66º Aniversário Coisas memoráveis António Quadros Índice 4 – “Oito páginas”, de Nuno Francisco. 6 – O dia em que Juscelino mudou a opinião sobre Salazar. Fernando Paulouro Neves. 8 – Espíritos à solta. Texto de António Paulouro. 9 – “A arte não é uma Maçonaria”. Arnaldo Saraiva entrevista Almada Negreiros. 10 – Uma reportagem do outro mundo, de Fernando Vasconcelos. 12 – Uma experiência de prospecção folclórica de Fernando Lopes Graça. 14 – Crónicas da vida simples, de Manuel de Carvalho. 16 – A guerra do 104 e do 65. A primeira crónica de José Saramago. 17 – Pré-aviso para uma carta expresso. Crónica de Joaquim Letria. 18 – Biscoitos do Fundão, de H. Correia Pardal. 20 – O século de Camões. Texto de Eduardo Lourenço. 22 – Contos sem estrutura. A primeira crónica de Carlos Drummond de Andrade. 24 – Um esqueleto na redacção. Crónica de Fernando Paulouro Neves. 26 – Um cavaleiros de esperanças. Artigo de Fernando Namora. A capa é uma pintura do poeta e pintor António Quadros para o número de aniversário do JF, em 1958. Ficha Técnica Director-Geral: Vasco Pinto Leite Director: Fernando Paulouro Neves Coordenador de Redacção: Luís Nave Grafismo: Jornal do Fundão Paginação: Benvinda Martins Jorge Chorão Publicidade Coordenadora: Teresa Godinho Anunciação Salvado, Ana Matias e Luísa Pereira Nina Liberdade, inquietação de sempre Fernando Paulouro Neves Quando se olha para os grossos volumes que arquivam os 66 anos de história do “Jornal do Fundão”, e depois percorremos o tempo das palavras que esses dias consubstanciam, percebemos a importância do jornal como memória e consciência cívica e cultural de uma terra, de uma região, de um país. Há, no seu respirar de palavras, tudo aquilo que define a aventura humana, nas pequenas e grandes coisas, nos momentos exaltantes de glória, nas angústias do quotidiano, nas ousadias do sonho corporizadas em batalhas sem fim. Nas páginas amarelecidas pelo tempo, encontramos um repositório de factos e acontecimentos com dimensão para a micro e a macro história, porque neles está contido o q.b. de expressão colectiva e, também, a dimensão individual da cidadania que, tantas vezes, pela sua natureza exemplar, se projecta sobre a sociedade. Um jornal, este jornal, na diversidade do seu caminhar, é tudo isso. E, no fio temporal que marca a sua história, há, desde o primeiro número, uma inquietação de base que haveria de marcar a sua matriz futura: a cultura e a sua imposição como fenómeno inseparável da libertação do homem. O olhar que hoje lançamos sobre o tempo passado é uma forma de perceber quanto, nesse espaço avulso de palavras e de gestos, está presente o tempo futuro. É uma memória breve de coisas memoráveis, com destaque para a “odisseia” que foi a visita de Juscelino Kubitschek ou a presença de Érico Veríssimo ou a primeira crónica de José Saramago ou de Carlos Drummond de Andrade. Mas também memória de outras presenças assinaláveis, como a entrevista que Almada Negreiros concedeu a Arnaldo Saraiva, os textos de Fernando Lopes Graça, Fernando Vasconcelos, Fernando Namora ou Manuel Carvalho, para citar apenas alguns, que enriqueceram o património desta casa com o seu génio criador. Tudo junto, nesta breve memória de coisas memoráveis – o “Jornal do Fundão” é uma grande antologia – que esperamos faça reencontrar o leitor com o prazer da escrita porque a prosa de jornal, como se verá, é menos efémera do que se diz. Jornal do Fundão Rua Jornal do Fundão, nº4 6231 Fundão Telefone: 275 779350 (geral) 275 779365 (publicidade) 275 779355 (redacção) Fax: 275 779369 (redacção) 275 759171 (publicidade) E-mail: [email protected] [email protected] site: www.jornaldofundao.pt Impressão: Lisgráfica - Impressão e Artes Gráficas Rua Consiglieri Pedroso, nº90, Casal de Sta. Leopoldina, 2730-053 Barcarena - Portugal Tel: (00351) 21 434 54 00 Fax: (00351) 21 436 01 83 Mail: [email protected] Esta revista faz parte integrante da edição do Jornal do Fundão do dia 26 de Janeiro de 2012 e não pode ser vendida separadamente ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 3 O ano de 1946 3 de Janeiro Greves dos lanifícios na Covilhã e na zona da Serra da Estrela. Envolvidos cerca de dez mil trabalhadores com intervenção da GNR. Esta ocorrência é descrita por Ferreira de Castro em “A Lã e a Neve”. 1 Fevereiro Chegam a Lisboa 110 dos detidos no Tarrafal, em virtude da amnistia de Outubro de 1945. Permanecem no campo de Cabo Verde 52 deportados. 23 Fevereiro Discurso de Salazar sobre o acto eleitoral: a liberdade em Portugal não se limita nem se disciplina a si própria. 27 de Abril Criação do MUD Juvenil. Com Mário Soares, Salgado Zenha, Octávio Pato, José Borrego, Maria Fernanda Silva, Júlio Pomar, Mário Sacramento, Rui Grácio, António Abreu, Nuno Fidelino Figueiredo. Participam estudantes e operários. Têm ligações com movimentos católicos, com João Sá da Costa, Fernando Ferreira da Costa, próximos do padre Alves Correia. A comissão central é presa em 1947. 22 de Julho Artigo antisalazarista na “Time”. Publicado artigo violentamente crítico do salazarismo, intitulado “Portugal: até que ponto o melhor é mau?”. O jornalista responsável pelo artigo é expulso de Portugal e proibida a venda da revista por seis anos. 3 de Agosto Governo apresenta pedido de admissão de Portugal à ONU. Veto da URSS. 11 de Outubro Revolta da Mealhada. Revolta organizada por um grupo de oficiais milicianos a partir do Porto. A coluna marcha até à Mealhada onde é detida. Comanda a revolta o tenente Fernando Queiroga, participando, entre outros, Fernando Pacheco de Amorim. O julgamento ocorre em Março de 1947, sendo defensores dos revoltosos Ramada Curto, Vasco da Gama Fernandes, Adelino da Palma Carlos e Abranches Ferrão. 29 de Dezembro Funeral de Abel Salazar, com manifestações contra o regime. Polícia política chega a raptar o corpo, para o desviar do percurso esperado. O professor morreu em Lisboa e foi enterrado no Porto. 4 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Oito páginas Nuno Francisco De súbito, estas folhas escalaram a vertigem do tempo e abriram indelével caminho, o mesmo que ainda hoje pisamos. Tudo começou, lá longe, com oito páginas. Oito. No topo da página, um nome: “Jornal do Fundão”. António Paulouro Júnior iniciava, a 27 de Janeiro de 1946, a aventura de um jornal naquela pequena vila, naquela pequena rua, naquela pequena redacção que, avisava a ficha técnica, era provisória; era logo ali no Largo Dr. Alfredo da Cunha, número 5. E, humilde, nos dirá que “Enquanto se mantiverem certas dificuldades da tipografia este jornal publicar-se-á com quatro ou oito páginas, alternadamente”. Este tinha oito. Oito páginas. Que se multiplicariam por milhares, tantas e tantas páginas as letras cor de carvão em fundo alvo consubstanciadas em milhões de palavras, elas, sim, as fiéis depositárias de aspirações e dores de toda uma região. Tantas noites em branco; tantos sobressaltos. E o jornal fez-se grande. Assim. Era do Fundão, mas já não era só do Fundão. São 66 anos. Começou com estas oito páginas. Custavam 50 centavos. Oito paginas. Ali para o Largo Dr. Alfredo da Cunha. No número 5. O número de telefone era o 72. Apresentou-se naquele dia de Janeiro, no Inverno Érico Veríssimo da Beira. No editorial “Rumo” disse ao que veio. Os porquês são muitos, o texto um marco do jornalismo regional. Fica este trecho, justificativo de quase tudo o que veio depois: “No nosso posto estaremos ao lado dos que trabalham e dos que sofrem, em fraterna compreensão que não é de hoje mas de sempre.” Assina o director António Paulouro Júnior. Prometeu. Cumpriu. Voltemos as páginas. Na página três, outro dos componentes do ADN deste jornal: “A Cultura do Espírito”. Salta-nos ao caminho um poema de António Navarro e um texto de Salvado Sampaio, discorrendo sobre o termo cultura. E, nem de propósito, João Miranda escrevia sobre a “Nova ortografia”. Folheado o tempo ao encontro de uma surpresa: a página cinco também era de cultura, mas da “física”. Faça ginástica! Num jornal praticamente sem fotografias, quatro esmerados desenhados descreviam-nos quatro movimentos precisos para nos mantermos em boa forma. Depois das culturas do espírito e do corpo, a página seis com as notícias de todo o concelho: da Aldeia de Joanes a Valverde. De A a V. O nevão que cobriu a região a 19 de Janeiro fez quase o pleno em todas as freguesias. Só na Fatela causou prejuízos “de 250 contos”. Em Castelo Novo a neve “atingiu a altura de meio metro; há várias árvores destroçadas e a temperatura chegou a 5º negativos”. Satisfeito com o que viu? Quer assinar? É barato. 25 escudos por 52 números ou, se quiser acompanharmonos ao semestre, são 13 escudos. Olhe, já agora no cinema hoje vamos ter o “Vamos Cantar”, com Bebe Daniels, Victor Oliver e Ben Lyon. Garantimos que “é uma engraçada comédia musical”. Isto é hoje. Amanhã, dia 28 de Janeiro de 1946, pode ver “Texas” “um filme para quem aprecie acção e movimento”. Na quinta-feira pode ver “Eram 5 Irmãos”, considerado “o melhor filme estreado em Portugal durante o ano de 1945”. Fechamos com a Beira branca. O nevão. Eis as primeiras fotos deste jornal. Foram de neve, da neve, do nevão. Fotos do Dr. João Nabinho Amaral, António Paulouro Júnior, Fernando Rosel e Carlos S. Ferreira. A acompanhar, um poema de Fernando Vasconcelos. “A Sinfonia Branca”. Era a página oito. A última de oito. A primeira de muitas. O escritor brasileiro Érico Veríssimo esteve no Fundão, a convite do JF, em Maio de 1966, numa intensa jornada cultural com um dos mais brilhantes escritores brasileiros da sua geração. Mais tarde viriam os escritores Odylo Costa Filho e João Cabral de Melo Neto. “Se aos 60 anos anos não pudesse dizer a verdade não valia a pena ter vivido”, disse aquando da sua passagem. A Censura não perdoava estas e outras insurgências de pensamento e a sua passagem foi varrida das páginas do jornal. Mas ficaram os testemunhos impagáveis de quem lidou com ele. O dia em que Juscelino mudou a opinião sobre Salazar Fernando Paulouro Neves 1963 Em 1963, o antigo presidente do Brasil Juscelino Kubitschek visitou a região. Na edição do dia 10 de Janeiro, o JF deu largo destaque à passagem do senador no Fundão, Covilhã, Castelo Branco e Belmonte. Uma jornada memorável que está na história do jornal e da região. Milhares de pessoas ovacionaram JK, que discursou na varanda da sede do jornal, para uma multidão esfusiante de entusiasmo e alegria A visita de Kubitschek de Oliveira ao Fundão (e à região), em Janeiro de 1963, é um dos acontecimentos memoráveis da história do “Jornal do Fundão” e do seu fundador, António Paulouro. Não só pela apoteose popular que rodeou a presença do antigo Presidente do Brasil, mas pelas implicações políticas que o acontecimento suscitou. A vinda de Juscelino ao Fundão desencadeou a fúria do Presidente do Conselho e a Censura recebeu instruções para suprimir qualquer referência à presença de Kubitschek no Fundão. Os protestos colectivos que isso desencadeou (contra o “muro da Vergonha”) conduziram