O nascimento deste Dicionário Não sendo filólogo nem linguista, tampouco semiólogo ou gramático, por que me intrometi numa seara tão movediça, complexa e dinâmica como a dos fatos da linguagem? Ou, por outra, que contribuição poderá dar para o léxico desta nossa terra uma pessoa não estreitamente, isto é, profissionalmente, vinculada a tais afazeres científicos? Em síntese, o que exatamente levou-me a reunir centenas de termos e expressões neste compendio? Estas são, sem dúvida, indagações, por demais pertinentes, possíveis de serem feitas pelo leitor. Direi que a curiosidade histórica e literária levou-me a coligir, nos últimos dez anos, o conjunto aqui reunido. Daí que alguns especialistas daquelas áreas poderão se ressentir de imprecisões técnicas ou de elementos que melhor poderiam caracterizar as definições lexicais. Não obstante, aqui se encontrará um conjunto, o mais amplo que foi possível recolher ao longo desses anos, de nossas expressões típicas populares, abonadas por alguns de nossos melhores escritores. Se a princípio fui movido pela mera curiosidade literária e social, com o passar do tempo, porém, o intento foi revigorado para, sem qualquer pretensão, contribuir para o preenchimento de uma lacuna. Com efeito, não tinhamos aqui, ao contrário do que soe acontecer em várias outras regiões do país, um dicionário da fala matogrossense. É bem verdade que houve uma e outras tentativas de se elaborar um glossário desse linguajar mas, vale sublinhar, sem a sistemática de um dicionário, e, em sua totalidade, focado apenas na fala cuiabana ou em aspectos restritos como, por exemplo, na fala garimpeira, em que glossários costumam acompanhar qualquer texto mais longo sobre o tema. A professora Maria Francelina, pesquisadora contemporânea do léxico cuiabano, constatou que excetuando ‘Subsídios para estudo da dialetologia em Mato Grosso’, de Franklin Cassiano da Silva, publicado em 1921, ao qual tivemos acesso, e ‘Alguns aspectos do falar mato-grossense, terra e gente’, de António de Arruda, desconhecemos a existência de trabalho sistemático e ordenado sobre o assunto, o qual nos apresentasse a preocupação no sentido de registrar e analisar o como fala o povo cuiabano.1 1 DRUMMOND, Maria Francelina Ibrahim. Do falar cuiabano. Cuiabá: Secretaria de Cultura do Município de Cuiabá, 1978. 17 Passados mais de vinte anos, outra estudiosa, a professora Vanderci de Andrade Aguilera,2 aborda essa questão no ensaio Léxico Regional, léxico rural ou vocabulário de curiosidade?3 no qual, depois de fazer referência aos diversos “dicionários regionais” publicados em várias partes do país, afirma “desconhecer qualquer trabalho científico sobre o léxico cuiabano”. E, após se referir aos vários estudos nos campos da fonética, da fonologia e da morfossintática existentes sobre a fala cuiabana, observa quanto ao léxico, ao contrário, parece não ter merecido a atenção dos estudiosos até o presente, seja pela dificuldade aqui apontada de distinguir brasileirismo de regionalismo, seja pelo entrave para definir o que pertence à norma culta urbana e o que se restringe à fala rural.4 A verdade é que essa lacuna lexical se torna ainda mais gritante quando se verifica os inúmeros e significativos ensaios já publicados nos campos da fonética, da sociolinguística, da morfossintática, da dialetologia e da história da formação da língua. Eles abarcam desde o trabalho pioneiro Subsídios para o Estudo de Dialectologia em Mato Grosso de Franklin Cassiano da Silva, publicado em 1930,5 passando pelos trabalhos de Maria Francelina Ibrahim Drummond, Do falar cuiabano, já referido, de Maria Luiza Canavarros Palma, Variação fonológica na fala de Mato Grosso: Um estudo sociolinguístico6, até 2 Doutora em Letras e professora da Universidade Estadual de Londrina que, em 2001, esteve em Cuiabá para ministrar a disciplina Dialetologia e Geolinguística, no curso de Especialização em Língua Portuguesa da Universidade Federal de Mato Grosso, dele resultando monografia na qual admite que, “por desconhecer qualquer trabalho científico sobre o léxico cuiabano, as reflexões que aqui faço se baseiam em dados coletados juntamente com meus alunos”. 3 In: Vozes Cuiabanas: estudos linguísticos em Mato Grosso. Org. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida e Maria Inês Pagliarini Cox. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005. 4 Todavia, para não dizer que não encontrou nenhum trabalho sobre a fala cuiabana, informa: “O único livro que consegui numa livraria de Cuiabá, por ocasião do curso que lá ministrei, foi o Dicionário cuiabanês, de Gomes, s/d. Trata-se de um opúsculo que o autor se nega a chamar de dicionário para afirmar tratar-se de glossário. No entanto, nem mesmo um leigo em lexicografia ou em variação lexical levaria a sério o rol de palavras e expressões ali acumuladas, pois elas não se enquadram nem na tipologia glossário nem na denominação cuiabanês. Na realidade sugere mais um amontoado disforme de palavras e expressões que não devem merecer crédito, pois, umas parecem ter como objetivo ridicularizar o falar local, dado o elevado número de expressões chulas e grosseiras, como se pertencessem à fala da maioria dos cuiabanos. Outras, no entanto, estão de tal forma disseminadas na língua portuguesa informal do brasileiro que não guardam qualquer traço de regionalismo. [...]. E fico por aqui nas minhas observações sobre esse ‘dicionário’.” (pg. 127). Ver a nota 76. 5 Que republiquei na antologia, em dois volumes, Panorama da Literatura e da Cultura em Mato Grosso. Cuiabá: Verdepantanal, 2004. 6 Cuiabá: UFMT, 1984. 18 as nove monografias reunidas em Vozes Cuiabanas: estudos linguísticos em Mato Grosso, coordenados por Maria Inês Pagliarini Cox e Manoel Mourivaldo Almeida7, além dos vários trabalhos acadêmicos – monografias de fim de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado - divulgados em publicações especializadas. Não se pode igualmente ignorar os estudos que, embora não diretamente focados na geografia da fala em Mato Grosso, trazem subsídios para interpretações que de perto nos interessam como é o caso, entre outros, dos vários trabalhos do professor Serafim da Silva Neto e, mais recentemente, As Ciências do Léxico – Lexicologia, Lexicografia, Terminologia, uma série de estudos organizados por Aparecida Negri Isquerdo e Maria da Graça Krieger8. Diante da quantidade e da qualidade das publicações existentes sobre os diferentes campos da linguagem, como se explica a lacuna de um dicionário lexical?9 Um Estado tão rico de múltiplas presenças culturais, no passado e no presente, fruto do arrojo de uns e da constância de outros tantos, era mais que tempo que tivesse a recolta de todas essas vivências refletidas no linguajar. A curiosidade em uma direção, a dessa presença autóctone corajosa na terra, e em outra, a da vinda de distintas regiões brasileiras e de outros países, ao longo dos últimos duzentos anos, de tantos falantes, levou-me a considerar que já era momento de ser recolhida essa rica lavoura lexical. Feito este introito, esclareço que, até por limitações pessoais, não tive o objetivo de realizar aqui um trabalho de ciência lexicográfica, strictu sensu, que esgotasse o universo verbal do matogrossense, de resto um trabalho impossível de ser realizado por quem quer seja, dado o dinamismo da língua e a porosidade da geografia verbal. Este Dicionário é, portanto, tão somente parte de um trabalho maior a ser desenvolvido por várias mãos e que deve abarcar não apenas o espectro da linguagem, mas o universo bem mais amplo e complexo que registre de forma lúcida a presença e o futuro do homem e de sua cultura nesta região. Neste sentido, assinale-se igualmente a falta que faz um Atlas Linguístico que certamente trará a contribuição mais ampla da geolinguística para o entendimento abrangente da formação 7 Ob. cit. 8 Campo Grande (MS): UFMS, 2004. 9 A bem da verdade, conquanto não tenha até agora existido um dicionário próprio, é necessário que se faça referência ao trabalho de António de Arruda ‘O linguajar cuiabano e outros escritos’. [Cuiabá: edição do autor, 1998] e a uns tantos glossários, como anteriormente disse, colocados sempre ao fim de alguns livros que descrevem atividades específicas como a da garimpagem, a da pecuária e a cinegética, sobretudo. A par disso, não posso deixar de me referir a dois importantes trabalhos que, muito embora não sejam específicos sobre Mato Grosso, tratam de regionalismos brasileiros, nos quais se encontram, aqui e ali, termos assinalados como típicos deste Estado e região. Refiro-me ao Diccionário de Vocábulos Brazileiros do Visconde de BeaurepaireRohan, publicado em 1889, e ao Dicionário da Terra e da Gente do Brasil de Bernardino José de Souza, cuja 5ª ed. foi publicada em 1961. 19 lexical em nosso Estado, datando e localizando termos e expressões10. Neste mister, porém, presumi, que a falta de conhecimentos científicos específicos no campo da lexicografia e da linguística não seriam motivos impeditivos para que trouxesse a lume este trabalho. Encontro-me em boa companhia. Para o respeitado lexicógrafo Luis Fernando Lara, o dicionário deve ser visto em sua realidade, como um produto linguístico, como um fenômeno verbal complexo e não somente como o resultado da aplicação de métodos lexicográficos. Esta me parece uma distinção essencial: enquanto acreditemos que um dicionário é somente o resultado da aplicação de um método às unidades verbais que chamamos ‘palavras’, de acordo com certo costume e com certas restrições editoriais, não poderemos reconhecê-lo em toda a sua complexidade ... . E, mais adiante, explicitando a sua tese, afirma que para distinguir os dicionários linguísticos (científicos) dos demais, venho propondo chamar os demais dicionários de ‘dicionários sociais’. Os dicionários sociais são muito mais do que dicionários linguísticos, e seria inaceitável para seus falantes reduzi-los às exigências da linguística descritiva, pois neles se encontrariam com uma língua reduzida ao que o programa descritivo pode alcançar e documentar, com um vocabulário pequeno, com definições vagas, com estruturas temáticas difíceis 11. Portanto, é dentro dessa característica de dicionário social que se apresenta este trabalho, aqui oferecido tanto ao leitor curioso de nossas características verbais como ao estudioso da linguística, que poderá acrescentá-lo de novos termos ou preencher lacunas, já que este dicionário, como todo e qualquer dicionário, é sempre uma obra em construção12. 10 Aguilera (ob. cit.) informa existirem cinco atlas publicados e um em fase de publicação (em 2001), que são: Atlas Prévio dos Falares Baianos, Esboço de um Atlas de Minas Gerais, Atlas Linguístico da Paraíba, Atlas Linguístico de Sergipe, Atlas Linguístico do Paraná, Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul e Atlas Linguístico de Sergipe II. Portanto, a realização de uma pesquisa léxico-semântica rigorosa é um desafio que se coloca para as nossas Universidades. 11 O Dicionário e suas disciplinas, estudo publicado em As ciências do Léxico (cit.). O autor é professor no Colégio de México. Publicou Teoria del diccionario monolíngue. 12 O têrmo Dicionário procede de Dictionarium que deriva de dictionarius, do latim 20 Dicionário regional O que pode ser o dicionário. O que é um dicionário regional? Como construir um dicionário de regionalismos? Esta a questão que de pronto se coloca para quem se aventura na árdua tarefa de reunir vocábulos, ditos, locuções, chistes, axiomas, parêmias, expressões coloquiais e dialetais característicos de uma determinada área geográfica. O próprio conceito de o que vem ser regionalismo sofre inquirições, da qual a história da literatura regionalista brasileira é mostra objetiva. A forma como a geografia, a economia, o folclore, a história e os costumes imprimiram características diferenciadas nas variadas expressões artísticas do país é vista ao longo do tempo de modo distinto. Só para ficarmos no campo do romance, diferentes são as obras de José de Alencar, Gonçalves Dias, Bernardo Guimarães (o indianismo) das que vieram posteriormente, como as criações de Monteiro Lobato, José Lins do Rego, José Américo de Almeida e de Jorge Amado, entre tantos outros. Enquanto que no primeiro regionalismo houve uma excessiva idealização do passado, um sentimento exacerbado em torno do elemento autóctone, o realce exagerado do pitoresco, sem um aparato crítico maior, (período do Romantismo), já na etapa seguinte, sob o influxo do Realismo, retratou-se o homem brasileiro em todas as suas contradições sociais e humanas, num contexto em que se privilegia o meio ambiente local, a paisagem humana, as relações de poder, com as suas peculiaridades culturais, e na qual, particularmente, a linguagem foi fortemente valorizada. Deste modo é que este Regionalismo teve uma abrangência bem superior à mera caracterização do pitoresco, do localismo ou da superficialidade do documentalismo, anteriormente existentes. medieval, significando um conjunto de dictiones [de dictio = palavra + dicere = dizer], numa tradução literal, quer dizer algo ‘relativo a palavras’, ou seja, dicionário é uma coleção de vocábulos, frases e citações. Supõe-se que o primeiro dicionário tenha surgido na China, o Hou Chin, por volta de 150 A.C. Em fins da Idade Média foi impresso em Régio (hoje região italiana) o Dictionarium de autoria do italiano Ambrósio Calepino, daí que o termo “calepino” passou a ser sinônimo de dicionário. Os primeiros dicionários da língua portuguesa surgiram no século XVIII: o Vocabulário Português e Latino, de Raphael Bluteau, lançado entre 1712 e 1728, e O Dicionário da Língua Portuguesa, de Antônio Moraes Silva, publicado em 1789. No final do século XIX, as irmãs Henriette Michaelis e Carolina Michaelis de Vasconcelos publicaram, em Lisboa, o Dicionário Michaelis que, a partir de 1950, começou a ser editado também em nosso país. No Brasil, o pioneiro foi o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Francisco Julio Caldas Aulete, o famoso ‘Aulete’, publicado no Rio de Janeiro em 1881. Já o século seguinte viu surgirem vários outros, de atual uso cotidiano, como o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa de Laudelino Freire, em cinco volumes, publicado após a sua morte em 1937, e que teve as colaborações de J. L. Campos, Vasco Lima e Antônio Soares Franco Júnior, o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o ‘Aurélio’, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, (1975) e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa de Antônio Houaiss (2001). 