O OLHAR DO PINTOR NA OBRA NARRATIVA DE ALMADA NEGREIROS (A INVENÇÃO DO DIA CLARO)1 Graça Videira Lopes (FCSH-UNL) Se há figura da cultura portuguesa que individualmente melhor encarne a personagem do artista multifacetado, essa figura é, certamente, a de Almada Negreiros. E isto é tanto assim que nem será mesmo necessária qualquer justificação: as múltiplas actividades artísticas pelas quais Almada se desdobrou – pintura, literatura, teatro, bailado, cinema, artes gráficas, mesmo o que poderemos chamar performances – são sobejamente conhecidas de todos para dispensarem apresentação detalhada. Na figura de Almada Negreiros convergem, com efeito, uma série de talentos e saberes, efectivamente cultivados, que o tornam um caso único no panorama artístico português, não só do século XX, mas, poderá dizer-se, de todos os tempos. Na verdade, se o contexto modernista é um poderoso impulso para a diversidade, convém igualmente enquadrar esta questão na perspectiva do próprio Almada, que, como se sabe, alia estas já de si múltiplas actividades artísticas às da reflexão sobre a Arte, numa série de textos teóricos que foi produzindo ao longo da sua vida e cujo interesse é indiscutível. Admirador confesso de Leonardo da Vinci mas também de Goethe ou de Voltaire, Almada tem das várias práticas artísticas uma ideia sincrética, de que o melhor resumo talvez seja o talvez inesperado elogio que faz do Renascimento, na sua conferência de 1933, intitulada “Arte e Artistas”: “Temos, pois, que na Renascença, a idade dos artistas, havia efectivamente artistas, isto é, indivíduos enciclopédicos, indivíduos de perfeito conhecimento geral. É sobretudo isto: indivíduos libertos das grades de cada profissão porque são mestres de todas. Isto quer dizer: artistas”. Se este ideal do artista total, à maneira renacentista, parece, pois, ser o horizonte de Almada, deve notar-se que a multiplicidade de práticas artísticas em que se desdobra (mais presente, é certo, até meados dos anos 20) se processa, de forma modernista, com uma evidente e deliberada contaminação entre modos e géneros, de que as performances (como, nomeadamente, a Conferência Futurista de 1917, no Teatro República) são o exemplo mais visível, mas que atravessa o conjunto da sua obra, mesmo a níveis menos contextualmente provocatórios. Refiro-me particularmente às relações entre pintura e literatura, mais concretamente às marcas que o pintor deixa nos 1 Artigo revisto, publicado originalmente em Rivisti di Studi Portoghesi e Brasiliani, VII, Pisa-Roma, 2006, pp. 23-32. 1 textos literários que produz, e que têm sido apontadas e estudadas de maneira genérica por críticos tão diversos como Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, Eduardo Lourenço ou José Augusto França2. Retomarei aqui o assunto, mas centrando-me particularmente naquele que Almada considerou um dia “o seu único livro”: A invenção do dia claro. Antes, porém, vejamos mais de perto o universo literário do pintor Almada Negreiros. Num pequeno texto que escreveu, em Abril de 1948, para o programa de um espectáculo do Teatro Estúdio do Salitre, e que intitulou “O pintor no teatro”, Almada define, logo em abertura, o lugar que é o seu: “Para falar de teatro, devo na verdade começar por dizer que sou pintor”. Na sequência, e deixando de falar na primeira pessoa, é a esse Pintor no teatro (porque “à noite não se pinta”) que Almada dá voz, numa terceira pessoa que reflecte sobre a “boa maneira” de ver teatro. A personagem que põe em cena neste curto texto começa por dar conta da sua estranheza face a categorias habitualmente usadas para classificar obras e autores, como “teatro de tese” para Ibsen, “teatro de ideias” para Pirandello ou “teatro social” para Lorca. A estas categorias, que o Pintor diz não entender, contrapõe a “maneira de ir ao teatro [que