até à demissão do presidente da Câmara do Fundão, António Pinto Castelo Branco, por este ter, também, protestado veementemente. De facto, o Governo de Salazar programou a omissão de que JK viera a convite de António Paulouro e do “Jornal do Fundão”, mandou cortar na imprensa qualquer menção ao facto, e ocultou o Fundão da jornada luso-brasileira. Juscelino, quando se apercebeu, ficou estupefacto. Era uma clara situação de ausência de Liberdade, de censura a repressão que se abatia sobre o país, com inúmeras prisões, conhecia, então, um ponto lamentavelmente alto. No almoço a JK realizado no Fundão, depois de uma visita que culminou decerto na maior manifestação até hoje aqui realizada, – o antigo Presidente do Brasil, que trouxe consigo a Portugal uma numerosa comitiva, onde pontificava a figura de Darcy Ribeiro – Juscelino mostrou a António Paulouro um discurso para ler em Belmonte, na inauguração da estátua a Cabral, onde havia um parágrafo de elogio a Salazar, que acabou por suprimir integralmente. Esse dia de Janeiro de 1963, foi o dia em que Juscelino Kubitschek de Oliveira mudou, definitivamente, a sua imagem sobre o velho ditador. Da varanda do “Jornal do Fundão”, JK respondeu aos que tentaram mistificar a realidade: “Quero em público agradecer a Paulouro a oportunidade que fez surgir de trazer-me novamente a Portugal”. E António Paulouro, na edição do JF, que documenta a visita, escreve um texto, com o título: “APENAS A VERDADE”. E lá se diz, logo a abrir: “Queríamos apenas a verdade. A límpida verdade contra a qual nada podem os muros de silêncio nem as cadeias de intrigas. E a verdade veio, na voz de quem, nesse instante decisivo, podia e devia dizê-la. Desde Maio, quando aqui anunciámos a anuência de Juscelino Kubitschek ao nosso convite, que se travava uma singular batalha. No espírito reticente dos que só acreditam em coisas pequeninas e domésticas, cresceu logo o espinho da dúvida, apesar das provas irrefutáveis que trazíamos. Depois, admitindo que a visita era possível, discutiu-se a legitimidade do convite, triste sinal de ignorância das responsabilidades e direitos da imprensa em todo o Mundo, porta-voz da opinião pública, e, portanto, qualificada para tomar iniciativas como esta de mostrar a um Brasileiro amigo de Portugal o lugar onde nasceu o homam que descobriu a sua terra. Por fim, anunciada a visita, denegriram-se as intenções porque, ao que parece, já não é costume alguém tomar compromissos e servir o bem público sem ter em mira uma paga compensadora. E como se isto não bastassse, criou-se um muro de silêncio em volta do Fundão”. Juscelino Kubitschek esteve, durante a visita à região, em Castelo Branco, no Fundão, na Covilhã e em Belmonte, que o JF “descobrira” como centro da comunidade luso-brasileira. [Jornal do Fundão 20 Janeiro de 1963] SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE CASTELO BRANCO Deseja associar-se às jubilosas comemorações do 66.º Aniversário do maior baluarte da Imprensa Regional e da mais Insigne Voz da Comunicação Social da Beira Baixa que é o "Jornal do Fundão" 6 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 O Município do Fundão felicita o Jornal do Fundão pelo seu 66º aniversário. Do arco da velha Espíritos à solta António Paulouro 1946 No ano da fundação, o número 3 do JF saiu apenas com quatro páginas. Com uma edição de três mil exemplares, o jornal ficou reduzido “por falta de tipógrafos” escreveu na altura. O segundo centenário do concelho do Fundão e questões de economia tratadas num artigo de José Penha Garcia eram tratados na capa. No desporto, o Unidos do Tortosendo ganhou ao Sport Lisboa e Fundão por 1-0. Curioso também, um concurso de popularidade entre o Sporting Clube do Fundão e o Sport Lisboa e Fundão. 8 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 A senhora Joaquina Cecília, «Juquina Cezilha» como lhe chamam, sempre foi ruim de assoar. Em Alcongosta, onde mora e decorre a acção da tragi-comédia que a seguir se narra, não é, valha a verdade, pessoa que meta medo a ninguém. Mas também é certo que se sabe impor. . . Que o diga o marido, o senhor Luís Pedro, negociante de frutas e cesteiro nas horas vagas, a quem vale ser prudente e calado... Pois a senhora «Cezilha», um dia destes, pôs a aldeia em alvoroço. Correram gentes de um lado e doutro. E houve até quem, mais previdente, enchesse bilhas e cântaros na Fonte da Amoreira, julgando que de fogo se tratava. Quando se deslindou o motivo de tamanho alarido soube-se novidade de estarrecer: a «Cezilha» tinha no corpo o espírito da sogra, a Ti Inácia, que já morreu há uma data de anos! Os mais animosos correram a casa da pobre mulher e verificaram que era verdade. Ela lá estava no chão, contorcendo-se em violentos estrebuxões, a vista, revirada, soltando gritos roucos, medonhos! De vez em quando o “espírito” falava: – Ó «Cezilha» diz à tua cunhada Inácia que venha de rastos pedir-te perdão do mal que te tem “fêto”... Ó «Cezilha» diz à Marta de “Olvêra” que dê as duas “dújas” de “linçoge”... E por aqui fora, num desfiar de questões antigas que não tinha fim. Dava-se até um fenómeno curioso: a Ti Inácia, que nunca vira a “Cezilha” com bons olhos, aparecia agora a defender-lhe os direitos, com um carinho muito enternecedor... Passado algum tempo a “Cezilha” acalmou-se um pouco. Mas quando “acordou” e viu tanta gente, novo vágado a fez tombar no chão e as convulsões recomeçaram... Agora já não era só a sogra que falava. Era também a Bárbara do “Ricotaio” que no outro mundo soubera, pela Ti Inácia, da pouca vergonha feita à pobre “Cezilha”. E mais gente ainda, ao todo seis espíritos de mulheres de Alcongosta, todos coníirmando o descontentamento do Além por certa divisão de herança, divisão que, por coincidência, à “Cezilha” também não agradava... Entre a assistência estava felizmente a senhora Elisa “Màrixa” que propôs chamar-se a senhora Ana do Souto da Casa, ‘”binzelhoa” de renome. Só ela seria capaz de mandar os espíritos embora e deixar em paz a pobre “Cezilha”, coitadinha, que desde manhã ainda não tinha provado uma sede de água... Veio a “binzelhoa”. Deitou, num pires branco, um fio de azeite, três pedrinhas de sal e disse umas palavras esquisitas, que só ela entendia... Mas os espíritos é que não estavam pelos ajustes e, já que tinham vindo de propósito e este mundo tratar daquele caso, queriam levar a resposta ... Como a senhora Ana continuava as inúteis rezas, a “Ricotaio” garantiu, em nome de todas, que se não fossem cumpridas as ordens que davam, Alcongosta é que pagava as favas... A salvação estava nas mãos da Maria Inácia, cunhada da “Cezilha” e sua co-herdeira.. Uma comissão foi pedir-lhe que tivesse dó de toda aquela gente, que não expusesse Alcongosta aos flagelos que já se avizinhavam ... A Maria Inácia, a muito custo, lá se resolveu. E quando ia a subir as escadas da cunhada, o “espírito”, pressentindo-a, desatou a berrar: – Ó “Cezilha”, diz à Maria Inácia que venha de rastos pedir-te perdão! A Inácia ficou varada. E não se conteve: – Ai a cadela negra a fazer papéis de comédia! De rastos há-de ela andar “mai” toda a geração dela! O que ela queria sei eu! Foi o pânico. A Inácia não tinha a noção das irresponsabilidades. Se a tivesse, não desafiava a cólera de seis espíritos, trocando o sossego de Alcongosta por duas dúzias de lençóis... Mas ela é que não se convenceu. Que não ia em fitas. Que fizessem o que lhes apetecesse mas não contassem com ela para palhaçadas. E virando as costas aos medos, foi tratar da sua vida. Ora, vistas bem as coisas, a Inácia tem carradas de razão. Assim pensa também a gente ajuizada de Alcongosta, que felizmente é muita. E parece-nos que se o senhor Pedro, ao menos uma vez na vida, reclamar os seus direitos, isto acaba. Porque, para afugentar espíritos como os que a “Cezilha” tem, ainda não há como a intervenção, a tempo e horas, de urna varinha de marmeleiro . . . [“Jornal do Fundão”, 10 de Fevereiro de 1946] Entrevista com Almada Negreiros “A arte não é uma Maçonaria” Arnaldo Saraiva Almada sem a grande. Com grande. Grande Almada. Tem 75 anos, e desde os 18 que vem aguentando e fortalecendo a espantosa personalidade artística que agitou a província portuguesa de há 50 anos, em exposições, conferências – happenings, poemas (oh, «a cena do ódio»), panfletos (oh, o Manifesto Antï-Dantas). Poeta, pintor, dramaturgo, romancista, ensaísta, bailarino, etc., Almada pode gabar-se de muitas coisas. Entre as quais: a de ser um dos fundadores da revista Orpheu, a maior revista portuguesa de vanguarda deste e de outros séculos: – Já houve quem me perguntasse, qual foi a sensação que nós sentimos, os do grupo do Orpheu ao escrevê-lo. A sensação não foi nenhuma. Sensação foi que das nossas conversas tenha resultado um movimento. Se alguma coisa nos unia era o respeito, que nunca mais se verificou, pela dignidade humana. De resto, éramos um grupo de rapazes que não sabíamos senão gritar, e que não podíamos senão gritar. Do grupo do Orpheu já há só três sobreviventes: o jornalista Alfredo Guisado (que a ele pertenceu muito acidentalmente), o poeta Armando Cortes-Rodrigues, que hoje está fixado na sua ilha dos Açores, e José de Almada Negreiros, que está aqui à minha frente, nesta sala com livros, quadros, da sua autoria e de sua mulher (Sara Afonso), e um aparelho de televisão. Dos três sobreviventes, Almada é, de longe, o mais «vivo». Aliás, o Orpheu «foi» ele, Amadeo de Sousa-Cardoso, Mário de Sá-Carneiro e um tal Fernando António Nogueira Pessoa. Este último escreveu uma dedicatória na sua «Passagem das Horas». Dizia assim: «Almada, você não imagina como eu lhe agradeço o facto de você existir». Lembra-se dele, Almada? – Fernando Pessoa era aquele a quem eu me falava. Não convivíamos muito. Encontrávamo-nos no restaurante Irmãos Unidos (onde Almada pintou, há anos, o retrato «oficial» do grande poeta). Ele gostava muito de ouvir. Não contestava nada, e eu pensava que não ligava ao que eu dizia. Mas um dia apareceu-me com um livro inglês para me informar que estava lá a defesa da minha concepção de arte, que eu lhe expusera dias antes: «A arte não é representação de um pormenor do universo: é sempre a, representação do universo como absoluto!». A última vez que o vi foi na rua, três ou quatro dias antes de morrer... Imagino Almada a regressar do enterro, e a fazer vários desenhos do rosto de Pessoa. E de repente vem-me à ideia perguntar-lhe: – Tem saudades do Poeta? A resposta não tarda: – Eu falo-me com ele. – E que lhe diz ele? – Diz-me coisas assim: «Apetecia-me um copo de água!»; «Gostava de ir a Inglaterra». Coisas comezinhas. Coisas que são a minha paz, e a dele. (E depois de uma pausa): Quando uma pessoa morre, eu fico com o duplo do meu dever. Comporto-me com o papel do outro. Almada tem o segredo das frases aforísticas – concisas e profundas. Mas as violências subtis da sua sintaxe muito pessoal e expressiva não contrariam a clareza e elegância do seu estilo. Isso aliás já se verificava no estupendo e actualíssimo A Invenção do Dia Claro (19.21), que é urgente reeditar, e cuja leitura recomendo vivamente aos nossos vanguardistas. Porque Almada sempre se preocupou com a originalidade e a invenção em tudo. Diz-me: – Eu não vou em maiorias nem em “minorias”. Ponham-me lá se quiserem. Mas eu não estou lá. A arte não é nenhuma maçonaria. Nós somos franco-atiradores no deserto. Por isso é que, aos 75 anos, ele continua a trabalhar com a fúria dos 20. Fecha-se no atelier, e recusa-se a atender quem quer que seja, quando não se recusa mesmo a almoçar ou a jantar. Eu tive muita sorte em ser atendido, numa altura em que ele anda ocupado com frescos para a Faculdade de Matemática de Coimbra e para a Sede da Fundação Gulbenkian de Lisboa: «O único progresso da minha vida» – vai-me dizendo, enquanto puxa de um maço de cigarros – «foi este: aos 14 anos fumava provisórios, agora fumo definitivos». – E também continua a escrever poesia? – Sinto-me hoje mais poetado que nunca, mas não me interessa nada a poética. Nem a genial. Já fiz o meu serviço militar. Esse «serviço militar» poderia muito bem ter sido «A Cena do Ódio», que se destinava ao terceiro n.