21 A bem da verdade, “toda obra de arte é regional quando tem por pano de fundo alguma região particular ou parece germinar intimamente desse fundo. Neste sentido, um romance pode ser localizado numa cidade e tratar de problema universal, de sorte que a localização é incidental”13, daí que não dá para considerar somente como de cunho regional a obra monumental de Guimarães Rosa ou de Graciliano Ramos, por exemplo. Pois é assim, “através do particular que a arte atinge o geral, do individual que se alarga no humano. É o que afirma André Gide, acentuando: ao particularizaremse é que os grandes artistas criadores alcançam uma comum humanidade profunda”14. É, assim, neste sentido abrangente, que vejo o regionalismo, e no caso, para considerar o léxico regional como elemento importante para a formação do complexo linguístico nacional. Entendo, portanto, que é sob este viés que deve ser visto um dicionário de regionalismos. Todavia, a delimitação do corpus linguístico é “problema” que se coloca com maior ênfase numa região que, sobretudo nos últimos decênios, manteve um fluxo significativo de migrantes procedentes de todas as partes do país. Nesta condição, é imperioso que os elementos espacial e temporal sejam considerados prima facie. Neste sentido, é necessário previamente distinguir o que é próprio da região, nascido ali, incluso os arcaísmos, daquilo que, absorvido e peculiarmente transformado ao longo do tempo, se tornou local, adquirindo assim novas características, novos timbres, novas cores. Para além da inexistência, como no nosso caso, de um Atlas Linguístico, alerta-se, como o fazem Frubel e Isquerdo, para outra das dificuldades que se colocam à organização do dicionário regional: a escassez de registros sistemáticos da norma lexical regional, além de dificultar a organização de trabalhos lexicográficos voltados para os regionalismos, representa também um entrave para a lexicografia geral, no que diz respeito à busca de fontes científicas para abonar o registro de marcas de uso num dicionário geral de língua.15 Como, aliás, me referi anteriormente. A par deste aspecto, relacionado à movimentação dos falantes (o processo migratório), há igualmente que se levar em consideração as atividades humanas por eles desenvolvidas. 13 Enciclopédia de Literatura Brasileira, vol. 2, org. de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1990. 14 Id., ib. 15 FRUBEL, Auri Claudionei Matos et ISQUERDO, Aparecida Negri. Vocabulário do Falar Sul-Mato-Grossense: Aspectos Lexicográficos e Socioculturais, in: As ciências do léxico, ob. cit. 22 Estando tais fatores estreitamente ligados aos diferentes ciclos da economia, testemunham-se sensíveis diferenças e contrastes no campo léxicosemântico, em cada uma dessas etapas cíclicas, ocorrendo, em determinado momento, tanto a predominância como a aparente morte de acervos lexicais. Assim é que, em nosso caso, houve afluxos motivados por atividades econômicas diferentes que, por conseguinte, influenciaram a ação laborativa própria de cada sub-região ou grupo social, gerando palavras relativas, tanto especificamente a atividades como a mineração, a pesca, a pecuária, ao plantio e colheita de produtos agrícolas etc., como àquelas adequadas às ações sociais designativas de alimentos, do convívio social, das crenças religiosas etc. Dest´arte, a lexicografia regional, isto é, a geolinguística, é, sem duvida, fruto de um amplo conjunto de elementos pertencentes aos campos da sociolinguística, da historia social e econômica e de uma variada etimologia. Não são poucos os estudiosos a apontarem a importância do léxico regional para a constituição do linguajar brasileiro da norma padrão. Como escrevem Frubel e Isquerdo a constituição de dicionários, de glossários e de vocabulários de cunho regionalista pode contribuir para o registro e a descrição de particularidades lexicais, uma vez que possibilitam, sobretudo por meio de estudos contrastivos, a verificação de ocorrências ou não de determinadas variantes em diferentes regiões do País. 16 Ademais, o valor dos dicionários de regionalismos tem também um sentido de alcance histórico, precisamente na medida em que expressões que o “grande público” já deixou a muito de utilizar se mantêm presentes nos rincões mais distantes do território pátrio, como um registro ancestral do idioma. Ainda recentemente a revista Língua [nº 84, 2012] publicou reportagem sobre a retirada e a inclusão de termos nos quatro principais dicionários brasileiros – Michaelis, Houaiss, Caldas Aulete e Aurélio. Mostram os lexicógrafos que, com o passar do tempo, o léxico vai sofrendo alterações e é muito natural que palavras usadas em certo momento sejam esquecidas ou ganhem nova significação e, por sua vez, outras, até com nítidas influências de estrangeirismos, sobretudo via TV, internet, facebook etc., passem a fazer parte do dia a dia para, em seguida, se incorporarem definitivamente ao idioma, quando então são dicionarizadas17. A 16 Ob., cit. 17 Quanto à inclusão de palavras novas, cada dicionarista tem um critério. Um dos mais antigos e referenciados dicionários do mundo, o Oxford English Dictionary (OED), respeitado também por estabelecer padrões oficiais referentes ao idioma inglês, adotou a regra conforme a qual uma palavra nova somente poderá ser inserida após dez anos 23 particularidade de dicionários de terminologia regional é que eles mantêm ao longo do tempo, e até em caráter permanente, ainda que deixem de serem utilizados com frequência cotidiana, termos típicos que caracterizam um determinado momento histórico. É evidente, portanto, que os regionalismos constituem partículas importantes do vasto e rico oceano que é o universo verbal do brasileiro18. Assim, conforme comenta o lexicógrafo Carlos Augusto Lacerda, editor do Caldas Aulete, o dicionário cumpre aquela característica essencial de ser “... contemporâneo, mas diacrônico, ou seja, se um significado alguma vez foi parte do uso da palavra, ele o foi para sempre, podendo ser encontrado em documentos antigos, jornais, livros, etc.”19. Ora, é no âmbito do regional que muitas dessas expressões arcaicas, quinhentistas até, como veremos em outra parte, permanecem, como meio submergidas, só aparecendo esporadicamente. Neste sentido é que nenhum dicionário com ambição de abarcar a fala brasileira pode ignorar a importância do regional. É precisamente o significado original do termo, não raro mantido no âmbito regional, que oferece a possibilidade de contrastar significados novos para termos homônimos. Como explica o gramático Ivanildo Bechara, é importante que se leve em conta os significados em que cada palavra é aplicada, muitas vezes diferindo do sentido original, daí ele distinguir “os dicionários convencionais que tratam do idioma que é falado em uma época, dos ‘tesouros’, obras que buscam termos de várias épocas diferentes”.20 Não obstante esse inequívoco valor cultural e social do léxico regional, Aguilera aponta que até o presente, não se fez o inventário rigoroso dos brasileirismos vocabulares, conforme já de ter sido constatada a sua existência. Mas, como toda regra tem exceção, na segunda semana do mês de junho de 2013, a editoria do Dicionário anunciou que decidiu, pela primeira vez em muitas décadas de existência, introduzir em suas páginas uma palavra ainda não decenal. Na realidade, não se trata bem de uma palavra nova, mas apenas de significado novo para uma palavra já existente. A partir de agora o termo popular tweet, twitter, passa a fazer parte como um vocábulo da norma culta. Esclareça-se que o termo em si não é um neologismo, pois já fazia parte do dicionário desde 1851, com o significado do som emitido pelos pássaros. Aliás, foi por esse sentido original do termo, o de trinados curtos e diretos, que o microblog da web escolheu o seu nome, já que o seu uso exige mensagens curtas, rápidas e diretas, que logo se disseminam. O Oxford incluirá a nova definição como sendo “fazer uma postagem sobre o serviço de rede social Twitter; usar o Twitter regularmente ou habitualmente”. A tendência de agora em diante será incluir, com mais rapidez, os novos termos ligados à tecnologia e que, nos últimos tempos, vêm surgindo com enorme velocidade e com naturalidade sendo incorporados ao linguajar comum. 18 Foi o filósofo Emerson quem afirmou que “a língua é uma cidade, em cuja construção cada ser humano contribuiu com uma pedra”. 19 Revista Língua nº 84, 2012, pg. 50. 20 Revista Língua, ibidem. 24 asseverava Chaves de Melo no início da década de 80. Por outro lado, também é verdade que os inventários regionais ainda estão aí a espera de lexicólogos e lexicógrafos dispostos a perscrutar a fala de cada uma das regiões brasileiras.21 Vale observar, como oportunamente o fazem Frubel e Isquerdo, que a raridade dos mapeamentos dos léxicos regionais é fator altamente prejudicial para o estudo geral do idioma nacional. Asseguram, no já citado trabalho, que a escassez de registros sistemáticos da norma lexical regional, além de dificultar a organização de trabalhos lexicográficos voltados para os regionalismos, representa também um entrave para a lexicografia geral, no que diz respeito à busca de fontes científicas para abonar o registro de marcas de uso num dicionário geral de língua.22 Portanto, contribuir para diminuir esse hiato é tarefa que se impõe, fixada exatamente a partir da delimitação do espaço geográfico e do estabelecimento do corpus lexical que serão vistos. Esse universo verbal a ser estudado tem por substrato dois vetores: o ambiente natural como o clima, a flora, a fauna, a topografia, os recursos hídricos e minerais, etc., e o ethos, ou seja, a história da região e as maneiras peculiares e típicas de sua gente, no seu modo de pensar e de viver, e que, por assim ser, a torna distinta da de outra região. Estabelecidas tais diretrizes e características, nas quais estão compreendidos fatores históricos, econômicos e sociológicos, o dicionário regional é essencialmente constituído: a) de elementos arcaizantes, pertencentes ao português falado no século XVI, que na realidade era uma mescla do português quinhentista com o tupi, a denominada língua geral, e que era a fala dos bandeirantes e dos jesuítas23, e que, a partir de meados 21 Ob. cit. 22 Id., ib. 23 Escreve Ulisdete Rodrigues de Souza: “Nos primeiros tempos da colonização, houve certo tipo de bilinguismo no Brasil, ao lado da língua geral, uma vez que a língua que se falava nas famílias constituídas de portugueses e índios era a dos índios; a portuguesa, os meninos aprenderiam na escola (SILVA NETO, 1960, p.79). Entretanto, a língua geral predominaria como a língua de três quartos da população durante os séculos XVI e XVII (HOLM, 1992, p. 39). Língua mãe de jesuítas e bandeirantes, a língua geral teve nesses grupos de falantes os elementos difusores mais importantes. Nos insondados recônditos do território brasileiro, os bandeirantes, em busca de índios e ouro para a coroa portuguesa, e os jesuítas, buscando a catequização dos índios, difundiram o uso da língua geral. No entanto, outros tempos linguísticos se prenunciaram com a 25 desse século receberia também o influxo dos vários idiomas africanos24; b) de termos e