltava apenas para as discussões sobre a sua execução terminal, mas para o seu planejamento coletivo e participativo. Ela foi concebida, nesses termos, como uma experiência não apenas democrática, mas ampliadora da democracia participativa. Em relação ao ano de 2007 a dinâmica de encontros do Colegiado manteve a mesma linha de atuação com a realização de estudos sobre a temática da intersetorialidade, a apresentação dos trabalhos desenvolvidos nos territórios e o acompanhamento das reuniões do PBF que foi indicado o eixo comum para o desenvolvimento das atividades em cada território (NITERÓI-COLEGIADO INTERSETORIAL, 2007). No entanto, em 2008 o Colegiado e as próprias ações nos território tiveram um forte refluxo em função da mudança de gestão na Secretaria de Assistência Social com a saída de Heloísa Mesquita, a saída de alguns profissionais dos CRAS vinculados às ONGs em função do ingresso dos assistentes sociais concursados e, sobretudo, da dinâmica eleitoral que tomou conta da cidade. Além de um dos representantes do próprio Colegiado ter saído para se candidatar ao cargo de vereador, sem que de fato fosse substituído naquela instância de gestão, a própria campanha acabou por mobilizar intensamente vários dos quadros profissionais das três secretarias, não em virtude da costumeira política de cooptação, mas em função da condição de muitos serem quadros intelectuais dos partidos envolvidos nas disputas, particularmente os vinculados ao PT, que buscava a continuidade na gestão da prefeitura69. Deste modo, seja em razão das dificuldades próprias já percebidas de envolvimento de todos os profissionais na ação intersetorial como em decorrência da conjuntura política a experiência caminhou para um fim de certa forma previsível por muitos, em virtude de que a 69 O PT chegou com três pré-candidatos em sua convenção municipal, o Deputado Estadual Rodrigo Neves, o Secretário de Educação Waldeck Carneiro e o Secretário de Cultura André Diniz, esse último o preferido pelo grupo mais próximo ao Prefeito Godofredo Pinto. As disputas foram acirradas e o indicado foi Rodrigo Neves que contou abertamente com o apoio do pré-candidato Waldeck Carneiro, mas não com o do grupo do Prefeito Godofredo Pinto o que acirrou a disputa eleitoral dentro do próprio partido, dentro da gestão e com impactos na ação intersetorial. 264 descontinuidade nas ações públicas se tornou uma das marcas de nossa cultura política, conforme situa uma das integrantes do Colegiado quando indagamos sobre o futuro da Ação Intersetorial em plena efervescência da campanha eleitoral. Eu não sei, a equipe gestora desaparece. O que vai ficar depende se a base demandar. (...) Acho que nesses três anos o que a gente plantou... E ai é interessante porque a gente conseguiu ficar três anos com idas e vindas e você percebe isso. Aquelas pastas são ricas nesse sentido: número de reunião, a temática da reunião - tinha reunião que não tinha, tinha reunião que tinha -, mas o fato é que, mesmo tendo essa oscilação, a gente conseguia ter momentos mais amplos e ter momentos um pouco mais frustrantes, como é da dinâmica de qualquer trabalho. Ele não é uma coisa estática, ele tem movimento. Mas foram três anos de movimento real. As pessoas estavam lá, num dado momento se encontravam mais, num dado momento se encontravam menos, uma região ia mais, uma região ia menos, depois a gente mudava (Membro do Colegiado Intersetorial – Coordenação de Educação e Saúde). Este relato tem um peso bastante significativo para a compreensão da dimensão instituinte da ação intersetorial, não pelo fato de profetizar o seu fim, mas por reconhecer essa possibilidade como um elemento bastante plausível para uma experiência que nem surgiu como política de governo e nem conseguiu alcançar essa condição. Evidenciamos, ao contrário, que ela nasceu a partir de diferentes pontas de uma trama que combinou processos em curso tanto na sociedade civil quanto na sociedade política na cidade e que, em determinado momento foi potencializada pela ação política e profissional de alguns quadros intelectuais que apostaram numa lógica de organização dos serviços sociais prestados à população ancorada em princípios de uma democracia participativa. O lugar ocupado e as condições criadas por esse grupo de intelectuais, profissionais da rede, se tornaram elementos centrais para dar vida ao esforço de pensar e articular sob bases não fragmentadas as políticas públicas em Niterói. 265 3.3- Dimensões instituintes da ação intersetorial em Niterói: a educação que encontra a cidade. Ao longo do processo de compreensão de como a educação se relaciona com as demais políticas públicas voltadas para a infância na cidade, descobrimos mais do que como a “educação que se encontra na cidade”, nos deparamos com uma “educação que encontra a cidade”, com todas as suas contradições e tensões. A preocupação com a intersetorialidade, de certo modo, já estava presente na área de saúde, conforme podemos observar a partir da experiência do PMF, do papel desempenhado pelas Policlínicas, da rede voltada para o atendimento à criança vítima de abuso e violência doméstica e da rede de saúde mental, assim como tem sido pensada como um pressuposto básico da própria lógica da política de assistência social70, contudo, ela se mostrava ainda enquanto uma possibilidade na área de educação. Embora expressa no desejo de consolidar Niterói como Cidade Educadora, essa proposição não chegou a redesenhar institucionalmente o conjunto das ações no campo educacional, o que faz ressaltar ainda mais a experiência desenvolvida no interior da Fundação Municipal de Educação, envolvendo não só a gestão central, mas várias coordenações que começaram a esboçar as ações no campo da educação infantil, da educação especial, da organização dos ciclos e, em particular, da Coordenação de Educação e Saúde, essa perspectiva mais ampla de pensar a educação em relação às demais políticas públicas. As condições propiciadas pelas gestões no período entre 2003 e 2007 seriam insuficientes sem que a atuação dos quadros que 70 Potyara Pereira afirma com relação à política de Assistência Social que “é justamente por ser interdisciplinar e intersetorial que, na prática, é a política pública mais afeita a estabelecer interfaces e vínculos com as demais políticas congêneres (sociais e econômicas), tendo em vista a universalização do atendimento das necessidades sociais no seu conjunto. Nessa articulação, suas funções próprias ou particulares – de favorecer o acesso e usufruto de bens, serviços e direitos diversificados a parcelas da população “excluídas” dessa possibilidade – não correm o risco de se descaracterizar ou de se dissolver no interior das outras políticas, desde que sejam bem administradas, até porque essas funções não se encaixam no recorte das demais políticas” (2004:59). 266 assumiram funções de coordenação adquirisse uma dimensão intelectual, ou seja, propositiva, mobilizadora e organizadora de uma outra forma de pensar e fazer a educação. Por essa razão, afirmamos que a Ação Intersetorial, com o papel destacado exercido pela equipe da Coordenação de Educação e Saúde, composta por professores, psicóloga e assistente social, combinada com as ações das demais coordenações representou um movimento da educação em direção à cidade. A Coordenação de Educação e Saúde antes mesmo da consolidação das linhas gerais do trabalho da Ação Intersetorial, pautado na experiência de algumas das profissionais vindas da Coordenação de Educação Especial, já havia sentido a necessidade de mapear em cada região da cidade os serviços oferecidos e as instituições públicas e privadas por eles responsáveis. Produziram assim o “Mapeamento da rede de saúde e promoção social do município de Niterói” que ficou conhecido como “mapa da cidadania”. Esse esforço evidenciava que a preocupação com a questão do território e com a importância da articulação intersetorial já se configurava como parte da agenda de trabalho de alguns profissionais e tomava forma a partir da iniciativa de uma coordenação que viria a ter um papel importante na condução da experiência. Todos os profissionais da Coordenação de Educação e Saúde foram divididos pelos cinco territórios definidos para a Ação Intersetorial e passaram a representar de forma institucional e atuar nas ações planejadas a partir da área de educação. Cabe destacar que, no Seminário que deflagrou a Ação Intersetorial de forma mais visível, vários outros professores da Fundação, que atuavam nas demais coordenações, também participaram, ainda que não integrassem o grupo da Coordenação de Educação e Saúde. Quando sublinhamos a importância da Coordenação de forma alguma subestimamos a contribuição dos demais setores e profissionais. Para a compreensão de como a educação integrou esse experiência em condições até bastante diferenciadas em relação aos profissionais das demais áreas é preciso resgatar sua trajetória, as tensões, diferenças e como que as 267 concepções teóricas ganharam significado não no interior do Colegiado Intersetorial, mas na dinâmica dos territórios. As entrevistas realizadas em cada território tanto com a equipe da Coordenação de Educação e Saúde quanto com os demais profissionais foram decisivas para compreendermos como que a construção da Ação Intersetorial foi se consolidando como uma experiência ao mesmo tempo rica do ponto de vista das preocupações teóricas e políticas que mobilizava quanto em relação ao reconhecimento de como os estágios diferenciados de cada área de política pública tornou tão singular na cidade. As atividades programadas para cada território guardavam relação com as situações que já mobilizavam a população e os serviços públicos e foram pensadas em um primeiro momento não como uma atividade totalmente planejada, mas como exercícios que envolveriam dinâmicas distintas em cada território. Portanto, a realização efetiva das atividades programadas além de servirem para confrontar as discussões teóricas sobre território com a dinâmica própria da realidade também revelou como que o conceito de intersetorialidade adquiria complexidade frente às particularidades do cotidiano institucional e diante das necessidades que surgiam quanto à mobilização de setores e serviços vinculados diretamente ou não à prefeitura. É uma dificuldade na ação intersetorial quando o grupo se fecha e aí nós temos que chamar o poder da prefeitura. É mais fácil a prefeitura convencer a Águas de Niterói do que a gente da regional. Nós sabemos das dificuldades, então vamos começar a resolver. Se a gente não tivesse feito isso, talvez não tivesse esses 70% que eu falei, baseados nos dados do Centro de Controle. Então são tensões que geram conflitos. Você vê que a ação não é só o setor público, tem terceirizado. Às vezes o privado não tem o menor interesse em ação social e diz que é bobeira e pronto. Sabe que é assim que o sistema capitalista funciona, não tenho acordo com ele, mas ele sabe que é assim que funciona. E aí nós precisamos ter uma maneira de conversar (Médico Veterinário Diretor de Policlínica – Regional do Centro -Norte). A Ação Intersetorial teve início em alguns territórios sob uma forte influência da mobilização na cidade contra uma nova epidemia de dengue. 268 Os altos índices de casos da doença e de óbitos causados pela dengue hemorrágica no Estado do Rio de Janeiro e também em Niterói, embora a cidade tenha tido um percentual bem mais baixo se comparado ao da cidade do Rio de Janeiro, em 2005, foram determinantes para a escolha da dengue como tema a ser trabalhado em alguns territórios, sobretudo o da Regional do Centro-Norte, muito embora, a orientação geral tenha sido a de trabalhar com o público do Programa Bolsa Família, por conta da sua própria dimensão intersetorial em torno das condicionalidades que devem ser acompanhadas nas áreas de saúde e educação. Assim, os dados a que se refere o relato anterior são relativos ao percentual de casos de doenças mapeado em função de que a água tratada não chegava às unidades domiciliares na região da Ilha da Conceição no centro da cidade, favorecendo estratégias de armazenamento próprias que aumentavam os riscos de proliferação do mosquito, por essa razão se ressaltou a importância da Ação Intersetorial envolver várias instituições como a empresa fornecedora de água, a privatizada Águas de Niterói e a Companhia de Limpeza Urbana de Niterói (CLIN). A concepção de intersetorialidade também foi confrontada com a realidade dos territórios, conforme vimos no relato anterior e podemos observar também no próximo, ambos de diretores de policlínicas do mesmo território, o Centro-Norte, quando apareceram os entraves e dificuldades decorrentes da ausência de um instrumento legal que, regulamentando a experiência, conferiria melhores condições de negociação e maior unidade na condução das atividades nos territórios. Uma coisa que eu acho muito seria é a portaria da intersetorialidade. Eu acho importante que exista uma pressão, quer dizer, a intersetorialidade tem que partir do território, em pequenos territórios. Não se faz intersetorialidade “ah o secretário de lá mandou você se reunir com o secretário de cá”. Isso é besteira! Isso não vai sair nunca! A gente tem exercitado que a Fundação de Educação, a Fundação de Saúde essas pessoas da ponta: eu, a Rosana e a Ana resolvemos fazer isso e vamos bancar isso. Eu acho que é assim mesmo, no território pequeno. As grandes mudanças vão acontecer no território pequeno. Agora carece de uma orientação, pelo menos de 269 gente das Secretarias para promover a intersetorialidade; e isso ficou muito claro na minha cabeça quando houve uma pressão da Secretaria de trabalhar essa questão da saúde, educação e assistência social, de trabalhar essa questão intersetorial. Então houve uma pressão por conta da dengue, e a coisa funcionou, agora se não tiver uma certa cobrança as pessoas relaxam um pouco e partem para os seus castelos, o que é tradicional da nossa formação, principalmente na saúde, na educação também: o projeto endógeno de uma escola. O de uma universidade, então, é absurdo (Fisioterapeuta Diretor de Policlínica – Território Centro). Uma portaria instituindo a Ação Intersetorial e regulamentando a participação dos diferentes profissionais envolvidos chegou a ser articulada no âmbito dos secretários de governo, mas não chegou a ser aprovada e nem parece ter sido colocada como uma prioridade no plano da administração central da prefeitura. Ocorreu nesse sentido, um hiato entre a dinâmica que se produzia nos territórios, e mesmo da agenda do Colegiado Intersetorial, e a perspectiva de incorporação dessa proposta no âmbito do executivo local. Um dos elementos mais centrais no tocante à aprovação da portaria diz respeito a um princípio fundamental das experiências intersetoriais tratados na literatura sobre o tema, em particular por Inojosa (1998), que é necessária alteração dos processos de trabalho. Pensar e desenvolver uma experiência intersetorial que não altere o modo e as racionalidades que orientam a prestação dos serviços sociais representaria muito pouco em termos de mudanças efetivas nas formas de se enfrentar os problemas sociais em suas complexidades. Por essa razão, a portaria não teria meramente um significado burocrático e administrativo, representaria o reconhecimento de que novas condições e processos de trabalho precisariam ser instituídos e viabilizados a partir de uma nova estrutura de organização dos serviços, evitando-se o que ocorreu, repetidamente, em relação à sobrecarga de trabalho das equipes que mantiveram suas funções tradicionais enquanto acresceram novas atividades que requeriam graus de investimentos maiores e mais complexos, além de dar um caráter “voluntarista” à ação, conforme foi sublinhado no relatório anual de 2007 do Colegiado Intersetorial como um dos fatores determinantes para o 270 esvaziamento do trabalho e da ausência de integrantes das equipes no território. De fato um programa, um projeto mesmo de ação intersetorial, com objetivos e metas discutidas por todos nós. Metas possíveis de serem realizadas até para não gerar frustração, porque, normalmente, como isso é feito pelos técnicos, são horários de trabalho do técnico que são tirados para isso. E quando você tira um horário para isso você deixa de fazer outra coisa, então é como se o técnico tivesse fazendo de boa vontade. Também tem de perder esse caráter... Se você coloca isso como uma política intersetorial, que faz parte dentro do seu programa de gestão, então o trabalho do técnico vai estar contemplado. E não a pessoa ir à base da boa vontade, porque acredita somente (Professor da Coordenação de Educação e Saúde – Regional de Itaipú – Leste-Oeste). As mudanças na dinâmica do trabalho não se restringiram à equipe de professores da Coordenação de Educação e Saúde - como também dos profissionais das demais secretarias -, apesar de terem sentido mais, talvez em virtude de se deslocarem pelos territórios para a realização do trabalho de acompanhamento das escolas. As alterações nos processos de trabalhos passaram a ser percebidas como obstáculos, problemas que decorriam de uma sobrecarga de atividades e não como uma conseqüência necessária da mudança de concepção do próprio trabalho, de um trabalho cuja lógica não dependia mais exclusivamente de um único saber e de uma só prática disciplinar. E depois a gente ficou pensando: “Qual o tema que a gente elege para fazer um trabalho em conjunto?”. A gente elegeu, depois de algumas reuniões, o tema da violência contra a criança e o adolescente. Só que ai a gente começou a ter várias dificuldades sobre ao assunto. Tivemos várias questões. Primeiro que era muito difícil a gente individualmente ter agenda e começou-se a ter um questionamento, até mesmo assim: “Poxa, será que era a gente que tinha de fazer a ação intersetorial? Não deveria ter um grupo especifico para fazer isso? Porque a gente é assoberbada de trabalho, tem milhões de coisas para fazer.” Eu, por exemplo, trabalho em três escolas dando formação e às vezes ficava apertadíssimo para eu ir. E ai tinha que ser no dia que eu podia porque eu só trabalho 20 horas no município. Tinha de ser um dia que o diretor da policlínica podia e que o coordenador do CRAS podia. Era muito complicado conseguir isso. E eu senti que alguns territórios conseguiram melhor isso, e senti que no nosso território foi se desarticulando. Eu lembro também que teve uma discussão que algumas pessoas do território puxaram que, acreditando que o território devia ter 271 verba para a gente fazer ação intersetorial, que precisava ter subsídio para gente fazer eventos e tal. E ai eu acho que essa concepção não ficou tão clara, por mais que eu trouxesse isso (Psicóloga da Coordenação de Educação e Saúde – Regional do Fonseca -Norte). A narrativa prossegue ilustrando como que essas mudanças impactaram tanto na equipe quanto nas escolas. Revela também um aspecto bastante polêmico no que concerne às demandas apresentadas às escolas. Porque as escolas - é uma coisa que eu tento trabalhar com os profissionais nas escolas - estão sempre reclamando que estão isoladas, que têm de dar conta de tudo e ai a oportunidade de dialogar com outros parceiros, para que a gente pudesse trabalhar conjuntamente, as escolas não iam às reuniões. Eu chamava. E ai a gente chamou por telefone, a gente chamou por ofício, a gente chamou de todas as formas e as escolas não iam às reuniões. E tinham umas duas reuniões que eram de escola que eu estava lá dentro, que por uma simpatia a mim, eles iam. É uma coisa assim: a escola recebe tanta coisa, tanto ofício, tanta coisa e tantas reuniões. A gente aqui faz muita formação, tem coisas para as escolas irem, que ai eu acho que era mais uma coisa, que não cabia e as pessoas não iam. E também eu não sei se tinham a compreensão, sabe?! E aí não aderiram! (Psicóloga da Coordenação de Educação e Saúde – Regional Fonseca -Norte). Para a própria equipe da Coordenação de Educação e Saúde que representa a área de educação na Ação Intersetorial a escola vive uma situação ambígua: ela vem sendo atravessada pelas diferentes expressões da questão social em seu cotidiano, afetando não só os alunos e suas famílias, mas também os professores em suas condições de trabalho, não têm conseguido lidar com essas situações internamente e não consegue produzir um movimento em direção às outras áreas. A Ação Intersetorial, na perspectiva dos entrevistados, se apresenta contraditoriamente como alternativa de solução e como mais um problema a se somar ao cotidiano da escola. Eu acho o seguinte, a escola ainda não vislumbrou isso, o potencial é esse de trabalho. Não consegue fazer nesse sentido, numa perspectiva futura, nem sei se a palavra futura é a melhor, é perspectiva de futuro. Ela está muito interessada no hoje. Então a gente quer encontrar com a assistência, quer encontrar com a saúde para dar o 272 remédio para a criança, para resolver aquela situação da criança que o pai bate, como se a escola não tivesse inserção nessa dinâmica, é algo que o outro resolve, não eu. Isso é o que percebo. Nesse cenário o que acontece com a escola também é que a educação, a saúde e a assistência usam a escola muito. Como as crianças estão lá todos os dias e é lá que as coisas devem ser resolvidas, então, hoje, a escola tem uma resistência. Tudo que é campanha vai para escola, então professor tem que ensinar, tem que isso, tem que aquilo, tem que acompanhar, tem que ver o Bolsa-família, entendeu?! Eu acho que a escola olha para a ação intersetorial meio assustada com relação a essa história passada, isso é uma hipótese. Não tenho nada muito... são só das coisas que eu escuto. A escola está muito cheia de afazeres que ela não sabe fazer, uma clientela que ela não está acostumada, não se acostumou a ter até agora. Apesar de ser nova, com uma sociedade complexa, essa complexidade reflete lá. Ela não entendeu que se não se unir não vai resolver, eu acho isso, então “estou no olho do furacão” e não avanço nisso, entendeu?! (Membro do Colegiado Intersetorial e da Coordenação de Educação e Saúde). Em diferentes entrevistas realizadas com os mais diferentes profissionais o lugar da escola na Ação Intersetorial sempre apareceu como uma tensão, um problema. Ora ela aparece como local onde as atividades serão realizadas, ora como o local de onde surgem os problemas que serão tratados nas atividades intersetoriais ou pelos profissionais das diferentes áreas. Dificilmente a escola ganhou a dimensão de sujeito coletivo, quase sempre a de espaço. Quando referida à condição de sujeito coletivo se dava por representar algum grau de resistência à articulação intersetorial ou pela expectativa de que ela poderia solucionar alguns de seus problemas. Esta observação, de forma alguma, reflete a dinâmica real das dezenas de escola do município, constatação que exigiria outro tipo de investigação. São perspectivas apreendidas das entrevistas realizadas e que, sem a preocupação de atingir algum grau de generalização, representa em alguma medida o modo como as equipes percebem sua relação com as escolas. Além do que os processos de trabalho parecem apontar para ações na escola e não com a escola, talvez em função de que os eixos de trabalho priorizados nos territórios estivessem mais vinculados aos programas sociais ou situações sociais que não emanavam da realidade educacional, embora tivessem forte interface com ela. As entrevistas na quais as escolas, não todas, protagonizaram alguma ação abordam as atividades que foram 273 realizadas por aquelas unidades que tinham um grau de integração já constituído com as ações intersetoriais do território. Os processos de trabalho variaram também em decorrência da particularidade de cada território. Embora a orientação do Colegiado Intersetorial fosse a de privilegiar ações com a população atendida pelo Bolsa Família, nem todos os territórios elegeram este tema como eixo de suas ações. Considerando que uma das particularidades do próprio conceito de território como elemento dinâmico e vivo é a capacidade que os viventes têm de produzir e alterar relações, de estabelecer nexos com o espaço e com os equipamentos coletivos de acordo com sua cultura e trajetória de vida, orientado por necessidades que lhes são próprias, tal fato não pode vir a ser considerado um problema, mas uma particularidade da experiência. A questão da autonomia do território encontra limites quando a experiência deixa de ter uma direção construída e pactuada coletivamente. O que se depreende das entrevistas realizadas é que tal fato se deu muito em conseqüência da conjuntura, determinada por uma preocupação geral que tomou conta da cidade, no caso a epidemia de dengue do ano anterior e a necessidade de uma ampla ação educativa e preventiva, e do fato de a experiência encontrar-se ainda em construção, permitindo variações e se abrindo para a percepção de novas demandas como um componente pedagógico do processo de conhecimento dos territórios e das relações neles travadas. A gente estudou muito, no início a gente estudou muito, o que era isso, o que era intersetorialidade para tentar entender, mas cada secretaria tem uma visão diferente do seu fazer e até a gente conseguir juntar esses setores para começar um trabalho em si demorou um pouco. A gente ficou um ano e pouco estudando, discutindo, teorizando mais e depois se começou a visitar as Unidades Básicas, as Policlínicas. Nós da educação é que íamos muito lá, eles num vinham, ainda não vem não. Ai começou essa parceria, eu particularmente fui com a minha equipe de referência, todas as outras meninas da equipe fomos a Policlínica Sérgio Arouca para elas conhecerem a equipe. Tanto o pessoal da saúde quanto o pessoal da assistência. Foi um encontro super legal que a gente teve para conversar mesmo. Iniciamos a tentativa de um projeto no nosso pólo, onde todo mundo abria a boca 274 para discutir, assim, do que era importante numa certa faixa etária, da escola estar ensinando, estar discutindo. Foi legal! A gente começou uma discussão boa, mas não deu continuidade porque teve o problema sério de dengue ano passado e esse ano também. Aí as pessoas, tanto da assistência quanto da saúde, ficaram muito envolvidas com o atendimento das pessoas, com a própria orientação e prevenção mesmo da dengue. As escolas todas, praticamente, fizeram projetos com relação à dengue. Então nesse ano, principalmente, quase não aconteceram os encontros. (Professora do Coordenação de Educação e Saúde – Regional de Santa Rosa – Sul - Leste). A particularidade da dinâmica do território, portanto, não pode ser vista como um impedimento à realização das atividades previamente planejadas sob o risco de se negar a própria dimensão viva que se deseja resgatar do conceito. A relação entre as ações da equipe da Coordenação de Educação e Saúde com as escolas no território foram decisivamente marcadas pelas questões de saúde. Ainda que a dengue tenha tido um papel crucial naquela conjuntura cabe a interrogação se essa prevalência também não se apoiaria em outros fatores, como faz crer o relato a seguir sobre o peso das policlínicas na condução das ações, mesmo porque a atuação dessas unidades no território já ocorria antes da incorporação de novos profissionais a partir da Ação Intersetorial. O nosso projeto intersetorial era trabalhar essa questão da hepatite B, se não me engano era hepatite B. Tentar garantir a vacina para as crianças de uma certa idade que eu não me lembro mais, de uma certa idade em diante. (...) Mas a gente não chegou a fazer porque veio a dengue... A gente fechou o ano com o planejamento direitinho, com cronograma para 2007. E aí 2007 já começou com aquela febre de dengue. No ano passado, eu me lembro, nossa primeira reunião foi em junho, depois que passou aquela febre de dengue, ai nosso projeto não foi adiante. Ai nesse meio tempo também eu deixei de ir naquela escola. Quando eu fui à reunião, já no ano passado, eu mudei de pólo e a gente ficou com outra ação nesse pólo do Largo da Batalha, que foi a reunião que teve na escola Leopoldo Fróes, no Largo da Batalha. Acho que é do Estado. Então foi uma reunião com todos os setores daqueles bairros próximos: Largo da Batalha, Pendotiba, Maceió, Sapê, aqueles lugares ali próximos que eu não sei o nome de todos, com as associações de moradores, o pessoal da CLIN Reciclagem, que tem uma parte lá, com as unidades básicas desses lugares, com a própria policlínica, que no caso é a “cabeça” das escolas. Foram pessoas das escolas do município, do estado e as escolas privadas. Nós fomos discutir as ações que fossem interessantes naquele ano ali na redondeza. (Professora da 275 Coordenação de Educação e Saúde – Regional do Largo da Batalha Leste). A construção intersetorial implica necessariamente em diferenças e conflitos, como foi bem sinalizado no relatório do Colegiado Intersetorial. E as tensões não dizem respeito apenas à relação dos profissionais com a população, mas internamente também e, sobretudo, entre profissionais com formações diferentes. O que torna esse tipo de experiência difícil de ser administrada é que muitas vezes as diferenças não se expressam em termos de concepções, não se materializam apenas em debates preliminares, mas se expressam nas formas de condução do próprio trabalho. E as narrativas que se seguem apontam para um determinado ponto de estrangulamento: a relação entre o trabalho no território e o do comitê intergestor da Ação Intersetorial, que nos referimos até o momento como sendo o Colegiado Intersetorial. Não funciona da forma que eu acho que deveria, porque eles têm, parece que eles têm muitos afazeres. Então eles não podem estar presentes, até porque a divisão territorial deles é diferente da nossa. Eles procuraram se adequar à nossa, mas têm dificuldade de pessoal para representar. Então, em nem