Universidade Federal Fluminense
Centro de Estudos Gerais
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
José Antonio Andrade de Araujo
A construção do Paraíso:
o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos
Niterói
2004
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José Antonio Andrade de Araujo
A construção do Paraíso:
o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor. Área de
concentração de Estudos de Literatura, subárea
Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro
Niterói
2004
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José Antonio Andrade de Araujo
A construção do Paraíso:
o discurso milenarista de Simão de Vasconcellos
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor. Área de
concentração de Estudos de Literatura, subárea
Literatura Comparada.
Aprovada em 6 de dezembro de 2004.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Luis Filipe Ribeiro – Orientador
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________
Prof. Dra. Lilian Pestre de Almeida
Universidade Independente de Lisboa
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________
Prof. Dr. Paulo de Azevedo Bezerra
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________
Prof. Dr. Rosalvo do Valle
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2004
4
Dedicado
aos meus pais, João Baptista e Dolly, e
filhos, Mariana e Antonio.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus professores que, ao longo dos anos, foram generosos ao
compartilhar e transmitir seus conhecimentos e experiências. Agradeço ao meu orientador
professor Dr. Luis Filipe Ribeiro, pela generosidade com que me acolheu como seu
orientando e pela profícua convivência ao longo desses últimos anos. Da mesma forma,
agradeço aos professores Dr. Paulo de Azevedo Bezerra e Dr. Ronaldo Vainfas pelas
importantes contribuições no exame de qualificação.
Agradeço à Academia Brasileira de Letras pela gentileza da cessão do seu auditório,
para a solenidade de argüição da tese, e pela bolsa de doutorado com que fui agraciado.
Agradeço as análises e comentários dos colegas dos Seminários de Pesquisa e
Orientação, do Professor Luis Filipe Ribeiro: Amadeu da Silva Guedes, Elizabete Velloso de
M. B. da Silva, Gerardo Godoy Fajardo, Jacqueline de Almeida Storti, Luciane Nunes,
Michelle Araujo, Rosane Marins de Menezes e Vivianne Milward Araujo.
Agradeço também o incentivo e apoio dos amigos do Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFF, em especial a professora Dra. Lucia Helena, Andréa Portolomeos, Irenísia
Torres de Oliveira, Marcelo Peloggio e Normelia Parise.
Agradeço a gentileza da profa. Marilena dos Reis Peluso pela leitura da tese e ao
sempre amigo astrônomo Roberto Ferreira Silvestre pelos comentários e indicações
bibliográficas.
Agradeço a gentil recepção do Professor Dr. Onésimo Teotónio Almeida, do
Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, durante o
Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), em julho de 2002.
Um agradecimento especial a Biblioteca John Carter Brown, da Brown University
(Providence, RI – USA), na pessoa do seu diretor Norman Fiering e do bibliotecário Richard
J. Ring, pelo primoroso atendimento e apoio a nossa pesquisa através da reprodução em
microfilme da edição de 1668 do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil,
de Simão de Vasconcellos.
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SUMÁRIO
Conteúdo
1. Introdução
Página
9
2. Simão de Vasconcellos e o Paraíso na América
24
3. A construção do território do Brasil
43
4. O índio no Brasil de Simão de Vasconcellos
72
5. A bondade da terra do Brasil
119
6. A tese do Paraíso
145
7. Conclusão
170
8. Referências bibliográficas
175
9. Anexos
9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do
Brasil (1663).
9.1.1. Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. 6ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 363-365.
9.1.2. Fonte: VASCONCELOS, Simão. Notícias curiosas e necessárias das
cousas do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses – CNCDP, 2001. p. 161-164.
9.2. Dedicatória - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.3. Protesto do autor - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil
(1663).
9.4. Aprovações da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil
(1663).
9.5. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668) - Edição
diplomática, em CD-ROM.
185
186
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7
RESUMO
A construção do Paraíso é uma leitura do livro Noticias curiosas, e necessarias das
cousas do Brasil (1668), do padre jesuíta Simão de Vasconcellos (c.1596-1671). A leitura foi
elaborada com base na teoria de Mikhail Bakhtin aplicada à Análise de Discurso. Nesse
enfoque, a obra de Simão de Vasconcellos referida à sua época e ao contexto de produção
revela-se como um discurso milenarista. Para análise do discurso elaborou-se uma edição
diplomática do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, da edição de 1668,
que encontra-se em anexo.
Palavras-chave: Análise de Discurso. Jesuítas. Milenarismo.
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ABSTRACT
A construção do Paraíso is a reading of the book Noticias curiosas, e necessarias das
cousas do Brasil (1668), written by the jesuit Simão de Vasconcellos (c.1596-1671). This
reading was based on Mikhail Bakhtin’s theory applied to Discourse Analysis. In this sense,
the work of Simão de Vasconcellos referred to his time and context of production emerge as a
millennialist discourse. For the discourse analysis, a diplomatic edition of the book Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, dated from 1668, has been made and can be
found in the appendix.
Key-words: Discourse analysis. Jesuits. Millennialism (or millenarianism).
9
1. Introdução
A construção do Paraíso é uma leitura do livro Noticias curiosas, e necessarias das
cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, publicado em 1668. A leitura ora apresentada
está fundada na concepção de que o livro nada mais é do que um ato de fala impresso
(Bakhtin, 1999, p. 123), ou seja, um discurso que faz parte de um processo de interação
verbal. Como tal, esse discurso foi proferido numa determinada época, num lugar e numa
situação específica. O seu autor tinha uma intenção ao elaborá-lo e os leitores daquela época
estabeleceram os significados permitidos pelo seu capital simbólico.
A leitura do discurso de Simão de Vasconcellos hoje, quase trezentos e cinqüenta anos
depois da sua elaboração e publicação, tem na distância temporal uma dificuldade que
devemos contornar através do resgate das condições em que a obra foi elaborada. Este
cuidado permite ao analista do discurso aproximar-se das possíveis significações do discurso
naquele período e elaborar a sua própria interpretação.
Nesse sentido, apresentamos um breve retrospecto das observações de alguns analistas
de discursos, ou seja, de alguns críticos e historiadores das letras, bem como dos autores de
artigos que trataram da obra de Simão de Vasconcellos e da comunidade jesuíta no período
colonial no Brasil.
O papel da Companhia de Jesus na formação dos escritores do período colonial, bem
como na disseminação de uma literatura através de suas publicações, foi reconhecido pela
maioria dos críticos e historiadores das letras.
O reconhecimento da importância da Companhia de Jesus pode ser atestado pela
referência às publicações de seus membros mesmo por aqueles historiadores e críticos que
estabelecem critérios rígidos na definição do que seriam as manifestações literárias do período
colonial. Nesse último grupo podemos incluir José Veríssimo que na História da Literatura
Brasileira faz uma crítica severa ao ambiente intelectual dos dois primeiros séculos da
colonização: “mesmo quando já havia manifestações literárias, se não encontre a menor
10
referência ou alusão a qualquer forma de atividade mental aqui, a existência de um livro, de
um estudioso ou cousa que o valha” (Veríssimo, 1915, p. 17).
Veríssimo, além de ignorar alguns autores jesuítas como Simão de Vasconcellos,
afirma que Fernão Cardim “tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história da
nossa literatura como um dos seus primitivos escritores” (Veríssimo, 1915, p. 28). Diz ainda
que frei Vicente do Salvador é o “único prosista brasileiro da fase inicial da nossa literatura”
(Veríssimo, 1915, p. 33) e que
A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou pelo resto do século.
À copiosa produção poética desse momento de modo algum correspondem escritos em
prosa, que não sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país,
já oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas,
maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são
apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. (Veríssimo, 1915, p. 33)
Apesar do reconhecimento da produção da Companhia de Jesus, a última afirmação é
no mínimo estranha uma vez que Simão de Vasconcellos teve sua Crônica da Companhia de
Jesus publicada em 1663, com uma segunda edição organizada por Inocêncio Francisco da
Silva e publicada em Lisboa em 1865, e outra, quase simultânea, no Rio de Janeiro,
organizada por Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro e que apresenta duas datas diferentes em
seus exemplares: 1864 e 1867 (Leite, 2000, v. 9, p.175-176).
Antes de Veríssimo, Silvio Romero utilizou um critério aparentemente amplo para
classificar aqueles que seriam os “nossos” escritores: “os nascidos no Brasil, quer tenham
saído, quer não, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram longamente, lutaram e
morreram por nós [...]” (Romero, 2001, v. I, p. 59-60). Apesar da abrangência deste critério,
Romero acaba por excluir “muitos escritores portugueses, especialmente autores de crônicas,
que permaneceram mais ou menos limitadamente entre nós e escreveram obras sobre o
Brasil” (Romero, 2001, v. I, p. 59), indicando neste caso autores como Pero Vaz de Caminha,
Gândavo, Fernão Cardim, Gabriel Soares, Simão de Vasconcellos e Simão Estácio da
Silveira. Dentre esses, que permaneceram segundo Romero “limitadamente entre nós”,
destacamos Fernão Cardim, que trabalhou no Brasil por quase quarenta anos, e Simão de
Vasconcellos, que aqui atuou por mais de cinqüenta anos. Por outro lado, Romero inclui, na
sua lista de escritores “brasileiros”, José de Anchieta, com pouco mais de quarenta anos de
atuação no Brasil, ou seja, apesar de Cardim ter permanecido no Brasil um período de tempo
um pouco menor e Vasconcellos um período um pouco maior do que Anchieta, nenhum dos
dois foi incluído na lista. O mesmo ocorre com Antonio Vieira e Alexandre Gusmão, ambos
11
com permanência superior à de Anchieta no Brasil. Além da permanência quase equivalente à
de Anchieta no Brasil, devemos destacar que todos eles morreram no Brasil, e que Simão de
Vasconcellos, Antonio Vieira e Alexandre Gusmão vieram de Portugal para o Brasil ainda
crianças ou adolescentes. Estudaram em colégios da Companhia de Jesus no Brasil e nela
ingressaram exercendo quase todos os cargos, inclusive o de Provincial, o cargo mais elevado
da Companhia de Jesus num país ou colônia.
Não podemos prosseguir esta breve revisão sem fazer referência à obra de Afrânio
Coutinho e a importância fundamental dessa obra na divulgação das idéias sobre o barroco no
meio acadêmico, jornalístico, editorial e intelectual. Coutinho não analisou a obra de Simão
de Vasconcellos, entretanto, seus livros, tese, artigos e palestas introduziram no Brasil
conceitos fundamentais sobre o barroco, dentre os quais destacamos o importante aspecto da
conciliação barroca:
A alma barroca é composta desse dualismo, desse estado de tensão e conflito,
exprimindo uma gigantesca tentativa de conciliação de dois pólos considerados então
inconciliáveis e opostos: a razão e a fé. O movimento era de fundo religioso, visando a
restaurar os valores medievais de vida contra a corrente renascentista. Ao mesmo
tempo, contudo, o homem ocidental não mais se conformava em abrir mão das
virtualidades da vida terrena que o humanismo renascentista e o alargamento espacial da
Terra lhe revelaram. Por isso o conflito entre o ideal de fuga e renúncia do mundo e as
atrações e solicitações terrenas. Diante do dilema, em vez da impossível destruição,
tentou a conciliação, a incorporação, a absorção. Era essa uma tendência, possivelmente
geral, que a Igreja Católica bem compreendeu, captou e tentou dirigir, com sabedoria,
através da Contra-Reforma, e de que o espírito jesuíta é a encarnação. (Coutinho, 1999,
p. 19).
Prosseguindo, temos José Guilherme Merquior (1996) que, apesar de destacar o
enfoque do “mito do Eldorado” nos primeiros textos sobre o Brasil, não faz qualquer
referência a Simão de Vasconcellos ou à sua obra, possivelmente, devido ao critério de “alta
seletividade” que reduziu o conjunto de autores analisados a “poucos escritores” (Merquior,
1996, p. 7). Apesar disso, afirma que “com as obras de Manuel da Nóbrega, de José de
Anchieta e de Fernão Cardim [...] ingressamos no terreno propriamente literário, e não apenas
documental, na história das letras no Brasil” (Merquior, 1996, p. 19). Por outro lado, Alfredo
Bosi (2001) considera esses mesmos textos como textos de informação, parte de uma “préhistória das nossas letras” (Bosi, 2001, p. 13).
Numa outra vertente, Silvio Castro inclui o discurso de Simão de Vasconcellos e de
outros jesuítas na literatura de testemunho:
A literatura de testemunho no Brasil é assim, e como conseqüência da própria origem,
fundamento da mitologia cultural brasileira. Nasce do confronto do homem europeu
12
com o novo espaço e da transformação nesse mesmo indivíduo do sentido do território
pessoal. Sendo um confronto de pontos de vista, exprime imediatamente uma dialética
que coloca em discussão o tempo e a situação originais, mesmo quando um tal
comportamento não se configura como intenção consciente do autor. Porém, é sempre
um testemunho de “viagem”. Viagem, seja enquanto movimento preconcebidamente
organizado e realizado, seja enquanto ação pretextual. (Castro, 1999, p. 65)
Nesse mesmo capítulo do livro de Silvio Castro, Giampaolo Tonini complementa com
sua visão sobre a contribuição da literatura religiosa, em particular a jesuítica, para essa
literatura de testemunho bem como na disseminação de mitos:
Portanto, é de crer que a literatura jesuítica, graças a sua precoce e ampla difusão, tenha
tido, se parcialmente interpretada, um papel não desprezável não só na formação do
mito do bom selvagem, como na do mito oposto, e ainda na do mito do Paraíso terrestre
reencontrado, já que – apesar de se revelar globalmente objetiva nas descrições da nova
terra, da qual não são omitidos nem os aspectos negativos do clima de certas regiões
nem a presença de animais prejudiciais ao homem – muitas vezes apresenta o novo
mundo com atributos paradisíacos, seja na tentativa de identificação da nova terra, que
se tornava mais familiar se se encontrassem nela características e aspectos coincidentes
com os contidos nas bem conhecidas descrições do Paraíso terrestre, seja porque a sua
natureza paradisíaca confirmava mais uma vez a presença de Deus no universo. (Tonini,
1999, p. 90)
As manifestações literárias do período colonial no Brasil, até a segunda metade do
século XVIII, no enfoque de Antonio Candido realizaram-se “sob o signo da religião e da
transfiguração” (Candido, 2000, p. 91). A religião, nessa visão, foi a diretriz ideológica que
atuou como idéia e princípio político, estético e filosófico. É nesse sentido que Candido
conclui:
As crônicas do jesuíta português Simão de Vasconcelos obedecem a um princípio
declaradamente religioso, de informar e edificar; mas o mesmo acontece, no fundo, à
História do franciscano brasileiro Vicente do Salvador (156?-163?), sob a aparência de
piedade menos imediata. E até a crônica do militar português Francisco de Brito Freire,
tão política, pinta no fundo os progressos da fé, encarnados no guerreiro e
administrador que luta contra o protestante flamengo – o que também verificamos no
Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado. (Candido, 2000, p. 92)
Nessa concepção a modulação do discurso pela estética barroca transfigura a realidade
e o autor assim exemplifica a questão,
[...] o caso do mundo vegetal, primeiro descrito, depois retocado, finalmente alçado a
metáfora. Se em Gabriel Soares de Sousa (1587) o abacaxi é fruta, nas Notícias
curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcelos, é fruta
real, coroada e soberana; e nas Frutas do Brasil (1702), de frei Antonio do Rosário, a
alegoria se eleva ao simbolismo moral, pois a régia polpa é doce às línguas sadias, mas
mortifica as machucadas – isto é, galardoa a virtude e castiga o pecado. Por isto, o
arguto franciscano constrói à sua roda um complicado edifício alegórico, nela
encarnando os diferentes elementos do rosário. Nesta fruta, americana entre todas,
13
compendiou-se a transfiguração da realidade pelo Barroco e a visão religiosa.
(Candido, 2000, p. 94)
Ainda sobre as manifestações literárias do período colonial, Candido faz duas
observações. A primeira refere-se à formação dos escritores que “durante todo o período
colonial são, ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se no uso de
instrumentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria” (Candido, 2000, p. 90).
Devemos acrescentar que, independentemente do local de formação, Portugal ou Brasil, esta
era feita, principalmente, em escolas e universidades jesuíticas sujeitas ao currículo
padronizado em 1599, o Ratio Studiorum (Franca, 1952), após um processo de
aperfeiçoamento do método por cinqüenta anos. A segunda observação de Antonio Candido,
indica como destinatários da atividade intelectual “um público português” ou “necessidades
práticas (administrativas, religiosas, etc)” e que apenas no século XIX teremos “os primeiros
escritores formados aqui e destinando a sua obra ao magro público local” (Candido, 2000, p.
91). Estas observações sinalizam para a necessidade de o nosso trabalho caracterizar, de um
lado, a formação do escritor jesuíta e, de outro, dos leitores, bem como a produção e
disseminação dos livros na sociedade portuguesa no período de nosso interesse, o século
XVII.
Num dos poucos estudos existentes sobre a obra de Simão de Vasconcellos, Silvio
Castro diz que os dois livros das Noticias curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil
[...] além do valor específico de texto tipicamente seiscentista, nos fornecem vasto
material sobre a impostação cultural do jesuíta culto na sua atividade em terras
americanas, bem como nos permitem de estabelecer parâmetros de comparações com
outros textos clássicos de autores anteriores a Simão de Vasconcelos, desde Pero Vaz de
Caminha, Gabriel Soares de Sousa, Gândavo, até Cardim, Jean de Léry e outros que se
empenham em observações da mesma natureza cultural. (Castro, 1983, p. 67-68)
Sobre o texto das Noticias, Silvio Castro destaca a presença de “uma linguagem típica
da cultura barroca, construída principalmente a partir de um expressionismo de forte natureza
plástica – no qual porém não é possível ignorar certos exageros ligados à ênfase” (Castro,
1983, p. 69).
A exaltação da terra do Brasil nas Noticias, na opinião de Silvio Castro, não tem o
mesmo significado de propaganda encontrado na obra de outros cronistas como Gândavo,
Cardim e Brandão, mas cuja “ênfase traduz o desenho de revelação do maravilhoso” (Castro,
1983, p. 72). Nesse sentido, as informações de Simão de Vasconcellos sobre a terra do Brasil
e sua natureza conduzem o texto “à revelação do mito poético do paraíso terrestre” (Castro,
14
1983, p. 72). Um mito sempre presente na literatura de testemunho sobre o Brasil nos séculos
XVI e XVII, porém, no enfoque de Vasconcellos, “o mito retoma a sua originária e completa
natureza teologal” (Castro, 1983, p. 73).
Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (1994), aborda vários aspectos da
obra de Simão de Vasconcellos, dos quais destacamos a comparação que faz do parágrafo 31
do primeiro livro das Noticias (Vasconcelos, 1977, p. 64-65) com alguns capítulos do livro de
Cristóbal de Acuña sobre o rio Amazonas (Acuña, 1994), no sentido de caracterizar que
“neste como em outros casos, limita-se o jesuíta português a redizer, às vezes com palavras
idênticas, o que antes dele tinham afirmado cronistas ilustres, em particular o Padre Cristobal
de Acuña” (Holanda, 1994, p. 136).
Ao analisar a Crônica da Companhia de Jesus, de Simão de Vasconcellos, sob a
perspectiva médica, Ivolino de Vasconcelos afirma que o autor elaborou-a “com método
científico” (Vasconcelos, 1949, p. 63) e que ele vinha utilizando-a como referência no Curso
de História da Medicina, na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil
(Vasconcelos, 1949, p. 58).
A maior parte das informações sobre a vida e obra de Simão de Vasconcellos devemos
à obra monumental de Serafim Leite, da qual destacamos: História da Companhia de Jesus no
Brasil (Leite, 2000), Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (Leite, 1953), e Novas páginas de
História do Brasil (Leite, 1965). Nesse último livro encontramos em anexo o artigo “O
tratado do ‘Paraíso na América’ e o ufanismo brasileiro”, em que o autor relata parcialmente o
episódio da censura da Crônica da Companhia de Jesus, do p. Simão de Vasconcellos.
O livro O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (Neves, 1978), de
Luis Felipe Baêta Neves, é uma leitura essencial para uma visão crítica da atividade
missionária da Companhia de Jesus no Brasil. Em outro livro, Vieira e a imaginação social
jesuítica (Neves, 1997), o leitor tem a oportunidade de mergulhar no quotidiano da colônia na
parte em que ele dedica a análise do texto da “Visita”, de Antônio Vieira. Além disso,
encontramos nesse livro a excelente análise sobre o imaginário social de Antonio Vieira.
No artigo intitulado “A filosofia e ciência modernas nos escritos do padre Simão de
Vasconcelos” (Domingues, 1999), Beatriz Helena Domingues faz uma leitura das Noticias
curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil, de Simão de Vasconcellos, relacionando-a ao
debate europeu do século XVII sobre a abordagem científica da natureza e a racionalidade do
conhecimento humano. Em outro artigo (Domingues, 2002), a autora investiga as
descontinuidades e as continuidades entre o pensamento jesuíta, representado pela História do
Futuro, de Antonio Vieira, e pelas Noticias curiosas, e necessarias das coisas dos Brasil, de
15
Simão de Vasconcellos, e a filosofia e a ciência modernas do século XVII na Europa. Sua
análise indica que apesar da descontinuidade estabelecida pelos aspectos teológicos, existiam
fortes continuidades entre o pensamento desses jesuítas e a modernidade filosófica e científica
européia do século XVII.
Na sua extensa análise das publicações do período colonial, Diogo Ramada Curto
apresenta um breve comentário sobre as obras de Simão de Vasconcellos destacando apenas
alguns pontos da Chronica (Curto, 1998, p. 518).
Além dos livros e artigos relacionados, a tese de doutorado de Carlos Alberto de
Moura Ribeiro Zeron, intitulada La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au
Brésil: les justifications d’ordre historique, théologique et juridique,et leur intégration par une
mémoire historique (XVIe-XVIIe siècles) (Zeron, 1998), tem parte de um capítulo dedicado a
questão da escravidão indígena na Crônica da Companhia de Jesus, de Simão de
Vasconcellos.
Encerrando esta breve revisão, podemos relacionar algumas referências do século
XVIII às obras de Simão de Vasconcellos como, por exemplo, a do acadêmico José de
Oliveira Bessa, da Academia Brasílica dos Renascidos (1759), apresentando as principais
obras que utlizava na elaboração dos seus trabalhos (Araujo, 1999, p. 114) e o seu colega de
academia, fr. Antonio de Santa Maria Jaboatão, que incluiu no Novo Orbe Seráfico (1761)
trechos recolhidos nas Noticias, de Simão de Vasconcellos, como veremos em outro capítulo.
Segundo Jorge de Souza Araujo, o fr. Gaspar da Madre de Deus, nas Memórias para a
História da Capitânia de S. Vicente (1797), acrescentou no fim do livro um “catálogo das
obras e documentos, que foram consultados na confecção das Memórias”, relacionando três
obras de Simão de Vasconcellos: Crônica da Companhia de Jesus, Notícias antecedentes das
cousas do Brasil, Vida do padre Anchieta (Araujo, 1999, p. 115-116). Além dessas
referências, é interessante a informação de Araujo sobre o inventário de Escolástica da Silva,
de 1747, em que ele encontrou relacionado “Noticias do Brazil, de curiosa e difícil
identificação (uma vez que o Noticia do Brasil, de Gabriel Soares de Souza só vem a ser
publicado no século XIX)” (Araujo, 1999, 283). Acreditamos que esse livro era um exemplar
das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcellos,
que trazia impresso no cabeçalho das suas páginas apenas Noticias das cousas do Brasil.
Os escritos dos jesuítas do século XVII, no Brasil, se situavam no contexto das litterae
humanae (letras humanas, ou boas letras), que tiveram origem no Renascimento. Naquela
época, a expressão latina litterae humanae servia para distinguir as letras humanas das
divinas, ou sagradas. Ainda no século XVII, surgiu a expressão belas letras que valorizava
16
uma das virtudes da elocução, o ornato, e que abriu o caminho que originou, em meados do
século XVIII, as belas artes e a idéia moderna de arte. Assim, as belas letras trouxeram uma
inovação conceitual pela introdução de um critério estético em relação às letras humanas, ou
boas letras. Entretanto, os escritos dos jesuítas foram elaborados num período anterior ao da
predominância do critério estético do ornato. Além disso, é útil acrescentar que a concepção
de autoria vigente no século XVII:
não conhece o autor como se define a partir do século XVIII romântico: como
originalidade de uma intuição expressiva; como unidade e profundidade de uma
consciência; como particularidade existencial num tempo progressista; como psicologia
do estilo; como propriedade privada e direitos autorais. No discurso antigo, enfim,
auctor e auctoritas especificam um gênero, um uso, ou uma disciplina: como no
Trivium, em que “Cícero” é o auctor da Retórica; “Aristóteles”, da Dialética; poetas
antigos, da Gramática (Hansen, 1992, p. 28-29).
Assim, a produção literária dos escritores jesuítas do século XVII no Brasil era
balizada pelas boas letras e pela autoria fundadas no princípio pré-iluminista da imitação dos
autores clássicos, entendidos como os verdadeiros Autores, referidos como tal em letra
maiúscula.
O currículo básico de formação do jesuíta enfatizava, desde a fundação dos primeiros
colégios, o ensino de latim, visando à eloqüência, da mesma forma que o currículo do ginásio
protestante de Sturm, revelando sua origem comum no humanismo renascentista francês, um
tanto tardio em relação ao renascimento italiano.
Por causa da grande semelhança de organização e currículo, tem-se sustentado que os
jesuítas copiaram seus planos escolares deste colega [Sturm] humanista protestante. É mais
provável, entretanto, que ambos tenham recorrido à mesma fonte: as escolas de Liège e de
Lovaina (Eby, 1978, p.79).
A criação do primeiro colégio jesuíta em Messina (Sicília), em 1548, sob a direção do
p. J. Nadal, marcou desde o início a orientação pedagógica das futuras escolas dos jesuítas. Os
mestres fundadores do colégio de Messina, com apenas uma exceção, formaram-se em Paris,
da mesma forma que Inácio de Loyola e os demais fundadores da Companhia de Jesus.
Assim, era parisiense a formação dos fundadores da Companhia e dos mestres criadores do
primeiro colégio.
O Colégio Romano foi criado em 1551 com o duplo objetivo de estabelecer um
colégio modelo e formar os futuros professores da Companhia. O currículo do seu curso foi
baseado no de Messina e passou a servir de modelo para os colégios jesuítas que começaram a
ser fundados por toda a Europa.
17
As Congregações Gerais1 editaram, entre 1552 e 1584, vários decretos no sentido de
regulamentar e padronizar o material pedagógico utilizado nos colégios e, em 1586, foi
publicada uma versão do Ratio Studiorum, para uso interno da instituição, e enviada às
Províncias da Companhia para análise e discussão. As críticas foram compiladas, dando
origem a uma nova versão, publicada em 1591, para ser aplicada por três anos nos colégios da
Companhia. Os resultados da aplicação do método nos colégios e as novas críticas foram
utilizadas para a redação definitiva do Ratio Studiorum, publicada em Nápoles, no ano de
1599, concluindo assim um processo de cinqüenta anos de desenvolvimento e
aperfeiçoamento do método pedagógico jesuítico.
O Ratio Studiorum é uma norma pedagógica dividida em conjuntos de regras onde são
apresentados o método de ensino, os currículos e os programas dos cursos de Humanidades,
Filosofia e Teologia.
A formação do jesuíta, conforme o Ratio Studiorum, deveria ser desdobrada em três
cursos, sendo o primeiro, de nível inferior, o de Humanidades, o segundo o de Filosofia e o
terceiro de Teologia, os dois últimos considerados de nível superior.
O curso de Humanidades, era equivalente ao ginásio e designado hoje como segunda
fase do fundamental, tinha como pré-requisito para admissão o conhecimento da língua do
país, isto é, o aluno deveria ter recebido instrução preliminar em casa ou nas escolas
elementares, de “ler, escrever e contar”. A base do curso de Humanidades era o latim,
complementado pelo grego. O estudo da língua pátria tinha um caráter suplementar ou
conseqüente, em função dos exercícios de tradução. O curso de Humanidades era dividido em
cinco classes, sendo as três iniciais de gramática (inferior, média e superior), seguido de uma
de humanidades e concluindo-se o curso com uma de retórica. No programa do curso de
Humanidades, especificado no Ratio Studiorum, constatamos que nas três classes de
gramática estudava-se o latim pela gramática do p. Manuel Alvarez2, e que os exercícios
baseavam-se em textos de autores clássicos com destaque para Cícero, que nas duas primeiras
classes era usado com exclusividade. Na classe de humanidades, como uma “preparação à
eloqüência”, fazia-se um estudo resumido da retórica de Cipriano Soares3. A Arte Retórica, de
Aristóteles, era a base teórica da classe de retórica, que deveria ser associada ao estilo
1
A Congregação Geral era o poder legislativo da Companhia de Jesus, sendo composta por delegados das
Províncias (Leite, 2000, v. 1, p. 11).
2
A Gramática do p. Manuel Alvares foi editada várias vezes, uma delas: ÁLVARES, Manuel (1526-1583, S.J.).
De institutione grammatica. Veneza : Alexandrum Gryffium, 1581. (Catálogo da Biblioteca Nacional de
Portugal).
3
A Retórica de Cipriano Soares teve várias edições, uma delas: SUÁREZ, Cipriano (1524-1593, S.J.). De arte
rhetorica. Coimbra: Ioannem Barrerium, 1590. (Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal).
18
emanado dos textos de Cícero. Ao longo do curso de Humanidades estudava-se o grego
através de autores clássicos e religiosos.
O método pedagógico proposto pelo Ratio Studiorum apresenta vários aspectos
interessantes dos quais destacamos três pontos: a memorização, a imitação e as disputas. Os
exercícios de memorização eram diários, envolvendo a matéria ministrada no dia anterior,
gramática ou texto clássico, com o objetivo não só de fixar a matéria, mas também como o
“exercício diário” necessário ao retórico (Franca, 1952, p. 193). Nos exercícios de
composição, os alunos eram incentivados à imitação dos autores clássicos, mais uma vez
destacando-se Cícero, entre outros. As classes eram divididas em dois grupos (romanos e
cartagineses) e as disputas ou desafios entre os grupos eram feitas sob regras e controle do
professor, e os alunos que se sobressaíam eram premiados. A combinação da memorização,
da imitação e das disputas, como parte fundamental do método pedagógico, bem como o
conteúdo programático das disciplinas do curso de Humanidades, revelam, de forma
inequívoca, que o objetivo de formação do jesuítas era a eloqüência. Além disso, permitia
descobrir, dentre os componentes do corpo discente e integrantes do quadro da Companhia ou
que nele viessem a ingressar, aqueles que se destacavam na eloqüência, um requisito, mais do
que desejado, necessário, tanto para o exercício do magistério quanto para o do sacerdócio.
O curso de Filosofia tinha duração de três anos; o currículo, no primeiro ano, incluía
duas disciplinas, a Lógica e a Introdução às Ciências; o do segundo, a Filosofia e a
Matemática, e as disciplinas de Filosofia e de Filosofia Moral eram ministradas no terceiro
ano. A constatação de que Aristóteles é o filósofo não apenas predominante, mas o único
abordado ao longo do curso, esclarece a vinculação da Companhia de Jesus à filosofia
medieval, aristotélica e tomista, bem como a sua influência na formação dos seus alunos em
nível superior, fossem eles membros ou não da Companhia.
Durante o primeiro ano do curso de Filosofia, os membros da Companhia eram
submetidos a uma dupla avaliação, cujos votos eram secretos. Os alunos, conforme o
resultado, isto é, se estivessem abaixo da mediania4 ou na mediania, mas sem “habilidade para
pregação ou governo”, eram remetidos ao estudo de Casos de Consciência (Teologia Moral),
o curso superior destinado à formação de sacerdotes.
4
[...] deve entender-se no sentido em que vulgarmente se entende quando se diz de alguém que é de talento
mediano, a saber, quando percebe e compreende o que ouve e estuda e é capaz de dar razão suficiente a quem lha
pede, ainda que, em filosofia e teologia, não atinja o grau de doutrina que as Constituições designam com a
expressão ‘haver nela feito bastante progresso’, nem seja capaz de defender as teses aí mencionadas com o saber
e a facilidade com que as defenderia quem fosse dotado de talento para ensinar Filosofia e Teologia (Franca,
1952, p. 125-126).
19
O curso superior de Teologia tinha a duração de quatro anos e o seu currículo era
composto pelas disciplina Teologia Escolástica, presente durante todo o curso, Hebreu,
durante o primeiro ano do curso, e Sagrada Escritura, durante o segundo e terceiro ano do
curso. O programa de Teologia Escolástica consistia no estudo da Summa Theologica de S.
Tomás de Aquino, o que vem reforçar o caráter de vinculação medieval, do programa de
formação dos componentes da Companhia de Jesus.
O Ratio Studiorum previa a possibilidade de serem atribuídos graus, com base no
resultado dos exames finais, bem como a publicação das teses.
Depois desse rápido panorama da formação do jesuíta podemos orientar o foco do
nosso interesse para a aplicação efetiva do Ratio Studiorum nos colégios jesuítas no Brasil
colonial, lembrando que a regra 39 permitia ao Provincial “alguma modificação para maior
progresso das letras” na implantação do plano de estudos, desde que “se aproximem o mais
possível da organização geral” do Ratio Studiorum.
O ensino jesuíta no Brasil colonial apresentou como diferencial, em relação ao Ratio
Studiorum, a implantação das escolas elementares, de “ler, escrever e contar”, em
praticamente todas as suas casas, cujo início data de 1549 na Bahia, ou seja, na mesma época
da chegada dos primeiros jesuítas ao Brasil e no ano seguinte à criação do primeiro colégio
jesuíta na Europa. A implantação das escolas elementares no Brasil, apesar de não
contempladas no Ratio Studiorum, decorria da completa ausência de ensino fundamental na
colônia, obrigando a Companhia a suprir este pré-requisito para o ingresso no curso de
Humanidades.
O curso de Humanidades começou a ser ministrado na Bahia em 1553, sofrendo
algumas interrupções, por falta de alunos, até 1564, quando o colégio da Bahia passou a
receber dotação real, o que permitiu a oferta do curso de forma regular e permanente (Leite,
2000, v. 1, p. 74). Segundo Serafim Leite, o programa do curso de Humanidades no Brasil
estava mais próximo do programa do Colégio de Évora, de 1563, constituído por cinco classes
de gramática, uma de humanidades e outra de retórica, isto é, sete classes ao todo. O autor
apresenta o programa do Colégio de Évora, acrescentando que “há diversidade no número de
classes e entre os autores lidos no Brasil aparecem Quinto Cúrcio e Séneca não mencionados
neste programa de Évora” (Leite, 2000, v. 7, p. 152), mas não discorre sobre o programa
ministrado no Brasil. Em seqüência, oferece uma relação dos professores, com as respectivas
disciplinas, em 1694 e 1737 a 1741, na qual podemos verificar que a classe mais elevada é
designada ora como humanidades, ora como retórica, sendo precedida por quatro classes de
gramática (Leite, 2000, v. 7, p. 152-154).
20
Assim, podemos resumir que, no Brasil, o curso de Humanidades era ministrado em
quatro ou cinco classes e que o programa era “próximo” ao do Colégio de Évora. A
comparação do programa deste último com o programa estabelecido no Ratio Studiorum
indica pequenas variações que não alteram o seu objetivo: formar alunos para o exercício da
eloqüência.
O curso superior de Filosofia, conhecido também como Artes, começou a ser
ministrado no colégio da Bahia, em 1572, e aos seus primeiros alunos foi atribuído o grau de
bacharel, tendo sido eles os primeiros do Brasil, em 1575. No ano seguinte foram conferidos
os primeiros graus de licenciados e, em 1578, os primeiros títulos de mestre em Artes (Leite,
2000, v. 1, p. 96-97).
Sobre a titulação no Brasil convém esclarecer que, a partir de 1662, através da Câmara
da Bahia, foram feitas várias petições ao rei no sentido de conceder aos estudantes dos
colégios do Brasil, os mesmos privilégios dos estudantes do Colégio de Évora, em outras
palavras, eram petições no sentido de equiparar o Colégio de Artes da Bahia ao curso de Artes
da Universidade de Évora. Alguns anos depois, uma nova petição solicitando equiparação dos
cursos do Colégio da Bahia aos da Universidade de Coimbra teve como resposta a negação do
pedido, embora tenha sido obtido o reconhecimento de que as Faculdades de Filosofia e
Teologia do Colégio da Bahia poderiam dar graus para que os seus alunos pudessem se
incorporar à Universidade de Coimbra, da mesma forma que os alunos oriundos da
Universidade de Évora. Dessa forma, a titulação obtida nos colégios no Brasil, desde 1575,
tinha validade restrita ao âmbito da colônia, somente sendo reconhecida em Portugal a partir
de 1689 (Leite, 2000, v. 7, p. 195-205).
As teses, publicadas em Portugal, continham quatro páginas, sendo que nas três
primeiras impressas encontrava-se a tese propriamente dita, e a última página, sem impressão,
era reservada para a licença manuscrita para a defesa e as assinaturas (Leite, 2000, v. 7, p.
209-210).
Serafim Leite não apresenta detalhes do programa do curso de Filosofia no Brasil,
limitando-se a informar que “a base do ensino da filosofia nas escolas do séc. XVI era
Aristóteles, através de S. Tomás, e em particular do movimento de interpretação e exegese,
oriundo das Universidades de Coimbra e Évora” (Leite, 2000, v. 7, p. 219).
O autor
acrescenta uma relação com vários títulos e autores usados no curso de Filosofia: Pedro da
Fonseca com Ciência Média, P. Francisco Suárez, P. Manuel de Góis e Pedro da Fonseca com
o Cursus Conimbricensis, Baltasar Teles com Summa Universae Philosophiae. Faz ainda
referência a obras escritas mas não publicadas, como o Curso de Filosofia de Antonio Vieira
21
(1635), Cursus Philosophicus de Domingos Ramos (1687), Curso Philosophicus de Antonio
Andrade (1732) e Philosophia Problematice Expositae de Luiz Carvalho (1732) (Leite, 2000,
v. 7, p. 219-223).
O curso superior de Teologia era oferecido em duas modalidades: o breve, com
duração de dois anos para a formação de sacerdotes (Teologia Moral), e o curso longo, com
mais dois anos (Teologia Especulativa, Dogmática ou Escolástica). O acesso ao curso de
Teologia dependia do resultado da avaliação do aluno no primeiro ano do curso de Filosofia,
sendo aceitos para o curso breve (Teologia Moral) os alunos considerados de talento mediano
e, para o curso longo (Teologia Especulativa), os de talento insigne, em geral aqueles que
recebiam o grau de mestre em Artes. Ao concluir o curso de Teologia Especulativa, o aluno
habilitava-se ao exame final, quando poderia obter o grau máximo da Companhia, que era o
ad gradum (Leite, 2000, v. 7, p. 175-176).
No que se refere ao programa do curso de Teologia, Serafim Leite faz referência
apenas ao uso de S. Tomás, complementado por textos de “Francisco Suárez, Molina e outros
mestres, com as divergências que as escolas permitem, compatíveis com a Teologia Católica”
(Leite, 2000, v. 7, p. 177).
Apesar de não fazer parte do Ratio Studiorum, os Exercícios Espirituais, de Inácio de
Loyola, por se constituírem numa prática obrigatória entre os jesuítas, devem ser
mencionados. Uma das características dos Exercícios é o uso da imaginação para a
“visualização” detalhada de lugares e episódios sagrados, exercício este designado como
“composição do lugar”: “É de notar aqui que, se o assunto da contemplação ou da meditação
for uma coisa visível, [...], esta ‘composição’ consistirá em representar, com o auxílio da
imaginação, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar” (Loyola, 1997,
p. 43-44). A exercitação repetida e constante da imaginação visual nos permite especular
sobre a possibilidade de os Exercícios Espirituais atuarem como um mecanismo auxiliar no
desenvolvimento da capacidade de articulação do pensamento não verbal e os seus possíveis
desdobramentos.
Podemos dizer, resumindo, que a formação do jesuíta no século XVII, no Brasil,
iniciava-se por volta dos seus dez anos de idade, no curso de Humanidades, com duração de
cinco anos, onde se aprendia latim e grego, através de clássicos, e a retórica, na teoria de
Aristóteles e na prática de Cícero, preparando-o para a eloqüência. Sua formação prosseguia
com os três anos do curso de Filosofia (Lógica, Matemática, Metafísica e Ética) aristotélica,
quando, tendo no mínimo dezoito anos, poderia então obter a graduação. Se tivesse
demonstrado talento médio em Lógica poderia candidatar-se a dois anos de Teologia Moral,
22
assim como aqueles de maior talento poderiam candidatar-se aos quatro anos de Teologia
Especulativa, baseada em S. Tomás. Assim, a formação clássica, entendida aqui como
constituída pelo aprendizado do latim e grego, com textos clássicos, e da retórica, para a
eloqüência, associada a uma modulação medieval, pela presença quase exclusiva de
Aristóteles e S. Tomás, apresentava como resultado uma formação ao mesmo tempo
humanista e neomedieval, ou seja, barroca.
Traçar o perfil do autor do período colonial é relativamente mais simples do que traçar
um perfil dos leitores, porque nos deparamos com o problema da ausência de informações
precisas desse aspecto. Além disso, não temos sequer informações demográficas confiáveis
sobre os dois primeiros séculos da colonização do Brasil. Laurence Hallewell informa que em
1650 a população de Salvador e Recife era estimada em 8.000 habitantes, a do Rio de Janeiro
e de São Paulo em 1.000 habitantes e a de Lisboa em 126.000 habitantes (Hallewell, 1985, p.
6). Uma parcela dessa população deveria ter capacidade de ler e escrever.
Mesmo não tendo condições de estabelecer o percentual dos habitantes que seriam
capazes de ler, podemos concluir que o quantitativo de leitores no século XVII, na colônia do
Brasil, era muito reduzido. Não existem também documentos que permitam determinar quais
eram os livros que circulavam nesse ambiente rarefeito e quais eram efetivamente lidos. De
qualquer forma, a formação escolar dos leitores da elite era similar a dos escritores, uma vez
que a principal e, em geral, a única escola era a dos jesuítas.
Jorge de Souza Araujo relata que na sua pesquisa encontrou no Arquivo de São Paulo
onze inventários do século XVII, que incluíam bibliotecas e dois inventários, do mesmo tipo e
período, no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. O autor caracteriza o leitor do período
colonial afirmando que
[...] o perfil social do leitor brasileiro colonial é que este era abastado. E do sexo
masculino. Raras são as mulheres que aparecem como inventariadas e, ainda assim, pelo
que parece, seus bens, sobretudo livros, teriam se originado de partilha anterior quando
da morte do marido, ou irmão. Há alguns casos de inventários feitos sob seqüestro, ou
sob a norma jurídica da decretação do estado de demência do inventariado. Fazendeiros,
padres, militares, médicos, bacharéis constituem um modelo mais pertinente dos leitores
coloniais. (Araujo, 1999, p. 241-242)
Na ausência de documentos que permitam identificar quais eram os livros lidos no
período colonial no Brasil, podemos utilizar o “método das citações” para estabelecer o perfil
das leituras desse período. Nesse caso, o “método das citações” tem como pressuposto que o
“livro citado por um autor é livro lido” (Silva, 1999, p. 156). Esse método, que privilegia as
leituras de um autor específico, não inclui as obras que esse autor leu, incorporou ao seu
23
discurso, mas que não citou. Um exemplo deste caso, que analisamos em outro capítulo, é o
livro Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire, publicado em 1675, que utiliza como fonte
as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, de 1668,
mas não cita o autor ou a obra.
No período colonial, as bibliotecas exerciam papel destacado como fonte para
consultas, sendo as maiores e mais diversificadas, as bibliotecas dos colégios jesuítas e a dos
conventos das outras ordens religiosas. As bibliotecas privadas, eram poucas
[...] tendo a propriedade de livros se concentrado nas mãos de um reduzido número de
pessoas e se limitado a uns poucos títulos, preponderantemente de cunho devocional. Os
donos de bibliotecas, em sua maioria, eram membros das elites, que combinavam a
propriedade (de terras, gado e minas) ou o envolvimento no comércio a ofícios que
exigiam uma educação mais esmerada. Assim, clérigos, advogados, médicos e
funcionários públicos dos altos escalões destacaram-se como os principais proprietários
de livrarias. A composição das bibliotecas (número de livros e distribuição desses pelas
áreas do saber) dependeu menos da riqueza dos seus proprietários que das carreiras
profissionais por eles abraçadas: não era o cabedal portentoso que definia o interesse
por livros, e sim os ofícios aos quais as pessoas se dedicavam e o nível educacional por
eles exigido, havendo nas bibliotecas maior número de livros relacionados às profissões
de seus proprietários. (Villalta, 1997, p. 383-384)
Podemos resumir dizendo que os escritores do período colonial tinham como perfil a
formação, em geral, nos colégios jesuítas onde eram preparados para eloqüência com o
aprendizado de latim e grego, através de textos clássicos, e da retórica. As bibliotecas dos
colégios jesuítas forneciam ao estudante e professores, material tanto para estudo como para
pesquisa. Os leitores da elite tinham o mesmo tipo de formação e compartilhavam desse
mesmo universo, ao mesmo tempo clássico e neomedieval, o barroco colonial.
Concluindo esta introdução, apresentamos um breve resumo dos capítulos que se
seguem. No próximo capítulo, o segundo, oferecemos ao leitor informações sobre o p. Simão
de Vasconcellos, a sua obra e a seleção da edição utilizada na tese. No capítulo três
começamos o trabalho de análise do discurso de Simão de Vasconcellos apresentando o
território sobre o qual ele construiu o Paraíso. O capítulo seguinte, o quarto, trata da análise
do delicado problema da seleção daqueles que poderiam viver no Paraíso. No capítulo cinco,
estudamos as premissas de Vasconcellos sobre a bondade da terra do Brasil e, no sexto
capítulo, analisamos a tese do Paraíso. Concluímos a tese no sétimo capítulo, fazendo um
retrospecto da pesquisa e seus resultados.
24
2. Simão de Vasconcellos e o Paraíso na América
Simão de Vasconcellos5 nasceu em Portugal, na cidade do Porto, por volta de 1596, e
ainda adolescente transferiu-se, com seus familiares, para o Brasil. Daquele período até sua
entrada na Companhia de Jesus não existem informações disponíveis. Sobre seus familiares,
Serafim Leite nos informa em uma nota que “Simão de Vasconcelos tinha um irmão, Capitão
Inácio Rebelo de Vasconcelos, e uma sobrinha, filha deste, D. Paula de Vasconcelos, casada
com o Capitão-Mor Manuel Simões Colaço, que em Angola ocupou os primeiros cargos.
Borges da Fonseca, Nobiliarchia Pernambucana, I, 216” (Leite, 2000, v. 7, p. 26).
Serafim Leite afirma que em 1615, aos 19 anos, Simão de Vasconcellos entrou para a
Companhia de Jesus, na Bahia. Seu aprendizado na Companhia seguiu o programa do Ratio
Studiorum, tendo cursado Latim (curso de humanidades), por quatro anos (1615-1618),
Filosofia, por três anos e meio (1619-1622), e Teologia, por três anos (1622-1625). Ainda
segundo o autor, ele estudou com distinção e obteve o título de Mestre em Artes. Simão de
Vasconcellos atuou como docente ministrando cursos de gramática (latim) durante quatro
anos (1625-1629), de Teologia Especulativa e Moral por cinco anos (1629-1634) e por seis
anos e meio (1634-1640) trabalhou como adjunto e mestre de noviços (Leite, 2000, v. 7, p.
26-28).
Em 1641, assumiu o cargo de Secretário da Província e em 27 de fevereiro partiu para
Portugal, como Procurador Geral, na embaixada de fidelidade do Brasil à Restauração, junto
com o p. Antonio Vieira. Ao retornar ao Brasil em 1642, Simão de Vasconcellos deveria
reassumir o cargo de Secretário acompanhando o Provincial, Manuel Fernandes, numa visita
ao sul, o que não ocorreu por influência do Governador Antonio Teles da Silva, com quem
voltou de Portugal e que tinha Vasconcellos como seu confessor.
5
As informações biográficas sobre Simão de Vasconcellos anteriores ao seu ingresso na Companhia de Jesus são
escassas. Os poucos dados obtidos foram, em sua maioria, encontrados na História da Companhia de Jesus no
Brasil, de Serafim Leite (2000).
25
Em 1643 foi alçado ao cargo de Vice-Reitor do Colégio da Bahia, que ocupou por dois
anos. Segundo Serafim Leite, nesse período ele teve acesso a “algumas poesias latinas e
poucas portuguesas” de Anchieta que pretendia “consertar e por em forma” para publicação e
que caberiam num volume pequeno como o do Ratio Studiorum6 (Leite, 2000, v. 7, p. 26-27).
Vasconcellos foi designado Reitor do Colégio do Rio de Janeiro em 1º de outubro de
1643, mas só tomou posse em janeiro de 1646 devido ao empenho do governador-geral
Antonio Teles da Silva, em mantê-lo na Bahia. Permaneceu no cargo de Reitor do Colégio do
Rio de Janeiro até 1649. Conforme Serafim Leite ele fez uma boa administração e teve a
possibilidade de disponibilizar recursos desse Colégio para o pagamento de dívidas dos
Colégios de Pernambuco e da Bahia, que a guerra com os holandeses só fizera aumentar, além
de impedir o pagamento das mesmas. Nessa época em que atuou no Rio de Janeiro, conviveu
com o padre João de Almeida, dando início ao que seria futuramente o seu primeiro livro
publicado, a Vida do padre João de Almeida. Não temos outras informações sobre suas
atividades no período compreendido entre 1649 e 1653, mas acreditamos que permaneceu no
Rio de Janeiro. Sabemos, porém, que em 1653 foi enviado como Visitador ao Colégio de São
Paulo, logo após o retorno dos jesuítas àquela localidade e de onde haviam sido expulsos em
1640. Teve então destacada atuação na pacificação das famílias Garcia (mais tarde Pires), de
partido de Portugal, e Camargo, de predominância castelhana (Holanda, 1993, p.10). Leite
transcreve parte do texto de Antonio Pinto – Sexennium Litterarum ab anno 1651 usque ad
1657, Bahia, 29 de julli anni 1657 –, que relata esses acontecimentos, a atuação de Simão de
Vasconcellos e que pode ser resumido da seguinte forma: apesar do resultado da eleição para
a Câmara de São Paulo, em que os Garcia conseguiram a maioria dos cargos, os Camargo
enviaram um dos seus à Bahia para tentar reverter a situação junto ao Tribunal da Relação,
que acolheu o pedido e exarou sentença favorável aos Camargo. Nesse meio tempo, os Garcia
tomaram conhecimento da sentença e ambos os lados armaram-se para lutar por seus
interesses. Em 9 de fevereiro de 1654, Simão de Vasconcellos conseguiu reunir os líderes das
duas famílias no Colégio de São Paulo, intermediando uma negociação que culminou com a
elaboração de uma escritura pública em que as partes concordavam em suspender a execução
da sentença do Tribunal da Relação, enquanto os Garcia não apresentassem sua defesa junto
ao mesmo, uma vez que não tinham sido ouvidos no decorrer do processo (Leite, 2000, v. 6,
p. 298-300).
6
A tradução do Ratio Studiorum para o português feita pelo p. Leonel Franca ocupa 112 páginas, com
dimensões de 20 por 14 centímetros, do livro: FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de
Janeiro: Agir, 1952.
26
Nesse mesmo ano de 1654, Vasconcellos assumiu o cargo de Vice-Reitor do Colégio
da Bahia, pela segunda vez, época em que apresentou em carta (Leite, 2000, v. 5, p. 107-111)
a proposta da “quadra perfeita” (Araujo, 2000) para a reconstrução do Colégio da Bahia.
Permaneceu no cargo até o ano seguinte quando foi designado e assumiu o cargo de
Provincial7, que exerceu até 1658. Na carta dirigida ao Geral da Companhia, datada de 26 de
novembro de 1655, Simão de Vasconcellos encaminhou as aprovações à Vida do padre João
de Almeida e solicitou a sua publicação (Leite, 2000, v. 9, p. 180), o que ocorreu em 1658, em
Lisboa, na oficina Craesbeekiana.
Após exercer o mandato de Provincial foi eleito, em 1660, Procurador da Província
junto a Companhia em Roma. Vasconcellos partiu então para Lisboa levando consigo os
originais da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, para publicação, e os votos
de alguns padres para que voltasse como Visitador8. No entanto, para o cargo de Visitador da
Província do Brasil, foi designado pelo Geral da Companhia, em 2 de junho de 1662, o p.
Jacinto de Magistris.
No período em que esteve na Europa Simão de Vasconcellos publicou: Continuação
das maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil, por intercessão do mui
religioso e penitente servo seu, o veneravel P. João de Almeida, da Companhia de Jesus.
Lisboa, Oficina de Domingos Carneiro, 1662; Chronica da Companhia de Jesu do Estado do
Brasil: E do que obrarão seus filhos nesta parte do Novo Mundo, Oficina de Henrique Valente
de Oliveira, em 1663; e Sermão que pregou na Bahia em o primeiro de Janeiro de 1659,
Lisboa, Oficina de Henrique Valente de Oliveira, 1663.
Após a volta ao Brasil, em meados de 1663, Simão de Vasconcellos dedicou-se à
elaboração da Vida do venerável padre José de Anchieta, e possivelmente, deu continuidade,
conforme suas próprias palavras, à “História Geral das Chronicas desta província com que me
achava ocupado, e das quais tinha saído a luz com o primeiro tomo” (Leite, 2000, v. 9, p. 183)
e que havia sido interrompida para elaboração da Vida do venerável padre José de Anchieta,
segundo o Prólogo ao Leitor dessa mesma obra.
7
Os cargos na Companhia de Jesus seguiam uma estrutura hierárquica que tinha no topo o Superior Geral, ou
simplesmente Geral, com mandato vitalício. A Companhia era dividida em Províncias que eram agrupadas
segundo critérios geográficos ou lingüísticos em Assistências. No período que vai da criação da Companhia
(1539) até a expulsão dos jesuítas de Portugal (1759) existiam seis Assistências: Itália, Portugal, Espanha,
Alemanha, França e Polônia. A Assistência de Portugal tinha a Província de Portugal, a da Índia, a do Japão, a
Vice-Província da China, a Província do Brasil e a Vice-Província do Maranhão. Cada Província tinha um
superior, o Provincial, que governava as casas e estabelecimentos da Província. Cada casa ou estabelecimento
tinha um superior, que no caso dos Colégios era chamado de Reitor. (Leite, 2000, v. 1, p. 11-13).
8
O cargo de Visitador era um cargo excepcional atribuído a um emissário especial do Superior Geral dos
jesuítas, representando-o numa Província e com poder superior ao do Provincial.
27
Simão de Vasconcellos publicou, em 1668, às expensas do Capitão Francisco Gil de
Araujo, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, em cuja dedicatória
encontramos a seguinte declaração: “E essa vem a ser a razão, porque de novo ofereço a V.
M. o presente livro, depois de lhe dedicar já outro, em que escrevo a vida do venerável padre
José de Anchieta, que breve se dará estampa” (Vasconcellos, 1668). O livro da Vida do
venerável padre José de Anchieta já estava em Lisboa em 13 de janeiro de 1669 quando o
Procurador da Província, p. João Pimenta, enviou carta ao Geral tratando da publicação do
mesmo (Leite, 2000, v. 9, p. 54), que, no entanto só foi publicado em 1672.
Em 1670, Vasconcellos foi designado Reitor do Colégio do Rio de Janeiro, pela
segunda vez, vindo a falecer nessa cidade, no exercício do cargo em 29 de setembro de 1671.
Segundo Serafim Leite, Simão de Vasconcellos “teve considerável influência no Brasil do seu
tempo, dentro e fora da Companhia” (Leite, 2000, v. 9, p. 174).
Anita Novinsky em Cristãos novos na Bahia informa que Simão de Vasconcellos foi
“nomeado Comissário do Sto. Ofício” quando Reitor do Colégio da Companhia de Jesus, sem
informar a data e o Colégio. Sabemos que Simão de Vasconcellos foi Reitor do Colégio do
Rio de Janeiro entre 1646 e 1649, e depois entre 1670 e 1671, entretanto, o parágrafo em que
a autora cita Vasconcellos refere-se ao ano de 1625:
[...] As cousas se passavam de maneira semelhante nas Capitanias do Sul. O Padre Frei
do Espírito Santo, subprior do convento de N. Sra. do Carmo da cidade do Rio de
Janeiro, que serviu de procurador das Capitanias do Sul, num Relatório que envia aos
Inquisidores de Lisboa nos anos de 1625 (21 de abril) revela seu desejo de ser
“familiar” ao mesmo tempo em que denuncia pessoas de S. Paulo, Itanhaém, Cananéia,
Espírito Santo, Porto Seguro. Quer ser familiar em caráter secreto, para servir aos
propósitos do Sto. Ofício, pois “não tinha nenhuma raça de nação”. Pede autorização
para fazer “mesa” do Sto. Ofício no Rio de Janeiro, a fim de punir os suspeitos, a “gente
da nação”. O Padre Simão de Vasconcelos, Reitor do Colégio da Companhia de Jesus,
nomeado Comissário do Sto. Ofício, falando das pessoas do Sul, principalmente de S.
Paulo, a elas se refere como gente “tão pouco temente à Justiça”. (Novinsky, 1992, p.
116-117)
Na página anterior, Novinsky relaciona os comissários e familiares do Santo Ofício
que se destacaram nesse período no Brasil e não inclui entre eles Simão de Vasconcellos
(Novisnky, 1992, p. 115). Serafim Leite, na História da Companhia de Jesus no Brasil,
relaciona alguns membros da ordem que atuaram como Comissários do Santo Ofício, porém,
não incluí entre eles Simão de Vasconcellos. Luis Carlos Villalta esclarece que “segundo
Bruno Feitler, os reitores dos colégios, [eram] designados ‘comissários eleitos’ (provisórios)”
(Villalta, 2002, p. 70). A pouca informação sobre o assunto sinaliza a necessidade de pesquisa
sobre esse possível envolvimento de Simão de Vasconcellos com o Santo Ofício.
28
As principais obras publicadas de Simão de Vasconcellos são a Vida do P. João de
Almeida (1658), a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663) que inclui os
dois livros das Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil e a
primeira publicação do poema De Beata Virgine Dei Matre Maria, de José de Anchieta, as
Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668), e a Vida do Venerável Padre
José de Anchieta (1672) (Leite, 2000, v. 9, p.174-178).
A elaboração da Vida do P. João de Almeida provavelmente teve início entre 1646 e
1649 quando exercia, pela primeira vez, o cargo de Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Ali
residia o p. João de Almeida, considerado um santo pela população da cidade. O padre João
de Almeida, nascido em Londres, da família Made ou Meade, foi enviado a Portugal onde foi
educado por um comerciante de Viana do Castelo e veio, posteriormente, para o Brasil para
comerciar. Ingressou na Companhia de Jesus, em Pernambuco, em 1º de novembro de 1592,
vindo a falecer no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1653 (Leite, 2000, v. 8, p. 8). O livro
sobre a vida do p. João de Almeida já estava pronto em 26 de novembro de 1655, com as
aprovações necessárias para publicação, como podemos constatar na carta de Simão de
Vasconcellos ao Padre Geral Goswin Nickel solicitando a sua publicação (Leite, 2000, v. 9, p.
180), o que veio a ocorrer somente em 1658, em Lisboa.
A Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil relata a história dos
primórdios da Companhia de Jesus no Brasil através da história da vida do Padre Manuel da
Nóbrega, cobrindo o período que tem início em 1549, data da instalação da Companhia no
Brasil, até a morte de Nóbrega, em 1570. Foi escrita entre 1654 e 1660, quando Vasconcellos
assumiu a Vice-Reitoria do Colégio da Bahia (1654) e, depois, o cargo de Provincial (16551658). Esse período pode ser deduzido do próprio texto, conforme informação existente no
parágrafo 106 do livro primeiro da Chronica, em que o autor refere-se à reconquista de
Olinda após “24 anos” de domínio holandês, ou seja, o texto faz referência ao ano de 1654,
ano em que os holandeses capitularam em Pernambuco, e portanto, foi escrito em data
posterior a esse ano. Num outro trecho Vasconcellos informa que “agora quando isto
escrevemos prepara uma grande entrada o General Salvador Correa de Sá e Benevides”
(Vasconcelos, 1977, p. 73), o que pode servir para determinar em que ano o livro foi escrito.
Sobre o local onde o livro foi escrito, o autor não deixa dúvida quando faz referência a cidade
da Bahia (Salvador): “quando isto escrevo, defronte desta cidade da Bahia” (Vasconcelos,
1977, p. 162).
A Vida do Venerável Padre José de Anchieta, publicada após a morte de Simão de
Vasconcellos, descreve brevemente o início da vida de José de Anchieta, sua entrada para a
29
Companhia de Jesus em 1551, a vinda para o Brasil em 1553, e a partir daí, apresenta a obra
de Anchieta no Brasil até a sua morte em 9 de junho de 1597.
Esses três livros de Simão de Vasconcellos registram, com sobreposições, os primeiros
cem anos da Companhia de Jesus no Brasil: a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do
Brasil, refere-se ao período de 1549 a 1570, ao relatar a vida do padre Manuel da Nóbrega; a
Vida do Venerável Padre José de Anchieta, descreve acontecimentos ocorridos no espaço de
tempo que vai de 1551 até 1597; e, finalmente, a Vida do P. João de Almeida, o período entre
1592 e 1653. Dessa forma, Simão de Vasconcellos resgata a História da Companhia de Jesus
no Brasil de 1549 até 1653, através da biografia de três de seus eminentes membros.
Das obras publicadas de Simão de Vasconcellos, a Chronica da Companhia de Jesu
do Estado do Brasil é a que reúne dados de maior interesse para a nossa pesquisa, por isso nos
deteremos mais em apresentar suas características, bem como no conturbado processo de sua
publicação.
A primeira edição da Chronica, de 1663, foi impressa no formato fólio, com 33cm por
23cm, e apresenta folha de rosto, seguida de uma gravura de A. Clouwet da Antuérpia (figura
1), uma dedicatória a d. Afonso VI, epigrama, elogio, protesto do autor, as aprovações para
publicação e a revisão delas, os dois livros das Noticias antecedentes, curiosas e necessarias
das cousas do Brasil, com as páginas numeradas de 1 a 178, seguida do índice dos dois livros
antecedentes nas páginas 185 a 188. As páginas de numeração 179 a 184 inexistem e
correspondem aos parágrafos eliminados pela censura, além disso, no exemplar em excelente
estado de conservação que manuseamos na John Carter Brown Library, da Brown University
(Providence, RI – USA), a folha correspondente às páginas 177-178 encontra-se colada ao
fólio, indicando que foi impressa à parte, substituindo a original. Seguem-se os quatro livros
da Chronica, com numeração de páginas de 1 a 479, os versos do padre José Anchieta em
louvor da Virgem (em latim), páginas 481 a 528, e um índice da Chronica com seis folhas,
sem numeração das páginas (Vasconcellos, 1663).
Após um processo de avaliação, iniciado em abril de 1661, a Chronica da Companhia
de Jesu do Estado do Brasil de Simão de Vasconcellos, obteve, através dos pareceres
favoráveis de três membros da ordem, aprovação do Geral dos jesuítas, do revisor do Santo
Ofício e do Paço, a licença para a sua impressão em novembro de 1662. Esse sistema de
tríplice censura existia em Portugal desde 1517, para o Ordinário – juizo eclesiástico da
diocese ou ordem –, a partir de 1536 para a Inquisição e de 1576 do Desembargo do Paço
(Villalta, 2002, p. 47). Para conseguir a aprovação da Chronica para circulação ainda foram
necessários mais dois anos e quatro meses e mesmo assim, apesar e após todo esse trâmite, a
30
obra sofreu a ação da censura, tendo sido recolhida e retiradas algumas páginas da sua parte
inicial. No livro encontramos reproduzidas as aprovações necessárias para a sua publicação e
circulação, que permitem estabelecer a cronologia dos fatos que envolveram a censura da obra
(ver reprodução no Anexo 4).
Figura 1: Gravura de A. Clouwet (Fonte: LEITE, 2000, v. 2, p. IV)
Nas páginas iniciais da Chronica, que precedem as Noticias antecedentes, curiosas e
necessarias das cousas do Brasil, encontramos as aprovações divididas em quatro subtítulos.
As APROVAÇÕES DA RELIGIÃO reúnem as três aprovações, necessárias para publicação,
de membros da Companhia de Jesus: Antonio de Sá, no Colégio da Bahia em 18/5/1661,
Jacinto de Carvalhaes, na Bahia em 20/5/1661, e João Pereira, na Bahia em 17/4/1661
(Vasconcellos, 1663)9. As aprovações foram enviadas pelo Provincial Baltasar de Sequeira ao
Geral, através de carta com data de 26/5/1661, com a solicitação que se imprimisse a
Chronica “sem ser preciso ir a Roma” (Leite, 2000, v. 9, p. 121). Essa carta e as aprovações
31
foram levadas, possivelmente em mãos, por Simão de Vasconcellos, na sua viagem para
Roma, devido à nomeação como Procurador da Província: “Eleito procurador a Roma (já o
tinha sido em Outubro de 1660), partiu para Lisboa e Cidade Eterna, levando os originais da
Crônica para se imprimir” (Leite, 2000, v. 7, p. 27).