denominações das várias línguas indígenas, existentes em cada região do país; c) da contribuição de falantes das várias regiões brasileiras, e até do exterior, que para o Centro-Oeste acorreram no auge do período aurífero e, posteriormente, em inícios do século XX, para a exploração diamantífera; d) de correntes migratórias posteriores, intensificadas a partir de meados do século passado e, e) de vocábulos e expressões nascidos no próprio meio local, como fruto dessa miscigenação antropológica. Vale sublinhar que o quadro descrito se refere fundamentalmente a um dicionário voltado para o Centro-Oeste e a Amazônia, já que algumas dessas características não registram ocorrência em outras regiões do país. Deste modo, o dicionário regional não só terá uma função lexicográfica, ou seja, o de registro dos vocábulos de uma dada região, mas igualmente será a afirmação da contemporaneidade de grupos sociais para a expressão idiomática nacional. De resto, de modo mais amplo, os estudos regionais são importantes contributos para uma compreensão mais abrangente da realidade nacional. Como lembrou Antônio Olinto: O retrato de corpo inteiro do Brasil precisa de estudos regionais para compô-lo. Acontece aí, como em quase todos os campos, o fenômeno da força do detalhe impondo-se no conjunto. Já nem se trata, propriamente, de uma aplicação da gestalt à feitura desse retrato, mas, sim, de uma simples tentativa de, realçando o particular, atingir o coração da matéria. E é assim que, de vez em quando, um estudo sério aparece para iluminar uma região e, através dela, o País.25 E é com esta contribuição histórico-social, a de expor a riqueza multifacetada do idioma, a qual se segue a identidade espiritual e de sentimento, que um dicionário de regionalismos pode, oferecendo a variedade dentro da unidade, ser vital elemento para a agregação da nacionalidade brasileira26. chegada dos escravos africanos ao cenário etnolingüístico brasileiro”, em Um olhar crioulo nos cenários sócio-históricos do Brasil e do Estado de Mato Grosso. in: Vozes Cuiabanas, ibidem. 24 Estima-se que, com os perto de quatro milhões de escravos que foram trasladados para o Brasil, tenham vindo pelo menos 300 idiomas. 25 O Globo. Coluna “Porta de Livraria”, 30/05/1974, em apreciação ao livro ‘Os Sertões do Leste – Estudo de uma região: a Mata Mineira’, de Paulo Mercadante. 26 Nunca será excessivo lembrar a afirmação de Jacques Derrida: “Não acredito em idiomas puros. Acho é que existe um desejo natural, seja lá de que fale ou escreva, de 26 A importância da fala do povo Neste sentido, o dicionário é, pois, um fenômeno tanto verbal como social que vai expressar o peso dessa historicidade como elemento constitutivo dos valores simbólicos27 de um povo. Assim é que existe um fator histórico inerente ao dicionário (a tradição do verbo), do qual não se pode separar o social do verbal. Os métodos etnológicos devem ser mobilizados na busca do significado das palavras. E, de certo modo, é na fala regional que irão se encontrar os elementos mais fortes dessa historicidade. A linguista Rosa Virginia Mattos e Silva em seu Português arcaico: fonologia, morfologia e sintaxe28 mostra que o português falado no Brasil é um legitimo herdeiro do português arcaico. Ela aponta, entre tantos outros exemplos dos resquícios do português quatrocentista que aqui aportou na época do descobrimento, o uso da colocação pronominal.29 A importância do registro da evolução histórica do idioma, feita sobretudo através do dicionário, está em que se irá ressaltar que, muitas vezes, aquilo que parece ser desvio a uma norma consagrada, na verdade trata-se da manutenção dos resquícios da história de uma sociedade na qual a norma linguística, ou mesmo o vocábulo, foi engendrado e gerado. Assim se vê no linguajar popular expressões e construções hoje em completo desuso em âmbito nacional (a norma culta) mas que ainda são utilizadas pelas populações ágrafas, dentro da tradição oral, e que, não raro, representam a essência mesma do idioma, encontradas tanto nos clássicos quinhentistas e seiscentistas como, por exemplo, em Camões, como naqueles que prevaleciam quando das primeiras levas de imigrantes no século das descobertas auríferas, no caso de Cuiabá. Lembrou bem Moacir Werneck de Castro ao escrever que a língua falada pelo povo preserva muitas vezes verdadeiras preciosidades, incomparáveis como síntese e vigor de expressão. Este seu aspecto conservador, no bom sentido, em geral não é acentuado. Só se costuma destacar o aspecto, digamos, erosivo, ou degenerativo. Graças ao registrar um modo idiomático e insubstituível”. 27 Ver LARA, Luis Fernando, ob. cit. 28 São Paulo: Contexto, 2006. 29 Com relação à colocação pronominal, exemplifica que, enquanto em Portugal foi atenuada, aqui ela foi perpetuada, apontando a construção popularmente muito comum de “Me dá um cigarro” (arcaizante) por “Dá-me um cigarro”, que é preferido pelos lusos e igualmente recomendada para a fala culta. 27 primeiro se conservam falares arcaicos que, perdidos, fariam falta.30 Isto quer dizer que, do mesmo modo que uma palavra não nasce do nada, sendo que toda ela, mesmo o neologismo, tem uma antecedência histórica, de igual forma, a palavra enraizada na historia do povo não deixa de existir completamente, ainda que submersa na poeira do tempo. Daí, no dizer da já citada Rosa Virginia, nada, ou quase nada, nas línguas se perde, tudo se transforma e é observando o passado que se podem recuperar surpresas que o presente, com frequência, nos faz. Para algumas perplexidades que a variação sincrônica levanta, um rápido olhar para a história passada esclarece.31 Não obstante, essa fala popular, tão estreitamente agregada a uma ancestral “sabedoria do povo”, sofre, nos tempos presentes, um acirrado e crescente cerco destrutivo. É natural, a qualquer idioma, a incorporação de vocábulos novos enquanto que alguns existentes são descartados e esquecidos, sendo que, passadas décadas, podem vir a renascer. Vale, no entanto, advertir que essas novidades, hoje no bojo do crescente processo de globalização, particularmente através dos meios da comunicação eletrônica, nem sempre são fatores enriquecedores da fala e do saber do povo, muito diferentemente do que ocorria com as levas migratórias no passado. Padrões matriciais, prédigeridos, permeiam todos os aspectos das atividades sociais e econômicas, mas é no campo cultural, porque é este que mais de perto diz respeito ao espírito e a autoimagem de um povo, que essa presença, quase sempre exógena, se torna mais danosa. E nada é mais representativo da cultura nacional que o idioma, a expressão verbal da alma do povo. A fala contemporânea, fortemente influenciada pela TV, adentra a todos os setores, inclusive à sala de aula, (que deveria ser o núcleo mais forte da preservação dessa tradição lexical), amalgamando, nivelando e forçando a uma estandardização da linguagem32. O fluxo ininterrupto 30 Jornal do Brasil, 1989. Apud VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. 31 Ob., cit. 32 As gírias, os bordões, os neologismos, quase sempre, anglicismos, introduzidos pelas telenovelas no linguajar cotidiano, e não apenas dos jovens, uniformizam o universo verbal do brasileiro comum, a partir de um padrão carioca ou paulista, quando não de um determinado bairro ou região desses Estados e cidades. 28 da linguagem, disparada por todas as vertentes – comercial, industrial, cultural, científica, turística – acelera o processo de predomínio sobre os falares regionais, numa ação que alcança não somente o léxico, como igualmente os aspectos fonéticos, morfológicos e sintáticos. E do mesmo modo que esse centro nacional é o catalisador desse fluxo que se expande pelo país, é ele, de igual forma, altamente permeável e influenciável por uma transferência linguística que parte das nações mais desenvolvidas. Em outras palavras, o idioma nacional passou a sofrer a influência crescente de um padrão linguístico, nem sempre de origem autóctone, que tende a uniformizar e a simplificar a riqueza da variedade do idioma pátrio. Deste modo é que as palavras novas ao invés de se tornarem uma soma, um acréscimo ao tesouro linguístico nacional, vêm exercendo, em grande extensão, pela força dos meios de comunicação, (TV e internet), um processo de substituição pura e simples dessa expressão popular. Como se sabe que os vocábulos e expressões introduzidos ao longo da evolução histórica, tanto pelo povo como por seus escritores, são reflexos de forte carga coletiva, isto é, estão plenas de historicidade e de emoção e, portanto, são representativas da riqueza social e da alma da nação, pode se avaliar o “estrago” que esse processo significa para a nacionalidade. A linguagem – a fala – é elemento constitutivo da identidade do povo. A perda ou o empobrecimento dessa fala é o principio da morte da solidariedade espiritual de um povo e igualmente fator de enfraquecimento de sua unidade nacional. Tocando na questão da possibilidade do total domínio exógeno sobre a cultura local, lembrou o filosofo Leandro Konder, ao refletir sobre o eco de vozes do passado33: Há padrões culturais que são impostos ao mundo a partir do uso da globalização por parte de potências, grandes núcleos empresariais e consórcios que impõem padrões de uma cultura pré-digerida que predomina, mas não traz grande riqueza. Expressões culturais mais ricas – com as quais teríamos mais a aprender – não encontram espaço atualmente na mídia: só em veículos de menor importância e menor alcance, o que é ruim.34 33 Referia-se a seguinte passagem do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848): “As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comuns de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal”. 34 MORAES NETO, Geneton. Dossiê Moscou. São Paulo: Geração Editorial, 2004. 29 Esse choque cultural, no qual de antemão parece se prenunciar o lado vencedor, representa um empobrecimento, quando não uma degradação, cultural, significando dramática e maléfica perda de valores civilizatórios. É oportuna a advertência da linguista Ivonne Bordelois: Uma certa e obscura onipotência nos dá permissão cotidianamente para assistir a horas de televisão-lixo ou ler as piores seções dos jornais ou escutar os programas de notícias mais sensacionalistas ou a música mais desprezível, acumulando desse modo em nós mesmos uma enorme ressaca de sedimentos espúrios que vão nos convertendo em seres opacos e carentes de toda energia e transparência. Até quando nos imaginamos impunes ou invulneráveis, estamos destruindo a nós mesmos, do mesmo modo que se destroem os que comem e bebem irresponsavelmente até destroçar seus corpos, suas vidas e as dos que os rodeiam. Estas formas de degradação da consciência são mais frequentes e extensas do que pensamos e contribuem, não em pequeno grau, para a hecatombe social que estamos presenciando. A deterioração da linguagem – tanto da que falamos quanto da que nos permitimos escutar – é uma forma de autodestruição sumamente grave, sobretudo quando acompanha, desde o interior, as enormes forças de agressão externa a que estamos submetidos diariamente. 35 Então, criar e desenvolver uma estratégia para conservar vivas, ou pelo menos manter na superfície da memória, as expressões populares mais ricas e vigorosas, impedindo que sejam definitivamente soterradas, é o desafio que se impõe como razão primeira de um projeto cultural genuinamente nacional. Afinal, como nos lembra Borges, “cada linguagem é uma tradição, cada palavra um símbolo compartilhado”. 36 Compartilhar coletivamente esse símbolo nacional, que é o idioma, é a forma de manter viva a chama da tradição espiritual da nacionalidade. Talvez esteja aqui uma das funções mais imperativas do dicionário. 35 A Palavra ameaçada. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2005. 36 Apud SALES, Herbert. Subsi-diário, memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. 30 A gente cuiabana e a sua fala Merece tratamento à parte, a fala, as expressões, as parêmias, os ditos e os chistes oriundos da grande região sob a hegemonia de Cuiabá, pois foi esse núcleo civilizador que, por cerca de dois séculos e meio, exerceu incontrastável influência sobre o vasto território de Mato Grosso. Por ocasião do século da descoberta dos primeiros granitos de ouro nas barrancas do Coxipó, que língua falavam Antônio Pires de Campos, Paschoal Moreira Cabral, Miguel Subtil e seus companheiros de aventuras? Como se comunicavam com os índios? Como já vimos anteriormente, essa língua era denominada de “língua geral”, uma mistura grosseira do português seiscentista com expressões do tupi-guarani. E a comunicação com os nativos se dava num esforço extraordinário de compreensão, de parte a parte, dos respectivos idiomas, em que havia, na dos indígenas, clara influencia castelhana. Barbosa de Sáh, o pai da historiografia de Mato Grosso, registrou um fato ocorrido por volta de 1762, que bem revela esse cenário linguístico. Num entrevero em que, após atacarem uma monção, e terem se retirado estrategicamente, os Paiaguás retornam, e é quando então passa a existir uma possibilidade de entendimento. As conversações se deram, segundo o cronista, da forma seguinte: ... retirou-se o gentio [paiaguás] para a terra adentro, deixando-lhes as canoas [e] preparando as armas para dar sobre eles, bradou de lá um em língua da terra mal pronunciada [...] que se chegassem sem armas. Assim o fizeram [e] travaram com eles uma larga conversa perguntando-lhes, ao que respondiam fielmente em língua da terra, algumas palavras portuguesas e muitas castelhanas ... . 