307 A COMPREENSÃO DO SENTIDO EM LIVROS DIDÁTICOS PARA O ENSINO MÉDIO Christiê Duarte Linhares11 Kellen Fabiane Chaves Ferreira22 1 Introdução A leitura desempenha um papel importante para a formação intelectual do indivíduo, no entanto, mesmo com a existência de teorias linguísticas sobre texto e discurso, que podem apoiar o professor no ensino da compreensão do sentido produzido pelo uso da língua, sabe-se que há uma quase ausência de estudos linguísticos consistentes sobre textos em sala de aula. Observando que o livro didático é o material de apoio mais usado pelos professores e sabendo da necessidade de compreender como esse material desenvolve o trabalho com textos, está sendo desenvolvido um projeto no Núcleo de Estudos do Discurso da PUCRS, em que é feita uma proposta de análise linguística, fundamentada na Semântica Linguística, criada por Oswald Ducrot, de modo a complementar as questões apresentadas nos livros didáticos para o ensino médio. Visando obter uma melhor apreensão do sentido construído pela linguagem no texto, sente-se a necessidade de trabalhar com uma teoria que focalize o uso da língua. A Teoria da Argumentação na Língua (TAL) se ocupa da produção do sentido pelo linguístico e por isso ela servirá aqui, neste trabalho, como base para uma nova proposta de leitura. 2 Algumas considerações sobre Leitura e Livro Didático Um dos maiores desafios que a escola possui hoje é ensinar o aluno a ler bem. A leitura ainda é um processo cotidiano que está na vida de cada indivíduo e que implica, ao mesmo tempo, competência formal, política e de autonomia pelo aluno. Entretanto, a sociedade só reconhece a falta da leitura, quando percebe que muitas pessoas, na maior parte das vezes, não 11 22 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil. 308 entendem o que lêem. Por isso, é necessário que a escola recupere o caráter natural da leitura, há muito tempo perdido. Mas para que a leitura se transforme em hábito, não deve ser imposta, mas proposta através de ensino produtivo. A prática deve levar o aluno a desenvolver competências próprias realizando-se como sujeito ativo, crítico e participativo. Além disso, ler significa compreender, e não apenas decifrar códigos. É com o objetivo de fazer com que os alunos cheguem à compreensão de textos, que a escola deve agir. No entanto, o que se percebe é um trabalho deficiente de tentar fazer dos alunos bons leitores, o que, infelizmente, não ocorre. E a leitura de textos proposta pelas escolas, passa a ser um pretexto para ensinar gramática. Dessa maneira, não há contribuição para a reflexão e pela busca de sentido do texto pelo aluno. Tendo em vista que o livro didático tornou-se um instrumento pedagógico que possibilita o processo de intelectualização e contribui para a formação social e política do indivíduo, faz-se aqui uma análise de como a leitura é trabalhada através dele. O livro instrui, informa, diverte, mas, acima de tudo, ensina. Além disso, o livro didático é um instrumento importante no ensino aprendizagem, mas o problema está no uso inadequado que se faz dele, principalmente, nas questões de interpretação de textos. Visto que, para haver uma boa leitura, as questões devem ser muito bem formuladas, levando o aluno a refletir sobre as mesmas, não simplesmente repetir as ideias ou frases do autor. Sendo assim, observa-se a ausência de um trabalho, nos livros didáticos de língua portuguesa, que contribua para a leitura, de forma que o aluno possa compreender o sentido construído pela linguagem no texto. Dessa forma, a TAL é vista, aqui, como um modo de auxiliar o professor na elaboração das perguntas sobre compreensão leitora nos livros didáticos de ensino médio. A Teoria da Argumentação na Língua, de Oswald Ducrot e Jean Claude Ascombre, que se desenvolve desde 1983, é uma teoria estruturalista, para a qual o sentido é construído na e pela língua. 309 3 Sobre a Teoria da Argumentação na Língua (TAL) A TAL é considerada uma teoria estruturalista por se aproximar da ideia de Ferdinand Saussurre, que diz que a língua é a categoria de fenômenos que se manifesta diretamente e de modo puro e que a fala se refere a fenômenos explicáveis somente de um modo indireto, sendo sempre individual (SAUSSURE, 2000). Ducrot vai mais além, dizendo que o sentido se constrói pela articulação desses dois elementos (língua/fala) e se verifica entre o uso das palavras e das frases do enunciado. A Tal busca analisar a argumentação contida na lingua, percebendo o sentido na e pela linguagem. Segundo Delanoy (2008), na TAL, o signo é a frase, abstrata, dotada de significação – conjunto de instruções abertas (não pré-existentes) que dependem do enunciado para chegar ao sentido. À concretização da frase denomina-se enunciado, que tem como valor semântico o sentido. A um conjunto de enunciados articulados é dado o nome de discurso, entidade observável de nível complexo. A frase contém em si a significação, que é um conjunto de instruções que, numa dada situação de enunciação, conduz à construção do sentido do enunciado. Para isso, é preciso levar em conta a situação da enunciação, o uso. Assim, para Ducrot, a língua é constituída em relação à fala, mantendo o princípio estruturalista de que o significado de uma expressão reside nas relações dessa expressão com outras expressões de uma mesma língua. Ducrot (1988), contesta a ideia da unicidade do sujeito falante, afirmando que o autor de um enunciado coloca em cena várias vozes, ou seja, diversos pontos de vista. Com isso aparecem três conceitos: o de sujeito empírico – o produtor efetivo do enunciado, do qual a teoria não se ocupa, o de locutor – o que possui marcas no enunciado, como de primeira pessoa ou marcas como aqui, agora, e o de enunciadores – pontos de perspectiva com os quais o locutor se relaciona. As relações entre o locutor e o alocutário e entre o locutor e outros discursos levam a ideia de polifonia, que explica como ocorre a vinculação do locutor com os enunciadores, como se reconhecem os pontos de vista apresentados pelo locutor. 310 Entende-se que a enunciação é um acontecimento que tem origem no aparecimento de um enunciado, feito por um eu (locutor), distinto do sujeito empírico do enunciado, ou seja, o autor, referindo-se a um tu (interlocutor ou alocutário). Esse enunciado é constituído de significação, que é um conjunto de instruções dadas para construir um conteúdo a partir da enunciação. A TAL conta com três fases no seu desenvolvimento: a primeira é a forma standard (1983), a segunda forma é a que compreende a Teoria dos topoi e a Teoria Polifônica da Enunciação (1988) e a terceira, é a forma da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS, 1992). Neste trabalho focalizaremos a primeira e a segunda formas. A TAL se caracteriza como enunciativa ao identificar um locutor produtor de discurso para um interlocutor, sendo que, na relação locutor/alocutário, o locutor argumenta em relação ao que está sendo dito. A construção da argumentação se realiza pela enunciação do locutor, com a observação de um ponto de vista do locutor em seu discurso. Dessa forma, o sentido de um enunciado é constituído por pontos de vista, e a origem dos pontos de vista são os enunciadores. Para Ducrot (2005), a argumentação está marcada na língua, ou seja, no interior das palavras podemos encontrar o sentido do texto. A argumentação é construída nas frases através de enunciados, constituídos de segmentos do tipo A conector B, ou seja, aporte + conector + suporte. A linguagem é autorepresentativa, coloca a subjetividade do eu na interpretação. Da argumentação deriva a informação, mas a função primeira da linguagem é argumentar. Assim, argumentar é expressar um ponto de vista num discurso. 4 Metodologia O trabalho está sendo desenvolvido em etapas, com a finalidade de criar um corpus de perguntas sobre os textos dos livros didáticos do ensino médio através da teoria da Argumentação, contribuindo para uma melhor compreensão do sentido construído pela linguagem em uso. Etapa 1: Análise das perguntas dos livros didáticos do ensino médio. 