º de Orpheu. Trouxe comigo a «Ode ao burguês», de um chefe do modenirismo brasileiro, e pergunto a Almada Se conhece esse poema que parece ter sido inspirado no dele («Hei-de, entretanto, gastar a garganta/a insultar-te, ó besta!» – «Eu insulto o burguês- funesto!»; «ó alguidar de açorda fria/na ceia-fadiga da dor-candeia» – «oh! gelatina pasma!/ Oh! purée de batatas morais.»). «Larga a cidade!» – «Marcha!» ; «Saltimbanco-bando», «macaco-intruja» – «Homemcurva», «burguês-cinema»; etc.). Almada não o conhece, como não conheceu, na época, o modernismo brasileiro. Nunca contactou com Ronald de Carvalho, que era um dos directores do Orpheu. Dos modernistas, conheceu apenas Guilherme de Almeida, quando ele esteve em Lisboa. É Ribeiro Couto, que lhe disse que o modernismo brasileiro gritara «abaixo as universidades!.» e «vamos para o sertão» – ao que Almada respondera: «Latim sim, mas não assim». Conversar com Almada é ouvir as palavras na sua força originária. Ele não esbanja uma sílaba. Tudo é pesado, rigoroso, como a sua pintura. Ao descer as escadas desta velha casa da Rua Filipe de Néri levo nos ouvidos, mais um dos seus ditos «agudos e graciosos»: «Hoje já sei prevenir-me: já sei sair do atelier para a rua. Mas antes não. O artista chega muito tarde à vida...». (4-6-68). [“Jornal do Fundão” 11 de Agosto de 1971] A Câmara Municipal de Idanha-a-Nova felicita o Jornal do Fundão pelo 66.º Aniversário Esperamos a sua visita ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 9 Uma reportagem do outro mundo Fernando Vasconcelos 1946 Em 1946, a crise era noticia e a falta de alimentos era uma preocupação assim como os problemas sociais que assolavam o país e a região e mereciam destaque de capa do número 10 do JF. A edição de 3 de Março de 1946 tinha oito páginas. Uma delas dedicada à agricultura e uma outra de publicidade. Uma curiosa página em branco com o seguinte texto: “Se fosse necessário diríamos nesta página que a Electro Gardunha tem à venda os mais recentes modelos de aparelhos de rádio ‘Phillips’. Mas como todos os nossos estimados leitores já têm conhecimento de tão agradável notícia este anúncio não se publica”. – Trrr... ec! — Trrr... ec! — Trrr... ec! O rascar gemente, áspero e compassado dum ferro rasga o silêncio nocturno da aldeia como se a própria terra soluçasse nos arrancos finais duma agonia de morte. A espaços, o silêncio aquieta-se. E logo, das bandas do cemitério, rola e reboa no ar um coro grave e soturno de vozes mal distintas. – Pac!... Pac!... Pac!... O estalar seco de três chicotadas acompanha os últimos ecos do coro misterioso. Depois, mais próximo, mais agudo, o arrastar do ferro: – Trrr... ec! — Trrr... ec! — Trrr... ec! Súbito, duas luzes pálidas surgem movendo-se a um metro do solo como gotas de luz coalhada boiando num mar de sombra densa. Vagamente, como materializações imprecisas de emanações astrais, esboçam-se as manchas alvadias duma procissão de fantasmas. À testa do estranho cortejo, três vultos brancos conduzindo, o do centro, um crucifixo e, os outros dois, uma lanterna de azeite que não alcança iluminar à distância de meio metro. Acima da fileira seguinte, flutua, ao meio, grande cruz de madeira em cujos braços alvejam longos panos pendentes e, de cada lado, uma escada que os dos extremos conduzem. Logo após, os cravos, o martelo e a coroa de espinhos, seguem transportados por outras três figuras semelhantes às anteriores. E a teoria de fantasmas continua desfilando diante dos nossos olhos, deslizando no silêncio da noite escura como visão de pesadelo. Agora, duas canas balançam-se no ar, levadas por mais dois figurantes; segue-se um outro que sustenta na mão direita um látego que, de quando em quando, estala em golpes rijos – Pac!... Pac!... Pac!.. – numa pele de ovelha que lhe cobre as costas, por baixo da túnica branca de duende. Na sua esteira, um vulto escuro, sem túnica, uma silhueta de homem que arrasta, presa à perna direita, uma relha de arado. Uma paragem. Um cantochão de além-túmulo, cheganos aos ouvidos: – Oh ! Meu bom Jesus Pelos tormentos que passásteis na Cruz Tende misericórdia das almas! E o coro, grave e soturno: – E de nós! 10 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 – Pac!... Pac!... Pac!... O cortejo, um momento interrompido, prossegue. Agora, «o que apanha os passos»! É outra figura irreal, caminhando duma maneira inverosímil, extenuante, estugando o passe quanto lho permite o comprimento das pernas, silenciosamente, em arrancos sincopados ao compasso da relha que se arrasta na sua frente. Por último, fecha o cortejo um. comparsa transportando curta vassoura de giestas que passa periodicamente pelas costas do que o precede. E mais nada... Tal como surgiram, assim desaparecem engulidos pela sombra da noite, densa, enquanto se afasta lentamente o lento arrastar do ferro na calçada. – Trrr... ec! – Trrr. ..ec! – Trrr. ..ec! *** Foi assim que nós vimos, no passado dia 23, a «Procissão dos Penitentes», na vízinha aldeia do Paul. Reminiscência viva dum passado perdido nos séculos, esta cerimónia de profunda inspiração religiosa constitui, sem dúvida, um dos espectáculos etnográficos de maior intensidade dramática que ainda hoje é possível observar. Basta, para tanto, uma visita à portuguesíssima aldeia do Paul. Procissão dos Penitentes!.,. Na verdade, que enorme penitência não cumprem os que expontâneamente tomam lagar na cerimónia! Desde o «pecador» que arrasta o peso dos seus pecados que a relha simboliza, até ao que «apanha os passos», exercício tão violento que faz parecer suaves as voltas de joelhos ou de rastos dadas à capela do santo a cuja protecção a devoção do crente se acolheu em transe difícil. Bem merece que os seus pecados sejam «varridos» pela vassoura simbólica que fecha o cortejo. A convicção absoluta e o respeito profundo de figurantes e assistentes, o silêncio e escuridão da noite, o prestígio da simbologia católica, tudo contribui para criar o ambiente solene em que o povo mistura inconscientemente a fé viva no seu Deus com o terror que lhe desperta o mistério do além. Isto basta para nos fazer esquecer o que porventura existe de risível numa cerimónia que se realiza hoje como há 100, como há 200, 300 anos atrás. Achámo-la, sem dúvida, estranha pelo que contém de não habitual, pelo contraste com os costumes actuais, porque ... pertence a um «mundo» que não é o nosso. Por isso chamamos a esta crónica «Uma reportagem de outro mundo». [31 de Março de 1946] WWW.ANA.PT BEM-VINDO AOS AEROPORTOS DE PORTUGAL Uma experiência de prospecção folclórica Fernando Lopes Graça 1953 No oitavo ano da sua publicação, o JF já era o semanário mais lido das Beiras. Na edição de 29 de Novembro, a reparação da estada entre o Tortosendo e Unhais da Serra era destaque de capa, assim como o desfile e a festa organizada no Teixoso a favor da cantina escolar. Na página dedicada à mulher falava-se dos novos penteados e dos novos chapéus. 12 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Convicto de há muito de que todo o trabalho de recolha da nossa música popular ou, antes, e para evitar confusões, da nossa música folclórica, (embora a expressão não seja ainda muito própria, convindo talvez substituí-la pela de música rústica) não pode deixar de se apresentar sujeito a caução quando realizado pelo velho método da anotação de ouvido, foi-me possível, por fim, realizar um sonho velho de alguns anos, uma pequena excursão de prospecção munido de um aparelho de gravação cedido pela gentileza de um amigo. Iniciado no essencial do seu mecanismo, boteime ao caminho, escolhendo para teatro de operações três localidades da Beira Baixa, região privilegiada nesta matéria. Foram elas S. Miguel de Acha, aldeia situada a norte de Castelo Branco, nas proximidades de Idanha-a-Nova, cujo interesse folclórico me havia sido assinalado por um jovem amigo natural dali; Donas, sítio co-vizinho do Fundão; e o Paul, a trinta e tal quilómetros desta vila, já metido na Estrela, terras que, numa primeira visita, há-de haver uns sete anos, me havia surpreendido pela riqueza das suas canções polifónicas. Não posso deixar de confessar que esta experiência se me revelou razoavelmente fecunda em ensinamentos; quanto aos resultados, sem ter a pretensão de os considerar definitivos em matéria tão complexa e que de modo algum sou especialista, ouso dizer que se me antolham preciosos, tendo eu regressado com um pequeno pecúlio de canções saborosíssimas, umas, outras de uma profundidade de expressão rara, todas oferecendo mais ou menos, por este ou aquele aspecto, matéria de meditação aos estudiosos do assunto. S. Miguel de Acha não desmentiu as informações, algumas até já documentadas, que me haviam sido comunicadas. É na verdade um jazigo folclórico, de grande interesse, que merecia ser explorado mais funda e metodicamente. Fértil em música popular religiosa, bastariam duas preciosidades ali recolhidas: a impressionante Encomendação das almas e os verdadeiramente surpreendentes Martírios, ambas entoadas monodicamente só por mulheres (e isto sem esquecer outras canções valiosas: o Bendito chamado «das trovoadas», entoado antifonicamente por homens e mulheres, e a Senhora Santa Cat’rina, com acompanhamento de adufes), bastariam aquelas duas preciosidades, digo, para justificarem plenamente a não muito cómoda viagem e me fazerem esquecer o calor abrasador das jornadas em S. Miguel. Nas Donas e no Paul, verdadeiro ou imaginado, senti um pequeno desencanto. Sem terem decaído no seu invulgar interesse musical, afigurou-se-me porém que, nos sete anos decorridos entre a minha primeira e segunda visitas, algo se haveria passado (o próprio desgaste do tempo? qualquer influência estranha? alterações sociais locais?) que tinha feito perder às suas canções um pouco da sua força primitiva, da sua espontaneidade, da sua riqueza polifónica. Era certamente um quase