Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras José Antonio Andrade de Araujo A construção do Paraíso: o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos Niterói 2004 2 José Antonio Andrade de Araujo A construção do Paraíso: o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de concentração de Estudos de Literatura, subárea Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro Niterói 2004 3 José Antonio Andrade de Araujo A construção do Paraíso: o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor. Área de concentração de Estudos de Literatura, subárea Literatura Comparada. Aprovada em 6 de dezembro de 2004. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro – Orientador Universidade Federal Fluminense ______________________________________________ Prof. Dra. Lilian Pestre de Almeida Universidade Independente de Lisboa ______________________________________________ Prof. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________________ Prof. Dr. Paulo de Azevedo Bezerra Universidade Federal Fluminense ______________________________________________ Prof. Dr. Rosalvo do Valle Universidade Federal Fluminense Niterói 2004 4 Dedicado aos meus pais, João Baptista e Dolly, e filhos, Mariana e Antonio. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus professores que, ao longo dos anos, foram generosos ao compartilhar e transmitir seus conhecimentos e experiências. Agradeço ao meu orientador professor Dr. Luis Filipe Ribeiro, pela generosidade com que me acolheu como seu orientando e pela profícua convivência ao longo desses últimos anos. Da mesma forma, agradeço aos professores Dr. Paulo de Azevedo Bezerra e Dr. Ronaldo Vainfas pelas importantes contribuições no exame de qualificação. Agradeço à Academia Brasileira de Letras pela gentileza da cessão do seu auditório, para a solenidade de argüição da tese, e pela bolsa de doutorado com que fui agraciado. Agradeço as análises e comentários dos colegas dos Seminários de Pesquisa e Orientação, do Professor Luis Filipe Ribeiro: Amadeu da Silva Guedes, Elizabete Velloso de M. B. da Silva, Gerardo Godoy Fajardo, Jacqueline de Almeida Storti, Luciane Nunes, Michelle Araujo, Rosane Marins de Menezes e Vivianne Milward Araujo. Agradeço também o incentivo e apoio dos amigos do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF, em especial a professora Dra. Lucia Helena, Andréa Portolomeos, Irenísia Torres de Oliveira, Marcelo Peloggio e Normelia Parise. Agradeço a gentileza da profa. Marilena dos Reis Peluso pela leitura da tese e ao sempre amigo astrônomo Roberto Ferreira Silvestre pelos comentários e indicações bibliográficas. Agradeço a gentil recepção do Professor Dr. Onésimo Teotónio Almeida, do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, durante o Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), em julho de 2002. Um agradecimento especial a Biblioteca John Carter Brown, da Brown University (Providence, RI – USA), na pessoa do seu diretor Norman Fiering e do bibliotecário Richard J. Ring, pelo primoroso atendimento e apoio a nossa pesquisa através da reprodução em microfilme da edição de 1668 do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos. 6 SUMÁRIO Conteúdo 1. Introdução Página 9 2. Simão de Vasconcellos e o Paraíso na América 24 3. A construção do território do Brasil 43 4. O índio no Brasil de Simão de Vasconcellos 72 5. A bondade da terra do Brasil 119 6. A tese do Paraíso 145 7. Conclusão 170 8. Referências bibliográficas 175 9. Anexos 9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.1.1. Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 363-365. 9.1.2. Fonte: VASCONCELOS, Simão. Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP, 2001. p. 161-164. 9.2. Dedicatória - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.3. Protesto do autor - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.4. Aprovações da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.5. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668) - Edição diplomática, em CD-ROM. 185 186 186 189 193 197 198 202 7 RESUMO A construção do Paraíso é uma leitura do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), do padre jesuíta Simão de Vasconcellos (c.1596-1671). A leitura foi elaborada com base na teoria de Mikhail Bakhtin aplicada à Análise de Discurso. Nesse enfoque, a obra de Simão de Vasconcellos referida à sua época e ao contexto de produção revela-se como um discurso milenarista. Para análise do discurso elaborou-se uma edição diplomática do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, da edição de 1668, que encontra-se em anexo. Palavras-chave: Análise de Discurso. Jesuítas. Milenarismo. 8 ABSTRACT A construção do Paraíso is a reading of the book Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), written by the jesuit Simão de Vasconcellos (c.1596-1671). This reading was based on Mikhail Bakhtin’s theory applied to Discourse Analysis. In this sense, the work of Simão de Vasconcellos referred to his time and context of production emerge as a millennialist discourse. For the discourse analysis, a diplomatic edition of the book Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, dated from 1668, has been made and can be found in the appendix. Key-words: Discourse analysis. Jesuits. Millennialism (or millenarianism). 9 1. Introdução A construção do Paraíso é uma leitura do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, publicado em 1668. A leitura ora apresentada está fundada na concepção de que o livro nada mais é do que um ato de fala impresso (Bakhtin, 1999, p. 123), ou seja, um discurso que faz parte de um processo de interação verbal. Como tal, esse discurso foi proferido numa determinada época, num lugar e numa situação específica. O seu autor tinha uma intenção ao elaborá-lo e os leitores daquela época estabeleceram os significados permitidos pelo seu capital simbólico. A leitura do discurso de Simão de Vasconcellos hoje, quase trezentos e cinqüenta anos depois da sua elaboração e publicação, tem na distância temporal uma dificuldade que devemos contornar através do resgate das condições em que a obra foi elaborada. Este cuidado permite ao analista do discurso aproximar-se das possíveis significações do discurso naquele período e elaborar a sua própria interpretação. Nesse sentido, apresentamos um breve retrospecto das observações de alguns analistas de discursos, ou seja, de alguns críticos e historiadores das letras, bem como dos autores de artigos que trataram da obra de Simão de Vasconcellos e da comunidade jesuíta no período colonial no Brasil. O papel da Companhia de Jesus na formação dos escritores do período colonial, bem como na disseminação de uma literatura através de suas publicações, foi reconhecido pela maioria dos críticos e historiadores das letras. O reconhecimento da importância da Companhia de Jesus pode ser atestado pela referência às publicações de seus membros mesmo por aqueles historiadores e críticos que estabelecem critérios rígidos na definição do que seriam as manifestações literárias do período colonial. Nesse último grupo podemos incluir José Veríssimo que na História da Literatura Brasileira faz uma crítica severa ao ambiente intelectual dos dois primeiros séculos da colonização: “mesmo quando já havia manifestações literárias, se não encontre a menor 10 referência ou alusão a qualquer forma de atividade mental aqui, a existência de um livro, de um estudioso ou cousa que o valha” (Veríssimo, 1915, p. 17). Veríssimo, além de ignorar alguns autores jesuítas como Simão de Vasconcellos, afirma que Fernão Cardim “tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história da nossa literatura como um dos seus primitivos escritores” (Veríssimo, 1915, p. 28). Diz ainda que frei Vicente do Salvador é o “único prosista brasileiro da fase inicial da nossa literatura” (Veríssimo, 1915, p. 33) e que A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou pelo resto do século. À copiosa produção poética desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país, já oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas, maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. (Veríssimo, 1915, p. 33) Apesar do reconhecimento da produção da Companhia de Jesus, a última afirmação é no mínimo estranha uma vez que Simão de Vasconcellos teve sua Crônica da Companhia de Jesus publicada em 1663, com uma segunda edição organizada por Inocêncio Francisco da Silva e publicada em Lisboa em 1865, e outra, quase simultânea, no Rio de Janeiro, organizada por Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro e que apresenta duas datas diferentes em seus exemplares: 1864 e 1867 (Leite, 2000, v. 9, p.175-176). Antes de Veríssimo, Silvio Romero utilizou um critério aparentemente amplo para classificar aqueles que seriam os “nossos” escritores: “os nascidos no Brasil, quer tenham saído, quer não, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram longamente, lutaram e morreram por nós [...]” (Romero, 2001, v. I, p. 59-60). Apesar da abrangência deste critério, Romero acaba por excluir “muitos escritores portugueses, especialmente autores de crônicas, que permaneceram mais ou menos limitadamente entre nós e escreveram obras sobre o Brasil” (Romero, 2001, v. I, p. 59), indicando neste caso autores como Pero Vaz de Caminha, Gândavo, Fernão Cardim, Gabriel Soares, Simão de Vasconcellos e Simão Estácio da Silveira. Dentre esses, que permaneceram segundo Romero “limitadamente entre nós”, destacamos Fernão Cardim, que trabalhou no Brasil por quase quarenta anos, e Simão de Vasconcellos, que aqui atuou por mais de cinqüenta anos. Por outro lado, Romero inclui, na sua lista de escritores “brasileiros”, José de Anchieta, com pouco mais de quarenta anos de atuação no Brasil, ou seja, apesar de Cardim ter permanecido no Brasil um período de tempo um pouco menor e Vasconcellos um período um pouco maior do que Anchieta, nenhum dos dois foi incluído na lista. O mesmo ocorre com Antonio Vieira e Alexandre Gusmão, ambos 11 com permanência superior à de Anchieta no Brasil. Além da permanência quase equivalente à de Anchieta no Brasil, devemos destacar que todos eles morreram no Brasil, e que Simão de Vasconcellos, Antonio Vieira e Alexandre Gusmão vieram de Portugal para o Brasil ainda crianças ou adolescentes. Estudaram em colégios da Companhia de Jesus no Brasil e nela ingressaram exercendo quase todos os cargos, inclusive o de Provincial, o cargo mais elevado da Companhia de Jesus num país ou colônia. Não podemos prosseguir esta breve revisão sem fazer referência à obra de Afrânio Coutinho e a importância fundamental dessa obra na divulgação das idéias sobre o barroco no meio acadêmico, jornalístico, editorial e intelectual. Coutinho não analisou a obra de Simão de Vasconcellos, entretanto, seus livros, tese, artigos e palestas introduziram no Brasil conceitos fundamentais sobre o barroco, dentre os quais destacamos o importante aspecto da conciliação barroca: A alma barroca é composta desse dualismo, desse estado de tensão e conflito, exprimindo uma gigantesca tentativa de conciliação de dois pólos considerados então inconciliáveis e opostos: a razão e a fé. O movimento era de fundo religioso, visando a restaurar os valores medievais de vida contra a corrente renascentista. Ao mesmo tempo, contudo, o homem ocidental não mais se conformava em abrir mão das virtualidades da vida terrena que o humanismo renascentista e o alargamento espacial da Terra lhe revelaram. Por isso o conflito entre o ideal de fuga e renúncia do mundo e as atrações e solicitações terrenas. Diante do dilema, em vez da impossível destruição, tentou a conciliação, a incorporação, a absorção. Era essa uma tendência, possivelmente geral, que a Igreja Católica bem compreendeu, captou e tentou dirigir, com sabedoria, através da Contra-Reforma, e de que o espírito jesuíta é a encarnação. (Coutinho, 1999, p. 19). Prosseguindo, temos José Guilherme Merquior (1996) que, apesar de destacar o enfoque do “mito do Eldorado” nos primeiros textos sobre o Brasil, não faz qualquer referência a Simão de Vasconcellos ou à sua obra, possivelmente, devido ao critério de “alta seletividade” que reduziu o conjunto de autores analisados a “poucos escritores” (Merquior, 1996, p. 7). Apesar disso, afirma que “com as obras de Manuel da Nóbrega, de José de Anchieta e de Fernão Cardim [...] ingressamos no terreno propriamente literário, e não apenas documental, na história das letras no Brasil” (Merquior, 1996, p. 19). Por outro lado, Alfredo Bosi (2001) considera esses mesmos textos como textos de informação, parte de uma “préhistória das nossas letras” (Bosi, 2001, p. 13). Numa outra vertente, Silvio Castro inclui o discurso de Simão de Vasconcellos e de outros jesuítas na literatura de testemunho: A literatura de testemunho no Brasil é assim, e como conseqüência da própria origem, fundamento da mitologia cultural brasileira. Nasce do confronto do homem europeu 12 com o novo espaço e da transformação nesse mesmo indivíduo do sentido do território pessoal. Sendo um confronto de pontos de vista, exprime imediatamente uma dialética que coloca em discussão o tempo e a situação originais, mesmo quando um tal comportamento não se configura como intenção consciente do autor. Porém, é sempre um testemunho de “viagem”. Viagem, seja enquanto movimento preconcebidamente organizado e realizado, seja enquanto ação pretextual. (Castro, 1999, p. 65) Nesse mesmo capítulo do livro de Silvio Castro, Giampaolo Tonini complementa com sua visão sobre a contribuição da literatura religiosa, em particular a jesuítica, para essa literatura de testemunho bem como na disseminação de mitos: Portanto, é de crer que a literatura jesuítica, graças a sua precoce e ampla difusão, tenha tido, se parcialmente interpretada, um papel não desprezável não só na formação do mito do bom selvagem, como na do mito oposto, e ainda na do mito do Paraíso terrestre reencontrado, já que – apesar de se revelar globalmente objetiva nas descrições da nova terra, da qual não são omitidos nem os aspectos negativos do clima de certas regiões nem a presença de animais prejudiciais ao homem – muitas vezes apresenta o novo mundo com atributos paradisíacos, seja na tentativa de identificação da nova terra, que se tornava mais familiar se se encontrassem nela características e aspectos coincidentes com os contidos nas bem conhecidas descrições do Paraíso terrestre, seja porque a sua natureza paradisíaca confirmava mais uma vez a presença de Deus no universo. (Tonini, 1999, p. 90) As manifestações literárias do período colonial no Brasil, até a segunda metade do século XVIII, no enfoque de Antonio Candido realizaram-se “sob o signo da religião e da transfiguração” (Candido, 2000, p. 91). A religião, nessa visão, foi a diretriz ideológica que atuou como idéia e princípio político, estético e filosófico. É nesse sentido que Candido conclui: As crônicas do jesuíta português Simão de Vasconcelos obedecem a um princípio declaradamente religioso, de informar e edificar; mas o mesmo acontece, no fundo, à História do franciscano brasileiro Vicente do Salvador (156?-163?), sob a aparência de piedade menos imediata. E até a crônica do militar português Francisco de Brito Freire, tão política, pinta no fundo os progressos da fé, encarnados no guerreiro e administrador que luta contra o protestante flamengo – o que também verificamos no Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado. (Candido, 2000, p. 92) Nessa concepção a modulação do discurso pela estética barroca transfigura a realidade e o autor assim exemplifica a questão, [...] o caso do mundo vegetal, primeiro descrito, depois retocado, finalmente alçado a metáfora. Se em Gabriel Soares de Sousa (1587) o abacaxi é fruta, nas Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcelos, é fruta real, coroada e soberana; e nas Frutas do Brasil (1702), de frei Antonio do Rosário, a alegoria se eleva ao simbolismo moral, pois a régia polpa é doce às línguas sadias, mas mortifica as machucadas – isto é, galardoa a virtude e castiga o pecado. Por isto, o arguto franciscano constrói à sua roda um complicado edifício alegórico, nela encarnando os diferentes elementos do rosário. Nesta fruta, americana entre todas, 13 compendiou-se a transfiguração da realidade pelo Barroco e a visão religiosa. (Candido, 2000, p. 94) Ainda sobre as manifestações literárias do período colonial, Candido faz duas observações. A primeira refere-se à formação dos escritores que “durante todo o período colonial são, ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se no uso de instrumentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria” (Candido, 2000, p. 90). Devemos acrescentar que, independentemente do local de formação, Portugal ou Brasil, esta era feita, principalmente, em escolas e universidades jesuíticas sujeitas ao currículo padronizado em 1599, o Ratio Studiorum (Franca, 1952), após um processo de aperfeiçoamento do método por cinqüenta anos. A segunda observação de Antonio Candido, indica como destinatários da atividade intelectual “um público português” ou “necessidades práticas (administrativas, religiosas, etc)” e que apenas no século XIX teremos “os primeiros escritores formados aqui e destinando a sua obra ao magro público local” (Candido, 2000, p. 91). Estas observações sinalizam para a necessidade de o nosso trabalho caracterizar, de um lado, a formação do escritor jesuíta e, de outro, dos leitores, bem como a produção e disseminação dos livros na sociedade portuguesa no período de nosso interesse, o século XVII. Num dos poucos estudos existentes sobre a obra de Simão de Vasconcellos, Silvio Castro diz que os dois livros das Noticias curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil [...] além do valor específico de texto tipicamente seiscentista, nos fornecem vasto material sobre a impostação cultural do jesuíta culto na sua atividade em terras americanas, bem como nos permitem de estabelecer parâmetros de comparações com outros textos clássicos de autores anteriores a Simão de Vasconcelos, desde Pero Vaz de Caminha, Gabriel Soares de Sousa, Gândavo, até Cardim, Jean de Léry e outros que se empenham em observações da mesma natureza cultural. (Castro, 1983, p. 67-68) Sobre o texto das Noticias, Silvio Castro destaca a presença de “uma linguagem típica da cultura barroca, construída principalmente a partir de um expressionismo de forte natureza plástica – no qual porém não é possível ignorar certos exageros ligados à ênfase” (Castro, 1983, p. 69). A exaltação da terra do Brasil nas Noticias, na opinião de Silvio Castro, não tem o mesmo significado de propaganda encontrado na obra de outros cronistas como Gândavo, Cardim e Brandão, mas cuja “ênfase traduz o desenho de revelação do maravilhoso” (Castro, 1983, p. 72). Nesse sentido, as informações de Simão de Vasconcellos sobre a terra do Brasil e sua natureza conduzem o texto “à revelação do mito poético do paraíso terrestre” (Castro, 14 1983, p. 72). Um mito sempre presente na literatura de testemunho sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, porém, no enfoque de Vasconcellos, “o mito retoma a sua originária e completa natureza teologal” (Castro, 1983, p. 73). Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (1994), aborda vários aspectos da obra de Simão de Vasconcellos, dos quais destacamos a comparação que faz do parágrafo 31 do primeiro livro das Noticias (Vasconcelos, 1977, p. 64-65) com alguns capítulos do livro de Cristóbal de Acuña sobre o rio Amazonas (Acuña, 1994), no sentido de caracterizar que “neste como em outros casos, limita-se o jesuíta português a redizer, às vezes com palavras idênticas, o que antes dele tinham afirmado cronistas ilustres, em particular o Padre Cristobal de Acuña” (Holanda, 1994, p. 136). Ao analisar a Crônica da Companhia de Jesus, de Simão de Vasconcellos, sob a perspectiva médica, Ivolino de Vasconcelos afirma que o autor elaborou-a “com método científico” (Vasconcelos, 1949, p. 63) e que ele vinha utilizando-a como referência no Curso de História da Medicina, na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (Vasconcelos, 1949, p. 58). A maior parte das informações sobre a vida e obra de Simão de Vasconcellos devemos à obra monumental de Serafim Leite, da qual destacamos: História da Companhia de Jesus no Brasil (Leite, 2000), Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (Leite, 1953), e Novas páginas de História do Brasil (Leite, 1965). Nesse último livro encontramos em anexo o artigo “O tratado do ‘Paraíso na América’ e o ufanismo brasileiro”, em que o autor relata parcialmente o episódio da censura da Crônica da Companhia de Jesus, do p. Simão de Vasconcellos. O livro O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (Neves, 1978), de Luis Felipe Baêta Neves, é uma leitura essencial para uma visão crítica da atividade missionária da Companhia de Jesus no Brasil. Em outro livro, Vieira e a imaginação social jesuítica (Neves, 1997), o leitor tem a oportunidade de mergulhar no quotidiano da colônia na parte em que ele dedica a análise do texto da “Visita”, de Antônio Vieira. Além disso, encontramos nesse livro a excelente análise sobre o imaginário social de Antonio Vieira. No artigo intitulado “A filosofia e ciência modernas nos escritos do padre Simão de Vasconcelos” (Domingues, 1999), Beatriz Helena Domingues faz uma leitura das Noticias curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil, de Simão de Vasconcellos, relacionando-a ao debate europeu do século XVII sobre a abordagem científica da natureza e a racionalidade do conhecimento humano. Em outro artigo (Domingues, 2002), a autora investiga as descontinuidades e as continuidades entre o pensamento jesuíta, representado pela História do Futuro, de Antonio Vieira, e pelas Noticias curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil, de 15 Simão de Vasconcellos, e a filosofia e a ciência modernas do século XVII na Europa. Sua análise indica que apesar da descontinuidade estabelecida pelos aspectos teológicos, existiam fortes continuidades entre o pensamento desses jesuítas e a modernidade filosófica e científica européia do século XVII. Na sua extensa análise das publicações do período colonial, Diogo Ramada Curto apresenta um breve comentário sobre as obras de Simão de Vasconcellos destacando apenas alguns pontos da Chronica (Curto, 1998, p. 518). Além dos livros e artigos relacionados, a tese de doutorado de Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, intitulada La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Brésil: les justifications d’ordre historique, théologique et juridique,et leur intégration par une mémoire historique (XVIe-XVIIe siècles) (Zeron, 1998), tem parte de um capítulo dedicado a questão da escravidão indígena na Crônica da Companhia de Jesus, de Simão de Vasconcellos. Encerrando esta breve revisão, podemos relacionar algumas referências do século XVIII às obras de Simão de Vasconcellos como, por exemplo, a do acadêmico José de Oliveira Bessa, da Academia Brasílica dos Renascidos (1759), apresentando as principais obras que utlizava na elaboração dos seus trabalhos (Araujo, 1999, p. 114) e o seu colega de academia, fr. Antonio de Santa Maria Jaboatão, que incluiu no Novo Orbe Seráfico (1761) trechos recolhidos nas Noticias, de Simão de Vasconcellos, como veremos em outro capítulo. Segundo Jorge de Souza Araujo, o fr. Gaspar da Madre de Deus, nas Memórias para a História da Capitânia de S. Vicente (1797), acrescentou no fim do livro um “catálogo das obras e documentos, que foram consultados na confecção das Memórias”, relacionando três obras de Simão de Vasconcellos: Crônica da Companhia de Jesus, Notícias antecedentes das cousas do Brasil, Vida do padre Anchieta (Araujo, 1999, p. 115-116). Além dessas referências, é interessante a informação de Araujo sobre o inventário de Escolástica da Silva, de 1747, em que ele encontrou relacionado “Noticias do Brazil, de curiosa e difícil identificação (uma vez que o Noticia do Brasil, de Gabriel Soares de Souza só vem a ser publicado no século XIX)” (Araujo, 1999, 283). Acreditamos que esse livro era um exemplar das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcellos, que trazia impresso no cabeçalho das suas páginas apenas Noticias das cousas do Brasil. Os escritos dos jesuítas do século XVII, no Brasil, se situavam no contexto das litterae humanae (letras humanas, ou boas letras), que tiveram origem no Renascimento. Naquela época, a expressão latina litterae humanae servia para distinguir as letras humanas das divinas, ou sagradas. Ainda no século XVII, surgiu a expressão belas letras que valorizava 16 uma das virtudes da elocução, o ornato, e que abriu o caminho que originou, em meados do século XVIII, as belas artes e a idéia moderna de arte. Assim, as belas letras trouxeram uma inovação conceitual pela introdução de um critério estético em relação às letras humanas, ou boas letras. Entretanto, os escritos dos jesuítas foram elaborados num período anterior ao da predominância do critério estético do ornato. Além disso, é útil acrescentar que a concepção de autoria vigente no século XVII: não conhece o autor como se define a partir do século XVIII romântico: como originalidade de uma intuição expressiva; como unidade e profundidade de uma consciência; como particularidade existencial num tempo progressista; como psicologia do estilo; como propriedade privada e direitos autorais. No discurso antigo, enfim, auctor e auctoritas especificam um gênero, um uso, ou uma disciplina: como no Trivium, em que “Cícero” é o auctor da Retórica; “Aristóteles”, da Dialética; poetas antigos, da Gramática (Hansen, 1992, p. 28-29). Assim, a produção literária dos escritores jesuítas do século XVII no Brasil era balizada pelas boas letras e pela autoria fundadas no princípio pré-iluminista da imitação dos autores clássicos, entendidos como os verdadeiros Autores, referidos como tal em letra maiúscula. O currículo básico de formação do jesuíta enfatizava, desde a fundação dos primeiros colégios, o ensino de latim, visando à eloqüência, da mesma forma que o currículo do ginásio protestante de Sturm, revelando sua origem comum no humanismo renascentista francês, um tanto tardio em relação ao renascimento italiano. Por causa da grande semelhança de organização e currículo, tem-se sustentado que os jesuítas copiaram seus planos escolares deste colega [Sturm] humanista protestante. É mais provável, entretanto, que ambos tenham recorrido à mesma fonte: as escolas de Liège e de Lovaina (Eby, 1978, p.79). A criação do primeiro colégio jesuíta em Messina (Sicília), em 1548, sob a direção do p. J. Nadal, marcou desde o início a orientação pedagógica das futuras escolas dos jesuítas. Os mestres fundadores do colégio de Messina, com apenas uma exceção, formaram-se em Paris, da mesma forma que Inácio de Loyola e os demais fundadores da Companhia de Jesus. Assim, era parisiense a formação dos fundadores da Companhia e dos mestres criadores do primeiro colégio. O Colégio Romano foi criado em 1551 com o duplo objetivo de estabelecer um colégio modelo e formar os futuros professores da Companhia. O currículo do seu curso foi baseado no de Messina e passou a servir de modelo para os colégios jesuítas que começaram a ser fundados por toda a Europa. 17 As Congregações Gerais1 editaram, entre 1552 e 1584, vários decretos no sentido de regulamentar e padronizar o material pedagógico utilizado nos colégios e, em 1586, foi publicada uma versão do Ratio Studiorum, para uso interno da instituição, e enviada às Províncias da Companhia para análise e discussão. As críticas foram compiladas, dando origem a uma nova versão, publicada em 1591, para ser aplicada por três anos nos colégios da Companhia. Os resultados da aplicação do método nos colégios e as novas críticas foram utilizadas para a redação definitiva do Ratio Studiorum, publicada em Nápoles, no ano de 1599, concluindo assim um processo de cinqüenta anos de desenvolvimento e aperfeiçoamento do método pedagógico jesuítico. O Ratio Studiorum é uma norma pedagógica dividida em conjuntos de regras onde são apresentados o método de ensino, os currículos e os programas dos cursos de Humanidades, Filosofia e Teologia. A formação do jesuíta, conforme o Ratio Studiorum, deveria ser desdobrada em três cursos, sendo o primeiro, de nível inferior, o de Humanidades, o segundo o de Filosofia e o terceiro de Teologia, os dois últimos considerados de nível superior. O curso de Humanidades, era equivalente ao ginásio e designado hoje como segunda fase do fundamental, tinha como pré-requisito para admissão o conhecimento da língua do país, isto é, o aluno deveria ter recebido instrução preliminar em casa ou nas escolas elementares, de “ler, escrever e contar”. A base do curso de Humanidades era o latim, complementado pelo grego. O estudo da língua pátria tinha um caráter suplementar ou conseqüente, em função dos exercícios de tradução. O curso de Humanidades era dividido em cinco classes, sendo as três iniciais de gramática (inferior, média e superior), seguido de uma de humanidades e concluindo-se o curso com uma de retórica. No programa do curso de Humanidades, especificado no Ratio Studiorum, constatamos que nas três classes de gramática estudava-se o latim pela gramática do p. Manuel Alvarez2, e que os exercícios baseavam-se em textos de autores clássicos com destaque para Cícero, que nas duas primeiras classes era usado com exclusividade. Na classe de humanidades, como uma “preparação à eloqüência”, fazia-se um estudo resumido da retórica de Cipriano Soares3. A Arte Retórica, de Aristóteles, era a base teórica da classe de retórica, que deveria ser associada ao estilo 1 A Congregação Geral era o poder legislativo da Companhia de Jesus, sendo composta por delegados das Províncias (Leite, 2000, v. 1, p. 11). 2 A Gramática do p. Manuel Alvares foi editada várias vezes, uma delas: ÁLVARES, Manuel (1526-1583, S.J.). De institutione grammatica. Veneza : Alexandrum Gryffium, 1581. (Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal). 3 A Retórica de Cipriano Soares teve várias edições, uma delas: SUÁREZ, Cipriano (1524-1593, S.J.). De arte rhetorica. Coimbra: Ioannem Barrerium, 1590. (Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal). 18 emanado dos textos de Cícero. Ao longo do curso de Humanidades estudava-se o grego através de autores clássicos e religiosos. O método pedagógico proposto pelo Ratio Studiorum apresenta vários aspectos interessantes dos quais destacamos três pontos: a memorização, a imitação e as disputas. Os exercícios de memorização eram diários, envolvendo a matéria ministrada no dia anterior, gramática ou texto clássico, com o objetivo não só de fixar a matéria, mas também como o “exercício diário” necessário ao retórico (Franca, 1952, p. 193). Nos exercícios de composição, os alunos eram incentivados à imitação dos autores clássicos, mais uma vez destacando-se Cícero, entre outros. As classes eram divididas em dois grupos (romanos e cartagineses) e as disputas ou desafios entre os grupos eram feitas sob regras e controle do professor, e os alunos que se sobressaíam eram premiados. A combinação da memorização, da imitação e das disputas, como parte fundamental do método pedagógico, bem como o conteúdo programático das disciplinas do curso de Humanidades, revelam, de forma inequívoca, que o objetivo de formação do jesuítas era a eloqüência. Além disso, permitia descobrir, dentre os componentes do corpo discente e integrantes do quadro da Companhia ou que nele viessem a ingressar, aqueles que se destacavam na eloqüência, um requisito, mais do que desejado, necessário, tanto para o exercício do magistério quanto para o do sacerdócio. O curso de Filosofia tinha duração de três anos; o currículo, no primeiro ano, incluía duas disciplinas, a Lógica e a Introdução às Ciências; o do segundo, a Filosofia e a Matemática, e as disciplinas de Filosofia e de Filosofia Moral eram ministradas no terceiro ano. A constatação de que Aristóteles é o filósofo não apenas predominante, mas o único abordado ao longo do curso, esclarece a vinculação da Companhia de Jesus à filosofia medieval, aristotélica e tomista, bem como a sua influência na formação dos seus alunos em nível superior, fossem eles membros ou não da Companhia. Durante o primeiro ano do curso de Filosofia, os membros da Companhia eram submetidos a uma dupla avaliação, cujos votos eram secretos. Os alunos, conforme o resultado, isto é, se estivessem abaixo da mediania4 ou na mediania, mas sem “habilidade para pregação ou governo”, eram remetidos ao estudo de Casos de Consciência (Teologia Moral), o curso superior destinado à formação de sacerdotes. 4 [...] deve entender-se no sentido em que vulgarmente se entende quando se diz de alguém que é de talento mediano, a saber, quando percebe e compreende o que ouve e estuda e é capaz de dar razão suficiente a quem lha pede, ainda que, em filosofia e teologia, não atinja o grau de doutrina que as Constituições designam com a expressão ‘haver nela feito bastante progresso’, nem seja capaz de defender as teses aí mencionadas com o saber e a facilidade com que as defenderia quem fosse dotado de talento para ensinar Filosofia e Teologia (Franca, 1952, p. 125-126). 19 O curso superior de Teologia tinha a duração de quatro anos e o seu currículo era composto pelas disciplina Teologia Escolástica, presente durante todo o curso, Hebreu, durante o primeiro ano do curso, e Sagrada Escritura, durante o segundo e terceiro ano do curso. O programa de Teologia Escolástica consistia no estudo da Summa Theologica de S. Tomás de Aquino, o que vem reforçar o caráter de vinculação medieval, do programa de formação dos componentes da Companhia de Jesus. O Ratio Studiorum previa a possibilidade de serem atribuídos graus, com base no resultado dos exames finais, bem como a publicação das teses. Depois desse rápido panorama da formação do jesuíta podemos orientar o foco do nosso interesse para a aplicação efetiva do Ratio Studiorum nos colégios jesuítas no Brasil colonial, lembrando que a regra 39 permitia ao Provincial “alguma modificação para maior progresso das letras” na implantação do plano de estudos, desde que “se aproximem o mais possível da organização geral” do Ratio Studiorum. O ensino jesuíta no Brasil colonial apresentou como diferencial, em relação ao Ratio Studiorum, a implantação das escolas elementares, de “ler, escrever e contar”, em praticamente todas as suas casas, cujo início data de 1549 na Bahia, ou seja, na mesma época da chegada dos primeiros jesuítas ao Brasil e no ano seguinte à criação do primeiro colégio jesuíta na Europa. A implantação das escolas elementares no Brasil, apesar de não contempladas no Ratio Studiorum, decorria da completa ausência de ensino fundamental na colônia, obrigando a Companhia a suprir este pré-requisito para o ingresso no curso de Humanidades. O curso de Humanidades começou a ser ministrado na Bahia em 1553, sofrendo algumas interrupções, por falta de alunos, até 1564, quando o colégio da Bahia passou a receber dotação real, o que permitiu a oferta do curso de forma regular e permanente (Leite, 2000, v. 1, p. 74). Segundo Serafim Leite, o programa do curso de Humanidades no Brasil estava mais próximo do programa do Colégio de Évora, de 1563, constituído por cinco classes de gramática, uma de humanidades e outra de retórica, isto é, sete classes ao todo. O autor apresenta o programa do Colégio de Évora, acrescentando que “há diversidade no número de classes e entre os autores lidos no Brasil aparecem Quinto Cúrcio e Séneca não mencionados neste programa de Évora” (Leite, 2000, v. 7, p. 152), mas não discorre sobre o programa ministrado no Brasil. Em seqüência, oferece uma relação dos professores, com as respectivas disciplinas, em 1694 e 1737 a 1741, na qual podemos verificar que a classe mais elevada é designada ora como humanidades, ora como retórica, sendo precedida por quatro classes de gramática (Leite, 2000, v. 7, p. 152-154). 20 Assim, podemos resumir que, no Brasil, o curso de Humanidades era ministrado em quatro ou cinco classes e que o programa era “próximo” ao do Colégio de Évora. A comparação do programa deste último com o programa estabelecido no Ratio Studiorum indica pequenas variações que não alteram o seu objetivo: formar alunos para o exercício da eloqüência. O curso superior de Filosofia, conhecido também como Artes, começou a ser ministrado no colégio da Bahia, em 1572, e aos seus primeiros alunos foi atribuído o grau de bacharel, tendo sido eles os primeiros do Brasil, em 1575. No ano seguinte foram conferidos os primeiros graus de licenciados e, em 1578, os primeiros títulos de mestre em Artes (Leite, 2000, v. 1, p. 96-97). Sobre a titulação no Brasil convém esclarecer que, a partir de 1662, através da Câmara da Bahia, foram feitas várias petições ao rei no sentido de conceder aos estudantes dos colégios do Brasil, os mesmos privilégios dos estudantes do Colégio de Évora, em outras palavras, eram petições no sentido de equiparar o Colégio de Artes da Bahia ao curso de Artes da Universidade de Évora. Alguns anos depois, uma nova petição solicitando equiparação dos cursos do Colégio da Bahia aos da Universidade de Coimbra teve como resposta a negação do pedido, embora tenha sido obtido o reconhecimento de que as Faculdades de Filosofia e Teologia do Colégio da Bahia poderiam dar graus para que os seus alunos pudessem se incorporar à Universidade de Coimbra, da mesma forma que os alunos oriundos da Universidade de Évora. Dessa forma, a titulação obtida nos colégios no Brasil, desde 1575, tinha validade restrita ao âmbito da colônia, somente sendo reconhecida em Portugal a partir de 1689 (Leite, 2000, v. 7, p. 195-205). As teses, publicadas em Portugal, continham quatro páginas, sendo que nas três primeiras impressas encontrava-se a tese propriamente dita, e a última página, sem impressão, era reservada para a licença manuscrita para a defesa e as assinaturas (Leite, 2000, v. 7, p. 209-210). Serafim Leite não apresenta detalhes do programa do curso de Filosofia no Brasil, limitando-se a informar que “a base do ensino da filosofia nas escolas do séc. XVI era Aristóteles, através de S. Tomás, e em particular do movimento de interpretação e exegese, oriundo das Universidades de Coimbra e Évora” (Leite, 2000, v. 7, p. 219). O autor acrescenta uma relação com vários títulos e autores usados no curso de Filosofia: Pedro da Fonseca com Ciência Média, P. Francisco Suárez, P. Manuel de Góis e Pedro da Fonseca com o Cursus Conimbricensis, Baltasar Teles com Summa Universae Philosophiae. Faz ainda referência a obras escritas mas não publicadas, como o Curso de Filosofia de Antonio Vieira 21 (1635), Cursus Philosophicus de Domingos Ramos (1687), Curso Philosophicus de Antonio Andrade (1732) e Philosophia Problematice Expositae de Luiz Carvalho (1732) (Leite, 2000, v. 7, p. 219-223). O curso superior de Teologia era oferecido em duas modalidades: o breve, com duração de dois anos para a formação de sacerdotes (Teologia Moral), e o curso longo, com mais dois anos (Teologia Especulativa, Dogmática ou Escolástica). O acesso ao curso de Teologia dependia do resultado da avaliação do aluno no primeiro ano do curso de Filosofia, sendo aceitos para o curso breve (Teologia Moral) os alunos considerados de talento mediano e, para o curso longo (Teologia Especulativa), os de talento insigne, em geral aqueles que recebiam o grau de mestre em Artes. Ao concluir o curso de Teologia Especulativa, o aluno habilitava-se ao exame final, quando poderia obter o grau máximo da Companhia, que era o ad gradum (Leite, 2000, v. 7, p. 175-176). No que se refere ao programa do curso de Teologia, Serafim Leite faz referência apenas ao uso de S. Tomás, complementado por textos de “Francisco Suárez, Molina e outros mestres, com as divergências que as escolas permitem, compatíveis com a Teologia Católica” (Leite, 2000, v. 7, p. 177). Apesar de não fazer parte do Ratio Studiorum, os Exercícios Espirituais, de Inácio de Loyola, por se constituírem numa prática obrigatória entre os jesuítas, devem ser mencionados. Uma das características dos Exercícios é o uso da imaginação para a “visualização” detalhada de lugares e episódios sagrados, exercício este designado como “composição do lugar”: “É de notar aqui que, se o assunto da contemplação ou da meditação for uma coisa visível, [...], esta ‘composição’ consistirá em representar, com o auxílio da imaginação, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar” (Loyola, 1997, p. 43-44). A exercitação repetida e constante da imaginação visual nos permite especular sobre a possibilidade de os Exercícios Espirituais atuarem como um mecanismo auxiliar no desenvolvimento da capacidade de articulação do pensamento não verbal e os seus possíveis desdobramentos. Podemos dizer, resumindo, que a formação do jesuíta no século XVII, no Brasil, iniciava-se por volta dos seus dez anos de idade, no curso de Humanidades, com duração de cinco anos, onde se aprendia latim e grego, através de clássicos, e a retórica, na teoria de Aristóteles e na prática de Cícero, preparando-o para a eloqüência. Sua formação prosseguia com os três anos do curso de Filosofia (Lógica, Matemática, Metafísica e Ética) aristotélica, quando, tendo no mínimo dezoito anos, poderia então obter a graduação. Se tivesse demonstrado talento médio em Lógica poderia candidatar-se a dois anos de Teologia Moral, 22 assim como aqueles de maior talento poderiam candidatar-se aos quatro anos de Teologia Especulativa, baseada em S. Tomás. Assim, a formação clássica, entendida aqui como constituída pelo aprendizado do latim e grego, com textos clássicos, e da retórica, para a eloqüência, associada a uma modulação medieval, pela presença quase exclusiva de Aristóteles e S. Tomás, apresentava como resultado uma formação ao mesmo tempo humanista e neomedieval, ou seja, barroca. Traçar o perfil do autor do período colonial é relativamente mais simples do que traçar um perfil dos leitores, porque nos deparamos com o problema da ausência de informações precisas desse aspecto. Além disso, não temos sequer informações demográficas confiáveis sobre os dois primeiros séculos da colonização do Brasil. Laurence Hallewell informa que em 1650 a população de Salvador e Recife era estimada em 8.000 habitantes, a do Rio de Janeiro e de São Paulo em 1.000 habitantes e a de Lisboa em 126.000 habitantes (Hallewell, 1985, p. 6). Uma parcela dessa população deveria ter capacidade de ler e escrever. Mesmo não tendo condições de estabelecer o percentual dos habitantes que seriam capazes de ler, podemos concluir que o quantitativo de leitores no século XVII, na colônia do Brasil, era muito reduzido. Não existem também documentos que permitam determinar quais eram os livros que circulavam nesse ambiente rarefeito e quais eram efetivamente lidos. De qualquer forma, a formação escolar dos leitores da elite era similar a dos escritores, uma vez que a principal e, em geral, a única escola era a dos jesuítas. Jorge de Souza Araujo relata que na sua pesquisa encontrou no Arquivo de São Paulo onze inventários do século XVII, que incluíam bibliotecas e dois inventários, do mesmo tipo e período, no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. O autor caracteriza o leitor do período colonial afirmando que [...] o perfil social do leitor brasileiro colonial é que este era abastado. E do sexo masculino. Raras são as mulheres que aparecem como inventariadas e, ainda assim, pelo que parece, seus bens, sobretudo livros, teriam se originado de partilha anterior quando da morte do marido, ou irmão. Há alguns casos de inventários feitos sob seqüestro, ou sob a norma jurídica da decretação do estado de demência do inventariado. Fazendeiros, padres, militares, médicos, bacharéis constituem um modelo mais pertinente dos leitores coloniais. (Araujo, 1999, p. 241-242) Na ausência de documentos que permitam identificar quais eram os livros lidos no período colonial no Brasil, podemos utilizar o “método das citações” para estabelecer o perfil das leituras desse período. Nesse caso, o “método das citações” tem como pressuposto que o “livro citado por um autor é livro lido” (Silva, 1999, p. 156). Esse método, que privilegia as leituras de um autor específico, não inclui as obras que esse autor leu, incorporou ao seu 23 discurso, mas que não citou. Um exemplo deste caso, que analisamos em outro capítulo, é o livro Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire, publicado em 1675, que utiliza como fonte as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, de 1668, mas não cita o autor ou a obra. No período colonial, as bibliotecas exerciam papel destacado como fonte para consultas, sendo as maiores e mais diversificadas, as bibliotecas dos colégios jesuítas e a dos conventos das outras ordens religiosas. As bibliotecas privadas, eram poucas [...] tendo a propriedade de livros se concentrado nas mãos de um reduzido número de pessoas e se limitado a uns poucos títulos, preponderantemente de cunho devocional. Os donos de bibliotecas, em sua maioria, eram membros das elites, que combinavam a propriedade (de terras, gado e minas) ou o envolvimento no comércio a ofícios que exigiam uma educação mais esmerada. Assim, clérigos, advogados, médicos e funcionários públicos dos altos escalões destacaram-se como os principais proprietários de livrarias. A composição das bibliotecas (número de livros e distribuição desses pelas áreas do saber) dependeu menos da riqueza dos seus proprietários que das carreiras profissionais por eles abraçadas: não era o cabedal portentoso que definia o interesse por livros, e sim os ofícios aos quais as pessoas se dedicavam e o nível educacional por eles exigido, havendo nas bibliotecas maior número de livros relacionados às profissões de seus proprietários. (Villalta, 1997, p. 383-384) Podemos resumir dizendo que os escritores do período colonial tinham como perfil a formação, em geral, nos colégios jesuítas onde eram preparados para eloqüência com o aprendizado de latim e grego, através de textos clássicos, e da retórica. As bibliotecas dos colégios jesuítas forneciam ao estudante e professores, material tanto para estudo como para pesquisa. Os leitores da elite tinham o mesmo tipo de formação e compartilhavam desse mesmo universo, ao mesmo tempo clássico e neomedieval, o barroco colonial. Concluindo esta introdução, apresentamos um breve resumo dos capítulos que se seguem. No próximo capítulo, o segundo, oferecemos ao leitor informações sobre o p. Simão de Vasconcellos, a sua obra e a seleção da edição utilizada na tese. No capítulo três começamos o trabalho de análise do discurso de Simão de Vasconcellos apresentando o território sobre o qual ele construiu o Paraíso. O capítulo seguinte, o quarto, trata da análise do delicado problema da seleção daqueles que poderiam viver no Paraíso. No capítulo cinco, estudamos as premissas de Vasconcellos sobre a bondade da terra do Brasil e, no sexto capítulo, analisamos a tese do Paraíso. Concluímos a tese no sétimo capítulo, fazendo um retrospecto da pesquisa e seus resultados. 24 2. Simão de Vasconcellos e o Paraíso na América Simão de Vasconcellos5 nasceu em Portugal, na cidade do Porto, por volta de 1596, e ainda adolescente transferiu-se, com seus familiares, para o Brasil. Daquele período até sua entrada na Companhia de Jesus não existem informações disponíveis. Sobre seus familiares, Serafim Leite nos informa em uma nota que “Simão de Vasconcelos tinha um irmão, Capitão Inácio Rebelo de Vasconcelos, e uma sobrinha, filha deste, D. Paula de Vasconcelos, casada com o Capitão-Mor Manuel Simões Colaço, que em Angola ocupou os primeiros cargos. Borges da Fonseca, Nobiliarchia Pernambucana, I, 216” (Leite, 2000, v. 7, p. 26). Serafim Leite afirma que em 1615, aos 19 anos, Simão de Vasconcellos entrou para a Companhia de Jesus, na Bahia. Seu aprendizado na Companhia seguiu o programa do Ratio Studiorum, tendo cursado Latim (curso de humanidades), por quatro anos (1615-1618), Filosofia, por três anos e meio (1619-1622), e Teologia, por três anos (1622-1625). Ainda segundo o autor, ele estudou com distinção e obteve o título de Mestre em Artes. Simão de Vasconcellos atuou como docente ministrando cursos de gramática (latim) durante quatro anos (1625-1629), de Teologia Especulativa e Moral por cinco anos (1629-1634) e por seis anos e meio (1634-1640) trabalhou como adjunto e mestre de noviços (Leite, 2000, v. 7, p. 26-28). Em 1641, assumiu o cargo de Secretário da Província e em 27 de fevereiro partiu para Portugal, como Procurador Geral, na embaixada de fidelidade do Brasil à Restauração, junto com o p. Antonio Vieira. Ao retornar ao Brasil em 1642, Simão de Vasconcellos deveria reassumir o cargo de Secretário acompanhando o Provincial, Manuel Fernandes, numa visita ao sul, o que não ocorreu por influência do Governador Antonio Teles da Silva, com quem voltou de Portugal e que tinha Vasconcellos como seu confessor. 5 As informações biográficas sobre Simão de Vasconcellos anteriores ao seu ingresso na Companhia de Jesus são escassas. Os poucos dados obtidos foram, em sua maioria, encontrados na História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite (2000). 25 Em 1643 foi alçado ao cargo de Vice-Reitor do Colégio da Bahia, que ocupou por dois anos. Segundo Serafim Leite, nesse período ele teve acesso a “algumas poesias latinas e poucas portuguesas” de Anchieta que pretendia “consertar e por em forma” para publicação e que caberiam num volume pequeno como o do Ratio Studiorum6 (Leite, 2000, v. 7, p. 26-27). Vasconcellos foi designado Reitor do Colégio do Rio de Janeiro em 1º de outubro de 1643, mas só tomou posse em janeiro de 1646 devido ao empenho do governador-geral Antonio Teles da Silva, em mantê-lo na Bahia. Permaneceu no cargo de Reitor do Colégio do Rio de Janeiro até 1649. Conforme Serafim Leite ele fez uma boa administração e teve a possibilidade de disponibilizar recursos desse Colégio para o pagamento de dívidas dos Colégios de Pernambuco e da Bahia, que a guerra com os holandeses só fizera aumentar, além de impedir o pagamento das mesmas. Nessa época em que atuou no Rio de Janeiro, conviveu com o padre João de Almeida, dando início ao que seria futuramente o seu primeiro livro publicado, a Vida do padre João de Almeida. Não temos outras informações sobre suas atividades no período compreendido entre 1649 e 1653, mas acreditamos que permaneceu no Rio de Janeiro. Sabemos, porém, que em 1653 foi enviado como Visitador ao Colégio de São Paulo, logo após o retorno dos jesuítas àquela localidade e de onde haviam sido expulsos em 1640. Teve então destacada atuação na pacificação das famílias Garcia (mais tarde Pires), de partido de Portugal, e Camargo, de predominância castelhana (Holanda, 1993, p.10). Leite transcreve parte do texto de Antonio Pinto – Sexennium Litterarum ab anno 1651 usque ad 1657, Bahia, 29 de julli anni 1657 –, que relata esses acontecimentos, a atuação de Simão de Vasconcellos e que pode ser resumido da seguinte forma: apesar do resultado da eleição para a Câmara de São Paulo, em que os Garcia conseguiram a maioria dos cargos, os Camargo enviaram um dos seus à Bahia para tentar reverter a situação junto ao Tribunal da Relação, que acolheu o pedido e exarou sentença favorável aos Camargo. Nesse meio tempo, os Garcia tomaram conhecimento da sentença e ambos os lados armaram-se para lutar por seus interesses. Em 9 de fevereiro de 1654, Simão de Vasconcellos conseguiu reunir os líderes das duas famílias no Colégio de São Paulo, intermediando uma negociação que culminou com a elaboração de uma escritura pública em que as partes concordavam em suspender a execução da sentença do Tribunal da Relação, enquanto os Garcia não apresentassem sua defesa junto ao mesmo, uma vez que não tinham sido ouvidos no decorrer do processo (Leite, 2000, v. 6, p. 298-300). 6 A tradução do Ratio Studiorum para o português feita pelo p. Leonel Franca ocupa 112 páginas, com dimensões de 20 por 14 centímetros, do livro: FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. 26 Nesse mesmo ano de 1654, Vasconcellos assumiu o cargo de Vice-Reitor do Colégio da Bahia, pela segunda vez, época em que apresentou em carta (Leite, 2000, v. 5, p. 107-111) a proposta da “quadra perfeita” (Araujo, 2000) para a reconstrução do Colégio da Bahia. Permaneceu no cargo até o ano seguinte quando foi designado e assumiu o cargo de Provincial7, que exerceu até 1658. Na carta dirigida ao Geral da Companhia, datada de 26 de novembro de 1655, Simão de Vasconcellos encaminhou as aprovações à Vida do padre João de Almeida e solicitou a sua publicação (Leite, 2000, v. 9, p. 180), o que ocorreu em 1658, em Lisboa, na oficina Craesbeekiana. Após exercer o mandato de Provincial foi eleito, em 1660, Procurador da Província junto a Companhia em Roma. Vasconcellos partiu então para Lisboa levando consigo os originais da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, para publicação, e os votos de alguns padres para que voltasse como Visitador8. No entanto, para o cargo de Visitador da Província do Brasil, foi designado pelo Geral da Companhia, em 2 de junho de 1662, o p. Jacinto de Magistris. No período em que esteve na Europa Simão de Vasconcellos publicou: Continuação das maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil, por intercessão do mui religioso e penitente servo seu, o veneravel P. João de Almeida, da Companhia de Jesus. Lisboa, Oficina de Domingos Carneiro, 1662; Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil: E do que obrarão seus filhos nesta parte do Novo Mundo, Oficina de Henrique Valente de Oliveira, em 1663; e Sermão que pregou na Bahia em o primeiro de Janeiro de 1659, Lisboa, Oficina de Henrique Valente de Oliveira, 1663. Após a volta ao Brasil, em meados de 1663, Simão de Vasconcellos dedicou-se à elaboração da Vida do venerável padre José de Anchieta, e possivelmente, deu continuidade, conforme suas próprias palavras, à “História Geral das Chronicas desta província com que me achava ocupado, e das quais tinha saído a luz com o primeiro tomo” (Leite, 2000, v. 9, p. 183) e que havia sido interrompida para elaboração da Vida do venerável padre José de Anchieta, segundo o Prólogo ao Leitor dessa mesma obra. 7 Os cargos na Companhia de Jesus seguiam uma estrutura hierárquica que tinha no topo o Superior Geral, ou simplesmente Geral, com mandato vitalício. A Companhia era dividida em Províncias que eram agrupadas segundo critérios geográficos ou lingüísticos em Assistências. No período que vai da criação da Companhia (1539) até a expulsão dos jesuítas de Portugal (1759) existiam seis Assistências: Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Polônia. A Assistência de Portugal tinha a Província de Portugal, a da Índia, a do Japão, a Vice-Província da China, a Província do Brasil e a Vice-Província do Maranhão. Cada Província tinha um superior, o Provincial, que governava as casas e estabelecimentos da Província. Cada casa ou estabelecimento tinha um superior, que no caso dos Colégios era chamado de Reitor. (Leite, 2000, v. 1, p. 11-13). 8 O cargo de Visitador era um cargo excepcional atribuído a um emissário especial do Superior Geral dos jesuítas, representando-o numa Província e com poder superior ao do Provincial. 27 Simão de Vasconcellos publicou, em 1668, às expensas do Capitão Francisco Gil de Araujo, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, em cuja dedicatória encontramos a seguinte declaração: “E essa vem a ser a razão, porque de novo ofereço a V. M. o presente livro, depois de lhe dedicar já outro, em que escrevo a vida do venerável padre José de Anchieta, que breve se dará estampa” (Vasconcellos, 1668). O livro da Vida do venerável padre José de Anchieta já estava em Lisboa em 13 de janeiro de 1669 quando o Procurador da Província, p. João Pimenta, enviou carta ao Geral tratando da publicação do mesmo (Leite, 2000, v. 9, p. 54), que, no entanto só foi publicado em 1672. Em 1670, Vasconcellos foi designado Reitor do Colégio do Rio de Janeiro, pela segunda vez, vindo a falecer nessa cidade, no exercício do cargo em 29 de setembro de 1671. Segundo Serafim Leite, Simão de Vasconcellos “teve considerável influência no Brasil do seu tempo, dentro e fora da Companhia” (Leite, 2000, v. 9, p. 174). Anita Novinsky em Cristãos novos na Bahia informa que Simão de Vasconcellos foi “nomeado Comissário do Sto. Ofício” quando Reitor do Colégio da Companhia de Jesus, sem informar a data e o Colégio. Sabemos que Simão de Vasconcellos foi Reitor do Colégio do Rio de Janeiro entre 1646 e 1649, e depois entre 1670 e 1671, entretanto, o parágrafo em que a autora cita Vasconcellos refere-se ao ano de 1625: [...] As cousas se passavam de maneira semelhante nas Capitanias do Sul. O Padre Frei do Espírito Santo, subprior do convento de N. Sra. do Carmo da cidade do Rio de Janeiro, que serviu de procurador das Capitanias do Sul, num Relatório que envia aos Inquisidores de Lisboa nos anos de 1625 (21 de abril) revela seu desejo de ser “familiar” ao mesmo tempo em que denuncia pessoas de S. Paulo, Itanhaém, Cananéia, Espírito Santo, Porto Seguro. Quer ser familiar em caráter secreto, para servir aos propósitos do Sto. Ofício, pois “não tinha nenhuma raça de nação”. Pede autorização para fazer “mesa” do Sto. Ofício no Rio de Janeiro, a fim de punir os suspeitos, a “gente da nação”. O Padre Simão de Vasconcelos, Reitor do Colégio da Companhia de Jesus, nomeado Comissário do Sto. Ofício, falando das pessoas do Sul, principalmente de S. Paulo, a elas se refere como gente “tão pouco temente à Justiça”. (Novinsky, 1992, p. 116-117) Na página anterior, Novinsky relaciona os comissários e familiares do Santo Ofício que se destacaram nesse período no Brasil e não inclui entre eles Simão de Vasconcellos (Novisnky, 1992, p. 115). Serafim Leite, na História da Companhia de Jesus no Brasil, relaciona alguns membros da ordem que atuaram como Comissários do Santo Ofício, porém, não incluí entre eles Simão de Vasconcellos. Luis Carlos Villalta esclarece que “segundo Bruno Feitler, os reitores dos colégios, [eram] designados ‘comissários eleitos’ (provisórios)” (Villalta, 2002, p. 70). A pouca informação sobre o assunto sinaliza a necessidade de pesquisa sobre esse possível envolvimento de Simão de Vasconcellos com o Santo Ofício. 28 As principais obras publicadas de Simão de Vasconcellos são a Vida do P. João de Almeida (1658), a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663) que inclui os dois livros das Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil e a primeira publicação do poema De Beata Virgine Dei Matre Maria, de José de Anchieta, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), e a Vida do Venerável Padre José de Anchieta (1672) (Leite, 2000, v. 9, p.174-178). A elaboração da Vida do P. João de Almeida provavelmente teve início entre 1646 e 1649 quando exercia, pela primeira vez, o cargo de Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Ali residia o p. João de Almeida, considerado um santo pela população da cidade. O padre João de Almeida, nascido em Londres, da família Made ou Meade, foi enviado a Portugal onde foi educado por um comerciante de Viana do Castelo e veio, posteriormente, para o Brasil para comerciar. Ingressou na Companhia de Jesus, em Pernambuco, em 1º de novembro de 1592, vindo a falecer no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1653 (Leite, 2000, v. 8, p. 8). O livro sobre a vida do p. João de Almeida já estava pronto em 26 de novembro de 1655, com as aprovações necessárias para publicação, como podemos constatar na carta de Simão de Vasconcellos ao Padre Geral Goswin Nickel solicitando a sua publicação (Leite, 2000, v. 9, p. 180), o que veio a ocorrer somente em 1658, em Lisboa. A Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil relata a história dos primórdios da Companhia de Jesus no Brasil através da história da vida do Padre Manuel da Nóbrega, cobrindo o período que tem início em 1549, data da instalação da Companhia no Brasil, até a morte de Nóbrega, em 1570. Foi escrita entre 1654 e 1660, quando Vasconcellos assumiu a Vice-Reitoria do Colégio da Bahia (1654) e, depois, o cargo de Provincial (16551658). Esse período pode ser deduzido do próprio texto, conforme informação existente no parágrafo 106 do livro primeiro da Chronica, em que o autor refere-se à reconquista de Olinda após “24 anos” de domínio holandês, ou seja, o texto faz referência ao ano de 1654, ano em que os holandeses capitularam em Pernambuco, e portanto, foi escrito em data posterior a esse ano. Num outro trecho Vasconcellos informa que “agora quando isto escrevemos prepara uma grande entrada o General Salvador Correa de Sá e Benevides” (Vasconcelos, 1977, p. 73), o que pode servir para determinar em que ano o livro foi escrito. Sobre o local onde o livro foi escrito, o autor não deixa dúvida quando faz referência a cidade da Bahia (Salvador): “quando isto escrevo, defronte desta cidade da Bahia” (Vasconcelos, 1977, p. 162). A Vida do Venerável Padre José de Anchieta, publicada após a morte de Simão de Vasconcellos, descreve brevemente o início da vida de José de Anchieta, sua entrada para a 29 Companhia de Jesus em 1551, a vinda para o Brasil em 1553, e a partir daí, apresenta a obra de Anchieta no Brasil até a sua morte em 9 de junho de 1597. Esses três livros de Simão de Vasconcellos registram, com sobreposições, os primeiros cem anos da Companhia de Jesus no Brasil: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, refere-se ao período de 1549 a 1570, ao relatar a vida do padre Manuel da Nóbrega; a Vida do Venerável Padre José de Anchieta, descreve acontecimentos ocorridos no espaço de tempo que vai de 1551 até 1597; e, finalmente, a Vida do P. João de Almeida, o período entre 1592 e 1653. Dessa forma, Simão de Vasconcellos resgata a História da Companhia de Jesus no Brasil de 1549 até 1653, através da biografia de três de seus eminentes membros. Das obras publicadas de Simão de Vasconcellos, a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil é a que reúne dados de maior interesse para a nossa pesquisa, por isso nos deteremos mais em apresentar suas características, bem como no conturbado processo de sua publicação. A primeira edição da Chronica, de 1663, foi impressa no formato fólio, com 33cm por 23cm, e apresenta folha de rosto, seguida de uma gravura de A. Clouwet da Antuérpia (figura 1), uma dedicatória a d. Afonso VI, epigrama, elogio, protesto do autor, as aprovações para publicação e a revisão delas, os dois livros das Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil, com as páginas numeradas de 1 a 178, seguida do índice dos dois livros antecedentes nas páginas 185 a 188. As páginas de numeração 179 a 184 inexistem e correspondem aos parágrafos eliminados pela censura, além disso, no exemplar em excelente estado de conservação que manuseamos na John Carter Brown Library, da Brown University (Providence, RI – USA), a folha correspondente às páginas 177-178 encontra-se colada ao fólio, indicando que foi impressa à parte, substituindo a original. Seguem-se os quatro livros da Chronica, com numeração de páginas de 1 a 479, os versos do padre José Anchieta em louvor da Virgem (em latim), páginas 481 a 528, e um índice da Chronica com seis folhas, sem numeração das páginas (Vasconcellos, 1663). Após um processo de avaliação, iniciado em abril de 1661, a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil de Simão de Vasconcellos, obteve, através dos pareceres favoráveis de três membros da ordem, aprovação do Geral dos jesuítas, do revisor do Santo Ofício e do Paço, a licença para a sua impressão em novembro de 1662. Esse sistema de tríplice censura existia em Portugal desde 1517, para o Ordinário – juizo eclesiástico da diocese ou ordem –, a partir de 1536 para a Inquisição e de 1576 do Desembargo do Paço (Villalta, 2002, p. 47). Para conseguir a aprovação da Chronica para circulação ainda foram necessários mais dois anos e quatro meses e mesmo assim, apesar e após todo esse trâmite, a 30 obra sofreu a ação da censura, tendo sido recolhida e retiradas algumas páginas da sua parte inicial. No livro encontramos reproduzidas as aprovações necessárias para a sua publicação e circulação, que permitem estabelecer a cronologia dos fatos que envolveram a censura da obra (ver reprodução no Anexo 4). Figura 1: Gravura de A. Clouwet (Fonte: LEITE, 2000, v. 2, p. IV) Nas páginas iniciais da Chronica, que precedem as Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil, encontramos as aprovações divididas em quatro subtítulos. As APROVAÇÕES DA RELIGIÃO reúnem as três aprovações, necessárias para publicação, de membros da Companhia de Jesus: Antonio de Sá, no Colégio da Bahia em 18/5/1661, Jacinto de Carvalhaes, na Bahia em 20/5/1661, e João Pereira, na Bahia em 17/4/1661 (Vasconcellos, 1663)9. As aprovações foram enviadas pelo Provincial Baltasar de Sequeira ao Geral, através de carta com data de 26/5/1661, com a solicitação que se imprimisse a Chronica “sem ser preciso ir a Roma” (Leite, 2000, v. 9, p. 121). Essa carta e as aprovações 31 foram levadas, possivelmente em mãos, por Simão de Vasconcellos, na sua viagem para Roma, devido à nomeação como Procurador da Província: “Eleito procurador a Roma (já o tinha sido em Outubro de 1660), partiu para Lisboa e Cidade Eterna, levando os originais da Crônica para se imprimir” (Leite, 2000, v. 7, p. 27). A viagem do Brasil para Roma, com escala obrigatória em Lisboa, permitiu que Vasconcellos submetesse a Chronica ao Santo Oficio, cuja aprovação em Lisboa em 15/1/1662 pelo Fr. Duarte da Conceição traz a advertência de que falta “a licença do seu Padre Provincial” (Vasconcellos, 1663). Assim, é possível que Vasconcellos tenha aproveitado a escala em Lisboa para obter a licença do Santo Oficio antes de embarcar para Roma, onde obteve a licença do Vigário Geral10 da Companhia de Jesus, João Paulo Oliva, em 4/7/1662 (Vasconcellos, 1663). A confirmação da presença de Vasconcellos em Roma nessa ocasião é atestada na carta do padre Antonio de Sá, de Gênova em 21/7/1662, para o Vigário Geral João Paulo Oliva, informando que “embarcará para Lisboa no dia seguinte com o P. Simão de Vasconcelos” (Leite, 2000, v. 9, p. 110-111). Vasconcellos encontrava-se em Lisboa em 7 de setembro de 1662 se considerarmos o local e data do PROTESTO DO AUTOR impressos na página da Chronica que antecede as APROVAÇÕES. A segunda licença do Santo Ofício, de 13/10/1662, assinada pelo “Doutor Fr. Francisco Brandão” e a autorização para impressão e retorno ao Santo Oficio “para se conferir com o original e se dar licença para correr, e [que] sem ela não correrá” data de 17/10/1662 em Lisboa (Vasconcellos, 1663). Em seqüência, a licença do Paço, emitida pelo Cronista mor, o mesmo “Doutor Fr. Francisco Brandão” do Santo Oficio, ocorreu em 3/10/1662 e apresenta a informação do autor dizendo que já havia sido feita a revisão pelo Santo Oficio. É possível que a data impressa esteja errada e a correta seja 30/10/1662. A licença para impressão, emitida pela Mesa é de 7/11/1662 e contém a exigência de retornar ao Paço “para se taxar, e [que] sem isso não correrá” (Vasconcellos, 1663). A revisão final, com a conferência com o original, realizada pelo Paço, apresenta como data “último de fevereiro de 1665”, a revisão do Santo Ofício é de 3/3/1665 e a da taxação é de 9/3/1665. Com base nessas informações podemos deduzir que a obra começou a 9 As páginas da Chronica que precedem as Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil não são numeradas. 