lhe] parece a boa”: “é o espectador que tem opinião e não a obra”. Porque, e continuo a citar, “dizia-me o pintor, não é pelo assunto que gosto da obra, é por uma ligação de tudo o que em cena põem diante dos meus sentidos”. O Pintor no teatro recusa, pois, que qualquer obra de arte seja entendida como simples veículo de opiniões intelectuais do seu autor. Até porque a arte, como diz ainda, é sobretudo “esta candeia terrena de nos alumiar cá em baixo: é recurso humano”. Intitular o seu texto “o pintor no teatro” e construí-lo numa espécie de desdobramento, dando voz directa a um alter-ego que é o Pintor, é, pois, mais uma estratégia de distanciamento do que uma reivindicação profissional, assente em qualquer espécie de clarividência artística ou olhar iluminado que seria biograficamente o seu. De facto, Almada, enquanto pintor (ou como qualquer pintor), pode ter uma percepção mais aguda da materialidade sensorial múltipla que é o teatro. Mas a perspectiva do Pintor que põe em cena neste texto é apresentada como “a maneira boa” de ir ao teatro: para todo e qualquer espectador o teatro é, ou devia ser, experiência sensorial completa e não apenas experiência intelectual passiva. Na verdade, para 2 Vide, sobretudo, Almada, actas do colóquio Acarte, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, com as intervenções destes e de outros autores. 2 Almada, e qualquer que seja o género artístico, a obra de arte, como uma candeia, “ilumina”, mas quem “vê”, efectivamente, é o espectador (o ouvinte, o leitor). Sem a sua participação activa, o artifício humano que é a arte não existe. O que o pintor, profissional do olhar, ensina no teatro é, portanto, a sair de um modo unilateral e redutor de entender essa actividade artística (ou qualquer outra, aliás) como pura expressão de ideias; a Arte é Artifício, ou artefacto humano, se quisermos. No teatro, o que o Pintor ensina é, portanto, a ver a materialidade desse artefacto – ou seja, a pôr em funcionamento todos os sentidos. Percebe-se assim que, para falar de teatro, ele comece por reivindicar a sua qualidade de pintor. De facto, cabe recordar que esta mesma reivindicação é frequente na obra literária de Almada. Explicitamente, embora em formas ligeiramente diferentes, ela aparece nos seus dois textos narrativos mais conhecidos, n’ A Engomadeira (1917), a abrir o capítulo X: “Talvez que o leitor não saiba mas eu também sou conhecido como caricaturista”; e no Nome de Guerra (1925, mas só publicado em 1938), logo no final do II capítulo: “O autor destas páginas também desenha3. E se estas são declarações explícitas, as alusões implícitas ao seu estatuto de pintor são inúmeras, a começar pela totalidade do seu outro célebre texto, A invenção do dia claro (1921), de que me irei ocupar um pouco mais à frente, mas cujo subtítulo, Ensaios para a iniciação de portugueses na revelação da pintura, é, desde logo, um excelente, ainda que algo críptico, resumo do texto que se segue e do papel central que a pintura aí desempenha. Note-se, aliás, que na capa da edição original desta “conferência” aparecia, desde logo, a indicação “Com um retrato do autor por ele-próprio”, seguida efectivamente por esse auto-retrato na página seguinte, o que é, no fundo, uma outra forma, esta prática, de afirmar que “o autor também desenha”. Na verdade, como é sabido, biograficamente Almada começa por ser publicamente conhecido como caricaturista (qualidade que assume, ainda em 1917, n’ A Engomadeira, como vimos). A sua primeira “saída a público”, exactamente enquanto tal, data de 1911, ano em que, ao mesmo tempo que termina o liceu, começa a colaborar graficamente em vários jornais. No ano seguinte aparece já “entre o grupo de desenhadores e caricaturistas que em Maio de 1912 organizam no Grémio Literário, em Lisboa, a I Exposição do Grupo de Humoristas portugueses, presidida pelo filho do já 3 A frase continua: “e não sabe expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa” – na afirmação de que o perfil de cada um é intransmissível. 