A viagem do Brasil para Roma, com escala obrigatória em Lisboa, permitiu que
Vasconcellos submetesse a Chronica ao Santo Oficio, cuja aprovação em Lisboa em
15/1/1662 pelo Fr. Duarte da Conceição traz a advertência de que falta “a licença do seu
Padre Provincial” (Vasconcellos, 1663). Assim, é possível que Vasconcellos tenha
aproveitado a escala em Lisboa para obter a licença do Santo Oficio antes de embarcar para
Roma, onde obteve a licença do Vigário Geral10 da Companhia de Jesus, João Paulo Oliva,
em 4/7/1662 (Vasconcellos, 1663). A confirmação da presença de Vasconcellos em Roma
nessa ocasião é atestada na carta do padre Antonio de Sá, de Gênova em 21/7/1662, para o
Vigário Geral João Paulo Oliva, informando que “embarcará para Lisboa no dia seguinte com
o P. Simão de Vasconcelos” (Leite, 2000, v. 9, p. 110-111). Vasconcellos encontrava-se em
Lisboa em 7 de setembro de 1662 se considerarmos o local e data do PROTESTO DO
AUTOR impressos na página da Chronica que antecede as APROVAÇÕES.
A segunda licença do Santo Ofício, de 13/10/1662, assinada pelo “Doutor Fr.
Francisco Brandão” e a autorização para impressão e retorno ao Santo Oficio “para se conferir
com o original e se dar licença para correr, e [que] sem ela não correrá” data de 17/10/1662
em Lisboa (Vasconcellos, 1663).
Em seqüência, a licença do Paço, emitida pelo Cronista mor, o mesmo “Doutor Fr.
Francisco Brandão” do Santo Oficio, ocorreu em 3/10/1662 e apresenta a informação do autor
dizendo que já havia sido feita a revisão pelo Santo Oficio. É possível que a data impressa
esteja errada e a correta seja 30/10/1662. A licença para impressão, emitida pela Mesa é de
7/11/1662 e contém a exigência de retornar ao Paço “para se taxar, e [que] sem isso não
correrá” (Vasconcellos, 1663).
A revisão final, com a conferência com o original, realizada pelo Paço, apresenta
como data “último de fevereiro de 1665”, a revisão do Santo Ofício é de 3/3/1665 e a da
taxação é de 9/3/1665. Com base nessas informações podemos deduzir que a obra começou a
9
As páginas da Chronica que precedem as Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas do Brasil
não são numeradas.
10
Em 1661 o Geral da Companhia de Jesus, Goswin Nickel, estava doente e a Congregação Geral, com
autorização do Papa Alexandre VII, criou o cargo de Vigário Geral, com todos os poderes do Geral da
Companhia de Jesus, e elegeu para o cargo João Paulo Oliva que assumiu o cargo em 7/6/1661. Com a morte do
Geral Goswin Nickel em 31/7/1664, João Paulo Oliva assumiu o cargo de Geral da Companhia nessa mesma
data (Bangert, 1985, p. 219).
32
ser distribuída após 9/3/1665, última data impressa nas aprovações. Dessa forma, apesar da
obra apresentar na primeira página a data de publicação de 1663 sua distribuição somente
ocorreu após 9/3/1665.
Serafim Leite informa que “O P. Visitador Jacinto de Magistris e alguns êmulos do
autor [Vasconcellos] informaram desfavoravelmente o P. Geral, que não obstante haver já
dado aprovação, ordenou se riscasse [os parágrafos finais das Noticias]” (Leite, 2000, v. 9, p.
178), apesar das autorizações e licenças já concedidas.
Assim, após a licença para a impressão, em 7/11/1662, e possivelmente, após a
impressão da Chronica houve a interferência que culminou com a proposta do Visitador
Jacinto de Magistris de se eliminar os sete últimos parágrafos das Noticias, como consta da
carta do Visitador para o Geral, com data de 4/4/1663. O resgate e análise das cartas de
Vasconcellos, Magistris e outros, podem esclarecer esta e outras questões11. Com o material
que dispomos, o resumo das cartas elaborado por Serafim Leite, podemos fazer um breve
retrospecto dos acontecimentos relacionados a censura da Chronica.
Jacinto de Magistris ao ser designado Visitador da Província do Brasil em 1662
recebeu instruções do Vigário Geral, João Paulo Oliva, em 2/6/1662 no sentido de negociar a
dívida da Província do Brasil com a Província de Portugal e Japão (Leite, 2000, v. 8, p. 335).
Uma das instruções recebidas por Magistris estava relacionada à pendência judicial
envolvendo o testamento de Mem de Sá e de sua filha Filipa de Sá. O testamento de Mem de
Sá previa que se os seus filhos Francisco de Sá e Filipa de Sá morressem sem descendentes a
sua terça deveria ser repartida em três partes: “uma para a Misericórdia da cidade do Salvador
da Baía; a segunda para o Colégio de Jesus da mesma cidade; e a terceira se entregaria ao
Provincial dos Jesuítas para os Pobres e para se casarem algumas órfãs desamparadas” (Leite,
2000, v. 5, p. 243). Mem de Sá faleceu em 2 de março de 1572 e seu filho, Francisco de Sá,
em 19 de dezembro do mesmo ano ficando sua irmã, Filipa de Sá, como herdeira e recebendo
o Engenho de Sergipe como herança. Um ano depois Filipa casou com D. Fernando de
Noronha, conde de Linhares, e o engenho passou a se chamar Sergipe do Conde. Em 1613,
Filipa de Sá tornou-se fundadora da igreja do Colégio jesuíta de S. Antão, em Lisboa. Alguns
anos depois, pouco antes de sua morte em 2 de setembro de 1618, fez um testamento em que
deixava o engenho de Sergipe do Conde para o Colégio de S. Antão. Esse testamento, em
conflito com o de seu pai, deu início a uma disputa entre o Colégio da Bahia, o de S. Antão e
11
O Arquivo Romano da Sociedade de Jesus (Archivum Romanum Societatis Iesu – ARSI), onde estão
depositadas a maioria das cartas, foi fechado para mudança de local de funcionamento, em janeiro de 2003, com
33
a Misericórdia de Salvador pelo controle do engenho Sergipe do Conde, o que só foi resolvido
em 1669 (Leite, 2000, v. 5, p. 243-251).
As relações de Simão de Vasconcellos e de Jacinto de Magistris não deviam ser muito
amistosas e o episódio da censura à Chronica pode fazer parte de um conflito de maior
dimensão. Vários indícios apontam nessa direção. O primeiro deles encontra-se na carta do p.
Antonio de Sá, de Gênova em 8/7/1662, quando acompanhava o Procurador da Província do
Brasil em Roma, Simão de Vasconcellos. Nessa carta Antonio de Sá informa ao Geral que
está em Gênova a caminho de Lisboa, onde também se encontrava o Visitador Magistris, e
“teme que este lhe retarde a viagem; pede para embarcar, sem que o Visitador lho possa
impedir” (Leite, 2000, v. 9, p. 110). Nesse resumo da carta, elaborado por Serafim Leite, não
temos o motivo para a retenção. O segundo indício do problema é uma carta de Jacinto de
Magistris, com a mesma data da carta de Antonio de Sá, enviada de Gênova ao Geral pelo
Visitador sobre a viagem de Simão de Vasconcellos (Leite, 2000, v. 8, p. 336). A sincronia no
envio das cartas sugere que os missivistas tinham pontos de vista divergentes sobre a viagem
e que recorreram à instância superior no sentido de resolver o impasse.
O terceiro indício é uma troca de correspondência, em Lisboa, entre Simão de
Vasconcellos e Jacinto de Magistris. Nesse episódio o primeiro enviou carta ao segundo, em
11/11/1662 (Leite, 2000, v. 9, p. 181), que foi respondida no dia seguinte por Magistris na
qual trata “assuntos do Brasil e de jurisdição entre ambos, e assume a direção superior que lhe
compete como Visitador Geral da Província do Brasil” (Leite, 2000, v. 8, p. 336). Nesse caso,
mesmo sem o acesso ao conteúdo integral das cartas, percebe-se a existência de um conflito
entre ambos, resolvido com base na hierarquia, isto é, o Visitador exerceu sua autoridade
como representante do Superior Geral dos jesuítas.
Magistris enviou, em 19/11/1662, uma carta ao Geral onde tratava dos padres Simão
de Vasconcellos, Antonio Vieira, Antonio de Sá e outros (Leite, 2000, v. 8, p.336). Dois
meses depois, em 18/1/1663, ordenou que a Província do Brasil pagasse o que devia à
Província de Portugal e a do Japão (Leite, 2000, v. 7, p. 35). Após alguns dias, em 3/2/1663,
reunido com delegados do Brasil e Portugal para tratar dos problemas que envolviam o
Engenho de Sergipe do Conde – herança de Mem de Sá e de sua filha, Condessa de Linhares,
deixada para o Colégio da Bahia, no Brasil, e o Colégio de S. Antão, em Portugal –, Magistris
propôs que “o Colégio de S. Antão devia compensar o da Bahia” e que “a compensação
combinada se descontasse no que a Província do Brasil devia à do Japão, o que não foi aceito.
previsão de reabertura no fim daquele ano. Quase um ano após o prazo de reabertura o Arquivo permanece
fechado e, dessa forma, ficamos impossibilitados de resgatar e analisar as cartas.
34
O Brasil pagaria a sua dívida ao Japão quando pudesse, mas o Colégio de S. Antão devia
pagar logo a sua” (Leite, 2000, v. 7, p. 41).
No mesmo mês de fevereiro de 1663, no dia 14, Magistris visitou a Procuradoria da
Província do Brasil em Lisboa e deixou o documento “Ordens que o P. Jacinto de Magistris,
Visitador do Brasil, deixou nesta Procuratura de Lisboa” (Leite, 2000, v. 8, p. 337). Dessas
ordens Serafim Leite reproduz uma: “não se despache na Alfândega mercadoria de secular,
que vier do Brasil, nem se despache para o Brasil coisas que não sejam para os Nossos”
(Leite, 2000, v.7, p. 35, nota 6). Informa ainda que o Visitador cumpria ordem do Geral:
Proíba totalmente aos Reitores e Provinciais do Brasil que o açúcar, madeira, tabaco e
outras mercadorias semelhantes, que para comprar o que é necessário ao Colégio se
costumam remeter do Brasil a Portugal, se envie a mais ninguém senão ao Procurador
Geral da Província, que reside em Lisboa; e a este se impunha com seriedade e
sinceridade que não trate nem se ocupe de negócios dos de fora, ainda que sejam
ilustres, nem se encarregue de vender em Lisboa suas mercadorias. (Leite, 2000, v.7, p.
35, nota 6)
Outro indício dos problemas entre o Visitador e Vasconcellos são as duas cartas
enviadas por Magistris ao Geral, em 29/3/1663, com manifestações contra padres da
Província do Brasil que estavam em Portugal: Antonio Vieira, Simão de Vasconcellos, João
Pimenta, João Leitão e Manuel Luiz. Poucos dias depois, em 3 de abril, outra carta para o
Geral informava sobre a demora dos padres do Brasil em retornar à Província e que esses
padres “tratam de receber da Europa o que há de melhor, ‘exceptis missionaris’” (Leite, 2000,
v. 8, p. 337). No dia seguinte, o Visitador remete carta ao Geral tratando da Chronica, de
Simão de Vasconcellos, dizendo “o que fez sobre esta matéria por comissão do Geral” e
sugere que as páginas da conclusão, “no fim das preliminares”, podem ser facilmente retiradas
e substituídas (Leite, 2000, v. 8, p. 337-338). De forma quase simultânea e em paralelo,
Simão de Vasconcellos submete ao Geral, em 9/4/1663, através de carta, os pareceres dos
doutores de Coimbra, Évora e Lisboa:
[...] todos unânimes em declarar que não havia nada definido em matéria de fé sobre o lugar
do Paraíso Terrestre, e que Vasconcelos não afirmava, mas apenas lembrava a
probabilidade de o Paraíso ser na América, isto é, no Brasil, probabilidade que deixava ao
critério do leitor. Assinavam os Doutores: António Pinheiro, João Gomes, Miguel Tinoco,
Jorge da Costa, Inácio Mascarenhas, João de Sousa, Mateus de Figueiredo, Manuel Pereira,
André de Moura, José de Seixas e Luiz Nogueira. (Leite, 2000, v. 9, p. 178)
Jacinto de Magistris embarcou para o Brasil em 19 de abril de 1663 com alguns
membros da Companhia e em outra nau, embarcaram Simão de Vasconcellos com outros
35
companheiros da Companhia e o Vice-Rei Conde de Óbidos, que fez de Vasconcellos seu
confessor. Chegaram a Bahia em 13 de junho de 1663 (Leite, 2000, v. 7, p. 36).
Cerca de um mês após a chegada, em 10 de julho, o Visitador Magistris comunica ao
Geral que lhe desagrada a “educação que se dá aos noviços e os modos de proceder do
Provincial José da Costa e de Simão de Vasconcelos; recorda o que está estipulado sobre a
admissão à Companhia dos nascidos no Brasil” (Leite, 2000, v. 7, p. 36-37). As normas da
Companhia de Jesus então em vigor, estabeleciam que cada Provincial poderia admitir na
Ordem, durante o triênio de seu mandato, até 12 noviços nascidos na Província. Verificou-se
que no triênio de Simão de Vasconcellos (1655-1658) foram admitidos 26 noviços nascidos
no Brasil e no de Baltasar de Sequeira (1658-1662) foram admitidos 18 noviços (Leite, 2000,
v. 7, p. 37). A notícia sobre a restrição ao ingresso na Companhia de Jesus de pessoas
nascidas no Brasil foi rapidamente disseminada entre a população da Bahia (Salvador)
provocando indignação. Tomando conhecimento do fato, o Visitador reuniu em 14 de agosto
os padres nascidos no Brasil responsabilizando-os pela divulgação na cidade de assuntos
internos da Companhia e advertindo-os de que a regra 38 proibia isso. No dia seguinte fez o
mesmo com os irmãos coadjutores nascidos no Brasil.
O Provincial do Brasil naquele período era o padre José da Costa que estava em visita
às províncias do sul. Quando retornou, em 20 de setembro de 1663, tomou conhecimento das
ocorrências e resolveu abrir um processo de deposição do Visitador com o apoio de outros
padres. Pelas regras da Companhia o processo de deposição deveria contar com a convocação
de seis padres consultores12 e professos13 mais antigos da Província presentes e a deposição só
ocorreria mediante cinco votos. José da Costa afastou três padres mais antigos – Belchior
Pires, Sebastião Vaz e Luiz Nogueira – como suspeitos à Província do Brasil e convocou os
padres Jacinto de Carvalhais, Simão de Vasconcellos, Manuel da Costa, João Luiz, Agostinho
Luiz e Barnabé Soares para tratar da deposição do Visitador. No dia 22 de setembro de 1663 o
Provincial tornou público, no Colégio e na cidade, que o visitador “cessara no seu ofício ‘por
justas causas’” (Leite, 2000, v. 7, p. 37-39). O padre Domingos Barbosa foi o notário dos
12
Os consultores são padres professos que formam um grupo de até quatro membros, de caráter consultivo, que
assessoram o Provincial ou o Superior de uma Casa (Leite, 2000, v. 1, p. 13).
13
Os religiosos da Companhia de Jesus podiam pertencer a quatro categorias: coadjutor temporal formado,
coadjutor espiritual formado, professo de três votos e professo de quatro votos. Os três últimos eram padres. No
fim do noviciado os irmãos faziam os três votos da religião (pobreza, castidade e obediência) que eram simples
porém perpétuos. Eram chamados de primeiros votos e ligavam o candidato de forma perpétua à Companhia de
Jesus sem que esta tivesse obrigação de incorporá-lo. Após um período, em geral de dez anos faziam-se os
últimos votos, de coadjutor ou solenes. Alguns padres professos podiam ser chamados para a profissão solene do
quarto voto, o de obediência ao papa, o que ocorria, em geral, após sete anos dos últimos votos (Leite, 2000, v. 2,
p. 393-394).
36
processos, organizados pelo Provincial, contra o Visitador, contra os padres Belchior Pires,
Sebastião Vaz e Manuel Carneiro, bem como do processo a favor de Simão de Vasconcellos.
Simão de Vasconcellos em carta ao Provincial José da Costa, em 6/10/1663, defendese relacionando as obras que realizou e anexa várias cartas. Com a mesma data existe nos
arquivos da Companhia de Jesus em Roma uma declaração de Vasconcellos comentada por
Serafim Leite nos seguintes termos:
Em como o Visitador Jacinto de Magistris assentara consigo não responder à ordem do
P. Geral sobre esta questão [censura da Chronica], sem irem primeiro os pareceres dos
Doutores; e depois respondeu; e, ignorando que o Padre Vasconcelos o soubesse, negou
com juramento que tivesse escrito; Vasconcelos aduz os testemunhos jurados do P. João
Leitão e Ir. Manuel Luiz, que viram a resposta autógrafa de Visitador. (É a carta do P.
de Magistris, de Lisboa 4 de Abril de 1663, Gesù, 703). (Leite, 2000, v. 9, p. 182)
Este resumo esclarece o aspecto que apontamos anteriormente sobre o envio, por
Vasconcellos, dos pareceres dos Doutores sobre a Chronica, em 9/4/1663, ou seja, apenas
cinco dias após a carta do Visitador Magistris ao Geral sobre a censura à Chronica.
O Visitador Magistris submeteu ao Geral documento mostrando a nulidade do
processo de deposição que também foi assinado pelos padres Belchior Pires, Sebastião Vaz e
João de Paiva. Magistris retornou a Lisboa ainda em 1663.
O Geral dos jesuítas, em carta de 4/10/1664, decidiu que a deposição do Visitador foi
indevida, sem validade, e privou os sete padres que o depuseram de voz ativa e passiva, para
os cargos de Superior, Consultor e Congregação Provincial (Leite, 2000, v. 7, p. 39). Jacinto
de Magistris, no entanto, apesar de manter-se com o título de Visitador da Província do Brasil,
retornou às Índias, em 1665, aonde veio a falecer em 1668 (Leite, 2000, v. 7, p. 40). As penas
de privação de voz imposta aos padres que participaram da deposição foram suspensas em
1667, e posteriormente, Simão de Vasconcellos e Jacinto de Carvalhais foram designados
Reitores e José da Costa nomeado Provincial pela segunda vez (Leite, 2000, v. 7, p. 58-59).
A deposição do Visitador Jacinto de Magistris foi considerada por Serafim Leite como
“o mais grave episódio da vida interna da Companhia, no período que estudamos, desde a
chegada em 1549 até a sua saída em 1760” (Leite, 2000, v. 7, p. 43) e que, possivelmente, foi
a única ocorrida naquela época em toda a Companhia.
O conteúdo suprimido da Chronica pela censura, os sete últimos parágrafos das
Noticias, será analisado em outro capítulo, porém é evidente que o ato de censura
propriamente dito foi uma demonstração de autoridade e de poder do Visitador Jacinto de
37
Magistris perante os jesuítas portugueses. Sua decisão fez com que o Superior Geral voltasse
atrás na autorização assinada para publicação da Chronica e aceitasse a censura do Visitador.
A Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, publicada em 1663, ainda
pode ser encontrada em livrarias especializadas em livros raros e antigos como, por exemplo,
a RICHARD C. RAMER14, em Nova York (USA), que tem um exemplar anunciado pelo
preço de US$ 15000.
Houve uma segunda edição da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil
quase simultânea em Lisboa e no Rio de Janeiro, no século XIX. A edição do Rio de Janeiro,
em dois volumes, apresenta duas datas 1864 e 1867, e foi impressa às expensas de Francisco
Antonio Martins, bibliotecário da Biblioteca Fluminense. A publicação brasileira inclui
introdução e notas do cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (Moraes, 1983, v. 2, p.
890), e segundo Serafim Leite, é uma “edição defeituosa e incompleta” (Leite, 2000, v. 9. p.
176). A edição de Lisboa, organizada por Innocencio Francisco da Silva, também em dois
volumes, foi publicada em 1865. Ao seu conteúdo original foi acrescentada a reprodução de
algumas cartas do padre Manuel da Nóbrega. Innocencio inclui uma advertência preliminar
onde informa que o motivo da publicação se deve a “extrema raridade a que têm chegado
entre nós os exemplares da Chronica”, além de ser “uma das mais notáveis e estimadas no seu
gênero” (Vasconcellos, 1865). Sobre a Chronica de 1663, Innocencio ainda afirma que a obra
possui uma impressão “magnífica e para aquele tempo luxuosa edição no formato de folio
grande” (Vasconcellos, 1865), com trinta e três por vinte e três centímetros. Podemos
acrescentar ao comentário de Innocencio, a qualidade e beleza da diagramação da obra.
A terceira edição da Crônica da Companhia de Jesus (Vasconcelos, 1977), foi
organizada a partir da segunda edição de 1864, editada pelo cônego Joaquim C. F. Pinheiro, e
publicada em dois volumes, em 1977. Essa edição não inclui o poema à Virgem do padre José
de Anchieta, e apresenta muitos erros alguns dos quais relacionamos em trabalho recente
(Araujo, 2003).
Apesar da censura, as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil teve uma
publicação, independente da Chronica, no ano de 1668. Sob o título aos que lerem dessa
edição, o autor informava que o Capitão Francisco Gil de Araujo, a sua custa, mandou que “se
estampasse em tomo distincto da Chronica, pera com maior facilidade se dar a conhecer a
todos esta parte da America, deuendo por este modo ao zeloso intento deste Senhor os
Leitores o passatẽpo, o Brasil a fama” (Vasconcellos, 1668).
14
RICHARD C. RAMER, Old & Rare Books, 225 East 70th Street, New York, N.Y. 10021. Informações
disponíveis em: http://www.livroraro.com/, acessado em: 29/07/2002.
38
Da mesma forma que a Chronica de 1663, as Noticias curiosas, e necessarias das
cousas do Brasil, de 1668, apresentam uma excelente diagramação como podemos comprovar
(figura 2). O livro foi impresso in-quarto, com vinte por quinze centímetros.
Figura 2: Noticias de 1668.
Uma segunda edição das Noticias, com o título Noticias curiosas, e necessarias sobre
o Brazil, foi impressa em 1824, pela Imprensa Nacional, sendo extremamente rara e mais
difícil de encontrar do que a edição de 1668, segundo Rubens Borba de Moraes (Moraes,
1983, v. 2, p. 890). Ainda conforme Moraes, ela apresenta dimensões de vinte por quatorze
centímetros e cento e oitenta e três páginas.
Como parte das comemorações dos quinhentos anos dos descobrimentos portugueses,
a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP)
editou em 2001 as Notícias curiosas e necessárias do Brasil (Vasconcelos, 2001), de Simão
de Vasconcellos, com organização de Luis A. de Oliveira Ramos. Nessa edição o organizador
incluiu em anexo os sete parágrafos censurados, com a informação de que foram elaborados a
partir de microfilme obtido na Biblioteca Vittorio Emanuele, em Roma (Vasconcelos, 2001,
p. 165). O texto das Notícias, segundo o organizador, foi fixado “a partir de cópia manuscrita,
existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e da cópia impressa por João da Costa, em
39
1668, comparadas com a versão do P. Serafim Leite, SJ, editada em 1977” (Vasconcelos,
2001, p. 165). A informação de que Serafim Leite editou a Crônica de 1977 é incorreta uma
vez que ele apenas escreveu a introdução, onde lemos: “A Crônica reimprimiu-se no Rio em
1864 e em Lisboa em 1865, sem conhecimento uma da outra. A primeira é defeituosa e
incompleta” (Vasconcelos, 1977, p. 14). No prefácio dessa edição de 1977 recolhemos o
seguinte: “Esta edição, no entanto, foi organizada sobre o texto de outra bem mais antiga, de
1864” (Vasconcelos, 1977, p. 9), assim, a edição da Crônica da Companhia de Jesus, de
1977, é uma reedição daquela edição, repetindo as palavras de Serafim Leite, “defeituosa e
incompleta” de 1864.
Outro problema relacionado as fontes da edição de 2001 das Notícias, refere-se ao
manuscrito15 existente na Biblioteca Nacional sobre o qual já tratamos anteriormente (Araujo,
2003). Esse manuscrito, provavelmente do século XVII, teve como fonte as Noticias,
copiadas da edição original da Chronica de 1663 ou das Noticias de 1668. A demonstração
dessa afirmação é simples e baseia-se na duplicação da numeração do parágrafo 14 do livro II,
no verso da folha 53 e na folha 54 do manuscrito16. Essa duplicação prova que o copista não
percebeu que o parágrafo 12, na edição original da Chronica de 1663 e das Noticias de 1668,
está duplicado e que ele atribuiu na cópia ao segundo parágrafo de número 12 o número 13.
Assim, para corrigir o seu erro duplicou o parágrafo de número 14 para, a partir desse ponto,
manter a correspondência da numeração. Dessa forma, o manuscrito é uma obra posterior a
impressão da Chronica, em 1663, e das Noticias, em 1668, e pode apresentar outras falhas ou
erros do copista. Assim, constatamos que duas das três fontes utilizadas no estabelecimento
do texto da edição de 2001 das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil não são
confiáveis.
Dentre as diversas edições das Noticias devemos selecionar uma delas como
referência para este trabalho. Nesse sentido, a edição da Crônica de 1864 e a sua versão mais
recente de 1977, bem como a edição das Notícias de 2001, apresentam diversos erros sendo o
mais freqüente a substituição de letras maiúsculas por minúsculas como pode ser constatado
na comparação a seguir. Devido a duplicação do parágrafo 12, do livro II das Noticias na
edição original da Chronica de 1663 e das Noticias de 1668, os parágrafos posteriores desse
livro apresentam numeração defasada de uma unidade em relação as edições mais recentes.
15
Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, localização: 19, 1, 18.
A organização das folhas do manuscrito está incorreta devido a erro na encadernação, possivelmente, ocorrido
durante o processo de restauração. Assim, a numeração das folhas, feita posteriormente, não segue a ordem
correta das páginas do texto.
16
40
Dessa forma, o parágrafo 103, do livro II, nas publicações originais corresponde ao parágrafo
104 das edições mais recentes.
Livro II das Noticias – edição de 1668
103. Por conclusaõ deste liuro, & descripção do
Brasil, em que temos escrito as qualidades da terra, o
temperamento do clima, a frescura dos aruoredos, a
variedade de plantas, e abundancia de frutos, as
heruas medicinaes, a diuersidade de viuentes, assi
nas agoas, como na terra, & aues tão
peregrinas, & mais prodigios da natureza, com
que o Autor della enriqueceo este Nouo mundo:
poderiamos fazer comparação, ou semelhança,
de algũa parte sua; com aquelle Paraíso da
terra, em que Deos Nosso Senhor, como em
jardim, poz a nosso primeiro pay Adam,
conforme a outros diligentes Autores, Horta,
Argençola, Ludouico, Romano, & o nosso
Padre Eusebio Nieremberg nas suas Questões
naturaes, liu. 1. cap. 35. (Vasconcellos, 1668, p.
289-290)
Livro II das Notícias – edição de 2001
104. Por conclusão deste livro, e descrição do
Brasil, em que temos escrito as qualidades da terra,
o temperamento do clima, a frescura dos arvoredos,
a variedade de plantas, e abundância de frutos, as
ervas medicinais, a diversidade de viventes, assim
nas águas, como na terra, e aves tão peregrinas, e
mais prodígios da natureza, com que o autor dela
enriqueceu este Novo Mundo: poderíamos fazer
comparação, ou semelhança, de alguma parte sua,
com aquele paraíso da terra, em que Deus Nosso
Senhor, como em jardim, pôs a nosso primeiro pai
Adão, conforme a outros diligentes autores, Horta,
Argençola, Ludovico Romano, e o nosso padre
Eusébio Nieremberg nas suas Questões Naturais,
liv. 1, cap. 35. (Vasconcelos, 2001, p. 158)
Nesse parágrafo da terceira edição das Notícias (2001), o Autor da natureza é escrito
com letra minúscula, da mesma forma que Paraíso, por um jesuíta e numa página que, como
vimos, foi originalmente censurada e reimpressa.
As diferenças dessas edições, da Crônica de 1977 e das Notícias de 2001, em relação
ao discurso original de Simão de Vasconcellos podem levar o leitor a interpretações
equivocadas. Sem intenção de fazer uma relação exaustiva das diferenças entre essas edições,
apresentamos a seguir algumas das alterações que encontramos no livro I das Noticias,
publicado na Crônica de 1977:
Parágrafo
Edição de 1977
9
40
43
52
53
60
63
63
71
103
primeiro tropel
30 léguas
nação Potiguar, que como os tapuias
ao longe dele
Desta serra corrente
é uma baía espaçosa de 18 léguas
parece contada de algum grande rei
navios de qualquer parte
Estas eternas aparências
como se vê nos pés
Edição de 1668
primeiro tropheo
20 legoas
nação Potigoàr, que com os Tapuyas
ao longo delle
Desta serra correndo
he uma bahia espaçosa de oito legoas
parece coutada de algum grande Rey
nauios de qualquer porte
Estas externas apparencias
como se vè no pez [piche]
No nosso enfoque teórico, seguindo a concepção de Mikhail Bakhtin (1999),
entendemos o livro como um “ato de fala impresso”, como parte de uma interação verbal
entre o autor e seus leitores ou ouvintes. Nesse enfoque, o discurso do autor é uma enunciação
41
dirigida a um interlocutor ou, na sua ausência, ao representante médio do grupo social a que
se destina o discurso (Bakhtin, 1999, p. 112-113). Assim, o discurso é uma enunciação,
perfeitamente delimitada no espaço e no tempo, e elaborada segundo valores que constituem a
ideologia da sua produção. O leitor, destinatário da enunciação, resgata a significação usando
seus conhecimentos e experiências, estabelecendo uma compreensão ativa (Bakhtin, 1999, p.
131-132). Essa interação pode ser resumida da seguinte forma:
[...] autor e leitor estão continuamente trabalhando, consumindo e produzindo
incessantemente. Se, do lado do autor, o trabalho físico e pessoal cessa com a conclusão
do texto, o trabalho cristalizado nas contradições entre significação e expressão, seleção
e combinação, conservação e renovação será recomeçado a cada novo ato de leitura. O
leitor, de sua parte, renovará, com seu trabalho produtivo, o trabalho de produção de
significações do autor. Ele também procederá por seleção e combinação, ao decidir ente
significações divergentes que se fazem possíveis; poderá acatar a força da tradição das
significações naturais ou inovar, dando passagem a novas experiências ainda não
verbalizadas. Sua leitura igualmente obedecerá a matrizes de valores, que, a cada leitura
serão postas em xeque, alargadas ou modificadas, negadas ou reafirmadas, pela força de
sentido do texto lido e introjetado. (Ribeiro, 1996, p. 43)
Dessa forma, as diferenças existentes nas edições da Crônica de 1864 e 1977, bem
como das Notícias de 2001, com relação à edição de 1663 e com relação à edição das Noticias
de 1668, nos obrigam a descartar as edições de 1864, 1977 e 2001 como referência, uma vez
que nelas houve alteração do discurso originalmente produzido pelo autor e impedem a
observância daquela opção teórica no nosso trabalho.
Segundo essa abordagem, a escolha da obra de referência ficaria restrita à edição de
1663 da Chronica ou a edição das Noticias de 1668. Podemos considerar essa última como
sendo uma segunda edição, uma vez que as Noticias já haviam sido publicadas em 1663 como
introdução à Chronica. Sua importância para nossa pesquisa está relacionada ao fato de ter
sido impressa quando o autor ainda estava vivo e apresentar pequenas correções em relação
ao original como, por exemplo, no parágrafo 26 do livro 1 onde na edição de 1663 temos “o
terço he hum grao” e na de 1668 “o terço, & hum grao”, ou como no parágrafo 103 do mesmo
livro quando o autor, na edição de 1663, faz referência a “fulos”, como uma tonalidade de
cor, e que na edição de 1668 é corrigida para “fulvos”. As correções e alterações não
poderiam ser maiores por dois motivos, o primeiro deve-se aos problemas que levaram a
censura do texto quando da publicação da Chronica em 1663, e o segundo relacionado à
autorização para a publicação que foi dada pelo Provincial jesuíta “por ser obra jà aprouada,
& ao Prelo mandada” (Vasconcellos, 1668), ou seja, a autorização foi dada para que fosse
reimpressa. Por esse motivo nossa escolha como obra de referência recaiu na edição de 1668
das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil.
42
Devido à dificuldade, ou mesmo impossibilidade, em se obter no Brasil exemplar, para
consulta, da edição das Noticias de 1668, elaboramos uma edição diplomática do livro que se
encontra em anexo, no formato digital. Essa edição foi produzida a partir de microfilme do
exemplar existente na John Carter Brown Library, da Brown University (Providence, RI –
USA).
A edição diplomática das Noticias permitiu que encontrássemos algumas palavras que
pesquisadas no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0, apresentam datação
posterior à das Noticias (1668) ou da Chronica (1663). Uma pesquisa de lexicologia
utilizando as Noticias poderá ser útil na datação de verbetes. Alguns exemplos são:
Livro/Parágrafo
1/117
1/124
1/125
1/132
1/136
2/80
2/85
Palavra
arrancha
covo
esbrugado
fevara
queixaes
ovados
verdeal
Datação (Houaiss)
arranchar - 1665
1712
1708
não encontrada17
queixal -1720
ovado - 1720
1721
Complementando o texto das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na
sua edição de 1668, devemos acrescentar os sete parágrafos que foram censurados e que
encontram-se catalogados na Biblioteca Vittorio Emanuele, em Roma, sob o título “Paraíso na
América”. Esses parágrafos chegaram aos nossos dias, graças ao p. Luís Nogueira que os
incorporou ao seu parecer, elaborado em 17 de abril de 1663. Esses parágrafos foram
publicados por Sérgio Buarque de Holanda, a partir da terceira edição de Visão do Paraíso,
como anexo, e encontram-se reproduzidos no Anexo 1. Encontram-se igualmente
reproduzidos no Anexo 1 os sete parágrafos censurados, publicados por Luis A. de Oliveira
Ramos na edição das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil de 2001, cujo texto
apresenta algumas diferenças em relação aos parágrafos publicados por Sergio Buarque de
Holanda.
As Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na edição de 1668, acrescida
dos sete parágrafos censurados, constituem o discurso que passaremos a analisar nos
próximos capítulos.
17
Encontramos o verbete fêvera, com o significado de fibra ou filamento vegetal, no dicionário de Candido de
Figueiredo (1925).
43
3. A construção do território do Brasil
O texto de as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, conforme já
mencionado, foi publicado pela primeira vez em 1663 como introdução à Chronica da
Companhia de Jesu do Estado do Brasil, no formato fólio, grande, com 33 cm por 23 cm e
cerca de 6 cm de espessura, enquanto o livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do
Brasil, publicado em 1668, apresenta formato pequeno, com 20 cm por 15 cm. Esses formatos
físicos dos livros podem ser associados aos dois tipos de leitura documentados na famosa
carta, escrita em dezembro de 1513 por Maquiavel para o seu amigo Francesco Vettori,
parcialmente reproduzida por Anthony Grafton (1999, p. 5), na qual o missivista faz
referência aos livros no formato fólio, grandes e volumosos, próprios para leitura em gabinete
ou biblioteca, e os livros pequenos que podem ser facilmente transportados e lidos em
qualquer lugar. O formato do livro das Noticias é destacado por Simão de Vasconcellos que
informa “aos que lerem” que “quiz o Senhor Capitam Francisco Gil de Araujo, se estampasse
em tomo distincto da Chronica, pera com maior facilidade se dar a conhecer a todos esta parte
da America, deuendo por este modo ao zeloso intento deste Senhor os Leitores o passatẽpo, o
Brasil a fama” (Vasconcellos, 1668)18. O autor pretendia com essa publicação atingir um
público maior do que aquele que freqüentava os gabinetes de leitura e bibliotecas. Essa
posição de Vasconcellos é explicitada na décima dedicada:
AO PROTECTOR DESTE LIVRO
que pera fazer ao Brasil mais conhecido,
o mandou imprimir em Tomo
mais pequeno.
D E C I MA .
DIminuir, & mais crecer
O mesmo sogeito implica,
Que quem diminue fica
Muito à quem de maior ser:
Mas isto vem a vencer
18
As páginas pré-textuais de Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de 1668, não são numeradas.
44
O Brasil fauorecido
De vòs, pois quando sobido
O quereis ao mor louuor,
Fazeis que em Tomo menor
Cresça em ser mais conhecido. (Vasconcellos, 1668)
A diminuição das dimensões do livro estava, portanto, claramente vinculada ao
objetivo de Vasconcellos disseminar amplamente seu discurso sobre o Novo Mundo,
propagando suas teses sobre a terra e seus habitantes. Diminuir as dimensões do livro de
modo que o Brasil “cresça em ser mais conhecido”.
A divulgação do Brasil, nos séculos XVI e XVII, pode ser entendida como parte do
processo de formação territorial que tem “uma faceta de estrita elaboração ideológica,
resultando em constructos discursivos que comandam tanto a consciência dos lugares quanto
a sua produção material” (Moraes, 2000, p. 22). Nesse sentido, o território “é um produto
socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo humano com o espaço
que o abriga” (Moraes, 2000, p. 18). Assim, o processo de construção da imagem da terra do
Brasil pode ser associada ao processo de formação do território do Brasil.
Na época da publicação das Noticias, o Novo Mundo já não era tão novo, contando
com mais de 160 anos da descoberta. Durante esse intervalo de tempo houve uma profusão
de relatos sobre a terra descoberta, oriundos das mais diversas fontes e circunstâncias, que
constituíram-se nas bases de construção do Novo Mundo no imaginário europeu. Essa
construção imaginária se fez de forma múltipla e diferenciada segundo o conteúdo e qualidade
tanto do relato, como da capacidade, capital simbólico e imaginação do autor e do leitor ou
ouvinte. A maioria desses discursos, transmitidos principalmente pela via oral, acabaram se
perdendo, restando apenas aqueles poucos relatos escritos que fornecem hoje uma amostra
frugal do volume dos discursos que circularam naquela época. Entendemos essa construção da
imagem do Brasil como um processo que pretendemos resgatar a partir de alguns relatos
desde a descoberta do Novo Mundo até as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do
Brasil, de Simão de Vasconcellos.
A descoberta da América em 1492 por Cristóvão Colombo, estimulou a associação
entre a nova terra e o Paraíso terreal perdido que circulava no imaginário europeu do século
XV. A busca pelo paraíso perdido chegou a transformar-se numa obsessão para Colombo em
sua terceira viagem ao novo continente. Ele havia lido19 no Imago mundi, de Pierre d’Ailly
19
Na realidade Colombo não apenas leu mas fez várias anotações nas margens do seu exemplar, que foram
publicadas por Edmond Buron [BURON, Edmond. Ymago Mundi de Pierre D’Ailly, Cardinal de Cambrai et
Chancelier de l’Université de Paris (1350-1420). Texte latin et tradution française des quatre traités
45
(1350-1420)20, que o “Paraíso terrestre devia estar localizado numa região temperada além do
equador” (Todorov, 1999, p. 19). Colombo concluiu o relato da sua terceira viagem ao Novo
Mundo da seguinte forma: “[...] eu afirmo que esse rio [Orinoco] emana do Paraíso terrestre e
de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem
forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso terrestre [...]” (Colombo, 2001, p. 191).
Américo Vespúcio, usando uma forma mais sutil e elaborada do que Colombo ao
escrever, sugere a possibilidade de que, estando no Novo Mundo, “pensavamo essere nel
Paradiso terrestre”21 (Pozzi, 1993, p. 59) e “infra me pensavo esser presso al Paradiso
terrestre”22 (Pozzi, 1993, p. 86) ou “se nel mondo è alcun paradiso terrestre, senza dubbio dee
esser non molto lontano da questi luoghi”23 (Pozzi, 1993, p. 121).
Comparando os textos de Colombo com os de Vespúcio, Tzvetan Todorov concluiu
que o primeiro escrevia documentos enquanto que o segundo literatura (Todorov, 1991, p.
259). Podemos acrescentar a essa conclusão de Todorv a forma pela qual Colombo e
Vespúcio disseminaram seus discursos. Os documentos de Colombo eram cartas enviadas aos
reis de Espanha e os seus diários que, por sua natureza, tinham uma circulação restrita. Já os
textos de Vespúcio foram elaborados para publicação, primeiro em latim, língua erudita da
época, e posteriormente traduzidos para o alemão, flamengo, italiano e francês. O sucesso dos
textos de Américo Vespúcio pode ser avaliado pela rápida disseminação através da Europa do
seu Mundus novus:
Il successo del Mundus novus, infatti, fu travolgente. In poche settimane fu ristampato a
Venezia, Parigi, Augusta, Norimberga, Anversa, Colonia, Strasburgo, Rostock e poi
tradotto in tedesco e in fiammingo. Tradotto in italiano, fu inserito nella raccolta Paesi
novamente retrovati e Novo Mondo da Alberico Vespuzio florentino intitulato curata da
Fracanzio da Montalboddo (Vicenza 1507), che a sua volta fu ristampata almeno sette
volte nel Cinquecento, tradotta in latino da Arcangelo Madrignano (Milano 1508) e in
francese da Mathurin Redouer de Sendacour (Paris 1515). Fu dunque un vero bestseller. Diversa da quella pubblicata da Francazio è la versione italiana introdotta dal
Ramusio nel primo volume (Venezia 1550) della raccolta Delle navigazione e viaggi:
contiene un passo erudito non presente nell’originale latino e in qualche punto ricorda la
traduzione tedesca.24 (Pozzi, 1993, p. 13-14)
cosmographiques de D’Ailly et des notes marginales de Christophe Colomb. Ètude sur les sources de l’auteur, 3
vols., Paris, 1930] (Holanda, 1994, p. 337).
20
Sempre que possível indicaremos o ano de nascimento e de morte do autor, para que o nosso leitor possa situar
o período de produção das obras.
21
pensavamos estar no Paraíso terrestre (Pozzi, 1993, p. 59).
22
comigo pensava estar próximo ao Paraíso terrestre (Pozzi, 1993, p. 86).
23
se no mundo há algum paraíso terrestre, sem dúvida está não muito distante deste lugar (Pozzi, 1993, p. 121).
24
O sucesso do Mundus Novus, de fato, foi irresistível. Em poucas semanas foi impresso em Veneza, Paris,
Augusta, Nuremberg, Anversa, Colonia, Estrasburgo, Rostock e depois traduzido em alemão e em flamengo.
Traduzido em italiano, foi inserido na coletânea Paesi novamente retrovati e Novo Mondo da Alberico Vespuzio
florentino intitulato organização de Fracanzio da Montalbodo (Vicenza 1507), que por sua vez foi impressa pelo
menos sete vezes nos Quinhetos, traduzida em latim por Arcangelo Marignano (Milano 1508) e em francês por
46
A popularidade dos textos de Vespúcio certamente influiu para que na publicação da
Cosmographiae introductio, do geógrafo Martin Waldseemüller, em 1507, fosse incluído o
Quattuor navigationes de Américo Vespúcio. Além disso, Waldseemüller no nono capítulo da
Cosmographiae sugere América como o nome do novo continente (Pozzi, 1993, p. 15). É
interessante observar que no mapa existente no apêndice dessa mesma Cosmografia o nome
América “riferito solamente a una parte del continente sudamericano (l’attuale Brasile)”25
(Pozzi, 1993, p. 15).
Para Américo Vespúcio, o paraíso não era uma obsessão mas apenas um recurso
discursivo (uma hipérbole) na exaltação do Novo Mundo. Cristóvão Colombo, por sua vez,
acredita na existência do Paraíso terrestre e julga tê-lo vislumbrado apesar de não alcançá-lo.
A descoberta do Brasil, em 1500, foi imediatamente comunicada ao rei de Portugal
através de carta de Pero Vaz de Caminha e do relato feito pelos tripulantes do navio que
retornou a Portugal transportando a carta. Nesse documento oficial, publicado pela primeira
vez por Aires de Casal em 1817 (Casal, 1976), a descoberta é tratada como “achamento” e o
autor faz uma referência, ao longo do texto, sobre a descrição da terra:
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que
contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela
bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes,
grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia
de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não
podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de
metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e
temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os
achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, darse-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E
esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (Pereira, 1999, p.
58)
Nessa descrição da terra, Caminha concluiu que o melhor a fazer com ela é “salvar
esta gente”, ou seja, a terra não chegara a impressionar Caminha tanto quanto os seus
Mathurin Redouer de Sendacour (Paris 1515). Foi portanto um verdadeiro best-seller. Diferente daquela
publicação de Francazio é a versão italiana introduzida por Ramusio no primeiro volume (Venezia 1550) da
coletânea Delle navigazioni e viaggi: contém um passo erudito não presente no original latino e em alguns
pontos recorda a tradução alemã. (Pozzi, 1993, p. 13-14)
25
refere-se apenas a uma parte do continente sul-americano (o atual Brasil). (Pozzi, 1993, p. 15)
47
habitantes que produzem no escrivão uma viva impressão como atestam alguns trechos da
carta:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar
suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os
beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de
comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta
como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o
beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de
sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por
baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave
amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição
como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta,
e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. (Pereira, 1999, p. 35)
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos
muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e
tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma
vergonha. (Pereira, 1999, p. 40)
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão
bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas
mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua
como ela. (Pereira, 1999, p. 40-41)
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não
pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a
nádega, toda tinta daquela tinta preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia
ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas
vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma
vergonha. (Pereira, 1999, p. 45)
[...] os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser.
(Pereira, 1999, p. 47)
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve
sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de
si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir.
Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a
vergonha. (Pereira, 1999, p. 57)
Na interpretação que Joaquim Pedro de Andrade faz da descrição de Pero Vaz de
Caminha, para o roteiro do filme Casa-Grande, Senzala & Cia, publicado em 2001, aparece
como título da primeira seqüência – Terreal Paraíso –, que tem o seguinte começo:
O filme abre com a descrição, feita por Pero Vaz de Caminha, em carta a El-Rei, das
imagens de incrível beleza vistas pela primeira vez pelos europeus em 22 de abril de
1500, no Brasil.
Na tela, e não necessariamente na ordem em que vão enumeradas abaixo, aparecem as
seguintes imagens e cenas:
48
“Índios e índias de belo aspecto, um tanto avermelhados, com bons rostos e narizes,
bem feitos de corpo. Andam nus, quase todos. [...] Uma das moças estava tingida de
azul escuro, de baixo a cima. Era muito certa e bem feita.”
“[...] Estavam entre eles cinco mulheres novas que, assim nuas, não pareciam mal.
Andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega toda tingida de azul
escuro e tinha o resto de sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas
assim tintas e também os colos dos pés. [...]” (Andrade, 2001, p. 28-29)
Na perspectiva de Joaquim Pedro de Andrade, essas imagens são associadas ao
Paraíso na segunda seqüência, quando o rei de Portugal lê a carta de Caminha:
EL-REI (histriônico, eufórico, divertindo-se muito e lendo em voz alta um trecho da
carta): E olhem só o que escreve aqui o safado do Caminha: “Ali andavam entre eles
três ou quatro moças bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos
pelas costas; suas vergonhas eram tão nuas, tão altas, graciosas e cerradinhas, tão limpas
das cabeleiras que, de nós as muito olharmos, em nada se envergonhavam, porque
estavam com tanta inocência descobertas que não havia nisso vergonha nenhuma.”
(Para o clérigo): Padre, é o terreal paraíso! (Andrade, 2001, p. 30)
Apesar de pequenas diferenças em relação ao texto da Carta de Pero Vaz de Caminha,
publicada por Paulo Roberto Pereira (1999), podemos constatar que as “imagens de incrível
beleza” a que Andrade se refere, não se aplicam propriamente à terra, mas à beleza das
nativas da terra descoberta que, da mesma forma, impressionam El-Rei que concluí eufórico
terem descoberto o “terreal paraíso”.
Um paraíso onde foram deixados dois degredados e para onde fugiram dois grumetes
da esquadra. Fábio Pestana Ramos explica que os grumetes tinham entre nove e dezesseis
anos e eram recrutados entre órfãos, filhos de famílias pobres, e rapto de crianças judias. As
naus portuguesas do século XVI tinham em média 150 tripulantes, dentre os quais cerca de
18% eram crianças, ou seja, eram embarcadas mais ou menos 27 crianças por nau, e a taxa de
mortalidade nesses navios estava em torno de 39% (Ramos, 2004, p. 20-23).
O trabalho executado por um grumete era igual ao dos marinheiros, porém, o soldo
que recebiam era menos que a metade, mesmo sendo encarregados de trabalhos perigosos. O
grumete era alojado no convés do navio, a céu aberto, e, como todos os embarcados recebia a
mesma ração que os marinheiros, a menos do pote diário de vinho: “uma libra e meia
[aproximadamente 690 g] de biscoito por dia (...) e um pote de água, uma arroba
[aproximadamente 14,7 kg] de carne salgada por mês e alguns peixes secos, cebolas e
manteiga” (Ramos, 2004, p. 23-26). Além da alimentação não ser variada, sua qualidade era
péssima
49
[...] o “biscoito era bolorento e fétido, todo roído pelas baratas”. A carne salgada
encontrava-se, constantemente, em estado de decomposição. A água potável, igualmente
podre, exalava um incrível mau cheiro por ser armazenada em tonéis de madeira, onde, em
poucos dias, proliferavam inúmeros microorganismos, responsáveis por constantes diarréias
(Ramos, 2004, p. 26).
Devido ao tipo de dieta alimentícia era comum aos embarcados serem acometidos de
inanição e de escorbuto. Como era raro existir um médico a bordo para tratar dos doentes, a
solução era a aplicação de sangrias por barbeiros, ou por aqueles que tivessem disposição para
o serviço, o que em geral acarretava a morte do paciente, contribuindo para o alto percentual
de mortalidade dos embarcados.
A vida dura dos tripulantes desses navios, que não excluía castigos físicos, como
chibatadas, e era agravada no caso dos grumetes pelo risco permanente de abuso sexual por
parte dos marinheiros que em muitos casos eram criminosos, que tinham a pena de morte
comutada pelo serviço marítimo (Ramos, 2004, p. 27).
Além dos riscos de saúde, qualquer um poderia cair no mar, o que era sinônimo de
morte porque, em geral, a vítima não sabia nadar, ou a tripulação não percebia que alguém
havia caído no mar, ou ainda devido ao tempo necessário para a nau ser manobrada para
retornar e tentar resgatar a vítima. Os corsários e piratas eram um outro perigo permanente
porque, no caso de captura, assassinavam ou deixavam a deriva os adultos, prendiam os
nobres para obter resgate e escravizavam as crianças para servirem em suas embarcações ou
vendê-las nos mercados piratas das Antilhas ou da Ásia (Ramos, 2004, p. 39-40). Por último,
havia o risco de naufrágio e nesse caso a salvação era o único batel da nau, com espaço para
setenta pessoas, ou o esquife com lugar para mais vinte pessoas, o que significa que numa
embarcação com 800 pessoas apenas noventa poderiam continuar navegando e tentar se
salvar. Nessa hora, não havia uma regra fixa que estabelecesse quem se salvaria e o capitão e
os oficiais, armados, é que faziam a seleção (Ramos, 2004, p. 40-47).
Os grumetes que sobreviviam a primeira viagem podiam tentar a ascensão social
através de uma carreira na marinha. Outros grumetes preferiam fugir do navio na primeira
oportunidade que encontrassem. Dessa forma, não causa espanto que dois grumetes tenham
abandonado a esquadra de Cabral e preferido ficar no paraíso.
Silvio Castro, de forma semelhante a Joaquim Pedro de Andrade, articula a carta da
descoberta do Brasil ao Memorial do Paraíso, romance do Descobrimento do Brasil, que é
um suposto diário de Pero Vaz de Caminha para sua “amada e infeliz filha” cujo marido,
Jorge de Osório, fora degredado para ilha de São Tomé. Caminha, na carta enviada a Portugal
relatando a descoberta da Terra de Santa Cruz pede ao Rei D. Manuel I:
E pois que, Senhor, é certo que assim neste cargo que levo, como em outra qualquer
coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela
peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de
Osório meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. (Pereira, 1999, p. 59)
O suposto diário de Caminha teria sido escrito já no Brasil, após a decisão de Pedro
Álvares Cabral de se enviar uma carta ao Rei relatando o descobrimento. O diário escrito
50
quando “já lá se vão tantos dias de minha partida” e onde o autor confessa que “muitas coisas
que te direi serão puras lembranças. Outras, verdades” (Castro, 1999, p. 11-12).
O diário é construído com trechos da carta de Caminha, intercalado com nove atos da
“Festa para o Príncipe Venturoso”. No diário o autor apresenta uma grande euforia pelo
reencontro do paraíso:
25 de abril, sábado, pela manhã
São tantas e tamanhas as emoções desse encontro maravilhoso, minha querida Maria,
que nem mesmo o cansaço das azáfamas de bordo nos mantêm por muito tempo no
refrigério do sono. Mal o sol se apresenta – e aqui o sol parece ser mais brilhante e a luz
mais resplandecente – e todos nós já estamos prontos para novos conhecimentos. Vivese, minha caríssima filha, num estado de alegria constante, como se as nossas
existências tivessem tomado um novo sentido e as nossas almas, uma diversa intensa
vibração. É como descobrir o paraíso que essa mesma alma conhecera outrora. O
mesmo paraíso perdido e que agora ressurge. Vivemos a cada momento a emoção do
paraíso recuperado. Doce, docíssimo é o espírito desse reencontro, minha Maria. [...].
(Castro, 1999, p. 82)
No nono e último ato da “Festa para o Príncipe Venturoso”, um dos dois grumetes que
desertou da esquadra de Cabral para ficar no Brasil diz aos dois degredados deixados na terra
descoberta:
Este é o nosso paraíso. Aqui seremos felizes e iremos viver até a mais longa velhice.
Estaremos sempre com todas estas belezas; amaremos as lindas mulheres daqui que nos
levam a gozar os maiores prazeres da existência; comeremos dos melhores frutos e das
melhores carnes; respiraremos este doce ar e tocaremos sempre esta terra quente e fértil.
[...] É aqui o paraíso! (Castro, 1999, p. 122-123)
Essa conclusão inicial, decorrente da aparente inocência dos nativos, está,
provavelmente, associada à descrição de Adão e Eva no Paraíso do Gênese “Ambos estavam
nus, o homem e sua mulher, sem sentirem vergonha um do outro” [Gn 2:25] 26. Esse primeiro
encantamento, fundado na idéia de uma pureza paradisíaca dos nativos do Novo Mundo, foi
rapidamente substituído, quando a colonização foi iniciada, por uma associação da imagem da
terra sempre verde com o que seria o Paraíso.
A publicação por Montalboddo em 1507 da Relação do Piloto anônimo reforça o
discurso de Pero Vaz de Caminha, quando descreve os índios e a beleza das índias:
[...] eles são homens cor de bronze e vão nus sem vergonha alguma, e os seus cabelos são
compridos, e têm a barba raspada; e as pálpebras dos olhos e sobrancelhas são pintadas com
figuras de cores brancas, pretas e azuis e vermelhas; trazem os lábios da boca, isto é,
aqueles de baixo, furados e ali colocam um osso grande como enfeite, e outro trazem, quem
26
Nas referências à Bíblia Sagrada são indicados, entre colchetes, o livro, capítulo e versículo (s).
51
uma pedra azul e quem outro verde, e chupam pelos ditos buracos. As mulheres
semelhantemente vão nuas sem vergonha, e são belas de corpo e trazem os cabelos
compridos. (Castro, 2000, p. 101)
Trinta e um anos depois de Caminha, Pêro Lopes de Sousa em viagem que fez ao
Brasil na armada comandada por seu irmão Martim Afonso de Sousa, entre 3 de dezembro de
1530 e 24 de novembro de 1532, escreveu um diário, ou roteiro, conhecido como Relação da
navegação de Pêro Lopes de Sousa (1989). Nesse roteiro, as índias da Bahia continuavam
formosas:
Domingo, 13 dias de Março [de 1531], pela manhã, éramos de terra 4 léguas; e, quando
nos achegámos mais a ela, reconhecemos ser a baía de Todos-os-Santos, e ao meio-dia
entrámos nela. [...] Os principais homens da terra vieram fazer obediência ao capitão
Irmão e nos trouxeram muito mantimento e fizeram grandes festas e bailos, amostrando
muito prazer por sermos aqui vindos. O capitão Irmão lhes deu muitas dádivas. A gente
desta terra é toda alva, os homens muito bem dispostos e as mulheres mui formosas,
que não hão nenhuma inveja às da Rua Nova de Lisboa. (Sousa, 1989, p. 97-98)
A terra do Brasil, em especial a parte do sul, deixara igualmente forte impressão no
explorador que em vários trechos tece elogios à sua beleza e à qualidade de seu clima:
Sábado [14/10/1531], no quarto de alva, acalmou o vento e fui a terra firme por nos
fazerem muitos fumos. A terra é mui formosa: muitos ribeiros de água e muitas ervas e
flores como as de Portugal. (Sousa, 1989, p. 108)
Domingo, 24 do dito mês [novembro de 1531], [...] A terra é mais formosa e aprazível
que eu jamais cuidei ver: não havia homem que se fartasse de olhar os campos e a
formosura deles. Aqui achei um rio grande; ao longo dele, tudo arvoredo, o mais
formoso que nunca vi; e antes que chegasse ao mar um tiro de besta se sumia. (Sousa,
1989, p. 113-114)
Quinta-feira, 5 de Dezembro [1531], [...] A terra da banda sueste me parecia, onde era
firme, a mais formosa que os homens viram, toda cheia de flores, e o feno de altura de
um homem. (Sousa, 1989, p. 117)
Quinta-feira, 12 de Dezembro [1531], [...] Esta terra dos Carandins é alta ao longo do
rio, e no sertão é toda chã, coberta de feno que cobre um homem. Há muita caça nela de
veados e emas e perdizes e codornizes; é a mais formosa e mais aprazível que pode ser.
Eu trazia comigo alemães e italianos e homens que foram à Índia e franceses: todos
eram espantados da formosura desta terra, e andávamos todos pasmados que nos não
lembrava tornar. Aqui neste esteiro tomamos muito pescado de muitas maneiras. Morre
tanto neste rio e tão bom que só com o pescado sem outra cousa, se podiam manter:
ainda que um homem coma dez libras de peixe, em as acabando de comer parece que
não comeu nada e tornara a comer outras tantas. O ar deste rio é tão bom que nenhuma
carne nem pescado apodrece, e era na força do Verão que matávamos veados e
trazíamos a carne dez, doze dias sem sal e não fedia. A água do rio é mui saborosa: pela
manhã é quente e ao meio-dia é muito fria; quanta homem mais bebe, quanto melhor se
acha. Não se podem dizer nem escrever as cousas deste rio e as bondades dele e da
terra. (Sousa, 1989, p. 118-119)
Segunda-feira, 23 de Dezembro [1531], [...] Não se pode escrever a formosura desta
terra: os veados e as gazelas são tantos, e emas e outra alimárias tamanhas como potros
52
novos e do parecer deles, que é o campo todo coberto desta caça, que nunca vi em
Portugal tantas ovelhas nem cabras como há nesta terra de veados. À tarde me tornei
para o bergantim. (Sousa, 1989, p. 122)
Em seqüência, Pero de Magalhães Gândavo (1980) publica, em 1576, a Historia da
Provincia Santa Cruz, em que afirma no prólogo que o faz motivado pelo fato de não ter
havido até então quem tivesse escrito a história da Província, que havia sido descoberta há
setenta e seis anos. Nesse período de setenta e seis anos de convivência com os índios, houve
um esmaecimento do deslumbramento inicial de Caminha como podemos constatar pela
freqüência dos vocábulos usados para designar as indígenas:
Vocábulo
Fêmea (s)
Índia (s)
Moça (s)
Mulher (es)
Carta de Caminha
0
0
7
4
História de Gândavo
7
10
2
12
Fonte: Textos digitalizados obtidos no acervo digital da Biblioteca Nacional (http://www.bn.br).
Por este quadro podemos verificar que as nativas observadas por Pero Vaz de
Caminha foram descritas como moças e mulheres, e, “setenta e tantos anos” depois, por Pero
de Magalhães Gândavo, predominantemente, como mulheres, índias e fêmeas.
O discurso de Gândavo é uma “propaganda de imigração”, na ótica de Capistrano de
Abreu, fundado na facilidade de obtenção de terras e na qualidade e bondade dessa terra:
[...] he esta Provincia sem contradição a melhor pera a vida do homem que cada huma das
outras de America, por ser commummente de bons ares e fertilissima, e em gram maneira
deleitosa e aprazivel á vista humana. O ser ella tam salutifera e livre de enfermidades,
procede dos ventos que geralmente cursão nella: os quaes são Nordestes e Sues, e algumas
vezes Lestes e Lessuestes. E como todos estes procedão da parte do mar, vem tam puros e
coados, que nam somente nam dânam; mas recream e acrescentam a vida do homem.
(Gândavo, 1980, p. 81)
Poderíamos até concordar com o caráter publicitário desse discurso se não fossem as
referências do autor, em outro capítulo, aos animais e bichos venenosos, cuja propagação era
estimulada por um clima adverso:
Outros muitos animaes e bichos venenosos ha nesta Provincia, de que nam trato, os quaes
são tantos em tanta abundancia, que seria historia mui comprida nomea-los aqui todos, e
tratar particularmente da natureza de cada hum, havendo, como digo, infinidade delles
nestas partes, aonde pela disposição da terra, e dos climas que a senhorêão, nam pode
deixar de os haver. Porque como os ventos que procedem da mesma terra se tornem
inficionados das podridões das hervas, matos e alagadiços geram-se com a influencia do
Sol que nisto concorre, muitos e mui peçonhentos, que per toda a terra estão esparzidos, e a
53
esta causa se crião e achão nas partes maritimas, e pelo sertão dentro infinitos da maneira
que digo. (Gândavo, 1980, p. 109-110)
Se estas informações não fossem suficientes para desestimular a imigração, o capítulo
dedicado a descrição da crueldade dos índios certamente faria com que o possível candidato à
imigração pensasse duas vezes antes de embarcar numa nau para a Colônia. O capítulo
começa assim:
Huma das cousas em que estes Indios mais repugnam o ser da natureza humana, e em
que totalmente parece que se extremam dos outros homens, he nas grandes e excessivas
crueldades que executam em qualquer pessôa que podem haver ás mãos, como nam seja
de seu rebanho. Porque nam tam somente lhe dam cruel morte em tempo que mais livres
e desempedidos estam de toda paixão; mas ainda depois disso, por se acabarem de
satisfazer lhe comem todos a carne usando nesta parte de cruezas tam diabolicas, que
ainda nellas excedem aos brutos animaes que nam tem uso de razam nem foram
nascidos pera obrar clemencia. (Gândavo, 1980, p. 136)
Independente desse aspecto negativo sobre os nativos do Brasil e das contradições
sobre a qualidade e bondade da terra, Gândavo oferece ao seu leitor uma imagem do território
cujo contorno é desenhado como uma “harpa”:
Esta provincia Santa Cruz està situada naquella grande America, uma das quatro partes
do mundo. Dista o seu principio dous graos da equinocial para a banda do Sul, e dahi se
vai estendendo para o mesmo sul atè quarenta e cinco graos. De maneira que parte della
fica situada debaixo da Zona torrida e parte debaixo da temperada. Està formada esta
Provincia á maneira de huma harpa, cuja costa pela banda do Norte corre do Oriente ao
Ocidente e está olhando direitamente a Equinocial; e pela do Sul confina com outras
Provincias da mesma América povoadas e possuidas de povo gentilico, com que ainda
nam temos communicaçam. E pela do Oriente confina com o mar Oceano Africo, e olha
direitamente os Reinos de Congo e Angola até o Cabo de Boa Esperança, que he o seu
opposito. E pela do Occidente confina com as altissimas serras dos Andes e fraldas do
Perú, as quaes sam tam soberbas ensima da terra que se diz terem as aves trabalho em as
passar. (Gândavo, 1980, p. 81)
O Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa (1971), foi
ofertado a Cristóvão de Moura, da corte de Espanha, quando o autor buscava privilégio para
explorar as minas do sertão do rio S. Francisco, para dar continuidade ao trabalho de
exploração do seu falecido irmão, João Coelho de Sousa, que lhe havia deixado, como
herança, um roteiro para as minas. Gabriel Soares de Sousa embarcou para Europa em agosto
de 1584, após fazer seu testamento, e retornou ao Brasil saindo de Lisboa em abril de 1591,
com carta régia de capitão-mór e governador da conquista e descobrimento do Rio de São
Francisco. Veio a falecer no Brasil, durante a expedição, em 1592, sem ter chegado ao seu
destino (Sousa, 1971, p. 15-18).
54
O seu Tratado circulou pela Europa, em cópias manuscritas, como atesta Varnhagen
quando diz que analisou cerca de vinte códices ao elaborar a edição de 1851 (Sousa, 1971, p.
12). Essas cópias circularam apesar da advertência do autor, no último capítulo do Tratado,
sobre o
[...] perigo em que está de chegar à noticia dos luteranos parte do conteúdo neste
Tratado, para fazerem suas armadas, e se irem povoar esta província, onde com pouca
fôrça que levem de gente bem armada se podem senhorear dos portos principais, porque
não hão de achar nenhuma resistência nêles, pois não têm nenhum modo de fortificação,
de onde os moradores se possam defender nem ofender a quem os quiser entrar. (Sousa,
1971, p. 352)
Mesmo assim, Varnhagen afirma que já havia cópia do Tratado em Portugal em 1599,
porque Pedro de Mariz o cita e copia na segunda edição dos Diálogos (Sousa, 1971, p. 13).