10 Em 1661 o Geral da Companhia de Jesus, Goswin Nickel, estava doente e a Congregação Geral, com autorização do Papa Alexandre VII, criou o cargo de Vigário Geral, com todos os poderes do Geral da Companhia de Jesus, e elegeu para o cargo João Paulo Oliva que assumiu o cargo em 7/6/1661. Com a morte do Geral Goswin Nickel em 31/7/1664, João Paulo Oliva assumiu o cargo de Geral da Companhia nessa mesma data (Bangert, 1985, p. 219). 32 ser distribuída após 9/3/1665, última data impressa nas aprovações. Dessa forma, apesar da obra apresentar na primeira página a data de publicação de 1663 sua distribuição somente ocorreu após 9/3/1665. Serafim Leite informa que “O P. Visitador Jacinto de Magistris e alguns êmulos do autor [Vasconcellos] informaram desfavoravelmente o P. Geral, que não obstante haver já dado aprovação, ordenou se riscasse [os parágrafos finais das Noticias]” (Leite, 2000, v. 9, p. 178), apesar das autorizações e licenças já concedidas. Assim, após a licença para a impressão, em 7/11/1662, e possivelmente, após a impressão da Chronica houve a interferência que culminou com a proposta do Visitador Jacinto de Magistris de se eliminar os sete últimos parágrafos das Noticias, como consta da carta do Visitador para o Geral, com data de 4/4/1663. O resgate e análise das cartas de Vasconcellos, Magistris e outros, podem esclarecer esta e outras questões11. Com o material que dispomos, o resumo das cartas elaborado por Serafim Leite, podemos fazer um breve retrospecto dos acontecimentos relacionados a censura da Chronica. Jacinto de Magistris ao ser designado Visitador da Província do Brasil em 1662 recebeu instruções do Vigário Geral, João Paulo Oliva, em 2/6/1662 no sentido de negociar a dívida da Província do Brasil com a Província de Portugal e Japão (Leite, 2000, v. 8, p. 335). Uma das instruções recebidas por Magistris estava relacionada à pendência judicial envolvendo o testamento de Mem de Sá e de sua filha Filipa de Sá. O testamento de Mem de Sá previa que se os seus filhos Francisco de Sá e Filipa de Sá morressem sem descendentes a sua terça deveria ser repartida em três partes: “uma para a Misericórdia da cidade do Salvador da Baía; a segunda para o Colégio de Jesus da mesma cidade; e a terceira se entregaria ao Provincial dos Jesuítas para os Pobres e para se casarem algumas órfãs desamparadas” (Leite, 2000, v. 5, p. 243). Mem de Sá faleceu em 2 de março de 1572 e seu filho, Francisco de Sá, em 19 de dezembro do mesmo ano ficando sua irmã, Filipa de Sá, como herdeira e recebendo o Engenho de Sergipe como herança. Um ano depois Filipa casou com D. Fernando de Noronha, conde de Linhares, e o engenho passou a se chamar Sergipe do Conde. Em 1613, Filipa de Sá tornou-se fundadora da igreja do Colégio jesuíta de S. Antão, em Lisboa. Alguns anos depois, pouco antes de sua morte em 2 de setembro de 1618, fez um testamento em que deixava o engenho de Sergipe do Conde para o Colégio de S. Antão. Esse testamento, em conflito com o de seu pai, deu início a uma disputa entre o Colégio da Bahia, o de S. Antão e 11 O Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (Archivum Romanum Societatis Iesu – ARSI), onde estão depositadas a maioria das cartas, foi fechado para mudança de local de funcionamento, em janeiro de 2003, com 33 a Misericórdia de Salvador pelo controle do engenho Sergipe do Conde, o que só foi resolvido em 1669 (Leite, 2000, v. 5, p. 243-251). As relações de Simão de Vasconcellos e de Jacinto de Magistris não deviam ser muito amistosas e o episódio da censura à Chronica pode fazer parte de um conflito de maior dimensão. Vários indícios apontam nessa direção. O primeiro deles encontra-se na carta do p. Antonio de Sá, de Gênova em 8/7/1662, quando acompanhava o Procurador da Província do Brasil em Roma, Simão de Vasconcellos. Nessa carta Antonio de Sá informa ao Geral que está em Gênova a caminho de Lisboa, onde também se encontrava o Visitador Magistris, e “teme que este lhe retarde a viagem; pede para embarcar, sem que o Visitador lho possa impedir” (Leite, 2000, v. 9, p. 110). Nesse resumo da carta, elaborado por Serafim Leite, não temos o motivo para a retenção. O segundo indício do problema é uma carta de Jacinto de Magistris, com a mesma data da carta de Antonio de Sá, enviada de Gênova ao Geral pelo Visitador sobre a viagem de Simão de Vasconcellos (Leite, 2000, v. 8, p. 336). A sincronia no envio das cartas sugere que os missivistas tinham pontos de vista divergentes sobre a viagem e que recorreram à instância superior no sentido de resolver o impasse. O terceiro indício é uma troca de correspondência, em Lisboa, entre Simão de Vasconcellos e Jacinto de Magistris. Nesse episódio o primeiro enviou carta ao segundo, em 11/11/1662 (Leite, 2000, v. 9, p. 181), que foi respondida no dia seguinte por Magistris na qual trata “assuntos do Brasil e de jurisdição entre ambos, e assume a direção superior que lhe compete como Visitador Geral da Província do Brasil” (Leite, 2000, v. 8, p. 336). Nesse caso, mesmo sem o acesso ao conteúdo integral das cartas, percebe-se a existência de um conflito entre ambos, resolvido com base na hierarquia, isto é, o Visitador exerceu sua autoridade como representante do Superior Geral dos jesuítas. Magistris enviou, em 19/11/1662, uma carta ao Geral onde tratava dos padres Simão de Vasconcellos, Antonio Vieira, Antonio de Sá e outros (Leite, 2000, v. 8, p.336). Dois meses depois, em 18/1/1663, ordenou que a Província do Brasil pagasse o que devia à Província de Portugal e a do Japão (Leite, 2000, v. 7, p. 35). Após alguns dias, em 3/2/1663, reunido com delegados do Brasil e Portugal para tratar dos problemas que envolviam o Engenho de Sergipe do Conde – herança de Mem de Sá e de sua filha, Condessa de Linhares, deixada para o Colégio da Bahia, no Brasil, e o Colégio de S. Antão, em Portugal –, Magistris propôs que “o Colégio de S. Antão devia compensar o da Bahia” e que “a compensação combinada se descontasse no que a Província do Brasil devia à do Japão, o que não foi aceito. previsão de reabertura no fim daquele ano. Quase um ano após o prazo de reabertura o Arquivo permanece fechado e, dessa forma, ficamos impossibilitados de resgatar e analisar as cartas. 34 O Brasil pagaria a sua dívida ao Japão quando pudesse, mas o Colégio de S. Antão devia pagar logo a sua” (Leite, 2000, v. 7, p. 41). No mesmo mês de fevereiro de 1663, no dia 14, Magistris visitou a Procuradoria da Província do Brasil em Lisboa e deixou o documento “Ordens que o P. Jacinto de Magistris, Visitador do Brasil, deixou nesta Procuratura de Lisboa” (Leite, 2000, v. 8, p. 337). Dessas ordens Serafim Leite reproduz uma: “não se despache na Alfândega mercadoria de secular, que vier do Brasil, nem se despache para o Brasil coisas que não sejam para os Nossos” (Leite, 2000, v.7, p. 35, nota 6). Informa ainda que o Visitador cumpria ordem do Geral: Proíba totalmente aos Reitores e Provinciais do Brasil que o açúcar, madeira, tabaco e outras mercadorias semelhantes, que para comprar o que é necessário ao Colégio se costumam remeter do Brasil a Portugal, se envie a mais ninguém senão ao Procurador Geral da Província, que reside em Lisboa; e a este se impunha com seriedade e sinceridade que não trate nem se ocupe de negócios dos de fora, ainda que sejam ilustres, nem se encarregue de vender em Lisboa suas mercadorias. (Leite, 2000, v.7, p. 35, nota 6) Outro indício dos problemas entre o Visitador e Vasconcellos são as duas cartas enviadas por Magistris ao Geral, em 29/3/1663, com manifestações contra padres da Província do Brasil que estavam em Portugal: Antonio Vieira, Simão de Vasconcellos, João Pimenta, João Leitão e Manuel Luiz. Poucos dias depois, em 3 de abril, outra carta para o Geral informava sobre a demora dos padres do Brasil em retornar à Província e que esses padres “tratam de receber da Europa o que há de melhor, ‘exceptis missionaris’” (Leite, 2000, v. 8, p. 337). No dia seguinte, o Visitador remete carta ao Geral tratando da Chronica, de Simão de Vasconcellos, dizendo “o que fez sobre esta matéria por comissão do Geral” e sugere que as páginas da conclusão, “no fim das preliminares”, podem ser facilmente retiradas e substituídas (Leite, 2000, v. 8, p. 337-338). De forma quase simultânea e em paralelo, Simão de Vasconcellos submete ao Geral, em 9/4/1663, através de carta, os pareceres dos doutores de Coimbra, Évora e Lisboa: [...] todos unânimes em declarar que não havia nada definido em matéria de fé sobre o lugar do Paraíso Terrestre, e que Vasconcelos não afirmava, mas apenas lembrava a probabilidade de o Paraíso ser na América, isto é, no Brasil, probabilidade que deixava ao critério do leitor. Assinavam os Doutores: António Pinheiro, João Gomes, Miguel Tinoco, Jorge da Costa, Inácio Mascarenhas, João de Sousa, Mateus de Figueiredo, Manuel Pereira, André de Moura, José de Seixas e Luiz Nogueira. (Leite, 2000, v. 9, p. 178) Jacinto de Magistris embarcou para o Brasil em 19 de abril de 1663 com alguns membros da Companhia e em outra nau, embarcaram Simão de Vasconcellos com outros 35 companheiros da Companhia e o Vice-Rei Conde de Óbidos, que fez de Vasconcellos seu confessor. Chegaram a Bahia em 13 de junho de 1663 (Leite, 2000, v. 7, p. 36). Cerca de um mês após a chegada, em 10 de julho, o Visitador Magistris comunica ao Geral que lhe desagrada a “educação que se dá aos noviços e os modos de proceder do Provincial José da Costa e de Simão de Vasconcelos; recorda o que está estipulado sobre a admissão à Companhia dos nascidos no Brasil” (Leite, 2000, v. 7, p. 36-37). As normas da Companhia de Jesus então em vigor, estabeleciam que cada Provincial poderia admitir na Ordem, durante o triênio de seu mandato, até 12 noviços nascidos na Província. Verificou-se que no triênio de Simão de Vasconcellos (1655-1658) foram admitidos 26 noviços nascidos no Brasil e no de Baltasar de Sequeira (1658-1662) foram admitidos 18 noviços (Leite, 2000, v. 7, p. 37). A notícia sobre a restrição ao ingresso na Companhia de Jesus de pessoas nascidas no Brasil foi rapidamente disseminada entre a população da Bahia (Salvador) provocando indignação. Tomando conhecimento do fato, o Visitador reuniu em 14 de agosto os padres nascidos no Brasil responsabilizando-os pela divulgação na cidade de assuntos internos da Companhia e advertindo-os de que a regra 38 proibia isso. No dia seguinte fez o mesmo com os irmãos coadjutores nascidos no Brasil. O Provincial do Brasil naquele período era o padre José da Costa que estava em visita às províncias do sul. Quando retornou, em 20 de setembro de 1663, tomou conhecimento das ocorrências e resolveu abrir um processo de deposição do Visitador com o apoio de outros padres. Pelas regras da Companhia o processo de deposição deveria contar com a convocação de seis padres consultores12 e professos13 mais antigos da Província presentes e a deposição só ocorreria mediante cinco votos. José da Costa afastou três padres mais antigos – Belchior Pires, Sebastião Vaz e Luiz Nogueira – como suspeitos à Província do Brasil e convocou os padres Jacinto de Carvalhais, Simão de Vasconcellos, Manuel da Costa, João Luiz, Agostinho Luiz e Barnabé Soares para tratar da deposição do Visitador. No dia 22 de setembro de 1663 o Provincial tornou público, no Colégio e na cidade, que o visitador “cessara no seu ofício ‘por justas causas’” (Leite, 2000, v. 7, p. 37-39). O padre Domingos Barbosa foi o notário dos 12 Os consultores são padres professos que formam um grupo de até quatro membros, de caráter consultivo, que assessoram o Provincial ou o Superior de uma Casa (Leite, 2000, v. 1, p. 13). 13 Os religiosos da Companhia de Jesus podiam pertencer a quatro categorias: coadjutor temporal formado, coadjutor espiritual formado, professo de três votos e professo de quatro votos. Os três últimos eram padres. No fim do noviciado os irmãos faziam os três votos da religião (pobreza, castidade e obediência) que eram simples porém perpétuos. Eram chamados de primeiros votos e ligavam o candidato de forma perpétua à Companhia de Jesus sem que esta tivesse obrigação de incorporá-lo. Após um período, em geral de dez anos faziam-se os últimos votos, de coadjutor ou solenes. Alguns padres professos podiam ser chamados para a profissão solene do quarto voto, o de obediência ao papa, o que ocorria, em geral, após sete anos dos últimos votos (Leite, 2000, v. 2, p. 393-394). 36 processos, organizados pelo Provincial, contra o Visitador, contra os padres Belchior Pires, Sebastião Vaz e Manuel Carneiro, bem como do processo a favor de Simão de Vasconcellos. Simão de Vasconcellos em carta ao Provincial José da Costa, em 6/10/1663, defendese relacionando as obras que realizou e anexa várias cartas. Com a mesma data existe nos arquivos da Companhia de Jesus em Roma uma declaração de Vasconcellos comentada por Serafim Leite nos seguintes termos: Em como o Visitador Jacinto de Magistris assentara consigo não responder à ordem do P. Geral sobre esta questão [censura da Chronica], sem irem primeiro os pareceres dos Doutores; e depois respondeu; e, ignorando que o Padre Vasconcelos o soubesse, negou com juramento que tivesse escrito; Vasconcelos aduz os testemunhos jurados do P. João Leitão e Ir. Manuel Luiz, que viram a resposta autógrafa de Visitador. (É a carta do P. de Magistris, de Lisboa 4 de Abril de 1663, Gesù, 703). (Leite, 2000, v. 9, p. 182) Este resumo esclarece o aspecto que apontamos anteriormente sobre o envio, por Vasconcellos, dos pareceres dos Doutores sobre a Chronica, em 9/4/1663, ou seja, apenas cinco dias após a carta do Visitador Magistris ao Geral sobre a censura à Chronica. O Visitador Magistris submeteu ao Geral documento mostrando a nulidade do processo de deposição que também foi assinado pelos padres Belchior Pires, Sebastião Vaz e João de Paiva. Magistris retornou a Lisboa ainda em 1663. O Geral dos jesuítas, em carta de 4/10/1664, decidiu que a deposição do Visitador foi indevida, sem validade, e privou os sete padres que o depuseram de voz ativa e passiva, para os cargos de Superior, Consultor e Congregação Provincial (Leite, 2000, v. 7, p. 39). Jacinto de Magistris, no entanto, apesar de manter-se com o título de Visitador da Província do Brasil, retornou às Índias, em 1665, aonde veio a falecer em 1668 (Leite, 2000, v. 7, p. 40). As penas de privação de voz imposta aos padres que participaram da deposição foram suspensas em 1667, e posteriormente, Simão de Vasconcellos e Jacinto de Carvalhais foram designados Reitores e José da Costa nomeado Provincial pela segunda vez (Leite, 2000, v. 7, p. 58-59). A deposição do Visitador Jacinto de Magistris foi considerada por Serafim Leite como “o mais grave episódio da vida interna da Companhia, no período que estudamos, desde a chegada em 1549 até a sua saída em 1760” (Leite, 2000, v. 7, p. 43) e que, possivelmente, foi a única ocorrida naquela época em toda a Companhia. O conteúdo suprimido da Chronica pela censura, os sete últimos parágrafos das Noticias, será analisado em outro capítulo, porém é evidente que o ato de censura propriamente dito foi uma demonstração de autoridade e de poder do Visitador Jacinto de 37 Magistris perante os jesuítas portugueses. Sua decisão fez com que o Superior Geral voltasse atrás na autorização assinada para publicação da Chronica e aceitasse a censura do Visitador. A Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, publicada em 1663, ainda pode ser encontrada em livrarias especializadas em livros raros e antigos como, por exemplo, a RICHARD C. RAMER14, em Nova York (USA), que tem um exemplar anunciado pelo preço de US$ 15000. Houve uma segunda edição da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil quase simultânea em Lisboa e no Rio de Janeiro, no século XIX. A edição do Rio de Janeiro, em dois volumes, apresenta duas datas 1864 e 1867, e foi impressa às expensas de Francisco Antonio Martins, bibliotecário da Biblioteca Fluminense. A publicação brasileira inclui introdução e notas do cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (Moraes, 1983, v. 2, p. 890), e segundo Serafim Leite, é uma “edição defeituosa e incompleta” (Leite, 2000, v. 9. p. 176). A edição de Lisboa, organizada por Innocencio Francisco da Silva, também em dois volumes, foi publicada em 1865. Ao seu conteúdo original foi acrescentada a reprodução de algumas cartas do padre Manuel da Nóbrega. Innocencio inclui uma advertência preliminar onde informa que o motivo da publicação se deve a “extrema raridade a que têm chegado entre nós os exemplares da Chronica”, além de ser “uma das mais notáveis e estimadas no seu gênero” (Vasconcellos, 1865). Sobre a Chronica de 1663, Innocencio ainda afirma que a obra possui uma impressão “magnífica e para aquele tempo luxuosa edição no formato de folio grande” (Vasconcellos, 1865), com trinta e três por vinte e três centímetros. Podemos acrescentar ao comentário de Innocencio, a qualidade e beleza da diagramação da obra. A terceira edição da Crônica da Companhia de Jesus (Vasconcelos, 1977), foi organizada a partir da segunda edição de 1864, editada pelo cônego Joaquim C. F. Pinheiro, e publicada em dois volumes, em 1977. Essa edição não inclui o poema à Virgem do padre José de Anchieta, e apresenta muitos erros alguns dos quais relacionamos em trabalho recente (Araujo, 2003). Apesar da censura, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil teve uma publicação, independente da Chronica, no ano de 1668. Sob o título aos que lerem dessa edição, o autor informava que o Capitão Francisco Gil de Araujo, a sua custa, mandou que “se estampasse em tomo distincto da Chronica, pera com maior facilidade se dar a conhecer a todos esta parte da America, deuendo por este modo ao zeloso intento deste Senhor os Leitores o passatẽpo, o Brasil a fama” (Vasconcellos, 1668). 14 RICHARD C. RAMER, Old & Rare Books, 225 East 70th Street, New York, N.Y. 10021. Informações disponíveis em: http://www.livroraro.com/, acessado em: 29/07/2002. 38 Da mesma forma que a Chronica de 1663, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de 1668, apresentam uma excelente diagramação como podemos comprovar (figura 2). O livro foi impresso in-quarto, com vinte por quinze centímetros. Figura 2: Noticias de 1668. Uma segunda edição das Noticias, com o título Noticias curiosas, e necessarias sobre o Brazil, foi impressa em 1824, pela Imprensa Nacional, sendo extremamente rara e mais difícil de encontrar do que a edição de 1668, segundo Rubens Borba de Moraes (Moraes, 1983, v. 2, p. 890). Ainda conforme Moraes, ela apresenta dimensões de vinte por quatorze centímetros e cento e oitenta e três páginas. Como parte das comemorações dos quinhentos anos dos descobrimentos portugueses, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP) editou em 2001 as Notícias curiosas e necessárias do Brasil (Vasconcelos, 2001), de Simão de Vasconcellos, com organização de Luis A. de Oliveira Ramos. Nessa edição o organizador incluiu em anexo os sete parágrafos censurados, com a informação de que foram elaborados a partir de microfilme obtido na Biblioteca Vittorio Emanuele, em Roma (Vasconcelos, 2001, p. 165). O texto das Notícias, segundo o organizador, foi fixado “a partir de cópia manuscrita, existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e da cópia impressa por João da Costa, em 39 1668, comparadas com a versão do P. Serafim Leite, SJ, editada em 1977” (Vasconcelos, 2001, p. 165). A informação de que Serafim Leite editou a Crônica de 1977 é incorreta uma vez que ele apenas escreveu a introdução, onde lemos: “A Crônica reimprimiu-se no Rio em 1864 e em Lisboa em 1865, sem conhecimento uma da outra. A primeira é defeituosa e incompleta” (Vasconcelos, 1977, p. 14). No prefácio dessa edição de 1977 recolhemos o seguinte: “Esta edição, no entanto, foi organizada sobre o texto de outra bem mais antiga, de 1864” (Vasconcelos, 1977, p. 9), assim, a edição da Crônica da Companhia de Jesus, de 1977, é uma reedição daquela edição, repetindo as palavras de Serafim Leite, “defeituosa e incompleta” de 1864. Outro problema relacionado as fontes da edição de 2001 das Notícias, refere-se ao manuscrito15 existente na Biblioteca Nacional sobre o qual já tratamos anteriormente (Araujo, 2003). Esse manuscrito, provavelmente do século XVII, teve como fonte as Noticias, copiadas da edição original da Chronica de 1663 ou das Noticias de 1668. A demonstração dessa afirmação é simples e baseia-se na duplicação da numeração do parágrafo 14 do livro II, no verso da folha 53 e na folha 54 do manuscrito16. Essa duplicação prova que o copista não percebeu que o parágrafo 12, na edição original da Chronica de 1663 e das Noticias de 1668, está duplicado e que ele atribuiu na cópia ao segundo parágrafo de número 12 o número 13. Assim, para corrigir o seu erro duplicou o parágrafo de número 14 para, a partir desse ponto, manter a correspondência da numeração. Dessa forma, o manuscrito é uma obra posterior a impressão da Chronica, em 1663, e das Noticias, em 1668, e pode apresentar outras falhas ou erros do copista. Assim, constatamos que duas das três fontes utilizadas no estabelecimento do texto da edição de 2001 das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil não são confiáveis. Dentre as diversas edições das Noticias devemos selecionar uma delas como referência para este trabalho. Nesse sentido, a edição da Crônica de 1864 e a sua versão mais recente de 1977, bem como a edição das Notícias de 2001, apresentam diversos erros sendo o mais freqüente a substituição de letras maiúsculas por minúsculas como pode ser constatado na comparação a seguir. Devido a duplicação do parágrafo 12, do livro II das Noticias na edição original da Chronica de 1663 e das Noticias de 1668, os parágrafos posteriores desse livro apresentam numeração defasada de uma unidade em relação as edições mais recentes. 15 Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, localização: 19, 1, 18. A organização das folhas do manuscrito está incorreta devido a erro na encadernação, possivelmente, ocorrido durante o processo de restauração. Assim, a numeração das folhas, feita posteriormente, não segue a ordem correta das páginas do texto. 16 40 Dessa forma, o parágrafo 103, do livro II, nas publicações originais corresponde ao parágrafo 104 das edições mais recentes. Livro II das Noticias – edição de 1668 103. Por conclusaõ deste liuro, & descripção do Brasil, em que temos escrito as qualidades da terra, o temperamento do clima, a frescura dos aruoredos, a variedade de plantas, e abundancia de frutos, as heruas medicinaes, a diuersidade de viuentes, assi nas agoas, como na terra, & aues tão peregrinas, & mais prodigios da natureza, com que o Autor della enriqueceo este Nouo mundo: poderiamos fazer comparação, ou semelhança, de algũa parte sua; com aquelle Paraíso da terra, em que Deos Nosso Senhor, como em jardim, poz a nosso primeiro pay Adam, conforme a outros diligentes Autores, Horta, Argençola, Ludouico, Romano, & o nosso Padre Eusebio Nieremberg nas suas Questões naturaes, liu. 1. cap. 35. (Vasconcellos, 1668, p. 289-290) Livro II das Notícias – edição de 2001 104. Por conclusão deste livro, e descrição do Brasil, em que temos escrito as qualidades da terra, o temperamento do clima, a frescura dos arvoredos, a variedade de plantas, e abundância de frutos, as ervas medicinais, a diversidade de viventes, assim nas águas, como na terra, e aves tão peregrinas, e mais prodígios da natureza, com que o autor dela enriqueceu este Novo Mundo: poderíamos fazer comparação, ou semelhança, de alguma parte sua, com aquele paraíso da terra, em que Deus Nosso Senhor, como em jardim, pôs a nosso primeiro pai Adão, conforme a outros diligentes autores, Horta, Argençola, Ludovico Romano, e o nosso padre Eusébio Nieremberg nas suas Questões Naturais, liv. 1, cap. 35. (Vasconcelos, 2001, p. 158) Nesse parágrafo da terceira edição das Notícias (2001), o Autor da natureza é escrito com letra minúscula, da mesma forma que Paraíso, por um jesuíta e numa página que, como vimos, foi originalmente censurada e reimpressa. As diferenças dessas edições, da Crônica de 1977 e das Notícias de 2001, em relação ao discurso original de Simão de Vasconcellos podem levar o leitor a interpretações equivocadas. Sem intenção de fazer uma relação exaustiva das diferenças entre essas edições, apresentamos a seguir algumas das alterações que encontramos no livro I das Noticias, publicado na Crônica de 1977: Parágrafo Edição de 1977 9 40 43 52 53 60 63 63 71 103 primeiro tropel 30 léguas nação Potiguar, que como os tapuias ao longe dele Desta serra corrente é uma baía espaçosa de 18 léguas parece contada de algum grande rei navios de qualquer parte Estas eternas aparências como se vê nos pés Edição de 1668 primeiro tropheo 20 legoas nação Potigoàr, que com os Tapuyas ao longo delle Desta serra correndo he uma bahia espaçosa de oito legoas parece coutada de algum grande Rey nauios de qualquer porte Estas externas apparencias como se vè no pez [piche] No nosso enfoque teórico, seguindo a concepção de Mikhail Bakhtin (1999), entendemos o livro como um “ato de fala impresso”, como parte de uma interação verbal entre o autor e seus leitores ou ouvintes. Nesse enfoque, o discurso do autor é uma enunciação 41 dirigida a um interlocutor ou, na sua ausência, ao representante médio do grupo social a que se destina o discurso (Bakhtin, 1999, p. 112-113). Assim, o discurso é uma enunciação, perfeitamente delimitada no espaço e no tempo, e elaborada segundo valores que constituem a ideologia da sua produção. O leitor, destinatário da enunciação, resgata a significação usando seus conhecimentos e experiências, estabelecendo uma compreensão ativa (Bakhtin, 1999, p. 131-132). Essa interação pode ser resumida da seguinte forma: [...] autor e leitor estão continuamente trabalhando, consumindo e produzindo incessantemente. Se, do lado do autor, o trabalho físico e pessoal cessa com a conclusão do texto, o trabalho cristalizado nas contradições entre significação e expressão, seleção e combinação, conservação e renovação será recomeçado a cada novo ato de leitura. O leitor, de sua parte, renovará, com seu trabalho produtivo, o trabalho de produção de significações do autor. Ele também procederá por seleção e combinação, ao decidir ente significações divergentes que se fazem possíveis; poderá acatar a força da tradição das significações naturais ou inovar, dando passagem a novas experiências ainda não verbalizadas. Sua leitura igualmente obedecerá a matrizes de valores, que, a cada leitura serão postas em xeque, alargadas ou modificadas, negadas ou reafirmadas, pela força de sentido do texto lido e introjetado. (Ribeiro, 1996, p. 43) Dessa forma, as diferenças existentes nas edições da Crônica de 1864 e 1977, bem como das Notícias de 2001, com relação à edição de 1663 e com relação à edição das Noticias de 1668, nos obrigam a descartar as edições de 1864, 1977 e 2001 como referência, uma vez que nelas houve alteração do discurso originalmente produzido pelo autor e impedem a observância daquela opção teórica no nosso trabalho. Segundo essa abordagem, a escolha da obra de referência ficaria restrita à edição de 1663 da Chronica ou a edição das Noticias de 1668. Podemos considerar essa última como sendo uma segunda edição, uma vez que as Noticias já haviam sido publicadas em 1663 como introdução à Chronica. Sua importância para nossa pesquisa está relacionada ao fato de ter sido impressa quando o autor ainda estava vivo e apresentar pequenas correções em relação ao original como, por exemplo, no parágrafo 26 do livro 1 onde na edição de 1663 temos “o terço he hum grao” e na de 1668 “o terço, & hum grao”, ou como no parágrafo 103 do mesmo livro quando o autor, na edição de 1663, faz referência a “fulos”, como uma tonalidade de cor, e que na edição de 1668 é corrigida para “fulvos”. As correções e alterações não poderiam ser maiores por dois motivos, o primeiro deve-se aos problemas que levaram a censura do texto quando da publicação da Chronica em 1663, e o segundo relacionado à autorização para a publicação que foi dada pelo Provincial jesuíta “por ser obra jà aprouada, & ao Prelo mandada” (Vasconcellos, 1668), ou seja, a autorização foi dada para que fosse reimpressa. Por esse motivo nossa escolha como obra de referência recaiu na edição de 1668 das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil. 42 Devido à dificuldade, ou mesmo impossibilidade, em se obter no Brasil exemplar, para consulta, da edição das Noticias de 1668, elaboramos uma edição diplomática do livro que se encontra em anexo, no formato digital. Essa edição foi produzida a partir de microfilme do exemplar existente na John Carter Brown Library, da Brown University (Providence, RI – USA). A edição diplomática das Noticias permitiu que encontrássemos algumas palavras que pesquisadas no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0, apresentam datação posterior à das Noticias (1668) ou da Chronica (1663). Uma pesquisa de lexicologia utilizando as Noticias poderá ser útil na datação de verbetes. Alguns exemplos são: Livro/Parágrafo 1/117 1/124 1/125 1/132 1/136 2/80 2/85 Palavra arrancha covo esbrugado fevara queixaes ovados verdeal Datação (Houaiss) arranchar - 1665 1712 1708 não encontrada17 queixal -1720 ovado - 1720 1721 Complementando o texto das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na sua edição de 1668, devemos acrescentar os sete parágrafos que foram censurados e que encontram-se catalogados na Biblioteca Vittorio Emanuele, em Roma, sob o título “Paraíso na América”. Esses parágrafos chegaram aos nossos dias, graças ao p. Luís Nogueira que os incorporou ao seu parecer, elaborado em 17 de abril de 1663. Esses parágrafos foram publicados por Sérgio Buarque de Holanda, a partir da terceira edição de Visão do Paraíso, como anexo, e encontram-se reproduzidos no Anexo 1. Encontram-se igualmente reproduzidos no Anexo 1 os sete parágrafos censurados, publicados por Luis A. de Oliveira Ramos na edição das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil de 2001, cujo texto apresenta algumas diferenças em relação aos parágrafos publicados por Sergio Buarque de Holanda. As Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na edição de 1668, acrescida dos sete parágrafos censurados, constituem o discurso que passaremos a analisar nos próximos capítulos. 17 Encontramos o verbete fêvera, com o significado de fibra ou filamento vegetal, no dicionário de Candido de Figueiredo (1925). 43 3. A construção do território do Brasil O texto de as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, conforme já mencionado, foi publicado pela primeira vez em 1663 como introdução à Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, no formato fólio, grande, com 33 cm por 23 cm e cerca de 6 cm de espessura, enquanto o livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, publicado em 1668, apresenta formato pequeno, com 20 cm por 15 cm. Esses formatos físicos dos livros podem ser associados aos dois tipos de leitura documentados na famosa carta, escrita em dezembro de 1513 por Maquiavel para o seu amigo Francesco Vettori, parcialmente reproduzida por Anthony Grafton (1999, p. 5), na qual o missivista faz referência aos livros no formato fólio, grandes e volumosos, próprios para leitura em gabinete ou biblioteca, e os livros pequenos que podem ser facilmente transportados e lidos em qualquer lugar. O formato do livro das Noticias é destacado por Simão de Vasconcellos que informa “aos que lerem” que “quiz o Senhor Capitam Francisco Gil de Araujo, se estampasse em tomo distincto da Chronica, pera com maior facilidade se dar a conhecer a todos esta parte da America, deuendo por este modo ao zeloso intento deste Senhor os Leitores o passatẽpo, o Brasil a fama” (Vasconcellos, 1668)18. O autor pretendia com essa publicação atingir um público maior do que aquele que freqüentava os gabinetes de leitura e bibliotecas. Essa posição de Vasconcellos é explicitada na décima dedicada: AO PROTECTOR DESTE LIVRO que pera fazer ao Brasil mais conhecido, o mandou imprimir em Tomo mais pequeno. D E C I MA . DIminuir, & mais crecer O mesmo sogeito implica, Que quem diminue fica Muito à quem de maior ser: Mas isto vem a vencer 18 As páginas pré-textuais de Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de 1668, não são numeradas. 44 O Brasil fauorecido De vòs, pois quando sobido O quereis ao mor louuor, Fazeis que em Tomo menor Cresça em ser mais conhecido. (Vasconcellos, 1668) A diminuição das dimensões do livro estava, portanto, claramente vinculada ao objetivo de Vasconcellos disseminar amplamente seu discurso sobre o Novo Mundo, propagando suas teses sobre a terra e seus habitantes. Diminuir as dimensões do livro de modo que o Brasil “cresça em ser mais conhecido”. A divulgação do Brasil, nos séculos XVI e XVII, pode ser entendida como parte do processo de formação territorial que tem “uma faceta de estrita elaboração ideológica, resultando em constructos discursivos que comandam tanto a consciência dos lugares quanto a sua produção material” (Moraes, 2000, p. 22). Nesse sentido, o território “é um produto socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo humano com o espaço que o abriga” (Moraes, 2000, p. 18). Assim, o processo de construção da imagem da terra do Brasil pode ser associada ao processo de formação do território do Brasil. Na época da publicação das Noticias, o Novo Mundo já não era tão novo, contando com mais de 160 anos da descoberta. Durante esse intervalo de tempo houve uma profusão de relatos sobre a terra descoberta, oriundos das mais diversas fontes e circunstâncias, que constituíram-se nas bases de construção do Novo Mundo no imaginário europeu. Essa construção imaginária se fez de forma múltipla e diferenciada segundo o conteúdo e qualidade tanto do relato, como da capacidade, capital simbólico e imaginação do autor e do leitor ou ouvinte. A maioria desses discursos, transmitidos principalmente pela via oral, acabaram se perdendo, restando apenas aqueles poucos relatos escritos que fornecem hoje uma amostra frugal do volume dos discursos que circularam naquela época. Entendemos essa construção da imagem do Brasil como um processo que pretendemos resgatar a partir de alguns relatos desde a descoberta do Novo Mundo até as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos. A descoberta da América em 1492 por Cristóvão Colombo, estimulou a associação entre a nova terra e o Paraíso terreal perdido que circulava no imaginário europeu do século XV. A busca pelo paraíso perdido chegou a transformar-se numa obsessão para Colombo em sua terceira viagem ao novo continente. Ele havia lido19 no Imago mundi, de Pierre d’Ailly 19 Na realidade Colombo não apenas leu mas fez várias anotações nas margens do seu exemplar, que foram publicadas por Edmond Buron [BURON, Edmond. Ymago Mundi de Pierre D’Ailly, Cardinal de Cambrai et Chancelier de l’Université de Paris (1350-1420). Texte latin et tradution française des quatre traités 45 (1350-1420)20, que o “Paraíso terrestre devia estar localizado numa região temperada além do equador” (Todorov, 1999, p. 19). Colombo concluiu o relato da sua terceira viagem ao Novo Mundo da seguinte forma: “[...] eu afirmo que esse rio [Orinoco] emana do Paraíso terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso terrestre [...]” (Colombo, 2001, p. 191). Américo Vespúcio, usando uma forma mais sutil e elaborada do que Colombo ao escrever, sugere a possibilidade de que, estando no Novo Mundo, “pensavamo essere nel Paradiso terrestre”21 (Pozzi, 1993, p. 59) e “infra me pensavo esser presso al Paradiso terrestre”22 (Pozzi, 1993, p. 86) ou “se nel mondo è alcun paradiso terrestre, senza dubbio dee esser non molto lontano da questi luoghi”23 (Pozzi, 1993, p. 121). Comparando os textos de Colombo com os de Vespúcio, Tzvetan Todorov concluiu que o primeiro escrevia documentos enquanto que o segundo literatura (Todorov, 1991, p. 259). Podemos acrescentar a essa conclusão de Todorv a forma pela qual Colombo e Vespúcio disseminaram seus discursos. Os documentos de Colombo eram cartas enviadas aos reis de Espanha e os seus diários que, por sua natureza, tinham uma circulação restrita. Já os textos de Vespúcio foram elaborados para publicação, primeiro em latim, língua erudita da época, e posteriormente traduzidos para o alemão, flamengo, italiano e francês. O sucesso dos textos de Américo Vespúcio pode ser avaliado pela rápida disseminação através da Europa do seu Mundus novus: Il successo del Mundus novus, infatti, fu travolgente. In poche settimane fu ristampato a Venezia, Parigi, Augusta, Norimberga, Anversa, Colonia, Strasburgo, Rostock e poi tradotto in tedesco e in fiammingo. Tradotto in italiano, fu inserito nella raccolta Paesi novamente retrovati e Novo Mondo da Alberico Vespuzio florentino intitulato curata da Fracanzio da Montalboddo (Vicenza 1507), che a sua volta fu ristampata almeno sette volte nel Cinquecento, tradotta in latino da Arcangelo Madrignano (Milano 1508) e in francese da Mathurin Redouer de Sendacour (Paris 1515). Fu dunque un vero bestseller. Diversa da quella pubblicata da Francazio è la versione italiana introdotta dal Ramusio nel primo volume (Venezia 1550) della raccolta Delle navigazione e viaggi: contiene un passo erudito non presente nell’originale latino e in qualche punto ricorda la traduzione tedesca.24 (Pozzi, 1993, p. 13-14) cosmographiques de D’Ailly et des notes marginales de Christophe Colomb. Ètude sur les sources de l’auteur, 3 vols., Paris, 1930] (Holanda, 1994, p. 337). 20 Sempre que possível indicaremos o ano de nascimento e de morte do autor, para que o nosso leitor possa situar o período de produção das obras. 21 pensavamos estar no Paraíso terrestre (Pozzi, 1993, p. 59). 22 comigo pensava estar próximo ao Paraíso terrestre (Pozzi, 1993, p. 86). 23 se no mundo há algum paraíso terrestre, sem dúvida está não muito distante deste lugar (Pozzi, 1993, p. 121). 24 O sucesso do Mundus Novus, de fato, foi irresistível. Em poucas semanas foi impresso em Veneza, Paris, Augusta, Nuremberg, Anversa, Colonia, Estrasburgo, Rostock e depois traduzido em alemão e em flamengo. Traduzido em italiano, foi inserido na coletânea Paesi novamente retrovati e Novo Mondo da Alberico Vespuzio florentino intitulato organização de Fracanzio da Montalbodo (Vicenza 1507), que por sua vez foi impressa pelo menos sete vezes nos Quinhetos, traduzida em latim por Arcangelo Marignano (Milano 1508) e em francês por 46 A popularidade dos textos de Vespúcio certamente influiu para que na publicação da Cosmographiae introductio, do geógrafo Martin Waldseemüller, em 1507, fosse incluído o Quattuor navigationes de Américo Vespúcio. Além disso, Waldseemüller no nono capítulo da Cosmographiae sugere América como o nome do novo continente (Pozzi, 1993, p. 15). É interessante observar que no mapa existente no apêndice dessa mesma Cosmografia o nome América “riferito solamente a una parte del continente sudamericano (l’attuale Brasile)”25 (Pozzi, 1993, p. 15). Para Américo Vespúcio, o paraíso não era uma obsessão mas apenas um recurso discursivo (uma hipérbole) na exaltação do Novo Mundo. Cristóvão Colombo, por sua vez, acredita na existência do Paraíso terrestre e julga tê-lo vislumbrado apesar de não alcançá-lo. A descoberta do Brasil, em 1500, foi imediatamente comunicada ao rei de Portugal através de carta de Pero Vaz de Caminha e do relato feito pelos tripulantes do navio que retornou a Portugal transportando a carta. Nesse documento oficial, publicado pela primeira vez por Aires de Casal em 1817 (Casal, 1976), a descoberta é tratada como “achamento” e o autor faz uma referência, ao longo do texto, sobre a descrição da terra: Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, darse-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (Pereira, 1999, p. 58) Nessa descrição da terra, Caminha concluiu que o melhor a fazer com ela é “salvar esta gente”, ou seja, a terra não chegara a impressionar Caminha tanto quanto os seus Mathurin Redouer de Sendacour (Paris 1515). Foi portanto um verdadeiro best-seller. Diferente daquela publicação de Francazio é a versão italiana introduzida por Ramusio no primeiro volume (Venezia 1550) da coletânea Delle navigazioni e viaggi: contém um passo erudito não presente no original latino e em alguns pontos recorda a tradução alemã. (Pozzi, 1993, p. 13-14) 25 refere-se apenas a uma parte do continente sul-americano (o atual Brasil). (Pozzi, 1993, p. 15) 47 habitantes que produzem no escrivão uma viva impressão como atestam alguns trechos da carta: A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. (Pereira, 1999, p. 35) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. (Pereira, 1999, p. 40) E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (Pereira, 1999, p. 40-41) Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tinta preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha. (Pereira, 1999, p. 45) [...] os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. (Pereira, 1999, p. 47) Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. (Pereira, 1999, p. 57) Na interpretação que Joaquim Pedro de Andrade faz da descrição de Pero Vaz de Caminha, para o roteiro do filme Casa-Grande, Senzala & Cia, publicado em 2001, aparece como título da primeira seqüência – Terreal Paraíso –, que tem o seguinte começo: O filme abre com a descrição, feita por Pero Vaz de Caminha, em carta a El-Rei, das imagens de incrível beleza vistas pela primeira vez pelos europeus em 22 de abril de 1500, no Brasil. Na tela, e não necessariamente na ordem em que vão enumeradas abaixo, aparecem as seguintes imagens e cenas: 48 “Índios e índias de belo aspecto, um tanto avermelhados, com bons rostos e narizes, bem feitos de corpo. Andam nus, quase todos. [...] Uma das moças estava tingida de azul escuro, de baixo a cima. Era muito certa e bem feita.” “[...] Estavam entre eles cinco mulheres novas que, assim nuas, não pareciam mal. Andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega toda tingida de azul escuro e tinha o resto de sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas e também os colos dos pés. [...]” (Andrade, 2001, p. 28-29) Na perspectiva de Joaquim Pedro de Andrade, essas imagens são associadas ao Paraíso na segunda seqüência, quando o rei de Portugal lê a carta de Caminha: EL-REI (histriônico, eufórico, divertindo-se muito e lendo em voz alta um trecho da carta): E olhem só o que escreve aqui o safado do Caminha: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; suas vergonhas eram tão nuas, tão altas, graciosas e cerradinhas, tão limpas das cabeleiras que, de nós as muito olharmos, em nada se envergonhavam, porque estavam com tanta inocência descobertas que não havia nisso vergonha nenhuma.” (Para o clérigo): Padre, é o terreal paraíso! (Andrade, 2001, p. 30) Apesar de pequenas diferenças em relação ao texto da Carta de Pero Vaz de Caminha, publicada por Paulo Roberto Pereira (1999), podemos constatar que as “imagens de incrível beleza” a que Andrade se refere, não se aplicam propriamente à terra, mas à beleza das nativas da terra descoberta que, da mesma forma, impressionam El-Rei que concluí eufórico terem descoberto o “terreal paraíso”. Um paraíso onde foram deixados dois degredados e para onde fugiram dois grumetes da esquadra. Fábio Pestana Ramos explica que os grumetes tinham entre nove e dezesseis anos e eram recrutados entre órfãos, filhos de famílias pobres, e rapto de crianças judias. As naus portuguesas do século XVI tinham em média 150 tripulantes, dentre os quais cerca de 18% eram crianças, ou seja, eram embarcadas mais ou menos 27 crianças por nau, e a taxa de mortalidade nesses navios estava em torno de 39% (Ramos, 2004, p. 20-23). O trabalho executado por um grumete era igual ao dos marinheiros, porém, o soldo que recebiam era menos que a metade, mesmo sendo encarregados de trabalhos perigosos. O grumete era alojado no convés do navio, a céu aberto, e, como todos os embarcados recebia a mesma ração que os marinheiros, a menos do pote diário de vinho: “uma libra e meia [aproximadamente 690 g] de biscoito por dia (...) e um pote de água, uma arroba [aproximadamente 14,7 kg] de carne salgada por mês e alguns peixes secos, cebolas e manteiga” (Ramos, 2004, p. 23-26). Além da alimentação não ser variada, sua qualidade era péssima 49 [...] o “biscoito era bolorento e fétido, todo roído pelas baratas”. A carne salgada encontrava-se, constantemente, em estado de decomposição. A água potável, igualmente podre, exalava um incrível mau cheiro por ser armazenada em tonéis de madeira, onde, em poucos dias, proliferavam inúmeros microorganismos, responsáveis por constantes diarréias (Ramos, 2004, p. 26). Devido ao tipo de dieta alimentícia era comum aos embarcados serem acometidos de inanição e de escorbuto. Como era raro existir um médico a bordo para tratar dos doentes, a solução era a aplicação de sangrias por barbeiros, ou por aqueles que tivessem disposição para o serviço, o que em geral acarretava a morte do paciente, contribuindo para o alto percentual de mortalidade dos embarcados. A vida dura dos tripulantes desses navios, que não excluía castigos físicos, como chibatadas, e era agravada no caso dos grumetes pelo risco permanente de abuso sexual por parte dos marinheiros que em muitos casos eram criminosos, que tinham a pena de morte comutada pelo serviço marítimo (Ramos, 2004, p. 27). Além dos riscos de saúde, qualquer um poderia cair no mar, o que era sinônimo de morte porque, em geral, a vítima não sabia nadar, ou a tripulação não percebia que alguém havia caído no mar, ou ainda devido ao tempo necessário para a nau ser manobrada para retornar e tentar resgatar a vítima. Os corsários e piratas eram um outro perigo permanente porque, no caso de captura, assassinavam ou deixavam a deriva os adultos, prendiam os nobres para obter resgate e escravizavam as crianças para servirem em suas embarcações ou vendê-las nos mercados piratas das Antilhas ou da Ásia (Ramos, 2004, p. 39-40). Por último, havia o risco de naufrágio e nesse caso a salvação era o único batel da nau, com espaço para setenta pessoas, ou o esquife com lugar para mais vinte pessoas, o que significa que numa embarcação com 800 pessoas apenas noventa poderiam continuar navegando e tentar se salvar. Nessa hora, não havia uma regra fixa que estabelecesse quem se salvaria e o capitão e os oficiais, armados, é que faziam a seleção (Ramos, 2004, p. 40-47). Os grumetes que sobreviviam a primeira viagem podiam tentar a ascensão social através de uma carreira na marinha. Outros grumetes preferiam fugir do navio na primeira oportunidade que encontrassem. Dessa forma, não causa espanto que dois grumetes tenham abandonado a esquadra de Cabral e preferido ficar no paraíso. Silvio Castro, de forma semelhante a Joaquim Pedro de Andrade, articula a carta da descoberta do Brasil ao Memorial do Paraíso, romance do Descobrimento do Brasil, que é um suposto diário de Pero Vaz de Caminha para sua “amada e infeliz filha” cujo marido, Jorge de Osório, fora degredado para ilha de São Tomé. Caminha, na carta enviada a Portugal relatando a descoberta da Terra de Santa Cruz pede ao Rei D. Manuel I: E pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. (Pereira, 1999, p. 59) O suposto diário de Caminha teria sido escrito já no Brasil, após a decisão de Pedro Álvares Cabral de se enviar uma carta ao Rei relatando o descobrimento. O diário escrito 50 quando “já lá se vão tantos dias de minha partida” e onde o autor confessa que “muitas coisas que te direi serão puras lembranças. Outras, verdades” (Castro, 1999, p. 11-12). O diário é construído com trechos da carta de Caminha, intercalado com nove atos da “Festa para o Príncipe Venturoso”. No diário o autor apresenta uma grande euforia pelo reencontro do paraíso: 25 de abril, sábado, pela manhã São tantas e tamanhas as emoções desse encontro maravilhoso, minha querida Maria, que nem mesmo o cansaço das azáfamas de bordo nos mantêm por muito tempo no refrigério do sono. Mal o sol se apresenta – e aqui o sol parece ser mais brilhante e a luz mais resplandecente – e todos nós já estamos prontos para novos conhecimentos. Vivese, minha caríssima filha, num estado de alegria constante, como se as nossas existências tivessem tomado um novo sentido e as nossas almas, uma diversa intensa vibração. É como descobrir o paraíso que essa mesma alma conhecera outrora. O mesmo paraíso perdido e que agora ressurge. Vivemos a cada momento a emoção do paraíso recuperado. Doce, docíssimo é o espírito desse reencontro, minha Maria. [...]. (Castro, 1999, p. 82) No nono e último ato da “Festa para o Príncipe Venturoso”, um dos dois grumetes que desertou da esquadra de Cabral para ficar no Brasil diz aos dois degredados deixados na terra descoberta: Este é o nosso paraíso. Aqui seremos felizes e iremos viver até a mais longa velhice. Estaremos sempre com todas estas belezas; amaremos as lindas mulheres daqui que nos levam a gozar os maiores prazeres da existência; comeremos dos melhores frutos e das melhores carnes; respiraremos este doce ar e tocaremos sempre esta terra quente e fértil. [...] É aqui o paraíso! (Castro, 1999, p. 122-123) Essa conclusão inicial, decorrente da aparente inocência dos nativos, está, provavelmente, associada à descrição de Adão e Eva no Paraíso do Gênese “Ambos estavam nus, o homem e sua mulher, sem sentirem vergonha um do outro” [Gn 2:25] 26. Esse primeiro encantamento, fundado na idéia de uma pureza paradisíaca dos nativos do Novo Mundo, foi rapidamente substituído, quando a colonização foi iniciada, por uma associação da imagem da terra sempre verde com o que seria o Paraíso. A publicação por Montalboddo em 1507 da Relação do Piloto anônimo reforça o discurso de Pero Vaz de Caminha, quando descreve os índios e a beleza das índias: [...] eles são homens cor de bronze e vão nus sem vergonha alguma, e os seus cabelos são compridos, e têm a barba raspada; e as pálpebras dos olhos e sobrancelhas são pintadas com figuras de cores brancas, pretas e azuis e vermelhas; trazem os lábios da boca, isto é, aqueles de baixo, furados e ali colocam um osso grande como enfeite, e outro trazem, quem 26 Nas referências à Bíblia Sagrada são indicados, entre colchetes, o livro, capítulo e versículo (s). 51 uma pedra azul e quem outro verde, e chupam pelos ditos buracos. As mulheres semelhantemente vão nuas sem vergonha, e são belas de corpo e trazem os cabelos compridos. (Castro, 2000, p. 101) Trinta e um anos depois de Caminha, Pêro Lopes de Sousa em viagem que fez ao Brasil na armada comandada por seu irmão Martim Afonso de Sousa, entre 3 de dezembro de 1530 e 24 de novembro de 1532, escreveu um diário, ou roteiro, conhecido como Relação da navegação de Pêro Lopes de Sousa (1989). Nesse roteiro, as índias da Bahia continuavam formosas: Domingo, 13 dias de Março [de 1531], pela manhã, éramos de terra 4 léguas; e, quando nos achegámos mais a ela, reconhecemos ser a baía de Todos-os-Santos, e ao meio-dia entrámos nela. [...] Os principais homens da terra vieram fazer obediência ao capitão Irmão e nos trouxeram muito mantimento e fizeram grandes festas e bailos, amostrando muito prazer por sermos aqui vindos. O capitão Irmão lhes deu muitas dádivas. A gente desta terra é toda alva, os homens muito bem dispostos e as mulheres mui formosas, que não hão nenhuma inveja às da Rua Nova de Lisboa. (Sousa, 1989, p. 97-98) A terra do Brasil, em especial a parte do sul, deixara igualmente forte impressão no explorador que em vários trechos tece elogios à sua beleza e à qualidade de seu clima: Sábado [14/10/1531], no quarto de alva, acalmou o vento e fui a terra firme por nos fazerem muitos fumos. A terra é mui formosa: muitos ribeiros de água e muitas ervas e flores como as de Portugal. (Sousa, 1989, p. 108) Domingo, 24 do dito mês [novembro de 1531], [...] A terra é mais formosa e aprazível que eu jamais cuidei ver: não havia homem que se fartasse de olhar os campos e a formosura deles. Aqui achei um rio grande; ao longo dele, tudo arvoredo, o mais formoso que nunca vi; e antes que chegasse ao mar um tiro de besta se sumia. (Sousa, 1989, p. 113-114) Quinta-feira, 5 de Dezembro [1531], [...] A terra da banda sueste me parecia, onde era firme, a mais formosa que os homens viram, toda cheia de flores, e o feno de altura de um homem. (Sousa, 1989, p. 117) Quinta-feira, 12 de Dezembro [1531], [...] Esta terra dos Carandins é alta ao longo do rio, e no sertão é toda chã, coberta de feno que cobre um homem. Há muita caça nela de veados e emas e perdizes e codornizes; é a mais formosa e mais aprazível que pode ser. Eu trazia comigo alemães e italianos e homens que foram à Índia e franceses: todos eram espantados da formosura desta terra, e andávamos todos pasmados que nos não lembrava tornar. Aqui neste esteiro tomamos muito pescado de muitas maneiras. Morre tanto neste rio e tão bom que só com o pescado sem outra cousa, se podiam manter: ainda que um homem coma dez libras de peixe, em as acabando de comer parece que não comeu nada e tornara a comer outras tantas. O ar deste rio é tão bom que nenhuma carne nem pescado apodrece, e era na força do Verão que matávamos veados e trazíamos a carne dez, doze dias sem sal e não fedia. A água do rio é mui saborosa: pela manhã é quente e ao meio-dia é muito fria; quanta homem mais bebe, quanto melhor se acha. Não se podem dizer nem escrever as cousas deste rio e as bondades dele e da terra. (Sousa, 1989, p. 118-119) Segunda-feira, 23 de Dezembro [1531], [...] Não se pode escrever a formosura desta terra: os veados e as gazelas são tantos, e emas e outra alimárias tamanhas como potros 52 novos e do parecer deles, que é o campo todo coberto desta caça, que nunca vi em Portugal tantas ovelhas nem cabras como há nesta terra de veados. À tarde me tornei para o bergantim. (Sousa, 1989, p. 122) Em seqüência, Pero de Magalhães Gândavo (1980) publica, em 1576, a Historia da Provincia Santa Cruz, em que afirma no prólogo que o faz motivado pelo fato de não ter havido até então quem tivesse escrito a história da Província, que havia sido descoberta há setenta e seis anos. Nesse período de setenta e seis anos de convivência com os índios, houve um esmaecimento do deslumbramento inicial de Caminha como podemos constatar pela freqüência dos vocábulos usados para designar as indígenas: Vocábulo Fêmea (s) Índia (s) Moça (s) Mulher (es) Carta de Caminha 0 0 7 4 História de Gândavo 7 10 2 12 Fonte: Textos digitalizados obtidos no acervo digital da Biblioteca Nacional (http://www.bn.br). Por este quadro podemos verificar que as nativas observadas por Pero Vaz de Caminha foram descritas como moças e mulheres, e, “setenta e tantos anos” depois, por Pero de Magalhães Gândavo, predominantemente, como mulheres, índias e fêmeas. O discurso de Gândavo é uma “propaganda de imigração”, na ótica de Capistrano de Abreu, fundado na facilidade de obtenção de terras e na qualidade e bondade dessa terra: [...] he esta Provincia sem contradição a melhor pera a vida do homem que cada huma das outras de America, por ser commummente de bons ares e fertilissima, e em gram maneira deleitosa e aprazivel á vista humana. O ser ella tam salutifera e livre de enfermidades, procede dos ventos que geralmente cursão nella: os quaes são Nordestes e Sues, e algumas vezes Lestes e Lessuestes. E como todos estes procedão da parte do mar, vem tam puros e coados, que nam somente nam dânam; mas recream e acrescentam a vida do homem. (Gândavo, 1980, p. 81) Poderíamos até concordar com o caráter publicitário desse discurso se não fossem as referências do autor, em outro capítulo, aos animais e bichos venenosos, cuja propagação era estimulada por um clima adverso: Outros muitos animaes e bichos venenosos ha nesta Provincia, de que nam trato, os quaes são tantos em tanta abundancia, que seria historia mui comprida nomea-los aqui todos, e tratar particularmente da natureza de cada hum, havendo, como digo, infinidade delles nestas partes, aonde pela disposição da terra, e dos climas que a senhorêão, nam pode deixar de os haver. Porque como os ventos que procedem da mesma terra se tornem inficionados das podridões das hervas, matos e alagadiços geram-se com a influencia do Sol que nisto concorre, muitos e mui peçonhentos, que per toda a terra estão esparzidos, e a 53 esta causa se crião e achão nas partes maritimas, e pelo sertão dentro infinitos da maneira que digo. (Gândavo, 1980, p. 109-110) Se estas informações não fossem suficientes para desestimular a imigração, o capítulo dedicado a descrição da crueldade dos índios certamente faria com que o possível candidato à imigração pensasse duas vezes antes de embarcar numa nau para a Colônia. O capítulo começa assim: Huma das cousas em que estes Indios mais repugnam o ser da natureza humana, e em que totalmente parece que se extremam dos outros homens, he nas grandes e excessivas crueldades que executam em qualquer pessôa que podem haver ás mãos, como nam seja de seu rebanho. Porque nam tam somente lhe dam cruel morte em tempo que mais livres e desempedidos estam de toda paixão; mas ainda depois disso, por se acabarem de satisfazer lhe comem todos a carne usando nesta parte de cruezas tam diabolicas, que ainda nellas excedem aos brutos animaes que nam tem uso de razam nem foram nascidos pera obrar clemencia. (Gândavo, 1980, p. 136) Independente desse aspecto negativo sobre os nativos do Brasil e das contradições sobre a qualidade e bondade da terra, Gândavo oferece ao seu leitor uma imagem do território cujo contorno é desenhado como uma “harpa”: Esta provincia Santa Cruz està situada naquella grande America, uma das quatro partes do mundo. Dista o seu principio dous graos da equinocial para a banda do Sul, e dahi se vai estendendo para o mesmo sul atè quarenta e cinco graos. De maneira que parte della fica situada debaixo da Zona torrida e parte debaixo da temperada. Està formada esta Provincia á maneira de huma harpa, cuja costa pela banda do Norte corre do Oriente ao Ocidente e está olhando direitamente a Equinocial; e pela do Sul confina com outras Provincias da mesma América povoadas e possuidas de povo gentilico, com que ainda nam temos communicaçam. E pela do Oriente confina com o mar Oceano Africo, e olha direitamente os Reinos de Congo e Angola até o Cabo de Boa Esperança, que he o seu opposito. E pela do Occidente confina com as altissimas serras dos Andes e fraldas do Perú, as quaes sam tam soberbas ensima da terra que se diz terem as aves trabalho em as passar. (Gândavo, 1980, p. 81) O Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa (1971), foi ofertado a Cristóvão de Moura, da corte de Espanha, quando o autor buscava privilégio para explorar as minas do sertão do rio S. Francisco, para dar continuidade ao trabalho de exploração do seu falecido irmão, João Coelho de Sousa, que lhe havia deixado, como herança, um roteiro para as minas. Gabriel Soares de Sousa embarcou para Europa em agosto de 1584, após fazer seu testamento, e retornou ao Brasil saindo de Lisboa em abril de 1591, com carta régia de capitão-mór e governador da conquista e descobrimento do Rio de São Francisco. Veio a falecer no Brasil, durante a expedição, em 1592, sem ter chegado ao seu destino (Sousa, 1971, p. 15-18). 