nada, mas, repito, a impressão verdadeira ou imaginada, foi para mim o bastante para me levar a deplorar o facto de não se haver procedido ainda, com rigor sistemático, à exploração e compendiação da nossa música rústica. No entanto, que enorme satisfação a minha em poder desta feita trazer comigo, gravadas na milagrosa fitinha magnética, algumas das tão características expressões musicais daquelas gentes! Do Paul, lá vem, entre outras, a bela Senhora das Dores e o belo Menino Jesus a angustiante Canção da roda, a dolente Canção da azeitona, o gracioso Coletinho, uma imponente Encomendação das almas, cantada antifonicamente. Nas Donas, por motivos de ordem, técnica, a colheita não pôde ser multo abundante, com bastante mágoa minha, pois que a música e o estilo de cantar daquele povo é do que de mais inapreciável se me tem deparado. Apenas quatro canções: uma Encomendação das almas, a Sacha do milho, a Colha da azeitona e a Senhora do Souto, mas estas de uma extraordinária intensidade de expressão, de uma altura e de uma gravidade aliadas a uma qualidade, a uma plasticidade na execução verdadeiramente singulares. Permitam-se-me algumas observações a respeito do processo de recolha mecânica. Naturalmente que a utilização de um aparelho gravador supõe, pela parte do prospector folclórico, uma técnica e um método de trabalho específicos, não propriamente no que se refere ao manejo da máquina, que é coisa meramente exterior, mas no que concerne à observação das condições ambientes, ao tacto psicológico imposto pelo material com que tem que se lidar, o homem rústico, com o seu comportamento e as suas reacções características. Não sendo folclorista, parti para a aventura desprovido de tal técnica, de tais métodos de trabalho, fiado apenas num certo instinto, numa certa capacidade nata para tirar algum partido das circunstâncias. Não é porém de aconselhar semelhante atitude a quem queira fazer verdadeira investigação folclórica e pretenda obter neste capítulo resultados positivos. Direi, contudo, que um dos óbices por mim previstos, a desconfiança, a prevenção dos cantores rústicos a respeito da maquina, se não verificou em parte nenhuma. Pelo contrário: a perspectiva de cantarem diante do microfone parece até tê-los de certo modo entusiasmado e estimulado. A misteriosa maquineta já não era encarada como um produto de malas-artes diabólicas. Não posso deixar de atribuir o facto à relativa famíliaridade que as nossas populações rústicas já têm com a Rádio; é sintomático o haverem sempre imaginado que lhes estava registando as canções para depois serem transmitidas pela Emissora... Isto, que por um lado terá o seu inegável interesse sociológico, tem, sob o ponto de vista folclórico, evidentes contras, a que o folclorista deve atender na sua tarefa de investigação e recolha. E aqui não posso deixar de os pôr de sobreaviso a respeito dos chamados «Ranchos Folclóricos» que entre nós há uns tempos se desenvolveram abundantemente, congregações artificiais e artificiosas de cantores e dançadores populares, cultivando um folclorismo de contrafacção, inimigo do verdadeiro e espontâneo folclore, como me foi dado verificar, por exemplo, no Souto da Casa, outra das localidades perto do Fundão que visitei. Contra o que me havia sido anunciado e contra o que, de certo modo, me era lícito esperar, as canções aqui ouvidas revelaram-se-me absolutamente incaracterísticas, daquela modalidade puladinha e arrebicada a que, dada a sua generalização e a corrente apreciação como padrão e matriz da nossa música popular, tive já ocasião de chamar lugar-comum do nosso folclore. Vim a saber que existia, ou existira ali ainda recentemente, um dos tais Ranchos, por sinal triunfante numa competição folclórica em Castelo Branco – tudo se me tornou claro... Creio que um dos principais, senão o principal problema, a principal dificuldade que se apresenta ao colector da música folclórica, e mormente àquele qua pretende gravá-la, é surpreender esta ao vivo, isto é, integrada funcionalmente nas actividades ou momentos que a exprimem ou lhe são pretexto: as canções de trabalho durante as fainas agrícolas ou quejandas, as canções religiosas nos actos do culto, as canções de embalar junto ao berço, as canções de romaria nos locais de peregrinação ou a caminho destes, etc. Para fazer a recolha, há que convocar os cantadores (coisa nem sempre cómoda), reuni-los em qualquer local e levá-los a cantar sob determinado pretexto, fora portanto do seu ambiente e das suas solicitações naturais. Procede-se deste modo, e por assim dizer, a uma operação laboratorial, agravada pela impossibilidade de renovar à nossa vontade as observações e de introduzir nelas os necessários índices de correcção. O que se obtém não pode deixar de ser considerado um produto transposto ou derivado, fatalmente maculado de certa artificialidade. Um exemplo típico dos inconvenientes desta desintegração foi-me fornecido pela recolha da tão dramática Procissão dos Penitentes, do Paul. A cerimónia realiza-se tradicionalmente na Sexta-Fetra de Paixão; o canto fúnebre, entoado apenas por homens, é sublinhado pelos ruídos de flagelação dos penitentes e pelo das cadeias que arrastam nos pés. No «laboratório» tiveram estes ruídos de ser inventados, «fabricados» artificialmente, o que, além de desnaturar o complexo melodia-ruído, que sob o ponto de vista documental, importaria captar, foi de molde a despertar nos flagelados um sentimento caricatural, que os levou por vezes à hilariedade, frustando-se portanto desta forma a seriedade do acto e, consequentemente, a fidelidade da recolha. Outro percalço ainda sucedido no Paul. As curiosas Janeiras que ali se cantam são acompanhadas de adufes, panderetas e campainhas. Como fosse impossível de encontara estas de momento, tiveram de ser substituídas por garfos e facas chocalhando no gargalo de garrafas, o que, evidentemente, falseou a sonoridade instrumental. Já agora observarei que, em matéria de música instrumental, nada me foi dado topar por estes povos, fora dos acompanhamentos rítmicos das canções pelos instrumentos já referidos, nas Donas, contudo, é este costume parece que desconhecido, preferindo-se ali as manifestações do canto puro. Em S. Miguel de Acha falaram-me de um pastor, exímio tocador de flauta, mas não foi possível havê-lo à mão. Seria uma manifestação de música instrumental pura curiosa de registar, tanto mais quanto, na verdade, a música instrumental, por menos imediata do que a música vocal ou, em geral, associada sobretudo à dança, mais dificilmente e mais contingentemente pode encontrar momento para se nos revelar. A transcrição destas melodias nem sempre é tarefa cómoda. Muitas das particularidades do seu estilo, como certas acentuações, certas inflexões de voz, com os seus ataques e portamentos característicos, são de dificil notação. O ritmo pode constituir, por vezes, um verdadeiro problema. Duas das canções que a seguir apresentamos são disso um exemplo flagrante: a Encomendação das almas e os Martírios de S. Miguel de Acha que, na sua grande liberdade, na complexidade dos seus melismas, na sua flutuação métrica, no seu rubato, frustam o rigor geométrico do nosso solfejo tradicional. A nossa transcrição não pode ser considerada senão como uma aproximação e, mesmo assim, deu-nos penas infinitas. Quanto às canções polifónicas do Paul e das Donas, já porque materialmente não seria possível transcrevê-las aqui na íntegra, já porque, confessamo-lo, não nos achamos habilitado para o fazer (talvez que com bastante tempo ao nossa dispor pudéssemos chegar a algurn resultado), temos que nos contentar em dar delas apenas a melodia, de resto tão expressiva só por si. Como complemento, consignamos também algumas das letras mais curiosas que com elas é costume cantar, além da que figura na transcrição musical, e que é apenas a que ficou registada. [“Jornal do Fundão”, 29 de Novembro de 1953] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 13 1959 O JF tinha 14 anos. Na edição de 14 de Junho, era dado a conhecer o entusiasmo que a campanha do jornal estava a suscitar nos beirões a propósito da “glorificação de Pedro Álvares Cabral na terra onde nasceu”. O Externato de Santo António realizou uma tarde infantil com “elevado êxito” e continuava a aumentar o número de assinantes um pouco por todo o mundo. 14 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Crónicas da vida Manuel de Carvalho Naquele tempo Castelo Branco era uma cidade morna. Morna no viver e naquela soleira do Verão que nos torrava o corpo. Faltava a água e os cântaros alinhavam-se, policiados, às dezenas, frente a duas bicas mirradas, já fora de portas. O Borronha cuspia na Corredoura, sentado mesmo sob o Arco do Jardim do Paço. Dizia coisas desconexas e cuspia, cuspia sempre. Era gaseado da guerra de 14, ao que se dizia. Era Borronha, não era? Cuspia sempre. No caminho do Liceu, fazíamos uma derivação em semi-círculo para não pisar o cuspo do Borronha. Havia umas meninotas que andavam a cavalo nas ruas, um parque desportivo com 1.500 sócios e melancias àcoroa e às montanhas no mercado fronteiro ao Passeio. É curioso. Eu nunca mais fui a Castelo Branco, mas as melancias, as meninas a cavalo que moravam na rua do Pina e o Borronha da cuspidela forneceram-me sempre a perspectiva do Castelo Branco que eu conheci. E já lá vão vinte e cinco anos. Dizem-me que Castelo Branco está hoje muito mudada. Para melhor, evidentemente. O Liceu já não é, ao que me dizem também, no velho Paço Episcopal; o Borronha há muito morreu de certo, desfeito em cuspo e as meninas que andavam a cavalo serão hoje respeitáveis mamãs, ou talvez avós, de peso igualmente respei- tável que pouco se coadunará com o garbo desportivo das amazonas. Seja como for, apetece-me hoje falar aqui do Castelo Branco da (minha adolescência, do bilhar do velho Policarpo, que tinha um olho torto (o Policarpo, não o bilhar) era pai dos Irmãos Unidos (o Policarpo, outra vez); sim, apetece-me falar na velha Ana Chá padeira, que fazia bolos e tinha sempre uma braseira acesa para a rapaziada amiga; da tasca Noé, do Bairro Leonardo, e da música de Caçadores, aos domingos, no passeio público, com povo para cima e povo para baixo, a fazer horas, marcialmente e disciplinadamente. Mesmo no pino do telhado do hospital fronteiro ao Liceu assentara ninho uma família de cegonhas que fornecia o tema para os primeiros ensaios de conversação latina: – «Jam vidisti cicónias in hoc ano, in civita aibicastrensis? – Ite, magister, Ubi?. In tecto hospicii (em genítívo), vel in testo eclesiae. – Bene, bene... Lege...» O velho Dr. Celestinus Antonius Roxae... Usava bengala e perdia manhãs inteiras na praça à cata de vocábulos castiços. Dizia-se à boca pequena que preparava uma gramática que esgotaria a matéria, mas o certo é que, ao que me conste, a gramática nunca chegou a aparecer. Havia também o Tí Zé Cónego. O Tí Zé Cónego era gordo, pachorrento e tinha ar patriarcal: «– A filosofia é a ciência que à luz da razão humana se eleva