Ainda segundo Varnhagen, fr. Vicente de Salvador na sua História do Brasil também utilizou
o Tratado, assim como “Simão de Vasconcelos aproveitou do capitulo 40 da 1ª parte as suas
Notícias 51 a 55” (Sousa, 1971, p. 13). Essa última afirmação deve ser complementada com a
informação de Vasconcellos, existente no parágrafo 51 das Noticias, de que “tresladarei aqui
hum Roteiro” (Vasconcellos, 1668, p. 56), sem esclarecer quem é o autor, porém grafando no
texto e na margem a palavra Roteiro com letra maiúscula, que é assim indicado como a fonte da
informação desse parágrafo e dos seguintes. O translado do Roteiro não faz referência à fazenda e
ao nome de Gabriel Soares de Sousa, que pode ter sido omitido deliberadamente por Vasconcellos
ou em virtude do exemplar do Roteiro, por ele utilizado, não conter essas informações:
capítulo XL do Tratado
[...] E Antônio Dias Adôrno, quando foi a estas
pedras, as recolheu por terra, atravessando pelos
tupinaés e por entre os tupinambás, e com uns e
outros teve grandes encontros, e com muito trabalho e
risco de sua pessoa chegou à Bahia e fazenda de
Gabriel Soares de Sousa (Sousa, 1971, p. 90).
parágrafo 55 do livro 1 das Noticias
[...] Capitão Antonio Dias Adorno com parte dos
companheiros caminhou por terra, talando as brenhas,
& atrauessando naçoẽs de Indios varias, Tupinaẽs,
Tupinambàs, & outras: teue com ellas grandes
encontros até chegar à Bahia, onde deu conta de tudo
o succedido, & entregou ao Gouernador os haueres
que achàra. [...] (Vasconcellos, 1668, p. 59-60).
Na perspectiva de Gabriel Soares de Sousa a terra do Brasil, e, em especial, a da
Bahia, é fértil, tem bons ares e riquezas, como atestam as passagens selecionadas a seguir:
[...] terra é quase tôda muito fértil, mui sadia, fresca e lavada de bons ares e regada de
frescas e frias águas. (Sousa, 1971, p. 39)
[...] fertilidade da terra, bons ares, maravilhosas águas e da bondade dos mantimentos.
(Sousa, 1971, p. 127)
55
[...] baía, que é a maior e mais formosa que se sabe pelo mundo, assim em grandeza
como em fertilidade e riqueza. Porque esta baía é grande e de bons ares, mui delgados e
sadios, de muito frescas e delgadas águas, e mui abastada de mantimentos naturais da
terra, de muita caça, e muitos e mui saborosos pescados e frutas. (Sousa, 1971, p. 141)
Esta terra, na visão realista de Gabriel Soares de Sousa, apesar das suas qualidades
tinha também seus defeitos e não era propriamente um paraíso:
Como não há ouro sem fezes, nem tudo é a vontade dos homens, ordenou Deus que
entre tantas coisas proveitosas para o serviço dêle, como fêz na Bahia, houvesse
algumas imundícias que os enfadasse muito, para que não cuidassem que estavam em
outro paraíso terreal, de que diremos daqui por diante, começando no capítulo que se
segue das lagartas. (Sousa, 1971, p. 265)
Os quarenta capítulos dedicados por Gabriel Soares de Sousa aos índios fornecem
importantes informações etnográficas que aumentaram o conhecimento sobre eles e, ao
mesmo tempo, a distância do discurso do autor à perspectiva edênica do discurso de Pero Vaz
de Caminha sobre os nativos do Brasil.
Nesse mesmo período do fim do século XVI o padre jesuíta Fernão Cardim, que
embarcou para o Brasil como secretário do Visitador Cristóvão Gouveia, enviava carta ao
Provincial em Portugal detalhando a viagem e as atividades do Visitador no Brasil entre
março de 1583 e outubro de 1585. Nessa longa carta, encontramos numa das primeiras
páginas a descrição do Colégio da Companhia de Jesus na Bahia (Salvador) e a informação de
que seus membros “sustentam-se bem de mantimentos, carne e pescados da terra; nunca falta
um copinho de vinho de Portugal, sem o qual se não sustenta bem a natureza por a terra ser
desleixada e os mantimentos fracos [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 144-145). Esta primeira
informação sobre a qualidade da terra e seus mantimentos está em contradição com os elogios
do restante da carta que, escrita seqüencialmente, evidencia a mudança da opinião inicial do
autor durante a sua permanência no Brasil.
Em 1598, Fernão Cardim foi a Roma como Procurador da Província e na volta ao
Brasil, em 1601, foi aprisionado por piratas ingleses e levado para Londres. Nessa ocasião
levava consigo textos manuscritos que foram publicados, em inglês, por Samuel Purchas, em
Londres, em 1625, como parte da coleção Purchas his Pilgrimes, sob o título A Treatise of
Brasil written by a Portugal which had long lived there (Cardim, 1980, p. 19), composto
pelos textos Do clima e terra do Brasil e do Principio e origem dos indios do Brasil.
Rodolfo Garcia, na introdução de Tratados da terra e gente do Brasil, livro que reúne
os dois textos e a carta de Fernão Cardim, destaca que nesses escritos o que encanta é o
“constante bom humor de que estão impregnados, a vivacidade de narrativa, a graça, o
56
imprevisto das comparações” (Cardim, 1980, p. 20). Podemos citar, complementando a
informação de Rodolfo Garcia, três exemplos de expressões com essa característica. No
primeiro exemplo, o autor usa a expressão “rasgam muitas sedas e veludos”:
E nesta parte padecem muito os da terra, principalmente do Rio de Janeiro até São
Vicente, por falta de navios que tragam mercadorias e panos; porém as mais capitanias
são servidas de todo genero de panos e sedas, e andam os homens bem vestidos, e
rasgam muitas sedas e veludos [grifo nosso]. Porém está já Portugal, como dizia, pelas
muitas comodidades que de lá lhe vêm. (Cardim, 1980, p. 57)
No segundo exemplo usa as expressões “cabeça dura” e “cabeça mole” na descrição
do ritual de morte do prisioneiro, em que o índio bate na cabeça do prisioneiro com a espada
de madeira até que “lhe quebra a cabeça, posto que já se viu um que a tinha tão dura, que
nunca lha puderam quebrar, porque como a trazem sempre descoberta, têm as cabeças tão
duras que as nossas em comparação delas ficam como de cabaças, e quando querem injuriar
algum branco lhe chamam cabeça mole [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 99).
O terceiro exemplo, corresponde a descrição que o autor faz dos engenhos da Bahia e
do recôncavo, da fartura da sua mesa, dos ganhos auferidos pelos seus senhores e de seu
modo de vida. Conclui dizendo, de forma espirituosa, que “os pecados que se cometem neles
não têm conta; quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem cheio de
pecados vai esse doce [grifo nosso]” (Cardim, 1980, p. 158).
Logo após a chegada ao Brasil, em 1583, Cardim acompanhou o Visitador a uma
aldeia indígena e deixou registrado na carta a novidade que foi serem recebidos por “mulheres
núas (cousa para nós mui nova) com as mãos levantadas ao Céo” e dizendo em português
“louvado seja Jesus Christo” (Cardim, 1980, p. 146). Sua descrição dos índios e seus
costumes é mais suave se comparada a descrição de outros cronistas como, por exemplo, Pero
de Magalhães Gândavo. A descrição da cerimônia do suplício do prisioneiro, que os dois
autores tratam, serve para esclarecer a questão. Enquanto Gândavo pintava, como vimos, a
cerimônia com as cores fortes da crueldade do indígena, Cardim descreve o mesmo ritual
utilizando um outro enfoque, que foi aproveitado e ampliado por José de Alencar nos seus
romances indianistas, o da honra do guerreiro: “de todas as honras e gostos da vida, nenhum é
tamanho para este gentio como matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrários, nem
entre eles há festas que cheguem às que fazem na morte dos que matam com grandes
cerimônias” (Cardim, 1980, p. 95-96).
57
E da honra do prisioneiro que diz que “muito embora morra, pois muitos tem mortos, e
que alem disso cá ficão seus irmãos e parentes para o vingarem, e nisto aparelha-se um para
furtar o corpo, que é toda a honra de sua morte” (Cardim, 1980, p. 99).
As imagens construídas por Cardim ao longo do texto são, quase sempre, elaboradas
através de comparação27 do objeto descrito e outro, possivelmente, conhecido pelo leitor. Na
descrição dos animais, por exemplo, o autor compara o veado ao cavalo; as antas “parecem-se
com vacas e muito mais com mulas”; os “acutis se parecem com os coelhos de Espanha”; o
Sarigué “se parece com as raposas de Espanha”; o tamanduá “é do tamanho de um grande
cão”; o tatú “é do tamanho de um leitão”; o coatí “parece-se com os texugos de Portugal”; o
tapiti “se parece com os coelhos de Portugal”. Algumas de suas comparações são curiosas e
divertidas como a da preguiça que “é animal para ver, parece-se com cães felpudos, os
perdigueiros; são muito feios, e o rosto parece de mulher mal toucada; [...]” (Cardim, 1980, p.
25-29).
Da mesma forma Fernão Cardim compara as características do Brasil com as da
Europa concluindo que:
Este Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado e
sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem muito com poucas
doenças, como de cólica, fígado, cabeça, peitos, sarna, nem outras enfermidades de
Portugal; nem falando do mar que tem muito pescado, e sadio; nem das coisas da terra
que Deus cá deu a esta nação. (Cardim, 1980, p. 57)
Assim, a imagem do Brasil construída por Fernão Cardim é a de uma reprodução nos
trópicos da civilização portuguesa em condições naturais ainda melhores.
Alguns anos depois, outro jesuíta, padre Jácome Monteiro, como Fernão Cardim
também secretário de um Visitador, elaborou a Relação da Província do Brasil, 1610,
publicada por Serafim Leite (Monteiro, 2000). Monteiro descreve a terra do Brasil como
melancólica: “Está toda a terra coberta de um perpétuo arvoredo o qual nunca perde a folha, e
posto que os naturais o achem gracioso, aos que nascemos no Reino serve mais de
malenconia, por ser um verde mais escuro e espesso, que de prazer” (Monteiro, 2000, p. 394).
Diferente de outros cronistas do período, que descrevem a terra do Brasil no sentido
norte-sul, o padre Jácome Monteiro descreve-a no sentido inverso, ou seja, sul-norte como o
faz também com os rios (Prata, S. Francisco, Maranhão e Amazonas). Começa sua descrição
27
Cristina Pompa lembra que para os viajantes do século XVI a “observação” da realidade continuou se dando
através da mediação dos esquemas culturais familiares ao observador, mediação esta necessária para organizar e
até mesmo para perceber os “fatos”, pois a comparação analógica era o único instrumento epistemológico de
compreensão cultural. (Pompa, 2003, p. 35)
58
pela capitania de S. Paulo e vai subindo até Itamaracá e o norte, sendo que ao descrever essa
última faz referência a uma Relação do padre Luis Figueira (Monteiro, 2000, p. 405),
provavelmente tratando-se da Relação da missão do Maranhão, 1607-1608 (Leite, 2000, v. 8,
p. 237).
Num enfoque diferente, resgatando uma imagem edênica para a terra do Brasil, temos
os Diálogos das Grandezas do Brasil (1997). Na sua introdução o Prof. José Antônio
Gonsalves de Mello, informa que existem dois manuscritos dos Diálogos, um na Biblioteca
Nacional de Lisboa e o outro na biblioteca da Real Universidade de Leiden, na Holanda,
sendo o primeiro uma cópia, com data de fins do século XVII, do segundo que o organizador
considera “possivelmente, o original (original no sentido de texto final, sem alteração)”
(Brandão, 1997, p. XXXV). No prefácio, de Leonardo Dantas da Silva, aos Diálogos obtemos
a informação de que o manuscrito “pertencera à Rainha Cristina da Suécia [1626-89],
passando desta para o filólogo Isaac Vossius [1577-1649] e posteriormente aos Estados
Gerais dos Países Baixos, que o compraram para a Biblioteca da Universidade de Leiden”
(Brandão, 1997, p. VIII). Dessa informação podemos deduzir que Isaac Vossius obteve o
manuscrito antes de 1649, data de sua morte, e da conversão da Rainha Cristina da Suécia ao
catolicismo, provavelmente após 165028, sua abdicação ao trono, em 1654, e instalação da sua
corte em Roma, em 1655 (Vieira, 2001, p. 41-43). Os Diálogos registram o ano de 1618
como data de sua elaboração, apresentada no texto29 sem, no entanto, constar alguma
informação quanto à sua autoria. Após comparar variado material autobiográfico existente no
texto com dados biográficos dos possíveis autores, o organizador indica Ambrósio Fernandes
Brandão, como provável autor. Sobre ele, Gonsalves de Mello acrescenta as seguintes
informações:
Ambrósio Fernandes Brandão, com uma longa e variada experiência brasileira – de
cerca de 25 anos, pelo menos, a contar de 1583 a 1597 e de 1607 a 1618,
aproximadamente, antes para mais que para menos – e alguns anos de serviço público
em Portugal, ao se pôr a escrever os Diálogos das Grandezas do Brasil, contava 63 anos
de idade. Os seus estudos, as suas leituras, as suas observações e experiências, as
informações e lendas recolhidas de pessoas às vezes ingênuas, outras fideindignas,
foram os elementos de que se utilizou na composição de sua obra. (Brandão, 1997, p.
XXXI)
28
Neste ano o rei de Portugal d. João IV enviou à Suécia o embaixador José Pinto Pereira cujo confessor e
secretário, o jesuíta Antonio de Macedo foi o intermediário entre a Rainha Cristina e a Santa Sé na troca de
correspondência que precedeu sua conversão ao catolicismo (Vieira, 2001, p. 42).
29
Quando o autor descreve a Capitania do Rio Grande do Norte diz “Não há nela engenhos de fazer açúcares
mais de um até este ano de 1618, por a terra ser mais disposta para pastos de gado, dos quais abunda em muita
quantidade, até entrar na Capitania da Paraíba, que lhe está conjunta” (Brandão, 1997, p. 24).
59
Os Diálogos das Grandezas do Brasil apresentam seis diálogos entre dois
interlocutores: Brandônio, português com anos de residência no Brasil, e Alviano, recémchegado ao Brasil. Existe, no entanto, uma contradição sobre o tempo de permanência no
Brasil do personagem Alviano, que seria um “ser novo ainda neste Estado” (Brandão, 1997, p.
14), ou seja, reinol recém-chegado na época em que o livro teria sido escrito, em 1618, porém
numa passagem do segundo diálogo Alviano diz: “vi por próprios olhos neste Brasil, na Vila
de Olinda, no ano de 600” (Brandão, 1997, p. 54). Se a segunda afirmação é correta, Alviano
estava (ou esteve) no Brasil em 1600, ou seja, dezoito anos antes da época em que os
Diálogos foram escritos, não sendo assim “novo” no Estado do Brasil.
O argumento geral dos Diálogos consiste em apresentar a terra do Brasil como sendo
dotada de uma grande qualidade em contraste com negligência dos seus povoadores. No
primeiro diálogo Alviano questiona a riqueza da terra do Brasil afirmando que:
[...] ouro, prata e pedras preciosas são somente para os castelhanos e que para eles as
reservou Deus; porque habitando nós, os portugueses, a mesma terra que eles habitam,
com ficarmos mais orientais (parte onde, conforme a razão devia de haver mais minas),
não podemos descobrir nenhuma em tanto tempo quanto há que este nosso Brasil é
povoado, descobrindo eles cada dia muitas. (Brandão, 1997, p. 8)
A questão levantada por Alviano é reformulada por Brandônio nos seguintes termos:
“é necessário que me digais se o ser o Brasil ruim terra é por defeito da mesma terra ou de
seus moradores?” Alviano responde que os moradores de uma terra não podem ser culpados
pela “maldade da terra”, ao que Brandônio responde, defendendo a qualidade da terra do
Brasil, nos seguintes termos: “Pois assim vos enganais, porque a terra é disposta para se haver
de fazer nela todas as agriculturas do mundo, pela sua muita fertilidade, excelente clima, bons
céus, disposição do seu temperamento, salutíferos ares e outros mil atributos que se lhe
ajuntam” (Brandão, 1997, p. 11).
Prosseguindo, Brandônio culpa os moradores pela “negligência e pouca indústria”, ou
seja, na sua visão a pouca riqueza da terra era conseqüência direta da qualidade dos
moradores da terra, que ele divide em cinco categorias: marítima, mercadores, oficiais
mecânicos, assalariados (“que servem a outros por soldada”) e os que tratam da lavoura – os
ricos, com terras e títulos de engenhos, e os que plantam mantimentos. A negligência dos
moradores do Brasil, na percepção do autor, é devida ao fato de que todos achavam que
voltariam logo para o reino e, por este motivo, investiam todo o seu tempo e recursos na
produção, que gerava recursos que seriam desfrutados quando para lá retornassem. Dessa
forma, afirma, “não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar
60
árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal”
(Brandão, 1997, p. 12-14).
Brandônio conclui o primeiro diálogo da seguinte forma: “toda esta grande costa,
assim no sertão como nas fraldas do mar, tem excelentíssimo céu e goza de muito bons ares,
sendo muito sadia e disposta para a conservação da natureza humana” (Brandão, 1997, p. 45).
Alviano contesta esta afirmação oferecendo assim o tema do segundo diálogo:
Isto entendo eu pelo contrário, porque se os antigos não se enganaram, a maior parte
desta costa do Brasil está situada na zona tórrida, que foi julgada por inabitável por
muito quente; e por este respeito os moradores da Costa de Guiné e da mais costa
oposta a esta do Brasil gozam de ruins ares, que causam muitas doenças nela. E se isto é
verdade, não vejo causa por onde os que habitam o Brasil, estando no mesmo paralelo e
debaixo do mesmo zênite, puderem gozar de bons ares e céus, faltando tudo isto à outra
que lhe corresponde. (Brandão, 1997, p. 45)
O segundo diálogo tem início com Alviano resgatando a questão apresentada pelos
antigos filósofos sobre a habitabilidade da zona tórrida, na qual encontava-se a maior parte da
costa do Brasil. Brandônio afirma que Ptolomeu, Lucano e Averroes eram da opinião de que a
zona tórrida era inabitável e Pedro Paduense, Alberto Magno e Avicena eram contrários a ela,
isto é, acreditavam na possibilidade dessa zona ser habitável. Na sua argumentação Brandônio
busca desculpar os filósofos que condenavam a zona tórrida usando como argumento o fato
deles não terem experiência desta zona e os “ventos frescos que nela de ordinário cursam,
exceto em pequeno espaço da costa, a que chamamos de Guiné, os quais são poderosos para
resfriarem os ares, de maneira que causam um temperamento tão singular para a humana
natureza, que tenho por sem dúvida ser esta zona mais sadia e temperada que as demais”
(Brandão, 1997, p. 49). Prossegue afirmando que “não faltam autores que querem afirmar
estar nesta parte situado o paraíso terreal” (Brandão, 1997, p. 50).
Nesse segundo diálogo, o autor insiste, de forma repetitiva, sobre os bons céus e ares
além do temperamento da terra que produzem índios robustos e longevos. Compara ainda a
qualidade da terra do Brasil com Portugal e Espanha e com Angola e Guiné, concluindo
serem as terras do Brasil “mais sadias e de melhor temperamento que todas as demais”
(Brandão, 1997, p. 69-70). Diz ainda, que na terra não há peste (Brandão, 1997, p. 74) nem
tremor de terra (Brandão, 1997, p. 82). No que se refere às doenças da terra, cita algumas e
destaca uma epidemia de bexiga, entre os escravos, nos anos de 1616 e 1617, com grande
mortandade (Brandão, 1997, p. 73).
No quarto diálogo após descrever os mantimentos da terra, Brandônio compara os
frutos do Brasil com os dos campos Elísios e com os do paraíso maometano:
61
Mas já que imos tratando dos frutos que os campos produzem, quero vos mostrar que
são tais estes brasilenses, que lhes ficam muito atrás os Elísios, tão celebrados dos
poetas em seus fingimentos, e da mesma maneira o fabuloso paraíso do torpe
Mafamede, do qual põem a felicidade em que corriam por eles rios de mel e de
manteiga; porque estes nossos campos, com serem naturais e não sonhados por se
fabricarem na idéia, correspondem gozando daquelas cousas que, com tanto estudo de
fingimentos, se representaram. Porque nestes nossos campos achareis rios de mel
excelentíssimo e de manteiga maravilhosa, de que se aproveitam seus moradores com
pouco trabalho. (Brandão, 1997, p. 146)
Diz também, que o mel existente nas árvores, criado pelas abelhas, e o sumo do
piquiá, podem ser chamados de “verdadeiros rios de mel e não os fabulosos maometanos”
(Brandão, 1997, p. 146), sendo complementado com a observação de Alviano que esses são
“os verdadeiros campos Elísios fingidos dos poetas” (Brandão, 1997, p. 147). Assim,
podemos concluir que Brandão ao exaltar a terra do Brasil, aproxima sua imagem à de um
paraíso.
Ambrósio Fernandes Brandão oferece ainda uma informação interessante sobre o
reflexo da descoberta do Brasil em Portugal quando diz que um astrólogo de muito nome,
computando o tempo e hora em que se descobriu o Brasil e do tempo e hora que el-Rei soube
da descoberta, que “a terra novamente descoberta havia de ser uma opulenta província,
refúgio e abrigo da gente portuguesa”, complementando que a isto não se devia dar crédito e
que Alviano roga que “não permita Deus que padeça a nação portuguesa tantos danos que
venha o Brasil a ser o seu refúgio e amparo” (Brandão, 1997, p. 15).
A citação exibe o prestígio, na época, do astrólogo numa sociedade em que a
“astrologia desempenha um papel muito maior do que a astronomia – parente pobre, como
disse Kepler” (Koyré, 1982, p. 47). As palavras de Brandão sugerem um desígnio ou profecia
que, apesar da prece de Alviano, veio a realizar-se em 1808, diante da iminência da invasão
de Lisboa por Napoleão, e transformou, de fato, o Brasil no refúgio e abrigo da nação
portuguesa. Sob o aspecto do amparo, convém lembrar que os sucessivos ciclos econômicos
do período colonial (açúcar, ouro), constituíram-se, sem dúvida, no principal suporte
econômico e financeiro ao reino português.
Poucos anos depois de Brandão, o frei Vicente do Salvador na sua História do Brasil
fez um discurso cuja característica principal é a denúncia do descaso dos reis de Portugal e
dos povoadores com relação à terra do Brasil. Dos reis afirma que só desejam “colher as suas
rendas e direitos” (Salvador, 1982, p. 57) e dos povoadores vindos de Portugal e os que aqui
nasceram que “usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para
desfrutarem e a deixarem destruída” (Salvador, 1982, p. 58).
62
Para estabelecer os limites da terra do Brasil utiliza, como outros cronistas do período
colonial, as informações do cosmógrafo Pedro Nunes reafirmando que o Brasil
[...] começa além da ponta do rio das Amazonas, da parte do oeste, no porto de Vicente
Pinson que demarca em dois graus da linha equinocial pera o Norte, e core pelo sertão até
além da baía de São Matias, por quarenta e quatro graus, pouco mais ou menos, pera o sul,
e por esta medida (diz o mesmo cosmógrafo) tem o Brasil pela costa mil e quinhentas
léguas. Porém, dado que assim seja na teoria, a prática e não chegar o Brasil mais que até o
rio da Prata, que está em trinta e cinco graus, e contudo ainda tem mais de mil léguas por
costa. (Salvador, 1982, p. 59)
Esses limites permitem ao autor desenhar o território do Brasil, de forma similar
àquela apresentada por Gândavo, ou seja, como uma harpa:
[...] é a terra do Brasil da figura de uma harpa, cuja parte superior fica mais larga ao norte
correndo do oriente ao ocidente, e as colaterais, a do sertão do norte a sul, e da costa do
nordeste a sudoeste, se vão ajuntar no rio da Prata em uma ponta à maneira de harpa.
(Salvador, 1982, p. 59)
Sobre a profundidade do território do Brasil para o interior, frei Salvador não
esclarece, porém acrescenta a conhecida crítica aos portugueses:
[...] da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve
quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de
terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar
como caranguejos. (Salvador, 1982, p. 59)
Essa crítica não procede se considerarmos a expansão territorial do Brasil, iniciada em
meados do século XVI, que partindo principalmente da capitania de São Paulo foi fator
decisivo para a alteração dos limites do território do Brasil fixado no Tratado de Tordesilhas
(Holanda, 1989, v.1, p. 273-296).
O frei Vicente do Salvador retoma no seu discurso a possibilidade apresentada
inicialmente por Ambrósio F. Brandão nos Diálogos das grandezas do Brasil, do Brasil servir
de “refúgio e abrigo da gente portuguesa” no caso de uma invasão:
[...] se alguma hora acontecesse (o que Deus não permita) ser Portugal entrado e possuído
de inimigos estrangeiros, como há acontecido em outros reinos, de sorte que fosse forçado
passar-se el-rei com seus portugueses a outra terra, a nenhuma o podia melhor fazer que a
esta. (Salvador, 1982, p. 145)
Depois de apresentar os motivos pelos quais o rei de Portugal não deveria se deslocar
para as ilhas ou para a Índia, mas sim para o Brasil que
63
[...] como ser grande, fica em tal distância e tão fácil à navegação, que com muita facilidade
podem cá vir e tornar quando quiserem ou ficar-se de morada, pois a gente que cabe em
menos de cem léguas de terra que tem todo Portugal bem caberá em mais de mil que tem o
Brasil, e seria este um grande reino, tendo gente, porque adonde há as abelhas há o mel, e
mais quando não só das flores, mas das ervas e canas se colhe mel e açúcar, que de outros
reinos estranhos viriam cá buscar com a mesma facilidade a troco das suas mercadorias,
que cá não há. E da mesma maneira as drogas da Índia, que daqui fica mais vizinha e a
viagem mais breve e fácil, pois a Portugal não vão buscar outras coisas senão estas, que
pão, panos e outras coisas semelhantes não lhe faltam em suas terras. Mas toda esta
reputação e estima do Brasil se acabou com el-rei D. João, que o estimava e reputava.
(Salvador, 1982, p. 145)
Podemos perceber nos discursos desses cronistas do período colonial que a primeira
imagem que fazem do território, construída principalmente a partir da inocência encontrada na
nudez dos seus habitantes e na exuberância da natureza tropical, é de tão grande
deslumbramento que se confunde freqüentemente com a imagem do paraíso perdido. A
ocupação e colonização do Brasil introduzem modificações também nesses discursos que
passam a oferecer, em doses variáveis, imagens menos idealizadas, mas sempre destacando a
beleza e grandiosidade de sua natureza e que refletem, algumas vezes, a realidade de um
território ocupado para servir aos interesses mercantilistas do absolutismo português e que,
portanto, não se propõe a cuidar da terra e muito menos de sua gente, que passa a ser vista
como hostil, no momento em que tenta se defender da invasão e da imposição da escravidão.
Há pouca variação quanto à imagem do contorno da terra do Brasil, inicialmente estabelecida
pelo cosmógrafo Pedro Nunes, e reiteradas vezes reproduzida pelos cronistas, assim como a
forma de harpa proposta por Gândavo. Associado a essa imagem, devemos destacar a
proposição nos Diálogos das grandezas do Brasil, de Brandão, e na História do Brasil, de
Vicente do Salvador, do Brasil como o local de um possível “refúgio e abrigo da gente
portuguesa”.
Essa era, em poucas palavras, a imagem do território do Brasil quando Simão de
Vasconcellos publicou a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, em 1663,
tendo como introdução as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil.
O desenho da terra do Brasil esboçado por Simão de Vasconcellos nas Noticias parte
de uma forma geométrica simples:
Sua forma he triangular pella parte do Norte, & logo pella do Oriente que respeita aos
Reynos de Congo, & Angola, he lauada das agoas do Oceano. Traz seu principio de
junto ao rio das Almazonas, ou graõ Pará, pella terra que chamão dos Caribás, da banda
do Loéste, desde o riacho de Vicente Pinçon, que demora debaixo da linha Equinocial,
& vai acabar (segundo o que está de pósse) em outro grande rio, a que chamão da Prata,
64
& saõ duas faces do triangulo, & a terceira vem a fazer a linha do sertão. (Vasconcellos,
1668, p. 29)
Deste desenho geométrico da terra do Brasil observe-se a informação do autor, quando
faz referência ao limite sul, quando diz que vai acabar no rio da Prata “segundo o que está de
pósse”. Essa forma geométrica do Brasil já havia sido descrita por Pero de Magalhães
Gândavo e por frei Vicente do Salvador, que afirmavam que a forma do Brasil era semelhante
a de uma harpa. Nesse desenho, triangular ou de harpa, as duas faces do triângulo
correspondentes ao litoral estão perfeitamente definidas pelo oceano, já a terceira face, a linha
do sertão, tinha então um contorno impreciso.
Os mapas, indispensáveis aos navegadores, no período dos descobrimentos eram
elaborados em Lisboa nos Armazéns da Guiné e Índia, onde ficavam “guardados, sob o mais
rigoroso sigilo, os padrões cartográficos que iam sendo atualizados pelas informações dos
pilotos que regressavam das muitas viagens; estes pilotos tinham a obrigação de ali restituir as
cartas náuticas e instrumentos que recebiam antes de cada viagem” (Guedes, 2004, p. 38). No
século XVI, nos Paises Baixos, surgiram algumas produções cartográficas de alta qualidade
como o Atlas (1569), de Gerard Mercator, e o Theatrum orbis terrarum (1570), de Abraham
Ortelius (Guedes, 1999, p. 67). Em 1592, Jan Huygen van Linschoten que havia viajado de
Portugal para a Índia como secretário do arcebispo de Goa, retornou aos Paises Baixos e
publicou três livros: Diário das navegações dos portugueses no Oriente (1595); Itinerário,
viagem ou navegação de Jan Huygen van Linschoten para o Oriente ou Índia Portuguesa
(1596); e Descrição de todas as costas de Guinea, Manicongo, Angola, Monomatapa, ...
seguida de uma descrição da Índia Ocidental (1596). Esses mapas e informações, juntamente
com as cartas náuticas adquiridas por Petrus Plancius do cartógrafo portugues Bartolomeu
Lasso, permitiram que os holandeses iniciassem suas grandes navegações e constituíssem as
Companhias das Índias, Oriental em 1602 e Ocidental em 1621 (Guedes, 1999, p. 68-70).
Os mapas desse período mostram o continente americano com limites e contornos
variáveis segundo a sua origem e finalidade, afinal “os mapas são instrumentos políticos”
(Magalhães, 1998, p. 42). Um desses mapas, incluído no livro Itinerario, de Jan Huygen van
Linschoten, publicado em Amesterdam, em 1596, apresenta uma deformação com o
conseqüente aumento da extensão da terra “PERVVIANA” (figura 3).
65
Figura 3: Mapa de Jan Huygen van Linschoten (KLOOSTER, 1997, p. 31)
66
Nos parágrafos que se seguem à afirmação da forma triangular do Brasil, Simão de
Vasconcellos estabelece um contorno para a terra do Brasil, de característica inovadora,
através da alteração da origem e o curso dos rios que seriam os limites do território. O ponto
de partida de Vasconcellos são os limites ao norte e ao sul, respectivamente os rios Amazonas
e Prata:
São como duas chaues de prata, ou de ouro, que fechaõ a terra do Brasil. Ou saõ como
duas columnas de liquido crystal, que a demarcão entre nós, & Castella, naõ só por parte
do maritimo, mas tambem do terreno. Pòdem tambem chamarse dous gigantes, que a
defendem, & de marção em comprimento, & circuito, como veremos. Porque he cousa
aueriguada, & praticada entre os naturaes do interior do sertaõ, que estes dous rios, nã
sómente presidem ao mar com a vastidaõ de seus corpos, & bocas; mas tambem com a
extensaõ de seus braços abarcaõ a circunferencia toda da terra do Brasil, fazendo nella
por hũa parte hum semicirculo de mais de mil, & quinhentas legoas; & por outra mais
ao largo, outro, de mais de duas mil, com taõ desusadas marauilhas, como logo
veremos. (Vasconcellos, 1668, p. 30)
A associação que Vasconcellos faz do rio da Prata e do rio Amazonas como chaves de
prata ou ouro, foi utilizada quase um século depois por Antonio de Santa Maria Jaboatão, em
Novo Orbe Seráfico Brasílico (1761), quando diz, segundo Laura de Mello e Souza, que o
Brasil é “recluso por duas chaves: uma de prata, demarcando-lhe a porção sul; outra de ouro,
delimitando-lhe o norte” (Souza, 1986, p. 38). Vasconcellos, nesse trecho, deixa claro para o
seu leitor que os rios Amazonas e Prata demarcam entre nós e Castela e, além disso, abarcam
toda a circunferência da terra do Brasil, como dois gigantes que a defendem e demarcam. Na
nota marginal desse parágrafo, Vasconcellos acrescenta a indicação de que os leitores vejam
“& muito em especial a relaçaõ do Padre Christouaõ da Cunha da Cõpanhia de IESV”
(Vasconcellos, 1668, p. 30), referindo-se ao livro Novo descobrimento do grande rio das
Amazonas, de Cristóbal Acuña, publicado em 1641 e, possivelmente, recolhido após sua
impressão por motivo de segurança, o que o tornou, desde sua publicação, num livro muito
raro, como podemos constatar na nota bibliográfica de Rubens Borba de Moraes (Moraes,
1983, v. 1, p. 11). Essa referência de Vasconcellos à “relação” de Cristóbal de Acuña não é a
única nas Noticias, existindo outra em nota marginal do parágrafo 26 (Vasconcellos, 1668, p.
34) e, no parágrafo 32, a afirmação sobre o rio Amazonas de que “fez delle hum Tratado
inteiro o Padre Christouaõ da Cunha da Companhia de IESV que o nauegou, & explorou com
extraordinario trabalho, & cuidado” (Vasconcellos, 1668, p. 39-40). Essas referências são
suficientes para indicar que Vasconcellos teve acesso ao livro de Acuña. Se acrescentarmos a
análise comparativa de Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (Holanda, 1994, p.
67
136-137), que não deixa dúvida quanto ao fato de se encontrarem nos capítulos LXIII, LXX, e
LXXII do livro Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, de Acuña , as fontes do
parágrafo 31 das Noticias de Vasconcellos. Dessa forma, podemos ter a certeza de que
Vasconcellos leu o livro de Cristóbal de Acuña e utilizou parte dele na elaboração das
Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil.
No final do livro de Acuña, encontramos um Memorial “apresentado ao Real
Conselho das Índias sobre o dito descobrimento depois da rebelião de Portugal”, no qual o
autor pede que o rei de Espanha envie ordem a Chancelaria de Quito para a ocupação do rio
das Amazonas. A “rebelião de Portugal” que Acuña faz referência foi a Restauração do trono
português em 1640. A ocupação do rio Amazonas, defendida por Acuña junto ao Real
Conselho das Índias, traria oito benefícios para a Real Coroa da Espanha que o autor
relaciona. No quarto item, Acuña trata do fechamento da porta de saída para que “nenhum dos
habitantes do Peru tente lançar-se com os tesouros às correntes deste rio, para escapar aos
impostos que por Cartagena se pagam” (Acuña, 1994, p. 175). O quinto item relaciona como
benefício da ocupação espanhola impedir-se o “comércio e a comunicação que os
portugueses, moradores na boca desse rio, tanto desejam entabular com os de sua nação que
vivem no Peru” (Acuña, 1994, p. 176). No sexto item sustenta que reduzindo as nações que
habitam as ilhas e margens do rio à sua obediência, poder-se-ia por freio e castigar “o mal
visto atrevimento dos portugueses, e fique livre a boca deste rio, para que por ela prossiga a
conquista começada já pelas entradas de Quito” (Acuña, 1994, p. 176). No sétimo item acena
para a possibilidade de conversão dos índios pois “só com eles se beneficiarão as muitas
minas e demais vantagens que a fertilidade da terra propicia em suas nações, dever-se-á, qual
outro novo Peru, aceitar logo sua conquista, e mais ainda com a facilidade com que aqui se
apresenta” (Acuña, 1994, p. 177). No oitavo e último item Acuña aponta para uma possível
aliança entre os portugueses e holandeses:
[...] se ocorresse que os portugueses junto à foz deste rio (já que tudo se pode presumir
de sua pouca cristandade, e menor lealdade) quisessem, ajudados por algumas nações
belicosas que têm sob seu julgo, penetrar rio acima até chegarem às regiões povoadas
do Peru ou ao Novo Reino de Granada, e mesmo sendo verdade que em algumas partes
encontrarão resistência, em muitas outras esta seria bem pequena, por atingir povoados
com escassez de gente, e por fim pisarão naquelas terras vassalos desleais de Vossa
Majestade, que em reinos tão distantes bastaria esse nome de desleais para causar
gravíssimos danos. E se, aliados aos holandeses, como estão muitos no Brasil,
tentassem semelhante atrevimento, já se vê a preocupação que poderiam dar. (Acuña,
1994, p. 178)
68
O discurso de Cristóbal de Acuña sobre a rebelião dos portugueses e a sua defesa da
necessidade de se ocupar o rio Amazonas, oferece-nos uma nova possibilidade de leitura do
discurso de Simão de Vasconcellos sobre o rio Amazonas. Nesse sentido vamos analisar
como Vasconcellos articula o seu discurso, utilizando o discurso de Acuña como base,
adaptando-o ao seu interesse. Em outras palavras, Vasconcellos cria uma versão para a origem
e percurso do rio Amazonas calcado no discurso de Acuña.
Sobre a origem do rio Amazonas, Acuña diz que cada terra tenta atribuir a origem do
rio aos seus domínios relacionando alguns como aqueles que indicam a origem do Amazonas
no rio Marañon, outros no rio Caquetá, na Nova Granada, outros ainda por várias partes do
Peru. O autor, no entanto, situa a origem do rio Amazonas numa lagoa a oito léguas da cidade
de São Francisco de Quito (Acuña, 1994, p. 70-71). Para Vasconcellos a origem dos rios
Amazonas e Prata, segundo os índios versados no sertão, fica numa localidade não muito
específica, em “hũa alagoa famosa, ou lago profundo, de agoas que se ajuntaõ das vertentes
das grandes serras do Chilli, & Perú” (Vasconcellos, 1668, p. 34). Essa lagoa famosa, origem
desses rios, é citada por outros autores que precedem Vasconcellos como, por exemplo, o
padre Jácome Monteiro em sua relação de 1610:
Entre estes Rios, o da Prata é mui famoso, que corre trinta e cinco graus da banda do
Sul, e tem outras tantas léguas de boca. Principia-se em uma fermosa alagoa, rica de
ouro, prata e pedraria. As ribeiras deste rio são povoadas de muitas cidades e vilas de
gente Espanhola.
O 2º é o de S. Francisco, que por uma boca não mais de meia légua do Norte pera o Sul,
descarrega as águas no mar. Está talhado de muitas ilhas, é fundo sobre os mais,
navega-se até 70 léguas, e daí por diante não, por respeito de uma cachoeira que terá de
altura mais de 400 braças, da qual se lança com um medonho estrondo. Querem os
naturais que tenha sua nascença na mesma lagoa donde rebenta o Rio da Prata. [...]
Há outro a que chamam o Rio das Almazonas, por elas o povoarem, como temos certas
relações. Terá 30 léguas de boca, talhado todo de várias ilhas frescas e aprazíveis. Tem
seu nascimento na mesma alagoa que o Rio da Prata e S. Francisco. Por ele abaixo, do
Peru, vieram navegando alguns Espanhóis 600 léguas, deixando outras tantas que ele
fará em voltas, até virem cair no mar oceano. (Monteiro, 2000, p. 394).
Se observarmos o mapa de Linschoten podemos encontrar uma lagoa, com a legenda
“Laguna del dorado”, um pouco acima da metade da linha do sertão que delimitava o interior
da terra do Brasil, segundo o Tratado de Tordesilhas. Observe-se que o que deveria ser uma
linha imaginária, no mapa, não é uma reta ou meridiano, mas um contorno que utiliza o curso
dos rios como limite territorial e do qual a lagoa dourada faz parte.
Acuña é preciso quando trata do percurso do Rio Amazonas dizendo que o rio “segue
seu curso de oeste para leste, [...] sempre próximo à linha equinocial para o lado sul, a dois
graus, três, quatro, cinco e dois terços, na maior altura. Seu comprimento, desde o nascedouro
69
até o desaguar do mar, é de mil trezentos e cinqüenta e seis léguas” (Acuña, 1994, p. 72).
Vasconcellos, por sua vez, atribui ao comprimento do rio Amazonas um valor que varia entre
“mil & trezentas, mil & seiscentas, ou mil & oitocentas legoas, segundo computos varios dos
que o nauegáraõ” (Vasconcellos, 1668, p. 32). Na perspectiva de Vasconcellos, o percurso do
rio Amazonas está ligado ao do rio da Prata, como vimos anteriormente na citação do
parágrafo 22 (Vasconcellos, 1668, p. 30) e do parágrafo 27 (Vasconcellos, 1668, p. 34), e do
que consta do parágrafo 24: “chegaõ no meio do sertão a darse as mãos estes dous rios do
Pará, & da Prata” (Vasconcellos, 1668, p. 32). Quando Vasconcellos descreve o rio da Prata
diz que este dá “a mão ao Grão Parâ, naquelle grande lago, de que nascem” (Vasconcellos,
1668, p. 40). Dessa forma, Vasconcellos transforma o percurso oeste-leste do rio Amazonas,
descrito por Acuña, num percurso semicircular que inclui o rio da Prata fazendo um circuito:
“os que nauegaõ corrente assima de hũ destes rios, leuando as canóas às costas aquella
distancia entreposta, tornão a nauegar corrente abaixo do outro: & esta he a volta, com que
abarcaõ estes dous grandes rios duas mil legoas de circuito” (Vasconcellos, 1668, p. 35).
No discurso de Vasconcellos o percurso do rio Amazonas é associado ao do rio da
Prata e ambos transformados numa divisa que substitui a linha imaginária do Tratado de
Tordesilhas e que ele descreve assim:
[...] a linha de Norte a Sul, que do vltimo ponto desta diuide as terras da America, vai
cortando direita junto ao Rio das Almazonas, pello riacho que chamão de Vicente
Pinçon, & correndo pello sertão deste Brasil, ate ir saír no Porto, ou Bahia de S.
Mathias, quarenta & cinco graos pouco mais ou menos da Equinocial, distante da boca
do grão Rio da prata pera o Sul cento & setenta legoas: no qual lugar, he constante
fama, se meteo marco da Coroa de Portugal [verdade he, que desta linha assi lançada
pera a parte do mar do Oriente possuem os Castelhanos muita terra, nao por costa, mas
dentro do sertão: como se pode ver claramente na demarcação de algũas cartas, que
desta nossa parte assentão algũs lugares da Prouincia de Buenos ayres, Paraguay,
Cordoua, & outras.] (Vasconcellos, 1668, p. 22-23)
Na parte final da citação, entre colchetes, Vasconcellos diz que “possuem os
Castelhanos muita terra, nao por costa, mas dentro do sertão” e escreve na margem “Posuem
os Castelhanos algũa terra, pertencente à demarcação do Brasil” (Vasconcellos, 1668, p.
23), como podemos ver na figura 2, no capítulo anterior. Em outras palavras, antes
mesmo de descrever o contorno da linha de sertão, Vasconcellos afirma que os
Castelhanos possuem terras da demarcação do Brasil. Em seguida, transforma a linha do
sertão no percurso dos rios Amazonas e Prata, com a lagoa dourada no centro, e deslocaos para as “vertentes das grandes serras do Chilli, & Perú” (Vasconcellos, 1668, p. 34). Dessa
forma, Vasconcellos criou, possivelmente pela primeira vez, um contorno do Brasil no
70
discurso espacial barroco que ultrapassou os limites do Tratado de Tordesilhas (1494), quase
um século antes do Tratado de Madri (1750) (Araujo, 2002).
Assim, o desenho do território do Brasil tem, na proposta de Vasconcellos, pelo litoral
a forma de um triângulo, ou semicírculo que envolve dois lados do triângulo, com um
percurso de mil e quinhentas léguas. Pelo sertão, o que deveria ser uma reta – o terceiro lado
do triângulo –, é transformado num semicírculo pelo percurso dos rios Amazonas e Prata
numa extensão de duas mil léguas. Isto significa um aumento de um terço em relação ao
percurso do litoral. Em outras palavras, Vasconcellos diz que o contorno do Brasil pelo sertão
é maior do que o contorno pelo litoral em um terço. Podemos visualizar a imagem desse
território rebatendo o que está a leste da linha de Tordesilhas para o oeste e aumentando sua
extensão em um terço. Uma outra forma de visualizar a imagem do território do Brasil seria
atribuir identidade entre a lagoa onde Acuña afirma que o rio Amazonas tem origem, que ele
situa a oito léguas de S. Francisco de Quito (Acuña, 1994, p.71), e a lagoa onde nasce o rio
Amazonas e que Vasconcellos diz que fica nas serras do Chile e Perú. Nesse último caso o
território do Brasil alcançaria as proximidades de Quito.
Sobre o rio Amazonas, Vasconcellos afirma ainda que além dos autores citados
(Abraham Hortelio, Cristovão da Cunha e Afonso de Ovale), “varias relaçoens outras tiue
diárias em meu poder, de excursoẽs, que por este rio fizerão os moradores da Capitanía de S.
Paulo” (Vasconcellos, 1668, p. 40) referindo-se as entradas e bandeiras que partiam então de
São Paulo como
[...] o périplo de Raposo Tavares que, entre 1648 e 1651, circunda o que seria
posteriormente a fronteira centro-oeste do Brasil. Partindo de São Paulo, sua expedição
atingiu o sopé andino, transitando nas imediações de Santa Cruz de la Sierra, em
seguida atravessando o interflúvio dos Parecis, penetrou na região amazônica, atingindo
Belém, pela rota dos rios Marmoré, Madeira e Amazonas. (Moraes, 2000, p. 394-395)
Complementando, Vasconcellos conclui sua descrição do rio Amazonas dizendo que
“todos concordão, & dizem cousas marauilhosas, & tão grandes, que nenhum peccado
commetterião os que dissessem que junto a este rio plantára Deos nosso Senhor o Paraíso
terreal” (Vasconcellos, 1668, p. 40).
O período em que Vasconcellos escreveu as Noticias curiosas, e necessarias das
cousas do Brasil, entre 1654 e 1661, é posterior à Restauração (1640) e a expulsão dos
holandeses do nordeste. Durante o período de união das Coroas ibéricas (1580-1640) o
território colonial brasileiro sofreu simultaneamente uma expansão e uma fragmentação. A
expansão do “período filipino”:
71
[...] propiciou ampliação do território colonial brasileiro, com expansão nucleada pelas
regiões de colonização já consolidadas que ultrapassa muito as fronteiras definidas em
Tordesilhas. Ao norte, completa-se a instalação na fachada atlântica, dominando a
entrada do vale amazônico, o qual se abre para expedições exploratórias que por ele
trafegam ao longo de todo o século XVII. Nas terras meridionais, a intensificação do
trânsito para o Peru alarga a área de circulação dos paulistas para o sul, perenizando
certos itinerários e certos pousos. E mais, o gado e o apresamento indígena expandem os
espaços conhecidos da colônia em todos os quadrantes do sertão. (Moraes, 2000, p. 352)
Por outro lado, o “período filipino” fragmentou esse mesmo território colonial
brasileiro:
[...] com a soberania portuguesa em várias de suas porções ameaçada ou mesmo
destruída. As terras do extremo norte estão formalmente agrupadas em uma outra
unidade colonial, o Estado do Maranhão, que responde diretamente ao governo
espanhol (sem passar pelo Conselho de Portugal). O litoral nordestino, do Alagoas até o
Maranhão, encontra-se sob domínio holandês. Nas áreas mais meridionais da colônia, a
ocupação missionária carrega — como visto — certa ambigüidade quanto à efetiva
soberania. E, para completar, a zona quilombola de Palmares experimenta uma clara
situação de extraterritorialidade. (Moraes, 2000, p. 365-366)
Após a Restauração ocorreu um processo de consolidação da ocupação territorial da
colônia com a expulsão dos holandeses do nordeste, expansão para o norte e oeste com
anexação das terras do sertão, ocupadas por índios, obtidas através da Guerra dos Bárbaros, a
destruição de Palmares, a migração das missões jesuítas espanholas para além do rio Uruguai
no sul, e no extremo-oeste as bandeiras atingindo a base dos Andes (Moraes, 2000, p. 402)
Podemos concluir que o discurso de Vasconcellos, nesses parágrafos iniciais das
Noticias, faz parte do processo de construção no plano verbal, da ação de expansão e
formação territorial que se desenvolvia no sertão do Brasil. Foi para esse território ampliado,
bem definido pelo limite dos rios e pintado com as cores barrocas da ênfase, como bem
definiu Silvio Castro (1983), que Simão de Vasconcellos desenvolveu a tese da localização do
Paraíso terrestre. Todavia, antes de fazê-lo, precisou tratar dos habitantes da terra, o que não
parece ter sido uma tarefa simples, uma vez que Vasconcellos dedicou metade das Noticias
aos índios.
72
4. O índio no Brasil de Simão de Vasconcellos
Simão de Vasconcellos, antes de construir o Paraíso terrestre sobre o território do
Brasil, viu-se obrigado a abordar o que seria um inconveniente para a sua tese – a presença de
habitantes no Novo Mundo.
Para tratar do assunto Vasconcellos dedica aos indígenas metade da extensão textual
do discurso das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, o que revela a
dimensão do problema. O autor inicia sua abordagem com as perguntas formuladas aos
indígenas pelos primeiros exploradores portugueses:
Em que tempo entraraõ a pouoar aquellas suas terras os primeiros progenitores de suas
gentes? De que parte do mundo vieraõ? De que nação erão? Por onde, & de que maneira
passaraõ a terras tão remotas, sendo que naõ auia entre os antiguos vso de embarcaçoens
muito mais capazes, que as de suas ordinarias canoas? Como naõ conseruàraõ suas cores?
Como naõ conseruàraõ suas lingoas? Como chegàraõ a degenerar de seus costumes, & a
estado tão grosseiro alguns dos seus, especialmente Tapuyas, que pode duuidarse delles, se
nasceraõ de homens, ou são indiuiduos da especie humana? Que Religiaõ seguião? E
finalmente perguntauaõlhes, que bondades eraõ as desta sua terra, & as deste seu clima em
que viuiaõ? (Vasconcellos, 1668, p. 77)
As quatro primeiras indagações estão interligadas e visavam obter respostas que já
partiam do pressuposto de que os índios não eram originários da América, mas de outra parte
do mundo e que de alguma forma teriam chegado ao novo continente. Este é um aspecto de
extrema importância para a tese de Vasconcellos porque, se fosse considerado que os índios
eram originários da América, o fundamento religioso do reencontro do Paraíso ficaria
invalidado e sua tese não teria sentido. Em outras palavras, a presença de seres humanos no
espaço do Novo Mundo criaria um paradoxo neste Paraíso reencontrado pois, após a expulsão
do homem do Paraíso, Deus “postou os querubins a oriente do jardim de Éden, com a chama
da espada fulminante, para guardar o caminho da árvore da vida” [Gn 3:24]. Dessa forma,
Vasconcellos precisava oferecer uma explicação para a presença dos índios no território do
73
Brasil, território este que ele pretendia demonstrar como o espaço do Paraíso e que desde a
expulsão de Adão e Eva não deveria ter sido habitado por seres humanos.
Antes de apresentar as respostas dos índios as perguntas, Vasconcellos faz uma
observação onde diz que “elles naõ tinhaõ vso de liuros, nem outros archiuos mais que os
de suas memorias, & que sómente nestas estampauaõ as historias de suas antigualhas, &
dos successos que pello discurso dos tempos hião ouuindo huns aos outros”
(Vasconcellos, 1668, p. 77-78). O autor passa então a apresentar o que seriam as respostas dos
índios e conclui “estas eraõ as repostas dos Indios a seu modo tosco, & gentilico. Era força
que fossem defeituosas, & he necessario que demos nòs satisfaçaõ por outra via à coriosidade
daquellas perguntas, segundo a capacidade maior dos entendimentos, que Deos nos deu, & da
policia em que nos criamos” (Vasconcellos, 1668, p. 86). O leitor é induzido dessa forma a
rejeitar as respostas dos índios por serem toscas e aceitar as respostas do autor como
verdadeiras. Além disso, a forma como Vasconcellos organiza o seu discurso, sugere, desde o
início, que as respostas dos índios são resultado de um conhecimento proveniente da tradição
oral que ele deixa transparecer sutilmente, tratar-se de algo precário e sujeito a imprecisões e
erros. Entretanto, como veremos adiante, quando analisa a religião dos índios e a
possibilidade da passagem de S. Tomé pela América, Vasconcellos afirma que este exemplo
“mostra com euidencia a fé que deuemos dar às tradiçoens das gentes, ainda que
barbaras” (Vasconcellos, 1668, p. 199). A contradição do autor reforça a articulação do seu
discurso barroco, utilizando o mesmo argumento, a tradição oral, para sugerir que algumas
informações podem ser descartadas, como as respostas dos índios, ou utilizadas para
corroborar as informações sobre a presença de S. Tomé nas Américas. Ou seja, a tradição oral
em si mesma não é importante, mas a apropriação que dela faz o autor para validar a sua
proposição, ora desprezando-a, ora exaltando-a, conforme as necessidades do seu discurso.
Segundo Vasconcellos, a resposta dos índios à primeira pergunta dos portugueses
revelou a ocorrência de um dilúvio do qual se salvara um pajé, de nome Tamanduaré, e sua
família, e que ele recebera orientação para abrigar-se no alto de uma palmeira que ficava no
topo de um monte. Vasconcellos relaciona também a versão do dilúvio documentada pelo
padre jesuíta Afonso de Ovale, na História do Chile, de que “em tempos antiquissimos,
quando ainda naõ hauia Reys Ingas, houuera aquelle diluuio grande; mas que em certas
concauidades de altas serranías ficàraõ alguns homens, que tornàraõ depois a pouoar a
terra” (Vasconcellos, 1668, p. 80). Prosseguindo, o autor reproduz uma outra versão em
que salvaram-se do dilúvio seis pessoas numa balsa, conforme informação de Antonio
Herrera, na História geral das Índias, que desculpa a “ignorancia destes, tanto por sua
74
natural rudeza, como por falta de archiuos” (Vasconcellos, 1668, p. 81). Por último, ele
atribui ao padre José da Costa, da Companhia de Jesus, no seu livro Novo Orbe, a
apresentação da lenda da povoação do mundo a partir de um “homem portentoso” saído
de um lago e chamado de Viracocha. O mesmo autor, segundo Vasconcellos, conta a
lenda da povoação do mundo por homens saídos das entranhas de uns montes e feitos
pelo Sol (Vasconcellos, 1668, p. 81). Nesses três casos, em que ele faz referência no
texto aos autores e suas obras, existe a indicação ao lado, na margem30, do número do
livro ou tomo e do capítulo ou década, realçando a diferença entre a tradição oral dos
índios e a documentação escrita dos europeus. Ainda sobre as informações dessas
tradições orais, Vasconcellos escreve na margem31 do texto “Fabula de Tamanduarè
[...]”, “De outros modos fabulosos sobre o diluuio” e “Modos mais ridiculos sobre o
mesmo” (Vasconcellos, 1668, p. 78-81). Essas informações marginais – fábula, modos
fabulosos, modos mais ridículos –, no lugar onde deveriam estar as referências
bibliográficas, desqualificam ainda mais as informações que teriam sido fornecidas
pelos índios.
Prosseguindo, Vasconcellos apresenta as respostas dos índios para as três perguntas –
De que parte do mundo vieram? De que nação eram? Por onde e de que maneira chegaram a
América? – que, segundo os seus antepassados, “vierão da outra parte da terra, que elles
naõ sabião. Que era gente de cor branca: & que vieraõ em embarcaçoens pello mar, &
aportàraõ em hũa paragem, que elles por suas semelhanças descreuião, & os Portugueses
entenderão que vinha a ser a do Cabo frio” (Vasconcellos, 1668, p. 80-81). Observe-se que a
pergunta sobre a nação de sua origem tem como resposta, atribuída aos índios, que era
proveniente de gente de cor branca. Nesse ponto, o autor associa a nação a cor, aproximando a
origem dos índios a dos europeus, numa época, que a palavra nação estava associada ao local
de nascimento da pessoa.
Diziam os índios ainda, segundo o relato de Vasconcellos, que ao chegarem à América
eram dois irmãos e suas respectivas famílias que, posteriormente, se separaram ficando uma
em Cabo Frio e a outra partindo para o rio da Prata e povoando “Buenos aires, Chilli, Quito,
Perù, & as demais daquellas partes” (Vasconcellos, 1668, p. 84). Os que ficaram no Brasil se
multiplicaram e que
30
A edição de 1977 da Crônica da Companhia de Jesus omite duas das três anotações das referências
bibliográficas.
75
[...] diuididos por varias partes do sertão, & maritimo, formàraõ grandes pouoaçoens, que
depois pello tempo diuididas por meio de dissençoens, & guerras, vieraõ a fazer naçoens
distintas, & lingoas varias, nũca ouuidas, nem aprendidas; em costumes, modos, & religiaõ
differentes, & que desta gente viera finalmente a pouoarse o Brasil todo, & delle toda
America. (Vasconcellos, 1668, p. 84)
Observe-se a simetria da povoação da América por dois irmãos, um no Brasil e outro
no Chile e Peru, e a descoberta e divisão do Novo Mundo pelos espanhóis e portugueses,
irmãos da península Ibérica. A simetria é um elemento estético presente na concepção
espacial barroca de Simão de Vasconcellos, como demonstramos em outro trabalho (Araujo,
2000, p. 102-107) analisando a sua proposta arquitetônica, no ano de 1654, para o Colégio da
Bahia.
A quinta pergunta dos portugueses, segundo a exposição de Vasconcellos, reforça a
resposta da terceira, porque parte da premissa de que os índios eram brancos e mudaram a sua
cor. De fato, a resposta que Vasconcellos traduz como uma graça dos índios que propõem
fazer a experiência dos portugueses andarem “nùs ao Sol, & à chuua, quaes nòs andamos; &
vereis logo, que de brancos vos heis de tornar da nossa cor” (Vasconcellos, 1668, p. 84).
Vasconcellos reproduz em seqüência a resposta da sexta pergunta, que indagava como
não haviam conservado suas línguas, ao que diziam que “com o discurso dos tempos,
variedade de lugares, & diuizoẽs que tinhão feito entre si, por causa de seus odios, & guerras,
foraõ forçados chegar a esquecerse dos vocabulos patrios, & ajudarse de outros de nouo
inuentados” (Vasconcellos, 1668, p. 85).
Sobre a sétima pergunta feita aos índios, de como degeneraram dos seus costumes,
Vasconcellos não apresenta resposta passando diretamente para a resposta da oitava pergunta
sobre a sua religião. A resposta atribuída aos índios é de que
[...] muitos seculos depois do diluuio andàrão por suas terras huns homens brancos,
vestidos, & com barba, que dizião cousas de hum Deos, & da outra vida, hum dos quaes se
chamaua Sume, que quer dizer Thome; & que estes não forão admitidos de seus
antepassados, & se acolhèrão pera outras partes do mũdo; ensinandolhes com tudo primeiro
o modo de plantar, & colher o fruto do principal mantimento de que vsaõ, chamado
mandioca. (Vasconcellos, 1668, p. 85)
Vasconcellos omite nessa resposta a informação, que já havia apresentado na resposta
da primeira pergunta, sobre a existência entre os índios da crença numa “excellencia
superior, & vem a ser o mesmo que Deos” (Vasconcellos, 1668, p. 78) de nome Tupã,
possivelmente por ser uma “Fábula” como havia anotado na margem do texto.
31
A edição de 1977 da Crônica da Companhia de Jesus omite todas as anotações marginais que não sejam
76
Para responder a última pergunta, sobre a bondade da terra, Vasconcellos afirma que
os índios “mostrauão com longas historias, & exemplos, as descripçoẽs das cousas, que a seu
modo tinhaõ por de maior momento; como a de seus arcos, & frechas, das pennas com que se
enfeitauaõ, das frutas agrestes que comiaõ, & de que faziaõ seus vinhos; & eraõ das cousas
que em seus olhos auultauão mais” (Vasconcellos, 1668, p. 85-86) e confessando que os
índios deixavam “por de menos conta, a prata, o ouro, o ambar, & as pedras preciosas; às
quaes tem dado titulo de grandes, nossa real cobiça” (Vasconcellos, 1668, p. 86).
Simão de Vasconcellos descarta essas respostas dos índios, por considerá-las
defeituosas, e inicia um processo de resposta que estabelece como premissa duas resoluções.
A primeira, de fundamentação religiosa, é a de que a América não poderia ter sido povoada
diretamente por remanescentes do dilúvio porque, segundo a Bíblia, salvaram-se apenas oito
pessoas da família de Noé. A segunda resolução é a de que era incerto o tempo em que
chegaram à América os primeiros povoadores. Tendo essas premissas como ponto de partida,
o autor apresenta nove hipóteses para a povoação da América. Relacionamos a seguir as oito
primeiras hipóteses, acompanhadas da datação que o autor utiliza como sendo a data do
dilúvio, ano de 1656 após a criação do mundo, e, eventualmente, a referência bibliográfica
que ele apresenta.
Nº
1
Hipótese
Ophir Indico a partir da costa do
Peru e México (Vasconcellos, 1668,
p. 88-89).
2
Remanescentes da construção da
torre de Babel (Vasconcellos, 1668,
p. 89).
3
Hebreus enviados por Salomão em
busca de especiarias, metais e pedras
preciosas (Vasconcellos, 1668, p.
89-93).
4
Os mesmos hebreus da terceira
hipótese em naus desgarradas
(Vasconcellos, 1668, p. 93).
Troianos, companheiros de Enéas,
remanescentes de Tróia e após sua
derrota (Vasconcellos, 1668, p. 9394).
Africanos, após a destruição de
Cartago
pelos
Romanos
5
6
Datação
Ano de 1700 da
criação do mundo, 45
anos após o dilúvio, e
2088 a.C.
Ano de 1788 da
criação do mundo, 131
anos após o dilúvio, e
2174 a.C.
Ano de 2933 da
criação do mundo e
1028 a.C.
Referência bibliográfica
Padre Ioão de Pineda da Companhia
de Jesus, De rebus Salomonis, liv. 4,
cap. 16, fol. 212.
Ano de 2806 da
criação do mundo e
1156 a.C.
Padre Fr. Ioão Pineda, liv. 3, cap. 12,
parag. 3, e liv. 14, cap. 25, parag. 1.
Monarch. Lusit. fo. 62.
Versos de Virgílio.
Monarch. Lusitan. liv. 1, cap. 2, fol.
107.
Ano de 3833 da
criação do mundo e
referências bibliográficas, além de omitir algumas dessas.
Monarch. Lusitan. tom 1, fol. 8 verso
e liv. 1 tit. 22.
Padre Ioão de Pineda da Companhia
de Jesus, De rebus Salomonis, liv. 4,
cap. 16, fol. 214 e 215.
Frei Gregorio Garcia, Indiorum
occidentalium origine, livro 4.
77
(Vasconcellos, 1668, p. 94-95).
7
Gentes das dez tribos dos judeus
antigos (Vasconcellos, 1668, p. 9596).
8
Fenícios africanos na mesma era dos
Cartagineses (Vasconcellos, 1668,
p.96).
149 antes da Redenção
dos homens.
Ano de 3226 da
criação do mundo e
724 antes da Redenção
dos homens.
Ano de 3833 da
criação do mundo e
149 antes da Redenção
dos homens.
Esdras, liv. 4, cap. 13.
Diodoro Siculo, liv. 6, cap. 7.
Ao apresentar a sétima hipótese, Vasconcellos aproxima os índios dos judeus
ressaltando as similaridades em seus costumes, ao afirmar com base em comentário “apud
Cornel. in Genes. fol. 28. in Tabula” que:
[...] na verdade, muito grande proua faz por esta parte a semelhança que ha de costumes entre estes
Indios, & aquelles antiguos Iudeos: como he o serem medrosos, couardes, supersticiosos,
mentirosos, conseruadores da gèraçaõ de seus irmãos, casandose com as cunhadas, quando
aquelles morrem; lauaremse a cada passo nos rios, & outros vsos, em que conformaõ com esta
nação. (Vasconcellos, 1668, p. 95-96)
Antes de apresentar a última hipótese o autor levanta novamente a questão da
incerteza do tempo em que a América foi povoada, fazendo referência à antigüidade dos
monumentos arquitetônicos encontrados pelos espanhóis na Nova Espanha, coligidos por
“Pero Bercio em sua Geografia, & Theodoro de Bry” e a anotação na margem de “Oualle na
Hist. de Chilli. liu. 3. cap. 1. fol. 81.” (Vasconcellos, 1668, p. 96-97). Prossegue questionando
como os animais, como onças e tigres, passaram para esta parte do mundo após o dilúvio e
indaga se a América é ilha ou terra firme. Sobre esta última questão relaciona “Jacobo
Chineo” (liv. 1 cap. 20), “Gemma Phrisio” (capítulo terceiro da divisão do mundo) e o autor
do livro Theatrum orbis que não apresentavam uma posição definitiva sobre a questão uma
vez que ninguém ainda havia explorado o estreito de “Fretum Dauis” ao norte bem como o
Estreito de Magalhães, ao sul. Assim, Vasconcellos, na sua nona hipótese, discute a forma
como chegaram os povoadores à América e a possibilidade de terem passado por terra firme
ou atravessado um estreito. Como ainda não existia um parecer definitivo sobre se a América
era ou não uma ilha, o autor propõe que a solução fosse condicional em conformidade com a
opinião do padre Ioseph da Costa (José de Acosta), da Companhia de Jesus, no livro De
natura Novi Orbis (Vasconcellos, 1668, p. 97-100).