37 É, pois, nos permitido entender que havia, nesses contatos, uma mesclagem entre a denominada língua geral, expressões indígenas e uma variedade de castelhano. Em fase posterior a esse caldeirão comunicativo, foram introduzidos os diversos dialetos africanos.38 E assim é que, nessa primeira fase, o 37 SÁH, Joseph Barboza de. Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Groso de seos princípios thé os prezentes tempos. Cuiabá: UFMT / Secretaria de Educação e Cultura de Mato Grosso, 1975. 38 Para o estudo do histórico do português em Mato Grosso é oportuno a leitura do 31 português de origem sofreu modificações significativas. Como escreveu Cassiano da Silva, no estudo citado39: O português trazido para o Brasil no século XVI, na época que a língua começava a submeterse à disciplina gramatical, era ainda dúctil e não poderia resistir a tantos embates porque passara na América portuguesa. Na época do descobrimento de Mato Grosso, já havia pois a língua portuguesa sofrido alguma diferenciação dialetal e o seu léxico havia se enriquecido de novos termos que recebera das línguas aborígenes.40 Esta é, portanto, a raiz primeira, digamos assim, da origem da “fala cuiabana”. Mais tarde, com os portugueses que para cá se deslocaram quando a febre do ouro atingiu o seu ápice, elementos linguísticos de corte mais apurado se agregaram a essa base. E estes não eram quaisquer portugueses, pois entre eles veio gente de certa posse e de formação cultural, ao contrário do que ocorrera no passado. Em 1711 o jesuíta Antonil publicou em Lisboa um livro que se tornaria clássico, no qual registrava que cada ano, vem nas frotas quantidade de portugueses e estrangeiros, para passarem às minas. [...]. A mistura é de todas as condições de pessoas: homens e mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; nobres e plebeus; seculares, clérigos e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa.41 Daí Buarque de Holanda, em seu celebrado Raízes do Brasil, ter constatado que os empreendedores das caravanas monçoeiras eram “em tudo uma raça nova, portadora de novos ideais, novas tradições, novas mentalidades”42, a que Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, aduz que “os portugueses que chegavam eram mais liberais que a nobreza da terra”43. ensaio de Ulisdete de Souza aqui já referido. Veja a nota 23. Veja-se também o estudo pioneiro de Franklin Cassiano da Silva, aqui também já tratado. 39 Veja Nota 5. 40 Ver a este respeito o referido estudo da professora Ulisdete Rodrigues de Souza. Ob. cit., pg. 46. 41 Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. [André João Antonil era o pseudônimo de João Antonio Andreoni]. 42 HOLANDA, Sérgio Buarque. RJ: José Olímpio, 1973. 43 FREYRE, Gilberto. RJ: Record, 2000. 32 Essa gente vai trazer, assim, uma característica mais moderna para o distante rincão, e entre ela, laivos de cultura e de aprimoramento do idioma. A isso se junta a circunstância extraordinária de a Coroa, graças à posição estratégica que a região representava para a geopolítica da metrópole lusitana, ter enviado para o governo da Capitania alguns de seus melhores fidalgos, pertencentes às famílias mais ilustres e tradicionais do reino, que vieram acompanhados por uma pequena “Corte”, igualmente de qualidade44. Isso explica, sem qualquer dúvida, o papel de destaque que teve a cultura na Capitania de Mato Grosso, como veremos logo a seguir. Esse novo movimento migratório traria positiva repercussão ao léxico. Como registrou Cassiano da Silva: ... confirmando a lei geral de filologia que regula o predomínio da língua mais culta, o português entrando em conflito com as línguas existentes no Brasil, venceu-as facilmente, saindo porém desse recontro, mais rico no seu léxico, mais suave, e mais harmonioso que o português falado nas terras lusitanas. 45 A fala portuguesa tanto sofreu mutações ao longo do tempo como, de certa forma, manteve as suas características originais, não raro observando-se a existência, na fala comum, de termos antigos, muitos dos quais remontam ao classicismo do século XVII. Vários autores, parte deles aqui mencionados, que se debruçaram sobre o estudo da fonética, e estes em maior número do que aqueles que se voltaram para os aspectos lexicais, registram essa ascendência. Cassiano da Silva, por exemplo, relacionando alguns vocábulos tal como aqui falados, diz que “os matogrossenses, espíritos conservadores e inimigos de inovações, guardam nessas palavras a pronuncia quinhentista hoje inusitada”. Cita ele vários termos do linguajar antigo ainda hoje em circulação em algumas áreas de Cuiabá, como agardecer, alugué(r), anteado (enteado), Câmera (por Câmara), ametade, madurecê e outros mais. Isto se poderá observar numa rápida recorrida ao maior clássico luso, onde iremos encontrar inúmeras expressões contemporaneamente presentes 44 Entre estes se destaca um dos maiores administradores que o Brasil teve no século XVIII. Luiz de Mello Pereira e Cáceres, que por dezessete anos governou a Capitania de Mato Grosso, estava tão ligado aos assuntos burocráticos da administração, da defesa militar do solo pátrio, como às atividades culturais. Escrevendo sobre ele, o sociólogo Gilberto Freyre registrou que era tão grande a movimentação cultural e o aparato civilizatório existente em Vila Bela da Santíssima Trindade, que, não deixando por menos, denominou essa capital de “A pequena Lisboa”. Ver: Contribuição para uma Sociologia da biografia – O exemplo de Luiz de Albuquerque, governador de Mato Grosso no fim do século XVIII. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1978. 45 Ob., cit. 33 tanto na fala preservada na área rural como em setores menos cultos do meio urbano. Com efeito, são inúmeros os léxicos camonianos, apontados por vários pesquisadores tanto locais como forâneos. Vamos aqui, num ligeiro exemplo, a uns poucos primeiros versos de Os Lusíadas: 34 No Canto I: Que não tenham enveja às de Hipocrene. (4); Tantos climas e céus exprimentados, ... (29); Alevantando um pouco, mui seguro, (37);. Porque enfim vem de estâmago danado; Pera os determinados apousentos. (41); Co temor grande em pexes converteu. (42); Do licor que Lieu prantado havia ... (49); Dando cargo à Irmã que alumiasse (56); .Começa a embandeirar-se toda a armada (59); Olhando a cor, o trajo e a forte armada; (62); Partazanas agudas, chuças bravas. (67); Um de escudo embraçado e de azagaia, ... (86); Bramando, duro corre e os olhos cerra, - Derriba, fere e mata e põe por terra. (88); ... Mas debaxo o veneno vem coberto, ... (105). / No Canto II: Pergunta-lhe despois se estão na terra ... (6); E nesta treïção determinavam ... (17); Pera estorvar que a armada não chegasse ...(19); No rudo marinheiro que trabalha; ... (25); Dizendo: – “fuge, fuge, Lusitano”, ... (61); Na cinta a rica adaga, bem lavrada; ... (95). / Canto III: Prontos estavam todos escuitando; Alevantando o rosto, assi dizia:... (3); Mas louvar os meus próprios, arreceio ... (4); Que qualquer delas cuida que é milhor. (18); O esprito deu a Quem lho tinha dado. (28); O fim de seu desejo, pelejando ... (68). / No Canto IV: A guerra com que a pátria se sustinha; ... (22); ... E lá bem junto donde nace o dia.... (69); Em que crece o desejo do valor... (82); Da quieta e da simpres inocência (98). / No Canto V: ... Por tomarmos da terra mantimento. (8); ... A terra onde o refresco doce achámos. (9); Relâmpados que o ar em fogo acendem. (16); Palavra sua algũa lhe alcançaram ... (64); No povo, como nós outros cási mudo,... (69); Às Musas agardeça o nosso Gama (99). / No Canto VI: De Minerva pacífica ouliveira. (13); Como lhe bem parece, o baxo mundo,... (33); Os áureos freios, com feroz E assim por diante. sembrante;... (61); Abaxam lanças, fere a terra fogo; (63); Os pés e mãos parece que lhe ataram ... (88); A mercê grande a Deus agardeceu. (93). / No Canto VII: De samear cizânias repugnantes. (10); Onde o Profeta jaz que a Lei pubrica. (34); A Lei não mesturar a casta antiga; (37); Com cerimónias mil se alimpa e apura. (38); Tingindo, a que deixou, de escura noda, ... (60). / No Canto VIII: Quando a passar por baxo foi forçado ... (15); E grande esforço faz enveja à gente. (26); Que de seus ódios inda se não dece. (47); E, sendo da ouciosa mão movido, ... (87). / No Canto IX: Mas põe em vida os inda não nascidos. (32); É mais culpa a da mãe que a do minino. (35). / No Canto X: Abaxando, fez ronco e entristecido, - Cantando em baxa voz, envolta em choro, - O grande esforço mal agardecido. (22); Tranqueiras, baluartes, lanças, setas: ... (57); Que fogo e frechas mil terão coberta. (63); Fernando, um deles, ramo da alta pranta, ... (70). O fato é que, em todos os autores do período, serão encontradas expressões que, apesar do crescente processo de urbanização e de disseminação comunicativa, ainda hoje são utilizadas.46 Percebe-se, pois, que o linguajar da Capitania foi enriquecido por expressões e por sintaxes que nos conduzem aos clássicos. Neste contexto, um interessante paradoxo nos chama a atenção: é que, na ultima fronteira econômica a ser conquistada, e onde já se vive um crescente processo de urbanização globalizada, ainda é possível encontrar vocabulário e modos de dizer seiscentistas. Venho tratando até agora da questão relativa ao léxico, até porque este, e não outro, é o objetivo deste Dicionário. Todavia, é igualmente oportuno abordar, ainda que a voo de pássaro, a questão relativa à forma de se expressar, (a prosódia). Em outras palavras, o sotaque47. Este tema, 46 É bem verdade que esta não é uma característica exclusiva da região cuiabana, já que é igualmente encontrada tanto no interior de São Paulo, por exemplo, como em outras partes do Brasil profundo. Amadeu Amaral, com O dialeto caipira, de 1920, foi um dos primeiros a apresentar um estudo mais sistemático, no qual, mais contemporaneamente, se destacou Serafim da Silva Neto com o Guia para estudos dialectológicos, entre tantas outras de suas contribuições. O nosso Franklin Cassiano mesmo, em seu estudo, diz que “essa pronuncia é usada ainda pelos caipiras de São Paulo e foi transplantada para o nosso Estado pelos bandeirantes que conservavam ainda os modos de pronuncia arcaicos dos primitivos colonos portugueses”. 47 Sotaque é definido pelos dicionários como sendo a pronúncia característica de um 35 como já disse anteriormente, vem sendo tratado a longo tempo e com grande competência por vários estudiosos, quer no campo da fonologia, da sintaxe ou da semântica. Evidentemente não se pretende dele aqui tratar em maior profundidade, já que não diz respeito ao interesse direto de um dicionário lexical. Ademais, aqueles que desejarem se aprofundar poderão recorrer aos estudos a que já fiz referências. Portanto, muito rapidamente é que farei algumas pontuações a respeito. A questão do sotaque, isto é, a forma peculiar de falar, sempre foi, digamos assim, o centro de atenção quando se refere à “fala do cuiabano”.48 O linguajar cuiabano “meio cantado, muito arrastado e de marcada originalidade”49, com uma particular “ênfase à maciez palatal da consonância chê, pronunciando, como os pescadores das margens, petche ... diferente do resto do Brasil” 50 e com uma característica “que o marca diferente de outros falares do Brasil [que] é a entonação, a musicalidade” 51 é matizado pelos sons do g, j, x e ch, os chamados fonemas africados tche, dje (petche, tchão, djeito, djente) ou então os plurais de nomes terminados em ão ditos como ons (sermons, irmons), sem falar na (dis)concordância de gênero (“vou no mamãe”, por, “vou à casa de mamãe”).52 Esse linguajar típico, característico e marcante53, sempre chamou país, de uma região, de um indivíduo ou ainda a pronúncia imperfeita de um indivíduo, ao falar uma língua estrangeira, devido à transferência que ele faz de hábitos fonéticos da língua materna para a outra língua, na articulação e/ou na entonação, e que frequentemente permite identificar a sua origem. [Houaiss]. 