3 falecido Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo”4. O cruzamento com o Futurismo, tanto pessoal como culturalmente falando (recorde-se que data desse mesmo ano de 1912 a primeira e ambígua crítica que o jovem Fernando Pessoa, seu amigo, escreve a seu respeito nas páginas de A Águia), vai ser decisivo para a definição dos caminhos não só estéticos, mas também artísticos que o jovem caricaturista Almada Negreiros vai seguir. Sendo um facto que “o grande Marinetti”, esse “genial iniciador” do movimento futurista (como Almada o designa), é essencialmente um poeta, como também reconhece5, talvez não admire, pois, que a sua colaboração no primeiro número do Orpheu, de Abril de 1915, não seja especificamente de ordem gráfica, como talvez fosse de esperar, dado o seu percurso até ao momento, mas consista num conjunto de pequenos textos de prosa poética, sintomaticamente denominados “Frisos”. Isto apesar de, no índice da revista, ele aparecer identificado como “José de Almada Negreiros desenhador”. Na verdade, “frisos”, em sentido próprio, são, como é sabido, barras com desenhos, pinturas ou baixos-relevos. E, de facto, os próprios textos que compõem o conjunto podem ser lidos como uma série de pequenos esboços em sequência que desenvolvem, narrativamente, imagens visuais. Alguns deles trazem mesmo a marca explícita disto mesmo, como é o caso do terceiro texto, intitulado “Sèvres partido”, onde o embrião da narrativa – sobre uma amazona, os seus galgos, e um pastor de flauta – termina abruptamente com uma frase incompleta e reticências, assim exemplificando graficamente o título (o prato partido); ou como é o caso, mais claramente, do último texto, intitulado “A taça de chá”, pequena narrativa de uma cena chinesa de amor e morte, cujo último parágrafo, graficamente isolado dos restantes, diz simplesmente, “desconstruindo” humoristicamente a narrativa: “A estampa do pires é igual” (note-se que a correspondente “taça” só aparece explicitada no título). Ao mesmo tempo, sendo este último parágrafo de “Taça de chá” igualmente o último da sequência “Frisos”, ele lança retrospectivamente uma nova luz sobre o conjunto de curtos textos que o leitor acabou de ler: estampas, imagens visuais. O que Almada faz, pois, nas pequenas narrativas experimentais de “Frisos” é uma inversão dos termos: ao contrário da prática tradicional, onde a pintura (nomeadamente a histórica e figurativa) parte de uma narrativa e lhe serve de ilustração, nesta sequência de “Frisos” são as narrativas literárias que glosam poeticamente 4 5 Almada Negreiros – Fotobiografia, Círculo de Leitores, 2001, p. 20 “Arte e artistas”, Obras Completas – Textos de intervenção, Lisboa, Ed. Estampa, 1972, p. 120. 4 imagens visuais, ou que as “ilustram” (se tal verbo pudesse ter algum sentido aqui). Pintura e literatura surgem, assim, profundamente associados nestas primeiras experiências literárias de Almada. Usando a linguagem e não as tintas, torna-se evidente que o autor de “Frisos” é, como ele próprio reivindica no índice da revista, desenhador (com toda a provocadora ironia que o processo inteligentemente contém). Há, pois, na obra de Almada, e desde os seus primeiros textos, uma contaminação deliberada não só entre géneros, o que é por demais reconhecido, mas igualmente entre diferentes práticas artísticas, especialmente as que ele mesmo pratica, com especial relevo para a pintura e a literatura. Os seus textos literários seguintes, nomeadamente os mais experimentais, como Mima Fataxa (desenvolvimento de um dos “frisos” com o mesmo nome, subintitulado agora “Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino”, e