Após apresentar essas nove hipóteses Vasconcellos conclui a resposta da primeira
pergunta com a seguinte indagação:
78
[...] he incerto em que tempo passáraõ a estas partes os primeiros pouoadores dellas: porque alèm
da incerteza de opinioẽs tão varias, como vimos, com esta vltima sentença se demonstra mais;
porque se atè hoje se naõ pode aueriguar se pellas partes vltimas desta terra se podia passar a pè
enxuto, ou se de força se hauia de passar por agoa, nem que distancia tinha esta: como se poderia
aueriguar, quando passárão os primeiros que vierão pouoar este mundo? (Vasconcellos, 1668, p.
99-100)
Sobre as três perguntas seguintes, Vasconcellos propõe que cada um deve aceitar
como resposta, segundo as hipóteses apresentadas, aquela que “melhor lhe parecer” uma vez
que “tudo saõ opinioẽs” (Vasconcellos, 1668, p. 100). Aproveitando essa possibilidade,
Vasconcellos acha oportuno apresentar a opinião de “Platão, & de outros Philosofos seus
antecessores: porque por meio desta (se he verdadeira) se responde com muito maís facilidade, &
breuidade a todas as quatro perguntas ventiladas” (Vasconcellos, 1668, p. 100). A opinião em
questão é a da existência de uma grande ilha, defronte ao mar Mediterrâneo e das Colunas de
Hércules, maior que a África e Ásia, chamada de Atlante e que havia submergido no oceano após
um grande terremoto (Vasconcellos, 1668, p. 101). Vasconcellos cita um trecho do Timeu, de
Platão, em latim, e afirma que segundo a “opinião destes Philosofos, esta ilha de tão agigantada
extensaõ, era naquelle tempo continua com a que hoje chamamos America, & todo hum corpo
somente, a que chamauão ilha de Atlante” (Vasconcellos, 1668, p. 102), o que justifica dizendo que
o espaço do mar Atlântico até a Nova Espanha não é maior que a extensão da África e Ásia, sendo
então necessário acrescentar à ilha Atlante o espaço da América para que “de ambas sahisse a
grandeza monstruosa que lhe dauão” (Vasconcellos, 1668, p. 102).
Essa nova possibilidade, da continuidade entre a ilha de Atlante e a América, permite que
Vasconcellos não só responda as quatro perguntas, mas demonstre o quanto está respaldado ao
afirmar: que Marcilio Ficino tinha como verdadeira a história da ilha Atlante, no Timeu de Platão;
que Abraham Hortelio tenha dito que a América foi descrita por Platão sob o nome de ilha Atlântica
e que Plutarco seguia a mesma opinião; que o autor do livro Do Mundo, atribuído a Aristóteles ou
Teofrasto, corrobore a existência da ilha Atlante; que Plínio descreveu a navegação de Hanon
Carthaginense à América da mesma forma que Zarate na sua História. Afirma ainda, que o Curso
Conimbricense relaciona alguns autores que apóiam a existência da ilha sem a contestar. Conclui
que a opinião da existência da ilha de Atlante faz força ao seu entendimento
[...] naõ só o seguilla Platão, homem de tanta autoridade, chamado naquelles tempos por
antonomasia, o Diuino, luz de toda a Philosofia, & de todos seus segredos, & taõ serio em
todo seu dizer: mas tambem o modo com que falla, quando a segue, descreuendoa cõ todas
suas particularidades, [...]. Tudo isto parece està metendo medo a duuidar de hum homem taõ
serio, pera se poder cuidar delle que escreueo patranhas. (Vasconcellos, 1668, p. 106)
79
Esta declaração de Vasconcellos é surpreendente e revela o valor da autoridade de
Platão para um jesuíta cuja formação era alicerçada na filosofia de Aristóteles. Mostra
também o esforço e a tentativa do autor em estabelecer uma hipótese plausível, do ponto de
vista racional, que conciliasse a narrativa da origem da povoação da América com as fontes
documentais que ele dispunha. Nesse enfoque, o Timeu de Platão é considerado como uma
fonte e o procedimento de Vasconcellos aproxima-se do procedimento de um historiador
moderno. O que, por sua vez, revela um outro comportamento de suma importância na
transição do mundo medieval para o mundo moderno que foi a superação da argumentação
fundada na fé, pura e simples, pela argumentação lógica e racional. Em outras palavras, no
século XVII, tem início a superação da indução aristotélica através do pensamento e dos
métodos científicos de Galileu Galilei, Francis Bacon e Rene Descartes. Nesse contexto, a
hipótese de Vasconcellos mostra a tentativa de conciliação entre os discursos da fé católica,
como o dilúvio, e o real, como a existência de habitantes no Novo Mundo, que são explicados
pela passagem através de uma ilha descrita num texto, de Platão, que é tratado como fonte. O
esforço de Vasconcellos pode ser entendido como uma manifestação estética barroca, na qual
o autor busca conciliar opostos produzindo uma nova unidade: “esta é uma atitude
fundamental da arte barroca. Um conflito de forças antagônicas mesclando-se numa unidade
subjetiva, e assim resolvida” (Panofsky apud Araujo, 2000, p. 106). A opção de Vasconcellos
pela origem atlante dos índios do Brasil colonial, na opinião de Ronald Raminelli,
aproximava-os dos europeus:
A origem atlante do gentio, com certeza, somou-se aos esforços dos padres, pois a natureza
dos ameríndios em nada diferia da dos europeus. Desse modo, padres, colonizadores e
índios provêm de um mesmo espaço, foram forjados por um único criador, portanto
possuíam as mesmas capacidades. (Raminelli, 1996, p. 28)
A próxima pergunta analisada por Vasconcellos é aquela que tem implícita na sua
formulação a afirmação de que os índios mudaram de cor ao longo do tempo. Entretanto, o
autor afirma que a resposta dos índios, de que o calor a que estavam expostos seria a causa da
sua cor, estava de acordo com a filosofia e a experiência:
[...] os Philosofos concordão, que a cor branca procede de summa frialdade, como se vè na neue: &
a negra de summo calor, como se vè no pez. Por isso Aristoteles attribue a brancura do cisne, à
frialdade do ventre da mãy; & a negrura do coruo, ao calor do ventre da mesma. E destes dous
extremos se tiraõ as cores entremeias, vermelha, amarela, verde, &c. segundo diuersa intensaõ de
calor, ou frio: quanto mais participaõ do calor, tanto mais se chegaõ ao preto; & quanto mais do
frio, tanto mais ao branco: assi que foi opiniaõ dos Indios, conforme a Philosofia. E foi tambem
conforme a experiencia; porque segundo isto, vemos, lançando os olhos por todos os climas do
mundo, tanta differença de cores nos homens; & tudo nasce do temperamento diuerso de que
80
gozão. Os Europeos, quanto mais chegados ao Polo gelado, tanto mais brancos saõ; como
Olandezes, Flamengos, Alemães. E pello contrario os Africanos, Asianos, Americanos, quanto
mais chegados ao torrido da Zona, onde mais predomina o calor, tanto mais pretos saõ. E daqui
vem que huns nascem aluissimos, outros mais baços, outros tostados, outros fuluos, outros
vermelhos, outros pretos, outros sobre o preto azeuichados. (Vasconcellos, 1668, p. 107-108)
Na opinião de Vasconcellos esta resposta tinha como inconveniente o fato de que os
portugueses expostos ao sol no Brasil, andando nus ou quase, não mudavam de cor nem os
seus filhos nasciam de outra cor. Da mesma forma, ele constata que os índios que foram para
a Europa não perderam sua cor, nem seus filhos nasceram mais claros. Em outras palavras,
Vasconcellos rejeita a hipótese de que apenas o clima seria o responsável pela cor dos seres
humanos.
Tentando esclarecer o problema, Vasconcellos diz que “Aristoteles parece que atribue a
differença destas cores à imaginatiua, segundo aquelle dito seu: Imaginatio facit causam”
(Vasconcellos, 1668, p. 109), porém não apresenta nenhuma indicação de qual obra de Aristóteles
se refere, o que facilitaria o resgate do contexto em que foi enunciada. A citação em latim é uma
tradução do original em grego, o que cria mais um problema para a localização da citação na obra
de Aristóteles. Podemos traduzir Imaginatio facit causam como a imaginação cria o resultado, e
neste sentido Vasconcellos relata três casos em que a imaginação produziu o resultado. No primeiro,
diz que Quintiliano defendeu de adultério uma mulher branca que pariu uma criança negra,
mostrando que no aposento em que foi concebida existia um retrato de um etíope. No segundo caso,
Vasconcellos faz referência a Tasso e a Clorinda, que nasceu branca filha de pais negros porque o
local onde foi concebida existia uma pintura de uma virgem branca. No terceiro caso, ele faz
referência a Heliodoro afirmando que Cariclea nasceu branca porque sua mãe, rainha da Etiópia,
costumava olhar para um retrato de Andrômeda branca. É interessante notar que Clorinda é
personagem do poema épico Jerusalém libertada, de Torquato Tasso (1544-1595), cuja concepção
assemelha-se a de Clariclea do romance As etiópicas ou Theágenes e Kharicléia, de Heliodoro
(século III), ou seja, dois dos três casos relatados por Vasconcellos correspondem a
personagens e o poema e o romance são tratados como fonte. Entretanto, ele afirma que esses
e outros casos não são suficientes porque “de successos singulares, naõ se argumenta com efficacia
pera o géral, que sempre acontece” (Vasconcellos, 1668, p. 110). Em outras palavras, o que
Vasconcellos afirma é que a indução neste caso não seria suficiente porque seria “necessario prouar
no nosso caso, que sempre os Indios desta terra ao tempo da conceição tem na memoria a sua cor
vermelha” (Vasconcellos, 1668, p. 110), o que, nas suas palavras, não tem probabilidade alguma.
Descartada a possibilidade da imaginação influenciar a cor dos índios, Vasconcellos
apresenta o seu parecer sobre a pergunta dizendo que a cor dos índios procede do calor, porém do
81
“calor reconcentrado, & tal, que venha a ficar em natureza” (Vasconcellos, 1668, p. 111), o que ele
explica da seguinte forma:
Aquelle primeiro homem, que no Brasil começou a cortirse ao calor do Sol (& o mesmo digo
em Angola, & nas outras partes, onde houue mudança de cores) pella continuação do largo
tempo de sua vida foi adquirindo temperamento intrinseco, & natural, mais calido que dantes: o
qual, suposto que naõ foi bastante nelle pera mudar especie de cor total, porque esta necessita de
grao de calor mais intenso; foi com tudo bastante pello menos pera embaçarlhe as cores, &
adquirir temperamento mais calido: com este gèrou depois o filho; & o filho viuendo na mesma
forma que o pay, acrescentou outro grao de calor, & temperamento, & o neto outro; atè que
pouco, & pouco veio hum destes a ter aquella intensaõ de calor, & temperamento necessario
pella Philosofia pera especie de cor differente; & foi a vermelha, a que somente pòde chegar o
grao de calor, & temperamẽto do clima. E esse tal temperamento, digo eu, que chegou a ser
conuertido em nature za; & que he força que se transfunda pera isso na virtude seminaria no
macho, & na femea, & que por meio della passe a toda a géração de pays a filhos.
(Vasconcellos, 1668, p. 111-112)
Vasconcellos afirma que não encontrou esta explicação em livros e em nenhum autor.
A constatação do autor é correta, uma vez que, em geral, estabelece-se a origem científica da
genética, nos estudos de Gregor Mendel, por volta de 1865. Todavia, o médico inglês William
Harvey publicou em 1651 Exercitationes de Generatione Animalium, apresentando algumas
alterações na teoria de Aristóteles:
The book is mainly concerned with the development of the chick in hens' eggs, and
Harvey insisted throughout that in all living things the origin of the embryo is to be
found in the egg. He investigated also the embryology of deer, rejecting Aristotle's
notion that menstrual blood played any part in the formation of the fetus; he also
questioned whether or not semen had any influence. Having no microscope, he could
not see the spermatozoa, which were not demonstrated until 1686 by Leeuwenhoek
working in Holland with stronger lenses. Harvey remained uncertain of how
fecundation of the ovum was accomplished and even suggested that it was by a kind of
infection resembling the origin of infectious diseases. Aristotle had originated the
theory of gradual formation of the embryo, part by part, as opposed to the idea of
preformation, meaning that all the parts arose in miniature at the same time. Harvey
agreed with Aristotle and crystallized the belief in the term epigenesis, though to him its
meaning was extremely simple compared with all that is implied by it at the present
time. (Britannica)32
32
O livro apresenta interesse sob o aspecto histórico e científico, porém o pensamento de Harvey foi muito
influenciado por Aristóteles. O livro aborda principalmente o desenvolvimento do embrião do pinto no ovo de
galinha e Harvey insistiu sempre que em todas as formas vivas a origem do embrião estava no ovo. Ele
investigou também a embriologia do cervo, rejeitando a noção de Aristóteles de que o sangue menstrual tomava
parte na formação do feto; ele também questionou se o sêmen tinha ou não alguma influência. Não tendo
microscópio ele não conseguia ver o espermatozóide, o que foi demonstrado apenas em 1686 por Leeuwenhoek,
trabalhando na Holanda, com lentes mais fortes. Harvey permaneceu em dúvida como a fecundação do óvulo era
efetuada e chegou mesmo a sugerir que era através de uma infecção lembrando a origem das doenças
infecciosas. Aristóteles deu origem a teoria da formação gradual do embrião, parte por parte, em oposição a idéia
da pré-formação, significando que todas as partes aparecem em miniatura ao mesmo tempo. Harvey concordava
com Aristóteles e acreditava na epigenesia, apesar do seu significado então ser extremamente simples se
82
Não existem indicações de que Vasconcellos tenha lido o livro de Harvey, publicado
em 1651 na Inglaterra, doze anos antes da Chronica da Companhia de Jesus, em 1663.
Independentemente deste aspecto, o fato de Vasconcellos apresentar a proposta da
modificação gradual das características do ser humano e a sua transmissão de forma
hereditária33, cerca de duzentos anos antes de Charles Darwin apresentar sua teoria, em 1858
e de Gregor Mendel, em 1865, é, no mínimo, surpreendente. Vasconcellos, no entanto, com o
seu o espírito barroco, para provar sua tese, combina-a com a de Aristóteles que:
[...] em quanto atribue a brancura do cisne à frialdade do ventre da mãy, & a negrura do coruo ao
calor do ventre da mesma: porque em atribuíla ao ventre, dá a entender que he natural aquella
qualidade de frio, ou calor. Porém naõ satisfaz em tudo: porque se o grao do frio do ventre fora a
causa somente deste effeito, produzíra sempre branco o ventre frio, & produzira sempre preto o
ventre calido. E com tudo vemos por experiencia o contrario: porque a mulher branca, de branco
pare branco, & de negro mulato; seja quente, ou fria a disposição do ventre. Donde se tira
manifestamente, que naõ està somente no ventre a virtude do grao do frio, ou calor necessario;
se naõ na virtude seminaria, que depende de ambos os generantes: porque se ambos tem virtude
fria, géraõ branco; se ambos calida, géraõ preto: & se hum fria, outro calida, géraõ mulato de cor
entremeia, nem perfeitamente branca, nem preta. (Vasconcellos, 1668, p. 112-113)
Desta forma, Vasconcellos demonstra sua tese sobre a transmissão da cor dos seres
humanos reformando a teoria de Aristóteles sobre a temperatura do ventre da mãe
adicionando a “virtude seminaria, que depende de ambos os generantes” (Vasconcellos, 1668, p.
113). Temos aqui mais um exemplo da atitude estética barroca de Vasconcellos que articula as
duas teses conflitantes em uma única tese.
Ao ler Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire (1675), o leitor das Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos (1668), não poderá
deixar de perceber a reprodução de passagens da sua obra em Nova Lusitânia, e a
coincidência existente entre as fontes registradas por Francisco de Brito Freire e as fontes de
Simão de Vasconcellos. Apesar disso, Freire não cita nem faz referência às Noticias ou ao seu
autor.
O livro Nova Lusitânia, de Francisco de Brito Freire, publicado em 1675, foi escrito
durante o período em que o autor esteve preso na Torre de S. Gião, entre os anos de 1669 e
1675. Trata-se de uma narrativa das guerras empreendidas pelos portugueses contra os
holandeses por ocasião da invasão do Brasil, no início do século XVII, focalizando apenas os
embates ocorridos entre os anos de 1624 a 1638, embora estas guerras só tenham terminado
com a expulsão dos holandeses em 1654. No início do livro, o autor relata a invasão dos
comparado com tudo o que implica no presente. Disponível em: http://www.britannica.com, acessado em
12/11/2003.
83
holandeses a Bahia em 1624 e a sua expulsão. Em seqüência, narra a invasão de Pernambuco
pelos holandeses, em 1630, e as sucessivas derrotas dos portugueses na Paraíba, Rio Grande
do Norte e Alagoas. No fim do livro descreve a resistência dos portugueses na Bahia e a
expulsão dos holandeses de lá em 1638.
A possibilidade de as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil terem sido
utilizadas como fonte para Nova Lusitânia indica a necessidade de abrirmos um parêntese
para apresentar algumas das passagens desse livro que comparadas às das Noticias podem ser
consideradas como referências à obra de Simão de Vasconcellos. Para a comparação das
obras utilizamos a recente edição de Nova Lusitânia (Freire, 2001).
Iniciaremos a comparação com a descrição de Cabo Frio, que aparece no livro de
Francisco de Brito Freire: “é promontório notável, mui venerado dos índios, pela fabulosa e
antiquíssima tradição de haverem habitado nele duas famílias, que trazidas por divino impulso
da outra parte do mundo, povoaram toda a América” (Freire, 2001, p. 33). Simão de
Vasconcellos, como vimos, ao discorrer sobre as informações dadas pelos índios a respeito da
povoação da América, afirma que dois irmãos chegaram ao Brasil, em Cabo Frio, criando
uma povoação, a primeira da América.
Poucas páginas depois dessa descrição, Francisco de Brito Freire faz a pergunta “quais
seriam os povoadores que deram princípio na América à geração humana?” (Freire, 2001, p.
35). A indagação guarda muita semelhança àquela formulada por Simão de Vasconcellos no
que diz respeito à origem dos índios. As hipóteses apresentadas por Freire coincidem com as
hipóteses relacionadas por Vasconcellos, ainda que ao fim optem por diferentes explicações.
Além disso, as referências bibliográficas apresentadas por Freire, quando existem, são as
mesmas de Vasconcellos. As hipóteses apresentadas por Freire são: gentes vencidas de
Cartago; gente de Tróia; naturais da Fenícia; fabricadores frustados da Torre de Babel (Freire,
2001, p. 35). Freire considera essas hipóteses “opiniões ridículas” e acha mais verossímil a
hipótese da povoação por Ofir Indo, acrescentando em nota “Assim o prova largamente o
Padre João de Pineda, Lib 4, cap. 16. De rerus Salamonis. Com outros autores.” (Freire, 2001,
p. 35). Além desta hipótese, Freire relaciona mais três, cujas referências são iguais as que
Simão de Vasconcellos relaciona para as mesmas hipóteses:
Hipóteses de Freire
Ofir indo, filho de Jectan, neto de Heber (de
quem trata a Escritura Sagr., cap. 10 dos Genes.)
(Freire, 2001, p. 35)
33
Referências de Freire
Padre João de Pineda, Lib 4, cap. 16. De rerus
Salamonis.
Ver as observações de Ivolino de Vasconcelos (Vasconcelos, 1949).
84
Frotas de Salomão (Freire, 2001, p. 36).
Judeus das dez tribos (Freire, 2001, p. 36).
Passagem de gentes e animais por estreito (Freire,
2001, p. 36).
cap. 7 da Sabedoria34.
Esdras, Lib. 4, cap. 13.
Padre José da Costa, de Nat. Novi orbis. Theatrum
Orbis, tábua da América. Iacobo Chineo lib. I, cap.
20. Gema Phrisio, cap. 3, da Divisão do Mundo.
A última hipótese apresentada por Francisco de Brito Freire, é aquela que ele tem
como “conjetura menos vã” e que aventava a possibilidade da passagem de pessoas e animais
para o Novo Mundo através de um estreito. Vasconcellos, por sua vez, diz que tudo são
opiniões e que cada um poderá seguir o que melhor lhe parecer (Vasconcellos, 1668, p. 100),
acrescentando outra hipótese indicando a origem das gentes e animais na ilha de Atlântida e a
sua passagem para a América através de um estreito, como vimos anteriormente.
As coincidências das hipóteses, referências bibliográficas e citação são um forte
indício de que os autores utilizaram a mesma fonte ou que Freire utilizou as Noticias curiosas,
e necessarias das cousas do Brasil como fonte.
Mesmo numa época anterior à fundação da história científica e crítica, que Anthony
Grafton atribui a Leopold von Ranke, no século XIX (Grafton, 1998, p. 41 e ss.), a nota e a
referência bibliográfica eram formas adotadas pelo autor para legitimar a sua posição.
Todavia, esta atitude científica ainda não era um padrão como podemos constatar na carta do
filósofo David Hume (1711-1776) a Walpole em que se desculpa por não ter incluído na sua
narrativa as referências às fontes. Hume alega que “não teria custado nenhum trabalho” e
confessa que foi “seduzido pelo exemplo de todos os melhores historiadores até mesmo dentre
os modernos, tais como Maquiavel, Fra Paolo, Davila, Bentivoglio” (Hume apud Grafton,
1998, p. 157). Afirma ainda, que a prática das notas “era mais moderna do que sua época, e
uma vez tendo sido introduzida, deveria ter sido seguida por todo escritor” (Hume apud
Grafton, 1998, p. 158). Essa afirmação de Hume, induz Grafton a aventar a hipótese de que a
nota crítica poderia ter surgido “uma geração ou duas antes da época de Hume – por volta de
1700, ou imediatamente antes” (Grafton, 1998, p. 158). Esta hipótese pode ser confirmada
com a obra de Simão de Vasconcellos, através do uso por parte do autor de notas com
referências bibliográficas das fontes utilizadas.
Pouco adiante em Nova Lusitânia, na descrição da terra do Brasil, Freire apresenta
como limites do território “ao norte o Rio das Amazonas, e o da Prata ao sul” (Freire, 2001, p.
37). Em nota ele descreve o Rio Amazonas apresentando a maior parte das referências
utilizadas por Vasconcellos quando este descreve o mesmo rio Amazonas:
34
Freire e Vasconcellos citam, em latim, o mesmo trecho do capítulo 7 da Sabedoria: “Ipse enim dedit mihi horu,
quae sunt, scientiam verum, ut sciam dispositiones orbis terrarum e virtutes elementorum” (Freire, 2001, p.36).
85
Referências de Freire
Liberto Formondo, meteoros, L. 5, c. I; Abranhan
Hort, Theatrum Orbis. Padre Afonso de Ovalle na
descrição do Reino do Chile, L. 4, cap. 12. (Freire,
2001, p. 37)
Referências de Vasconcellos
Liberto Fromondo, no liuro quinto de seus
Meteoros, capitulo primeiro (Vasconcellos, 1668,
p. 31), Abraham Hortelio, Theatrum orbis nas
taboas do Brasil (Vasconcellos, 1668, p. 39), Padre
Affonso de Oualle da mesma Companhia na
Descripção do Reyno de Chilli, liu. 4. cap. 12
(Vasconcellos, 1668, p. 40).
Na nota seguinte, Francisco de Brito Freire descreve o Rio da Prata, comparado ao
Amazonas “como seu irmão segundo, nasce da própria mãe, no mesmo berço daquele
profundíssimo lago. Do qual, para fertilizarem o sertão da América, quase no meio dele saem
ambos opostos e divididos em diferentes braços” (Freire, 2001, p. 37). Da mesma forma,
Vasconcellos diz, em relação ao Amazonas, que é “quasi irmão em agoas, & potencia,
chamado da Prata, por outro nome Paraguay. Dà este a mão ao Grão Parâ, naquelle grande
lago, de que nascem” (Vasconcellos, 1668, p. 40). Vasconcellos apresenta uma citação ao
Theatrum Orbis, tábua 19, que também é utilizada por Freire para encerrar sua nota: “Post
fluuium Amazonum, nulli totius terrarum orbis flumini magnitudine cedit.” (Vasconcellos,
1668, p. 43; Freire, 2001, p. 37). Essas coincidências reforçam a hipótese de que Freire
utilizou as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil como fonte.
Francisco de Brito Freire explica a cor dos índios seguindo a idéia expressa por
Vasconcellos, como veremos adiante, porém antes de abordar essa questão ele registra que
“vivendo em igual distância do mesmo paralelo, aqueles [índios] e estes [negros] habitadores,
uns são vermelhos, outros negros. Deixando o parecer dos que buscam a causa na
descendência de Cam, porque foi do justo Noé desobediente filho” (Freire, 2001, p. 37), ou
seja, Freire diz que abandona a explicação de que a cor dos índios e negros era conseqüência
da desobediência de Cam, do qual seriam descendentes. Este registro poderia ser um indício
da formulação do racismo de Freire que vem à tona, sem disfarce, quando tece “elogio” a
Henrique Dias:
Um negro, indigno deste nome, pelo que emendou ao defeito da natureza o esforço do
ânimo, tomando confiança da nossa falta, por ver que tínhamos dado já aos índios armas de
fogo, e quando carecíamos mais de gente, se ofereceu ao General com a que pudesse juntar
da sua, para servirem como negros e pelejarem como brancos. (Freire, 2001, p. 163-164)
O racismo de Freire, expresso nessa citação, não parece ter sido afetado pela escolha
da tese de Vasconcellos sobre a cor dos índios, que ele praticamente reproduz:
86
[...] dizem os professores da Filosofia que nasce da quentura, depois convertida em
natureza. Assim os primeiros homens que na África ou na América degeneraram de brancos
foram pelo curso do tempo queimando-se ao ardor do sol e adquirindo mais cálido e mais
intrínseco temperamento. Ainda que o espaço de uma vida não era para mudar de todo a
cor, a mudou em parte. Vieram depois os filhos destes, em que se transfundiram outros
graus de calor mais intenso. Nos netos outros, e outros e outros mais em que os mais
descendentes. Com que tiveram causa bastante para a diferença da cor, conforme o
temperamento do clima. Que por ser na Etiópia mais quente, são negros os de Angola; e por
ser na América menos cálido, são vermelhos os do Brasil. (Freire, 2001, p. 37-38)
Esta afirmação de Freire coincide com a tese de Vasconcellos de que a cor vermelha
dos índios do Brasil procede do calor convertido em natureza (Vasconcellos, 1668, p. 111). O
detalhamento dessa conversão em natureza é precedido da informação de que é “cousa que atégora
naõ achei em Autor algum por mais diligencia que fiz” (Vasconcellos, 1668, p. 111) e “que
atégora não achei explicada em liuros” (Vasconcellos, 1668, p. 112).
A tese de Vasconcellos sobre a cor dos índios, da conversão do calor em natureza, de
forma hereditária, foi proposta cerca de duzentos anos antes das teorias científicas de Darwin
(de 1858) e de Mendel (de 1865) sobre o assunto. Foi esta tese, na época inédita, que Freire
incorporou ao seu livro com a informação de que provinha de “professores da Filosofia” sem,
no entanto, indicar os seus nomes. Esta é mais uma indicação da possibilidade de que Freire
tenha feito uso do livro de Simão de Vasconcellos como fonte.
Merece destaque também a menção ao caráter vingativo dos índios feita por Freire ao
descrever os seus hábitos e costumes, muito similar ao relato de um caso narrado por
Vasconcellos:
Vingança do índio segundo Freire
Tão cruelmente vingativos, que sabendo um [índio]
aonde sepultaram por ordem dos padres da
Companhia de Jesus a outro seu contrário, de noite
o foi desenterrar; e fazendo-lhe em pedaços, a que
já parecia mais caveira do que cabeça, brasonava
nesta ação o maior triunfo da sua valentia. (Freirre,
2001, p. 42)
Vingança do índio segundo Vasconcellos
Notauel foi o caso de hum Tapuya Goaytacá de naçaõ;
tinha este por inimigo seu a hum principal da mesma
naçaõ, buscaua occasião de vingarse delle: & com estar
certo, que se acolhéra pera hũa aldea, que estaua a
cargo dos Padres da Companhia, com quem estauaõ
então de paz, & se vendiaõ por amigos seus; não
descançou de vigialo, de noite, & de dia, pera o matar.
E o que mais he, que vindo a saber, que adoecéra o
principal, na mesma aldea, & morréra, & que estaua
enterrado, naõ assocegou. Teue traça pera ir
desenterralo, & assi morto lhe quebrou a cabeça (que
he o modo entre elles de tomar vingança, & fartar o
odio.) E entaõ se deu por satisfeito, valente, & honrado.
(Vasconcellos, 1668, p. 127)
Ainda sobre os índios, ambos os autores concordam que o seu comportamento e modo
de vida levaram os espanhóis, logo que descobriram a América, a considerar que não eram
racionais e, dessa forma, incapazes dos sacramentos, tal como os animais. Nesse sentido,
87
Vasconcellos e Freire relatam, de forma muito próxima, o uso da carne dos índios para a
alimentação dos cães:
Relato de Freire
Deste modo [os índios] serviam nas Índias aos
castelhanos; chegando-os a matar para matarem a
fome aos cães de fila com a carne dos miseráveis
gentios. E de milhão e meio que habitavam a ilha
Espanhola, chegou a não haver quinhentos em
breve tempo. (Freire, 2001, p. 42)
Relato de Vasconcellos
Naquella ilha, testemunha Fr. Bertholameu de las
Casas Bispo de Chiapa, varão de grande authoridade,
que chegárão os Espanhoes a sustentar seus libreos
com carne dos pobres Indios, que pera o tal effeito
matauão, & fazião em postas, como a qualquer bruto
do mato. A Historia géral das Indias capitulo trinta
& tres, fallando da mesma Ilha Espanhola diz, que
vsauaõ aquelles moradores, dos Indios, como de
animaes de serviço, tendo por cousa sua aquelles que
podião apanhar, quaes feras do campo; & que os
fazião trabalhar em suas minas, maltratandoos,
acutilandoos, & matandoos, como lhes parecia. E que
chegára a ficar a ilha por esta rezão hum deserto;
porque de hum milhão, & meio que hauia, chegou a
não hauer quinhentos. (Vasconcellos, 1668, p. 164)
Neste caso, Vasconcellos e Freire utilizam as mesmas fontes como referência: o
capítulo 33 da História Geral das Índias, de Bartolomeu de las Casas, e o capítulo 33, f.100,
da Crônica da Província do México (Vasconcellos) ou História de México (Freire), do frei
Agostinho de Avila35. Sobre o livro de las Casas, Freire acrescenta que: “os castelhanos,
abominando com modéstia católica tão irracionais e desumanas atrocidades, negam ser este o
autor deste livro; e afirmam que a ímpia cavilação de seus inimigos hereges o compusera e
publicara em nome daquele prelado, para o mundo lhe dar mais crédito” (Freire, 2001, p. 42).
Essas coincidências, de texto e referências, sinalizam mais uma vez que o livro de Vasconcellos
foi, provavelmente, utilizado como fonte por Freire.
Nos parágrafos em que trata da questão da racionalidade dos índios, Vasconcellos
comenta um caso, ocorrido em Cabo Verde, em que aparece a descrição de um menino criado
pelos padres da Companhia
[...] filho de hũa escrava, & de hum animal daquellas partes, a que chamaõ mono: era rapaz
bem formado em feiçoens, em corpo, estatura, cabeça, mãos, & pés, como qualquer filho de
homem: viuo, esperto, & que fazia o que era mandado. Pozse em questaõ se era capaz dos
Sacramentos, resolueose que naõ; & que nem deuia ser bautizado. Porém neste era mui
diferente a rezaõ; porque se prouou que o principal progenitor naõ era homem racional, se
naõ animal bruto; & por conseguinte, que naõ tinha alma racional. E logo os sinaes o
mostrauão; porque naõ fallaua, & tinha hum vinculo de cabellos pellos lombos abaixo,
indicios claros do pay que o gérou. (Vasconcellos, 1668, p. 173-174)
35
Vasconcellos e Freire devem estar fazendo referência a: DAVILA Y PADILLA, Augustin. Historia de la
fundacion y discurso de la prouincia de Santiago de Mexico, cuja segunda edição foi publicada em Bruxelas, por
Iuan de Meerbeque, em 1625, conforme catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha (http://www.bne.es).
88
Freire, por sua vez, ao descrever as ilhas de Cabo Verde reproduz a mesma história:
[...] na principal de todas, que é S. Tiago, viu o século passado a estupenda monstruosidade
de um filho de uma negra e um bugio, daqueles maiores a que ordinariamente chamam
‘monos’. Criaram-no os padres da Companhia; moço de ordinária estatura com natural
proporção dos membros: só tinha larga beta de cabelos sobre os lombos e não falava. Mas
fazia esperto o que lhe advertiam. Altercou-se se era capaz dos sacramentos e decidiu-se que
não. Nem foi batizado, por ser animal bruto, o mais nobre dos pais. (Freire, 2001, p. 60)
Tratando do dilúvio, encontramos mais uma coincidência pois ambos os autores indicam a
mesma referência bibliográfica para outros dilúvios posteriores ao de Noé: a História geral das
Índias, de Antonio Herrera, tomo 3, dec. 5 (Vasconcellos, 1668, p. 87; Freire, 2001, p. 43).
No período colonial, os diversos relatos sobre a passagem de S. Tomé pela América
tinham como utilidade consolidar a idéia de que o evangelho fora pregado em todo o mundo
como preconizava a Bíblia. Vasconcellos apresenta indícios da passagem de S. Tomé pela
América ao longo de vários parágrafos e Freire resume os indícios dessa passagem em um
parágrafo. Nesse caso, as referências bibliográficas de Freire coincidem com as de Vasconcellos
como podemos comprovar no que se refere ao relato sobre uma cruz, que fora dada por S. Tomé
aos índios de uma aldeia no mar do sul: frei Joaquim Brulio, História do Peru, L. I, cap. 5. Sobre
a tentativa do “herege Francisco Draque”36 de tentar por três vezes queimar a cruz: padre
Gregorio Garcia, L. 5, cap. 5. Observe-se que além da reprodução exata das referências e da
menção ao “herege Francisco Draque”, nesta segunda referência ambos deixam de indicar o título
do livro. Vasconcellos diz que Fernão Cortez encontrou, na ilha de Cozumel, índios fazendo
procissões com uma cruz quando havia falta de chuvas, com as seguintes referências: Gomara
segunda parte, cap. 15, e Justo Lipsio livro 3º (Vasconcellos, 1668, p. 197). Sobre o mesmo
assunto, Freire apresenta a seguinte referência: “Dom Fernando Pizarro, Varões Ilustres37, Cap. 2,
na vida de Fernão Cortez. Justo Lip. L. 3, falando da cruz. Gomara, parte 2, Cap. 15” (Freire,
2001, p. 43). As duas últimas referências além de serem iguais às de Vasconcellos não apresentam
os títulos da obras. Vasconcellos relaciona ainda, como referência sobre a passagem de S. Tomé
pela América, o livro História Peruana, do padre Antonio de la Calancha, liv. 2, cap. 2
(Vasconcellos, 1668, p. 197). Da mesma forma, Freire relaciona como referência o autor, livro e
capítulo, porém omitindo o título.
36
O herege em questão é o conhecido corsário inglês Francis Drake (1540-1596), que pelas suas atividades no
mar recebeu o título de cavalheiro e o tratamento de Sir Francis Drake.
37
Vasconcellos não faz referência a esta obra, cuja referência deve ser: PIZARRO Y ORELLANA, Fernando.
Varones ilustres del nuevo mundo, descubridores, conquistadores y pacificadores. Madrid: Diego Diaz de la
Carrera, 1639. (catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal: http://www.bn.pt)
89
Ainda sobre a passagem de S. Tomé pela América, Vasconcellos trata em um
parágrafo da posição de Cornélio a Lapide sobre o capítulo 16 do Evangelho de S. Marcos.
Lapide não achava verossímil que os poucos apóstolos conseguissem correr o mundo
pregando o evangelho, em especial a América que ainda não era conhecida na época dos
apóstolos (Vasconcellos, 1668, p. 205-206). Freire resume a questão numa curta frase “ainda
que Cornelio Lapide segue diferente opinião sobre o Cap. 16 de São Marcos” (Freire, 2001, p.
43). Essas coincidências reforçam ainda mais a possibilidade de as Noticias curiosas, e
necessarias das cousas do Brasil terem servido como fonte para Nova Lusitânia.
Vasconcellos ao tratar dos limites da terra do Brasil, estabelecidos pelo tratado de
Tordesilhas, mostra que, dependendo da generosidade do compasso do cosmógrafo, a
extensão do território poderia ir do rio Amazonas até o rio da Prata, utilizando-se trinta e
cinco graus, ou até a baía de S. Mathias, utilizando-se quarenta e cinco graus. Vasconcellos
relaciona como referências para a extensão de trinta e cinco graus: Theatrum orbis, na tábua
do Brasil; Gotofredo, na Arcontologia Cósmica, folhas trezentas e dezoito. Como referência
para quarenta e cinco graus Vasconcellos apresenta: Maffeo, no livro segundo da História das
Índias; Orlandino nas Crônicas da Companhia de Jesus, liv. 9, n. 86; Pedro Nunes, nos cap.
1, 2, e 3 do Roteiro do Brasil (Vasconcellos, 1668, p. 23-24). Vasconcellos descarta a opinião
de Guilherme Piso, na História Natural do Brasil (1648), que no livro 1 estabelece a extensão
em vinte e quatro graus (Vasconcellos, 1668, p. 21). Freire relaciona essas mesmas
referências, em nota, quando trata dos limites do Brasil (Freire, 2001, p. 52), incluindo a
referência à obra de Guilherme Piso.
Ao descrever a costa do Brasil Simão de Vasconcellos classifica o rio S. Francisco
como o terceiro rio da costa, abaixo apenas do rio Amazonas e do rio da Prata que considera
seus irmãos por terem origem na mesma lagoa: “Seu nascimento he daquella famosa alagoa
feita das vertentes de agoas das serranìas do Chilli, & Perù, donde dissemos procediaõ os dous
principaes rios, Grão Parà, & da Prata” (Vasconcellos, 1668, p. 49). Diz ainda que
He nauegauel este rio atè 40. legoas pella terra dẽtro: no fim destas se vé precipitar aquelle
mar de agoas, de altura medonha, com tão grande estrondo, que atroa os montes, &
ensurdece a gente: chamão vulgarmente a este precipicio, Cachoeira, & a outro semelhante
que faz o rio Nilo, despenhandose de altissimos montes com todas suas agoas, chamàrão os
antiguos Cataracta, ou Catarrata. (Vasconcellos, 1668, p. 50)
Vasconcellos prossegue afirmando que noventa léguas acima da cachoeira existe um
sumidouro por onde o rio desaparece e que doze léguas adiante reaparece na superfície. Nesse
ponto, relembra do relato que dizia “que o rio Alpheo se introduzisse por debaixo da terra em
90
busca da fonte Arethusa” concluindo que o “que alli foi fabula, aqui he pura realidade da
natureza, & hũa monstruosidade maior” (Vasconcellos, 1668, p. 51). Compare-se agora esses
trechos com a descrição de Freire sobre o rio S. Francisco:
776 Da origem lhe não sabemos. Dizem que nasce das vertentes daquelas mesmas
serranias donde nasce juntamente o das Amazonas e o da Prata, com que em terceiro
lugar celebramos este pelo maior da América lusitana. [...]
777 Quarenta léguas pela terra dentro se precipitam juntas todas as suas águas, de uma
estupenda rocha, com ruído tão estrondoso, que se ouve muito distante. Não se
ilustrando só com a singular monstruosidade desta catarata (que já advertimos chamarse vulgarmente cachoeira), o enobrece mais portentosa maravilha, depois que,
penetrando dez jornadas ao sertão, abre outra rocha medonha tamanha boca, que
sorvendo a este rio inteiro, corre subterrâneo por um sumidouro cavernoso sem tornarse a ver em distância de doze léguas, de onde, rebentando de novo o nosso Alfeu
brasílico, continua seu curso tão caudaloso como antes. (Freire, 2001, p. 244-245)
A referência que faz Francisco de Brito Freire ao rio São Francisco como “Alfeu
Brasílico” é importante, uma vez que não encontramos até agora nenhuma publicação anterior
às Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, que utilize o nome de Alfeu,
personagem mítico presente na poesia Metamorphoseon, de Ovídio Nasao, para designar o rio
São Francisco. Diz o mito que Alfeu, deus do rio de mesmo nome, apaixonado pela ninfa
Aretusa, persegue-a. Para a sua proteção Aretusa é transformada em fonte e Alfeu, por paixão,
mergulha na terra para misturar suas águas às da Aretusa (Brandão, 2004, p. 260).
O uso do nome Alfeu para designar o rio S. Francisco transforma-se numa prova, a ser
adicionada às várias coincidências apontadas, de que Freire utilizou como fonte as Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos para a elaboração do
Nova Lusitânia, sem no entanto fazer qualquer referência à obra ou ao seu autor.
Fechando o parêntese devemos registrar que o discurso de Francisco de Brito Freire,
no enfoque teórico deste trabalho, é uma enunciação elaborada pelo autor para um
destinatário, ouvinte ou leitor, que faz parte do grupo social para o qual o autor direcionou sua
obra (Bakhtin, 1999, p. 112). Essa enunciação, como afirma Luis Filipe Ribeiro, se faz através
de um processo de seleção e combinação, resultado de um “complexo sistema de escolhas,
orientadas por algum tipo de valor” (Ribeiro, 1996, p. 42). Dessa forma, nós, leitores de Nova
Lusitânia ao resgatarmos as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil como uma
das fontes de Francisco de Brito Freire, estamos descortinando uma parte do processo de
seleção e combinação utilizado pelo autor na elaboração da sua obra, num processo de
compreensão ativa da obra (Bakhtin, 1999, p. 131-132).
Retomando a análise das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil,
verificamos que da mesma forma que a pergunta sobre a cor dos índios, a pergunta sobre a
91
sua língua tem como premissa que a língua dos índios sofreu modificação ao longo do tempo.
Vasconcellos cita a Arte da lingoa mais comum do Brasil38, do padre Ioseph de Anchieta,
como fonte de louvores dessa língua e concorda com a resposta dos índios de que o tempo foi
a causa das mudanças ocorridas nela. Ele exemplifica lembrando que na Lusitânia, na época
do domínio dos romanos, falava-se latim conforme referência de Duarte Nunes Leão no
capítulo 6 da Origem da língua portuguesa39. Após apresentar alguns exemplos de
transformação de vocábulos latinos em portugueses e da criação de novos vocábulos, conclui
que da mesma forma que do latim originaram-se várias línguas como a portuguesa,
castelhana, galega, francesa e outras, a primeira língua dos índios do Brasil veio a se
corromper criando as suas diversas espécies (Vasconcellos, 1668, p. 116-118).
Depois de tratar da questão da língua dos índios Vasconcellos passa a responder
detalhadamente a sétima pergunta, para a qual não havia apresentado a resposta dos índios.
Essa pergunta visava esclarecer o processo de degeneração dos costumes dos índios que
chegaram em alguns casos, como os Tapuias, a um nível que se duvidava se eram de espécie
humana. Mais uma vez, o que está em questão é a dificuldade do europeu em lidar com os
costumes de uma outra civilização diferente da sua.
Vasconcellos inicia sua longa resposta à questão dos costumes indígenas com um
parágrafo em que faz alusão a “liberalidade com que o Autor do vniuerso repartio seus bens
naturaes com esta terra do Brasil” (Vasconcellos, 1668, p. 118), aproximando-o descritivamente das
belezas e maravilhas do Paraíso que estava habitado por “especies de gentes innumeraueis, que
viuem a modo de feras, & como taes contentes com o tosco das brenhas, & solidaõ da penedía,
desprezando todo o polido dos palacios, cidades, & grandezas de todas as mais partes do mundo”
(Vasconcellos, 1668, p. 119). Nesse ponto o autor faz uma ressalva para explicar que está se
referindo, de uma forma geral, aos índios que habitam os sertões e passa a descrever seus costumes,
abordando os seguintes tópicos:
Tópico
Características gerais dos índios
Moradia
Alfaias
Roupas e acampamento
Como fazem fogo, comida
Caça
Pesca
Serem vingativos e exemplo de vingança
38
Página
119-120
121
122
123
124
124
125
126-127
Vasconcellos deveria estar se referindo a Arte de Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, do
padre José de Anchieta, publicada em Coimbra por Antonio de Mariz em 1595.
39
LEÃO, Duarte Nunes do (1530-1608). Origem da lingoa portuguesa. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1606.
92
Armas e consulta de guerra
Capitão da guerra
Prisioneiro de guerra e antropofagia
Sacrifício do prisioneiro
Casamento
Parto
Inconstância
Mortos
Ossos dos inimigos e títulos de nobreza
Defeitos congênitos e longevidade
Enfeites
Comidas e preparo
Vinhos
Curas
Matam o enfermo se não tem cura
Instrumentos musicais
Danças
128
129
129
130-134
134
135
135
136-137
137-138
139
140
140-142
142-143
143
144
144
145
Depois dessa extensa descrição dos costumes dos índios do sertão o autor acrescenta
algumas particularidades sobre os índios Tapuias e passa à classificação das nações indígenas
dizendo que alguns classificam os índios em três nações: Topayaras, Potigores e Tapuias. Diz que
outros acrescentam uma quarta nação, a dos Tupinambás, e que outros incluem uma quinta nação, a
dos Tamoios, e que outros somam a esses uma sexta nação, a dos Carijós. Vasconcellos, por sua
vez, declara que suas pesquisas em diversos escritos e consultas junto a pessoas com experiência
entre os índios o levava a concluir que, na realidade, existiam apenas dois gêneros de nações: a dos
índios mansos e a dos índios bravos. Com relação a esta classificação, podemos acrescentar a
observação de Luis Felipe Baêta Neves sobre a notação binômica dos “índios”, “índios” e dos
“indios conversos”, presente no poema de Anchieta em louvor das façanhas de Mem de Sá (Neves,
1978, p. 63).
A nação dos índios mansos era aquela em que os índios “com algum modo de republica
(ainda que tosca] saõ mais trataueis, & perseueraueis, entre os Portugueses, deixandose instruir, &
cultiuar” (Vasconcellos, 1668, p. 152), por outro lado, a nação dos índios bravos era aquela dos que
“viuem sem modo algum de republica, saõ intrataueis, & com difficuldade se deixão instruir”
(Vasconcellos, 1668, p. 152). Ainda, segundo Vasconcellos, os índios mansos são aqueles que
ocupam o litoral do Brasil e falam a língua comum documentada pelo padre Anchieta, e constituem
uma só espécie. Ele acrescenta a essa nação de índios mansos, os Goaianás, que habitavam o sul do
Brasil e que utilizavam uma língua diferente da comum, sendo classificados como de outra espécie,
da mesma forma que outros grupos indígenas que habitavam a região do rio Amazonas. A outra
nação genérica, a dos índios bravos, ele reduz à dos Tapuias que compreendia mais de cem línguas
diferentes e, conseqüentemente, o mesmo número de espécies (Vasconcellos, 1668, p. 153).
93
Nessa classificação de Vasconcellos encontramos a combinação de dois critérios. Com
o primeiro critério ele reduz as diversas nações indígenas a duas nações, a dos índios mansos
e a dos índios bravos, que são divididas em espécies para acomodar sua variedade. O segundo
critério, de caráter mais científico, classifica os índios segundo sua língua: os índios do litoral
que utilizavam a língua geral, os índios Goaianás que habitavam o sul do Brasil e falavam
outra língua, e os Tapuias com uma grande diversidade de línguas. A classificação de
Vasconcellos combina um critério qualitativo e bipolar, mansos e bravos, que poderia ser
bons e maus, ao critério lingüístico, com duas línguas de interesse, a comum e a dos
Goaianás, dos índios mansos, e as diversas línguas dos Tapuias que não apresentavam
interesse pelo fato de serem aquelas faladas pelos índios bravos. Esses critérios de
classificação são coerentes com o caráter missionário da Companhia e denotam o interesse
utilitário dos jesuítas no estabelecimento de sua área de atuação separando aqueles que
poderiam e deveriam conquistar e converter daqueles que, na impossíbilidade de conversão,
deveriam ser expulsos para o sertão. Observe-se o uso da palavra nação não mais como local
de nascimento da pessoa, mas como uma qualificação do seu comportamento em relação aos
portugueses.
Depois dessa classificação dos índios, Vasconcellos encerra o primeiro livro das
Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil e inicia o segundo livro tecendo
comentários que justificam o antecedente. Segundo o autor era necessário relatar os costumes
dos índios do sertão, os bravos, para que o leitor e o mundo pudessem conhecer “as
monstrosidades de sua natureza, pera que dellas mais admirem a efficacia, com que a ley de
Deos de toscas pedras faz filhos de Abrahão, & de rudes, & barbaros, homens racionaes;
porque he cousa certa, que com a virtude, & boa criação desta santa ley entre os Portugueses,
tem visto o Brasil mudanças mui notaueis nas naçoens desta gente” (Vasconcellos, 1668, p.
160). Antonio Vieira, no conhecido sermão do Espírito Santo, pregado no Maranhão em
22/6/1657, repete essas palavras e acrescenta “ensinai e doutrina [sic] estas pedras, e fareis de
pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros homens e verdadeiros filhos de Abraão por
meio da fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos,
onde é menor a resistência e a bruteza” (Vieira, 1657, p. 14). Sobre os índios mansos,
relaciona vários que foram
[...] affamados, louuados, & premiados dos Gouernadores, & Reys, por valerosos,
engenhosos, guerreiros, & fieis; & o que mais he, por doceis, pios, amorosos, respublicos,
Christãos, sofredores de todos os contrastes: tudo ao contrario do que no liuro antecedente
vimos. E por agora seja exemplo hum famoso Tabirá, que irmanandose com os
94
Portugueses, fez proezas em armas, em Fè, & lealdade Christãa. (Vasconcellos, 1668, p.
161).
O autor conclui que não “nascem os costumes auessos desta gente do clima da terra,
mas sómente da corrupção da natureza, & falta de boa criação, em verdadeira Fé, ley, &
policia; pois vemos que com esta luz cultiuados, quasi differem de si mesmos” (Vasconcellos,
1668, p. 162).
Vasconcellos passa então a tratar da questão que foi objeto de um grande debate na
Europa, e que também provocou muita polêmica na América, no século XVI: a busca de
esclarecimentos que pudessem definir se os índios eram ou não seres humanos racionais.
Ele inicia seu discurso relatando a opinião de muitos dos primeiros povoadores da
América que não consideravam que os índios pudessem ser homens racionais e que por isso
eram “incapazes dos Sacramentos da santa Igreja” e que qualquer um poderia servir-se deles
como se fosse um cavalo ou boi, maltratando-os, ferindo-os e até mesmo matando-os sem
imposição de culpa ou pecado (Vasconcellos, 1668, p. 163). Invocando o testemunho do
Bispo de Chiapa, frei Bartolomeu de Las Casas, afirma que os espanhóis matavam os índios
como a “qualquer bruto do mato” e faziam-nos em postas para sustentar os seus “libreos”40
(Vasconcellos, 1668, p. 164). Ressalta ainda que a forma como os índios eram tratados pelos
espanhóis fez com que muitos deles se matassem “com peçonhas, ou enforcandose das aruores
por esses campos, as mulheres juntamente com os maridos, & afogando tambem os proprios
filhos, antes de sahir das entranhas, porque naõ chegassem a ver, & experimentar tempos taõ
infelices” (Vasconcellos, 1668, p. 164-165). Conclui dizendo que a situação chegou a um ponto
tal que em algumas ilhas da região do Caribe, os indígenas deixaram de existir. O autor relaciona
como referência para essas informações, a História geral das Índias, de Bartolomeu de Las Casas,
e a Chronica da Provincia de Mexico, do frei Agostinho de Avila41.
Nessa época, essa questão foi levada pelos dominicanos ao Tribunal do Sumo
Pontífice que acabou por decidir pela racionalidade dos índios, conforme bula papal de
9/6/1537, publicada na íntegra em latim (Vasconcellos, 1668, p. 166-167) e a tradução em
português (Vasconcellos, 1668, p. 167-170). A determinação da bula papal impedia que os
“Indios, & todas as mais gentes que daqui em diante vierem à noticia dos Christãos, ainda que
estejaõ fóra da Fé de Christo” (Vasconcellos, 1668, p. 169) fossem privados de liberdade, dos
40
A palavra libreo não consta dos dicionários pesquisados, porém encontramos a palavra libréu: o mesmo que
lebréu; e lebréu: cão, próprio para a caça das lebres; galgo (Figueiredo, 1925) e lebréu: Fila; cão treinado para a
caça de lebre; lebré, lebrel (Houaiss, 2001).
95
seus bens, e não deveriam ser reduzidos a servidão. Todavia, a bula não foi suficiente para
resolver a questão da racionalidade dos índios, uma vez que, mais de dez anos após a sua
promulgação, Bartolomé de Las Casas tentava impedir a publicação do tratado Democrates Alter,
em que Juan Gines de Sepúlveda comparava os índios a animais42 (Las Casas, 2001, p. 140-143).
A bula papal não foi suficiente também para impedir que, no Brasil, os índios fossem
caçados e aprisionados para servirem como escravos, como atestam vários documentos desse
período. No século XVII temos, como exemplo, as entradas que aniquilaram os aldeamentos
guarani, as Missões, no sul do Brasil. John Monteiro trata em Os negros da terra do
apresamento dos índios pelos habitantes de São Paulo, para uso como escravos na agricultura
do planalto:
No fim das contas, a principal função das expedições residia na reprodução física da força
de trabalho e não, conforme se coloca na historiografia convencional, no abastecimento dos
engenhos do litoral, embora alguns cativos tenham realmente sido entregues aos senhores
de engenho. Portanto, ao contrário de outros sistemas de apresamento e fornecimento de
mão-de-obra – onde o tráfico africano é o exemplo mais notável –, os paulistas não
exerceram o papel de intermediários no comércio de cativos, sendo antes tanto fornecedores
como consumidores da mão-de-obra que este sistema integrado produzia. Se, de um lado,
as formas peculiares de apropriação do trabalho indígena sofreram as restrições
institucionais ao cativeiro dos nativos, de outro, representaram sempre o meio mais
econômico de preencher as necessidades dos colonos. A viabilidade desse esquema
começou a declinar com o aumento das distâncias, da resistência indígena e dos custos
envolvidos. O resultado deste processo foi, inevitavelmente, um vertiginoso declínio do
retorno das viagens. O sertanismo preador, sem dúvida, não constituía um negócio no
sentido de que se revestiu o tráfico negreiro. De qualquer modo, descontadas as diferenças
em termos de organização, cada qual teve uma importância fundamental na elaboração de
uma sociedade escravista. (Monteiro, 1994, p. 98)
Essa busca por mão de obra escrava entre os indígenas não se restringia a São Paulo,
como podemos verificar num outro exemplo, ocorrido no norte do Brasil, e relatado por
Cristóbal de Acuña que voltando de Quito, em 1640, pelo rio Amazonas na altura do rio
Tapajós, conta que um grupo de homens liderados pelo sargento-mor Bento Maciel atacou os
índios Tapajós:
[...] de surpresa, oferecendo-lhes dura guerra, quando eles queriam boa paz. A esta eles
aceitaram logo, de boa vontade, como sempre a haviam proposto, rendidos a tudo que
quisessem fazer de suas pessoas. Ordenaram-lhes os portugueses entregar todas as flechas
envenenadas que tinham, e que era a coisa de que mais temiam, ao que os pobres
prontamente obedeceram. E, vendo-os desarmados, os portugueses capturaram grande
quantidade desses bárbaros e os encerraram, como carneiros, em um curral seguro, com
41
Vasconcellos deveria estar fazendo referência a: DAVILA Y PADILLA, Augustin. Historia de la fundacion y
discurso de la prouincia de Santiago de Mexico, cuja segunda edição foi publicada em Bruxelas, por Iuan de
Meerbeque, em 1625, conforme catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha (http://www.bne.es).
42
Os argumentos e a argumentação de Sepúlveda nessa controvérsia com Las Casas foi analisada por Tzvetan
Todorov em um capítulo de A conquista da América (Todorov, 1999, p. 182-201).
96
suficiente guarda, liberando então os índios amigos que levavam, pois para fazer mal cada
um é um diabo solto. Em breve temo saquearam toda a aldeia, nada deixando sem assolar,
e, conforme me contou quem o viu, aproveitaram-se das filhas e esposas dos presos aflitos,
diante de seus próprios olhos, fazendo coisas que, segundo me assegurou a mesma pessoa,
há muito conhecedora daquelas conquistas, para não vê-las, não só deixaria de comprar
escravos, como daria de graça os que possuía. Não parou aí a crueldade dos portugueses,
que, sempre movidos pela cobiça de escravos, não ficavam satisfeitos enquanto não se viam
senhores deles. Ameaçavam os índios encurralados e temerosos, intimidando-os de novo
com maiores rigores para que cedessem escravos, assegurando-lhes que, com isso, não
apenas seriam livres, como também amigos, e cumulados de ferramentas e panos de
algodão que em troca lhes dariam. Que poderiam fazer esses pobres, presos, desarmados,
como suas casas saqueadas, suas mulheres e filhas oprimidas, senão se submeter a tudo o
que deles quisessem fazer? Ofereceram mil escravos e foram buscá-los, mas, em meio ao
alvoroço reinante na terra, estes haviam procurado um refúgio, e não foi possível juntar
mais que duzentos, os quais foram entregues. Com a promessa de que receberiam os
restantes, os portugueses deixaram então em liberdade os que, para assim se verem,
ofereceram seus próprios filhos como escravos, como tem acontecido várias vezes.
Despacharam todos estes escravos para o Maranhão e o Pará, o que vi com meus próprios
olhos, e, saboreando a vitória, prepararam logo outra maior em outra nação mais para
dentro do rio das Amazonas, onde as crueldades serão certamente maiores, porque nisso
vão menos pessoas de coragem, capazes de enfrentar quem a todos comanda. (Acuña, 1994,
p. 158-160)
Mesmo que levemos em consideração o fato de Acuña elaborar um discurso contra os
portugueses e que as crueldades relatadas não foram testemunhadas, permanece a afirmação
de que viu com os “próprios olhos” o embarque dos índios escravizados para o Maranhão e
Pará.
Vasconcellos justifica a dúvida dos portugueses com relação à natureza humana dos
índios tendo em vista a degeneração dos seus costumes, pois alega que quando viram
[...] aquelles primeiros Portugueses hum Indio Tapuya, hum corpo nú, huns couros, &
cabellos tostados das injurias do tempo, hum habitador das brenhas, companheiro das feras,
tragador da gente humana, armador de ciladas; hum saluagem em fim cruel, deshumano, &
comedor de seus proprios filhos: sem Deos, sem ley, sem Rey, sem patria, sem republica,
sem rezão: não era muito que duuidassem, se era antes bruto posto em pé, ou racional em
carne humana. (Vasconcellos, 1668, p. 170-171).
Em sua argumentação defende a idéia de que o homem racional, criado de forma
agreste pode parecer um bruto “por meio da criação agreste, & tosco vso dos sentidos, póde
perder o lustre de racional” (Vasconcellos, 1668, p. 172), porém abandonando a criação
agreste e “tornando ao trato politico dos homens, por meio deste poderà apurarse nos sentidos,
& apurados estes, nas obras da rezão” (Vasconcellos, 1668, p. 172) poderá recuperar a
racionalidade. O autor confirma esta idéia com sua própria experiência, pois alega que viu
muitos desses indígenas, que após anos de criação e doutrina dos padres da Companhia, de tal
forma transformados que era quase impossível reconhecê-los. Dessa forma, Vasconcellos
97
enaltece a atividade missionária da Companhia de Jesus através da articulação do trabalho de
conversão dos índios ao catolicismo à recuperação da racionalidade desses nativos.
Depois de responder a pergunta sobre a degeneração dos costumes dos índios,
Vasconcellos passa a analisar a religião dos indígenas do Brasil. Afirma que o primeiro
aprendizado de um povo relaciona-se à existência de “algum Deos superior a tudo”
(Vasconcellos, 1668, p. 174) e explica que o motivo dos índios do Brasil não terem Deus
algum vincula-se ao fato de estarem empenhados em “guerras, & odios entranhaueis, a que
saõ mui propensos, descuidàraõ do amor deuido a Deos, & vltimamente por serem no
commum mais agrestes, que todas as outras naçoens da America” (Vasconcellos, 1668, p.
175). Ele ainda ressalva que os índios de outras partes da América, como o Perú e México, ao
contrário, têm templos, sacerdotes, cerimônias e cultos. Entretanto, Vasconcellos afirma que
os índios do Brasil apesar de não reconhecerem “deidade” alguma, têm “confusos vestígios”
de uma excelência superior que chamam Tupã e “vestígios” da imortalidade da alma e de
outra vida:
[...] os varoens valentes, que nesta vida matàraõ em guerra, & comeraõ muitos dos inimigos; & da
mesma maneira as femeas, que foraõ taõ ditosas, que ajudàraõ a cozellos, assallos, & comellos;
depois que morrem se ajuntaõ a ter seu paraiso em certos valles, que elles chamaõ campos alegres
(quaes outros Elysios) & que alli fazem grandes banquetes, cantos, & danças. (Vasconcellos, 1668,
p. 177)
Observa ainda que esses “vestígios” da existência de outra vida encontram-se também
no rito do funeral, posto que o defunto é enterrado com sua rede e seus instrumentos de
trabalho e de caça. Esse ritual estava associado ao discurso da busca da Terra sem Mal
pregado pelos caraíbas:
O discurso profético convencia aldeias inteiras a embarcarem em longas viagens em busca
de um paraíso terrestre, uma “terra sem mal”, onde a abundância, a eterna juventude e a
tomada de cativos predominavam. Embora muitos autores busquem explicar estas
migrações ora como reações messiânicas à conquista ora como manifestações do conflito
inerente entre tipos de autoridade (entre o principal e o caraíba), é importante reconhecer a
dimensão histórica das mesmas. De acordo com Carlos Fausto, além da orientação espacial
dos movimentos, redundando em deslocamentos geográficos (geralmente para o Oriente), a
busca da “terra sem mal” também se assenta num plano temporal. Terra dos valentes
ancestrais do passado, também figurava como o futuro destino dos bravos guerreiros que
matassem e comessem muitos inimigos. Com efeito, o discurso do profeta dialogava com
elementos fundamentais, os quais situavam os Tupi numa dimensão histórica: movimentos
espaciais, liderança política, xamanismo e, sobretudo, guerra e sacrifício de cativos.
(Monteiro, 1994, p. 25-26)
Durante o período colonial, a Terra sem Mal mudou sua localização, mas manteve o
mito: “o paraíso tupi se deslocaria lentamente do mar para o interior, pois era no litoral, sem
98
dúvida, que se achavam os males e campeava a morte” (Vainfas, 1999, p. 50). Na insurreição
dos índios da santidade do Jaguaripe, entre 1580 e 1586, a descrição da Terra sem Mal que
aparece nos relatos assemelha-se ao paraíso cristão, o que pode ser atribuido como resultado
do complexo processo de aculturação dos índios, já que muitos membros da santidade haviam
passado pelos aldeamentos jesuítas. Entretanto,
As diferenças entre as culturas em jogo eram, de fato, abissais. No plano do espaço
sagrado – que índios e cristãos possuíam respectivamente os seus –, basta dizer que a
Terra sem Mal dos Tupi era um locus amoenus que poderia ser atingido em vida,
enquanto o paraíso celestial cristão era privilégio dos mortos – e de poucos eleitos.
Diferença significativa, claro está, embora minorada por sensíveis proximidades: a
Terra sem Mal a que se poderia atingir em vida era também a “morada dos ancestrais”,
dos parentes falecidos, dos bravos que, apesar de enterrados, não morriam jamais em
espírito; o paraíso cristão a que poucos eleitos poderiam chegar no post-mortem possuía
uma réplica mundana: o paraíso terreal, a morada edênica de Adão e Eva que os cristãos
procuraram obsessivamente no Oriente, na embocadorea dos quatro grandes rios, e até
na América. (Vainfas, 1999, p. 110)
Depois de apresentar os “vestígios” de uma possível religião dos índios, Vasconcellos
informa ao leitor que os índios acreditavam em espíritos malignos e que tinham feiticeiros,
agoureiros e bruxos que os “enganavam”. Ele oferece, como exemplo de farsa, uma cerimônia
ritual em que o fumo é utilizado como meio de conexão com forças sobrenaturais. A
importância mística do tabaco é explicada por Ronaldo Vainfas:
O transe místico é mais do que um problema de beberagem ou ingestão de
alucinógenos, inserindo-se, na verdade, em teia cultural mais complexa. Mais do que
embriagante, o fumo da santidade era divino, conforme exclamou, com fervor, certo
adepto da seita: “Bebamos o fumo, que este é o nosso Deus que vem do Paraíso”.
Ao sorver o fumo, os índios recebiam o “espírito da santidade” e diziam que seu deus viria
já livrá-los do cativeiro e fazê-los senhores da gente branca”. (Vainfas, 1999, p. 137).