todas as reuniões eles estão presentes. Muitas vezes eles convidam a gente para uma reunião lá no nível central, aonde têm coisas idealizadas por eles e que não coincidem com a nossa realidade, é uma das coisas que eu sou muito brigona, sou muito chatinha, de reivindicar, de tentar mostrar. Então muitas vezes eu digo para eles que a gente já funciona há muito tempo, antes de começarem a ter essa visão. A gente tem aqui na regional um comitê. Comitê que trabalha com a prevenção de violência contra crianças e adolescentes, esse comitê já deve ter uns cinco anos de funcionamento, onde a gente tem reuniões mensais, toda última terça-feira do mês com as escolas e com representação de igrejas - seja quem queira participar e o Conselho Tutelar e a rede de assistência e tal. Então a gente já vem desenvolvendo isso há muito tempo e quando o nível central determina que a gente tem de fazer tais reuniões, tais dias para decidir aquilo, pra mim é muito complicado porque a gente já tem uma lógica de trabalho, o que às vezes nem sempre coincide (Médica Veterinária Diretora de Policlínica –Regional de Itaipú – Leste-Oeste). Essa compreensão prossegue salientando um aspecto importante que já observamos anteriormente: o da trajetória da saúde na ação intersetorial. Contudo aqui ela aparece com um significado bastante 276 diferente, não como um elemento que se soma, mas como um conflito que se instaura entre propostas de trabalho novas e o trabalho que já vinha sendo realizado. Eu acho que não cresceu nada. Na minha visão que já vinha trabalhando intersetorialidade no território, não cresceu. O que a gente fazia, a gente continuou fazendo. A gente até teve algumas ações que eles participaram, mas eu acho que o papel do nível central não é a participação deles direta, é no incentivo de que as escolas, ou representações das escolas participem. Tudo bem que eles possam estar juntos, mas não é “um” que vai fazer, quem vai fazer é a rede local, a não ser que depois eles tivessem um outro momento aonde eles discutissem com a regional para que colocassem isso em prática. Mas eu não vi, sinceramente, eu não vi avanço. Eu posso estar falando diferente dos outros. Por quê? Porque a gente já fazia, então nas reuniões no nível central quando a gente colocava que a gente já fazia, os outros diretores falavam: “eu não conheço”, “eu nunca fiz”. E isso até despertou ciúmes. Teve momentos que a gente até pensou: não vou falar mais! Porque eles acham que a gente não faz ou a gente fica sendo olhado diferente (Médica Veterinária Diretora de Policlínica –Regional de Itaipú – Leste-Oeste). Este território, que engloba a região oceânica da cidade, tem uma grande particularidade na medida em que nele se construiu uma rede social envolvendo representantes da sociedade civil e das instituições prestadoras de serviços sociais da esfera governamental visando o enfrentamento de situações de maus tratos e violência contra crianças e adolescentes. A forte presença de algumas ONGs que atuam com o atendimento às crianças vítimas de violência e suas famílias imprime ao território uma dinâmica muito peculiar e que em diferentes situações aparecem na forma de conflitos, decorrentes de cobranças ou expectativas com relação ao modo como cada instituição deveria agir, conforme demonstra o depoimento que se segue. E nem sempre a ação intersetorial da educação é muito favorável à questão do comitê. Não há uma linguagem tão grande assim. Não falam tanto a mesma língua, porque o comitê ele surge da rede de maus tratos contra a criança e o adolescente. Então ele vai estar preocupado com essa questão dos maus tratos e tal. No ano de 2006 ou 2007, se não me engano, acho que 2007, a ação intersetorial decidiu que o foco seria em atenção às crianças que são atendidas pela educação especial e criou-se uma ficha de encaminhamento direto para 277 a saúde. Contendo todo um conjunto de situações. Então nem sempre eles falam a mesma língua. Também tem isso! Além da intersetorialidade, o problema dos feudos na intersetorialidade também (Professor da Coordenação de Educação e Saúde – Território de Itaipú – Leste-Oeste). As tensões expressas nesse território não devem ser examinadas como questões circunscritas apenas às relações profissionais, ainda que elas tenham de fato um peso importante. Trata-se de uma região com extrema desigualdade social e que sofreu um processo de expansão urbana que as acirrou ainda mais. A ausência do poder público sempre foi uma marca dessa região e a construção de ações pautadas nas ONGs acabou por se constituir numa forte referência para a população e até mesmo para algumas áreas do setor público. Neste sentido, a construção da Ação Intersetorial encontrou um território já demarcado por lutas sociais históricas, conflitos e disputas de espaços. O confronto entre as diferentes disciplinas profissionais compõe um momento decisivo para a avaliação das condições de sedimentação de uma proposta de intersetorialidade que contenha um potencial interdisciplinar. E neste território esse confronto foi mediado pelas tensões decorrentes de ações intersetoriais que já se encontravam em curso com a nova proposta. Um processo que apesar de conflituoso não impediu que se tecessem aproximações entre as áreas e campos disciplinares. Nem todas, eu gostaria que fossem mais, mas a gente sabe as escolas que participam. Eles fizeram agora umas discussões sobre doenças sexualmente transmissíveis, onde eles elaboraram um questionário, passaram por todas as turmas de acordo com o nível, maior, menor e tal, para elaborar um projeto para discutir na escola. São alunos problemas, de repente detectam tem na escola um aluno problema, trás para o comitê, discutem, tem ações. A escola, de repente é uma criança que tem um problema, seja de doença, seja de qualquer coisa, entra em contato to isso assim, assim, a gente acolhe. A gente trabalha muito junto com as escolas. A participação da escola é muito boa, mas eu acho que se tivesse um incentivo maior, um incentivo ou talvez um...eu num sei exatamente o nome que a gente possa dar, mas que a...eu acho que seria melhor ainda, embora seja bom, eu acho que poderia ser melhor (Médica Veterinária Diretora de Policlínica – Regional de Itaipú – Leste-Oeste). 278 Uma aproximação que requer maior conhecimento entre as dinâmicas e particularidades de cada área. O esforço em direção a uma prática intersetorial, tomada em sua amplitude como também interdisciplinar, não significa abolir as fronteiras disciplinares e setoriais como um pressuposto para o trabalho, ao contrário, só se torna intersetorial ou interdisciplinar partindo do real, da existência da própria disciplina e do próprio setor que precisam ser conhecidos. As entrevistas realizadas, sobretudo junto à equipe da Coordenação de Educação e Saúde, revelaram a grande preocupação desse grupo com relação ao desconhecimento em geral dos professores com relação à área de assistência social. Considerando a recente afirmação da assistência social como política pública, as mudanças decorrentes da implantação do Sistema Único de Assistência Social, as ambigüidades que marcam a trajetória desta política no cenário nacional e local, dá para se ter uma dimensão do tamanho desse desafio para os profissionais da área de educação. A construção da intersetorialidade pressupunha, neste sentido, algum grau de conhecimento e esclarecimento sobre cada área. Eu acho que ainda é muito rudimentar. Se acontecer na ponta, ainda acontece de forma rudimentar. Por exemplo, em relação à assistência social, mais ainda, as escolas não sabem o que é CRAS. Elas têm dificuldades. Tem de explicar dez vezes, pois não sabem. E às vezes crianças com questões sociais gravíssimas e a escola apanhando, porque existe uma expectativa de que a escola dê conta para muito além do que ela pode fazer. Mas a escola não sabe que ela pode acionar o CRAS. Eu acho que ainda está distante. (Psicóloga da Coordenação de Educação e Saúde – Território do Fonseca – Norte). A articulação intersetorial colocou no cotidiano dos diferentes profissionais, mesmo que tenha sido maior para os professores, o desafio de conhecer as particularidades das demais áreas. E quando nos reportamos às diferentes áreas ou setores nos referimos às práticas e saberes disciplinares, mas também às particularidades de cada política setorial, ao seu modo de funcionamento, equipamentos, diretrizes, programas, serviços e linguagem 279 própria. Deste modo, a construção da Ação Intersetorial representou mais do que uma mudança de perspectiva nas formas de compreensão e enfrentamento dos problemas sociais, mas a possibilidade de que os saberes de cada área transbordassem pelas outras, se constituíssem em novos saberes confrontados com a experiência que cada profissional ou que a equipe tivesse acumulado. E essa possibilidade não foi amplamente experimentada. Ela depende sempre do desejo de cada profissional em alargar sua bagagem intelectual e, de certa forma, sua visão de mundo. É aí que os quadros dirigentes podem assumir uma função destacada, como potencializadores desse desejo, buscando consensos possíveis em torno de algum ponto de aproximação das diferentes práticas e saberes em relação às questões presentes na dinâmica das políticas públicas nos territórios. O que observamos nas entrevistas é que os diretores de policlínicas tinham maior clareza dessa função e procurava atuar nessa direção. Não que os outros profissionais não tivessem essa capacidade, mas o lugar institucional em que eles se encontravam era diferenciado, não apenas por ocuparem um cargo, mas por exercerem uma função dirigente em uma área de política pública, como a saúde, que vinha valorizando a gestão democrática e não o monopólio da saúde pelo saber médico, tanto que a maior parte dos diretores não era médico. Mais uma vez a trajetória de uma política pública e a cultura profissional que ela produziu na cidade trouxe um elemento diferenciado na construção da Ação Intersetorial. Soma-se a esta condição efetivamente dirigente e não apenas de chefia exercida por alguns diretores de policlínica as particularidades de cada território. As práticas profissionais, a cultura institucional e a ação dos sujeitos coletivos imprimiram dinâmicas diferenciadas em cada território. Na reconstrução dessa experiência identificamos relatos que fornecem alguns elementos que auxiliam a compreensão dessas particularidades. Hoje em dia, por exemplo, quando eu vim trabalhar na policlínica da Engenhoca a gente deu andamento a esses trabalhos e a gente criou um núcleo contra a violência à criança e ao adolescente. Nós 280 temos o primeiro núcleo da criança e do adolescente aqui na área, que é como NAECA também, Núcleo Especial de Atenção a Criança e ao Adolescente contra a violência infantil e a gente trabalha juntamente com os Conselhos Tutelares da área. Existe toda uma equipe multiprofissional voltada para isso, para o seguinte: a gente não resolve o problema. O que acontece? O Conselho tutelar quando ele recebe uma notificação de uma violência ele encaminha pra gente, pra gente diagnosticar, saber qual é e o que a gente pode trabalhar ali naquele conjunto de coisas que acontecem: se é com a mãe, se é com a criança que vai ser avaliada pela psicóloga, pelo psiquiatra infantil ou se é a psicóloga. Então é essa equipe multiprofissional que nós montamos aqui, um trabalho que tem uma relação direta com o Conselho Tutelar, porque o Conselho Tutelar está a todo o momento a par dessa situação. Então foi através do trabalho da intersetorialidade que surgiu essa idéia de trabalhar contra... Então quando vocês perguntam essa questão da relação com a temática da infância que nós temos, nós temos uma relação muito forte porque a gente conseguiu fazer aqui na regional, justamente esse núcleo contra a violência. O primeiro lugar em que foi montado foi aqui na regional da Engenhoca e agora parece que lá na região oceânica está e aqui na Zezé parece que vai ser treinado também par dar continuidade, porque a idéia nossa é que cada regional tenha um núcleo contra a violência da criança, então a gente trabalha com relação a isso (Médico Diretor de Policlínica – Regional do Largo da Batalha Leste). Em relação a esse território a prioridade que aparece como sendo a eleita para ser trabalhada no ano de 2007 foi a do acompanhamento das condicionalidades do PBF, conforme consta também no Relatório anual de 2007 do Colegiado Intersetorial. Contudo, como em nossas entrevistas havia sempre uma questão dirigida para identificar as ações relativas à infância e como que cada profissional percebia as políticas voltadas para a infância na cidade, este tema aflorou de uma forma particular em algumas das narrativas, evidenciando ações que não necessariamente faziam parte da programação da Ação Intersetorial, mas que evidenciavam claramente como já se encontrava em curso ações intersetoriais, em particular no tocante à temática da violência contra crianças e adolescentes. Essas ações integram, na verdade um grande esforço empreendido na cidade com a constituição da “Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói”, que abordaremos no próximo item, mas cujas ações ganharam a mesma capilaridade e tramas que observamos em relação à Ação 281 Intersetorial, ou seja, uma rede que se forjou a partir do encontro das suas diferentes pontas. A diretora da policlínica citada no relato anterior, em sua narrativa acabou enfatizando que as ações no seu território de fato seguiram a orientação do Colegiado em trabalhar com as condicionalidades do PBF, contudo não deixou de compartilhar a mesma tendência observada anteriormente com relação à constituição de um novo patamar de institucionalização do atendimento às crianças e adolescentes vítimas de maus tratos e violência. No entanto, o fez a partir de uma perspectiva muito interessante de articulação entre o fato de essa situação emergir como uma demanda da realidade, justificada pela particularidade do território e não como uma solicitação do Colegiado, e o processo de descentralização das ações na área da saúde. Na verdade é uma política municipal de ampliação da cobertura tendo em vista que a nossa área é uma área que tem registros de situações em que a criança é colocada realmente em risco. Então o município trabalha com a perspectiva da descentralização. Tem por exemplo a Policlínica da Engenhoca que já avançou mais nessa questão, já tem o núcleo, implantou comitê. E Itaipu também, e nós por sermos uma regional recente ainda estamos, em algumas questões, caminhando. Assim, a gente não elegeu a princípio, mas fomos eleitos pelo processo descentralização, até porque a questão da violência ela ficou totalmente colocada e nós sabemos que o Fonseca é uma área que pela questão da urbanização, pelas suas características, é uma área que tem uma violência muito colocada. Várias comunidades vulneráveis. A gente sabe que por uma série de razões isso já está colocado, tem acesso a algumas informações, mas ela não veio simplesmente pela ação local, ela vem como uma política mesmo de descentralização dessas ações (Assistente Social Diretora da Policlínica do Fonseca). A percepção diferenciada dos diretores de policlínica de fato foi uma descoberta muito interessante ao longo do processo de entrevista e, voltando a destacar, guarda relação com uma cultura conquistada na área de saúde e que foi valorizada na última gestão que é a de democratizar o acesso aos cargos de direção. A experiência acumulada de trabalho nas unidades também se constituiu em um fator importante que observamos e que possibilitou ainda mais a identificação das particularidades de cada território. 282 Se as discussões mais articuladas com os CRAS e a ênfase no acompanhamento das condicionalidades do PBF foram as principais marcas da Regional do Fonseca, a preocupação com a formação de um núcleo de atenção à criança e ao adolescente vítima de violência a marca da Regional do Largo da Batalha, assim com as ações junto às escolas e a participação ativa das associações de moradores, em Itaipú as tensões entre as lógicas das diferentes ações intersetoriais associada aos esforços de aproximação das instituições públicas e privadas à dinâmica da escola foi uma tônica. A Regional de Santa Rosa, em que pese o papel sempre marcante da Policlínica Sérgio Arouca na região não avançou muito no período em decorrência de uma série de mudanças na composição das equipes de cada secretaria, contudo, o trabalho seguiu a direção das reuniões com a população atendida pelo PBF. E no centro foi onde identificamos a maior constância na rotina de desenvolvimento das ações e de sistematização das atividades realizadas. Não se trata aqui de hierarquizar o grau de articulação de cada território, mas de sublinhar que as dinâmicas são diferentes e que essas diferenças é que possibilitam de fato tomar o território como mediação fundamental da intersetorialidade. Neste sentido destacamos a narrativa do diretor de uma das policlínicas da Regional Centro para situar como a questão do território envolve processos e sensibilidades que dependem de um investimento profissional coletivo. A saúde de Niterói está dividida em áreas, cada área está relacionada a uma policlínica regional, então nós trabalhamos com policlínicas regionais, policlínicas comunitárias e unidades básicas e módulos médicos de família. Cada Policlínica regional tem algumas unidades de saúde, módulos do médico de família e policlínica comunitária. Por exemplo, Carlos Antonio da Silva é regional hoje, na verdade nós temos uma policlínica comunitária na Ilha da Conceição que está ligada ao nosso território, além da unidade básica do centro, unidade básica de Santa Bárbara e unidade básica do morro do Estado. E isso é muito interessante, essa compreensão do território porque muita gente se admira “Pô! Mas o que Santa Bárbara tem a ver com o Carlos Antonio da Silva, porque está lá do outro lado da cidade e teria mais acesso à Policlínica do Fonseca?!”. A questão do acesso ao território é 283 uma coisa que está sempre em mutação. Território não é uma coisa fixa, do ponto de vista geográfico. É mas do ponto de vista da onde os atores interagem. Não é, por exemplo, o corredor viário de Santa Bárbara é muito mais... é muito, mas não é única e exclusivamente ligado a Policlínica Carlos Antonio da Silva. O Caramujo que é um pouquinho mas abaixo tem um corredor viário que leva direto à Policlínica do Fonseca. Santa Bárbara não tem, tem que botar essa população vinculada à especialidade, à assistência básica não, na assistência básica eles ficam em Santa Bárbara, mas aí eles teriam que pegar dois ônibus para estar lá no Fonseca. Essa questão do território é muito curiosa! Eu me lembro quando criaram a Policlínica do Fonseca a gente teve uma discussão com a associação de moradores das áreas limítrofes para que a gente não decidisse assim: você vai para lá por uma questão geográfica e você vem para cá, daqui até aqui é fronteira, ai a gente reuniu todas as associações de moradores para saber o que eles desejariam e eu me lembro que a gente estava discutindo isso: nós temos aqui o Morro da Boa Vista - não sei se você conhece? - e depois de uma rua daqui o Boa Vista, ali já é Juca Branco. É assim mesmo! A distância não é em sentido figurado não, e de repente o que aconteceu? O pessoal de Juca Branco, que é ali onde fica a João Brasil, quer ficar ligado à Policlínica do Fonseca. Eu perguntei para o pessoal das comunidades e os diretores de lá: está acontecendo alguma coisa com o Carlos Antonio, porque é tão pertinho para vocês e vocês querem ficar na policlínica longe? “Não é porque ali é Comando Vermelho e no outro é Terceiro Comando” ou vice–versa não necessariamente nessa ordem e “se a gente passar pela Carlos Nascimento de São Lourenço a gente pode sofrer uma represália”. Então aquilo que era geograficamente mais lógico, para eles estava ligado à situação - sem querer entrar no mérito da discussão da violência e da polícia-, mas é uma situação que a gente tem que intervir rapidamente tem que está discutindo com eles, o quê não quer dizer que fique fixo pelo resto da vida. (Fisioterapeuta Diretor de Policlínica – Território Centro - Norte). A questão do narcotráfico pouco apareceu nas entrevistas, não porque ela não tenha visibilidade ou destaque, tendo em vista ser um problema bastante presente na realidade da cidade, mas talvez por conta da necessidade de abordar uma série de questões que demarcaram o cotidiano dessas experiências a partir de um lugar específico: o lugar profissional. É deste lugar, assim como do da gestão, é que são pensados os processos de trabalho, os modos através dos quais se ensina, se assiste e se cuida da população, o que pressupõe uma ação organizada e consciente sobre a realidade. Mas as ações intersetoriais intercambiam cuidados, assistências e ensino favorecendo a produção de outras práticas e outros princípios pedagógicos. O que a narrativa do diretor da policlínica revela nos remete a 284 uma abordagem que Ruben Mattos faz do conceito de integralidade aludindo que se trata de algo mais do que um princípio do SUS. Nesse contexto, a integralidade emerge como um princípio de organização contínua do processo de trabalho nos serviços de saúde, que se caracteriza pela busca também contínua de ampliar as possibilidades de apreensão das necessidades de saúde de um grupo populacional. Ampliação que não pode ser feita sem que se assuma uma perspectiva de diálogo entre seus diferentes modos de perceber as necessidades de serviços de saúde. Nesse sentido, a articulação entre a demanda espontânea e a demanda programada, desde o serviço expressa o diálogo necessário entre dois modos privilegiados de se apreender as necessidades de um grupo populacional. Diálogo que serve como ponto de partida para outras tantas transformações, que ainda estão por percorrer (2001: 57). A integralidade neste sentido envolve uma dimensão conceitual que não se restringe à saúde e pode ser muito interessante para a experiência de intersetorialidade se compreendida também pelos profissionais de outras áreas. Da mesma forma, a ação intersetorial e o território implicam não apenas numa base conceitual, mas numa experiência de tipo diferenciado se comparados às lógicas tradicionais de organização dos serviços de saúde, assistência social e educação. A sensibilidade de pensar o serviço a partir de um ponto de vista que não seja apenas o profissional e sem abrir mão do mesmo é o desafio maior de uma experiência deste porte. A narrativa revela uma possibilidade de pensar a organização de um serviço sob um prisma diferente, muitas vezes inaudível: o da população. Não seria essa a preocupação que norteou a proposta pedagógica de Paulo Freire? Não seria esta a demanda dos movimentos sociais em defesa de uma educação pública de qualidade? Não seria este o desejo das crianças em relação à própria vida? A intersetorialidade não é uma resposta, mas um exercício. Compreensão que foi apresentada pelo mesmo diretor, pelo Colegiado Intersetorial e por vários outros profissionais diretamente envolvidos com a experiência. Não residiria aí, neste exercício, experimentando a perspectiva da integralidade no território, modificando-o, a dimensão instituinte da experiência? Sobretudo uma experiência que não surgiu de acordos de 285 gabinetes, mas da combinação de diferentes práticas sociais e profissionais, do desejo de vários gestores e trabalhadores, uma prática que nos faz pensar que a dimensão instituinte que ela encerra esteja mais na perenidade do que no êxito. A experiência não prosseguiu no formato inaugurado pelas gestões que as propuseram, mas ela também não se desfez por completo, se forjou em experiência para muitos daqueles que permanecem na rede, independentemente dos cargos, das coordenações e dos setores onde hoje se encontram. O alcance desta ação, em particular no que se refere à área de educação foi além da participação ativa da equipe da Coordenação de Educação e Saúde e também, como nas pontas descobertas a partir de outros processos, identificamos nas demais coordenações dimensões intersetoriais, algumas em curso outras como potência. A cartografia desta experiência revelou a importância de uma investigação que ultrapasse as fronteiras do formal e do que é mais visível, para buscar nas dobras das marcas institucionais as experiências que não ganham as manchetes e as páginas iniciais, mas que são de onde brotam os movimentos de encontro da educação com a cidade. Como no desafio de construir uma educação infantil que dialogue com as outras políticas sem deixar de se reconhecer as marcas de uma cultura que se deseja superar. Essa conversa é muito nova para a educação, é curiosamente nova, mas ela é imprescindível, porque as pessoas vão assumindo, e a gente tem uma lógica na educação infantil de muito assistencialismo. Tudo se dá um jeitinho, eu digo para as pessoas: você ganhou o céu, mas não potencializou a autonomia de ninguém nessa história. Então a gente precisa de uma aproximação com a assistência social, com a saúde, a gente precisa de um diálogo muito próximo com o conselho tutelar que é com quem a escola fala mais frequentemente. É quando ela tem a sensação de perder o controle das coisas. Mas ainda é uma relação muito delicada. A gente saiu de uma época de medo, quando você falava em uma escola que ia chamar o conselho tutelar, você quase apanhava. Uma vez, uma colega falou que suspeitava que aquela criança tivesse sofrido abuso, e volta e meia tinha essa fala, um dia eu falei em uma reunião vamos fazer uma notificação ao conselho tutelar. Eles quase me bateram. Então não diga que é suspeita, façam alguma coisa. Depois teve uma fase de descrédito: ai chamar pra quê? As pessoas riam de você na escola. Hoje isso mudou. Mas, ainda está 286 muito corroída essa relação, essa conversa. Agora quando a gente consegue uma conversa boa, é um grande parceiro. Eu não estou falando do conselheiro ser um grande parceiro, Essa instância, a existência dela. Porque você tem situações que, eu tive uma maior relação com o conselho na educação especial, quando você tem muita criança que carece de atendimento de avaliações e os pais não levam. O conselho é um possível parceiro interessante. Até como orientador. Mas, ainda são relações que não estão consolidadas (Professora – Coordenadora da Educação Infantil – FME). Particularmente as áreas de educação infantil e a de educação especial convergem para uma necessidade de trabalho intersetorial, conforme os relatos apontam, pelo próprio perfil do público atendido e da área que envolve no âmbito educacional o enfrentamento da falta de acesso à educação, do direito à educação escolarizada em níveis que não estão ainda universalizados ou que ainda não contam com serviços de qualidade. Neste sentido, apesar de terem participado do seminário de lançamento da Ação Intersetorial, observamos que o sentido que a ação ganha nas práticas cotidianas não se esgota naquela experiência, revelando outros percursos que a educação vem realizando. Nessas duas áreas em especial à articulação com os Conselhos Tutelares e os Conselhos de Direitos, tanto o da Criança e do Adolescente (CMDCA) quanto o de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (COMPEDE), fazem parte das ações intersetoriais no âmbito dessas coordenações. Bom, a partir de 2005, essa também foi uma outra ação muito interessante dessa gestão administrativa, foi oficializar a ação intersetorial no município. Eu acho esta ação fundamental para qualquer gestão política, é uma política pública necessária trabalhar com a intersetorialidade, inclusive esse é um aspecto que eu venho estudando no meu doutorado também, então fiquei muito feliz quando a gente foi convidada pelo grupo da intersetorialidade para estar fazendo parte. Por quê? Porque você não tem condição de trabalhar hoje com a diversidade e com a inclusão de pessoas com deficiência, e eu estou falando de pessoas com deficiência, porque a inclusão é para todos, mas aí eu estou nesse lugar e todos falando especificamente das pessoas com deficiência. Não vejo condição de um sistema educacional hoje que vai receber alunos com deficiência, como nós estamos recebendo aqui com gravíssimos comprometimentos em conseqüência da deficiência, se a gente não tiver uma ação intersetorial com a saúde e com a assistência social para começar. Porque eu colocaria nesse tripé, hoje, o trabalho. Mas a gente começa a dize: mas tem outras importantíssimas como a questão da justiça, questão do lazer e da cultura, e dos esportes. A 287 intersetorialidade que hoje a gente tem uma ação muito afinada e que precisa ser consolidada, mais ainda envolvendo a educação, saúde e assistência social. Essa já é um grande passo, por tudo, por várias razões. Primeiro pela natureza do alunado que a gente recebe, a escola pública é maciçamente de classes populares. Ainda que hoje a secretaria municipal de educação de Niterói esteja recebendo maciçamente famílias de classes mais favorecidas, porque não encontram outra escola que ofereça esse tipo de educação para os seus filhos, ainda é um percentual muito pequeno em relação à demanda que nós temos de crianças com deficiência das classes populares. E você sabe, há uma relação muito direta entre pobreza e deficiência. Então a ação da intersetorialidade é fundamental, a gente não pode trabalhar com essas famílias se a gente não tiver um aparato da assistência social, no sentido de nos trazer informações sobre a realidade social dessas famílias, então é esse profissional que em primeiro plano traria pra gente (Professora Coordenadora da Educação Especial - FME). O encontro da educação com a cidade não se constitui em um processo isento de tensões e traumas, não podendo ser interpretado como um caminho linear. Parte dele foi trilhado como decorrência da capacidade de uma rede nova e profundamente marcada pela necessidade de verter-se em alternativa de democratização do acesso à educação escolarizada no município. Uma rede que em pouco tempo viveu alternâncias de poder e de concepções de educação tão diferenciadas, sendo capaz de construir nesse percurso, tão caro à nossa cultura política, as angústias da descontinuidade das ações públicas. Imprimiu-se nesse contexto marcas que a fizeram sobressair no cenário regional, incluindo a educação no elenco das políticas que dão visibilidade externa à cidade enquanto padecem de visibilidade interna para suas próprias necessidades. Uma rede que se sentiu fortalecida e ameaçada pelas gestões com forte apelo acadêmico e que foi desafiada a sair de seus espaços tensos e problemáticos, mas familiares, para outros mais tensos e muito pouco familiares. A Ação Intersetorial teve na educação um de seus pilares, permitindoa se confrontar com as demais políticas e profissionais e perceber-se, a partir do outro, na construção de propostas coletivas ambiciosas e, ao mesmo tempo, próximas do desejo de construir uma cidade efetivamente educadora. A experiência da intersetorialidade possibilitou para alguns profissionais da 288 área de educação, seja na Ação Intersetorial ou nos diálogos intersetoriais forjados nas rotinas das coordenações e de algumas escolas, acenar para a construção de uma nova territorialidade não só da educação, mas das políticas públicas. Eu não vejo um projeto claro de ação em conjunto das três ou das várias outras áreas, porque nós estamos pensando intersetorial na área de assistência, saúde e educação, mas, por exemplo, no que tange a política da pessoa com deficiência nós temos de pensar no urbanismo, na questão do fim das barreiras arquitetônicas, nós temos que pensar na questão do transporte na adaptação dos ônibus. Então, intersetorial não pode ser pensando somente entre a saúde, assistência e educação, tem de ser pensada intersetorial mesmo. Por isso os conselhos podem dar uma ajuda muito interessante dentro dessa discussão de intersetorialidade, porque corre o risco de ficarmos no “intersetorial” entendendo apenas saúde, educação e assistência. Ou a gente pensa de uma maneira transversal o governo com as equipes, e ai tem essa questão do ambiente, de uma série de coisas, ou então a gente não vai ter intersetorialidade, vai ter nichos de políticas envolvendo grupos apenas (Professor da Coordenação de Educação e Saúde – Território de Itaipú – Leste-Oeste). A experiência de intersetorialidade, tomando particularmente a área de educação, não envolveu o conjunto de seus profissionais e talvez não tenha atingido as escolas em proporções semelhantes, mas inegavelmente representou com interessante confronto entre o desejo e a formalização da concepção de Cidade Educadora e as condições objetivas de sua efetivação. Representou um importante exercício de construção que ultrapassou o plano dos discursos. 