onde a música ocupa também um lugar central), Saltimbancos (subintitulado “Contrastes simultâneos”), Litoral ou K4 Quadrado azul continuam, à sua maneira (mais ou menos provocatória e conseguida), o mesmo processo de cruzamento de matrizes artísticas. São, se assim os quisermos classificar, produtos híbridos, manipulações genéticas avant la lettre, onde Almada dissemina um imenso manancial de recursos de todos os géneros, dos sonoros aos visuais e gráficos, em colagens que os transformam deliberadamente no que poderemos chamar telas modernistas escritas em português. Diga-se de passagem, apenas como nota, que há evidentes linhas de continuidade entre todos estes textos, os posteriores citando os anteriores, e com referências autobiográficas recorrentes, como é o caso da críptica ressurgência, em todos eles, da cor verde (que corresponde ao próprio Almada, no jogo iniciático de designação por cores, desenvolvido dentro do seu grupo próximo de amigos e amigas). Face a todas estas experiências radicais, A Engomadeira6 quase parece uma narrativa “clássica”, na sua assumida e visível intenção de “interseccionar evidentes aspectos da desorganização e descarácter lisboetas”. Como se disse antes, é n’ A Engomadeira (subintitulada Novela vulgar Lisboeta) que Almada se define explicitamente como caricaturista, o que não será por acaso. Talvez porque a técnica do traço largo da caricatura seja mais reconhecível em textos literários, naquilo que habitualmente se designa por sátira, a “expressão metal-sintéctica Engomadeira” (como 6 Publicado em finais de 1917, o texto é datado pelo próprio Almada, na dedicatória a José Pacheko que o abre, de 7 de Janeiro de 1915. Ellen Sapega demonstrou, a partir de algumas referências biográficas nele incluídas, que pelo menos uma parte dos capítulos terá de ser posterior a Abril de 1916. 5 Almada designa também a sua novela na dedicatória a José Pacheko), tem agora já um fio narrativo que, apesar de sinuoso, “interseccionado” e desembocando numa torre vomitando um anão (aparecido de geração espontânea, diríamos, por entre varinas e burgueses lisboetas de recorte “realista”), parece ainda assim mais familiar ao leitor, com a sua sequência mais ou menos cronológica, na qual se desenvolve mais ou menos uma “história”, entre personagens mais ou menos fixas, entre as quais sobressai o que poderíamos quase chamar um triângulo clássico, composto pela pobre e bonita engomadeira, o seu amante rico (o Sr. Barbosa) e o seu amante-artista pobre (o Eu, em constante jogo autobiográfico), trio esse que se move entre personagens secundárias igualmente com perfil mais ou menos definido, desenhado a traços largos (a mãe da engomadeira, a esposa do Sr. Barbosa, a varina, a senhoria, o engenheiro algarvio, antigo colega dos bancos do liceu, de visita à capital). As continuadas referências a um espaço e tempo histórico concretos (Lisboa, os conturbados tempos da I República, por alturas da declaração da Primeira Grande Guerra) contribuem para fazer de A Engomadeira um texto bem distinto de todos os que Almada tinha escrito até então, com uma matriz mais marcadamente literária, a da novela de costumes. O que não quer dizer que, igualmente, à sua maneira, não seja este um texto experimental. Deixando de lado os aspectos mais evidentes deste experimentalismo (como, por exemplo, o papel do fantástico, no surrealismo avant la lettre que Almada nele desenvolve), note-se que o olhar do pintor se pode detectar igualmente em múltiplos aspectos da novela, desde a importância da cor (A Engomadeira é uma novela colorida, uma tela modernista, em tons do Amadeo de Souza Cardoso desses anos, da Lisboa da I República), às construções sintácticas sensacionistas ou “cubistas”, se se quiser (“a porta abriu-se e uma cabeça de senhora de chapéu pedia