48 Na verdade, Cuiabá é apenas o centro irradiador para uma ampla região próxima que abarca vários municípios, comumente denominados de “baixada cuiabana”. O professor Serafim da Silva Leite, em seu já referido estudo da década de 1960, informa que a pronuncia do tch e djê foi constatada nos municípios de Santo Antônio do Leverger, N. S. do Livramento e Barão de Melgaço. Abílio Leite de Barros, na obra a seguir citada, diz que “apenas na zona rural e, particularmente, no pantanal poconeano, esse linguajar ainda é encontrado em sua forma mais pura. No pantanal corumbaense ainda há fortes vestígios, mas certamente por pouco tempo”. Cerca de quarenta anos antes, diferentemente entendia o professor Serafim. Citando a pesquisa do prof. Mansur Guérios, [Farani Mansur, filólogo e lexicógrafo paranaense que, em 1947, publicou o Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes] divulgada em 1956, informa que esse tipo de pronuncia do ch e do j (ditos africados ou explosivos) não se restringia às zonas rurais, mas era “também citadina e de pessoas cultas”. 49 BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira (Crônicas de sua História). Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. 50 PROENÇA, M. Cavalcanti. No Têrmo de Cuiabá. Cuiabá: Academia Mato-Grossense de Letras, vol. 10, da Coleção Obras Raras de Mato Grosso, 2012. 51 PASSARI, Lúcia Helena Vendrúsculo. Falar e dizer cuiabanos na mídia: signos que se renovam. In: Vozes cuiabanas. Ob. cit. 52 Para verificar melhor essa particularidade é interessante ir até aos trabalhos reunidos em Vozes Cuiabanas. 53 Ailon do Carmo, no seu Dicionário Português – Borôro \ Borôro - Português 36 a atenção de visitantes ilustres54 que por aqui passaram, bem como dos recém-chegados migrantes. Como apontou a professora Canavarros Palma “elementos oriundos de outras regiões, em contato com esse meio, diziam sempre ‘estranhar’ essa marca regional, ‘desconhecida’, conforme registros efetuados”55. Todavia, se de alguns chamou a atenção pelos aspectos culturais envolventes, para outros, uma grande maioria, ele serviu de reparos, quando não de chacota. Serafim Silva Neto, no já referido estudo de 1960, observou que ... em Cuiabá costuma-se mesmo ridicularizar a pronuncia caipira dizendo a seguinte frase: tchuva tchoveu, cotxipó entcheu, petche morreu ... .56 Palma assegura que, em decorrência, a fala mato-grossense foi sempre motivo de inúmeras críticas. Repudiados, censurados, constituíram tais fenômenos linguísticos motivo de distanciamento entre os próprios elementos do sul (MS) e do norte (MT). Assim, a rivalidade era aguçada a começar por motivos que poderemos perfeitamente detectar: não possuíam uma mesma tradição cultural. 57 Com efeito, essa dissonância cultural, que em certos aspectos é também fruto de diferenças sociais e econômicas, matiza a linguagem. Isto ocorre, obviamente, não só com relação ao cuiabano e matogrossense, mas pode ser observada onde quer que se dirija uma análise mais acurada sobre o fenômeno linguístico. A língua não é apenas o aspecto [Rondonópolis/MT: s/editora, s/data], afirma: “Alguns grupos de letras, no dialeto bororo, têm pronúncias (fonéticas) bem diferenciadas dos mesmos grupos de letras do nosso idioma; as sílabas ca, ce, ci, co e cu, por exemplo, são pronunciadas da seguinte forma: ‘tcha’, ‘tche’, ‘tchi’, ‘tcho’ e ‘tchu’. (...). Os grupos formados pelas sílabas ‘já’, ‘je’, ‘ji’, ‘jo’ e ‘ju’, por sua vez, são assim pronunciados: ‘djá’, ‘dje’, ‘dji’, ‘djo’ e ‘dju’. (...). Esse modo de falar é bem característico do povo cuiabano; quem ainda não ouviu o natural da região da grande Cuiabá falar ‘cadju’ (caju), ‘pêtche’ (peixe), ‘tchover’ (chover), ‘maracudjá’ (maracujá), ‘matchitche’ (maxixe)? Isso se explica pelo fato deles serem legítimos descendentes dos bororos”. O autor faz uma observação em base empírica com relação ao sotaque (pronuncia), sem, no entanto, poder generalizar quanto a parte final de sua afirmação. 54 Entre tantos, Hercule Florence, Karl Von den Steinen, Roquete Pinto. 55 Ob, cit, 1984. 56 Apud PALMA, Maria Luiza Canavarros. Ob, cit. 57 Id, ib. Ela se refere especificamente às variações entre consoantes africadas e fricativas. 37 da fala, visto puro e simplesmente, (elemento no campo da fonologia), mas é a resultante de um longo processo histórico, social e econômico. E é precisamente essa resultante que vai organizar o discurso com que pessoas e grupos se inter-reagirão e que irão estabelecer a comunicação com os demais. Portanto, a diferenciação no modo de falar pode ser uma marca de identidade, ao invés de ser encarada simplesmente como expressão de minorias fechadas ou de enclaves culturais e econômicos. Se o falar regional for colocado dentro de uma perspectiva histórica correta irá ele apontar uma identidade que, longe de estar fora da linha de uma construção linguística nacional, (estando, em alguns casos, até mesmo dentro da norma culta), apenas irá evidenciar o diferente dentro da unidade. Com isto quero dizer que não são as eventuais inflexões da fala, caracterizadora do sotaque, que irá determinar o falar típico de uma região como vício de linguagem, ou, como uma linguagem marginal, fruto da consequência de um sistema educacional falho ou de uma subcultura. Em outras palavras, a linguagem regional, e o seu sotaque característico, embora possa ser destoante da linguagem padrão, nem por isso está distante de parâmetros formais da língua nacional. Já vimos como expressões usuais de grupos sociais nos remetem ao português clássico, e a forma de expressálas não destoa de um conjunto verbal da melhor tradição. Cassiano da Silva escrevia, em 1930, que “na sintaxe, os erros cometidos pelos matogrossenses, são os mesmos que se cometem em todo o país”, mas, em compensação, alertava ele, há aspectos da gramática em que os nativos de Mato Grosso se saem bem melhor que os de outros Estados. Exemplificou: “Um vício que se encontra em todos os Estados do Brasil e que em Mato Grosso raramente se observa, e isto só entre pessoas de mediana cultura, é o da falsa concordância dos verbos fazer e dar em – ‘Faz dois anos’ – ‘deu duas horas’, que em outros Estados dizem: ‘Fazem dois anos’ – ‘deram duas horas’. O povo geralmente diz: Faz dois anos – deu duas horas”.58 Vê-se, pois, em inúmeros exemplos, que a correção do falar, com as expressões típicas, não pode ser anulada, levada ao deboche ou ao ridículo, apenas pelo sotaque “meio cantado, muito arrastado” ou, como constatou uma pesquisadora, “sotaque arrastado, forte, carregado, feio, também chamado de cuiabanês, linguajar cuiabano autêntico, puro, de raiz”59, como se, pela forma de se falar, pudesse ser definida toda a cultura de um povo. No entanto, desde o ponto de vista da antropologia cultural, vamos observar que o real retrato da cultura de um povo não está apenas nas suas expressões mais visíveis, mas se encontra na dimensão que ganha ao estabelecer a verdadeira anatomia de seu espírito, de seu conhecimento 58 Ob., cit. 59 PETERSON, Ana Antônia de Assis. A encenação do falar cuiabano por vozes cuiabanas. In: Vozes cuiabanas. Ob., cit. 38 instintivo, que se manifesta através de sabedorias imemoriais. Para não delongar, trago um sintético, mas expressivo, retrato desse cuiabano ancestral, traçado por um cuiabano que foi também um interprete da alma nacional. Cavalcanti Proença registrou: O caboclo cuiabano tem, assim, muito mais de bugre que de negro: cabelo grosso e liso, intrínseca e original concepção de liberdade e grande desconfiança para com tudo que lhe saiba a novidade. Desconfiado, com um cândido semblante de ingênuo, é observador e está sempre pronto a criar situações de ridículo para a gente de fora que não lhe inspira simpatia, considerando-se muito civilizada e sabida. Fala pausada e, quando narra, tem aquela faculdade de síntese tão característica dos homens simples. [...]. Fala pouco e baixo o cuiabano, herança direta de índios, hábito de caçadores, correspondendo a ouvido apuradíssimo. [...]. Chama a atenção, nas embarcações, o modo como o prático do timão comanda em voz baixa e como os embarcadiços o atendem, imediatamente, como se a ordem fosse dada aos gritos.60 Sob outro ângulo, Maria Francelina conclui ser essa uma fala de “adjetivação contida [e a] linguagem é sobretudo referencial e centra-se no substantivo”.61 O sotaque cuiabano é um símbolo de resistência cultural e social. Ao longo do tempo ele vem sofrendo um assédio, um combate constante e variado e sendo submetido a um processo de erosão e de desgaste permanentes. Quase sempre alimentados pelo preconceito e um ar de falsa superioridade. Um dos aspectos da rivalidade com o sul do Estado (hoje Mato Grosso do Sul) era enfatizado pela exposição ao ridículo do modo de falar; depois vieram os migrantes do Sul do país que ofereciam um contraste que indicava a diferença de origem, sendo que o sotaque era parte dessa diferença (mesmo que eles próprios tivessem – têm – o seu sotaque distinto e igualmente marcante), e, finalmente, os meios de comunicação que, com a chegada da televisão no inicio dos anos setenta, forceja, de modo crescente, a padronização da linguagem e a imitação como forma de prestigio social. Mas, é preciso dizer, o maior ataque a esse linguajar, paradoxalmente, é endógeno. O retorno à terra natal de muitos 60 Ob., cit. 61 Ob., cit. 39 dos que foram estudar, sobretudo no Rio de Janeiro, expôs um contraste marcante em que se buscava ressaltar que “o falar dos outros” era mais bonito, correto e elegante que o “nosso”.62 Tal entendimento encontrou um forte aliado na escola: “o convívio na escola de professores rígidos, nos anos cinquenta e sessenta, era também outra força a impulsionar o apagamento do sotaque cuiabano em favor do português padrão”.63 Assim é que, não raro, se vê a confusão que muitos fazem entre a forma oral de se expressar (o sotaque) do povo, com toda uma formação cultural de base histórica e garantidora de uma tradição enraizada. Tradição esta que, de quando em quando, é necessária seja lembrada. Durante todo o século XVIII, por exemplo, as manifestações culturais, particularmente as teatrais, foram contínuas, a ponto de a Capitania de Mato Grosso, ou seja, em Vila Bela da Santíssima Trindade, a capital, e em Cuiabá, ter sido considerada a que mais peças teatrais, quase todas vindas de Lisboa, encenou em todo o Brasil. Em Cuiabá, de 1729 até 1796, foram registradas apresentações de várias peças teatrais, compreendendo comédias, óperas, entremezes (peças curtas, jocosas, burlescas) e tragédias. Por essa época é escrita em Mato Grosso a primeira crítica de teatro feita no Brasil e concomitantemente aparecem a primeira peça teatral (de Joaquim Lopes Poupino) e a primeira poesia (de José Zeferino de Mendonça) escritas em Mato Grosso.64 O tablado era popular, geralmente em praça pública, e em que, muito embora tivesse uma maioria de atores portugueses, havia grande participação de homens do povo, brancos e negros, ricos e pobres, e até de militares. Escrevi em outro trabalho, como mostra desse riquíssimo momento de nossa história: É preciso que se diga desde já que essa época foi um período áureo para as manifestações culturais neste extremo do Brasil. (...). Por um largo período, neste longínquo rincão brasileiro, viveuse uma atividade cultural bastante intensa, a par, evidentemente, de outras realizações de cunho político-administrativo, e, sobretudo, militar, que tinha na consolidação da situação fronteiriça seu móvel principal. (...). Esse dinamismo cultural 62 Para Canavarros Palma: “a emissão das consoantes africadas c e j - no falar cuiabano – é que constitui o som ‘desconhecido’ e ‘esquisito’ para os elementos estranhos à região. Para os da própria região, a ocorrência destes segmentos africados é motivo de repúdio, de censura; é um traço que deve ser banido de sua comunidade de fala”. Ob. cit. 63 Id., ib. 64 CARVALHO, Carlos Gomes de. No distante Oeste: A Primeira crítica teatral no Brasil. Cuiabá: Verdepantanal, 2004. /e/ A Poesia em Mato Grosso – Um percurso de dois séculos. Cuiabá: Verdepantanal, 2003. 40 foi tão marcante que, quase dois séculos depois, ainda impressionaria um ilustre visitante. Georges Clemenceau, após a sua estada no Brasil no início do século XX, descreveria em seu ‘Notes de Voyage dans l’Amérique du Sud’ o espanto que sentiu quando descobriu que, em 1780, já se representassem em nosso país as tragédias de Voltaire, além de outras peças de autores europeus, sobretudo franceses, e que isso se dava a mais de 1.400 quilômetros do litoral. Com efeito, com exceção talvez do Rio de Janeiro, a capital da Colônia, em Vila Bela da Santíssima Trindade se apresentaram mais peças teatrais que em todo o restante do Brasil. 65 Maravilhou-se o renomado cientista francês com a estatística dando conta que durante todo o século XVIII enquanto em todas as demais Capitanias as peças encenadas não chegaram a cinquenta, em Mato Grosso elas ultrapassaram a oitenta. Esse ambiente cultural se prolongaria no tempo, a ponto tal que, mais de um século depois, por volta de 1884 quando por aqui passou, o cientista Karl Von den Steinen registrou que “não é possível que haja outra cidade no mundo onde se toque mais música, se dance mais, se jogue mais baralho do que aqui”. 