às causas últimas e supremas dos entes e dos fenómenos...» Coitado do Ti Zé Cónego. Tinha sempre lá em casa uma caneca de bom vinho tinto para a rapaziada visitante. Depois foi o caso do Dr. Lacerda. Um dia bateu-lhe ao ferrolho no Hotel Central o agente Paulitos e o Dr. Lacerda fugiu açodadamente para Espanha. Afinal,o Dr. Lacerda que MMCORREIA simples era aliás um óptimo professor e uma excelente pessoa dada à introversão, forjara muito simplesmente um diploma de ensino e conseguira ser durante anos professor efectivo dos liceus. Um escândalo, o caso Lacerda. O Reitor era o Ti Tonho que professorava latim e português, tinha tiques nas faces e uma filha lá em casa algo espampanante. As matemáticas eram do foro Xavier Lobo (João Matilde) e Almeida Esteves. O primeiro era frio e prepotente. O segundo era um professor magnífico e um homem sério. Todos mortos, ao que me consta. Mas falar no velho Liceu Nun’ÁIvares daquele tempo e não falar dos manos Senas seria deficiência grave. Estes constituíam a faceta mais bizarra do ornamento docente da época. Homens dados às ciências experimentais eram igualmente dados à prudência nas lides do volante: – «Oh mano, vai ver se vem carro». E o mano saía em cada curva e ao virar de cada esquina. Os manos Senas... Davam-me sempre 10, premiando talvez o meu alheamento disciplinado às coisas laboratorialmente comprováveis. Eu conseguia, no entanto, brilhar a alturas algo destacadas nas sabatinas de geografia do Tavares Ferreira. Eu e o meu amigo António Esteves: – Qual é a capital do Nepal? Onde fica o Lago Negami? Quais as seis principais cidades da Roménia? O Esteves e eu, dois viajantes potenciais desde os bancos do 2.º ano ano do Liceu e que de viagens apenas conhecíamos o caminho do Montalvão aos domingos, com paragem reconfortante na fábrica dos pirolitos. E era assim, Castelo Branco. Uma terra, afinal, como qualquer outra da sua dimensão. Voltarei um dia a Castelo Branco e irei direitinho à Travessa da Misericórdia, se ainda existir, e poisarei os olhos na primeira casa que habitei. Recuarei 30 anos e esforçar-me-ei por rever a paisagem humana daqueles tempos. Não sei se ainda existe o sapateiro Joaquim Salgueiro que era atreito a ataques epilépticos. Sei apenas que num dos últimos números do «Jornal do Fundão», aqui mesmo ao lado desta «Crónica da Vida Simples» se dizia que uma senhora presidia a uma qualquer cerimónia académica no velho burgo albicastrense. Pois eu estou a ver a mesma senhora com 4 ou 5 anos de idade, chorando o pai militar, mobilizado para o combate a um qualquer movimento insurrecional. Se estou enganado, peço perdão. Certo ou errado, o facto é que tal fotografia trouxe-me lá das profundezas do tempo todo um somatório de vivências e de ambientes que a vida vária, apesar de tudo, não conseguiu totalmente apagar. [14 de Junho de 1959] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 15 A primeira crónica de JOSÉ SARAMAGO - Deste mundo e do outro A Guerra do 104 e do 65 José Saramago 1971 No ano em que José Saramago escreveu a primeira crónica no jornal (o jornal custava dois escudos), o JF dava conta de uma entrevista do prof. Marcelo Caetano ao jornal “O Globo” do Brasil e também das dificuldades da RTP, assim como dos preços praticados na praça do Fundão. No desporto, a Volta a Portugal em Bicicleta era notícia. 16 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 No primeiro dia não liguei importância. Recebi os papéis, li-os escrupulosamente, com esta minha incomparável ingenuidade que a tudo resiste, e, vinte metros adiante, como obediente munícipe, depositei–os no receptáculo do lixo. Passada uma semana sabia-os de cor, e começava a sentir-me ridículo; ao parecer, o primeiro trabalho da manhã consistia em receber dois papéis de cores diferentes das mãos de dois homens simultaneamente obsequiosos e mal encarados, transportá-los (aos papéis) durante vinte metros e deitá-los no lixo. Para uma pessoa como eu, sempre ocupado em altos planos e pensamentos, havemos de convir que a situação era bastamente vexatória... Julguei contudo que se tratasse de simples escaramuça, um rápido corpo-a-corpo de fronteira, e que em breve a paz tornaria à rua, as horas voltariam a ser doces, no jogo alternante de luz branca e sombra azul que o sol maneja ao correr do dia. Acreditei que depois do arreganhar de dentes e do mostrar de unhas, o 104 e o 65 se contentariam com um mútuo e silencioso desprezo, guardando as pragas para o recato do lar. Mas isto era contar de mais com o efeito regressivo do tempo nos sentimentos. Afinal, os grandes conflitos humanos têm mostrado aguentar muito mais do que as pirâmides do Egipto... O caso é que a guerra se agravou. Os dois homens deixaram de estar a distância prudente um do outro e passaram a operar frente a frente, cada qual na sua esquina de uma rua perpendicular, e ali, atravancando o caminho, intimativamente estendiam aos passantes inocentes os papelinhos coloridos que em linguagem mercante apregoavam os méritos absolutos do 104 e do 65. O resultado foi lançarem-me a mim para o limiar da neurose. De longe, mal entro na rua, salto os olhos por cima das cabeças, à procura dos guerreiros (um, alto, grisalho e de bigode; outro, baixo, grisalho e cara-rapada), a ver como escaparei à agressão. Nos dias em que me sinto timorato, quase todos, passo ao outro passeio (que não sei porquê detesto) e roço os prédios, humilde. Outros dias há em que me invadem lembranças de heróicos antepassados, conquistadores e mareantes – e então avanço sobre os exércitos do 104 e do 65, de lábios cerrados, olhar firme que os ignora (ainda não pude chegar ao desafio), e mãos apertadas atrás das costas para resistir à injunção do papel estendido... Mas quando estou a salvo, bem me sinto a tremer de medo retrospectivo. Vai para três meses que isto dura. A loja do 104 e a loja do 65, concorrentes e rivais, disputam a clientela – e odeiam-se. A rua, não há quem o não sinta, cheira a pólvora e a sangue. Nos últimos dias, notei que ao entregarem os papéis os homens dizem rápidos algumas palavras. Ainda não sei de que se trata, porque ando em maré de timidez e passo do outro lado – mas presumo que estarão dizendo calúnias, insinuando denúncias de mau porte, lançando acusações de subversão, sei lá que mais. Tudo isto, declaro, é complicado em excesso para mim, Que o 104 e o 65 sejam inimigos, é com eles, bom proveito lhes faça, embora eu saiba, que acabarão por celebrar paz e aliança (juntando as firmas, por exemplo) contra os consumidores, por enquanto lisonjeados com persuasão e blandícias. Se tal acontecer talvez nos reste um 23 como derivativo. Mas pelo rumo que as coisas levam, ainda vem a acontecer tomarem os homens dos papéis dores que não são as verdadeiras suas, e começarem à pancada, aos gritos de «viva-e-morra», qual por baixo, qual por cima, (e são homens de meia idade, cansados, reformados...), enquanto os donos do 104 e do 65 contam lá dentro o dinheiro e sorriem ao balcão... [“Jornal do Fundão, 15 de Agosto de 1971] Pré-aviso para uma carta expresso Joaquim Letria Londres 23.8.71 Meus caros, Palavra que uma coisa que detesto é escrever cartas. Mas uma coisa que o António Paulouro acabou de me fazer ver, aqui em Londres, é que vos devo correspondência. E assim, aqui estou, felizmente bem, ao fazer desta. Peço-lhes que não esperem nunca desta coluna mais do que simples cartas. Cartas que vos são dirigidas, a todos vós, leitores do JF. Cartas de um homem como vocês, com as mesmas esperanças, angústias e incertezas. Tenho como ponto de união com muitos milhares de leitores deste prestigioso periódico uma qualificação que, infelizmente, é das mais utilizadas da língua portuguesa: sou um emigrante. São pois despretenciosas cartas de um emigrante que devem esperar ler. Mais de dois mil quilómetros nos separam. O que aqui se passa, no dia-a-dia londrino de um emigrado cidadão português, será o tema destas cartas. Não esperem que vos escreva no estilo empolado dos especialistas dos suplementos dos diários, ou no que os escritores dos mensários utilizam. Nada disso. Palavra que não sei escrever assim, e até tenho raiva a quem sabe. Muitos portugueses de 10 anos já sabem ler. E o seu hábito de leitura merece ser estimulado de outra forma que não seja através da «temática da problemática da carência das infra-estruturas». Então havíamos de andar a aprender a ler para isto! É por estas e por outras que chamei a estas primeiras palavras «Pré-aviso para uma carta expresso». Não desejo de modo algum secar saliva de profissionais de «mentideros» ou de tertúlias «part-time». É com o português do Fundão e do resto das Beiras, com o homem da rua – de Lisboa ou do Bidonville – que quero ter estas conversas em família, com sua licença. As minhas cartas serão leves, leves, como a espuma do champanhe. E se vos subirem à cabeça ainda bem, porque é precisamente a essa parte do corpo humano que as destino. Querem um exemplo? Quando esta tarde vinha de autocarro para o meu trabalho, assisti a uma curiosa discussão. O 11, o número da carreira do autocarro em questão, passa em frente do Palácio de Buckingham, que é a residência oficial da Rainha Isabel e dos seus parentes mais próximos. Chovia, pois em Agosto também chove em Londres. E à chuva estavam os guardas da rainha, que têm uma farda vermelha parecida com a dos soldadinhos de chumbo e um capacete de pele, muito alto, e que vos deve ser familiar dos livros de anedotas. «Olhem para eles», disse o homem que estava à minha frente. «Para eles, quem?» perguntou a senhora ao lado dele. «Para os guardas da rainha, ali à chuva, coitados», disse o homem. «Pior vida do que guarda da rainha só a de cavalo do guarda da rainha», disse outro homem atrás de mim. A discussão começava a generalisar-se. «Ninguém os manda serem guardas da rainha. E de resto aquela vida não é má. O pior é a chuva», insistiu o segundo homem. «Em todo o Mundo os palácios têm guarda», disse a senhora. «Pois, mas estes somos nós que pagamos», disse o segundo homem. «Até o Papa tem os guardas suíços», disse a senhora. «Mas Cristo não teve guardas», disse o primeiro homem. «Foi sempre assim em todos os tempos», começou o condutor, que tinha estado sempre calado. «Sempre houve soldados a brincar e soldados a sério», acrescentou. «Pois, mas quando veio a guerra eu é que fui para a frente. Eles fazem paradas e rendições para os turistas verem e nós é que fazemos guerras de matar ou ser morto», disse o segundo homem. O autocarro chegou à minha paragem. Nesta altura, outras pessoas já estavam viradas para trás, toda a gente, praticamente, participava na conversa. Devia ter continuado viagem, para saber no que aquilo dava. Certamente não sairiam dali moções, nem petições, nem manifestações ruidosas. Tudo era apenas conversa mole de autocarro, em dia londrino de Agosto modorrento e chuvinha de molha-tolos. Afinal, era somente uma coisa vulgar desta cidade. Nem sei porque estou para aqui a contar-vos. Enfim, perdoem-me esta parolice lusitana. Mas que culpa tenho eu de em 27 anos de lisboeta nunca ter ouvido uma conversa assim num autocarro 12 ou 27, ao passar ali por Belém ? E pronto. São parolices destas que vos vou passar a contar, se o director deste jornal for suficientemente tolerante e a vossa paciência não se esgotar. Saúde e até para a semana são os votos deste vosso criado. 