licença…”; ou “descerrou as janelas co’os operários da obra defronte ao sol”), para não falar das mais largas descrições que, em planos cruzados, “desenham”, por exemplo, a Avenida ao domingo, ou a casa do Sr. Barbosa, nos chamados Bairros Novos7. Assim, se n’ A Engomadeira, a técnica gráfica da caricatura é mais facilmente transposta para a narrativa literária, não deixa de ser verdade que também aqui o leitor se encontra num 7 Capítulo VIII: “Um patamar, dois degraus, mais outros dois degraus, três lanços pra trás e pra diante sempre a subir, a porta da rua encostada… um candeeiro de petróleo em cima de um mocho de cozinha lá onde acabava a passadeira verde do corredor e muitos cheiros de pó de arroz, à esquerda, depois de uma canelada num caixote lacrado com Viseu em cima e cautela em baixo. Depois muita luz, muitos biombos, muitos retratos a carvão assinados Fonseca, muitos espelhos, muitos lacinhos frisados e ela na cama quadrada a fingir que dormitava numa gracinha travessa de camisa curta pelas vrilhas e peúgas de rapaz muito justas no cor-de-rosa duro” 6 território atravessado por múltiplas matrizes artísticas, e que apela para uma leitura “com todos os sentidos”. Mas é, de facto, n’ A invenção do dia claro que o Almada pintor e o Almada escritor e poeta mais profunda e declaradamente se entrelaçam. A invenção do dia claro será certamente o texto de Almada mais difícil de classificar. Como se sabe, no Verão de 1921, Almada anuncia uma conferência com este título, que teve efectivamente lugar na Liga Naval, perante um público que, certamente no rasto das suas célebres performances modernistas anteriores, acorreu em massa (e que passou das gargalhadas iniciais ao aplauso final em pé, como mais tarde Almada orgulhosamente recorda). O texto desta “conferência” saiu em seguida em edição própria, com capa do autor (como a maior parte dos anteriores textos referidos, aliás). A partir daqui, a edição do texto não tem sido evidente. Só para dar uma ideia, na edição das obras completas da Editorial Estampa, A invenção do dia claro vem incluída no volume “Poesias”. Na recente edição das suas obras completas feita pela Assírio e Alvim, a Invenção integra o volume intitulado “Manifestos e Conferências”. Reconheço, pessoalmente, a dificuldade da questão. E reconheço-a tanto mais quanto o título destas linhas fazem referência à obra narrativa de Almada Negreiros. Na verdade, se habitualmente se salienta o carácter poético deste particular texto, ou conjunto de textos, de Almada (alguns dos seus fragmentos fazem parte, aliás, de antologias de poesia, e têm integrado muitos manuais escolares nesta qualidade, como é o caso do célebre: “Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei”), mais raramente se tem feito notar que o conjunto de fragmentos aparentemente independentes ou em sequência fluida que o constitui, se estrutura, na verdade, como um todo bem organizado, cuja ordem é subtil mas declaradamente narrativa. Remeto o leitor para o índice que se fornrço em anexo (e que em geral não se faz)8. Segui-lo-ei aqui brevemente na descrição que farei da estrutura da obra (pedindo ao leitor para a ele regressar sempre que se sentir um pouco perdido). Repare-se, pois, que, apesar da aparente dispersão, o texto está, muito explicitamente, dividido em três grandes partes (ou capítulos), intituladas respectivamente, em dupla referência: 8 E edição da Estampa inclui, realmente, um índice; mas, para além de não estar completo, é graficamente discutível (por exemplo, o título da obra é graficamente idêntico ao das “partes”, e ambos, título e “partes”, graficamente idênticos a todos os restantes poemas incluídos no volume). 