3.4- As infâncias que se forjam entre as políticas e as redes na cidade. Tomando a infância como uma produção histórica, socialmente construída a partir de relações concretas em uma sociedade, os modos como os serviços estão organizados, como foram pensados e de fato são implementados na área da infância representam um aspecto importante para a compreensão dessa produção. Da mesma forma, as práticas profissionais, as ações políticas e as mobilizações sociais emprestam significativa 289 contribuição nesta direção. De quais infâncias podemos falar na cidade de Niterói considerando suas redes? Podemos pensar, a partir das dinâmicas das políticas públicas e das redes sociais, em uma infância da política na cidade? As interrogações sobre a produção social da infância em Niterói levaram a consideração de como que em torno das políticas públicas, a partir de seus relacionamentos com a sociedade civil e a sociedade política, foram forjadas ações intersetoriais e redes que ora estiveram próximas ora distantes, tecendo as tramas da esfera da reprodução social na cidade. Quando examinamos as particularidades da área de educação em relação às formas como a infância vem sendo pensada e socialmente construída na cidade a educação infantil ganha, inegavelmente, maior destaque. Para além dos aspectos mais evidentes, concernentes ao fato de que se trata do nível da educação escolarizada diretamente voltado para esta categoria social, ressaltamos a trajetória construída no âmbito da política de educação como produtora de dispositivos que ilustram as tensões e os desafios que envolvem as diferentes práticas sociais e pedagógicas em relação a este universo. Constatamos que as discussões e os debates sobre a educação infantil produziram importantes sistematizações como as que resultaram do encontro “Niterói pensando a educação dos pequenos” e as que constam no documento “Educação Infantil- Subsídios para o Plano Municipal de Educação de Niterói”, na “Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação de Niterói – Escola de Cidadania” e nas metas para a Educação Infantil do “Plano Municipal de Educação”. A análise documental revelou entre as práticas e os discursos governamentais um esforço voltado para o reconhecimento de uma infância plena de direitos, para a qual a educação é ao mesmo tempo expressão e forma de alcance. Uma educação que valoriza e se apóia sobre o princípio da cidadania tem como pressuposto o acesso à educação escolarizada desde os primeiros anos de vida e, neste sentido, o grande desafio da educação infantil em Niterói é o de assegurar esta condição (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE 290 NITERÓI, 2003). Para tanto, é preciso lidar com as próprias contradições de sua rede. Ao recuperarem as discussões do Encontro Municipal “Niterói Pensando a Educação dos Pequenos” nos textos temáticos relativos aos encontros preparatórios para o Plano Municipal de Educação três professoras da rede municipal produziram uma reflexão provocativa sobre a educação infantil na cidade afirmando que ela ainda é “muito nova para alguns avanços e velha para batalhas ainda não ganhas” e que se encontra em um “momento transitório de um ritual de passagem onde os vários momentos da história da educação infantil ocorrem numa mesma rede pública e no mesmo tempo histórico (SANTOS, GARCIA e SOUZA, 2003: 19). A tripla composição da rede municipal assentada em unidades com perfis e vínculos institucionais tão diferenciados como as UMEIs, as unidades do Programa Criança na Creche e aquelas vinculadas à área da assistência é reveladora de que o esforço de ampliação do acesso à educação infantil é parte de um quebra-cabeça político, pedagógico e social complexo para aqueles que se encontram envolvidos com a área, em particular, para os gestores da área de educação. Nos encontros preparatórios para o Plano Municipal de Educação, realizado em 2003, a temática da educação infantil foi abordada por vários professores da rede, cujas reflexões foram sistematizadas e compuseram o caderno contendo os “Subsídios para o Plano Municipal de Educação de Niterói – Educação Infantil”. As contribuições levantadas para se pensar os desafios desta área além de apontarem para a pluralidade da rede, tomada em sua trajetória vinculada à educação, à assistência e ao movimento comunitário na cidade, sinalizaram dois aspectos bastante importantes: a garantia de que de fato os recursos do FUNDEB fossem assegurados para a formação de professores e melhoria da infraestrutura de trabalho e o necessário estabelecimento de uma ação integrada entre diversas secretarias, no sentido de se garantir uma “Política Pública Intersetorial” (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI, 2003). 291 A afirmação de uma infância cidadã do ponto de vista da educação tem, portanto, um caminho a ser percorrido no que diz respeito tanto à ampliação do acesso quanto em relação à forma como ele se dará. Esta trajetória teve nas discussões da I Conferência Municipal de Educação de Niterói, realizada entre 19 e 21 de outubro de 2007, e na aprovação do Plano Municipal de Educação em 31 de outubro de 2008, um ano depois, marcos importantes. A primeira afirmação que o Plano apresenta é o reconhecimento de Niterói como Cidade Educadora e a valorização, neste sentido, da intersetorialidade, uma referência central para a proposição de metas referentes aos 07 itens que compõem o documento: I- Educação Básica; 1Níveis de Ensino (1.1- Educação Infantil; 1.2- Ensino Fundamental; 1.3Ensino médio e Educação Profissional); 2- Modalidades de Ensino (2.1Educação de Jovens e Adultos e 2.2- Educação Especial); II- Educação Superior; III- Formação e Valorização dos Profissionais da Educação; IVGestão da Educação e Sistema Municipal de Ensino; V- Financiamento da Educação; VI- Acompanhamento e Avaliação do Plano; VII- Cidade Educadora: Diversidade, Intersetorialidade e Transversalidade (1- Educação Ambiental; 2- Educação e Relações Étnico-Raciais; 3- Educação e Prevenção; 4- Educação e Saúde; 5- Educação e Diversidade de Gênero; 6Educação e Cultura; 7- Educação e Comunicação; 8- Educação Digital). No tocante à educação infantil o plano estabelece 14 metas e 22 ações a serem alcançadas desde a vigência do plano até o prazo máximo de 10 anos, conforme consta da tabela que se segue. QUADRO VII Metas, Ações e Prazos relativos à Educação Infantil no Plano Municipal de Educação de Niterói. Metas 1. Ampliar a oferta de Educação Infantil, de forma a atender 100% das crianças de 0 a 3 anos e 100% das crianças de 4 e 5 anos. Ações 1. Expansão do número de matrículas na Educação Infantil no Sistema Municipal de Educação de Niterói, respeitando o número de alunos por Pr. A 292 2. Adequar as Unidades de Educação Infantil, do Sistema Municipal de Ensino de Niterói, a padrões mínimos de infra-estrutura que assegurem o atendimento Às características das distintas faixas etárias e às necessidades do processo educativo, visando estabelecer um ambiente social e inclusivo acolhedor. 3. Autorizar o funcionamento de Unidades de Educação Infantil, públicas e privadas, que atendam ao disposto na legislação vigente. 4. Fiscalizar e fazer cumprir a legislação da Educação Infantil do Sistema Municipal de Ensino. 5. Garantir que o exercício docente, em cada grupo de alunos nos turnos de funcionamento da Unidade de Educação Infantil, seja realizado pro professor habilitado. 6. Garantir, por parte do Poder Público Municipal, a alimentação escolar com equilíbrio nutricional para as crianças atendidas nas Unidades Educacionais da Rede Municipal de Educação e nas instituições conveniadas. 7. Mapear as demandas e as ofertas existentes na Cidade em Educação Infantil com a finalidade de proteger os índices anuais de atendimento, de modo a alcançar a meta 1. 8. Atingir o atendimento em tempo integral na Educação Infantil, em pelo menos 60% dos alunos de 0 a 5 anos. turma, de acordo com a legislação em vigor. 2. Fiscalização e acompanhamento das atividades das Unidades de Educação Infantil públicas e privadas, pelo Poder Público, incluindo o Conselho Municipal de Educação, com base na legislação vigente. 3.1. Autorização de funcionamento de Unidades de Educação Infantil, nos termos da Lei. 3.2. Acompanhamento e assessoramento, pelo Poder Público, dos estabelecimentos de Educação Infantil, visando sua regularização. 4. Consolidação do credenciamento de todas as Unidades de Educação Infantil na Cidade. 5- Fiscalização de acordo com a legislação vigente. C F F F 6. Aquisição, fornecimento e supervisão de merenda escolar sob a responsabilidade do Município, através de profissional habilitado, com a supervisão do Conselho de Alimentação Escolar. E 7.1. Realização de um censo educacional, mapeando demandas e ofertas da Educação Infantil na Cidade. 7.2. Organização e atualização anual de um sistema de informações sobre o atendimento à Educação Infantil no município. 8.1. Promoção de debates sobre a importância da educação em tempo integral, com a participação da comunidade escolar. D B 293 9. Municipalizar as Educação Infantil. Unidades estaduais de 10. Mobilizar a sociedade e ampliar os espaços de discussão e de ação voltados para a educação das crianças de 0 a 5 anos. 11. Garantir em todas as Unidades de Educação Infantil, do Sistema Municipal de Ensino, o horário de planejamento e estudo semanal incluído na carga horária contratada do professor. 12. Assegurar, em todas as Unidades de Educação Infantil, a presença de profissional formado em pedagogia para exercer a coordenação pedagógica. 8.2. Adoção de estratégias que possibilitem este atendimento. 9. Ampliação dos canais de diálogo entre Município e Estado para que se promovam as condições necessárias à municipalização, sem perda de qualidade do trabalho pedagógico e sem prejuízo aos profissionais, alunos e suas famílias. 10.1. Implementação de uma política intersetorial entre os órgãos públicos. 10.2. Mobilização dos diferentes sujeitos envolvidos na educação infantil, instituições públicas e privadas, Conselhos municipais e sociedade civil, com vistas ao melhor atendimento à infância e à ampliação do debate. 10.3. Implementação e fortalecimento do Fórum de Educação Infantil de Niterói. 11.1. Regulamentação da meta pelo Conselho Municipal de Educação de Niterói. 11.2. Fiscalização, conforme legislação vigente 12.1. Contratação de pedagogo para as escolas públicas através de concurso público. F E E G E F 294 13. Implementar programa de formação em serviço, no Sistema Municipal de Educação, que contemple as duas dimensões do atendimento à criança de 0 a 5 anos: o cuidar e o educar. 13.1. Articulação e parceria E com as Instituições de Ensino Superior para a execução e o acompanhamento dos programas de formação em serviço, voltados aos profissionais de educação infantil. 13.2. Criação, no Sistema Municipal de Educação, de programas de dos profissionais da educação, a serem prioritariamente desenvolvidos como formação em serviço. 14. Extinguir, progressivamente, os cargos de 14.1. Fiscalização E monitor, atendente, agente educador infantil, entre conforme a legislação em outros, no âmbito do Sistema Municipal de vigor. Educação, mesmo que ocupados por profissionais 14.2.Transferência dos concursados em outras secretarias ou na secretaria servidores públicos para o de educação, em conformidade com a Política quadro suplementar sem Nacional de Educação Infantil. perda ou prejuízo do trabalhador. Legenda relativa ao prazo: (A) 10 anos; (B) 5 anos; (C) 3 anos; (D) 2 anos; (E) A partir da vigência do Plano; (F) De acordo com a legislação em vigor e (G) Permanente. Fonte: Plano Municipal de Educação de Niterói (PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI, 2008). Observamos que as metas elencadas dizem respeito: à ampliação, adequação e autorização de funcionamento das unidades educacionais, às suas condições de funcionamento e fiscalização e aos processos de avaliação e investigação da educação infantil. Contudo, ao longo desses três grupos de metas alguns aspectos merecem maior atenção. O primeiro deles diz respeito ao fato de que entre a proposta que subsidiou o debate e o que foi de fato aprovado, algumas alterações foram bastante significativas e ilustram as tensões presentes na relação entre o poder público e a esfera privada. Na proposta inicial no prazo de 10 anos não se teria alcançado a universalização da oferta de educação infantil para as crianças, seja na faixa de 0 a 3 anos de idade, cuja meta era de 50%, seja na de 4 e 5 anos, cuja meta já é um pouco mais ambiciosa, de 80%. No Plano os dois percentuais sobem para 100%, contudo, em uma cidade com a forte presença do ensino privado – não necessariamente o empresarial, mas também o filantrópico e o 295 não-governamental – em que pese o estabelecimento da meta da universalização do acesso, não foi definido o percentual de participação da educação pública, referindo-se genericamente ao Sistema Municipal de Educação que engloba o conjunto das instituições de educação infantil privadas, conforme consta da LDB. Vale destacar que na proposta que serviu de base para a discussão do plano na meta relativa à mobilização da sociedade para o atendimento em educação infantil (meta 10) uma das ações previstas era o fomento às “parcerias” com as instituições privadas, alterada para a “mobilização de diferentes sujeitos” e passando a incluir o Conselho Municipal e a sociedade civil, o que desloca a ênfase do atendimento para o do controle social. Portanto, não é possível afirmar, neste sentido, que a educação infantil pública municipal almeje ultrapassar a sua feição de educação voltada para os segmentos populares a partir da universalização do acesso, em razão de que não se qualificou quanto o poder público responderá por esse investimento e nem de que forma. Um segundo aspecto que vale destacar, nesta mesma direção, é a ausência completa de referências ao Programa Criança na Creche. As metas e ações não se referem ao futuro do programa, não indicando nem sua incorporação à rede e nem seu significado e peso nos processos de ampliação e consolidação da educação infantil no município. Acreditamos que essa ausência não seja casual e expressa as dificuldades políticas e pedagógicas dos diferentes níveis e instâncias da gestão municipal em lidar com a ambigüidade de um programa que de fato expressa uma conquista social, mas cuja permanência e expansão ferem o princípio da responsabilidade pública da educação municipal para com este nível de educação, como ilustra tanto a fala da Coordenadora da Educação Infantil da FME como da Coordenadora do Programa Criança na Creche. A gente tem, na verdade a rede privada, as confessionais e as com fins lucrativos que são acompanhados pela COESE, que tem uma portaria que as regulamenta. E você tem dentro da rede municipal as públicas e as do Programa Criança na Creche. Eu confesso que isso pra 296 mim é uma conversa com a qual eu estou muito entalada: essa conversa de que não só com Niterói porque é política do Governo Federal. A gente tem o programa criança na creche e tem a política de convênio, que tem um dado importante nessa gestão que foi o de orientar e regulamentar essa forma de convênio. Isso sem dívida é um mérito dessa gestão. Embora se dependesse de mim não tinha convênio, que é igual a universalização já. Você tem a história do convênio já desde um bom tempo. E aí você tem, ate uma coisa que aconteceu no encontro do MEC que eu fui participar de uma discussão sobre isso. Você não pode desmerecer a luta, das associações de moradores, nos aos 70 pelas creches comunitárias, na Rocinha. Isso tem um valor incontestável. Só que a gente não pode pensar sobre ele e ficar quieto. Nos anos 70 as pessoas foram heróicas, mas a gente tem que ir para além disso. Eu não posso fazer uma escultura a seu louvor e não andar além do que você andou. Só que aí a gente vem em um momento, pelo qual que nesse país a gente já brigou um bocado e há muito tempo vem brigando, por verba pública para escola pública. E aí quando eu falo que o PT não é mais o mesmo, eu falo isso com muita tranqüilidade, porque eu não sou filiada ao PT, mas sou petista desde fundação, panfletei muito, militei muito, andei muito com bandeira. Tenho muita autoridade para fazer a crítica e estou dentro do governo hoje. Sei que as mudanças que ocorreram no próprio partido, por várias razões, inclusive, para chegar ao poder. E aí está tudo bem!? Não dá para ser a vida inteira oposição, é muito cômodo, não dá mais para falar que só o outro está errado. Tem que ir lá mostrar como que se faz. Mas paga-se um preço. E esse preço foi uma acomodação do partido a uma política neoliberal. Eu não tinha a menor expectativa de que o governo do Lula fosse um governo Petista, naquilo que a gente sonhou. Eu não esperava o socialismo no dia seguinte. Mas assinou e deu cumprimento a todos os compromissos políticos assinados, porque há compromissos políticos nisso. Porque se você não atende aos acordos na hora do financiamento não é liberado. É assim que funcionam as relações internacionais, tem os tratados daqui e dali. Então, o governo Lula vem dando conta direitinho desse projeto. E a LDB, deixa margens para isso, todas as orientações, todas as legislações dão margem para isso, das relações em público e privado. Permitindo o financiamento público da escola privada. E aí o que é hoje o financiamento da creche comunitária? É o público no privado porque todas as igrejas podem montar uma creche. Ótimo, monta com seu dizimo. Mas, Niterói já tinha essa prática, que é diferente daquele movimento dos anos 70, e um outro contexto. Mas se não me engano começou no governo Jorge Roberto Silveira, na primeira gestão de Godofredo há um incremento e nessa gestão também. O que acontece é que nessa gestão o projeto estava vinculado ao gabinete do prefeito, aí o Waldeck consegue trazer para a FME, então o Programa Criança na Creche passa a estar vinculado à FME (Professora – Coordenadora Educação Infantil – FME). As conquista sociais aqui referidas e contextualizadas em seu tempo histórico não devem ser negadas, mas a realidade dos próprios movimentos comunitários se modificou bastante e travar esse debate tem sido muito difícil e conflituoso para aquele que estão nos espaços de coordenação de 297 estruturas tão diferenciadas e que podem, em última instância, levar a uma duplicidade cada vez maior da rede de educação infantil no município se não consideradas as reais diferenças dessas unidades, não apenas em relação à rede pública, mas no interior do próprio Programa Criança na Creche cujos vínculos institucionais e comunitários implicam em relações são profundamente delicadas. Por exemplo, as instituições religiosas. Eu sempre alertava para que elas não levem... - aí é que se dava o conflito - é uma tendência de fazer daquela creche uma extensão de sua filosofia. Isso é muito difícil de você controlar. Tem que ser uma gestão que se comece no início, que diga que aquilo não é delas e que elas não podem dar um caráter pessoal de filosofia religiosa porque as instituições filantrópicas usam a creche sim para angariar mais pessoas sim para suas religiões e mais doações para suas instituições. Tranqüilo! E se o programa não estiver atento isso vai acontecer mesmo. E nas associações de moradores não, por quê?! As mães brigam e cuidam das creches e elas não deixam que os conflitos da comunidade, e nem a própria comunidade mesmo que ela esteja dentro de uma área de risco e de tráfico. Quer ver, há dois meses foi assaltada a creche do morro do Ingá: Palácio. Olha só, muita coragem dos meninos que assaltaram, foram pegos no mesmo dia. Tiveram que devolver tudo. Porque os filhos deles estudam. As mulheres deles trabalham lá. A creche comunitária é um tesouro da comunidade tem que não tem conflito que chegue perto. Porque mesmo que seja em área de risco eles cuidam (Coordenadora do Programa Criança na Creche). O terceiro aspecto está relacionado com o processo de municipalização da rede estadual que revela a tendência de reconhecimento da prerrogativa do município quanto à oferta desse nível de ensino. Em relação ao último aspecto que desejamos sublinhar, e que envolve as metas e ações que procuram estabelecer parâmetros comuns no que tange às coordenações pedagógicas, contratação de professores e adoção da proposta de tempo integral, numa clara preocupação com a garantia das condições de desenvolvimento pedagógico das unidades independentemente de sua natureza institucional, houve uma significativa alteração entre a proposta e o que foi aprovado no plano. Na meta número 12 que trata de assegurar nas unidades de educação infantil a presença de profissional formado em pedagogia, havia na proposta inicial uma meta que 298 previa a “adoção de procedimentos padronizados, nas instituições particulares, para a contratação de pedagogos” e que não consta do Plano aprovado. As metas 13 e 14 não constavam da proposta e só aparecem no Plano, resultado, neste caso, diferentemente do que ocorreu com a meta 12, do reconhecimento dos esforços empreendidos pelos profissionais da FME de valorização das relações e condições de trabalho no campo da educação infantil considerando-se a particularidade da rede pública. A Coordenação de Educação Infantil da FME, sobretudo a partir das ações de capacitação e de acompanhamento pelas equipes de referência, tem procurado garantir que as ações desenvolvidas tanto nas UMEIs quanto nas unidades do Programa Criança da Creche tenham as mesmas diretrizes para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. As referências contidas no plano quanto à presença de um coordenador pedagógico com formação específica e às condições de trabalho já constituem parte do trabalho realizado por esta coordenação ou das ações de assessoria e acompanhamento da equipe do PCC. Esforço que busca diminuir as distâncias entre as duas modalidades de inserção na rede municipal, mas que não equaciona suas diferenças. Durante o processo de entrevista nos chamou a atenção a composição das equipes que atuam nas unidades de educação infantil formada por professores e pelo agente educador infantil, neste caso, trabalhadores que atuam nessas unidades sem possuírem formação específica, conforme determina a LDB, o que justifica a incorporação da meta 14 no Plano Municipal de Educação na parte referente à educação infantil. Esse quadro está presente nos dois tipos de unidade, contudo trata-se de um quadro em extinção na FME, enquanto que constitui um grupo com forte presença nas creches comunitárias. As diferenças não se restringem ao aspecto quantitativo, elas ganham visibilidade por representarem uma divisão social e técnica do trabalho que dicotomiza “o educar e o cuidar na educação infantil”. Se meu aluno precisa de ajuda para comer, ele não come sozinho por alguma razão, pela idade ou por alguma questão mais 299 especifica. Eu sou professora dele, eu o ajudo, não vou ficar esperando que alguém chegue para fazer isso. Bom, mas quando a rede assume essa escola com essa estrutura, em horário integral ela está assumindo essa divisão. O cuidar é do agente. Então a gente vem amadurecendo dessa discussão, essa combinação teve um papel muito importante. Ainda na gestão do professor Waldeck e com o professor Armando isso se intensifica, em 2005 e 2006, de que se não há distinção entre o educar e cuidar, então você não tem que ter professor em um horário e o agente no outro, você tem que ter educadores o dia inteiro e o cuidar é nosso, é meu e é seu. E o educar também. Então a gente vem em uma discussão de que, alias não é só na educação infantil não, de que todo profissional quando passa pelo portão de uma escola ele é educador; a merendeira é educadora, o servente é educador o porteiro é educador. Ele não é professor, mas ele está sempre em um ato educativo (Professora Coordenadora da Educação Infantil – FME). Essa concepção que se deseja imprimir ao trabalho em todas as unidades, segundo a ilustração feita pela Coordenadora da Educação Infantil da FME, esbarra em condições políticas e institucionais que não são facilmente superáveis. Nesta direção, a ausência de referências quanto ao Programa Criança na Creche constitui em mais um obstáculo para o reconhecimento da cidadania da infância em função de que processos de trabalhos diferenciados em relação a essa dimensão pedagógica apontam, invariavelmente, para resultados bem distintos. Outros itens do Plano Municipal de Educação também fazem referências à infância, como nas metas de “ampliação dos programas de prevenção ao uso e abuso de álcool e outras drogas nas escolas desde a Educação Infantil” e de “promoção de ações intersetoriais, no âmbito do esporte, cultura, lazer e educação, com vistas ao atendimento integral às crianças, aos jovens e aos adultos da Cidade”. Em relação ao ensino fundamental destacamos as seguintes metas: “universalizar, com qualidade socialmente referenciada, o atendimento de todos os alunos do Ensino Fundamental do Município, garantindo o acesso, a permanência e o sucesso escolar de todas as crianças (no período de 6 anos)”; “reduzir, gradativamente, o índice de repetência e evasão escolar no Ensino Fundamental, a partir de políticas públicas comprometidas com a universalização do Ensino Fundamental”; “atingir o atendimento integral no 300 ensino fundamental da Rede Municipal de Educação, em pelo menos, 10% das unidades escolares (10 anos)71”; e “municipalizar o atendimento dos anos iniciais do Ensino Fundamental (de acordo com a legislação vigente)”, que ao apontarem para a municipalização da educação em vários níveis, para a articulação intersetorial e para o estabelecimento de ações de enfrentamento daqueles problemas que possam ferir o direito à educação de qualidade, evidenciando a coesão do Plano em termos da afirmação da condição de Cidade Educadora. Muito embora algumas delas não explicitem qual será o peso da rede pública municipal no processo de universalização do acesso à educação. Considerando as particularidades que decorrem da presença do ensino privado na cidade, em toda a sua diversificada composição, a infância que o poder público deseja produzir a partir da educação sugere que ela não se sustente em diferenciações significativas do ponto de vista das orientações políticas e pedagógicas contidas no Plano, mesmo que genericamente apontadas. Porém, ao não indicar qualquer alteração em relação às formas de ingresso, a educação infantil, de certo modo, se inscreve nos processos de diferenciação das classes e suas frações pela via da educação. Cabe destacar que o plano se refere à educação na cidade, não apenas à educação pública, regulando, assim, parâmetros que servem para todas as instituições educacionais independentemente de sua natureza jurídica. Conforme já sublinhamos as diferenças no interior da educação infantil são mais perceptíveis se compararmos as condições de trabalho e institucionais entre as UMEIs e as creches comunitárias. Mas a parcela da educação infantil que se expande a passos largos na cidade é a que está vinculada à rede privada, que mercantiliza os serviços educacionais. Embora as sua instalações físicas possam, em grande parte e em vários itens, superarem as das unidades públicas e comunitárias o mesmo nem sempre ocorre em relação às preocupações pedagógicas. A ênfase na educação 71 Na proposta inicial esse percentual era de 30%. 