1971 Em 1971, o JF premiava os assinantes com … imagine-se, uma casa em Monsanto. Um concurso lançado entre quem se fizesse assinante atribuía esta casa. Mas neste ano na edição de 5 de Setembro, o jornal dava conta da decisão da Câmara do Fundão em mandar ferver a água de consumo público depois de muita polémica com análises que davam conta de água imprópria para consumo. No desporto, os Jogos Juvenis do Fundão, foram um êxito e eram dadas muitas notícias das freguesias. *********** A PIDE passou a interceptar as cartas e adeus cartas de Londres [5 de Setembro de 1971] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 17 Biscoitos do Fundão H. Correia Pardal 1971 O 25.º aniversário do JF foi assinalado com um rallye das cerejas organizado pelo Clube Português dos Publicitários. A edição de 23 de Maio de 1971 trazia à estampa uma notícia que dava conta de que a Cova da Beira era o segundo pólo de desenvolvimento da região centro e que o espectáculo de consagração das “Jovem 71” tinha sido adiado (não autorizaram Zeca Afonso nem Adriano). O assalto à ourivesaria Académica do Fundão tinha rendido aos assaltantes “quatro centenas de contos”. 18 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 A abelha que transviada volitou um momento, entrando pela janela aberta, sobre esta folha de papel, deve ser responsável pelas suas primeiras letras, ela que nos dá com o mel a sugestão de outras coisas doces. É com certeza das obreiras que têm seu cortiço numa varanda da freguesia, ali em pleno povoado, e que, por tão familiarizadas com a gente da casa, deram já origem a uma notícia nossa, estampada no ‘”Jornal do Fundão” sob título incontestável – «As Abelhas, Insectos Domésticos». Esta veio dar-nos também uns bons-dias melífluos, deixando-nos por associação de ideias a doce lembrança dos biscoitos ao Fundão. Conhecem-nos os senhores? Há os biscoitos de Sevres, que são outra coisa, em massa de porcelana, encanto dos olhos, mas dignos de idêntico apreço, em massa da farinha, só os biscoitos do Fundão, lisonja do paladar. Quem uma vez os provou na capital da Cova da Beira, em tudo preciosos, até no aspecto e no formato, e tão convidativos como substanciais, não os esqueceu e levou-os consigo, circunstância que é a explicação do seu sucesso, porque estes biscoitos não endurecem nunca, o que por sua vez é a razão do seu segredo. Inutilmente os têm querido imitar. As duras contrafacções provam apenas que eles são únicos, émulos ímpares do pão-de-ló de Margaride, dos pastéis de Tentúgal, das regueifas de Valongo, das cavacas das Caldas ou das queijadas de Sintra. E não nos venham dizer os despeitados que estamos aqui a perder o nosso tempo com um mínimo pormenor regional, pois não o perdeu o dulçoroso pincel de Josefa de Óbidos, legando-nos um estimulante mostruário pictórico do que foi a doçaria portuguesa de tempos idos. Perante esse painel, nós não temos dúvidas de que os olhos também comem, também são capazes de ter fome – como de ter fastio. E o que é doce nunca amargou... Além de tudo, o Fundão sabe e tem destas coisas que lhe legaram, as donas de prestigiosas casas solarengas, quando estas coisas, sem Rádio nem Televisão, animavam serões patriarcais, na província. As velhas criadas fiéis conservaram a receita, a mesinha desde então popular em que ficou o segredo da abelha. Ainda há pouco, a senhora Maria Joaquina é que sabia fazer disto na perfeição. E disto prevaleceram, deliciosamente, os biscoitos do Fundão. Cientes de que são eles um gosto na vida, que vale mais do que cem mil réis na algibeira, cremos assim que a abelhinha da nossa crónica veio sugerir-nos o panegírico, à falta de melhor assunto. O panegírico dos biscoitos do Fundão – ou a sua defesa. A sua defesa. Ê que as abelhas também se mostram aptas para uma atitude protectora perante o que está em perigo, como o provaram os cortiços que na base das fortalezas medievais eram um bélico debrum com o qual tinham de se haver os sitiantes inimigos. Os ferrões em riste eram de facto a primeira defesa. E no caso presente os biscoitos do Fundão também estão em perigo. Já comprometidos pelo tempo, sem remédio, os lanifícios de Pombal e as castanhas da Gardunha, não será com efeito sem protesto que vemos agora sob ameaça de igual risco os açucarados primores que fizeram ainda, em parte, o nome e o prestigio da terra. Porque a verdade é que se podem por enquanto topar-se as tradicionais especialidades gastronómicas de Portugal, os presuntos de Lamego, por exemplo, com tanto que não seja em Lamego, ou por exemplo as morcelas de Arouca, com tanto que não seja em Arouca, já não será possível depararem-se-nos amanhã no Fundão os biscoitos do Fundão. O Fundão foi terra que já deu biscoitos. O frenesi modernista que alastra por toda a parte não tolera que indefinidamente continuem a fazerse de farinha, ovos e açúcar, umas guloseimas que sumariamente podem manipular-se sem prejuízo das unhas pintadas, e há agora pastilhas elásticas – e biscoitos sintéticos. É o que há. Biscoitos de plástico... Que a abelha continue a realizar o mesmo trabalho, como as abelhas primeiras da Criação, compreende o modernismo dos nossos dias. Os homens, porém, os homens e as mulheres, cônscios duma inteligência progressiva, deixaram, atrás de si, a pedra lascada e opuseram à caverna a Torre Eiffel e o Empire State. Por isso estarão prestes a rebelar-se contra a própria Natureza e as suas leis imutáveis. Não será assim? Mas a nossa abelha volta. Adeja um momento, de novo, sobre este arrazoado, e parece deixar-nos uma advertência: – Sim, o mundo marcha, mas não conseguiram ainda fazer os homens, através dos séculos, nada de mais doce do que um favo de mel... [“Jornal do Fundão”, 23 de Maio de 1971] O século de Camões Eduardo Lourenço 1980 Em 1980, o futuro da Escola do Magistério do Fundão continuava envolto em incertezas. Os problemas da habitação e a burocracia eram também alvo de destaque na edição do dia 25 de Janeiro, onde, na edição especial de aniversário, Eugénio de Andrade, Arnaldo Saraiva e Eduardo Lourenço escreviam. Começavam os problemas do sector dos lanifícios com as leis da CEE e na Covilhã, um colóquio sentava à mesa especialistas e interessados na matéria. 20 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Quatro séculos após a sua morte era tempo de acertar as contas pátrias, talvez ainda por pagar ou pagas em termos impróprios – com aquele a quem devemos a única imagem universal do nosso ser e cultura. Essa clarificação decisiva de Camões importa menos ern relação ao mistério e destino do indivíduo que ele foi – o qual será melhor que fique salvaguardado que falsa ou romanescamente esclarecido – que ao mito cultural da nação implicado no canto onde, celebrando o momento solar dela, lhe outorgou um perfil que perturba ainda o nosso presente. Nos finais do século XIX, confrontados com uma crise de reajustamento a si mesmos e a um mundo que mal entendiam, os nossos vizinhos espanhóis pensaram curar-se da fragilidade presente e da insolação histórica dos seus séculos de ouro, lembrando-se de fechar a sete chaves o túmulo de Cid. É verdade que os povos que se deixam vampirizar pelo passado não estão à altura das exigências vitais do presente. Nietzsche fez o processo desse vampirismo em termos sempre actuais mas ainda incómodos para aqueles a quem só a exaltação factícia da glória embalsamada confere uma aparência de vida. Um certo comemorativismo camoniano podia enquadrar-se nesse pendor equívoco e malsão de cobrir as misérias presentes com as glórias extintas, se Camões não se tivesse tornado, corno só ao génio acontece, o espelho mesmo onde essa glória permanece intacta. Intacta mas também fora de alcance, desencorajando pela sua excepção os aproveitamentos efémeros e suspeitos, as idolatrias daquilo a que Ortega e Gasset chamava a «beatice cultural». Seria traí-lo duas vezes consagrar-lhe um culto sem relação alguma com o espírito que a sua obra encarna corno filha de um tempo dilacerado entre o fascínio do ouro e a herança da gratuitidade heróica que nele se dissolvia sem outra remissão que a da memória épica camoniana ou o humor cervantino, verso e reverso da mesma medalha imperial ibérica. “Os Lusíadas» não são um começo mas um fim, como em geral todas as obras onde o espírito de uma época se dá em espectáculo. Fim literário de um género ressuscitado quase um século antes pelo amor de Angelo de Ticiano, por Homero e renovado com a mais renascente de todas as fantasias por Ariosto. Fim ideológico e ético de uma atitude encarecedora dos leitos nacionais numa óptica universalizante que os transcende e cujos ecos e traços se podem perceber em medieval perspectiva nas crónicas de Azurara e em toda a sua amplitude renascentista em João de Barros. O texto camoniano, mau grado a sua singularidade, é igualmente texto-resumo de uma aventura cultural de amplitude cultural e geográfica tal que sem ela a sua leitura fica reduzida à paráfrase erudita de um comparativismo inato ou à glosa formal dos seus jogos de construção interna A compreensão do discurso épico ou lírico camoniano só é possível no horizonte da cultura internacional e nacional cujo perfil começa a desenhar-se nos fins do século XV até tornar-se cultura dominante e dominadora em estado de perplexidade íntima na época da formação do Poeta. Subtrair a obra e o caso camoniano a esse processo de agonia da cultura medieval, triunfo e metamorfose de uma Nova Cultura – de que ele é o exemplo ímpar entre nós, – é contribuir para uma idolatria sem substância. As vozes que se cruzam e unificam no canto camoniano para constituir a Voz onde todas recebem um suplemento de força e esplendor são as do seu século. Compreender Camões, lê-lo, celebrá-lo, comemorá-lo não pode ser outra coisa que revisitar o mundo onde foi possível esse canto destinado por sua vez a recriar numa perspectiva nova o mundo de onde procede. Poucas culturas como a portuguesa cultivam com tanta persistência a política de terra queimada contentando-se para os gastos sempre interessados do presente, com a veneração (intermitente) a uma outra estrela, deixada não se sabe por qual milagre, de pé no meio da desolação. Adoramos os Everestes, reais ou imaginários, sem nos importar nada que tais cumes são só culminâncias, apoteose geológica de um tumulto das alturas menos grandiosas que o sustentam. É de certo um exagero de Pessoa, afirmar que a emoção transmitida pela lírica camoniana teria melhor suporte se a supuséssemos emanada sem intermediário da pura fonte de Petrarca. Mas, naturalmente, que há uma profunda verdade nesta observação, como possível maior ainda na que suporia uma proximidade mais viva entre o lirismo