7 (I) “Andaimes e vésperas”, (II) “A viagem ou o que se não pode prever” (III) “O regresso ou o homem sentado”. Estes títulos, por si só, implicando uma sequência cronológica (vésperas, a viagem, o regresso), indiciam já que estamos perante uma sequência narrativa, uma “história” que se pretende contar. Mas o problema que se coloca ao leitor é o de que o conteúdo concreto destas três partes não parece corresponder a nenhuma estrutura narrativa tradicional. De facto, cada uma destas três partes é constituída por sequências de pequenos fragmentos, também aparentemente isolados, e também cada um com o seu título próprio. Note-se, no entanto, que todas estas três partes terminam com a indicação explícita do seu fim (fim da 1ª parte, etc., um pouco à maneira teatral, diga-se). Na verdade, esta estrutura complica-se ainda porque no final da primeira e da segunda partes aparecem novos conjuntos de fragmentos intermédios, as “Confidências” (um conjunto no final da 1ª parte, dois no final da 2ª, sendo estas últimas separadas ainda por um outro conjunto intitulado “Retrato da estrela…”; diga-se que todos estes fragmentos intermédios, sem títulos próprios no seu interior – separados apenas por um sinal gráfico –, são os textos mais líricos do conjunto, sendo todos os textos das “Confidências” dirigidos à Mãe). Por fim, e concluindo a descrição da estrutura da obra, antecedendo e seguindo estas três grandes partes referidas, A Invenção abre com um fragmento prévio, intitulado “O Livro”, também ele fragmentado, mas também em pequenas sequências sem títulos (e que pode ser entendido como uma espécie de Nota Prévia/Dedicatória, já que nele o autor se dirige também repetidamente à Mãe); e no final, logo após a 3ª parte, A Invenção termina com mais dois fragmentos, o primeiro intitulado “Uma frase que sobejou” (é apenas uma frase), e um outro, bem maior, que é o fragmento final, intitulado “A verdade”, fragmento esse que vem precedido de uma “Nota” (e é mesmo, graficamente, uma nota) que anuncia (cito apenas o início): “Seguem-se as démarches para a invenção”. Finalmente, ao longo de toda esta estrutura, há ainda algumas citações disseminadas. A estrutura da Invenção é, pois, complexa, mas nem por isso menos organizada. Esperando que o leitor tenha conseguido seguir (apoiado no índice) o parágrafo anterior, pode concluir-se que, em linhas gerais, o que daqui resulta é relativamente simples: introdução, narrativa tripartida e conclusão. Diga-se, aliás, que só não vê quem não quer: na capa, logo a seguir ao título A Invenção do Dia Claro, lê-se, como primeiro 8 subtítulo9, “Escrita de uma só maneira para todas as espécies de orgulho, seguida das démarches para a invenção, e acompanhada das confidências mais íntimas e gerais” – o que corresponde, quase literalmente à estrutura geral do livro (só não é referido o fragmento prévio, e “o que sobejou”). Cada uma das expressões, ou mesmo das palavras, deste subtítulo, mereceria um comentário particular, o que não vou fazer aqui. É legítimo, no entanto, concluir que, apesar de muitos dos fragmentos da obra poderem funcionar isoladamente, a estrutura que acima descrevi não é aleatória ou ocasional, é uma estrutura pensada e organizada. E isto ainda que o movimento de conjunto d’ A Invenção possa não ser imediatamente visível e necessite talvez, como Almada recomenda em K4 Quadrado Azul, de ser lido “duas vezes prós muito inteligentes e daqui pra baixo é sempre a dobrar”. Em resumo, a conferência-poema que é a Invenção é, pois, também a narrativa de uma Viagem, como os títulos das suas três partes indicam. Na verdade, se esta Viagem pode ser lida como um conjunto de percursos a vários níveis, todos eles bem interessantes e complexos, só irei me irei deter aqui num desses percursos, o que talvez possamos enquadrar no caminho que vai dos “Andaimes” ao “Homem sentado” (selecciono agora, deliberadamente, nos duplos títulos das partes, o primeiro e último), e que é muito claramente