66 Esse espírito alegre, festivo, lhano, acolhedor, aliado à forma de expressão, vem sendo uma marca das raízes históricas cuiabanas. Já no século XX, mais precisamente em 1936 quando aqui esteve, Monteiro Lobato, um dos mais importantes escritores brasileiros no período, escreveria que “a elite de Cuiabá é muito fina. Cuida bastante da educação. Abundam homens de linda cultura, até filosófica”67. E é importante sublinhar que, mesmo essa elite, na ocasião, ainda não havia perdido o sotaque característico da terra. A este respeito, é muito interessante a constatação feita por Leite de Barros, que tem profundas raízes matogrossense-pantaneira: Os cuiabanos da cidade ajudam no desaparecimento do típico sotaque, pois sempre se policiaram fortemente diante de estranhos. Mantinham o linguajar apenas para uso privado, como coisa intima. Reunido o clã, na intimidade 65 A Poesia em Mato Grosso – Um percurso histórico de dois séculos. Idem, ibidem. 66 CARVALHO, Carlos Gomes de. Viagens ao Extremo Oeste – Desbravadores, aventureiros e cientistas nos caminhos de Mato Grosso. Cuiabá: Verdepantanal, 2005. 67 Cf. PÓVOAS, Lenine C. História Geral de Mato Grosso, vol. II. O autor, porém não indica a fonte onde foi colhida a citação. 41 da nossa “djente”, desfazia-se a censura e corria solta aquela sonoridade estranha, gostosa, rica e extraordinariamente expressiva. Diante de estranhos continham-se.68 Duas conclusões de imediato saltam. A primeira é que se trata de um erro confundir a cultura de um povo - em seu conceito mais singelo, ou seja, o complexo que inclui tanto o conhecimento popular, as crenças, os costumes, como o saber erudito – com a forma pura e simples de falar no cotidiano, isto é, o sotaque. A outra é que a perda do sotaque característico se dá mais por uma certa imposição social, do que propriamente forçada por uma necessidade comunicativa, isto é, de inteligibilidade do discurso. E, o que é dramático, é que essa imposição que vem de fora encontra guarida, e até estimulo, no seio da terra. O elemento que sustém esse combate ao falar autóctone é o de um inexplicável e incompreensível sentimento de inferioridade. O curioso é que não se discute sequer o conceito de norma culta de nossa tradição da “fala cuiabana”, quero dizer, o da correção gramatical69, mas se tende a colocar o sotaque, de um modo simplista e inconsequente, como o elemento definidor e caracterizador dessa fala70. Daí nasce o repúdio à fala da terra, fortemente alimentado pela “crença de que o modo de falar do cuiabano era feio e deveria ser corrigido, fazendo com que alguns cuiabanos passassem a ter vergonha e a policiar a sua fala”. 71 Por sua vez, esse sentimento de vergonha é acentuado pela exploração folclórica, debochada, caricata, irônica, cômica, realizada pelos próprios da terra. Como se aí, no sotaque, estivesse a expressão da essência da fala cuiabana, e por conclusão, de sua cultura. O sentimento de vergonha gera o complexo de inferioridade72. Daí esse policiamento da expressão, a que se referem tanto Canavarros Palma, 68 BARROS, Abílio Leite de. Ob., cit. 69 E neste ponto é interessante observar o debate entre os gramáticos e filólogos brasileiros contemporâneos, em que as discussões entre o que é certo e o que é errado no falar nacional persistem. Celso Cunha e Lindley Cintra, por exemplo, em A nova gramática do português contemporâneo, defendem que a forma correta da linguagem é aquela que “reúne maior simplicidade possível com a necessária inteligibilidade”. 70 Neste sentido, seria o mesmo que afirmar-se que o forte e marcante sotaque europeizado, quando não de autênticos dialetos passados de geração para geração, existente nas áreas de colônias de imigração (alemães, italianos, poloneses) no Sul do país, o sotaque carregado, acentuando os erres, do interior paulista ou os diversos sotaques nordestinos, para só ficarmos nesses exemplos, fossem, cada um deles, as características marcantes e definitivas da totalidade da população dessas regiões e, a partir daí, defini-los como “a fala usual do povo”, tal ou qual. 71 PETERSON, ob. cit. 72 Abílio Leite de Barros, conta: “Ouvi, surpreso, de um cuiabano da nova geração, a informação de que aquele linguajar não era dos cuiabanos, mas sim das populações ribeirinhas. “Arre, djente!”. Ob. cit. 42 Leite de Barros, Assis Peterson e vários outros pesquisadores, numa tentativa de apagar, de forçar o esquecimento, enfim, de soterrar o sotaque e, só o trazendo à baila, quando se trata de brincar, comediar, zombar. É oportuno, porém, reconhecer que tal não se dá apenas no que se refere ao sotaque. Outros setores da cultura popular são igualmente atingidos por tal sentimento. Abel Santos, pesquisador das manifestações musicais tradicionais matogrossenses, escreve que ... aos velhos cururueiros coube o desprazer de se verem muitas vezes tolhidos pelos próprios familiares, que não os queriam ver nas tradicionais rodas de cururu e siriri, por vergonha e por intimidação. Ouçamos o que diz a professora Eunice Ayalla, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul: “As novas gerações, os filhos dos cururueiros, não seguem a tradição dos avós. Pelo contrário, sentem vergonha e até proíbem os pais de formarem rodas de cururu”. 73 Essa situação já vinha, desde os anos setenta, sendo lamentada por uma de nossas autoras mais autenticamente cuiabanas. Dunga Rodrigues, na crônica ‘Mulheres de fibra’, constatou: Cuiabá está perdendo a sua fala típica, na mescla de novos elementos que, de repente, implantam o seu falar, as suas maneiras e tudo de forma tão rápida que, daqui a pouco, o que nos era habitual se torna arcaico, da noite para o dia. Os ditos, que entremeavam as conversas, já sumiram. Os mais velhos vão desaparecendo e os jovens já nascem em outra. 74 Trata-se, no entanto, de erro imperdoável considerar o “falar cuiabano” apenas pelo seu sotaque, ou seja, a expressão coloquial da gente cuiabana, e daí, de modo infantilizado e inconsequente, criticá-lo, caricaturálo, e assim, buscando reduzir e amenizar a sua existência, colocá-lo como um enclave exótico, símbolo de atraso cultural e social. Entendo que isso não deixa de ser uma mal disfarçada forma de abrir caminho para se justificar o 73 ANJOS FILHO, Abel Santos. Uma melodia histórica. Cuiabá: edição do autor, 2002. 74 RODRIGUES, Maria Benedicta Deschamps (Dunga Rodrigues). Marphysa / Crônicas Cuiabanas. Cuiabá: Academia Mato-Grossense de Letras, vol. 9, da Coleção Obras Raras de Mato Grosso, 2013. 43 amplo uso dos sotaques advindos de outras plagas.75 É oportuno, pois, mais uma vez, trazer o relato da professora Canavarros Palma que, no seu estudo publicado na década de oitenta, reconhecia: “Se examinarmos, foneticamente, estes sons africados (no falar cuiabano), verificaremos que se assemelham a um traço da fala carioca, tão conhecido, tão divulgado e imitado por outras regiões”.76 Assim, por essa constatação, entre a de outros autores, se pode deduzir que a ação de ridicularizar com imitações canhestras e cômicas generalizadas é, sem dúvida, uma das faces do subdesenvolvimento cultural. E, na verdade, essa tentativa de desprestigiar, de negar, de menosprezar o sotaque cuiabano tem, subjetivamente ou não, a finalidade de se pretender valorizar, social e politicamente, outros falares e sotaques. Com propriedade bem afirmou, há mais de trinta anos, a professora Maria Luiza Palma: Estranhar ou repudiar o traço cuiabano se deve ao fato de não trazer ele, consigo, o fator prestígio, de não ser aceito pelos membros da própria comunidade, de ser uma forma estigmatizada, portanto, de não se incluir nas ‘ditadas’ pelos grandes centros.77 É neste contexto que a fala da terra vê partir de seu próprio interior os ataques mais graves e, sob a capa do lúdico, destruidores. Faz, pois, sentido a oportuna advertência de José Vidal: Não confundamos o falar cuiabano com o falar 75 Quantos não são os migrantes vindos do Sul do país que mantém, e até cultivam com orgulho, seu forte sotaque, carregado pelas diversas origens europeias, com os ditos, chistes e expressões tradicionais de suas querências. Se nos centros urbanos de Mato Grosso esse falar não é tão percebido, basta, porém, percorrer as vastas áreas do interior, cujas presenças desses migrantes de primeira geração é maciça, para se constatar o que afirmam. De igual modo se deu no período da massiva migração da gente do Nordeste para os garimpos do Garças e do Araguaia quando trouxeram, e mantiveram durante as primeira e segunda gerações, pelo menos, o forte e carregado, embora sonante, rico e variado sotaque nordestino. Todavia, uma análise, mesmo superficial, irá comprovar que, tendo em vista o aspecto lexical e fonético, ou da construção gramatical, o português falado pelo cuiabano tradicional possui mais elementos de correção formal, como, de resto, já apontaram Cassiano da Silva e outros, do que o de grande parte dos migrantes que aqui aportaram. De outra parte, sem qualquer temor de que venha esta a ser considerada uma afirmação cabotinista, posso com tranquilidade dizer que a comparação pura e simples entre estes diferentes sotaques irá comprovar o quão mais sonoro e encantante é o do cuiabano. 76 PALMA, Maria Luíza Canavarros. Ob., cit. 77 “Enfim, a ocorrência de africadas no falar cuiabano não é a prescrita pela norma gramatical, pela língua culta, como o é no falar carioca. Desta maneira, razões de ordem social (não excluindo a possibilidade de existência de razões linguísticas) estão implicadas no determinar das variações entre africadas e fricativas na fala cuiabana, na sua aceitação ou não”. Ob. cit. 44 caipira. Esse é o linguajar de todos os brasileiros incultos. Aquele é constituído de termos e expressões próprias do cuiabano. 78 Tem razão Vidal, pois não é admissível que, a partir de um falar supostamente “errado”, ou distorcido, isto é fora dos padrões da chamada norma culta nacional, praticado por segmentos de uma dada população, se pretenda generalizar para, quase que como um apodo, dizer que se trata da fala de determinado povo, como se essa particularidade fosse uma marca indelével desse povo. No caso específico, uma “característica do cuiabano”, ou seja, da “fala do cuiabano”, ou ainda, como, querem alguns, acentuando o caráter de deboche e de ridicularização, do “cuiabanês”. As “expressões próprias do cuiabano” estão, conforme esse professor, conhecido defensor do idioma e das tradições da terra, sendo descaracterizadas, desmoralizadas, e, tais iniciativas, ganham um sentido que depõem contra a própria tradição cultural de Cuiabá79. Na verdade, uma coisa é utilizar a expressão típica de um povo (o sotaque) com a finalidade lúdica e artística, portanto circunscrita e objetiva em seu desiderato, o que pode ser criativamente válido80, outra é transformála em ridículo, em motivo de desprezo e de solerte tentativa de, ainda que indiretamente, de apagamento de sua memória. Como consequência dessa repetida atitude, acontecerá a gradual substituição do falar local por lexias de outras regiões, que passam a ser gradualmente incorporadas pela população por serem consideradas de maior prestígio ou tidas como “cultas”, já que trazidas por migrantes de maior poder social e econômico81. 78 VIDAL, José. Metendo o Bedelho. Cuiabá: edição do autor, sem indicação de data. 79 Comentando sobre o Dicionário cuiabanês, de W. Gomes, publicado na ocasião, opinou Vidal: “Por falar no tal dicionário, que me desculpe o ínclito autor, o nome mais correto seria ‘Dicionário de erros da linguagem falada por uma parcela mínima de cuiabanos’. Quem consulta esse dicionário vai julgar que o cuiabano fala da maneira como o autor registra em seu livro. Isso não condiz com a nossa realidade! O cuiabano é culto. Como em todos os estados, há os que falam errado, mas não é a maioria”. (pg. 10). Ver a este mesmo respeito o comentário da professora Vanderci de Andrade Aguillera na Nota 4. 80 Muito embora, neste caso, valha a advertência do crítico literário Fausto Cunha: “Tivemos de um lado o lançamento em massa de regionalismos, mais até, de localismos, de idiotismos estritamente confinados a essa ou aquela comunidade, em geral falsamente recolhidos (de ouvido, de memória ou apenas fantasiados). Do outro, o abuso de má sintaxe dita popular, arbitrária e sem validade linguística.” In: A Luta Literária. Rio de Janeiro: Lidador, 1964. 