54 O seu Tratado circulou pela Europa, em cópias manuscritas, como atesta Varnhagen quando diz que analisou cerca de vinte códices ao elaborar a edição de 1851 (Sousa, 1971, p. 12). Essas cópias circularam apesar da advertência do autor, no último capítulo do Tratado, sobre o [...] perigo em que está de chegar à noticia dos luteranos parte do conteúdo neste Tratado, para fazerem suas armadas, e se irem povoar esta província, onde com pouca fôrça que levem de gente bem armada se podem senhorear dos portos principais, porque não hão de achar nenhuma resistência nêles, pois não têm nenhum modo de fortificação, de onde os moradores se possam defender nem ofender a quem os quiser entrar. (Sousa, 1971, p. 352) Mesmo assim, Varnhagen afirma que já havia cópia do Tratado em Portugal em 1599, porque Pedro de Mariz o cita e copia na segunda edição dos Diálogos (Sousa, 1971, p. 13). Ainda segundo Varnhagen, fr. Vicente de Salvador na sua História do Brasil também utilizou o Tratado, assim como “Simão de Vasconcelos aproveitou do capitulo 40 da 1ª parte as suas Notícias 51 a 55” (Sousa, 1971, p. 13). Essa última afirmação deve ser complementada com a informação de Vasconcellos, existente no parágrafo 51 das Noticias, de que “tresladarei aqui hum Roteiro” (Vasconcellos, 1668, p. 56), sem esclarecer quem é o autor, porém grafando no texto e na margem a palavra Roteiro com letra maiúscula, que é assim indicado como a fonte da informação desse parágrafo e dos seguintes. O translado do Roteiro não faz referência à fazenda e ao nome de Gabriel Soares de Sousa, que pode ter sido omitido deliberadamente por Vasconcellos ou em virtude do exemplar do Roteiro, por ele utilizado, não conter essas informações: capítulo XL do Tratado [...] E Antônio Dias Adôrno, quando foi a estas pedras, as recolheu por terra, atravessando pelos tupinaés e por entre os tupinambás, e com uns e outros teve grandes encontros, e com muito trabalho e risco de sua pessoa chegou à Bahia e fazenda de Gabriel Soares de Sousa (Sousa, 1971, p. 90). parágrafo 55 do livro 1 das Noticias [...] Capitão Antonio Dias Adorno com parte dos companheiros caminhou por terra, talando as brenhas, & atrauessando naçoẽs de Indios varias, Tupinaẽs, Tupinambàs, & outras: teue com ellas grandes encontros até chegar à Bahia, onde deu conta de tudo o succedido, & entregou ao Gouernador os haueres que achàra. [...] (Vasconcellos, 1668, p. 59-60). Na perspectiva de Gabriel Soares de Sousa a terra do Brasil, e, em especial, a da Bahia, é fértil, tem bons ares e riquezas, como atestam as passagens selecionadas a seguir: [...] terra é quase tôda muito fértil, mui sadia, fresca e lavada de bons ares e regada de frescas e frias águas. (Sousa, 1971, p. 39) [...] fertilidade da terra, bons ares, maravilhosas águas e da bondade dos mantimentos. (Sousa, 1971, p. 127) 55 [...] baía, que é a maior e mais formosa que se sabe pelo mundo, assim em grandeza como em fertilidade e riqueza. Porque esta baía é grande e de bons ares, mui delgados e sadios, de muito frescas e delgadas águas, e mui abastada de mantimentos naturais da terra, de muita caça, e muitos e mui saborosos pescados e frutas. (Sousa, 1971, p. 141) Esta terra, na visão realista de Gabriel Soares de Sousa, apesar das suas qualidades tinha também seus defeitos e não era propriamente um paraíso: Como não há ouro sem fezes, nem tudo é a vontade dos homens, ordenou Deus que entre tantas coisas proveitosas para o serviço dêle, como fêz na Bahia, houvesse algumas imundícias que os enfadasse muito, para que não cuidassem que estavam em outro paraíso terreal, de que diremos daqui por diante, começando no capítulo que se segue das lagartas. (Sousa, 1971, p. 265) Os quarenta capítulos dedicados por Gabriel Soares de Sousa aos índios fornecem importantes informações etnográficas que aumentaram o conhecimento sobre eles e, ao mesmo tempo, a distância do discurso do autor à perspectiva edênica do discurso de Pero Vaz de Caminha sobre os nativos do Brasil. Nesse mesmo período do fim do século XVI o padre jesuíta Fernão Cardim, que embarcou para o Brasil como secretário do Visitador Cristóvão Gouveia, enviava carta ao Provincial em Portugal detalhando a viagem e as atividades do Visitador no Brasil entre março de 1583 e outubro de 1585. Nessa longa carta, encontramos numa das primeiras páginas a descrição do Colégio da Companhia de Jesus na Bahia (Salvador) e a informação de que seus membros “sustentam-se bem de mantimentos, carne e pescados da terra; nunca falta um copinho de vinho de Portugal, sem o qual se não sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos fracos [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 144-145). Esta primeira informação sobre a qualidade da terra e seus mantimentos está em contradição com os elogios do restante da carta que, escrita seqüencialmente, evidencia a mudança da opinião inicial do autor durante a sua permanência no Brasil. Em 1598, Fernão Cardim foi a Roma como Procurador da Província e na volta ao Brasil, em 1601, foi aprisionado por piratas ingleses e levado para Londres. Nessa ocasião levava consigo textos manuscritos que foram publicados, em inglês, por Samuel Purchas, em Londres, em 1625, como parte da coleção Purchas his Pilgrimes, sob o título A Treatise of Brasil written by a Portugal which had long lived there (Cardim, 1980, p. 19), composto pelos textos Do clima e terra do Brasil e do Principio e origem dos indios do Brasil. Rodolfo Garcia, na introdução de Tratados da terra e gente do Brasil, livro que reúne os dois textos e a carta de Fernão Cardim, destaca que nesses escritos o que encanta é o “constante bom humor de que estão impregnados, a vivacidade de narrativa, a graça, o 56 imprevisto das comparações” (Cardim, 1980, p. 20). Podemos citar, complementando a informação de Rodolfo Garcia, três exemplos de expressões com essa característica. No primeiro exemplo, o autor usa a expressão “rasgam muitas sedas e veludos”: E nesta parte padecem muito os da terra, principalmente do Rio de Janeiro até São Vicente, por falta de navios que tragam mercadorias e panos; porém as mais capitanias são servidas de todo genero de panos e sedas, e andam os homens bem vestidos, e rasgam muitas sedas e veludos [grifo nosso]. Porém está já Portugal, como dizia, pelas muitas comodidades que de lá lhe vêm. (Cardim, 1980, p. 57) No segundo exemplo usa as expressões “cabeça dura” e “cabeça mole” na descrição do ritual de morte do prisioneiro, em que o índio bate na cabeça do prisioneiro com a espada de madeira até que “lhe quebra a cabeça, posto que já se viu um que a tinha tão dura, que nunca lha puderam quebrar, porque como a trazem sempre descoberta, têm as cabeças tão duras que as nossas em comparação delas ficam como de cabaças, e quando querem injuriar algum branco lhe chamam cabeça mole [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 99). O terceiro exemplo, corresponde a descrição que o autor faz dos engenhos da Bahia e do recôncavo, da fartura da sua mesa, dos ganhos auferidos pelos seus senhores e de seu modo de vida. Conclui dizendo, de forma espirituosa, que “os pecados que se cometem neles não têm conta; quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem cheio de pecados vai esse doce [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 158). Logo após a chegada ao Brasil, em 1583, Cardim acompanhou o Visitador a uma aldeia indígena e deixou registrado na carta a novidade que foi serem recebidos por “mulheres núas (cousa para nós mui nova) com as mãos levantadas ao Céo” e dizendo em português “louvado seja Jesus Christo” (Cardim, 1980, p. 146). Sua descrição dos índios e seus costumes é mais suave se comparada a descrição de outros cronistas como, por exemplo, Pero de Magalhães Gândavo. A descrição da cerimônia do suplício do prisioneiro, que os dois autores tratam, serve para esclarecer a questão. Enquanto Gândavo pintava, como vimos, a cerimônia com as cores fortes da crueldade do indígena, Cardim descreve o mesmo ritual utilizando um outro enfoque, que foi aproveitado e ampliado por José de Alencar nos seus romances indianistas, o da honra do guerreiro: “de todas as honras e gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários, nem entre eles há festas que cheguem às que fazem na morte dos que matam com grandes cerimônias” (Cardim, 1980, p. 95-96). 57 E da honra do prisioneiro que diz que “muito embora morra, pois muitos tem mortos, e que alem disso cá ficão seus irmãos e parentes para o vingarem, e nisto aparelha-se um para furtar o corpo, que é toda a honra de sua morte” (Cardim, 1980, p. 99). As imagens construídas por Cardim ao longo do texto são, quase sempre, elaboradas através de comparação27 do objeto descrito e outro, possivelmente, conhecido pelo leitor. Na descrição dos animais, por exemplo, o autor compara o veado ao cavalo; as antas “parecem-se com vacas e muito mais com mulas”; os “acutis se parecem com os coelhos de Espanha”; o Sarigué “se parece com as raposas de Espanha”; o tamanduá “é do tamanho de um grande cão”; o tatú “é do tamanho de um leitão”; o coatí “parece-se com os texugos de Portugal”; o tapiti “se parece com os coelhos de Portugal”. Algumas de suas comparações são curiosas e divertidas como a da preguiça que “é animal para ver, parece-se com cães felpudos, os perdigueiros; são muito feios, e o rosto parece de mulher mal toucada; [...]” (Cardim, 1980, p. 25-29). Da mesma forma Fernão Cardim compara as características do Brasil com as da Europa concluindo que: Este Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado e sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem muito com poucas doenças, como de cólica, fígado, cabeça, peitos, sarna, nem outras enfermidades de Portugal; nem falando do mar que tem muito pescado, e sadio; nem das coisas da terra que Deus cá deu a esta nação. (Cardim, 1980, p. 57) Assim, a imagem do Brasil construída por Fernão Cardim é a de uma reprodução nos trópicos da civilização portuguesa em condições naturais ainda melhores. Alguns anos depois, outro jesuíta, padre Jácome Monteiro, como Fernão Cardim também secretário de um Visitador, elaborou a Relação da Província do Brasil, 1610, publicada por Serafim Leite (Monteiro, 2000). Monteiro descreve a terra do Brasil como melancólica: “Está toda a terra coberta de um perpétuo arvoredo o qual nunca perde a folha, e posto que os naturais o achem gracioso, aos que nascemos no Reino serve mais de malenconia, por ser um verde mais escuro e espesso, que de prazer” (Monteiro, 2000, p. 394). Diferente de outros cronistas do período, que descrevem a terra do Brasil no sentido norte-sul, o padre Jácome Monteiro descreve-a no sentido inverso, ou seja, sul-norte como o faz também com os rios (Prata, S. Francisco, Maranhão e Amazonas). Começa sua descrição 27 Cristina Pompa lembra que para os viajantes do século XVI a “observação” da realidade continuou se dando através da mediação dos esquemas culturais familiares ao observador, mediação esta necessária para organizar e até mesmo para perceber os “fatos”, pois a comparação analógica era o único instrumento epistemológico de compreensão cultural. (Pompa, 2003, p. 35) 58 pela capitania de S. Paulo e vai subindo até Itamaracá e o norte, sendo que ao descrever essa última faz referência a uma Relação do padre Luis Figueira (Monteiro, 2000, p. 405), provavelmente tratando-se da Relação da missão do Maranhão, 1607-1608 (Leite, 2000, v. 8, p. 237). Num enfoque diferente, resgatando uma imagem edênica para a terra do Brasil, temos os Diálogos das Grandezas do Brasil (1997). Na sua introdução o Prof. José Antônio Gonsalves de Mello, informa que existem dois manuscritos dos Diálogos, um na Biblioteca Nacional de Lisboa e o outro na biblioteca da Real Universidade de Leiden, na Holanda, sendo o primeiro uma cópia, com data de fins do século XVII, do segundo que o organizador considera “possivelmente, o original (original no sentido de texto final, sem alteração)” (Brandão, 1997, p. XXXV). No prefácio, de Leonardo Dantas da Silva, aos Diálogos obtemos a informação de que o manuscrito “pertencera à Rainha Cristina da Suécia [1626-89], passando desta para o filólogo Isaac Vossius [1577-1649] e posteriormente aos Estados Gerais dos Países Baixos, que o compraram para a Biblioteca da Universidade de Leiden” (Brandão, 1997, p. VIII). Dessa informação podemos deduzir que Isaac Vossius obteve o manuscrito antes de 1649, data de sua morte, e da conversão da Rainha Cristina da Suécia ao catolicismo, provavelmente após 165028, sua abdicação ao trono, em 1654, e instalação da sua corte em Roma, em 1655 (Vieira, 2001, p. 41-43). Os Diálogos registram o ano de 1618 como data de sua elaboração, apresentada no texto29 sem, no entanto, constar alguma informação quanto à sua autoria. Após comparar variado material autobiográfico existente no texto com dados biográficos dos possíveis autores, o organizador indica Ambrósio Fernandes Brandão, como provável autor. Sobre ele, Gonsalves de Mello acrescenta as seguintes informações: Ambrósio Fernandes Brandão, com uma longa e variada experiência brasileira – de cerca de 25 anos, pelo menos, a contar de 1583 a 1597 e de 1607 a 1618, aproximadamente, antes para mais que para menos – e alguns anos de serviço público em Portugal, ao se pôr a escrever os Diálogos das Grandezas do Brasil, contava 63 anos de idade. Os seus estudos, as suas leituras, as suas observações e experiências, as informações e lendas recolhidas de pessoas às vezes ingênuas, outras fideindignas, foram os elementos de que se utilizou na composição de sua obra. (Brandão, 1997, p. XXXI) 28 Neste ano o rei de Portugal d. João IV enviou à Suécia o embaixador José Pinto Pereira cujo confessor e secretário, o jesuíta Antonio de Macedo foi o intermediário entre a Rainha Cristina e a Santa Sé na troca de correspondência que precedeu sua conversão ao catolicismo (Vieira, 2001, p. 42). 29 Quando o autor descreve a Capitania do Rio Grande do Norte diz “Não há nela engenhos de fazer açúcares mais de um até este ano de 1618, por a terra ser mais disposta para pastos de gado, dos quais abunda em muita quantidade, até entrar na Capitania da Paraíba, que lhe está conjunta” (Brandão, 1997, p. 24). 59 Os Diálogos das Grandezas do Brasil apresentam seis diálogos entre dois interlocutores: Brandônio, português com anos de residência no Brasil, e Alviano, recémchegado ao Brasil. Existe, no entanto, uma contradição sobre o tempo de permanência no Brasil do personagem Alviano, que seria um “ser novo ainda neste Estado” (Brandão, 1997, p. 14), ou seja, reinol recém-chegado na época em que o livro teria sido escrito, em 1618, porém numa passagem do segundo diálogo Alviano diz: “vi por próprios olhos neste Brasil, na Vila de Olinda, no ano de 600” (Brandão, 1997, p. 54). Se a segunda afirmação é correta, Alviano estava (ou esteve) no Brasil em 1600, ou seja, dezoito anos antes da época em que os Diálogos foram escritos, não sendo assim “novo” no Estado do Brasil. O argumento geral dos Diálogos consiste em apresentar a terra do Brasil como sendo dotada de uma grande qualidade em contraste com negligência dos seus povoadores. No primeiro diálogo Alviano questiona a riqueza da terra do Brasil afirmando que: [...] ouro, prata e pedras preciosas são somente para os castelhanos e que para eles as reservou Deus; porque habitando nós, os portugueses, a mesma terra que eles habitam, com ficarmos mais orientais (parte onde, conforme a razão devia de haver mais minas), não podemos descobrir nenhuma em tanto tempo quanto há que este nosso Brasil é povoado, descobrindo eles cada dia muitas. (Brandão, 1997, p. 8) A questão levantada por Alviano é reformulada por Brandônio nos seguintes termos: “é necessário que me digais se o ser o Brasil ruim terra é por defeito da mesma terra ou de seus moradores?” Alviano responde que os moradores de uma terra não podem ser culpados pela “maldade da terra”, ao que Brandônio responde, defendendo a qualidade da terra do Brasil, nos seguintes termos: “Pois assim vos enganais, porque a terra é disposta para se haver de fazer nela todas as agriculturas do mundo, pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons céus, disposição do seu temperamento, salutíferos ares e outros mil atributos que se lhe ajuntam” (Brandão, 1997, p. 11). Prosseguindo, Brandônio culpa os moradores pela “negligência e pouca indústria”, ou seja, na sua visão a pouca riqueza da terra era conseqüência direta da qualidade dos moradores da terra, que ele divide em cinco categorias: marítima, mercadores, oficiais mecânicos, assalariados (“que servem a outros por soldada”) e os que tratam da lavoura – os ricos, com terras e títulos de engenhos, e os que plantam mantimentos. A negligência dos moradores do Brasil, na percepção do autor, é devida ao fato de que todos achavam que voltariam logo para o reino e, por este motivo, investiam todo o seu tempo e recursos na produção, que gerava recursos que seriam desfrutados quando para lá retornassem. Dessa forma, afirma, “não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar 60 árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal” (Brandão, 1997, p. 12-14). Brandônio conclui o primeiro diálogo da seguinte forma: “toda esta grande costa, assim no sertão como nas fraldas do mar, tem excelentíssimo céu e goza de muito bons ares, sendo muito sadia e disposta para a conservação da natureza humana” (Brandão, 1997, p. 45). Alviano contesta esta afirmação oferecendo assim o tema do segundo diálogo: Isto entendo eu pelo contrário, porque se os antigos não se enganaram, a maior parte desta costa do Brasil está situada na zona tórrida, que foi julgada por inabitável por muito quente; e por este respeito os moradores da Costa de Guiné e da mais costa oposta a esta do Brasil gozam de ruins ares, que causam muitas doenças nela. E se isto é verdade, não vejo causa por onde os que habitam o Brasil, estando no mesmo paralelo e debaixo do mesmo zênite, puderem gozar de bons ares e céus, faltando tudo isto à outra que lhe corresponde. (Brandão, 1997, p. 45) O segundo diálogo tem início com Alviano resgatando a questão apresentada pelos antigos filósofos sobre a habitabilidade da zona tórrida, na qual encontava-se a maior parte da costa do Brasil. Brandônio afirma que Ptolomeu, Lucano e Averroes eram da opinião de que a zona tórrida era inabitável e Pedro Paduense, Alberto Magno e Avicena eram contrários a ela, isto é, acreditavam na possibilidade dessa zona ser habitável. Na sua argumentação Brandônio busca desculpar os filósofos que condenavam a zona tórrida usando como argumento o fato deles não terem experiência desta zona e os “ventos frescos que nela de ordinário cursam, exceto em pequeno espaço da costa, a que chamamos de Guiné, os quais são poderosos para resfriarem os ares, de maneira que causam um temperamento tão singular para a humana natureza, que tenho por sem dúvida ser esta zona mais sadia e temperada que as demais” (Brandão, 1997, p. 49). Prossegue afirmando que “não faltam autores que querem afirmar estar nesta parte situado o paraíso terreal” (Brandão, 1997, p. 50). Nesse segundo diálogo, o autor insiste, de forma repetitiva, sobre os bons céus e ares além do temperamento da terra que produzem índios robustos e longevos. Compara ainda a qualidade da terra do Brasil com Portugal e Espanha e com Angola e Guiné, concluindo serem as terras do Brasil “mais sadias e de melhor temperamento que todas as demais” (Brandão, 1997, p. 69-70). Diz ainda, que na terra não há peste (Brandão, 1997, p. 74) nem tremor de terra (Brandão, 1997, p. 82). No que se refere às doenças da terra, cita algumas e destaca uma epidemia de bexiga, entre os escravos, nos anos de 1616 e 1617, com grande mortandade (Brandão, 1997, p. 73). No quarto diálogo após descrever os mantimentos da terra, Brandônio compara os frutos do Brasil com os dos campos Elísios e com os do paraíso maometano: 61 Mas já que imos tratando dos frutos que os campos produzem, quero vos mostrar que são tais estes brasilenses, que lhes ficam muito atrás os Elísios, tão celebrados dos poetas em seus fingimentos, e da mesma maneira o fabuloso paraíso do torpe Mafamede, do qual põem a felicidade em que corriam por eles rios de mel e de manteiga; porque estes nossos campos, com serem naturais e não sonhados por se fabricarem na idéia, correspondem gozando daquelas cousas que, com tanto estudo de fingimentos, se representaram. Porque nestes nossos campos achareis rios de mel excelentíssimo e de manteiga maravilhosa, de que se aproveitam seus moradores com pouco trabalho. (Brandão, 1997, p. 146) Diz também, que o mel existente nas árvores, criado pelas abelhas, e o sumo do piquiá, podem ser chamados de “verdadeiros rios de mel e não os fabulosos maometanos” (Brandão, 1997, p. 146), sendo complementado com a observação de Alviano que esses são “os verdadeiros campos Elísios fingidos dos poetas” (Brandão, 1997, p. 147). Assim, podemos concluir que Brandão ao exaltar a terra do Brasil, aproxima sua imagem à de um paraíso. Ambrósio Fernandes Brandão oferece ainda uma informação interessante sobre o reflexo da descoberta do Brasil em Portugal quando diz que um astrólogo de muito nome, computando o tempo e hora em que se descobriu o Brasil e do tempo e hora que el-Rei soube da descoberta, que “a terra novamente descoberta havia de ser uma opulenta província, refúgio e abrigo da gente portuguesa”, complementando que a isto não se devia dar crédito e que Alviano roga que “não permita Deus que padeça a nação portuguesa tantos danos que venha o Brasil a ser o seu refúgio e amparo” (Brandão, 1997, p. 15). A citação exibe o prestígio, na época, do astrólogo numa sociedade em que a “astrologia desempenha um papel muito maior do que a astronomia – parente pobre, como disse Kepler” (Koyré, 1982, p. 47). As palavras de Brandão sugerem um desígnio ou profecia que, apesar da prece de Alviano, veio a realizar-se em 1808, diante da iminência da invasão de Lisboa por Napoleão, e transformou, de fato, o Brasil no refúgio e abrigo da nação portuguesa. Sob o aspecto do amparo, convém lembrar que os sucessivos ciclos econômicos do período colonial (açúcar, ouro), constituíram-se, sem dúvida, no principal suporte econômico e financeiro ao reino português. Poucos anos depois de Brandão, o frei Vicente do Salvador na sua História do Brasil fez um discurso cuja característica principal é a denúncia do descaso dos reis de Portugal e dos povoadores com relação à terra do Brasil. Dos reis afirma que só desejam “colher as suas rendas e direitos” (Salvador, 1982, p. 57) e dos povoadores vindos de Portugal e os que aqui nasceram que “usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída” (Salvador, 1982, p. 58). 62 Para estabelecer os limites da terra do Brasil utiliza, como outros cronistas do período colonial, as informações do cosmógrafo Pedro Nunes reafirmando que o Brasil [...] começa além da ponta do rio das Amazonas, da parte do oeste, no porto de Vicente Pinson que demarca em dois graus da linha equinocial pera o Norte, e core pelo sertão até além da baía de São Matias, por quarenta e quatro graus, pouco mais ou menos, pera o sul, e por esta medida (diz o mesmo cosmógrafo) tem o Brasil pela costa mil e quinhentas léguas. Porém, dado que assim seja na teoria, a prática e não chegar o Brasil mais que até o rio da Prata, que está em trinta e cinco graus, e contudo ainda tem mais de mil léguas por costa. (Salvador, 1982, p. 59) Esses limites permitem ao autor desenhar o território do Brasil, de forma similar àquela apresentada por Gândavo, ou seja, como uma harpa: [...] é a terra do Brasil da figura de uma harpa, cuja parte superior fica mais larga ao norte correndo do oriente ao ocidente, e as colaterais, a do sertão do norte a sul, e da costa do nordeste a sudoeste, se vão ajuntar no rio da Prata em uma ponta à maneira de harpa. (Salvador, 1982, p. 59) Sobre a profundidade do território do Brasil para o interior, frei Salvador não esclarece, porém acrescenta a conhecida crítica aos portugueses: [...] da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (Salvador, 1982, p. 59) Essa crítica não procede se considerarmos a expansão territorial do Brasil, iniciada em meados do século XVI, que partindo principalmente da capitania de São Paulo foi fator decisivo para a alteração dos limites do território do Brasil fixado no Tratado de Tordesilhas (Holanda, 1989, v.1, p. 273-296). O frei Vicente do Salvador retoma no seu discurso a possibilidade apresentada inicialmente por Ambrósio F. Brandão nos Diálogos das grandezas do Brasil, do Brasil servir de “refúgio e abrigo da gente portuguesa” no caso de uma invasão: [...] se alguma hora acontecesse (o que Deus não permita) ser Portugal entrado e possuído de inimigos estrangeiros, como há acontecido em outros reinos, de sorte que fosse forçado passar-se el-rei com seus portugueses a outra terra, a nenhuma o podia melhor fazer que a esta. (Salvador, 1982, p. 145) Depois de apresentar os motivos pelos quais o rei de Portugal não deveria se deslocar para as ilhas ou para a Índia, mas sim para o Brasil que 63 [...] como ser grande, fica em tal distância e tão fácil à navegação, que com muita facilidade podem cá vir e tornar quando quiserem ou ficar-se de morada, pois a gente que cabe em menos de cem léguas de terra que tem todo Portugal bem caberá em mais de mil que tem o Brasil, e seria este um grande reino, tendo gente, porque adonde há as abelhas há o mel, e mais quando não só das flores, mas das ervas e canas se colhe mel e açúcar, que de outros reinos estranhos viriam cá buscar com a mesma facilidade a troco das suas mercadorias, que cá não há. E da mesma maneira as drogas da Índia, que daqui fica mais vizinha e a viagem mais breve e fácil, pois a Portugal não vão buscar outras coisas senão estas, que pão, panos e outras coisas semelhantes não lhe faltam em suas terras. Mas toda esta reputação e estima do Brasil se acabou com el-rei D. João, que o estimava e reputava. (Salvador, 1982, p. 145) Podemos perceber nos discursos desses cronistas do período colonial que a primeira imagem que fazem do território, construída principalmente a partir da inocência encontrada na nudez dos seus habitantes e na exuberância da natureza tropical, é de tão grande deslumbramento que se confunde freqüentemente com a imagem do paraíso perdido. A ocupação e colonização do Brasil introduzem modificações também nesses discursos que passam a oferecer, em doses variáveis, imagens menos idealizadas, mas sempre destacando a beleza e grandiosidade de sua natureza e que refletem, algumas vezes, a realidade de um território ocupado para servir aos interesses mercantilistas do absolutismo português e que, portanto, não se propõe a cuidar da terra e muito menos de sua gente, que passa a ser vista como hostil, no momento em que tenta se defender da invasão e da imposição da escravidão. Há pouca variação quanto à imagem do contorno da terra do Brasil, inicialmente estabelecida pelo cosmógrafo Pedro Nunes, e reiteradas vezes reproduzida pelos cronistas, assim como a forma de harpa proposta por Gândavo. Associado a essa imagem, devemos destacar a proposição nos Diálogos das grandezas do Brasil, de Brandão, e na História do Brasil, de Vicente do Salvador, do Brasil como o local de um possível “refúgio e abrigo da gente portuguesa”. Essa era, em poucas palavras, a imagem do território do Brasil quando Simão de Vasconcellos publicou a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, em 1663, tendo como introdução as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil. O desenho da terra do Brasil esboçado por Simão de Vasconcellos nas Noticias parte de uma forma geométrica simples: Sua forma he triangular pella parte do Norte, & logo pella do Oriente que respeita aos Reynos de Congo, & Angola, he lauada das agoas do Oceano. Traz seu principio de junto ao rio das Almazonas, ou graõ Pará, pella terra que chamão dos Caribás, da banda do Loéste, desde o riacho de Vicente Pinçon, que demora debaixo da linha Equinocial, & vai acabar (segundo o que está de pósse) em outro grande rio, a que chamão da Prata, 64 & saõ duas faces do triangulo, & a terceira vem a fazer a linha do sertão. (Vasconcellos, 1668, p. 29) Deste desenho geométrico da terra do Brasil observe-se a informação do autor, quando faz referência ao limite sul, quando diz que vai acabar no rio da Prata “segundo o que está de pósse”. Essa forma geométrica do Brasil já havia sido descrita por Pero de Magalhães Gândavo e por frei Vicente do Salvador, que afirmavam que a forma do Brasil era semelhante a de uma harpa. Nesse desenho, triangular ou de harpa, as duas faces do triângulo correspondentes ao litoral estão perfeitamente definidas pelo oceano, já a terceira face, a linha do sertão, tinha então um contorno impreciso. Os mapas, indispensáveis aos navegadores, no período dos descobrimentos eram elaborados em Lisboa nos Armazéns da Guiné e Índia, onde ficavam “guardados, sob o mais rigoroso sigilo, os padrões cartográficos que iam sendo atualizados pelas informações dos pilotos que regressavam das muitas viagens; estes pilotos tinham a obrigação de ali restituir as cartas náuticas e instrumentos que recebiam antes de cada viagem” (Guedes, 2004, p. 38). No século XVI, nos Paises Baixos, surgiram algumas produções cartográficas de alta qualidade como o Atlas (1569), de Gerard Mercator, e o Theatrum orbis terrarum (1570), de Abraham Ortelius (Guedes, 1999, p. 67). Em 1592, Jan Huygen van Linschoten que havia viajado de Portugal para a Índia como secretário do arcebispo de Goa, retornou aos Paises Baixos e publicou três livros: Diário das navegações dos portugueses no Oriente (1595); Itinerário, viagem ou navegação de Jan Huygen van Linschoten para o Oriente ou Índia Portuguesa (1596); e Descrição de todas as costas de Guinea, Manicongo, Angola, Monomatapa, ... seguida de uma descrição da Índia Ocidental (1596). Esses mapas e informações, juntamente com as cartas náuticas adquiridas por Petrus Plancius do cartógrafo portugues Bartolomeu Lasso, permitiram que os holandeses iniciassem suas grandes navegações e constituíssem as Companhias das Índias, Oriental em 1602 e Ocidental em 1621 (Guedes, 1999, p. 68-70). Os mapas desse período mostram o continente americano com limites e contornos variáveis segundo a sua origem e finalidade, afinal “os mapas são instrumentos políticos” (Magalhães, 1998, p. 42). Um desses mapas, incluído no livro Itinerario, de Jan Huygen van Linschoten, publicado em Amesterdam, em 1596, apresenta uma deformação com o conseqüente aumento da extensão da terra “PERVVIANA” (figura 3). 65 Figura 3: Mapa de Jan Huygen van Linschoten (KLOOSTER, 1997, p. 31) 66 Nos parágrafos que se seguem à afirmação da forma triangular do Brasil, Simão de Vasconcellos estabelece um contorno para a terra do Brasil, de característica inovadora, através da alteração da origem e o curso dos rios que seriam os limites do território. O ponto de partida de Vasconcellos são os limites ao norte e ao sul, respectivamente os rios Amazonas e Prata: São como duas chaues de prata, ou de ouro, que fechaõ a terra do Brasil. Ou saõ como duas columnas de liquido crystal, que a demarcão entre nós, & Castella, naõ só por parte do maritimo, mas tambem do terreno. Pòdem tambem chamarse dous gigantes, que a defendem, & de marção em comprimento, & circuito, como veremos. Porque he cousa aueriguada, & praticada entre os naturaes do interior do sertaõ, que estes dous rios, nã sómente presidem ao mar com a vastidaõ de seus corpos, & bocas; mas tambem com a extensaõ de seus braços abarcaõ a circunferencia toda da terra do Brasil, fazendo nella por hũa parte hum semicirculo de mais de mil, & quinhentas legoas; & por outra mais ao largo, outro, de mais de duas mil, com taõ desusadas marauilhas, como logo veremos. (Vasconcellos, 1668, p. 30) A associação que Vasconcellos faz do rio da Prata e do rio Amazonas como chaves de prata ou ouro, foi utilizada quase um século depois por Antonio de Santa Maria Jaboatão, em Novo Orbe Seráfico Brasílico (1761), quando diz, segundo Laura de Mello e Souza, que o Brasil é “recluso por duas chaves: uma de prata, demarcando-lhe a porção sul; outra de ouro, delimitando-lhe o norte” (Souza, 1986, p. 38). Vasconcellos, nesse trecho, deixa claro para o seu leitor que os rios Amazonas e Prata demarcam entre nós e Castela e, além disso, abarcam toda a circunferência da terra do Brasil, como dois gigantes que a defendem e demarcam. Na nota marginal desse parágrafo, Vasconcellos acrescenta a indicação de que os leitores vejam “& muito em especial a relaçaõ do Padre Christouaõ da Cunha da Cõpanhia de IESV” (Vasconcellos, 1668, p. 30), referindo-se ao livro Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, de Cristóbal Acuña, publicado em 1641 e, possivelmente, recolhido após sua impressão por motivo de segurança, o que o tornou, desde sua publicação, num livro muito raro, como podemos constatar na nota bibliográfica de Rubens Borba de Moraes (Moraes, 1983, v. 1, p. 11). Essa referência de Vasconcellos à “relação” de Cristóbal de Acuña não é a única nas Noticias, existindo outra em nota marginal do parágrafo 26 (Vasconcellos, 1668, p. 34) e, no parágrafo 32, a afirmação sobre o rio Amazonas de que “fez delle hum Tratado inteiro o Padre Christouaõ da Cunha da Companhia de IESV que o nauegou, & explorou com extraordinario trabalho, & cuidado” (Vasconcellos, 1668, p. 39-40). Essas referências são suficientes para indicar que Vasconcellos teve acesso ao livro de Acuña. Se acrescentarmos a análise comparativa de Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (Holanda, 1994, p. 67 136-137), que não deixa dúvida quanto ao fato de se encontrarem nos capítulos LXIII, LXX, e LXXII do livro Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, de Acuña , as fontes do parágrafo 31 das Noticias de Vasconcellos. Dessa forma, podemos ter a certeza de que Vasconcellos leu o livro de Cristóbal de Acuña e utilizou parte dele na elaboração das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil. No final do livro de Acuña, encontramos um Memorial “apresentado ao Real Conselho das Índias sobre o dito descobrimento depois da rebelião de Portugal”, no qual o autor pede que o rei de Espanha envie ordem a Chancelaria de Quito para a ocupação do rio das Amazonas. A “rebelião de Portugal” que Acuña faz referência foi a Restauração do trono português em 1640. A ocupação do rio Amazonas, defendida por Acuña junto ao Real Conselho das Índias, traria oito benefícios para a Real Coroa da Espanha que o autor relaciona. No quarto item, Acuña trata do fechamento da porta de saída para que “nenhum dos habitantes do Peru tente lançar-se com os tesouros às correntes deste rio, para escapar aos impostos que por Cartagena se pagam” (Acuña, 1994, p. 175). O quinto item relaciona como benefício da ocupação espanhola impedir-se o “comércio e a comunicação que os portugueses, moradores na boca desse rio, tanto desejam entabular com os de sua nação que vivem no Peru” (Acuña, 1994, p. 176). No sexto item sustenta que reduzindo as nações que habitam as ilhas e margens do rio à sua obediência, poder-se-ia por freio e castigar “o mal visto atrevimento dos portugueses, e fique livre a boca deste rio, para que por ela prossiga a conquista começada já pelas entradas de Quito” (Acuña, 1994, p. 176). No sétimo item acena para a possibilidade de conversão dos índios pois “só com eles se beneficiarão as muitas minas e demais vantagens que a fertilidade da terra propicia em suas nações, dever-se-á, qual outro novo Peru, aceitar logo sua conquista, e mais ainda com a facilidade com que aqui se apresenta” (Acuña, 1994, p. 177). No oitavo e último item Acuña aponta para uma possível aliança entre os portugueses e holandeses: [...] se ocorresse que os portugueses junto à foz deste rio (já que tudo se pode presumir de sua pouca cristandade, e menor lealdade) quisessem, ajudados por algumas nações belicosas que têm sob seu julgo, penetrar rio acima até chegarem às regiões povoadas do Peru ou ao Novo Reino de Granada, e mesmo sendo verdade que em algumas partes encontrarão resistência, em muitas outras esta seria bem pequena, por atingir povoados com escassez de gente, e por fim pisarão naquelas terras vassalos desleais de Vossa Majestade, que em reinos tão distantes bastaria esse nome de desleais para causar gravíssimos danos. E se, aliados aos holandeses, como estão muitos no Brasil, tentassem semelhante atrevimento, já se vê a preocupação que poderiam dar. (Acuña, 1994, p. 178) 68 O discurso de Cristóbal de Acuña sobre a rebelião dos portugueses e a sua defesa da necessidade de se ocupar o rio Amazonas, oferece-nos uma nova possibilidade de leitura do discurso de Simão de Vasconcellos sobre o rio Amazonas. Nesse sentido vamos analisar como Vasconcellos articula o seu discurso, utilizando o discurso de Acuña como base, adaptando-o ao seu interesse. Em outras palavras, Vasconcellos cria uma versão para a origem e percurso do rio Amazonas calcado no discurso de Acuña. Sobre a origem do rio Amazonas, Acuña diz que cada terra tenta atribuir a origem do rio aos seus domínios relacionando alguns como aqueles que indicam a origem do Amazonas no rio Marañon, outros no rio Caquetá, na Nova Granada, outros ainda por várias partes do Peru. O autor, no entanto, situa a origem do rio Amazonas numa lagoa a oito léguas da cidade de São Francisco de Quito (Acuña, 1994, p. 70-71). Para Vasconcellos a origem dos rios Amazonas e Prata, segundo os índios versados no sertão, fica numa localidade não muito específica, em “hũa alagoa famosa, ou lago profundo, de agoas que se ajuntaõ das vertentes das grandes serras do Chilli, & Perú” (Vasconcellos, 1668, p. 34). Essa lagoa famosa, origem desses rios, é citada por outros autores que precedem Vasconcellos como, por exemplo, o padre Jácome Monteiro em sua relação de 1610: Entre estes Rios, o da Prata é mui famoso, que corre trinta e cinco graus da banda do Sul, e tem outras tantas léguas de boca. Principia-se em uma fermosa alagoa, rica de ouro, prata e pedraria. As ribeiras deste rio são povoadas de muitas cidades e vilas de gente Espanhola. O 2º é o de S. Francisco, que por uma boca não mais de meia légua do Norte pera o Sul, descarrega as águas no mar. Está talhado de muitas ilhas, é fundo sobre os mais, navega-se até 70 léguas, e daí por diante não, por respeito de uma cachoeira que terá de altura mais de 400 braças, da qual se lança com um medonho estrondo. Querem os naturais que tenha sua nascença na mesma lagoa donde rebenta o Rio da Prata. [...] Há outro a que chamam o Rio das Almazonas, por elas o povoarem, como temos certas relações. Terá 30 léguas de boca, talhado todo de várias ilhas frescas e aprazíveis. Tem seu nascimento na mesma alagoa que o Rio da Prata e S. Francisco. Por ele abaixo, do Peru, vieram navegando alguns Espanhóis 600 léguas, deixando outras tantas que ele fará em voltas, até virem cair no mar oceano. (Monteiro, 2000, p. 394). Se observarmos o mapa de Linschoten podemos encontrar uma lagoa, com a legenda “Laguna del dorado”, um pouco acima da metade da linha do sertão que delimitava o interior da terra do Brasil, segundo o Tratado de Tordesilhas. Observe-se que o que deveria ser uma linha imaginária, no mapa, não é uma reta ou meridiano, mas um contorno que utiliza o curso dos rios como limite territorial e do qual a lagoa dourada faz parte. Acuña é preciso quando trata do percurso do Rio Amazonas dizendo que o rio “segue seu curso de oeste para leste, [...] sempre próximo à linha equinocial para o lado sul, a dois graus, três, quatro, cinco e dois terços, na maior altura. Seu comprimento, desde o nascedouro 69 até o desaguar do mar, é de mil trezentos e cinqüenta e seis léguas” (Acuña, 1994, p. 72). Vasconcellos, por sua vez, atribui ao comprimento do rio Amazonas um valor que varia entre “mil & trezentas, mil & seiscentas, ou mil & oitocentas legoas, segundo computos varios dos que o nauegáraõ” (Vasconcellos, 1668, p. 32). Na perspectiva de Vasconcellos, o percurso do rio Amazonas está ligado ao do rio da Prata, como vimos anteriormente na citação do parágrafo 22 (Vasconcellos, 1668, p. 30) e do parágrafo 27 (Vasconcellos, 1668, p. 34), e do que consta do parágrafo 24: “chegaõ no meio do sertão a darse as mãos estes dous rios do Pará, & da Prata” (Vasconcellos, 1668, p. 32). Quando Vasconcellos descreve o rio da Prata diz que este dá “a mão ao Grão Parâ, naquelle grande lago, de que nascem” (Vasconcellos, 1668, p. 40). Dessa forma, Vasconcellos transforma o percurso oeste-leste do rio Amazonas, descrito por Acuña, num percurso semicircular que inclui o rio da Prata fazendo um circuito: “os que nauegaõ corrente assima de hũ destes rios, leuando as canóas às costas aquella distancia entreposta, tornão a nauegar corrente abaixo do outro: & esta he a volta, com que abarcaõ estes dous grandes rios duas mil legoas de circuito” (Vasconcellos, 1668, p. 35). No discurso de Vasconcellos o percurso do rio Amazonas é associado ao do rio da Prata e ambos transformados numa divisa que substitui a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas e que ele descreve assim: [...] a linha de Norte a Sul, que do vltimo ponto desta diuide as terras da America, vai cortando direita junto ao Rio das Almazonas, pello riacho que chamão de Vicente Pinçon, & correndo pello sertão deste Brasil, ate ir saír no Porto, ou Bahia de S. Mathias, quarenta & cinco graos pouco mais ou menos da Equinocial, distante da boca do grão Rio da prata pera o Sul cento & setenta legoas: no qual lugar, he constante fama, se meteo marco da Coroa de Portugal [verdade he, que desta linha assi lançada pera a parte do mar do Oriente possuem os Castelhanos muita terra, nao por costa, mas dentro do sertão: como se pode ver claramente na demarcação de algũas cartas, que desta nossa parte assentão algũs lugares da Prouincia de Buenos ayres, Paraguay, Cordoua, & outras.] (Vasconcellos, 1668, p. 22-23) Na parte final da citação, entre colchetes, Vasconcellos diz que “possuem os Castelhanos muita terra, nao por costa, mas dentro do sertão” e escreve na margem “Posuem os Castelhanos algũa terra, pertencente à demarcação do Brasil” (Vasconcellos, 1668, p. 23), como podemos ver na figura 2, no capítulo anterior. Em outras palavras, antes mesmo de descrever o contorno da linha de sertão, Vasconcellos afirma que os Castelhanos possuem terras da demarcação do Brasil. Em seguida, transforma a linha do sertão no percurso dos rios Amazonas e Prata, com a lagoa dourada no centro, e deslocaos para as “vertentes das grandes serras do Chilli, & Perú” (Vasconcellos, 1668, p. 34). Dessa forma, Vasconcellos criou, possivelmente pela primeira vez, um contorno do Brasil no 70 discurso espacial barroco que ultrapassou os limites do Tratado de Tordesilhas (1494), quase um século antes do Tratado de Madri (1750) (Araujo, 2002). Assim, o desenho do território do Brasil tem, na proposta de Vasconcellos, pelo litoral a forma de um triângulo, ou semicírculo que envolve dois lados do triângulo, com um percurso de mil e quinhentas léguas. Pelo sertão, o que deveria ser uma reta – o terceiro lado do triângulo –, é transformado num semicírculo pelo percurso dos rios Amazonas e Prata numa extensão de duas mil léguas. Isto significa um aumento de um terço em relação ao percurso do litoral. Em outras palavras, Vasconcellos diz que o contorno do Brasil pelo sertão é maior do que o contorno pelo litoral em um terço. Podemos visualizar a imagem desse território rebatendo o que está a leste da linha de Tordesilhas para o oeste e aumentando sua extensão em um terço. Uma outra forma de visualizar a imagem do território do Brasil seria atribuir identidade entre a lagoa onde Acuña afirma que o rio Amazonas tem origem, que ele situa a oito léguas de S. Francisco de Quito (Acuña, 1994, p.71), e a lagoa onde nasce o rio Amazonas e que Vasconcellos diz que fica nas serras do Chile e Perú. Nesse último caso o território do Brasil alcançaria as proximidades de Quito. Sobre o rio Amazonas, Vasconcellos afirma ainda que além dos autores citados (Abraham Hortelio, Cristovão da Cunha e Afonso de Ovale), “varias relaçoens outras tiue diárias em meu poder, de excursoẽs, que por este rio fizerão os moradores da Capitanía de S. Paulo” (Vasconcellos, 1668, p. 40) referindo-se as entradas e bandeiras que partiam então de São Paulo como [...] o périplo de Raposo Tavares que, entre 1648 e 1651, circunda o que seria posteriormente a fronteira centro-oeste do Brasil. Partindo de São Paulo, sua expedição atingiu o sopé andino, transitando nas imediações de Santa Cruz de la Sierra, em seguida atravessando o interflúvio dos Parecis, penetrou na região amazônica, atingindo Belém, pela rota dos rios Marmoré, Madeira e Amazonas. (Moraes, 2000, p. 394-395) Complementando, Vasconcellos conclui sua descrição do rio Amazonas dizendo que “todos concordão, & dizem cousas marauilhosas, & tão grandes, que nenhum peccado commetterião os que dissessem que junto a este rio plantára Deos nosso Senhor o Paraíso terreal” (Vasconcellos, 1668, p. 40). O período em que Vasconcellos escreveu as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, entre 1654 e 1661, é posterior à Restauração (1640) e a expulsão dos holandeses do nordeste. Durante o período de união das Coroas ibéricas (1580-1640) o território colonial brasileiro sofreu simultaneamente uma expansão e uma fragmentação. A expansão do “período filipino”: 71 [...] propiciou ampliação do território colonial brasileiro, com expansão nucleada pelas regiões de colonização já consolidadas que ultrapassa muito as fronteiras definidas em Tordesilhas. Ao norte, completa-se a instalação na fachada atlântica, dominando a entrada do vale amazônico, o qual se abre para expedições exploratórias que por ele trafegam ao longo de todo o século XVII. Nas terras meridionais, a intensificação do trânsito para o Peru alarga a área de circulação dos paulistas para o sul, perenizando certos itinerários e certos pousos. E mais, o gado e o apresamento indígena expandem os espaços conhecidos da colônia em todos os quadrantes do sertão. (Moraes, 2000, p. 352) Por outro lado, o “período filipino” fragmentou esse mesmo território colonial brasileiro: [...] com a soberania portuguesa em várias de suas porções ameaçada ou mesmo destruída. As terras do extremo norte estão formalmente agrupadas em uma outra unidade colonial, o Estado do Maranhão, que responde diretamente ao governo espanhol (sem passar pelo Conselho de Portugal). O litoral nordestino, do Alagoas até o Maranhão, encontra-se sob domínio holandês. Nas áreas mais meridionais da colônia, a ocupação missionária carrega — como visto — certa ambigüidade quanto à efetiva soberania. E, para completar, a zona quilombola de Palmares experimenta uma clara situação de extraterritorialidade. (Moraes, 2000, p. 365-366) Após a Restauração ocorreu um processo de consolidação da ocupação territorial da colônia com a expulsão dos holandeses do nordeste, expansão para o norte e oeste com anexação das terras do sertão, ocupadas por índios, obtidas através da Guerra dos Bárbaros, a destruição de Palmares, a migração das missões jesuítas espanholas para além do rio Uruguai no sul, e no extremo-oeste as bandeiras atingindo a base dos Andes (Moraes, 2000, p. 402) Podemos concluir que o discurso de Vasconcellos, nesses parágrafos iniciais das Noticias, faz parte do processo de construção no plano verbal, da ação de expansão e formação territorial que se desenvolvia no sertão do Brasil. Foi para esse território ampliado, bem definido pelo limite dos rios e pintado com as cores barrocas da ênfase, como bem definiu Silvio Castro (1983), que Simão de Vasconcellos desenvolveu a tese da localização do Paraíso terrestre. Todavia, antes de fazê-lo, precisou tratar dos habitantes da terra, o que não parece ter sido uma tarefa simples, uma vez que Vasconcellos dedicou metade das Noticias aos índios. 72 4. O índio no Brasil de Simão de Vasconcellos Simão de Vasconcellos, antes de construir o Paraíso terrestre sobre o território do Brasil, viu-se obrigado a abordar o que seria um inconveniente para a sua tese – a presença de habitantes no Novo Mundo. Para tratar do assunto Vasconcellos dedica aos indígenas metade da extensão textual do discurso das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, o que revela a dimensão do problema. O autor inicia sua abordagem com as perguntas formuladas aos indígenas pelos primeiros exploradores portugueses: Em que tempo entraraõ a pouoar aquellas suas terras os primeiros progenitores de suas gentes? De que parte do mundo vieraõ? De que nação erão? Por onde, & de que maneira passaraõ a terras tão remotas, sendo que naõ auia entre os antiguos vso de embarcaçoens muito mais capazes, que as de suas ordinarias canoas? Como naõ conseruàraõ suas cores? Como naõ conseruàraõ suas lingoas? Como chegàraõ a degenerar de seus costumes, & a estado tão grosseiro alguns dos seus, especialmente Tapuyas, que pode duuidarse delles, se nasceraõ de homens, ou são indiuiduos da especie humana? Que Religiaõ seguião? E finalmente perguntauaõlhes, que bondades eraõ as desta sua terra, & as deste seu clima em que viuiaõ? (Vasconcellos, 1668, p. 77) As quatro primeiras indagações estão interligadas e visavam obter respostas que já partiam do pressuposto de que os índios não eram originários da América, mas de outra parte do mundo e que de alguma forma teriam chegado ao novo continente. Este é um aspecto de extrema importância para a tese de Vasconcellos porque, se fosse considerado que os índios eram originários da América, o fundamento religioso do reencontro do Paraíso ficaria invalidado e sua tese não teria sentido. Em outras palavras, a presença de seres humanos no espaço do Novo Mundo criaria um paradoxo neste Paraíso reencontrado pois, após a expulsão do homem do Paraíso, Deus “postou os querubins a oriente do jardim de Éden, com a chama da espada fulminante, para guardar o caminho da árvore da vida” [Gn 3:24]. Dessa forma, Vasconcellos precisava oferecer uma explicação para a presença dos índios no território do 73 Brasil, território este que ele pretendia demonstrar como o espaço do Paraíso e que desde a expulsão de Adão e Eva não deveria ter sido habitado por seres humanos. Antes de apresentar as respostas dos índios as perguntas, Vasconcellos faz uma observação onde diz que “elles naõ tinhaõ vso de liuros, nem outros archiuos mais que os de suas memorias, & que sómente nestas estampauaõ as historias de suas antigualhas, & dos successos que pello discurso dos tempos hião ouuindo huns aos outros” (Vasconcellos, 1668, p. 77-78). O autor passa então a apresentar o que seriam as respostas dos índios e conclui “estas eraõ as repostas dos Indios a seu modo tosco, & gentilico. Era força que fossem defeituosas, & he necessario que demos nòs satisfaçaõ por outra via à coriosidade daquellas perguntas, segundo a capacidade maior dos entendimentos, que Deos nos deu, & da policia em que nos criamos” (Vasconcellos, 1668, p. 86). O leitor é induzido dessa forma a rejeitar as respostas dos índios por serem toscas e aceitar as respostas do autor como verdadeiras. Além disso, a forma como Vasconcellos organiza o seu discurso, sugere, desde o início, que as respostas dos índios são resultado de um conhecimento proveniente da tradição oral que ele deixa transparecer sutilmente, tratar-se de algo precário e sujeito a imprecisões e erros. Entretanto, como veremos adiante, quando analisa a religião dos índios e a possibilidade da passagem de S. Tomé pela América, Vasconcellos afirma que este exemplo “mostra com euidencia a fé que deuemos dar às tradiçoens das gentes, ainda que barbaras” (Vasconcellos, 1668, p. 199). A contradição do autor reforça a articulação do seu discurso barroco, utilizando o mesmo argumento, a tradição oral, para sugerir que algumas informações podem ser descartadas, como as respostas dos índios, ou utilizadas para corroborar as informações sobre a presença de S. Tomé nas Américas. Ou seja, a tradição oral em si mesma não é importante, mas a apropriação que dela faz o autor para validar a sua proposição, ora desprezando-a, ora exaltando-a, conforme as necessidades do seu discurso. Segundo Vasconcellos, a resposta dos índios à primeira pergunta dos portugueses revelou a ocorrência de um dilúvio do qual se salvara um pajé, de nome Tamanduaré, e sua família, e que ele recebera orientação para abrigar-se no alto de uma palmeira que ficava no topo de um monte. Vasconcellos relaciona também a versão do dilúvio documentada pelo padre jesuíta Afonso de Ovale, na História do Chile, de que “em tempos antiquissimos, quando ainda naõ hauia Reys Ingas, houuera aquelle diluuio grande; mas que em certas concauidades de altas serranías ficàraõ alguns homens, que tornàraõ depois a pouoar a terra” (Vasconcellos, 1668, p. 80). Prosseguindo, o autor reproduz uma outra versão em que salvaram-se do dilúvio seis pessoas numa balsa, conforme informação de Antonio Herrera, na História geral das Índias, que desculpa a “ignorancia destes, tanto por sua 74 natural rudeza, como por falta de archiuos” (Vasconcellos, 1668, p. 81). Por último, ele atribui ao padre José da Costa, da Companhia de Jesus, no seu livro Novo Orbe, a apresentação da lenda da povoação do mundo a partir de um “homem portentoso” saído de um lago e chamado de Viracocha. O mesmo autor, segundo Vasconcellos, conta a lenda da povoação do mundo por homens saídos das entranhas de uns montes e feitos pelo Sol (Vasconcellos, 1668, p. 81). Nesses três casos, em que ele faz referência no texto aos autores e suas obras, existe a indicação ao lado, na margem30, do número do livro ou tomo e do capítulo ou década, realçando a diferença entre a tradição oral dos índios e a documentação escrita dos europeus. Ainda sobre as informações dessas tradições orais, Vasconcellos escreve na margem31 do texto “Fabula de Tamanduarè [...]”, “De outros modos fabulosos sobre o diluuio” e “Modos mais ridiculos sobre o mesmo” (Vasconcellos, 1668, p. 78-81). Essas informações marginais – fábula, modos fabulosos, modos mais ridículos –, no lugar onde deveriam estar as referências bibliográficas, desqualificam ainda mais as informações que teriam sido fornecidas pelos índios. Prosseguindo, Vasconcellos apresenta as respostas dos índios para as três perguntas – De que parte do mundo vieram? De que nação eram? Por onde e de que maneira chegaram a América? – que, segundo os seus antepassados, “vierão da outra parte da terra, que elles naõ sabião. Que era gente de cor branca: & que vieraõ em embarcaçoens pello mar, & aportàraõ em hũa paragem, que elles por suas semelhanças descreuião, & os Portugueses entenderão que vinha a ser a do Cabo frio” (Vasconcellos, 1668, p. 80-81). Observe-se que a pergunta sobre a nação de sua origem tem como resposta, atribuída aos índios, que era proveniente de gente de cor branca. Nesse ponto, o autor associa a nação a cor, aproximando a origem dos índios a dos europeus, numa época, que a palavra nação estava associada ao local de nascimento da pessoa. Diziam os índios ainda, segundo o relato de Vasconcellos, que ao chegarem à América eram dois irmãos e suas respectivas famílias que, posteriormente, se separaram ficando uma em Cabo Frio e a outra partindo para o rio da Prata e povoando “Buenos aires, Chilli, Quito, Perù, & as demais daquellas partes” (Vasconcellos, 1668, p. 84). Os que ficaram no Brasil se multiplicaram e que 30 A edição de 1977 da Crônica da Companhia de Jesus omite duas das três anotações das referências bibliográficas. 75 [...] diuididos por varias partes do sertão, & maritimo, formàraõ grandes pouoaçoens, que depois pello tempo diuididas por meio de dissençoens, & guerras, vieraõ a fazer naçoens distintas, & lingoas varias, nũca ouuidas, nem aprendidas; em costumes, modos, & religiaõ differentes, & que desta gente viera finalmente a pouoarse o Brasil todo, & delle toda America. (Vasconcellos, 1668, p. 84) Observe-se a simetria da povoação da América por dois irmãos, um no Brasil e outro no Chile e Peru, e a descoberta e divisão do Novo Mundo pelos espanhóis e portugueses, irmãos da península Ibérica. A simetria é um elemento estético presente na concepção espacial barroca de Simão de Vasconcellos, como demonstramos em outro trabalho (Araujo, 2000, p. 102-107) analisando a sua proposta arquitetônica, no ano de 1654, para o Colégio da Bahia. A quinta pergunta dos portugueses, segundo a exposição de Vasconcellos, reforça a resposta da terceira, porque parte da premissa de que os índios eram brancos e mudaram a sua cor. De fato, a resposta que Vasconcellos traduz como uma graça dos índios que propõem fazer a experiência dos portugueses andarem “nùs ao Sol, & à chuua, quaes nòs andamos; & vereis logo, que de brancos vos heis de tornar da nossa cor” (Vasconcellos, 1668, p. 84). Vasconcellos reproduz em seqüência a resposta da sexta pergunta, que indagava como não haviam conservado suas línguas, ao que diziam que “com o discurso dos tempos, variedade de lugares, & diuizoẽs que tinhão feito entre si, por causa de seus odios, & guerras, foraõ forçados chegar a esquecerse dos vocabulos patrios, & ajudarse de outros de nouo inuentados” (Vasconcellos, 1668, p. 85). Sobre a sétima pergunta feita aos índios, de como degeneraram dos seus costumes, Vasconcellos não apresenta resposta passando diretamente para a resposta da oitava pergunta sobre a sua religião. A resposta atribuída aos índios é de que [...] muitos seculos depois do diluuio andàrão por suas terras huns homens brancos, vestidos, & com barba, que dizião cousas de hum Deos, & da outra vida, hum dos quaes se chamaua Sume, que quer dizer Thome; & que estes não forão admitidos de seus antepassados, & se acolhèrão pera outras partes do mũdo; ensinandolhes com tudo primeiro o modo de plantar, & colher o fruto do principal mantimento de que vsaõ, chamado mandioca. (Vasconcellos, 1668, p. 85) Vasconcellos omite nessa resposta a informação, que já havia apresentado na resposta da primeira pergunta, sobre a existência entre os índios da crença numa “excellencia superior, & vem a ser o mesmo que Deos” (Vasconcellos, 1668, p. 78) de nome Tupã, possivelmente por ser uma “Fábula” como havia anotado na margem do texto. 31 A edição de 1977 da Crônica da Companhia de Jesus omite todas as anotações marginais que não sejam 76 Para responder a última pergunta, sobre a bondade da terra, Vasconcellos afirma que os índios “mostrauão com longas historias, & exemplos, as descripçoẽs das cousas, que a seu modo tinhaõ por de maior momento; como a de seus arcos, & frechas, das pennas com que se enfeitauaõ, das frutas agrestes que comiaõ, & de que faziaõ seus vinhos; & eraõ das cousas que em seus olhos auultauão mais” (Vasconcellos, 1668, p. 85-86) e confessando que os índios deixavam “por de menos conta, a prata, o ouro, o ambar, & as pedras preciosas; às quaes tem dado titulo de grandes, nossa real cobiça” (Vasconcellos, 1668, p. 86). Simão de Vasconcellos descarta essas respostas dos índios, por considerá-las defeituosas, e inicia um processo de resposta que estabelece como premissa duas resoluções. A primeira, de fundamentação religiosa, é a de que a América não poderia ter sido povoada diretamente por remanescentes do dilúvio porque, segundo a Bíblia, salvaram-se apenas oito pessoas da família de Noé. A segunda resolução é a de que era incerto o tempo em que chegaram à América os primeiros povoadores. Tendo essas premissas como ponto de partida, o autor apresenta nove hipóteses para a povoação da América. Relacionamos a seguir as oito primeiras hipóteses, acompanhadas da datação que o autor utiliza como sendo a data do dilúvio, ano de 1656 após a criação do mundo, e, eventualmente, a referência bibliográfica que ele apresenta. Nº 1 Hipótese Ophir Indico a partir da costa do Peru e México (Vasconcellos, 1668, p. 88-89). 2 Remanescentes da construção da torre de Babel (Vasconcellos, 1668, p. 89). 3 Hebreus enviados por Salomão em busca de especiarias, metais e pedras preciosas (Vasconcellos, 1668, p. 89-93). 4 Os mesmos hebreus da terceira hipótese em naus desgarradas (Vasconcellos, 1668, p. 93). Troianos, companheiros de Enéas, remanescentes de Tróia e após sua derrota (Vasconcellos, 1668, p. 9394). Africanos, após a destruição de Cartago pelos Romanos 5 6 Datação Ano de 1700 da criação do mundo, 45 anos após o dilúvio, e 2088 a.C. Ano de 1788 da criação do mundo, 131 anos após o dilúvio, e 2174 a.C. Ano de 2933 da criação do mundo e 1028 a.C. Referência bibliográfica Padre Ioão de Pineda da Companhia de Jesus, De rebus Salomonis, liv. 4, cap. 16, fol. 212. Ano de 2806 da criação do mundo e 1156 a.C. Padre Fr. Ioão Pineda, liv. 3, cap. 12, parag. 3, e liv. 14, cap. 25, parag. 1. Monarch. Lusit. fo. 62. Versos de Virgílio. Monarch. Lusitan. liv. 1, cap. 2, fol. 107. Ano de 3833 da criação do mundo e referências bibliográficas, além de omitir algumas dessas. Monarch. Lusitan. tom 1, fol. 8 verso e liv. 1 tit. 22. Padre Ioão de Pineda da Companhia de Jesus, De rebus Salomonis, liv. 4, cap. 16, fol. 214 e 215. Frei Gregorio Garcia, Indiorum occidentalium origine, livro 4. 77 (Vasconcellos, 1668, p. 94-95). 7 Gentes das dez tribos dos judeus antigos (Vasconcellos, 1668, p. 9596). 8 Fenícios africanos na mesma era dos Cartagineses (Vasconcellos, 1668, p.96). 