a narrativa do percurso rumo à “revelação da pintura” referido no segundo subtítulo da obra. Note-se, na verdade, que as expressões “andaimes” e “o homem sentado” são expressões que funcionam perfeitamente no contexto das artes visuais, incluindo a história da pintura (basta o leitor pensar na pintura da Capela Sistina por Da Vinci em contraste com o pintor contemporâneo no ateliê). Obviamente que o registo é aqui também simbólico e latamente biográfico. Assim, não é por acaso que a primeira parte (“Andaimes e Vésperas)” abre com a descrição de uma “oleografia que havia em minha casa” (na verdade, três, como nos é dito em seguida), e que a terceira e última parte (“O regresso ou o homem sentado”, o título completo) abre com o célebre texto sobre o desenho infantil intitulado “A flor” (“Pede-se a uma criança que desenhe uma flor”), seguido de um outro intitulado “A minha vez”, que continua a temática do desenho do anterior, mas que é escrito agora na primeira pessoa. O que se narra (poeticamente) é, pois, também uma viagem ou um percurso de aprendizagem pessoal, que parte das imagens populares e decorativas do universo infantil e familiar (a oleografia) e amadurece finalmente (passando por Paris, na segunda parte) na 9 Os dois outros são os já referidos “Ensaios para a iniciação dos portugueses na iniciação da pintura” e “Com um retrato do autor por ele-próprio” 9 consciência da Arte, mesmo se essa consciência inclui uma espécie de regresso crítico ao mundo da infância do qual se partiu (“O regresso” é exactamente o título da última parte10). É pois abertamente sob o signo da pintura (e com o epílogo de “A Verdade” – mesmo que “A Verdade” seja apenas a Démarche, a preparação ou condição prévia, para A Invenção11 e nos apareça em forma de estranha parábola), é pois sob o signo da pintura que termina a narração da viagem que é a Invenção do dia claro. Se esta viagem rumo à claridade é pessoal, e há, ao longo de todo o texto, um evidente nível autobiográfico (para além da figura da mãe desaparecida, a passagem por Paris situa-se igualmente neste nível), se o percurso é pessoal e a narrativa declaradamente biográfica, pois, convém, no entanto, não esquecer essa espécie de “aviso à navegação” afixado na 2ª parte, no fragmento intitulado “Eu”: “Quando digo eu não me refiro apenas a mim mas a todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa”. Narrativa de um caminho iniciático individual do artista-pintor Almada rumo à sua voz e ao seu estilo próprios (à “minha vez”), a Invenção pretende ser também, como diz o subtítulo já várias vezes referido “a iniciação dos portugueses na revelação da pintura”. Da pintura moderna e não-académica, obviamente, como a valorização final do desenho infantil confirma (ao mesmo tempo que abre as portas para o salto estético que Almada vai dar em seguida com a defesa da “ingenuidade”, literariamente correspondente ao seu texto seguinte, o “O Cágado”). Desta forma, o apelo a que o leitor entre “dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa”, para além de ser uma espécie de Invitation au voyage, um apelo à Viagem mais geral dirigido “a todas as espécies de orgulho” e a cada um, é também o apelo a que o próprio leitor veja, sentado (o leitor está sentado), o mundo iluminado que a “candeia” do pintor lhe mostrou – é que é, entre outros, o da arte contemporânea, certamente. Mas a estrutura complexa desse apelo, a estrutura complexa da Invenção, é, ao mesmo tempo e por si só, um convite constante à participação activa do leitor na construção do texto: para que suba aos andaimes, perceba a arquitectura ao mesmo tempo leve e complexa do que se coloca diante dos 10 “O regresso” à casa paterna, que é igualmente o país do qual se partiu, num sentido mais literal do termo “regresso”. Na verdade, a aprendizagem é também a de que o artista não vive sem o seu país de origem, como Almada refere em vários dos seus textos teóricos. 