Outro exemplo relatado por Vasconcellos remete o leitor para o domínio do fantástico:
Hum trosso de soldados Portugueses, que tinha partido em companhia de grande quantidade de
Indios a fazer guerra ao sertaõ, vio com seus olhos, & depoz vniformemente o caso seguinte.
Postos em fronteira dos inimigos os nossos, entràraõ em duuida, se se hauia de acommeter, ou
naõ, porqué estauaõ intrincheirados fortemente, & com melhor partido de defensores. Ex que
hum dos Indios que por nós militauaõ, sae a hum terreiro fronteiro ao inimigo, & fixando na
terra duas forquilhas, amarrou fortemente sobre ellas hũa claua, ou maça de pao, que he sua
espada, & chamaõ tangapéma, toda galanteada de pennas de passaros variadas em cores.
Depois que teue amarrada a claua, conuocou a muitos dos seus pera que dançassem, &
cantassem ao redor della: & acabadas suas danças, & cantos, começou o mesmo feiticeiro a
fazer as suas per si só, & ao redor da mesma maça, acrescentando a ellas ridiculas ceremonias,
momos, & esgares. Feito isto, chegandose á espada, ou maça, disse entre dentes certas palauras
mal pronunciadas, & peor entendidas; & ditas estas, soprando alem dellas tres vezes sobre a
espada, de improuiso ficou esta solta das ligaduras em que estava, saltou fóra das forquilhas,
& foi voando pellos àres com assás de admiração dos Portugueses, que desejosos de ver o
fim, perseueràrão em hum lugar. Cousa espantosa! Dalli a pouco espaço de tempo, virão
99
todos, que tornaua a vir a mesma espada voando pellos àres pello mesmo caminho, & à vista
de todos se tornaua a pòr no proprio lugar, & sobre as mesmas forquilhas; porém com
grande diuersidade, porque vinha toda ensangoentada, & estillando sangue, qual se viera de
grandes matanças. Ficàrão confusos os Portugueses, porém o feiticeiro contente, &
declaroulhes o pronostico a sinal certo de victoria: acrescentando, que podiaõ seguros
acommeter, porque hauião de matar os contrarios, & derramar delles muito sangue. Elle o
disse, & o successo o mostrou breuemente, porque matárão sobre quatro mil, & pozerão em
fugida innumeraueis. (Vasconcellos, 1668, p. 180-182)
Observe-se que as palavras mágicas que produzem o efeito fantástico, são proferidas
“entre dentes certas palavras mal pronunciadas, e pior entendidas”, que lembram outras
narrativas maravilhosas e fantásticas. São aquelas palavras que não podem ser reproduzidas
porque são mágicas e invocam poderes sobrenaturais, palavras poderosas como aquelas que o
gênio do conto “História do segundo calândar filho de rei”, em As mil e uma noites,
pronunciou para tranformar o príncipe em macaco: “pegou um punhado de terra, pronunciou,
ou antes, murmurou certas palavras que eu não compreendi e aspergiu-me com ela: ‘Deixa’,
disse ele, ‘o aspecto de homem e fica com o de um macaco.’ E logo desapareceu, ficando eu
só, transformado em macaco (...)” (Anônimo, s.d., p. 113).
Depois do exemplo de feitiçaria, Vasconcellos indica ao leitor seu livro A vida do
venerável padre João de Almeida, no qual poderia encontrar outros exemplos e retoma os
aspectos da religião dos índios mostrando indícios da passagem de S. Tomé pelo Brasil e pela
América.
As marcas da passagem de S. Tomé, segundo Vasconcellos, ficaram nas pegadas
impressas em pedras e, como vimos, na memória dos índios propagada pela tradição oral.
Antonio Vieira, no já citado sermão do Espírito Santo, afirma que “como Santo Tomé, entre
todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo Tomé lhe coube, na
repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse
mais pesada a penitência” (Vieira, 1657, p. 5), todavia o apóstolo não logrou sucesso porque
“nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação; as
pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não conservaram memória da
doutrina” (Vieira, 1657, p.5). A importância da passagem de S. Tomé pela América devia-se à
necessidade de corroborar o discurso católico de que o evangelho fora pregado em todo o
mundo, como prescrevia a ordem de Jesus Cristo. Além disso, Beatriz Helena Domingues
chama a atençao para o fato de Vasconcellos recorrer à profecia como fonte histórica
(Domingues, 1999, p. 127). Essa profecia dizia que muito tempo depois de S. Tomé “viriaõ a
suas terras huns Sacerdotes, successores seus, a prègarlhes o mesmo Euangelho, que elle lhes
prègaua; & trariaõ por diuisas Cruzes em as mãos: & que estes os congregaríaõ em pouoaçoens,
100
pera que viuessem em ordem, & policia Christãa” (Vasconcellos, 1668, p. 208-209) e que
Vasconcellos interpreta esses sacerdotes como sendo os jesuítas.
Sobre a dificuldade de pregar o evangelho no Brasil, Vieira compara o homem à figura
de uma estátua de mármore e a uma estátua de murta. A primeira difícil de ser esculpida
devido a dureza da pedra, mas que uma vez criada não muda. A segunda, esculpida num
arbusto ou árvore, em pouco tempo muda a forma em que foi modelada, daí a sua
inconstância:
Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que
lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem
duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o
jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato
como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma
vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez,
que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus
antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se
abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira,
trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar
nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos. (Vieira, 1657, p. 7)
O desejo de vingança dos índios, assim como sua inconstância, mesmo na
proximidade da morte, é exemplificado por um relato43 de Vasconcellos na Crônica da
Companhia de Jesus:
Contava um padre de nossa Companhia, grande língua brasílica, que penetrando uma vez o
sertão, chegando a certa aldeia, achou uma índia velhíssima no último da vida; catequisou-a
naquele extremo, ensinou-lhe as cousas da fé, e fez cumpridamente seu ofício. Depois de
haver-se cansado em cousas de tanta importância, atendendo à sua fraqueza, e fastio, lhe
disse (falando a modo seu da terra): Minha avó (assim chamam às que são muito velhas) se
eu vos dera agora um pequeno de açúcar, ou outrobocado de conforto de lá das nossas
partes do mar, não o comeríeis? Respondeu a velha, catequizada já: Meu neto, nenhuma
cousada vida desejo, tudo já me aborrece; só uma cousa me pudera abrir agora o fastio: se
eu tivera uma mãozinha de um rapaz Tapuia de pouca idade tenrinha, e lhe chupara aqueles
ossinhos, então me parece tomara algum alento: porém eu (coitada de mim) não tenho
quem me vá flechar um destes. Parece que está assaz explicado o apetite da gente do Brasil
para carne humana. O que eu tenho para mim é, que cresce neles este grande desejo de
pequenos, à medida do que têm de vingar-se de seus inimigos: e como é o sumo da
43
Laura de Mello e Souza apresenta relato igual atribuindo-o ao padre Antonio de Santa Maria Jaboatão, no
Novo Orbe Seráfico Brasílico (1761):
Jaboatão explica as continuadas guerras indígenas pelo apetite por carne humana, e transmite o depoimento
prazeroso de uma velha índia potiguar que, moribunda, sonhava com o manjar preferido. Já havia recebido “toda
a medicina da alma” e parecia bem disposta espiritualmente, e inclinada a fé católica. Compadecido com a
fraqueza da velha, o padre que a assistia resolveu lhe “aplicar também algum alento para o corpo”, indagandolhe se não queria comer um pouco de açúcar ou outra coisa gostosa do além-mar. “Ai, meu neto”, respondeu a
velha, “nenhuma coisa da vida desejo, tudo me aborrece já, só uma coisa me poderia tirar agora este fastio. Se eu
tivera agora uma mãozinha de um rapaz tapuia, de pouca idade, e tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então
me parece tomara algum alento: porém eu, coitada de mim, já não tenho quem me vá frechar um destes!”
(Souza, 1986, p. 60-61)
101
vingança comer-lhes as carnes, daqui vem, que à medida do gosto da vingança nasce com
eles o da comida. (Vasconcelos, 1977, p. 199-200)
Vasconcellos, sem se dar conta, chegou perto do que poderíamos indicar como religião
dos índios: as guerras e o ódio, alimentando um processo permanente e renovado de vingança.
Nesse ambiente, a vigência de uma lei não escrita, porém semelhante à de talião, uma prática
milenar se considerarmos a sua presença no código de Hammurabi (cerca de 1700 a.C.), da
retaliação, do olho por olho, do osso por osso, e do dente por dente, a vingança era um
processo que Viveiros de Castro define como:
A vingança não era assim um simples fruto do temperamento agressivo dos índios, de
sua incapacidade quase patológica de esquecer e perdoar as ofensas passadas; ao
contrário, ela era justamente a instituição que produzia a memória. Memória, por sua
vez, que não era outra coisa que essa relação ao inimigo, por onde a morte individual
punha-se a serviço da longa vida do corpo social. Daí a separação entre a parte do
indivíduo e a parte do grupo, a estranha dialética da honra e da ofensa: morrer em mãos
alheias era uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra de seu grupo, que
impunha resposta equivalente. É que a honra, afinal, repousava em se poder ser motivo
de vingança, penhor do perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a
ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade; este simulacro de
exocanibalismo consumia os indivíduos para que seus grupos mantivessem o que
tinham de essencial: sua relação ao outro, a vingança como conatus vital. A
imortalidade era obtida pela vingança, e a busca da imortalidade a produzia. Entre a
morte dos inimigos e a própria imortalidade, estava a trajetória de cada um, e o destino
de todos. (Castro, 2002, p. 233-234)
Nesse processo, o ritual do terreiro estabelecia a memória no qual
O cativo replicava orgulhosamente, afirmando sua condição de matador e canibal,
evocando os inimigos que havia morto nas mesmas circunstâncias em que agora se achava.
Versão feroz da vítima aquiescente, reivindicava a vingança que o abateria, e alertava:
matem-me, pois os meus me vingarão; vocês tombarão da mesma forma. (Castro, 2002, p.
235)
Um aspecto não percebido por Vasconcellos foi a importância da honra no processo da
vingança e na cultura dos índios do Brasil. José de Alencar percebeu essa importância, porém
preferiu associá-la à horna da cavalaria, mas essa é uma outra história. Gonçalves Dias, por
outro lado, captou a idéia da importância da honra em I-Juca-Pirama, que transforma-se em
memória:
[...]
Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: “meninos, eu vi!” (Dias, 2002, p. 63)
102
Eduardo Viveiros de Castro assim explica o valor da honra para essa sociedade:
Os europeus vieram compartilhar um espaço que já estava povoado pelas figuras tupi da
alteridade: deuses, afins, inimigos, cujos predicados se intercomunicavam. É a partir daí
que se podem interpretar as diversas observações sobre a “grande honra” almejada pelos
índios ao entregarem suas filhas e irmãs em casamento aos europeus. Além de um
cálculo de benefícios econômicos – ter genros ou cunhados entre os senhores de tantos
bens era certamente uma consideração de peso –, há que se levar em conta os aspectos
não materiais, pois está-se falando de honra. Era em termos desta mesma idéia de honra
que os cronistas interpretavam a cessão de mulheres aos cativos de guerra, antes de sua
execução cerimonial. A honra parece-me aqui marcar o lugar do valor primordial da
cultura tupinambá: a captura de alteridades no exterior do socius e sua subordinação à
lógica social ‘interna’, pelo dispositivo prototípico do endividamento matrimonial, eram
o motor e motivo principais dessa sociedade, respondendo por seu impulso centrífugo.
Guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal
e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o
outro e, nesse processo, alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade
potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser atraída; uma alteridade
sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na paralisia (Castro, 2002, p. 206-207).
A explicação de Viveiros de Castro revela outro aspecto importante da sociedade
indígena do Brasil Colonial: o casamento e o papel indispensável da mulher indígena para a
sobrevivência desse povo e dos primeiros colonizadores:
Ao chegarem às costas brasileiras os europeus, notadamente os portugueses, defrontaram-se
com problemas semelhantes aos dos próprios homens Tupinambá. Era tão vital para eles
quanto para os índios o acesso ao trabalho feminino, e nas condições iniciais da colonização
a única forma de se conseguir isto era através do serviço da noiva e da uxorilocalidade.
(Fernandes, 2003, p. 236)
Esta constatação permite que João Azevedo Fernandes conclua que a grande riqueza
dos colonos que vinham para o Brasil não era o “o açúcar – que beneficiava a poucos – ou o
ouro, era a própria mulher nativa, seja enquanto esposa ou enquanto cativa” (Fernandes, 2003,
p. 275). Por esse motivo, as mulheres índias eram as preferidas por aqueles paulistas que se
dedicavam a prear os índios o que “refletia, até certo ponto, a divisão de trabalho adotada
inicialmente pelos colonos nas suas unidades de produção, onde mulheres e crianças
executavam as funções ligadas ao plantio e à colheita, o que, aliás, seguia a divisão sexual do
trabalho presente em muitas sociedades indígenas (Monteiro, 1994, p. 67). A importância da
mulher indígena aflora em destaque, nas representações pictóricas européias das cenas de
canibalismo, que Raminelli explica assim:
As gravuras de Theodor de Bry, portanto, hiperdimensionam a participação feminina
nas cerimônias destinadas a ingerir carne humana. A ênfase poderia ser interpretada por
103
intermédio da misoginia amplamente difundida no mundo luterano. O Malleus
maleficarum exerceu uma forte influência sobre o pensamento europeu ao longo do
século XVI. O comportamento das feiticeiras constitui o seu principal alvo. O ataque às
feiticeira, no entanto, acabou resvalando para o sexo feminino. O Malleus difunde a
crença de que a perfídia é mais freqüente entre as mulheres que entre os homens. Toda
má índole nada vale quando comparada à malícia de uma mulher, sendo ela inimiga da
amizade. O seu choro não passa de um blefe. O sexo feminino é uma quimera; possui
um belo aspecto, uma aparência atraente, mas o seu contato é fétido e sua companhia,
mortal. (Raminelli, 1996, p. 101)
Convém esclarecer que o Malleus maleficarum, publicado em 1486, pelos padres
dominicanos, inquisidores, H. Kramer e J. Sprenger, tinha como objetivo auxiliar o trabalho
do inquisidor na identificação e condenação das bruxas, numa época anterior à Reforma e o
seu conteúdo misógino certamente influenciou a sociedade européia como um todo.
Simão de Vasconcellos diz que tem uma dúvida sobre a possibilidade dos índios se
enquadrarem na religião católica e questiona se eles “no meio de sua gentilidade se podiaõ,
ou pòdem saluar alguns delles? ou se todos se perdem?” (Vasconcellos, 1668, p. 211-212).
Sua reflexão o leva a fazer uma apologia da misericórdia de Deus, considerando, afinal acerca
das almas dos índios, que “sendo certo que morreo Christo por saluallas; & quer Deos que
todas se saluem” (Vasconcellos, 1668, p. 212). Em outras palavras, Vasconcellos reafirma o
compromisso jesuíta com a graça decorrente da morte de Jesus Cristo.
Entre 1654 e 1661, período em que Vasconcellos escrevia no Brasil as Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, na França, Blaise Pascal participava de uma
polêmica religiosa publicando anonimamente dezoito cartas conhecidas como As Provinciais
ou Cartas Provinciais (Les provinciales44). Essa polêmica européia poderia ter alterado a base
teológica que legitimava a atividade missionária no Brasil. Nas Cartas Provinciais, Pascal
fazia uma defesa de Antoine Arnauld e Cornelius Jansenius. Arnauld fora censurado pela
Sorbonne, em 1656, por ter defendido Jansenius da acusação de heresia.
Cornelius Jansenius (1585-1638), bispo de Ypres, estudou teologia na Universidade de
Lovaina e escreveu Augustinus, que foi publicado, após sua morte, em 1640 em Lovaina, e
nos anos de 1641 e 1643 em Paris e Rouen, respectivamente. No livro Jansenius fez uma
interpretação dos textos de S. Agostinho sobre a graça e a predestinação:
O Augustinus provocou enorme celeuma em Lovaina e em Paris, onde Cornet, da
Sorbonne, fez condenar as cinco proposições, afirmando que Jansênio negava o livrearbítrio e restringia a salvação apenas aos predestinados. O jansenismo foi condenado
pelas Bulas In eminenti de Urbano VIII, em 1643, Cum occasione de Inocêncio X e Ad
sacram de Alexandre VII, em 1656, esta confirmando a de Inocêncio X de três anos
antes (Bassetto, 2001, p. XIX).
44
Disponível na Biblioteca Nacional de França (http://www.bnf.fr).
104
Antoine Arnauld (1612-1694) foi convertido para o jansenismo pelo seu amigo, o
abade de Saint-Cyran, Jean du Verger de Hauranne (1581-1643), que também estudou em
Lovaina, onde conheceu Jansenius e aderiu à sua concepção da graça e predestinação. O
abade de Saint-Cyran teve diferenças políticas com o cardeal Richelieu e por isso foi
perseguido e preso em 1638, sendo libertado em 1642, após a morte do cardeal. Arnauld
doutorou-se em teologia na Sorbonne em 1641, e, devido à defesa das teses de Jansenius,
condenadas pelo papa, foi censurado e expulso da Sorbonne em 1656. Refugiou-se no
mosteiro de Port-Royal de onde saiu apenas em 1668, após a promulgação de um formulário,
do qual foi signatário, que obrigava a todos os religiosos da França a repudiar e condenar as
teses de Jansenius.
A censura imposta a Antoine Arnauld pela Sorbonne foi o alvo da crítica feita por
Blaise Pascal nas primeiras Cartas Provinciais. A forma inicial do discurso escolhida por
Pascal foi a de uma carta a um amigo, em que o emissor busca esclarecer, junto a alguns
interlocutores, aspectos sobre a religião católica simulando ingenuidade sobre esses assuntos.
Nas primeiras cartas, Pascal trata da questão da graça e da censura de Arnauld, sem, no
entanto, pretender tomar a defesa da posição dele junto aos teólogos, mas, antes, visava
disseminar e popularizar a polêmica religiosa.
Depois de estabelecer na quarta carta que existem duas concepções da graça divina, a
que é proposta pelos jansenistas e a outra proposta pelos jesuítas, Pascal elege a partir da
quinta carta, como objeto da polêmica, o probabilismo adotado pelos jesuítas, objetivando
apresentá-los como adeptos de um laxismo exacerbado. As dez primeiras cartas não tiveram
um destinatário específico. A partir da décima primeira, entretanto, as cartas passaram a ser
dirigidas aos “reverendos padres jesuítas”, sendo que a décima sétima e a décima oitava foram
diretamente endereçadas ao “reverendo padre Annat, jesuíta”, Provincial da França.
Recentemente, Benoît Denis, em Literatura e engajamento, definiu literatura engajada
como “uma prática literária estreitamente associada à política, aos debates gerados por ela e
aos combates que ela implica” (Denis, 2002, p. 9), porém, ainda na apresentação, fez uma
ressalva dizendo que reservava a expressão “literatura engajada” ao século XX, a partir do
caso Dreyfus. Por outro lado, para designar a literatura de combate e controvérsia o autor usa
a expressão “literatura de engajamento”45 (Denis, 2002, p. 11-12), na qual classifica as Cartas
Provinciais de Pascal, que, segundo ele,
45
Não concordamos com essa classificação que poderia levar o leitor a deduzir que poderia haver um autor que
não estivesse engajado. Na concepção teórica que adotamos, o discurso não é neutro e o autor elabora seu
105
[...] foram objeto de um importante trabalho de escritura e reescritura, do qual um dos
objetivos foi o de abrandar o mais possível o aspecto puramente teológico do debate.
Dessa vontade de atingir um público profano resulta, igualmente, o fato de que As
Provinciais recorrem a uma série de estratégias retóricas muito combinadas, com vistas
a persuadir os destinatários do bom fundamento das posições de Port-Royal (Denis,
2002, p. 127).
Esta afirmação está bem de acordo com a idéia de Pascal expressa no primeiro artigo
de Pensamentos, intitulado “Pensamentos sobre o espírito e sobre o estilo”, sobre o que seria a
eloqüência, que “persuade pela doçura e não pela autoridade” (Pascal, 1979, p. 41):
A eloqüência é a arte de dizer as coisas de maneira: l.° que aqueles a quem falamos
possam entendê-las sem dificuldade e com prazer; 2.° que nelas se sintam
interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente pelo amor-próprio a refletir
sobre elas.
Consiste, portanto, em uma correspondência que procuramos estabelecer entre o
espírito e o coração daqueles a quem falamos, por um lado, e, por outro, entre os
pensamentos e as expressões de que nos servimos; o que pressupõe termos estudado
muito bem o mecanismo do coração do homem a fim de conhecer-lhe as molas e
encontrar, em seguida, as proporções certas do discurso que desejamos ajustar-lhe.
Cumpre colocarmo-nos no lugar dos que devem ouvir-nos, e experimentar também
em nosso próprio coração a forma dada ao discurso, para ver se um se adapta ao outro
e se podemos ter a certeza de que o ouvinte será forçado a render-se. É preciso, na
medida do possível, confinarmo-nos dentro da naturalidade mais singela; não
fazermos grande o que é pequeno, nem pequeno o que é grande. Não basta que uma
coisa seja bela, é necessário que seja adequada ao assunto, que nada tenha de mais,
nem que nada lhe falte. (Pascal, 1979, p. 41)
A persuasão de Pascal através da doçura pode ser exemplificada através das suas
cartas, cujo estilo expressivo permite que Koyré destaque-as como “uma obra-prima de ironia
polida e severa” ou como uma “insuperável obra-prima de polêmica impiedosa e feroz”
(Koyré, 1982, p. 363). As afirmações de Koyré e a leitura das Cartas Provinciais, permitemnos dizer que a carta foi a forma em que o estilo expressivo de Pascal conseguiu atingir o seu
ápice. Vejamos um exemplo.
Na quarta Carta Provincial, Pascal apresenta uma personagem jesuíta que, em defesa
de sua posição junto aos interlocutores – o emissor e um jansenista não identificado –, recorre
a Aristóteles que afirma que “qu'une action ne peut être imputée à blâme lorsqu'elle est
involontaire”46 (Pascal, 2001, p. 80). O jansenista retruca argumentando que, embora
concorde que Aristóteles tenha feito esta afirmação no livro três da Ética, nesse mesmo livro,
segundo o jansenista, faz a seguinte consideração:
discurso orientado por valores, o que permite concluir que o autor está sempre engajado, tendo consciência ou
não deste fato.
46
uma ação não pode ser atribuída à injúria, se ela é involuntária (Pascal, 2001, p. 80).
106
Tous les méchants ignorent ce qu'ils doivent faire et ce qu'ils doivent fuir; et c'est cela
même qui les rend méchants et vicieux. C'est pourquoi on ne peut pas dire que, parce qu'un
homme ignore ce qu'il est à propos qu'il fasse pour satisfaire à son devoir, son action soit
involontaire. Car cette ignorance dans le choix du bien et du mal ne fait pas qu'une action
soit involontaire, mais seulement qu'elle est vicieuse. L'on doit dire la même chose de celui
qui ignore en général les règles de son devoir, puisque cette ignorance rend les hommes
dignes de blâme, et non d'excuse. Et ainsi l'ignorance qui rend les actions involontaires et
excusables est seulement celle qui regarde le fait en particulier, et ses circonstances
singulières. Car alors on pardonne à un homme, et on l'excuse, et on le considère comme
ayant agi contre son gré.47 (Pascal, 2001, p. 82)
Entretanto, ao consultarmos o capítulo 1, do livro 3, da Ética a Nicômaco, referido
pelo autor, encontramos o mesmo trecho da citação, com uma tradução atual, apresentando
um conteúdo diferente:
Com efeito, todo homem perverso ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e é em
razão do erro desta espécie que os homens se tornam injustos e, em geral, maus. Porém, o
termo “involuntário” não se aplica quando o homem ignora seus interesses, pois não é a
ignorância na escolha do que deve fazer o que causa a ação involuntária (antes, essa torna
os homens maus), nem a ignorância do universal (o que é passível de censura), mas a
ignorância dos particulares, isto é, das circunstâncias da ação e os objetos com que ele se
relaciona. São exatamente esses que merecem compaixão e perdão, pois a pessoa que
ignora qualquer dessas coisas age involuntariamente. (Aristóteles, 2003, p. 58)
Da leitura das duas citações percebe-se a diferença na interpretação da idéia de ação
involuntária de Aristóteles, o que poderia ser atribuído à tradução e que é possível, se
considerarmos que Aristóteles escreveu em grego e os seus textos circularam na Europa,
desde a Idade Média, sob a forma de traduções nem sempre fiéis, em latim. Além disso,
Pascal faz a citação em francês, ou seja, tratava-se de uma tradução de uma tradução. Por
outro lado, a citação de Pascal mostra a opção do autor pela culpabilização do ser,
independentemente do seu conhecimento acerca do que seria o bem e o mal.
Na carta, o jansenista completa dizendo que o jesuíta não deveria buscar suporte no
príncipe dos filósofos, Aristóteles, e que não deveria se opor ao príncipe dos teólogos, S.
Agostinho, que no primeiro livro de Retratações, apregoa:
47
Todos os homens perversos ignoram o que eles devem fazer e aquilo de que devem fugir, e é exatamente isto
que os faz perversos e depravados. E é por esta razão que não se pode dizer que, porque um homem ignora o que
ele é relativamente ao que ele faz para satisfazer seu dever, que sua ação seja involuntária. Porque esta
ignorância na escolha do bem e do mal não faz com que uma ação seja involuntária, apenas a torna viciosa.
Deve-se dizer a mesma coisa daquele que ignora em geral as regras de seu dever, já que esta ignorância torna os
homens dignos de censura, não de desculpas. E assim, a ignorância que causa ações involuntárias e perdoáveis é
somente aquela que se refere ao fato particular e a sua circunstância singular. Porque então perdoa-se a um
homem, e o desculpamos e o consideramos como tendo agido contra sua vontade. (Pascal, 2001, p. 82)
107
Ceux qui pèchent par ignorance ne font leur action que parce qu'ils la veulent faire,
quoiqu'ils pèchent sans qu'ils veuillent pécher. Et ainsi ce péché même d'ignorance ne peut
être commis que par la volonté de celui qui le commet, mais pas une volonté qui se porte à
l'action, et non au péché, ce qui n'empêche pas néanmoins que l'action ne soit péché, parce
qu'il suffit pour cela qu'on ait fait ce qu'on était obligé de ne point faire48. (Pascal, 2001, p.
82)
A citação não deixa dúvidas sobre a opção de Pascal pela culpa do ser, que além de ser
submetido à culpa pelo pecado original é, também, culpado por agir e pecar “por ignorância”.
A partir da quinta Carta Provincial, Pascal dá uma guinada e muda o tema da
discussão, que passa a ser o de ataque à moral e à política jesuíta. Esta é uma técnica
discursiva utilizada para refutar uma acusação, como ensina Aristóteles na Arte Retórica:
“acusar, por nossa vez, quem nos acusa, pois seria um absurdo que o acusador fosse julgado
indigno de confiança e que suas palavras merecessem confiança” (Aristóteles, s.d., p. 209).
Em outras palavras, acusar o acusador para que suas palavras percam o valor. Além disso,
Pascal ao escrever as Cartas Provinciais optou pelo uso de um pseudônimo, Louis de
Montalte, e assim justificava a necessidade de anonimato: “je dois demeurer dans l'obscurité
pour ne pas perdre ma réputation”49 (Pascal, 2001, p. 63).
O comportamento de Pascal pode ser melhor compreendido a partir do resgate de
alguns episódios da sua vida. O primeiro nos remete a uma época anterior, 1647, quando
Pascal escreveu Novas experiências relativas ao vácuo, relatando algumas de suas
experiências sobre o vácuo. Alexandre Koyré, na análise que faz deste trabalho conclui que o
relato de Pascal apresenta duas lacunas. A primeira refere-se à omissão dos nomes dos “sábios
e curiosos” parisienses, que tentaram repetir as experiências de Torricelli em Paris e não
conseguiram, e, a segunda, à omissão do nome de Torricelli (Koyré, 1982, p. 356). Além
disso, Koyré acentua:
[...] não quero afirmar que Pascal não fez as experiências que nos diz ter feito. Em
compensação, creio poder afirmar que ele não as descreveu tal como as fez e não expôs
seus resultados tal como se verificaram sob seus olhos. Certamente ele nos escondeu
alguma coisa (Koyré, 1982, p. 360).
48
Os que pecam por ignorância só praticam sua ação porque querem praticá-la, ainda que pequem sem desejá-lo.
E assim o próprio pecado de ignorância só pode ser cometido pela vontade daquele que o comete, mas por uma
vontade que se dirige à ação, e não ao pecado, o que não impede, entretanto, que tal ação seja pecado, porque
para isso é suficiente que se faça aquilo que se estava absolutamente obrigado a não fazer. (Pascal, 2001, p. 82)
49
eu devo permenecer na obscuridade para não perder minha reputação (Pascal, 2001, p. 63).
108
Continuando, Koyré ainda ressalta que Pascal não menciona o fato de a água
borbulhar nos tubos e que “o fato de a água borbulhar não podia deixar de produzir-se nos
tubos de Pascal, pois é inevitável” (Koyré, 1982, p. 361). Outro aspecto apontado por Koyré
no seu artigo, diz respeito à tentativa de se reproduzir, em 1950, a experiência descrita por
Pascal em que eram utilizados materiais de difícil construção – tubo de vidro com 46 pés
(cerca de 14 m) ou sifão escaleno cuja perna maior é de 50 pés (cerca de 15 m) – sendo que
nessa tentativa foi preciso substituir o tubo de vidro de 15 m por um conjunto de tubos de 2,25
m (Koyré, 1982, p. 361). Em outras palavras, trezentos anos antes da repetição da experiência,
Pascal dificilmente teria conseguido os tubos que ele diz ter utilizado na sua experiência.
Após a publicação de Novas experiências relativas ao vácuo, o padre Noel da
Companhia de Jesus escreveu uma carta a Pascal criticando o livro usando “argumentos
antigos e as concepções cartesianas” e defendendo que “o vácuo aparente dos tubos de
Torricelli estava cheio de um ar purificado que entra pelos pequenos poros do vidro” (Koyré,
1982, p. 363). Pascal respondeu em uma carta que Koyré classifica como “uma obra-prima de
ironia polida e severa” que administra ao Vice-Provincial “uma lição de método e uma lição
de física” (Koyré, 1982, p. 363). O padre Noel responde e Pascal, numa carta ao senhor Le
Pailleur, coloca o padre Noel numa situação ridícula refutando as suas objeções metafísicas.
Koyré, entretanto, questiona se o padre Noel é, verdadeiramente, ridículo ou estúpido quando
escreve:
Este espaço que não é nem Deus, nem criatura, nem corpo, nem espírito, nem
substância, nem acidente, que transmite a luz sem ser transparente, que resiste sem ser
resistência, que é imóvel e se transporta com o tubo, que está em toda parte e não está
em parte alguma, que tudo faz e nada faz, etc (Koyré, 1982, p. 363).
Koyré questiona Pascal quando ele diz, em resposta ao “nem Deus, nem criatura” do
padre Noel que “os mistérios relativos à Divindade são santos demais para que sejam
profanados em nossas disputas” e que
Nem corpo, nem espírito. É verdade que o espaço não é nem corpo, nem espírito, mas é
espaço; assim, o tempo não é nem corpo, nem espírito, mas é tempo; e como o tempo
não deixa de ser, embora não seja nenhuma dessas coisas, o espaço vazio bem pode
existir, sem que, por isso, seja corpo ou espírito. Nem substância, nem acidente. Assim
é, se se entende pela palavra substância o que é corpo ou espírito; pois, nesse sentido, o
espaço não será nem substância, nem acidente; mas será espaço, como, nesse mesmo
sentido, o tempo não é nem substância, nem acidente, mas é tempo, porque para ser,
não é necessário ser substância ou acidente (Koyré, 1982, p. 364).
109
Nesse trecho, indaga Koyré, “Pascal não dá um tratamento um pouco desatento, um
pouco irrefletido, a graves problemas metafísicos que preocuparam os maiores espíritos de
seu tempo?” Concluindo que “em todo caso, é certo que, quando lemos tudo isso em
Gassendi, no qual Pascal vai buscá-lo, admiramo-lo muito menos. E até não o admiramos de
modo algum”. E prossegue
[...] em compensação, quando encontramos as objeções do Padre Noel em outros
autores, elas não nos parecem ridículas. Pois o que diz o Padre Noel é exatamente o
que nos dizem Descartes, Spinoza e Leibnitz que, todos eles, coincidem na negação do
vácuo e se interrogam, muito seriamente – Newton também o faz –, sobre o problema
das possíveis relações entre um espaço que, compreendido como o compreende Pascal,
não pode ser uma criatura ou Deus, com o risco de dar respostas diferentes a esse
problema que todos eles levaram muito a sério (Koyré, 1982, p. 364).
Koyré conclui a análise da disputa travada entre Pascal e o padre Noel dizendo que “a
magia da expressão de Pascal é algo de perigoso, ao qual é muito difícil, mas tanto mais
necessário resistir a qualquer preço. Porque ela nos induz em erros históricos e nos conduz a
injustiças e inconseqüências” (Koyré, 1982, p. 364).
A disputa com o padre Noel sobre o vácuo chegou ao ponto de o padre Noel acusar
Pascal de “se ter apropriado das descobertas devidas a Torricelli no decurso dos seus
trabalhos sobre o vácuo” (Lacouture, 1993, p. 371), o que na opinião de Lacouture:
Era duvidar ao mesmo tempo da sua competência e da sua honra: e ele era homem para não
tolerar nem uma nem outra imputação. Ao proceder assim, o medíocre Noël não teve
consigo a Companhia; mas o nosso homem de Auvergnat [Pascal] misturou-os de tal
maneira que, no seu espírito, não havia baixeza que não devesse imputar-se aos jesuítas.
(Lacouture, 1993, p. 371)
A disputa travada entre Pascal e o padre Noel, em 1647-1648, e as análises e reflexões
de Koyré e de Lacouture, permitem ao leitor das Cartas Provinciais compreender melhor uma
das motivações de Pascal para escrevê-las.
Se quisermos entender um pouco mais o espírito de Blaise Pascal podemos recorrer a
um outro episódio, posterior As Provinciais. Sob o pseudônimo50 de Amos Dettonville, Pascal
apresentou, em junho de 1658, um desafio aos matemáticos da Europa, em carta circular,
propondo que solucionassem seis questões sobre “a área de um segmento da ciclóide, o centro
de gravidade desse segmento, os volumes e os centros de gravidade dos corpos de revolução
formados por esse segmento que gira em torno de sua base e de seu eixo” (Koyré, 1982, p.
50
Outros pseudônimos utilizados por Pascal foram: Salomon de Tultie e Louis de Montalte, este último utilizado
nas Cartas Provinciais, que são anagramas um dos outros (Pascal, 1979, p. 42 nota 4).
110
352). Koyré destaca alguns aspectos interessantes sobre essa proposta de Pascal. Em primeiro
lugar o prazo exíguo para apresentação da solução, cerca de três meses, uma vez que a
proposta foi lançada em junho de 1658 e as soluções deveriam chegar até 1º de outubro
daquele mesmo ano. Em segundo, o próprio Pascal estudou, por muito tempo, o problema
proposto originalmente por Mersenne, em 1636. O que permite que Koyré afirme que “Pascal
não tinha nenhum desejo de arriscar-se a perder suas sessenta pistolas e estava firmemente
decidido a ganhar seu próprio concurso” (Koyré, 1982, p. 352-353). De fato, em dezembro de
1658, numa Carta do senhor de Carcavy expõe seus resultados e os métodos empregados para
obtê-los. Em outras palavras, Pascal já tinha a solução para o problema proposto, com um
prazo exíguo de solução, de forma que praticamente se assegurava que ninguém conseguiria
resolver o problema, reservando para si próprio o mérito da solução.
Outro ponto importante envolvendo as Cartas Provinciais relaciona-se a Port-Royal,
um mosteiro construído durante a quarta cruzada, em 1202, por Mathilde de Garlande, “como
reforço de suas orações pelo feliz retorno do marido” (Bassetto, 2001, p. X). Em 1223, o papa
Honório II concedeu ao mosteiro vários privilégios canônicos e, em 1255, foi entregue às
monjas cistercienses e o rei Luis IX (1214-1270) destinou uma subvenção permanente que foi
paga até o século XVII. O mosteiro não teve nenhum destaque nos séculos seguintes. A partir
do fim do século XVI o mosteiro passou a uma posição de destaque devido à família de
Antoine Arnauld (1560-1619), pai, que teve seis de suas filhas como monjas naquele
mosteiro. O patriarca Antoine Arnauld traduziu as Confissões de Santo Agostinho, obras de
Teresa de Ávila e outras obras religiosas. Sua filha Jacqueline Marie Angélique foi entregue
ao mosteiro, com sete anos de idade, para ser educada e aos onze anos, em 1602, foi elevada a
condição de abadessa de Port-Royal. Para isso o pai teve que fazer uma manobra
demonstrando que ela tinha dezessete anos (!). Ela introduziu no mosteiro uma severa reforma
resgatando o antigo rigor monástico cisterciense de clausura total. Por indicação do pai,
aceitou o abade de Saint-Cyran, Jean du Verger de Hauranne, como diretor espiritual do
mosteiro, que, por sua vez, introduziu o jansenismo naquela abadia. Na concepção de
Hauranne
A predestinação mais não é do que o amor eterno que Deus dedica a certos filhos de
Adão depois de os ter visto cair na condenação por causa do pecado de seu pai,
deixando lá os outros e nada ordenando para eles senão o inferno que mereceram...
Vede por isto o agradecimento que devem a Deus aqueles que se salvam, por os ter
separado, antes de nascerem, da companhia dos outros homens (Hauranne apud
Lacouture, 1993, p. 368).
111
A citação mostra a concepção jansenista da graça, atribuída por Deus a algumas
pessoas, àquelas predestinadas à salvação, e a orientação espiritual do mosteiro de Port-Royal
onde Jacqueline Pascal, irmã um pouco mais nova de Pascal, ingressou em 1652 como irmã
Santa Eufêmia. Assim, quando Pascal defende as posições de Port-Royal não o faz apenas em
nome de Antoine Arnauld e do jansenismo, mas inclui em sua defesa as freiras de Port-Royal
e, entre elas, sua irmã Jacqueline.
Esses detalhes complementam o quadro que permite entender a posição de Pascal e o
seu discurso nas Cartas Provinciais, que Lacouture resume como o resultado simultâneo de
[...] um sábio ferido no seu orgulho por um jesuíta mesquinho, um irmão insultado na sua
irmã, um católico constantemente alertado pelos seus amigos de Port-Royal contra os
“casuístas” e os “probabilistas” da Companhia, e um predestinado que a fulminante
revelação de 23 de Novembro de 165451 incluiu sem dúvida no pequeno número dos
eleitos, que vai responder ao apelo dos solitários no princípio de 1656. (Lacouture, 1993, p.
371)
Esse “sábio ferido” entendia que o homem podia obter os conhecimentos através do
coração e da razão, que era o ponto crucial de sua diferença com René Descartes que, em
1641, na carta introdução de Meditações, dirigida ao Deão e doutores da Sagrada Faculdade
de Teologia de Paris, afirmava que a existência de Deus e da alma devem ser objeto de
demonstração “mais pelas razões da Filosofia que da Teologia” porque para “persuadir os
infiéis” dever-se-ia provar “essas duas coisas pela razão natural”. Na explicação que se segue,
Descartes esclarece que a demonstração é necessária para que se evite a acusação dos infiéis,
de circularidade na afirmação de que “é preciso acreditar que há um Deus, porque isto é assim
ensinado nas Santas Escrituras, e, de outro lado, que é necessário acreditar nas Santas
Escrituras, porque elas vêm de Deus” (Descartes, 1979, p. 75).
A proposta de Descartes consistia numa mudança do discurso religioso, que deveria
ser objeto de demonstração filosófica porque “a principal razão, que leva muitos ímpios a não
quererem acreditar de maneira alguma que há um Deus e que a alma humana é distinta do
corpo, é que eles dizem que ninguém até aqui pode demonstrar essas duas coisas” (Descartes,
1979, p. 76). Em outras palavras, a proposta de Descartes é substituir a fé, pura e simples, por
uma fé que é o resultado ou a conclusão de uma dedução lógica.
Blaise Pascal, por outro lado, entende que “é o coração que sente Deus, e não a razão.
Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”, e que “conhecemos a verdade não só
pela razão mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e
51
Data da segunda conversão de Pascal ao catolicismo.
112
é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los” (Pascal, 1979, p. 107).
Dessa forma, quando Pascal afirma que “o coração tem suas razões, que a razão não conhece”
(Pascal, 1979, p. 107), não está afirmando que a emoção tem suas razões, que a razão não
conhece, como é interpretado em geral, mas sim que: a fé tem suas razões, que a razão não
conhece.
Assim, com uma diferença de aproximadamente quinze anos (1641-1656) temos duas
posições radicalmente opostas. De um lado, René Descartes propondo uma religião católica
em que a existência de Deus e da fé sejam racionalmente demonstrados para conversão dos
infiéis, e de outro, Blaise Pascal, propondo uma religião católica fundada na predestinação de
alguns e que Deus e a fé não podem ser entendidos através da razão.
A base teológica em que Blaise Pascal se apóia é a de S. Agostinho, todavia, nas
Cartas Provinciais, ele faz algumas poucas referências a S. Tomás tentando sempre
aproximar a posição de S. Agostinho sobre a graça com a posição de S. Tomás. Nesse ponto
devemos recordar da quarta carta em que, como vimos, o amigo jansenista do narrador diz ao
jesuíta que ele não deveria seguir a orientação do príncipe dos filósofos, Aristóteles, mas sim
a do príncipe dos teólogos, S. Agostinho, sobre a ignorância do que é certo ou errado e o
pecado. Sobre essa mesma questão, Simão de Vasconcellos, ao defender a ignorância dos
índios do Brasil sobre o que era certo ou errado, afirma:
[...] os homens destas partes nas treuas de seu gentilismo viuiaõ, ordinariamente fallando,
com ignorancia inuenciuel da Fè diuina; & por conseguinte sem peccado de infidelidade,
porque houuessem de ser condenados. Esta resolução, suposto que foi refutada, &
desfauorecida de muitos; com tudo he recebida hoje dos melhores, & mais pios Doutores,
com Santo Thomas Secunda secundae quaest. 10. art. 1. & os mais à margem citados.
(Vasconcellos, 1668, p. 212-213)
Nesse parágrafo, Vasconcellos faz referência à Summa Theologica, de S. Tomás de
Aquino, e acrescenta no parágrafo seguinte os comentários sobre a “ignorância invencível”,
utilizando como referência a concepção de S. Tomás tratada na questão 76 da primeira parte
da segunda parte da Summa52:
Article 3. Whether ignorance excuses from sin altogether?
[...]
I answer that, Ignorance, by its very nature, renders the act which it causes involuntary.
Now it has already been stated (1,2) that ignorance is said to cause the act which the
contrary knowledge would have prevented; so that this act, if knowledge were to hand,
would be contrary to the will, which is the meaning of the word involuntary. If,
however, the knowledge, which is removed by ignorance, would not have prevented the
52
As citações da Summa Teológica foram obtidas na Internet (http://www.newadvent.org/summa).
113
act, on account of the inclination of the will thereto, the lack of this knowledge does not
make that man unwilling, but not willing, as stated in Ethic. iii, 1: and such like
ignorance which is not the cause of the sinful act, as already stated, since it does not
make the act to be involuntary, does not excuse from sin. The same applies to any
ignorance that does not cause, but follows or accompanies the sinful act.
On the other hand, ignorance which is the cause of the act, since it makes it to be
involuntary, of its very nature excuses from sin, because voluntariness is essential to
sin. But it may fail to excuse altogether from sin, and this for two reasons. First, on the
part of the thing itself which is not known. For ignorance excuses from sin, in so far as
something is not known to be a sin. Now it may happen that a person ignores some
circumstance of a sin, the knowledge of which circumstance would prevent him from
sinning, whether it belong to the substance of the sin, or not; and nevertheless his
knowledge is sufficient for him to be aware that the act is sinful; for instance, if a man
strike someone, knowing that it is a man (which suffices for it to be sinful) and yet be
ignorant of the fact that it is his father, (which is a circumstance constituting another
species of sin); or, suppose that he is unaware that this man will defend himself and
strike him back, and that if he had known this, he would not have struck him (which
does not affect the sinfulness of the act). Wherefore, though this man sins through
ignorance, yet he is not altogether excused, because, not withstanding, he has
knowledge of the sin. Secondly, this may happen on the part of the ignorance itself,
because, to wit, this ignorance is voluntary, either directly, as when a man wishes of set
purpose to be ignorant of certain things that he may sin the more freely; or indirectly, as
when a man, through stress of work or other occupations, neglects to acquire the
knowledge which would restrain him from sin. For such like negligence renders the
ignorance itself voluntary and sinful, provided it be about matters one is bound and able
to know. Consequently this ignorance does not altogether excuse from sin. If, however,
the ignorance be such as to be entirely involuntary, either through being invincible, or
through being of matters one is not bound to know, then such like ignorance excuses
from sin altogether.53 (Summa Theologica)
53
Artigo 3. Se a ignorância perdoa totalmente o pecado?
[...] Eu respondo que, a ignorância, por sua natureza, ocasiona o ato que causa involuntariamente. Já foi estabelecido
(1, 2) que a ignorância é causadora do ato que o conhecimento contrário deveria prevenir, dessa forma, este ato, se o
conhecimento estivesse à mão, seria contrário à vontade, que é o significado da palavra involuntário. Se, todavia, o
conhecimento, que é removido pela ignorância, não preveniu o ato, por conta da inclinação da vontade, a falta desse
conhecimento não faz este homem involuntário, mas não-voluntário, como estabelecido na Ética, III, 1: e uma
ignorância desse tipo que não é a causa de ato pecaminoso, como já foi estabelecido, visto que ela não faz o ato ser
involuntário e não perdoa o pecado. O mesmo se aplica a qualquer ignorância que não causa, mas que segue ou
acompanha o ato pecaminoso.
Por outro lado, a ignorância que é a causa do ato, desde que involuntária, pela sua própria natureza, perdoa o
pecado, porque a vontade é essencial para pecar. Mas a ignorância pode não perdoar totalmente o pecado por
duas razões. A primeira, na parte do que não é conhecido. A ignorância desculpa o pecado, somente se algo não
é conhecido como sendo pecado. Pode acontecer que uma pessoa ignore alguma circunstância de um pecado, o
conhecimento dessa circunstância a preveniria de pecar, se a circunstância pertencesse à substância do pecado ou
não, e, no entanto, seu conhecimento é suficiente para a pessoa estar ciente que o ato é pecaminoso. Por
exemplo, se um homem agride alguém, sabendo que é um homem (o que é suficiente para que seja pecaminoso)
e além disso ignorar o fato que ele é seu pai (que é uma circunstância constituindo outra espécie de pecado); ou,
suponha que ele não sabe que esse homem se defenderá e o agredirá também, e que se ele soubesse isso ele não o
agrediria (o que não afeta a iniqüidade do ato). Por conseguinte, apesar desse homem pecar por ignorância, ele
não é perdoado porque, sem oposição, ele tinha conhecimento do pecado. A segunda, pode acontecer na parte da
ignorância, porque esta ignorância é voluntária, seja diretamente, como quando um homem estabelece o
propósito de ser ignorante de algumas coisas que ele poderia pecar mais facilmente, ou, indiretamente, como
quando um homem, através da tensão do trabalho ou outra ocupações, negligencia a obtenção do conhecimento
que o reprimiria de pecar. Este tipo de negligência faz a ignorância voluntária e pecaminosa, desde que sobre
matérias que cada um é obrigado e capaz de saber. Conseqüentemente, esta ignorância não perdoa o pecado. Se,
entretanto, a ignorância é tal que é inteiramente involuntária, seja por ser invencível ou devida a matéria que não
se é obrigado a saber, então este tipo de ignorância perdoa totalmente o pecado. (...)
114
A citação deste artigo da Summa Theologica esclarece a posição de S. Tomás sobre a
“ignorância invencível”, que ele define no artigo 2 dessa mesma questão 76, como “ignorance
of such like things is called ‘invincible’, because it cannot be overcome by study. For this
reason such like ignorance, not being voluntary, since it is not in our power to be rid of it, is
not a sin”54. Ainda na questão 76, o artigo primeiro, S. Tomás faz referência ao livro III,
capítulo 1 da Ética, para legitimar a diferença do pecado devido à ação “por ignorância” e à
ação “na ignorância”, que Aristóteles apresenta da seguinte forma: “agir por ignorância
também parece diferir de agir na ignorância, pois se considera que um homem embriagado ou
encolerizado age não por ignorância, mas em razão de uma das causas mencionadas, sem
saber o faz, e na ignorância” (Aristóteles, 2003, p. 58). Este pequeno trecho do capítulo
primeiro do livro III da Ética é exatamente o parágrafo que antecede o parágrafo do livro III,
da Ética, citado por Pascal na sua quarta carta. Em outras palavras, Pascal não estava
disputando com os jesuítas, mas com S. Tomás através de Aristóteles.
Podemos resumir, dizendo que a polêmica de Blaise Pascal com os jesuítas buscava
desqualificá-los, apelando para os abusos do casuísmo e do probabilismo, que não eram de
fato o foco da disputa, mas sim a predestinação e a graça na concepção de S. Agostinho e a
posição contrária da Sorbonne. Do outro lado temos os jesuítas que, na sua formação, seguiam
o dominicano S. Tomás de Aquino, como podemos comprovar no Ratio Studiorum55. Assim,
a discussão era, na realidade, mais um capítulo de uma disputa teológica, de longa data, que
teve início no fim do século IV, entre Pelágio (360-422), adepto do livre-arbítrio e que negava
a necessidade da graça, e S. Agostinho (354-430), que defendia a predestinação e a graça, tese
esta que acabou por prevalecer naquela disputa. No século XIII, S. Tomás de Aquino (1225
ou 1227-1274) no trabalho de organização teológica da religião católica retomou alguns
pontos dessa disputa estabelecendo, por exemplo, dois tipos de graça, o que de certa forma
diminuiu a força das teses de S. Agostinho.
As diferenças entre as concepções teológicas de S. Agostinho e S. Tomás têm um
componente filosófico, uma vez que as idéias de S. Agostinho podem ser consideradas
platônicas, ou neoplatônicas, enquanto S. Tomás resgata as idéias de Aristóteles:
Longe de um pobre frade vir negar que vós trazeis na cabeça esses deslumbrantes
diamantes, todos talhados nas formas cristalográficas mais perfeitas, brilhantes de luz
54
a ignorância deste tipo de coisas é chamada ‘invencível’ porque não pode ser superada através da meditação.
Por esta razão, este tipo de ignorância, não sendo voluntária, posto que não está em nosso poder ser libertado
dela, não é um pecado.
55
Uma tradução do Ratio Studiorum pode ser encontrada em: FRANCA, Leonel. O método pedagógico dos
jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.
115
celestial; e os tendes aí quase antes de começar a pensar, para não dizer antes de começar a
ver, ouvir e sentir. Mas eu não tenho vergonha de dizer que a minha razão é alimentada
pelos meus sentidos; que devo muito do que penso ao que vejo, cheiro, provo e palpo; e
que, para olhar as coisas de um ângulo racional, me sinto obrigado a considerar real esta
realidade. Em resumo e com toda a humildade: não creio que Deus quisesse que o homem
exercesse unicamente essa espécie peculiar, elevada e abstrata de intelecto que tendes a
fortuna de possuir; mas creio que há um campo intermédio de fatos que são apresentados
pelos sentidos como matéria para a razão; e que nesse campo esta tem o direito de governar,
como representante de Deus dentro do homem. É verdade que tudo isto é inferior aos anjos,
mas é muito superior aos animais e a todos os objetos materiais que o homem encontra à
sua volta. Realmente, o homem pode ser também um objeto, e até um objeto deplorável.
Mas o que o homem fez, o homem pode fazê-lo; e, se um velho pagão antiquado, chamado
Aristóteles, pode ajudar-me a fazê-lo, agradecer-lho-ei com toda a humildade. (Chesterton,
2002, p. 35-36)
Por outro lado, Pascal reproduz na sua décima quarta Carta Provincial a idéia de que
“aquele que não está com Jesus Cristo está contra ele” como sendo as duas classes em que os
homens estão divididos: “Il y a deux peuples et deux mondes répandus sur toute la terre, selon
saint Augustin: le monde des enfants de Dieu, qui forme un corps dont Jésus-Christ est le
Chef et le Roi; et le monde ennemi de Dieu, dont le diable est le Chef et le Roi”56 (Pascal,
2001, p. 229). Essa interpretação de Pascal sobre a teologia de S. Agostinho aproxima-a do
preceito da religião fundada pelo profeta Maniqueu (216-274?), da criação do duplo
antagônico do bem e do mal.
Nessa perspectiva, é difícil aceitar uma das justificativas apresentadas por Ronald
Raminelli, em Imagens da Colonização, em que ele afirma que no Brasil colonial a teologia
de S. Agostinho contribuiu “para respaldar a catequese e fortalecer a esperança de transformar
os nativos em cristãos fiéis” (Raminelli, 1996, p. 164).
Entendemos, pelo contrário, que a catequese era uma missão doutrinária e que “Santo
Tomás tinha ensinado que a pregação apostólica atingira todas as nações, mas não todos os
homens em particular. Por isso era necessário pregar, com força, com pressa, e em alta voz”
(Hoornaert, 1992, p. 25). O que respaldava essa missão doutrinária era a interpretação de S.
Tomás de Aquino da Epístola aos Romanos [Rm: 10, 14], de S. Paulo, sobre a necessidade de
pregação para que o gentio tivesse conhecimento da fé católica. Nesse sentido, Simão de
Vasconcellos afirma que os índios não poderiam “peccar contra o preceito da Fé, que naõ
sabiaõ. He o que claramente diz S. Paulo ad Roman. 10. Quomodo credent, si non
audierunt? aut quomodo audient sine praedicante? Como hauiaõ de crer, se naõ ouuiaõ? ou
como hauiaõ de ouuir, sem quem lhes prégasse?” (Vasconcellos, 1668, p. 213).
56
há dois povos e dois mundos sobre a terra, segundo Santo Agostinho: o mundo dos filhos de Deus, que
formam um corpo do qual Jesus Cristo é o Chefe e Rei; e o mundo dos inimigos de Deus, do qual o diabo é o
Chefe e o Rei. (Pascal, 2001, p. 229)
116
Dessa forma, a defesa de Simão de Vasconcellos de que a ignorância dos índios não
poderia ser considerada como pecado, buscava legitimar, no plano discursivo, a atividade
missionária que poderia ser comprometida, ou mesmo inviabilizada, se dependesse da
teologia de S. Agostinho fundada na predestinação, na graça e nos dois mundos antagônicos,
como defendia Blaise Pascal. Por outro lado, é uma demonstração de que Vasconcellos
encontrava-se sintonizado com a controvérsia européia acerca da lei da graça.
O mundo dos predestinados é um mundo dividido, como o da interpretação dos dois
mundos de S. Agostinho por Blaise Pascal. Num mundo desses há espaço para cruzadas como
a que foi lançada em 1208 pelo papa Inocêncio III, contra os cátaros no sul da França. Nessa
cruzada, em julho de 1209, um exército cruzado atacou a cidade de Bézier massacrando a
população, sem distinção de sexo, idade ou credo (Macedo, 2000, p.19-22).
Não muito distante desta perspectiva encontramos o convite feito pelo governador
Francisco Barreto aos paulistas que preavam índios para que participassem da “desinfestação”
de índios na Bahia (Monteiro, 1994, p. 92-93), no mesmo ano de 1657 em que Pascal discutia
com os jesuítas na Europa e que Antonio Vieira pregava o sermão do Espírito Santo. Era a
guerra dos bárbaros, objeto do estudo de Maira Idalina da Cruz Pires, em Guerra dos
bárbaros (2002), e de Pedro Puntoni, em A guerra dos bárbaros (2002).
Os colonizadores do Brasil, além de exterminar os “bárbaros”, os índios Tapuia, com o
auxílio dos índios que Vasconcellos chamava de “mansos”, exterminaram, também, esses
últimos através da transmissão de doenças contagiosas, uma vez que “os nativos americanos
simplesmente não estavam preparados para resistir a algumas infecções para as quais eles não
possuíam quaisquer anticorpos” (Fernandes, 2003, p. 173). Fernandes mostra, com base em
dados de Warren Dean, em A ferro e fogo (1996), que a população Tupinambá da costa, entre
São Paulo e Rio de Janeiro, diminuiu em aproximadamente 95% do descobrimento até 1600,
quando esses índios eram apenas quatro ou cinco mil (Fernandes, 2003, p. 174). Esse
decréscimo populacional era conseqüência das guerras, das doenças e do confinamento dos
índios nos aldeamentos, o que facilitava a propagação das doenças contagiosas.
Entretanto, discordamos da afirmação de que se “realizava um genocídio deliberado”
(Fernandes, 2003, p. 175). Concordamos que a invasão européia da América produziu aquilo
que Todorov chama de “o maior genocídio da história da humanidade” (Todorov, 1999, p. 6),
todavia, a expressão “genocídio deliberado” utilizada por Fernandes não é adequada quando
refere-se à transmissão de doenças contagiosas porque, naquela época, a medicina ainda não
havia descoberto as formas de contágio, não sendo possível afirmar que o contágio era
deliberado. Da mesma forma, acreditamos que o autor utilizou de forma inadequada a
117
expressão “guerra bacteriológica”, para expressar a contaminação de índios por parte dos
jesuítas. O argumento apresentado no trecho abaixo teria valor como elemento de uma
“guerra bacteriológica” se os jesuítas tivessem conhecimento das formas de contaminação:
[...] os jesuítas foram os principais introdutores dos agentes infecciosos nas aldeias não
atingidas pelos colonos europeus. Vivendo de forma rústica, falando aos índios pelas
madrugadas e dispensando mesmo os pouquíssimos confortos disponíveis na época, os
jesuítas eram, eles próprios, homens bastante doentes, principalmente de tuberculose e
disenteria. Para infelicidade dos nativos, quanto mais doentes mais os padres se dispunham
a realizar suas prédicas pelas aldeias, certamente em busca de uma gloriosa morte a serviço
do Senhor. Manuel da Nóbrega, em 1558, descrevia esta prática que, para todos os efeitos,
equivalia a uma verdadeira “guerra bacteriológica” (Fernandes, 2003, p. 176).
A história da medicina atribui ao século XIX a descoberta das formas de infecção por
microorganismos. A palavra bactéria teve origem nesse período, tendo como origem
bacterium do latim científico em 1838. O grande pesquisador francês Louis Pasteur (18221895) estabeleceu a partir da segunda metade do século XIX as bases científicas da
propagação dos microorganismos. Assim, não tem sentido aplicar a idéia de uma propagação
deliberada de doenças numa época na qual os atores desconheciam os mecanismos de
infecção. No século XVII, a idéia de microorganismo e o vocábulo bactéria sequer existiam.
Esse pequeno deslize não compromete o excelente trabalho de Fernandes que resgata, com
justiça, a importância e o valor da mulher indígena não só para a sua sociedade, mas para toda
a sociedade do período colonial no Brasil.
Podemos resumir que o discurso de Vasconcellos sobre os índios do Brasil estabeleceu
que: eles eram originalmente brancos e oriundos da Atlântida; sua cor modificou-se através do
calor transformado em natureza pela transmissão “seminária”; a sua língua sofreu
modificações com o passar do tempo; os costumes degeneraram em função das guerras, ódio e
vingança; tinham como religião “vestígios” de uma excelência suprema e da imortalidade da
alma. Além dessas características gerais, o discurso de Vasconcellos atribui uma outra
específica que classifica os índios como mansos e bravos. A palavra manso, utilizada por
Vasconcellos para designar os índios aliados dos portugueses e passíveis de conversão, tem,
também, um outro sentido de fundo religioso, no sermão da montanha: “bem-aventurados os
mansos: seu quinhão será a terra” [Mt 5, 4]. A conversão dos índios mansos era a última etapa
do processo de “clareamento” do índio, magistralmente concebido por Mário de Andrade:
Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do
tempo que andava pregando o envangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói
saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E
118
ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
(Andrade, 1997, p. 28)
Nesse processo de clareamento dos índios mansos, restou aos índios bravos a morte
nas guerras com os bárbaros “que crêem que os outros, a sua volta, são bárbaros” (Todorov
apud Pires, 2002, p. 13).
Assim, Simão de Vasconcellos preparou-se para responder a nona e última pergunta,
definindo quem eram os habitantes que poderiam permanecer no território ampliado do Brasil
para gozar das bondades dessa terra.
119
5. A bondade da terra do Brasil
Antes de formular a resposta sobre a questão da bondade da terra, Simão de
Vasconcellos alega que não poderia deixar de oferecer um conhecimento mais amplo acerca
do que é o Brasil, sob pena de não satisfazer nem o leitor e nem o autor, tendo em vista o fato
de que “os curiosos versados em Historias” dizem ser “esta a primeira que sae a luz de cousas
destas partes” (Vasconcellos, 1668, p. 217). Esta afirmação de Vasconcellos não corresponde à
realidade uma vez que existiam registros históricos bem anteriores ao dele. Alguns desses autores
que haviam escrito sobre o Brasil, já tinham suas obras publicadas como é o caso da História da
Província Santa Cruz, de Pero de Magalhães Gândavo, publicada em 1576.
No seu relato descritivo do Brasil, Vasconcellos propõe-se a tratar primeiro do “nome” e
depois da “substância”. O autor apresenta os vários nomes que esta terra recebeu dos portugueses,
enfatizando a crítica ao nome definitivo. O primeiro nome, Terra de S. Cruz, foi dado por Pedro
Álvares Cabral, o segundo nome, América, em homenagem a Américo Vespúcio, e o terceiro de
Brasil
[...] em que fez troca a cobiça daquelles, que depois vieraõ ao trato do pao, que agora
chamaõ deste nome; naõ sem algum abatimento da imposiçaõ do primeiro, substituindose
àquelle Madeiro vermelho com o Sangue de Christo, & preço de nossa Redempçaõ, outro
madeiro, que só tem de sangue a cor, & de precioso o aparente da cobiça dos homens
(Vasconcellos, 1668, p. 218-219)
Vasconcellos aponta que escritores como João de Barros, autor de Asia de Joam de
Barros... [década] (1552), e Pedro de Mariz, nos Diálogos de varia historia (1594),
manifestaram sua desaprovação quanto a essa mudança de nome. O autor, entretanto, não cita
Pero de Magalhães Gândavo, que no primeiro capítulo de sua História da Província Santa
Cruz escrevia:
Por onde nam parece razam que lhe neguemos este nome [Santa Cruz], nem que nos
esqueçamos delle tam indevidamente por outro que lhe deu o vulgo mal considerado,
depois que o pao da tinta começou de vir a estes Reinos; ao qual chamaram brasil por
120
ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil.
Mas para que nesta parte magoemos ao Demonio, que tanto trabalhou e trabalha por
extinguir a memoria da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens, medeante a
qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania, tornemos-lhe a restituir seu
nome e chamemos-lhe Provincia de Santa Cruz, como em principio (que assi o amoesta
tambem aquelle illustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década,
tratando deste mesmo descobrimento) porque na verdade mais he destimar, e melhor
soa nos ouvidos da gente Christã o nome de hum pao em que se obrou o misterio de
nossa redençam que o doutro que nam serve de mais que de tingir pannos ou cousas
semelhantes. (Gandavo, 1980, p. 80)
Dessa forma, podemos atribuir a João de Barros a origem do posicionamento contrário
à mudança do nome da terra descoberta por Cabral. Esta mesma posição foi compartilhada e
repetida em seqüência por Pero de Magalhães Gândavo, Pedro de Mariz, Vicente do Salvador
e Simão de Vasconcellos.
Vasconcellos relaciona ainda, como outros nomes do Brasil, Índia Ocidental, para
diferenciá-la das Índias Orientais, e Nova Lusitânia como imitação de Nova Espanha. Neste
último caso, ele acha que não seria “mal acomodado”, todavia não via este nome em uso, mas
demonstra, mais uma vez, sua simpatia estética pela simetria como já comentamos anteriormente.
Ao passar a tratar da substância da terra do Brasil, Vasconcellos revela que para arrazoar
com justiça sobre as bondades dessa terra, deveria primeiramente desfazer as calúnias que
recaíam sobre essa parte do mundo. O Brasil, segundo o autor era objeto de dois tipos de calúnias:
a de que não poderia haver vida na zona equatorial, a Zona Tórrida, e de que não havia céu sobre
essa zona.
Vasconcellos atribui a Aristóteles, que ele chama de Príncipe dos Sábios, a afirmação de
que a terra da Zona Tórrida era “terra inutil, seca, requeimada, & incapaz de fontes, rios, pastos, &
aruoredos; & por conseguinte deserta pera sempre, & inhabitauel aos homens, pellos excessiuos
ardores causados da proximidade do Sol, que anda sempre sobre ella” (Vasconcellos, 1668, p.
220). Ele relaciona ainda como fontes dessa posição defendida por Aristóteles, em Meteoros, livro
2, capítulo 5; Plinio livro 2, capítulo 68; Virgílio em Geórgicas; Ovídio em Metamorfoses. Além
desses, Vasconcellos menciona Cícero, Filo, Judeu, Beda, S. Tomás, Escoto, e Durando como
fontes citadas pelos Conimbriceses, livro 2, de Coelo, capítulo 14.