149 antes da Redenção dos homens. Ano de 3226 da criação do mundo e 724 antes da Redenção dos homens. Ano de 3833 da criação do mundo e 149 antes da Redenção dos homens. Esdras, liv. 4, cap. 13. Diodoro Siculo, liv. 6, cap. 7. Ao apresentar a sétima hipótese, Vasconcellos aproxima os índios dos judeus ressaltando as similaridades em seus costumes, ao afirmar com base em comentário “apud Cornel. in Genes. fol. 28. in Tabula” que: [...] na verdade, muito grande proua faz por esta parte a semelhança que ha de costumes entre estes Indios, & aquelles antiguos Iudeos: como he o serem medrosos, couardes, supersticiosos, mentirosos, conseruadores da gèraçaõ de seus irmãos, casandose com as cunhadas, quando aquelles morrem; lauaremse a cada passo nos rios, & outros vsos, em que conformaõ com esta nação. (Vasconcellos, 1668, p. 95-96) Antes de apresentar a última hipótese o autor levanta novamente a questão da incerteza do tempo em que a América foi povoada, fazendo referência à antigüidade dos monumentos arquitetônicos encontrados pelos espanhóis na Nova Espanha, coligidos por “Pero Bercio em sua Geografia, & Theodoro de Bry” e a anotação na margem de “Oualle na Hist. de Chilli. liu. 3. cap. 1. fol. 81.” (Vasconcellos, 1668, p. 96-97). Prossegue questionando como os animais, como onças e tigres, passaram para esta parte do mundo após o dilúvio e indaga se a América é ilha ou terra firme. Sobre esta última questão relaciona “Jacobo Chineo” (liv. 1 cap. 20), “Gemma Phrisio” (capítulo terceiro da divisão do mundo) e o autor do livro Theatrum orbis que não apresentavam uma posição definitiva sobre a questão uma vez que ninguém ainda havia explorado o estreito de “Fretum Dauis” ao norte bem como o Estreito de Magalhães, ao sul. Assim, Vasconcellos, na sua nona hipótese, discute a forma como chegaram os povoadores à América e a possibilidade de terem passado por terra firme ou atravessado um estreito. Como ainda não existia um parecer definitivo sobre se a América era ou não uma ilha, o autor propõe que a solução fosse condicional em conformidade com a opinião do padre Ioseph da Costa (José de Acosta), da Companhia de Jesus, no livro De natura Novi Orbis (Vasconcellos, 1668, p. 97-100). Após apresentar essas nove hipóteses Vasconcellos conclui a resposta da primeira pergunta com a seguinte indagação: 78 [...] he incerto em que tempo passáraõ a estas partes os primeiros pouoadores dellas: porque alèm da incerteza de opinioẽs tão varias, como vimos, com esta vltima sentença se demonstra mais; porque se atè hoje se naõ pode aueriguar se pellas partes vltimas desta terra se podia passar a pè enxuto, ou se de força se hauia de passar por agoa, nem que distancia tinha esta: como se poderia aueriguar, quando passárão os primeiros que vierão pouoar este mundo? (Vasconcellos, 1668, p. 99-100) Sobre as três perguntas seguintes, Vasconcellos propõe que cada um deve aceitar como resposta, segundo as hipóteses apresentadas, aquela que “melhor lhe parecer” uma vez que “tudo saõ opinioẽs” (Vasconcellos, 1668, p. 100). Aproveitando essa possibilidade, Vasconcellos acha oportuno apresentar a opinião de “Platão, & de outros Philosofos seus antecessores: porque por meio desta (se he verdadeira) se responde com muito maís facilidade, & breuidade a todas as quatro perguntas ventiladas” (Vasconcellos, 1668, p. 100). A opinião em questão é a da existência de uma grande ilha, defronte ao mar Mediterrâneo e das Colunas de Hércules, maior que a África e Ásia, chamada de Atlante e que havia submergido no oceano após um grande terremoto (Vasconcellos, 1668, p. 101). Vasconcellos cita um trecho do Timeu, de Platão, em latim, e afirma que segundo a “opinião destes Philosofos, esta ilha de tão agigantada extensaõ, era naquelle tempo continua com a que hoje chamamos America, & todo hum corpo somente, a que chamauão ilha de Atlante” (Vasconcellos, 1668, p. 102), o que justifica dizendo que o espaço do mar Atlântico até a Nova Espanha não é maior que a extensão da África e Ásia, sendo então necessário acrescentar à ilha Atlante o espaço da América para que “de ambas sahisse a grandeza monstruosa que lhe dauão” (Vasconcellos, 1668, p. 102). Essa nova possibilidade, da continuidade entre a ilha de Atlante e a América, permite que Vasconcellos não só responda as quatro perguntas, mas demonstre o quanto está respaldado ao afirmar: que Marcilio Ficino tinha como verdadeira a história da ilha Atlante, no Timeu de Platão; que Abraham Hortelio tenha dito que a América foi descrita por Platão sob o nome de ilha Atlântica e que Plutarco seguia a mesma opinião; que o autor do livro Do Mundo, atribuído a Aristóteles ou Teofrasto, corrobore a existência da ilha Atlante; que Plínio descreveu a navegação de Hanon Carthaginense à América da mesma forma que Zarate na sua História. Afirma ainda, que o Curso Conimbricense relaciona alguns autores que apóiam a existência da ilha sem a contestar. Conclui que a opinião da existência da ilha de Atlante faz força ao seu entendimento [...] naõ só o seguilla Platão, homem de tanta autoridade, chamado naquelles tempos por antonomasia, o Diuino, luz de toda a Philosofia, & de todos seus segredos, & taõ serio em todo seu dizer: mas tambem o modo com que falla, quando a segue, descreuendoa cõ todas suas particularidades, [...]. Tudo isto parece està metendo medo a duuidar de hum homem taõ serio, pera se poder cuidar delle que escreueo patranhas. (Vasconcellos, 1668, p. 106) 79 Esta declaração de Vasconcellos é surpreendente e revela o valor da autoridade de Platão para um jesuíta cuja formação era alicerçada na filosofia de Aristóteles. Mostra também o esforço e a tentativa do autor em estabelecer uma hipótese plausível, do ponto de vista racional, que conciliasse a narrativa da origem da povoação da América com as fontes documentais que ele dispunha. Nesse enfoque, o Timeu de Platão é considerado como uma fonte e o procedimento de Vasconcellos aproxima-se do procedimento de um historiador moderno. O que, por sua vez, revela um outro comportamento de suma importância na transição do mundo medieval para o mundo moderno que foi a superação da argumentação fundada na fé, pura e simples, pela argumentação lógica e racional. Em outras palavras, no século XVII, tem início a superação da indução aristotélica através do pensamento e dos métodos científicos de Galileu Galilei, Francis Bacon e Rene Descartes. Nesse contexto, a hipótese de Vasconcellos mostra a tentativa de conciliação entre os discursos da fé católica, como o dilúvio, e o real, como a existência de habitantes no Novo Mundo, que são explicados pela passagem através de uma ilha descrita num texto, de Platão, que é tratado como fonte. O esforço de Vasconcellos pode ser entendido como uma manifestação estética barroca, na qual o autor busca conciliar opostos produzindo uma nova unidade: “esta é uma atitude fundamental da arte barroca. Um conflito de forças antagônicas mesclando-se numa unidade subjetiva, e assim resolvida” (Panofsky apud Araujo, 2000, p. 106). A opção de Vasconcellos pela origem atlante dos índios do Brasil colonial, na opinião de Ronald Raminelli, aproximava-os dos europeus: A origem atlante do gentio, com certeza, somou-se aos esforços dos padres, pois a natureza dos ameríndios em nada diferia da dos europeus. Desse modo, padres, colonizadores e índios provêm de um mesmo espaço, foram forjados por um único criador, portanto possuíam as mesmas capacidades. (Raminelli, 1996, p. 28) A próxima pergunta analisada por Vasconcellos é aquela que tem implícita na sua formulação a afirmação de que os índios mudaram de cor ao longo do tempo. Entretanto, o autor afirma que a resposta dos índios, de que o calor a que estavam expostos seria a causa da sua cor, estava de acordo com a filosofia e a experiência: [...] os Philosofos concordão, que a cor branca procede de summa frialdade, como se vè na neue: & a negra de summo calor, como se vè no pez. Por isso Aristoteles attribue a brancura do cisne, à frialdade do ventre da mãy; & a negrura do coruo, ao calor do ventre da mesma. E destes dous extremos se tiraõ as cores entremeias, vermelha, amarela, verde, &c. segundo diuersa intensaõ de calor, ou frio: quanto mais participaõ do calor, tanto mais se chegaõ ao preto; & quanto mais do frio, tanto mais ao branco: assi que foi opiniaõ dos Indios, conforme a Philosofia. E foi tambem conforme a experiencia; porque segundo isto, vemos, lançando os olhos por todos os climas do mundo, tanta differença de cores nos homens; & tudo nasce do temperamento diuerso de que 80 gozão. Os Europeos, quanto mais chegados ao Polo gelado, tanto mais brancos saõ; como Olandezes, Flamengos, Alemães. E pello contrario os Africanos, Asianos, Americanos, quanto mais chegados ao torrido da Zona, onde mais predomina o calor, tanto mais pretos saõ. E daqui vem que huns nascem aluissimos, outros mais baços, outros tostados, outros fuluos, outros vermelhos, outros pretos, outros sobre o preto azeuichados. (Vasconcellos, 1668, p. 107-108) Na opinião de Vasconcellos esta resposta tinha como inconveniente o fato de que os portugueses expostos ao sol no Brasil, andando nus ou quase, não mudavam de cor nem os seus filhos nasciam de outra cor. Da mesma forma, ele constata que os índios que foram para a Europa não perderam sua cor, nem seus filhos nasceram mais claros. Em outras palavras, Vasconcellos rejeita a hipótese de que apenas o clima seria o responsável pela cor dos seres humanos. Tentando esclarecer o problema, Vasconcellos diz que “Aristoteles parece que atribue a differença destas cores à imaginatiua, segundo aquelle dito seu: Imaginatio facit causam” (Vasconcellos, 1668, p. 109), porém não apresenta nenhuma indicação de qual obra de Aristóteles se refere, o que facilitaria o resgate do contexto em que foi enunciada. A citação em latim é uma tradução do original em grego, o que cria mais um problema para a localização da citação na obra de Aristóteles. Podemos traduzir Imaginatio facit causam como a imaginação cria o resultado, e neste sentido Vasconcellos relata três casos em que a imaginação produziu o resultado. No primeiro, diz que Quintiliano defendeu de adultério uma mulher branca que pariu uma criança negra, mostrando que no aposento em que foi concebida existia um retrato de um etíope. No segundo caso, Vasconcellos faz referência a Tasso e a Clorinda, que nasceu branca filha de pais negros porque o local onde foi concebida existia uma pintura de uma virgem branca. No terceiro caso, ele faz referência a Heliodoro afirmando que Cariclea nasceu branca porque sua mãe, rainha da Etiópia, costumava olhar para um retrato de Andrômeda branca. É interessante notar que Clorinda é personagem do poema épico Jerusalém libertada, de Torquato Tasso (1544-1595), cuja concepção assemelha-se a de Clariclea do romance As etiópicas ou Theágenes e Kharicléia, de Heliodoro (século III), ou seja, dois dos três casos relatados por Vasconcellos correspondem a personagens e o poema e o romance são tratados como fonte. Entretanto, ele afirma que esses e outros casos não são suficientes porque “de successos singulares, naõ se argumenta com efficacia pera o géral, que sempre acontece” (Vasconcellos, 1668, p. 110). Em outras palavras, o que Vasconcellos afirma é que a indução neste caso não seria suficiente porque seria “necessario prouar no nosso caso, que sempre os Indios desta terra ao tempo da conceição tem na memoria a sua cor vermelha” (Vasconcellos, 1668, p. 110), o que, nas suas palavras, não tem probabilidade alguma. Descartada a possibilidade da imaginação influenciar a cor dos índios, Vasconcellos apresenta o seu parecer sobre a pergunta dizendo que a cor dos índios procede do calor, porém do 81 “calor reconcentrado, & tal, que venha a ficar em natureza” (Vasconcellos, 1668, p. 111), o que ele explica da seguinte forma: Aquelle primeiro homem, que no Brasil começou a cortirse ao calor do Sol (& o mesmo digo em Angola, & nas outras partes, onde houue mudança de cores) pella continuação do largo tempo de sua vida foi adquirindo temperamento intrinseco, & natural, mais calido que dantes: o qual, suposto que naõ foi bastante nelle pera mudar especie de cor total, porque esta necessita de grao de calor mais intenso; foi com tudo bastante pello menos pera embaçarlhe as cores, & adquirir temperamento mais calido: com este gèrou depois o filho; & o filho viuendo na mesma forma que o pay, acrescentou outro grao de calor, & temperamento, & o neto outro; atè que pouco, & pouco veio hum destes a ter aquella intensaõ de calor, & temperamento necessario pella Philosofia pera especie de cor differente; & foi a vermelha, a que somente pòde chegar o grao de calor, & temperamẽto do clima. E esse tal temperamento, digo eu, que chegou a ser conuertido em nature za; & que he força que se transfunda pera isso na virtude seminaria no macho, & na femea, & que por meio della passe a toda a géração de pays a filhos. (Vasconcellos, 1668, p. 111-112) Vasconcellos afirma que não encontrou esta explicação em livros e em nenhum autor. A constatação do autor é correta, uma vez que, em geral, estabelece-se a origem científica da genética, nos estudos de Gregor Mendel, por volta de 1865. Todavia, o médico inglês William Harvey publicou em 1651 Exercitationes de Generatione Animalium, apresentando algumas alterações na teoria de Aristóteles: The book is mainly concerned with the development of the chick in hens' eggs, and Harvey insisted throughout that in all living things the origin of the embryo is to be found in the egg. He investigated also the embryology of deer, rejecting Aristotle's notion that menstrual blood played any part in the formation of the fetus; he also questioned whether or not semen had any influence. Having no microscope, he could not see the spermatozoa, which were not demonstrated until 1686 by Leeuwenhoek working in Holland with stronger lenses. Harvey remained uncertain of how fecundation of the ovum was accomplished and even suggested that it was by a kind of infection resembling the origin of infectious diseases. Aristotle had originated the theory of gradual formation of the embryo, part by part, as opposed to the idea of preformation, meaning that all the parts arose in miniature at the same time. Harvey agreed with Aristotle and crystallized the belief in the term epigenesis, though to him its meaning was extremely simple compared with all that is implied by it at the present time. (Britannica)32 32 O livro apresenta interesse sob o aspecto histórico e científico, porém o pensamento de Harvey foi muito influenciado por Aristóteles. O livro aborda principalmente o desenvolvimento do embrião do pinto no ovo de galinha e Harvey insistiu sempre que em todas as formas vivas a origem do embrião estava no ovo. Ele investigou também a embriologia do cervo, rejeitando a noção de Aristóteles de que o sangue menstrual tomava parte na formação do feto; ele também questionou se o sêmen tinha ou não alguma influência. Não tendo microscópio ele não conseguia ver o espermatozóide, o que foi demonstrado apenas em 1686 por Leeuwenhoek, trabalhando na Holanda, com lentes mais fortes. Harvey permaneceu em dúvida como a fecundação do óvulo era efetuada e chegou mesmo a sugerir que era através de uma infecção lembrando a origem das doenças infecciosas. Aristóteles deu origem a teoria da formação gradual do embrião, parte por parte, em oposição a idéia da pré-formação, significando que todas as partes aparecem em miniatura ao mesmo tempo. Harvey concordava com Aristóteles e acreditava na epigenesia, apesar do seu significado então ser extremamente simples se 82 Não existem indicações de que Vasconcellos tenha lido o livro de Harvey, publicado em 1651 na Inglaterra, doze anos antes da Chronica da Companhia de Jesus, em 1663. Independentemente deste aspecto, o fato de Vasconcellos apresentar a proposta da modificação gradual das características do ser humano e a sua transmissão de forma hereditária33, cerca de duzentos anos antes de Charles Darwin apresentar sua teoria, em 1858 e de Gregor Mendel, em 1865, é, no mínimo, surpreendente. Vasconcellos, no entanto, com o seu o espírito barroco, para provar sua tese, combina-a com a de Aristóteles que: [...] em quanto atribue a brancura do cisne à frialdade do ventre da mãy, & a negrura do coruo ao calor do ventre da mesma: porque em atribuíla ao ventre, dá a entender que he natural aquella qualidade de frio, ou calor. Porém naõ satisfaz em tudo: porque se o grao do frio do ventre fora a causa somente deste effeito, produzíra sempre branco o ventre frio, & produzira sempre preto o ventre calido. E com tudo vemos por experiencia o contrario: porque a mulher branca, de branco pare branco, & de negro mulato; seja quente, ou fria a disposição do ventre. Donde se tira manifestamente, que naõ està somente no ventre a virtude do grao do frio, ou calor necessario; se naõ na virtude seminaria, que depende de ambos os generantes: porque se ambos tem virtude fria, géraõ branco; se ambos calida, géraõ preto: & se hum fria, outro calida, géraõ mulato de cor entremeia, nem perfeitamente branca, nem preta. (Vasconcellos, 1668, p. 112-113) Desta forma, Vasconcellos demonstra sua tese sobre a transmissão da cor dos seres humanos reformando a teoria de Aristóteles sobre a temperatura do ventre da mãe adicionando a “virtude seminaria, que depende de ambos os generantes” (Vasconcellos, 1668, p. 113). Temos aqui mais um exemplo da atitude estética barroca de Vasconcellos que articula as duas teses conflitantes em uma única tese. Ao ler Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire (1675), o leitor das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos (1668), não poderá deixar de perceber a reprodução de passagens da sua obra em Nova Lusitânia, e a coincidência existente entre as fontes registradas por Francisco de Brito Freire e as fontes de Simão de Vasconcellos. Apesar disso, Freire não cita nem faz referência às Noticias ou ao seu autor. O livro Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire, publicado em 1675, foi escrito durante o período em que o autor esteve preso na Torre de S. Gião, entre os anos de 1669 e 1675. Trata-se de uma narrativa das guerras empreendidas pelos portugueses contra os holandeses por ocasião da invasão do Brasil, no início do século XVII, focalizando apenas os embates ocorridos entre os anos de 1624 a 1638, embora estas guerras só tenham terminado com a expulsão dos holandeses em 1654. No início do livro, o autor relata a invasão dos comparado com tudo o que implica no presente. Disponível em: http://www.britannica.com, acessado em 12/11/2003. 83 holandeses a Bahia em 1624 e a sua expulsão. Em seqüência, narra a invasão de Pernambuco pelos holandeses, em 1630, e as sucessivas derrotas dos portugueses na Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. No fim do livro descreve a resistência dos portugueses na Bahia e a expulsão dos holandeses de lá em 1638. A possibilidade de as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil terem sido utilizadas como fonte para Nova Lusitânia indica a necessidade de abrirmos um parêntese para apresentar algumas das passagens desse livro que comparadas às das Noticias podem ser consideradas como referências à obra de Simão de Vasconcellos. Para a comparação das obras utilizamos a recente edição de Nova Lusitânia (Freire, 2001). Iniciaremos a comparação com a descrição de Cabo Frio, que aparece no livro de Francisco de Brito Freire: “é promontório notável, mui venerado dos índios, pela fabulosa e antiquíssima tradição de haverem habitado nele duas famílias, que trazidas por divino impulso da outra parte do mundo, povoaram toda a América” (Freire, 2001, p. 33). Simão de Vasconcellos, como vimos, ao discorrer sobre as informações dadas pelos índios a respeito da povoação da América, afirma que dois irmãos chegaram ao Brasil, em Cabo Frio, criando uma povoação, a primeira da América. Poucas páginas depois dessa descrição, Francisco de Brito Freire faz a pergunta “quais seriam os povoadores que deram princípio na América à geração humana?” (Freire, 2001, p. 35). A indagação guarda muita semelhança àquela formulada por Simão de Vasconcellos no que diz respeito à origem dos índios. As hipóteses apresentadas por Freire coincidem com as hipóteses relacionadas por Vasconcellos, ainda que ao fim optem por diferentes explicações. Além disso, as referências bibliográficas apresentadas por Freire, quando existem, são as mesmas de Vasconcellos. As hipóteses apresentadas por Freire são: gentes vencidas de Cartago; gente de Tróia; naturais da Fenícia; fabricadores frustados da Torre de Babel (Freire, 2001, p. 35). Freire considera essas hipóteses “opiniões ridículas” e acha mais verossímil a hipótese da povoação por Ofir Indo, acrescentando em nota “Assim o prova largamente o Padre João de Pineda, Lib 4, cap. 16. De rerus Salamonis. Com outros autores.” (Freire, 2001, p. 35). Além desta hipótese, Freire relaciona mais três, cujas referências são iguais as que Simão de Vasconcellos relaciona para as mesmas hipóteses: Hipóteses de Freire Ofir indo, filho de Jectan, neto de Heber (de quem trata a Escritura Sagr., cap. 10 dos Genes.) (Freire, 2001, p. 35) 33 Referências de Freire Padre João de Pineda, Lib 4, cap. 16. De rerus Salamonis. Ver as observações de Ivolino de Vasconcelos (Vasconcelos, 1949). 84 Frotas de Salomão (Freire, 2001, p. 36). Judeus das dez tribos (Freire, 2001, p. 36). Passagem de gentes e animais por estreito (Freire, 2001, p. 36). cap. 7 da Sabedoria34. Esdras, Lib. 4, cap. 13. Padre José da Costa, de Nat. Novi orbis. Theatrum Orbis, tábua da América. Iacobo Chineo lib. I, cap. 20. Gema Phrisio, cap. 3, da Divisão do Mundo. A última hipótese apresentada por Francisco de Brito Freire, é aquela que ele tem como “conjetura menos vã” e que aventava a possibilidade da passagem de pessoas e animais para o Novo Mundo através de um estreito. Vasconcellos, por sua vez, diz que tudo são opiniões e que cada um poderá seguir o que melhor lhe parecer (Vasconcellos, 1668, p. 100), acrescentando outra hipótese indicando a origem das gentes e animais na ilha de Atlântida e a sua passagem para a América através de um estreito, como vimos anteriormente. As coincidências das hipóteses, referências bibliográficas e citação são um forte indício de que os autores utilizaram a mesma fonte ou que Freire utilizou as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil como fonte. Mesmo numa época anterior à fundação da história científica e crítica, que Anthony Grafton atribui a Leopold von Ranke, no século XIX (Grafton, 1998, p. 41 e ss.), a nota e a referência bibliográfica eram formas adotadas pelo autor para legitimar a sua posição. Todavia, esta atitude científica ainda não era um padrão como podemos constatar na carta do filósofo David Hume (1711-1776) a Walpole em que se desculpa por não ter incluído na sua narrativa as referências às fontes. Hume alega que “não teria custado nenhum trabalho” e confessa que foi “seduzido pelo exemplo de todos os melhores historiadores até mesmo dentre os modernos, tais como Maquiavel, Fra Paolo, Davila, Bentivoglio” (Hume apud Grafton, 1998, p. 157). Afirma ainda, que a prática das notas “era mais moderna do que sua época, e uma vez tendo sido introduzida, deveria ter sido seguida por todo escritor” (Hume apud Grafton, 1998, p. 158). Essa afirmação de Hume, induz Grafton a aventar a hipótese de que a nota crítica poderia ter surgido “uma geração ou duas antes da época de Hume – por volta de 1700, ou imediatamente antes” (Grafton, 1998, p. 158). Esta hipótese pode ser confirmada com a obra de Simão de Vasconcellos, através do uso por parte do autor de notas com referências bibliográficas das fontes utilizadas. Pouco adiante em Nova Lusitânia, na descrição da terra do Brasil, Freire apresenta como limites do território “ao norte o Rio das Amazonas, e o da Prata ao sul” (Freire, 2001, p. 37). Em nota ele descreve o Rio Amazonas apresentando a maior parte das referências utilizadas por Vasconcellos quando este descreve o mesmo rio Amazonas: 34 Freire e Vasconcellos citam, em latim, o mesmo trecho do capítulo 7 da Sabedoria: “Ipse enim dedit mihi horu, quae sunt, scientiam verum, ut sciam dispositiones orbis terrarum e virtutes elementorum” (Freire, 2001, p.36). 85 Referências de Freire Liberto Formondo, meteoros, L. 5, c. I; Abranhan Hort, Theatrum Orbis. Padre Afonso de Ovalle na descrição do Reino do Chile, L. 4, cap. 12. (Freire, 2001, p. 37) Referências de Vasconcellos Liberto Fromondo, no liuro quinto de seus Meteoros, capitulo primeiro (Vasconcellos, 1668, p. 31), Abraham Hortelio, Theatrum orbis nas taboas do Brasil (Vasconcellos, 1668, p. 39), Padre Affonso de Oualle da mesma Companhia na Descripção do Reyno de Chilli, liu. 4. cap. 12 (Vasconcellos, 1668, p. 40). Na nota seguinte, Francisco de Brito Freire descreve o Rio da Prata, comparado ao Amazonas “como seu irmão segundo, nasce da própria mãe, no mesmo berço daquele profundíssimo lago. Do qual, para fertilizarem o sertão da América, quase no meio dele saem ambos opostos e divididos em diferentes braços” (Freire, 2001, p. 37). Da mesma forma, Vasconcellos diz, em relação ao Amazonas, que é “quasi irmão em agoas, & potencia, chamado da Prata, por outro nome Paraguay. Dà este a mão ao Grão Parâ, naquelle grande lago, de que nascem” (Vasconcellos, 1668, p. 40). Vasconcellos apresenta uma citação ao Theatrum Orbis, tábua 19, que também é utilizada por Freire para encerrar sua nota: “Post fluuium Amazonum, nulli totius terrarum orbis flumini magnitudine cedit.” (Vasconcellos, 1668, p. 43; Freire, 2001, p. 37). Essas coincidências reforçam a hipótese de que Freire utilizou as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil como fonte. Francisco de Brito Freire explica a cor dos índios seguindo a idéia expressa por Vasconcellos, como veremos adiante, porém antes de abordar essa questão ele registra que “vivendo em igual distância do mesmo paralelo, aqueles [índios] e estes [negros] habitadores, uns são vermelhos, outros negros. Deixando o parecer dos que buscam a causa na descendência de Cam, porque foi do justo Noé desobediente filho” (Freire, 2001, p. 37), ou seja, Freire diz que abandona a explicação de que a cor dos índios e negros era conseqüência da desobediência de Cam, do qual seriam descendentes. Este registro poderia ser um indício da formulação do racismo de Freire que vem à tona, sem disfarce, quando tece “elogio” a Henrique Dias: Um negro, indigno deste nome, pelo que emendou ao defeito da natureza o esforço do ânimo, tomando confiança da nossa falta, por ver que tínhamos dado já aos índios armas de fogo, e quando carecíamos mais de gente, se ofereceu ao General com a que pudesse juntar da sua, para servirem como negros e pelejarem como brancos. (Freire, 2001, p. 163-164) O racismo de Freire, expresso nessa citação, não parece ter sido afetado pela escolha da tese de Vasconcellos sobre a cor dos índios, que ele praticamente reproduz: 86 [...] dizem os professores da Filosofia que nasce da quentura, depois convertida em natureza. Assim os primeiros homens que na África ou na América degeneraram de brancos foram pelo curso do tempo queimando-se ao ardor do sol e adquirindo mais cálido e mais intrínseco temperamento. Ainda que o espaço de uma vida não era para mudar de todo a cor, a mudou em parte. Vieram depois os filhos destes, em que se transfundiram outros graus de calor mais intenso. Nos netos outros, e outros e outros mais em que os mais descendentes. Com que tiveram causa bastante para a diferença da cor, conforme o temperamento do clima. Que por ser na Etiópia mais quente, são negros os de Angola; e por ser na América menos cálido, são vermelhos os do Brasil. (Freire, 2001, p. 37-38) Esta afirmação de Freire coincide com a tese de Vasconcellos de que a cor vermelha dos índios do Brasil procede do calor convertido em natureza (Vasconcellos, 1668, p. 111). O detalhamento dessa conversão em natureza é precedido da informação de que é “cousa que atégora naõ achei em Autor algum por mais diligencia que fiz” (Vasconcellos, 1668, p. 111) e “que atégora não achei explicada em liuros” (Vasconcellos, 1668, p. 112). A tese de Vasconcellos sobre a cor dos índios, da conversão do calor em natureza, de forma hereditária, foi proposta cerca de duzentos anos antes das teorias científicas de Darwin (de 1858) e de Mendel (de 1865) sobre o assunto. Foi esta tese, na época inédita, que Freire incorporou ao seu livro com a informação de que provinha de “professores da Filosofia” sem, no entanto, indicar os seus nomes. Esta é mais uma indicação da possibilidade de que Freire tenha feito uso do livro de Simão de Vasconcellos como fonte. Merece destaque também a menção ao caráter vingativo dos índios feita por Freire ao descrever os seus hábitos e costumes, muito similar ao relato de um caso narrado por Vasconcellos: Vingança do índio segundo Freire Tão cruelmente vingativos, que sabendo um [índio] aonde sepultaram por ordem dos padres da Companhia de Jesus a outro seu contrário, de noite o foi desenterrar; e fazendo-lhe em pedaços, a que já parecia mais caveira do que cabeça, brasonava nesta ação o maior triunfo da sua valentia. (Freirre, 2001, p. 42) Vingança do índio segundo Vasconcellos Notauel foi o caso de hum Tapuya Goaytacá de naçaõ; tinha este por inimigo seu a hum principal da mesma naçaõ, buscaua occasião de vingarse delle: & com estar certo, que se acolhéra pera hũa aldea, que estaua a cargo dos Padres da Companhia, com quem estauaõ então de paz, & se vendiaõ por amigos seus; não descançou de vigialo, de noite, & de dia, pera o matar. E o que mais he, que vindo a saber, que adoecéra o principal, na mesma aldea, & morréra, & que estaua enterrado, naõ assocegou. Teue traça pera ir desenterralo, & assi morto lhe quebrou a cabeça (que he o modo entre elles de tomar vingança, & fartar o odio.) E entaõ se deu por satisfeito, valente, & honrado. (Vasconcellos, 1668, p. 127) Ainda sobre os índios, ambos os autores concordam que o seu comportamento e modo de vida levaram os espanhóis, logo que descobriram a América, a considerar que não eram racionais e, dessa forma, incapazes dos sacramentos, tal como os animais. Nesse sentido, 87 Vasconcellos e Freire relatam, de forma muito próxima, o uso da carne dos índios para a alimentação dos cães: Relato de Freire Deste modo [os índios] serviam nas Índias aos castelhanos; chegando-os a matar para matarem a fome aos cães de fila com a carne dos miseráveis gentios. E de milhão e meio que habitavam a ilha Espanhola, chegou a não haver quinhentos em breve tempo. (Freire, 2001, p. 42) Relato de Vasconcellos Naquella ilha, testemunha Fr. Bertholameu de las Casas Bispo de Chiapa, varão de grande authoridade, que chegárão os Espanhoes a sustentar seus libreos com carne dos pobres Indios, que pera o tal effeito matauão, & fazião em postas, como a qualquer bruto do mato. A Historia géral das Indias capitulo trinta & tres, fallando da mesma Ilha Espanhola diz, que vsauaõ aquelles moradores, dos Indios, como de animaes de serviço, tendo por cousa sua aquelles que podião apanhar, quaes feras do campo; & que os fazião trabalhar em suas minas, maltratandoos, acutilandoos, & matandoos, como lhes parecia. E que chegára a ficar a ilha por esta rezão hum deserto; porque de hum milhão, & meio que hauia, chegou a não hauer quinhentos. (Vasconcellos, 1668, p. 164) Neste caso, Vasconcellos e Freire utilizam as mesmas fontes como referência: o capítulo 33 da História Geral das Índias, de Bartolomeu de las Casas, e o capítulo 33, f.100, da Crônica da Província do México (Vasconcellos) ou História de México (Freire), do frei Agostinho de Avila35. Sobre o livro de las Casas, Freire acrescenta que: “os castelhanos, abominando com modéstia católica tão irracionais e desumanas atrocidades, negam ser este o autor deste livro; e afirmam que a ímpia cavilação de seus inimigos hereges o compusera e publicara em nome daquele prelado, para o mundo lhe dar mais crédito” (Freire, 2001, p. 42). Essas coincidências, de texto e referências, sinalizam mais uma vez que o livro de Vasconcellos foi, provavelmente, utilizado como fonte por Freire. Nos parágrafos em que trata da questão da racionalidade dos índios, Vasconcellos comenta um caso, ocorrido em Cabo Verde, em que aparece a descrição de um menino criado pelos padres da Companhia [...] filho de hũa escrava, & de hum animal daquellas partes, a que chamaõ mono: era rapaz bem formado em feiçoens, em corpo, estatura, cabeça, mãos, & pés, como qualquer filho de homem: viuo, esperto, & que fazia o que era mandado. Pozse em questaõ se era capaz dos Sacramentos, resolueose que naõ; & que nem deuia ser bautizado. Porém neste era mui diferente a rezaõ; porque se prouou que o principal progenitor naõ era homem racional, se naõ animal bruto; & por conseguinte, que naõ tinha alma racional. E logo os sinaes o mostrauão; porque naõ fallaua, & tinha hum vinculo de cabellos pellos lombos abaixo, indicios claros do pay que o gérou. (Vasconcellos, 1668, p. 173-174) 35 Vasconcellos e Freire devem estar fazendo referência a: DAVILA Y PADILLA, Augustin. Historia de la fundacion y discurso de la prouincia de Santiago de Mexico, cuja segunda edição foi publicada em Bruxelas, por Iuan de Meerbeque, em 1625, conforme catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha (http://www.bne.es). 88 Freire, por sua vez, ao descrever as ilhas de Cabo Verde reproduz a mesma história: [...] na principal de todas, que é S. Tiago, viu o século passado a estupenda monstruosidade de um filho de uma negra e um bugio, daqueles maiores a que ordinariamente chamam ‘monos’. Criaram-no os padres da Companhia; moço de ordinária estatura com natural proporção dos membros: só tinha larga beta de cabelos sobre os lombos e não falava. Mas fazia esperto o que lhe advertiam. Altercou-se se era capaz dos sacramentos e decidiu-se que não. Nem foi batizado, por ser animal bruto, o mais nobre dos pais. (Freire, 2001, p. 60) Tratando do dilúvio, encontramos mais uma coincidência pois ambos os autores indicam a mesma referência bibliográfica para outros dilúvios posteriores ao de Noé: a História geral das Índias, de Antonio Herrera, tomo 3, dec. 5 (Vasconcellos, 1668, p. 87; Freire, 2001, p. 43). No período colonial, os diversos relatos sobre a passagem de S. Tomé pela América tinham como utilidade consolidar a idéia de que o evangelho fora pregado em todo o mundo como preconizava a Bíblia. Vasconcellos apresenta indícios da passagem de S. Tomé pela América ao longo de vários parágrafos e Freire resume os indícios dessa passagem em um parágrafo. Nesse caso, as referências bibliográficas de Freire coincidem com as de Vasconcellos como podemos comprovar no que se refere ao relato sobre uma cruz, que fora dada por S. Tomé aos índios de uma aldeia no mar do sul: frei Joaquim Brulio, História do Peru, L. I, cap. 5. Sobre a tentativa do “herege Francisco Draque”36 de tentar por três vezes queimar a cruz: padre Gregorio Garcia, L. 5, cap. 5. Observe-se que além da reprodução exata das referências e da menção ao “herege Francisco Draque”, nesta segunda referência ambos deixam de indicar o título do livro. Vasconcellos diz que Fernão Cortez encontrou, na ilha de Cozumel, índios fazendo procissões com uma cruz quando havia falta de chuvas, com as seguintes referências: Gomara segunda parte, cap. 15, e Justo Lipsio livro 3º (Vasconcellos, 1668, p. 197). Sobre o mesmo assunto, Freire apresenta a seguinte referência: “Dom Fernando Pizarro, Varões Ilustres37, Cap. 2, na vida de Fernão Cortez. Justo Lip. L. 3, falando da cruz. Gomara, parte 2, Cap. 15” (Freire, 2001, p. 43). As duas últimas referências além de serem iguais às de Vasconcellos não apresentam os títulos da obras. Vasconcellos relaciona ainda, como referência sobre a passagem de S. Tomé pela América, o livro História Peruana, do padre Antonio de la Calancha, liv. 2, cap. 2 (Vasconcellos, 1668, p. 197). Da mesma forma, Freire relaciona como referência o autor, livro e capítulo, porém omitindo o título. 36 O herege em questão é o conhecido corsário inglês Francis Drake (1540-1596), que pelas suas atividades no mar recebeu o título de cavalheiro e o tratamento de Sir Francis Drake. 37 Vasconcellos não faz referência a esta obra, cuja referência deve ser: PIZARRO Y ORELLANA, Fernando. Varones ilustres del nuevo mundo, descubridores, conquistadores y pacificadores. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, 1639. (catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal: http://www.bn.pt) 89 Ainda sobre a passagem de S. Tomé pela América, Vasconcellos trata em um parágrafo da posição de Cornélio a Lapide sobre o capítulo 16 do Evangelho de S. Marcos. Lapide não achava verossímil que os poucos apóstolos conseguissem correr o mundo pregando o evangelho, em especial a América que ainda não era conhecida na época dos apóstolos (Vasconcellos, 1668, p. 205-206). Freire resume a questão numa curta frase “ainda que Cornelio Lapide segue diferente opinião sobre o Cap. 16 de São Marcos” (Freire, 2001, p. 43). Essas coincidências reforçam ainda mais a possibilidade de as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil terem servido como fonte para Nova Lusitânia. Vasconcellos ao tratar dos limites da terra do Brasil, estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas, mostra que, dependendo da generosidade do compasso do cosmógrafo, a extensão do território poderia ir do rio Amazonas até o rio da Prata, utilizando-se trinta e cinco graus, ou até a baía de S. Mathias, utilizando-se quarenta e cinco graus. Vasconcellos relaciona como referências para a extensão de trinta e cinco graus: Theatrum orbis, na tábua do Brasil; Gotofredo, na Arcontologia Cósmica, folhas trezentas e dezoito. Como referência para quarenta e cinco graus Vasconcellos apresenta: Maffeo, no livro segundo da História das Índias; Orlandino nas Crônicas da Companhia de Jesus, liv. 9, n. 86; Pedro Nunes, nos cap. 1, 2, e 3 do Roteiro do Brasil (Vasconcellos, 1668, p. 23-24). Vasconcellos descarta a opinião de Guilherme Piso, na História Natural do Brasil (1648), que no livro 1 estabelece a extensão em vinte e quatro graus (Vasconcellos, 1668, p. 21). Freire relaciona essas mesmas referências, em nota, quando trata dos limites do Brasil (Freire, 2001, p. 52), incluindo a referência à obra de Guilherme Piso. Ao descrever a costa do Brasil Simão de Vasconcellos classifica o rio S. Francisco como o terceiro rio da costa, abaixo apenas do rio Amazonas e do rio da Prata que considera seus irmãos por terem origem na mesma lagoa: “Seu nascimento he daquella famosa alagoa feita das vertentes de agoas das serranìas do Chilli, & Perù, donde dissemos procediaõ os dous principaes rios, Grão Parà, & da Prata” (Vasconcellos, 1668, p. 49). Diz ainda que He nauegauel este rio atè 40. legoas pella terra dẽtro: no fim destas se vé precipitar aquelle mar de agoas, de altura medonha, com tão grande estrondo, que atroa os montes, & ensurdece a gente: chamão vulgarmente a este precipicio, Cachoeira, & a outro semelhante que faz o rio Nilo, despenhandose de altissimos montes com todas suas agoas, chamàrão os antiguos Cataracta, ou Catarrata. (Vasconcellos, 1668, p. 50) Vasconcellos prossegue afirmando que noventa léguas acima da cachoeira existe um sumidouro por onde o rio desaparece e que doze léguas adiante reaparece na superfície. Nesse ponto, relembra do relato que dizia “que o rio Alpheo se introduzisse por debaixo da terra em 90 busca da fonte Arethusa” concluindo que o “que alli foi fabula, aqui he pura realidade da natureza, & hũa monstruosidade maior” (Vasconcellos, 1668, p. 51). Compare-se agora esses trechos com a descrição de Freire sobre o rio S. Francisco: 776 Da origem lhe não sabemos. Dizem que nasce das vertentes daquelas mesmas serranias donde nasce juntamente o das Amazonas e o da Prata, com que em terceiro lugar celebramos este pelo maior da América lusitana. [...] 777 Quarenta léguas pela terra dentro se precipitam juntas todas as suas águas, de uma estupenda rocha, com ruído tão estrondoso, que se ouve muito distante. Não se ilustrando só com a singular monstruosidade desta catarata (que já advertimos chamarse vulgarmente cachoeira), o enobrece mais portentosa maravilha, depois que, penetrando dez jornadas ao sertão, abre outra rocha medonha tamanha boca, que sorvendo a este rio inteiro, corre subterrâneo por um sumidouro cavernoso sem tornarse a ver em distância de doze léguas, de onde, rebentando de novo o nosso Alfeu brasílico, continua seu curso tão caudaloso como antes. (Freire, 2001, p. 244-245) A referência que faz Francisco de Brito Freire ao rio São Francisco como “Alfeu Brasílico” é importante, uma vez que não encontramos até agora nenhuma publicação anterior às Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, que utilize o nome de Alfeu, personagem mítico presente na poesia Metamorphoseon, de Ovídio Nasao, para designar o rio São Francisco. Diz o mito que Alfeu, deus do rio de mesmo nome, apaixonado pela ninfa Aretusa, persegue-a. Para a sua proteção Aretusa é transformada em fonte e Alfeu, por paixão, mergulha na terra para misturar suas águas às da Aretusa (Brandão, 2004, p. 260). O uso do nome Alfeu para designar o rio S. Francisco transforma-se numa prova, a ser adicionada às várias coincidências apontadas, de que Freire utilizou como fonte as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos para a elaboração do Nova Lusitânia, sem no entanto fazer qualquer referência à obra ou ao seu autor. Fechando o parêntese devemos registrar que o discurso de Francisco de Brito Freire, no enfoque teórico deste trabalho, é uma enunciação elaborada pelo autor para um destinatário, ouvinte ou leitor, que faz parte do grupo social para o qual o autor direcionou sua obra (Bakhtin, 1999, p. 112). Essa enunciação, como afirma Luis Filipe Ribeiro, se faz através de um processo de seleção e combinação, resultado de um “complexo sistema de escolhas, orientadas por algum tipo de valor” (Ribeiro, 1996, p. 42). Dessa forma, nós, leitores de Nova Lusitânia ao resgatarmos as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil como uma das fontes de Francisco de Brito Freire, estamos descortinando uma parte do processo de seleção e combinação utilizado pelo autor na elaboração da sua obra, num processo de compreensão ativa da obra (Bakhtin, 1999, p. 131-132). Retomando a análise das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, verificamos que da mesma forma que a pergunta sobre a cor dos índios, a pergunta sobre a 91 sua língua tem como premissa que a língua dos índios sofreu modificação ao longo do tempo. Vasconcellos cita a Arte da lingoa mais comum do Brasil38, do padre Ioseph de Anchieta, como fonte de louvores dessa língua e concorda com a resposta dos índios de que o tempo foi a causa das mudanças ocorridas nela. Ele exemplifica lembrando que na Lusitânia, na época do domínio dos romanos, falava-se latim conforme referência de Duarte Nunes Leão no capítulo 6 da Origem da língua portuguesa39. Após apresentar alguns exemplos de transformação de vocábulos latinos em portugueses e da criação de novos vocábulos, conclui que da mesma forma que do latim originaram-se várias línguas como a portuguesa, castelhana, galega, francesa e outras, a primeira língua dos índios do Brasil veio a se corromper criando as suas diversas espécies (Vasconcellos, 1668, p. 116-118). Depois de tratar da questão da língua dos índios Vasconcellos passa a responder detalhadamente a sétima pergunta, para a qual não havia apresentado a resposta dos índios. Essa pergunta visava esclarecer o processo de degeneração dos costumes dos índios que chegaram em alguns casos, como os Tapuias, a um nível que se duvidava se eram de espécie humana. Mais uma vez, o que está em questão é a dificuldade do europeu em lidar com os costumes de uma outra civilização diferente da sua. Vasconcellos inicia sua longa resposta à questão dos costumes indígenas com um parágrafo em que faz alusão a “liberalidade com que o Autor do vniuerso repartio seus bens naturaes com esta terra do Brasil” (Vasconcellos, 1668, p. 118), aproximando-o descritivamente das belezas e maravilhas do Paraíso que estava habitado por “especies de gentes innumeraueis, que viuem a modo de feras, & como taes contentes com o tosco das brenhas, & solidaõ da penedía, desprezando todo o polido dos palacios, cidades, & grandezas de todas as mais partes do mundo” (Vasconcellos, 1668, p. 119). Nesse ponto o autor faz uma ressalva para explicar que está se referindo, de uma forma geral, aos índios que habitam os sertões e passa a descrever seus costumes, abordando os seguintes tópicos: Tópico Características gerais dos índios Moradia Alfaias Roupas e acampamento Como fazem fogo, comida Caça Pesca Serem vingativos e exemplo de vingança 38 Página 119-120 121 122 123 124 124 125 126-127 Vasconcellos deveria estar se referindo a Arte de Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, do padre José de Anchieta, publicada em Coimbra por Antonio de Mariz em 1595. 39 LEÃO, Duarte Nunes do (1530-1608). Origem da lingoa portuguesa. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1606. 92 Armas e consulta de guerra Capitão da guerra Prisioneiro de guerra e antropofagia Sacrifício do prisioneiro Casamento Parto Inconstância Mortos Ossos dos inimigos e títulos de nobreza Defeitos congênitos e longevidade Enfeites Comidas e preparo Vinhos Curas Matam o enfermo se não tem cura Instrumentos musicais Danças 128 129 129 130-134 134 135 135 136-137 137-138 139 140 140-142 142-143 143 144 144 145 Depois dessa extensa descrição dos costumes dos índios do sertão o autor acrescenta algumas particularidades sobre os índios Tapuias e passa à classificação das nações indígenas dizendo que alguns classificam os índios em três nações: Topayaras, Potigores e Tapuias. Diz que outros acrescentam uma quarta nação, a dos Tupinambás, e que outros incluem uma quinta nação, a dos Tamoios, e que outros somam a esses uma sexta nação, a dos Carijós. Vasconcellos, por sua vez, declara que suas pesquisas em diversos escritos e consultas junto a pessoas com experiência entre os índios o levava a concluir que, na realidade, existiam apenas dois gêneros de nações: a dos índios mansos e a dos índios bravos. Com relação a esta classificação, podemos acrescentar a observação de Luis Felipe Baêta Neves sobre a notação binômica dos “índios”, “índios” e dos “indios conversos”, presente no poema de Anchieta em louvor das façanhas de Mem de Sá (Neves, 1978, p. 63). A nação dos índios mansos era aquela em que os índios “com algum modo de republica (ainda que tosca] saõ mais trataueis, & perseueraueis, entre os Portugueses, deixandose instruir, & cultiuar” (Vasconcellos, 1668, p. 152), por outro lado, a nação dos índios bravos era aquela dos que “viuem sem modo algum de republica, saõ intrataueis, & com difficuldade se deixão instruir” (Vasconcellos, 1668, p. 152). Ainda, segundo Vasconcellos, os índios mansos são aqueles que ocupam o litoral do Brasil e falam a língua comum documentada pelo padre Anchieta, e constituem uma só espécie. Ele acrescenta a essa nação de índios mansos, os Goaianás, que habitavam o sul do Brasil e que utilizavam uma língua diferente da comum, sendo classificados como de outra espécie, da mesma forma que outros grupos indígenas que habitavam a região do rio Amazonas. A outra nação genérica, a dos índios bravos, ele reduz à dos Tapuias que compreendia mais de cem línguas diferentes e, conseqüentemente, o mesmo número de espécies (Vasconcellos, 1668, p. 153). 93 Nessa classificação de Vasconcellos encontramos a combinação de dois critérios. Com o primeiro critério ele reduz as diversas nações indígenas a duas nações, a dos índios mansos e a dos índios bravos, que são divididas em espécies para acomodar sua variedade. O segundo critério, de caráter mais científico, classifica os índios segundo sua língua: os índios do litoral que utilizavam a língua geral, os índios Goaianás que habitavam o sul do Brasil e falavam outra língua, e os Tapuias com uma grande diversidade de línguas. A classificação de Vasconcellos combina um critério qualitativo e bipolar, mansos e bravos, que poderia ser bons e maus, ao critério lingüístico, com duas línguas de interesse, a comum e a dos Goaianás, dos índios mansos, e as diversas línguas dos Tapuias que não apresentavam interesse pelo fato de serem aquelas faladas pelos índios bravos. Esses critérios de classificação são coerentes com o caráter missionário da Companhia e denotam o interesse utilitário dos jesuítas no estabelecimento de sua área de atuação separando aqueles que poderiam e deveriam conquistar e converter daqueles que, na impossíbilidade de conversão, deveriam ser expulsos para o sertão. Observe-se o uso da palavra nação não mais como local de nascimento da pessoa, mas como uma qualificação do seu comportamento em relação aos portugueses. Depois dessa classificação dos índios, Vasconcellos encerra o primeiro livro das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil e inicia o segundo livro tecendo comentários que justificam o antecedente. Segundo o autor era necessário relatar os costumes dos índios do sertão, os bravos, para que o leitor e o mundo pudessem conhecer “as monstrosidades de sua natureza, pera que dellas mais admirem a efficacia, com que a ley de Deos de toscas pedras faz filhos de Abrahão, & de rudes, & barbaros, homens racionaes; porque he cousa certa, que com a virtude, & boa criação desta santa ley entre os Portugueses, tem visto o Brasil mudanças mui notaueis nas naçoens desta gente” (Vasconcellos, 1668, p. 160). Antonio Vieira, no conhecido sermão do Espírito Santo, pregado no Maranhão em 22/6/1657, repete essas palavras e acrescenta “ensinai e doutrina [sic] estas pedras, e fareis de pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros homens e verdadeiros filhos de Abraão por meio da fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a resistência e a bruteza” (Vieira, 1657, p. 14). Sobre os índios mansos, relaciona vários que foram [...] affamados, louuados, & premiados dos Gouernadores, & Reys, por valerosos, engenhosos, guerreiros, & fieis; & o que mais he, por doceis, pios, amorosos, respublicos, Christãos, sofredores de todos os contrastes: tudo ao contrario do que no liuro antecedente vimos. E por agora seja exemplo hum famoso Tabirá, que irmanandose com os 94 Portugueses, fez proezas em armas, em Fè, & lealdade Christãa. (Vasconcellos, 1668, p. 161). O autor conclui que não “nascem os costumes auessos desta gente do clima da terra, mas sómente da corrupção da natureza, & falta de boa criação, em verdadeira Fé, ley, & policia; pois vemos que com esta luz cultiuados, quasi differem de si mesmos” (Vasconcellos, 1668, p. 162). Vasconcellos passa então a tratar da questão que foi objeto de um grande debate na Europa, e que também provocou muita polêmica na América, no século XVI: a busca de esclarecimentos que pudessem definir se os índios eram ou não seres humanos racionais. Ele inicia seu discurso relatando a opinião de muitos dos primeiros povoadores da América que não consideravam que os índios pudessem ser homens racionais e que por isso eram “incapazes dos Sacramentos da santa Igreja” e que qualquer um poderia servir-se deles como se fosse um cavalo ou boi, maltratando-os, ferindo-os e até mesmo matando-os sem imposição de culpa ou pecado (Vasconcellos, 1668, p. 163). Invocando o testemunho do Bispo de Chiapa, frei Bartolomeu de Las Casas, afirma que os espanhóis matavam os índios como a “qualquer bruto do mato” e faziam-nos em postas para sustentar os seus “libreos”40 (Vasconcellos, 1668, p. 164). Ressalta ainda que a forma como os índios eram tratados pelos espanhóis fez com que muitos deles se matassem “com peçonhas, ou enforcandose das aruores por esses campos, as mulheres juntamente com os maridos, & afogando tambem os proprios filhos, antes de sahir das entranhas, porque naõ chegassem a ver, & experimentar tempos taõ infelices” (Vasconcellos, 1668, p. 164-165). Conclui dizendo que a situação chegou a um ponto tal que em algumas ilhas da região do Caribe, os indígenas deixaram de existir. O autor relaciona como referência para essas informações, a História geral das Índias, de Bartolomeu de Las Casas, e a Chronica da Provincia de Mexico, do frei Agostinho de Avila41. Nessa época, essa questão foi levada pelos dominicanos ao Tribunal do Sumo Pontífice que acabou por decidir pela racionalidade dos índios, conforme bula papal de 9/6/1537, publicada na íntegra em latim (Vasconcellos, 1668, p. 166-167) e a tradução em português (Vasconcellos, 1668, p. 167-170). A determinação da bula papal impedia que os “Indios, & todas as mais gentes que daqui em diante vierem à noticia dos Christãos, ainda que estejaõ fóra da Fé de Christo” (Vasconcellos, 1668, p. 169) fossem privados de liberdade, dos 40 A palavra libreo não consta dos dicionários pesquisados, porém encontramos a palavra libréu: o mesmo que lebréu; e lebréu: cão, próprio para a caça das lebres; galgo (Figueiredo, 1925) e lebréu: Fila; cão treinado para a caça de lebre; lebré, lebrel (Houaiss, 2001). 95 seus bens, e não deveriam ser reduzidos a servidão. Todavia, a bula não foi suficiente para resolver a questão da racionalidade dos índios, uma vez que, mais de dez anos após a sua promulgação, Bartolomé de Las Casas tentava impedir a publicação do tratado Democrates Alter, em que Juan Gines de Sepúlveda comparava os índios a animais42 (Las Casas, 2001, p. 140-143). A bula papal não foi suficiente também para impedir que, no Brasil, os índios fossem caçados e aprisionados para servirem como escravos, como atestam vários documentos desse período. No século XVII temos, como exemplo, as entradas que aniquilaram os aldeamentos guarani, as Missões, no sul do Brasil. John Monteiro trata em Os negros da terra do apresamento dos índios pelos habitantes de São Paulo, para uso como escravos na agricultura do planalto: No fim das contas, a principal função das expedições residia na reprodução física da força de trabalho e não, conforme se coloca na historiografia convencional, no abastecimento dos engenhos do litoral, embora alguns cativos tenham realmente sido entregues aos senhores de engenho. Portanto, ao contrário de outros sistemas de apresamento e fornecimento de mão-de-obra – onde o tráfico africano é o exemplo mais notável –, os paulistas não exerceram o papel de intermediários no comércio de cativos, sendo antes tanto fornecedores como consumidores da mão-de-obra que este sistema integrado produzia. Se, de um lado, as formas peculiares de apropriação do trabalho indígena sofreram as restrições institucionais ao cativeiro dos nativos, de outro, representaram sempre o meio mais econômico de preencher as necessidades dos colonos. A viabilidade desse esquema começou a declinar com o aumento das distâncias, da resistência indígena e dos custos envolvidos. O resultado deste processo foi, inevitavelmente, um vertiginoso declínio do retorno das viagens. O sertanismo preador, sem dúvida, não constituía um negócio no sentido de que se revestiu o tráfico negreiro. De qualquer modo, descontadas as diferenças em termos de organização, cada qual teve uma importância fundamental na elaboração de uma sociedade escravista. (Monteiro, 1994, p. 98) Essa busca por mão de obra escrava entre os indígenas não se restringia a São Paulo, como podemos verificar num outro exemplo, ocorrido no norte do Brasil, e relatado por Cristóbal de Acuña que voltando de Quito, em 1640, pelo rio Amazonas na altura do rio Tapajós, conta que um grupo de homens liderados pelo sargento-mor Bento Maciel atacou os índios Tapajós: [...] de surpresa, oferecendo-lhes dura guerra, quando eles queriam boa paz. A esta eles aceitaram logo, de boa vontade, como sempre a haviam proposto, rendidos a tudo que quisessem fazer de suas pessoas. Ordenaram-lhes os portugueses entregar todas as flechas envenenadas que tinham, e que era a coisa de que mais temiam, ao que os pobres prontamente obedeceram. E, vendo-os desarmados, os portugueses capturaram grande quantidade desses bárbaros e os encerraram, como carneiros, em um curral seguro, com 41 Vasconcellos deveria estar fazendo referência a: DAVILA Y PADILLA, Augustin. Historia de la fundacion y discurso de la prouincia de Santiago de Mexico, cuja segunda edição foi publicada em Bruxelas, por Iuan de Meerbeque, em 1625, conforme catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha (http://www.bne.es). 42 Os argumentos e a argumentação de Sepúlveda nessa controvérsia com Las Casas foi analisada por Tzvetan Todorov em um capítulo de A conquista da América (Todorov, 1999, p. 182-201). 96 suficiente guarda, liberando então os índios amigos que levavam, pois para fazer mal cada um é um diabo solto. Em breve temo saquearam toda a aldeia, nada deixando sem assolar, e, conforme me contou quem o viu, aproveitaram-se das filhas e esposas dos presos aflitos, diante de seus próprios olhos, fazendo coisas que, segundo me assegurou a mesma pessoa, há muito conhecedora daquelas conquistas, para não vê-las, não só deixaria de comprar escravos, como daria de graça os que possuía. Não parou aí a crueldade dos portugueses, que, sempre movidos pela cobiça de escravos, não ficavam satisfeitos enquanto não se viam senhores deles. Ameaçavam os índios encurralados e temerosos, intimidando-os de novo com maiores rigores para que cedessem escravos, assegurando-lhes que, com isso, não apenas seriam livres, como também amigos, e cumulados de ferramentas e panos de algodão que em troca lhes dariam. Que poderiam fazer esses pobres, presos, desarmados, como suas casas saqueadas, suas mulheres e filhas oprimidas, senão se submeter a tudo o que deles quisessem fazer? Ofereceram mil escravos e foram buscá-los, mas, em meio ao alvoroço reinante na terra, estes haviam procurado um refúgio, e não foi possível juntar mais que duzentos, os quais foram entregues. Com a promessa de que receberiam os restantes, os portugueses deixaram então em liberdade os que, para assim se verem, ofereceram seus próprios filhos como escravos, como tem acontecido várias vezes. Despacharam todos estes escravos para o Maranhão e o Pará, o que vi com meus próprios olhos, e, saboreando a vitória, prepararam logo outra maior em outra nação mais para dentro do rio das Amazonas, onde as crueldades serão certamente maiores, porque nisso vão menos pessoas de coragem, capazes de enfrentar quem a todos comanda. (Acuña, 1994, p. 158-160) Mesmo que levemos em consideração o fato de Acuña elaborar um discurso contra os portugueses e que as crueldades relatadas não foram testemunhadas, permanece a afirmação de que viu com os “próprios olhos” o embarque dos índios escravizados para o Maranhão e Pará. Vasconcellos justifica a dúvida dos portugueses com relação à natureza humana dos índios tendo em vista a degeneração dos seus costumes, pois alega que quando viram [...] aquelles primeiros Portugueses hum Indio Tapuya, hum corpo nú, huns couros, & cabellos tostados das injurias do tempo, hum habitador das brenhas, companheiro das feras, tragador da gente humana, armador de ciladas; hum saluagem em fim cruel, deshumano, & comedor de seus proprios filhos: sem Deos, sem ley, sem Rey, sem patria, sem republica, sem rezão: não era muito que duuidassem, se era antes bruto posto em pé, ou racional em carne humana. (Vasconcellos, 1668, p. 170-171). Em sua argumentação defende a idéia de que o homem racional, criado de forma agreste pode parecer um bruto “por meio da criação agreste, & tosco vso dos sentidos, póde perder o lustre de racional” (Vasconcellos, 1668, p. 172), porém abandonando a criação agreste e “tornando ao trato politico dos homens, por meio deste poderà apurarse nos sentidos, & apurados estes, nas obras da rezão” (Vasconcellos, 1668, p. 172) poderá recuperar a racionalidade. O autor confirma esta idéia com sua própria experiência, pois alega que viu muitos desses indígenas, que após anos de criação e doutrina dos padres da Companhia, de tal forma transformados que era quase impossível reconhecê-los. Dessa forma, Vasconcellos 97 enaltece a atividade missionária da Companhia de Jesus através da articulação do trabalho de conversão dos índios ao catolicismo à recuperação da racionalidade desses nativos. Depois de responder a pergunta sobre a degeneração dos costumes dos índios, Vasconcellos passa a analisar a religião dos indígenas do Brasil. Afirma que o primeiro aprendizado de um povo relaciona-se à existência de “algum Deos superior a tudo” (Vasconcellos, 1668, p. 174) e explica que o motivo dos índios do Brasil não terem Deus algum vincula-se ao fato de estarem empenhados em “guerras, & odios entranhaueis, a que saõ mui propensos, descuidàraõ do amor deuido a Deos, & vltimamente por serem no commum mais agrestes, que todas as outras naçoens da America” (Vasconcellos, 1668, p. 175). Ele ainda ressalva que os índios de outras partes da América, como o Perú e México, ao contrário, têm templos, sacerdotes, cerimônias e cultos. Entretanto, Vasconcellos afirma que os índios do Brasil apesar de não reconhecerem “deidade” alguma, têm “confusos vestígios” de uma excelência superior que chamam Tupã e “vestígios” da imortalidade da alma e de outra vida: [...] os varoens valentes, que nesta vida matàraõ em guerra, & comeraõ muitos dos inimigos; & da mesma maneira as femeas, que foraõ taõ ditosas, que ajudàraõ a cozellos, assallos, & comellos; depois que morrem se ajuntaõ a ter seu paraiso em certos valles, que elles chamaõ campos alegres (quaes outros Elysios) & que alli fazem grandes banquetes, cantos, & danças. (Vasconcellos, 1668, p. 177) Observa ainda que esses “vestígios” da existência de outra vida encontram-se também no rito do funeral, posto que o defunto é enterrado com sua rede e seus instrumentos de trabalho e de caça. Esse ritual estava associado ao discurso da busca da Terra sem Mal pregado pelos caraíbas: O discurso profético convencia aldeias inteiras a embarcarem em longas viagens em busca de um paraíso terrestre, uma “terra sem mal”, onde a abundância, a eterna juventude e a tomada de cativos predominavam. Embora muitos autores busquem explicar estas migrações ora como reações messiânicas à conquista ora como manifestações do conflito inerente entre tipos de autoridade (entre o principal e o caraíba), é importante reconhecer a dimensão histórica das mesmas. De acordo com Carlos Fausto, além da orientação espacial dos movimentos, redundando em deslocamentos geográficos (geralmente para o Oriente), a busca da “terra sem mal” também se assenta num plano temporal. Terra dos valentes ancestrais do passado, também figurava como o futuro destino dos bravos guerreiros que matassem e comessem muitos inimigos. Com efeito, o discurso do profeta dialogava com elementos fundamentais, os quais situavam os Tupi numa dimensão histórica: movimentos espaciais, liderança política, xamanismo e, sobretudo, guerra e sacrifício de cativos. (Monteiro, 1994, p. 25-26) Durante o período colonial, a Terra sem Mal mudou sua localização, mas manteve o mito: “o paraíso tupi se deslocaria lentamente do mar para o interior, pois era no litoral, sem 98 dúvida, que se achavam os males e campeava a morte” (Vainfas, 1999, p. 50). Na insurreição dos índios da santidade do Jaguaripe, entre 1580 e 1586, a descrição da Terra sem Mal que aparece nos relatos assemelha-se ao paraíso cristão, o que pode ser atribuido como resultado do complexo processo de aculturação dos índios, já que muitos membros da santidade haviam passado pelos aldeamentos jesuítas. Entretanto, As diferenças entre as culturas em jogo eram, de fato, abissais. No plano do espaço sagrado – que índios e cristãos possuíam respectivamente os seus –, basta dizer que a Terra sem Mal dos Tupi era um locus amoenus que poderia ser atingido em vida, enquanto o paraíso celestial cristão era privilégio dos mortos – e de poucos eleitos. Diferença significativa, claro está, embora minorada por sensíveis proximidades: a Terra sem Mal a que se poderia atingir em vida era também a “morada dos ancestrais”, dos parentes falecidos, dos bravos que, apesar de enterrados, não morriam jamais em espírito; o paraíso cristão a que poucos eleitos poderiam chegar no post-mortem possuía uma réplica mundana: o paraíso terreal, a morada edênica de Adão e Eva que os cristãos procuraram obsessivamente no Oriente, na embocadorea dos quatro grandes rios, e até na América. (Vainfas, 1999, p. 110) Depois de apresentar os “vestígios” de uma possível religião dos índios, Vasconcellos informa ao leitor que os índios acreditavam em espíritos malignos e que tinham feiticeiros, agoureiros e bruxos que os “enganavam”. Ele oferece, como exemplo de farsa, uma cerimônia ritual em que o fumo é utilizado como meio de conexão com forças sobrenaturais. A importância mística do tabaco é explicada por Ronaldo Vainfas: O transe místico é mais do que um problema de beberagem ou ingestão de alucinógenos, inserindo-se, na verdade, em teia cultural mais complexa. Mais do que embriagante, o fumo da santidade era divino, conforme exclamou, com fervor, certo adepto da seita: “Bebamos o fumo, que este é o nosso Deus que vem do Paraíso”. Ao sorver o fumo, os índios recebiam o “espírito da santidade” e diziam que seu deus viria já livrá-los do cativeiro e fazê-los senhores da gente branca”. (Vainfas, 1999, p. 137). Outro exemplo relatado por Vasconcellos remete o leitor para o domínio do fantástico: Hum trosso de soldados Portugueses, que tinha partido em companhia de grande quantidade de Indios a fazer guerra ao sertaõ, vio com seus olhos, & depoz vniformemente o caso seguinte. Postos em fronteira dos inimigos os nossos, entràraõ em duuida, se se hauia de acommeter, ou naõ, porqué estauaõ intrincheirados fortemente, & com melhor partido de defensores. Ex que hum dos Indios que por nós militauaõ, sae a hum terreiro fronteiro ao inimigo, & fixando na terra duas forquilhas, amarrou fortemente sobre ellas hũa claua, ou maça de pao, que he sua espada, & chamaõ tangapéma, toda galanteada de pennas de passaros variadas em cores. Depois que teue amarrada a claua, conuocou a muitos dos seus pera que dançassem, & cantassem ao redor della: & acabadas suas danças, & cantos, começou o mesmo feiticeiro a fazer as suas per si só, & ao redor da mesma maça, acrescentando a ellas ridiculas ceremonias, momos, & esgares. Feito isto, chegandose á espada, ou maça, disse entre dentes certas palauras mal pronunciadas, & peor entendidas; & ditas estas, soprando alem dellas tres vezes sobre a espada, de improuiso ficou esta solta das ligaduras em que estava, saltou fóra das forquilhas, & foi voando pellos àres com assás de admiração dos Portugueses, que desejosos de ver o fim, perseueràrão em hum lugar. Cousa espantosa! Dalli a pouco espaço de tempo, virão 99 todos, que tornaua a vir a mesma espada voando pellos àres pello mesmo caminho, & à vista de todos se tornaua a pòr no proprio lugar, & sobre as mesmas forquilhas; porém com grande diuersidade, porque vinha toda ensangoentada, & estillando sangue, qual se viera de grandes matanças. Ficàrão confusos os Portugueses, porém o feiticeiro contente, & declaroulhes o pronostico a sinal certo de victoria: acrescentando, que podiaõ seguros acommeter, porque hauião de matar os contrarios, & derramar delles muito sangue. Elle o disse, & o successo o mostrou breuemente, porque matárão sobre quatro mil, & pozerão em fugida innumeraueis. (Vasconcellos, 1668, p. 180-182) Observe-se que as palavras mágicas que produzem o efeito fantástico, são proferidas “entre dentes certas palavras mal pronunciadas, e pior entendidas”, que lembram outras narrativas maravilhosas e fantásticas. São aquelas palavras que não podem ser reproduzidas porque são mágicas e invocam poderes sobrenaturais, palavras poderosas como aquelas que o gênio do conto “História do segundo calândar filho de rei”, em As mil e uma noites, pronunciou para tranformar o príncipe em macaco: “pegou um punhado de terra, pronunciou, ou antes, murmurou certas palavras que eu não compreendi e aspergiu-me com ela: ‘Deixa’, disse ele, ‘o aspecto de homem e fica com o de um macaco.’ E logo desapareceu, ficando eu só, transformado em macaco (...)” (Anônimo, s.d., p. 113). Depois do exemplo de feitiçaria, Vasconcellos indica ao leitor seu livro A vida do venerável padre João de Almeida, no qual poderia encontrar outros exemplos e retoma os aspectos da religião dos índios mostrando indícios da passagem de S. Tomé pelo Brasil e pela América. As marcas da passagem de S. Tomé, segundo Vasconcellos, ficaram nas pegadas impressas em pedras e, como vimos, na memória dos índios propagada pela tradição oral. Antonio Vieira, no já citado sermão do Espírito Santo, afirma que “como Santo Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência” (Vieira, 1657, p. 5), todavia o apóstolo não logrou sucesso porque “nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não conservaram memória da doutrina” (Vieira, 1657, p.5). A importância da passagem de S. Tomé pela América devia-se à necessidade de corroborar o discurso católico de que o evangelho fora pregado em todo o mundo, como prescrevia a ordem de Jesus Cristo. Além disso, Beatriz Helena Domingues chama a atençao para o fato de Vasconcellos recorrer à profecia como fonte histórica (Domingues, 1999, p. 127). Essa profecia dizia que muito tempo depois de S. Tomé “viriaõ a suas terras huns Sacerdotes, successores seus, a prègarlhes o mesmo Euangelho, que elle lhes prègaua; & trariaõ por diuisas Cruzes em as mãos: & que estes os congregaríaõ em pouoaçoens, 100 pera que viuessem em ordem, & policia Christãa” (Vasconcellos, 1668, p. 208-209) e que Vasconcellos interpreta esses sacerdotes como sendo os jesuítas. Sobre a dificuldade de pregar o evangelho no Brasil, Vieira compara o homem à figura de uma estátua de mármore e a uma estátua de murta. A primeira difícil de ser esculpida devido a dureza da pedra, mas que uma vez criada não muda. A segunda, esculpida num arbusto ou árvore, em pouco tempo muda a forma em que foi modelada, daí a sua inconstância: Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos. (Vieira, 1657, p. 7) O desejo de vingança dos índios, assim como sua inconstância, mesmo na proximidade da morte, é exemplificado por um relato43 de Vasconcellos na Crônica da Companhia de Jesus: Contava um padre de nossa Companhia, grande língua brasílica, que penetrando uma vez o sertão, chegando a certa aldeia, achou uma índia velhíssima no último da vida; catequisou-a naquele extremo, ensinou-lhe as cousas da fé, e fez cumpridamente seu ofício. Depois de haver-se cansado em cousas de tanta importância, atendendo à sua fraqueza, e fastio, lhe disse (falando a modo seu da terra): Minha avó (assim chamam às que são muito velhas) se eu vos dera agora um pequeno de açúcar, ou outrobocado de conforto de lá das nossas partes do mar, não o comeríeis? Respondeu a velha, catequizada já: Meu neto, nenhuma cousada vida desejo, tudo já me aborrece; só uma cousa me pudera abrir agora o fastio: se eu tivera uma mãozinha de um rapaz Tapuia de pouca idade tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento: porém eu (coitada de mim) não tenho quem me vá flechar um destes. Parece que está assaz explicado o apetite da gente do Brasil para carne humana. O que eu tenho para mim é, que cresce neles este grande desejo de pequenos, à medida do que têm de vingar-se de seus inimigos: e como é o sumo da 43 Laura de Mello e Souza apresenta relato igual atribuindo-o ao padre Antonio de Santa Maria Jaboatão, no Novo Orbe Seráfico Brasílico (1761): Jaboatão explica as continuadas guerras indígenas pelo apetite por carne humana, e transmite o depoimento prazeroso de uma velha índia potiguar que, moribunda, sonhava com o manjar preferido. Já havia recebido “toda a medicina da alma” e parecia bem disposta espiritualmente, e inclinada a fé católica. Compadecido com a fraqueza da velha, o padre que a assistia resolveu lhe “aplicar também algum alento para o corpo”, indagandolhe se não queria comer um pouco de açúcar ou outra coisa gostosa do além-mar. “Ai, meu neto”, respondeu a velha, “nenhuma coisa da vida desejo, tudo me aborrece já, só uma coisa me poderia tirar agora este fastio. Se eu tivera agora uma mãozinha de um rapaz tapuia, de pouca idade, e tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento: porém eu, coitada de mim, já não tenho quem me vá frechar um destes!” (Souza, 1986, p. 60-61) 101 vingança comer-lhes as carnes, daqui vem, que à medida do gosto da vingança nasce com eles o da comida. (Vasconcelos, 1977, p. 199-200) Vasconcellos, sem se dar conta, chegou perto do que poderíamos indicar como religião dos índios: as guerras e o ódio, alimentando um processo permanente e renovado de vingança. Nesse ambiente, a vigência de uma lei não escrita, porém semelhante à de talião, uma prática milenar se considerarmos a sua presença no código de Hammurabi (cerca de 1700 a.C.), da retaliação, do olho por olho, do osso por osso, e do dente por dente, a vingança era um processo que Viveiros de Castro define como: A vingança não era assim um simples fruto do temperamento agressivo dos índios, de sua incapacidade quase patológica de esquecer e perdoar as ofensas passadas; ao contrário, ela era justamente a instituição que produzia a memória. Memória, por sua vez, que não era outra coisa que essa relação ao inimigo, por onde a morte individual punha-se a serviço da longa vida do corpo social. Daí a separação entre a parte do indivíduo e a parte do grupo, a estranha dialética da honra e da ofensa: morrer em mãos alheias era uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra de seu grupo, que impunha resposta equivalente. É que a honra, afinal, repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo consumia os indivíduos para que seus grupos mantivessem o que tinham de essencial: sua relação ao outro, a vingança como conatus vital. A imortalidade era obtida pela vingança, e a busca da imortalidade a produzia. Entre a morte dos inimigos e a própria imortalidade, estava a trajetória de cada um, e o destino de todos. (Castro, 2002, p. 233-234) Nesse processo, o ritual do terreiro estabelecia a memória no qual O cativo replicava orgulhosamente, afirmando sua condição de matador e canibal, evocando os inimigos que havia morto nas mesmas circunstâncias em que agora se achava. Versão feroz da vítima aquiescente, reivindicava a vingança que o abateria, e alertava: matem-me, pois os meus me vingarão; vocês tombarão da mesma forma. (Castro, 2002, p. 235) Um aspecto não percebido por Vasconcellos foi a importância da honra no processo da vingança e na cultura dos índios do Brasil. José de Alencar percebeu essa importância, porém preferiu associá-la à horna da cavalaria, mas essa é uma outra história. Gonçalves Dias, por outro lado, captou a idéia da importância da honra em I-Juca-Pirama, que transforma-se em memória: [...] Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: “meninos, eu vi!” (Dias, 2002, p. 63) 102 Eduardo Viveiros de Castro assim explica o valor da honra para essa sociedade: Os europeus vieram compartilhar um espaço que já estava povoado pelas figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos, cujos predicados se intercomunicavam. É a partir daí que se podem interpretar as diversas observações sobre a “grande honra” almejada pelos índios ao entregarem suas filhas e irmãs em casamento aos europeus. Além de um cálculo de benefícios econômicos – ter genros ou cunhados entre os senhores de tantos bens era certamente uma consideração de peso –, há que se levar em conta os aspectos não materiais, pois está-se falando de honra. Era em termos desta mesma idéia de honra que os cronistas interpretavam a cessão de mulheres aos cativos de guerra, antes de sua execução cerimonial. A honra parece-me aqui marcar o lugar do valor primordial da cultura tupinambá: a captura de alteridades no exterior do socius e sua subordinação à lógica social ‘interna’, pelo dispositivo prototípico do endividamento matrimonial, eram o motor e motivo principais dessa sociedade, respondendo por seu impulso centrífugo. Guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, nesse processo, alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser atraída; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na paralisia (Castro, 2002, p. 206-207). A explicação de Viveiros de Castro revela outro aspecto importante da sociedade indígena do Brasil Colonial: o casamento e o papel indispensável da mulher indígena para a sobrevivência desse povo e dos primeiros colonizadores: Ao chegarem às costas brasileiras os europeus, notadamente os portugueses, defrontaram-se com problemas semelhantes aos dos próprios homens Tupinambá. Era tão vital para eles quanto para os índios o acesso ao trabalho feminino, e nas condições iniciais da colonização a única forma de se conseguir isto era através do serviço da noiva e da uxorilocalidade. (Fernandes, 2003, p. 236) Esta constatação permite que João Azevedo Fernandes conclua que a grande riqueza dos colonos que vinham para o Brasil não era o “o açúcar – que beneficiava a poucos – ou o ouro, era a própria mulher nativa, seja enquanto esposa ou enquanto cativa” (Fernandes, 2003, p. 275). Por esse motivo, as mulheres índias eram as preferidas por aqueles paulistas que se dedicavam a prear os índios o que “refletia, até certo ponto, a divisão de trabalho adotada inicialmente pelos colonos nas suas unidades de produção, onde mulheres e crianças executavam as funções ligadas ao plantio e à colheita, o que, aliás, seguia a divisão sexual do trabalho presente em muitas sociedades indígenas (Monteiro, 1994, p. 67). A importância da mulher indígena aflora em destaque, nas representações pictóricas européias das cenas de canibalismo, que Raminelli explica assim: As gravuras de Theodor de Bry, portanto, hiperdimensionam a participação feminina nas cerimônias destinadas a ingerir carne humana. A ênfase poderia ser interpretada por 103 intermédio da misoginia amplamente difundida no mundo luterano. O Malleus maleficarum exerceu uma forte influência sobre o pensamento europeu ao longo do século XVI. O comportamento das feiticeiras constitui o seu principal alvo. O ataque às feiticeira, no entanto, acabou resvalando para o sexo feminino. O Malleus difunde a crença de que a perfídia é mais freqüente entre as mulheres que entre os homens. Toda má índole nada vale quando comparada à malícia de uma mulher, sendo ela inimiga da amizade. O seu choro não passa de um blefe. O sexo feminino é uma quimera; possui um belo aspecto, uma aparência atraente, mas o seu contato é fétido e sua companhia, mortal. (Raminelli, 1996, p. 101) Convém esclarecer que o Malleus maleficarum, publicado em 1486, pelos padres dominicanos, inquisidores, H. Kramer e J. Sprenger, tinha como objetivo auxiliar o trabalho do inquisidor na identificação e condenação das bruxas, numa época anterior à Reforma e o seu conteúdo misógino certamente influenciou a sociedade européia como um todo. Simão de Vasconcellos diz que tem uma dúvida sobre a possibilidade dos índios se enquadrarem na religião católica e questiona se eles “no meio de sua gentilidade se podiaõ, ou pòdem saluar alguns delles? ou se todos se perdem?” (Vasconcellos, 1668, p. 211-212). Sua reflexão o leva a fazer uma apologia da misericórdia de Deus, considerando, afinal acerca das almas dos índios, que “sendo certo que morreo Christo por saluallas; & quer Deos que todas se saluem” (Vasconcellos, 1668, p. 212). Em outras palavras, Vasconcellos reafirma o compromisso jesuíta com a graça decorrente da morte de Jesus Cristo. Entre 1654 e 1661, período em que Vasconcellos escrevia no Brasil as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na França, Blaise Pascal participava de uma polêmica religiosa publicando anonimamente dezoito cartas conhecidas como As Provinciais ou Cartas Provinciais (Les provinciales44). Essa polêmica européia poderia ter alterado a base teológica que legitimava a atividade missionária no Brasil. Nas Cartas Provinciais, Pascal fazia uma defesa de Antoine Arnauld e Cornelius Jansenius. Arnauld fora censurado pela Sorbonne, em 1656, por ter defendido Jansenius da acusação de heresia. Cornelius Jansenius (1585-1638), bispo de Ypres, estudou teologia na Universidade de Lovaina e escreveu Augustinus, que foi publicado, após sua morte, em 1640 em Lovaina, e nos anos de 1641 e 1643 em Paris e Rouen, respectivamente. No livro Jansenius fez uma interpretação dos textos de S. Agostinho sobre a graça e a predestinação: O Augustinus provocou enorme celeuma em Lovaina e em Paris, onde Cornet, da Sorbonne, fez condenar as cinco proposições, afirmando que Jansênio negava o livrearbítrio e restringia a salvação apenas aos predestinados. O jansenismo foi condenado pelas Bulas In eminenti de Urbano VIII, em 1643, Cum occasione de Inocêncio X e Ad sacram de Alexandre VII, em 1656, esta confirmando a de Inocêncio X de três anos antes (Bassetto, 2001, p. XIX). 44 Disponível na Biblioteca Nacional de França (http://www.bnf.fr). 104 Antoine Arnauld (1612-1694) foi convertido para o jansenismo pelo seu amigo, o abade de Saint-Cyran, Jean du Verger de Hauranne (1581-1643), que também estudou em Lovaina, onde conheceu Jansenius e aderiu à sua concepção da graça e predestinação. O abade de Saint-Cyran teve diferenças políticas com o cardeal Richelieu e por isso foi perseguido e preso em 1638, sendo libertado em 1642, após a morte do cardeal. Arnauld doutorou-se em teologia na Sorbonne em 1641, e, devido à defesa das teses de Jansenius, condenadas pelo papa, foi censurado e expulso da Sorbonne em 1656. Refugiou-se no mosteiro de Port-Royal de onde saiu apenas em 1668, após a promulgação de um formulário, do qual foi signatário, que obrigava a todos os religiosos da França a repudiar e condenar as teses de Jansenius. A censura imposta a Antoine Arnauld pela Sorbonne foi o alvo da crítica feita por Blaise Pascal nas primeiras Cartas Provinciais. A forma inicial do discurso escolhida por Pascal foi a de uma carta a um amigo, em que o emissor busca esclarecer, junto a alguns interlocutores, aspectos sobre a religião católica simulando ingenuidade sobre esses assuntos. Nas primeiras cartas, Pascal trata da questão da graça e da censura de Arnauld, sem, no entanto, pretender tomar a defesa da posição dele junto aos teólogos, mas, antes, visava disseminar e popularizar a polêmica religiosa. Depois de estabelecer na quarta carta que existem duas concepções da graça divina, a que é proposta pelos jansenistas e a outra proposta pelos jesuítas, Pascal elege a partir da quinta carta, como objeto da polêmica, o probabilismo adotado pelos jesuítas, objetivando apresentá-los como adeptos de um laxismo exacerbado. As dez primeiras cartas não tiveram um destinatário específico. A partir da décima primeira, entretanto, as cartas passaram a ser dirigidas aos “reverendos padres jesuítas”, sendo que a décima sétima e a décima oitava foram diretamente endereçadas ao “reverendo padre Annat, jesuíta”, Provincial da França. Recentemente, Benoît Denis, em Literatura e engajamento, definiu literatura engajada como “uma prática literária estreitamente associada à política, aos debates gerados por ela e aos combates que ela implica” (Denis, 2002, p. 9), porém, ainda na apresentação, fez uma ressalva dizendo que reservava a expressão “literatura engajada” ao século XX, a partir do caso Dreyfus. Por outro lado, para designar a literatura de combate e controvérsia o autor usa a expressão “literatura de engajamento”45 (Denis, 2002, p. 11-12), na qual classifica as Cartas Provinciais de Pascal, que, segundo ele, 45 Não concordamos com essa classificação que poderia levar o leitor a deduzir que poderia haver um autor que não estivesse engajado. Na concepção teórica que adotamos, o discurso não é neutro e o autor elabora seu 105 [...] foram objeto de um importante trabalho de escritura e reescritura, do qual um dos objetivos foi o de abrandar o mais possível o aspecto puramente teológico do debate. Dessa vontade de atingir um público profano resulta, igualmente, o fato de que As Provinciais recorrem a uma série de estratégias retóricas muito combinadas, com vistas a persuadir os destinatários do bom fundamento das posições de Port-Royal (Denis, 2002, p. 127). Esta afirmação está bem de acordo com a idéia de Pascal expressa no primeiro artigo de Pensamentos, intitulado “Pensamentos sobre o espírito e sobre o estilo”, sobre o que seria a eloqüência, que “persuade pela doçura e não pela autoridade” (Pascal, 1979, p. 41): A eloqüência é a arte de dizer as coisas de maneira: l.° que aqueles a quem falamos possam entendê-las sem dificuldade e com prazer; 2.° que nelas se sintam interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente pelo amor-próprio a refletir sobre elas. Consiste, portanto, em uma correspondência que procuramos estabelecer entre o espírito e o coração daqueles a quem falamos, por um lado, e, por outro, entre os pensamentos e as expressões de que nos servimos; o que pressupõe termos estudado muito bem o mecanismo do coração do homem a fim de conhecer-lhe as molas e encontrar, em seguida, as proporções certas do discurso que desejamos ajustar-lhe. Cumpre colocarmo-nos no lugar dos que devem ouvir-nos, e experimentar também em nosso próprio coração a forma dada ao discurso, para ver se um se adapta ao outro e se podemos ter a certeza de que o ouvinte será forçado a render-se. É preciso, na medida do possível, confinarmo-nos dentro da naturalidade mais singela; não fazermos grande o que é pequeno, nem pequeno o que é grande. Não basta que uma coisa seja bela, é necessário que seja adequada ao assunto, que nada tenha de mais, nem que nada lhe falte. (Pascal, 1979, p. 41) A persuasão de Pascal através da doçura pode ser exemplificada através das suas cartas, cujo estilo expressivo permite que Koyré destaque-as como “uma obra-prima de ironia polida e severa” ou como uma “insuperável obra-prima de polêmica impiedosa e feroz” (Koyré, 1982, p. 363). As afirmações de Koyré e a leitura das Cartas Provinciais, permitemnos dizer que a carta foi a forma em que o estilo expressivo de Pascal conseguiu atingir o seu ápice. Vejamos um exemplo. Na quarta Carta Provincial, Pascal apresenta uma personagem jesuíta que, em defesa de sua posição junto aos interlocutores – o emissor e um jansenista não identificado –, recorre a Aristóteles que afirma que “qu'une action ne peut être imputée à blâme lorsqu'elle est involontaire”46 (Pascal, 2001, p. 80). O jansenista retruca argumentando que, embora concorde que Aristóteles tenha feito esta afirmação no livro três da Ética, nesse mesmo livro, segundo o jansenista, faz a seguinte consideração: discurso orientado por valores, o que permite concluir que o autor está sempre engajado, tendo consciência ou não deste fato. 46 uma ação não pode ser atribuída à injúria, se ela é involuntária (Pascal, 2001, p. 80). 106 Tous les méchants ignorent ce qu'ils doivent faire et ce qu'ils doivent fuir; et c'est cela même qui les rend méchants et vicieux. C'est pourquoi on ne peut pas dire que, parce qu'un homme ignore ce qu'il est à propos qu'il fasse pour satisfaire à son devoir, son action soit involontaire. Car cette ignorance dans le choix du bien et du mal ne fait pas qu'une action soit involontaire, mais seulement qu'elle est vicieuse. L'on doit dire la même chose de celui qui ignore en général les règles de son devoir, puisque cette ignorance rend les hommes dignes de blâme, et non d'excuse. Et ainsi l'ignorance qui rend les actions involontaires et excusables est seulement celle qui regarde le fait en particulier, et ses circonstances singulières. Car alors on pardonne à un homme, et on l'excuse, et on le considère comme ayant agi contre son gré.47 (Pascal, 2001, p. 82) Entretanto, ao consultarmos o capítulo 1, do livro 3, da Ética a Nicômaco, referido pelo autor, encontramos o mesmo trecho da citação, com uma tradução atual, apresentando um conteúdo diferente: Com efeito, todo homem perverso ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e é em razão do erro desta espécie que os homens se tornam injustos e, em geral, maus. Porém, o termo “involuntário” não se aplica quando o homem ignora seus interesses, pois não é a ignorância na escolha do que deve fazer o que causa a ação involuntária (antes, essa torna os homens maus), nem a ignorância do universal (o que é passível de censura), mas a ignorância dos particulares, isto é, das circunstâncias da ação e os objetos com que ele se relaciona. São exatamente esses que merecem compaixão e perdão, pois a pessoa que ignora qualquer dessas coisas age involuntariamente. (Aristóteles, 2003, p. 58) Da leitura das duas citações percebe-se a diferença na interpretação da idéia de ação involuntária de Aristóteles, o que poderia ser atribuído à tradução e que é possível, se considerarmos que Aristóteles escreveu em grego e os seus textos circularam na Europa, desde a Idade Média, sob a forma de traduções nem sempre fiéis, em latim. Além disso, Pascal faz a citação em francês, ou seja, tratava-se de uma tradução de uma tradução. Por outro lado, a citação de Pascal mostra a opção do autor pela culpabilização do ser, independentemente do seu conhecimento acerca do que seria o bem e o mal. Na carta, o jansenista completa dizendo que o jesuíta não deveria buscar suporte no príncipe dos filósofos, Aristóteles, e que não deveria se opor ao príncipe dos teólogos, S. Agostinho, que no primeiro livro de Retratações, apregoa: 47 Todos os homens perversos ignoram o que eles devem fazer e aquilo de que devem fugir, e é exatamente isto que os faz perversos e depravados. E é por esta razão que não se pode dizer que, porque um homem ignora o que ele é relativamente ao que ele faz para satisfazer seu dever, que sua ação seja involuntária. Porque esta ignorância na escolha do bem e do mal não faz com que uma ação seja involuntária, apenas a torna viciosa. Deve-se dizer a mesma coisa daquele que ignora em geral as regras de seu dever, já que esta ignorância torna os homens dignos de censura, não de desculpas. E assim, a ignorância que causa ações involuntárias e perdoáveis é somente aquela que se refere ao fato particular e a sua circunstância singular. Porque então perdoa-se a um homem, e o desculpamos e o consideramos como tendo agido contra sua vontade. (Pascal, 2001, p. 82) 107 Ceux qui pèchent par ignorance ne font leur action que parce qu'ils la veulent faire, quoiqu'ils pèchent sans qu'ils veuillent pécher. Et ainsi ce péché même d'ignorance ne peut être commis que par la volonté de celui qui le commet, mais pas une volonté qui se porte à l'action, et non au péché, ce qui n'empêche pas néanmoins que l'action ne soit péché, parce qu'il suffit pour cela qu'on ait fait ce qu'on était obligé de ne point faire48. (Pascal, 2001, p. 82) A citação não deixa dúvidas sobre a opção de Pascal pela culpa do ser, que além de ser submetido à culpa pelo pecado original é, também, culpado por agir e pecar “por ignorância”. A partir da quinta Carta Provincial, Pascal dá uma guinada e muda o tema da discussão, que passa a ser o de ataque à moral e à política jesuíta. Esta é uma técnica discursiva utilizada para refutar uma acusação, como ensina Aristóteles na Arte Retórica: “acusar, por nossa vez, quem nos acusa, pois seria um absurdo que o acusador fosse julgado indigno de confiança e que suas palavras merecessem confiança” (Aristóteles, s.d., p. 209). Em outras palavras, acusar o acusador para que suas palavras percam o valor. Além disso, Pascal ao escrever as Cartas Provinciais optou pelo uso de um pseudônimo, Louis de Montalte, e assim justificava a necessidade de anonimato: “je dois demeurer dans l'obscurité pour ne pas perdre ma réputation”49 (Pascal, 2001, p. 63). O comportamento de Pascal pode ser melhor compreendido a partir do resgate de alguns episódios da sua vida. O primeiro nos remete a uma época anterior, 1647, quando Pascal escreveu Novas experiências relativas ao vácuo, relatando algumas de suas experiências sobre o vácuo. Alexandre Koyré, na análise que faz deste trabalho conclui que o relato de Pascal apresenta duas lacunas. A primeira refere-se à omissão dos nomes dos “sábios e curiosos” parisienses, que tentaram repetir as experiências de Torricelli em Paris e não conseguiram, e, a segunda, à omissão do nome de Torricelli (Koyré, 1982, p. 356). Além disso, Koyré acentua: [...] não quero afirmar que Pascal não fez as experiências que nos diz ter feito. Em compensação, creio poder afirmar que ele não as descreveu tal como as fez e não expôs seus resultados tal como se verificaram sob seus olhos. Certamente ele nos escondeu alguma coisa (Koyré, 1982, p. 360). 48 Os que pecam por ignorância só praticam sua ação porque querem praticá-la, ainda que pequem sem desejá-lo. E assim o próprio pecado de ignorância só pode ser cometido pela vontade daquele que o comete, mas por uma vontade que se dirige à ação, e não ao pecado, o que não impede, entretanto, que tal ação seja pecado, porque para isso é suficiente que se faça aquilo que se estava absolutamente obrigado a não fazer. (Pascal, 2001, p. 82) 49 eu devo permenecer na obscuridade para não perder minha reputação (Pascal, 2001, p. 63). 108 Continuando, Koyré ainda ressalta que Pascal não menciona o fato de a água borbulhar nos tubos e que “o fato de a água borbulhar não podia deixar de produzir-se nos tubos de Pascal, pois é inevitável” (Koyré, 1982, p. 361). Outro aspecto apontado por Koyré no seu artigo, diz respeito à tentativa de se reproduzir, em 1950, a experiência descrita por Pascal em que eram utilizados materiais de difícil construção – tubo de vidro com 46 pés (cerca de 14 m) ou sifão escaleno cuja perna maior é de 50 pés (cerca de 15 m) – sendo que nessa tentativa foi preciso substituir o tubo de vidro de 15 m por um conjunto de tubos de 2,25 m (Koyré, 1982, p. 361). Em outras palavras, trezentos anos antes da repetição da experiência, Pascal dificilmente teria conseguido os tubos que ele diz ter utilizado na sua experiência. Após a publicação de Novas experiências relativas ao vácuo, o padre Noel da Companhia de Jesus escreveu uma carta a Pascal criticando o livro usando “argumentos antigos e as concepções cartesianas” e defendendo que “o vácuo aparente dos tubos de Torricelli estava cheio de um ar purificado que entra pelos pequenos poros do vidro” (Koyré, 1982, p. 363). Pascal respondeu em uma carta que Koyré classifica como “uma obra-prima de ironia polida e severa” que administra ao Vice-Provincial “uma lição de método e uma lição de física” (Koyré, 1982, p. 363). O padre Noel responde e Pascal, numa carta ao senhor Le Pailleur, coloca o padre Noel numa situação ridícula refutando as suas objeções metafísicas. Koyré, entretanto, questiona se o padre Noel é, verdadeiramente, ridículo ou estúpido quando escreve: Este espaço que não é nem Deus, nem criatura, nem corpo, nem espírito, nem substância, nem acidente, que transmite a luz sem ser transparente, que resiste sem ser resistência, que é imóvel e se transporta com o tubo, que está em toda parte e não está em parte alguma, que tudo faz e nada faz, etc (Koyré, 1982, p. 363). Koyré questiona Pascal quando ele diz, em resposta ao “nem Deus, nem criatura” do padre Noel que “os mistérios relativos à Divindade são santos demais para que sejam profanados em nossas disputas” e que Nem corpo, nem espírito. É verdade que o espaço não é nem corpo, nem espírito, mas é espaço; assim, o tempo não é nem corpo, nem espírito, mas é tempo; e como o tempo não deixa de ser, embora não seja nenhuma dessas coisas, o espaço vazio bem pode existir, sem que, por isso, seja corpo ou espírito. Nem substância, nem acidente. Assim é, se se entende pela palavra substância o que é corpo ou espírito; pois, nesse sentido, o espaço não será nem substância, nem acidente; mas será espaço, como, nesse mesmo sentido, o tempo não é nem substância, nem acidente, mas é tempo, porque para ser, não é necessário ser substância ou acidente (Koyré, 1982, p. 364). 109 Nesse trecho, indaga Koyré, “Pascal não dá um tratamento um pouco desatento, um pouco irrefletido, a graves problemas metafísicos que preocuparam os maiores espíritos de seu tempo?” Concluindo que “em todo caso, é certo que, quando lemos tudo isso em Gassendi, no qual Pascal vai buscá-lo, admiramo-lo muito menos. E até não o admiramos de modo algum”. E prossegue [...] em compensação, quando encontramos as objeções do Padre Noel em outros autores, elas não nos parecem ridículas. Pois o que diz o Padre Noel é exatamente o que nos dizem Descartes, Spinoza e Leibnitz que, todos eles, coincidem na negação do vácuo e se interrogam, muito seriamente – Newton também o faz –, sobre o problema das possíveis relações entre um espaço que, compreendido como o compreende Pascal, não pode ser uma criatura ou Deus, com o risco de dar respostas diferentes a esse problema que todos eles levaram muito a sério (Koyré, 1982, p. 364). Koyré conclui a análise da disputa travada entre Pascal e o padre Noel dizendo que “a magia da expressão de Pascal é algo de perigoso, ao qual é muito difícil, mas tanto mais necessário resistir a qualquer preço. Porque ela nos induz em erros históricos e nos conduz a injustiças e inconseqüências” (Koyré, 1982, p. 364). A disputa com o padre Noel sobre o vácuo chegou ao ponto de o padre Noel acusar Pascal de “se ter apropriado das descobertas devidas a Torricelli no decurso dos seus trabalhos sobre o vácuo” (Lacouture, 1993, p. 371), o que na opinião de Lacouture: Era duvidar ao mesmo tempo da sua competência e da sua honra: e ele era homem para não tolerar nem uma nem outra imputação. Ao proceder assim, o medíocre Noël não teve consigo a Companhia; mas o nosso homem de Auvergnat [Pascal] misturou-os de tal maneira que, no seu espírito, não havia baixeza que não devesse imputar-se aos jesuítas. (Lacouture, 1993, p. 371) A disputa travada entre Pascal e o padre Noel, em 1647-1648, e as análises e reflexões de Koyré e de Lacouture, permitem ao leitor das Cartas Provinciais compreender melhor uma das motivações de Pascal para escrevê-las. Se quisermos entender um pouco mais o espírito de Blaise Pascal podemos recorrer a um outro episódio, posterior As Provinciais. Sob o pseudônimo50 de Amos Dettonville, Pascal apresentou, em junho de 1658, um desafio aos matemáticos da Europa, em carta circular, propondo que solucionassem seis questões sobre “a área de um segmento da ciclóide, o centro de gravidade desse segmento, os volumes e os centros de gravidade dos corpos de revolução formados por esse segmento que gira em torno de sua base e de seu eixo” (Koyré, 1982, p. 50 Outros pseudônimos utilizados por Pascal foram: Salomon de Tultie e Louis de Montalte, este último utilizado nas Cartas Provinciais, que são anagramas um dos outros (Pascal, 1979, p. 42 nota 4). 110 352). Koyré destaca alguns aspectos interessantes sobre essa proposta de Pascal. Em primeiro lugar o prazo exíguo para apresentação da solução, cerca de três meses, uma vez que a proposta foi lançada em junho de 1658 e as soluções deveriam chegar até 1º de outubro daquele mesmo ano. Em segundo, o próprio Pascal estudou, por muito tempo, o problema proposto originalmente por Mersenne, em 1636. O que permite que Koyré afirme que “Pascal não tinha nenhum desejo de arriscar-se a perder suas sessenta pistolas e estava firmemente decidido a ganhar seu próprio concurso” (Koyré, 1982, p. 352-353). De fato, em dezembro de 1658, numa Carta do senhor de Carcavy expõe seus resultados e os métodos empregados para obtê-los. Em outras palavras, Pascal já tinha a solução para o problema proposto, com um prazo exíguo de solução, de forma que praticamente se assegurava que ninguém conseguiria resolver o problema, reservando para si próprio o mérito da solução. Outro ponto importante envolvendo as Cartas Provinciais relaciona-se a Port-Royal, um mosteiro construído durante a quarta cruzada, em 1202, por Mathilde de Garlande, “como reforço de suas orações pelo feliz retorno do marido” (Bassetto, 2001, p. X). Em 1223, o papa Honório II concedeu ao mosteiro vários privilégios canônicos e, em 1255, foi entregue às monjas cistercienses e o rei Luis IX (1214-1270) destinou uma subvenção permanente que foi paga até o século XVII. O mosteiro não teve nenhum destaque nos séculos seguintes. A partir do fim do século XVI o mosteiro passou a uma posição de destaque devido à família de Antoine Arnauld (1560-1619), pai, que teve seis de suas filhas como monjas naquele mosteiro. O patriarca Antoine Arnauld traduziu as Confissões de Santo Agostinho, obras de Teresa de Ávila e outras obras religiosas. Sua filha Jacqueline Marie Angélique foi entregue ao mosteiro, com sete anos de idade, para ser educada e aos onze anos, em 1602, foi elevada a condição de abadessa de Port-Royal. Para isso o pai teve que fazer uma manobra demonstrando que ela tinha dezessete anos (!). Ela introduziu no mosteiro uma severa reforma resgatando o antigo rigor monástico cisterciense de clausura total. Por indicação do pai, aceitou o abade de Saint-Cyran, Jean du Verger de Hauranne, como diretor espiritual do mosteiro, que, por sua vez, introduziu o jansenismo naquela abadia. Na concepção de Hauranne A predestinação mais não é do que o amor eterno que Deus dedica a certos filhos de Adão depois de os ter visto cair na condenação por causa do pecado de seu pai, deixando lá os outros e nada ordenando para eles senão o inferno que mereceram... Vede por isto o agradecimento que devem a Deus aqueles que se salvam, por os ter separado, antes de nascerem, da companhia dos outros homens (Hauranne apud Lacouture, 1993, p. 368). 111 A citação mostra a concepção jansenista da graça, atribuída por Deus a algumas pessoas, àquelas predestinadas à salvação, e a orientação espiritual do mosteiro de Port-Royal onde Jacqueline Pascal, irmã um pouco mais nova de Pascal, ingressou em 1652 como irmã Santa Eufêmia. Assim, quando Pascal defende as posições de Port-Royal não o faz apenas em nome de Antoine Arnauld e do jansenismo, mas inclui em sua defesa as freiras de Port-Royal e, entre elas, sua irmã Jacqueline. Esses detalhes complementam o quadro que permite entender a posição de Pascal e o seu discurso nas Cartas Provinciais, que Lacouture resume como o resultado simultâneo de [...] um sábio ferido no seu orgulho por um jesuíta mesquinho, um irmão insultado na sua irmã, um católico constantemente alertado pelos seus amigos de Port-Royal contra os “casuístas” e os “probabilistas” da Companhia, e um predestinado que a fulminante revelação de 23 de Novembro de 165451 incluiu sem dúvida no pequeno número dos eleitos, que vai responder ao apelo dos solitários no princípio de 1656. (Lacouture, 1993, p. 371) Esse “sábio ferido” entendia que o homem podia obter os conhecimentos através do coração e da razão, que era o ponto crucial de sua diferença com René Descartes que, em 1641, na carta introdução de Meditações, dirigida ao Deão e doutores da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris, afirmava que a existência de Deus e da alma devem ser objeto de demonstração “mais pelas razões da Filosofia que da Teologia” porque para “persuadir os infiéis” dever-se-ia provar “essas duas coisas pela razão natural”. Na explicação que se segue, Descartes esclarece que a demonstração é necessária para que se evite a acusação dos infiéis, de circularidade na afirmação de que “é preciso acreditar que há um Deus, porque isto é assim ensinado nas Santas Escrituras, e, de outro lado, que é necessário acreditar nas Santas Escrituras, porque elas vêm de Deus” (Descartes, 1979, p. 75). A proposta de Descartes consistia numa mudança do discurso religioso, que deveria ser objeto de demonstração filosófica porque “a principal razão, que leva muitos ímpios a não quererem acreditar de maneira alguma que há um Deus e que a alma humana é distinta do corpo, é que eles dizem que ninguém até aqui pode demonstrar essas duas coisas” (Descartes, 1979, p. 76). Em outras palavras, a proposta de Descartes é substituir a fé, pura e simples, por uma fé que é o resultado ou a conclusão de uma dedução lógica. Blaise Pascal, por outro lado, entende que “é o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”, e que “conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e 51 Data da segunda conversão de Pascal ao catolicismo. 112 é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los” (Pascal, 1979, p. 107). Dessa forma, quando Pascal afirma que “o coração tem suas razões, que a razão não conhece” (Pascal, 1979, p. 107), não está afirmando que a emoção tem suas razões, que a razão não conhece, como é interpretado em geral, mas sim que: a fé tem suas razões, que a razão não conhece. Assim, com uma diferença de aproximadamente quinze anos (1641-1656) temos duas posições radicalmente opostas. De um lado, René Descartes propondo uma religião católica em que a existência de Deus e da fé sejam racionalmente demonstrados para conversão dos infiéis, e de outro, Blaise Pascal, propondo uma religião católica fundada na predestinação de alguns e que Deus e a fé não podem ser entendidos através da razão. A base teológica em que Blaise Pascal se apóia é a de S. Agostinho, todavia, nas Cartas Provinciais, ele faz algumas poucas referências a S. Tomás tentando sempre aproximar a posição de S. Agostinho sobre a graça com a posição de S. Tomás. Nesse ponto devemos recordar da quarta carta em que, como vimos, o amigo jansenista do narrador diz ao jesuíta que ele não deveria seguir a orientação do príncipe dos filósofos, Aristóteles, mas sim a do príncipe dos teólogos, S. Agostinho, sobre a ignorância do que é certo ou errado e o pecado. Sobre essa mesma questão, Simão de Vasconcellos, ao defender a ignorância dos índios do Brasil sobre o que era certo ou errado, afirma: [...] os homens destas partes nas treuas de seu gentilismo viuiaõ, ordinariamente fallando, com ignorancia inuenciuel da Fè diuina; & por conseguinte sem peccado de infidelidade, porque houuessem de ser condenados. Esta resolução, suposto que foi refutada, & desfauorecida de muitos; com tudo he recebida hoje dos melhores, & mais pios Doutores, com Santo Thomas Secunda secundae quaest. 10. art. 1. & os mais à margem citados. (Vasconcellos, 1668, p. 212-213) Nesse parágrafo, Vasconcellos faz referência à Summa Theologica, de S. Tomás de Aquino, e acrescenta no parágrafo seguinte os comentários sobre a “ignorância invencível”, utilizando como referência a concepção de S. Tomás tratada na questão 76 da primeira parte da segunda parte da Summa52: Article 3. Whether ignorance excuses from sin altogether? [...] I answer that, Ignorance, by its very nature, renders the act which it causes involuntary. Now it has already been stated (1,2) that ignorance is said to cause the act which the contrary knowledge would have prevented; so that this act, if knowledge were to hand, would be contrary to the will, which is the meaning of the word involuntary. If, however, the knowledge, which is removed by ignorance, would not have prevented the 52 As citações da Summa Teológica foram obtidas na Internet (http://www.newadvent.org/summa). 113 act, on account of the inclination of the will thereto, the lack of this knowledge does not make that man unwilling, but not willing, as stated in Ethic. iii, 1: and such like ignorance which is not the cause of the sinful act, as already stated, since it does not make the act to be involuntary, does not excuse from sin. The same applies to any ignorance that does not cause, but follows or accompanies the sinful act. On the other hand, ignorance which is the cause of the act, since it makes it to be involuntary, of its very nature excuses from sin, because voluntariness is essential to sin. But it may fail to excuse altogether from sin, and this for two reasons. First, on the part of the thing itself which is not known. For ignorance excuses from sin, in so far as something is not known to be a sin. Now it may happen that a person ignores some circumstance of a sin, the knowledge of which circumstance would prevent him from sinning, whether it belong to the substance of the sin, or not; and nevertheless his knowledge is sufficient for him to be aware that the act is sinful; for instance, if a man strike someone, knowing that it is a man (which suffices for it to be sinful) and yet be ignorant of the fact that it is his father, (which is a circumstance constituting another species of sin); or, suppose that he is unaware that this man will defend himself and strike him back, and that if he had known this, he would not have struck him (which does not affect the sinfulness of the act). Wherefore, though this man sins through ignorance, yet he is not altogether excused, because, not withstanding, he has knowledge of the sin. Secondly, this may happen on the part of the ignorance itself, because, to wit, this ignorance is voluntary, either directly, as when a man wishes of set purpose to be ignorant of certain things that he may sin the more freely; or indirectly, as when a man, through stress of work or other occupations, neglects to acquire the knowledge which would restrain him from sin. For such like negligence renders the ignorance itself voluntary and sinful, provided it be about matters one is bound and able to know. Consequently this ignorance does not altogether excuse from sin. If, however, the ignorance be such as to be entirely involuntary, either through being invincible, or through being of matters one is not bound to know, then such like ignorance excuses from sin altogether.53 (Summa Theologica) 53 Artigo 3. Se a ignorância perdoa totalmente o pecado? [...] Eu respondo que, a ignorância, por sua natureza, ocasiona o ato que causa involuntariamente. Já foi estabelecido (1, 2) que a ignorância é causadora do ato que o conhecimento contrário deveria prevenir, dessa forma, este ato, se o conhecimento estivesse à mão, seria contrário à vontade, que é o significado da palavra involuntário. Se, todavia, o conhecimento, que é removido pela ignorância, não preveniu o ato, por conta da inclinação da vontade, a falta desse conhecimento não faz este homem involuntário, mas não-voluntário, como estabelecido na Ética, III, 1: e uma ignorância desse tipo que não é a causa de ato pecaminoso, como já foi estabelecido, visto que ela não faz o ato ser involuntário e não perdoa o pecado. O mesmo se aplica a qualquer ignorância que não causa, mas que segue ou acompanha o ato pecaminoso. Por outro lado, a ignorância que é a causa do ato, desde que involuntária, pela sua própria natureza, perdoa o pecado, porque a vontade é essencial para pecar. Mas a ignorância pode não perdoar totalmente o pecado por duas razões. A primeira, na parte do que não é conhecido. A ignorância desculpa o pecado, somente se algo não é conhecido como sendo pecado. Pode acontecer que uma pessoa ignore alguma circunstância de um pecado, o conhecimento dessa circunstância a preveniria de pecar, se a circunstância pertencesse à substância do pecado ou não, e, no entanto, seu conhecimento é suficiente para a pessoa estar ciente que o ato é pecaminoso. Por exemplo, se um homem agride alguém, sabendo que é um homem (o que é suficiente para que seja pecaminoso) e além disso ignorar o fato que ele é seu pai (que é uma circunstância constituindo outra espécie de pecado); ou, suponha que ele não sabe que esse homem se defenderá e o agredirá também, e que se ele soubesse isso ele não o agrediria (o que não afeta a iniqüidade do ato). Por conseguinte, apesar desse homem pecar por ignorância, ele não é perdoado porque, sem oposição, ele tinha conhecimento do pecado. A segunda, pode acontecer na parte da ignorância, porque esta ignorância é voluntária, seja diretamente, como quando um homem estabelece o propósito de ser ignorante de algumas coisas que ele poderia pecar mais facilmente, ou, indiretamente, como quando um homem, através da tensão do trabalho ou outra ocupações, negligencia a obtenção do conhecimento que o reprimiria de pecar. Este tipo de negligência faz a ignorância voluntária e pecaminosa, desde que sobre matérias que cada um é obrigado e capaz de saber. Conseqüentemente, esta ignorância não perdoa o pecado. Se, entretanto, a ignorância é tal que é inteiramente involuntária, seja por ser invencível ou devida a matéria que não se é obrigado a saber, então este tipo de ignorância perdoa totalmente o pecado. (...) 114 A citação deste artigo da Summa Theologica esclarece a posição de S. Tomás sobre a “ignorância invencível”, que ele define no artigo 2 dessa mesma questão 76, como “ignorance of such like things is called ‘invincible’, because it cannot be overcome by study. For this reason such like ignorance, not being voluntary, since it is not in our power to be rid of it, is not a sin”54. Ainda na questão 76, o artigo primeiro, S. Tomás faz referência ao livro III, capítulo 1 da Ética, para legitimar a diferença do pecado devido à ação “por ignorância” e à ação “na ignorância”, que Aristóteles apresenta da seguinte forma: “agir por ignorância também parece diferir de agir na ignorância, pois se considera que um homem embriagado ou encolerizado age não por ignorância, mas em razão de uma das causas mencionadas, sem saber o faz, e na ignorância” (Aristóteles, 2003, p. 58). Este pequeno trecho do capítulo primeiro do livro III da Ética é exatamente o parágrafo que antecede o parágrafo do livro III, da Ética, citado por Pascal na sua quarta carta. Em outras palavras, Pascal não estava disputando com os jesuítas, mas com S. Tomás através de Aristóteles. Podemos resumir, dizendo que a polêmica de Blaise Pascal com os jesuítas buscava desqualificá-los, apelando para os abusos do casuísmo e do probabilismo, que não eram de fato o foco da disputa, mas sim a predestinação e a graça na concepção de S. Agostinho e a posição contrária da Sorbonne. Do outro lado temos os jesuítas que, na sua formação, seguiam o dominicano S. Tomás de Aquino, como podemos comprovar no Ratio Studiorum55. Assim, a discussão era, na realidade, mais um capítulo de uma disputa teológica, de longa data, que teve início no fim do século IV, entre Pelágio (360-422), adepto do livre-arbítrio e que negava a necessidade da graça, e S. Agostinho (354-430), que defendia a predestinação e a graça, tese esta que acabou por prevalecer naquela disputa. No século XIII, S. Tomás de Aquino (1225 ou 1227-1274) no trabalho de organização teológica da religião católica retomou alguns pontos dessa disputa estabelecendo, por exemplo, dois tipos de graça, o que de certa forma diminuiu a força das teses de S. Agostinho. As diferenças entre as concepções teológicas de S. Agostinho e S. Tomás têm um componente filosófico, uma vez que as idéias de S. Agostinho podem ser consideradas platônicas, ou neoplatônicas, enquanto S. Tomás resgata as idéias de Aristóteles: Longe de um pobre frade vir negar que vós trazeis na cabeça esses deslumbrantes diamantes, todos talhados nas formas cristalográficas mais perfeitas, brilhantes de luz 54 a ignorância deste tipo de coisas é chamada ‘invencível’ porque não pode ser superada através da meditação. Por esta razão, este tipo de ignorância, não sendo voluntária, posto que não está em nosso poder ser libertado dela, não é um pecado. 55 Uma tradução do Ratio Studiorum pode ser encontrada em: FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952. 115 celestial; e os tendes aí quase antes de começar a pensar, para não dizer antes de começar a ver, ouvir e sentir. Mas eu não tenho vergonha de dizer que a minha razão é alimentada pelos meus sentidos; que devo muito do que penso ao que vejo, cheiro, provo e palpo; e que, para olhar as coisas de um ângulo racional, me sinto obrigado a considerar real esta realidade. Em resumo e com toda a humildade: não creio que Deus quisesse que o homem exercesse unicamente essa espécie peculiar, elevada e abstrata de intelecto que tendes a fortuna de possuir; mas creio que há um campo intermédio de fatos que são apresentados pelos sentidos como matéria para a razão; e que nesse campo esta tem o direito de governar, como representante de Deus dentro do homem. É verdade que tudo isto é inferior aos anjos, mas é muito superior aos animais e a todos os objetos materiais que o homem encontra à sua volta. Realmente, o homem pode ser também um objeto, e até um objeto deplorável. Mas o que o homem fez, o homem pode fazê-lo; e, se um velho pagão antiquado, chamado Aristóteles, pode ajudar-me a fazê-lo, agradecer-lho-ei com toda a humildade. (Chesterton, 2002, p. 35-36) Por outro lado, Pascal reproduz na sua décima quarta Carta Provincial a idéia de que “aquele que não está com Jesus Cristo está contra ele” como sendo as duas classes em que os homens estão divididos: “Il y a deux peuples et deux mondes répandus sur toute la terre, selon saint Augustin: le monde des enfants de Dieu, qui forme un corps dont Jésus-Christ est le Chef et le Roi; et le monde ennemi de Dieu, dont le diable est le Chef et le Roi”56 (Pascal, 2001, p. 229). Essa interpretação de Pascal sobre a teologia de S. Agostinho aproxima-a do preceito da religião fundada pelo profeta Maniqueu (216-274?), da criação do duplo antagônico do bem e do mal. Nessa perspectiva, é difícil aceitar uma das justificativas apresentadas por Ronald Raminelli, em Imagens da Colonização, em que ele afirma que no Brasil colonial a teologia de S. Agostinho contribuiu “para respaldar a catequese e fortalecer a esperança de transformar os nativos em cristãos fiéis” (Raminelli, 1996, p. 164). Entendemos, pelo contrário, que a catequese era uma missão doutrinária e que “Santo Tomás tinha ensinado que a pregação apostólica atingira todas as nações, mas não todos os homens em particular. Por isso era necessário pregar, com força, com pressa, e em alta voz” (Hoornaert, 1992, p. 25). O que respaldava essa missão doutrinária era a interpretação de S. Tomás de Aquino da Epístola aos Romanos [Rm: 10, 14], de S. Paulo, sobre a necessidade de pregação para que o gentio tivesse conhecimento da fé católica. Nesse sentido, Simão de Vasconcellos afirma que os índios não poderiam “peccar contra o preceito da Fé, que naõ sabiaõ. He o que claramente diz S. Paulo ad Roman. 10. Quomodo credent, si non audierunt? aut quomodo audient sine praedicante? Como hauiaõ de crer, se naõ ouuiaõ? ou como hauiaõ de ouuir, sem quem lhes prégasse?” (Vasconcellos, 1668, p. 213). 56 há dois povos e dois mundos sobre a terra, segundo Santo Agostinho: o mundo dos filhos de Deus, que formam um corpo do qual Jesus Cristo é o Chefe e Rei; e o mundo dos inimigos de Deus, do qual o diabo é o Chefe e o Rei. (Pascal, 2001, p. 229) 116 Dessa forma, a defesa de Simão de Vasconcellos de que a ignorância dos índios não poderia ser considerada como pecado, buscava legitimar, no plano discursivo, a atividade missionária que poderia ser comprometida, ou mesmo inviabilizada, se dependesse da teologia de S. Agostinho fundada na predestinação, na graça e nos dois mundos antagônicos, como defendia Blaise Pascal. Por outro lado, é uma demonstração de que Vasconcellos encontrava-se sintonizado com a controvérsia européia acerca da lei da graça. O mundo dos predestinados é um mundo dividido, como o da interpretação dos dois mundos de S. Agostinho por Blaise Pascal. Num mundo desses há espaço para cruzadas como a que foi lançada em 1208 pelo papa Inocêncio III, contra os cátaros no sul da França. Nessa cruzada, em julho de 1209, um exército cruzado atacou a cidade de Bézier massacrando a população, sem distinção de sexo, idade ou credo (Macedo, 2000, p.19-22). Não muito distante desta perspectiva encontramos o convite feito pelo governador Francisco Barreto aos paulistas que preavam índios para que participassem da “desinfestação” de índios na Bahia (Monteiro, 1994, p. 92-93), no mesmo ano de 1657 em que Pascal discutia com os jesuítas na Europa e que Antonio Vieira pregava o sermão do Espírito Santo. Era a guerra dos bárbaros, objeto do estudo de Maira Idalina da Cruz Pires, em Guerra dos bárbaros (2002), e de Pedro Puntoni, em A guerra dos bárbaros (2002). Os colonizadores do Brasil, além de exterminar os “bárbaros”, os índios Tapuia, com o auxílio dos índios que Vasconcellos chamava de “mansos”, exterminaram, também, esses últimos através da transmissão de doenças contagiosas, uma vez que “os nativos americanos simplesmente não estavam preparados para resistir a algumas infecções para as quais eles não possuíam quaisquer anticorpos” (Fernandes, 2003, p. 173). Fernandes mostra, com base em dados de Warren Dean, em A ferro e fogo (1996), que a população Tupinambá da costa, entre São Paulo e Rio de Janeiro, diminuiu em aproximadamente 95% do descobrimento até 1600, quando esses índios eram apenas quatro ou cinco mil (Fernandes, 2003, p. 174). Esse decréscimo populacional era conseqüência das guerras, das doenças e do confinamento dos índios nos aldeamentos, o que facilitava a propagação das doenças contagiosas. Entretanto, discordamos da afirmação de que se “realizava um genocídio deliberado” (Fernandes, 2003, p. 175). Concordamos que a invasão européia da América produziu aquilo que Todorov chama de “o maior genocídio da história da humanidade” (Todorov, 1999, p. 6), todavia, a expressão “genocídio deliberado” utilizada por Fernandes não é adequada quando refere-se à transmissão de doenças contagiosas porque, naquela época, a medicina ainda não havia descoberto as formas de contágio, não sendo possível afirmar que o contágio era deliberado. Da mesma forma, acreditamos que o autor utilizou de forma inadequada a 117 expressão “guerra bacteriológica”, para expressar a contaminação de índios por parte dos jesuítas. O argumento apresentado no trecho abaixo teria valor como elemento de uma “guerra bacteriológica” se os jesuítas tivessem conhecimento das formas de contaminação: [...] os jesuítas foram os principais introdutores dos agentes infecciosos nas aldeias não atingidas pelos colonos europeus. Vivendo de forma rústica, falando aos índios pelas madrugadas e dispensando mesmo os pouquíssimos confortos disponíveis na época, os jesuítas eram, eles próprios, homens bastante doentes, principalmente de tuberculose e disenteria. Para infelicidade dos nativos, quanto mais doentes mais os padres se dispunham a realizar suas prédicas pelas aldeias, certamente em busca de uma gloriosa morte a serviço do Senhor. Manuel da Nóbrega, em 1558, descrevia esta prática que, para todos os efeitos, equivalia a uma verdadeira “guerra bacteriológica” (Fernandes, 2003, p. 176). A história da medicina atribui ao século XIX a descoberta das formas de infecção por microorganismos. A palavra bactéria teve origem nesse período, tendo como origem bacterium do latim científico em 1838. O grande pesquisador francês Louis Pasteur (18221895) estabeleceu a partir da segunda metade do século XIX as bases científicas da propagação dos microorganismos. Assim, não tem sentido aplicar a idéia de uma propagação deliberada de doenças numa época na qual os atores desconheciam os mecanismos de infecção. No século XVII, a idéia de microorganismo e o vocábulo bactéria sequer existiam. Esse pequeno deslize não compromete o excelente trabalho de Fernandes que resgata, com justiça, a importância e o valor da mulher indígena não só para a sua sociedade, mas para toda a sociedade do período colonial no Brasil. Podemos resumir que o discurso de Vasconcellos sobre os índios do Brasil estabeleceu que: eles eram originalmente brancos e oriundos da Atlântida; sua cor modificou-se através do calor transformado em natureza pela transmissão “seminária”; a sua língua sofreu modificações com o passar do tempo; os costumes degeneraram em função das guerras, ódio e vingança; tinham como religião “vestígios” de uma excelência suprema e da imortalidade da alma. Além dessas características gerais, o discurso de Vasconcellos atribui uma outra específica que classifica os índios como mansos e bravos. A palavra manso, utilizada por Vasconcellos para designar os índios aliados dos portugueses e passíveis de conversão, tem, também, um outro sentido de fundo religioso, no sermão da montanha: “bem-aventurados os mansos: seu quinhão será a terra” [Mt 5, 4]. A conversão dos índios mansos era a última etapa do processo de “clareamento” do índio, magistralmente concebido por Mário de Andrade: Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo que andava pregando o envangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E 118 ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. (Andrade, 1997, p. 28) Nesse processo de clareamento dos índios mansos, restou aos índios bravos a morte nas guerras com os bárbaros “que crêem que os outros, a sua volta, são bárbaros” (Todorov apud Pires, 2002, p. 13). Assim, Simão de Vasconcellos preparou-se para responder a nona e última pergunta, definindo quem eram os habitantes que poderiam permanecer no território ampliado do Brasil para gozar das bondades dessa terra. 