11 A “verdade” é o pressuposto prévio para a Arte e para o Artista (com maiúsculas). Entende-se assim que seja uma Démarche, pois. 10 seus olhos, e construa, por si e para si, a sua opinião. E invente, com todos os sentidos, o seu percurso. Termino com uma breve nota sobre o título desta “conferência”, A Invenção do Dia Claro, que, como é evidente, explicita, desde logo, este apelo ao leitor. Chamo, no entanto, a atenção, até porque o facto não é habitualmente referido, para uma citação de um verso de Antero de Quental, que aparece num dos fragmentos das “Confidências”. O fragmento, que inicia a última destas “Confidências” (e antecede, pois, imediatamente, a III parte, “O Regresso ou o homem sentado”), diz: “Bom dia, Mãe! Bem nos tinham dito! – Esperem! foi o que nos tinham dito. E nós esperámos. Ah! que sempre tive a certeza que havia de chegar ‘o descerrar do escuro’ (ANTERO, Sonetos)”. Na verdade, o próprio título desta “conferência” parece ser uma resposta a esta expressão de Antero (que, em “Arte e Artistas”, Almada considera um dos três “mais ilustres e notáveis da Terra Portuguesa dos últimos anos” – os outros sendo Mouzinho de Albuquerque e Soares dos Reis). Lido a esta luz anteriana, o título, de pessoal, passa a ser todo um programa - ou todo contra-programa, se preferirmos. 11 APÊNDICES Índice (estrutura) da Invenção: (Capa) A INVENÇÃO DO DIA CLARO Escrita de uma só maneira para todas as espécies de orgulho, seguida das démarches para a Invenção e acompanhada das confidências mais íntimas e gerais _________ Ensaios para a iniciação dos portugueses na revelação da pintura _________ Com um retrato do autor por ele-próprio (Citação de Rimbaud, no verso da folha de rosto) Auto-retrato do autor (desenho) Dedicatória a Fernando Amado O LIVRO I PARTE – ANDAIMES E VÉSPERAS A conferência improvisada Àcerca do homem e da mulher Àcerca das três oleografias Atenção As palavras Viagens das palavras História das palavras Centenário das palavras Valor das palavra Nós e as palavras As palavras e eu Parábola Uma cruz na encruzilhada Fim de dia Fim da 1ª parte CONFIDÊNCIAS II PARTE – A VIAGEM OU O QUE SE NÃO PODE PREVER (Citação de K4 Quadrado azul, no verso do título) Paris e eu Partida para Paris Paris Eu Liberdade Fim da 2ª parte CONFIDÊNCIAS RETRATO DA ESTRELA QUE GUIOU O FILHO PRÓDIGO NA VOLTA À CASA PATERNA CONFIDÊNCIAS III PARTE – O REGRESSO OU O HOMEM SENTADO 12 A flor (citação de Matisse, após o título) (citação de Charles Péquin, sobre a pintura de Matisse e Cézanne, no verso) (citação do Petit Larousse, definindo a palavra “sécurité”, seguindo a anterior) A minha vez (citação de Hermes Trimegista, após o título). Fim da 3ª parte UMA FRASE QUE SOBEJOU DÉMARCHES PARA A INVENÇÃO A verdade12 Capa de A Invenção do dia claro 12 No verso desta última folha, surge o nome do autor, seguido do que parece ser a tradicional publicidade às suas obras publicadas (vide Contracapa). Na verdade, se nela aparecem os títulos de todos os textos de Almada saídos até à data, aparecem igualmente muitos outros de que não temos qualquer notícia (“O Mendes”, “Pobreza voluntária”, “A arte de atravessar a multidão, com apontamentos sobre o que eu quis dizer”, entre muitos outros). A originalidade e estranheza desta página, muito pouco referida, aliás, mereceria todo um (outro) estudo. Sigo a edição (mais ou menos) fac-similada da Colares Editora, 1993. A edição da Estampa, que também segui neste trabalho (apesar do erro monumental que é cometido no 1º sub-título, transformado em “Ensaios para a iniciação dos portugueses na revolução da pintura), bem como a da Assírio e Alvim, não transcrevem, obviamente (mas também infelizmente), a contracapa da edição original. 13 Contracapa 14