Sobre a ausência de céu sobre a Zona Tórrida, Vasconcellos relaciona vários autores que
apoiavam essa opinião e diz que S. Agostinho, “taõ grande Philosofo, & Astrologo”, duvidou que
o céu cobrisse a terra: “A mim que me pertence se o Ceo como esfera cérca a terra, ou sómente a
cobre por sima como tecto?” (Vasconcellos, 1668, p. 223). Vasconcellos acrescenta um
interessante argumento, utilizado pelos autores que diziam que o céu não era esférico, como
afirmava Aristóteles, e que:
121
[...] olhando nós pera as Estrellas quando estaõ sobre nossa cabeça, aparecem menores: &
quando estaõ no Orizonte aparecem maiores, sendo as mesmas: naõ por outra rezaõ, senão
porque aparecem em diuersa distancia, menos longe quando maiores, & mais quando
menores: naõ estão logo em ceo esferico, porque a esfera não admite lugares menos, &
mais distantes. (Vasconcellos, 1668, p. 223)
Na elaboração de sua defesa contra as calúnias sobre a terra do Brasil, Vasconcellos
começa com a questão relativa à inexistência do céu. Ele afirma que os autores que dizem que não
existe céu sobre a Zona Tórrida, além de ignorantes, pretendem “tirarnos o Ceo, & com elle seus
influxos benignos” (Vasconcellos, 1668, p. 225). Para corroborar o seu argumento
relaciona como defensores da existência do céu sobre a zona tórrida: Tales Milésio,
Pitágoras, Liceto, os Sábios da Babilônia, da Caldéia, do Egito, da Grécia (Aristóteles,
Ptolomeu, Alfragano, e Platão em Timeu). Afirma que esses autores provam, por razões
filosóficas e astronômicas, que
[...] a toda a terra, em qualquer parte que esteja responde o Ceo, por ser este
esferico, & redondo. Porém por breuidade, mostremolo sómente agora com a
experiencia do mouimento do Sol, Lua, & Estrellas errantes. Todas estas vemos
com nossos olhos, nesta mesma regiaõ calumniada, irem sobindo todos os dias do
Orizonte Oriental ao meio do Ceo: & deste descer até o do Poente: & daqui voltar
outra vez em perenne mouimento ao lugar do seu Oriente. E se o Ceo naõ fora
esferico, & esferica a terra, naõ tinhaõ os astros porque andar à roda.
(Vasconcellos, 1668, p. 225-226)
O argumento utilizado pelos que eram contrários à idéia da esfericidade do céu, com base
na percepção das estrelas, é contestado por Vasconcellos que explica tratar-se de uma ilusão o
fenômeno que faz perceber as estrelas como maiores no horizonte, “porque estas estaõ sempre
em a mesma distancia da terra, ou em respeito da superficie, ou centro della”
(Vasconcellos, 1668, p. 227). Vasconcellos estava certo ao afirmar que a variação do
tamanho dos astros no horizonte é só aparente. Todavia, explica que o motivo que faz os
astros parecerem maiores no horizonte “procede da crassidaõ57 dos àres, & vapores, que
se poem entre ellas, & nòs; engrandecendoas tanto mais, quanto mais, & mais grossos
saõ os vapores: naõ porque na verdade o sejaõ, mas porque o parecem aos olhos”
(Vasconcellos, 1668, p. 227). Esse efeito é uma ilusão de óptica conhecida atualmente
como ilusão da lua.
A maioria das pessoas, quando vê no horizonte leste a lua cheia nascer, principalmente no
verão, tem a ilusão de que a lua apresenta um diâmetro maior do que quando está acima do
122
horizonte ou no meio do céu, no zênite. Seqüências de fotografias da lua58, bem como medidas do
diâmetro da lua, demonstram que o aumento aparente do diâmetro da lua é apenas uma ilusão de
óptica.
Quem primeiro percebeu esta ilusão foi o astrônomo árabe Ibn al-Haytham (965-1039),
conhecido no ocidente como Alhazen, no século XI (McCready, 2002). Vasconcellos também
defendia a idéia de que era uma ilusão a percepção aumentada do astro, porém atribuia à crassidão
dos ares e vapores, ou seja, a grossura, espessura ou densidade do ar, a causa desse fenômeno o
que não nos parece hoje uma explicação adequada. Qual seria então a explicação para essa ilusão
de óptica? A resposta a esta pergunta não é simples, uma vez que existem várias teorias que
tentam explicar a ilusão da lua, sem, no entanto, haver uma explicação que seja aceita de forma
definitiva. Nesse longo período de dez séculos, em que se tem conhecimento de que a aparência
maior da lua cheia no horizonte não corresponde ao real, várias teorias foram elaboradas e muitos
livros publicados, mas nenhuma explicação pode ser considerada completa acerca do fenômeno.
Em outras palavras, o discurso científico produziu até agora várias versões59 que permitem a
explicação do fenômeno, sem que nenhuma delas possa ser considerada definitiva. Esta questão,
relativa às diferentes versões do discurso científico utilizadas para explicar um mesmo fenômeno,
será retomada em outro ponto deste capítulo.
Outro aspecto, relacionado à defesa de Vasconcellos contra as calúnias da ausência de céu
sobre o Brasil, apontado por Beatriz Helena Domingues, refere-se à compatibilização que o autor
faz do “pressuposto filosófico e científico moderno (platônico) de que as coisas não são o que
parecem ser” com a “filosofia natural aristotélica, que explica os fenômenos da natureza em
função de ares e vapores” (Domingues, 1999, p. 131).
Na defesa que faz da existência de um céu sobre o Brasil, Vasconcellos afirma que os
detratores não só pretendem tirar o céu mas, com ele, os seus “influxos benignos”. Esta afirmação
de Vasconcellos tem um duplo sentido, religioso e astrológico, porque nessa época a “Teoria da
influência dos corpos celestes no mundo sublunar ou terrestre” ainda vigorava em Portugal e na
colônia do Brasil. Segundo Luís Miguel Carolino (2003), a publicação do Commentarii
Collegii Conimbricensis Societatis Iesu in quatuor libros de Coelo Aristotelis Stagiritae, em
1593, como livro de suporte ao ensino das matérias de cosmologia nos colégios jesuítas
revelava a importância dada a “Teoria da influência dos corpos celestes no mundo sublunar
57
Houaiss atribui a Simão de Vasconcellos, na Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, de 1663, a
primeira publicação do verbete crassidão.
58
A NASA tem página na Internet mostrando uma seqüência fotográfica da lua cheia sobre a cidade de Seattle e
que o tamanho da lua é constante: http://science.nasa.gov/y2002/24jun_moonillusion.htm, acessada em
18/8/2004.
123
ou terrestre”, devido a extensão e o pormenor com que era tratada no livro. A publicação do
Commentarii teve influência não apenas em Portugal, mas também na Alemanha, França, e
Itália, contando com mais de 112 edições em vários países (Carolino, 2003, p. 17-18). Antes
de tratar dos influxos benignos do céu, defendidos por Vasconcellos, precisamos fazer uma
breve revisão do processo de revolução científica do século XVII, na Europa, para que
possamos situar os jesuítas e Simão de Vasconcellos nesse contexto.
A longa transição, de aproximadamente dois séculos, que marca a passagem do mundo
medieval para o mundo moderno, pode ser apresentada através da vida e obra de alguns
homens que contribuíram para a superação da concepção medieval do mundo através da
revolução científica, que teve seu auge no século XVII.
A concepção medieval do mundo foi construída a partir da cosmologia da Antiguidade
grega, na qual destacava-se o modelo geocêntrico de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Essa
concepção de mundo da Antiguidade foi reforçada durante o Império Romano pelo astrólogo
e astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (90-168). Em sua obra mais importante, conhecida
como Almagesto, ele explica o sistema geocêntrico e os fenômenos celestes de forma muito
precisa para a sua época. Na visão geocêntrica de Ptolomeu, a Terra está imóvel e os astros
giram à sua volta. Para explicar os movimentos aparentes dos planetas ele introduziu a idéia
de epiciclos, isto é, os planetas teriam um movimento circular na sua órbita circular em torno
da terra, semelhante ao dos brinquedos de parque de diversões que giram em círculos ao
mesmo tempo em que giram em torno de um eixo. Estes epiciclos permitem explicar o
movimento retrógrado dos planetas no céu (Simaan, 2003, p. 55-64).
Nos séculos XI e XII, principalmente na Espanha, foram feitas traduções de filósofos
gregos e árabes: “a tradução é feita em dois tempos: do árabe para a língua popular, por
árabes e judeus; a seguir, da língua popular para o latim, pelos clérigos cristãos – o que não
raro introduz alterações no sentido dos textos” (Simaan, 2003, p. 95). No final do século XII,
o Ocidente já tem traduzido a maior parte da obra de Aristóteles, Ptolomeu, e Averroes com
traduções que já se faziam diretamente do grego para o latim.
Nessa época, Aristóteles é resgatado pela Igreja Católica através da conciliação da fé e
da razão por santo Tomás de Aquino. A existência de Deus é provada por santo Tomás de
Aquino (Summa Theologica, primeira parte, questão 2, artigo 3) através de cinco meios. O
primeiro meio é o que atribui o movimento a um primeiro motor que é associado a Deus. É
interessante observar que apesar de fazer referências constantes a Aristóteles na Summa
59
Para uma revisão das principais teorias sobre a ilusão da lua e a bibliografia correlata veja-se McCready, 2002.
124
Theologica, neste caso S. Tomás não faz referência ao filósofo nem ao seu Primeiro Motor,
que move o universo:
O Primeiro Motor, que Aristóteles situa na esfera que envolve o mundo, a das estrelas fixas.
Ao fazê-la girar, esse Primeiro Motor impulsiona o movimento que vai aos poucos se
transmitindo às outras esferas. Eterno, imaterial, o Primeiro Motor é, evidentemente, Deus.
(Simaan, 2003, p. 45)
Assim, Aristóteles é incorporado ao catolicismo através de S. Tomás de Aquino e a
concepção medieval do mundo: finito e fechado, centrado na Terra e com os astros girando ao
seu redor nas esferas celestes, num movimento circular, uniforme e perfeito. Os astrólogos e
astrônomos medievais mantiveram essa concepção aristotélica geocêntrica do mundo,
acrescentando o movimento circular dos epiciclos, utilizando o modelo de Ptolomeu.
Ao contrário dessa concepção medieval do mundo, Nicolau de Cusa (1401-1464), alto
dignitário eclesiástico, autor de Douta ignorância, entendia que o universo não tinha limites
definidos e que não poderia ser fechado (Simaan, 2003, p. 129-130). Era o início do
questionamento da concepção finita e fechada do mundo aristotélico.
Nove anos após a morte de Nicolau de Cusa, nascia Nicolau Copérnico (1473-1543)
que estudou direito canônico e medicina na Universidade de Cracóvia, de Bolonha e de
Pádua. O estudo da medicina, naquela época, exigia do aluno o estudo de astrologia, uma vez
que se acreditava que o céu influenciava o mundo sublunar, inclusive as pessoas (Simaan,
2003, p. 136-137). Copérnico foi nomeado cônego de Ermland, em 1496, e suas idéias sobre o
mundo começaram a ser divulgadas entre 1510 e 1514, através do manuscrito
Commentariolus. No fim da vida, foi convencido por Georg Joachim von Lauchen (15141574), conhecido como Rheticus, a publicar suas idéias. Nesse sentido, Rheticus publicou em
1540 Narratio prima, obra em que resume as idéias heliocêntricas de Copérnico. Assim, em
1543, pouco antes de morrer, Nicolau Copérnico pode ver sua obra De revolutionibus orbium
coelestium publicada (Simaan, 2003, p. 138-149). Nesta obra ele apresentava o Sol como
centro do mundo, com os planetas circulando a sua volta. Esta concepção contrariava a
concepção geocêntrica então adotada pela Igreja Católica.
Três anos após a morte de Copérnico nascia Tycho Brahe (1546-1601), um grande
observador do céu, que notabilizou-se pela precisão de suas observações. A observação da
estrela nova60 de 1572, que brilhou até 1574, permitiu que publicasse suas observações
classificando o astro como sendo uma estrela, em De nova stella (1573). Essa estrela nova
125
provava que o céu das estrelas não era perfeito e imutável como estabelecia a concepção
aristotélica então vigente. Em 1575, Frederico II concedeu-lhe a ilha de Hveen onde construiu
o castelo Uraniborg, com tetos móveis, que pode ser considerado como o primeiro
observatório moderno. Tycho Brae foi o primeiro a observar os astros de forma sistemática e
continuada, fazendo medidas muito precisas com os poucos instrumentos que dispunha e a
tecnologia existente. As observações e medidas do cometa de 1577 permitiram que localizasse
esse corpo a uma distância equivalente a seis vezes a distância entre a Terra e a Lua. Estas
medidas corroboravam a corruptibilidade do espaço para além da Lua, ou seja, do céu.
Tycho Brahe elaborou um sistema em que tentava compatibilizar a concepção
geocêntrica de Ptolomeu e a heliocêntrica de Copérnico, o sistema geo-heliocêntrico em que
os planetas giravam em torno do Sol e o Sol e a Lua giravam em torno da Terra. Esse sistema
permitia reproduzir a realidade, ou seja, o movimento aparente dos astros no céu com uma
razoável aproximação. Além disso, o sistema de Tycho Brahe apresentava a Terra no centro
do mundo o que não era conflitante com as Escrituras e fez sucesso na sua época e,
posteriormente, entre os jesuítas (Simaan, 2003, p. 150-156).
Após a morte de Frederico II, seu protetor, Tycho Brahe aceitou o convite de Rodolfo
II e partiu para Praga em 1599, onde se encontrou com Johannes Kepler (1571-1630) com
quem já se correspondia havia alguns anos. Kepler estudou teologia na Universidade de
Tübingen e queria ser pastor, porém acabou aceitando em 1594 o cargo de professor de
matemática e de Mathematicus dos estados da Stíria. Nessa última ocupação era encarregado
da confecção dos almanaques astrológicos. No primeiro ano, acertou duas previsões que o
tornaram famoso como astrólogo (Simaan, 2003, p. 160-161). Todavia, mudanças políticas na
Stíria que resultaram na perseguição aos protestantes, o levaram a aceitar o convite, que
coincidentemente chegava da parte de Tycho Brahe para trabalhar para ele. Dessa forma,
Kepler aceitou o convite e passou a trabalhar para Brahe.
Ambos tinham em comum personalidade forte e temperamento irascível. Suas relações
foram, não raro, tempestuosas, principalmente quando Kepler reclamava o seu salário.
Ele, com efeito, vivia na miséria, e sua mulher era obrigada a mendigar florim por
florim para alimentar os filhos. Embora a paga fosse modesta, era muitas vezes
impossível para Tycho quitá-la, tendo ele próprio dificuldades em ser remunerado por
seus serviços ao imperador, enquanto continuava com suas despesas faraônicas: gostava
de banquetes copiosamente regados, acompanhados de boa carne, no que era diferente
de Kepler, uma máquina de trabalhar de hábitos austeros. (Simaan, 2003, p. 166)
60
É uma estrela invisível a olho nu que passa a brilhar intensamente e cujo nome deriva do título do livro de
Tycho Brahe, De nova stella.
126
Nessa época, Tycho Brahe estava encarregado de preparar as tábuas com a posição dos
astros que substituiriam as Tábuas Alfonsinas e as Tábuas Prutênicas. Kepler foi encarregado
por Tycho de elaborar uma teoria para os movimentos de Marte, o que era uma tarefa muito
difícil devido à excentricidade de sua órbita, que produzia estranhos movimentos aparentes no
céu. Após a morte de Tycho Brahe em 1601, Kepler foi nomeado Mathematicus de Rodolfo
II. Os dados das observações de Tycho Brahe sobre o planeta Marte permitiram que Kepler
formulasse suas leis, que foram publicadas em 1609 em Astronomia nova. As duas leis de
Kepler que revolucionaram a astronomia foram:
Primeira lei: a órbita dos planetas é uma elipse, de que um dos focos é o Sol.
Segunda lei: o movimento dos planetas não é uniforme. Ao se aproximarem do Sol, os
planetas aceleram a marcha em sua órbita, e a diminuem ao se afastar. Mas essa
variação não se dá de qualquer jeito: a reta que vai do Sol ao planeta (chamada de raio
vetor) varre em sua trajetória áreas iguais em tempos iguais. (Simaan, 2003, p. 171-172)
Essas leis modificavam a concepção do mundo e os dogmas estabelecidos na
Antigüidade: o dogma do movimento circular dos astros e o dogma de que esse movimento
era uniforme.
Em Praga, no ano de 1600, Kepler estudava os dados das observações de Tycho Brahe
sobre Marte para elaborar sua teoria. Em Roma, nesse mesmo ano, Giordano Bruno (15481600) era queimado vivo devido à pena imposta pelo Santo Ofício. Bruno ingressou na ordem
dos dominicanos em 1572 e doutorou-se em teologia. Em conseqüência de um processo por
heresia fugiu para Genebra, de onde também foi obrigado a fugir e acabou por instalar-se na
França onde em 1583 assumiu uma cátedra no Collège Royal. No ano seguinte foi para a
Inglaterra onde publicou várias obras e permaneceu por dois anos, sendo obrigado a voltar
para a França devido aos ataques dos aristotélicos, insatisfeitos com suas publicações. Da
França passou para a Alemanha e depois para Praga onde Rodolfo II negou-se a recebê-lo.
Voltou para Veneza, na Itália, e seu anfitrião com medo de suas idéias denunciou-o à
Inquisição, que o condenou e lhe impôs a pena de morte (Simaan, 2003, p. 181-186).
Outro astrônomo e físico que teve problemas com a Inquisição foi Galileu Galilei
(1564-1642), que nasceu em Pisa e, em 1589, foi nomeado professor de matemática naquela
cidade. Ele ensinava o sistema de Ptolomeu e em algum momento antes de 1597 converteu-se
para o sistema de Copérnico, comentando esse sistema em uma carta destinada a Kepler.
Galileu fabricou e aperfeiçoou lunetas, que, em 1609, chegavam a permitir um aumento de até
trinta vezes. Com esse novo instrumento de observação, Galileu explorou o céu e publicou o
resultado dessa exploração em Mensageiro celeste (1610), onde ele afirma que a Lua tem
127
relevo, que existem estrelas invisíveis a olho nu e que Júpiter tinha quatro luas. Nessa época,
Galileu decide mudar-se para Florença e em homenagem ao grão-duque da Toscana, Cosimo
II de Médici, atribui às luas de Júpiter o nome de Medicea Sidera.
Os problemas decorrentes de seu livro levam Galileu a escrever a Kepler pedindo-lhe
apoio para as suas descobertas. Kepler atende seu colega e escreve Dissertatio cum nuncio
sidero em que defende a descoberta de Galileu e diz que os astros que estão na órbita de
Júpiter não são planetas, mas sim aquilo que ele nomeia como satélites61. Essa defesa
demonstra a confiança de Kepler em Galileu, porque foi anterior à constatação da existência
das luas de Júpiter. Por mais absurdo que possa parecer, para comprovar a existência das luas
de Júpiter, Kepler teve que pedir emprestada uma luneta, uma vez que Galileu se recusava a
fornecer-lhe uma (Simaan, 2003, p. 189-205).
Nesse mesmo ano de 1610, Galileu observou as manchas solares e comunicou a
colegas. Pouco tempo depois, o jesuíta Cristóvão Scheiner fez a mesma descoberta e Galileu
se ofendeu julgando que havia sido “roubado”. Esse episódio deu início a uma longa
discussão, às vezes áspera, com o jesuíta, através de cartas (Simaan, 2003, p. 206).
O classicismo de Galileu, que o impedia de aceitar o resultado dos trabalhos de Kepler
sobre a órbita elíptica dos planetas, levam-no a tentar provar a tese de Copérnico com uma
equivocada teoria das marés, atribuída ao movimento de rotação e translação da Terra
(Simaan, 2003, p. 211-213). O mais surpreendente é que Kepler já havia abordado a
influência da lua sobre as marés:
[...] se a Terra e a Lua não fossem retidas por uma força animada, ou qualquer outra
equivalente [...], a Terra subiria para a Lua [...e] a Lua desceria para a Terra [...] Se a
Terra deixasse de atrair as águas para si, todas as águas dos mares seriam erguidas e
escorreriam pelo corpo da Lua. (Kepler apud Simaan, 2003, p. 213)
Galileu por sua vez, despreza Kepler utilizando as seguintes palavras:
De todos os grandes homens que filosofaram [sobre as marés], Kepler é quem mais me
surpreende: aquele espírito livre e penetrante tinha à disposição os movimentos atribuídos à
Terra e, no entanto, prestou ouvidos e deu assentimento a uma influência da Lua sobre a
água, a propriedades ocultas e outras infantilidades do gênero. (Galilei apud Simaan, 2003,
p. 213-214)
61
Originalmente no latim satelles era utilizada para designar o guarda de um príncipe. Kepler utilizou-a para
designar o astro que acompanha o planeta.
128
Em 1616, Galileu foi convocado pela Inquisição para ser informado do resultado de
um processo que havia sido instaurado e cujo certificado, solicitado por Galileu, diz num
trecho que:
Foi-lhe apenas notificada a declaração do papa, publicada pela Sagrada Congregação do
Índex, na qual consta que a doutrina atribuída a Copérnico, referente ao movimento da
Terra em torno do Sol e à imobilidade do Sol no centro do mundo, sem que este se desloque
do Oriente para o Ocidente, é contrária às Sagradas Escrituras e não deve, portanto, ser
defendida nem adotada. (Simaan, 2003, p. 216)
Nos dias atuais é difícil entender o risco que os sábios e cientistas corriam naquele
período ao defender suas posições científicas, uma vez que a ciência era dependente da
religião. Camenietzki lembra que alguns astrônomos desse período tinham receio de defender
o sistema heliocêntrico porque podiam ser considerados hereges:
Após a condenação das teses copernicanas de 1616, diversos astrônomos ficaram
receosos de suas conclusões. Afinal, a Igreja Católica condenara como heréticas duas
idéias muito importantes do sistema de Copérnico. Certamente, isso tinha um peso
extraordinário naquela época. Antes do medo de perseguições da Inquisição, os eruditos
temiam estar cometendo pecado grave ao defender essa opinião! Os católicos que
defendiam o heliocentrismo tinham a preservar sua condição de bom cristão, homem de
fé, e se afastar do pecado, em primeiro lugar. Ser tido como herético também era correr
o risco de perder seus vínculos sociais, ser banido, perseguido, processado.
(Camenietzki, 2000, p. 78)
Essa posição intransigente não era exclusividade da Igreja Católica, posto que o
Calvinismo, fazia uso das mesmas práticas, como a condenação à morte na fogueira de
Miguel Servet, em 1553 (Simaan, 2003, p. 270).
Depois de ter sido notificado pela Inquisição, Galileu travou uma discussão com o
matemático jesuíta Orazio Grassi (1590-1654), que havia observado os cometas de 1618 e que
chegara às mesmas conclusões que Tycho Brahe sobre o fato de os cometas transitarem no
mundo celeste, isto é, para além da Lua, e que sua órbita não era circular (Simaan, 2003, p.
217-218). Galileu não admitia que o movimento dos astros, incluindo os cometas, não fosse
perfeito, isto é, circular.
Galileu sentiu-se mais seguro com a eleição de Maffeo Barberini, em 1623, como papa
Urbano VIII, que era seu admirador e por quem era respeitado (Simaan, 2003, p. 219-220).
Essa segurança fez com que ele publicasse em 1632 o Diálogo sobre os dois maiores sistemas
do mundo, escrito em italiano com o objetivo de popularizar o debate sobre os sistemas do
mundo. Nesse Diálogo,
129
Três personagens discutem os sistemas de Ptolomeu e Copérnico. O primeiro, Salviati,
um homem culto e respeitável, defende o sistema de Copérnico com muito bom senso e
fórmulas convincentes. Diante dele, para defender Ptolomeu, está Simplício, detentor
das tradições, cujo nome em si já constitui todo um programa. Entre os dois, Sagredo,
supostamente neutro, mas na verdade um reformador mordaz, alinha-se com freqüência
com as idéias de Salviati e faz, muito oportunamente, pender a balança para o “lado
certo”. Simplício é ridicularizado o tempo todo, num combate desigual em que seus
argumentos recebem o fogo cruzado de seus dois interlocutores. (Simaan, 2003, p. 221)
No fim do livro Galileu faz com que a personagem de Simplício, defensor de
Ptolomeu, afirme que mesmo que os fatos indiquem que a Terra gira em torno do Sol, isto era
uma ilusão criada por Deus, quando na verdade o Sol gira em torno da Terra. A personagem
de Simplício cita como fonte dessa afirmação “uma pessoa muito sábia e eminente, diante da
qual só nos resta calar” (Galilei apud Simaan, 2003, p. 222). Essa afirmação era na verdade
um argumento muito utilizado pelo papa, que se sentiu ofendido ao ser associado a um
simplório. Nesse período, o papa atravessava uma fase em que estava envolvido em sérios
problemas políticos e o processo contra Galileu serviria para atenuar parte desses problemas.
Dessa forma, Galileu foi processado por disseminar a concepção heliocêntrica de Copérnico,
e, através de um acordo, ele abjurou, sendo incorreta a versão de que acrescentou a
observação eppur si muove. Isto teria custado a sua vida... O Diálogo sobre os dois maiores
sistemas do mundo foi proibido e queimado em 1633, e Galileu condenado a prisão perpétua.
Ele morreu nove anos depois, em prisão domiciliar em Arcetri (Simaan, 2003, p. 225-226).
Camenietzki reproduziu a abjuração de Galileu:
Eu, Galileo, filho de Vicenzo Galileo de Florença, na idade de setenta anos, constituído
pessoalmente em juízo e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos
Cardeais, Inquisidores gerais em toda a República Cristã contra a herética infâmia,
tendo diante dos meus olhos os sacrossantos Evangelhos, os quais eu toco com as
próprias mãos, juro que sempre acreditei, acredito ainda e com a ajuda de Deus
acreditarei no futuro em tudo aquilo que a Santa Igreja Católica e Apostólica sustenta,
prega e ensina. Mas, porque por este Santo Ofício, por ter eu, depois de me ter sido pelo
mesmo intimado juridicamente que deveria absolutamente deixar a falsa opinião que o
Sol seja o centro do mundo e que não se mova, e que a Terra não seja o centro do
mundo e se mova, e que não pudesse sustentar, defender nem ensinar de maneira
alguma nem por escrito nem por viva voz, a dita falsa doutrina, e depois de me ter sido
notificado que a dita doutrina é contrária à Sagrada Escritura, escrevi e publiquei um
livro no qual trato desta doutrina já condenada e acrescento razões com muita eficácia a
favor delas, sem apresentar solução, fui julgado veementemente suspeito de heresia, ou
seja por ter acreditado e defendido que o Sol seja o centro do mundo e imóvel, e que a
Terra não seja centro e que se mova.
Portanto, querendo eu retirar da mente das Vossas Eminências e de todo fiel cristão esta
veemente suspeita, justamente por mim gerada, com o coração sincero e fé não fingida,
abjuro, maldigo e detesto os ditos erros e heresias e genericamente, todo e qualquer
outro erro, heresia ou seita contrária à Santa Igreja; e juro que no futuro não direi nunca
mais nem afirmarei a viva voz ou por escrito, coisas pelas quais se possa ter de mim tal
suspeita; e mais, se conhecer algum herético ou suspeito de heresia, denunciarei a este
Santo Ofício, ou ao Inquisidor e Ordinário do lugar em que me encontrar.
130
Juro ainda e prometo respeitar e observar inteiramente todas as penitências que me
foram ou me forem impostas por este Santo Ofício; e contrariando alguma das minhas
ditas promessas e juramentos, que Deus não o queira, me submeto a todas as penas e
castigos que são impostas e promulgadas contra semelhantes delinqüentes pelos
sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares. Assim, que Deus me ajude
e estes seus Evangelhos que toco com as próprias mãos.
Eu, Galileu Galilei, supradito, abjurei, jurei, prometi e me obriguei como acima, e na fé
da verdade, com minha abjuração e a recitei palavra por palavra em Roma, no Convento
da Minerva, em 22 de junho de 1633. (Camenietzki, 2000, p. 81-82)
Segundo E. Panofsky, Galileu foi apenas um explorador no campo da Astronomia,
mas pode ser considerado como um dos fundadores da física moderna:
Talvez seja precisamente pelo fato de Kepler haver partido de uma cosmologia
essencialmente mística, mas ter tido a capacidade de reduzi-la a asserções quantitativas,
que ele se pode tornar um astrônomo tão ‘moderno’ quanto Galileu o foi como físico.
Livre de qualquer misticismo, mas sujeito às prevenções do purista e do adepto do
classicismo, Galileu, pai da mecânica moderna, foi, no campo da astronomia mais um
explorador do que um demiurgo (Panofsky62 apud Koyré, 1982, p. 270)
A afirmação de Galileu de que o universo “está escrito em língua matemática”
(Galilei, 1983, p. 119), em O ensaiador (1623), é reveladora da transformação ocorrida neste
período de aplicação da matemática à ciência, com a aplicação dos métodos utilizados pelos
astrônomos no mundo celeste ao mundo sublunar, ou seja, uma unificação do céu e da terra.
Por um lado, o mundo celeste perdeu sua perfeição e imutabilidade devido às descobertas
astronômicas, por outro lado, os fenômenos do mundo sublunar ganharam uma previsibilidade
decorrente das experiências e da aplicação da matemática à física. Em resumo, a escolástica e
a física aristotélica começam a ser demolidas pela ciência, através da observação, experiência
e aplicação da matemática.
No século XVII, na França, o debate científico era realizado no Collège Royal que
teve como destaque o padre Pierre Gassendi (1592-1655) e Gilles Personne de Roberval
(1602-1675). Outra figura de destaque no meio científico, não só na França, mas em toda a
Europa, foi o padre Marino Mersenne (1588-1648) que, em 1619, instalou-se no convento de
sua ordem em Paris e fundou a Revue Internationale de Mècanique. Mersenne reunia no
convento cientistas como Gassendi, Roberval, Pascal, Descartes, e vários outros, ficando o
grupo conhecido como Academia Parisiensis. Mersenne trocava correspondência com
cientistas da Europa e do oriente, além de publicar obras e financiar a edição de vários livros
(Simaan, 2003, p. 236-238).
62
PANOFSKY, E. Galileo as a Critic of the Arts. Haia: Martinus Nijhoff, 1954.
131
Um dos interlocutores assíduos do padre Mersenne foi René Descartes (1596-1650).
Depois de estudar num colégio jesuíta, Descartes engajou-se como soldado e em uma das
campanhas, na Alemanha, em 1619, teve sonhos que o levaram aos fundamentos de uma
“ciência admirável” (Simaan, 2003, p. 246). A partir desse acontecimento, sentiu-se
compelido a uma missão sagrada. Renunciou à carreira militar e em 1629 retirou-se para a
Holanda onde produziu a maior parte de sua obra. Em 1649 aceitou ir para a Suécia para
ensinar à rainha Cristina. No ano seguinte morreu de pneumonia devido aos rigores do clima.
A complicada cosmologia dos turbilhões de Descartes, em que a Terra ficava imóvel e
era carregada pelo turbilhão em torno do Sol, demonstra a influência que a condenação de
Galileu exerceu sobre Descartes, como ele revela nas cartas ao padre Mersenne. Por outro
lado, o caráter marcante e revolucionário do seu método lógico permitiu “a partir de um
raciocínio rigoroso, construir uma ciência, mais sólida na medida em que era submetida à
dúvida metódica” (Simaan, 2003, p. 252). Outro aspecto importante é que da mesma forma
que Galileu publicou o Diálogo sobre os dois maiores sistemas do mundo, em italiano, em
1632, Descartes publicou o Discurso do método, em francês, em 1637. Os autores, nesses
casos, tentavam disseminar suas idéias num âmbito mais abrangente do que o dos cientistas de
seu tempo, que utilizavam apenas o latim.
A longa passagem para o mundo moderno foi concluída por Isaac Newton (16431727), que nasceu poucos meses após a morte de Galileu. Newton, depois de amadurecer suas
teorias físicas durante aproximadamente vinte anos, publicou Philosophiae Naturalis
Principia Mathematica, em 1687, com a enunciação das leis da física do movimento: a lei da
inércia, da lei da proporção entre força e aceleração, da lei da ação e da reação e da lei da
gravitação universal. A partir desse ponto, a aplicação intensiva da matemática na física do
movimento permitiu a sua consolidação como uma ciência exata. Estava concluída a longa
passagem do mundo medieval para o mundo moderno, com a revolução científica do século
XVII.
Assim, em meados do século XVII, enquanto Simão de Vasconcellos escrevia as Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, a revolução científica estava em pleno
andamento na Europa. Ao mesmo tempo, a “Teoria da influência dos corpos celestes no
mundo sublunar ou terrestre” ensinada pelos jesuítas nas aulas e no Commentarii Collegii
Conimbricensis estabelecia um contraponto com o discurso da modernidade.
Nesse período de transição, conviviam a magia e a ciência, sendo difícil distinguir, por
exemplo, o astrólogo do astrônomo. Kepler é um excelente exemplo dessa ambivalência,
como vimos anteriormente. Em seu trabalho, intitulado Ciência, astrologia e sociedade: a
132
teoria da influência celeste em Portugal (1593-1755), Luis Miguel Carolino (2003) enfatiza a
necessidade de se observar, na construção da história da ciência, a articulação entre a magia e
a ciência, existente nos seus primórdios e a gradual dissociação que ocorre ao longo do século
XVII:
Ciência e magia não constituíam, portanto, até o século XVII, visões de mundo opostas
e antagónicas, submetidas a lógicas incompatíveis. A constituição do que viria a ser a
“ciência moderna” tem na sua génese uma herança hermética, que apenas
posteriormente fruto de um processo complexo resultaram em concepções opostas
àquelas que vieram a ser reconhecidas mais tarde, pela ciência, como “ocultas”. Assim,
a opinião comum e actual sobre o carácter anti-racional e esotérico da magia, e
consequentemente da astrologia, não deve impedir o historiador da ciência de analisar
esses fenómenos como corpos teóricos que eram, em outras épocas do passado, tidos
como perfeitamente racionais e legítimos na construção do saber sobre a natureza.
(Carolino, 2003, p. 38-39)
O ensino de astrologia nos colégios jesuítas pode ser exemplificado pelos estudos de
cosmografia no Colégio de Santo Antão em Lisboa:
Como rigorosamente demonstrou Luís de Albuquerque, durante o século XVII a “Aula
da Esfera”, cadeira criada neste colégio na segunda metade do século anterior onde se
ensinavam as bases da cosmografia, foi garantido o ensino da astrologia judiciária,
nomeadamente pelos padres jesuítas Francisco da Costa, professor entre 1595 e c. 1602,
João Delgado, que aí ministrou entre 1600 (?) e 1612, Simon Fallon de c. 1635 a 1642 e
Luís de Gonzaga que, na transição do século, fora transferido da Universidade de Évora
para o Colégio de Santo Antão para ministrar as matérias de cosmografia. (Carolino,
2003, p. 103)
A influência dos astros na vida das pessoas era tão importante no século XVII que “era
muito freqüente, por esta época, ouvirem-se os astrólogos e os próprios médicos afirmarem
que não se podia ser um bom médico se não se fosse também um astrólogo informado”
(Carolino, 2002, p. 27). Prova dessa influência é o trecho do livro Epitome das Noticias
Astrológicas necessárias para a Medicina, do frade António Teixeira (1602-1687), publicado
em 1670, em Lisboa, pela Oficina de João da Costa:
A cura que se faz por methodo he aquella a que precede indicação, que vem a ser o
conhecimento do offendente, e do que favorece, que pode remediar o dano: sem a
Astrologia naõ se pode conhecer a causa offendente, que saõ os influxos celestes, logo
bem se segue que sem a Astrologia se naõ pode curar por methodo a tal doença: nem taõ
pouco por alexipharmacos, porque se naõ conhece a causa, cujos efeitos se remedeaõ
com particulares virtudes, e se os Medicos curaõ algumas doenças, como se
experimenta nas de veneno, e na do Morbo Galico, he pello conhecimento, que ja hoje
tem dos influxos das causas, e das virtudes dos alexipharmacos pera as taes doenças.
(Teixeira apud Carolino, 2003, p. 136)
133
Observe-se que o livro do frade António Teixeira foi publicado sete anos após a
publicação da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, de Simão de
Vasconcellos, em 1663. Por outro lado, os jesuítas Baltazar Teles, em 1642, e Francisco
Soares, em 1651, incluíam, gradualmente, em seus livros, conceitos modernos, numa revisão
do aristotelismo:
Acompanhando os principais filósofos naturais jesuítas, como Kircher e Riccioli,
Baltazar Teles, Francisco Soares e certamente muitos dos lentes que nas aulas
recorrerão aos seus cursos impressos consideram ser a matéria celeste corruptível —
Caeli corruptibiles sunt, ac generabiles, sicut reliqua corpora sublunaria — e os céus
fluidos, ou seja, não compostos por orbes sólidos e pesados. Se estas teorias
inicialmente eram defendidas recorrendo ao seu maior grau de probabilidade,
argumento explorado sobretudo por Soares, com o desenrolar do século XVII, elas
ganham o estatuto de certeza, como testemunha o Curso [1714] de António Cordeiro
S.J. (1640-1722), o que pode ser interpretado como uma adesão progressiva e decidida
dos colégios jesuítas às novas teorias, nomeadamente às teorias cosmológicas de Tycho
Brahe. (Carolino, 2003, p. 254-255)
Esses e outros exemplos permitem que Carolino conclua que, ao contrário do que se
propaga na historiografia da cultura portuguesa, no decorrer do século XVII, houve uma
transformação na filosofia e no ensino jesuítico pela incorporação de idéias modernas:
Ao contrário do que a historiografia da cultura portuguesa tem afirmado, estamos perante
uma tradição que não se esgotava na repetição, na especulação estéril e infecunda de temas
já gastos e ultrapassados. Ao invés do que tem sido defendido, do nosso estudo ressalta uma
corrente filosófica viva e criativa que, sobre uma base aristotélico-tomista, encontra novas
sínteses e incorpora mesmo elementos tão estranhos como determinadas concepções
inequivocamente inspiradas em teorias corpusculares. Ou seja, estamos a falar não do
diálogo surdo entre antigos e modernos, mas de uma tradição eclética e com uma coerência
própria, que há que estudar em si e que demonstra a riqueza do aristotelismo tardio.
(Carolino, 2003, p. 346)
Durante o século XVII e XVIII, na Europa, ocorre uma gradual separação entre a
astrologia e a astronomia. Ao mesmo tempo que as idéias modernas vão sendo incorporadas à
ciência, a astronomia firma-se como uma disciplina e a astrologia passa por uma fase de
decadência que se reflete no conteúdo dos Almanaques Astrológicos:
Tratava-se agora de uma sociedade que deixara de entregar o seu futuro à sorte dos astros e
que o procurava construir racionalmente; uma sociedade bem menos crente nas predições
astrológicas e mais interessada no potencial lúdico dos almanaques. Não espanta, deste
modo, que os almanaques tenham crescentemente perdido os conteúdos propriamente
astrológicos. (Carolino, 2002, p. 80-81)
Retomando Vasconcellos, verificamos que, após refutar as calúnias sobre o céu, ele
passa a tratar da terra e alerta o leitor para considerar “incerteza das cousas desta vida”
134
(Vasconcellos, 1668, p. 228). Em oposição ao pensamento dos antigos a respeito da
Zona Tórrida, onde se localizava a terra do Brasil, que afirmavam ser uma “terra inutil,
seca, requeimada, deserta, inhabitauel pera gente humana” o autor sustentava que, pelo
contrário, era uma “regiaõ temperada, amena, abundante de chuuas, orualhos, fontes,
rios, pastos, verdura, aruoredos, & frutos pera perfeita habitaçaõ de viventes”
(Vasconcellos, 1668, p. 228-229). Vasconcellos conclui afirmando que a terra do Brasil
tem “tal suauidade de temperamento, como em hum paraíso da terra” (Vasconcellos,
1668, p. 229). Observe-se que ele diz nesse trecho que a terra do Brasil tem suavidade
de temperamento como um paraíso da terra. Note-se também o uso da letra minúscula
em paraíso, afinal é apenas um paraíso e não o Paraíso.
Ainda sob o aspecto de o Paraíso estar na Zona Tórrida, Vasconcellos diz que
Eratóstenes, Prolíbio, Ptolomeu, e Avicena afirmavam isto e que não poucos teólogos
“de que faz menção S. Thomas na sua Terceira parte, questaõ cento & duas, articulo
segundo, & em tanto grao, que chegaõ a defender, que nesta parte debaixo da linha
Equinocial criàra Deos o Paraíso terrestre” (Vasconcellos, 1668, p. 229-230).
Vasconcellos cita S. Tomás, possivelmente no seu trabalho Summa Theologica e neste
caso incorre num erro de referência. A terceira parte da Summa estava sendo escrita por
S. Tomás quando ele faleceu e tinha noventa artigos. A continuação do trabalho,
conhecida como suplemento da terceira parte foi elaborado, segundo a tradição, pelo
frade Rainaldo da Piperno. Entretanto, na primeira parte da Summa Theologica a questão
cento e dois trata justamente do Paraíso e no artigo segundo S. Tomás discute a sua
localização. Esta falha de Vasconcellos não foi alterada na edição de 1668, em que ele
conclui o parágrafo dizendo:
ainda que eu agora naõ me aproueite do que acrescentaõ do Paraíso; naõ me passa
com tudo por alto pera quando for tempo. Por entretanto naõ posso deixar de agradecerlhes
o reconhecerem nestas partes tal temperamento, & taõ suaue, que sejaõ forçados a passar
pera ellas o mesmo Paraíso da terra. (Vasconcellos, 1668, p. 230)
Observe-se que nesse trecho Vasconcellos utiliza letras maiúsculas para grafar
Paraíso. Além disso, ele alerta o seu leitor de que retomará a discussão do Paraíso
terrestre “quando for tempo”.
Enquanto ainda não é chegado o tempo de discutir o Paraíso terrestre,
Vasconcellos afirma que não é “bastante a homens de bom entendimento ver, &
experimentar”, mas que “sobre tudo serà gosto saber a rezaõ fundamental de cousas taõ notaueis,
135
& ouuir confutar os maiores Sabios dos seculos” (Vasconcellos, 1668, p. 230). Neste pequeno
trecho em que se prepara para refutar Aristóteles, Vasconcellos associa ver e experimentar, dois
elementos indispensáveis da ciência moderna que estava sendo criada, e afirma que isto não é o
bastante, mas sim a razão fundamental das cousas. Em outras palavras, a afirmação de
Vasconcellos demonstra a introdução e a valorização de pressupostos da ciência experimental,
como eram “ver e experimentar”, sem, no entanto, perdermos de vista o fato do autor ser um
religioso e que seu propósito era buscar uma razão que justificasse o clima ameno dos trópicos.
Nesse sentido, Vasconcellos apresenta o caso do Rio de Janeiro “que na mòr ausencia do Sol, &
quando he ferida com raios mais obliquos, entaõ està mais seca, falta de chuuas, & humidades: &
pello contrario, em presença do Sol, & quando mais ferida com seus raios direitos, entaõ està mais
humida, abundante de chuvas, & vapores” (Vasconcellos, 1668, p. 231). Essa explicação de
Vasconcellos é perfeita e apresenta corretamente o motivo das estações do ano, a obliqüidade na
incidência dos raios solares. Todavia, ele complementa essas explicações com uma comparação
equivocada do clima terrestre com um alambique, o que valeria apenas para a zona tropical, como
ele mesmo esclarece:
a Zona torrida (exceptas algũas partes em que ha causas particulares) entaõ he menos seca,
quando mais presente a fere o Sol; & entaõ mais seca, quando mais ausente està: & por
conseguinte, que nunca pòde torrarse de seca, nem abrazarse de ardores; porque a refrescaõ,
& humedecem os vapores desfeitos em chuuas: & mui ao contrario se philosopha nesta
materia fóra dos Tropicos: porque alli a chuua com o frio, o calor cõ a secura andaõ
inseparaueis. (Vasconcellos, 1668, p. 233)
As diferentes estações do ano ocorrem em função do plano da órbita da Terra em
relação ao Sol, chamado de plano da eclíptica, que faz os raios solares incidirem mais ou
menos inclinados, produzindo menos ou mais calor respectivamente. Roberto Boczko63 alerta
para o fato de que esse conceito das estações do ano é, ocasionalmente, apresentado de forma
incorreta:
É comum ouvir-se dizer que ‘no verão o Sol está mais próximo da Terra e no inverno mais
longe, e por isso o primeiro é mais quente e o segundo mais frio’. Um argumento muito
simples permite refutar tal teoria: quando é verão num hemisfério, é inverno no outro, e no
entanto para os dois casos o Sol se encontra à mesma distância da Terra. Assim, a razão do
inverno e verão, com suas respectivas características de temperatura média, devem ser
atribuídas a outro fato: à diferença das quantidades de calor recebidas pelos 2 hemisférios
devido à posição do Sol com relação a eles. (Boczko, 1984, p. 128)
63
Agradeço esta indicação ao amigo e astrônomo Roberto Fereira Silvestre.
136
Depois de estabelecer a existência de céu sobre o Brasil e explicar que o clima na
região da Zona Tórrida era temperado, ao contrário do que supunham os antigos,
Vasconcellos afirma que demonstrará as bondades e propriedades da terra do Brasil. Isto
porque, segundo Aristóteles, “as propriedades saõ as mostras do ser” (Vasconcellos, 1668, p.
236) e, além disso, “Em toda a boa Philosofia, da bondade das propriedades se colhe a bondade do
ser” (Vasconcellos, 1668, p. 237). Ele parte da premissa de que “Quatro propriedades saõ
necessarias pera, que por ellas hũa terra tenha nome de boa” (Vasconcellos, 1668, p. 237), isso
porque está escrito no Gênese que o Criador da Terra viu em cada uma dessas propriedades a
qualidade de serem boas: “& vidit Deus quòd esset bonum” (Vasconcellos, 1668, p. 237).
Assim, Vasconcellos relaciona as propriedades:
A primeira he: Que se vista de verde [Gn 1, 11]64: a saber, de erua, pastos, & aruoredos de
varios generos. A segunda: Que goze de bom clima, de boas influencias do Ceo, do Sol, Lua,
& Estrellas [Gn 1, 14-18]. Terceira: que sejaõ suas agoas abundantes de peixes, & seus àres
abundantes de aues [Gn 1, 20-21]. Quarta: que produza todos os generos de animaes, & bestas
da terra [Gn 1, 24-25]. (Vasconcellos, 1668, p. 237).
Vasconcellos afirma que “não pòde a terra deixar de ser boa, em que houuer estas quatro
propriedades; nem poderà deixar de ser defectuosa aquella, em que faltarem todas quatro, ou parte
dellas” (Vasconcellos, 1668, p. 238-239). Partindo dessa proposição, que funciona como uma
premissa, o autor pretende demonstrar as “quatro propriedades por excellencia na terra do Brasil”
(Vasconcellos, 1668, p. 239) e a partir delas chegar à conseqüência, ou à conclusão. As
demonstrações das teses pelos jesuítas eram feitas através de silogismo, que consiste numa
“dedução formal que, partindo de duas proposições, denominadas premissas, delas retira uma
terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão” (Lakatos, 1991, p. 42-43). Neste
caso, o silogismo proposto por Vasconcellos é:
Toda terra que tem as quatro propriedades estabelecidas no Gênese é boa.
A terra do Brasil tem as quatro propriedades estabelecidas no Gênese.
Logo, a terra do Brasil é boa.
A primeira proposição não necessita demonstração uma vez que é uma afirmação
retirada da Escritura Sagrada que, por este motivo, é dogmática e não precisa ser provada. A
segunda proposição é a que Vasconcellos precisa provar, como ele mesmo afirmou, para que
a conclusão do silogismo possa ser considerada verdadeira. Assim, ao longo de 37
64
Nas referências à Bíblia Sagrada são indicados, entre colchetes, o livro, capítulo e versículo (s).
137
parágrafos65, Vasconcellos propõe-se a demonstrar que a terra do Brasil é boa, ou seja, que
tem as quatro propriedades que a fazem boa e validam a sua conclusão.
A primeira propriedade, que a terra se vista de verde, é tratada nos parágrafos 66 a 88
do livro II das Noticias. Neles o autor recorre às seguintes referências: Dioscorides66 (67,
79)67, História Natural (68); Carlos Clusio, História das Plantas (70); Monardes (74);
Oviedo68 (74); Guilhelmo Pinçon e Jorge Malcgravi69 (79). Esta última referência encontra-se
no fim do parágrafo:
Destas poucas eruas referidas, poderà julgar o leitor, se se ajusta bem com o Texto Sagrado, a
verdura, & bondade da terra do Brasil. Melhor julgàra se de todas ouuira a relação: porém tanta
detença, nem he de meu intento, nem assumpto facil. O curioso que mais desejar, veja os liuros
assima referidos de Guilhelmo Pinçon, & de Iorge Marcgraui, & verá hũa cousa grande.
(Vasconcellos, 1668, p. 257)
Desse trecho podemos deduzir que “os liuros assima referidos” só podem fazer parte da
História Natural, cuja referência aparece no parágrafo 68, que, na realidade é mais uma
referência à História Natural do Brasil de Piso e Marcgrave. Outro aspecto a destacar é o
valor atribuído ao livro por Vasconcellos quando afirma não relacionar todas as plantas e
remete o leitor “curioso” ao livro de Piso e Marcgrave onde “verá uma cousa grande”.
Reforçando o embasamento científico na defesa dessa propriedade da terra do Brasil,
Vasconcellos relaciona ainda Pedanius Dioscórides, Carlos Clusio70, com a História das
plantas, e Monardes, possivelmente, com a sua História medicinal71.
Vasconcellos defende a qualidade das plantas do Brasil afirmando que a terra do Brasil
é “por excellencia sempre verde, chea de eruas, & aruoredos de varios generos, entre todas as mais
terras do mundo, na conformidade do Texto de sua primeira criação”, aproximando-a ainda mais do
Paraíso quando diz que está sempre numa “eterna primauera” (Vasconcellos, 1668, p. 239).
65
As quatro propriedades são tratadas do parágrafo 66 a 102 do livro II das Noticias curiosas e necessarias das
cousas do Brasil (1668).
66
DIOSCORIDES, Pedanius (40 - 90) médico grego autor De Materia Medica, importante fonte de plantas
medicinais utilizadas por gregos e romanos, e como fonte para fabricação de remédios por mais de mil e
seicentos anos.
67
O número entre parênteses indica o número do parágrafo do livro II das Noticias curiosa,s e necessarias das
cousas do Brasil (1668).
68
Vasconcellos refere-se, possivelmente, a: OVIEDO y Valdés, Gonzalo Fernandes. La historia general delas
Indias. Sevilla: Juan Cromberger, 1535. (Moraes, 1983, p. 643-644).
69
PISO, Willem; MARCGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amstelodami: Franciscum Hackium:
Lud[ovicum] Elzevirium, 1648. (Moraes, 1983, p. 675).
70
Clusius, Carolus (1526-1609), ou Charles De L'écluse, ou Lescluse, botânico francês que contribuiu para o
estabelecimento da moderna botânica (Encyclopædia Britannica - http://www.britannica.com).
71
MONARDÉS, Nicolas, (1512-1588). Primera y segunda y tercera partes de la Historia Medicinal de las
cosas que se traen de nuestras Indias Occidentales.En Sevilla: en casa de Fernando Diaz, 1580.
[http://www.bn.pt]
138
Sobre a segunda propriedade – que goze de bom clima, de boas influências do Céu, do
Sol, da Lua e das Estrelas –, tratada nos parágrafos 89 a 95 do livro II, Vasconcellos apresenta
um número maior de referências: Gotofredo, Arcontologia Cósmica (89); Maffeo, História da
Índia72 (89); Theatrum Orbis73 (89); Guilhelmo Pinçon, Medicina do Brasil (89); Pero
Teodoro (92); Teodoro de Bry74, Observações (92); Afonso de Ovalle75 (92); Costa76, De
novo Orbe (92); Padre Maffeo (93, 94); Summa Astrológica (95).
Das referências utilizadas por Vasconcellos, relacionadas à segunda propriedade,
podemos destacar as referências científicas ao médico Guilherme Piso, Medicina do Brasil, e
as Observações do astrônomo Theodoro de Bry, que vêm demostrar a incorporação do
discurso científico no discurso do autor das Noticias.
Vasconcellos inicia a defesa da bondade do clima e das boas influências do céu
afirmando que a “felicidade natural foi o estado do Paraíso terreno” (Vasconcellos, 1668, p. 270) e
que esta felicidade consistia no temperamento proporcionado pelo clima em que o homem vivia
com saúde e gosto. Portanto, seguindo esta linha de pensamento, decorre que quanto mais distante o
clima de uma região estiver daquele primeiro clima e temperamento, mais distante estará daquela
primeira felicidade. Vasconcellos estende o conceito religioso do decaimento, ou queda, após o
primeiro pecado, que afastou o homem do Paraíso, ao clima. Assim, segundo o autor, não existem
regiões onde o clima não tenha decaído em relação àquele primeiro. Entretanto, ele considera o
clima do Brasil como aquele que menos decaiu no mundo.
A bondade do clima, segundo Vasconcellos, deve-se à conjugação da bondade dos astros, o
que mostra o valor da teoria da influência celeste, com a bondade dos ares. Ele afirma que os astros
da região do Brasil são bons, como a “experiencia nolo mostra, & testificãono grandes
Astrologos, [...]; porque nesta a fermosura, candura, pureza, & resplandor do Sol, Lua, &
Estrellas parece està no mesmo ponto de sua primeira criação” (Vasconcellos, 1668, p. 272).
Ou seja, Vasconcellos utiliza a experiência, um argumento moderno, e o testemunho dos
astrólogos, um argumento da tradição medieval, para aproximar a bondade dos astros da
72
Vasconcellos faz referência a uma das edições de MAFFEI, Giovanni Pietro. Historiorum Indicarum.
Florentiae: Philippum Iunctam, 1588. (Moraes, 1983, p. 508).
73
A referência completa deve ser: ORTELIUS, Abraham (1527-1598). Theatrum orbis terrarum. Antuerpiae:
Christophorum Plantinum, 1584. [http://www.bn.pt]
74
Vasconcellos está fazendo referência a uma das diversas edições da oitava e nona parte das Observações de
Bry, como esta existente na Biblioteca Nacional de Espanha: BRY, Théodor de (1528-1598). Americae nona &
postrema pars ... Francofurti : Matth. Beckerum, 1602. [http://www.bne.es]
75
OVALLE, Alonso de. Historica relacion del reyno de Chile y de las missiones y ministerios que exercita en el
la Compañia de Iesus.... Roma: por Francisco Cauallo, 1646. [http://www.bne.es]
76
ACOSTA, José de. (1539-1600). De natura Novi Orbis libri duo, et de promulgatione Evangelii apud
barbaros sive De Procuranda Indorum salute libri sex. Salmanticae: Guillelmun Foquel, 1588.
[http://www.bn.pt]
139
região do Brasil à bondade dos astros do Paraíso. Ainda sobre os astros, o autor atribui ao
astrólogo perito Pero Theodoro, ao doutíssimo matemático Theodoro de Bry, e ao padre
Afonso de Ovale os elogios às estrelas do hemisfério sul, concluindo que “por ser testemunho
de homens taõ doutos na Astrologia, faz muito ao nosso caso” (Vasconcellos, 1668, p. 274).
A bondade dos ares, nas palavras de Vasconcellos, pode ser resumida como uma “primauera
perpetua”, sem excesso de frio ou de calor, com ventos suaves e puros (Vasconcellos, 1668, p. 275).
Sergio Buarque de Holanda trata detalhadamente dessa associação do clima, sem excesso de frio ou
de calor, ao paraíso terrestre (Holanda, 1994).
No último parágrafo dedicado à defesa do clima, Vasconcellos recorre a influência do céu
sobre a terra, mais uma vez e de forma explícita, como podemos constatar:
O Sol, Lua, & principaes estrellas do Ceo predominaõ sobre o Brasil, como sobre as mais
partes da Zona torrida, mais de perto, & com raios mais direitos, que sobre algũa outra terra; he
força logo que tornem os àres do clima do Brasil mais puros, & vitaes, que os das mais partes
do mundo. E que o Sol, Lua, & principaes estrellas do Ceo predominem sobre o Brasil mais de
perto, & com raios mais direitos, naõ pode duuidarse; porque o Sol, Lua, & signos do Zodiaco,
que saõ as estrellas principaes do gouerno do mundo, tem entre si, & a regiaõ desta Zona dous
elementos, de fogo, & àr: & em qualquer outra regiaõ fóra da Zona torrida, tem entre si, & ella
(alèm dos elementos fogo, & àr) aparte da terra que vai de mais a mais, ate qualquer dos climas
com quem fizermos comparaçaõ. He fundamento este efficaz; & claro esta que sendo a Zona
do Zodiaco, o palacio comum daquelles Principes das luzes, & assentãdo alli o trono do
gouerno do vniuerso, que sempre dentro da esfera delle deuaõ as cousas de ir mais regulares;
como em effeito vaõ os tempos, o veraõ, o inuerno, os dias, & as noites; o frio, & a calma; & o
mais que pertence a hum perfeito clima, naõ sendo assi em as outras partes da terra.
(Vasconcellos, 1668, p. 276-278).
Abordando nos parágrafos 96 a 98, do livro II, a terceira propriedade – que sejam suas
águas abundantes de peixes, e seus ares abundantes de aves –, Vasconcellos reporta-se apenas
a: Jorge Marcgravi, História Natural do Brasil (96); “liuro citado” (97); e “Autor jà citado”
(98). Sendo as duas últimas referências indiretas à obra, História Natural do Brasil, e ao seu
autor, Jorge Marcgrave. Assim, como a única referência para provar a terceira propriedade,
fica patente a importância do trabalho de Marcgrave para a legitimação do discurso de
Vasconcellos.
Além disso, o autor recorre ao aspecto científico da obra de Marcgrave, anotando na
margem do seu texto a referência “Jorge Marcgrani liu. 5. cap. 4.”, para complementar e
validar o seu testemunho barroco sobre a metamorfose de uma borboleta em beija-flor:
Vasconcellos
Sou testemunha, que vi com meus olhos hũa dellas
meia aue, & meia borboleta, irse perfeiçoando
debaixo da folha de uma latada, até tomar vigor, &
voar.
Maior
milagre
se
affirma
della
Marcgrave
A natureza e propriedade desta avezinha é tal que
não dura mais que as flores das plantas, de cujo mel
vive; quando estas caem, a ave se firma com o
biquinho, nos troncos das árvores e por seis meses
140
constantemente, & por tantos Autores, que parece fica imóvel até que renasçam as flores, o que se
não pòde duuidarse, que como só viue de flores, em confirma com muitas testemunhas inteiramente
acabando estas, acaba ella na maneira seguinte: prega o seguras (Marcgrave, 1942, p. 198).
biquinho no tronco de hũa aruore, & nella está immouel
como morta, em quanto tornão a brotar as flores (que
saõ seis meses) passado o qual tempo, torna a viuer, &
voar. (Vasconcellos, 1668, 283-284)
Vasconcellos, impressionado com a beleza e variedade das espécies de aves do Brasil,
afirma entusiasmado que parecem “criadas no mesmo Paraíso da terra: tal he a bondade, o
numero, & variedade de sua fermosura: só naquelle primeiro Ceo terreno podião pintarse tão finas
cores” (Vasconcellos, 1668, p. 282).
A quarta e última propriedade – que produza todos os gêneros de animais, e bestas da
terra –, é coberta pelos parágrafos 99 a 102, do mesmo livro II, onde Vasconcellos relaciona
como referência única o que “escreueo Iorge Marcgraui na Historia natural referida”
(Vasconcellos, 1668, p. 284). A variedade dos animais do Brasil, associada ao testemunho de
Marcgrave, é suficiente para que Vasconcellos conclua que devido a essa diversidade de
animais a terra é boa.
Nesses parágrafos das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil,
dedicados à demonstração da bondade da terra do Brasil, encontramos 26 referências
bibliográficas sendo, em geral, uma para cada autor ou obra, com exceção às duas referências
a Piçon (Piso), duas a Dioscórides, duas a Monardes, três a Maffeo e oito a Marcgrave. As
referências a Piso e Marcgrave, na realidade, remetem à mesma obra, a História natural do
Brasil, que assim teria dez referências. Em outras palavras, mais de um terço das referências
usadas por Vasconcellos para apoiar a demonstração da bondade da terra do Brasil remetem o
leitor a essa História. Além disso, se relacionarmos as referências bibliográficas de caráter
científico teremos cerca de dezeseis referências, ou seja, cerca de sessenta por cento. Este é
um aspecto importante, pois em toda argumentação lógica, como parte do processo de
legitimação do discurso, o autor faz citações e referências às autoridades que validam e dão
consistência ao seu discurso. São essas autoridades que fornecem o material que constitui a
base da estrutura sobre a qual o autor apóia o seu discurso, da mesma forma que as fundações
sustentam uma edificação projetada por um arquiteto. Convém então, conhecermos um pouco
os autores mais citados por Vasconcellos e a sua obra a História natural do Brasil.
O astrônomo Georg Marcgrave e o médico Wilhelm Piso acompanharam João
Maurício, futuro príncipe de Nassau-Siegen, chefe da expedição militar holandesa que veio
para o Brasil em 1636 para defender e ampliar as conquistas. Durante sete anos de
permanência no Brasil, Marcgrave elaborou um detalhado trabalho sobre a História Natural
141
do Brasil, que entregou a João Maurício antes de partir para a África, em 1644, aonde veio a
falecer, vítima de febre endêmica. Nesse mesmo ano, João Maurício embarcou para a Europa
e lá confiou os manuscritos de Marcgrave ao médico Piso para que os organizasse e
publicasse, juntamente com as observações de Piso sobre o clima, as moléstias e remédios
usados no Brasil. Nessa época Piso estava assoberbado e transferiu o encargo para Johannes
de Laet que, por sua vez, trabalhou muito para concluir a tarefa porque
Marcgrave escrevera todos os seus trabalhos em cifras por ele próprio inventadas, a fim
de que ninguém pudesse tirar-lhe a glória de divulgá-las em primeiro lugar. É fato que
se encontrou também entre os papéis a chave daquelas cifras; mas, como todos os
apontamentos estavam escritos em folhas separadas, constituiu uma nova dificuldade dar
ao conjunto uma boa ordem (Lichtenstein, 1961, p. 139).
As ilustrações, possivelmente de “Marcgrave e de outro artista a que se fazem
referências nos escritos, sem indicar o nome” (Lichtenstein, 1961, p. 140), em muitos casos
foram inseridas no livro em locais incorretos, dando origem a equívocos. A obra foi publicada
em 1648, num volume médio in-folio, sob o título Historia Naturalis Brasiliae. O editor
Johannes de Laet fez uma breve introdução, “Aos benévolos leitores”, onde conclui
prometendo uma nova versão, ou edição, quando a guerra terminar: “se Deus me prolongar a
vida por alguns anos, e terminar a guerra no Brasil, que esta História sairá mais perfeita, e
será feito um favor condigno àqueles, que dela se aproveitarão. Por enquanto gozai da que vos
damos” (Marcgrave, 1942).
Lichtenstein, em 1828, publicou uma revisão crítica dos trabalhos de Marcgrave e Piso
(Lichtenstein, 1961), principalmente no que se refere às ilustrações. Na introdução do seu
trabalho Lichtenstein chama a atenção para o valor do trabalho de Marcgrave e Piso:
Antes de firmarem o pé no Brasil os holandeses, deconheciam-se [sic] inteiramente
todos os seus produtos naturais que não fossem artigos de comércio. Agora, com aquelas
obras, que em si traziam de modo tão iniludível o cunho de exatidão e de amor à
verdade, surgia subitamente um novo reino, sendo difícil que de outra qualquer região se
tenha dado uma primeira notícia tão completa e exaustiva quanto a que nelas se fornecia
do Brasil (Lichtenstein, 1961, p. 146).
Além do valor, decorrente do pioneirismo e do nível de detalhamento dos trabalhos,
Lichtenstein lembra que
[...] o que lhes dá casualmente importância ainda maior é a circunstância de que, assim
que os holandeses foram expulsos, os espanhóis, mais ciosos ainda que dantes, fecharam
aos pesquisadores essa parte do mundo, tornando-a assim inacessível durante um século
e meio (Lichtenstein, 1961, p. 146).
142
O equívoco, deliberado ou não, do autor quanto a nacionalidade dos colonizadores do
Brasil, após a Restauração de 1640, não afeta o conteúdo: os portugueses mantiveram fechado
o acesso ao Brasil para pesquisadores até o início do século XIX, quando a vinda da família
real alterou esse panorama. Desde a descoberta, os portugueses não apenas impediam o acesso
de pesquisadores, mas também restringiam as publicações sobre o Brasil.
Um aspecto surpreendente sobre o uso por Vasconcellos da História Natural do
Brasil, de Piso e Marcgrave, é o fato da obra ter sido elaborada e impressa por holandeses,
numa época em que Portugal e Holanda estavam em guerra o que dificultaria o acesso a ela.
Duas questões relacionadas a este aspecto podem ser destacadas. A primeira questão está
relacionada à forma pela qual Vasconcellos teve acesso a um exemplar da obra de Piso e
Marcgrave. O esclarecimento dessa questão poderia oferecer subsídios para uma melhor
compreensão sobre os mecanismos de circulação dos livros durante o período colonial no
Brasil. Sabemos que a principal fonte dos livros utilizados nos colégios jesuítas do Brasil era
proveniente das aquisições feitas em Lisboa e remetidas ao Brasil. Uma outra possível fonte
de livros para os colégios, seria aquela em que eram adquiridos pelos padres e irmãos da
Companhia de Jesus nas suas viagens pelo mundo. Não podemos descartar, como possível
fonte, o contrabando de livros, especialmente daqueles que estavam no Index Librorum
Prohibitorum e que foram encontrados, posteriormente, em bibliotecas de colégios jesuítas.