119 5. A bondade da terra do Brasil Antes de formular a resposta sobre a questão da bondade da terra, Simão de Vasconcellos alega que não poderia deixar de oferecer um conhecimento mais amplo acerca do que é o Brasil, sob pena de não satisfazer nem o leitor e nem o autor, tendo em vista o fato de que “os curiosos versados em Historias” dizem ser “esta a primeira que sae a luz de cousas destas partes” (Vasconcellos, 1668, p. 217). Esta afirmação de Vasconcellos não corresponde à realidade uma vez que existiam registros históricos bem anteriores ao dele. Alguns desses autores que haviam escrito sobre o Brasil, já tinham suas obras publicadas como é o caso da História da Província Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gândavo, publicada em 1576. No seu relato descritivo do Brasil, Vasconcellos propõe-se a tratar primeiro do “nome” e depois da “substância”. O autor apresenta os vários nomes que esta terra recebeu dos portugueses, enfatizando a crítica ao nome definitivo. O primeiro nome, Terra de S. Cruz, foi dado por Pedro Álvares Cabral, o segundo nome, América, em homenagem a Américo Vespúcio, e o terceiro de Brasil [...] em que fez troca a cobiça daquelles, que depois vieraõ ao trato do pao, que agora chamaõ deste nome; naõ sem algum abatimento da imposiçaõ do primeiro, substituindose àquelle Madeiro vermelho com o Sangue de Christo, & preço de nossa Redempçaõ, outro madeiro, que só tem de sangue a cor, & de precioso o aparente da cobiça dos homens (Vasconcellos, 1668, p. 218-219) Vasconcellos aponta que escritores como João de Barros, autor de Asia de Joam de Barros... [década] (1552), e Pedro de Mariz, nos Diálogos de varia historia (1594), manifestaram sua desaprovação quanto a essa mudança de nome. O autor, entretanto, não cita Pero de Magalhães Gândavo, que no primeiro capítulo de sua História da Província Santa Cruz escrevia: Por onde nam parece razam que lhe neguemos este nome [Santa Cruz], nem que nos esqueçamos delle tam indevidamente por outro que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pao da tinta começou de vir a estes Reinos; ao qual chamaram brasil por 120 ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao Demonio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memoria da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens, medeante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos-lhe Provincia de Santa Cruz, como em principio (que assi o amoesta tambem aquelle illustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década, tratando deste mesmo descobrimento) porque na verdade mais he destimar, e melhor soa nos ouvidos da gente Christã o nome de hum pao em que se obrou o misterio de nossa redençam que o doutro que nam serve de mais que de tingir pannos ou cousas semelhantes. (Gandavo, 1980, p. 80) Dessa forma, podemos atribuir a João de Barros a origem do posicionamento contrário à mudança do nome da terra descoberta por Cabral. Esta mesma posição foi compartilhada e repetida em seqüência por Pero de Magalhães Gândavo, Pedro de Mariz, Vicente do Salvador e Simão de Vasconcellos. Vasconcellos relaciona ainda, como outros nomes do Brasil, Índia Ocidental, para diferenciá-la das Índias Orientais, e Nova Lusitânia como imitação de Nova Espanha. Neste último caso, ele acha que não seria “mal acomodado”, todavia não via este nome em uso, mas demonstra, mais uma vez, sua simpatia estética pela simetria como já comentamos anteriormente. Ao passar a tratar da substância da terra do Brasil, Vasconcellos revela que para arrazoar com justiça sobre as bondades dessa terra, deveria primeiramente desfazer as calúnias que recaíam sobre essa parte do mundo. O Brasil, segundo o autor era objeto de dois tipos de calúnias: a de que não poderia haver vida na zona equatorial, a Zona Tórrida, e de que não havia céu sobre essa zona. Vasconcellos atribui a Aristóteles, que ele chama de Príncipe dos Sábios, a afirmação de que a terra da Zona Tórrida era “terra inutil, seca, requeimada, & incapaz de fontes, rios, pastos, & aruoredos; & por conseguinte deserta pera sempre, & inhabitauel aos homens, pellos excessiuos ardores causados da proximidade do Sol, que anda sempre sobre ella” (Vasconcellos, 1668, p. 220). Ele relaciona ainda como fontes dessa posição defendida por Aristóteles, em Meteoros, livro 2, capítulo 5; Plinio livro 2, capítulo 68; Virgílio em Geórgicas; Ovídio em Metamorfoses. Além desses, Vasconcellos menciona Cícero, Filo, Judeu, Beda, S. Tomás, Escoto, e Durando como fontes citadas pelos Conimbriceses, livro 2, de Coelo, capítulo 14. Sobre a ausência de céu sobre a Zona Tórrida, Vasconcellos relaciona vários autores que apoiavam essa opinião e diz que S. Agostinho, “taõ grande Philosofo, & Astrologo”, duvidou que o céu cobrisse a terra: “A mim que me pertence se o Ceo como esfera cérca a terra, ou sómente a cobre por sima como tecto?” (Vasconcellos, 1668, p. 223). Vasconcellos acrescenta um interessante argumento, utilizado pelos autores que diziam que o céu não era esférico, como afirmava Aristóteles, e que: 121 [...] olhando nós pera as Estrellas quando estaõ sobre nossa cabeça, aparecem menores: & quando estaõ no Orizonte aparecem maiores, sendo as mesmas: naõ por outra rezaõ, senão porque aparecem em diuersa distancia, menos longe quando maiores, & mais quando menores: naõ estão logo em ceo esferico, porque a esfera não admite lugares menos, & mais distantes. (Vasconcellos, 1668, p. 223) Na elaboração de sua defesa contra as calúnias sobre a terra do Brasil, Vasconcellos começa com a questão relativa à inexistência do céu. Ele afirma que os autores que dizem que não existe céu sobre a Zona Tórrida, além de ignorantes, pretendem “tirarnos o Ceo, & com elle seus influxos benignos” (Vasconcellos, 1668, p. 225). Para corroborar o seu argumento relaciona como defensores da existência do céu sobre a zona tórrida: Tales Milésio, Pitágoras, Liceto, os Sábios da Babilônia, da Caldéia, do Egito, da Grécia (Aristóteles, Ptolomeu, Alfragano, e Platão em Timeu). Afirma que esses autores provam, por razões filosóficas e astronômicas, que [...] a toda a terra, em qualquer parte que esteja responde o Ceo, por ser este esferico, & redondo. Porém por breuidade, mostremolo sómente agora com a experiencia do mouimento do Sol, Lua, & Estrellas errantes. Todas estas vemos com nossos olhos, nesta mesma regiaõ calumniada, irem sobindo todos os dias do Orizonte Oriental ao meio do Ceo: & deste descer até o do Poente: & daqui voltar outra vez em perenne mouimento ao lugar do seu Oriente. E se o Ceo naõ fora esferico, & esferica a terra, naõ tinhaõ os astros porque andar à roda. (Vasconcellos, 1668, p. 225-226) O argumento utilizado pelos que eram contrários à idéia da esfericidade do céu, com base na percepção das estrelas, é contestado por Vasconcellos que explica tratar-se de uma ilusão o fenômeno que faz perceber as estrelas como maiores no horizonte, “porque estas estaõ sempre em a mesma distancia da terra, ou em respeito da superficie, ou centro della” (Vasconcellos, 1668, p. 227). Vasconcellos estava certo ao afirmar que a variação do tamanho dos astros no horizonte é só aparente. Todavia, explica que o motivo que faz os astros parecerem maiores no horizonte “procede da crassidaõ57 dos àres, & vapores, que se poem entre ellas, & nòs; engrandecendoas tanto mais, quanto mais, & mais grossos saõ os vapores: naõ porque na verdade o sejaõ, mas porque o parecem aos olhos” (Vasconcellos, 1668, p. 227). Esse efeito é uma ilusão de óptica conhecida atualmente como ilusão da lua. A maioria das pessoas, quando vê no horizonte leste a lua cheia nascer, principalmente no verão, tem a ilusão de que a lua apresenta um diâmetro maior do que quando está acima do 122 horizonte ou no meio do céu, no zênite. Seqüências de fotografias da lua58, bem como medidas do diâmetro da lua, demonstram que o aumento aparente do diâmetro da lua é apenas uma ilusão de óptica. Quem primeiro percebeu esta ilusão foi o astrônomo árabe Ibn al-Haytham (965-1039), conhecido no ocidente como Alhazen, no século XI (McCready, 2002). Vasconcellos também defendia a idéia de que era uma ilusão a percepção aumentada do astro, porém atribuia à crassidão dos ares e vapores, ou seja, a grossura, espessura ou densidade do ar, a causa desse fenômeno o que não nos parece hoje uma explicação adequada. Qual seria então a explicação para essa ilusão de óptica? A resposta a esta pergunta não é simples, uma vez que existem várias teorias que tentam explicar a ilusão da lua, sem, no entanto, haver uma explicação que seja aceita de forma definitiva. Nesse longo período de dez séculos, em que se tem conhecimento de que a aparência maior da lua cheia no horizonte não corresponde ao real, várias teorias foram elaboradas e muitos livros publicados, mas nenhuma explicação pode ser considerada completa acerca do fenômeno. Em outras palavras, o discurso científico produziu até agora várias versões59 que permitem a explicação do fenômeno, sem que nenhuma delas possa ser considerada definitiva. Esta questão, relativa às diferentes versões do discurso científico utilizadas para explicar um mesmo fenômeno, será retomada em outro ponto deste capítulo. Outro aspecto, relacionado à defesa de Vasconcellos contra as calúnias da ausência de céu sobre o Brasil, apontado por Beatriz Helena Domingues, refere-se à compatibilização que o autor faz do “pressuposto filosófico e científico moderno (platônico) de que as coisas não são o que parecem ser” com a “filosofia natural aristotélica, que explica os fenômenos da natureza em função de ares e vapores” (Domingues, 1999, p. 131). Na defesa que faz da existência de um céu sobre o Brasil, Vasconcellos afirma que os detratores não só pretendem tirar o céu mas, com ele, os seus “influxos benignos”. Esta afirmação de Vasconcellos tem um duplo sentido, religioso e astrológico, porque nessa época a “Teoria da influência dos corpos celestes no mundo sublunar ou terrestre” ainda vigorava em Portugal e na colônia do Brasil. Segundo Luís Miguel Carolino (2003), a publicação do Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu in quatuor libros de Coelo Aristotelis Stagiritae, em 1593, como livro de suporte ao ensino das matérias de cosmologia nos colégios jesuítas revelava a importância dada a “Teoria da influência dos corpos celestes no mundo sublunar 57 Houaiss atribui a Simão de Vasconcellos, na Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, de 1663, a primeira publicação do verbete crassidão. 58 A NASA tem página na Internet mostrando uma seqüência fotográfica da lua cheia sobre a cidade de Seattle e que o tamanho da lua é constante: http://science.nasa.gov/y2002/24jun_moonillusion.htm, acessada em 18/8/2004. 123 ou terrestre”, devido a extensão e o pormenor com que era tratada no livro. A publicação do Commentarii teve influência não apenas em Portugal, mas também na Alemanha, França, e Itália, contando com mais de 112 edições em vários países (Carolino, 2003, p. 17-18). Antes de tratar dos influxos benignos do céu, defendidos por Vasconcellos, precisamos fazer uma breve revisão do processo de revolução científica do século XVII, na Europa, para que possamos situar os jesuítas e Simão de Vasconcellos nesse contexto. A longa transição, de aproximadamente dois séculos, que marca a passagem do mundo medieval para o mundo moderno, pode ser apresentada através da vida e obra de alguns homens que contribuíram para a superação da concepção medieval do mundo através da revolução científica, que teve seu auge no século XVII. A concepção medieval do mundo foi construída a partir da cosmologia da Antiguidade grega, na qual destacava-se o modelo geocêntrico de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Essa concepção de mundo da Antiguidade foi reforçada durante o Império Romano pelo astrólogo e astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (90-168). Em sua obra mais importante, conhecida como Almagesto, ele explica o sistema geocêntrico e os fenômenos celestes de forma muito precisa para a sua época. Na visão geocêntrica de Ptolomeu, a Terra está imóvel e os astros giram à sua volta. Para explicar os movimentos aparentes dos planetas ele introduziu a idéia de epiciclos, isto é, os planetas teriam um movimento circular na sua órbita circular em torno da terra, semelhante ao dos brinquedos de parque de diversões que giram em círculos ao mesmo tempo em que giram em torno de um eixo. Estes epiciclos permitem explicar o movimento retrógrado dos planetas no céu (Simaan, 2003, p. 55-64). Nos séculos XI e XII, principalmente na Espanha, foram feitas traduções de filósofos gregos e árabes: “a tradução é feita em dois tempos: do árabe para a língua popular, por árabes e judeus; a seguir, da língua popular para o latim, pelos clérigos cristãos – o que não raro introduz alterações no sentido dos textos” (Simaan, 2003, p. 95). No final do século XII, o Ocidente já tem traduzido a maior parte da obra de Aristóteles, Ptolomeu, e Averroes com traduções que já se faziam diretamente do grego para o latim. Nessa época, Aristóteles é resgatado pela Igreja Católica através da conciliação da fé e da razão por santo Tomás de Aquino. A existência de Deus é provada por santo Tomás de Aquino (Summa Theologica, primeira parte, questão 2, artigo 3) através de cinco meios. O primeiro meio é o que atribui o movimento a um primeiro motor que é associado a Deus. É interessante observar que apesar de fazer referências constantes a Aristóteles na Summa 59 Para uma revisão das principais teorias sobre a ilusão da lua e a bibliografia correlata veja-se McCready, 2002. 124 Theologica, neste caso S. Tomás não faz referência ao filósofo nem ao seu Primeiro Motor, que move o universo: O Primeiro Motor, que Aristóteles situa na esfera que envolve o mundo, a das estrelas fixas. Ao fazê-la girar, esse Primeiro Motor impulsiona o movimento que vai aos poucos se transmitindo às outras esferas. Eterno, imaterial, o Primeiro Motor é, evidentemente, Deus. (Simaan, 2003, p. 45) Assim, Aristóteles é incorporado ao catolicismo através de S. Tomás de Aquino e a concepção medieval do mundo: finito e fechado, centrado na Terra e com os astros girando ao seu redor nas esferas celestes, num movimento circular, uniforme e perfeito. Os astrólogos e astrônomos medievais mantiveram essa concepção aristotélica geocêntrica do mundo, acrescentando o movimento circular dos epiciclos, utilizando o modelo de Ptolomeu. Ao contrário dessa concepção medieval do mundo, Nicolau de Cusa (1401-1464), alto dignitário eclesiástico, autor de Douta ignorância, entendia que o universo não tinha limites definidos e que não poderia ser fechado (Simaan, 2003, p. 129-130). Era o início do questionamento da concepção finita e fechada do mundo aristotélico. Nove anos após a morte de Nicolau de Cusa, nascia Nicolau Copérnico (1473-1543) que estudou direito canônico e medicina na Universidade de Cracóvia, de Bolonha e de Pádua. O estudo da medicina, naquela época, exigia do aluno o estudo de astrologia, uma vez que se acreditava que o céu influenciava o mundo sublunar, inclusive as pessoas (Simaan, 2003, p. 136-137). Copérnico foi nomeado cônego de Ermland, em 1496, e suas idéias sobre o mundo começaram a ser divulgadas entre 1510 e 1514, através do manuscrito Commentariolus. No fim da vida, foi convencido por Georg Joachim von Lauchen (15141574), conhecido como Rheticus, a publicar suas idéias. Nesse sentido, Rheticus publicou em 1540 Narratio prima, obra em que resume as idéias heliocêntricas de Copérnico. Assim, em 1543, pouco antes de morrer, Nicolau Copérnico pode ver sua obra De revolutionibus orbium coelestium publicada (Simaan, 2003, p. 138-149). Nesta obra ele apresentava o Sol como centro do mundo, com os planetas circulando a sua volta. Esta concepção contrariava a concepção geocêntrica então adotada pela Igreja Católica. Três anos após a morte de Copérnico nascia Tycho Brahe (1546-1601), um grande observador do céu, que notabilizou-se pela precisão de suas observações. A observação da estrela nova60 de 1572, que brilhou até 1574, permitiu que publicasse suas observações classificando o astro como sendo uma estrela, em De nova stella (1573). Essa estrela nova 125 provava que o céu das estrelas não era perfeito e imutável como estabelecia a concepção aristotélica então vigente. Em 1575, Frederico II concedeu-lhe a ilha de Hveen onde construiu o castelo Uraniborg, com tetos móveis, que pode ser considerado como o primeiro observatório moderno. Tycho Brae foi o primeiro a observar os astros de forma sistemática e continuada, fazendo medidas muito precisas com os poucos instrumentos que dispunha e a tecnologia existente. As observações e medidas do cometa de 1577 permitiram que localizasse esse corpo a uma distância equivalente a seis vezes a distância entre a Terra e a Lua. Estas medidas corroboravam a corruptibilidade do espaço para além da Lua, ou seja, do céu. Tycho Brahe elaborou um sistema em que tentava compatibilizar a concepção geocêntrica de Ptolomeu e a heliocêntrica de Copérnico, o sistema geo-heliocêntrico em que os planetas giravam em torno do Sol e o Sol e a Lua giravam em torno da Terra. Esse sistema permitia reproduzir a realidade, ou seja, o movimento aparente dos astros no céu com uma razoável aproximação. Além disso, o sistema de Tycho Brahe apresentava a Terra no centro do mundo o que não era conflitante com as Escrituras e fez sucesso na sua época e, posteriormente, entre os jesuítas (Simaan, 2003, p. 150-156). Após a morte de Frederico II, seu protetor, Tycho Brahe aceitou o convite de Rodolfo II e partiu para Praga em 1599, onde se encontrou com Johannes Kepler (1571-1630) com quem já se correspondia havia alguns anos. Kepler estudou teologia na Universidade de Tübingen e queria ser pastor, porém acabou aceitando em 1594 o cargo de professor de matemática e de Mathematicus dos estados da Stíria. Nessa última ocupação era encarregado da confecção dos almanaques astrológicos. No primeiro ano, acertou duas previsões que o tornaram famoso como astrólogo (Simaan, 2003, p. 160-161). Todavia, mudanças políticas na Stíria que resultaram na perseguição aos protestantes, o levaram a aceitar o convite, que coincidentemente chegava da parte de Tycho Brahe para trabalhar para ele. Dessa forma, Kepler aceitou o convite e passou a trabalhar para Brahe. Ambos tinham em comum personalidade forte e temperamento irascível. Suas relações foram, não raro, tempestuosas, principalmente quando Kepler reclamava o seu salário. Ele, com efeito, vivia na miséria, e sua mulher era obrigada a mendigar florim por florim para alimentar os filhos. Embora a paga fosse modesta, era muitas vezes impossível para Tycho quitá-la, tendo ele próprio dificuldades em ser remunerado por seus serviços ao imperador, enquanto continuava com suas despesas faraônicas: gostava de banquetes copiosamente regados, acompanhados de boa carne, no que era diferente de Kepler, uma máquina de trabalhar de hábitos austeros. (Simaan, 2003, p. 166) 60 É uma estrela invisível a olho nu que passa a brilhar intensamente e cujo nome deriva do título do livro de Tycho Brahe, De nova stella. 126 Nessa época, Tycho Brahe estava encarregado de preparar as tábuas com a posição dos astros que substituiriam as Tábuas Alfonsinas e as Tábuas Prutênicas. Kepler foi encarregado por Tycho de elaborar uma teoria para os movimentos de Marte, o que era uma tarefa muito difícil devido à excentricidade de sua órbita, que produzia estranhos movimentos aparentes no céu. Após a morte de Tycho Brahe em 1601, Kepler foi nomeado Mathematicus de Rodolfo II. Os dados das observações de Tycho Brahe sobre o planeta Marte permitiram que Kepler formulasse suas leis, que foram publicadas em 1609 em Astronomia nova. As duas leis de Kepler que revolucionaram a astronomia foram: Primeira lei: a órbita dos planetas é uma elipse, de que um dos focos é o Sol. Segunda lei: o movimento dos planetas não é uniforme. Ao se aproximarem do Sol, os planetas aceleram a marcha em sua órbita, e a diminuem ao se afastar. Mas essa variação não se dá de qualquer jeito: a reta que vai do Sol ao planeta (chamada de raio vetor) varre em sua trajetória áreas iguais em tempos iguais. (Simaan, 2003, p. 171-172) Essas leis modificavam a concepção do mundo e os dogmas estabelecidos na Antigüidade: o dogma do movimento circular dos astros e o dogma de que esse movimento era uniforme. Em Praga, no ano de 1600, Kepler estudava os dados das observações de Tycho Brahe sobre Marte para elaborar sua teoria. Em Roma, nesse mesmo ano, Giordano Bruno (15481600) era queimado vivo devido à pena imposta pelo Santo Ofício. Bruno ingressou na ordem dos dominicanos em 1572 e doutorou-se em teologia. Em conseqüência de um processo por heresia fugiu para Genebra, de onde também foi obrigado a fugir e acabou por instalar-se na França onde em 1583 assumiu uma cátedra no Collège Royal. No ano seguinte foi para a Inglaterra onde publicou várias obras e permaneceu por dois anos, sendo obrigado a voltar para a França devido aos ataques dos aristotélicos, insatisfeitos com suas publicações. Da França passou para a Alemanha e depois para Praga onde Rodolfo II negou-se a recebê-lo. Voltou para Veneza, na Itália, e seu anfitrião com medo de suas idéias denunciou-o à Inquisição, que o condenou e lhe impôs a pena de morte (Simaan, 2003, p. 181-186). Outro astrônomo e físico que teve problemas com a Inquisição foi Galileu Galilei (1564-1642), que nasceu em Pisa e, em 1589, foi nomeado professor de matemática naquela cidade. Ele ensinava o sistema de Ptolomeu e em algum momento antes de 1597 converteu-se para o sistema de Copérnico, comentando esse sistema em uma carta destinada a Kepler. Galileu fabricou e aperfeiçoou lunetas, que, em 1609, chegavam a permitir um aumento de até trinta vezes. Com esse novo instrumento de observação, Galileu explorou o céu e publicou o resultado dessa exploração em Mensageiro celeste (1610), onde ele afirma que a Lua tem 127 relevo, que existem estrelas invisíveis a olho nu e que Júpiter tinha quatro luas. Nessa época, Galileu decide mudar-se para Florença e em homenagem ao grão-duque da Toscana, Cosimo II de Médici, atribui às luas de Júpiter o nome de Medicea Sidera. Os problemas decorrentes de seu livro levam Galileu a escrever a Kepler pedindo-lhe apoio para as suas descobertas. Kepler atende seu colega e escreve Dissertatio cum nuncio sidero em que defende a descoberta de Galileu e diz que os astros que estão na órbita de Júpiter não são planetas, mas sim aquilo que ele nomeia como satélites61. Essa defesa demonstra a confiança de Kepler em Galileu, porque foi anterior à constatação da existência das luas de Júpiter. Por mais absurdo que possa parecer, para comprovar a existência das luas de Júpiter, Kepler teve que pedir emprestada uma luneta, uma vez que Galileu se recusava a fornecer-lhe uma (Simaan, 2003, p. 189-205). Nesse mesmo ano de 1610, Galileu observou as manchas solares e comunicou a colegas. Pouco tempo depois, o jesuíta Cristóvão Scheiner fez a mesma descoberta e Galileu se ofendeu julgando que havia sido “roubado”. Esse episódio deu início a uma longa discussão, às vezes áspera, com o jesuíta, através de cartas (Simaan, 2003, p. 206). O classicismo de Galileu, que o impedia de aceitar o resultado dos trabalhos de Kepler sobre a órbita elíptica dos planetas, levam-no a tentar provar a tese de Copérnico com uma equivocada teoria das marés, atribuída ao movimento de rotação e translação da Terra (Simaan, 2003, p. 211-213). O mais surpreendente é que Kepler já havia abordado a influência da lua sobre as marés: [...] se a Terra e a Lua não fossem retidas por uma força animada, ou qualquer outra equivalente [...], a Terra subiria para a Lua [...e] a Lua desceria para a Terra [...] Se a Terra deixasse de atrair as águas para si, todas as águas dos mares seriam erguidas e escorreriam pelo corpo da Lua. (Kepler apud Simaan, 2003, p. 213) Galileu por sua vez, despreza Kepler utilizando as seguintes palavras: De todos os grandes homens que filosofaram [sobre as marés], Kepler é quem mais me surpreende: aquele espírito livre e penetrante tinha à disposição os movimentos atribuídos à Terra e, no entanto, prestou ouvidos e deu assentimento a uma influência da Lua sobre a água, a propriedades ocultas e outras infantilidades do gênero. (Galilei apud Simaan, 2003, p. 213-214) 61 Originalmente no latim satelles era utilizada para designar o guarda de um príncipe. Kepler utilizou-a para designar o astro que acompanha o planeta. 128 Em 1616, Galileu foi convocado pela Inquisição para ser informado do resultado de um processo que havia sido instaurado e cujo certificado, solicitado por Galileu, diz num trecho que: Foi-lhe apenas notificada a declaração do papa, publicada pela Sagrada Congregação do Índex, na qual consta que a doutrina atribuída a Copérnico, referente ao movimento da Terra em torno do Sol e à imobilidade do Sol no centro do mundo, sem que este se desloque do Oriente para o Ocidente, é contrária às Sagradas Escrituras e não deve, portanto, ser defendida nem adotada. (Simaan, 2003, p. 216) Nos dias atuais é difícil entender o risco que os sábios e cientistas corriam naquele período ao defender suas posições científicas, uma vez que a ciência era dependente da religião. Camenietzki lembra que alguns astrônomos desse período tinham receio de defender o sistema heliocêntrico porque podiam ser considerados hereges: Após a condenação das teses copernicanas de 1616, diversos astrônomos ficaram receosos de suas conclusões. Afinal, a Igreja Católica condenara como heréticas duas idéias muito importantes do sistema de Copérnico. Certamente, isso tinha um peso extraordinário naquela época. Antes do medo de perseguições da Inquisição, os eruditos temiam estar cometendo pecado grave ao defender essa opinião! Os católicos que defendiam o heliocentrismo tinham a preservar sua condição de bom cristão, homem de fé, e se afastar do pecado, em primeiro lugar. Ser tido como herético também era correr o risco de perder seus vínculos sociais, ser banido, perseguido, processado. (Camenietzki, 2000, p. 78) Essa posição intransigente não era exclusividade da Igreja Católica, posto que o Calvinismo, fazia uso das mesmas práticas, como a condenação à morte na fogueira de Miguel Servet, em 1553 (Simaan, 2003, p. 270). Depois de ter sido notificado pela Inquisição, Galileu travou uma discussão com o matemático jesuíta Orazio Grassi (1590-1654), que havia observado os cometas de 1618 e que chegara às mesmas conclusões que Tycho Brahe sobre o fato de os cometas transitarem no mundo celeste, isto é, para além da Lua, e que sua órbita não era circular (Simaan, 2003, p. 217-218). Galileu não admitia que o movimento dos astros, incluindo os cometas, não fosse perfeito, isto é, circular. Galileu sentiu-se mais seguro com a eleição de Maffeo Barberini, em 1623, como papa Urbano VIII, que era seu admirador e por quem era respeitado (Simaan, 2003, p. 219-220). Essa segurança fez com que ele publicasse em 1632 o Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, escrito em italiano com o objetivo de popularizar o debate sobre os sistemas do mundo. Nesse Diálogo, 129 Três personagens discutem os sistemas de Ptolomeu e Copérnico. O primeiro, Salviati, um homem culto e respeitável, defende o sistema de Copérnico com muito bom senso e fórmulas convincentes. Diante dele, para defender Ptolomeu, está Simplício, detentor das tradições, cujo nome em si já constitui todo um programa. Entre os dois, Sagredo, supostamente neutro, mas na verdade um reformador mordaz, alinha-se com freqüência com as idéias de Salviati e faz, muito oportunamente, pender a balança para o “lado certo”. Simplício é ridicularizado o tempo todo, num combate desigual em que seus argumentos recebem o fogo cruzado de seus dois interlocutores. (Simaan, 2003, p. 221) No fim do livro Galileu faz com que a personagem de Simplício, defensor de Ptolomeu, afirme que mesmo que os fatos indiquem que a Terra gira em torno do Sol, isto era uma ilusão criada por Deus, quando na verdade o Sol gira em torno da Terra. A personagem de Simplício cita como fonte dessa afirmação “uma pessoa muito sábia e eminente, diante da qual só nos resta calar” (Galilei apud Simaan, 2003, p. 222). Essa afirmação era na verdade um argumento muito utilizado pelo papa, que se sentiu ofendido ao ser associado a um simplório. Nesse período, o papa atravessava uma fase em que estava envolvido em sérios problemas políticos e o processo contra Galileu serviria para atenuar parte desses problemas. Dessa forma, Galileu foi processado por disseminar a concepção heliocêntrica de Copérnico, e, através de um acordo, ele abjurou, sendo incorreta a versão de que acrescentou a observação eppur si muove. Isto teria custado a sua vida... O Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo foi proibido e queimado em 1633, e Galileu condenado a prisão perpétua. Ele morreu nove anos depois, em prisão domiciliar em Arcetri (Simaan, 2003, p. 225-226). Camenietzki reproduziu a abjuração de Galileu: Eu, Galileo, filho de Vicenzo Galileo de Florença, na idade de setenta anos, constituído pessoalmente em juízo e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Inquisidores gerais em toda a República Cristã contra a herética infâmia, tendo diante dos meus olhos os sacrossantos Evangelhos, os quais eu toco com as próprias mãos, juro que sempre acreditei, acredito ainda e com a ajuda de Deus acreditarei no futuro em tudo aquilo que a Santa Igreja Católica e Apostólica sustenta, prega e ensina. Mas, porque por este Santo Ofício, por ter eu, depois de me ter sido pelo mesmo intimado juridicamente que deveria absolutamente deixar a falsa opinião que o Sol seja o centro do mundo e que não se mova, e que a Terra não seja o centro do mundo e se mova, e que não pudesse sustentar, defender nem ensinar de maneira alguma nem por escrito nem por viva voz, a dita falsa doutrina, e depois de me ter sido notificado que a dita doutrina é contrária à Sagrada Escritura, escrevi e publiquei um livro no qual trato desta doutrina já condenada e acrescento razões com muita eficácia a favor delas, sem apresentar solução, fui julgado veementemente suspeito de heresia, ou seja por ter acreditado e defendido que o Sol seja o centro do mundo e imóvel, e que a Terra não seja centro e que se mova. Portanto, querendo eu retirar da mente das Vossas Eminências e de todo fiel cristão esta veemente suspeita, justamente por mim gerada, com o coração sincero e fé não fingida, abjuro, maldigo e detesto os ditos erros e heresias e genericamente, todo e qualquer outro erro, heresia ou seita contrária à Santa Igreja; e juro que no futuro não direi nunca mais nem afirmarei a viva voz ou por escrito, coisas pelas quais se possa ter de mim tal suspeita; e mais, se conhecer algum herético ou suspeito de heresia, denunciarei a este Santo Ofício, ou ao Inquisidor e Ordinário do lugar em que me encontrar. 130 Juro ainda e prometo respeitar e observar inteiramente todas as penitências que me foram ou me forem impostas por este Santo Ofício; e contrariando alguma das minhas ditas promessas e juramentos, que Deus não o queira, me submeto a todas as penas e castigos que são impostas e promulgadas contra semelhantes delinqüentes pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares. Assim, que Deus me ajude e estes seus Evangelhos que toco com as próprias mãos. Eu, Galileu Galilei, supradito, abjurei, jurei, prometi e me obriguei como acima, e na fé da verdade, com minha abjuração e a recitei palavra por palavra em Roma, no Convento da Minerva, em 22 de junho de 1633. (Camenietzki, 2000, p. 81-82) Segundo E. Panofsky, Galileu foi apenas um explorador no campo da Astronomia, mas pode ser considerado como um dos fundadores da física moderna: Talvez seja precisamente pelo fato de Kepler haver partido de uma cosmologia essencialmente mística, mas ter tido a capacidade de reduzi-la a asserções quantitativas, que ele se pode tornar um astrônomo tão ‘moderno’ quanto Galileu o foi como físico. Livre de qualquer misticismo, mas sujeito às prevenções do purista e do adepto do classicismo, Galileu, pai da mecânica moderna, foi, no campo da astronomia mais um explorador do que um demiurgo (Panofsky62 apud Koyré, 1982, p. 270) A afirmação de Galileu de que o universo “está escrito em língua matemática” (Galilei, 1983, p. 119), em O ensaiador (1623), é reveladora da transformação ocorrida neste período de aplicação da matemática à ciência, com a aplicação dos métodos utilizados pelos astrônomos no mundo celeste ao mundo sublunar, ou seja, uma unificação do céu e da terra. Por um lado, o mundo celeste perdeu sua perfeição e imutabilidade devido às descobertas astronômicas, por outro lado, os fenômenos do mundo sublunar ganharam uma previsibilidade decorrente das experiências e da aplicação da matemática à física. Em resumo, a escolástica e a física aristotélica começam a ser demolidas pela ciência, através da observação, experiência e aplicação da matemática. No século XVII, na França, o debate científico era realizado no Collège Royal que teve como destaque o padre Pierre Gassendi (1592-1655) e Gilles Personne de Roberval (1602-1675). Outra figura de destaque no meio científico, não só na França, mas em toda a Europa, foi o padre Marino Mersenne (1588-1648) que, em 1619, instalou-se no convento de sua ordem em Paris e fundou a Revue Internationale de Mècanique. Mersenne reunia no convento cientistas como Gassendi, Roberval, Pascal, Descartes, e vários outros, ficando o grupo conhecido como Academia Parisiensis. Mersenne trocava correspondência com cientistas da Europa e do oriente, além de publicar obras e financiar a edição de vários livros (Simaan, 2003, p. 236-238). 62 PANOFSKY, E. Galileo as a Critic of the Arts. Haia: Martinus Nijhoff, 1954. 131 Um dos interlocutores assíduos do padre Mersenne foi René Descartes (1596-1650). Depois de estudar num colégio jesuíta, Descartes engajou-se como soldado e em uma das campanhas, na Alemanha, em 1619, teve sonhos que o levaram aos fundamentos de uma “ciência admirável” (Simaan, 2003, p. 246). A partir desse acontecimento, sentiu-se compelido a uma missão sagrada. Renunciou à carreira militar e em 1629 retirou-se para a Holanda onde produziu a maior parte de sua obra. Em 1649 aceitou ir para a Suécia para ensinar à rainha Cristina. No ano seguinte morreu de pneumonia devido aos rigores do clima. A complicada cosmologia dos turbilhões de Descartes, em que a Terra ficava imóvel e era carregada pelo turbilhão em torno do Sol, demonstra a influência que a condenação de Galileu exerceu sobre Descartes, como ele revela nas cartas ao padre Mersenne. Por outro lado, o caráter marcante e revolucionário do seu método lógico permitiu “a partir de um raciocínio rigoroso, construir uma ciência, mais sólida na medida em que era submetida à dúvida metódica” (Simaan, 2003, p. 252). Outro aspecto importante é que da mesma forma que Galileu publicou o Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, em italiano, em 1632, Descartes publicou o Discurso do método, em francês, em 1637. Os autores, nesses casos, tentavam disseminar suas idéias num âmbito mais abrangente do que o dos cientistas de seu tempo, que utilizavam apenas o latim. A longa passagem para o mundo moderno foi concluída por Isaac Newton (16431727), que nasceu poucos meses após a morte de Galileu. Newton, depois de amadurecer suas teorias físicas durante aproximadamente vinte anos, publicou Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, em 1687, com a enunciação das leis da física do movimento: a lei da inércia, da lei da proporção entre força e aceleração, da lei da ação e da reação e da lei da gravitação universal. A partir desse ponto, a aplicação intensiva da matemática na física do movimento permitiu a sua consolidação como uma ciência exata. Estava concluída a longa passagem do mundo medieval para o mundo moderno, com a revolução científica do século XVII. Assim, em meados do século XVII, enquanto Simão de Vasconcellos escrevia as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, a revolução científica estava em pleno andamento na Europa. Ao mesmo tempo, a “Teoria da influência dos corpos celestes no mundo sublunar ou terrestre” ensinada pelos jesuítas nas aulas e no Commentarii Collegii Conimbricensis estabelecia um contraponto com o discurso da modernidade. Nesse período de transição, conviviam a magia e a ciência, sendo difícil distinguir, por exemplo, o astrólogo do astrônomo. Kepler é um excelente exemplo dessa ambivalência, como vimos anteriormente. Em seu trabalho, intitulado Ciência, astrologia e sociedade: a 132 teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755), Luis Miguel Carolino (2003) enfatiza a necessidade de se observar, na construção da história da ciência, a articulação entre a magia e a ciência, existente nos seus primórdios e a gradual dissociação que ocorre ao longo do século XVII: Ciência e magia não constituíam, portanto, até o século XVII, visões de mundo opostas e antagónicas, submetidas a lógicas incompatíveis. A constituição do que viria a ser a “ciência moderna” tem na sua génese uma herança hermética, que apenas posteriormente fruto de um processo complexo resultaram em concepções opostas àquelas que vieram a ser reconhecidas mais tarde, pela ciência, como “ocultas”. Assim, a opinião comum e actual sobre o carácter anti-racional e esotérico da magia, e consequentemente da astrologia, não deve impedir o historiador da ciência de analisar esses fenómenos como corpos teóricos que eram, em outras épocas do passado, tidos como perfeitamente racionais e legítimos na construção do saber sobre a natureza. (Carolino, 2003, p. 38-39) O ensino de astrologia nos colégios jesuítas pode ser exemplificado pelos estudos de cosmografia no Colégio de Santo Antão em Lisboa: Como rigorosamente demonstrou Luís de Albuquerque, durante o século XVII a “Aula da Esfera”, cadeira criada neste colégio na segunda metade do século anterior onde se ensinavam as bases da cosmografia, foi garantido o ensino da astrologia judiciária, nomeadamente pelos padres jesuítas Francisco da Costa, professor entre 1595 e c. 1602, João Delgado, que aí ministrou entre 1600 (?) e 1612, Simon Fallon de c. 1635 a 1642 e Luís de Gonzaga que, na transição do século, fora transferido da Universidade de Évora para o Colégio de Santo Antão para ministrar as matérias de cosmografia. (Carolino, 2003, p. 103) A influência dos astros na vida das pessoas era tão importante no século XVII que “era muito freqüente, por esta época, ouvirem-se os astrólogos e os próprios médicos afirmarem que não se podia ser um bom médico se não se fosse também um astrólogo informado” (Carolino, 2002, p. 27). Prova dessa influência é o trecho do livro Epitome das Noticias Astrológicas necessárias para a Medicina, do frade António Teixeira (1602-1687), publicado em 1670, em Lisboa, pela Oficina de João da Costa: A cura que se faz por methodo he aquella a que precede indicação, que vem a ser o conhecimento do offendente, e do que favorece, que pode remediar o dano: sem a Astrologia naõ se pode conhecer a causa offendente, que saõ os influxos celestes, logo bem se segue que sem a Astrologia se naõ pode curar por methodo a tal doença: nem taõ pouco por alexipharmacos, porque se naõ conhece a causa, cujos efeitos se remedeaõ com particulares virtudes, e se os Medicos curaõ algumas doenças, como se experimenta nas de veneno, e na do Morbo Galico, he pello conhecimento, que ja hoje tem dos influxos das causas, e das virtudes dos alexipharmacos pera as taes doenças. (Teixeira apud Carolino, 2003, p. 136) 133 Observe-se que o livro do frade António Teixeira foi publicado sete anos após a publicação da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, de Simão de Vasconcellos, em 1663. Por outro lado, os jesuítas Baltazar Teles, em 1642, e Francisco Soares, em 1651, incluíam, gradualmente, em seus livros, conceitos modernos, numa revisão do aristotelismo: Acompanhando os principais filósofos naturais jesuítas, como Kircher e Riccioli, Baltazar Teles, Francisco Soares e certamente muitos dos lentes que nas aulas recorrerão aos seus cursos impressos consideram ser a matéria celeste corruptível — Caeli corruptibiles sunt, ac generabiles, sicut reliqua corpora sublunaria — e os céus fluidos, ou seja, não compostos por orbes sólidos e pesados. Se estas teorias inicialmente eram defendidas recorrendo ao seu maior grau de probabilidade, argumento explorado sobretudo por Soares, com o desenrolar do século XVII, elas ganham o estatuto de certeza, como testemunha o Curso [1714] de António Cordeiro S.J. (1640-1722), o que pode ser interpretado como uma adesão progressiva e decidida dos colégios jesuítas às novas teorias, nomeadamente às teorias cosmológicas de Tycho Brahe. (Carolino, 2003, p. 254-255) Esses e outros exemplos permitem que Carolino conclua que, ao contrário do que se propaga na historiografia da cultura portuguesa, no decorrer do século XVII, houve uma transformação na filosofia e no ensino jesuítico pela incorporação de idéias modernas: Ao contrário do que a historiografia da cultura portuguesa tem afirmado, estamos perante uma tradição que não se esgotava na repetição, na especulação estéril e infecunda de temas já gastos e ultrapassados. Ao invés do que tem sido defendido, do nosso estudo ressalta uma corrente filosófica viva e criativa que, sobre uma base aristotélico-tomista, encontra novas sínteses e incorpora mesmo elementos tão estranhos como determinadas concepções inequivocamente inspiradas em teorias corpusculares. Ou seja, estamos a falar não do diálogo surdo entre antigos e modernos, mas de uma tradição eclética e com uma coerência própria, que há que estudar em si e que demonstra a riqueza do aristotelismo tardio. (Carolino, 2003, p. 346) Durante o século XVII e XVIII, na Europa, ocorre uma gradual separação entre a astrologia e a astronomia. Ao mesmo tempo que as idéias modernas vão sendo incorporadas à ciência, a astronomia firma-se como uma disciplina e a astrologia passa por uma fase de decadência que se reflete no conteúdo dos Almanaques Astrológicos: Tratava-se agora de uma sociedade que deixara de entregar o seu futuro à sorte dos astros e que o procurava construir racionalmente; uma sociedade bem menos crente nas predições astrológicas e mais interessada no potencial lúdico dos almanaques. Não espanta, deste modo, que os almanaques tenham crescentemente perdido os conteúdos propriamente astrológicos. (Carolino, 2002, p. 80-81) Retomando Vasconcellos, verificamos que, após refutar as calúnias sobre o céu, ele passa a tratar da terra e alerta o leitor para considerar “incerteza das cousas desta vida” 134 (Vasconcellos, 1668, p. 228). Em oposição ao pensamento dos antigos a respeito da Zona Tórrida, onde se localizava a terra do Brasil, que afirmavam ser uma “terra inutil, seca, requeimada, deserta, inhabitauel pera gente humana” o autor sustentava que, pelo contrário, era uma “regiaõ temperada, amena, abundante de chuuas, orualhos, fontes, rios, pastos, verdura, aruoredos, & frutos pera perfeita habitaçaõ de viventes” (Vasconcellos, 1668, p. 228-229). Vasconcellos conclui afirmando que a terra do Brasil tem “tal suauidade de temperamento, como em hum paraíso da terra” (Vasconcellos, 1668, p. 229). Observe-se que ele diz nesse trecho que a terra do Brasil tem suavidade de temperamento como um paraíso da terra. Note-se também o uso da letra minúscula em paraíso, afinal é apenas um paraíso e não o Paraíso. Ainda sob o aspecto de o Paraíso estar na Zona Tórrida, Vasconcellos diz que Eratóstenes, Prolíbio, Ptolomeu, e Avicena afirmavam isto e que não poucos teólogos “de que faz menção S. Thomas na sua Terceira parte, questaõ cento & duas, articulo segundo, & em tanto grao, que chegaõ a defender, que nesta parte debaixo da linha Equinocial criàra Deos o Paraíso terrestre” (Vasconcellos, 1668, p. 229-230). Vasconcellos cita S. Tomás, possivelmente no seu trabalho Summa Theologica e neste caso incorre num erro de referência. A terceira parte da Summa estava sendo escrita por S. Tomás quando ele faleceu e tinha noventa artigos. A continuação do trabalho, conhecida como suplemento da terceira parte foi elaborado, segundo a tradição, pelo frade Rainaldo da Piperno. Entretanto, na primeira parte da Summa Theologica a questão cento e dois trata justamente do Paraíso e no artigo segundo S. Tomás discute a sua localização. Esta falha de Vasconcellos não foi alterada na edição de 1668, em que ele conclui o parágrafo dizendo: ainda que eu agora naõ me aproueite do que acrescentaõ do Paraíso; naõ me passa com tudo por alto pera quando for tempo. Por entretanto naõ posso deixar de agradecerlhes o reconhecerem nestas partes tal temperamento, & taõ suaue, que sejaõ forçados a passar pera ellas o mesmo Paraíso da terra. (Vasconcellos, 1668, p. 230) Observe-se que nesse trecho Vasconcellos utiliza letras maiúsculas para grafar Paraíso. Além disso, ele alerta o seu leitor de que retomará a discussão do Paraíso terrestre “quando for tempo”. Enquanto ainda não é chegado o tempo de discutir o Paraíso terrestre, Vasconcellos afirma que não é “bastante a homens de bom entendimento ver, & experimentar”, mas que “sobre tudo serà gosto saber a rezaõ fundamental de cousas taõ notaueis, 135 & ouuir confutar os maiores Sabios dos seculos” (Vasconcellos, 1668, p. 230). Neste pequeno trecho em que se prepara para refutar Aristóteles, Vasconcellos associa ver e experimentar, dois elementos indispensáveis da ciência moderna que estava sendo criada, e afirma que isto não é o bastante, mas sim a razão fundamental das cousas. Em outras palavras, a afirmação de Vasconcellos demonstra a introdução e a valorização de pressupostos da ciência experimental, como eram “ver e experimentar”, sem, no entanto, perdermos de vista o fato do autor ser um religioso e que seu propósito era buscar uma razão que justificasse o clima ameno dos trópicos. Nesse sentido, Vasconcellos apresenta o caso do Rio de Janeiro “que na mòr ausencia do Sol, & quando he ferida com raios mais obliquos, entaõ està mais seca, falta de chuuas, & humidades: & pello contrario, em presença do Sol, & quando mais ferida com seus raios direitos, entaõ està mais humida, abundante de chuvas, & vapores” (Vasconcellos, 1668, p. 231). Essa explicação de Vasconcellos é perfeita e apresenta corretamente o motivo das estações do ano, a obliqüidade na incidência dos raios solares. Todavia, ele complementa essas explicações com uma comparação equivocada do clima terrestre com um alambique, o que valeria apenas para a zona tropical, como ele mesmo esclarece: a Zona torrida (exceptas algũas partes em que ha causas particulares) entaõ he menos seca, quando mais presente a fere o Sol; & entaõ mais seca, quando mais ausente està: & por conseguinte, que nunca pòde torrarse de seca, nem abrazarse de ardores; porque a refrescaõ, & humedecem os vapores desfeitos em chuuas: & mui ao contrario se philosopha nesta materia fóra dos Tropicos: porque alli a chuua com o frio, o calor cõ a secura andaõ inseparaueis. (Vasconcellos, 1668, p. 233) As diferentes estações do ano ocorrem em função do plano da órbita da Terra em relação ao Sol, chamado de plano da eclíptica, que faz os raios solares incidirem mais ou menos inclinados, produzindo menos ou mais calor respectivamente. Roberto Boczko63 alerta para o fato de que esse conceito das estações do ano é, ocasionalmente, apresentado de forma incorreta: É comum ouvir-se dizer que ‘no verão o Sol está mais próximo da Terra e no inverno mais longe, e por isso o primeiro é mais quente e o segundo mais frio’. Um argumento muito simples permite refutar tal teoria: quando é verão num hemisfério, é inverno no outro, e no entanto para os dois casos o Sol se encontra à mesma distância da Terra. Assim, a razão do inverno e verão, com suas respectivas características de temperatura média, devem ser atribuídas a outro fato: à diferença das quantidades de calor recebidas pelos 2 hemisférios devido à posição do Sol com relação a eles. (Boczko, 1984, p. 128) 63 Agradeço esta indicação ao amigo e astrônomo Roberto Fereira Silvestre. 136 Depois de estabelecer a existência de céu sobre o Brasil e explicar que o clima na região da Zona Tórrida era temperado, ao contrário do que supunham os antigos, Vasconcellos afirma que demonstrará as bondades e propriedades da terra do Brasil. Isto porque, segundo Aristóteles, “as propriedades saõ as mostras do ser” (Vasconcellos, 1668, p. 236) e, além disso, “Em toda a boa Philosofia, da bondade das propriedades se colhe a bondade do ser” (Vasconcellos, 1668, p. 237). Ele parte da premissa de que “Quatro propriedades saõ necessarias pera, que por ellas hũa terra tenha nome de boa” (Vasconcellos, 1668, p. 237), isso porque está escrito no Gênese que o Criador da Terra viu em cada uma dessas propriedades a qualidade de serem boas: “& vidit Deus quòd esset bonum” (Vasconcellos, 1668, p. 237). Assim, Vasconcellos relaciona as propriedades: A primeira he: Que se vista de verde [Gn 1, 11]64: a saber, de erua, pastos, & aruoredos de varios generos. A segunda: Que goze de bom clima, de boas influencias do Ceo, do Sol, Lua, & Estrellas [Gn 1, 14-18]. Terceira: que sejaõ suas agoas abundantes de peixes, & seus àres abundantes de aues [Gn 1, 20-21]. Quarta: que produza todos os generos de animaes, & bestas da terra [Gn 1, 24-25]. (Vasconcellos, 1668, p. 237). Vasconcellos afirma que “não pòde a terra deixar de ser boa, em que houuer estas quatro propriedades; nem poderà deixar de ser defectuosa aquella, em que faltarem todas quatro, ou parte dellas” (Vasconcellos, 1668, p. 238-239). Partindo dessa proposição, que funciona como uma premissa, o autor pretende demonstrar as “quatro propriedades por excellencia na terra do Brasil” (Vasconcellos, 1668, p. 239) e a partir delas chegar à conseqüência, ou à conclusão. As demonstrações das teses pelos jesuítas eram feitas através de silogismo, que consiste numa “dedução formal que, partindo de duas proposições, denominadas premissas, delas retira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão” (Lakatos, 1991, p. 42-43). Neste caso, o silogismo proposto por Vasconcellos é: Toda terra que tem as quatro propriedades estabelecidas no Gênese é boa. A terra do Brasil tem as quatro propriedades estabelecidas no Gênese. Logo, a terra do Brasil é boa. A primeira proposição não necessita demonstração uma vez que é uma afirmação retirada da Escritura Sagrada que, por este motivo, é dogmática e não precisa ser provada. A segunda proposição é a que Vasconcellos precisa provar, como ele mesmo afirmou, para que a conclusão do silogismo possa ser considerada verdadeira. Assim, ao longo de 37 64 Nas referências à Bíblia Sagrada são indicados, entre colchetes, o livro, capítulo e versículo (s). 137 parágrafos65, Vasconcellos propõe-se a demonstrar que a terra do Brasil é boa, ou seja, que tem as quatro propriedades que a fazem boa e validam a sua conclusão. A primeira propriedade, que a terra se vista de verde, é tratada nos parágrafos 66 a 88 do livro II das Noticias. Neles o autor recorre às seguintes referências: Dioscorides66 (67, 79)67, História Natural (68); Carlos Clusio, História das Plantas (70); Monardes (74); Oviedo68 (74); Guilhelmo Pinçon e Jorge Malcgravi69 (79). Esta última referência encontra-se no fim do parágrafo: Destas poucas eruas referidas, poderà julgar o leitor, se se ajusta bem com o Texto Sagrado, a verdura, & bondade da terra do Brasil. Melhor julgàra se de todas ouuira a relação: porém tanta detença, nem he de meu intento, nem assumpto facil. O curioso que mais desejar, veja os liuros assima referidos de Guilhelmo Pinçon, & de Iorge Marcgraui, & verá hũa cousa grande. (Vasconcellos, 1668, p. 257) Desse trecho podemos deduzir que “os liuros assima referidos” só podem fazer parte da História Natural, cuja referência aparece no parágrafo 68, que, na realidade é mais uma referência à História Natural do Brasil de Piso e Marcgrave. Outro aspecto a destacar é o valor atribuído ao livro por Vasconcellos quando afirma não relacionar todas as plantas e remete o leitor “curioso” ao livro de Piso e Marcgrave onde “verá uma cousa grande”. Reforçando o embasamento científico na defesa dessa propriedade da terra do Brasil, Vasconcellos relaciona ainda Pedanius Dioscórides, Carlos Clusio70, com a História das plantas, e Monardes, possivelmente, com a sua História medicinal71. Vasconcellos defende a qualidade das plantas do Brasil afirmando que a terra do Brasil é “por excellencia sempre verde, chea de eruas, & aruoredos de varios generos, entre todas as mais terras do mundo, na conformidade do Texto de sua primeira criação”, aproximando-a ainda mais do Paraíso quando diz que está sempre numa “eterna primauera” (Vasconcellos, 1668, p. 239). 65 As quatro propriedades são tratadas do parágrafo 66 a 102 do livro II das Noticias curiosas e necessarias das cousas do Brasil (1668). 66 DIOSCORIDES, Pedanius (40 - 90) médico grego autor De Materia Medica, importante fonte de plantas medicinais utilizadas por gregos e romanos, e como fonte para fabricação de remédios por mais de mil e seicentos anos. 67 O número entre parênteses indica o número do parágrafo do livro II das Noticias curiosa,s e necessarias das cousas do Brasil (1668). 68 Vasconcellos refere-se, possivelmente, a: OVIEDO y Valdés, Gonzalo Fernandes. La historia general delas Indias. Sevilla: Juan Cromberger, 1535. (Moraes, 1983, p. 643-644). 69 PISO, Willem; MARCGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amstelodami: Franciscum Hackium: Lud[ovicum] Elzevirium, 1648. (Moraes, 1983, p. 675). 70 Clusius, Carolus (1526-1609), ou Charles De L'écluse, ou Lescluse, botânico francês que contribuiu para o estabelecimento da moderna botânica (Encyclopædia Britannica - http://www.britannica.com). 71 MONARDÉS, Nicolas, (1512-1588). Primera y segunda y tercera partes de la Historia Medicinal de las cosas que se traen de nuestras Indias Occidentales.En Sevilla: en casa de Fernando Diaz, 1580. [http://www.bn.pt] 138 Sobre a segunda propriedade – que goze de bom clima, de boas influências do Céu, do Sol, da Lua e das Estrelas –, tratada nos parágrafos 89 a 95 do livro II, Vasconcellos apresenta um número maior de referências: Gotofredo, Arcontologia Cósmica (89); Maffeo, História da Índia72 (89); Theatrum Orbis73 (89); Guilhelmo Pinçon, Medicina do Brasil (89); Pero Teodoro (92); Teodoro de Bry74, Observações (92); Afonso de Ovalle75 (92); Costa76, De novo Orbe (92); Padre Maffeo (93, 94); Summa Astrológica (95). Das referências utilizadas por Vasconcellos, relacionadas à segunda propriedade, podemos destacar as referências científicas ao médico Guilherme Piso, Medicina do Brasil, e as Observações do astrônomo Theodoro de Bry, que vêm demostrar a incorporação do discurso científico no discurso do autor das Noticias. Vasconcellos inicia a defesa da bondade do clima e das boas influências do céu afirmando que a “felicidade natural foi o estado do Paraíso terreno” (Vasconcellos, 1668, p. 270) e que esta felicidade consistia no temperamento proporcionado pelo clima em que o homem vivia com saúde e gosto. Portanto, seguindo esta linha de pensamento, decorre que quanto mais distante o clima de uma região estiver daquele primeiro clima e temperamento, mais distante estará daquela primeira felicidade. Vasconcellos estende o conceito religioso do decaimento, ou queda, após o primeiro pecado, que afastou o homem do Paraíso, ao clima. Assim, segundo o autor, não existem regiões onde o clima não tenha decaído em relação àquele primeiro. Entretanto, ele considera o clima do Brasil como aquele que menos decaiu no mundo. A bondade do clima, segundo Vasconcellos, deve-se à conjugação da bondade dos astros, o que mostra o valor da teoria da influência celeste, com a bondade dos ares. Ele afirma que os astros da região do Brasil são bons, como a “experiencia nolo mostra, & testificãono grandes Astrologos, [...]; porque nesta a fermosura, candura, pureza, & resplandor do Sol, Lua, & Estrellas parece està no mesmo ponto de sua primeira criação” (Vasconcellos, 1668, p. 272). Ou seja, Vasconcellos utiliza a experiência, um argumento moderno, e o testemunho dos astrólogos, um argumento da tradição medieval, para aproximar a bondade dos astros da 72 Vasconcellos faz referência a uma das edições de MAFFEI, Giovanni Pietro. Historiorum Indicarum. Florentiae: Philippum Iunctam, 1588. (Moraes, 1983, p. 508). 73 A referência completa deve ser: ORTELIUS, Abraham (1527-1598). Theatrum orbis terrarum. Antuerpiae: Christophorum Plantinum, 1584. [http://www.bn.pt] 74 Vasconcellos está fazendo referência a uma das diversas edições da oitava e nona parte das Observações de Bry, como esta existente na Biblioteca Nacional de Espanha: BRY, Théodor de (1528-1598). Americae nona & postrema pars ... Francofurti : Matth. Beckerum, 1602. [http://www.bne.es] 75 OVALLE, Alonso de. Historica relacion del reyno de Chile y de las missiones y ministerios que exercita en el la Compañia de Iesus.... Roma: por Francisco Cauallo, 1646. [http://www.bne.es] 76 ACOSTA, José de. (1539-1600). De natura Novi Orbis libri duo, et de promulgatione Evangelii apud barbaros sive De Procuranda Indorum salute libri sex. Salmanticae: Guillelmun Foquel, 1588. [http://www.bn.pt] 139 região do Brasil à bondade dos astros do Paraíso. Ainda sobre os astros, o autor atribui ao astrólogo perito Pero Theodoro, ao doutíssimo matemático Theodoro de Bry, e ao padre Afonso de Ovale os elogios às estrelas do hemisfério sul, concluindo que “por ser testemunho de homens taõ doutos na Astrologia, faz muito ao nosso caso” (Vasconcellos, 1668, p. 274). A bondade dos ares, nas palavras de Vasconcellos, pode ser resumida como uma “primauera perpetua”, sem excesso de frio ou de calor, com ventos suaves e puros (Vasconcellos, 1668, p. 275). Sergio Buarque de Holanda trata detalhadamente dessa associação do clima, sem excesso de frio ou de calor, ao paraíso terrestre (Holanda, 1994). No último parágrafo dedicado à defesa do clima, Vasconcellos recorre a influência do céu sobre a terra, mais uma vez e de forma explícita, como podemos constatar: O Sol, Lua, & principaes estrellas do Ceo predominaõ sobre o Brasil, como sobre as mais partes da Zona torrida, mais de perto, & com raios mais direitos, que sobre algũa outra terra; he força logo que tornem os àres do clima do Brasil mais puros, & vitaes, que os das mais partes do mundo. E que o Sol, Lua, & principaes estrellas do Ceo predominem sobre o Brasil mais de perto, & com raios mais direitos, naõ pode duuidarse; porque o Sol, Lua, & signos do Zodiaco, que saõ as estrellas principaes do gouerno do mundo, tem entre si, & a regiaõ desta Zona dous elementos, de fogo, & àr: & em qualquer outra regiaõ fóra da Zona torrida, tem entre si, & ella (alèm dos elementos fogo, & àr) aparte da terra que vai de mais a mais, ate qualquer dos climas com quem fizermos comparaçaõ. He fundamento este efficaz; & claro esta que sendo a Zona do Zodiaco, o palacio comum daquelles Principes das luzes, & assentãdo alli o trono do gouerno do vniuerso, que sempre dentro da esfera delle deuaõ as cousas de ir mais regulares; como em effeito vaõ os tempos, o veraõ, o inuerno, os dias, & as noites; o frio, & a calma; & o mais que pertence a hum perfeito clima, naõ sendo assi em as outras partes da terra. (Vasconcellos, 1668, p. 276-278). Abordando nos parágrafos 96 a 98, do livro II, a terceira propriedade – que sejam suas águas abundantes de peixes, e seus ares abundantes de aves –, Vasconcellos reporta-se apenas a: Jorge Marcgravi, História Natural do Brasil (96); “liuro citado” (97); e “Autor jà citado” (98). Sendo as duas últimas referências indiretas à obra, História Natural do Brasil, e ao seu autor, Jorge Marcgrave. Assim, como a única referência para provar a terceira propriedade, fica patente a importância do trabalho de Marcgrave para a legitimação do discurso de Vasconcellos. Além disso, o autor recorre ao aspecto científico da obra de Marcgrave, anotando na margem do seu texto a referência “Jorge Marcgrani liu. 5. cap. 4.”, para complementar e validar o seu testemunho barroco sobre a metamorfose de uma borboleta em beija-flor: Vasconcellos Sou testemunha, que vi com meus olhos hũa dellas meia aue, & meia borboleta, irse perfeiçoando debaixo da folha de uma latada, até tomar vigor, & voar. Maior milagre se affirma della Marcgrave A natureza e propriedade desta avezinha é tal que não dura mais que as flores das plantas, de cujo mel vive; quando estas caem, a ave se firma com o biquinho, nos troncos das árvores e por seis meses 140 constantemente, & por tantos Autores, que parece fica imóvel até que renasçam as flores, o que se não pòde duuidarse, que como só viue de flores, em confirma com muitas testemunhas inteiramente acabando estas, acaba ella na maneira seguinte: prega o seguras (Marcgrave, 1942, p. 198). biquinho no tronco de hũa aruore, & nella está immouel como morta, em quanto tornão a brotar as flores (que saõ seis meses) passado o qual tempo, torna a viuer, & voar. (Vasconcellos, 1668, 283-284) Vasconcellos, impressionado com a beleza e variedade das espécies de aves do Brasil, afirma entusiasmado que parecem “criadas no mesmo Paraíso da terra: tal he a bondade, o numero, & variedade de sua fermosura: só naquelle primeiro Ceo terreno podião pintarse tão finas cores” (Vasconcellos, 1668, p. 282). A quarta e última propriedade – que produza todos os gêneros de animais, e bestas da terra –, é coberta pelos parágrafos 99 a 102, do mesmo livro II, onde Vasconcellos relaciona como referência única o que “escreueo Iorge Marcgraui na Historia natural referida” (Vasconcellos, 1668, p. 284). A variedade dos animais do Brasil, associada ao testemunho de Marcgrave, é suficiente para que Vasconcellos conclua que devido a essa diversidade de animais a terra é boa. Nesses parágrafos das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, dedicados à demonstração da bondade da terra do Brasil, encontramos 26 referências bibliográficas sendo, em geral, uma para cada autor ou obra, com exceção às duas referências a Piçon (Piso), duas a Dioscórides, duas a Monardes, três a Maffeo e oito a Marcgrave. As referências a Piso e Marcgrave, na realidade, remetem à mesma obra, a História natural do Brasil, que assim teria dez referências. Em outras palavras, mais de um terço das referências usadas por Vasconcellos para apoiar a demonstração da bondade da terra do Brasil remetem o leitor a essa História. Além disso, se relacionarmos as referências bibliográficas de caráter científico teremos cerca de dezeseis referências, ou seja, cerca de sessenta por cento. Este é um aspecto importante, pois em toda argumentação lógica, como parte do processo de legitimação do discurso, o autor faz citações e referências às autoridades que validam e dão consistência ao seu discurso. São essas autoridades que fornecem o material que constitui a base da estrutura sobre a qual o autor apóia o seu discurso, da mesma forma que as fundações sustentam uma edificação projetada por um arquiteto. Convém então, conhecermos um pouco os autores mais citados por Vasconcellos e a sua obra a História natural do Brasil. O astrônomo Georg Marcgrave e o médico Wilhelm Piso acompanharam João Maurício, futuro príncipe de Nassau-Siegen, chefe da expedição militar holandesa que veio para o Brasil em 1636 para defender e ampliar as conquistas. Durante sete anos de permanência no Brasil, Marcgrave elaborou um detalhado trabalho sobre a História Natural 141 do Brasil, que entregou a João Maurício antes de partir para a África, em 1644, aonde veio a falecer, vítima de febre endêmica. Nesse mesmo ano, João Maurício embarcou para a Europa e lá confiou os manuscritos de Marcgrave ao médico Piso para que os organizasse e publicasse, juntamente com as observações de Piso sobre o clima, as moléstias e remédios usados no Brasil. Nessa época Piso estava assoberbado e transferiu o encargo para Johannes de Laet que, por sua vez, trabalhou muito para concluir a tarefa porque Marcgrave escrevera todos os seus trabalhos em cifras por ele próprio inventadas, a fim de que ninguém pudesse tirar-lhe a glória de divulgá-las em primeiro lugar. É fato que se encontrou também entre os papéis a chave daquelas cifras; mas, como todos os apontamentos estavam escritos em folhas separadas, constituiu uma nova dificuldade dar ao conjunto uma boa ordem (Lichtenstein, 1961, p. 139). As ilustrações, possivelmente de “Marcgrave e de outro artista a que se fazem referências nos escritos, sem indicar o nome” (Lichtenstein, 1961, p. 140), em muitos casos foram inseridas no livro em locais incorretos, dando origem a equívocos. A obra foi publicada em 1648, num volume médio in-folio, sob o título Historia Naturalis Brasiliae. O editor Johannes de Laet fez uma breve introdução, “Aos benévolos leitores”, onde conclui prometendo uma nova versão, ou edição, quando a guerra terminar: “se Deus me prolongar a vida por alguns anos, e terminar a guerra no Brasil, que esta História sairá mais perfeita, e será feito um favor condigno àqueles, que dela se aproveitarão. Por enquanto gozai da que vos damos” (Marcgrave, 1942). Lichtenstein, em 1828, publicou uma revisão crítica dos trabalhos de Marcgrave e Piso (Lichtenstein, 1961), principalmente no que se refere às ilustrações. Na introdução do seu trabalho Lichtenstein chama a atenção para o valor do trabalho de Marcgrave e Piso: Antes de firmarem o pé no Brasil os holandeses, deconheciam-se [sic] inteiramente todos os seus produtos naturais que não fossem artigos de comércio. Agora, com aquelas obras, que em si traziam de modo tão iniludível o cunho de exatidão e de amor à verdade, surgia subitamente um novo reino, sendo difícil que de outra qualquer região se tenha dado uma primeira notícia tão completa e exaustiva quanto a que nelas se fornecia do Brasil (Lichtenstein, 1961, p. 146). Além do valor, decorrente do pioneirismo e do nível de detalhamento dos trabalhos, Lichtenstein lembra que [...] o que lhes dá casualmente importância ainda maior é a circunstância de que, assim que os holandeses foram expulsos, os espanhóis, mais ciosos ainda que dantes, fecharam aos pesquisadores essa parte do mundo, tornando-a assim inacessível durante um século e meio (Lichtenstein, 1961, p. 146). 