301 infantil na esfera pública, correta e necessária, não deve representar um descuido ou uma desatenção com o que se passa nas unidades privadas. Ocorre que o acompanhamento das unidades de educação infantil é realizado por instâncias distintas dentro da FME, a Coordenação de Educação Infantil é responsável pelas UMEIs, o Programa Criança na Creche pelas creches comunitárias e a Coordenação de Estudo e Supervisão Escolar (COESE) pelo acompanhamento das unidades privadas, cuja autorização de funcionamento depende da aprovação do Conselho Municipal de Educação, o que por vezes dificulta um maior controle social sobre as condições de desenvolvimento do conjunto das unidades. Para uma das professoras que atua na COESE os estabelecimentos privados no campo da educação infantil são hoje merecedores de uma atenção especial em razão de não cumprirem todas as exigências necessárias à garantia de uma educação de qualidade. Sua reflexão subverte a tradicional lógica da relação da escola pública com os Conselhos Tutelares ao propor um viés de relacionamento que aponta para a função de zelar pelas políticas dirigidas à infância, interrogando sobre as condições desse tipo de oferta. E outra coisa, na privada existe o cunho comercial, então eles não tem a preocupação com a educação, com o trabalho pedagógico, com o bem-estar, com a sensibilização em relação à educação infantil nesse atendimento. Eles têm preocupação é com maior lucro e com menor custo, então você vê coisas absurdas. Então, o que eu vejo atualmente, você precisa cada vez mais articular isso. Acho que o conselho tutelar, com todas as críticas que todo mundo pode falar e colocar, mas foi uma coisa bem bolada que criaram, existe o antes do conselho tutelar e o depois do conselho tutelar, na escola eu vejo isso nitidamente, qualquer dúvida que eu tenha aonde que eu iria? Ele facilita, ele articula, ele envolve o ministério público, ele envolve, por exemplo, a assistência social, ele é um articulador, ele vai fazer visita. Lógico, têm conselheiros e conselheiros. Eu tive experiências com excelentes conselheiros, companheiros, pessoas que eram coerentes, equilibradas e que estavam buscando o bem-estar daquela criança e daquele adolescente, outros não. Agora, o conselho tutelar não é uma conquista política? Não é um voto? Você não vota como teu representante? Então, a gente tem que aprender a participar e a votar. Essa é a sensação que eu tenho. Acho isso. (Professora da Coordenação de Estudo e Supervisão Escolar - FME). 302 Outra meta presente no Plano relativa à infância diz respeito à garantia de que crianças e adolescentes hospitalizados tenham o direito à educação. Trata-se da continuidade e ampliação das ações do programa de pedagogia hospitalar que são desenvolvidas pela Coordenação de Educação e Saúde. Essas ações ganharam destaque na última gestão e foram sistematizadas em uma publicação organizada pela própria equipe e da qual extraímos um trecho que aponta de forma bem clara a relação entre a concepção que orienta esse campo de ação e as condições em que de fato se efetiva. A criança internada em uma unidade hospitalar está temporariamente distante do seu grupo escolar e origem, mas não deixou de ser sujeito de conhecimento. A escola no hospital, portanto deve garantir que essa criança dê continuidade ao processo de construção de conhecimento e reestruture seu vínculo com sua escola de origem, levando em conta sua nova condição. Quando a escola de origem de cada estudante internado concebe um currículo em que diversas temáticas são discutidas para além das ações pontuais e das disciplinas específicas, sua relação com a escola do hospital será mais fácil. Não haverá uma ruptura tão grande no modo de operar este currículo entre as duas escolas. Todavia, o que ocorre de fato é que há uma ruptura em função da lógica fragmentária que ainda regula a construção curricular da escola tradicional (AROSA, RIBEIRO e SARDINHA, 2008: 57) A proposta da pedagogia hospitalar surgiu no bojo das práticas e preocupações da Coordenação de Educação e Saúde com a intersetorialidade. Integra, portanto, o conjunto das ações que passaram a representar um movimento de aproximação da educação em relação à cidade, às demais políticas e instituições públicas. Neste caso, em particular, trata-se de uma aproximação que, preocupada com a fragmentação da realidade social, se propõe a enfrentar a fragmentação do processo de aprendizado acirrada pelas condições de adoecimento das crianças e adolescentes. Aponta, portanto, para uma perspectiva de compreensão da infância em suas múltiplas dimensões, não apenas a educacional, mas envolvendo a saúde e outras áreas. O depoimento que se segue é bastante 303 sugestivo de como se deu o percurso construído pela equipe nos diferentes relacionamentos institucionais e profissionais que a intersetorialidade requer. Assim ao ser argüida se identificava avanços no campo das políticas dirigidas à infância na cidade a resposta de nossa entrevistada foi positiva, em particular na relação entre a educação e a saúde. Percebo. As campanhas de vacinação, uma série de indicativos assim, eu estou dentro de um hospital pediátrico, dentro do programa de pedagogia hospitalar, o maior índice de crianças internadas são de crianças pequenas, quanto menor a idade maior o número de internações, eles têm até uma correlação, a criança mais velha fica menos doente. Então você vê toda uma proposta de humanização dos staffs e legislações botando a obrigação de brinquedoteca, a própria escolarização da criança internada e a questão da mãe acompanhando a criança. Isso é coisa recente. Eu lembro que quando eu cheguei no Getulinho, em 1972, há dez anos atrás, eu fui fazer uma festa no berçário e foi um problema. O Serviço Social brecou de se fazer festa de aniversário da criança internada. Hoje em dia se a gente não fizer o movimento eles estranham: “ué, não vai ter nada não, não é aniversário de fulano?”. Entende?! Isso mostra um movimento que é maior e no qual a gente está envolvida. E um movimento que é local. Hoje a gente vê o Getulinho muito mais preocupado com essa criança do que com a doença (Membro do Colegiado Intersetorial e da Coordenação de Educação e Saúde). O enfoque na criança, apontado acima como uma mudança na cultura institucional, tem sido um traço marcante na trajetória da educação pública na cidade. Tivemos a oportunidade de observar esta preocupação tanto nas narrativas dos professores e coordenadores da FME quanto nos documentos institucionais. Ela está presente não só na educação infantil, mas também na pedagogia hospitalar, na educação especial e no ensino fundamental. Um dos elementos justificadores, segundo nossa percepção, dessa tendência está relacionado ao investimento realizado no município, com todas as suas tensões e divergências, em relação à adoção do sistema de ciclos. Ao propor romper com o padrão da seriação a rede municipal deflagrou uma série de eventos e debates que subsidiassem os professores para a discussão e compreensão das mudanças que essa adoção implicaria. Vale sublinhar que 72 Getulinho é o modo como é chamado e conhecido na cidade o Hospital Pediátrico Getúlio Vargas Filho. 304 este esforço contou com a assessoria de um grupo de professores da Faculdade de Educação de Educação da UFF através de um projeto do projeto de extensão universitária “As artes de fazer a educação em ciclos nas escolas da Rede Municipal de Educação de Niterói: memórias e diálogos em processo”, coordenado pela Professora Rejany dos Santos Dominick. A proposta de ciclos tem sido geralmente abordada nos meios de comunicação a partir de elementos muito superficiais e que atendem mais aos interesses de desqualificação da educação pública do que de fato buscar alternativas político-pedagógicas que aproximem a educação da complexidade da dinâmica social que marca de forma bastante acentuada os processos de ensino e aprendizagem na atualidade. A sua inclusão como componente da Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação de Niterói decorre da trajetória de debates que particularizam a dimensão coletiva do esforço de consolidação da educação pública municipal que, com avanços e recuos, tem sedimentado conquistas que sobrevivem à instabilidade decorrente das alternâncias de gestão da política local. A “Proposta Pedagógica da Rede Municipal de Educação de Niterói – Escola de Cidadania” ressalta a importância da organização do sistema de ensino em sintonia com as fases de desenvolvimento humano. Os ciclos de formação se distinguiriam por considerar as fases do desenvolvimento humano uma vez que a construção do conhecimento ocorre de forma diversa em diferentes fases da vida exigindo também práticas diversas. Tal idéia pressupõe uma nova maneira de organização do tempo escolar. Desta forma, a formação inicial dos agrupamentos, no que se refere à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação de Niterói, passam a ser realizadas, predominantemente, de acordo com as fases de desenvolvimento dos alunos: infância, adolescência, juventude e vida adulta. Entendemos, entretanto, que os agrupamentos não podem ser carcereiros do desenvolvimento humano, por isso buscamos flexibilizar as possibilidades de formação dos grupos, reconhecendo que além da idade também será preciso considerar características pessoais, culturais e sociais (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE NITERÓI, 2008: 24) Na proposta a infância é tomada como uma referência para a organização de agrupamentos no âmbito da educação infantil e dos anos 305 iniciais do ensino fundamental. Ainda que em muitas situações cotidianas essa percepção possa não se traduzir em práticas pedagógicas diferenciadas das tradicionais sob a organização seriada, não se pode negar que se trata de uma concepção e proposição que coloca o desafio de pensar o processo educativo em uma abrangência maior, englobando as particularidades das diferentes categorias sociais. Os profissionais da área de educação adquirem a possibilidade de pensar não apenas o sujeito concreto, mas a sua condição histórica, não apenas a educação da criança, mas a educação da e na infância. Ao trazer a infância para o cerne do debate da educação infantil, conforme tem problematizado Sonia Kramer (2006), esse nível de formação, comumente compreendido como uma etapa pré-escolar, preparatória para o ensino fundamental, ganha outra perspectiva, como um momento da sociabilidade humana cuja singularidade repousa sobre formas próprias de ler e interagir com o mundo, forjando um processo de aprendizagem marcadamente imaginativo e criativo. Procura tratar a criança como cidadã de direitos, agente tenta fugir da perspectiva de que a criança é um adulto em miniatura, a gente tem muito clara essa questão, principalmente em relação à educação infantil de que ela é um direito da criança e não só da mãe, no sentido de que precisa trabalhar e deixar essa criança na escola, mas de que a criança naquela faixa etária ela tem direito à educação, ao brincar. A questão do brincar, do cuidar e do educar na educação infantil, ela é muito refletida ainda porque o destaque da educação infantil ele é muito confundido ainda com a questão apenas do cuidado, enquanto a família está ausente. Então esta perspectiva de que a educação infantil ela também é um lugar daquela criança, trazer questões próprias e não de preparação para o ensino fundamental, aquele é um momento de educação ele não é um momento de preparação do vir a ser. (Assistente Social do Núcleo de Educação e Saúde). A cidadania da infância que a educação vem buscando construir como elemento constitutivo da Cidade Educadora tem esbarrado na própria cidadania dos trabalhadores da rede de educação infantil, institucionalmente diferenciada na esfera pública, privada e comunitária. As metas do Plano Municipal de Educação apontam para o enfrentamento parcial dessa realidade ao buscar uma equidade nas formas de organização do trabalho 306 pedagógico, mas não chega a propor nenhuma estratégia de superação do hibridismo da rede, deslocando o perfil popular que sua expansão assumiu enquanto forma de democratização do acesso sob condições históricas específicas a um novo patamar: o de possível limiar da educação infantil municipal numa cidade que produz e reproduz a idéia de que não precisa expandir a educação pública. A infância que a educação contribui para produzir gesta-se, portanto, com as contradições que marcam a constituição e consolidação da rede de educação municipal: afirmando sua cidadania em um amplo leque de processos políticos e pedagógicos e restringindo-a diante dos diferentes contornos privados que limitam a sua ampliação. Contornos que além de não estarem circunscritos ao campo da educação infantil assumem feições diferentes em outros níveis e modalidades da própria educação. Niterói tem se particularizado no campo das políticas públicas, frente aos municípios que compõem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, como uma cidade na qual a rede de serviços privados se destaca pela qualidade dos profissionais e do atendimento, amplitude dos níveis de especialização e pelo grau de articulação com a esfera pública. Não podemos deixar de reiterar que este campo privado é altamente diversificado, composto de instituições filantrópicas, muitas religiosas, mas nem todas, ONGs e instituições de cunho empresarial. Quando destacamos essa percepção, tanto interna quanto externa à cidade, evidentemente restringimos esse campo a um conjunto no qual predominam as instituições filantrópicas que durante décadas oferecem serviços especializados73 na cidade e que já se incorporaram como referências no tipo de atendimento que oferecem, seja para a população em geral como para os profissionais de diferentes áreas. Parte das narrativas dos profissionais entrevistados dá grande destaque a 73 Ao longo do resgate da história da Niterói, no início do presente capítulo, mencionamos algumas destas instituições, criadas entre os anos 1950 e 1970 e que contribuíram, sobretudo, para a consolidação de uma rede filantrópica de atendimento às pessoas com deficiência. Não podemos afirmar que este tipo de expansão chegou a ser responsável pela inibição da criação de redes públicas com a mesma finalidade, mas, provavelmente, sua consolidação foi em muito auxiliada pela ausência de instituições públicas e pela sua progressiva integração à rede pública de serviços sociais. 307 essa rede, evidenciando o seu significado em relação ao alcance da própria qualidade dos serviços públicos. Os programas básicos eu acho que estão muito bem estruturados hoje, é uma unidade que eu poderia dizer que atende muito bem a criança nessa questão dos programas básicos: imunização, puericultura, nós temos acompanhamento aqui dentro da instituição desde a nutricionista, desde terapeuta ocupacional, follow up para acompanhar esse desenvolvimento psicomotor, assistente social, tem uma equipe multidisciplinar de ponta e não tem terapeuta ocupacional por minha causa não quando eu cheguei aqui eles já faziam esse trabalho. Em termos de atendimento à população é referência de toda regional. Nossa regional ela tem esse acompanhamento de crianças que possam vir a apresentar alguns retardos, distúrbios, retardo psicomotor, que às vezes são sanados por aqui mesmo, mas se a coisa não fluir e atingir uma complexidade ou carecer de uma atenção maior, a gente tem também o setor de atendimento conveniado, duas, três conveniada que é AFR, a Pestalozzi e o CEJOP. Se a criança ficou cega tem a Associação dos Cegos. Niterói tem um parque para atendimento à pessoa portadora de deficiência ou de prevenção da deficiência muito bom (Fisioterapeuta Diretor de Policlínica – Território do Centro - Norte) Ao ser indagado sobre as políticas voltadas para a infância na cidade, o diretor da policlínica destacou o papel da própria unidade em termos da cobertura e dos serviços oferecidos e imediatamente referiu-se aos serviços da rede filantrópica que integra hoje os sistemas municipais pela via dos convênios, sobretudo nas áreas da saúde, educação e assistência social. Para os profissionais que atuam cotidianamente com as políticas públicas em Niterói a vinculação dessas unidades à rede pública além de se expressar nas rotinas dos processos de trabalho institucionais possui uma dimensão simbólica importante, pois são percebidas não como meras instituições privadas, mas como instituições com funções públicas, inscritas na lógica das redes municipais. Trata-se de um elemento que hoje compõe a cultura da cidade, ou seja, integra o modo hegemônico de pensar as políticas públicas na cidade. Quando eu assumi essa coordenação há dez anos, com a minha imaturidade nessa área de administrar, de coordenar, o que eu vi? Eu disse: a rede é para trabalhar com aluno com deficiência. Quem trabalha com alunos com deficiência na cidade? Onde é que eu posso buscar ajuda para essas crianças? Porque essas crianças vão precisar de atendimento paralelo, na rede paralela. Vão para a escola que é o 308 direito delas, mas paralelamente elas vão precisar de atendimento complementar. Então o que é que eu fiz? Busquei me aproximar de todas as instituições filantrópicas de Niterói que atendem pessoas com deficiência e isso deu um diferencial muito grande à ação em Niterói, porque com essa rede e com a parceria com as filantrópicas de Niterói hoje nós temos uma relação de respeito, de colaboração e de convênios. Nós temos hoje convênio com a AFR, que é um convênio interessantíssimo, pois ajuda muita gente, convênio com a Pestalozzi, que é um convênio muito antigo, a gente tem um trabalho de braços dados com a APADA, com a AFAC, Associação Fluminense de Amparo aos Cegos, e com o IBED, com quem estamos fazendo troca de experiências, pois os alunos vêm para a escola e a gente aprende com relação à tecnologia. Eu sempre mostro em todas as palestras a rede de parcerias que nós construímos aqui em Niterói como um diferencial do trabalho da coordenação de educação especial desta secretaria. Este é um diferencial importante. A gente tem uma ação no sentido de respeitar o trabalho dessas instituições e essas instituições respeitarem o nosso trabalho. É crescer paralelamente, crescer conjuntamente. Então, eu não enfrento dificuldades, pelo contrário, a gente tem uma excelente relação da secretaria de Niterói hoje com todas as instituições filantrópicas da cidade (Professora Coordenadora de Educação Especial). Esta forma de pensar a rede de serviços filantrópicos, centralmente no tocante à população com deficiência74, manifesta pela Coordenadora da Educação Especial é significativamente ilustrativa da particularidade da relação entre as políticas públicas e as práticas de parcela da sociedade civil que se mobiliza a partir da estruturação de serviços especializados. Historicamente esta mobilização se deu através da filantropia e mais recentemente a partir das ONGs, ultrapassando de modo processual a fronteira da prestação direta e terminal dos serviços sociais, articulando novos espaços públicos e contribuindo para se redesenhar a esfera pública na cidade. A presença dessas instituições tem sido bastante destacada nos Conselhos Municipais de Direitos e de Políticas Públicas75. Presença que, 74 A história da Educação Especial encontra-se fortemente vinculada a um conjunto de instituições filantrópicas responsáveis tanto por ações educacionais quanto assistenciais, como a Sociedade Pestalozzi, APAE, APADA, entre outras, o que contribuiu para o estabelecimento de vínculos com essa rede em diferentes dimensões, desde a organização das campanhas nacionais (MAZZOTTA, 1996) entre os anos 50 e 70 até a cristalização de uma interdependência entre as ações educacionais e assistenciais na esfera local a partir dos anos 90, em muito potencializada pela emergência do paradigma da educação inclusiva. 75 Durante o período em que realizamos a pesquisa de campo, entre 2008 e 2009, por exemplo, a Associação Pestalozzi de Niterói integrava o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), o Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (COMPEDE), o Conselho Municipal de Políticas e Atenção às Drogas 309 em alguma medida, tem expressado o avanço do traço liberal-corporativo a qual se refere Coutinho (2006) no processo de representação dos segmentos vinculados à sociedade civil76, embora os interesses variem em amplitude de acordo com as áreas das políticas públicas e a maior ou menor tradição das próprias instituições. Delimitar na diversidade de relações estabelecidas entre as instituições públicas e privadas as fronteiras do que seja o avanço do corporativismo ou da intersetorialidade é hoje um empreendimento que requer o desenvolvimento de pesquisas e uma vivência muito próxima das instâncias de controle social, gestão e execução das políticas públicas. Ao longo das entrevistas observamos que não se trata de um tipo de verificação que separe o joio do trigo, apresenta-se, na verdade, como uma investigação que exige a capacidade de compreender os processos institucionais em suas contradições, pois as práticas intersetoriais e corporativas nem sempre se opõem com clareza na dinâmica da cidade, ao contrário, se mesclam na organização dos serviços, nas formas de aproximação e participação nos conselhos municipais, na distribuição dos recursos dos fundos públicos e na composição das instâncias de gestão das políticas públicas. Como este intento se colocava muito além dos objetivos de nossa investigação preferimos prosseguir na identificação das formas de produção social da infância na cidade, mas destacando um aspecto que vincula este tema ao fenômeno sinalizado e que nos levou a dissertar, anteriormente, sobre “as dualidades da cidade das águas escondidas”, que é o perfil de sua rede de serviços: reconhecida pela sua qualidade técnica e diversidade de áreas de atuação, mas também pela precariedade das condições de funcionamento e (COMAD) e o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa (COMDEPI) e a Associação Fluminense de Reabilitação o CMDCA, o CMAS e o COMAD. 76 Carlos Nelson Coutinho situa que as sociedades “ocidentais” passaram a conviver com dois modelos principais de estruturação do poder e de representação dos interesses: um denominado de “liberalcorporativo” que representa o tipo de organização da sociedade civil americana e outro do tipo de “democracia de massas” que se aproxima mais da dinâmica de constituição da sociedade civil dos países europeus. E afirma que no Brasil, particularmente, a partir de 1985 esses dois modelos passaram a orientar as disputas sobre as formas de organização societária. 310 necessidade urgente de ampliação de sua capacidade de cobertura. Em consonância com o que já abordamos nas áreas de educação infantil e de educação especial e de como que nelas as relações entre o público e o privado forjam essas duas perspectivas, reconhecemos também no campo das medidas socioeducativas e protetivas e as mesmas particularidades. Mas o quantitativo de meninos e meninas cumprindo medidas de internação sem nenhuma opção dentro do município, ou seja, o fato de qualquer gravidade ou a pouca gravidade do ato infracional do qual ele(a) é acusado(a) o(a) levar direto à internação no Rio de Janeiro, é um completo absurdo. Então, o quantitativo de meninos e meninas cumprindo internação por atos infracionais ou mesmo que não sejam atos infracionais – coisas absurdas, tão absurdas que vocês nem imaginam – se vocês pegarem os históricos, vocês ficariam chocados, sabe?! Nenhum envolvimento com furto, nenhum envolvimento com drogas, um absurdo! Vou falar de um caso que, para mim, é emblemático: um menino que cumpre uma medida sócio-educativa porque beijou uma menina dentro de uma escola, um menino de 13 anos. A menina bateu nele, todo mundo batendo nele, questões também sócio-econômicas envolvidas e esse menino ficou 3 anos internado. Ele voltou “o bandido”. E coisas desse estilo assim. Desde furto de alimentação até coisas absurdas! A medida sócio-educativa em meio aberto no município trabalha justamente com isso, a reflexão sobre as atitudes e a produção desse envolvimento com esse menino e com essa menina com algum ato infracional. E aí ele pode cumprir uma medida sim, como tem cumprido agora, através dessa central de medidas. Há uma grande dúvida se vai se sofrer soluções de continuidade agora neste próximo governo, porque mesmo que haja um decreto, tem que haver uma lei fundamentando essa medida sócio-educativa em meio aberto aqui no município. Então, essa é uma das coisas que a gente vem também lutando para que aconteça. Não é incomum menina cumprindo uma internação depois de ser vítima de violência sexual. A trajetória dela, após essa violência sexual, foi para a de agressão contra o próprio abusador, o que a fez se tornar, ao invés de uma vítima comum, a criminosa ou o criminoso. Casos como esse não existiriam se houvesse uma medida sócio-educativa em meio aberto aqui ou se houvesse uma política bastante eficaz em relação à violência sexual e à exploração sexual. Nós temos meninas aqui neste município, naquela Rua São João ou mesmo na Av. Amaral Peixoto, onde tem casas de prostituição com adolescentes, envolvidas com o mundo do crime e enviadas para jogadas. (Representante ONG, Membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Fórum DCA). 311 Niterói tem um Centro de Recursos Integrado de Atendimento ao Adolescente (CRIAAD)77 para atender aos adolescentes que cumprem medida de semiliberdade e não possui nenhuma unidade de internação o que obriga a transferência do adolescente para a cidade do Rio de Janeiro. Durante o período de realização da pesquisa a Sub-Secretaria de Direitos Humanos do município, responsável pela coordenação das ações socioeducativas na cidade, no esforço de municipalizar o atendimento criou uma Central de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. A precariedade das condições de atendimento em relação à questão de gênero é um dos mais sérios problemas da cidade, recorrentemente mencionado durante as entrevistas. Já as Ações Socioeducativas em Meio Aberto (ASEMA), vinculadas à Proteção Social Básica, são coordenadas e monitoradas pela Secretaria Municipal de Assistência Social, mas desenvolvidas por instituições conveniadas e, em sua grande maioria, religiosas, conforme podemos verificar na tabela a seguir. Configuram serviços socioeducativo de convívio, cujo objetivo é “ampliar trocas culturais e de vivências assim como desenvolver o sentimento de pertencimento e de identidade, constituem, portanto, serviços voltados para o fortalecimento de vínculos familiares e do convívio comunitário” (SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL, 2008). As instituições que desenvolvem as ações socioeducativas em meio aberto para a população infantil também atendem às famílias e realizam outras atividades comprovando a marcante presença das instituições religiosas na área da assistência. Não se trata aqui de colocar em questão a natureza ou o vetor ideológico dessas ações, pois além de não ter se configurou em foco do presente estudo tivemos a oportunidade de conhecer quadros dirigentes e profissionais de algumas dessas instituições e identificar que nem sempre essa vinculação significou uma interferência nas diretrizes políticas do trabalho realizado, mas de argüir sobre a dificuldade e 77 Denominação dada ao antigo CRIAM a partir da aprovação do Decreto 41.983/2009 do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 312 o desafio de organização dos serviços previstos nas políticas públicas a partir de equipamentos públicos na política de assistência social em Niterói. QUADRO VIII Relação de instituições que desenvolvem ações socioeducativas em meio aberto, público atendido e área de abrangência. Instituição Grupo Espírita Paz Amor e Renovação (GEPAR) Oratório Mamãe Margarida Criança e Adolescente 100 META Família 30 Jovem Área de Abrangência 30 Região Oceânica 265 197 --Região Praias da Baía Região Oceânica Pendotiba Casa do Homem do Amanhã 100 100 20 Pendotiba Região Norte Região Leste Patriarca da Assistência Social 600 400 60 Fonseca Fundação de Assistência Social El50 50 --Região Shadai (FENASE) Oceânica Obras Sociais do Sagrado Coração 60 50 --Município de Niterói Instituto de Desenvolvimento para a 470 600 --Morro do Educação (IDE) Céu Preventório Sagrada Família 180 384 150 Região Norte Associação Metodista de Ação Social 343 436 20 Região (AMAS) Oceânica Coração de Jesus 80 80 --Viradouro e adjacências Fonte: Relatório de Gestão 2008 da Secretaria Municipal de Assistência Social (SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE NITERÓI, 2008). A carência de equipamentos se destaca como um dos problemas mais sérios do município, tendo uma dupla expressão, diretamente relacionada com a abordagem que vínhamos apresentando, ela se expressa na falta de instituições públicas e na insuficiência da cobertura pelas instituições privadas (filantrópicas e ONGs). Cabe destacar que a criação de Casa de Passagem e abrigos para crianças e adolescentes do sexo feminino, assim como a ampliação da rede de abrigos da cidade foram deliberações aprovadas já na III Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do 313 Adolescente que, numa perspectiva intersetorial, foi realizada conjuntamente com a III Conferência Municipal de Assistência Social em 2001. Como essa discussão agora da proteção familiar está muito em voga eu acho que dá um questionamento público pra isso, baseado nas diretrizes que o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária aborda sobre a questão dos abrigos que está meio alarmante em Niterói, são poucos e a demanda toda vai para abrigo sem uma análise prévia. Então é interessante que tenha uma equipe de emergência nos abrigos para pegar os casos que não se tem para onde encaminhar mesmo naquela hora, trabalhar com a perspectiva familiar que vem sendo deixada de lado e que faz com que as crianças sejam abrigadas com mais freqüência. Essa questão da “drogadição” também que está batendo bem na tecla do conselho e está o tempo todo aqui, também é um desafio. (Assessoria Técnica do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente). Casa de passagem a criança não pode ficar um longo tempo ali e para onde vai encaminhar essa criança e esse adolescente? Tanto que a gente tem uma deficiência, a Casa de meninos só aceita meninos acima de doze anos, ou seja, os menores têm que ir para casa de meninas, então é uma dificuldade que a gente tem aqui com relação a isso. Então acho assim essa assistência, mais efetiva eu acho que é par a população que já está em risco que é o caso de usuário de drogas, pessoas que estão envolvidas com bebidas, a questão do abrigamento eu sinto uma necessidade muito grande (Psicóloga do 3º Conselho Tutelar). A questão dos abrigos na cidade não possui uma condição tão diferenciada do que ocorre no país inteiro78 e que preocupa a sociedade civil organizada e mobiliza determinados setores do poder público, principalmente no que tange ao tempo de permanência elevado - visto que se trata de uma medida protetiva provisória conforme define o ECA -, às condições de funcionamento e à falta de equipe técnica qualificada para o desenvolvimento de ações sócio-educativas e da garantia dos vínculos familiares e comunitários. A ausência do poder público nesta área se não é completa é bastante evidente, o que recoloca a relação entre o público e o 78 Pesquisa realizada pelo IPEA e pelo CONANDA revela que 86,7% das crianças abrigadas no Brasil possuem família, sendo que a maioria ainda mantém vínculos (52,8%) e que para 32,9% dos abrigados o tempo de institucionalização varia entre 2 e 5 anos. Em relação a natureza institucional dos abrigos a pesquisa revela que 68,3% do total são não-governamentais, enquanto que 67,2% tem significativa influência religiosa (ANDRADE DA SILVA, 2004). 314 privado no limiar das contradições e tensões das ações corporativas e intersetoriais. Essas tensões aparecem de forma bem nítida no depoimento que se segue de uma profissional que trabalha em uma ONG que se consolidou como uma referência na cidade e, até mesmo em âmbito regional, no desenvolvimento de projetos e ações de apoio à adoção, deixando claro como que a relação entre o público e o privado em determinados momentos e discursos se inverte em termos das prerrogativas de cada instância em relação às políticas públicas. Eu acho que o Quintal principalmente nesse aspecto trabalha com a questão da reintegração familiar. Tem de trabalhar com a definição sócio-jurídica o mais rápido possível. A gente entra na questão do que a própria Secretaria traz da nova política, a Política Nacional da Assistência e do SUAS, Sistema único da Assistência Social: as medidas de proteção especial de média e alta complexidade, o abrigamento entra na de alta complexidade e a gente tenta atuar dentro dessa linha articulando a política também. Eu acho que a Secretaria também age como um grande parceiro, porque a maioria dos abrigos de Niterói não são municipalizados, são apenas dois: a casa de passagem Paulo Freire e a casa de passagem das Meninas que são mantidas vinculadas à Secretaria, mantidas pela Prefeitura, os outros são vinculados às entidades sem fins lucrativos, que podem até ter convênios também dessa seleção pública de projetos, convênios com a Secretaria, mas não são do município. Então, às vezes, não têm equipe técnica e quando tem eu chamo de “eu equipe”, é um profissional que vai lá um pedacinho da manhã, um pedacinho da tarde e que não vai dar conta para atender essa questão do vínculo com a família biológica, da não visita dessa família à criança, de trabalhar essa dificuldade com a família. Mal consegue dar conta da urgência, do dia-a-dia daquela criança ali. Isso quando tem profissional, porque às vezes o profissional vai de manhã quarta-feira e aí calha de cair doente e só vai semana que vem. Então eu acho que a Secretaria também nos vê como um grande parceiro em todos os trabalhos, mas principalmente nesse por tentar entrar nessa questão dessa medida na questão de proteção de alta complexidade, pois de fato nós estamos tentando tirar essas crianças do abrigo. O tempo médio de abrigamento em Niterói é de quatro anos e meio, é um tempo bem elevado e se nós formos olhar cada história das crianças a gente vai ver que muitas crianças de oito anos abrigadas, crianças que entraram com um, dois aninhos e hoje têm treze anos e ainda não foram destituídas de seu poder familiar para serem encaminhadas para adoção ou não foram reintegradas à sua família, ou é aquele caso pinguepongue, que vai e volta várias vezes e está tramitando na adoção. Então, entre idas e vindas, quando vê está com quinze: “O Quintal vai arrumar uma família para você!” (Assistente Social ONG que atua com Apoio à Adoção). 315 A combinação entre a ausência do poder público e a mobilização da sociedade civil em torno da oferta de serviços especializados que se consolidam como referência de atendimento no campo das políticas públicas mais uma vez se evidencia agora no campo da assistência social e da atenção à criança e ao adolescente. A atuação da ONG Quintal da Casa de Ana além de se tornar uma referência na cidade teve rebatimentos para além do âmbito da prestação de serviços sociais. A partir do desenvolvimento do Projeto “Um lar para todos” realizou um pesquisa sobre os abrigos na cidade que revela que o tempo médio de abrigamento na cidade está em torno de 4 anos e meio e que os principais motivos são: negligência (25%), pobreza (18%), tráfico nas comunidades (14%), carência de rede de apoio (13%), orfandade (11%), outros motivos (10%), violência doméstica (6%) e abandono (5%) (QUINTAL DA CASA DE ANA, 2009) constatando tal como se verifica em termos nacionais que a pobreza e as questões a ela relacionadas constituem o principal fator de abandono das crianças ou de sua institucionalização. Esta ONG foi criada em 2001 por um casal que passou pelas dificuldades relacionadas ao processo de adoção e a marcante presença da instituição com certeza foi um dos fatores que levou a sua fundadora Bárbara Toledo a ocupar o cargo de Secretária Municipal de Assistência Social no ano 2008, em substituição à Heloísa Mesquita. Essa mudança no campo da gestão da política de assistência social no município acabou por acentuar a particularidade da relação entre a sociedade política e a sociedade civil em Niterói, profundamente marcada pela presença em diferentes espaços das instituições que se destacam pela oferta de serviços especializados79. 79 Em momento algum questionamos a qualidade desses serviços, ao contrário, o reconhecimento de sua importância no quadro de ofertas que a cidade dispõe é que tem determinado a sua validade social e institucional junto à população e aos próprios trabalhadores da rede pública. Essa particularidade da cidade está aqui sendo considerada não apenas no sentido político da organização das políticas públicas, mas também se associado ao que observamos nas redes de saúde e de educação pública, como um traço da capacidade de oferecer respostas à complexidade dos problemas sociais que diferentes equipes profissionais conseguem produzir em Niterói. 316 As relações entre a sociedade política e a sociedade civil na cidade, contudo, não são apenas caracterizadas neste sentido, muito embora esta seja uma das formas que mais se evidencie na constituição dos espaços públicos. Outras relações também têm sido forjadas no sentido de contribuir para a produção social da infância na cidade na direção do reconhecimento e garantia de sua cidadania. Relações que apontam para um amplo espectro de tensões interinstitucionais, nas quais ganham destaque, particularmente, os Conselhos Tutelares, seja em decorrência das dificuldades de delimitação e compreensão do alcance de suas ações por parte de outras instituições ligadas ao poder público, seja pelas dificuldades apresentadas pelos próprios conselheiros em fazer o mesmo com relação às instituições e instâncias governamentais. A gente até está para fazer uma reunião, chamar os conselhos tutelares aqui porque está difícil. Tem situações muito equivocadas de encaminhamentos que tem que ser discutido, e às vezes os conselheiros usam de uma autoridade que vai além das suas atribuições e tomam atitudes equivocadas no trabalho, principalmente com relação com os abrigos. É uma relação muito difícil. A gente tenta construir um trabalho com os abrigos, um trabalho pedagógico com os adolescentes. O conselho tutelar, de certa forma, desmonta a partir do momento que não respeita quais são as decisões dos dirigentes do abrigo, quais são as decisões da construção do trabalho feito com os adolescentes. Aí fica difícil, porque o município não tem hoje, se a gente precisar de uma medida protetiva, abrigo para adolescente, a gente não tem! Não tem porque os abrigos quase todos são da área filantrópica, abrigos despreparados para atuar com crianças em situação de risco, porque a equipe técnica é muito restrita e há uma discriminação dessa parcela da população adolescente que está em situação de risco, seja porque se envolve com o trafico, seja porque se envolve com as drogas. A gente tem uma dificuldade muito grande de ter um abrigo hoje para atender de 12 a 18 asnos. Se for de 16 até 18 anos então, esquece! Então vai tudo para casa de passagem e a casa de passagem, como o próprio nome fala, é casa de passagem, é para que, ou esse adolescente retorne para sua família, ou seja, inserido realmente na medida protetiva do abrigo. Mas e aí quando precisa? O adolescente está em risco e aí entra em contradição com o próprio Estatuto da Criança e Adolescente, está em risco em sua comunidade e não pode voltar para sua comunidade, vai para onde? E aí também não pode ficar em uma instituição da área de abrangência de Niterói, porque seria o primeiro lugar a ser achado, quem é que não conhece as instituições de Niterói!? Onde é a casa de passagem!? Então tem umas dificuldades nessa articulação com os Conselhos Tutelares Acho que o Conselho Tutelar 1, até porque tem uma experiência maior, foi o primeiro Conselho Tutelar, tem uma 317 construção histórica de intervenção que o faz ser melhor do que os outros (Assistente Social da Vara da Infância, Juventude e do Idoso). As questões levantadas além de revelarem as dificuldades que existem na relação entre as equipes técnicas das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso e os Conselhos Tutelares80 ressaltam as carências bastante acentuadas da rede de instituições que devem assegurar o cumprimento das medidas protetivas. Quanto ao relacionamento com os Conselhos Tutelares, a entrevistada faz uma importante ressalva com relação às diferenças existentes entre os Conselhos e que refletem, face as particularidades da cidade, como que a questão territorial é também marcante quando abordamos as condições materiais e o próprio acúmulo de experiência. Há uma visível diferença de condições de trabalho entre os três Conselhos da cidade, assim como de acúmulo de experiência que pode ser evidenciado no que se refere às formas de enfrentamento e aos confrontos que os próprios conselheiros protagonizam. Por esta razão, destacamos trechos das narrativas de dois conselheiros do I Conselho Tutelar de Niterói (Centro). Agora temos a equipe técnica composta pela psicóloga, assistente social, tínhamos um advogado que era o assessor jurídico, mas agora estamos sem. Temos recepcionista, digitador, arquivista, dois motoristas. Em relação aos outros conselhos nós temos uma equipe muito boa. Inclusive somos uma referência no país em termos de conselho tutelar. É o único conselho do país que tem uma estrutura com 19 salas. Foi conquista nossa mesmo, muita briga, e o embate direto com a prefeitura. Toda hora temos que reclamar no ministério público quando não se está cumprindo. Inclusive, o atual prefeito de Niterói está sendo processado por não atender às necessidades do terceiro Conselho. O atendimento deles lá é muito precário, o que foi provado e o Ministério Público acionou o prefeito, mas ele demorou a atender e está sendo penalizado com uma multa de R$ 5.000,00 por dia de atraso. De acordo com MP se o prefeito não cumprir ele pode perder o mandato (Conselheiro 1 do 1º Conselho Tutelar). 80 Temos desenvolvido ao longo dos últimos quatro anos um trabalho de assessoria aos assistentes sociais e psicólogos que atuam nas Varas da Infância, da Juventude e do Idoso em diferentes localidades, Niterói, São Gonçalo, Baixada Fluminense e no Rio de Janeiro e esta tensão de fato tem sido observada em maior ou menor grau como uma particularidade das relações entre Conselhos Tutelares e as equipes técnicas do judiciário, muito embora tenhamos encontrado também experiências que demonstram uma boa articulação entre eles, o que evidencia que se trata de um processo ainda em construção. 318 A autonomia só é dada na nossa atuação, mas no todo não. Se a gente deixar de mandar a ata para a Secretaria de Assistência a Secretaria se acha no direito de não pagar a gente. Olha só que absurdo! Fica esse jogo político porque acha que o Conselho é um programa de atendimento da secretaria. Hoje a lógica da Secretaria é dizer que o conselho é um programa de atendimento da Secretaria e não é. É não conhecer nada de assistência social, e não conhecer nada de Conselho, ela não conhece isso aqui. Ela é advogada, mas eu não questiono porque ela administra muito bem a ONG dela, você vai ver quanto dinheiro recebe da Petrobrás, é “um dinheiro”, então ela sabe administrar muito bem. Fizeram uma capacitação agora dos funcionários e fizeram o favor de falar muito mal dos Conselhos porque infelizmente ele não conhece isso aqui. Ela fica disputando com isso aqui, e disputando sabe-se lá, o que? Ela não conhece o dia a dia do Conselho porque se conhecesse ela seria a primeira a bater palmas para cada um de nós que estamos aqui. É muito difícil você trabalhar, eu cheguei aqui e o carro quebrou. Foram 75 dias sem nada, sem carro, sofrendo. Já fizemos abrigamento aqui de levar criança em situação de risco social de ônibus até o terminal e do terminal pegar outro para o Barreto pra abrigála no Barreto (Conselheiro 2 do 1º Conselho Tutelar). As tensões, conforme apontam os relatos, com o poder executivo evidenciam as dificuldades que ainda estão presentes no cotidiano de vários Conselhos Tutelares do país. Conforme pesquisa realizada por Luiz Bazílio sobre as condições de atuação dos Conselhos alguns aspectos se sobressaem como impeditivos do pleno exercício de suas funções como instância que deve zelar pela garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, principalmente quanto à verificação das condições de desenvolvimento da política de atendimento por parte do poder público, com destaque para: a) a falta de estrutura (física, material e apoio) para atender à real demanda das violações de direitos; b) a ausência de capacitação e/ou qualidade dos treinamentos oferecidos; c) as questões relativas à representação política do conselheiro; d) a falta de estrutura de apoio, em particular, da existência de uma efetiva rede de proteção; e) o excesso de solicitações de demanda de encaminhamentos e atendimentos que prejudicam as funções de fiscalização e supervisão das unidades de atendimento (2006: 40-42). O que de fato foi ressaltado nos depoimentos dos conselheiros e das equipes técnicas, como também nos dos demais profissionais que se relacionam diretamente com os Conselhos Tutelares. 319 As demandas de atendimento às solicitações de vagas nas escolas e as de resolução de conflitos familiares são as que apareceram com maior recorrência nas entrevistas, mostrando o peso que tem o atendimento em relação às demais atribuições dos Conselhos. Demandas que parecem ocupar as pautas de trabalho dos Conselhos nas relações, por vezes conflituosas, com as unidades escolares. As demandas são as mais diversas. Aí depende, como a gente já falou, depende da ocasião. No começo do ano a gente tem muita demanda de vaga em escola, o que não era nem pra chegar ao Conselho, mas como existem poucas vagas aqui nessa região, em determinados lugares principalmente, a gente encontra dificuldades, os pais encontram dificuldade para encontrar vaga. Isso acontecendo vem até o Conselho solicitar que a gente negocie. Negociar vaga aqui e ali. No início do ano é vaga em escola, creche e tudo mais (Conselheiro do 2º Conselho Tutelar). A gente ainda recebe muitas solicitações de vagas nas escolas. Apesar de que o nosso olhar é assim, essa questão acontece principalmente nesse início de ano, e desde agosto nós temos visto isso sim. Uma coisa que a gente tem percebido há pouco tempo são as demandas em relação aos conflitos familiares, pelo menos as que eu atendo são as maiores. Em relação aos avanços eu nem sei como te dizer como estava e como está agora, pois tem pouco tempo que chegamos. É claro que como a gente começou a fazer esse trabalho com as escolas surgiram mais demandas, aí eles começaram a mandar mais fichas de infrequência, e aí eles relatam e fazem algumas observações sobre as atitudes que eles já tomaram sobre a questão, mas com certeza os dois encontros que tivemos já possibilitaram pelo menos uma aproximação. A primeira teve um pouco de resistência, mas a segunda já foi melhor. Acho que o mais difícil e entrar no espaço e aí se torna pior porque são os assistentes sociais, psicólogos e estagiários do conselho tutelar. Parece que nós estamos indo lá pra dizer o que está errado no trabalho deles. Nós temos tentado buscar com que eles nos vejam como parceiros e não só encaminhar para o Conselho. É para a gente pensar junto as estratégias (Assistente Social do 1º Conselho Tutelar). A recorrência dessas demandas é bastante sugestiva não só da compreensão que as instituições e a população, em geral, têm do papel dos Conselhos Tutelares, como também de que situações põem em risco com larga freqüência e magnitude a cidadania da infância na cidade. Duas instituições responsáveis pela socialização de crianças e adolescentes, a escola e a família, parecem encontrar dificuldades ainda mais complexas e 320 diversificadas para cumprirem com suas funções protetivas. O acionamento dos Conselhos Tutelares nesses casos não significa apenas a perspectiva de identificação de que um direito se encontra violado ou em vias de, mas também uma tendência crescente de envolvimento de diferentes instituições na mediação de conflitos que não se equacionam nas esferas privadas e que têm levado a uma judicialização dessas relações. Neste sentido, o Conselho Tutelar assume a característica de funcionar como porta de entrada para o poder judiciário de algumas das dificuldades de resolução de conflitos na esfera da família e da escola – ressaltando que não se trata de uma generalização, mas de uma tendência -, ou ainda, o que é também verificável, assumindo ele mesmo essa função, oposta àquela que justifica a sua existência legal, como se fosse uma instância “jurisdicional”. As dificuldades de compreensão do papel dos Conselhos tanto pela população, pela imprensa, trabalhadores das políticas públicas ou profissionais liberais, quanto pelos próprios conselheiros têm ocupado os debates realizados nos mais diversos fóruns, sejam eles acadêmicos ou promovidos pela sociedade civil. Contudo, merece destaque também as dificuldades que os próprios conselheiros apresentam em relação à compreensão da dinâmica das políticas públicas, o que se fez presente também na pesquisa, particularmente em função das mudanças ocorridas na Secretaria Municipal de Assistência Social em relação à sua adequação às diretrizes do Sistema Único de Assistência Social e os desdobramentos que teve sobre a organização dos serviços sociais por ela oferecidos. Eu acho que tem que ficar bem deliberado qual é o papel do CRASS, acho que não está muito bem estabelecido isso não. O CREAS mais ainda! Porque o CREAS, não sei se alguém comentou lá, mas a gente tem uma dificuldade imensa de entender o que é o CREAS hoje, porque antigamente nós tínhamos o serviço de revelação que funcionava no Sentinela. E o Sentinela agora deixou de ser Sentinela, e agora é 81 casa de meninas, é CREAS . Existem “n” coisas que tem que estar 81 O Projeto Sentinela não existe mais e atendendo às orientações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e à PNAS/SUAS os CREAS passam a desenvolver serviços de 321 funcionando ali, mas na verdade quando a gente busca esse serviço, por exemplo, de revelação eles remetem para a gente e perguntam o que é que já foi feito e aí fica nesse vai e vem e nunca que eles atendem essa questão da revelação e enquanto isso a gente precisa saber. Por exemplo, o Ministério público encaminha pedindo resposta em relação a isso, revelação e diagnóstico, e a gente não tem nem a resposta, nem foi atendido ainda. Existe essa situação, acham que a gente é que tem que dar essa resposta, o Conselho não tem que fazer revelação e nem diagnóstico, a gente encaminha para o órgão que diz ser, agora parece que eles estão dizendo que não são mais (Conselheiro do 2º Conselho Tutelar). As mudanças na lógica da política e na dinâmica interna dos serviços prestados parecem ter impactado nas relações dos Conselhos com os CRAS. Vale destacar que as entrevistas realizadas com os conselheiros ocorreram em um período que não só as equipes estavam se modificando seja pelo ingresso dos assistentes sociais concursados, seja pela mudança das ONGs que administravam os CRAS através dos convênios com a Secretaria Municipal de Assistência Social, além do fato de que também mudou a gestão da própria secretaria, o que aparece, quase sempre, de forma negativa nas narrativas dos conselheiros. O CRASS é uma coisa nova, até as pessoas que trabalham lá tem que entender um pouco do CRASS, do SUAS e do Conselho Tutelar. As instituições todas em si na questão da assistência social pecam muito. Já ouvi a secretária dizer que por ela política pública seria implementada pelas ONGS e não é bem assim. Não é isso que pactuo e não acho que política pública tem que ser implantada por ONG só por que ela tem uma. Com a vária da infância é tranqüilo, com o MP nem tanto, mas cada um fazendo seu papel nós conseguimos trabalhar. È óbvio que o Conselho precisa ser entendido ainda nessas instâncias, tem gente que respeita muito o Conselho, mas ainda há alguns mitos a serem quebrados e algumas esferas a serem identificadas, formar uma parceria maior. O Conselho depende muito da administração. A questão do carro é essencial: saio daqui para o Largo da Batalha para fazer visita domiciliar em um caso de violência doméstica, como eu vou daqui até lá de ônibus. Falta essa estrutura mínima. Hoje eu não posso imprimir relatório porque não temos condições, não posso responder ao MP, tenho que escrever tudo. Temos uma defasagem na estrutura física. Precisamos de salas, reformas, brinquedoteca, tem um salão que daria para fazer um auditório para trabalhar com os pais. São coisas que o Conselho poderia fazer, mas não tem feito porque não se tem uma estrutura devida, se tive poderíamos avançar muito mais. O problema é enfrentamento à violência e à exploração sexual de crianças e adolescentes por se tratar de um serviço do âmbito da Proteção Social Especial. 322 que a gente se pauta hoje mais na questão do atendimento (Conselheiro Tutelar C do 1º Conselho Tutelar). Alia-se à falta de condições de trabalho e às dificuldades de entendimento das mudanças ocorridas na dinâmica de uma das Secretarias, cujos serviços são essenciais para a garantia dos direitos da infância, as diferentes lógicas que presidem as ações públicas na cidade. Uma dessas ações realizadas pelo executivo municipal, mas amplamente cobrada pela Promotoria, é a “Operação Araribóia” que congrega diferentes órgãos da prefeitura para atuarem junto à população em situação de rua. Trata-se de uma intervenção social com nítido suporte ideológico higienista que atende, objetivamente, aos interesses produzidos na cidade por diferentes segmentos sociais e forças políticas de “limpeza das ruas”. Esta operação revela alguns dos enormes contrastes de Niterói. O primeiro deles é que, embora a Operação Araribóia não seja uma intervenção produzida na gestão petista, essa gestão não interrompeu sua realização, se sobrepondo às próprias atividades de abordagem da população em situação de rua conduzidas pela Secretaria Municipal de Assistência Social que, inclusive, conta com uma instituição pública de apoio para lidar com a população adulta, a Casa da Cidadania Florestan Fernandes. O segundo é que as próprias autoridades municipais, envolvendo os diferentes poderes, demonstram claramente desconhecer não só as políticas públicas e as suas ações como as atribuições dos Conselhos Tutelares conforme apontam alguns conselheiros nos relatos que se seguem. A gente vai ter de novo uma reunião com o promotor Doutor Cláudio, ele é da curatela, da promotoria que representou os Conselhos Tutelares. Amanhã vai ser o dia “D” que ele já falou anteriormente que se nós descumprirmos o fato de sair para atender e pegar essas crianças na rua, que a gente vai ser representado, eles vão entrar com um processo de improbidade. É a Operação Araribóia, ou seja, a secretária fala que a gente tem que ir junto com essa operação em que vai polícia e o pessoal do Centro de Referência. Realmente até existe um programa na SMAS, que é a Secretaria de assistência social, que é para atender essas crianças em situação de rua. Não pode ficar na rua, então recolhe 323 e aí a gente presta o atendimento. Eles querem que a gente, tendo criança ou não tendo, saia a esmo com esse grupo que sai de manhã batendo daqui e ali na rua e que o conselho esteja presente. Ora! Nós estamos há quinze anos tentando desmistificar essa cultura que eu falei pra vocês, a compreensão que eles têm do Conselho: “a gente não procura o Conselho porque entende que o Conselho é só isso, é polícia de criança” (Conselheiro do 2º Conselho Tutelar). Desenvolvi esse projeto como forma de intervir nessa questão dos moradores de rua porque tem um promotor que insiste que os conselheiros devem ir pra rua e isso é errado. Temos todo um trabalho de desconstrução da imagem punitiva do Conselho, de um órgão repressor e isso é totalmente o inverso. As crianças da rua têm que ver o Conselho como órgão que representa e defende seus direitos. Na verdade eles só estão na rua porque a população mantém eles na rua. Se eles começarem a ver o Conselho como órgão repressor eles não terão mais a quem recorrer. O problema é que muitos conselheiros não conhecem suas atribuições e competências, daí ficam com medo e acatam a ordem do MP (Conselheiro B do 1º Conselho Tutelar). Os contrastes acabam se acirrando também em função das condições de atendimento em relação às diferentes demandas no campo da infância. As narrativas dos profissionais que atuam nas políticas públicas revelam aspectos reais de uma rede serviços que embora não assegure atendimento universal e de igual qualidade, encontra-se com uma razoável estrutura e capacidade de cobertura, geralmente complementada pela rede de serviços privados especializados. Este tipo de depoimento não chega a ser falso, ocorre, no entanto, que ele é produzido a partir de lugares específicos nos quais o atendimento pela sua natureza particular e pelo público que suas unidades recebem podem de fato ter uma boa cobertura, conforme observamos na atenção básica na área de saúde e na educação especial, mas não corresponde a realidade quando observamos as condições de atendimento da população que se encontra em situação de vulnerabilidade ou risco pessoal ou social. Neste caso, a visão da maioria dos conselheiros e da equipe técnica formada por assistentes sociais e psicólogos que atuam nos três Conselhos Tutelares da cidade não é muito diferenciada entre eles. Prevalece o entendimento de que a infância no município anda desassistida. 324 Apesar de nosso município ser considerado um município que, como o prefeito fala, “é o município que melhor cuida da criança e do adolescente”, tem a criança em primeiro lugar, que é o chavão dele, a gente não consegue ter essa visão. A gente que está na linha de frente, na ponta do atendimento com essa clientela da criança e adolescente, a gente não vê esse cuidado do município, principalmente por conta das instituições não estarem equipadas pela prefeitura, pelo município, como deveria estar pra atender essa criança e esse adolescente. Na área da educação a gente verifica que tem muita necessidade ainda, a demanda pra creche, para berçário, muito grande e o município não oferece esse atendimento, principalmente nessa faixa etária em que a mãe está trabalhando ou tem necessidade de trabalhar: com quem deixar a criança na faixa etária de 0 a 2 anos? Então, a gente verifica a questão da saúde também muito precária, apesar dos núcleos de atendimento, dos postos de saúde, no caso serem nossos parceiros, na hora em que a gente necessita, na medida do possível, tenta estar dando atendimento à solicitação da equipe do Conselho, mas a demanda é muito grande e o oferecimento é pouco no atendimento e no serviço. Tem alguns atendimentos específicos, fonoaudiologia, o próprio oftalmologista então a gente não tem atendimento. Em nenhum posto de saúde tem oftalmologista, fonoaudiólogo também é muito difícil. E a escola pede auxílio a gente nesse sentido, porque atrapalha o desenvolvimento. A questão do abrigo que já tivemos fechado, a São Martinho agora está para fechar também, o próprio CRIAA, no Barreto, está fechado. Então são instituições que auxiliam no atendimento da criança e do adolescente no município e a gente está se sentindo assim, sem amparo nenhum. Só tem praticamente um abrigo de criança e adolescente que é a Casa de Passagem, que não é abrigo é uma casa de passagem de meninos no Barreto, ou o CREAS, que recebe as meninas especificamente e às vezes meninos também até 7 anos, o Lar da criança que é em Ititioca e a gente não tem mais abrigo em Niterói. Então, quer dizer, a Casa de Passagem, o nome já diz, é de passagem não é abrigo, então se você tem necessidade de abrigar um adolescente você tem que pedir a carta precatória, que não sai de imediato, para remover esse adolescente para outro município e às vezes nem é necessário ele estar saindo do município. E essas instituições e abrigos estão com dificuldade de funcionamento, principalmente pela questão da parceria com a prefeitura, através da secretaria de assistência, que recebe a verba de manutenção da instituição. Muitas instituições não conseguiram fazer essa parceria esse ano e estão fechando, não estão fazendo atendimento ou então o número que está permanece e não entra mais ninguém. Então, a gente não vê o município preocupado realmente com essa criança em primeiro lugar, como o lema diz. Então, a gente não vê muito essa preocupação (Conselheira do 3º Conselho Tutelar). As perspectivas de superação desse quadro foram apontadas nas entrevistas sempre ressaltando ora uma condição fragilizada das políticas dirigidas à infância, ora uma compreensão das conquistas alcançadas, sobretudo em termos do perfil da rede de serviços, mas que ainda tem muito caminho a ser percorrido. A realização da maior parte das entrevistas se deu 325 ao longo do segundo semestre de 2008, em pleno processo eleitoral para o executivo e o legislativo municipal, o que ofereceu elementos muito interessantes às narrativas, visto que muitos profissionais, conselheiros e membros dos Conselhos Municipais abordavam suas experiências combinando a memória das trajetórias percorridas com as expectativas, incertezas e interrogações que a conjuntura forjava. Muito embora várias narrativas ilustrassem certa convicção com relação à descontinuidade das ações, sobretudo, por parte dos profissionais que estiveram à frente da Ação Intersetorial, dada a possibilidade quase eminente de derrota do PT para o PDT de Jorge Roberto Silveira, não são elas que recuperaremos a seguir, mas duas que expressam as contradições e as pulsações variadas que processos tão complexos como os que temos examinado encerram. A primeira delas destaca em meio à efervescência da dinâmica eleitoral o esforço que o Fórum DCA e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente empreendiam em relação à discussão, ainda que com pouca mobilização social, do Plano Municipal de Promoção Proteção e Defesa do Direito de Crianças e dos Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária de Niterói82. Durante o segundo semestre este foi um tema que mobilizou o Conselho e o Fórum e o que representa para as políticas da infância um elemento crucial na definição de estratégias de enfrentamento de graves problemas sociais como o dos abrigos, do abandono e dos processos que incidem sobre a falta de condições das famílias em exercerem suas funções de proteção social. Aqui, no CMDCA, há uma tentativa que eu acho que vai ter um relativo sucesso, de elaboração de um Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária. Não é à toa que a Política de Assistência Social tem a centralidade na família e algumas das nossas Instituições existem há muitos anos, instituições que têm 60 anos. Algumas, principalmente católicas, são instituições idosas, vamos dizer assim, e que trabalham 82 A elaboração do Plano Municipal atende às orientações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que em 2005 aprovou o Plano Nacional de Promoção Proteção e Defesa do Direito de Crianças e dos Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. 326 com essa estratégia do núcleo familiar há muito tempo. Então, acho que esse é o grande desafio da cidade de Niterói: trabalhar essa política, esse direito maior que é o direito de convivência familiar e comunitária, de onde derivam tantas outras violações como a de uma criança e adolescente em situação de rua, como a criança em situação de abrigo aqui em Niterói, que não é o município com mais abrigos, graças a Deus. Infelizmente quase todas as crianças abrigadas têm família, algum grupo familiar ao qual estariam ligadas, mas os vínculos estão rompidos ou fragilizados e eu acho que esse é o grande desafio da política em Niterói, trabalhar para o fortalecimento das famílias e empoderamento quanto ao seu dever em cuidar dessa criança e desse adolescente. As questões sócio-econômicas são também derivadas desse empobrecimento da população, mas, com certeza, essa parte de trabalhar mesmo esse direito dessa criança e desse adolescente para dentro de um grupo familiar, que não necessariamente é o seu, mas a família é aquele grupo com o qual a gente pode contar e que estabelece uma relação de amor e cuidados. O grande desafio de Niterói é o “cuidar” da nossa criança e do nosso adolescente (Representante de ONG, Membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Fórum DCA). Já a segunda narrativa traz à tona as contradições que permeiam a relação entre o público e o privado na dinâmica das políticas públicas, apontando como que a tendência corporativista adentrou não apenas o campo organizativo da sociedade civil, mas amparado no ideário neoliberal provocou fissuras importantes nos processos de trabalho no âmbito das instituições públicas. Observamos que algumas das inquietudes e preocupações com a descontinuidade das políticas adquiriram feições diferentes daquelas que, nas entrevistas realizadas, acenavam o fim da Ação Intersetorial como uma perda e, cientes de sua perenidade, se reconheciam na experiência que construíram. Talvez um dos grandes desafios postos para os profissionais exercerem de fato funções intelectuais nos processos de gestão e condução das políticas públicas diante da tendência de descontinuidade das mesmas se situe nessa tênue linha demarcatória entre se reconhecer ou não como sujeito social diante das contradições dos processos políticos e institucionais. Esse ano a coisa mudou, não sei se falaram isso para vocês, mas o CRAS não é mais administrado pela secretaria e sim por uma ONG. Aqui é a Viva Mais quem cuida e com ela o serviço melhorou muito, nunca havia tido brinquedoteca e agora tem, em termos de material melhorou. Não passamos mais por tanto sufoco, mas mesmos 327 assim aqui eu estou fazendo uma reserva para o ano que vem. A Viva Mais sempre que eu preciso, eles me respondem e antes não, agora com a saída das ONG's dos CRAS que agora ficaram por responsabilidade da secretaria a situação vai ficar mais difícil em termos de material. (essa não renovação vai ser só para o CRAS ou também vai ser para os outros programas) Só o projeto CRAS não vai renovar os outros vão continuar com as ONG's. as coisas também vão depender de quem vai assumir a secretaria, já que a cada nova gestão muda-se também a cara da assistência, por exemplo, a Bárbara trabalhou bastante essa questão da adoção por que era a área dela, já que ela coordenava o Quintal da Casa de Ana, então ela pegou bastante essa questão da criança. Com essa posição dela ela deu uma cara que a assistência não tinha com essa questão da adoção, então assim nós perdemos umas coisas, mas ganhamos outras e muita coisa teve que ser cortada porque não havia verba. A própria secretaria ela hoje não tem dinheiro para comprar café, cada um tem seu papel higiênico, agora como essa situação vai ficar em 2009 nós não sabemos. (Psicóloga do CRASS – Santo Cristo). E assim os contrastes da cidade seguem e se mesclam em diferentes espaços e práticas. Deste modo a articulação entre serviços públicos e serviços especializados prestados por instituições não-governamentais apontam para o estabelecimento de relações com diferentes alcances e dinâmicas. Além da Ação Intersetorial, destacamos também como elemento importante no processo de produção social da infância na cidade a construção das redes sociais. Coube o cuidado em nossa análise de não homogeneizar as diferentes experiências desenvolvidas na cidade, visto que se por um lado algumas expressam um desdobramento da construção da hegemonia do modelo liberal-corporativo, existem também aquelas que revelam processos que embora não estejam amplamente apoiados nos movimentos sociais se gestam a partir do potencial de participação dos diferentes sujeitos sociais que atuam no campo da defesa dos direitos sociais, dentre os quais – e aqui temos procurado ressaltar com certa insistência - encontram-se as equipes profissionais que protagonizaram as experiências da “Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói” e da Ação Intersetorial. A constituição de redes se tornou uma tendência mundial nos anos 90, fortemente amparada nos processos de mudanças nos processos de 328 organização da produção social que passaram a reorientar os fluxos de informação e a relação tempo-espaço, na flexibilização das relações e processos de trabalho e na mudança de perfil da atuação do Estado em relação à garantia dos direitos sociais. Em um contexto de fragilização de vários segmentos sociais em termos da proteção social advinda do trabalho e dos sistemas públicos e diante da necessidade de criar alternativas de ação política, muitos movimentos de massa refluem e passam a forjar arranjos sociais em diferentes níveis e instâncias “em torno de identidades primárias, ou atribuídas, enraizadas na história e geografia, ou recémconstituídas, em um busca ansiosa por significado e espiritualidade” como aponta Manuel Castells (1999). A disseminação das redes e a sua formatação no campo social apontam para distintas possibilidades de atuação dos sujeitos sociais, constituindo uma das marcas da pluralidade de interesses e práticas sociais que caracterizam a dinâmica da sociedade civil desde o final do século XX. A criação das redes sociais deve ser considerada, portanto em sua diversidade, em relação aos modos e interesses diferenciados que as organizam. Dentre as experiências que encontramos na pesquisa algumas se destacam: 1- Rede Comunitária de Integração da Zona Norte (RECIZON) que tem como objetivo “a melhoria as condições de vida das famílias atendidas pelas instituições integrantes da rede” e da qual participam tanto organizações não governamentais quanto instituições públicas; 2- Rede de Saúde Mental que reúne os profissionais que atuam nas unidades de saúde mental de Niterói, formada por 5 ambulatórios de saúde mental, 2 hospitais psiquiátricos, 2 CAPs, 1 CAPs Infantil (CAPsI), 1 CAPs para usuários de Álcool e Drogas (CAPs AD), e profissionais dos CRAS, da Vara da Infância, Juventude e do Idoso, de organizações da sociedade civil e das unidades de saúde a partir do Núcleo de Intersetorialidade do CAPS AD que fica situado na Alameda São Boaventura no Bairro do Fonseca e cujo objetivo é 329 mapear e captar recursos, articular e discutir acerca da assistência integral à população; 3- Rede Comunitária do Serviço Social do Comércio (SESC) que é formada por representantes de instituições públicas, privadas e sociais com o objetivo de favorecer o desenvolvimento individual e coletivo. Trata-se de uma das linhas de atuação do SESC-Rio denominado Redes de Desenvolvimento Comunitário. 4- Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói que é formada pelo I e II Conselhos Tutelares; Juizado da Infância, Juventude e do Idoso83; Promotoria da Infância e da Juventude da Comarca de Niterói; Núcleo de Atendimento Especializado à Criança e ao Adolescente (NAECA), Programa Médico de Família, Hospital Getúlio Vargas Filho e a Coordenadoria de Vigilância e Saúde (COVIG) pela Secretaria Municipal de Saúde/Fundação Municipal de Saúde; Coordenação de Educação Especial e Programa Criança na Creche pela Secretaria Municipal de Educação/Fundação Municipal de Educação; Projeto Sentinela84, Projeto Volta Pra Casa e Casa de Passagem pela Secretaria Municipal de Assistência Social; Serviço de Saúde Mental do Hospital Estadual Azevedo Lima; Programa de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vítima de Violência (ACAVV) do Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade Federal Fluminense, Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social e Projeto Oficina do Saber da Universidade Federal Fluminense; CEJOP e FENASE pelo Fórum DCA de Niterói; Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente; Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente da Fundação Para a Infância e Juventude (FIA); Delegacia Especializada 83 Por ocasião da formação denominava-se apenas Vara da Infância e da Juventude, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro deliberou, no entanto, pela incorporação das questões judiciais que envolvam os direitos da população idosa às Varas da Infância e da Juventude. 84 Conforme já ilustrado na entrevista de um dos conselheiros que atua II Conselho Tutelar de Niterói e em momento anterior de nossa apresentação, o Projeto Sentinela não vem sendo mais desenvolvido no Município de Niterói, mas a equipe compunha a presente rede. 330 de Atendimento à Mulher (DEAM), Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e 12º Batalhão da Polícia Militar (BPM) pelos Órgãos de Segurança, cujo objetivo é a consolidação de uma política de enfrentamento à violência contra a criança e ao adolescente no município de Niterói. As redes podem expressar, portanto, uma das possibilidades de materialização da própria experiência de intersetorialidade como aborda Inojosa (1998), imprimindo novas feições aos modos de se pensar, avaliar e propor a racionalização dos serviços sociais. Analisando as experiências desenvolvidas em Niterói podemos destacar que as redes, em função do perfil dos participantes que as integram, da dinâmica dos encontros e dos próprios objetivos, apontam também para possibilidades diferentes de intervenção que, de acordo com o tipo de relacionamento que estabelecem com as políticas públicas (planejamento, assessoria, gestão ou execução), podem ter a prevalência de uma ou a combinação de várias dessas modalidades: fomento ao intercâmbio de experiências, elaboração de propostas de institucionalização de fluxos de atendimento da população, realização de processos de qualificação da atuação profissional, elaboração de propostas para o poder público e para as instâncias de controle social, mapeamento e ampliação de recursos, mobilização comunitária e discussão e delimitação de conceitos e concepções. Através de encaminhamentos, ligamos, vamos às sedes para ver o que funciona para fazer o encaminhamento para eles. E também através da Rede RECIZON onde é realizada uma vez por mês, em diferentes instituições que compõe a Rede. Sempre uma instituição se apresenta, falando de seus programas, seus serviços. É imprescindível essa comunicação entra as instituições da Rede. E sempre que aparece uma nova, nós tentamos ir lá, nos apresentar e se for o caso chamar para compor a Rede. Existe uma coordenação dessa Rede, que fica responsável pela divulgação das reuniões, por definir data e fazer a ata. A RECIZON é somente da zona Norte, mas a Rede do SESC envolve toda a cidade de Niterói. No que diz respeito à infância é mais o ASEMA, no Morro do Céu tem, o próprio CRAS funciona dentro desse ASEMA. Já existia e o CRAS passou a existir lá. Tem também no Morro do Preventório, também está ligado ao CRAS que funciona dentro do ASEMA. Mas o ASEMA é mais trabalho infantil. Existe também o curso José de Anchieta, que trata de crianças com deficiência intelectiva, 331 déficit cognitivo. Tem tratamento e reforço escolar, para crianças e jovens. Tem também o CAPS infantil que é Clínica de Assistência Psicossocial, que funciona no Ingá (Psicóloga do CRASS Vila Ipiranga). As redes podem se situar no cenário da sociedade civil em uma condição bem singular: elas ao mesmo tempo são espaços nos quais diferentes intelectuais atuam nos processos de reprodução e produção de consensos sociais, como também podem se constituir em intelectuais coletivos que produzem ou reproduzem consensos em relação aos temas centrais de que tratam e que fortalecerão ou se confrontarão com os que estão em disputa na cidade, ou mesmo, no país. O que não significa que todas as redes desenvolvem esse potencial ou dispõem dessas condições. Provavelmente, parte das redes sociais se localiza em um espectro político e institucional bem mais restrito, como parte do rearranjo das políticas públicas diante da ênfase gestora que o Estado assume como parte da consolidação da hegemonia neoliberal. A participação dos profissionais de diferentes áreas nas redes e, sobretudo, de quais redes tendem a se aproximar e integrar é relevante para que possamos compreender o leque de interesses que as movimentam, desde a necessidade de romper o isolamento da ação profissional ou institucional até mesmo o alcance da perspectiva de consolidação de um sujeito coletivo capaz de produzir intervenções na cidade. Essa diversidade aparece no depoimento de uma profissional da área de assistência sugerindo alguns dos aspectos levantados como fatores mobilizadores dessa construção. Esses movimentos, essas organizações, os Comitês, as Redes, o próprio movimento da Rede é de altos e baixos. Normalmente são movimentos iniciados e compostos por pessoas de instituições que entenderam a importância do fortalecimento da Rede, que entendem que uma política social isolada não vai dar conta da realidade social que enfrentamos hoje. A Assistência sozinha, a Educação sozinha ou a Saúde sozinha não darão conta. Então, se não houver realmente essa articulação entre essas diversas políticas setoriais, a tendência é que as pessoas fiquem isoladas, com movimentos pequenos, menores, que beneficiam a própria instituição. Esses movimentos geralmente têm 332 esses picos entre altos e baixos. As instituições às vezes se articulam, essa questão das vaidades é uma coisa que acontece, a própria questão política de articulação ou não com o governo que está em vigor também é um fator que influência o movimento. Então há instituições que entram de alguma forma beneficiadas pelo governo, e eu vejo que também há uma questão de militância dos próprios profissionais que atuam nessas instituições e que, para além das instituições, existem pessoas que são sérias, pessoas que têm esse olhar da importância da articulação, da importância da Rede. Quando essas pessoas saem ou deixam essas instituições por algum motivo, a coisa esfria, a não ser que tenha deixado raízes ou outras pessoas prontas para estarem se articulando (Assistente Social ONG Região Oceânica). Durante o processo de entrevista nos deparamos com uma intensa mobilização no âmbito do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente com relação ao fechamento do Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente (CRIAA), uma unidade vinculada à UFF e que ocupa um lugar particular na rede de serviços do município em relação à questão do uso e abuso de drogas junto à população infanto-juvenil da cidade. Embora vinculado a uma instituição pública federal, não se trata de um serviço na essência do termo, mas de um programa que tem um caráter não permanente que acentua a carência que existe no município de estruturas de atendimento centradas nos órgãos públicos. A narrativa do Diretor do Centro apresenta uma perspectiva de compreensão da importância de participação nas redes da cidade como parte de um esforço de produção de uma cultura que rompa com a lógica da setorialização que integre as diferentes áreas profissionais, mas não deixa de situar que não se trata de uma solução mágica para os problemas das políticas públicas e que tão pouco esteja isenta de conflitos e contradições. A gente pega um garoto que usa crack e vou interná-lo por quanto tempo? Há casos em que a síndrome de abstinência do crack dura seis meses. Ele não vai poder ficar internado por seis meses. E ele não tem um quadro para estar internado. Então começamos a reavaliar. Hoje só internamos quem está correndo risco de vida (para si ou para o outro) e que não consegue, em hipótese nenhuma, parar. Esses são os que a gente interna: os que não conseguem parar e os que estão correndo ou oferecendo risco de vida. Fora disso, nós temos medicação para isso, o ambulatório dá conta. Então a gente cria modelos CAPS. O CRIAA, hoje é o único CAPS de criança e 333 adolescente que tem e está no regime de “hospital dia”. O adolescente vem para cá e passa o dia inteiro aqui. Quanto aos mais graves, a idéia é que passem o dia aqui e à noite vão para o abrigo. À noite eles não podem voltar para a comunidade porque não se garantem ainda sem usar. E, normalmente, a família também está envolvida, não é só o usuário. Ou ele vai para a escola de manhã e passa a tarde no CRIAA ou o contrário. E aí, a gente vê o seguinte: não tem que haver clínica de recuperação para internar. Também somos a favor de acabar com os manicômios. Claro que existem necessidades que, em caso de gravidade, tem que se internar. Não podemos destruir o manicômio. Pode diminuir, mas tem que existir. Então, o que é que a gente viu? Vimos que quem tem que funcionar é a Rede de Assistência e não mais um núcleo de internação. Com isso, começamos a participar do Movimento. Aproximamo-nos do Conselho Tutelar, começamos a participar do CMDCA, fomos para o Fórum, para a Rede, estamos direto nos encontros. Começamos a participar direto da Rede de Atenção, levando esse tipo de atendimento e conscientizando as pessoas de que somos apenas um elemento na proteção. Não adianta o garoto vir para cá, ficar o dia inteiro e à noite voltar para casa aonde o pai é usuário ou a mãe é usuária ou, ainda, “a boca” é dentro da casa dele. Por isso tem que ter um apoio. Preciso que o assistente social vá e que faça alguma coisa. Eu preciso que o médico de família esteja lá dentro também. Todos têm que trabalhar juntos. Vir só para cá não funciona. Foi aí que a gente começou a se aproximar. A gente faz parte da Rede, muito mais tentando fazer - não gosto muito disso não, mas estamos tentando - organizar a Rede, porque ela não é organizada, no sentido de não existir a visão de que um elemento completa o outro. Parece que eles fazem parte da Rede, mas são vários elementos na Rede, não vêem um completando o outro, que é o nosso interesse. Então, estamos fazendo esse trabalho. Fomos até eles para cuidar da criança e do adolescente, buscar um resgate da família, das condições da casa, saúde básica, etc. (Diretor do CRIAAUFF). A abordagem crítica acerca do potencial das redes deve ser um exercício constante da própria prática política daqueles que almejam construir de fato políticas públicas, sob o risco de deslocar para as redes funções que são constitucionalmente do poder público. Esses limites, no cotidiano das experiências não são facilmente identificáveis, em especial sob a hegemonia neoliberal e das estratégias de esvaziamento do teor público do Estado e político da sociedade civil que se mascaram nos processos de valorização do chamado “terceiro setor”, do empreendedorismo pessoal e social e da revitalização da filantropia. A relação entre rede e intersetorialidade não pode ser tomada automaticamente, tanto uma quanto a outra são experiências que comportam tensões e contradições e podem se 334 vincular a distintos projetos societários. Nesta direção, a narrativa que se segue destaca um elemento crucial em relação à problematização das funções políticas e sociais das redes apontando para a tendência de não diferenciação dos significados que têm as redes sociais em relação à própria rede pública: primeiramente observado pelo uso recorrente e indiferenciado do termo em vários contextos e em segundo lugar alertando para a possibilidade de deslocamento para as “redes”, como se fosse de sua competência e autonomia, os processos que possuem uma institucionalidade afirmada nas legislações e políticas públicas. A gente tenta trabalhar bastante em rede, embora sejamos muito críticos com essas redes. Existem várias redes em Niterói. Todo mundo fala: “a Rede”. E aí ficamos confusos, qual Rede? Então, os profissionais da Educação falam “a Rede”, os profissionais da Assistência falam “a Rede” e os profissionais da Saúde, a mesma coisa. Nós, que trabalhamos nessa militância em defesa dos direitos da criança e adolescente, somos uma Rede, apesar de falarmos mais um pouquinho do sistema de garantia de direitos, proposto por Lei, proposto pelo ECA, em que vários componentes têm o seu papel muito bem definidos nessa Lei. Então trabalhamos muito nessa rede. Mas existe também, há 10 anos - o Fórum tem 15 anos e esta Rede tem 10 anos uma Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói. Esta Rede, desconsiderada por muitos, tornada invisível por muitos outros é que é a dificuldade de se trabalhar em Niterói. Porque reconhecer que Niterói tem crianças e adolescentes maltratados ou vítimas de violência é, ao mesmo tempo, negar os títulos que a cidade recebeu – como uma cidade que não tem analfabeto, como a segunda cidade em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e qualidade de vida, quinto IDH no Brasil e primeiro no Estado do Rio de Janeiro. Então se confunde esse tipo de coisa. Sendo assim, falar de violência, da quantidade de crianças em situação de rua, que para as autoridades locais não são nossas; são de São Gonçalo, Itaboraí, Maricá, mas nunca nossas, reconhecer estas coisas significa que se está negando esses títulos todos. Então, para que ter uma Rede especial para esses atendimentos? Como vamos ter serviços especializados para esse atendimento? Eu acho que o governo, este último que está saindo, viveu essa crise de identidade – como conviver com esse ufanismo todo e com essas mazelas que estão aí a olhos nús? Então esse é que é o nosso trabalho, que é muito invisível, de denúncia, de se tentar modificar esse quadro, cobrando serviços especializados. Atualmente a grande vontade de “tapar o sol com a peneira” é em relação à drogadição. Os meninos e meninas que estão se drogando ou comercializando a droga em Niterói, também não são de Niterói, né?! Nós que estamos nessa militância não queremos saber disso, queremos saber que essas crianças vivem de alguma maneira em Niterói, mesmo que estejam de passagem, mas acreditarmos que eles são daqui 335 mesmo, apesar deles serem intitulados como não sendo daqui (Membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Fórum DCA). Tanto a Rede de Saúde Mental quanto a Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente expõe problemas gravíssimos que a cidade vive e tem dificuldades de reconhecer e enfrentar em relação à infância: a questão das drogas e da violência. Cabe destacar que do ponto de vista do sistema de garantia de direitos estamos lidando, em primeiro lugar, com situações de violação dos direitos de crianças e adolescentes e também com a perspectiva de ameaça dos mesmos para a população quando pensamos no potencial e extensão do problema. Problemas que a cidade pela forte produção ideológica em torno dos elevados índices que aferem o desenvolvimento humano e a qualidade de vida tem dificuldade de aceitar e cuja estrutura de serviços sociais, em particular, no âmbito da Proteção Social Especial na área de Assistência Social ainda é nova e insipiente para dar conta. As duas redes, embora englobem instituições de atendimento vinculadas à esfera privada entre seus participantes, cabe destacar, não apontam para a construção de soluções e alternativas de enfrentamento desses problemas que fortaleçam a atuação das instituições da sociedade civil vinculadas à prestação direta de serviços sociais, ao contrário, atuam no sentido de fortalecimento da política em sua dimensão pública e passam a ter um papel importante de cobrança e denúncia em relação ao poder público. Eu não sei se é bom ou se é ruim, mas Niterói, perto de outros Municípios, parece que está em relação à estrutura, anos luz na frente. Mas a gente que está aqui fica numa aflição e num desespero enorme por coisas básicas. Se você for conhecer um Conselho Tutelar verá a precariedade que existe. Eu, no CMDCA digo para os Conselheiros que se eu fosse um deles, me negaria a trabalhar nessas condições. Há algumas coisas em que precisamos nos posicionar. Por exemplo, o Núcleo fica no quarto andar. Quando descobrimos este espaço achamos legal, mas eu disse que tinha que ter telas de proteção nas janelas. Aí, começamos a esbarrar em algumas coisas. Não, porque o prédio é do INAMPS, é um edifício que não pode botar tela. Eu me propus a ir para a Justiça. Como trabalhar com crianças no quarto andar sem tela? Então, tem algumas coisas mínimas que temos que 336 reivindicar. Não tem a possibilidade de atender uma criança em uma estrutura em que a criança pode sair correndo e se jogar. Por incrível que pareça, mesmo com esta estrutura tão ruim, é muito melhor que muitos lugares que eu conheço. E isso é um misto muito grande. Quando você sai para conhecer outros lugares, vendo Niterói como referência, participando das discussões, vemos que realmente temos muita coisa na frente sim, mas ainda precisa caminhar muito (Coordenador do NAECA). Segundo Alexandre Nascimento, psicólogo e ex-presidente do I Conselho Tutelar de Niterói, que participou do processo de organização da rede e produziu uma importante sistematização de seu processo, a rede surge em 1998 com “o Juizado da Infância e Juventude, o Conselho Tutelar, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude e a ABRAPIA85, motivados pela necessidade de evitar a duplicidade de procedimentos e a revitimização dos atendidos por estes órgãos” (NASCIMENTO E ROCHA, 2006). Inicialmente a rede foi denominada como “Rede de Atendimento Integrado à Criança e ao Adolescente Vítimas da Violência Doméstica”, e a partir de 2001 passou a ser chamada de “Rede Municipal de Atendimento Integrado à Criança e ao Adolescente Vítimas de Maus Tratos de Niterói”. Em outro estudo realizado sobre a experiência da rede, realizado por Luiz Felipe Cardoso Santos (2006) junto aos seus integrantes, muitos alegavam desconhecer as mudanças de nome, o que em sua abordagem aponta indica que tais mudanças procuravam expressar a necessidade de ampliação das questões que devem ser consideradas no trato da violência como um fenômeno complexo e que de certo modo propiciaria a participação de outras instituições. A gente participa da Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói e de certa forma o poder judiciário teve uma importância na constituição da rede, porque ela começou, apesar dela ter esse nome amplo hoje, ela nasceu especificamente com a preocupação de atendimento a crianças e adolescentes vitima de maus tratos, ela surgiu nesse sentido, e quem começou a dar esse ponta-pé foi o ministério publico e o judiciário, porque chegavam aqui essas situações e não se tinha para onde encaminhar. Também outra questão que se viu era a importância de se discutir qual era esse fluxo 85 Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência. 337 de atendimento para essa criança, para esse adolescente que era vítima de maus tratos, e que de certa forma ele tinha que repetir seu histórico em vários espaços, serem vitimizados várias vezes, então a rede surgiu com esse propósito, que era articular a área governamental e não governamental para discussão dessa problemática e levantamento de proposta de trabalho, e daí surgiu o atendimento no município, que é o Núcleo de Atendimento Especializado da Criança e do Adolescente, que é o NAECA, que surgiu a partir do fruto dessa rede (Assistente Social da Vara da Infância da Juventude e do Idoso). A construção do fluxo de atendimento de fato representou uma significativa conquista no âmbito das políticas da infância na cidade, aparentemente algo que deveria funcionar a partir das próprias diretrizes e garantias previstas no ECA só foi possível de ser estruturado pela ação coletiva de diferentes profissionais e instituições. Sua proposição, contudo, não se encerra numa perspectiva normatizadora, mas no sentido de integração dos serviços, revelando uma das dimensões da intersetorialidade que é a alteração dos processos de trabalho. Este fluxo, presente e destacado nas sistematizações que encontramos sobre a experiência (NASCIMENTO E ROCHA, 2006 e SANTOS, 2006), tem a seguinte estrutura: 1- A situação é identificada por instituições que aparecem no fluxo como Órgãos de Recebimento e Comunicação/Notificação composto por: Juizado da Infância e Juventude (Divisão Técnica); Ministério Público (Promotoria da Infância e da Juventude – Central de Inquéritos); Defensoria Pública (Núcleo das Varas de Família e da Infância e da Juventude); Secretaria de Segurança Pública (Delegacias e Disque Denúncia); Secretaria Municipal de Assistência Social (Projeto Sentinela e Projeto Volta Pra Casa); Secretaria Municipal de Saúde (Unidades de Saúde, Hospital Getúlio Vargas Filho e Programa Médico de Família); Secretaria Municipal e Estadual de Educação (Unidades Escolares); Hospital Universitário Antonio Pedro; Hospital Azevedo Lima; Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência. 338 2- As notificações são encaminhadas aos Conselhos Tutelares que atuam na estrutura como Órgão Centralizador das Notificações. 3- São acionados os Serviços de Identificação e Diagnóstico a Fundação para a Infância e Juventude (FIA) e o Programa Sentinela. 4- Fato Não Constatado se notifica o Conselho Tutelar. 5- Fato Constatado é encaminhado para os Órgãos Judiciais (Ministério Público, Promotoria da Infância e da Juventude, Central de Inquéritos, Vara de Família e Vara Criminal) e para os Serviços de Atendimento Terapêutico (Hospital Universitário Antonio Pedro, NAECA, CEJOP e Serviço de Psicologia Aplicada da UFF). Uma coisa importante sobre o trabalho do Núcleo é a Rede que a gente tem em Niterói. Foi nessa Rede que conseguimos tratar algumas estratégias bastante interessantes. Nós não somos um Núcleo do Conselho Tutelar, porém, basicamente só atendemos as crianças encaminhadas pelo Conselho Tutelar, porque na Rede, nós traçamos uma estratégia e montamos um fluxo baseado nas Leis (no Estatuto, o art. 13 fala que todos os casos de maus tratos e suspeitas têm que ser notificados). Sendo assim, uma vez que precisamos nos fortalecer e fortalecer toda essa estrutura que temos, o Conselho Tutelar recebe e avalia essa denúncia através da sua equipe técnica e, se houver a comprovação de que o caso é de violência doméstica, ele nos é encaminhado (Psicólogo Coordenador do NAECA). A sistematização do fluxo pela rede não foi a única ação que ela desenvolveu com forte impacto na cidade, também contribuiu com a implantação da Ficha de Notificação Compulsória de Maus Tratos criada pela Secretaria Estadual de Saúde e a Organização do I Seminário Vítimas do Silêncio – Rompendo o Ciclo da Violência Contra a Criança e o Adolescente realizado em 18 de maio de 2000. Com a proximidade do dia 18 de maio - Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual – Lei Nº 9.970/2000 – resolvemos por marcar o dia com um seminário, que teria como tema principal a implantação da Ficha de Notificação Compulsória de Maus Tratos, além de lançar a proposta da rede, mesmo que timidamente, para os demais segmentos: saúde, assistência social, educação e outros. A idéia era dar visibilidade a necessidade da notificação para o rompimento do ciclo da violência. 339 O I SEMINÁRIO VÍTIMAS DO SILÊNCIO – Rompendo o Ciclo da Violência Contra a Criança e o Adolescente é organizado então às pressas, apenas com os recursos dos próprios órgãos. O Dia 18 de Maio faz alusão à menina Araceli de Santa Catarina, que na década de 90, foi violentamente seqüestrada, estuprada e morta, um crime que escandalizou o país. O espaço utilizado foi o do auditório da FIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) com 100 lugares. O evento teve grande repercussão no município, atingindo os principais atores sociais que atuam com a problemática e lotando o auditório (NASCIMENTO E ROCHA, 2006: O II Seminário Vítimas do Silêncio foi realizado em 2001 focando o tema das políticas públicas e o envolvimento dos diferentes segmentos do poder público e o III Seminário foi organizado em 20 de maio de 2002, tendo como tema o “O desafio da integração do Trabalho em Rede”. O IV Seminário teve como tema a “A violência sexual contra a criança e o adolescente em no Rio de Janeiro e em Niterói” em 2003. E em 2005 foi realizado o V Seminário com o lançamento do “Plano Municipal de Enfrentamento à Violência Contra a Criança e o Adolescente de Niterói”. Além dos Seminários a Rede promoveu em várias ocasiões o Curso de Agente de Defesa dos Direitos junto a seis comunidades que indicaram seis instituições que atuavam com a questão da infância na área: associações de moradores, unidades de saúde, PMF, Programa Criança na Creche, Pastoral da Criança e ONGs que atuavam como atividades complementares à escola. Propôs a criação de Comitês de Defesa de Direitos e instituiu o dia municipal. Além de, por sugestão do II Seminário Vítimas do Silêncio, a Câmara de Vereadores através da aprovação da Lei municipal 1883/01 ter instituído o dia 04 de outubro como O Dia Municipal de Enfrentamento da Violência Contra a Criança e o Adolescente. Desde então, todo dia 04 de outubro e cada ano é realizada alguma atividade na cidade relativa aos direitos da criança e do adolescente. O porquê do dia 04 de Outubro? Em 04 de outubro de 2000, os órgãos de proteção da cidade de Niterói amanhecem de luto, recebíamos a notícia da morte de Adriano do Carmo Romão, 12 anos. Menino meigo que seduzia a todos por onde 340 passava, vítima brutal da violência do narcotráfico. Triste fim para este que alimentávamos tantos esforços e esperanças de transformar sua história de vida marcada por tantas violências. Foi ele vítima do abandono, da violência doméstica, de abuso sexual, da violência institucional e por fim, do narcotráfico. Todos os nossos esforços foram insuficientes para transformar a realidade de vida dessa criança, ficando para nós a lição do quanto precisamos ainda nos aprimorar para atender a problemáticas tão complexas como a que ele nos trouxe. Adriano se foi, mas ficou em nossa história como um ícone, que nos impulsiona a lutar dia-a-dia por equipamentos sociais capazes de lidar com realidades como a desse menino e tantos outros (IDEM, IBIDEM: 9). A Rede Municipal de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente de Niterói adquire uma singularidade em relação ao tema que abordamos por configurar uma experiência de intersetorialidade que contém diversas das marcas sinalizadas pelos autores que estudam o assunto: focalização em uma temática ou categoria social, a articulação de instituições públicas e privadas, a articulação do Estado com a sociedade civil e o desenvolvimento de ações voltadas para o enfrentamento da exclusão social - com destaque para a forma de relacionamento entre a sociedade política e a sociedade civil, que não se enquadra na tendência de esvaziamento político de um ou de outro como identificamos sob a hegemonia neoliberal -, mas também por fornecer nítidos sinais de constituição de um intelectual coletivo, capaz de elaborar, propor, mobilizar e difundir uma concepção de infância. Um dos entrevistados e integrantes da rede, o coordenador do NAECA, sinalizou um aspecto muito importante em relação aos serviços voltados para a infância e que, considerando-se as particularidades dessa rede, em especial no que tange ao fortalecimento da política pública, vale ser destacado. Trata-se da necessidade de territorializar o atendimento. Já referida nas narrativas dos diretores das policlínicas essa preocupação aponta mais do que um processo de descentralização do atendimento, pois ao se pensar na estrutura de um serviço do ponto de vista da população e de suas necessidades, leva-se em consideração a dinâmica territorial, não apenas como distribuição espacial dos equipamentos e serviços, mas como 341 estratégias de aproximação dos serviços à população, ao seu cotidiano e condições de vida. Um dado eu ainda não consegui sistematizar porque muita gente vai ajudar, mas tenho claro que não é um dado característico, não é exclusivo do NAECA de Niterói. Todos os Núcleos que fazem um trabalho com essa clientela têm um pouco dessa característica: uma evasão muito grande. É uma coisa que a gente vem pensando em avaliar bem. Uma das coisas que pensamos em fazer foi montar alguns Núcleos (na brincadeira chamamos de “naequinhas”) nas Policlínicas de referência, porque uma das grandes reclamações dos pais é quanto à questão da “grana”, do deslocamento, por exemplo: da região oceânica para cá, ou da região norte para cá. É real. Pensamos um pouco sobre isso e estamos no processo de montar um Núcleo na região da Engenhoca. Capacitamos a equipe e damos supervisão o tempo que for necessário. Na região oceânica também começamos a fazer, tem uns quatro meses, tendo também capacitado o pessoal em Itaipu, mas eles estão com problemas para juntar o pessoal dos Recursos Humanos... Mas, enfim, estamos tendo algumas reuniões (Psicólogo Coordenador do NAECA). Os serviços voltados para a infância na cidade indicam a complexidade que a própria infância assume na contemporaneidade. Não se trata apenas de se reconhecer a tendência de especialização do trabalho coletivo nesta área e que tem levado a uma ramificação do conhecimento e das práticas de atendimento, mas de compreensão de que as próprias práticas profissionais e institucionais integram um processo social contraditório no qual a infância ganha significados e lugares diferenciados, produzindo modos de perceber e lidar com essa realidade que impactam diretamente sobre essa categoria social e sobre as demais. A perspectiva inclusiva da educação especial, a efetivação do sistema de garantia de direitos, a abordagem dos ciclos em torno dos momentos do desenvolvimento humano, a cidade que educa, são mais do que propostas que se relacionam com a infância, são, na verdade, produções sobre a infância, práticas e discursos que desvelam modos de ser. O mapeamento dessa rede, em sua extensão e diversidade é um retrato da infância na cidade, ou para ser mais coerente, um retrato da infância que deseja a cidade, que a cidade foi capaz de produzir até o momento. 342 O que a gente carece atualmente, inclusive foi uma sugestão do Fórum da Criança e Adolescente quando recentemente fizemos a publicação de um catálogo em que a gente fez um levantamento de Instituições que atendem crianças e adolescentes no município de Niterói com o seu registro no CMDCA. Mais ou menos já fazendo um trabalho, que seria de todos nós, para a elaboração de um diagnóstico da infância e adolescência em Niterói. A metodologia desse diagnóstico é centrada nos territórios e seria um levantamento das políticas públicas existentes nos territórios, um levantamento das maiores ou de todas as violações existentes nesses territórios, porque na verdade, o benefício está todo dividido em territórios, mapeado em regiões, e a política de Assistência Social já trabalha com isso. Ela tem os seus centros de referência de assistência nesses territórios, a função destes é mapear e levantar esse diagnóstico não só para a criança e adolescente, mas para a família em geral - todas as políticas demandadas por esses cidadãos. Então, o que vemos de necessidade - e por isso é que foi criado esse catálogo? É que esse diagnóstico parta dessas Instituições que já atendem crianças e adolescentes de certos espaços, desses territórios. E por quê? Ali, aquelas instituições, não existem por acaso, elas só existem porque existem aquelas demandas. Então, se a gente tem 9 (nove) abrigos em Niterói, e a região do Norte e a região Oceânica concentram a maior parte dos abrigos... Por quê? E por que as outras regiões concentram alguns tipos de demandas? Esses “por quês”, essas causas todas, devem ser trabalhadas, elas devem ser contrapostas às demandas da Saúde, do Sistema Único de Assistência Social e da Educação. A Educação tem o seu levantamento, o que é muito interessante. Isso tudo faria com que a gente levantasse esse diagnóstico. Saber quais são as políticas que realmente estão sendo trabalhadas para que essas crianças e adolescentes não tenham os seus direitos violados ou fazer ao contrário, saber quais são os direitos violados que não são atendidos por nenhuma política do município e se estão sendo atendidos de maneira insatisfatória ou precária por Instituições que não estão preparadas para atender (Representante de ONG, Membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Fórum DCA). O monitoramento e a avaliação são de fato ações previstas nas políticas públicas, mas não integram ainda a rotina de trabalho das secretarias, fundações e órgãos de planejamento e controle social. A realização de tarefas como essas constam episodicamente de relatórios de gestão ou quando são freqüentes carecem de análises e avaliações mais consistentes que articulem aos indicadores das demais áreas. Os próprios instrumentos de planejamento, como os Planos Municipais, pouco destaque dão aos indicadores produzidos por cada uma das áreas que afeta. A produção da infância na cidade se entrelaça também com as práticas que se 343 dão no âmbito do controle social, não se restringindo à esfera da execução das políticas. Por esse motivo a atuação da Rede, do Fórum DCA e da Ação Intersetorial em alguma medida acenaram para as esferas de controle social, para os Conselhos Municipais, em especial, e para a construção dos vários Planos Municipais como uma etapa fundamental desse processo. Neste sentido, Niterói vive um momento muito particular se analisarmos a trajetória das suas políticas públicas de um modo mais amplo. A área da saúde tem uma história dinâmica e que de certo modo ousou experimentar, pela força da mobilização de seus profissionais em combinação com as decisões políticas que foram tomadas pelas gestões locais, modelos e concepções de organização da sua rede que produziram efeitos que impactaram não só nos serviços oferecidos como transbordaram em direção às demais políticas, produzindo uma série de pontas que foram tecendo a intersetorialidade a partir das particularidades dos territórios. A política de educação se estrutura a partir de uma história e de uma rede ainda recentes se comparadas com a estadual e com a forte rede privada na cidade. Também com base em conquistas dos profissionais e com a direção política de algumas gestões municipais produziu importantes avanços na afirmação, em um rápido período de tempo, de parâmetros políticos e pedagógicos sintonizados às lutas pela democratização do acesso à educação e de afirmação de um projeto que a fizesse se envolver realmente com a cidade, ainda que com desenvolvimentos marcadamente diferenciados em relação ao perfil da rede. Já a área de assistência é a mais nova a tentar estruturar uma rede apoiada na afirmação de uma política pública cujo histórico não só na cidade, como no país, se vincula a interesses de diversas ordens criando um campo, do ponto de vista teórico e institucional, muito impreciso e permeável a diferentes interseções com os fenômenos do assistencialismo e do clientelismo. Encontra-se ainda cambiante, pois se contou com a decisiva atuação de algumas gestões que, como na saúde e na educação propiciaram um avanço político, não dispôs das mesmas condições materiais que as demais, nem do ponto de vista de 344 equipamentos, uma frente de luta a ser travada cotidianamente, nem do ponto de vista profissional, pois há poucos anos realizou um concurso público, não dispondo, para tanto, de condições de produzir e acumular experiência e dispor de intelectuais que forjassem com mais enraizamento práticas institucionais coletivamente mais articuladas às das demais políticas. Mesmo diante de um quadro com adversidades bem visíveis produziu mudanças que são reconhecidas em outras localidades, incorporando deste modo a marca das políticas públicas da cidade no que se refere ao reconhecimento e diferenciação em relação às das demais cidades. As instâncias de controle social na cidade se dinamizaram a ponto de que as áreas da saúde, educação, assistência social, cultura, idoso, pessoa com deficiência, ciência e tecnologia, criança e adolescente, juventude e de atenção às drogas contam com seus respectivos conselhos. No que tange aos processos de discussão das políticas e deliberações sobre as políticas públicas a realidade se altera um pouco, pois a área da saúde já realizou 5 conferências municipais, as áreas da assistência e da criança e do adolescente já realizaram 7 conferencias cada uma delas e a de educação apenas 2. A importância desse processo pode ser medida pela incorporação no Plano Municipal de Educação e nas deliberações das últimas conferências municipais de assistência social e da criança e do adolescente, ambas realizadas em 2009, a afirmação das propostas de intersetorialidade. Assim, dentre as diretrizes aprovadas na VII Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente vale destacar: • Dar materialidade complementaridade ao e o “Orçamento Criança”, redimensionamento dos visando a investimentos intersetoriais que serão destinados às crianças e aos adolescentes no município. • Criar, fortalecer e garantir o funcionamento dos Grêmios estudantis em todas as unidades públicas de ensino fundamental e médio 345 instaladas em Niterói, assegurando o direito à realização de reuniões mensais entre o Grêmio e a direção das referidas unidades. • Criar e garantir o Fórum Municipal de Grêmios, garantindo estrutura e meios de divulgação, com direito a se reunir mensalmente com as Secretarias, e a indicar um observador para participar, com direito a voz, das reuniões do Conselho Municipal e Estadual de Educação. • Inserir na matriz escolar as temáticas: ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, Cidadania, Responsabilidade Social e Sexualidade, conforme os temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais. • Criar a figura do Conselheiro mirim dos direitos da criança e do adolescente, eleito pelo Fórum Municipal de Grêmios, com direito a participar de todas as reuniões do CMDCA, tendo direito a voz e acesso a todas as informações dos órgãos públicos. Em termos da construção social da infância as diretrizes aprovadas revelam um salto qualitativo importante em relação aos debates que vinham sendo travados nas conferências anteriores e frente às experiências da Rede e da Ação Intersetorial que se efetivou entre 2006 e 2008, por sinalizarem a continuidade das ações intersetoriais e incorporarem aspectos decisivos na consolidação das políticas públicas para a infância: a questão da participação e do orçamento. A cultura da participação pode ser forjada como parte do processo pedagógico, como princípio estruturador das práticas de socialização das crianças e dos adolescentes, como se coloca no âmbito da Cidade Educadora. Deste modo, o desejo de fomentar a participação social de crianças e adolescentes, com a qual tivemos contato na entrevistas com a assessoria técnica do CMDCA, aparece hoje como uma proposta aprovada na conferência municipal. Como elemento orientador das ações de uma política pública que, evidentemente, precisará também de vontade e pressão política para se efetivar como ação, mas que 346 já encontra ressonância nas propostas construídas nas outras políticas públicas. A importância de forjar esta cultura fica bem evidente quando verificamos as dificuldades que a população de um modo em geral tem para acompanhar e se fazer presente nos espaços em que tem direito a voto e voz e que decidem sobre suas próprias necessidades, como no caso dos conselhos, como nos sinalizou a Secretária do Conselho Municipal de Educação. Com isso já foi um ganho muito grande, porque os pais estão ali presente por mais que eles tenham dificuldade nessa participação. A gente sabe que eles têm muita dificuldade, tanto em conselho da escola quanto no Conselho Municipal de Educação, eles têm muita dificuldade, porque eles estão ali na presença de pessoas nomeadas pelo executivo, geralmente tem mais facilidade nessa inserção, nessa discussão, pessoal da Secretaria de Estado de Educação, tem representa dessa Secretaria, tem representante da Faculdade de Educação da UFF, obrigatoriamente é da UFF, única universidade pública da cidade, representante do sindicato dos donos dos estabelecimentos particulares. Quer dizer é um universo que para os pais e alunos da rede municipal é um universo bem difícil, de difícil participação, mas eles com o tempo... Acho que quando eles começam a perceber como é que funciona o jogo, que regra é aquela, eles já estão saindo e ai é complicado. Vem outro grupo, quer dizer, você tem de começar toda essa história novamente, até ele se interar desse universo (Professora – Secretária do Conselho Municipal de Educação). Em todos os conselhos de políticas essa participação se coloca como uma questão preocupante e um desafio para todos aqueles que lutam pelo processo de democratização das políticas públicas e das formas de interferência por parte da população. Mas na educação essa dificuldade tem contornos diferentes, pois a existência dos conselhos em nível nacional, estadual e municipal é anterior à nova arquitetura institucional construída a partir da Constituição de 1988 que orientou a composição e dinâmica dos conselhos das demais políticas públicas, prevalecendo, naqueles, práticas fechadas, endógenas e uma composição fundamentada na condição de especialista, muito embora isso esteja se alterando. Para se ter uma idéia da dimensão estratégica desse tipo de sociabilidade pela via da participação 347 política para as diferentes categorias sociais, não apenas como projeto de futuro, mas como experiência presente, basta comparar as dinâmicas dos conselhos das diferentes políticas na cidade, destacando que, conforme verificamos na análise das atas dos três conselhos, assistência social, criança e adolescente e educação, nos período da pesquisa, prevaleceram as discussões sobre: aprovação de atas, de prestação de contas e de autorizações de registro de instituições assistenciais; da necessidade de capacitação dos conselheiros tutelares e do Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária; e de funcionamento de unidades de educação infantil, respectivamente. As plenárias dos Conselhos, em sua maioria, são predominantemente técnicas e amarradas aos fluxos burocráticos, tornandose pouco atrativas para aqueles que não participam habitualmente e colocando em plano secundário, quando aparecem nas pautas, questões relativas à avaliação das deliberações e diretrizes das conferências e planos e, sobretudo, do orçamento municipal. Em relação ao Conselho de Educação cabe destacar que durante o período que antecedeu a discussão do Plano Municipal de Educação se procurou conduzir um processo de discussões mais políticas, mas após a aprovação do plano em 2007 o Conselho ficou praticamente todo o ano de 2008 sem realizar nenhuma reunião. As idas e vindas da política institucional em relação à dinâmica da própria área produziu descompassos que repercutiram na mobilização dos profissionais de educação em torno da própria discussão e aprovação do plano se comparado o processo de construção dos subsídios de 2003 e 2004 a o que ocorreu em 2007, como revela o resgate feito por uma das professoras entrevistadas e quem se debruçando sobre a sistematização do processo de construção do plano em seu mestrado. Eu posso dizer por que eu participei dos encontros dos seguimentos de ensino, que foi o encontro do ensino fundamental, o encontro da educação infantil, o encontro da educação de jovens e adultos em 2004, nessa época eu estava como supervisora de uma escola, aqui no município, uma escola enorme, porque eu era 348 supervisora da educação infantil até os jovens e adultos, então eu ficava responsável por toda educação infantil dessa escola, por todo ensino fundamental e por toda educação de jovens e adultos, então o quê que aconteceu comigo? Eu tive que participar de tudo, eu jogava em todas as pontas do futebol e eu lembro perfeitamente que com isso eu precisava estar presente em todos os encontros, articular todos os professores, discutir todas as temáticas específicas de cada seguimento de ensino dentro da escola, porque nesses encontros em 2004, eram encontros que foram chamados de pré-encontros da conferência que iria acontecer em 2007, então foi um encontro muito rico porque começou a discussão na escola, eu estava na escola, era supervisora e eu participei disso, eu chamava merendeira, eu chamava o servente para participar, os alunos, começaram a se organizar grêmios, então os alunos também participavam, os pais, foi uma coisa muito rica em relação à participação mesmo, e a gente pensava a escola que a gente queria ter, isso aconteceu em 2004. Em 2003 foi educação infantil, em 2004 o ensino fundamental e a educação de jovens e adultos e depois disso houve a saída da professora Felisberta e do professor Lincon. Já com o professor Valdeck e o professor Armando, quando a gente entrou em 2005 eles não conseguiram continuar esse movimento porque estavam começando, era muita coisa, enfim. E logo em 2005 houve uma greve enorme aqui no município como eu nunca tinha participado e os professores ficaram sem trabalhar quase quarenta dias. Nós não ganhamos um tostão, mas ficamos parados e isso gerou uma situação bem antipática. Aí passou 2005, entrou 2006 e eu acho que a coisa começou a esfriár, ficou esfriando, esfriando, esfriando e em 2007 tentou-se recuperar esse movimento, mas aí o movimento era da conferência e a conferência foi um momento assim mais de cidade de Niterói, foi um momento assim de sociedade civil mesmo, foi articulando todos os seguimentos de participação, de representatividade dentro da cidade, então o quê que aconteceu? Não era mais aquele encontro da rede municipal e eu acho que se perdeu, perdeu no sentido de que houve aquela discussão, mas no dia e se extinguiu. Eu senti falta daquela coisa da subseqüência, aquela coisa de você amadurecer, não haveria tempo, eu até entendo perfeitamente, eu acho que a vida da gente é uma vida muito corrida, mas eu tenho preocupação que tenha ficado muito mais de cunho burocrático do que de cunho político. Eu achei isso. E aí passou, aconteceu a conferência, o plano foi votado, demorou um pouco por conta das questões políticas aqui de Niterói e ele já foi aprovado e está aqui, a gente já tem o plano municipal aqui de Niterói e aí agora vem o CONAE, o CONAE é uma política nacional de discussão do plano nacional de educação, porque o plano nacional de educação está fazendo o seu aniversário de 10 anos e o plano é exatamente isso, ele precisa ser repensado e precisa ser, digamos assim, reformulado. E aí vem o CONAE e ele tem datas para que todos os municípios discutam novamente esse plano, as suas metas, discutam como está a educação a nível nacional. Eu acho que você vai discutir a nível nacional partindo da realidade do seu município, mas você precisa discutir