Um exemplo deste último caso é o livro Epigramas, de John Owen, que consta do Catálogo
da Biblioteca da Casa da Vigia, com 1006 livros no total (Leite, 2000, v. 4, p. 399-410). A
Casa da Vigia era um pequeno colégio jesuíta do Maranhão, no século XVIII, o que serve
para ilustrar a dimensão das bibliotecas dos colégios jesuítas.
A maior parte do acervo das bibliotecas dos colégios jesuítas foi perdido ou destruído
após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759. O Auto de inventário da biblioteca do
Colégio jesuíta do Rio de Janeiro (Auto, 1973), relaciona cerca de quatro mil e setecentos
exemplares de livros que ainda existiam em 1775. Nesse Auto, Serafim Leite identifica várias
obras de interesse científico como por exemplo os livros de Matemática de Clávio, Kircher e
Boscovich; cinco tomos de Newton; e Voyage du Monde de Descartes do padre Gabriel
Daniel (Leite, 2000, v. 6, p. 25-28). Podemos acrescentar o livro “Observação Astronomica
hum tomo novesentos e sesenta reis ($960)” (Auto, 1973, p. 219), que pelo valor da avaliação
deveria ser considerado como um livro muito caro. Seria o livro Observações, de Theodoro de
Bry, citado por Vasconcellos nas Noticias?
143
A segunda questão relativa ao livro de Piso e Marcgrave é o fato de Vasconcellos ter
utilizado um livro elaborado por inimigos de Portugal e do Brasil. Vasconcellos refere-se à
presença holandesa no Brasil, em mais de um ponto da Crônica, de forma negativa como, por
exemplo, “gentes infiéis estrangeiras” que ocuparam Pernambuco “com a sombra da morte
por 24 anos” (Vasconcelos, 1977, p. 230). Entretanto, é no discurso científico dessas “gentes
infiéis estrangeiras” que Vasconcellos busca o apoio imprescindível para a defesa de sua tese,
devido a inexistência de obra similar, ou que se aproximasse em detalhe e qualidade da obra
de Piso e Marcgrave, que tivesse sido escrita por portugueses ou brasileiros. Dessa forma,
Vasconcellos não teve outra opção de escolha para legitimar o seu discurso. Acrescente-se
que ao fazer uso do discurso científico das “gentes infiéis estrangeiras”, Vasconcellos valoriza
o próprio discurso, se apropriando da qualidade do discurso do outro, além de ganhar um
status de verdade por ter sido legitimado através do testemunho das “gentes infiéis
estrangeiras”.
Os discursos científicos, em meados do século XVII, apresentavam três versões77
concomitantes de concepção do mundo: a concepção geocêntrica, de Aristóteles e Ptolomeu; a
concepção heliocêntrica, de Copérnico; e a concepção geo-heliocêntrica, de Tycho Brahe. A
primeira concepção defendida pela Igreja Católica, a segunda considerada como herética por
essa mesma Igreja e a terceira concepção foi aceita, de forma gradual pelos jesuítas e
incorporada, como vimos, aos seus textos filosóficos. Nesse caso, encontramos mais uma vez,
a atitude estética barroca dos jesuítas buscando conciliar forças antagônicas, como o
geocentrismo e o heliocentrismo, numa nova unidade conceitual (Panofsky, 1995; Coutinho,
1999), que se materializava na concepção geo-heliocêntrica de Tycho Brahe.
Nesse período, a religião e a ciência começavam a se dissociar e cada uma estabelecia
as bases do seu novo discurso. Nesse contexto, Simão de Vasconcellos, num movimento
inverso utilizou um discurso científico para validar o seu discurso da bondade da terra do
Brasil e que era um discurso religioso. Assim, podemos afirmar que a História Natural do
Brasil, de Piso e Marcgrave, foi a principal referência utilizada por Simão de Vasconcellos
para corroborar todas as quatro propriedades da terra do Brasil e, com o auxílio de outros
discursos científicos, validar a conclusão do seu silogismo afirmando: “E tenho dado breues
noticias das quatro bondades da terra do Brasil, que saõ as mesmas com que Deos a criou em sua
primeira formação, & pellas quaes julgou que era boa” (Vasconcellos, 1668, p. 289).
77
Poderia haver mais versões se incluíssemos, por exemplo, a versão de Descartes. O que serve para mostrar que
o real permite mais de uma explicação, ou versão, simultânea, dependendo do observador e do seu capital
simbólico.
144
Depois dessa demonstração, com base no discurso científico, de que a terra do Brasil é
boa, Simão de Vasconcellos, que havia afirmado anteriormente que “quando for tempo”
trataria do Paraíso, inicia a parte final da defesa da tese que lhe custou a censura: a tese do
Paraíso. O tempo havia chegado...
145
6. A tese do Paraíso
Simão de Vasconcellos inicia a defesa da sua tese do Paraíso, localizado no Novo
Mundo, na conclusão das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil afirmando
que as qualidades da terra “com que o Autor della enriqueceo este Nouo mundo:
poderiamos fazer comparação, ou semelhança, de algũa parte sua; com aquelle Paraíso
da terra, em que Deos Nosso Senhor, como em jardim, poz a nosso primeiro pay Adam”
(Vasconcellos, 1668, p. 290). Observe-se o uso do futuro do pretérito, “poderíamos”, como
uma possibilidade que pode ou não ser considerada, pelo autor e/ou leitor nessa comparação
ou semelhança da terra do Brasil com o Paraíso da terra. Esta possibilidade aventada por
Simão de Vasconcellos é uma das marcas da censura da Companhia de Jesus impressa no
texto, numa folha colada ao fólio, correspondente às páginas 177 e 178 da Chronica da
Companhia de Jesu do Estado do Brasil, como vimos anteriormente.
No último parágrafo das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, que
tem número 104 ao invés de 105 devido à duplicação do parágrafo 12, na página 175, Simão
de Vasconcellos remete o leitor a vários autores escolásticos e relaciona quatro: S. Tomás
(Summa Theologica, primeira parte, quest. 102, art. 2, ad. 4), S. Boaventura (2, dist. 17, dub.
3), Soares (De opere sex dierum, lib. 3, cap. 6, num. 36), e Cornélio Alápide (Genes., cap. 2.
v. 8. § 4). Vasconcellos afirma que deixa ao juízo do leitor a vantagem que fazem
algumas terras do Novo Mundo aos fabulosos “Campos Elysios; Hortos pensiles, ilha de
Atlante” (Vasconcellos, 1668, p. 290-291), e a semelhança com o melhor clima da terra
que é vantajoso em relação ao da ilha Tapobrana cujo clima é infesto à saúde os homens.
E encerra o livro.
Assim, podemos constatar que a censura da Companhia de Jesus permitiu que
Vasconcellos publicasse como conclusão que o Novo Mundo poderia ser comparado ou
assemelhado, ao Paraíso da terra e que o leitor, a seu juízo, poderia considerar algumas
terras do Novo Mundo vantajosas em relação aos Campos Elísios, Horto Pênsil, ilha
146
Atlante, e ilha Tapobrana. Entretanto, nos sete parágrafos eliminados78 do livro de
Vasconcellos pela censura da Companhia de Jesus, encontramos uma argumentação mais
enfática e, obviamente, mais extensa na defesa da localização do Paraíso na América.
O conteúdo dos parágrafos censurados mostra que Vasconcellos centrou a defesa de
sua tese em cinco pontos. Os três primeiros pontos tratam da localização, do clima e da
influência do céu do Novo Mundo na determinação da localização do Paraíso na terra. Os dois
últimos pontos descartam a possibilidade do Paraíso na terra ser localizado na África ou na
Ásia, assegurando a sua localização, por exclusão, na América.
Nessa defesa, Vasconcellos afirma que vários autores graves, antigos e modernos,
localizaram o Paraíso próximo da linha Equinocial: “debaixo della, ou junto a ella, ou della
para o sul” (Holanda, 1994, p. 363). Ele relaciona como referências que abonam essa posição:
S. Tomás (Summa Theologica, primeira parte, quest. 102, art. 2, ad. 4), S. Boaventura (2, dist.
17, dub. 3), Soares (De opere sex dierum, lib. 3, cap. 6, num. 36), que fazem parte do
parágrafo 104 impresso, e mais “curso Comimbricense [sic] no livro 2 do seo Capítulo 14
quest. 1. art. 3”, e “Durandos [...] quest. 3 num. 8” (Holanda, 1994, p. 363). Assim, nos
parágrafos 105 e 106, Vasconcellos defende sua tese utilizando o argumento de que Deus
situou o Paraíso debaixo da Equinocial, junto dela, ou ao sul dela. No parágrafo 107,
Vasconcellos invoca o testemunho de S. Tomás, Aristóteles, Scoto, Luis Vives e Cornélio
Alápide para localizar o Paraíso na América e afirma que o último dizia que: “toda a terra em
que então habitava era cingida do Oceano; e que alem deste Oceano, em outra terra que era de
outro mundo estava o paraiso” e conclui dizendo “Com que outras palavras podia declarar o
Novo Mundo da America” (Holanda, 1994, p. 364), ou seja, o autor deduz a partir destas
declarações que obviamente a outra parte do mundo em que se encontrava o Paraíso só
poderia ser mesmo a América.
No parágrafo seguinte, Vasconcellos trata do segundo ponto de sua defesa e retoma a
questão do clima temperado do Paraíso, a que o clima da América deveria se igualar, uma vez
que o clima de “Todos os lugares annexos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda
fabulosos de Campos Elisios, Hortos pensiles, Ilha de Atlante etc. podem ceder a muitos da
America”79 (Holanda, 1994, p. 364). Em outras palavras, o clima da América superava o
78
Os sete parágrafos foram publicados como anexo por Sergio Buarque de Holanda a partir da terceira edição de
Visão do Paraíso, com base no parecer do p. Luis Nogueira. Reproduzimos esses parágrafos censurados no
Anexo 1. Na edição das Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil, de 2001, o organizador Luis A. de
Oliveira Ramos incluíu os sete parágrafos censurados, em português atual, que estão reproduzidos no Anexo 1.
79
Na edição das Notícias, de 2001, temos: “Todos os lugares amenos do antigo mundo, ou verdadeiros ou ainda
fabulosos de Campos Elísios, hortus pensiles, ilha de Atlanta etc. podem ceder a muitos da América”
(Vasconcelos, 2001, p. 162).
147
clima de todos os lugares do antigo mundo, fossem eles verdadeiros ou “fabulosos”,
igualando-se ao do Paraíso!
O clima temperado do Paraíso era um lugar comum na literatura medieval e foi
inaugurado, segundo Sérgio Buarque de Holanda, com o poema latino Phoenix atribuído à
Lactâncio. Esse clima paradisíaco foi descrito por santo Isidoro de Sevilha como non ibi
frigus non aestus, ou seja, nem frio nem calor, temperado, e assim incorporado ao imaginário
medieval (Holanda, 1994, p. XVIII-XIX). No tempo dos descobrimentos essa temperança do
clima paradisíaco é reproduzida por quase todos os cronistas, desde Colombo, quando
descreviam o Novo Mundo aproximando-o através do clima ao Paraíso, como S. B. de
Holanda nos mostra em Visão do Paraíso.
Passando ao terceiro ponto da defesa de sua tese do Paraíso, Vasconcellos apresenta
como argumento a influência celeste no mundo, cuja teoria abordamos no capítulo anterior.
Vasconcellos afirma que a “parte do Ceo mais perfeito da Zona torrida, a que chamamos linha
Equinocial he aquella que tem a seu cargo o governo do mundo universo” (Holanda, 1994, p.
364). Esta zona do céu “he regra do primeiro movel e curso admiravel dos mais orbes, de que
pende o ser da natureza sublunar” (Holanda, 1994, p. 364), ou seja, Vasconcellos localiza na
zona equinocial o “primeiro movel”, de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino, que governa o
mundo, é curso dos demais orbes, e projeta sua influência no mundo sublunar. Esta equinocial
é uma linha perfeita, que divide o céu e o mundo em duas partes, “he medida do tempo, da
diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos da Ethyoptica,
repartidora das partes da Esphera”80 (Holanda, 1994, p. 364). Com “todas estas excellencias a
linha Equinocial he a parte mais nobre do Ceo” (Holanda, 1994, p. 364) e isto permite que
Vasconcellos pergunte ao leitor o que corresponderia a essa excelência do céu projetada na
Terra? Não seria “nata do mundo, porto de deleites e Paraiso terreal?”81 (Holanda, 1994, p.
364).
A resposta de Vasconcellos a essa pergunta seguiu o preceito daquela recomendação
do papa Urbano VIII feita a Galileu que, por sua vez, não a seguiu e acabou enfrentando a
Inquisição em 1633. O preceito, que funcionava como uma salvaguarda, era o de apresentar a
resposta ou solução como uma hipótese, possibilidade, ou probabilidade, como Vasconcellos
fez com relação ao Paraíso na terra do Brasil: “a probabilidade desta openião deixo ao juizo
dos que a tem: a mim me basta que della se colhe meu primeiro intento que he tão grande a
80
Na edição das Notícias, de 2001, temos: “é medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e
noites, termo dos pontos da eclíptica, repartidora das partes da esfera” (Vasconcelos, 2001, p. 162).
148
temperança do clima destas partes que chegarão tão graves Autores a plantar nellas o
Paraiso”82 (Holanda, 1994, p. 364). Em outras palavras, o posicionamento de Vasconcellos
estava de acordo com as prescrições da Igreja, motivo pelo qual seu livro foi aprovado pelo
Santo Ofício, como podemos comprovar nas Aprovações do Santo Oficio reproduzidas no
Anexo 4.
No quarto ponto da sua defesa da localização do Paraíso no Novo Mundo,
Vasconcellos reconhece que a linha equinocial e a zona tórrida não correspondem apenas à
América, mas também à África e à Ásia. O autor lembra que “muitos Santos Padres” diziam
que o Paraíso fora plantado para o oriente, todavia ele afirma categoricamente que “em
nenhuma destas parte da Africa, ou Azia assignadas, ou junto a ellas, ou dellas para o Sul,
sabemos que esteja o Paraiso terreal nem vemos Autores, que alli o puzessem, nem Deos para
elle escolheria partes tão fora das condições daquelle Jardim de deleites” (Holanda, 1994, p.
365). Afirma ainda que alguns autores tentaram enobrecer o clima da ilha de Tapobrana
(Ceilão), entretanto o testemunho do p. Lucena, na Vida de São Francisco Xavier, liv. 3, cap.
10, indica que o clima da ilha era “malsão e infesto á saude dos homens” (Holanda, 1994, p.
365). Assim, Vasconcellos conclui que o Paraíso “não está na parte que responde a Africa ou
Azia, he força que diga que está na America: Está em hua das tres partes: não na da Africa, ou
Azia, logo na da America”83 (Holanda, 1994, p. 365).
O último ponto da defesa de Vasconcellos refere-se aos quatro rios do Paraíso,
descritos no Gênese [Gn 2, 10], que eram associados aos rios Nilo, Ganges, Tigre e Eufrates.
Esses rios, segundo o autor, foram explorados até suas nascentes e não foi encontrado nenhum
indício do Paraíso. Entretanto, ele afirma que S. Tomás, S. Agostinho, Ruperto, Theodoreto e
o padre Soares diziam que esses rios tinham origem numa “fonte do Paraiso e depois se
escondem por baixo da terra, com longo curso vão romper os lugares ja ditos, que podem ser
sitios distantissimos do Paraiso” (Holanda, 1994, p. 365). Vasconcellos estende sua defesa até
o último parágrafo do livro e conclui:
não he de crer que todo este grande espaço (que comprehende as regioens de Babylonia,
Armenia, Mesopotamia, Assyria, India, Persia, e muitas outras) fosse Paraiso assy
tambem não se tira forçoso argomento que o Paraiso ficasse para o Oriente, porque
81
Na edição das Notícias, de 2001, temos: “nata do mundo, horto de deleites e paraíso terreal.” (Vasconcelos,
2001, p. 163).
82
Na edição das Notícias, de 2001, temos: “A probabilidade desta opinião debaixo digo deixo ao juízo dos que a
lerem: a mim me basta que dela se colhe meu principal intento que é tão grande a temperança do clima destas
partes que chegaram tão graves doutores a plantar nelas o paraíso” (Vasconcelos, 2001, p. 163).
83
Na edição das Notícias, de 2001, temos: “não está na parte que responde a África ou a Ásia, é força que diga
que está na América com este argumento está em uma das três partes; não na d’África, ou Ásia, logo na
d’América” (Vasconcelos, 2001, p. 163).
149
podião aquelles Ryos ter seu nascimento occulto em que parte mui diversa. E esta podia
ser a America (Holanda, 1994, p. 365).
Nos cinco pontos em que concentra a parte final da defesa da localização do Paraíso
na América, Vasconcellos utiliza sempre o condicional como constatamos. Dessa forma, ele
cumpria a exigência religiosa de atribuir à sua tese o valor de uma opinião possível, dentre
outras igualmente possíveis, portanto, sem a conotação de verdade religiosa. Assim, a censura
que eliminou os sete últimos parágrafos das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do
Brasil, por parte da Companhia de Jesus, apresenta-se mais como uma disputa interna, de
caráter hierárquico ou político, do que uma questão religiosa. Esta conclusão é reforçada,
como veremos, pelo desdobramento e resultado de outro caso de censura, contemporâneo ao
de Simão de Vasconcellos, porém exercido pelo Santo Ofício e com maior rigor. Por outro
lado, alguns autores atribuíram a censura dos parágrafos finais, nas Noticias, ao Santo Ofício:
Lembremos do notável exemplo representado pelos escritos do frei Simão de Vasconcelos.
Nas linhas que encerram sua Crônica da Companhia de Jesus, publicada em 1663, pode-se
ler uma comparação bastante direta entre o Brasil e o horto onde Deus teria colocado os
nossos primeiros pais. A verdade, porém, é que o texto original continha comentários bem
mais incisivos: retomando vários doutores da Igreja, além de antigos astrônomos e
matemáticos, Simão de Vasconcelos postulava explicitamente que o lugar do Paraíso só
poderia ser o Brasil.
Isso quase lhe custou uma visita aos porões do Santo Ofício. Porque, apesar de as fantasias
edenizadoras já terem comparecido na pena de tantos cronistas, a tentativa de defendê-las
abertamente foi muito mal recebida pelos inquisidores. Longe de ser uma questão fútil e
inofensiva, especular sobre a localidade do Éden implicava rediscutir o maior de todos os
problemas teológicos: o mistério da salvação. E fazê-lo com o auxílio das mesmas
autoridades que serviam de fundamento à ortodoxia católica era, no mínimo, um gesto
temerário. Embora Vasconcelos tenha escapado de ser formalmente processado, obrigaramno a se desfazer dos trechos mais melindrosos. (Gomes, 1997, p. 14).
Podemos resumir que o que apuramos, até este ponto, foi um grande esforço de Simão
de Vasconcellos em criar um espaço territorial, bem delimitado e ampliado em relação ao
limite de Tordesilhas, e selecionar aqueles que poderiam habitar esse território ampliado: os
portugueses e os índios mansos. Depois desse esforço, o autor se empenhou em demonstrar
que o território que ele construiu possuia todas as possibilidades e qualidades inerentes ao
Paraíso. Todo este empenho descortina a probabilidade de que esse discurso do Paraíso,
construído por Simão de Vasconcellos, estaria relacionado ao milenarismo84.
O milenarismo pode ser definido como a “espera de um reino deste mundo, reino que
seria uma espécie de paraíso terrestre reencontrado” (Delumeau, 1997, p. 17). Jean Delumeau
84
Devo esta indicação ao Prof. Dr. Ronaldo Vainfas, por ocasião do exame de qualificação, e que permitiu
acrescentar um novo enfoque na análise do discurso de Simão de Vasconcellos.
150
situa a origem da idéia de um reino de felicidade na Terra nos escritos bíblicos exemplificados
na interpretação do profeta Daniel [Dn 2] do sonho de Nabucodonosor, e no Apocalipse [Ap
20] que prevê o reinado de mil anos de felicidade. Entretanto, a interpretação de S. Agostinho
do Apocalipse, no século V, fez com que a idéia de um reino de felicidade na Terra sofresse
uma marginalização pela Igreja Católica:
Opondo-se a essa literatura profética, no final do século V, o célebre decreto de Gelásio,
que distingue os escritos canônicos e os apócrifos, mantém o Apocalipse entre os primeiros
mas lança a suspeita sobre os escritos milenaristas de Tertuliano, Lactâncio, Comodiano de
Gaza e Vitorino de Pettau, que haviam interpretado de forma literal o “livro das
Revelações”. A recusa pelas autoridades da Igreja de uma leitura literal do capítulo 20 do
Apocalipse talvez explique por que a iconografia consagrada ao curso do tempo no “livro
das Revelações” omitiu na maioria das vezes a evocação dos mil anos do reinado terrestre
de Cristo. Essa ausência é muito significativa. A Igreja oficial apagou o anúncio desse
reinado. (Delumeau, 1997, p. 31)
Todavia, a tradição milenarista sobreviveu nas “sibilinas cristãs”, uma literatura
profética que anunciava a vinda de um rei messiânico, até que o monge cisterciense e abade
do mosteiro de Corazzo, Joaquim de Fiore (1135-1202) rompeu com a interpretação de S.
Agostinho, que era aceita pela Igreja Católica, de que o tempo em que viviam terminaria com
o fim do mundo (Delumeau, 1997, p. 40-43). Na concepção do abade Joaquim a humanidade
passaria por três etapas, ou idades “o tempo ‘anterior à graça’, o ‘da graça’, e, finalmente,
‘aquele que esperamos, que está próximo’ e que será o de uma ‘graça maior’”, e que ele
traduz como “o tempo da lei natural e mosaica anterior a Cristo; o tempo marcado pela vinda
de Jesus ‘sob a letra do Evangelho’; enfim o tempo, doravante próximo, que triunfará a
‘inteligência espiritual’” (Delumeau, 1997, p. 42). Fiore não foi milenarista nem messianista,
porém fortaleceu os temas apocalípticos que haviam sido marginalizados pela Igreja desde a
interpretação de S. Agostinho do Apocalipse (Delumeau, 1997, 49). Esse fortalecimento
manteve acesa a chama da esperança da eclosão de um reino de felicidade na Terra.
No período que abrange o fim do século XIV até à metade do século XVII, o
milenarismo foi representado na cristandade latina através de duas correntes. A primeira, de
acordo com a interpretação de S. Agostinho, acreditava que o fim do mundo estava próximo e
Delumeau lembra que “Lutero, em particular, e muitas figuras marcantes do protestantismo
acreditaram na proximidade do juízo final” (Delumeau, 1997, p. 91). A outra corrente
acreditava no advento de um tempo de felicidade num paraíso terrestre reencontrado. Esta
segunda corrente, dividia-se naqueles que queriam estabelecer o reino de felicidade por meio
da violência (!), e nos que esperavam pacificamente pela realização das profecias. Entretanto,
todas as correntes escatológicas acreditavam que “a passagem, seja ao milênio, seja ao juízo
151
final, devia ser anunciada por ‘sinais’ aterradores e operar-se mediante convulsões terríveis”
(Delumeau, 1997, p. 91). Não podemos deixar de antecipar que este último aspecto, dos
“sinais”, está presente em quase todas as cartas escritas por Antonio Vieira nos anos de 1664 e
1665 e será retomado adiante.
De uma forma geral, no mundo cristão, no período da modernidade inaugurado pela
imprensa e pelas descobertas, o milenarismo manteve uma posição discreta e marginal.
Entrementes, em Portugal, o século XVI assistiu a uma exacerbação do profetismo que
contribuiu para realçar as manifestações milenaristas do século XVII. A trajetória do
profetismo português pode ser resgatada a partir da mensagem do Ourique.
A vitória do príncipe Afonso Henriques na batalha de Ourique (baixo Alentejo), em 25
de julho de 1139, frente a um exército mouro mais numeroso do que o português, foi
transformada, a partir de meados do século XV, em um feito mítico e ao mesmo tempo
místico, fundador do reino português. Essa transformação deve-se aos discursos que atribuíam
a vitória portuguesa à aparição milagrosa de Cristo ao príncipe Afonso Henriques, antes da
batalha. O reino português nascia assim, sob a égide mística de uma luta enaltecida por Luís
de Camões, no canto III, de Os Lusíadas:
Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro que as terras habitava
De além do claro Tejo deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em força e gente tão pequeno;
Em nenhũa outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus que o Céu regia,
Que tão pouco era o povo bautizado,
Que, pera um só, cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por mais temeridade que ousadia
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que pera um cavaleiro houvesse cento.
Cinco Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se chama;
Todos experimentados nos perigos
Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus amigos,
Imitando a fermosa e forte Dama
De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.
A matutina luz, serena e fria,
As Estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
152
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na fé todo inflamado, assim gritava:
“Aos Infiéis, Senhor, ao Infiéis,
E não a mi, que creio o que podeis!”
Com tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados, levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe, que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos immigos, gritando, o céu tocavam,
Dizendo em alta voz: “Real, real,
Por Afonso, alto Rei de Portugal!” (Camões, 1999, p. 139-140)
A aparição de Cristo para o príncipe Afonso Henriques criou uma aura extraordinária
ao feito, pois passou a ser interpretada como “um sinal inequívoco para a compreensão da
vitória e para a verdadeira sagração de Afonso Henriques, feita não por intermediários,
vigários, mas pelo próprio Cristo em ‘pessoa’” (Hermann, 1998, p. 149). Dessa forma, o reino
português teve na sua fundação um caráter sagrado e, ao mesmo tempo, ligado à luta contra o
infiel mouro. Esta dupla articulação criou uma especificidade da realeza portuguesa, como
indica Jacqueline Hermann.
A exploração e conquista do litoral da África no princípio do século XV, marcou o
início do processo de construção do império que se estenderia até o oriente no fim daquele
século. Entretanto, no século XVI, a perda do domínio de algumas das conquistas no norte da
África começaram a desfazer o sonho de manter o império português nessa região. Nesse
contexto, em meados do século XVI, o império via-se ameaçado pela falta de um sucessor ao
rei d. João III, o que permitiria que o rei de Espanha assumisse o reino de Portugal. Esta
situação perdurou até que, em 20 de janeiro de 1554, nasceu um príncipe Desejado, d.
Sebastião, filho do príncipe d. João, último filho vivo do rei d. João III, e de Joana que, por
sua vez, era filha de Carlos V de Espanha. O príncipe d. João, pai do Desejado, morreu
poucos dias antes do nascimento do herdeiro. O futuro rei d. Sebastião, desde o seu
nascimento, era depositário das esperanças de Portugal e “encheu de alegria todo o reino, que
vivia a angústia de ver Portugal governado pelo rei de Castela” (Hermann, 1998, p. 78).
D. Sebastião foi aclamado rei de Portugal em 1557, aos três anos, devido à morte de
seu avô d. João III. Sua avó, d. Catarina de Áustria, assumiu a regência até 1562 quando o seu
tio-avô, cardeal d. Henrique, passou a reger até que o rei começou a governar em 1568
(Hermann, 1998, p. 78-85).
A educação de d. Sebastião foi entregue aos jesuítas que, segundo Jacqueline
Hermann, “apesar de se dizerem ‘soldados de Cristo’, a Companhia de Jesus jamais teve por
153
princípio uma pregação partidária de guerras medievais à moda cruzadística”. Sua guerra era
espiritual e “não resgatar lugares santos de mãos infiéis e reforçar a apologia das guerras
santas” (Hermann, 1998, p. 89). Por outro lado, o cerco de Mazagão em 1562 pelos mouros e
a vitória dos portugueses fez renascer o fervor bélico lusitano, influenciando as Cortes de
1562-1563, convocadas pela rainha regente Catarina, que
[...] condenaram formalmente o abandono das praças africanas, decidindo, ao contrário,
pela fortificação do Algarve e pelo fortalecimento dos armamentos de Tânger “com mil
lanças de cavallo”, d. Sebastião tinha apenas nove anos. Esta observação pode ser
importante para realçar o contexto francamente belicoso no qual o pequeno rei passou a
estar inserido. Sua educação zelosamente religiosa, aliada à política e exacerbação da luta
contra os mouros, parece ter marcado fortemente a formação do rei, que afirmaria depois de
assumir o trono: “Trabalharey por dilatar a Fé de Christo, para que se convertão todos os
infiéis”, além de demonstrar suas inclinações guerreiras para “Conquistar, e povoar a Índia,
Brasil, Angola e Mina”. Vale ressaltar ainda que o primeiro capítulo das Cortes
determinava “Que El Rey Nosso Senhor, tanto que for de nove annos se tire dantre
mulheres, e se entregue aos homens”, o que parece ter sido fielmente seguido pelos seus
orientadores, provavelmente com a intenção de afastá-lo da influência da avó, o que parece
ter desenvolvido no pequeno rei uma misoginia que, atrelada às dificuldades políticas e
diplomáticas de seu tempo, o impediram de casar-se e deixar herdeiros. (Hermann, 1998, p.
81-82)
Podemos acrescentar o fato de que a mãe do Desejado, Joana, voltou para Espanha em
maio de 1554, quando d. Sebastião tinha apenas quatro meses. Aos vinte anos e viúva, Joana
retornou à Espanha para assumir a regência, devido à ausência de seu irmão, exercendo-a
durante cinco anos. Em meados desse mesmo ano de 1554, Joana comunicou a um
interlocutor jesuíta sua intenção de pronunciar os votos da Companhia de Jesus. Este desejo
da regente criou um problema para o fundador da Companhia, Inácio de Loyola, uma vez que
a ordem admitia apenas homens e não tinha uma ordem feminina equivalente, como ocorria
com outras ordens religiosas. Assim, Inácio de Loyola convocou uma assembléia dos pais,
fundadores da ordem, que decidiram aceitar a regente numa admissão secreta, a única do sexo
feminino na sua história. A decisão da assembléia dos pais da Companhia de Jesus foi
parcialmente publicada por Jean Lacouture (1993) e dela destacamos o seguinte trecho, que é
revelador do caráter político e conciliador da ordem fundada por Inácio de Loyola:
Também do mesmo modo os Pais citados acharam que essa pessoa, seja ela quem for, visto
que goza, e só ela, do privilégio tão especial de ser admitida na Companhia, deve manter a
sua admissão secreta, como em confissão. Se o facto viesse a saber-se, não poderia
constituir precedente para que outra pessoa deste género incomodasse a Companhia
solicitando a sua admissão. Quanto ao resto, essa pessoa não terá de mudar nem de
vestuário nem de casa, nem de manifestar seja como for aquilo que basta guardar entre sua
alma e Deus Nosso Senhor. A Companhia ou um dos seus membros terá o dever de se
ocupar da sua alma, tanto quanto for preciso para o serviço de Deus e para sua consolação
pessoal, para glória de Deus Nosso Senhor. (Lacouture, 1993, p. 210)
154
Joana morreu aos trinta e oito anos e durante os dezoito anos em que foi “membro” da
Companhia de Jesus era referida, na correspondência, como Mateo Sanches e após a morte de
Inácio de Loyola, em 1556, passou a ser tratada como Montoya (Lacouture, 1993, p. 212213). Durante a regência de Joana, um observador da corte castelhana informava em carta a
Inácio de Loyola que “o palácio da regente mais parece um convento” (Lacouture, 1993, p.
209). Ele não estava longe da verdade.
Em Portugal, poucos anos depois, d. Sebastião, filho de Joana, aplicava-se no
exercício das caçadas como uma preparação para as futuras batalhas. Antes da batalha
decisiva e fatídica, d. Sebastião visitou, entre 1568 e 1572, as terras do sul do Tejo, como
Almeirim, Salvaterra, Muge e Évora. Entre 1569 e 1570, esteve em Óbidos, Alcobaça, Leiria,
Tomar e Coimbra. Em 1573, esteve no Algarve que passou a freqüentar pois achava que os
mouros atacariam a costa sul de Portugal. O projeto africano começou a tomar forma em 1574
com a visita que fez a Ceuta e Tânger (Hermann, 1998, p. 91-92). Era o início da aventura
africana e da desventura dos portugueses.
D. Sebastião embarcou para a aventura africana em Lisboa, em 14 de junho de 1578,
sob calorosa saudação popular. A partir do ponto em que desembarcaram na África e foram
iniciados os preparativos da batalha, conhecida como Alcácer Quibir, o historiador tem que
articular as várias versões da luta, como observa Jacqueline Hermann:
Em meio a tantas histórias, pode-se afirmar que, para além, das versões da batalha
portuguesa contra os mouros, essas versões teceram uma narrativa dialógica e contínua
entre os diversos textos, produzidos uns em resposta aos outros, e, nessa perspectiva,
tiveram um sentido próprio, certamente pouco motivadas pela busca desinteressada da
“verdade” dos acontecimentos e mais comprometidas com o lugar ocupado por cada um
dos produtores dessas versões no campo dessa verdadeira guerra de discursos. (Hermann,
1998, p. 114)
Apesar desse problema, a autora consegue estabelecer valores quantitativos que nos
permitem ter uma idéia aproximada da batalha e do desastre português. A frota lusitana
variava, segundo os diversos relatos, entre quinhentas e mil embarcações e a tropa era
composta por dois mil castelhanos, três mil alemães, seiscentos italianos e entre nove mil e
doze mil portugueses. Ainda segundo os relatos, a artilharia tinha entre doze e trinta e seis
peças e os cavalos eram entre mil e dois mil e quinhentos. Do outro lado, o cômputo do
número de soldados também é variável nos relatos, todavia, apresentam sempre quantitativos
muito superiores ao dos portugueses, numa proporção de quatro ou cinco mouros para cada
soldado do exército português.
155
O empenho de d. Sebastião em seguir por terra para o campo de batalha, a estratégia
de envolvimento do exército inimigo e a sua vantagem numérica são os principais elementos,
relacionados nos relatos, que selaram o desfecho da batalha, desfavorável aos portugueses, no
dia 4 de agosto de 1578. Na luta, o Desejado recusou-se a
esconder-se e a fugir, o que não foi visto por seus biógrafos como um ato de coragem, mas
de irresponsabilidade, d. Sebastião mais combateu que comandou, segundo todos os relatos.
Mesmo quando a derrota já parecia irreversível, o máximo que consentiu foi afastar-se do
estandarte real, que poderia facilitar a sua identificação. Ferido na mão, trocou de cavalo
três vezes e parece ter sido, junto a uns poucos fidalgos que ainda o acompanhavam, um
dos que seguiram combatendo por mais tempo. Seu valido mais próximo, Cristóvão de
Távora, chegou a pedir-lhe, suplicar-lhe que se rendesse, para salvar a si e à nação, ao que
d. Sebastião respondeu: “Que pode haver aqui que fazer senão morrermos todos?” e
completou com a célebre frase “morrer sim, mas devagar”. Negando-se a recuar, perdeu-se
em meio aos inimigos. (Hermann, 1998, p. 120)
D. Sebastião, o rei Desejado, que levou para a África a espada do místico rei Afonso
Henriques, como se fosse a sua reencarnação, desapareceu da vida no combate de Alcácer
Quibir e passou a viver no imaginário do povo português como um rei Encoberto, esperança
de glória futura de um reino humilhado.
O retrato do rei d. Sebastião, um rei barroco por excelência, é pintado por Jacqueline
Hermann como “dilacerado e inquieto, medieval e moderno, cavaleiro e rei absoluto, herói e
mártir, profeta e messias” (Hermann, 1998, p. 188).
Na falta do rei Desejado, assumiu a coroa seu tio, o cardeal d. Henrique, que faleceu
em 31 de janeiro de 1580, sem ter reconhecido d. Antonio, prior do Crato, como sucessor por
ser neto ilegítimo de d. Manuel, filho bastardo de d. Luis com uma cristã nova (Hermann,
1998, p. 53). Na luta pelo trono português, Felipe II de Espanha reivindicou-o por ser tio do
falecido rei d. Sebastião. Diante do impasse, enviou um exército a Portugal que, em pouco
tempo, derrotou o pequeno e desarticulado exército português em 1580:
Portugal vivia outra desastrosa e humilhante derrota, dois anos depois de Alcácer Quibir.
Seus dois históricos inimigos, muçulmanos e espanhóis, dessa vez praticamente juntos,
despojaram o reino de sua soberania, de sua independência e de seu próprio rei. A
impossibilidade de uma solução portuguesa para a sucessão, seguida ao desaparecimento do
Desejado, parecia fechar um ciclo na outrora venturosa história de conquistas do país
pioneiro da expansão ultramarina e artífice de um projeto imperial que parecia
encomendado pelos desígnios de Deus. A recente derrota em Alcântara exigiria um novo
esforço de adaptação à mudança dos ventos que outrora balançavam as velas em busca do
desconhecido. Agora os inimigos estavam dentro de casa e eram os donos do poder de um
país destruído política, financeira e moralmente. (Hermann, 1998, p. 176)
Nos períodos adversos, quando proliferam as dificuldades, é comum ao ser humano
buscar um ponto de apoio que lhe sirva como referência para superação da fase desfavorável.
156
Se o ser humano age dessa forma em termos individuais, na instância coletiva a ausência de
um referencial faz crescer a esperança de uma solução mágica, sobrenatural. Em Portugal não
foi diferente...
O fidalgo d. João de Castro, seguidor de d. Antonio, prior do Crato, editou em Paris,
em 1602, parte dos manuscritos de Gonçalo Annes Bandarra, o sapateiro de Trancoso. Nessa
publicação das Trovas de Bandarra, havia a articulação do sonho de grandeza de Portugal com
a identificação do rei citado por Bandarra, d. João, e d. Sebastião como o Encoberto. Este foi
o ponto de partida para a estruturação do mito sebastianista no meio culto de Portugal
(Hermann, 1998, p. 53).
Segundo alguns autores, Bandarra elaborou as trovas, entre 1520 e 1540, e uma das
cópias manuscritas chegou às mãos de um desembargador do Paço. Em seqüência, Bandarra
foi preso pelo Santo Ofício, em 18 de setembro de 1541, condenado, abjurou e saiu em auto
de fé no mês seguinte (Hermann, 1998, p. 45).
As Trovas de Bandarra, devido a sua característica metafórica, permitem uma
diversidade muito ampla de leituras e significações que, ao longo do tempo, permitiram uma
extensa gama de articulações. Na elaboração das Trovas, o autor foi influenciado pelo mito do
Encoberto, que circulava na Península Ibérica desde o início do século XVI, e no texto
percebe-se também a influência medieval e do messianismo judaico (Hermann, 1998, p. 5859).
A disseminação das Trovas de Bandarra, articulando d. Sebastião ao rei Encoberto e a
implantação de um reino de glória resultou num messianismo que J. Lúcio de Azevedo afirma
“nascido da dor, nutrindo-se da esperança, ele é na história o que é na poesia a saudade, uma
feição inseparável da alma portuguesa” (Azevedo, 1984, p. 7).
É nesse clima de esperança, que pode ser interpretado como uma espera pelo
cumprimento das profecias, que os fidalgos portugueses se rebelaram contra o domínio de
Castela e fizeram a Restauração, em 1640. O argumento dos fidalgos portugueses era,
segundo Eduardo D’Oliveira França, que o poder dos Habsburgos era ilegítimo e que a
insurreição corrigiria o problema com a aclamação de um nobre português como rei (França,
1997, p. 262).
As Trovas de Bandarra voltaram então com força, como se fosse o início da realização
das profecias anunciadas:
cujas predições haviam despertado na alma portuguesa as aspirações de agora, como já
despertara as do tempo de D. Sebastião, venerado de todos, cada vez mais crido,
ninguém lhe contestava a categoria de profeta nacional. Não podia, só por um esforço
157
de vontade, o país canonizá-lo; mas no dia da aclamação solene de D. João IV estava a
imagem dele num altar da Sé, exposta como se faria à de um santo. O Arcebispo
consentiu, e ninguém contra isto protestou, nem mesmo o Santo Ofício, que o tinha
condenado. É o padre António Vieira que no-lo dá a saber, e o disse aos inquisidores no
seu processo, na sessão de 25 de Setembro de 1663. Os pregadores, celebrando a
aclamação do novo rei, não hesitavam em dizer do púlpito serem as Trovas realmente
profecias, e verdadeiro profeta o autor. A proibição do Santo Ofício era como se não
existisse; o livro vendia-se publicamente. Não havia escrito, em defesa da
independência, que as não citasse, com o sentido profético a que os acontecimentos
tinham dado sanção. A censura da Inquisição aprovou essas obras. Passados cem anos,
o réu condenado ao silêncio falava livremente ante os juízes de outrora, em plena
apoteose. (Azevedo, 1984, p. 66-67)
Com a chegada ao Brasil da notícia da Restauração, o Vice-Rei, marquês de
Montalvão, enviou a Portugal uma embaixada com seu filho, Fernando de Mascarenhas, o
padre Simão de Vasconcellos, secretário da província jesuíta do Brasil, e o padre Antonio
Vieira. A comitiva partiu em 27 de fevereiro de 1641 e devido a uma tempestade eles
desembarcaram em Peniche, em 28 de abril de 1641, onde foram hostilizados porque alguns
familiares do marquês de Montalvão não apoiavam a Restauração. O Governador da região,
conde de Atouguia, intercedeu por eles e em 30 de abril foram recebidos pelo rei d. João IV,
em Lisboa. Nessa audiência nasceu a amizade que uniu o rei a Antonio Vieira de forma “tão
firme que jamais intrigas de émulos conseguiram arruiná-la, tão preciosa que, quando a
rompeu a morte, o objecto dela não se contentava de nada menos que ressuscitar o amigo
desaparecido” (Azevedo, 1992, v. 1, p. 48).
Após a viagem da Bahia para Lisboa na embaixada da Restauração, os dois ilustres
discípulos de Inácio de Loyola, Simão de Vasconcellos e Antonio Vieira, seguiram caminhos
diferentes. Entretanto o acaso os reuniria em Portugal, vinte e um anos depois da embaixada,
desta vez ambos envolvidos em diferentes questões de censura, porém relacionadas ao
milenarismo. Recuperar as trajetórias de Vieira e de Vasconcellos, de 1641 até a reunião em
Portugal em 1662-1663, bem como os desdobramentos que chegaram a 1668, são importantes
para que possamos estabelecer a cronologia dos fatos e entender as suas conseqüências.
Simão de Vasconcellos voltou ao Brasil, em 1642, acompanhando o Governador
Antonio Teles da Silva de quem se tornara confessor. Nos vinte anos que se seguiram, sua
trajetória pode ser resgatada nos diversos postos e cargos que ocupou na hierarquia jesuíta no
Brasil: Vice-Reitor do Colégio da Bahia (1643-1645), Reitor do Colégio do Rio de Janeiro
(1646-1649), Visitador do Colégio de São Paulo (1653), Vice-Reitor do Colégio da Bahia
(1654), Provincial (1655-1658), Procurador da Província jesuíta do Brasil (1660). Nesse
último cargo, como vimos, foi para Portugal em 1661 onde buscava as aprovações para a
publicação da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil.
158
A tajetória de Antonio Vieira nos vinte e um anos (1641-1662) que se seguiram à
embaixada da Restauração pode ser dividida em duas etapas. Na primeira etapa, Vieira atuou
na política e na diplomacia, como auxiliar e emissário do rei d. João IV (Azevedo, 1992, v. 1,
p. 53-157). O posicionamento de Vieira apoiando a divisão da Companhia de Jesus em
Portugal, criou uma situação em que ele teve que optar entre sair da Companhia ou voltar ao
Brasil. Assim, sua decisão de permanecer na Companhia resultou na segunda etapa da sua
trajetória, de caráter missionário, quando partiu para o Maranhão, em novembro de 1652.
Numa viagem a Portugal em 1654, Vieira ao pregar na capela real pediu pelo
restabelecimento do rei d. João IV, que encontrava-se gravemente enfermo. Nesse sermão,
Vieira invocou as Escrituras e Bandarra afirmando que o rei “não podia morrer; se morresse
ressuscitaria, para concluir a sua missão na terra e se cumprirem as profecias” (Azevedo,
1984, p. 71). Após a morte de d. João IV, em 1656, Antonio Vieira pregou nas exéquias do
rei, no Maranhão, sermão em que afirmava que o rei tinha que ressuscitar (Azevedo, 1984, p.
71).
Três anos depois, nessa etapa missionária de sua vida, Antonio Vieira escreveu e
enviou ao bispo do Japão, p. André Fernandes, em 29 de abril de 1659, a carta com o famoso
manuscrito Esperanças de Portugal, no qual demonstra que o falecido rei d. João IV haveria
de ressuscitar para cumprir as profecias de Bandarra. Essa carta foi copiada, com ou sem a
autorização de Vieira e, pouco tempo depois, circulava em Lisboa onde era comentada e
discutida (Azevedo, 1992, v. 2, p. 8-9). Em abril do ano seguinte (1660), uma ordem do
Conselho Geral da Inquisição mandou que os inquisidores pedissem ao bispo do Japão o
manuscrito Esperanças de Portugal, escrito por Vieira. O bispo André Fernandes entregou o
manuscrito em 15 de abril de 1660, que depois de analisado pelos inquisidores foi decidido
que deveria ser recolhido e uma cópia enviada, para análise, ao Santo Ofício de Roma. Em
agosto de 1661, chegava instrução do Santo Ofício de Roma, com parecer contrário a Vieira:
Condenava as Trovas do Bandarra como tendo odor de judaísmo, e declarava perniciosa
a sua divulgação, aliás já proibida em Portugal; quanto ao escrito submetido a exame,
julgava-o temerário, repleto de falsidades e sobretudo repreensível no abuso que fazia
da Sagrada Escritura. Determinava que fosse o autor interrogado sobre a parte suspeita
de heresia, e persistindo nela se lhe instaurasse processo na forma usual. De toda a
maneira se lhe impusesse nunca mais tratar, já por escrito já verbalmente, da matéria
versada. (Azevedo, 1992, v. 2, p. 10)
Com a expulsão dos jesuítas do Pará, devido aos problemas relacionados à
administração dos índios, Vieira chegou a Lisboa em novembro de 1661. Nessa ocasião, ele
ainda não tinha conhecimento do processo que contra ele tramitava no Santo Ofício.
159
Na sua volta à corte de Lisboa, Antonio Vieira envolveu-se, segundo João Lúcio de
Azevedo, no episódio da censura do rei d. Afonso VI, em 16 de junho de 1662, o que resultou
no desterro de Vieira para a cidade do Porto, em julho daquele ano.
No mesmo mês de julho de 1662, Simão de Vasconcellos obteve em Roma a licença
do Geral dos jesuítas para imprimir a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, e
voltava para Lisboa para providenciar as últimas aprovações: a licença do Santo Ofício e a do
Paço, ambas emitidas por Francisco Brandão. A última licença para imprimir data de 7 de
novembro de 1662 (ver Anexo 4).
Esse período que estamos tratando, foi marcado por agitação política em Portugal e
Antonio Vieira manteve intensa troca de correspondência com outros adversários de d.
Afonso VI, como podemos comprovar nas várias cartas publicadas por João Lúcio de
Azevedo (Vieira, 1997). A violação de algumas dessas cartas forneceu o material para que os
inimigos de Vieira agravassem a pena de desterro enviando-o para um local mais distante. Na
impossibilidade de enviar Vieira de volta ao Brasil, de onde havia sido expulso, resolveram
transferi-lo para o Colégio de Coimbra, em fevereiro de 1663, onde ficou detido (Azevedo,
1992, v. 2, p. 11-13). J. Lúcio de Azevedo informa que nesse período, entre julho de 1662 e
fevereiro de 1663, Vieira escrevia semanalmente ao visitador Jacinto Magistris (Azevedo,
1992, v. 2, p. 11), entretanto não encontramos referência a nenhuma dessas cartas no
inventário elaborado por Serafim Leite (2000, v. 9, p. 235-304) nem nas Cartas de Vieira
publicadas pelo autor. Nessa correspondência com Magistris, J. Lúcio de Azevedo afirma que
Vieira criticava a Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, do padre Simão de
Vasconcellos, dizendo que “pelo seu estilo, não faria honra às letras dos jesuítas”,
acrescentando que o p. Baltasar Teles e outros concordavam com esta posição e que por este
motivo não deveria ser impressa (Azevedo, 1992, v. 2, p. 11).
A fonte de João Lúcio de Azevedo é um artigo de Francisco Rodrigues, publicado na
Revista de História (Rodrigues, 1922). Nesse artigo, o autor apresenta em nota o trecho de
uma carta do Visitador Jacinto de Magistris ao Geral dos Jesuítas tratando da Chronica, de
Simão de Vasconcellos:
Do P. Antonio Vieira, que demora no Porto, recebo carta todas as
semanas. Na ultima refere-se á Chronica do Brasil num paragrapho que a
V. P. mando copiado em folha separada. Houve outros que tambem se
lastimaram commigo de que o estilo fosse bastante rasteiro, e lhe
notaram outros defeitos. O P. Manuel Luis, Prefeito de estudos do
Collegio de S. Antão, só me disse que a obra podia tolerar-se. Com isto
determinei deixar ordem ao procurador do Brasil, que se demorasse a
160
impressão emquanto V. P. não decidisse. O P. B. Telles com outros
pensam tambem que V. P. deve ser consultado... (Rodrigues, 1922, p. 9293)
Esta carta de Magistris demonstra que a decisão de suspender a publicação da
Chronica foi tomada com base em parecer do p. Antonio Vieira. Entretanto, a Chronica foi
publicada e o motivo pelo qual Magistris voltou atrás na sua decisão está explicado na carta
enviada ao Geral, em 29 de março de 1663:
Pelo que diz respeito á Chronica do Brasil do P. Vasconcellos, resolvêra primeiro
prohibir-lhe a publicação, por assim o diligenciarem commigo o P. Antonio Vieira, P.
B. Telles e muitos outros que a não approvavam. Reconsiderando porêm depois ao
saber por intermedio do P. Telles que o estilo não desagradava de todo ao chronista-mór
do reino*, concedi a licença de impressão, e já vae adeantada a estampa. A parte que
tractava do paraiso terrestre, que o auctor em longo arrazoado nos queria provar, que
existira na America, mandei-a retirar e dei aviso ao Padre Provincial do Alemtejo que
era esta a intenção de V. P. que se não imprimisse... (Rodrigues, 1922, p. 93).
O conflito entre o Visitador Jacinto de Magistris e Simão de Vasconcellos fica claro
quando, no início de abril de 1663, o Visitador propôs ao Geral que se eliminassem os últimos
parágrafos da Chronica e os substituíssem por uma nova página. Cinco dias depois,
Vasconcellos enviou uma carta ao Geral com os pareceres de doutores em teologia de
Coimbra, Évora e Lisboa que defendiam a posição de que ele “não afirmava, mas apenas
lembrava a probabilidade de o Paraíso ser na América, isto é, no Brasil, probabilidade que
deixava ao critério do leitor” (Leite, 2000, v. 9, p. 178). Em outras palavras, na Chronica a
localização do Paraíso na América ou no Brasil era apenas tratada como uma probabilidade, o
que era aceito pela Igreja. Tanto assim, que o Santo Ofício não fez nenhuma oposição quanto
à sua publicação e o seu responsável, fr. Francisco Brandão, que acumulava o cargo de
cronista-mor do reino, intercedeu pela publicação como consta da carta de Magistris ao Geral.
No mês seguinte, maio de 1663, quando Vasconcellos voltava para o Brasil, ao mesmo
tempo em que Magistris, Antonio Vieira, em Coimbra, recebia a notificação do Santo Ofício
de que não deveria se ausentar do Colégio sem comparecer perante ao Tribunal. Apesar de
seu estado de saúde precário, Vieira compareceu ao Santo Ofício, em 21 de junho de 1663, na
presença do inquisidor Alexandre da Silva. Era o início do seu longo processo.
*
Francisco Rodrigues acrescenta que: “o chronista-mór era por esse tempo fr. Francisco Brandão, sucessor,
nesse cargo, de seu tio fr. Antonio Brandão” (Rodrigues, 1922, p. 93).
161
Na primeira fase do processo no Santo Ofício, Antonio Vieira continuou detido no
Colégio de Coimbra e manteve sua rotina epistolar, correspondendo-se com outros desafetos
de d. Afonso VI.
Nas cartas de Antonio Vieira, publicadas por J. Lúcio de Azevedo, existe uma lacuna
nesta correspondência no período entre 13 de fevereiro de 1663, quando foi transferido para
Coimbra, e 17 de dezembro desse mesmo ano, o que também é anotado por Serafim Leite no
inventário das cartas de Vieira (2000, v. 9, p. 235-304). Na carta de 17 de dezembro de 1663,
endereçada a d. Rodrigo de Menezes, Vieira diz que “depois de três vezes morto e três vezes
ressuscitado neste ano, foi tanta a minha desconfiança da vida como nos dias deste grande
cuidado” (Vieira, 1997, v. 2, p. 13-14). A doença pode ser a explicação para a ausência de
cartas durante aqueles dez meses. Numa outra carta de Vieira, enviada ao marquês de
Gouveia, em 19 de dezembro de 1663, o último parágrafo é revelador da sua crença nas
profecias e nas suas esperanças: “O certo é que as profecias se vão cumprindo por seus passos
contados, e que, segundo elas, por meio destes grandes trabalhos e calamidades da Igreja, lhe
podemos esperar a ela e ao nosso reino as grandes felicidades que lhe são prometidas...”
(Vieira, 1997, v. 2, p. 17).
O discurso milenarista de Vieira aparece claramente neste trecho da carta, assim como
no manuscrito Esperanças de Portugal. Nos dez meses de silêncio epistolar de Vieira, detido
e doente em Coimbra, Simão de Vasconcellos voltou ao Brasil aonde chegou em 13 de junho
de 1663. Os conflitos entre o Visitador Jacinto de Magistris e os principais jesuítas da
Província do Brasil resultou, como vimos anteriormente, no processo de deposição do
Visitador em setembro de 1663. Magistris por sua vez recorreu ao Geral e retornou a Europa
nesse mesmo ano. No ano seguinte, em outubro de 1664, o Geral decidiu que a deposição do
Visitador fora indevida e não tinha validade, além disso, privou os sete padres que
participaram do processo, incluindo Simão de Vasconcellos, de voz ativa e passiva e de
assumir cargos de Superior, Consultor e Congregação Provincial (Leite, 2000, v. 7, p. 39).
Em Coimbra, em setembro de 1663, Vieira era submetido ao segundo exame perante o
Santo Ofício. Nesse exame, foi interrogado sobre o que pregou, conversou, escreveu ou
pensou escrever além da carta Esperanças de Portugal. Na sua resposta, Vieira afirmou que
desde 1646 compunha um livro que pretendia intitular Clavis Prophetarum
[...] cujo principal assunto, e matéria é, mostrar por algumas proposições, com lugares
da Escritura, e Santos, que na Igreja de Deus há de haver um novo estado diferente do
que até agora tem havido, em que todas as nações do Mundo hão de crer em Cristo
Senhor nosso, e abraçar nossa Santa Fé Católica; e que há de ser tão copiosa a graça de
162
Deus, que todos ou quase todos, os que viverem, se hão de salvar, para se perfazer o
número dos predestinados. (Vieira apud Muhana, 1998)
O Santo Ofício apurava e julgava as causas relacionadas às faltas cometidas contra a fé
e os costumes. No caso de Vieira, as faltas eram relacionadas a possíveis erros contra a fé. A
apuração da gravidade do erro, pelo Santo Ofício, envolvia a determinação do meio utilizado,
oral ou escrito, da abrangência, pública ou privada, e a intenção do autor.
A defesa de Vieira perante o Santo Ofício tem alguns aspectos marcantes, dos quais
destacamos três. No primeiro deles, relacionado à carta Esperanças de Portugal, Vieira
apresenta a carta como um documento privado, parte de uma controvérsia entre teólogos na
busca da verdade e, por este motivo, isento de culpa (Muhana, 1998). Outro aspecto a
destacar, é o engenhoso, porém perigoso, artifício utilizado por Vieira pedindo para escrever o
livro que seria a sua defesa e que os inquisidores analisariam, para então fazer a acusação.
Assim, ao retardar a elaboração do livro devido aos problemas de saúde, Vieira adiava a sua
defesa, mas também protelava a análise do que seria utilizado na sua acusação. Não seria
demais aventar a hipótese de que Vieira protelava sua defesa na esperança da chegada do ano
fatídico de 1666, quando as profecias se cumpririam e ele não precisaria defender-se. Afinal
faltava pouco tempo... O último aspecto refere-se à interpretação das profecias. No Santo
Ofício, Vieira era julgado pelas profecias que havia elaborado a partir das profecias de
Bandarra. Vieira defendia-se mostrando a dificuldade de interpretar as profecias porque
“todas de sua natureza são escuras, e envoltas em metáforas e enigmas de muito dificultosa
inteligência, na qual trabalharam os engenhos dos mais doutos homens do mundo em muitos
séculos ficando muitas delas sem ser entendidas” (Vieira apud Neves, 1998). Dessa forma, a
característica metafórica e enigmática das profecias permitiam variadas leituras, ou
interpretações, e a de Antonio Vieira poderia ser entendida como apenas mais uma dentre
outras possíveis. Na operação de decifração há “uma espécie de combate entre o texto e seu
leitor, e árduo combate quando se trata de texto profético” (Neves, 1998), na busca de que
seria a “verdade”, ou o “verdadeiro sentido” das profecias. Nessa concepção, a árdua tarefa do
intérprete católico da profecia, seria a de “harmonizar a verdade do Texto Sagrado com as
verdades de outros textos e com as verdades do mundo” (Neves, 1998). A solução que Vieira
oferece aos inquisidores para a interpretação das profecias é de que o seu trabalho foi
irrelevante porque ele apenas utilizou a “Sagrada Escritura, que é o seu livro mais particular,
procurando entendê-la quanto lhe é possível, conforme o verdadeiro, e radical sentido
pretendido pelo Espírito Santo, e para que isso se aproveitava dos expositores que tem por
mais sólidos” (Vieira apud Neves, 1998).
163
Na sua defesa, Vieira busca dividir sua responsabilidade interpretativa com outros
autores
[...] os motivos que teve para ter por provável este terceiro estado85 consumado do dito
império na terra, foram a autoridade de muitos Doutores católicos antigos e modernos, que
assim o prometem, e esperam, revelações de muitos santos, recebidas comumente, e
sobretudo alguns lugares da Escritura, em que os sobreditos doutores se fundam (Vieira
apud Neves, 1998).
A interpretação das profecias de Bandarra, na carta Esperanças de Portugal,
apresenta-se como uma resposta à crença da ressurreição do rei d. Sebastião, que teve origem,
como vimos, na publicação das Trovas por d. João de Castro, em 1602. Na sua resposta,
Vieira afirma que quem ressuscitaria seria o rei d. João IV. Sua afirmação é apresentada sob a
forma de um silogismo:
O Bandarra é o verdadeiro profeta;
O Bandarra profetizou que el-Rei D. João o 4.º há-de obrar muitas cousas que ainda não
obrou, nem pode obrar senão ressuscitando;
Logo, el-Rei D. João o 4.º há-de ressuscitar. (Besselaar, 2002, p. 49)86
No desenvolvimento da carta Vieira demonstrou as duas premissas do silogismo
proposto que teriam como conseqüência a validade da conclusão de que o rei d. João IV
haveria de ressuscitar. É interessante observar a coincidência da época em que Antonio Vieira
escreveu Esperanças de Portugal (1659) e Simão de Vasconcellos elaborou a Chronica da
Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1654-1661). Outra aparente coincidência é que tanto
em Esperanças de Portugal como nas Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil,
os respectivos autores recorrem a um silogismo para demonstrar sua tese. No caso de Vieira o
silogismo é apresentado de forma clara, no caso de Vasconcellos o silogismo está implícito no
texto, como vimos anteriormente. Esta forma de apresentar uma tese e fazer sua defesa, não é
apenas uma coincidência nos escritos desses dois ilustres jesuítas, mas um hábito mental que,
como bem definiu Panofsky, é como um “princípio que rege a ação”87 (Panofsky, 1991, p.
14), que era incutido na formação do jesuíta e que passava a fazer parte do seu quotidiano
intelectual como um habitus, para utilizar a terminologia de Pierre Bourdieu (1995, p. 82-83).
85
Observe-se a referência ao terceiro estado, ou idade, proposto, como vimos, pelo abade Joaquim Fiore.
Esperanças de Portugal encontra-se publicado em outros livros como, por exemplo, nas Cartas de Vieira
organizadas por J. Lúcio de Azevedo (Vieira, 1997, v. 1, p. 468-525).
87
Erwin Panofsky atribui essa concepção de hábito a S. Tomás de Aquino na Summa Theologica, I-II, questão
49, artigo 3, item c.
86
164
Na Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, após a folha de rosto, Simão
de Vasconcellos incluiu uma gravura, que reproduzimos anteriormente, na qual aparece em
primeiro plano, na parte inferior uma espécie de mesa onde estão dispostos livros, mapas,
globo terrestre, ampulheta, bússola e outros instrumentos. No segundo plano, começando na
altura da mesa do primeiro plano e subindo pelas laterais da gravura temos, de cada lado, uma
árvore cujos galhos fecham a parte superior da gravura. Nessas árvores, encontramos frutos,
aves e animais, que formam uma espécie de moldura natural que faz contraste com a base
construída pelo homem: o conhecimento, representado pelos livros e mapas, e a ciência,
representada pelos instrumentos. No terceiro plano, vemos o mar onde navega uma nau
armada, com os canhões em posição de tiro, com as velas enfunadas em que lemos o dístico
“VNVS NON SVFFICIT ORBIS” que podemos traduzir como um mundo não basta, numa
alusão de que o velho mundo não era suficiente para a Companhia de Jesus. No último plano,
no horizonte, um globo terrestre. Essa gravura, que abre a Chronica, oferece ao leitor, por
antecipação, uma imagem do que o autor pretendia apresentar e que devido ao seu conteúdo
alegórico oferece várias possibilidades de interpretação.
Após a gravura, o leitor encontra na Chronica a dedicatória, impressa em 1663, ao
muito alto e poderoso rei de Portugal d. Afonso VI, na qual Simão de Vasconcellos assume
uma posição milenarista, em que atribuía ao rei o cumprimento dos oráculos de esperança dos
portugueses, com o advento do mundo de felicidades dos tempos dourados:
A Chronica de hum Nouo mundo por tantos annos esperada, em nenhum tẽpo podia
sair a luz com mais felicidade, que no em que sae a reynar hum Principe esperado pera
tãtas venturas. Este he V. Mag. ò poderoso Rey; por que sendo parte essencial da
decimasexta gèração do primeiro Rey D. Affonso Henriques, tão esperada dos
Portugueses, conseguintemente em V. Mag. hão de ter cumprimento os Oraculos de
suas esperanças, & haõ de apparecer em o mundo as felicidades dos tẽpos dourados,
que qual outro Cesar Augusto, aguardaõ por V. Mag. (Vasconcellos, 1663,
Dedicatória).
Nessa dedicatória, Vasconcellos afirma que se fosse necessário provaria as “boas
venturas” e destaca antecipadamente os três pontos que utilizaria na defesa da sua expectativa
milenarista. O primeiro ponto da sua defesa, é que d. Afonso VI seria a décima sexta geração
de d. Afonso Henriques. O segundo ponto é relativo à promessa feita àquele rei de
“felicidades que esperamos os Portugueses, referidas por Chisto, de hum felicissimo Imperio”
(Vasconcellos, 1663, Dedicatória). No terceiro ponto Vasconcellos afirma que não “deuem
viuer nos coraçoẽs dos Portugueses esperanças mortas, ou pensamentos de desenterrar
defunctos Principes, decimassextas gèraçoẽs acabadas” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória) e
165
questiona a necessidade de milagres para ter viva a décima sexta geração: “Se sem milagres
temos viua a decimasexta gêração, se reyna hoje sobre nòs claramente, que necessidade ha
de portentos nouos?” (Vasconcellos, 1663, Dedicatória). Vasconcellos conclui dedicando sua
obra “a este Principe venturoso, que claramente reyna como parte da decimasexta gèração,
& com esperanças de felicidades, quaes agora conuem esperar, não relatar” (Vasconcellos,
1663, Dedicatória). Percebe-se que a posição de Vasconcellos é, sem dúvida, contrária a
daqueles que esperavam que um milagre permitisse a ressurreição de d. Sebastião ou d. João
IV para a condução de Portugal ao seu destino, o império de felicidade. Esta posição de
Vasconcellos era contrária a posição de Vieira que, nessa época, acreditava na ressurreição do
seu estimado rei e amigo d. João IV. Este pode ter sido um dos motivos, não alegado, que
teria Vieira quando emitia opinião contrária à publicação da Chronica, em carta ao Visitador
Magistris, entre julho e novembro de 1662.
Em contraste com a posição de Antonio Vieira, Simão de Vasconcellos assumia uma
posição menos mística e mais próxima do real, mais pragmática, em que não descartava o
destino de Portugal como o reino de felicidade na terra, o quinto império, entretanto, ao
contrário de Vieira, atribuía o comando desse reino a um rei vivo, de carne e osso, que
reinaria sobre um território real, que incluía nos seus domínios o Brasil, que ele demonstrou
como sendo o local ideal para situar o Paraíso terrestre.