camoniano e de Bosca, Garcilaso, Diogo Bernardes ou Caminha, pois tão difícil é reconstituir sem lugar para dúvidas o cânone lírico de Camões. Contudo não é nesta ritual perspectiva do comparativismo que o essencial se decide em matéria de compreensão autêntica do Poeta. Os comentadores mais entusiasias de Camões como Faria e Sousa nunca pensaram que as passagens “análogas” ou quase idênticas dos poemas camonianos e das de outros autores diminuíssem o Poeta. É com júbilo que assinalou a referência ou reminiscência virgiliana ou ovidiana ou lucariana, A sua exegese não se ofusca com a apropriação mormente de que é tábua da lei literária como Vergílio ou Lucaro. Mas não é da ausência desta espécie de comparativismo exaltante que nos devemos queixar quando se trata de “compreender» Camões. Os Faria e Sousa, os Manuel Correia, não tinham nem podiam ter o sentido da História. A Cultura é da ordem da intemporalidade e a mediação criadora cumpre-se no horizonte de textos «fixos» subtraídos ao fluxo da experiência quotidiana. A textualidade poética (mesmo a inovadora) é concebida como diálogo entre o poeta e outro(s) texto(s) exemplar. Só a consciência histórica moderna imaginou que essa textualidade podia ser medida pela totalidade da experiência humana com o texto do real e do imaginário disponível de uma época, sob o perigo de ver o trabalho criador ainda devorado pela História. Era (é) excessivo porque nenhum criador, globaliza a experiência da sua época – ou ela se globaliza nele – mas essa reacção foi salutar. As miragens do historicismo literário são falaciosas. Não há grande homem que não tenha sua vítima. Foram elas que criaram um Camões omnisciente em todos os ramos do saber divino e humano... A mais trivial referência do Épico ao saber floral. zoológico, alimático, geográfico, mitológico, escriturário, etc., da época, é-lhe imputada como uma maravilha sem nome. É tempo de o subtraír a riquezas imaginárias para guardar apenas aquele “tesouro» que no-lo torna precioso: o da invenção poética da metamorfose formal a que submeteu uma experiência ao mesmo tempo única e anàloga à de outros homens do seu tempo, na luz de uma cultura que foi, na sua totalidade, a do século que nele culmina. Quer isto dizer que é urgente inverter as duas ópticas exegéticas mais comuns dos estudos camonianos e em particular as que têm por objecto “Os Lusíadas”. Um deles serve-se do Poema para «compreender» o século ou para iluminar este ou aquele dos seus aspectos. Assim se converte Camões no Ideólogo ou no Moralista de uma época que não precisava dele para esses papéis que tinham os seus titularas precisos e autorizados. A outra, projecta no Poema o conhecimento particular e parcelizado de certos aspectos da época – de ordem social, económica ou política – para o “explicar” por eles. Mas compreender «Os Lusíadas» ou a obra camoniana em função do seu século para ter direito, por sua vez, a servir-se de «Os Lusíadas» como chave real para compreender o tempo onde ele banha transfigurando-o, é outra coisa. Entre o texto cultural e o texto literário a osmose é certa, reversível e dialéctica, mas o conhecimento do texto cultural camoniano não se deixa domesticar com a facilidade como certa exegese camoniana no-lo tem apresentado. É o texto sociológico de uma época particularmente perturbada, o texto ideológico de uma cristandade em crise e em luta, o texto ético de um tempo subvertido em profundidade por novidades inauditas, o texto religioso de teólogos em estado de cruzada permanente, o texto literário de uma cultura estética, partilhada entre o exemplo antigo e o apetite da inovação, em suma é o texto Ticiano, Savonerola, Lutero, Erasmo, João de Barros, Heitor Pinto, Leão Hebreu, Carteglione sem falar do especificamente poético. Desses textos todos cuja meada constitui um labirinto que só a nossa ilusão de habitarmos a transparência pode imaginar fácil e acessível, é tecida afinal a sumptuosa, complexa tapeçaria que nós chamamos século de Camões. Quanto mais o conhecemos, mais conhecemos Camões. Por dentro, o que em matéria de vivência espiritual e compreensão séria quer sempre dizer, por fora, no espaço cultural objectiva defeito da presença e do diálogo dos textos que foram homens que os textos se convertessem na vida que dura. Vence, 12 de Janeiro de 1980 [“Jornal do Fundão”, 24 de Janeiro de 1980] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 21 A primeira crónica de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Contos sem estrutura Carlos Drummond de Andrade* OS LIMITES DA IMAGINAÇÃO Por que lhe deram esse nome – Vitrúvio? Porque os pais acharam bonito. Assim, por ter crescido Vitrúvio, quis tornar-se Vitrúvio, mas a profissão de arquitecto não combinava com o seu eu profundo. Seus projectos conduziam a desabamentos, e teve de resignar-se a não projectar no papel. Passou a fazêlo em imaginação, reconstruindo totalmente Paris e outras cidades, e conquistando prémios académicos de repercussão internacional. Mas vivia triste, porque Cristina Onassis não lhe deu licença para instalar na ilha de Scórpio o Centro Universal de Festas, obra que traria felicidade ao mundo. Por mais que insistisse em sonho com Cristina, ela continuava irredutível. A imaginação freou-se a si mesma. Se fosse procurá-la pessoalmente, talvez a moça acabasse cedendo à insistência. Mas de longe, e em pensamento, nunca. Vitrúvio jamais se consolou, e passou a julgar Cristina mulher sem imaginação. 1980 Seis anos depois do 25 de Abril, o JF recordava o que se passou na Beira naquele dia com um número especial onde vários nomes grandes da política, cultura e economia nacional escreveram. Neste mesmo número, que assinalava o início da colaboração de Carlos Drummond de Andrade, o presidente da Câmara do Fundão garantia que a Escola do Magistério não encerrava e João Lopes e Francisco Belard evocavam Jean Paul Sartre que falecera dias antes. NA CABECEIRA DO RIO Ouviu a queixa do rio e prometeu salvá-lo. Dali por diante ninguém mais despejaria monturo em suas águas. Contratou vigilantes, e ele próprio não fazia outra coisa senão postar-se à margem, espingarda a tiracolo, defendendo a pureza da linfa. Seus auxiliares denunciaram que alguém, nas nascentes, turvava a água. Foi até lá e verificou que um casal de micos se divertia corrompendo de todas as maneiras o fio d’água. Os animais fugiram para reaparecer à noite. E explicaram, antes que levassem tiro na barriga: – Não fazemos por mal, apenas brincamos. Que pode um mico fazer para se divertir, senão imitar vocês? – A mim vocês não imitam, pois estou justamente lutando para proteger o rio. – Já não se pode nem imitar – observaram os micos, fugindo outra vez. O homem é um animal impossível. Agora deu para fazer o contrário. QUEIJO PARA DOIS A Situação comia o queijo sozinha, a Oposição tinha fome e também queria comer do queijo. – Negativo – respondeu a Situação. O queijo não dá para todos. Mesmo que desse, o queijo nunca é para 22 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 todos. – Então eu vou aí e tiro o queijo todo para mim – ameaçou a Oposição. – Experimente para ver – retrucou a Situação. O queijo nunca é para a Oposição. E continuava comendo o queijo, comendo o queijo. Até que ele acabou. Vendo que tinha acabado mesmo, ela se queixou da Oposição. – Viu o que você me arrumou? De tanto reclamar uma fatia de queijo, ele foi minguando, minguando, e me deixou com fome. Você botou olho grande. Quando eu arranjar outro queijo, vou comê-lo escondido. DESEMPREGO – Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do Sabonete Araxá. Aquelas do anúncio. – Eu sei, as três mulheres do poema de Manuel, Bandeira. – Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes. – E que foi feito das duas outras? – A primeira passou a trabalhar para Sentinela Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me arranjar uma mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas... TUDO BEM O Ministro do Optimismo reuniu os repórteres e declarou: – A situação não é tão grave como estão dizendo. Aliás, a situação não é nada grave. Quem foi que disse que a situação é grave? – Ministro, os números... – Nunca ouvi os números dizerem alguma coisa. Número não fala. Se falasse, reconheceria que tudo está sob controle. – Perdão, sob controle de quem? Indaga um repórter. – Quando as coisas estão sem controle, é porque estão sob o controle de si mesmas, e esta é uma questão muito delicada, é um controle intestinal, entende? Se não entender, não faz mal. – O custo de vida... – O custo de vida é uma ilusão. Não há custo de vida. O Governo sustenta maternidades gratuitas. Ninguém paga para nascer. Além disto, para facilitar ainda mais a vida, cogitamos de estabelecer o imposto de morte. Todos os mortos pagarão esse imposto. Assim, ninguém mais vai querer morrer, e está salva a pátria. Eu não disse? *(Serviço especial Jornal do Brasil/Jornal do Fundão) [25 de Abril de 1980] História de Jornal Um esqueleto na redacção Fernando Paulouro Neves 1989 Em 1989, ano em que o JF fez 43 anos, o destaque da edição de 27 de janeiro foi para os milhões que poderiam vir de Bruxelas para a Barragem do Sabugal, o espaço da FACIF no Fundão era estudado pela Escola de Arquitectura de Lisboa; a criminalidade aumentava nas zonas urbanas e o Hospital de Castelo Branco tinha um novo director clínico. Na Covilhã o orçamento da autarquia era aprovado só pelo PSD. 24 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Era ao fim da tarde e o Joaquim Duarte, com aquele ar optimista que o faz sorrir das próprias desgraças, chegava com o efémero albicastrense, para o jornal da semana. Ainda mal tinha posto pé na redacção, para as ruidosas saudações da praxe, e já o Director o chamava à pedra: – Então? O que é que você traz de Castelo Branco? Pergunta difícil de atender, que às vezes não se passava nada... Desta vez, porém, na revisão da matéria dada, o repórter tinha no bolso um enigmático facto: – Descobriram um esqueleto no Montalvão! Boa. A semana estava salva. E logo, ali, em plena redacção, o caso foi analisado ao bisturi, em toda a complexa extensão. Os elementos eram parcos, os ossos tinham sido descobertos por caçadores, as polícias, como habitualmente, não sabiam de nada. Em suma: o repórter tinha o esqueleto nos braços e não sabia o que fazer com ele. Mas o Director voltava à carga: – Isso dá uma boa peça. Investigue, que tem o espaço que quiser. Que diabo, o esqueleto há-de pertencer a alguém! A notícia saiu com o destaque adequado, e o assunto tornou-se, durante semanas, tema e alimento da redacção. Enquanto a PJ investigava (se era que investigava) os ossos e se solicitavam pareceres à medicina legal, na esperança de que a análise científica da desconjuntada ossatura apurasse qualquer coisinha, no jornal faziam-se telefonemas na pista de algum eventual desaparecido a quem o esqueleto ficasse bem ou, pelo menos, fizesse falta. Nós bem interrogámos, uma vez e outra – em título ampliado: «DE QUEM SERÁ O ESQUELETO DO MONTALVÃO?» – mas