as questões grandes da educação (Professora da Coordenação de Estudo e Supervisão Escolar). Retomando o significado das propostas aprovadas na VII Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, associada ao fomento 349 de uma cultura de participação como componente da sociabilidade na infância, as diretrizes apontam também para a questão do orçamento. Niterói viveu na gestão passada a experiência do Orçamento Participativo (OP), uma das marcas das gestões petistas, mas na cidade a condução do processo esbarrou em fortes resistências do poder legislativo e na cultura de associação das obras e intervenções urbanas na cidade aos vereadores e prefeitos. Além desses obstáculos, há de se sublinhar que dentro da própria administração municipal a construção do OP não contou com as articulações que pudessem de fato consolidá-lo como uma efetiva política de governo, o que em escala menor também faltou à questão da intersetorialidade. Embora tenha tido resultados concretos em termos de obras e de mobilização da população, através dos delegados do OP que representavam as diferentes comunidades e associações de moradores, não foi suficiente para consolidar uma cultura de participação e maior envolvimento das próprias secretarias com a questão orçamentária na cidade. Mesmo sem a amplitude e visibilidade que teve em outras cidades administradas pelos PT a experiência do OP na cidade produziu condições interessantes para a promoção de aproximações que poderiam ter potencializado ainda mais a intersetorialidade das políticas públicas. Ele tinha uma agenda de encontros para fazer a discussão orçamentária descentralizada e ai nós procuramos o OP e falamos da territorialização e que nós precisávamos ter uma interlocução. Nós conseguimos nos colocar na pauta das assembléias do OP. Nós fizemos um mapa de cada região de abrangência, quais são os bairros e as comunidades que vão estar nesse encontro. Nós fazíamos um mapa de Niterói e marcávamos todos os serviços que tinham naquela área, aí apresentávamos um slide que falava da questão da territorialidade e mostrava os serviços que tinha naquela área e devolvíamos em um questionário onde dizia se eles conheciam nossos serviços ali, os que a gente tinha apresentado e que outros serviços tinham na comunidade que eles reconheciam e utilizavam. Foi uma experiência muito gratificante. Dessas assembléias nós tirávamos os delegados da conferência de assistência, depois nós fizemos um documento para todos os delegados que foram tirados na assembléia do OP, devolvemos para eles o estudo e eles foram para a conferência de assistência com aquele estudo debaixo do braço. E foi muito interessante vê-los na conferência levantando a mão para opinar, mas não mais por aquela posição panfletária, mas com aquela fotografia do seu entorno e não era o meu bairro, pois ele era delegado de uma conferencia. Então, foi muito 350 interessante vê-los participar. A gente fazia esses encontros descentralizados antes da conferência para de fato ter um debate no território (Ex-Secretária de Assistência Social). Porém para uma das integrantes da equipe do OP, quadro político do próprio PT, sinaliza como uma das razões para que esta experiência não tivesse alcançado o mesmo patamar que atingiu em outras cidades está relacionada com as particularidades do processo político na cidade, seja no que diz respeito à já identificável dificuldade da gestão municipal petista em conduzir estratégias de maior integração do secretariado e de atuar nas práticas de pactuação com um sentido mais pedagógico em relação à viabilização da participação de diferentes segmentos sociais, seja em função de não ter rompido com as práticas de cooptação dos movimentos comunitários, uma variante da política partidária com forte lastro na cultura política brasileira. O que na verdade eu sempre falo é que a gente tem todo um processo em Niterói que eu acho que pode ter sido prejudicial que é a cooptação dos agentes comunitários. E isso vem lá desde a época do PDT. E quando o PT assume não rompe com essa lógica. Eu acho que isso pode ter contribuído muito para esse processo do OP, não houve uma política de movimento. Houve uma reafirmação da lógica de que vereador é que faz obra. Não houve também um rompimento de que vereador não faz obra que vereador faz lei. Esse rompimento não teve, inclusive, hoje a gente até ouve dizer que tem que dar obra mesmo para o vereador, a gente ouve dizer isso, o que prejudicou enormemente a situação do OP, porque era muito complicado você dizia: “olha, você tem que vir aqui para discutir as suas questões tanto a questão da educação como a questão do lazer”, só que aqui é todo um processo de discussão demorado e eu tenho que ver o que você quer, o que ela quer, um processo de democracia mesmo. Porque o OP também tem essa questão democrática de abrir mão da sua posição política, por conta do outro (Equipe do Orçamento Participativo). A questão do orçamento comparece de qualquer forma como um processo decisivo para a se pensar as políticas públicas hoje e que segundo a proposta aprovada na conferência municipal toca na dificuldade que é identificar e acompanhar os recursos que são destinados à infância nas diferentes áreas de políticas públicas. De certa forma essa preocupação 351 transpõe a temática da intersetorialidade para o campo do orçamento das políticas públicas. Algumas das dificuldades em torno da questão orçamentária, sobretudo, nas políticas voltadas para a infância decorrem também da prevalência da lógica imediatista que adquire contornos bem acentuados e forças de sustentação política no papel desempenhado pelas organizações não-governamentais na execução dos projetos assistenciais nesta área. Investir na consolidação de serviços implica reverter essa lógica e criar compromissos não perenes e pontuais, mas, de fato, consolidar uma rede com nítido caráter público. A dificuldade é o entendimento dos Vereadores, da Câmara como um todo, quanto à importância dessa política para Niterói. Volto a dizer que cai lá naquela coisa que eu disse no começo da entrevista, sobre o ufanismo, isso é muito difícil para Niterói. Niterói vai ter que superar esse desafio. Então, um vereador que é de um município que detém os melhores títulos, como é que ele vai trabalhar em uma política que só fala das mazelas? Por isso, acredito que esteja no começo e, ao mesmo tempo, não se operacionaliza essa política em termos financeiros para que ela justifique a ampliação desses recursos. Se você nunca gasta aquele dinheiro, mesmo que seja pouco, mas mesmo assim você não consegue executar (gastar aquele valor), por que é que eu vou te dar mais? Então é um pouco mais complexa essa situação. Você não consegue gastar porque você não consegue mostrar fragilidade. Se você não consegue mostrar fragilidade, não consegue que sejam aprovados projetos para combater aquela fragilidade. É um ciclo absurdo e vicioso. Além de tudo, Niterói ainda recebeu o título de “Prefeito Amigo da Criança”, mas foram a partir de alguns critérios muito genéricos, e puxados muito pela Educação. A Educação puxa muito por isso, com certeza. Mas a pré-escola não é o mesmo meio da Educação fundamental. A ampliação para o Fundo Municipal da Infância e Adolescência, uma das razões para que não se amplie muito esse fundo é assim: o fundo, como ele só apóia projetos, só pode apoiar projetos, baseado na Lei 4.320, o apoio desse projeto tem que se tornar uma política pública, então, lá na frente, torna-se um gasto para o município (Representante de ONG, Membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Fórum DCA). As infâncias que emergem desses processos na cidade, da combinação de diferentes experiências de intersetorialidade, são profundamente marcadas pelas contradições de uma cidade onde as políticas públicas estão ainda, de forma recente, construindo suas histórias, 352 seus encontros e consolidando ou expandindo suas redes. Esse percurso revela que as políticas para a infância estão sendo construídas em consonância com a própria infância da política na cidade, com sua capacidade infantil de nomear, de criar e de repetir por várias vezes as tentativas que a descontinuidade das políticas públicas, a hegemonia neoliberal e as cristalizações do poder na realidade local, reiteradamente, repõem ao lugar de “recomeço”. Nesta trajetória infantil alguns intelectuais apostam numa construção coletiva, pautada nas contradições da própria esfera política em suas diferentes amplitudes: político-partidária, societária, institucional e territorial; propondo e construindo possibilidades relacionamentos mais solidários, éticos e potencialmente criativos. de 353 Considerações finais. As experiências intersetoriais em Niterói foram se desenhando a partir da combinação das particularidades das próprias políticas públicas, tomadas em suas contradições e dinâmicas, ou seja, enquanto processos nos quais as lutas sociais ganham expressão em torno das possibilidades de controle social sobre os modos de sociabilidade e reprodução material das frações da classe trabalhadora. Deste modo, compreendemos a emergência dessas experiências como resultantes das disputas dos diferentes sujeitos coletivos em relação aos significados que a educação, a saúde e a assistência social devem ter enquanto formas de garantia das condições objetivas e subjetivas necessárias à continuidade do modo de viver, de localização na esfera da produção e de participação nas diferentes instâncias da vida social. Dizem respeito à constituição da reprodução social, em sentido amplo, das condições de existência dos viventes. Condições marcadas por processos institucionais contraditórios que, ao mesmo tempo em que integram as formas de subsunção da vida aos imperativos do capital, produzindo subjetividades conformistas à lógica do consumo e da acumulação incessante, também potencializam e constroem relações solidárias, desejos e esperanças impregnados por uma experiência coletiva e com sentidos humanizantes. As políticas públicas encerram essas possibilidades não alternadamente, mas como unidade de um mesmo processo de vida e reprodução da vida. As práticas sociais são adensadas pelas construções cotidianas nas quais as instituições públicas e privadas participam de modos particulares da reprodução dos valores hegemônicos e da produção da contra-hegmonia, realçando e esmaecendo as fronteiras do público e do privado na construção dos novos espaços públicos que surgem a partir da variedade de ações e formas de organização e manifestação de interesses das classes sociais. As políticas públicas em Niterói caminharam com elementos comuns, mas em ritmos e circunstâncias diferenciadas. A trajetória da política de 354 saúde expressa a construção de um modelo assistencial no qual a concepção de integralidade dos serviços conseguiu ser traduzida em uma experiência de organização da sua rede sintonizada à dinâmica particular de cada território. Neles os modos de vida das frações da classe trabalhadora puderam ser considerados em processos de trabalho que cada vez mais transbordavam para outras áreas das políticas públicas com um nítido sentido de constituição de novos espaços públicos. Constituiu-se, portanto, em uma experiência que não se restringiu aos territórios e aos relacionamentos equipamentos circunscritos de saúde, ao pelas práticas contrário, tais institucionalizadas equipamentos dos foram gradativamente sendo atravessados pelas práticas sociais dos viventes, assumindo feições cada vez mais públicas. Não se trata de desconsiderar a existência e a força das práticas hospitalocêntricas e de subordinação aos sabres médicos, mas de reconhecer que a disputa nesta área produziu vetores que potencializaram a construção de uma saúde pública mais próxima dos interesses das frações da classe trabalhadora e dos diferentes segmentos sociais que se utilizam dos serviços de saúde. As Unidades Básicas de Trabalho e a articulação territorial entre as policlínicas e o Programa Médico de Família são expressões desses vetores, condições objetivas a partir das quais a intersetorialidade encontrou sustentação nas práticas profissionais e sociais já em curso nos territórios. A política de assistência trilhou um percurso mais difícil, em razão de encontrar condições mais adversas que as demais políticas setoriais, muito embora dispusesse de pressupostos e diretrizes, advindos da Política Nacional de Assistência Social e do Sistema Único de Assistência Social, que encurtaram o processo de valorização da questão territorial para se pensar a dimensão territorial da oferta de seus serviços. A dificuldade residiu na articulação entre os interesses públicos e privados na condução das ações, o que não representou uma separação nítida e precisa, mas, sobretudo, práticas nas quais um se confundia ou assumia as prerrogativas 355 do outro. A ausência de equipamentos públicos já em funcionamento e de profissionais concursados não possibilitaram o enraizamento objetivo e subjetivo das práticas assistências nos territórios com a mesma magnitude, ou próxima, ao que ocorreu na área da saúde. A presença das ONGs, ainda que não deva ser tomada como expressão fechada de um único padrão de atuação, pois comporta também contradições importantes, conforme identificamos ao longo da pesquisa, sobretudo no processo de constituição das redes, contribuiu, sobretudo, para retardar a constituição de uma rede sócio-assistencial pública e dificultar a produção de uma cultura profissional mais próxima e sensível à dinâmica dos territórios. Diante de seu curto percurso, no entanto, se consolidou como uma área que a partir da natureza de seus programas, em particular o Programa Bolsa Família, contribuiu para a expansão das ações intersetoriais, ainda que não tenha tido nos seus serviços e projetos uma possibilidade com a mesma intensidade diante das próprias alternâncias e descontinuidades das equipes e instituições. Já em relação à política de educação observamos que a construção e expansão da rede municipal esteve diretamente associada ao processo de democratização do acesso à educação escolarizada. A partir de processos de gestão mais sintonizados às lutas travadas intelectual e politicamente no campo da educação e de suas contribuições para a construção de um determinado projeto societário a rede municipal passou a ser orientada pela perspectiva de encontrar a cidade, contribuindo para que ela se tornasse não apenas espaço, mas território vivo de experiências educadoras. Para tanto viveu de forma intensa em um curto período de tempo processos que nas demais áreas já se forjavam com mais lastro, como a construção do Plano Municipal de Educação e a realização das duas únicas conferências municipais da história da cidade, ainda que com dinâmicas diferentes. A educação infantil ganhou uma visibilidade na cidade na medida em que convergiram diferentes tensões e momentos da própria área no processo de organização de sua rede, revelando as dificuldades de 356 condução de uma política que nitidamente voltada para a democratização do acesso esbarrou na complexa trama de interesses e práticas sociais nas quais a mobilização social, o comunitarismo, a cooptação e a expansão privada da filantropia religiosa não produziram consensos suficientes para dar um padrão político-pedagógico comum ao esforço de reconhecimento da cidadania da infância na cidade. A função desempenhada pelos profissionais da Coordenação de Educação e Saúde da FME ganhou visibilidade pelo sentido político de sua percepção quanto às necessidades e urgência das práticas intersetoriais. Muito embora elas já se desenhassem na organização dos ciclos, no Plano Municipal, na Proposta Pedagógica da rede e, sobretudo, nas ações da educação infantil e da educação especial – nesta área, em particular, com uma presença já reconhecida nas ações intersetoriais -, foi a partir da atuação desses profissionais que a educação encontrou outros territórios nos quais as escolas se encontravam, mas cujas relações com os demais profissionais das políticas públicas não chegou a se desenhar de forma tão ampla. As construções das redes de serviços públicos da educação, saúde e assistência social e as articulações dos seus profissionais a partir de uma experiência que apontava para a superação de uma lógica fragmentada de enfrentamento dos problemas sociais produziram as condições a partir das quais a intersetorialidade ganhou a cidade como experiência instituinte. Não por ter representado o novo, mas pelo conteúdo político que procurou forjar como espaço não apenas de gerenciamento das ações públicas, mas por defender a dimensão pública dessas ações, interagindo nos territórios com os viventes, seus dilemas, suas necessidades e sua cultura, constituindo-se em experiência instituinte exatamente por apontar para outras possibilidades de sociabilidade. Em uma cidade que valoriza e preza os indicadores de qualidade de vida alcançados o desafio que se coloca para o campo das políticas públicas, sem desconsiderar a forte cultura de presença das instituições privadas na 357 oferta de serviços sociais, é o de assegurar essa qualidade de vida para todos. A democratização da educação torna-se um pressuposto básico deste processo e que vem sendo construída com a afirmação da condição educadora da cidade para além de um discurso institucional, mas como prática sustentada nas proposições da política educacional produzidas pelos profissionais da rede municipal. Os planos e as propostas voltados para o fortalecimento desta concepção são instrumentos importantes e não devem se restringir a uma determinada área. A contribuição da experiência intersetorial para a cidade está também no plano político, ou seja, em relação à incorporação desse princípio organizativo das políticas públicas e da relação do Estado com a sociedade civil para que se estabeleçam outras possibilidades de apropriação dos equipamentos e dos próprios espaços públicos. A intersetorialidade apoiada na valorização das dinâmicas dos territórios pode fortalecer a dimensão de uso (AGAMBEN, 2007) das políticas públicas na cidade, transformando os fluxos, as paisagens e os encontros em formas de sociabilidade que não aquelas que progressivamente transformam o acesso aos serviços como acesso à condição de consumo. As políticas para a infância, decorrentes das diferentes redes e das mudanças operadas na cidade em relação à expansão de novos espaços públicos, assim como a tentativa de consolidação de uma efetiva esfera pública com a dinâmica das conferências, uma presença mais efetiva dos profissionais e dos grupos sociais organizados nos conselhos de direito e de políticas, a continuidade e fortalecimento da experiência de orçamento participativo, acabam ressaltando os traços da vida urbana que na cidade lhe imprimem a perspectiva de viver uma infância da política. Um momento em que a esfera da reprodução social comporte experiências instituintes não apenas no plano educacional, mas nos modos de se pensar as políticas públicas, a infância e de viver na cidade. Dimensões que se não superarem os hibridismos de uma cidade que carrega fortes marcas culturais, econômicas e sociais da subordinação ao tempo veloz e globalizado de 358 nossa época ao menos possam lhe favorecer prosseguir criativa e capaz de produzir espaços de esperanças e de encontros. 359 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, Fernando Luiz. “Para além da descentralização: os desafios da coordenação federativa no Brasil”. In: FLEURY, Sonia (org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 77-125. ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Tradução Lisa Stuart. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2006. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2004. ________________. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ________________. Profanações. Tradução e apresentação Selvino José Assmann. 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Márcia Nico Evangelista – Mestranda em Educação pela UFF e professora da Fundação Municipal de Educação de Niterói. Rosana Ribeiro – Especialista em Políticas Sociais e assistente social da Fundação Municipal de Educação de Niterói. Justificativa: Este curso está sendo oferecido como parte das Atividades Programadas dos cursos de Mestrado e Doutorado em Educação da UFF de Márcia Nico Evangelista e Ney Luiz Teixeira de Almeida, respectivamente, sob a orientação da Professora Doutora Célia Frazão Soares Linhares. Constitui também parte do esforço de sistematização da experiência de intersetorialidade do Núcleo de Saúde e Educação da Fundação Municipal de Niterói a partir do território acompanhado pela Professora Rosana Ribeiro. O curso está sendo oferecido através de uma parceria entre o Projeto de Extensão Educação Pública e Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da UERJ, o Programa ALEPH – Formação dos Professores da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e a equipe do Núcleo de Saúde e Educação da Fundação Municipal de Educação de Niterói. Objetivos: Refletir teoricamente sobre os processos sociais e institucionais em curso hoje de interface das políticas de educação, assistência e de atenção à criança e ao adolescente no município de Niterói. Desenvolver atividades investigativas sobre a interface das políticas de educação, assistência e de atenção à criança e ao adolescente no município de Niterói e a construção do Plano Municipal de Educação em articulação com as atividades de pesquisa coordenadas pelos professores responsáveis pelo curso. Sistematizar a experiência de intersetorialidade desenvolvida pela Fundação Municipal de Educação de Niterói. 381 Vagas: 24. Metade para alunos ou profissionais de Serviço Social e metade para alunos de pedagogia e professores. Inscrição e Seleção: As inscrições deverão ser realizadas por e-mail no período de 28 a 30 de julho. Resultado: 06 de agosto. Os interessados deverão enviar mensagem de e-mail para [email protected] com arquivo anexado em editor de texto Word no formato RTF. Neste arquivo devem constar: 1- Identificação do interessado: nome completo, condição (aluno ou profissional de qual área), vinculação institucional, endereço de residência completo, telefones de contato (fixo e celular se tiver), e-mail de contato. 2- Breve apresentação de sua trajetória acadêmica e/ou profissional. 3- Texto justificando o interesse em participar do curso identificando as possibilidades de contribuição do mesmo para a sua formação e/ou atuação profissional. 4- Indicação da disponibilidade de horário para a realização das atividades de campo. Obs.: As Dias, horário e local: Terça-feira das 14:00 às 16:00 hs na UFF. Conteúdo e cronograma: 19/08/08 – Estado e Sociedade civil. Abordar os conceitos de Estado e Sociedade Civil problematizando a tendência a dicotomizar essa relação. Trabalhar o conceito de Estado ampliado em Gramsci. Levantar elementos para se pensar a relação Estado-Sociedade no que diz respeito à dinâmica das políticas públicas, constituição dos sujeitos sociais e políticos e com vistas a uma aproximação dessa relação na realidade local em Niterói. 26/08/08 – Investigação, sistematização e narrativas. Abordar os significados da sistematização e das narrativas como modalidades de investigação da realidade social que situam a centralidade da experiência dos sujeitos no processo de apreensão da realidade, estabelecendo um diálogo entre sujeitos que se propõem a produzirem e compartilharem olhares sobre trajetórias profissionais que não se desvinculam das trajetórias de vida e sociais de seus interlocutores. Orientar os participantes com relação aos processos de entrevista. 02/09/08 – Política educacional e experiências instituintes em educação. Abordar as tendências da política de educação no país e os projetos societários em disputa. As principais contradições presentes na área. Problematizar a compreensão da política educacional em sua relação com a educação como dimensão da vida social. O significado das experiências instituintes em educação. Orientar os participantes quanto à compreensão da dinâmica das experiências instituintes como unidade contraditória e não dicotômica. 09/09/08 – A política de atenção à criança e ao adolescente. Abordar a política de atenção à criança e ao adolescente no Brasil como campo de tensão. Problematizar suas formas de institucionalização e dimensões legais. Apresentação de como as redes instituicionais dessas políticas estão estruturadas no município. Orientar os 382 participantes para que compreendam as políticas públicas como campos discursivos e de práticas em disputa e não apenas em suas nuances legais. 16/09/08 - A política de assistência social. Abordar a política de assistência social no Brasil como campo de tensão. Problematizar suas formas de institucionalização e dimensões legais. Apresentação de como as redes instituicionais dessas políticas estão estruturadas no município. Orientar os participantes para que compreendam as políticas públicas como campos discursivos e de práticas em disputa e não apenas em suas nuances legais. 23/09//08 – A política de educação no Município de Niterói e a experiência de intersetorialidade. Abordagem da trajetória de construção da experiência de intersetorialidade em Niterói. A vinculação à trajetória das administrações petistas. A dimensão profissional e gerencial da experiência. A dimensão territorial. Histórico e estrutura das ações. Apresentação e mapeamento da rede de estabelecimentos educacionais. Orientar os participantes quanto ao processo de sistematização da experiência. 30/09/08 – Cidade, infância e política. Políticas Públicas, Intersetorialidade e Territorialidade. Abordar os conceitos de cidade, infância e política de forma a ampliar as possibilidades de compreensão desses fenômenos na dinâmica social e de seus relacionamentos com relação à constituição de campos de ação social via políticas públicas na dinâmica da relação entre Estado e Sociedade Civil. Problematizar o paradigma das cidades educadoras e a da infância como metáfora política. Orientar os participantes para compreender de forma mais ampla as expressões desses conceitos na realidade local. Abordar a tendência de organização e gestão das políticas públicas a partir dos conceitos de intersetorialidade e territorialidade. Orientar os participantes para a compreensão de como esses conceitos encerram possibilidades diferentes em relação à dinâmica da relação entre Estado e Sociedade Civil. 07/10/08 – O plano Municipal de Educação. Abordar o significado legal e político do Plano Municipal de Educação.Abordar o processo de elaboração do Plano Municipal de Educação de Niterói do ponto de vista da relação Estado e Sociedade Civil e de sua relação com a trajetória das administrações municipais petistas e da política de educação de educação. Orientar os participantes para a problematização dessa experiência em suas possibilidades instituintes. 21/10/08 – Projeto político pedagógico. Abordar o projeto político pedagógico como um processo institucional que possui um potencial instituinte e articulador das relações entre a educação com a dinâmica da cidade e das demais dimensões da vida social. Orientar os participantes a pensar o potencial instituinte da construção do PPP. 28/10/08 – Controle social nas políticas públicas: o papel dos Conselhos. Abordar os Conselhos Gestores de políticas como modalidades de democratização da relação entre Estado e Sociedade Civil. Problematizar sua trajetória no Brasil e histórico na realidade local em Niterói. Orientar os participantes para resgatarem sua dinâmica, composição e atuação em Niterói. 383 04/11/08 – Financiamento das políticas públicas. Abordar as principais formas de financiamento das políticas públicas no país hoje. O papel e composição dos fundos de políticas. O orçamento e a gestão orçamentária das políticas públicas e em particular em Niterói. Orientar os participantes do curso para levantarem e analisarem os orçamentos das políticas públicas em Niterói e a particularidade do Orçamento Participativo na Cidade de Niterói. 11/11/08 – Debates sobre as entrevistas e levantamentos realizados. 18/11/08 – Debates sobre as entrevistas e levantamentos realizados. 25/11/08 – Debates sobre as entrevistas e levantamentos realizados. 02/12/08 – Debates sobre as entrevistas e levantamentos realizados. 09/12/08 – Entrega do trabalho. 16/12/08 – Avaliação e devolução comentada dos trabalhos. Condução pedagógica: O curso será realizado de forma a estabelecer um diálogo entre os professores coordenadores e os participantes visando uma aproximação crítica e reflexiva sobre a realidade das políticas públicas em Niterói. Os temas propostos serão debatidos a partir de textos elaborados pelos próprios professores e com o apoio de bibliografia pertinente aos assuntos abordados. Ao longo do curso os participantes desenvolverão atividades de levantamento de dados e realização de entrevistas como parte das atividades do próprio curso em articulação com as pesquisas dos professores coordenadores assim como com o processo de sistematização da experiência de intersetorialidade da equipe do Núcleo de Educação e saúde da Fundação Municipal de Educação. Avaliação: Ao final do curso os participantes deverão entregar um trabalho com cerca de 8 páginas analisando a partir dos conteúdos vistos no curso a articulação das políticas públicas no município de Niterói ou o processo de construção do Plano Municipal de Educação. Certificado: Serão considerados aprovados e receberão o certificado do curso os participantes que integralizarem 80% de presença nas aulas, realizarem as atividades de entrevista e levantamento de dados e entregarem o trabalho final do curso. 384 ANEXO 2 Mapa da Cidade de Niterói. 385 386 ANEXO 3 Mapa da Rede Física de Saúde do Município de Niterói. 387