311 Etapa 2: Comparação com a análise feita por Joseline Tatiana Both em sua dissertação de mestrado “Por uma abordagem enunciativa de leitura no ensino fundamental: o livro didático”. Etapa 3: Aplicação da Teoria da Argumentação da Língua aos textos dos livros didáticos analisados. Etapa 4: Elaboração de perguntas fundamentadas na TAL, usando os textos dos livros didáticos do ensino médio. 5 Análises Seguem, como exemplo, duas análises feitas no trabalho: Texto 1: Fonte: CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. São Paulo: Atual, 1999. Questões do Livro Didático No 1º balão, Hagar diz que seu filho é “ afiado como uma lâmina”. a) A que se refere Hagar com a palavra afiado? b) Hagar a empregou no sentido denotativo ou conotativo? c) Como o amigo de Hagar captou o sentido dessa palavra: denotativa ou conotativamente? 312 Análise das questões: • Na questão a, o autor pergunta qual é o significado da palavra “afiado”, dentro do linguístico, ou seja, usando o texto como captação de sentido. Mas não pergunta qual é o sentido literal da palavra. Essas duas perguntas seriam fundamentais para que o aluno possa, nas questões seguintes, estabelecer uma diferença entre sentido conotativo e denotativo. • Nas questões b e c, o autor pergunta como Hagar empregou e como o amigo captou o sentido da palavra “afiado”, conceituando-a como denotativa ou conotativa. Porém, o autor poderia ter perguntado também como o aluno chegou a essa conclusão através da argumentação vista pelo linguístico. Texto 2: PEREIRA, Helena Bonito; PELACHIN, Márcia Maisa. Português: na trama do texto. São Paulo: FTD, 2004. Questões do Livro Didático 313 a) Em geral, a identificação do referente aparece no início do texto. É o que acontece nesse texto? Explique sua resposta. b) Que efeito de sentido se consegue com a construção caracterizada no item a? Análise das questões: • Na questão a, o autor faz uma pergunta sobre o referente do texto fazendo uma abordagem bastante superficial. Essa mesma pergunta poderia ser utilizada para abordar também o sentido captado pelo aluno ao ler o texto, na identificação do referente. • Na questão b, o autor pretende trabalhar com o sentido do texto, retomando o referente. Verificamos que essa pergunta poderia estar incluída na primeira questão, já que a proposta do autor era identificar o referente. 5 Resultados As análises feitas até o momento, demonstram que esses livros didáticos de nível médio não levam o aluno a compreender o sentido construído pela linguagem e também não fazem com que o aluno busque no texto as pistas linguísticas necessárias para chegar à compreensão. Além disso, há ausência de relações nas questões entre o temático e o linguístico, que provocam a falta de reflexão sobre o texto, induzindo o aluno a uma resposta padrão. Sendo assim, com a aplicação da Teoria da Argumentação nas análises feitas em questões propostas pelo livro didático, observamos uma maior contribuição para a compreensão do sentido pelo linguístico. 6 Considerações Finais Concluímos, até a presente etapa, que o livro didático, além de transferir os conhecimentos orais à linguagem escrita, tornou-se um instrumento pedagógico que possibilita o processo de intelectualização e contribui para a formação social e política do indivíduo. O livro deve instruir, informar, divertir, mas, acima de tudo, ensinar. No entanto, observa-se a ausência de um trabalho, no livro didático de língua portuguesa, que contribua para a leitura, de forma que 314 o aluno possa compreender o sentido construído pela linguagem no texto. Assim, acreditamos que a aplicação da TAL nas questões propostas pelo Livro Didático possa aprimorar a percepção do sentido do texto pelo aluno. Referências BARBISAN, Leci Borges, Por uma abordagem argumentativa da linguagem. 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