12/02/2015
Trágico e Cômico - Jornal da Tarde
“Sou eclético”. Essa é uma resposta bastante comum quando perguntamos aos outros sobre preferências musicais. Num tempo em que somos
obrigados a gostar “de tudo um pouco”, em iguais proporções, esse discurso soa muito bonito. Dá uma ideia de que a pessoa é tolerante, que não tem
“preconceito” contra nenhum gênero, de que está aberta a coisas novas. Na cenografia idílica desse mundo perfeito, todos os artistas — sejam eles bons
ou ruins —, devem ocupar os mesmos espaços na mídia, devem tocar no rádio o mesmo número de vezes e devem dispor do mesmo número de giga­
bytes em nossos iPods. Quando uma pessoa se define “eclética”, automaticamente se exime de emitir qualquer opinião. É a maneira mais fácil, rápida e
confortável de buscar aceitação nas mais variadas rodas. Não que seja errado ou proibido evitar opiniões fortes. Muitas vezes as pessoas realmente não
têm uma opinião formada, porque lhes faltam bases para isso. Às vezes, a desculpa do ecletismo até cai bem, para evitar mágoas. Mas na grande
maioria dos casos, esse suposto “senso comum” não faz nenhum sentido.
Quando o ecletismo vira uma ideologia e não nos é permitido manifestar preferências ou tecer críticas, temos um problema sério. Se apoiar nessa
muleta é um claro sinal de preguiça — e quem realmente acredita em seu próprio ecletismo e o usa como ideologia está sendo pusilânime. A pretensa
ausência de preconceito é usada apenas como forma de maquiar a falta de conceito. É característica natural do ser humano buscar sons que lhe
agradam, portanto é perfeitamente aceitável que cada um estabeleça suas preferências. Se um cara gostar de rock, talvez ele goste de blues,
possivelmente um indie ou punk, quem sabe um reggae ou até mesmo, vá lá, uma MPB. Agora, quando o sujeito diz que voa do death metal ao axé
sem qualquer turbulência, está apenas sendo hipócrita e mentindo deslavadamente — assim como é igualmente hipócrita se dizer torcedor fanático do
Corinthians e do Palmeiras ao mesmo tempo. É óbvio que ele vai gostar mais de um e descartar o outro. Ou talvez até odiar os dois, mas gostar de
ambos com a mesma intensidade é absolutamente inconciliável. Claro que tem gente que gosta das coisas mais contraditórias, mas a pessoa jamais vai
defendê­las com a mesma fé. O que existe são formas diferentes de manifestar essas preferências: umas mais fanáticas, outras mais ponderadas. Todas
são válidas.
Sou fã de rock e de várias de suas derivações, mas isso não implica num adesismo imediato. Faço críticas e também autocríticas quando julgo
necessário. Adoro blues, fusion e jazz, gosto de trilhas sonoras de filmes, mas aprecio outros gêneros, como R&B e soul. Gosto de algumas coisas da
Motown, mas não sou fã. Alguns gêneros eu aprecio com mais moderação, como reggae, eletrônico e DUB. Outros eu respeito, mas não gosto, como
MPB e bossa nova. Outros eu tolero, no limite, como o indie e o pop. Mas alguns gêneros soam como um insulto aos meus tímpanos, como emo,
pagode, axé, sertanejo e qualquer um desses hits popularescos. E não só porque é brega, não (Whitesnake é brega, mas á bão, sô!). É porque é ruim
mesmo. Desgraçadamente ruim. Gosto muito de viola caipira, e respeito o sertanejo da velha guarda, mas esse sertanejo­pop romântico é uma porcaria
pasteurizada e desprezível. E digo isso sem preconceito algum. Preconceito existe quando a pessoa julga sem conhecer — e esse sertanejo de auditório
eu conheço muito bem, porque está por toda a parte. Uma vez manifestei essa opinião no jornal e recebi uma resposta indignada do Zezé Di Camargo.
A discussão foi interessante, mas poderia ter sido muito mais se ele não tivesse usado a velha desculpa do preconceito contra sertanejos em sua
resposta. Claro que a turma do ecletismo veio a reboque para defendê­lo, usando um vasto repertório de clichês. E não impressiona que uma discussão
que se propunha musical tenha repercutido (contra e a favor) dessa forma na blogosfera. Quatro anos depois desse “incidente”, ainda não ocorre a esse
pessoal que tem muita gente que simplesmente não gosta de música sertaneja.
Não estou sugerindo que roqueiros e pagodeiros quebrem seus instrumentos na cabeça uns dos outros. Só estou dizendo que temos de preservar o
direito a livre opinião. Paulo Francis, por exemplo, classificou fãs de rock como “animais invertebrados” (me divirto com essa frase, apesar de me
considerar um animal vertebrado). Quando se impõe o ecletismo aos outros e se usa o preconceito como argumento, invalida­se o debate. Aceitar
críticas (mesmo as mais severas) é absolutamente necessário. Sem o contraditório, não se avança, não se esgotam todas as possibilidades, não se
buscam novas fórmulas… caímos num vazio reflexivo e mental. Se os artistas vivem repetindo o mantra “bem ou mal, falem de mim”, por que não se
aproveitam dele como estratégia? Claro que é muito mais confortável se isolar numa bolha, filtrar críticas e só aceitar glórias a adulações. A maioria
dos artistas (especialmente os brasileiros) ainda precisa aprender a não se levar tão a sério. Precisa dar a cara a tapa, precisa aprender a encarar uma
crítica não como ofensa pessoal, mas como uma oportunidade para discutir sua obra. Só assim ele descerá de seu pedestal para encarar o mundo real.
Essa é a parte mais difícil para os artistas que se julgam “gênios” — mas, infelizmente, não vejo um horizonte possível aí. Pelo menos por enquanto…
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Diogo Salles (sobre o autor)
http://blogs.estadao.com.br/tragico-e-comico/tag/sertanejo/
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