81 Na área especificamente da fonética vale transcrever o registro de Canavarros Palma. Em, O falar cuiabano em Mato Grosso – Estigma, status e atalhos, escreve: “O fator Nível de Escolaridade mostrou-se relevante, permitindo-nos dizer que, cuiabanos, com nível de escolaridade superior ou do 1º e 2º graus completos, vinham substituindo as consoantes africadas, estigmatizadas, pelas de prestigio, pelas fricativas. Esses resultados são bastante coerentes com o papel que a escola exerce no nosso meio social, o de 45 Assim, a pura e simples crítica da maneira de como o povo se expressa, isto é, de seu sotaque característico, seja ela feita através da condenação direta, seja pela ironia ou o olhar enviesado sob a capa de pretensos conhecimentos linguísticos, ou mesmo, pelo deboche e pela caricatura, constitui-se, não somente num grave equívoco histórico, mas igualmente trata-se de reprovável preconceito linguístico e social. O Dicionário de Mato Grosso O idioma, como se sabe, não é apenas o modo de falar (sotaque ou não), mas é, sobretudo, a resultante da simbiose de elementos históricos, sociais e econômicos, daí o campo interdisciplinar abrangido pela geolinguística. Nela se registra como a fala do individuo está estreitamente ligada a um determinado contexto temporal, espacial e social, no qual o espaço geográfico sublinha a variedade que a língua adquire de uma região para a outra, assinalando, por conseguinte, não somente a diversidade cultural, mas a formação histórica, econômica e demográfica desse espaço em relação a outro. É neste contexto que nasce um dicionário do falar regional. E é sob este enquadramento, o da diversidade espacial, demográfica e econômica, que este Dicionário passa a existir. A dimensão geográfica continental de Mato Grosso e o seu diversificado potencial econômico, se constituíram no elemento congregador de sua expressão linguística. Assim, temos os distintos ciclos de ocupação demográfica, em espaços diferentes e consequentes com as diversas atividades econômicas, que predominaram em períodos específicos. Num primeiro momento, foi o brilho das riquezas auríferas que refulgiam e a posição estratégica que a região representava para a geopolítica da metrópole lusitana que atraiu as levas migratórias. Porém, com o esgotamento dos veios auríferos, sobreveio o marasmo econômico e social. Num segundo momento, veio a ocupação lenta mas gradual pela pecuária, na região sul, que se expandiu pelos chamados campos de vacarias e no Pantanal. Nas décadas posteriores, assistiu-se ao surgimento do extrativismo, tanto no sul, com a erva mate, como no norte, com a inibir padrões de comportamento linguístico que não se ajustem ao modelo prescrito pela norma culta. Tais consoantes africadas nem sequer aparecem como existentes na fala tomada como culta do brasileiro e, como ainda não tínhamos ou ainda não temos uma adequada descrição de normas populares e regionais em Mato Grosso, esses traços regionais não existem oficialmente na língua portuguesa”. In: Vozes Cuiabanas, ibidem. 46 poaia e a seringueira, tendo, na sequência, o incremento do comercio exportador–importador de escala, do charque e da erva mate (a ilex paraguariensis, também chamada mate ou congonha), realizado através da Bacia Platina, cujo epicentro foi Corumbá. Nesse macro período, compreendido entre meados do século XIX e os anos iniciais da Primeira Guerra Mundial, coincidindo com a inauguração, em 1914, da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, Mato Grosso vivenciou um significativo apogeu econômico. Todavia, estes dois eventos contribuíriam para o decréscimo econômico, ao qual, novamente, sobreveio um período de isolamento geográfico e administrativo, que perduraria até pelo menos às quatro primeiras décadas do século vinte. De entremeio, é digno de nota, se dá o azáfama da segunda corrida ao minério, iniciada nos anos finais do século XIX, quando ocorrem as descobertas diamantíferas mais ao norte, particularmente na região do Garças. Sendo, porém este um acontecimento circunscrito tão somente àquela micro região e com restrita consequência econômica. Mato Grosso nos anos quarenta do século XX começa a viver um novo período econômico, quando tem início a denominada Marcha para o Oeste82, e com maior ênfase a partir de meados da década de 60, mais precisamente depois da inauguração de Brasília, com a abertura das grandes estradas de integração nacional e a consequente expansão econômica do sudoeste para a periferia do país. Nesta quadra é que Mato Grosso, e por extensão a Amazônia, graças, sobretudo, aos programas federais de incentivos fiscais oferecidos a partir de 1971, principia por ter uma inserção, ainda que modesta, no contexto econômico nacional. Então, em cada uma destas etapas houve a presença de migrantes trazendo a sua fala, os seus costumes e hábitos, as suas lendas e tradições, enfim, a sua visão de mundo. Naquele primeiro momento, o da preação do índio, o do bandeirantismo, tivemos paulistas e portugueses e, evidentemente, os indígenas83; a seguir, com a descoberta dos veios auríferos na segunda 82 A Marcha para o Oeste foi como o Governo Vargas designou uma série de iniciativas, no início da década de 40, adotadas com o objetivo de desbravar e criar condições efetivas para a ocupação do Oeste. A primeira delas se deu com a formação da Expedição Roncador – Xingu, essencialmente uma frente pioneira para contato com os indígenas e da qual foram expoentes os irmãos Vilasboas. Em 1943 seria criada a Fundação Brasil Central, que foi o órgão estatal responsável pela presença do governo na área Araguaia - Xingu. Para saber um pouco mais sobre este tema ver o meu livro Mato Grosso Terra e Povo, Cuiabá: Verdepantanal, 2001. 83 Barboza de Sá em sua Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Groso registrou que as nações nativas mais atuantes no combate aos invasores eram os Caroyas, os Taquasentes, os Xixibes, os Xanites, os Porudos, os Xacorores, os Aragoares, os Coxipones, os Pocuris, os Araponenes, os Mocos, os Goatós, os Araviras, os Buripocones, os Arapares, os Hytapores, os Iaymes, os Aycurus, os Bororos, os Payagos, os Xaraés, os 47 década do século XVIII, grandes levas de indivíduos provenientes de São Paulo e de Minas Gerais, mas também um número significativo de portugueses, vindos diretos da metrópole, foram atraídos para as denominadas “minas do Cuiabá”84, onde igualmente se assinalou a forte presença africana. A ocupação dos campos do sul pela pecuária que, muito embora as primeiras cabeças tenham chegado por volta da terceira década do descobrimento e que só mais de um século depois se tornaria criação comum, foi realizada por gaúchos85 e, numa segunda fase, com gente de Minas Gerais que, no século dezoito, trariam esse rebanho ao Pantanal86. O extrativismo ervateiro, de forte e extensa presença econômica nos campos do sul87, recrutou, além da mão de obra local e do Sul do país, um grande e contínuo contingente de paraguaios, basicamente de fala guarani; já às matas do norte acorreram, para o extrativismo Panacuicas e outros. (pg. 10) – Ob., cit. 84 Caio Prado Junior, em História Econômica do Brasil, escreve que “o ciclo monçoeiro vai conduzir levas de garimpeiros, oriundos de todo o Brasil, e provenientes até de Portugal, a grande maioria já tendo passado por Minas Gerais, para uma região inóspita (...). Não obstante, o processo de penetração segue em ritmo cadenciado de ocupação do vasto território do Oeste”. São Paulo: Brasiliense, 1963. 85 Cavalcanti Proença: “Foi Dona Ana Pimentel que trouxe para São Vicente o primeiro plantel de gado bovino. Logo no começo da colônia, 1534. Foi daí que o vaqueiro Gaete saiu tropeando sete vacas e um touro para levá-los a Assunção. Não se sabe quantos cavalos de muda levava Gaete, que apreçou barato a jornada extraordinária: ficaria pago recebendo uma novilha. O pequeno rebanho prosperou, multiplicou-se e logo se dividiu pantanal afora. Galgou a encosta fácil dos chapadões e, já em 1697, dava nome aos altiplanos do sul de Mato Grosso: Campo da Vacaria. Esse foi o gado que chegou de torna-viagem, tresmalhado das reduções jesuítas. Gado alçado que sabia farejar feito cervo, descobrindo aguadas, e ia caminhando, guiado, apenas, pelo gosto da pastagem. Criaram-se gerações de bois miúdos e de cor avermelhada, que nunca tinham visto o homem”. In: No Têrmo de Cuiabá. Cuiabá: AML, 2012. 86 “Começou, desde logo, a tentativa de repontar para currais improvisados os rebanhos dispersos, pois os que paravam em Camapuã, no varadouro de canoas, precisavam de carne e leite. Por isso, já em 1730, havia garrotes e novilhas em Cuiabá, logo aumentados pela boiada que, vindo por Goiás, chegou àquela vila seis anos depois. [...]. Descendo o Cuiabá, o boi chegou ao Pantanal do Paraguai. Despontando cabeceiras, foi, pelo firme, até São Luís de Cáceres e, assim, já em 1834, numa jornada de século, retornava ao sul a ponta de gado recebida. Pouco depois chegavam os geralistas de Minas, tropeando rebanhos em busca de novos pastos”. Idem, ibidem. 87 A exploração da erva mate foi, durante muitos anos, monopólio da Empresa Laranjeira, Mendes & Cia., a denominada Companhia Mate Laranjeira, que vinha de um arrendamento ao governo do Estado celebrado em 1804. Virgílio Corrêa Filho, em sua História de Mato Grosso, ressalta: “De tal maneira medrou e floresceu a indústria ervateira, que sobrepujou qualquer outra no Estado. Opulenta, dispunha de recursos com que pudesse intervir na política estadual às claras, ou veladamente”. In: História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro / Ministério da Educação e Cultura, 1969. 48 da poaia88, sertanejos locais, em sua grande maioria, mas também um razoável grupo de bolivianos. A segunda corrida ao minério, representada pela busca diamantífera no antigo leste matogrossense, compreendido na mesopotâmia do Araguaia e do Garças, representou um fluxo riquíssimo de costumes, hábitos, folclores, crendices e, evidentemente, falares, oriundos do Nordeste e, em menor escala, do Norte do país. A partir de fins da última década do século XIX acorreram para a região famílias inteiras procedentes da Bahia, do Maranhão, de Pernambuco, do Ceará, do Pará, do norte de Goiás e, em pequena proporção, de Minas Gerais e de Mato Grosso. Surgiram corrutelas, que se tornaram em centros urbanos na atualidade. O afluxo foi intenso até pelo menos meados dos anos 1950. Nesse período é que, pela primeira vez, despontaram as iniciativas oficiais para a ocupação do imenso hinterland, seguidas da inauguração de Brasilia e da fase dos incentivos fiscais para a ocupação da Amazônia. Então, é neste momento derradeiro, que de certa forma ainda perdura, que temos o mais amplo e constante caldeamento de migrantes da história brasileira para uma determinada região, cuja participação mais significativa se dá pelos provenientes do Sul – gaúchos, paranaenses e catarinenses. Do ponto vista cultural este processo de ocupação do espaço, geográfico e econômico, atuou, e atua, como camadas que se sobrepõem e se interpenetram, constituindo assim em Mato Grosso um rico amálgama a que denominei de Congresso das Raças89. É, pois, dessa riqueza polimorfa e pulsante que é constituída a fala do matogrossense, e a partir da qual se deve estabelecer um projeto de estudo glotológico. Deste modo, é que os termos e as expressões utilizadas neste Dicionário, como características do matogrossense, se fundam em quatro vertentes, ou matrizes, distintas. 88 A poaia, ou ipecacuanha, (utilizada como matéria prima no fabrico da emetina), que chegou inclusive a ser exportada para laboratórios do exterior, teve uma forte presença na estrutura da economia de Mato Grosso, desde praticamente o ano de 1800, quando se iniciou a sua extração mais sistemática. Corrêa Filho escreve que a extração da “preciosa planta que viça na ‘Mata da Poaia’, a noroeste de Cáceres, [...], de principio, em reduzidas porções, seguia em cargueiro, pelo caminho terrestre, via Goiás, para percorrer mais de quinhentas léguas. Não obstante, continuaria a ser arrancada, até a atualidade, alternadamente em fases de maior ou menor procura, conforme necessitem os laboratórios de matéria prima. A navegação pelo Paraguai, barateando o transporte, contribuiria naturalmente para aumentar as remessas para o exterior, que, no exercício de 1878 a 1879, já atingiam o segundo lugar na pauta, logo depois dos produtos derivados da pecuária”. Ibidem. 89 Congresso das Raças – Manifesto por uma estética ecológica. (2ª ed.). Cuiabá: KCM, 2009. 