O tempo do cumprimento das profecias estava próximo, faltava pouco para o ano de
1666, o ano do “conto cheio” de Bandarra como Vieira interpreta na sua defesa perante o
Santo Ofício:
Nessa mesma era dos seis fala muito aquele autor idiota e infelice, que eu tenho mais razão
de detestar que de alegrar. Só digo que pelo ano de 1666 se pode dizer, como ele diz: “Aqui
faz o conto cheo”. Porque todos os números do abecedário latino se enchem completamente
na conto deste ano, sem acrescentar nem diminuir, nem trocar ou alterar a ordem deles,
porque o M val mil, o D quinhentos, o C cento, o L cinquenta, o X dez, o V cinco, o I um, e
todos juntos, pela mesma ordem, vem a fazer: 1666.
MDCLXVI (Vieira apud Besselaar, 2002, p. 372)
Nas cartas de Vieira encontramos referências constantes às profecias e à expectativa
do seu cumprimento no ano de 1666. Outro aspecto a destacar é a mudança da opinião de
Vieira sobre quem seria o Encoberto profetizado nas Trovas de Bandarra. Na carta de 3 de
março de 1664, dirigida à D. Rodrigo de Meneses, Vieira conta que
Por cá não há cousa digna de relação mais que haver-se hoje dado princípio às mesas na
sala dos nossos estudos, onde o mestre, que é o padre Francisco Guedes, tomou por
problema dos futuros contingentes se havia de vir ou não el-rei D. Sebastião. E depois de o
166
disputar com aplauso por uma e outra parte, resolveu que o verdadeiro Encoberto
profetizado é el-rei que Deus guarde, D. Afonso VI. Por sinal que, para eu o crer e
confessar assim, não foi necessário nenhum dos argumentos que ouvi, porque, depois que
observei as felicidades de S. M., e a providência tão particular com que assiste o Céu a
todas as suas acções, estou inteiramente persuadido a isso. Nem se poderá dizer por mim
que mudei a opinião depois que me vi ao remo, porque este meu desterro nunca o tive por
galé: antes, se não fora tão sujeito às inclemências do tempo, o tivera por paraíso da Terra.
(Vieira, 1997, v. 2, p. 39)
A presença reiterada de referências a cometas nas cartas de Vieira, a partir de
dezembro de 1664, mostra a importância desse astro que para ele é um “farol do Céu” e que
sentia não ver nos “ânimos desta banda mais comoção que a da curiosidade”. Completa
dizendo que Deus não acenderia “ociosamente um corpo tão prodigioso” (Vieira, 1997, v. 2,
p. 105-106). Observe-se também, que é a partir dessa carta que descobrimos que Vieira
passou a acreditar que o Encoberto era o rei d. Afonso VI.
Conforme o tempo passava e o ano de 1666 aproximava-se, os sinais ficavam mais
fortes para Vieira que relata-os em duas cartas semelhantes, ambas com data de 4 de maio de
1665, destinadas a D. Rodrigo de Meneses e ao marquês de Gouveia. Da carta remetida a D.
Rodrigo retiramos o seguinte trecho:
Grandes prodígios se referem de perto e de longe. De Melgaço vi carta de um notável
meteoro que, correndo da parte de Valença do Minho, e durando por muito espaço, se
desfez sobre Galiza em raios e coriscos: era de figura de uma espada de cor verde e
amarela, que saía de duas nuvens, uma branca e outra vermelha, e com a mesma figura foi
visto em outras partes. No Colégio dos Tomaristas desta cidade se viu depois de meia-noite
um globo de fogo, que nascia na parte do sueste, e subia por espaço de duas ou três horas
até se desfazer, e continuou algumas noites. Em Guimarães vomitou um homem enfermo
um dragão com duas asas, de comprimento quase um côvado; da sua cabeça até o meio
largo de dois dedos, vermelho e escuro; do meio para a cauda mais delgado e de cor parda.
De Roma se escreve houve três dias de névoas tão espessas e escuras, que se não viam os
homens nem os edifícios, e que as trevas eram palpáveis como as do Egipto. Tudo são
sinais e prodígios que solenizam as vésperas do ano fatal, por cujas maravilhas nenhum há
já tão incrédulo que não espere. (Vieira, 1997, v. 2, p. 157-158)
Dois dias depois, Vieira escreveu a João Nunes da Cunha e reiterou a ocorrência dos
prodígios “com que o Céu e a Terra parecem começam a solenizar as vésperas e expectação
do ano de 66” (Vieira, 1997, v. 2, p. 162).
A demora de Vieira na apresentação ao Santo Ofício do seu livro-defesa resultou na
ordem dada pelo Conselho Geral do Santo Ofício, em Lisboa, ao Tribunal de Coimbra no
sentido de que o réu fosse sentenciado e os autos enviados para revisão em Lisboa. Esta
ordem teve como conseqüência uma intimação do Tribunal que obrigava Vieira a entregar os
seus escritos, no estado em que estivessem, para análise e julgamento. Vieira entregou seus
papéis ao Tribunal em 14 de setembro de 1665 e encaminhou uma petição ao Conselho Geral
167
do Santo Ofício, em Lisboa, pedindo a devolução dos mesmos e mais tempo para redigir o
livro-defesa. O resultado da petição foi o despacho com uma “ordem para o réu ser chamado à
Mesa em Coimbra e recolhido a um dos cárceres de custódia; depois continuar-lhe o processo,
declarando que as censuras eram todas por qualificadores do Santo Ofício de Roma”
(Azevedo, 1992, v. 2, p. 52). Em 1 de outubro de 1665, Vieira era recolhido ao cárcere do
Santo Ofício, em Coimbra.
O ano fatídico de 1666 chegou e no seu desenrolar encontrou Vieira disputando com o
inquisidor Alexandre da Silva:
O réu, porém, dialéctico perito, para tudo tinha réplica, e se evadia de tal modo, que o
inquisidor por fim lhe pôs o dilema de se submeter ou aceitar as conseqüências de sua
pertinácia, dilema que era a confissão da própria impotência ante argumentador tão valente.
Foi isso em sessão de 3 de Dezembro de 66, (...) (Azevedo, 1992, v. 2, p. 63).
No último dia do ano fatídico, 31 de dezembro de 1666, o Geral dos Jesuítas
encaminhou carta ao Conselho Geral do Santo Ofício em Portugal, através do Provincial de
Portugal, pedindo que o Santo Ofício entregasse o p. Antonio Vieira para que eles, os jesuítas,
o guardassem
nalgum collegio sob as seguranças, reservas e limites, que a eximia sabedoria de VV. SS.
Illustrissimas houver por bem estabelecer. Pelo menos evitar-se-ha desta maneira o labéu de
ignominia que denegrirá consideravelmente a nossa Ordem, se o P. Antonio Vieira,
enfermiço como é, e attreito a doenças, vier a morrer nos carceres da Inquisição.
(Rodrigues, 1922, p. 97)
Esta carta revela que, por algum motivo, a Companhia de Jesus esperou mais de um
ano para interceder por Vieira e, coincidentemente, no último dia do ano fatídico em que se
realizariam as profecias e teria início o reino de felicidade dos portugueses. Como as profecias
não haviam sido cumpridas, o Geral podia então afirmar que “por indicios certos estejamos
persuadidos que elle, talvez pela demasiada contenção no estudo, antes desatina e delira
sobretudo em alguns assumptos, que teem relação com successos futuros, do que erra em
coisas concernentes á fé” (Rodrigues, 1922, p. 96).
O pedido não foi levado em consideração e Vieira permaneceu no cárcere do Santo
Ofício até 23 de dezembro de 1667, quando foi lida sua sentença que impunha que fosse:
[...] privado para sempre de voz ativa e passiva, e de poder pregar, e recluso no colégio ou
casa de sua religião, que o santo ofício lhe assinar, donde sem ordem sua não sairá; e que
por termo por ele assinado se obrigue a não tratar mais das proposições de que foi argüido
no decurso de sua causa, nem de palavras nem de escrito, sob pena de ser rigorosamente
castigado; (...) (Vieira, 1998, p. 271-272).
168
A longa sentença de Antonio Vieira apresenta no final a seguinte anotação:
Foi publicada esta sentença ao padre Antonio Vieira na sala da inquisição de Coimbra em
sexta-feira à tarde 23 de dezembro de 1667: gastou em se ler duas horas e um quarto: no
sábado seguinte se publicou pela manhã no seu colégio, onde ficou o padre Vieira para daí
ir para a casa da religião que o santo ofício lhe assinasse para residência e reclusão, que foi
a de Pedrozo; a qual antes de partir lhe foi comutada pelo conselho-geral para a casa do
noviciado da Cotovia de Lisboa; e estando nesta, foi dispensado pelo mesmo conselho-geral
em tudo no mês de junho de 1668; e em 15 de agosto de 1669 partiu de Lisboa para Roma88
com licença do Principe Regente D. Pedro. (Vieira, 1998, p. 272)
No ano de 1667, em que Antonio Vieira foi condenado e perdeu o direito à voz, Simão
de Vasconcellos recuperava a sua voz, perdida com a pena imposta pelo Geral dos jesuítas em
1664. É ainda nesse ano de 1667, que o rei d. Afonso VI, considerado por J. Lúcio de
Azevedo como “doidivanas em vésperas de mentecapto” (Azevedo, 1984, p. 76), continuava
rei apenas no nome, confinado ao seu quarto, alheio aos acontecimentos que culminaram com
a volta dos companheiros e amigos de Vieira ao poder. Nessa articulação, a mulher de d.
Afonso VI, d. Maria Francisca de Sabóia, conseguiu obter o divórcio e casou-se com o
príncipe regente d. Pedro, irmão de d. Afonso VI, em 2 de abril de 1668 (Azevedo, 1992, v. 2,
p. 72). Este foi o destino inglório do rei que deveria conduzir Portugal ao reino de felicidade
dos tempos dourados que, aparentemente, ainda não haviam chegado.
Antonio Vieira continuou tentando encontrar o “verdadeiro sentido” das profecias,
“envoltas em metáforas e enigmas”, sem conseguir concluir a História do Futuro. A crença de
Vieira nos cometas é impressionante e podemos constatar no seguinte trecho de Voz de Deus
ao Mundo, a Portugal e à Baía89, escrito em 1695, dois anos antes de sua morte:
No princípio, falava Deus aos homens por si mesmo, como a Adão, Caim, Noé, Abraão,
Moisés, e outros patriarcas. Depois que se introduziram no Mundo os reis, que foi mil e
oitocentos anos depois da criação, falava Deus aos mesmos reis por visões e figuras, ou
em sonhos ou acordados, como a Faraó, Abimelech, Nabucodonosor e Baltasar. Mais
adiante falava pelos profetas, que duraram alguns séculos; e por meio de seus oráculos
mandava anunciar, ou de palavra aos reis e reino de Israel, ou por escrito aos de Tiro,
Babilónia, Egipto e Assíria e outros, as calamidades impendentes com que os havia de
castigar, e de que estão cheios os livros dos mesmos profetas. Finalmente, depois que os
profetas cessaram, começou Deus a falar pelos cometas, que é a linguagem universal de
88
A viagem de Vieira para Roma, em missão oficial, permitiu que ele pregasse várias vezes, participasse de uma
disputa, com o discurso As lagrimas de Heráclito (Vieira, 2001), na corte da rainha Cristina da Suécia. Em abril
de 1675, Vieira obteve do papa Clemente X, uma breve Isenção das Inquisições de Portugal e demais reinos
(Vieira, 1998, p. 273-276), e voltou para Portugal nesse mesmo ano.
89
Serafim Leite informa o título completo da obra de Antonio Vieira: “Voz de Deos ao Mundo, a Portugal, & à
Bahia. Juizo do Cometa que nella foi visto em 27 de Outubro de 1695, & continua atè hoje 9. de Novembro do
mesmo anno.” (Leite, 2000, v. 9, p. 317).
169
maior majestade e horror de que usa extraordinariamente a seus tempos e em casos
graves, como se não pode duvidar seja o presente. (Vieira apud Carolino, 2003, p. 161)
No Brasil, no seu paraíso terrestre, Simão de Vasconcellos organizou em 1667 a
impressão, em separado da Chronica, das Noticias curiosas, e necessarias das cousas do
Brasil. A nova impressão ficou pronta em Lisboa, em março de 1668, no mesmo mês que era
publicado o acordo de paz com Castela, encerrando 28 anos de luta desde a Restauração.
Simão de Vasconcellos desta feita não dedicou sua obra a um rei, mas a um benfeitor da
Companhia de Jesus no Brasil que, como ele, acreditava ter encontrado no Brasil o seu
paraíso terrestre.
170
7. Conclusão
Na reflexão sobre as contribuições deste trabalho, podemos alinhar em primeiro lugar
o resgate da correspondência do Visitador Jacinto de Magistris que permitiu esclarecer o
episódio da censura da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, como uma ação
da Companhia de Jesus.
Em segundo lugar, podemos relacionar o resgate da recepção e das referências da
Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil e das Noticias curiosas, e necessarias
das cousas do Brasil pelos leitores e autores do século XVII e XVIII, como: Francisco de
Brito Freire, em Nova Lusitânia (1675); o acadêmico José de Oliveira Bessa (1759) e fr.
Antonio de Santa Maria Jaboatão, no Novo Orbe Seráfico (1761), ambos da Academia
Brasílica dos Renascidos; o fr. Gaspar da Madre de Deus, nas Memórias para a História da
Capitânia de S. Vicente (1797). No caso de Nova Lusitânia (1675), a comparação que fizemos
com as Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, de Simão de Vasconcellos, não
deixa dúvida sobre a fonte utilizada por Francisco de Brito Freire.
Em contraste com essas referências encontramos as críticas dos historiadores do
século XIX, dentre as quais destacamos o discurso antijesuítico do cônego Dr. Joaquim
Caetano Fernandes Pinheiro (1855), que elaborou a edição “defeituosa e incompleta” da
Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, em 1864 no Rio de Janeiro. As críticas
do século XX, inauguradas por João Capistrano de Abreu (1988, p. 212), em 1907, também
não foram favoráveis.
A edição diplomática do livro Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil,
de Simão de Vasconcellos, contribui para uma futura edição do livro, fiel ao discurso do
autor, bem como outros estudos relacionados com análise de discurso do século XVII e de
lexicologia.
A demonstração de que Simão de Vasconcellos construiu no plano literário e
imaginário a ampliação do território geográfico do Brasil, como parte da conquista territorial,
pode ser relacionada como mais uma contribuição do nosso trabalho.
171
Da mesma forma, podemos relacionar como contribuição do nosso trabalho a
identificação no discurso de Vasconcellos das articulações com o pensamento moderno, como
as explicações que ele oferece para a cor dos índios, os fenômenos climáticos e celestes.
Nesse sentido, Simão de Vasconcellos é um homem do seu tempo tentando combinar o
pensamento moderno, calcado na razão e na experiência, com o pensamento religioso e
medieval, através de um discurso que tem a marca indelével da conciliação.
A fonte desse tipo de discurso pode ser resgatada na origem da Companhia de Jesus.
Inácio de Loyola e os demais fundadores da Companhia de Jesus estudaram em Paris entre
1529 e 1533, quando a modernidade renascentista imperava na França. Loyola e seus
companheiros foram ordenados padres em 1537, na Itália, e dois anos depois fundavam a
Companhia. A formação acadêmica e intelectual de Inácio e seus pares foi resultado de uma
combinação do classicismo renascentista e da teologia medieval de S. Tomás de Aquino,
perspectivas estas que igualmente encontravam-se articuladas e presentes na Contra-Reforma.
Assim, desde a origem da Companhia de Jesus, a formação de seus membros, em consonância
com sua época histórica, marcada pela lenta dissolução das relações feudais de produção e o
desenvolvimento do moderno mundo capitalista, conciliava o antigo – a teologia medieval – e
o novo – o classicismo renascentista – conforme os ditames estabelecidos no currículo padrão
do Ratio Studiorum.
Assim, um dos valores marcantes, sempre presente, na comunidade jesuíta era a
conciliação de oposições que podia ser encontrada até mesmo na gestão da Companhia de
Jesus. Esta perspectiva de conciliação a que nos referimos passou a se destacar ainda mais
após a Congregação de 1568, que permitiu que os colégios tivessem posse de fazendas e
escravos, ou seja, de meios de produção. Em pouco tempo, os colégios jesuítas passaram de
tal forma a se dedicar às atividades produtivas de suas fazendas que é possível afirmar,
conforme Paulo de Assunção que “os jesuítas comportavam-se como qualquer colono, pois: ‘a
Companhia buscou lucro, constituindo-se exploradora, proprietária de fazendas e engenhos,
debatendo-se porém nos limites de uma sociedade em transição’” (Assunção, 2004, p. 258).
Esta situação levou Vera Lúcia Amaral Ferlini a caracterizar o jesuíta “como expressão
exacerbada do europeu na Época Moderna; burguês e cristão; missionário da Coroa, mas
soldado do Papa; colono e reinol; senhor de engenho e mercador” (Ferlini apud Assunção,
2004, p. 260). Este perfil dos jesuítas é, mais uma vez, revelador do caráter conciliatório
presente em suas atividades que, a princípio, eram de natureza opostas. Assim, coexistiam, na
Companhia de Jesus a prática religiosa e missionária e a prática de negócios pois
172
[...] administraram suas propriedades para aumentar a produtividade e obter resultados,
seguindo os movimentos da dinâmica econômica colonial. A organização das operações
dos engenhos sugere que as gestões foram pautadas por preocupações que incluíam um
planejamento racional do sistema produtivo, procurando adequar os recursos disponíveis às
extensões de terras e à mão-de-obra escrava necessária. Estas operações só poderiam ser
empreendidas com capital e com a aplicação adequada dos recursos obtidos, que deveriam
ser reinvestidos de maneira racional. (Assunção, 2004, p. 84)
Essas práticas colocavam em conflito direto o voto de pobreza dos membros da ordem
e a administração do valioso patrimônio de uma empresa em que
As práticas administrativas empreendidas pelos religiosos provam claramente o apego a
uma política de resultados, deixando evidente que as gestões foram pautadas por um
racional planejamento do sistema produtivo. Os meios eram vitais para se atingir os fins e,
por conseguinte, os religiosos deviam administrar as propriedades a fim de assegurar a
produção, controlar as contas e evitar gastos desnecessários, aconselhar novas compras de
terra, modificar a estratégia de produção, garantir a posse do patrimônio em consonância
com as leis e defender os bens conquistados das demandas. (Assunção, 2004, p. 439)
Um empreendimento dessa natureza e porte tem um aspecto crucial que Paulo de
Assunção resume numa pergunta: “Teria a corporação encontrado nestas atividades um
equilíbrio entre o necessário e o excesso?” (Assunção, 2004, p. 293). Além de Paulo
Assunção outros autores trataram dessa questão, dentre os quais podemos citar Serafim Leite
(2000, v. 4, p. 153-210) e Dauril Alden (1996). Independentemente da resposta a essa
questão, podemos afirmar que a conciliação de atividades tão conflitantes como a produção e
comércio, como parte de um processo de acumulação de capital, e a atividade religiosa e
missionária, parte de um processo de elevação espiritual e salvação da alma, envolvia a
Companhia numa grande dificuldade. Para a sociedade colonial, por exemplo, não havia
dúvidas de que a Companhia de Jesus e seus componentes eram percebidos através de seu
aspecto comercial
Para a maioria da população, os jesuítas eram “homens de negócio”, pois fabricavam
açúcar, vendiam gado, exploravam produtos naturais, operando o sistema como uma
empresa, assumindo riscos, além de demonstrarem interesses de otimização dos lucros e
redução das perdas e agirem com agentes comerciais na venda de produtos. A
diversidade do patrimônio e das práticas dos jesuítas demonstra que eles se adaptaram
às economias regionais, visando a obter uma melhor rentabilidade. Este processo não foi
exclusivo dos jesuítas da América Portuguesa. [...] Desta forma, o que se nota é que as
fazendas, engenhos e currais forneciam a subsistência agrícola e pecuária para os
colégios e residências, produzindo excedentes que eram disponibilizados para venda no
mercado colonial e em Portugal; além disso, o exercício da exploração de produtos
naturais como madeiras, drogas do sertão, dentre outros, ajudavam a compor as fontes
de recursos para a manutenção da Companhia de Jesus.
Desta forma, os engenhos e as fazendas permitiram que os religiosos gozassem de
privilégios reais, sociais e políticos que a missão envolvia, o que significa dizer que a
administração da empresa açucareira e outras atividades eram operadas seguindo a
necessidade de lucro, de controle das perdas e de um olhar atento para as alterações de
173
mercados. Enfim, um negócio que os jesuítas, de forma laboriosa, tentaram empreender
para a maior glória de Deus. (Assunção, 2004, p. 353-354)
A conciliação dessas atividades antagônicas, desenvolvidas cotidianamente pela
ordem, era incorporada pelos jesuítas como um hábito, juntamente com outros hábitos
assimilados durante sua formação escolar pela pedagogia estabelecida no Ratio Studiorum,
constituindo um habitus, para utilizar o termo de Pierre Bourdieu. Assim, os jesuítas
conciliavam as atividades da empresa terrena, produtiva e comercial, com as atividades da
empresa divina, religiosa e missionária. Esta capacidade de conciliação, do material com o
espiritual, era a mesma capacidade de conciliação que os jesuítas demonstraram quando
acolheram e incorporaram o modelo geo-heliocêntrico de Tycho Brahe nos seus textos,
científicos e filosóficos, como o modelo de concepção do mundo em substituição ao modelo
medieval geocêntrico, de Aristóteles e de Ptolomeu.
Nessa mesma perspectiva, Simão de Vasconcellos articulou seu discurso nas Noticias
curiosas, e necessarias das cousas do Brasil, conciliando ciência e religião, através de uma
argumentação lógica, numa perspectiva milenarista. As Noticias, como um discurso
milenarista, não sofreu restrições do Santo Ofício, talvez pela proximidade do ano fatídico de
1666, ou pela posição de seu autor na Companhia de Jesus, ou ainda, pela simpatia com que o
cronista-mór do reino encarava o texto. Dessa forma, as Noticias, entendidas como uma
enunciação conforme Mikhail Bakhtin, elaboradas e disseminadas por Simão de
Vasconcellos, um membro da comunidade discursiva jesuíta do século XVII no Brasil,
materializaram de forma barroca um discurso milenarista.
Cerca de oitenta anos depois da tumultuada publicação da Chronica, de Simão de
Vasconcellos, Pedro de Rates Henequim foi preso pelo Santo Ofício em Lisboa, em 1741:
Visionário e cabalista, Henequim acreditava que o Paraíso terreal localizava-se numas
serranias perdidas no Brasil, onde Deus teria protagonizado a Criação, fazendo surgir ali
Adão e Eva. Herdeiro do milenarismo do padre Antonio Vieira, defendia com entusiasmo a
tese de que o Quinto Império haveria de se levantar em terras brasileiras, dando início a um
período de mil anos de felicidade, ao longo dos quais o Brasil se transformaria no centro do
mundo. (Romeiro, 2001, p. 14)
Desta feita, a situação era outra, e o ano fatídico de 1666 já ia longe. Além disso, havia
indicações de que Henequim conspirava contra o rei d. João V e que havia tentado negociar
com os espanhóis, em junho de 1740, um título de conde em troca de informações sobre as
minas de ouro e diamantes que havia descoberto. Esse período que antecedeu o tratado de
Madri, em 1750, que alterou o limite do tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal, foi
174
um período tenso nas relações entre os dois países e mostra a perspicácia da proposta de
Henequim (Romeiro, 2001, p. 25-26). Depois de um longo processo por heresia, Pedro de
Rates Henequim saiu em auto de fé em 21 de junho de 1744, quando foi entregue ao poder
real para ser executado (Gomes, 1997; Romeiro, 2001). Os tempos eram outros e a tolerância
do Santo Ofício e a do rei para com o milenarismo eram mínimas.
O milenarismo, assim como as utopias, têm oferecido ao longo do tempo uma grande
contribuição, nem sempre reconhecida, em estabelecer um contraponto com a posição
pessimista que teve origem no discurso de S. Agostinho que condena o homem a priori,
devido a uma culpa ou a uma maldição inicial, a viver num “vale de lágrimas” e sofrimento.
Não estamos falando do oposto ao pessimismo, o otimismo, mas sim da esperança que move
o homem.
Na perspectiva milenarista e das utopias existe um reino de felicidade e fraternidade
que o homem pode alcançar ou construir e o território desse reino é um paraíso na Terra.
O paraíso terrestre para Simão de Vasconcellos era o território ampliado da colônia do
Brasil, como resultado de uma conquista e que ele expressou no seu discurso milenarista, com
ênfase barroca, como A construção do Paraíso.
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VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA,
Laura de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. (História da vida privada
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______. Censura literária e inventividade dos leitores no Brasil colonial. In:
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas: história da censura no Brasil.
São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado/FAPESP, 2002. 614p. Parte II: Silêncio
perverso, p. 45- 89.
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. La Compagnie de Jésus et l’institution de
l’esclavage au Brésil: les justifications d’ordre historique, théologique et juridique,et leur
intégration par une mémoire historique (XVIe-XVIIe siècles). Tese de Doutorado, 1998.
Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/teses/tese-zeron/,
acessada em: 21/11/2003.
185
9. Anexos
9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.1.1. Parágrafos censurados - Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso.
6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 363-365.
9.1.2. Parágrafos censurados - Fonte: VASCONCELOS, Simão. Notícias curiosas e
necessárias das cousas do Brasil. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP, 2001. p. 161-164.
9.2. Dedicatória - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.3. Protesto do autor - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.4. Aprovações da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.5. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668) – Edição diplomática em
CD-ROM.
186
9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.1.1. Parágrafos censurados90:
105. Muitos Autores graves, antigos e modernos, tiverão para sy que plantou Deos nosso Senhor o
Paraizo ca da terra para a parte da linha Equinocial meio da Zona torrida, debaixo della, ou junto a
ella, ou della para o sul, que tudo tem a mesma difficuldade, e tudo vem a ser em favor de nosso
intento. Aratosthenes, Polybio, Ptolomeu, Avicena e não poucos Theologos de que fazem menção
por mayor São Thomas na primeira parte quest. 102 art. 2 e o autor do curso Comimbricense no
livro 2 do seo Capítulo 14 quest. 1. art. 3, tiverão para sy que debaixo da Equinocial meio da Zona
torrida creara Deos nosso Senhor o Paraizo terrestre por ser esta a parte da terra mais temperada,
amena e deleitoza de todo o Universo. Santo Thomas na 1 part. quest. 102 art. 2 ad quert. da esta
openião por provavel com estas palavras: "Quid quid de hoc sit. credendum est Paradysum in
temperatissimo Loco esse constitutum vel sub Equinoctiali, vel alibi". Que o Paraiso terreal se ha
de crer que foi situado em lugar temperadissimo ou debaixo da Equinoçial ou em outra parte. E
esta probabilidade de S. Thomas mostra seguir o Padre Soares no seu trat. de opere sex dierum
lib. 3. Cap. 6 num. 36.
106. S. Boaventura 2 dist. 17 dub. 3 affirma claramente que situou Deos o Paraiso junto à
Equinocial: "Quia secus Equinoctia (diz elle) est ibi magna temperies temporis": porque
junto à Equinoçial ha grande temperança dos tempos. Durandos que o mesmo pareçer pela
mesma razão ibi quest. 3 num. 8. E em favor deste pareçer dis o padre Soares pouco ha
çitado. Podemos acrescentar, que aquelle lugar na Equinoçial he temperado, de copias de
aguas, e frequente de ventos que purificão os ares
porque tem a experiencia mostrado que as regioens que estão debaixo, da Zona torrida, tidas dos
antigos por inhabitaveis, são temperadas e se habitão com grande comodidade dos homens.
107. S. Thomas na 2.2 quest. 164 art. 2 ad quint. tem para sy que situou Deos este Jardim
ameno da Zona torrida para sul de tal maneira que o caminho para elle vem a ser a mesma
Zona torrida que com seu demaziado calor (como suppoem segundo Aristoteles lib 2 dos
Meteoros) impede o passo e fas o Paraizo occulto, e inaccessivel aos mortaes, servindo em
lugar da espada de fogo do Anjo que prohibia este caminho. Assi entende as palavras do dito
Sancto Soares no lugar ja citado num. 36. Declarase o Sto. mais na quaest. citada art. 1
dizendo que aquelle lugar de deleites está separado da terra em que elle então habitava (que
era Italia) com impedimento de montes e mares, ou de alguma ardentissima região, que não se
pode habitar; e a esta ultima condição se inclina mais. Esta sentença de S. Thomas segue
também Scoto na 2. dist. 17 quaest 2. E Luis Vives nos Schol. sobre S. August. de Civitate
Dei, lib. 13. Cap. 21 (Concorda neste parecer S. Efrem referido por Cornel. Alapide no Cap. 2
do Gen. Vers 8, parag 4, onde dis que toda a terra em que então habitava era cingida do
Oceano; e que alem deste Oceano, em outra terra que era de outro mundo estava o paraiso.
Com que outras palavras podia declarar o Novo Mundo da America. E mais claramente dizem
que foi situado na America este Paraiso alguns Auctores referidos pello mesmo Padre Cornel.
citado Cap. 2, vers. 8, parag. 5 supposto que lhe não quis particularizar os nomes.
108. Ha alem disso conjecturas por zonas porque os ditos Padres concordão que he o lugar do
Paraiso temperadissimo, amenissimo e sempre igual. Todos os lugares annexos do antigo
mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elisios, Hortos pensiles, Ilha de Atlante
90
Fonte: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 363-365.
187
etc. podem ceder a muitos da America: ou seja debaixo da linha Equinocial, ou junto a ella,
ou della para o sul, como se deixa ver do que temos tratado em todo este Livro, e no
antecedente.
109. Em confirmação de tudo o ditto em ultimo lugar se prepondera a conjectura que se
segue. Porque aquella parte do Ceo mais perfeito da Zona torrida, a que chamamos linha
Equinocial he aquella que tem a seu cargo o governo do mundo universo: he regra do
primeiro movel e curso admiravel dos mais orbes, de que pende o ser da natureza sublunar: he
medida do tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites, termo dos pontos
da Ethyoptica, repartidora das partes da Esphera. Pois se por todas estas excellencias a linha
Equinocial he a parte mais nobre do Ceo; a que lhe corresponde na terra, porque não ha de ser
a melhor? E por conseguinte a nata do mundo, porto de deleites e Paraiso terreal?
110. A probabilidade desta openião deixo ao juizo dos que a tem: a mim me basta que della se
colhe meu primeiro intento que he tão grande a temperança do clima destas partes que
chegarão tão graves Autores a plantar nellas o Paraiso. Nem diga alguem que a linha
Equinocial e zona torrida não corresponde somente á America, mas também á Africa e á Azia:
logo, ainda que concedamos que o Levante está para a parte da linha, e zona torrida, não
somos forçados a dizer que está na America, porque pode estar na Africa ou Azia. E na
verdade muitos Santos Padres disserão que fora plantado o Paraiso para o Oriente: que
inclinase a isso S. Boaventura assima citado. Nada faz contra este argomento, porque a linha
Equinoçial, depois de cortar a America de meio á meio (donde começa o Brasil) corta so hua
ponta da Africa junto ao cabo da barca terra dos povos chamados Baramás, principio do
Congo e vai sahir a enseada, que chamão Barbará do mar da India principio das terras de
Melinde. E a Azia corta por meio das Ilhas Samatra, ou Tapobrana, Borneo, Cenebes. Malacas e outras muitas, que por ali demorão; como se pode ver nas cartas Geographicas,
que arrumão as terras do mundo. E em nenhuma destas parte da Africa, ou Azia assignadas,
ou junto a ellas, ou dellas para o Sul, sabemos que esteja o Paraiso terreal nem vemos
Autores, que alli o puzessem, nem Deos para elle escolheria partes tão fora das condições
daquelle Jardim de deleites. E supposto que alguns Autores se achem, que quizerão
ennobrecer a Ilha Tapobrana com este dom do Autor da natureza, he com mui pouco
fundamento, sendo couza sabida a improporção de seu clima, malsão e infesto á saude dos
homens. Como testefica o Pe. Lucena na vida de São Francisco Xavier lib. 3, Cap. 10, e dito
se deixa ver, que o que seguir que o Paraiso está para o norte da Equinocial, averiguando que
não está na parte que responde a Africa ou Azia, he força que diga que está na America: Está
em hua das tres partes: não na da Africa, ou Azia, logo na da America.
111. O argomento dos Santos Padres que dizem que está para a parte do Oriente, vejão os
curiosos em Soares allegado naquelle Cap. 6. num. 34. e ahi acharão que não convence: como
nem tambem o argomento, que alguns trazem ao mesmo intento, dos quatro Ryos do Paraiso. Não
posso de tudo deixar de explicar esta difficuldade com mais algum vagar, por ser o Achilles da
contraria parte. Vemos que diz a sagrada escritura que sahião da fonte daquelle Horto de deleites
quatro Rios, que regavão a terra: estes sabemos que nascem e correm hoje pelas terras que ficão
ao Oriente: logo naquellas, e não nas da America está o Paraiso. Parece esta grande força, porem
vejase o Padre Soares no Livro e Capitulo citado assima, onde dis que este argumento não tem
efficacia algua para provar a vezinhança do Paraiso e mostra assi porque os lugares onde brotão
estes Ryos são hoje sabidos, e trilhados dos homens. O Nillo nos montes da Lua para a parte do
Cabo da Boa Esperança, ou no Lago onde também nasce o Zaire junto a Congo, e vai regando as
188
terras Ethyopicas do Preste João e desembocar no Egipto por sette bocas no mar mediterraneo. O
Ganges no monte Caucaso, e vai regando as terras da India. O Tygris, e Euphrates nos montes da
Armenia, e regão as terras da Mesopotamia, Assyria e Armenia. E subindo os homens por todos
estes Ryos até ao lugar onde brotão nenhum indicio se tem achado do Paraiso Terreal. Donde
dizemos, com S. Thomas, S. Agostinho, Ruperto, Theodureto e o Padre Soares, que aquellas não
são as primeiras cabeças, donde tem sua primeira origem estes Ryos, senão que nascem primeiro
da fonte do Paraiso e depois se escondem por baixo da terra, com longo curso vão romper os
lugares ja ditos, que podem ser sitios distantissimos do Paraiso, e tudo por concelho divino,
porque seja occulto. Alem do que se os sitios donde emanão estes Ryos tão differentes entre sy
que entre o do Tygris, e do Euphrates, e o do Ganges, e Nilo ha distancia de mais de setenta graos,
que fazem melhor de quatro mil e trezentas milhas segundo escreve Ptolomeo, assy como não he
de crer que todo este grande espaço (que comprehende as regioens de Babylonia, Armenia,
Mesopotamia, Assyria, India, Persia, e muitas outras) fosse Paraiso assy tambem não se tira
forçoso argomento que o Paraiso ficasse para o Oriente, porque podião aquelles Ryos ter seu
nascimento occulto em que parte mui diversa. E esta podia ser a America; e com menos distancia
daquellas fontes do que ellas tem entre si. E por aqui temos concluído com os dous livros
promettidos das noticias antecedentes curiosas, e necessarias das cousas do Brasil.
189
9.1. Parágrafos censurados da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
9.1.2. Parágrafos censurados91
105. Muitos autores graves, antigos e modernos, tiveram para si
que plantou Deus nosso Senhor o paraíso cá da terra para a parte da
linha equinocial meio da zona tórrida, debaixo dela, ou junto a ela,
ou dela para o sul, que tudo tem a mesma dificuldade, e tudo vem a
ser em favor de nosso intento. Eratostenes, Políbio, Ptolomeu,
Avicena e não poucos teólogos de que fazem menção por maior S.
Tomás na primeira parte quest. 102 art. 2 e o autor do curso
conimbricense no livro 2 do seu capítulo 14 quest. 1. art. 3, tiveram
para si que debaixo da equinocial meio da zona tórrida criara Deus
nosso Senhor o paraíso terrestre por ser esta a parte da terra mais
temperada, amena e deleitosa de todo o Universo. Santo Tomás na
1 part. quest. 102 art. 2 ad quart. dá esta opinião por provável com
estas palavras: "Quid quid de hoc sit. credendum est paradisum in
temperatissimo loco esse constitutum vel sub equinoctionali, vel
alibi". Que o paraíso terreal se há-de crer que foi situado em lugar
temperadíssimo ou debaixo da equinocial ou em outra parte. E esta
probabilidade de S. Tomás mostra seguir o padre Soares no seu trat.
de opere sex dierum lib. 3. Cap. 6 num. 36.
106. S. Boaventura 2 dist. 17 dub. 3 afirma claramente que
situou Deus o paraíso junto à equinocial: "Quia secus equinoctia
(diz ele) est ibi magna temperies temporis"; porque junto à
equinocial há grande temperança dos tempos. Durando segue o
mesmo parecer pela mesma razão ibi quest. 3 num. 8 e em favor
deste parecer diz o padre Soares pouco há citado. Podemos
acrescentar, que aquele lugar da equinocial é temperado, de
cópias de águas, e frequência de ventos que purificam os ares
porque tem a experiência mostrado que as regiões que estão
debaixo da zona tórrida, tidas dos antigos por inhabitáveis, são
temperadas e se habitam com grande comodidade dos homens. //
107. S. Tomás na 2.2 quest. 164 art. 2 ad quint tem para si que
situou Deus este jardim ameno da zona tórrida para o sul de tal
maneira que o caminho para ele vem a ser a mesma zona tórrida
que com seu demasiado calor (como supõem segundo
Aristóteles lib. 2 dos Meteoros) impede o passo e faz o paraíso
oculto, e inacessível aos mortais, servindo em lugar da espada
de fogo do anjo que proibia este caminho. Assi entende as
palavras <do dito> Santo Soares no lugar já citado num. 36.
Declara se o Santo mais na quest. citada art. 1 dizendo que
aquele lugar de deleites está separado da terra em que ele então
91
Muitos autores põem o
paraíso terrestre para a parte
da linha equinocial.
Opinião de S. Boaventura,
S. Boaventura in 2 dist. 17
dub. 3.
Opinião de S. Tomás.
Fonte: VASCONCELOS, Simão. Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – CNCDP, 2001. p. 161-164.
190
habitava (que era Itália) com impedimento de montes ou mares,
ou de alguma ardentíssima região, que não se pode habitar; e a
esta última condição se inclina mais. Esta sentença de S. Tomás
segue também Scoto na 2. dist. 17 quest 2. E Luis Vives nos
Schol. sobre S. August. De Civitate Dei, lib. 13. Cap. 21
concorda neste parecer S. Efrem referido por Cornel. Alapide no
cap. 2 do Gen. vers. 8, parag. 4, onde diz que toda a terra em que
ele então habitava era cingida do Oceano; e que além deste
Oceano, em outra terra que era de outro mundo estava o paraíso.
Com que outras palavras podia declarar o Novo Mundo da
América. E mais claramente dizem que foi situado na América
este paraíso alguns autores referidos pelo mesmo padre Cornel,
citado sup. cap. 2, vers. 8, parag. 5 suposto que lhe não quiz
particularizar os nomes.
108. Há além disso conjecturas forçosas porque os ditos padres
concordam que é o lugar do paraíso temperadíssimo,
ameníssimo e sempre igual. Todos os lugares amenos do antigo
mundo, ou verdadeiros ou ainda fabulosos de Campos Elísios,
hortus pensiles, ilha de Atlanta etc. podem ceder a muitos da
América; ou seja debaixo da linha equinocial, ou junto a ela, ou
dela para o sul, como se deixa ver do que temos tratado em todo
este livro, e no antecedente.
109. Em confirmação de tudo o dito em último lugar, // se
prepondere a conjectura que se segue. Porque aquela parte do
Céu meio perfeito da zona tórrida, a que chamamos linha
equinocial é aquela que tem a seu cargo o governo do mundo
universo; é regra do primeiro movel e curso admirável dos mais
orbes, de que pende o ser da natureza sublunar; é medida do
tempo, da diversidade do Zodíaco, igualdade dos dias e noites,
termo dos pontos da eclíptica, repartidora das partes da esfera.
Pois se por todas estas excelências a linha equinocial é a parte
mais nobre do Céu; a que lhe corresponde na terra, porque não
há de ser a melhor? E por conseguinte a nata do mundo, horto de
deleites e paraíso terreal.
110. A probabilidade desta opinião debaixo digo deixo ao juízo
dos que a lerem: a mim me basta que dela se colhe meu
principal intento que é tão grande a temperança do clima destas
partes que chegaram tão graves doutores a plantar nelas o
paraíso. Nem diga alguém que a linha equinocial e zona tórrida
não corresponde somente à América, mas também à África e à
Ásia: logo, ainda que concedamos que o paraíso está para a
parte da linha, e zona tórrida, não somos forçados a dizer que
Conjectura
tirada
temperamento.
do
Outra conjectura que a linha
equinocial
governa
[o
mundo].
Argumento em contrário.
Responde se e confirme se
o intento.
191
está na América, pois pode estar na África ou Ásia. E na
verdade muitos Santos Padres disseram que fora plantado o
paraíso para o oriente: e inclina se a isso S. Boaventura acima
citado. Nada faz contra este argumento, porque a linha
equinocial, depois de cortar a América de meio a meio (donde
começa o Brasil) corta só uma ponta de África junto ao cabo da
barca terra dos povos chamados Baramás, princípio do Congo e
vai sair à enseada, que chamam Barbarica do mar da Índia
princípio das terras de Melinde. E a Ásia corta por meio das
ilhas de Samatra, ou Taprobana, Bornéu, Cenebes (sic). Malucas
e outras muitas, que por ali demoram; como se pode ver nas
cartas geográficas, que arrumam as terras do mundo. E em
nenhuma destas partes da África, ou Ásia assinadas, ou junto a
elas, ou delas para o sul, sabemos que esteja o paraíso terreal //
nem vemos autores, que ali o pusessem, nem Deus para ele
escolheria partes tão fora das condições daquele jardim de
deleites. E suposto que alguns autores se achem, que quiseram
enobrecer a ilha Taprobana com este dom do autor da natureza,
é com mui pouco fundamento, sendo cousa sabida a
improporção de seu clima, malsão e infesto à saúde dos homens.
Como testifica o padre Lucena na vida de São Francisco Xavier
lib. 3, cap. 10, e de todo o dito se deixa ver, que o que se seguir
que o paraíso está para a parte da equinocial, averiguando que
não está na parte que responde a África ou a Ásia, é força que
diga que está na América com este argumento está em uma das
três partes; não na d’África, ou Ásia, logo na d’América.
111. O argumento dos Santos Padres que dizem que está para a
parte do oriente, vejam os curiosos em Soares alegado naquele
cap. 6. num. 34, e aí acharão que não convence; como nem
também o argumento, que alguns trazem ao mesmo intento, dos
quatro rios do paraíso. Não posso contudo deixar de explicar
esta dificuldade com mais algum vagar, por ser o Aquiles da
contrária parte. Vemos que diz a sagrada escritura que saíam da
fonte daquele horto de deleites quatro rios, que regavam a terra;
estes sabemos que nascem e correm hoje pelas terras que ficam
ao oriente; logo naquelas, e não nas da América está o paraíso.
Parece esta grande força, porém veja se o padre Soares no livro
e capítulo citado acima, onde diz que este argumento não tem
eficácia alguma para provar a vizinhança do paraíso e mostra se
assi porque os lugares onde brotam estes rios são hoje sabidos, e
trilhados dos homens. O Nilo nos montes da Lua para a parte do
Cabo da Boa Esperança, ou no lago onde também nasce o Zaire
junto a Congo, e vai regando // as terras etiópicas do
Responde se a outra parte
do argumento acima posto
Bento Pereira lib. 3 in gen.
q. ultima Soares de opere
sex dierum lib. 3 cap. 6
Cornel [a cap.] ingen. lib. 3
cap. 2.
Responde se à dificuldade
maior dos 4 rios do paraíso
S. Tomás quest. 102 S.
Augusto 8 in genes ad lit. c.
7 Ruperto Teodoreto Soares
de opere sex dierum lib. 3
cap. 6 n. 16 e 32 vide [etc
Pereir.] script [fol.] 382 e
333 vide Cornel [...] cap.
[...8] parag. uerum.
192
Preste João e desembocar no Egipto por sete bocas no mar
Mediterrâneo. O Ganges no monte Cáucaso, e vai regando as
terras da Índia. O Tigre, e Eufrates nos montes da Arménia, e
regam as terras de Mesopotâmia, Assíria e Arménia. E subindo
os homens por todos estes rios até ao lugar onde brotam nenhum
indício se tem achado do paraíso terreal. Donde dizemos, com
Santo Tomás, S. Agostinho, Ruperto, Teodoreto e o padre
Soares, que aquelas não são as primeiras cabeças, donde tem sua
primeira origem estes rios, senão que nascem primeiro da fonte
do paraíso e depois se escondem por baixo da terra, e com longo
curso vão romper os lugares já ditos, que podem ser sítios
distantíssimos do paraíso, e tudo por conselho divino, porque
seja oculto. Além de que sendo os sítios donde emanam estes
rios tão diferentes entre si que entre o do Tigre, e do Eufrates, e
o do Ganges, e Nilo há distância de mais de setenta graus, que
fazem melhor de quatro mil e trezentas milhas segundo escreve
Ptolomeu, assi como não é de crer que todo este grande espaço
(que compreende as regiões de Babilónia, Arménia,
Mesopotâmia, Assíria, [Media], Pérsia, e muitas outras) fosse
paraíso assi também não se tira forçoso argumento que o paraíso
ficasse para o oriente, porque podiam aqueles rios ter seu
nascimento oculto em parte mui diversa. E esta podia ser a
América; e com menos distância daquelas fontes do que elas
têm entre si. E por aqui temos concluído com os dous livros
prometidos das notícias antecedentes curiosas, e necessárias das
cousas do Brasil.
9.2. Dedicatória - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
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À MAGESTADE
DO MVITO ALTO, E PODEROSO REY DE PORTVGAL
D. AFFONSO UJ.
NOSSO SENHOR
A Chronica de hum Nouo mundo por tantos
annos esperada, em nenhum tẽpo podia sair a luz
com mais felicidade, que no em que sae a reynar
hum Principe esperado pera tãtas venturas. Este he V. Mag. ò poderoso Rey; por que sendo parte
essencial da decimasexta gèração do primeiro Rey D. Affonso
Henriques, tão esperada dos Portugueses, conseguintemente
em V. Mag. hão de ter cumprimento os Oraculos de suas esperanças, & haõ de apparecer em o mundo as felicidades dos tẽpos dourados, que qual outro Cesar Augusto, aguardaõ por V.
Mag. Eu não pretendo desenrolar aqui estas boas venturas,
que pedẽ lõga escrittura, assũpto grãde pera dedicatoria: supponhoas sòmẽte, offerecido cõtudo a prouallas, se mãdado me fos
se. E fique desde logo a summa. Primeira. Que he V. Mag. parte
essencial da decimasexta géração do primeiro Rey Portugues
D. Affonso Henriques. Segunda. Que a esta estão promettidas
as felicidades que esperamos os Portugueses, referidas por
Chisto, de hum felicissimo Imperio, quãdo disse âquelle Principe magnanimo: Volo in te, & in semine tuo imperium
mihi stabilire: com as proezas, & victorias da sogeição da
gente Ottomana, Iudeos, & Hereges, & reducçaõ de todas
estas seitas a hum sò Pastor, & Igreja. Terceira. Que nem pera este intento taõ desejado, deuem viuer nos coraçoẽs dos Portugueses esperanças mortas, ou pensamentos de desenterrar
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defunctos Principes, decimassextas gèraçoẽs acabadas: Non
entis, & non apparentis eadem est legis dispositio. A géração decimasexta por linha recta, que alguns esperauaõ, não
apparece. A parte primeira da decimasexta gèração trãsuersal Portuguesa, que já reynou, não he necessaria. Gozou esta a
parte primeira destas felicidades; a segunda, ha de gozar a outra parte da mesma gèração: Non sunt facienda miracula
fine necessitate. Se sem milagres temos viua a decimasexta
gêração, se reyna hoje sobre nòs claramente, que necessidade
ha de portentos nouos? Se Filho, & Pay fazem a mesma gêraçaõ, se saõ duas partes essenciaes ( qual alma & corpo pera fazer hum homem) Pay generante, & Filho gêrado, & a parte
primeira desta gêração gozou as felicidades primeiras; a segunda parte porque naõ gozará as segundas?
A este pois; a este Principe venturoso, que claramente reyna
como parte da decimasexta gèração, & com esperanças de felicidades, quaes agora conuem esperar, não relatar; a este dedico minha obra, intitulada, Chronica da Companhia de Iesus
do Estado do Brasil. Votis assuesce vocari. Acostumaiuos, ó
grande Principe (qual outro nouo Emperador Cesar Augusto, disse o Poeta Mantuano;) acostumaiuos a ser inuocado, com
offertas dignas de Vossa Magestade. Aceitai o obsequio de
hum vassallo, que com igual verdade escreue o que foi, & propoem o que espera.
Aceitai mais por outra via, que não menos obriga: & he por
ser V. Mag. sucessor dos Augustos, & sempre memoraueis Se
nhores Reys D. Ioaõ Terceiro, & Quarto: aquelle, Pay da
Companhia: este, vosso, & nosso. Aquelle, Pay da Cõpanhia, porque foi quasi confundador da Companhia uniuersal, fundador da de Portugal, & fundador da do Brasil. Que pedra
naõ moueo na fundaçaõ & confirmaçaõ desta Religiaõ amada
sua? Que meios naõ tomou, de Legados seus, de Principes estranhos, de rogatiuas affectuosas ao Summo Pontifice? Que despesas naõ fez da real fazenda? Que aduertencias? Que conse-
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lhos naõ teue pera sair com seu intento? Chegou a dizer nosso
Patriarcha S. Ignacio, que de todos os Principes Christaõs, a
D. Ioão o Terceiro tinha por bemfeitor principal da Companhia. E talvez subindo mais de ponto, disse, que era a Companhia mais delRey D. Ioão o Terceiro, que sua. Em seu Reyno,
com que honras não recebeo este grande Principe os filhos de
Ignacio? Que sinaes de amor naõ mostrou? Dizemno as Historias deste Monarcha, & mais por extẽso as Chronicas de nossa Companhia. Fallem as obras pregoeiras eternas, as fundaçoẽs das grandes fabricas, que como Pyramidas de seu bem
querer leuantou da terra ao Ceo: da magnifica Casa professa de S. Roque em Lisboa: do insigne Collegio de Coimbra primeiro de toda a Companhia, grandioso em rendas, illustrado
com todas as Escholas menores daquella celebre Vniuersidade. Estas sòs duas obras fallem por todas: as do Reyno de Portugal, India, & Brasil, não he meu intento recontallas todas,
agradecellas sy. E principalmẽte testifique esta verdade a fun
dação notauel do Brasil (sogeito de toda nossa Chronica) orde
nada por este Serenissimo Principe, por meio do venerauel Padre Manoel da Nobrega, com os mesmos fauores, & despesas,
com que obrâra a da India Oriental, por meio do incansauel
obreiro S. Francisco Xauier.
Seguio os intentos deste Rey amoroso a boa memoria delRey
D. Ioão o Quarto, Pay de V. Magestade, & Pay tãbem de nossa
Companhia. Sabido he o zelo prudente, com que dispoz a leua espiritual de trinta & tantos sogeitos da Companhia de Iesus de diuersas Prouincias, pera a conuersaõ do Estado do Ma
ranhão, de tão immenso numero de almas, & naçoẽs infieis,
preuindo esta de fauores igualmẽte, & despesas reaes. As mesmas foi seruido fazer com os Missionarios do Brasil. Doou cõ
larga mão os Collegios de Goa, & Cochim de grande summa
de quasi vinte & quatro mil cruzados de renda, que os VisoReys, & seu Senado lhes tinhaõ tirado: à Prouincia do Iapão
restituìo dous mil cruzados annuaes: a da China dotou com mil
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& quinhentos cruzados. Ao Collegio de Angola com dous mil
por tempo de dez annos. Acrescẽtou os estipendios dos Missionarios dos Indios, sobretodos os Reys antepassados. No Collegio de Eluas instituîo Cadeira de Mathematica (exercicio
dos que alli militaõ) com estipendio annual de duzentos cruzados, mandando juntamente fabricar a Aula com despesa
real. Continuou com o edificio do Templo da Casa professa da
Companhia de Iesu em Villaviçosa: com consignação pera esta
obra todos os annos de mil & quinhentos cruzados. E aliuiou
a pobreza das mais Casas professas com esmolas de porte. Por to
das as rezoẽs referidas, justo era que se dedicasse a V. Mag
a Chronica primeira da Comapnhia de Iesu do Brasil: & junto com ella os animos de todos seus Religiosos, agradecidos,
prostrados, & como admirados jà de agora das idades douradas, que esperão gozar.
Humilde vassallo, & seruo
de V. Magestade.
Simaõ de Vasconcellos.
9.3. Protesto do autor - Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
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PROTESTO DO AUTOR
Proibiu nosso santissimo padre Urbano VIII por um
decreto seu passado em 15 de março de 1632. & confirmado em 5 de julho de 1634 imprimirem se livros de varoens celebres em santidade, e fama de martirio, que contivessem feitos milagrosos, revelações ou outros quaisquer
benefícios alcançados de Deus, sem revista, e aprovação do
Ordinário: com tudo, como o mesmo santissimo padre em 5
de junho de 1632 se explicasse no sentido seguinte, que não
se admitissem Elogios de Santos ou Beato absolutamente, que
caem sobre a pessoa; ainda que cõcedia poderemse admitir os
que caem sobre os costumes, e opinião, cõprotestação no principio, que os taes Elogios não tenhão autoridade da Igreja Romana, senão somente a fé que lhes dá o Autor. O que supposto, protesto que tudo o que trato nesta minha Obra, entendo,
e quero que se entenda, na forma dos sobreditos Decretos, & sua
ultima explicação. Lisboa 7 de setembro de 1662.
Simão de Vasconcellos.
9.4. Aprovações da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (1663).
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APROVAÇOENS da RELIGIÃO
Li com a applicação deuida esta Primeira Parte da Chronica da Companhia de
Iesu desta Prouincia do Brasil, composta pello Padre Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, & Prouincia: não achei nada que reuer pera a censura, achei muito que ver pera o applauso: porque nesta obra se admira facil, o que
em todas he difficultoso: breuidade sem confusaõ, curiosidade sem hyperbo
les, grauidade sem artificio, suauidade sem affectação, agudezas escholasticas sẽ fal
tar á synceridade historica. Fazem prologo aos illustres feitos dos filhos de Ignacio algũas noticias deste Nouo mundo: que não era bem se relatassem acçoẽs de
tanta gloria, sem q92 se propusesse o theatro dellas. Em hũa & outra cousa procede o
Autor, tão ajustado com a verdade, que tendo a penna sua (& bastaua pera merecer
a maior fe) naõ quiz com tudo que fosse seu o credito. Tudo o que escreue, ou saõ
experiẽcias repetidas, ou tradiçoẽs cõstãtes, ou escrituras abonadas. Aqui se achaõ
vnidas exortação, & narratiua, porq93 historiãdo de proposito, inflamma como de
pẽsado. Refere o que obráraõ os mortos, aduirtindo o que haõ de obrar aos viuos.
Não serue sua leitura sómente pera occupar os olhos, se naõ pera despertar os animos. Com a lição de outros liuros enganase, & quando muito não se perde, o tempo: com a liçaõ deste aproueitase. Quẽ o lèr, entenderà saõ estas palauras mais ditame de seu merecimento, que diuida de meu affecto. Finalmente na obra toda
não ha cousa que offenda, muyto sy que edifique, em beneficio dos fieis, seruiço
de Deos, gloria da Companhia, & lustre desta nossa Prouincia. No Collegio da
Bahia 18. de Mayo de 661.
Antonio de Sá
Por ordem do Padre Prouincial Balthasar de Sequeira vi o Primeiro Tomo
da Chronica da Companhia do Estado do Brasil, composta pello Padre Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, Prouincial que foi nesta Prouincia: não acho nella que notar, & fico que acharáõ muitos que aprender em tão
santa leitura, & muito que admirar em tanta variedade de cousas deste Nouo mun
do. Nē cuido causarà tedio do que a ler; porque o estylo he doce, & sem affectação; & sobre tudo certo, verdadeiro, & conforme às experiẽcias, tradições, & apõtamentos fidedignos do Veneravel Padre Ioseph Anchieta, & outros Varoens,
pays primeiros desta Prouincia. Pello que he muito digna de que se imprima esta obra a gloria de Deos, & da Companhia. Bahia 20. de Mayo de 1661.
Jacinto de Carvalhaes.
Por mandado do Padre Prouincial Balthasar de Sequeira li, & ouui ler cõ o
deuido gosto, & particular attenção, o liuro da Chronica da Companhia de
Iesu desta Prouincia do Brasil, composta, & ordenada pello Padre Simão de
Vasconcellos da mesma Companhia, & Prouincia: pareceme ser obra de grande
edificação, proueito espiritual, & consolação pera toda a Companhia; por se referirẽ nella cousas mais admiraueis, q94 imitaueis, & de grande confusão pera alguns dos
que viuemos, & vemos quam longe estamos daquelle primeiro, & feruoroso espi-
Esta letra (q) está acentuada com um til no original.
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rito, com que se fu ndou esta Prouincia do Brasil. O estylo da obra he graue, & pou
co affectado, como deue ser a historia. Contèm sucessos grandes, & noticias muito
curiosas deste Nouo mundo; & tudo mui conforme âs tradiçoẽs, que ha neste Estado. Ao Autor deue grandes obrigações o Estado, & a nossa Prouincia do Brasil, pella muita diligencia, & certeza com que escreue do Brasil, & da Prouincia; & pellos
graues termos, com que tão doutamente entre a historia trata algũas questoẽs curiosas. Pello que me parece mui digna de se estampar pera edificação de toda a
Companhia, & quasi reprehensaõ dos Filhos desta Prouincia. Bahia 17. de Abril
de 1661.
João Pereira
JOANNES PAVLVS OLIVA SOCIETATIS JESV
Vicarius Generalis.
Cvm Historiam Brasiliensem nostra Societatis Lusitano idiomate a P. Simone de
Vasconcellos ejusdem Societatis Sacerdote conscriptam, aliquot nostri Theologi recognoverint, & in lucem edi posse probauerint; potestatem facimus, ut typis mandetur, si it a ijs, adquospectat, videbitur; cujus rei gratia hes litteras manu nostra subscriptas,
sigilloq; nostro munitas damus. Rome 4. Iulij 1662.
Joan. Paulus Oliua
LICENÇAS DO S. OFFICIO
Vi com particular gosto, attenção, & curiosidade a Primeira Parte da Chronica da Companhia de Iesu do Estado do Brasil, composta com estylo dou
to, grave, claro, apraziuel, pello muito Reuerendo Padre Simão de Vasconcellos Provincial que foi daquella Prouincia. Trata dos primeiros Conquistadores, & Descobridores do Nouo mundo, & mais em particular do Estado do Brasil,
de sua grandeza, & cousas mais notaueis, que saõ muitas, & muito pera saber; com
questoens agradaueis, & mui curiosas, em que tem bem que ver, & se entreter os
curiosos antiquarios. Trata tambem dos primeiros Conquistadores espirituaes da
Companhia, que foraõ àquellas partes, dos grandes trabalhos que padecéraõ, &
perigos que passárão na conuersaõ de gentes taõ rudes, barbaras, indomitas, & inhumanas daquellas vastas, agrestes, & incultas regioẽs, & o grande fruito espiritual
que em ellas fizerão, em que tem bem que imitar os que por officio, & voto estão
dedicados a obra tão santa, & tanto do seruiço de Deos. Não tem cousa que encõtre nossa santa Fé, muitas sy de sua exaltação, propagação, & augmento; nenhũa
contra os bons costumes, antes muitos documentos importantissimos pera os introduzir, & desterrar os barbaros, agrestes, & inhumanos daquella gentilidade; &
assi a julgo digna de sair a luz pera maior gloria de Deos, honra, & credito deste nosso Reyno, do qual sairão os primeiros, & saem de contino os obreiros de tão
santa empresa. Cõ tudo, como em discurso da Historia trata o Autor as vidas de
algũs daquelles primeiros Missionarios, & nellas de algũas reuelações, & obras ao
parecer milagrosas, & algũas vezes lhes dá o titulo de Santos, & tambem do martyrio do Padre Ignacio de Azevedo, & seus companheiros, aos quaes nomea mar-
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tyres, contra o que o Breue, & Decreto do Senhor Papa Vrbano VIII. dispoem;
he necessario, primeiro que se lhe dè a licença pera se estampar, fazer o Autor
em o principio da Obra, ou fim della, protestação, & reserua do dito Breue, cõforme sua explicação, como fazem todos os que depois de sua data escreuerão
vidas, & feitos de Varoẽs insignes em virtudes, & santidade. Aduirto tambem,
que falta aqui a licença do seu Padre Prouincial.
Lisboa em o Convento de N. Senhora de Iesus em 15. de Ianeiro de 662.
Fr. Duarte da Conceição,
Leitor jubilado, & Padre da Prouincia.
Obedecendo ao mandado do Santo Tribunal, reuî esta Chronica da sagrada Religião da Companhia de Iesus, particular do nosso Reyno de Portugal no tocante ao descobrimento daquella parte da America que cha
mamos de Brasil, com as noticias do clima, & natural do terreno, & maritimo della;
& mais em particular, dos principios, & progressos com que os Obreiros desta
Religião, enuiados pellos Reys nossos Senhores, forão manifestar àquella Gentilidade a verdadeira crença do Euangelho. Por appendice da obra se offerece
hum Poema do prodigioso Padre Ioseph de Anchieta em louuor da Virgem
Maria Senhora nossa: o qual sendo hum dos principaes executores daquella missaõ, soube poupar espaços para cãtar, entre trabalhos tão extraordinarios, os louuores que se deuião a quem lhe seruia de aliuio nelles.
A sobredita Historia, & o Poema, alem de serem notaueis pellas noticias,
artificio, locuçaõ, & metro; cõtèm taõ deleitosa, proueitosa, & saã doutrina,
que ainda os menos affectos á Religião Christaã, & Fé Romana, se encolheráõ
conuencidos, os mais escrupulosos Historicos, & Geografos se publicaràõ allumiados, & os mais apurados Poetas confessaràõ ficar alongados da suauidade
singela, com que mysterios tão eleuados deuem contarse. Procede tudo tão regulado com os decretos da Catholica Igreja, & resoluçoens dos Summos Pastores della, que não falta mais pera acabar de aferuorar animos zelosos, q95 proporlhes na estãpa este incentiuo de luzeiros Euangelicos, pera que a imitação
sua, como costumão a Religião da Companhia, & outras do nosso Portugal,
despidaõ de si ramas, que vão plantar a mesma Fê, & crença, & dirijão suas acções pellos dictames, & execuçoens de tão bons mestres. Isto he o que sinto
na materia presente. Em N. Senhora do Desterro 13. de Outubro de 1662.
O Doutor Fr. Francisco Brandão.
Vistas as informaçoens, podese imprimir este liuro, cujo titulo he, Chronica
da Companhia de Iesus do Estado do Brasil, Author o Padre Simão de Vasconcellos; & impresso tornarà ao Conselho pera se conferir com o original, & se dar licença pera correr, & sem ella não correrá. Lisboa 17. de Outubro de 1662.
Pacheco. Sousa. Fr. Pedro de Magalhaens
Rocha. Aluaro Soares de Castro. Manoel de Magalhaens de Meneses.
Esta letra (q) está acentuada com um til no original.
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Podese imprimir. Lisboa, trinta de Outubro de 1662.
F. Bispo de Targa.
LICENÇAS DO PAÇO
Esta Chronica da Cõpanhia de Iesus do Estado do Brasil reui jâ por mandado do Sãto Officio, & naquella approuação declarei o que della sentia:
conformandome com o que então disse, posso agora certificar V. Magestade, que he hũa bem trabalhada escritura; & que alem das miudas noticias
daquella parte da America, principio, & progressos de seu descobrimento,
conquista, & conuersaõ, com que esta nação ficará inteirada da estimação que
se deue fazer de parte tão principal de sua Conquista; Vossa Magestade, & os
Senhores Reys seus predecessores estão bem seruidos pello zelo, & cuidado q96
applicáraõ a tão grande empresa; & o mundo todo se admirara com a leitura
de tão notaueis & differentes effeitos Christaõs, militares, & politicos. Em Nossa
Senhora do Desterro 3. de outubro de 1662.
O Doutor Fr. Francisco Brandão
Chronista mór.
Podese imprimir, vistas as licenças do Ordinario, & Santo Officio, & impresso tornará â Mesa pera se taxar, & sem isso não correrá. Lisboa 7. de
Nouembro de 662.
Moura P. Sousa. Velho. Gama. Sylva.
Reui esta Chronica do Brasil, & tenho entendido que está conforme cõ
seu original: a qual tinha reuisto, & examinado na primeira reuisaõ, que
se me recomendou desse Santo Tribunal, & na segunda que do Tribunal do Paço se me mandou. E conforme esta informação pôde o Santo Tribunal darlhe licença para a bublicação. Em N. S. do Desterro vltimo de Feuereiro de 1665.
O D. Fr. Francisco Brandão
Chronista mór.
Visto estar conforme com seu original, pôde correr esta Chronica da Cõpanhia de Iesus do Estado do Brasil. Lisboa 3. de Março de 1665.
Pacheco. Sousa. Fr. Pedro de Magalhaẽs.
Rocha. D. Verissimo de Alencastro.
Taxão este liuro em treze tostoẽs em papel, visto o que se allega. Lisboa
9. de Março de 1665.
D. Rodrigo de Meneses P. Monteiro. Sylva.
Magalhaẽs de Menezes. Miranda.
Esta letra (q) está acentuada com um til no original.
9.5. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil (1668) – Edição diplomática em
CD-ROM.
Envelope do CD-ROM
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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais