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Sartre e a consciência no processo da construção de si: o “Eu” como valor e
projeto
Carlos Eduardo de Moura *
RESUMO
O texto tem como objetivo mostrar a importância do pensamento de Sartre sobre as
significações em torno do conceito de sujeito, sobretudo no processo da construção de si. O
homem, livre criador de valores e significações, deverá superar a angústia e o desespero
inerentes às suas escolhas concretas: é a construção de seu projeto. O homem sartreano será
compreendido como fundamento (projeto) de si, como desejo e falta de plenitude. É deste
modo que o para-si (movimento, temporalização, processo de historialização) encontrará no
mundo a possibilidade da realização de seu projeto fundamental. Caracterizado como potência
de simbolização (linguagem, conhecimento), o sujeito terá na consciência (na relação consigo,
com o mundo e com o Outro) o projeto de fundamento de si. Por fim, procurar-se-á relacionar
conceitos morais em Sartre (autenticidade, inautenticidade, liberdade engajada, autonomia,
conversão, generosidade) com a construção de um “projeto consciente de si” como projeto
visando um fim: é o processo livre de formação da personalidade.
Para se compreender as reflexões em torno deste tema, será preciso ter como “pano de
fundo” três pressupostos fundamentais:
1º pressuposto) ao refletir-se sobre as questões em torno do conceito de “sujeito”,
tanto na dimensão individual (singular) quanto na dimensão social (coletiva), encontrar-se-á um
indivíduo diante do processo da construção de si, isto é, diante de um sujeito mergulhado no
mundo e assumindo responsabilidades: eis o homem enquanto fundamento de si, enquanto
projeto de si. Mas, o que seria, especificamente, “projeto de fundamento”? Seria o homem
*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
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estabelecendo-se como valor dentro de uma situação concreta no mundo, criando um sentido
de si a partir de suas relações com os objetos do mundo (com a matéria humanizada,
significada), com o Outro e consigo mesmo.
2º pressuposto) a consciência é livre, é movimento (é intencional, é criadora de sentido,
é abertura em direção ao ser, é desejo de ser, é falta de plenitude 1). Sendo assim, o
conhecimento, a linguagem, os símbolos, os signos, intrinsecamente ligados ao desejo de
construir um si (justamente pela falta de plenitude), caracterizam a relação da consciência com
o mundo enquanto uma relação existencial: é o para-si desejando a totalidade e o mundo.
3º pressuposto) a liberdade é acessível pelo engajamento do indivíduo no mundo; pelo
homem mergulhado na contingência, na finitude, na adversidade: é o homem em situação.
Portanto, é o seu ser-no-mundo que lhe possibilita o ato criativo.
Dados os pressupostos, propõe-se agora tomar como ponto de partida das reflexões em
torno do tema aqui proposto, a experiência do “Olhar”. Mas, por qual motivo? Ora, pelo fato
de que a experiência do encontro com o Outro se dá pelo Olhar (O ser e o nada, Terceira Parte:
o Para-Outro, item IV: o Olhar). No entanto, é preciso lembrar que jamais haverá, por esta
experiência do Olhar, uma fusão de consciências: não será possível experienciar a subjetividade
do outro do mesmo que ele a experimenta, do mesmo modo que ele a vivencia. No Olhar
(nesta experiência de um “ser-em-par-com-outro”) 2, o Outro é objeto real e fundamenta o
“ser-para-outro” 3 daquele que o olha: o “observador” não é mais o centro do universo, ele é,
agora, um “ser-olhado”. No Olhar, portanto, o sujeito experiencia sua “queda original” (a
passagem da soberania que era a experiência de ser um simples objeto para o Outro), de modo
que o “Eu” (o Ego, a psyché) e o mundo (os objetos, a matéria, o conhecimento, os conceitos, as
verdades, os valores, as normas) são também manipulados, utilizados e produzidos pelo Outro.
Dito isto, é possível afirmar que todo “conhecimento de si” é uma questão de ordem
1
A ausência de fundamento ou a gratuidade da consciência será compreendida por Sartre como falta (ver Caderno
XII, Diário de uma Guerra estranha). Essa falta existencial de ser é o reflexo da falta do Em-si e é essa falta (do Emsi) que possibilita a presença da consciência no mundo sob a forma do Para-si. A consciência é, enquanto desejo,
potência de simbolização para mostrar o mundo.
2
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France: Gallimard, 2001, p. 292.
3
Ibidem, p. 293.
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individual e coletiva: o sujeito individual (em sua percepção e em sua constituição de si) é
colocado em jogo. Os valores, os possíveis, a ação, a materialidade (a matéria humanizada)
esbarram na existência do Outro. O buscar um fundamento de si (o procurar constituir um
projeto de si) passará, necessariamente, pela tensão individual-coletivo. Mas, será exatamente
por esta tensão que o si se configurará como possibilidade de se instaurar uma “realidade
humana”. O sujeito (ator/agente) buscará um fundamento de si apenas enquanto um si-emvias-de-se-fazer: não haverá substancialidade ou conteúdo na consciência. “O Ego não está nem
formalmente, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo,
como o Ego do Outro.”