49 A primeira é a que tem Cuiabá como centro geográfico, político e cultural de expansão. A partir desse núcleo setecentista, se irradiou para a vastidão do território matogrossense mas, sobretudo, para a região ao derredor, a força do idioma lusitano. Em síntese, trata-se da fala seiscentista dos bandeirantes, a que foram se agregando línguas indígenas e dialetos africanos. Esta é a matriz original, o que explica igualmente a supremacia quantitativa dos termos dela oriunda. É esse idioma, que vai se fixar em Cuiabá e daí medrar para outras áreas do novo território, que será gradualmente conquistado à Castela, e que aqui, para efeito meramente expositivo, denomino de “original ou genuíno”. A segunda vertente, a que designo de “comum inter-regional”, são aquelas expressões existentes em outras regiões do país, e mesmo na região fronteiriça, trazidas, ao longo desses ciclos, por migrantes e que, por isso, se fixaram e se entranharam no linguajar do matogrossense nato, ou não. Temos então a fala de origem nordestina (baiana e maranhense, sobretudo), que desde os finais do século XIX chega, particularmente na área do Garças e do Araguaia; a fala de influência goiano-mineiro na região do médio e do baixo Araguaia; em pequena escala, a fala do sudeste (paulista), e por fim, ainda muito fraca e sem presença significativa, a fala sulista (gaúcha, paranaense e catarinense). Estas últimas, contudo, não se acham localizadas em uma determinada e específica região do Estado, embora inicialmente tenham se concentrado nos polos agrícolas do norte e da região do Araguaia, mas que hoje, quarenta anos depois, se acham disseminadas por todas as regiões do Estado. Vale registrar, no entanto, que grande parte dessas expressões foi, no decorrer do tempo, modificadas, alteradas e até completamente deformadas, se comparadas ao seu significado na origem. Uma terceira matriz, de menor volume, localizada geograficamente e de certo modo estratificada (já que não houve significativa evolução em seu contato com o idioma nacional, mantendo a sua originalidade), mas que nem por isso é regionalmente de importância inferior, é aquela que reúne termos e expressões de outros idiomas, e que denomino de “trans-idiomática” ou “trans-fronteiriça”. A mais significativa delas é o guarani e o castelhano, predominantes na região fronteiriça do sul do Estado, hoje Mato Grosso do Sul, que tiveram grande penetração no linguajar regional, tanto através da presença dos trabalhadores empregados no cultivo dos ervais e na pecuária, como pelo intenso comercio realizado através do rio Paraguai e da Bacia Platina. Com menor influência, na região diamantífera do Garças – Araguaia, os vocábulos bororos, primitivos donos da terra, passaram a ser amplamente utilizados pelo novos ocupantes e com tal assiduidade e influência que, além de ter adentrado ao linguajar usual, contribuiu para designar diversos acidentes geográficos e inúmeras antigas 50 corrutelas que se tornariam municípios (Poxoréu, Torixoréu, Toricueje, Guiratinga, etc.)90. Em pequena escala, vamos ter tanto as expressões castelhanas e indígenas vindas através da Bolívia, e que praticamente ficaram adstritas à zona fronteiriça (Cáceres e Corumbá) como àquelas que, de origem guató, guanás e pareci, se introduziram tanto na região do Pantanal como em Cuiabá e seus arredores. É bem verdade que, enquanto na parte sul (Mato Grosso do Sul), o guarani e os vocábulos espanholados – com a decisiva contribuição da música e da culinária, num esplêndido processo simbiótico - se incorporaram definitivamente ao universo cultural dessa região e vivem como expressões idiomáticas corriqueiras e usuais, características e próprias. Todavia o mesmo não seu deu com o idioma bororo, a não ser por aquela marca já deixada no inicio da ocupação de suas terras. É importante sublinhar que todas estas influências – guarani e nordestinas, sobretudo – se mesclaram naturalmente ao português regional e deram um contributo não somente no campo do léxico, mas da cultura de um modo geral, como o da música e da culinária, contribuindo, pari passu, para forjar um comportamento social e definir a estrutura mental desse povo. Finalmente, a quarta vertente é a que denomino de “comumnacional”, ou seja, de termos dicionarizados que, embora existentes em outras regiões, são aqui de uso mais comum e corriqueiro, circulando com mais frequência na fala cotidiana do que em outras regiões do país, como é o caso, por exemplo, da expressão “vote”, e dos vocábulos “muxirum”, “cururu”, entre tantos outros, que estão nos dicionários gerais, mas cujo uso em Mato Grosso, particularmente em Cuiabá, é extremamente comum. E não posso deixar de referir-me a “aguapé” que, embora sendo conhecida em outras áreas, sobretudo amazônicas, no entanto, graças às inúmeras e belas descrições, tanto em prosa como em verso, dos rios pantaneiros, o Paraguai em particular, se tornou riqueza expressiva no linguajar coloquial pantaneiro. E existem ainda palavras que, embora constem em alguns dicionários gerais com um determinado significado, em Mato Grosso eles adquiriram um outro, por vezes absolutamente diferente. Um exemplo é o vocábulo “chopa”. Houaiss, que é o único que o registra, diz se tratar da ponta do gravador com que o artista faz a gravura.91. Pois bem, “chopa” foi a designação dada aqui ao pedaço de osso localizado na ponta da lança nhambiquara. Assim, este Dicionário de termos e expressões de Mato Grosso vai acolher vocábulos que, embora não sendo inteiramente autóctones, estão de tal forma entranhados no linguajar e são tão referenciais à 90 Ver Nota 53. 91 Os demais, inclusive o próprio Houaiss, registram o termo choupa, com u. 51 nossa historia e geografia que parecem ser parte intrínseca e original de nosso léxico. E não há nada que estranhar nisto visto que poucas regiões brasileiras receberam, ao longo do tempo, um fluxo tão grande e tão diversificado de gente de outras áreas do território nacional. Algumas dessas expressões podem também ser comuns em Goiás e eventualmente no Pará, Amazonas e Maranhão devido à proximidade geográfica, às correntes migratórias iniciais e às atividades típicas desenvolvidas por esses migrantes em seus primórdios como no garimpo, na agricultura, na pecuária, na caça e na pesca. De outra parte, não são poucos os vocábulos que chegaram com os migrantes e que aqui tomaram outro significado ou, pelo menos, esmaeceram em seu sentido original, como se vê, por exemplo, com “paisano”, “bagual”, “bereré”, ou então adquiriram uma variação regional como em “redomão” (vernacular) por “rodomão” (local). Há que se apontar igualmente que, por vezes, o mesmo vocábulo tem significação absolutamente distintas em diferentes regiões do Estado, como é caso, para só citar um exemplo, de “bamburro” que significa uma coisa no garimpo e outra no pantanal e zona da mata. De igual modo, pode se verificar uma variedade imensa de significados para uma mesma palavra, como é o caso de “jacuba”. Isto vem comprovar, com clareza exemplar, uma lei relativa ao estudo histórico do idioma, segundo a qual as palavras utilizadas por um individuo ou povo estão estreitamente ligadas às práticas e vivências sociais e culturais adquiridas e acumuladas ao longo do tempo. Igualmente expressões antigas e já caídas em desuso em outras áreas do país aqui são mantidas na atualidade e de forma corrente, como é o exemplo de “tentear” usada no sentido de ter paciência. Todavia, esclareço que alguns brasileirismos foram incluídos neste Dicionário regional porque aqui em Mato Grosso eles adquiriram uma acepção específica, própria. Por outro lado, tive preocupação expressa em evitar, ao máximo possível, a inclusão de gírias ou de modismos induzidos, a não ser que tivessem apoio em uma citação literária e que já estivessem incorporados ao linguajar geral e não fossem pertencentes exclusivos a determinados grupos sociais e econômicos ou a setores profissionais ou mesmo a faixas etárias. Elas são várias, como por exemplo, “digoreste” e “moagem”, entre outros. Isto porque a finalidade básica deste Dicionário é, também, a de ter um cunho histórico e documental. Muitas palavras surgem e desaparecem em igual velocidade, influenciadas por grupos sociais específicos ou pelos meios eletrônicos, TV e internet principalmente, e que, por isso, não podem ser tidos como vocábulos caracterizadores do linguajar de um povo. 52 Procurei, igualmente, não somente dar o significado preciso do termo, como também contextualizá-lo no preciso momento histórico de seu surgimento (na medida em que foi possível registrá-lo, como é o caso de “pau rodado”, entre outros), além de enquadrá-lo em sua geografia de origem. Por fim, adotei algumas providências metodologicas para a elaboração deste Dicionário. A primeira delas é que considerei essencial trabalhar tendo sob os olhos os quatro principais dicionários brasileiros: Houaiss, Michaelis, Aurélio e Caldas Aulete.92 Assim, cada termo, cada vocábulo deste Dicionário foi confrontado com esses repositórios. Deste modo, com as exceções anteriormente apontadas, procurei o mais apuradamente possível fazer uma garimpagem dos termos autenticamente matogrossenses. Desnecessário enfatizar a grande dificuldade envolvida nesse mister. Em melhores condições que eu, dá testemunho uma especialista no tema. A citada professora Aguilera esclarece que uma análise do acervo lexical constante dos trabalhos monográficos sobre o léxico regional permite verificar a dificuldade de estabelecer o que é específico da região e o que é de domínio geral da língua portuguesa falada no Brasil. Para isso teríamos que contar com glossários ou vocabulários elaborados todos com uma só metodologia, e realizados ao mesmo tempo para que não houvesse interferência da variável temporal nos resultados da coleta. 93 Como reconhecidamente ainda não temos aqui em Mato Grosso 92 É a oportunidade para dizer que nem mesmo esses Dicionários, fundamentais e indispensáveis, estão a salvo de críticas. A filóloga Maria Tereza Camargo Biderman, no ensaio Análise de dois Dicionários Gerais do Português Brasileiro Contemporâneo, opina sobre o ‘Aurélio e o Houaiss’: “De um modo geral, tanto o Aurélio como o Houaiss revelam desconhecimento da Teoria Lexical, Gramatical e Linguística. [...]. Constata-se que estes dicionaristas carecem de competência especializada, no que tange à questão da formação das palavras na língua. Por exemplo: inúmeras vezes as diversas classes de formantes que integram a morfologia lexical do português não são corretamente identificadas e tratadas. Assim, é discutível a inclusão inadequada de muitas unidades como elementos de composição em desacordo com a Teoria Lexical. Essa questão é particularmente séria no Houaiss em que os deslizes são inúmeros eivando todo o dicionário com disparates. No Aurélio, por vezes a classificação é apropriada e o tratamento do formante no verbete está correta, e, outras, não”. In: As Ciências do Léxico. Ob. cit. (pg.186-188). 93 Ob. cit. 53 estas condições, tive a ousadia em me lançar ao trabalho com os parcos instrumentos de que dispunha. Em Mato Grosso, como abordei anteriormente, essa dificuldade se torna maior ainda devido não só ao fluxo movediço das últimas décadas com a chegada constante de novos migrantes, provindos de todas as regiões do país, como também pela existência de uma grande variedade de atividades profissionais, econômicas, e ainda pela crescente urbanização do Estado, que provoca o deslocamento de moradores do campo para as cidades e suas periferias. Há que se apontar, na sequencia, a notória ocorrência de um fenômeno nacional que incide de modo brutal no linguajar regional. Já anteriormente me referi à força dos meios de comunicação, à mídia, sobretudo a TV que, principalmente através das novelas e dos programas humorísticos e musicais, vem provocando uma crescente estandardização do idioma. Esse fenômeno tem por consequência o nivelamento idiomático94, que está resultando na corrosão das características vocabulares regionais, provocando a exclusão, quando não corrompendo, as tipicidades que lhe dão caráter de originalidade. Tal processo, não se tem dúvida nesta afirmação, irá gradualmente destruir as possibilidades da permanência da rica diversidade do linguajar brasileiro dentro da unidade nacional. Vale enfatizar, ademais, que esse igualitarismo da linguagem quase sempre se constitui num empobrecimento, não apenas do léxico, mas igualmente do espírito, abastardando assim uma das maiores e mais significativas representações de um povo. Essa forte atuação da mídia eletrônica invade, de forma avassaladora e sem maiores resistências, o âmbito da escola e do lar. A escola, em meu entender, poderia, e deveria, ser um dos redutos mais resistentes na luta para a preservação, a defesa e o enriquecimento dos valores culturais do país, entre os quais o idioma se destaca. Deste modo é que levei em consideração, para a inclusão neste Dicionário, apenas daqueles vocábulos e expressões que pudessem ser abonados, isto é, que já tivessem sido registrados em publicações literárias, científicas e mesmo em jornais. Neste sentido, procurei manter ipsis literis a transcrição, conservando assim a característica do estilo de cada autor e só, com raríssimas exceções, quando se tratava claramente de erro de edição, a corrigi. 94 Esse nivelamento, que resulta num “linguajar uniforme”, tem, numa circunstancia absolutamente majoritária, se dado num nível de baixo calibre com a introdução e a adoção pelo linguajar coloquial de bordões, de chistes, de cacoetes, que bem pouco acrescentam à formação cultural do povo. Vale dizer que tal, de igual modo, ocorre na música popular. 54