142 O equívoco, deliberado ou não, do autor quanto a nacionalidade dos colonizadores do Brasil, após a Restauração de 1640, não afeta o conteúdo: os portugueses mantiveram fechado o acesso ao Brasil para pesquisadores até o início do século XIX, quando a vinda da família real alterou esse panorama. Desde a descoberta, os portugueses não apenas impediam o acesso de pesquisadores, mas também restringiam as publicações sobre o Brasil. Um aspecto surpreendente sobre o uso por Vasconcellos da História Natural do Brasil, de Piso e Marcgrave, é o fato da obra ter sido elaborada e impressa por holandeses, numa época em que Portugal e Holanda estavam em guerra o que dificultaria o acesso a ela. Duas questões relacionadas a este aspecto podem ser destacadas. A primeira questão está relacionada à forma pela qual Vasconcellos teve acesso a um exemplar da obra de Piso e Marcgrave. O esclarecimento dessa questão poderia oferecer subsídios para uma melhor compreensão sobre os mecanismos de circulação dos livros durante o período colonial no Brasil. Sabemos que a principal fonte dos livros utilizados nos colégios jesuítas do Brasil era proveniente das aquisições feitas em Lisboa e remetidas ao Brasil. Uma outra possível fonte de livros para os colégios, seria aquela em que eram adquiridos pelos padres e irmãos da Companhia de Jesus nas suas viagens pelo mundo. Não podemos descartar, como possível fonte, o contrabando de livros, especialmente daqueles que estavam no Index Librorum Prohibitorum e que foram encontrados, posteriormente, em bibliotecas de colégios jesuítas. Um exemplo deste último caso é o livro Epigramas, de John Owen, que consta do Catálogo da Biblioteca da Casa da Vigia, com 1006 livros no total (Leite, 2000, v. 4, p. 399-410). A Casa da Vigia era um pequeno colégio jesuíta do Maranhão, no século XVIII, o que serve para ilustrar a dimensão das bibliotecas dos colégios jesuítas. A maior parte do acervo das bibliotecas dos colégios jesuítas foi perdido ou destruído após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759. O Auto de inventário da biblioteca do Colégio jesuíta do Rio de Janeiro (Auto, 1973), relaciona cerca de quatro mil e setecentos exemplares de livros que ainda existiam em 1775. Nesse Auto, Serafim Leite identifica várias obras de interesse científico como por exemplo os livros de Matemática de Clávio, Kircher e Boscovich; cinco tomos de Newton; e Voyage du Monde de Descartes do padre Gabriel Daniel (Leite, 2000, v. 6, p. 25-28). Podemos acrescentar o livro “Observação Astronomica hum tomo novesentos e sesenta reis ($960)” (Auto, 1973, p. 219), que pelo valor da avaliação deveria ser considerado como um livro muito caro. Seria o livro Observações, de Theodoro de Bry, citado por Vasconcellos nas Noticias? 143 A segunda questão relativa ao livro de Piso e Marcgrave é o fato de Vasconcellos ter utilizado um livro elaborado por inimigos de Portugal e do Brasil. Vasconcellos refere-se à presença holandesa no Brasil, em mais de um ponto da Crônica, de forma negativa como, por exemplo, “gentes infiéis estrangeiras” que ocuparam Pernambuco “com a sombra da morte por 24 anos” (Vasconcelos, 1977, p. 230). Entretanto, é no discurso científico dessas “gentes infiéis estrangeiras” que Vasconcellos busca o apoio imprescindível para a defesa de sua tese, devido a inexistência de obra similar, ou que se aproximasse em detalhe e qualidade da obra de Piso e Marcgrave, que tivesse sido escrita por portugueses ou brasileiros. Dessa forma, Vasconcellos não teve outra opção de escolha para legitimar o seu discurso. Acrescente-se que ao fazer uso do discurso científico das “gentes infiéis estrangeiras”, Vasconcellos valoriza o próprio discurso, se apropriando da qualidade do discurso do outro, além de ganhar um status de verdade por ter sido legitimado através do testemunho das “gentes infiéis estrangeiras”. Os discursos científicos, em meados do século XVII, apresentavam três versões77 concomitantes de concepção do mundo: a concepção geocêntrica, de Aristóteles e Ptolomeu; a concepção heliocêntrica, de Copérnico; e a concepção geo-heliocêntrica, de Tycho Brahe. A primeira concepção defendida pela Igreja Católica, a segunda considerada como herética por essa mesma Igreja e a terceira concepção foi aceita, de forma gradual pelos jesuítas e incorporada, como vimos, aos seus textos filosóficos. Nesse caso, encontramos mais uma vez, a atitude estética barroca dos jesuítas buscando conciliar forças antagônicas, como o geocentrismo e o heliocentrismo, numa nova unidade conceitual (Panofsky, 1995; Coutinho, 1999), que se materializava na concepção geo-heliocêntrica de Tycho Brahe. Nesse período, a religião e a ciência começavam a se dissociar e cada uma estabelecia as bases do seu novo discurso. Nesse contexto, Simão de Vasconcellos, num movimento inverso utilizou um discurso científico para validar o seu discurso da bondade da terra do Brasil e que era um discurso religioso. Assim, podemos afirmar que a História Natural do Brasil, de Piso e Marcgrave, foi a principal referência utilizada por Simão de Vasconcellos para corroborar todas as quatro propriedades da terra do Brasil e, com o auxílio de outros discursos científicos, validar a conclusão do seu silogismo afirmando: “E tenho dado breues noticias das quatro bondades da terra do Brasil, que saõ as mesmas com que Deos a criou em sua primeira formação, & pellas quaes julgou que era boa” (Vasconcellos, 1668, p. 289). 77 Poderia haver mais versões se incluíssemos, por exemplo, a versão de Descartes. O que serve para mostrar que o real permite mais de uma explicação, ou versão, simultânea, dependendo do observador e do seu capital simbólico. 144 Depois dessa demonstração, com base no discurso científico, de que a terra do Brasil é boa, Simão de Vasconcellos, que havia afirmado anteriormente que “quando for tempo” trataria do Paraíso, inicia a parte final da defesa da tese que lhe custou a censura: a tese do Paraíso. O tempo havia chegado... 145 6. A tese do Paraíso Simão de Vasconcellos inicia a defesa da sua tese do Paraíso, localizado no Novo Mundo, na conclusão das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil afirmando que as qualidades da terra “com que o Autor della enriqueceo este Nouo mundo: poderiamos fazer comparação, ou semelhança, de algũa parte sua; com aquelle Paraíso da terra, em que Deos Nosso Senhor, como em jardim, poz a nosso primeiro pay Adam” (Vasconcellos, 1668, p. 290). Observe-se o uso do futuro do pretérito, “poderíamos”, como uma possibilidade que pode ou não ser considerada, pelo autor e/ou leitor nessa comparação ou semelhança da terra do Brasil com o Paraíso da terra. Esta possibilidade aventada por Simão de Vasconcellos é uma das marcas da censura da Companhia de Jesus impressa no texto, numa folha colada ao fólio, correspondente às páginas 177 e 178 da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, como vimos anteriormente. No último parágrafo das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, que tem número 104 ao invés de 105 devido à duplicação do parágrafo 12, na página 175, Simão de Vasconcellos remete o leitor a vários autores escolásticos e relaciona quatro: S. Tomás (Summa Theologica, primeira parte, quest. 102, art. 2, ad. 4), S. Boaventura (2, dist. 17, dub. 3), Soares (De opere sex dierum, lib. 3, cap. 6, num. 36), e Cornélio Alápide (Genes., cap. 2. v. 8. § 4). Vasconcellos afirma que deixa ao juízo do leitor a vantagem que fazem algumas terras do Novo Mundo aos fabulosos “Campos Elysios; Hortos pensiles, ilha de Atlante” (Vasconcellos, 1668, p. 290-291), e a semelhança com o melhor clima da terra que é vantajoso em relação ao da ilha Tapobrana cujo clima é infesto à saúde os homens. E encerra o livro. Assim, podemos constatar que a censura da Companhia de Jesus permitiu que Vasconcellos publicasse como conclusão que o Novo Mundo poderia ser comparado ou assemelhado, ao Paraíso da terra e que o leitor, a seu juízo, poderia considerar algumas terras do Novo Mundo vantajosas em relação aos Campos Elísios, Horto Pênsil, ilha 146 Atlante, e ilha Tapobrana. Entretanto, nos sete parágrafos eliminados78 do livro de Vasconcellos pela censura da Companhia de Jesus, encontramos uma argumentação mais enfática e, obviamente, mais extensa na defesa da localização do Paraíso na América. O conteúdo dos parágrafos censurados mostra que Vasconcellos centrou a defesa de sua tese em cinco pontos. Os três primeiros pontos tratam da localização, do clima e da influência do céu do Novo Mundo na determinação da localização do Paraíso na terra. Os dois últimos pontos descartam a possibilidade do Paraíso na terra ser localizado na África ou na Ásia, assegurando a sua localização, por exclusão, na América. Nessa defesa, Vasconcellos afirma que vários autores graves, antigos e modernos, localizaram o Paraíso próximo da linha Equinocial: “debaixo della, ou junto a ella, ou della para o sul” (Holanda, 1994, p. 363). Ele relaciona como referências que abonam essa posição: S. Tomás (Summa Theologica, primeira parte, quest. 102, art. 2, ad. 4), S. Boaventura (2, dist. 17, dub. 3), Soares (De opere sex dierum, lib. 3, cap. 6, num. 36), que fazem parte do parágrafo 104 impresso, e mais “curso Comimbricense [sic] no livro 2 do seo Capítulo 14 quest. 1. art. 3”, e “Durandos [...] quest. 3 num. 8” (Holanda, 1994, p. 363). Assim, nos parágrafos 105 e 106, Vasconcellos defende sua tese utilizando o argumento de que Deus situou o Paraíso debaixo da Equinocial, junto dela, ou ao sul dela. No parágrafo 107, Vasconcellos invoca o testemunho de S. Tomás, Aristóteles, Scoto, Luis Vives e Cornélio Alápide para localizar o Paraíso na América e afirma que o último dizia que: “toda a terra em que então habitava era cingida do Oceano; e que alem deste Oceano, em outra terra que era de outro mundo estava o paraiso” e conclui dizendo “Com que outras palavras podia declarar o Novo Mundo da America” (Holanda, 1994, p. 364), ou seja, o autor deduz a partir destas declarações que obviamente a outra parte do mundo em que se encontrava o Paraíso só poderia ser mesmo a América. No parágrafo seguinte, Vasconcellos trata do segundo ponto de sua defesa e retoma a questão do clima temperado do Paraíso, a que o clima da América deveria se igualar, uma vez que o clima de “Todos os lugares annexos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elisios, Hortos pensiles, Ilha de Atlante etc. podem ceder a muitos da America”79 (Holanda, 1994, p. 364). Em outras palavras, o clima da América superava o 78 Os sete parágrafos foram publicados como anexo por Sergio Buarque de Holanda a partir da terceira edição de Visão do Paraíso, com base no parecer do p. Luis Nogueira. Reproduzimos esses parágrafos censurados no Anexo 1. Na edição das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil, de 2001, o organizador Luis A. de Oliveira Ramos incluíu os sete parágrafos censurados, em português atual, que estão reproduzidos no Anexo 1. 79 Na edição das Notícias, de 2001, temos: “Todos os lugares amenos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elísios, hortus pensiles, ilha de Atlanta etc. podem ceder a muitos da América” (Vasconcelos, 2001, p. 162). 147 clima de todos os lugares do antigo mundo, fossem eles verdadeiros ou “fabulosos”, igualando-se ao do Paraíso! O clima temperado do Paraíso era um lugar comum na literatura medieval e foi inaugurado, segundo Sérgio Buarque de Holanda, com o poema latino Phoenix atribuído à Lactâncio. Esse clima paradisíaco foi descrito por santo Isidoro de Sevilha como non ibi frigus non aestus, ou seja, nem frio nem calor, temperado, e assim incorporado ao imaginário medieval (Holanda, 1994, p. XVIII-XIX). No tempo dos descobrimentos essa temperança do clima paradisíaco é reproduzida por quase todos os cronistas, desde Colombo, quando descreviam o Novo Mundo aproximando-o através do clima ao Paraíso, como S. B. de Holanda nos mostra em Visão do Paraíso. Passando ao terceiro ponto da defesa de sua tese do Paraíso, Vasconcellos apresenta como argumento a influência celeste no mundo, cuja teoria abordamos no capítulo anterior. Vasconcellos afirma que a “parte do Ceo mais perfeito da Zona torrida, a que chamamos linha Equinocial he aquella que tem a seu cargo o governo do mundo universo” (Holanda, 1994, p. 364). Esta zona do céu “he regra do primeiro movel e curso admiravel dos mais orbes, de que pende o ser da natureza sublunar” (Holanda, 1994, p. 364), ou seja, Vasconcellos localiza na zona equinocial o “primeiro movel”, de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino, que governa o mundo, é curso dos demais orbes, e projeta sua influência no mundo sublunar. Esta equinocial é uma linha perfeita, que divide o céu e o mundo em duas partes, “he medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos da Ethyoptica, repartidora das partes da Esphera”80 (Holanda, 1994, p. 364). Com “todas estas excellencias a linha Equinocial he a parte mais nobre do Ceo” (Holanda, 1994, p. 364) e isto permite que Vasconcellos pergunte ao leitor o que corresponderia a essa excelência do céu projetada na Terra? Não seria “nata do mundo, porto de deleites e Paraiso terreal?”81 (Holanda, 1994, p. 364). A resposta de Vasconcellos a essa pergunta seguiu o preceito daquela recomendação do papa Urbano VIII feita a Galileu que, por sua vez, não a seguiu e acabou enfrentando a Inquisição em 1633. O preceito, que funcionava como uma salvaguarda, era o de apresentar a resposta ou solução como uma hipótese, possibilidade, ou probabilidade, como Vasconcellos fez com relação ao Paraíso na terra do Brasil: “a probabilidade desta openião deixo ao juizo dos que a tem: a mim me basta que della se colhe meu primeiro intento que he tão grande a 80 Na edição das Notícias, de 2001, temos: “é medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos da eclíptica, repartidora das partes da esfera” (Vasconcelos, 2001, p. 162). 148 temperança do clima destas partes que chegarão tão graves Autores a plantar nellas o Paraiso”82 (Holanda, 1994, p. 364). Em outras palavras, o posicionamento de Vasconcellos estava de acordo com as prescrições da Igreja, motivo pelo qual seu livro foi aprovado pelo Santo Ofício, como podemos comprovar nas Aprovações do Santo Oficio reproduzidas no Anexo 4. No quarto ponto da sua defesa da localização do Paraíso no Novo Mundo, Vasconcellos reconhece que a linha equinocial e a zona tórrida não correspondem apenas à América, mas também à África e à Ásia. O autor lembra que “muitos Santos Padres” diziam que o Paraíso fora plantado para o oriente, todavia ele afirma categoricamente que “em nenhuma destas parte da Africa, ou Azia assignadas, ou junto a ellas, ou dellas para o Sul, sabemos que esteja o Paraiso terreal nem vemos Autores, que alli o puzessem, nem Deos para elle escolheria partes tão fora das condições daquelle Jardim de deleites” (Holanda, 1994, p. 365). Afirma ainda que alguns autores tentaram enobrecer o clima da ilha de Tapobrana (Ceilão), entretanto o testemunho do p. Lucena, na Vida de São Francisco Xavier, liv. 3, cap. 10, indica que o clima da ilha era “malsão e infesto á saude dos homens” (Holanda, 1994, p. 365). Assim, Vasconcellos conclui que o Paraíso “não está na parte que responde a Africa ou Azia, he força que diga que está na America: Está em hua das tres partes: não na da Africa, ou Azia, logo na da America”83 (Holanda, 1994, p. 365). O último ponto da defesa de Vasconcellos refere-se aos quatro rios do Paraíso, descritos no Gênese [Gn 2, 10], que eram associados aos rios Nilo, Ganges, Tigre e Eufrates. Esses rios, segundo o autor, foram explorados até suas nascentes e não foi encontrado nenhum indício do Paraíso. Entretanto, ele afirma que S. Tomás, S. Agostinho, Ruperto, Theodoreto e o padre Soares diziam que esses rios tinham origem numa “fonte do Paraiso e depois se escondem por baixo da terra, com longo curso vão romper os lugares ja ditos, que podem ser sitios distantissimos do Paraiso” (Holanda, 1994, p. 365). Vasconcellos estende sua defesa até o último parágrafo do livro e conclui: não he de crer que todo este grande espaço (que comprehende as regioens de Babylonia, Armenia, Mesopotamia, Assyria, India, Persia, e muitas outras) fosse Paraiso assy tambem não se tira forçoso argomento que o Paraiso ficasse para o Oriente, porque 81 Na edição das Notícias, de 2001, temos: “nata do mundo, horto de deleites e paraíso terreal.” (Vasconcelos, 2001, p. 163). 82 Na edição das Notícias, de 2001, temos: “A probabilidade desta opinião debaixo digo deixo ao juízo dos que a lerem: a mim me basta que dela se colhe meu principal intento que é tão grande a temperança do clima destas partes que chegaram tão graves doutores a plantar nelas o paraíso” (Vasconcelos, 2001, p. 163). 83 Na edição das Notícias, de 2001, temos: “não está na parte que responde a África ou a Ásia, é força que diga que está na América com este argumento está em uma das três partes; não na d’África, ou Ásia, logo na d’América” (Vasconcelos, 2001, p. 163). 149 podião aquelles Ryos ter seu nascimento occulto em que parte mui diversa. E esta podia ser a America (Holanda, 1994, p. 365). Nos cinco pontos em que concentra a parte final da defesa da localização do Paraíso na América, Vasconcellos utiliza sempre o condicional como constatamos. Dessa forma, ele cumpria a exigência religiosa de atribuir à sua tese o valor de uma opinião possível, dentre outras igualmente possíveis, portanto, sem a conotação de verdade religiosa. Assim, a censura que eliminou os sete últimos parágrafos das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, por parte da Companhia de Jesus, apresenta-se mais como uma disputa interna, de caráter hierárquico ou político, do que uma questão religiosa. Esta conclusão é reforçada, como veremos, pelo desdobramento e resultado de outro caso de censura, contemporâneo ao de Simão de Vasconcellos, porém exercido pelo Santo Ofício e com maior rigor. Por outro lado, alguns autores atribuíram a censura dos parágrafos finais, nas Noticias, ao Santo Ofício: Lembremos do notável exemplo representado pelos escritos do frei Simão de Vasconcelos. Nas linhas que encerram sua Crônica da Companhia de Jesus, publicada em 1663, pode-se ler uma comparação bastante direta entre o Brasil e o horto onde Deus teria colocado os nossos primeiros pais. A verdade, porém, é que o texto original continha comentários bem mais incisivos: retomando vários doutores da Igreja, além de antigos astrônomos e matemáticos, Simão de Vasconcelos postulava explicitamente que o lugar do Paraíso só poderia ser o Brasil. Isso quase lhe custou uma visita aos porões do Santo Ofício. Porque, apesar de as fantasias edenizadoras já terem comparecido na pena de tantos cronistas, a tentativa de defendê-las abertamente foi muito mal recebida pelos inquisidores. Longe de ser uma questão fútil e inofensiva, especular sobre a localidade do Éden implicava rediscutir o maior de todos os problemas teológicos: o mistério da salvação. E fazê-lo com o auxílio das mesmas autoridades que serviam de fundamento à ortodoxia católica era, no mínimo, um gesto temerário. Embora Vasconcelos tenha escapado de ser formalmente processado, obrigaramno a se desfazer dos trechos mais melindrosos. (Gomes, 1997, p. 14). Podemos resumir que o que apuramos, até este ponto, foi um grande esforço de Simão de Vasconcellos em criar um espaço territorial, bem delimitado e ampliado em relação ao limite de Tordesilhas, e selecionar aqueles que poderiam habitar esse território ampliado: os portugueses e os índios mansos. Depois desse esforço, o autor se empenhou em demonstrar que o território que ele construiu possuia todas as possibilidades e qualidades inerentes ao Paraíso. Todo este empenho descortina a probabilidade de que esse discurso do Paraíso, construído por Simão de Vasconcellos, estaria relacionado ao milenarismo84. O milenarismo pode ser definido como a “espera de um reino deste mundo, reino que seria uma espécie de paraíso terrestre reencontrado” (Delumeau, 1997, p. 17). Jean Delumeau 84 Devo esta indicação ao Prof. Dr. Ronaldo Vainfas, por ocasião do exame de qualificação, e que permitiu acrescentar um novo enfoque na análise do discurso de Simão de Vasconcellos. 150 situa a origem da idéia de um reino de felicidade na Terra nos escritos bíblicos exemplificados na interpretação do profeta Daniel [Dn 2] do sonho de Nabucodonosor, e no Apocalipse [Ap 20] que prevê o reinado de mil anos de felicidade. Entretanto, a interpretação de S. Agostinho do Apocalipse, no século V, fez com que a idéia de um reino de felicidade na Terra sofresse uma marginalização pela Igreja Católica: Opondo-se a essa literatura profética, no final do século V, o célebre decreto de Gelásio, que distingue os escritos canônicos e os apócrifos, mantém o Apocalipse entre os primeiros mas lança a suspeita sobre os escritos milenaristas de Tertuliano, Lactâncio, Comodiano de Gaza e Vitorino de Pettau, que haviam interpretado de forma literal o “livro das Revelações”. A recusa pelas autoridades da Igreja de uma leitura literal do capítulo 20 do Apocalipse talvez explique por que a iconografia consagrada ao curso do tempo no “livro das Revelações” omitiu na maioria das vezes a evocação dos mil anos do reinado terrestre de Cristo. Essa ausência é muito significativa. A Igreja oficial apagou o anúncio desse reinado. (Delumeau, 1997, p. 31) Todavia, a tradição milenarista sobreviveu nas “sibilinas cristãs”, uma literatura profética que anunciava a vinda de um rei messiânico, até que o monge cisterciense e abade do mosteiro de Corazzo, Joaquim de Fiore (1135-1202) rompeu com a interpretação de S. Agostinho, que era aceita pela Igreja Católica, de que o tempo em que viviam terminaria com o fim do mundo (Delumeau, 1997, p. 40-43). Na concepção do abade Joaquim a humanidade passaria por três etapas, ou idades “o tempo ‘anterior à graça’, o ‘da graça’, e, finalmente, ‘aquele que esperamos, que está próximo’ e que será o de uma ‘graça maior’”, e que ele traduz como “o tempo da lei natural e mosaica anterior a Cristo; o tempo marcado pela vinda de Jesus ‘sob a letra do Evangelho’; enfim o tempo, doravante próximo, que triunfará a ‘inteligência espiritual’” (Delumeau, 1997, p. 42). Fiore não foi milenarista nem messianista, porém fortaleceu os temas apocalípticos que haviam sido marginalizados pela Igreja desde a interpretação de S. Agostinho do Apocalipse (Delumeau, 1997, 49). Esse fortalecimento manteve acesa a chama da esperança da eclosão de um reino de felicidade na Terra. No período que abrange o fim do século XIV até à metade do século XVII, o milenarismo foi representado na cristandade latina através de duas correntes. A primeira, de acordo com a interpretação de S. Agostinho, acreditava que o fim do mundo estava próximo e Delumeau lembra que “Lutero, em particular, e muitas figuras marcantes do protestantismo acreditaram na proximidade do juízo final” (Delumeau, 1997, p. 91). A outra corrente acreditava no advento de um tempo de felicidade num paraíso terrestre reencontrado. Esta segunda corrente, dividia-se naqueles que queriam estabelecer o reino de felicidade por meio da violência (!), e nos que esperavam pacificamente pela realização das profecias. Entretanto, todas as correntes escatológicas acreditavam que “a passagem, seja ao milênio, seja ao juízo 151 final, devia ser anunciada por ‘sinais’ aterradores e operar-se mediante convulsões terríveis” (Delumeau, 1997, p. 91). Não podemos deixar de antecipar que este último aspecto, dos “sinais”, está presente em quase todas as cartas escritas por Antonio Vieira nos anos de 1664 e 1665 e será retomado adiante. De uma forma geral, no mundo cristão, no período da modernidade inaugurado pela imprensa e pelas descobertas, o milenarismo manteve uma posição discreta e marginal. Entrementes, em Portugal, o século XVI assistiu a uma exacerbação do profetismo que contribuiu para realçar as manifestações milenaristas do século XVII. A trajetória do profetismo português pode ser resgatada a partir da mensagem do Ourique. A vitória do príncipe Afonso Henriques na batalha de Ourique (baixo Alentejo), em 25 de julho de 1139, frente a um exército mouro mais numeroso do que o português, foi transformada, a partir de meados do século XV, em um feito mítico e ao mesmo tempo místico, fundador do reino português. Essa transformação deve-se aos discursos que atribuíam a vitória portuguesa à aparição milagrosa de Cristo ao príncipe Afonso Henriques, antes da batalha. O reino português nascia assim, sob a égide mística de uma luta enaltecida por Luís de Camões, no canto III, de Os Lusíadas: Mas já o Príncipe Afonso aparelhava O Lusitano exército ditoso, Contra o Mouro que as terras habitava De além do claro Tejo deleitoso; Já no campo de Ourique se assentava O arraial soberbo e belicoso, Defronte do inimigo Sarraceno, Posto que em força e gente tão pequeno; Em nenhũa outra cousa confiado, Senão no sumo Deus que o Céu regia, Que tão pouco era o povo bautizado, Que, pera um só, cem Mouros haveria. Julga qualquer juízo sossegado Por mais temeridade que ousadia Cometer um tamanho ajuntamento, Que pera um cavaleiro houvesse cento. Cinco Reis Mouros são os inimigos, Dos quais o principal Ismar se chama; Todos experimentados nos perigos Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. Seguem guerreiras damas seus amigos, Imitando a fermosa e forte Dama De quem tanto os Troianos se ajudaram, E as que o Termodonte já gostaram. A matutina luz, serena e fria, As Estrelas do Pólo já apartava, Quando na Cruz o Filho de Maria, 152 Amostrando-se a Afonso, o animava. Ele, adorando Quem lhe aparecia, Na fé todo inflamado, assim gritava: “Aos Infiéis, Senhor, ao Infiéis, E não a mi, que creio o que podeis!” Com tal milagre os ânimos da gente Portuguesa inflamados, levantavam Por seu Rei natural este excelente Príncipe, que do peito tanto amavam; E diante do exército potente Dos immigos, gritando, o céu tocavam, Dizendo em alta voz: “Real, real, Por Afonso, alto Rei de Portugal!” (Camões, 1999, p. 139-140) A aparição de Cristo para o príncipe Afonso Henriques criou uma aura extraordinária ao feito, pois passou a ser interpretada como “um sinal inequívoco para a compreensão da vitória e para a verdadeira sagração de Afonso Henriques, feita não por intermediários, vigários, mas pelo próprio Cristo em ‘pessoa’” (Hermann, 1998, p. 149). Dessa forma, o reino português teve na sua fundação um caráter sagrado e, ao mesmo tempo, ligado à luta contra o infiel mouro. Esta dupla articulação criou uma especificidade da realeza portuguesa, como indica Jacqueline Hermann. A exploração e conquista do litoral da África no princípio do século XV, marcou o início do processo de construção do império que se estenderia até o oriente no fim daquele século. Entretanto, no século XVI, a perda do domínio de algumas das conquistas no norte da África começaram a desfazer o sonho de manter o império português nessa região. Nesse contexto, em meados do século XVI, o império via-se ameaçado pela falta de um sucessor ao rei d. João III, o que permitiria que o rei de Espanha assumisse o reino de Portugal. Esta situação perdurou até que, em 20 de janeiro de 1554, nasceu um príncipe Desejado, d. Sebastião, filho do príncipe d. João, último filho vivo do rei d. João III, e de Joana que, por sua vez, era filha de Carlos V de Espanha. O príncipe d. João, pai do Desejado, morreu poucos dias antes do nascimento do herdeiro. O futuro rei d. Sebastião, desde o seu nascimento, era depositário das esperanças de Portugal e “encheu de alegria todo o reino, que vivia a angústia de ver Portugal governado pelo rei de Castela” (Hermann, 1998, p. 78). D. Sebastião foi aclamado rei de Portugal em 1557, aos três anos, devido à morte de seu avô d. João III. Sua avó, d. Catarina de Áustria, assumiu a regência até 1562 quando o seu tio-avô, cardeal d. Henrique, passou a reger até que o rei começou a governar em 1568 (Hermann, 1998, p. 78-85). A educação de d. Sebastião foi entregue aos jesuítas que, segundo Jacqueline Hermann, “apesar de se dizerem ‘soldados de Cristo’, a Companhia de Jesus jamais teve por 153 princípio uma pregação partidária de guerras medievais à moda cruzadística”. Sua guerra era espiritual e “não resgatar lugares santos de mãos infiéis e reforçar a apologia das guerras santas” (Hermann, 1998, p. 89). Por outro lado, o cerco de Mazagão em 1562 pelos mouros e a vitória dos portugueses fez renascer o fervor bélico lusitano, influenciando as Cortes de 1562-1563, convocadas pela rainha regente Catarina, que [...] condenaram formalmente o abandono das praças africanas, decidindo, ao contrário, pela fortificação do Algarve e pelo fortalecimento dos armamentos de Tânger “com mil lanças de cavallo”, d. Sebastião tinha apenas nove anos. Esta observação pode ser importante para realçar o contexto francamente belicoso no qual o pequeno rei passou a estar inserido. Sua educação zelosamente religiosa, aliada à política e exacerbação da luta contra os mouros, parece ter marcado fortemente a formação do rei, que afirmaria depois de assumir o trono: “Trabalharey por dilatar a Fé de Christo, para que se convertão todos os infiéis”, além de demonstrar suas inclinações guerreiras para “Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola e Mina”. Vale ressaltar ainda que o primeiro capítulo das Cortes determinava “Que El Rey Nosso Senhor, tanto que for de nove annos se tire dantre mulheres, e se entregue aos homens”, o que parece ter sido fielmente seguido pelos seus orientadores, provavelmente com a intenção de afastá-lo da influência da avó, o que parece ter desenvolvido no pequeno rei uma misoginia que, atrelada às dificuldades políticas e diplomáticas de seu tempo, o impediram de casar-se e deixar herdeiros. (Hermann, 1998, p. 81-82) Podemos acrescentar o fato de que a mãe do Desejado, Joana, voltou para Espanha em maio de 1554, quando d. Sebastião tinha apenas quatro meses. Aos vinte anos e viúva, Joana retornou à Espanha para assumir a regência, devido à ausência de seu irmão, exercendo-a durante cinco anos. Em meados desse mesmo ano de 1554, Joana comunicou a um interlocutor jesuíta sua intenção de pronunciar os votos da Companhia de Jesus. Este desejo da regente criou um problema para o fundador da Companhia, Inácio de Loyola, uma vez que a ordem admitia apenas homens e não tinha uma ordem feminina equivalente, como ocorria com outras ordens religiosas. Assim, Inácio de Loyola convocou uma assembléia dos pais, fundadores da ordem, que decidiram aceitar a regente numa admissão secreta, a única do sexo feminino na sua história. A decisão da assembléia dos pais da Companhia de Jesus foi parcialmente publicada por Jean Lacouture (1993) e dela destacamos o seguinte trecho, que é revelador do caráter político e conciliador da ordem fundada por Inácio de Loyola: Também do mesmo modo os Pais citados acharam que essa pessoa, seja ela quem for, visto que goza, e só ela, do privilégio tão especial de ser admitida na Companhia, deve manter a sua admissão secreta, como em confissão. Se o facto viesse a saber-se, não poderia constituir precedente para que outra pessoa deste género incomodasse a Companhia solicitando a sua admissão. Quanto ao resto, essa pessoa não terá de mudar nem de vestuário nem de casa, nem de manifestar seja como for aquilo que basta guardar entre sua alma e Deus Nosso Senhor. A Companhia ou um dos seus membros terá o dever de se ocupar da sua alma, tanto quanto for preciso para o serviço de Deus e para sua consolação pessoal, para glória de Deus Nosso Senhor. (Lacouture, 1993, p. 210) 154 Joana morreu aos trinta e oito anos e durante os dezoito anos em que foi “membro” da Companhia de Jesus era referida, na correspondência, como Mateo Sanches e após a morte de Inácio de Loyola, em 1556, passou a ser tratada como Montoya (Lacouture, 1993, p. 212213). Durante a regência de Joana, um observador da corte castelhana informava em carta a Inácio de Loyola que “o palácio da regente mais parece um convento” (Lacouture, 1993, p. 209). Ele não estava longe da verdade. Em Portugal, poucos anos depois, d. Sebastião, filho de Joana, aplicava-se no exercício das caçadas como uma preparação para as futuras batalhas. Antes da batalha decisiva e fatídica, d. Sebastião visitou, entre 1568 e 1572, as terras do sul do Tejo, como Almeirim, Salvaterra, Muge e Évora. Entre 1569 e 1570, esteve em Óbidos, Alcobaça, Leiria, Tomar e Coimbra. Em 1573, esteve no Algarve que passou a freqüentar pois achava que os mouros atacariam a costa sul de Portugal. O projeto africano começou a tomar forma em 1574 com a visita que fez a Ceuta e Tânger (Hermann, 1998, p. 91-92). Era o início da aventura africana e da desventura dos portugueses. D. Sebastião embarcou para a aventura africana em Lisboa, em 14 de junho de 1578, sob calorosa saudação popular. A partir do ponto em que desembarcaram na África e foram iniciados os preparativos da batalha, conhecida como Alcácer Quibir, o historiador tem que articular as várias versões da luta, como observa Jacqueline Hermann: Em meio a tantas histórias, pode-se afirmar que, para além, das versões da batalha portuguesa contra os mouros, essas versões teceram uma narrativa dialógica e contínua entre os diversos textos, produzidos uns em resposta aos outros, e, nessa perspectiva, tiveram um sentido próprio, certamente pouco motivadas pela busca desinteressada da “verdade” dos acontecimentos e mais comprometidas com o lugar ocupado por cada um dos produtores dessas versões no campo dessa verdadeira guerra de discursos. (Hermann, 1998, p. 114) Apesar desse problema, a autora consegue estabelecer valores quantitativos que nos permitem ter uma idéia aproximada da batalha e do desastre português. A frota lusitana variava, segundo os diversos relatos, entre quinhentas e mil embarcações e a tropa era composta por dois mil castelhanos, três mil alemães, seiscentos italianos e entre nove mil e doze mil portugueses. Ainda segundo os relatos, a artilharia tinha entre doze e trinta e seis peças e os cavalos eram entre mil e dois mil e quinhentos. Do outro lado, o cômputo do número de soldados também é variável nos relatos, todavia, apresentam sempre quantitativos muito superiores ao dos portugueses, numa proporção de quatro ou cinco mouros para cada soldado do exército português. 155 O empenho de d. Sebastião em seguir por terra para o campo de batalha, a estratégia de envolvimento do exército inimigo e a sua vantagem numérica são os principais elementos, relacionados nos relatos, que selaram o desfecho da batalha, desfavorável aos portugueses, no dia 4 de agosto de 1578. Na luta, o Desejado recusou-se a esconder-se e a fugir, o que não foi visto por seus biógrafos como um ato de coragem, mas de irresponsabilidade, d. Sebastião mais combateu que comandou, segundo todos os relatos. Mesmo quando a derrota já parecia irreversível, o máximo que consentiu foi afastar-se do estandarte real, que poderia facilitar a sua identificação. Ferido na mão, trocou de cavalo três vezes e parece ter sido, junto a uns poucos fidalgos que ainda o acompanhavam, um dos que seguiram combatendo por mais tempo. Seu valido mais próximo, Cristóvão de Távora, chegou a pedir-lhe, suplicar-lhe que se rendesse, para salvar a si e à nação, ao que d. Sebastião respondeu: “Que pode haver aqui que fazer senão morrermos todos?” e completou com a célebre frase “morrer sim, mas devagar”. Negando-se a recuar, perdeu-se em meio aos inimigos. (Hermann, 1998, p. 120) D. Sebastião, o rei Desejado, que levou para a África a espada do místico rei Afonso Henriques, como se fosse a sua reencarnação, desapareceu da vida no combate de Alcácer Quibir e passou a viver no imaginário do povo português como um rei Encoberto, esperança de glória futura de um reino humilhado. O retrato do rei d. Sebastião, um rei barroco por excelência, é pintado por Jacqueline Hermann como “dilacerado e inquieto, medieval e moderno, cavaleiro e rei absoluto, herói e mártir, profeta e messias” (Hermann, 1998, p. 188). Na falta do rei Desejado, assumiu a coroa seu tio, o cardeal d. Henrique, que faleceu em 31 de janeiro de 1580, sem ter reconhecido d. Antonio, prior do Crato, como sucessor por ser neto ilegítimo de d. Manuel, filho bastardo de d. Luis com uma cristã nova (Hermann, 1998, p. 53). Na luta pelo trono português, Felipe II de Espanha reivindicou-o por ser tio do falecido rei d. Sebastião. Diante do impasse, enviou um exército a Portugal que, em pouco tempo, derrotou o pequeno e desarticulado exército português em 1580: Portugal vivia outra desastrosa e humilhante derrota, dois anos depois de Alcácer Quibir. Seus dois históricos inimigos, muçulmanos e espanhóis, dessa vez praticamente juntos, despojaram o reino de sua soberania, de sua independência e de seu próprio rei. A impossibilidade de uma solução portuguesa para a sucessão, seguida ao desaparecimento do Desejado, parecia fechar um ciclo na outrora venturosa história de conquistas do país pioneiro da expansão ultramarina e artífice de um projeto imperial que parecia encomendado pelos desígnios de Deus. A recente derrota em Alcântara exigiria um novo esforço de adaptação à mudança dos ventos que outrora balançavam as velas em busca do desconhecido. Agora os inimigos estavam dentro de casa e eram os donos do poder de um país destruído política, financeira e moralmente. (Hermann, 1998, p. 176) Nos períodos adversos, quando proliferam as dificuldades, é comum ao ser humano buscar um ponto de apoio que lhe sirva como referência para superação da fase desfavorável. 156 Se o ser humano age dessa forma em termos individuais, na instância coletiva a ausência de um referencial faz crescer a esperança de uma solução mágica, sobrenatural. Em Portugal não foi diferente... O fidalgo d. João de Castro, seguidor de d. Antonio, prior do Crato, editou em Paris, em 1602, parte dos manuscritos de Gonçalo Annes Bandarra, o sapateiro de Trancoso. Nessa publicação das Trovas de Bandarra, havia a articulação do sonho de grandeza de Portugal com a identificação do rei citado por Bandarra, d. João, e d. Sebastião como o Encoberto. Este foi o ponto de partida para a estruturação do mito sebastianista no meio culto de Portugal (Hermann, 1998, p. 53). Segundo alguns autores, Bandarra elaborou as trovas, entre 1520 e 1540, e uma das cópias manuscritas chegou às mãos de um desembargador do Paço. Em seqüência, Bandarra foi preso pelo Santo Ofício, em 18 de setembro de 1541, condenado, abjurou e saiu em auto de fé no mês seguinte (Hermann, 1998, p. 45). As Trovas de Bandarra, devido a sua característica metafórica, permitem uma diversidade muito ampla de leituras e significações que, ao longo do tempo, permitiram uma extensa gama de articulações. Na elaboração das Trovas, o autor foi influenciado pelo mito do Encoberto, que circulava na Península Ibérica desde o início do século XVI, e no texto percebe-se também a influência medieval e do messianismo judaico (Hermann, 1998, p. 5859). A disseminação das Trovas de Bandarra, articulando d. Sebastião ao rei Encoberto e a implantação de um reino de glória resultou num messianismo que J. Lúcio de Azevedo afirma “nascido da dor, nutrindo-se da esperança, ele é na história o que é na poesia a saudade, uma feição inseparável da alma portuguesa” (Azevedo, 1984, p. 7). É nesse clima de esperança, que pode ser interpretado como uma espera pelo cumprimento das profecias, que os fidalgos portugueses se rebelaram contra o domínio de Castela e fizeram a Restauração, em 1640. O argumento dos fidalgos portugueses era, segundo Eduardo D’Oliveira França, que o poder dos Habsburgos era ilegítimo e que a insurreição corrigiria o problema com a aclamação de um nobre português como rei (França, 1997, p. 262). As Trovas de Bandarra voltaram então com força, como se fosse o início da realização das profecias anunciadas: cujas predições haviam despertado na alma portuguesa as aspirações de agora, como já despertara as do tempo de D. Sebastião, venerado de todos, cada vez mais crido, ninguém lhe contestava a categoria de profeta nacional. Não podia, só por um esforço 157 de vontade, o país canonizá-lo; mas no dia da aclamação solene de D. João IV estava a imagem dele num altar da Sé, exposta como se faria à de um santo. O Arcebispo consentiu, e ninguém contra isto protestou, nem mesmo o Santo Ofício, que o tinha condenado. É o padre António Vieira que no-lo dá a saber, e o disse aos inquisidores no seu processo, na sessão de 25 de Setembro de 1663. Os pregadores, celebrando a aclamação do novo rei, não hesitavam em dizer do púlpito serem as Trovas realmente profecias, e verdadeiro profeta o autor. A proibição do Santo Ofício era como se não existisse; o livro vendia-se publicamente. Não havia escrito, em defesa da independência, que as não citasse, com o sentido profético a que os acontecimentos tinham dado sanção. A censura da Inquisição aprovou essas obras. Passados cem anos, o réu condenado ao silêncio falava livremente ante os juízes de outrora, em plena apoteose. (Azevedo, 1984, p. 66-67) Com a chegada ao Brasil da notícia da Restauração, o Vice-Rei, marquês de Montalvão, enviou a Portugal uma embaixada com seu filho, Fernando de Mascarenhas, o padre Simão de Vasconcellos, secretário da província jesuíta do Brasil, e o padre Antonio Vieira. A comitiva partiu em 27 de fevereiro de 1641 e devido a uma tempestade eles desembarcaram em Peniche, em 28 de abril de 1641, onde foram hostilizados porque alguns familiares do marquês de Montalvão não apoiavam a Restauração. O Governador da região, conde de Atouguia, intercedeu por eles e em 30 de abril foram recebidos pelo rei d. João IV, em Lisboa. Nessa audiência nasceu a amizade que uniu o rei a Antonio Vieira de forma “tão firme que jamais intrigas de émulos conseguiram arruiná-la, tão preciosa que, quando a rompeu a morte, o objecto dela não se contentava de nada menos que ressuscitar o amigo desaparecido” (Azevedo, 1992, v. 1, p. 48). Após a viagem da Bahia para Lisboa na embaixada da Restauração, os dois ilustres discípulos de Inácio de Loyola, Simão de Vasconcellos e Antonio Vieira, seguiram caminhos diferentes. Entretanto o acaso os reuniria em Portugal, vinte e um anos depois da embaixada, desta vez ambos envolvidos em diferentes questões de censura, porém relacionadas ao milenarismo. Recuperar as trajetórias de Vieira e de Vasconcellos, de 1641 até a reunião em Portugal em 1662-1663, bem como os desdobramentos que chegaram a 1668, são importantes para que possamos estabelecer a cronologia dos fatos e entender as suas conseqüências. Simão de Vasconcellos voltou ao Brasil, em 1642, acompanhando o Governador Antonio Teles da Silva de quem se tornara confessor. Nos vinte anos que se seguiram, sua trajetória pode ser resgatada nos diversos postos e cargos que ocupou na hierarquia jesuíta no Brasil: Vice-Reitor do Colégio da Bahia (1643-1645), Reitor do Colégio do Rio de Janeiro (1646-1649), Visitador do Colégio de São Paulo (1653), Vice-Reitor do Colégio da Bahia (1654), Provincial (1655-1658), Procurador da Província jesuíta do Brasil (1660). Nesse último cargo, como vimos, foi para Portugal em 1661 onde buscava as aprovações para a publicação da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. 158 A tajetória de Antonio Vieira nos vinte e um anos (1641-1662) que se seguiram à embaixada da Restauração pode ser dividida em duas etapas. Na primeira etapa, Vieira atuou na política e na diplomacia, como auxiliar e emissário do rei d. João IV (Azevedo, 1992, v. 1, p. 53-157). O posicionamento de Vieira apoiando a divisão da Companhia de Jesus em Portugal, criou uma situação em que ele teve que optar entre sair da Companhia ou voltar ao Brasil. Assim, sua decisão de permanecer na Companhia resultou na segunda etapa da sua trajetória, de caráter missionário, quando partiu para o Maranhão, em novembro de 1652. Numa viagem a Portugal em 1654, Vieira ao pregar na capela real pediu pelo restabelecimento do rei d. João IV, que encontrava-se gravemente enfermo. Nesse sermão, Vieira invocou as Escrituras e Bandarra afirmando que o rei “não podia morrer; se morresse ressuscitaria, para concluir a sua missão na terra e se cumprirem as profecias” (Azevedo, 1984, p. 71). Após a morte de d. João IV, em 1656, Antonio Vieira pregou nas exéquias do rei, no Maranhão, sermão em que afirmava que o rei tinha que ressuscitar (Azevedo, 1984, p. 71). Três anos depois, nessa etapa missionária de sua vida, Antonio Vieira escreveu e enviou ao bispo do Japão, p. André Fernandes, em 29 de abril de 1659, a carta com o famoso manuscrito Esperanças de Portugal, no qual demonstra que o falecido rei d. João IV haveria de ressuscitar para cumprir as profecias de Bandarra. Essa carta foi copiada, com ou sem a autorização de Vieira e, pouco tempo depois, circulava em Lisboa onde era comentada e discutida (Azevedo, 1992, v. 2, p. 8-9). Em abril do ano seguinte (1660), uma ordem do Conselho Geral da Inquisição mandou que os inquisidores pedissem ao bispo do Japão o manuscrito Esperanças de Portugal, escrito por Vieira. O bispo André Fernandes entregou o manuscrito em 15 de abril de 1660, que depois de analisado pelos inquisidores foi decidido que deveria ser recolhido e uma cópia enviada, para análise, ao Santo Ofício de Roma. Em agosto de 1661, chegava instrução do Santo Ofício de Roma, com parecer contrário a Vieira: Condenava as Trovas do Bandarra como tendo odor de judaísmo, e declarava perniciosa a sua divulgação, aliás já proibida em Portugal; quanto ao escrito submetido a exame, julgava-o temerário, repleto de falsidades e sobretudo repreensível no abuso que fazia da Sagrada Escritura. Determinava que fosse o autor interrogado sobre a parte suspeita de heresia, e persistindo nela se lhe instaurasse processo na forma usual. De toda a maneira se lhe impusesse nunca mais tratar, já por escrito já verbalmente, da matéria versada. (Azevedo, 1992, v. 2, p. 10) Com a expulsão dos jesuítas do Pará, devido aos problemas relacionados à administração dos índios, Vieira chegou a Lisboa em novembro de 1661. Nessa ocasião, ele ainda não tinha conhecimento do processo que contra ele tramitava no Santo Ofício. 159 Na sua volta à corte de Lisboa, Antonio Vieira envolveu-se, segundo João Lúcio de Azevedo, no episódio da censura do rei d. Afonso VI, em 16 de junho de 1662, o que resultou no desterro de Vieira para a cidade do Porto, em julho daquele ano. No mesmo mês de julho de 1662, Simão de Vasconcellos obteve em Roma a licença do Geral dos jesuítas para imprimir a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, e voltava para Lisboa para providenciar as últimas aprovações: a licença do Santo Ofício e a do Paço, ambas emitidas por Francisco Brandão. A última licença para imprimir data de 7 de novembro de 1662 (ver Anexo 4). Esse período que estamos tratando, foi marcado por agitação política em Portugal e Antonio Vieira manteve intensa troca de correspondência com outros adversários de d. Afonso VI, como podemos comprovar nas várias cartas publicadas por João Lúcio de Azevedo (Vieira, 1997). A violação de algumas dessas cartas forneceu o material para que os inimigos de Vieira agravassem a pena de desterro enviando-o para um local mais distante. Na impossibilidade de enviar Vieira de volta ao Brasil, de onde havia sido expulso, resolveram transferi-lo para o Colégio de Coimbra, em fevereiro de 1663, onde ficou detido (Azevedo, 1992, v. 2, p. 11-13). J. Lúcio de Azevedo informa que nesse período, entre julho de 1662 e fevereiro de 1663, Vieira escrevia semanalmente ao visitador Jacinto Magistris (Azevedo, 1992, v. 2, p. 11), entretanto não encontramos referência a nenhuma dessas cartas no inventário elaborado por Serafim Leite (2000, v. 9, p. 235-304) nem nas Cartas de Vieira publicadas pelo autor. Nessa correspondência com Magistris, J. Lúcio de Azevedo afirma que Vieira criticava a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, do padre Simão de Vasconcellos, dizendo que “pelo seu estilo, não faria honra às letras dos jesuítas”, acrescentando que o p. Baltasar Teles e outros concordavam com esta posição e que por este motivo não deveria ser impressa (Azevedo, 1992, v. 2, p. 11). A fonte de João Lúcio de Azevedo é um artigo de Francisco Rodrigues, publicado na Revista de História (Rodrigues, 1922). Nesse artigo, o autor apresenta em nota o trecho de uma carta do Visitador Jacinto de Magistris ao Geral dos Jesuítas tratando da Chronica, de Simão de Vasconcellos: Do P. Antonio Vieira, que demora no Porto, recebo carta todas as semanas. Na ultima refere-se á Chronica do Brasil num paragrapho que a V. P. mando copiado em folha separada. Houve outros que tambem se lastimaram commigo de que o estilo fosse bastante rasteiro, e lhe notaram outros defeitos. O P. Manuel Luis, Prefeito de estudos do Collegio de S. Antão, só me disse que a obra podia tolerar-se. Com isto determinei deixar ordem ao procurador do Brasil, que se demorasse a 160 impressão emquanto V. P. não decidisse. O P. B. Telles com outros pensam tambem que V. P. deve ser consultado... (Rodrigues, 1922, p. 9293) Esta carta de Magistris demonstra que a decisão de suspender a publicação da Chronica foi tomada com base em parecer do p. Antonio Vieira. Entretanto, a Chronica foi publicada e o motivo pelo qual Magistris voltou atrás na sua decisão está explicado na carta enviada ao Geral, em 29 de março de 1663: Pelo que diz respeito á Chronica do Brasil do P. Vasconcellos, resolvêra primeiro prohibir-lhe a publicação, por assim o diligenciarem commigo o P. Antonio Vieira, P. B. Telles e muitos outros que a não approvavam. Reconsiderando porêm depois ao saber por intermedio do P. Telles que o estilo não desagradava de todo ao chronista-mór do reino*, concedi a licença de impressão, e já vae adeantada a estampa. A parte que tractava do paraiso terrestre, que o auctor em longo arrazoado nos queria provar, que existira na America, mandei-a retirar e dei aviso ao Padre Provincial do Alemtejo que era esta a intenção de V. P. que se não imprimisse... (Rodrigues, 1922, p. 93). O conflito entre o Visitador Jacinto de Magistris e Simão de Vasconcellos fica claro quando, no início de abril de 1663, o Visitador propôs ao Geral que se eliminassem os últimos parágrafos da Chronica e os substituíssem por uma nova página. Cinco dias depois, Vasconcellos enviou uma carta ao Geral com os pareceres de doutores em teologia de Coimbra, Évora e Lisboa que defendiam a posição de que ele “não afirmava, mas apenas lembrava a probabilidade de o Paraíso ser na América, isto é, no Brasil, probabilidade que deixava ao critério do leitor” (Leite, 2000, v. 9, p. 178). Em outras palavras, na Chronica a localização do Paraíso na América ou no Brasil era apenas tratada como uma probabilidade, o que era aceito pela Igreja. Tanto assim, que o Santo Ofício não fez nenhuma oposição quanto à sua publicação e o seu responsável, fr. Francisco Brandão, que acumulava o cargo de cronista-mor do reino, intercedeu pela publicação como consta da carta de Magistris ao Geral. No mês seguinte, maio de 1663, quando Vasconcellos voltava para o Brasil, ao mesmo tempo em que Magistris, Antonio Vieira, em Coimbra, recebia a notificação do Santo Ofício de que não deveria se ausentar do Colégio sem comparecer perante ao Tribunal. Apesar de seu estado de saúde precário, Vieira compareceu ao Santo Ofício, em 21 de junho de 1663, na presença do inquisidor Alexandre da Silva. Era o início do seu longo processo. * Francisco Rodrigues acrescenta que: “o chronista-mór era por esse tempo fr. Francisco Brandão, sucessor, nesse cargo, de seu tio fr. Antonio Brandão” (Rodrigues, 1922, p. 93). 161 Na primeira fase do processo no Santo Ofício, Antonio Vieira continuou detido no Colégio de Coimbra e manteve sua rotina epistolar, correspondendo-se com outros desafetos de d. Afonso VI. Nas cartas de Antonio Vieira, publicadas por J. Lúcio de Azevedo, existe uma lacuna nesta correspondência no período entre 13 de fevereiro de 1663, quando foi transferido para Coimbra, e 17 de dezembro desse mesmo ano, o que também é anotado por Serafim Leite no inventário das cartas de Vieira (2000, v. 9, p. 235-304). Na carta de 17 de dezembro de 1663, endereçada a d. Rodrigo de Menezes, Vieira diz que “depois de três vezes morto e três vezes ressuscitado neste ano, foi tanta a minha desconfiança da vida como nos dias deste grande cuidado” (Vieira, 1997, v. 2, p. 13-14). A doença pode ser a explicação para a ausência de cartas durante aqueles dez meses. Numa outra carta de Vieira, enviada ao marquês de Gouveia, em 19 de dezembro de 1663, o último parágrafo é revelador da sua crença nas profecias e nas suas esperanças: “O certo é que as profecias se vão cumprindo por seus passos contados, e que, segundo elas, por meio destes grandes trabalhos e calamidades da Igreja, lhe podemos esperar a ela e ao nosso reino as grandes felicidades que lhe são prometidas...” (Vieira, 1997, v. 2, p. 17). O discurso milenarista de Vieira aparece claramente neste trecho da carta, assim como no manuscrito Esperanças de Portugal. Nos dez meses de silêncio epistolar de Vieira, detido e doente em Coimbra, Simão de Vasconcellos voltou ao Brasil aonde chegou em 13 de junho de 1663. Os conflitos entre o Visitador Jacinto de Magistris e os principais jesuítas da Província do Brasil resultou, como vimos anteriormente, no processo de deposição do Visitador em setembro de 1663. Magistris por sua vez recorreu ao Geral e retornou a Europa nesse mesmo ano. No ano seguinte, em outubro de 1664, o Geral decidiu que a deposição do Visitador fora indevida e não tinha validade, além disso, privou os sete padres que participaram do processo, incluindo Simão de Vasconcellos, de voz ativa e passiva e de assumir cargos de Superior, Consultor e Congregação Provincial (Leite, 2000, v. 7, p. 39). Em Coimbra, em setembro de 1663, Vieira era submetido ao segundo exame perante o Santo Ofício. Nesse exame, foi interrogado sobre o que pregou, conversou, escreveu ou pensou escrever além da carta Esperanças de Portugal. Na sua resposta, Vieira afirmou que desde 1646 compunha um livro que pretendia intitular Clavis Prophetarum [...] cujo principal assunto, e matéria é, mostrar por algumas proposições, com lugares da Escritura, e Santos, que na Igreja de Deus há de haver um novo estado diferente do que até agora tem havido, em que todas as nações do Mundo hão de crer em Cristo Senhor nosso, e abraçar nossa Santa Fé Católica; e que há de ser tão copiosa a graça de 162 Deus, que todos ou quase todos, os que viverem, se hão de salvar, para se perfazer o número dos predestinados. (Vieira apud Muhana, 1998) O Santo Ofício apurava e julgava as causas relacionadas às faltas cometidas contra a fé e os costumes. No caso de Vieira, as faltas eram relacionadas a possíveis erros contra a fé. A apuração da gravidade do erro, pelo Santo Ofício, envolvia a determinação do meio utilizado, oral ou escrito, da abrangência, pública ou privada, e a intenção do autor. A defesa de Vieira perante o Santo Ofício tem alguns aspectos marcantes, dos quais destacamos três. No primeiro deles, relacionado à carta Esperanças de Portugal, Vieira apresenta a carta como um documento privado, parte de uma controvérsia entre teólogos na busca da verdade e, por este motivo, isento de culpa (Muhana, 1998). Outro aspecto a destacar, é o engenhoso, porém perigoso, artifício utilizado por Vieira pedindo para escrever o livro que seria a sua defesa e que os inquisidores analisariam, para então fazer a acusação. Assim, ao retardar a elaboração do livro devido aos problemas de saúde, Vieira adiava a sua defesa, mas também protelava a análise do que seria utilizado na sua acusação. Não seria demais aventar a hipótese de que Vieira protelava sua defesa na esperança da chegada do ano fatídico de 1666, quando as profecias se cumpririam e ele não precisaria defender-se. Afinal faltava pouco tempo... O último aspecto refere-se à interpretação das profecias. No Santo Ofício, Vieira era julgado pelas profecias que havia elaborado a partir das profecias de Bandarra. Vieira defendia-se mostrando a dificuldade de interpretar as profecias porque “todas de sua natureza são escuras, e envoltas em metáforas e enigmas de muito dificultosa inteligência, na qual trabalharam os engenhos dos mais doutos homens do mundo em muitos séculos ficando muitas delas sem ser entendidas” (Vieira apud Neves, 1998). Dessa forma, a característica metafórica e enigmática das profecias permitiam variadas leituras, ou interpretações, e a de Antonio Vieira poderia ser entendida como apenas mais uma dentre outras possíveis. Na operação de decifração há “uma espécie de combate entre o texto e seu leitor, e árduo combate quando se trata de texto profético” (Neves, 1998), na busca de que seria a “verdade”, ou o “verdadeiro sentido” das profecias. Nessa concepção, a árdua tarefa do intérprete católico da profecia, seria a de “harmonizar a verdade do Texto Sagrado com as verdades de outros textos e com as verdades do mundo” (Neves, 1998). A solução que Vieira oferece aos inquisidores para a interpretação das profecias é de que o seu trabalho foi irrelevante porque ele apenas utilizou a “Sagrada Escritura, que é o seu livro mais particular, procurando entendê-la quanto lhe é possível, conforme o verdadeiro, e radical sentido pretendido pelo Espírito Santo, e para que isso se aproveitava dos expositores que tem por mais sólidos” (Vieira apud Neves, 1998). 163 Na sua defesa, Vieira busca dividir sua responsabilidade interpretativa com outros autores [...] os motivos que teve para ter por provável este terceiro estado85 consumado do dito império na terra, foram a autoridade de muitos Doutores católicos antigos e modernos, que assim o prometem, e esperam, revelações de muitos santos, recebidas comumente, e sobretudo alguns lugares da Escritura, em que os sobreditos doutores se fundam (Vieira apud Neves, 1998). A interpretação das profecias de Bandarra, na carta Esperanças de Portugal, apresenta-se como uma resposta à crença da ressurreição do rei d. Sebastião, que teve origem, como vimos, na publicação das Trovas por d. João de Castro, em 1602. Na sua resposta, Vieira afirma que quem ressuscitaria seria o rei d. João IV. Sua afirmação é apresentada sob a forma de um silogismo: O Bandarra é o verdadeiro profeta; O Bandarra profetizou que el-Rei D. João o 4.º há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando; Logo, el-Rei D. João o 4.º há-de ressuscitar. (Besselaar, 2002, p. 49)86 No desenvolvimento da carta Vieira demonstrou as duas premissas do silogismo proposto que teriam como conseqüência a validade da conclusão de que o rei d. João IV haveria de ressuscitar. É interessante observar a coincidência da época em que Antonio Vieira escreveu Esperanças de Portugal (1659) e Simão de Vasconcellos elaborou a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1654-1661). Outra aparente coincidência é que tanto em Esperanças de Portugal como nas Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, os respectivos autores recorrem a um silogismo para demonstrar sua tese. No caso de Vieira o silogismo é apresentado de forma clara, no caso de Vasconcellos o silogismo está implícito no texto, como vimos anteriormente. Esta forma de apresentar uma tese e fazer sua defesa, não é apenas uma coincidência nos escritos desses dois ilustres jesuítas, mas um hábito mental que, como bem definiu Panofsky, é como um “princípio que rege a ação”87 (Panofsky, 1991, p. 14), que era incutido na formação do jesuíta e que passava a fazer parte do seu quotidiano intelectual como um habitus, para utilizar a terminologia de Pierre Bourdieu (1995, p. 82-83). 85 Observe-se a referência ao terceiro estado, ou idade, proposto, como vimos, pelo abade Joaquim Fiore. Esperanças de Portugal encontra-se publicado em outros livros como, por exemplo, nas Cartas de Vieira organizadas por J. Lúcio de Azevedo (Vieira, 1997, v. 1, p. 468-525). 87 Erwin Panofsky atribui essa concepção de hábito a S. Tomás de Aquino na Summa Theologica, I-II, questão 49, artigo 3, item c. 86 164 Na Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, após a folha de rosto, Simão de Vasconcellos incluiu uma gravura, que reproduzimos anteriormente, na qual aparece em primeiro plano, na parte inferior uma espécie de mesa onde estão dispostos livros, mapas, globo terrestre, ampulheta, bússola e outros instrumentos. No segundo plano, começando na altura da mesa do primeiro plano e subindo pelas laterais da gravura temos, de cada lado, uma árvore cujos galhos fecham a parte superior da gravura. Nessas árvores, encontramos frutos, aves e animais, que formam uma espécie de moldura natural que faz contraste com a base construída pelo homem: o conhecimento, representado pelos livros e mapas, e a ciência, representada pelos instrumentos. No terceiro plano, vemos o mar onde navega uma nau armada, com os canhões em posição de tiro, com as velas enfunadas em que lemos o dístico “VNVS NON SVFFICIT ORBIS” que podemos traduzir como um mundo não basta, numa alusão de que o velho mundo não era suficiente para a Companhia de Jesus. No último plano, no horizonte, um globo terrestre. Essa gravura, que abre a Chronica, oferece ao leitor, por antecipação, uma imagem do que o autor pretendia apresentar e que devido ao seu conteúdo alegórico oferece várias possibilidades de interpretação. Após a gravura, o leitor encontra na Chronica a dedicatória, impressa em 1663, ao muito alto e poderoso rei de Portugal d. Afonso VI, na qual Simão de Vasconcellos assume uma posição milenarista, em que atribuía ao rei o cumprimento dos oráculos de esperança dos portugueses, com o advento do mundo de felicidades dos tempos dourados: A Chronica de hum Nouo mundo por tantos annos esperada, em nenhum tẽpo podia sair a luz com mais felicidade, que no em que sae a reynar hum Principe esperado pera tãtas venturas. Este he V. Mag. ò poderoso Rey; por que sendo parte essencial da decimasexta gèração do primeiro Rey D. Affonso Henriques, tão esperada dos Portugueses, conseguintemente em V. Mag. hão de ter cumprimento os Oraculos de suas esperanças, & haõ de apparecer em o mundo as felicidades dos tẽpos dourados, que qual outro Cesar Augusto, aguardaõ por V. Mag. (Vasconcellos, 1663, Dedicatória). Nessa dedicatória, Vasconcellos afirma que se fosse necessário provaria as “boas venturas” e destaca antecipadamente os três pontos que utilizaria na defesa da sua expectativa milenarista. O primeiro ponto da sua defesa, é que d. Afonso VI seria a décima sexta geração de d. Afonso Henriques. O segundo ponto é relativo à promessa feita àquele rei de “felicidades que esperamos os Portugueses, referidas por Chisto, de hum felicissimo Imperio” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória). No terceiro ponto Vasconcellos afirma que não “deuem viuer nos coraçoẽs dos Portugueses esperanças mortas, ou pensamentos de desenterrar defunctos Principes, decimassextas gèraçoẽs acabadas” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória) e 165 questiona a necessidade de milagres para ter viva a décima sexta geração: “Se sem milagres temos viua a decimasexta gêração, se reyna hoje sobre nòs claramente, que necessidade ha de portentos nouos?” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória). Vasconcellos conclui dedicando sua obra “a este Principe venturoso, que claramente reyna como parte da decimasexta gèração, & com esperanças de felicidades, quaes agora conuem esperar, não relatar” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória). Percebe-se que a posição de Vasconcellos é, sem dúvida, contrária a daqueles que esperavam que um milagre permitisse a ressurreição de d. Sebastião ou d. João IV para a condução de Portugal ao seu destino, o império de felicidade. Esta posição de Vasconcellos era contrária a posição de Vieira que, nessa época, acreditava na ressurreição do seu estimado rei e amigo d. João IV. Este pode ter sido um dos motivos, não alegado, que teria Vieira quando emitia opinião contrária à publicação da Chronica, em carta ao Visitador Magistris, entre julho e novembro de 1662. Em contraste com a posição de Antonio Vieira, Simão de Vasconcellos assumia uma posição menos mística e mais próxima do real, mais pragmática, em que não descartava o destino de Portugal como o reino de felicidade na terra, o quinto império, entretanto, ao contrário de Vieira, atribuía o comando desse reino a um rei vivo, de carne e osso, que reinaria sobre um território real, que incluía nos seus domínios o Brasil, que ele demonstrou como sendo o local ideal para situar o Paraíso terrestre. O tempo do cumprimento das profecias estava próximo, faltava pouco para o ano de 1666, o ano do “conto cheio” de Bandarra como Vieira interpreta na sua defesa perante o Santo Ofício: Nessa mesma era dos seis fala muito aquele autor idiota e infelice, que eu tenho mais razão de detestar que de alegrar. Só digo que pelo ano de 1666 se pode dizer, como ele diz: “Aqui faz o conto cheo”. Porque todos os números do abecedário latino se enchem completamente na conto deste ano, sem acrescentar nem diminuir, nem trocar ou alterar a ordem deles, porque o M val mil, o D quinhentos, o C cento, o L cinquenta, o X dez, o V cinco, o I um, e todos juntos, pela mesma ordem, vem a fazer: 1666. MDCLXVI (Vieira apud Besselaar, 2002, p. 372) Nas cartas de Vieira encontramos referências constantes às profecias e à expectativa do seu cumprimento no ano de 1666. Outro aspecto a destacar é a mudança da opinião de Vieira sobre quem seria o Encoberto profetizado nas Trovas de Bandarra. Na carta de 3 de março de 1664, dirigida à D. Rodrigo de Meneses, Vieira conta que Por cá não há cousa digna de relação mais que haver-se hoje dado princípio às mesas na sala dos nossos estudos, onde o mestre, que é o padre Francisco Guedes, tomou por problema dos futuros contingentes se havia de vir ou não el-rei D. Sebastião. E depois de o 166 disputar com aplauso por uma e outra parte, resolveu que o verdadeiro Encoberto profetizado é el-rei que Deus guarde, D. Afonso VI. Por sinal que, para eu o crer e confessar assim, não foi necessário nenhum dos argumentos que ouvi, porque, depois que observei as felicidades de S. M., e a providência tão particular com que assiste o Céu a todas as suas acções, estou inteiramente persuadido a isso. Nem se poderá dizer por mim que mudei a opinião depois que me vi ao remo, porque este meu desterro nunca o tive por galé: antes, se não fora tão sujeito às inclemências do tempo, o tivera por paraíso da Terra. (Vieira, 1997, v. 2, p. 39) A presença reiterada de referências a cometas nas cartas de Vieira, a partir de dezembro de 1664, mostra a importância desse astro que para ele é um “farol do Céu” e que sentia não ver nos “ânimos desta banda mais comoção que a da curiosidade”. Completa dizendo que Deus não acenderia “ociosamente um corpo tão prodigioso” (Vieira, 1997, v. 2, p. 105-106). Observe-se também, que é a partir dessa carta que descobrimos que Vieira passou a acreditar que o Encoberto era o rei d. Afonso VI. Conforme o tempo passava e o ano de 1666 aproximava-se, os sinais ficavam mais fortes para Vieira que relata-os em duas cartas semelhantes, ambas com data de 4 de maio de 1665, destinadas a D. Rodrigo de Meneses e ao marquês de Gouveia. Da carta remetida a D. Rodrigo retiramos o seguinte trecho: Grandes prodígios se referem de perto e de longe. De Melgaço vi carta de um notável meteoro que, correndo da parte de Valença do Minho, e durando por muito espaço, se desfez sobre Galiza em raios e coriscos: era de figura de uma espada de cor verde e amarela, que saía de duas nuvens, uma branca e outra vermelha, e com a mesma figura foi visto em outras partes. No Colégio dos Tomaristas desta cidade se viu depois de meia-noite um globo de fogo, que nascia na parte do sueste, e subia por espaço de duas ou três horas até se desfazer, e continuou algumas noites. Em Guimarães vomitou um homem enfermo um dragão com duas asas, de comprimento quase um côvado; da sua cabeça até o meio largo de dois dedos, vermelho e escuro; do meio para a cauda mais delgado e de cor parda. De Roma se escreve houve três dias de névoas tão espessas e escuras, que se não viam os homens nem os edifícios, e que as trevas eram palpáveis como as do Egipto. Tudo são sinais e prodígios que solenizam as vésperas do ano fatal, por cujas maravilhas nenhum há já tão incrédulo que não espere. (Vieira, 1997, v. 2, p. 157-158) Dois dias depois, Vieira escreveu a João Nunes da Cunha e reiterou a ocorrência dos prodígios “com que o Céu e a Terra parecem começam a solenizar as vésperas e expectação do ano de 66” (Vieira, 1997, v. 2, p. 162). A demora de Vieira na apresentação ao Santo Ofício do seu livro-defesa resultou na ordem dada pelo Conselho Geral do Santo Ofício, em Lisboa, ao Tribunal de Coimbra no sentido de que o réu fosse sentenciado e os autos enviados para revisão em Lisboa. Esta ordem teve como conseqüência uma intimação do Tribunal que obrigava Vieira a entregar os seus escritos, no estado em que estivessem, para análise e julgamento. Vieira entregou seus papéis ao Tribunal em 14 de setembro de 1665 e encaminhou uma petição ao Conselho Geral 167 do Santo Ofício, em Lisboa, pedindo a devolução dos mesmos e mais tempo para redigir o livro-defesa. O resultado da petição foi o despacho com uma “ordem para o réu ser chamado à Mesa em Coimbra e recolhido a um dos cárceres de custódia; depois continuar-lhe o processo, declarando que as censuras eram todas por qualificadores do Santo Ofício de Roma” (Azevedo, 1992, v. 2, p. 52). Em 1 de outubro de 1665, Vieira era recolhido ao cárcere do Santo Ofício, em Coimbra. O ano fatídico de 1666 chegou e no seu desenrolar encontrou Vieira disputando com o inquisidor Alexandre da Silva: O réu, porém, dialéctico perito, para tudo tinha réplica, e se evadia de tal modo, que o inquisidor por fim lhe pôs o dilema de se submeter ou aceitar as conseqüências de sua pertinácia, dilema que era a confissão da própria impotência ante argumentador tão valente. Foi isso em sessão de 3 de Dezembro de 66, (...) (Azevedo, 1992, v. 2, p. 63). No último dia do ano fatídico, 31 de dezembro de 1666, o Geral dos Jesuítas encaminhou carta ao Conselho Geral do Santo Ofício em Portugal, através do Provincial de Portugal, pedindo que o Santo Ofício entregasse o p. Antonio Vieira para que eles, os jesuítas, o guardassem nalgum collegio sob as seguranças, reservas e limites, que a eximia sabedoria de VV. SS. Illustrissimas houver por bem estabelecer. Pelo menos evitar-se-ha desta maneira o labéu de ignominia que denegrirá consideravelmente a nossa Ordem, se o P. Antonio Vieira, enfermiço como é, e attreito a doenças, vier a morrer nos carceres da Inquisição. (Rodrigues, 1922, p. 97) Esta carta revela que, por algum motivo, a Companhia de Jesus esperou mais de um ano para interceder por Vieira e, coincidentemente, no último dia do ano fatídico em que se realizariam as profecias e teria início o reino de felicidade dos portugueses. Como as profecias não haviam sido cumpridas, o Geral podia então afirmar que “por indicios certos estejamos persuadidos que elle, talvez pela demasiada contenção no estudo, antes desatina e delira sobretudo em alguns assumptos, que teem relação com successos futuros, do que erra em coisas concernentes á fé” (Rodrigues, 1922, p. 96). O pedido não foi levado em consideração e Vieira permaneceu no cárcere do Santo Ofício até 23 de dezembro de 1667, quando foi lida sua sentença que impunha que fosse: [...] privado para sempre de voz ativa e passiva, e de poder pregar, e recluso no colégio ou casa de sua religião, que o santo ofício lhe assinar, donde sem ordem sua não sairá; e que por termo por ele assinado se obrigue a não tratar mais das proposições de que foi argüido no decurso de sua causa, nem de palavras nem de escrito, sob pena de ser rigorosamente castigado; (...) (Vieira, 1998, p. 271-272). 168 A longa sentença de Antonio Vieira apresenta no final a seguinte anotação: Foi publicada esta sentença ao padre Antonio Vieira na sala da inquisição de Coimbra em sexta-feira à tarde 23 de dezembro de 1667: gastou em se ler duas horas e um quarto: no sábado seguinte se publicou pela manhã no seu colégio, onde ficou o padre Vieira para daí ir para a casa da religião que o santo ofício lhe assinasse para residência e reclusão, que foi a de Pedrozo; a qual antes de partir lhe foi comutada pelo conselho-geral para a casa do noviciado da Cotovia de Lisboa; e estando nesta, foi dispensado pelo mesmo conselho-geral em tudo no mês de junho de 1668; e em 15 de agosto de 1669 partiu de Lisboa para Roma88 com licença do Principe Regente D. Pedro. (Vieira, 1998, p. 272) No ano de 1667, em que Antonio Vieira foi condenado e perdeu o direito à voz, Simão de Vasconcellos recuperava a sua voz, perdida com a pena imposta pelo Geral dos jesuítas em 1664. É ainda nesse ano de 1667, que o rei d. Afonso VI, considerado por J. Lúcio de Azevedo como “doidivanas em vésperas de mentecapto” (Azevedo, 1984, p. 76), continuava rei apenas no nome, confinado ao seu quarto, alheio aos acontecimentos que culminaram com a volta dos companheiros e amigos de Vieira ao poder. Nessa articulação, a mulher de d. Afonso VI, d. Maria Francisca de Sabóia, conseguiu obter o divórcio e casou-se com o príncipe regente d. Pedro, irmão de d. Afonso VI, em 2 de abril de 1668 (Azevedo, 1992, v. 2, p. 72). Este foi o destino inglório do rei que deveria conduzir Portugal ao reino de felicidade dos tempos dourados que, aparentemente, ainda não haviam chegado. Antonio Vieira continuou tentando encontrar o “verdadeiro sentido” das profecias, “envoltas em metáforas e enigmas”, sem conseguir concluir a História do Futuro. A crença de Vieira nos cometas é impressionante e podemos constatar no seguinte trecho de Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Baía89, escrito em 1695, dois anos antes de sua morte: No princípio, falava Deus aos homens por si mesmo, como a Adão, Caim, Noé, Abraão, Moisés, e outros patriarcas. Depois que se introduziram no Mundo os reis, que foi mil e oitocentos anos depois da criação, falava Deus aos mesmos reis por visões e figuras, ou em sonhos ou acordados, como a Faraó, Abimelech, Nabucodonosor e Baltasar. Mais adiante falava pelos profetas, que duraram alguns séculos; e por meio de seus oráculos mandava anunciar, ou de palavra aos reis e reino de Israel, ou por escrito aos de Tiro, Babilónia, Egipto e Assíria e outros, as calamidades impendentes com que os havia de castigar, e de que estão cheios os livros dos mesmos profetas. Finalmente, depois que os profetas cessaram, começou Deus a falar pelos cometas, que é a linguagem universal de 88 A viagem de Vieira para Roma, em missão oficial, permitiu que ele pregasse várias vezes, participasse de uma disputa, com o discurso As lagrimas de Heráclito (Vieira, 2001), na corte da rainha Cristina da Suécia. Em abril de 1675, Vieira obteve do papa Clemente X, uma breve Isenção das Inquisições de Portugal e demais reinos (Vieira, 1998, p. 273-276), e voltou para Portugal nesse mesmo ano. 89 Serafim Leite informa o título completo da obra de Antonio Vieira: “Voz de Deos ao Mundo, a Portugal, & à Bahia. Juizo do Cometa que nella foi visto em 27 de Outubro de 1695, & continua atè hoje 9. de Novembro do mesmo anno.” (Leite, 2000, v. 9, p. 317). 169 maior majestade e horror de que usa extraordinariamente a seus tempos e em casos graves, como se não pode duvidar seja o presente. (Vieira apud Carolino, 2003, p. 161) No Brasil, no seu paraíso terrestre, Simão de Vasconcellos organizou em 1667 a impressão, em separado da Chronica, das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil. A nova impressão ficou pronta em Lisboa, em março de 1668, no mesmo mês que era publicado o acordo de paz com Castela, encerrando 28 anos de luta desde a Restauração. Simão de Vasconcellos desta feita não dedicou sua obra a um rei, mas a um benfeitor da Companhia de Jesus no Brasil que, como ele, acreditava ter encontrado no Brasil o seu paraíso terrestre. 170 7. Conclusão Na reflexão sobre as contribuições deste trabalho, podemos alinhar em primeiro lugar o resgate da correspondência do Visitador Jacinto de Magistris que permitiu esclarecer o episódio da censura da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, como uma ação da Companhia de Jesus. Em segundo lugar, podemos relacionar o resgate da recepção e das referências da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil pelos leitores e autores do século XVII e XVIII, como: Francisco de Brito Freire, em Nova Lusitânia (1675); o acadêmico José de Oliveira Bessa (1759) e fr. Antonio de Santa Maria Jaboatão, no Novo Orbe Seráfico (1761), ambos da Academia Brasílica dos Renascidos; o fr. Gaspar da Madre de Deus, nas Memórias para a História da Capitânia de S. Vicente (1797). No caso de Nova Lusitânia (1675), a comparação que fizemos com as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, não deixa dúvida sobre a fonte utilizada por Francisco de Brito Freire. Em contraste com essas referências encontramos as críticas dos historiadores do século XIX, dentre as quais destacamos o discurso antijesuítico do cônego Dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1855), que elaborou a edição “defeituosa e incompleta” da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, em 1864 no Rio de Janeiro. As críticas do século XX, inauguradas por João Capistrano de Abreu (1988, p. 212), em 1907, também não foram favoráveis. A edição diplomática do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, contribui para uma futura edição do livro, fiel ao discurso do autor, bem como outros estudos relacionados com análise de discurso do século XVII e de lexicologia. A demonstração de que Simão de Vasconcellos construiu no plano literário e imaginário a ampliação do território geográfico do Brasil, como parte da conquista territorial, pode ser relacionada como mais uma contribuição do nosso trabalho. 171 Da mesma forma, podemos relacionar como contribuição do nosso trabalho a identificação no discurso de Vasconcellos das articulações com o pensamento moderno, como as explicações que ele oferece para a cor dos índios, os fenômenos climáticos e celestes. Nesse sentido, Simão de Vasconcellos é um homem do seu tempo tentando combinar o pensamento moderno, calcado na razão e na experiência, com o pensamento religioso e medieval, através de um discurso que tem a marca indelével da conciliação. A fonte desse tipo de discurso pode ser resgatada na origem da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola e os demais fundadores da Companhia de Jesus estudaram em Paris entre 1529 e 1533, quando a modernidade renascentista imperava na França. Loyola e seus companheiros foram ordenados padres em 1537, na Itália, e dois anos depois fundavam a Companhia. A formação acadêmica e intelectual de Inácio e seus pares foi resultado de uma combinação do classicismo renascentista e da teologia medieval de S. Tomás de Aquino, perspectivas estas que igualmente encontravam-se articuladas e presentes na Contra-Reforma. Assim, desde a origem da Companhia de Jesus, a formação de seus membros, em consonância com sua época histórica, marcada pela lenta dissolução das relações feudais de produção e o desenvolvimento do moderno mundo capitalista, conciliava o antigo – a teologia medieval – e o novo – o classicismo renascentista – conforme os ditames estabelecidos no currículo padrão do Ratio Studiorum. Assim, um dos valores marcantes, sempre presente, na comunidade jesuíta era a conciliação de oposições que podia ser encontrada até mesmo na gestão da Companhia de Jesus. Esta perspectiva de conciliação a que nos referimos passou a se destacar ainda mais após a Congregação de 1568, que permitiu que os colégios tivessem posse de fazendas e escravos, ou seja, de meios de produção. Em pouco tempo, os colégios jesuítas passaram de tal forma a se dedicar às atividades produtivas de suas fazendas que é possível afirmar, conforme Paulo de Assunção que “os jesuítas comportavam-se como qualquer colono, pois: ‘a Companhia buscou lucro, constituindo-se exploradora, proprietária de fazendas e engenhos, debatendo-se porém nos limites de uma sociedade em transição’” (Assunção, 2004, p. 258). Esta situação levou Vera Lúcia Amaral Ferlini a caracterizar o jesuíta “como expressão exacerbada do europeu na Época Moderna; burguês e cristão; missionário da Coroa, mas soldado do Papa; colono e reinol; senhor de engenho e mercador” (Ferlini apud Assunção, 2004, p. 260). Este perfil dos jesuítas é, mais uma vez, revelador do caráter conciliatório presente em suas atividades que, a princípio, eram de natureza opostas. Assim, coexistiam, na Companhia de Jesus a prática religiosa e missionária e a prática de negócios pois 172 [...] administraram suas propriedades para aumentar a produtividade e obter resultados, seguindo os movimentos da dinâmica econômica colonial. A organização das operações dos engenhos sugere que as gestões foram pautadas por preocupações que incluíam um planejamento racional do sistema produtivo, procurando adequar os recursos disponíveis às extensões de terras e à mão-de-obra escrava necessária. Estas operações só poderiam ser empreendidas com capital e com a aplicação adequada dos recursos obtidos, que deveriam ser reinvestidos de maneira racional. (Assunção, 2004, p. 84) Essas práticas colocavam em conflito direto o voto de pobreza dos membros da ordem e a administração do valioso patrimônio de uma empresa em que As práticas administrativas empreendidas pelos religiosos provam claramente o apego a uma política de resultados, deixando evidente que as gestões foram pautadas por um racional planejamento do sistema produtivo. Os meios eram vitais para se atingir os fins e, por conseguinte, os religiosos deviam administrar as propriedades a fim de assegurar a produção, controlar as contas e evitar gastos desnecessários, aconselhar novas compras de terra, modificar a estratégia de produção, garantir a posse do patrimônio em consonância com as leis e defender os bens conquistados das demandas. (Assunção, 2004, p. 439) Um empreendimento dessa natureza e porte tem um aspecto crucial que Paulo de Assunção resume numa pergunta: “Teria a corporação encontrado nestas atividades um equilíbrio entre o necessário e o excesso?” (Assunção, 2004, p. 293). Além de Paulo Assunção outros autores trataram dessa questão, dentre os quais podemos citar Serafim Leite (2000, v. 4, p. 153-210) e Dauril Alden (1996). Independentemente da resposta a essa questão, podemos afirmar que a conciliação de atividades tão conflitantes como a produção e comércio, como parte de um processo de acumulação de capital, e a atividade religiosa e missionária, parte de um processo de elevação espiritual e salvação da alma, envolvia a Companhia numa grande dificuldade. Para a sociedade colonial, por exemplo, não havia dúvidas de que a Companhia de Jesus e seus componentes eram percebidos através de seu aspecto comercial Para a maioria da população, os jesuítas eram “homens de negócio”, pois fabricavam açúcar, vendiam gado, exploravam produtos naturais, operando o sistema como uma empresa, assumindo riscos, além de demonstrarem interesses de otimização dos lucros e redução das perdas e agirem com agentes comerciais na venda de produtos. A diversidade do patrimônio e das práticas dos jesuítas demonstra que eles se adaptaram às economias regionais, visando a obter uma melhor rentabilidade. Este processo não foi exclusivo dos jesuítas da América Portuguesa. [...] Desta forma, o que se nota é que as fazendas, engenhos e currais forneciam a subsistência agrícola e pecuária para os colégios e residências, produzindo excedentes que eram disponibilizados para venda no mercado colonial e em Portugal; além disso, o exercício da exploração de produtos naturais como madeiras, drogas do sertão, dentre outros, ajudavam a compor as fontes de recursos para a manutenção da Companhia de Jesus. Desta forma, os engenhos e as fazendas permitiram que os religiosos gozassem de privilégios reais, sociais e políticos que a missão envolvia, o que significa dizer que a administração da empresa açucareira e outras atividades eram operadas seguindo a necessidade de lucro, de controle das perdas e de um olhar atento para as alterações de 173 mercados. Enfim, um negócio que os jesuítas, de forma laboriosa, tentaram empreender para a maior glória de Deus. (Assunção, 2004, p. 353-354) A conciliação dessas atividades antagônicas, desenvolvidas cotidianamente pela ordem, era incorporada pelos jesuítas como um hábito, juntamente com outros hábitos assimilados durante sua formação escolar pela pedagogia estabelecida no Ratio Studiorum, constituindo um habitus, para utilizar o termo de Pierre Bourdieu. Assim, os jesuítas conciliavam as atividades da empresa terrena, produtiva e comercial, com as atividades da empresa divina, religiosa e missionária. Esta capacidade de conciliação, do material com o espiritual, era a mesma capacidade de conciliação que os jesuítas demonstraram quando acolheram e incorporaram o modelo geo-heliocêntrico de Tycho Brahe nos seus textos, científicos e filosóficos, como o modelo de concepção do mundo em substituição ao modelo medieval geocêntrico, de Aristóteles e de Ptolomeu. Nessa mesma perspectiva, Simão de Vasconcellos articulou seu discurso nas Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, conciliando ciência e religião, através de uma argumentação lógica, numa perspectiva milenarista. As Noticias, como um discurso milenarista, não sofreu restrições do Santo Ofício, talvez pela proximidade do ano fatídico de 1666, ou pela posição de seu autor na Companhia de Jesus, ou ainda, pela simpatia com que o cronista-mór do reino encarava o texto. Dessa forma, as Noticias, entendidas como uma enunciação conforme Mikhail Bakhtin, elaboradas e disseminadas por Simão de Vasconcellos, um membro da comunidade discursiva jesuíta do século XVII no Brasil, materializaram de forma barroca um discurso milenarista. Cerca de oitenta anos depois da tumultuada publicação da Chronica, de Simão de Vasconcellos, Pedro de Rates Henequim foi preso pelo Santo Ofício em Lisboa, em 1741: Visionário e cabalista, Henequim acreditava que o Paraíso terreal localizava-se numas serranias perdidas no Brasil, onde Deus teria protagonizado a Criação, fazendo surgir ali Adão e Eva. Herdeiro do milenarismo do padre Antonio Vieira, defendia com entusiasmo a tese de que o Quinto Império haveria de se levantar em terras brasileiras, dando início a um período de mil anos de felicidade, ao longo dos quais o Brasil se transformaria no centro do mundo. (Romeiro, 2001, p. 14) Desta feita, a situação era outra, e o ano fatídico de 1666 já ia longe. Além disso, havia indicações de que Henequim conspirava contra o rei d. João V e que havia tentado negociar com os espanhóis, em junho de 1740, um título de conde em troca de informações sobre as minas de ouro e diamantes que havia descoberto. Esse período que antecedeu o tratado de Madri, em 1750, que alterou o limite do tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal, foi 174 um período tenso nas relações entre os dois países e mostra a perspicácia da proposta de Henequim (Romeiro, 2001, p. 25-26). Depois de um longo processo por heresia, Pedro de Rates Henequim saiu em auto de fé em 21 de junho de 1744, quando foi entregue ao poder real para ser executado (Gomes, 1997; Romeiro, 2001). Os tempos eram outros e a tolerância do Santo Ofício e a do rei para com o milenarismo eram mínimas. O milenarismo, assim como as utopias, têm oferecido ao longo do tempo uma grande contribuição, nem sempre reconhecida, em estabelecer um contraponto com a posição pessimista que teve origem no discurso de S. Agostinho que condena o homem a priori, devido a uma culpa ou a uma maldição inicial, a viver num “vale de lágrimas” e sofrimento. Não estamos falando do oposto ao pessimismo, o otimismo, mas sim da esperança que move o homem. Na perspectiva milenarista e das utopias existe um reino de felicidade e fraternidade que o homem pode alcançar ou construir e o território desse reino é um paraíso na Terra. O paraíso terrestre para Simão de Vasconcellos era o território ampliado da colônia do Brasil, como resultado de uma conquista e que ele expressou no seu discurso milenarista, com ênfase barroca, como A construção do Paraíso. 175 8. Referências bibliográficas ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988. 295p. ABREU, Márcia. (org). Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado das Letras/ALB, 1999. 640p. ACUÑA, Cristóbal de. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. Rio de Janeiro: Agir, 1994. 180p. Publicado originalmente em 1641. ALDEN, Dauril. The making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996. 707p. ANDRADE, Joaquim Pedro de. 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Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.1.1. Parágrafos censurados90: 105. Muitos Autores graves, antigos e modernos, tiverão para sy que plantou Deos nosso Senhor o Paraizo ca da terra para a parte da linha Equinocial meio da Zona torrida, debaixo della, ou junto a ella, ou della para o sul, que tudo tem a mesma difficuldade, e tudo vem a ser em favor de nosso intento. Aratosthenes, Polybio, Ptolomeu, Avicena e não poucos Theologos de que fazem menção por mayor São Thomas na primeira parte quest. 102 art. 2 e o autor do curso Comimbricense no livro 2 do seo Capítulo 14 quest. 1. art. 3, tiverão para sy que debaixo da Equinocial meio da Zona torrida creara Deos nosso Senhor o Paraizo terrestre por ser esta a parte da terra mais temperada, amena e deleitoza de todo o Universo. Santo Thomas na 1 part. quest. 102 art. 2 ad quert. da esta openião por provavel com estas palavras: "Quid quid de hoc sit. credendum est Paradysum in temperatissimo Loco esse constitutum vel sub Equinoctiali, vel alibi". Que o Paraiso terreal se ha de crer que foi situado em lugar temperadissimo ou debaixo da Equinoçial ou em outra parte. E esta probabilidade de S. Thomas mostra seguir o Padre Soares no seu trat. de opere sex dierum lib. 3. Cap. 6 num. 36. 106. S. Boaventura 2 dist. 17 dub. 3 affirma claramente que situou Deos o Paraiso junto à Equinocial: "Quia secus Equinoctia (diz elle) est ibi magna temperies temporis": porque junto à Equinoçial ha grande temperança dos tempos. Durandos que o mesmo pareçer pela mesma razão ibi quest. 3 num. 8. E em favor deste pareçer dis o padre Soares pouco ha çitado. Podemos acrescentar, que aquelle lugar na Equinoçial he temperado, de copias de aguas, e frequente de ventos que purificão os ares porque tem a experiencia mostrado que as regioens que estão debaixo, da Zona torrida, tidas dos antigos por inhabitaveis, são temperadas e se habitão com grande comodidade dos homens. 107. S. Thomas na 2.2 quest. 164 art. 2 ad quint. tem para sy que situou Deos este Jardim ameno da Zona torrida para sul de tal maneira que o caminho para elle vem a ser a mesma Zona torrida que com seu demaziado calor (como suppoem segundo Aristoteles lib 2 dos Meteoros) impede o passo e fas o Paraizo occulto, e inaccessivel aos mortaes, servindo em lugar da espada de fogo do Anjo que prohibia este caminho. Assi entende as palavras do dito Sancto Soares no lugar ja citado num. 36. Declarase o Sto. mais na quaest. citada art. 1 dizendo que aquelle lugar de deleites está separado da terra em que elle então habitava (que era Italia) com impedimento de montes e mares, ou de alguma ardentissima região, que não se pode habitar; e a esta ultima condição se inclina mais. Esta sentença de S. Thomas segue também Scoto na 2. dist. 17 quaest 2. E Luis Vives nos Schol. sobre S. August. de Civitate Dei, lib. 13. Cap. 21 (Concorda neste parecer S. Efrem referido por Cornel. Alapide no Cap. 2 do Gen. Vers 8, parag 4, onde dis que toda a terra em que então habitava era cingida do Oceano; e que alem deste Oceano, em outra terra que era de outro mundo estava o paraiso. Com que outras palavras podia declarar o Novo Mundo da America. E mais claramente dizem que foi situado na America este Paraiso alguns Auctores referidos pello mesmo Padre Cornel. citado Cap. 2, vers. 8, parag. 5 supposto que lhe não quis particularizar os nomes. 108. Ha alem disso conjecturas por zonas porque os ditos Padres concordão que he o lugar do Paraiso temperadissimo, amenissimo e sempre igual. Todos os lugares annexos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elisios, Hortos pensiles, Ilha de Atlante 90 Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 363-365. 187 etc. podem ceder a muitos da America: ou seja debaixo da linha Equinocial, ou junto a ella, ou della para o sul, como se deixa ver do que temos tratado em todo este Livro, e no antecedente. 109. Em confirmação de tudo o ditto em ultimo lugar se prepondera a conjectura que se segue. Porque aquella parte do Ceo mais perfeito da Zona torrida, a que chamamos linha Equinocial he aquella que tem a seu cargo o governo do mundo universo: he regra do primeiro movel e curso admiravel dos mais orbes, de que pende o ser da natureza sublunar: he medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos da Ethyoptica, repartidora das partes da Esphera. Pois se por todas estas excellencias a linha Equinocial he a parte mais nobre do Ceo; a que lhe corresponde na terra, porque não ha de ser a melhor? E por conseguinte a nata do mundo, porto de deleites e Paraiso terreal? 110. A probabilidade desta openião deixo ao juizo dos que a tem: a mim me basta que della se colhe meu primeiro intento que he tão grande a temperança do clima destas partes que chegarão tão graves Autores a plantar nellas o Paraiso. Nem diga alguem que a linha Equinocial e zona torrida não corresponde somente á America, mas também á Africa e á Azia: logo, ainda que concedamos que o Levante está para a parte da linha, e zona torrida, não somos forçados a dizer que está na America, porque pode estar na Africa ou Azia. E na verdade muitos Santos Padres disserão que fora plantado o Paraiso para o Oriente: que inclinase a isso S. Boaventura assima citado. Nada faz contra este argomento, porque a linha Equinoçial, depois de cortar a America de meio á meio (donde começa o Brasil) corta so hua ponta da Africa junto ao cabo da barca terra dos povos chamados Baramás, principio do Congo e vai sahir a enseada, que chamão Barbará do mar da India principio das terras de Melinde. E a Azia corta por meio das Ilhas Samatra, ou Tapobrana, Borneo, Cenebes. Malacas e outras muitas, que por ali demorão; como se pode ver nas cartas Geographicas, que arrumão as terras do mundo. E em nenhuma destas parte da Africa, ou Azia assignadas, ou junto a ellas, ou dellas para o Sul, sabemos que esteja o Paraiso terreal nem vemos Autores, que alli o puzessem, nem Deos para elle escolheria partes tão fora das condições daquelle Jardim de deleites. E supposto que alguns Autores se achem, que quizerão ennobrecer a Ilha Tapobrana com este dom do Autor da natureza, he com mui pouco fundamento, sendo couza sabida a improporção de seu clima, malsão e infesto á saude dos homens. Como testefica o Pe. Lucena na vida de São Francisco Xavier lib. 3, Cap. 10, e dito se deixa ver, que o que seguir que o Paraiso está para o norte da Equinocial, averiguando que não está na parte que responde a Africa ou Azia, he força que diga que está na America: Está em hua das tres partes: não na da Africa, ou Azia, logo na da America. 111. O argomento dos Santos Padres que dizem que está para a parte do Oriente, vejão os curiosos em Soares allegado naquelle Cap. 6. num. 34. e ahi acharão que não convence: como nem tambem o argomento, que alguns trazem ao mesmo intento, dos quatro Ryos do Paraiso. Não posso de tudo deixar de explicar esta difficuldade com mais algum vagar, por ser o Achilles da contraria parte. Vemos que diz a sagrada escritura que sahião da fonte daquelle Horto de deleites quatro Rios, que regavão a terra: estes sabemos que nascem e correm hoje pelas terras que ficão ao Oriente: logo naquellas, e não nas da America está o Paraiso. Parece esta grande força, porem vejase o Padre Soares no Livro e Capitulo citado assima, onde dis que este argumento não tem efficacia algua para provar a vezinhança do Paraiso e mostra assi porque os lugares onde brotão estes Ryos são hoje sabidos, e trilhados dos homens. O Nillo nos montes da Lua para a parte do Cabo da Boa Esperança, ou no Lago onde também nasce o Zaire junto a Congo, e vai regando as 188 terras Ethyopicas do Preste João e desembocar no Egipto por sette bocas no mar mediterraneo. O Ganges no monte Caucaso, e vai regando as terras da India. O Tygris, e Euphrates nos montes da Armenia, e regão as terras da Mesopotamia, Assyria e Armenia. E subindo os homens por todos estes Ryos até ao lugar onde brotão nenhum indicio se tem achado do Paraiso Terreal. Donde dizemos, com S. Thomas, S. Agostinho, Ruperto, Theodureto e o Padre Soares, que aquellas não são as primeiras cabeças, donde tem sua primeira origem estes Ryos, senão que nascem primeiro da fonte do Paraiso e depois se escondem por baixo da terra, com longo curso vão romper os lugares ja ditos, que podem ser sitios distantissimos do Paraiso, e tudo por concelho divino, porque seja occulto. Alem do que se os sitios donde emanão estes Ryos tão differentes entre sy que entre o do Tygris, e do Euphrates, e o do Ganges, e Nilo ha distancia de mais de setenta graos, que fazem melhor de quatro mil e trezentas milhas segundo escreve Ptolomeo, assy como não he de crer que todo este grande espaço (que comprehende as regioens de Babylonia, Armenia, Mesopotamia, Assyria, India, Persia, e muitas outras) fosse Paraiso assy tambem não se tira forçoso argomento que o Paraiso ficasse para o Oriente, porque podião aquelles Ryos ter seu nascimento occulto em que parte mui diversa. E esta podia ser a America; e com menos distancia daquellas fontes do que ellas tem entre si. E por aqui temos concluído com os dous livros promettidos das noticias antecedentes curiosas, e necessarias das cousas do Brasil. 189 9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 9.1.2. Parágrafos censurados91 105. Muitos autores graves, antigos e modernos, tiveram para si que plantou Deus nosso Senhor o paraíso cá da terra para a parte da linha equinocial meio da zona tórrida, debaixo dela, ou junto a ela, ou dela para o sul, que tudo tem a mesma dificuldade, e tudo vem a ser em favor de nosso intento. Eratostenes, Políbio, Ptolomeu, Avicena e não poucos teólogos de que fazem menção por maior S. Tomás na primeira parte quest. 102 art. 2 e o autor do curso conimbricense no livro 2 do seu capítulo 14 quest. 1. art. 3, tiveram para si que debaixo da equinocial meio da zona tórrida criara Deus nosso Senhor o paraíso terrestre por ser esta a parte da terra mais temperada, amena e deleitosa de todo o Universo. Santo Tomás na 1 part. quest. 102 art. 2 ad quart. dá esta opinião por provável com estas palavras: "Quid quid de hoc sit. credendum est paradisum in temperatissimo loco esse constitutum vel sub equinoctionali, vel alibi". Que o paraíso terreal se há-de crer que foi situado em lugar temperadíssimo ou debaixo da equinocial ou em outra parte. E esta probabilidade de S. Tomás mostra seguir o padre Soares no seu trat. de opere sex dierum lib. 3. Cap. 6 num. 36. 106. S. Boaventura 2 dist. 17 dub. 3 afirma claramente que situou Deus o paraíso junto à equinocial: "Quia secus equinoctia (diz ele) est ibi magna temperies temporis"; porque junto à equinocial há grande temperança dos tempos. Durando segue o mesmo parecer pela mesma razão ibi quest. 3 num. 8 e em favor deste parecer diz o padre Soares pouco há citado. Podemos acrescentar, que aquele lugar da equinocial é temperado, de cópias de águas, e frequência de ventos que purificam os ares porque tem a experiência mostrado que as regiões que estão debaixo da zona tórrida, tidas dos antigos por inhabitáveis, são temperadas e se habitam com grande comodidade dos homens. // 107. S. Tomás na 2.2 quest. 164 art. 2 ad quint tem para si que situou Deus este jardim ameno da zona tórrida para o sul de tal maneira que o caminho para ele vem a ser a mesma zona tórrida que com seu demasiado calor (como supõem segundo Aristóteles lib. 2 dos Meteoros) impede o passo e faz o paraíso oculto, e inacessível aos mortais, servindo em lugar da espada de fogo do anjo que proibia este caminho. Assi entende as palavras <do dito> Santo Soares no lugar já citado num. 36. Declara se o Santo mais na quest. citada art. 1 dizendo que aquele lugar de deleites está separado da terra em que ele então 91 Muitos autores põem o paraíso terrestre para a parte da linha equinocial. Opinião de S. Boaventura, S. Boaventura in 2 dist. 17 dub. 3. Opinião de S. Tomás. Fonte: VASCONCELOS, Simão. Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP, 2001. p. 161-164. 190 habitava (que era Itália) com impedimento de montes ou mares, ou de alguma ardentíssima região, que não se pode habitar; e a esta última condição se inclina mais. Esta sentença de S. Tomás segue também Scoto na 2. dist. 17 quest 2. E Luis Vives nos Schol. sobre S. August. De Civitate Dei, lib. 13. Cap. 21 concorda neste parecer S. Efrem referido por Cornel. Alapide no cap. 2 do Gen. vers. 8, parag. 4, onde diz que toda a terra em que ele então habitava era cingida do Oceano; e que além deste Oceano, em outra terra que era de outro mundo estava o paraíso. Com que outras palavras podia declarar o Novo Mundo da América. E mais claramente dizem que foi situado na América este paraíso alguns autores referidos pelo mesmo padre Cornel, citado sup. cap. 2, vers. 8, parag. 5 suposto que lhe não quiz particularizar os nomes. 108. Há além disso conjecturas forçosas porque os ditos padres concordam que é o lugar do paraíso temperadíssimo, ameníssimo e sempre igual. Todos os lugares amenos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elísios, hortus pensiles, ilha de Atlanta etc. podem ceder a muitos da América; ou seja debaixo da linha equinocial, ou junto a ela, ou dela para o sul, como se deixa ver do que temos tratado em todo este livro, e no antecedente. 109. Em confirmação de tudo o dito em último lugar, // se prepondere a conjectura que se segue. Porque aquela parte do Céu meio perfeito da zona tórrida, a que chamamos linha equinocial é aquela que tem a seu cargo o governo do mundo universo; é regra do primeiro movel e curso admirável dos mais orbes, de que pende o ser da natureza sublunar; é medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos da eclíptica, repartidora das partes da esfera. Pois se por todas estas excelências a linha equinocial é a parte mais nobre do Céu; a que lhe corresponde na terra, porque não há de ser a melhor? E por conseguinte a nata do mundo, horto de deleites e paraíso terreal. 110. A probabilidade desta opinião debaixo digo deixo ao juízo dos que a lerem: a mim me basta que dela se colhe meu principal intento que é tão grande a temperança do clima destas partes que chegaram tão graves doutores a plantar nelas o paraíso. Nem diga alguém que a linha equinocial e zona tórrida não corresponde somente à América, mas também à África e à Ásia: logo, ainda que concedamos que o paraíso está para a parte da linha, e zona tórrida, não somos forçados a dizer que Conjectura tirada temperamento. do Outra conjectura que a linha equinocial governa [o mundo]. Argumento em contrário. Responde se e confirme se o intento. 191 está na América, pois pode estar na África ou Ásia. E na verdade muitos Santos Padres disseram que fora plantado o paraíso para o oriente: e inclina se a isso S. Boaventura acima citado. Nada faz contra este argumento, porque a linha equinocial, depois de cortar a América de meio a meio (donde começa o Brasil) corta só uma ponta de África junto ao cabo da barca terra dos povos chamados Baramás, princípio do Congo e vai sair à enseada, que chamam Barbarica do mar da Índia princípio das terras de Melinde. E a Ásia corta por meio das ilhas de Samatra, ou Taprobana, Bornéu, Cenebes (sic). Malucas e outras muitas, que por ali demoram; como se pode ver nas cartas geográficas, que arrumam as terras do mundo. E em nenhuma destas partes da África, ou Ásia assinadas, ou junto a elas, ou delas para o sul, sabemos que esteja o paraíso terreal // nem vemos autores, que ali o pusessem, nem Deus para ele escolheria partes tão fora das condições daquele jardim de deleites. E suposto que alguns autores se achem, que quiseram enobrecer a ilha Taprobana com este dom do autor da natureza, é com mui pouco fundamento, sendo cousa sabida a improporção de seu clima, malsão e infesto à saúde dos homens. Como testifica o padre Lucena na vida de São Francisco Xavier lib. 3, cap. 10, e de todo o dito se deixa ver, que o que se seguir que o paraíso está para a parte da equinocial, averiguando que não está na parte que responde a África ou a Ásia, é força que diga que está na América com este argumento está em uma das três partes; não na d’África, ou Ásia, logo na d’América. 111. O argumento dos Santos Padres que dizem que está para a parte do oriente, vejam os curiosos em Soares alegado naquele cap. 6. num. 34, e aí acharão que não convence; como nem também o argumento, que alguns trazem ao mesmo intento, dos quatro rios do paraíso. Não posso contudo deixar de explicar esta dificuldade com mais algum vagar, por ser o Aquiles da contrária parte. Vemos que diz a sagrada escritura que saíam da fonte daquele horto de deleites quatro rios, que regavam a terra; estes sabemos que nascem e correm hoje pelas terras que ficam ao oriente; logo naquelas, e não nas da América está o paraíso. Parece esta grande força, porém veja se o padre Soares no livro e capítulo citado acima, onde diz que este argumento não tem eficácia alguma para provar a vizinhança do paraíso e mostra se assi porque os lugares onde brotam estes rios são hoje sabidos, e trilhados dos homens. O Nilo nos montes da Lua para a parte do Cabo da Boa Esperança, ou no lago onde também nasce o Zaire junto a Congo, e vai regando // as terras etiópicas do Responde se a outra parte do argumento acima posto Bento Pereira lib. 3 in gen. q. ultima Soares de opere sex dierum lib. 3 cap. 6 Cornel [a cap.] ingen. lib. 3 cap. 2. Responde se à dificuldade maior dos 4 rios do paraíso S. Tomás quest. 102 S. Augusto 8 in genes ad lit. c. 7 Ruperto Teodoreto Soares de opere sex dierum lib. 3 cap. 6 n. 16 e 32 vide [etc Pereir.] script [fol.] 382 e 333 vide Cornel [...] cap. [...8] parag. uerum. 192 Preste João e desembocar no Egipto por sete bocas no mar Mediterrâneo. O Ganges no monte Cáucaso, e vai regando as terras da Índia. O Tigre, e Eufrates nos montes da Arménia, e regam as terras de Mesopotâmia, Assíria e Arménia. E subindo os homens por todos estes rios até ao lugar onde brotam nenhum indício se tem achado do paraíso terreal. Donde dizemos, com Santo Tomás, S. Agostinho, Ruperto, Teodoreto e o padre Soares, que aquelas não são as primeiras cabeças, donde tem sua primeira origem estes rios, senão que nascem primeiro da fonte do paraíso e depois se escondem por baixo da terra, e com longo curso vão romper os lugares já ditos, que podem ser sítios distantíssimos do paraíso, e tudo por conselho divino, porque seja oculto. Além de que sendo os sítios donde emanam estes rios tão diferentes entre si que entre o do Tigre, e do Eufrates, e o do Ganges, e Nilo há distância de mais de setenta graus, que fazem melhor de quatro mil e trezentas milhas segundo escreve Ptolomeu, assi como não é de crer que todo este grande espaço (que compreende as regiões de Babilónia, Arménia, Mesopotâmia, Assíria, [Media], Pérsia, e muitas outras) fosse paraíso assi também não se tira forçoso argumento que o paraíso ficasse para o oriente, porque podiam aqueles rios ter seu nascimento oculto em parte mui diversa. E esta podia ser a América; e com menos distância daquelas fontes do que elas têm entre si. E por aqui temos concluído com os dous livros prometidos das notícias antecedentes curiosas, e necessárias das cousas do Brasil. 9.2. Dedicatória - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 À MAGESTADE DO MVITO ALTO, E PODEROSO REY DE PORTVGAL D. AFFONSO UJ. NOSSO SENHOR A Chronica de hum Nouo mundo por tantos annos esperada, em nenhum tẽpo podia sair a luz com mais felicidade, que no em que sae a reynar hum Principe esperado pera tãtas venturas. Este he V. Mag. ò poderoso Rey; por que sendo parte essencial da decimasexta gèração do primeiro Rey D. Affonso Henriques, tão esperada dos Portugueses, conseguintemente em V. Mag. hão de ter cumprimento os Oraculos de suas esperanças, & haõ de apparecer em o mundo as felicidades dos tẽpos dourados, que qual outro Cesar Augusto, aguardaõ por V. Mag. Eu não pretendo desenrolar aqui estas boas venturas, que pedẽ lõga escrittura, assũpto grãde pera dedicatoria: supponhoas sòmẽte, offerecido cõtudo a prouallas, se mãdado me fos se. E fique desde logo a summa. Primeira. Que he V. Mag. parte essencial da decimasexta géração do primeiro Rey Portugues D. Affonso Henriques. Segunda. Que a esta estão promettidas as felicidades que esperamos os Portugueses, referidas por Chisto, de hum felicissimo Imperio, quãdo disse âquelle Principe magnanimo: Volo in te, & in semine tuo imperium mihi stabilire: com as proezas, & victorias da sogeição da gente Ottomana, Iudeos, & Hereges, & reducçaõ de todas estas seitas a hum sò Pastor, & Igreja. Terceira. Que nem pera este intento taõ desejado, deuem viuer nos coraçoẽs dos Portugueses esperanças mortas, ou pensamentos de desenterrar 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 defunctos Principes, decimassextas gèraçoẽs acabadas: Non entis, & non apparentis eadem est legis dispositio. A géração decimasexta por linha recta, que alguns esperauaõ, não apparece. A parte primeira da decimasexta gèração trãsuersal Portuguesa, que já reynou, não he necessaria. Gozou esta a parte primeira destas felicidades; a segunda, ha de gozar a outra parte da mesma gèração: Non sunt facienda miracula fine necessitate. Se sem milagres temos viua a decimasexta gêração, se reyna hoje sobre nòs claramente, que necessidade ha de portentos nouos? Se Filho, & Pay fazem a mesma gêraçaõ, se saõ duas partes essenciaes ( qual alma & corpo pera fazer hum homem) Pay generante, & Filho gêrado, & a parte primeira desta gêração gozou as felicidades primeiras; a segunda parte porque naõ gozará as segundas? A este pois; a este Principe venturoso, que claramente reyna como parte da decimasexta gèração, & com esperanças de felicidades, quaes agora conuem esperar, não relatar; a este dedico minha obra, intitulada, Chronica da Companhia de Iesus do Estado do Brasil. Votis assuesce vocari. Acostumaiuos, ó grande Principe (qual outro nouo Emperador Cesar Augusto, disse o Poeta Mantuano;) acostumaiuos a ser inuocado, com offertas dignas de Vossa Magestade. Aceitai o obsequio de hum vassallo, que com igual verdade escreue o que foi, & propoem o que espera. Aceitai mais por outra via, que não menos obriga: & he por ser V. Mag. sucessor dos Augustos, & sempre memoraueis Se nhores Reys D. Ioaõ Terceiro, & Quarto: aquelle, Pay da Companhia: este, vosso, & nosso. Aquelle, Pay da Cõpanhia, porque foi quasi confundador da Companhia uniuersal, fundador da de Portugal, & fundador da do Brasil. Que pedra naõ moueo na fundaçaõ & confirmaçaõ desta Religiaõ amada sua? Que meios naõ tomou, de Legados seus, de Principes estranhos, de rogatiuas affectuosas ao Summo Pontifice? Que despesas naõ fez da real fazenda? Que aduertencias? Que conse- 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 lhos naõ teue pera sair com seu intento? Chegou a dizer nosso Patriarcha S. Ignacio, que de todos os Principes Christaõs, a D. Ioão o Terceiro tinha por bemfeitor principal da Companhia. E talvez subindo mais de ponto, disse, que era a Companhia mais delRey D. Ioão o Terceiro, que sua. Em seu Reyno, com que honras não recebeo este grande Principe os filhos de Ignacio? Que sinaes de amor naõ mostrou? Dizemno as Historias deste Monarcha, & mais por extẽso as Chronicas de nossa Companhia. Fallem as obras pregoeiras eternas, as fundaçoẽs das grandes fabricas, que como Pyramidas de seu bem querer leuantou da terra ao Ceo: da magnifica Casa professa de S. Roque em Lisboa: do insigne Collegio de Coimbra primeiro de toda a Companhia, grandioso em rendas, illustrado com todas as Escholas menores daquella celebre Vniuersidade. Estas sòs duas obras fallem por todas: as do Reyno de Portugal, India, & Brasil, não he meu intento recontallas todas, agradecellas sy. E principalmẽte testifique esta verdade a fun dação notauel do Brasil (sogeito de toda nossa Chronica) orde nada por este Serenissimo Principe, por meio do venerauel Padre Manoel da Nobrega, com os mesmos fauores, & despesas, com que obrâra a da India Oriental, por meio do incansauel obreiro S. Francisco Xauier. Seguio os intentos deste Rey amoroso a boa memoria delRey D. Ioão o Quarto, Pay de V. Magestade, & Pay tãbem de nossa Companhia. Sabido he o zelo prudente, com que dispoz a leua espiritual de trinta & tantos sogeitos da Companhia de Iesus de diuersas Prouincias, pera a conuersaõ do Estado do Ma ranhão, de tão immenso numero de almas, & naçoẽs infieis, preuindo esta de fauores igualmẽte, & despesas reaes. As mesmas foi seruido fazer com os Missionarios do Brasil. Doou cõ larga mão os Collegios de Goa, & Cochim de grande summa de quasi vinte & quatro mil cruzados de renda, que os VisoReys, & seu Senado lhes tinhaõ tirado: à Prouincia do Iapão restituìo dous mil cruzados annuaes: a da China dotou com mil 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 & quinhentos cruzados. Ao Collegio de Angola com dous mil por tempo de dez annos. Acrescẽtou os estipendios dos Missionarios dos Indios, sobretodos os Reys antepassados. No Collegio de Eluas instituîo Cadeira de Mathematica (exercicio dos que alli militaõ) com estipendio annual de duzentos cruzados, mandando juntamente fabricar a Aula com despesa real. Continuou com o edificio do Templo da Casa professa da Companhia de Iesu em Villaviçosa: com consignação pera esta obra todos os annos de mil & quinhentos cruzados. E aliuiou a pobreza das mais Casas professas com esmolas de porte. Por to das as rezoẽs referidas, justo era que se dedicasse a V. Mag a Chronica primeira da Comapnhia de Iesu do Brasil: & junto com ella os animos de todos seus Religiosos, agradecidos, prostrados, & como admirados jà de agora das idades douradas, que esperão gozar. Humilde vassallo, & seruo de V. Magestade. Simaõ de Vasconcellos. 9.3. Protesto do autor - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 PROTESTO DO AUTOR Proibiu nosso santissimo padre Urbano VIII por um decreto seu passado em 15 de março de 1632. & confirmado em 5 de julho de 1634 imprimirem se livros de varoens celebres em santidade, e fama de martirio, que contivessem feitos milagrosos, revelações ou outros quaisquer benefícios alcançados de Deus, sem revista, e aprovação do Ordinário: com tudo, como o mesmo santissimo padre em 5 de junho de 1632 se explicasse no sentido seguinte, que não se admitissem Elogios de Santos ou Beato absolutamente, que caem sobre a pessoa; ainda que cõcedia poderemse admitir os que caem sobre os costumes, e opinião, cõprotestação no principio, que os taes Elogios não tenhão autoridade da Igreja Romana, senão somente a fé que lhes dá o Autor. O que supposto, protesto que tudo o que trato nesta minha Obra, entendo, e quero que se entenda, na forma dos sobreditos Decretos, & sua ultima explicação. Lisboa 7 de setembro de 1662. Simão de Vasconcellos. 9.4. Aprovações da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663). 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 92 APROVAÇOENS da RELIGIÃO Li com a applicação deuida esta Primeira Parte da Chronica da Companhia de Iesu desta Prouincia do Brasil, composta pello Padre Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, & Prouincia: não achei nada que reuer pera a censura, achei muito que ver pera o applauso: porque nesta obra se admira facil, o que em todas he difficultoso: breuidade sem confusaõ, curiosidade sem hyperbo les, grauidade sem artificio, suauidade sem affectação, agudezas escholasticas sẽ fal tar á synceridade historica. Fazem prologo aos illustres feitos dos filhos de Ignacio algũas noticias deste Nouo mundo: que não era bem se relatassem acçoẽs de tanta gloria, sem q92 se propusesse o theatro dellas. Em hũa & outra cousa procede o Autor, tão ajustado com a verdade, que tendo a penna sua (& bastaua pera merecer a maior fe) naõ quiz com tudo que fosse seu o credito. Tudo o que escreue, ou saõ experiẽcias repetidas, ou tradiçoẽs cõstãtes, ou escrituras abonadas. Aqui se achaõ vnidas exortação, & narratiua, porq93 historiãdo de proposito, inflamma como de pẽsado. Refere o que obráraõ os mortos, aduirtindo o que haõ de obrar aos viuos. Não serue sua leitura sómente pera occupar os olhos, se naõ pera despertar os animos. Com a lição de outros liuros enganase, & quando muito não se perde, o tempo: com a liçaõ deste aproueitase. Quẽ o lèr, entenderà saõ estas palauras mais ditame de seu merecimento, que diuida de meu affecto. Finalmente na obra toda não ha cousa que offenda, muyto sy que edifique, em beneficio dos fieis, seruiço de Deos, gloria da Companhia, & lustre desta nossa Prouincia. No Collegio da Bahia 18. de Mayo de 661. Antonio de Sá Por ordem do Padre Prouincial Balthasar de Sequeira vi o Primeiro Tomo da Chronica da Companhia do Estado do Brasil, composta pello Padre Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, Prouincial que foi nesta Prouincia: não acho nella que notar, & fico que acharáõ muitos que aprender em tão santa leitura, & muito que admirar em tanta variedade de cousas deste Nouo mun do. Nē cuido causarà tedio do que a ler; porque o estylo he doce, & sem affectação; & sobre tudo certo, verdadeiro, & conforme às experiẽcias, tradições, & apõtamentos fidedignos do Veneravel Padre Ioseph Anchieta, & outros Varoens, pays primeiros desta Prouincia. Pello que he muito digna de que se imprima esta obra a gloria de Deos, & da Companhia. Bahia 20. de Mayo de 1661. Jacinto de Carvalhaes. Por mandado do Padre Prouincial Balthasar de Sequeira li, & ouui ler cõ o deuido gosto, & particular attenção, o liuro da Chronica da Companhia de Iesu desta Prouincia do Brasil, composta, & ordenada pello Padre Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, & Prouincia: pareceme ser obra de grande edificação, proueito espiritual, & consolação pera toda a Companhia; por se referirẽ nella cousas mais admiraueis, q94 imitaueis, & de grande confusão pera alguns dos que viuemos, & vemos quam longe estamos daquelle primeiro, & feruoroso espi- Esta letra (q) está acentuada com um til no original. Esta letra (q) está acentuada com um til no original. 94 Esta letra (q) está acentuada com um til no original. 93 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 rito, com que se fu ndou esta Prouincia do Brasil. O estylo da obra he graue, & pou co affectado, como deue ser a historia. Contèm sucessos grandes, & noticias muito curiosas deste Nouo mundo; & tudo mui conforme âs tradiçoẽs, que ha neste Estado. Ao Autor deue grandes obrigações o Estado, & a nossa Prouincia do Brasil, pella muita diligencia, & certeza com que escreue do Brasil, & da Prouincia; & pellos graues termos, com que tão doutamente entre a historia trata algũas questoẽs curiosas. Pello que me parece mui digna de se estampar pera edificação de toda a Companhia, & quasi reprehensaõ dos Filhos desta Prouincia. Bahia 17. de Abril de 1661. João Pereira JOANNES PAVLVS OLIVA SOCIETATIS JESV Vicarius Generalis. Cvm Historiam Brasiliensem nostra Societatis Lusitano idiomate a P. Simone de Vasconcellos ejusdem Societatis Sacerdote conscriptam, aliquot nostri Theologi recognoverint, & in lucem edi posse probauerint; potestatem facimus, ut typis mandetur, si it a ijs, adquospectat, videbitur; cujus rei gratia hes litteras manu nostra subscriptas, sigilloq; nostro munitas damus. Rome 4. Iulij 1662. Joan. Paulus Oliua LICENÇAS DO S. OFFICIO Vi com particular gosto, attenção, & curiosidade a Primeira Parte da Chronica da Companhia de Iesu do Estado do Brasil, composta com estylo dou to, grave, claro, apraziuel, pello muito Reuerendo Padre Simão de Vasconcellos Provincial que foi daquella Prouincia. Trata dos primeiros Conquistadores, & Descobridores do Nouo mundo, & mais em particular do Estado do Brasil, de sua grandeza, & cousas mais notaueis, que saõ muitas, & muito pera saber; com questoens agradaueis, & mui curiosas, em que tem bem que ver, & se entreter os curiosos antiquarios. Trata tambem dos primeiros Conquistadores espirituaes da Companhia, que foraõ àquellas partes, dos grandes trabalhos que padecéraõ, & perigos que passárão na conuersaõ de gentes taõ rudes, barbaras, indomitas, & inhumanas daquellas vastas, agrestes, & incultas regioẽs, & o grande fruito espiritual que em ellas fizerão, em que tem bem que imitar os que por officio, & voto estão dedicados a obra tão santa, & tanto do seruiço de Deos. Não tem cousa que encõtre nossa santa Fé, muitas sy de sua exaltação, propagação, & augmento; nenhũa contra os bons costumes, antes muitos documentos importantissimos pera os introduzir, & desterrar os barbaros, agrestes, & inhumanos daquella gentilidade; & assi a julgo digna de sair a luz pera maior gloria de Deos, honra, & credito deste nosso Reyno, do qual sairão os primeiros, & saem de contino os obreiros de tão santa empresa. Cõ tudo, como em discurso da Historia trata o Autor as vidas de algũs daquelles primeiros Missionarios, & nellas de algũas reuelações, & obras ao parecer milagrosas, & algũas vezes lhes dá o titulo de Santos, & tambem do martyrio do Padre Ignacio de Azevedo, & seus companheiros, aos quaes nomea mar- 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 95 tyres, contra o que o Breue, & Decreto do Senhor Papa Vrbano VIII. dispoem; he necessario, primeiro que se lhe dè a licença pera se estampar, fazer o Autor em o principio da Obra, ou fim della, protestação, & reserua do dito Breue, cõforme sua explicação, como fazem todos os que depois de sua data escreuerão vidas, & feitos de Varoẽs insignes em virtudes, & santidade. Aduirto tambem, que falta aqui a licença do seu Padre Prouincial. Lisboa em o Convento de N. Senhora de Iesus em 15. de Ianeiro de 662. Fr. Duarte da Conceição, Leitor jubilado, & Padre da Prouincia. Obedecendo ao mandado do Santo Tribunal, reuî esta Chronica da sagrada Religião da Companhia de Iesus, particular do nosso Reyno de Portugal no tocante ao descobrimento daquella parte da America que cha mamos de Brasil, com as noticias do clima, & natural do terreno, & maritimo della; & mais em particular, dos principios, & progressos com que os Obreiros desta Religião, enuiados pellos Reys nossos Senhores, forão manifestar àquella Gentilidade a verdadeira crença do Euangelho. Por appendice da obra se offerece hum Poema do prodigioso Padre Ioseph de Anchieta em louuor da Virgem Maria Senhora nossa: o qual sendo hum dos principaes executores daquella missaõ, soube poupar espaços para cãtar, entre trabalhos tão extraordinarios, os louuores que se deuião a quem lhe seruia de aliuio nelles. A sobredita Historia, & o Poema, alem de serem notaueis pellas noticias, artificio, locuçaõ, & metro; cõtèm taõ deleitosa, proueitosa, & saã doutrina, que ainda os menos affectos á Religião Christaã, & Fé Romana, se encolheráõ conuencidos, os mais escrupulosos Historicos, & Geografos se publicaràõ allumiados, & os mais apurados Poetas confessaràõ ficar alongados da suauidade singela, com que mysterios tão eleuados deuem contarse. Procede tudo tão regulado com os decretos da Catholica Igreja, & resoluçoens dos Summos Pastores della, que não falta mais pera acabar de aferuorar animos zelosos, q95 proporlhes na estãpa este incentiuo de luzeiros Euangelicos, pera que a imitação sua, como costumão a Religião da Companhia, & outras do nosso Portugal, despidaõ de si ramas, que vão plantar a mesma Fê, & crença, & dirijão suas acções pellos dictames, & execuçoens de tão bons mestres. Isto he o que sinto na materia presente. Em N. Senhora do Desterro 13. de Outubro de 1662. O Doutor Fr. Francisco Brandão. Vistas as informaçoens, podese imprimir este liuro, cujo titulo he, Chronica da Companhia de Iesus do Estado do Brasil, Author o Padre Simão de Vasconcellos; & impresso tornarà ao Conselho pera se conferir com o original, & se dar licença pera correr, & sem ella não correrá. Lisboa 17. de Outubro de 1662. Pacheco. Sousa. Fr. Pedro de Magalhaens Rocha. Aluaro Soares de Castro. Manoel de Magalhaens de Meneses. Esta letra (q) está acentuada com um til no original. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 96 Podese imprimir. Lisboa, trinta de Outubro de 1662. F. Bispo de Targa. LICENÇAS DO PAÇO Esta Chronica da Cõpanhia de Iesus do Estado do Brasil reui jâ por mandado do Sãto Officio, & naquella approuação declarei o que della sentia: conformandome com o que então disse, posso agora certificar V. Magestade, que he hũa bem trabalhada escritura; & que alem das miudas noticias daquella parte da America, principio, & progressos de seu descobrimento, conquista, & conuersaõ, com que esta nação ficará inteirada da estimação que se deue fazer de parte tão principal de sua Conquista; Vossa Magestade, & os Senhores Reys seus predecessores estão bem seruidos pello zelo, & cuidado q96 applicáraõ a tão grande empresa; & o mundo todo se admirara com a leitura de tão notaueis & differentes effeitos Christaõs, militares, & politicos. Em Nossa Senhora do Desterro 3. de outubro de 1662. O Doutor Fr. Francisco Brandão Chronista mór. Podese imprimir, vistas as licenças do Ordinario, & Santo Officio, & impresso tornará â Mesa pera se taxar, & sem isso não correrá. Lisboa 7. de Nouembro de 662. Moura P. Sousa. Velho. Gama. Sylva. Reui esta Chronica do Brasil, & tenho entendido que está conforme cõ seu original: a qual tinha reuisto, & examinado na primeira reuisaõ, que se me recomendou desse Santo Tribunal, & na segunda que do Tribunal do Paço se me mandou. E conforme esta informação pôde o Santo Tribunal darlhe licença para a bublicação. Em N. S. do Desterro vltimo de Feuereiro de 1665. O D. Fr. Francisco Brandão Chronista mór. Visto estar conforme com seu original, pôde correr esta Chronica da Cõpanhia de Iesus do Estado do Brasil. Lisboa 3. de Março de 1665. Pacheco. Sousa. Fr. Pedro de Magalhaẽs. Rocha. D. Verissimo de Alencastro. Taxão este liuro em treze tostoẽs em papel, visto o que se allega. Lisboa 9. de Março de 1665. D. Rodrigo de Meneses P. Monteiro. Sylva. Magalhaẽs de Menezes. Miranda. Esta letra (q) está acentuada com um til no original. 9.5. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668) – Edição diplomática em CD-ROM. Envelope do CD-ROM