4
O si é projeto que se define e se fundamenta por seu fim (futuro,
possíveis; futuro/significação, passado/fundamento); ele não é o produto de uma interioridade,
ele não é sustentado por nenhuma substância e não possui qualquer conteúdo: o si é escolha.
Não há plenitude de ser, não há substância ou qualquer condição a priori que garanta a
instauração de uma “realidade humana” que suprima o desejo e a falta de ser (falta de
plenitude).
O si, enquanto Ego, Eu, psyché, é unidade transcendental dos estados e das ações
(sejam elas físicas ou psíquicas 5). O problema é quando o si, o Ego, o Eu, a psyché mascaram a
espontaneidade da consciência. O homem é livre (“não há diferença entre o ser do homem e
seu ‘ser livre’” 6), mas, o processo de individuação e de construção de si (a busca de
fundamento, o esboçar uma definição de si), somente é possível em situação: a escolha de ser
no mundo coincide com a descoberta do mundo. “Sem mundo não há ispseidade, não há
ninguém; sem a ipseidade, não há ninguém, não há mundo.” 7 O sujeito está sempre em vias de
se criar um si futuro em função dos possíveis que encontra no mundo que o rodeia: o si como
valor é procura (o valor como aquilo o que a consciência deseja ou uma falta que deve ser
preenchida).
Assim, o processo de fundamento de si se dá em situação, constituindo-se como um
4
SARTRE, Jean-Paul. La transcendance de L'Ego: Esquisse d'une description phénoménologique. Paris: VRIN, 2003.
p. 13.
5
Ibidem, p. 52.
6
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique.France: Gallimard, 2001, p. 60.
7
Ibidem, p. 141.
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perpétuo movimento de historialização, em que a criação de valores, de significações, de
sentidos, se configura como experiência angustiante da liberdade e ainda como experiência da
“queda original”: “a aparição, entre os objetos de meu universo, de um elemento de
desintegração desse universo, é aquilo o que eu chamo de aparição de um homem em meu
universo.” 8 O homem sartreano, por intermédio de uma consciência que não é substancial e
desprovida de estrutura, se insere no mundo através da vivência de três estruturas
fundamentais do ser: o Ser-em-si, o Ser-para-si e o Ser-para-outro. Tal vivência pode seguir-se
segundo uma postura autêntica ou por intermédio de uma estrutura de má-fé (inautêntica).
Nesta última, o sujeito procura constituir-se pela visão reflexiva de um si dotado de uma
natureza fixa, estável, segura e permanente sem que, no entanto, se perca a liberdade (postura
fadada ao fracasso!).
Mas o homem não pode atingir seu fim (tornar-se um Em-si) porque a consciência se
projeta sempre se lançando a um futuro, ela não pode tornar-se um dado estático, não pode
nunca coincidir consigo mesma. A consciência jamais poderá ser como uma mesa é uma mesa,
porque o sujeito tem sempre que enfrentar a angústia de sua liberdade e aceitar o fato de que
não pode se estabelecer no mundo definitivamente como esse tipo de pessoa (mal por
essência, justo por essência, generoso por essência). É assim que a ambição humana essencial é
criar um si semelhante aos outros objetos no mundo e permanecer, ao mesmo tempo, livre.
E o problema vai além, isto é, o fracasso também se dá ao procurar conceber o Outro
apenas como um objeto entre outros no mundo, negando-se uma das estruturas fundamentais
(uma estrutura ontológica) do ser: o ser-para-outro – um Outro que também olha, nomeia,
reflete e participa da construção do mundo. Mas, a consciência que o sujeito tem de si (e do
mundo) torna-se, indubitavelmente, objeto para outra consciência. A consciência é, enquanto
falta e desejo, potência de simbolização para mostrar o mundo. Mas isto não se realiza apenas
por um indivíduo, a potência “simbolizante” possui uma dimensão de alteridade que diz
respeito ao seu caráter não conclusivo. Isto significa que as coisas estão sob o olhar humano e
precisam ser decifradas; as coisas são humanas e portadoras de significações.
8
Ibidem, p. 294.
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O Para-si, portanto, é desejo de totalidade, desejo do mundo. É pela falta que ele se
lança em direção àquilo que lhe falta, em direção ao mundo. O mundo (Em-si) é sua
possibilidade e seu futuro. É na ausência de fundamento, na gratuidade, na faticidade, na falta
e no desejo de constituir-se como um em-si-para-si que é possível afirmar que “os valores
revelam a liberdade ao mesmo tempo em que eles a alienam”9. Ora, o processo da construção
de si deve passar pela dimensão da alteridade: o desejo de si, a “potência de simbolização”, a
falta, não são condições que pertencem apenas a um indivíduo, mas também aos Outros e será
na relação consciência/mundo que se produzirá conhecimento, linguagem, significações,
sentidos, valores, matéria humanizada, permitindo ao homem agir sobre o já criado: será neste
contexto que o sujeito buscará constituir o fundamento de si. Será por meio desta tensão
(indivíduo-coletivo) que se poderá falar de autenticidade, pois “Ser autêntico é realizar
plenamente seu ser-em-situação”
10
e toda situação implicará nesta relação tensional entre a
singularidade de um sujeito e sua relação com o universal.