os resultados, esses, eram escassos para desfazer o enigma. E todas as semanas, na hora do balanço, parecíamos estar face a um caso tão misterioso que porventura nem o senhor Poirot, com a sua elementaríssíma ciência, seria capaz de decifrar para a posteridade dizendo: «Elementar, meu caro Holmes!». Na rotina da redacção avolumava-se o tédio. – Que chatice! O legítimo dono dos ossos não aparece! Navegávamos todos já em outras águas, quando um dia me solicitaram: – Estão ali uns senhores. Vêm por causa da notícia do esqueleto... Quase saltei na cadeira. E vinham, de facto, por via do esqueleto, que não saíra do armário, como geralmente acontece por cá, mas de uma moita, como um coelho. Vinham de luto carregado. Tinham lido no jornal as notícias da macabra descoberta e o caso dera-lhes que pensar. O esqueleto, afinal, podia ser de parente, um irmão, há anos desaparecido da terra natal. Haviam tentado tudo, mesmo tudo, para saber dele, mas novas de seu achamento, nem uma. Morreu foi o que foi. Tinham já posto luto e ponto final no assunto («para quê mortificarmo-nos mais?»), quando leram aquilo no jornal. E, abrindo a carteira, puxaram de fotografia: – É este! Podia ser, não há dúvida, que os ossos de um esqueleto ajustam-se decerto como uma luva ao corpo de qualquer mortal. Ficou a fotografia para a notícia. Voltámos ao romance, com larga referência à figura do desaparecido, que a família abatera já ao regimento dos vivos. Seria ele? Em outra latitude, na Holanda, um cidadão português entra, ao fim da tarde, na associação que habitualmente frequenta, como muitos dos seus compatriotas emigrados. Bebe talvez uma heineken, circunstancial fuga ao stress dos dias de Amsterdão, e repete um velho hábito para manter viva a ténue raiz que o liga ao seu país e à região de origem: folheia o “Jornal do Fundão». De súbito, inquieta-se: – É pá! Vem aqui a minha fotografia no jornal! O companheiro do lado, meio incrédulo, foi ver: – É mesmo! Ficou o outro ciente da noticia, um pouco amarelo talvez, e, para mostrar que estava bem vivo, mandou repetir a dose de heineken. Já em casa, depois, quebrou um silêncio de muitos anos. E escreveu para o jornal a dar conta de si: – Tenho muita pena, caros amigo, mas o esqueleto não é meu! Estou de boa saúde e recomendo-me! O caso do esqueleto do Montalvão nunca se esclareceu, permanece um daqueles acontecimentos insondáveis que permite mil suposições, desde o crime perfeito à morte por esquecimento de um «diabo-qualquer-sem-eira-nem-beira». Paciência. Mas as noticias do JF conseguiram, pelo menos, o milagre de recuperar para o número dos vivos, um homem que muitos, a começar pela família, consideravam completamente morto. Querem melhor exemplo da força de uma simples notícia de jornal? [27 de Janeiro de 1989] Poemas António de Navarro Ao Ribeiro Couto Senti ontem a agonia duma flor... Depois do seu perfume ter percorrido toda a natureza em segredo e num silêncio profundo a pequenina corola tombou na haste como a cisma que terminasse o abismo da sua reza. Uma abelha não quis o seu pólen, o silêncio à sua volta cantou melhor — e foi abrir outra flor. Senti ontem a agonia dum homem e lembrei-me da agonia daquela flor... A vida não o quis, como ao pólen a abelha, e a terra vai guardar o seu corpo para guardar o segredo da eternidade. O mistério esvasiou mais um copo do sortilégio e encheu-o de novo de silêncio, de silêncio e de verdade para dar de beber e embriagar a vida daquele que vai nascer e, com o seu amor, amá-lo, [Jornal do Fundão, 26 de Janeiro 1946] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 25 Um cavaleiro de esperanças Fernando Namora 1963 O Jornal do Fundão tinha 18 anos em 1963. Na edição de 8 de Dezembro, O destaque era um artigo de Fernando Namora, sobre António Augusto dos Santos Abranches, natural do Paul. Nesta edição era noticiado também o assalto a uma ouriversaria em Castelo Branco o crescimento de assinantes. Na última página o JF publicava uma fotografia da Miss Mundo. 26 ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 Das batalhas, perdidas ou ganhas, lembram-se os generais. Mas bem sabemos que são os de menos galões, cujo nome, ao fim de alguns anos, ninguém conhece, que prestam o ardor, o sacrifício, para já não falar do heroísmo, sem os quais as odisseias murcham a meio da jornada. Cada geração literária que hasteia uma bandeira oposta à que veio encontrar, e é essa rebeldia que a legitima e alenta, trava uma batalha. Após dois decénios, se a empresa não soçobrou, já se podem contar os que ficaram de pé, os que se renderam ou desertaram, já se podem contar os mortos e os vivos. Morre-se, porém, de muita maneira, como se podem aceitar ou preferir muitas formas de viver. Há os que, morrendo, perduram, e os que, vivendo, agonizam. Em que lista, de triunfadores ou de derrotados se deve, pois, situar este António Augusto dos Santos Abranches – cavaleiro de esperanças, sonhador irremediavelmente adolescente, andarilho, D. Quixote a perseguir, de peito em chama, mil formas de permanecer no mundo dos vivos ? Vou recordá-lo para que saibamos responder. Vou recordá-lo com o respeito que merece um companheiro leal, um lutador que nem as desventuras nem os silêncios vergaram, e com a emoção de quem perdeu um amigo. Na Coimbra de há cerca de trinta anos, entre muitos jovens portadores de fecunda irrequietude, aportou este beirão indócil, confiante, de um lirismo destemperado, que logo trocou as voltas aos planos domésticos de cavar os alicerces de um destino burguês. Nesse viveiro de doutores, o Abranches desdenhou os diplomas e as respectivas mercês; às imposições familiares de, ao menos, assentar praça no comércio que tivesse um atestado de bom-senso e proveito, preferiu um balcão de livros – não de livros escolares, que era negócio fácil, de merceeiro, com clientela na maioria acéfala, mas de livros que lhe trouxessem o convívio daquela meia dúzia de estudantes que lia as «sebentas» por obrigação e devorava um romance, um ensaio, ou soletrava um poema por devoção. Aquela meia dúzia que, fossem quais fossem os obstáculos, os desdens, pretendia esclarecer o seu alvoroço e dar-lhe um rumo e uma voz. Tal clientela não garantia, era bom de prever, um negócio rendável, tanto mais que a lojeca, à esquina de uma das vielas da Sé Velha, longe dos locais es- tratégicos, mal podia contar com o freguês ocasional; e se um deles viesse interromper um animoso colóquio sobre temas políticos ou literários, o Abranches, que tanto podia ser amável como brusco, logo o despedia com duas pedras na mão. Não admitia intrusos. Estaria o Abranches interessado na prosperidade da casa, em apresentar à família um deve e haver eloquente? Eis uma pergunta insultuosa para quem tinha objectivos e ralacões de outra monta: um novo poema, que era diário, um novo desenho, uma nova técnica de gravura, e grosas de livros para ler ao balcão, nas horas mortas da tertúlia, e lia-os em casa, de afogadilho, numa febre de urgências, e em sobressalto, clandestinamente, pois não abrandara a excomunhão paterna. Dizia-se que o Augusto tinha uma reserva privada por debaixo das tábuas do soalho do seu quarto. O Abranches, pois, escrevia poemas, contos, ensaios, numa insaciável e desgovernada prolixidade; o José Marmelo e Silva e outros mais tinham o seu romance na forja. Mas como transformar essa ânsia premente de testemunho e revelação em obra de prelo, único veículo de diálogo, única forma de assinalar activamente uma presença? Dinheiro, não o havia, e os tipógrafos olhavam de viés os estudantes que lhes apareciam portas adentro com mais um projecto visionário, a crédito, apenas afiançado pelo desejo de honrar a palavra. Esse problema afogueou o rosto, de si rubicundo, do Abranches, como já lhe afogueara o cérebro. Pois não tinha ele uma livraria? E grandes editoras não haviam irrompido e medrado por acreditarem nos que, de começo, não conseguem ninguém que neles acredite? E assim nasceu a «Portugália/ Coimbra», a pano solto e frágil e alma rasgada, chancela dos primeiros livros que demarcaram a cepa coimbrã da nova geração. Editora sui-generis, bem entendido, sem alvarás nem contabilistas, e, estou em crer, sem cobradores. Ora aconteceu que esse ingénuo mas fogoso amadorismo teve as bênçãos de certo público e da crítica mais temida. Em escassos meses, as edições da baiuca da Sé Velha usufruiam os escaparates das tais livrarias majestosas que, em regra, descuidam a precária brochurinha provinciana, visto que as tribunas dos mestres da crítica as inculcavam, a toda a largura da página, ao público que se guiava pelas suas sentenças. (Um parêntesis neste particular: honra a João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro, que não hesitaram, antes de mais provas, a dar o seu fervoroso apoio, ao tempo decisivo, a esse alfobre de novos escribas). Assim nasceu em Coimbra, pela mão do Augusto dos Santos Abranches, uma iniciativa editorial que não só congregou, da maneira mais profícua, um grupo de aspirantes à literatura, como lhe instilou a fé e lhe garantiu as oportunidades sem as quais a melhor semente nem chega a germinar. A partir daí, milagre quase inédito na nossa terra, vários foram os editores, dos que fazem contas e cobranças, que abriram os braços a esse letrados de menos de vinte anos: a partir daí, fundaram-se colecções que deram um cariz diferente à vida intelectual portuguesa; a partir daí, os estímulos proliferaram. O corajoso rasgo do Abranches teria sido obra de uma afortunada intuição comercial? Fora seu secreto intento jogar a sua vasa de escritor timorato, que duvida de si, escorando-se nun grupo afoito? Nem uma coisa nem outra: o livro, a edição eram para ele um meio e não um fim; faltavam-lhe aptidões e recursos para solidificar um empreendimento em raízes perduráveis; quanto a ambições de artista, deixou-as sempre na penumbra, sem amargor, sem ressentimento, sem drama, para que fossem outros, os de maior desembaraço, a ir à frente dessa marcha que era sentida como uma saga colectiva. Todavia, nenhum dos companheiros zelou mais pela arte, e lhe foi mais fiel, de todos os modos e em todas as circunstâncias, do que ele. De malogro em malogro, que a vida sempre lhe negou uma aragem de bonança, de mala aviada para um rosário tormentoso de ofícios e de obras, Europa, Africas, Brasis, pois na sua tenda sempre soprou um vento adverso de instabilidade até ao cabo, o Augusto Abranches soube alimentar a sua candeia de filiado nas causas nobres e no culto da beleza. Em todos os seus projectos, em que o sonho nunca soube estribar-se na realidade, o aceno próximo ou tardio era a arte. Por ela, em suma, os homens do senso-comum o condenarão à tumba dos vencidos, enquanto nós, os seus companheiros, os seus amigos, os que lhe devemos um exemplo de pertinácia e de generosidade, aqui estamos a registá-lo, com saudade e admiração, entre os que, porque ousaram, porque creram e persistiram, alimentam o cerne das vitórias. [Jornal do Fundão, 8 Dezembro 1963] ANIVERSÁRIO Janeiro 2012 27