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A ideia de que os rolezinhos são “protestos” e de que seus integrantes querem invadir os “shoppings
dos ricos” é de quem não conhece a periferia. Os rolezeiros querem é se divertir, namorar e comprar
roupas de marca. Tudo bem longe da “playboyzada”
Com reportagem de Pieter Zalis
3
Evandro Farias de Almeida é a Lala Rudge da periferia paulistana. Assim como a blogueira de moda
cujo nome faz estremecer certo público — no caso dela, qualquer adolescente de classe média iniciada no
tema —, Evandro é autoridade no assunto. Qual? Bem, nenhum.
Ele não canta, não dança, não aparece na televisão e é um ilustre desconhecido para a maioria dos
brasileiros. Mesmo assim, Evandro não dá dez passos no Shopping Metrô Itaquera nem no Tatuapé, na Zona
Leste de São Paulo, sem ser abordado por dezenas de meninos e meninas. São seus ardorosos fãs. A
notoriedade de blogueiras famosas como Lala vem de posts em que elas mostram como se vestem, se
maquiam e o que acabaram de comprar. Já a de Evandro e de outros ídolos da internet na Zona Leste vem
dos vídeos que eles postam na rede — piadinhas ingênuas e bizarrices como aspirar uma camisinha pelo
nariz e retirá-la pela boca, raspar uma das sobrancelhas e tirar fotos fingindo-se de morto, com algodão no
nariz. Façanhas como essas lhe renderam 13.000 seguidores no Facebook, além de regalias como ter o
crédito de seus celulares pré-pagos permanentemente recarregados por cortesia das admiradoras. Foi para
conhecê-las pessoalmente — e dar a elas a oportunidade de pedir autógrafos e tirar fotos com ele — que
Evandro e seus colegas de fama passaram a marcar em shoppings da região as reuniões que, até o ano
passado, chegavam a juntar milhares de adolescentes. Foram esses “encontros de fãs” que deram origem aos
hoje mal compreendidos, distorcidos e manipulados rolezinhos.
Eles continuam significando encontros-em-shoppings-marcados-pela internet, aos quais continuam
comparecendo centenas e até milhares de adolescentes — a diferença é que esses adolescentes agora deram
para correr em bandos pelos corredores, berrando refrões de funk ostentação, assustando lojistas,
frequentadores e, ocasionalmente, cometendo furtos. De tudo o que se falou na semana passada sobre os
rolezinhos, o maior equívoco diz respeito à crença de que eles foram inventados por pobres jovens
revoltados por sua exclusão da sociedade de consumo. Para começar, famosinhos e fãs de famosinhos — os
participantes originais dos rolezinhos — são, para usar o termo tão em voga, a elite da periferia. O único
problema que têm em relação ao consumo é não o praticarem tanto quanto gostariam. Conectados e
obcecados por marcas e acessórios de grife, têm o hábito de gastar com eles boa parte do salário (o próprio
ou o dos pais).
Evandro, por exemplo, gosta de comprar camisetas Abercrombie & Fitch e John John. O boné
laranja que usava na última quinta-feira é o preferido entre os sete que possui — das marcas Puma, Mizuno
e Nike. Ele compra as peças em outlets, que vendem coleções passadas e têm preços mais em conta. Mas
poderia adquiri-las também em shoppings luxuosos como o JK Iguatemi e o Cidade Jardim. Evandro, no
entanto, nunca pôs os pés nesses lugares — nem pretende fazê-lo. Essa afirmação coincide com a de
praticamente todos os adolescentes da periferia paulistana entrevistados por VEJA na semana passada. E
contraria o que foi amplamente disseminado por neoespecialistas em rolezinho: os adolescentes da periferia,
4
conscientizados do fosso de impossibilidades que os separa dos seus equivalentes mais ricos, estariam
prontos a promover invasões nos shoppings chiques — manifestações simbólicas contra os templos de
consumo dos quais estariam apartados. Sobre essa possibilidade, diz Evandro: “Por que eu iria ficar duas
horas dentro de um ônibus para fazer compras num lugar em que tudo é mais caro e ninguém me conhece?”.
Em junho do ano passado, o até então obscuro Movimento Passe Livre conseguiu levar às ruas uma
multidão de indignados que, em manifestações multitemáticas e apartidárias, se espalharam por todo o país.
O que aconteceu em seguida todos se lembram. O PT, por meio de seu presidente, Rui Falcão, tentou
surrupiar para si o movimento, no que foi prontamente rechaçado pelos manifestantes. Em seguida, com
intuito semelhante e abrindo alas para os famigerados e violentos black blocs, vieram os sem-teto, os semterra, os sem-causa. A partir daí, fim da história, os bem-intencionados acharam que era hora de voltar para
casa.
O rolezinho segue caminho parecido. Na quinta-feira, sem nenhum pudor pelo oportunismo
explícito, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto convocou o que chamou de “rolezão” diante de um
shopping de São Paulo. O estabelecimento cerrou as portas antes que as coisas piorassem. Na quarta, foi a
vez de a até agora silenciosa e irrelevante ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros (PT), tentar tirar sua
casquinha. “As manifestações são pacíficas. Os problemas são derivados da reação de pessoas brancas que
frequentam esses lugares e se assustam com a presença dos jovens”. A ministra — certamente não por falta
5
de tirocínio — desprezou em sua frase duas obviedades: que não é obrigatório ser branco para assustar-se
diante da visão de centenas de jovens correndo e gritando pelos corredores de um shopping e que os
shoppings que foram alvo dos rolezinhos não são frequentados apenas por brancos — subentenda-se na fala
da ministra, ricos —, mas pelos próprios adolescentes da periferia, suas famílias e seus vizinhos.