Em O ser e o nada 11 Sartre nos mostra que a liberdade é ação e autonomia de escolha: é
a auto-criação do Para-si movendo-se no mundo e, ao mesmo tempo, transcendendo-o. A
liberdade do indivíduo apenas será acessível pelo engajamento de sua consciência no mundo e
toda ação, ao longo da construção de si, não encontrará nenhum princípio a priori que poderá
tirar-lhe a autonomia. O homem autêntico, portanto, será aquele que mergulhará na
contingência e na finitude e em seu ser-no-mundo e será a própria adversidade que lhe
proporcionará seu ato criativo. A angústia habita aquele que toma consciência de que é
necessário continuar a agir, mesmo que não conheça ou domine sempre as conseqüências de
suas ações. Mas é aqui que o sujeito constrói, ao contrário de um pessimismo ou de um mero
quietismo, uma “duração otimista” 12, colocando-o na dimensão da responsabilidade da criação
de sentido e afirmando a sua liberdade de criá-lo ou não.
Jean-Paul Sartre é acusado de pessimista quando insiste no capítulo Les relations
9
SARTRE, Jean-Paul. Cahiers pour une morale. Paris: Éditions Gallimard, 1983, p. 16.
SARTRE, Jean-Paul. Les Carnets de la Drôle de Guerre: Novembre 1939-Mars 1940. France: Gallimard, 1983, p.
72.
11
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France: Gallimard, 2001, pp. 528529.
12
SARTRE, Jean-Paul. L’existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996, p. 53.
10
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concrètes avec autrui em L’être et le néant sobre a inevitabilidade do conflito nas relações,
acusam-no de uma ontologia negativa das relações interpessoais. Mas ele mesmo sugere, em
uma nota de rodapé bem instigante, que essas considerações não poderiam excluir a
possibilidade de uma moral da libertação e da salvação e que deveria ser alcançada em termos
de uma conversão radical a uma valorização da liberdade. 13 Pela conversão radical, o sujeito
abandona a idéia de que a liberdade substantiva é possível, conduzindo-o a renunciar a
manipulação, a supressão ou a degradação do Outro, já que ele passa a ter a consciência de que
o Outro jamais poderá contribuir para a substancialização de seu si. A conversão radical é
marcada pela valorização do processo de criação de valor, sempre renunciando a criar um si
substantivo e compreendendo que os valores são dados (transcendentes) que dependem da
subjetividade humana.
O sujeito não pode ser visto como sendo apenas um produto de forças passadas
(hereditariedade, condições naturais e culturais), mas sim um sujeito livre, capaz de criar
sentido e de resistir às mudanças ou mesmo permiti-las.
A história de uma vida, qualquer que seja, é a história de um fracasso. O
coeficiente de adversidade das coisas é tal que é preciso anos de paciência
para obter o mais ínfimo resultado. Ainda é preciso ‘obedecer a natureza para
comandá-la’, isto é, inserir minha ação nas malhas do determinismo.14
As questões em torno da experiência de si encontram respostas por meio de
interrogações que examinam o vivido em suas estruturas fundamentais, abrindo-se na
perspectiva concreta da vida do sujeito, à sua história, aos outros, às suas experiências vividas,
fazendo esse sujeito ser aquilo o que ele é: questionar o mundo, a consciência, as
determinações materiais e históricas da praxis, conduz o homem à compreensão da
subjetividade. Talvez estes sejam alguns dos caminhos possíveis para se compreender melhor
as contribuições de Sartre sobre as questões em torno do conceito de “sujeito” – na dimensão
individual e social – e no processo de formação da personalidade, temas essenciais ao
13
14
SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant: essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 2001, p. 453.
Ibidem, p. 527.
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enriquecimento de numerosas disciplinas acadêmicas (antropologia, ciências sociais,
psicanálise, psicologia). O estudo é necessário, basta ter a coragem de “lançar os dados”!
BIBLIOGRAFIA
SARTRE, Jean-Paul. La transcendance de L'Ego: Esquisse d'une description phénoménologique.
Paris: VRIN, 2003.
___________________. L'être et le néant: essai d'ontologie phénoménologique. France:
Gallimard, 2001.
___________________. L’existentialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996.
___________________. Cahiers pour une morale. Paris: Éditions Gallimard, 1983.
___________________. Les Carnets de la Drôle de Guerre: Novembre 1939-Mars 1940. France:
Gallimard, 1983.
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