No shopping de Itaquera, onde o fenômeno primeiro chamou atenção, apenas 8% dos frequentadores
têm renda mensal acima de 2.780 reais — 33% são das classes C e D, nas quais o ganho não ultrapassa
1.120 reais por mês. Até agora, todos os rolezinhos que ocorreram em São Paulo tiveram como palco
shoppings da periferia: os de Itaquera, Guarulhos, Interlagos e Campo Limpo. Fora desse eixo, o que houve
foram tentativas malsucedidas de emular o fenômeno, organizadas pelos suspeitos de sempre —
representantes de movimentos sociais em baixa e apropriadores profissionais de causas alheias. A
convocação para um rolezinho no Shopping JK, por exemplo, não partiu de nenhum adolescente da
periferia, mas de um professor de piano, morador de um bairro paulistano de classe média e apoiador do exministro e hoje presidiário José Dirceu (“Condenada foi a democracia brasileira”, postou ele no FB ao lado
de uma foto do petista com o punho erguido). Da mesma forma, o chamado para uma invasão do Shopping
Iguatemi de Brasília, marcada para o próximo dia 25, não teve o dedo de famosinhos da Zona Leste nem de
seus fãs: está sendo organizado por um estudante da UnB que participou da invasão do Congresso em junho
passado.
“Rolezinho é para ver os parça (parceiros), curtir, comer lanche e beijar na boca”, define Vinicius
Andrade, 17 anos, morador do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo. Filho de uma assistente de
cozinha, ele trabalha como assistente de dentista, diz que chega a ganhar até 1 .000 reais por mês e usa mais
da metade do salário para comprar as roupas de grife que ostenta, como a camiseta Tommy Hilfiger e o par
de óculos Oakley — tudo legítimo, já que a regra de ouro da ostentação na periferia é que nada pode ser
falsificado (“A gente vê de longe quando uma camiseta da Hollister é colada e não costurada”, diz a
rolezeira Barbara Machado, 17 anos). Na condição de famoso da internet (tem 83.000 seguidores), Vinicius
já convocou dois bem-sucedidos rolês, ambos no Shopping Campo Limpo — o terceiro, marcado para
acontecer no dia 21 de dezembro, foi abortado pela Polícia Militar. Além dos rolezinhos e dos passeios no
shopping, ele e seus amigos são frequentadores dos “fluxos”, como são chamados os bailes funk
organizados no meio da rua em torno de carrões com som potente e ambulantes que vendem bebidas. Uísque
e rum são o combustível para a dança, assim como maconha e lança-perfume, consumidos por uma parcela
menor do público. Uma lei municipal, sancionada em 2013, proibiu carros estacionados em ruas públicas de
emitir som alto, especialmente à noite — e a Polícia Militar passou a agir com bombas de efeito moral e
balas de borracha para dispersar a multidão. Na opinião de alguns jovens, isso ajudou a aumentar a
popularidade dos rolezinhos.
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Olhados como são, os adolescentes dos rolezinhos decepcionam os que tentam ajustá-los aos seus
moldes ideológicos. Suas bandeiras são os bonés de marca, seu interesse é se divertir e, se querem
manifestar alguma coisa com as badernas nos shoppings, é apenas o pior do comportamento adolescente:
irritante, egoísta, inconsequente e que inclui, obrigatoriamente, o desafio a algum tipo de autoridade.
Os black blocs já estão espalhando nas redes que vão aderir aos rolezinhos. Movimentos sociais,
como os capitaneados pela ministra Luiza Bairros, também não parecem querer largar o osso. Assim, diante
da aterrissagem de oportunistas na cena e dos previsíveis excessos da polícia na hora de reprimir todo
mundo, o resultado pode ser o que nem os rolezinhos até agora conseguiram produzir: tirar da classe média
o espaço que ela enxerga como um oásis de tranquilidade e segurança e acabar com a diversão dos pobres de
verdade, que nem bem chegaram à festa e já terão de levar a família para tomar sorvete em outro lugar.
Texto disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rolezinho-eu-nao-quero-ir-no-seu-shopping.
Acesso em 24 de jan. 2014.
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ANA KREPP
15/01/2014 00h30
"Tô ligado que 'os polícia' tão em peso e já sabem quem eu sou" diz Lucas Lima, 17.
De bermuda jeans, camiseta regata branca do UFC, tênis Oakley preto, corrente no pescoço e uma
réplica do relógio Invicta no pulso, ele era um dos 3.000 jovens no shopping Metrô Itaquera, no "rolezinho"
do último sábado.
Mais do que isso, o adolescente organizou o evento daquele dia, que acabou em confusão, confronto
com a Polícia Militar e registros de furtos e roubos.
Desconfiado da ação da polícia, resolveu se precaver. "Vou para casa trocar de roupa e ficar mais
apresentável", disse o estudante do terceiro ano do ensino médio em um colégio público da zona leste que
faz bicos como ajudante de pedreiro.
"Rolezinhos" são encontros marcados por redes sociais que atraem centenas de jovens a shoppings.
Eles entram pacificamente nos locais, mas, depois, costumam promover correria assustando lojistas e
frequentadores.
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Os adolescentes se reúnem em grupos de cerca de 20. Passam correndo por corredores entoando
batidas do funk. Os que vêm atrás se integram aos demais, numa formação conhecida como "bonde".
Nem sempre foi assim. "Rolês" acontecem desde 2012, mas antes eram chamados de "encontro de
fãs" e serviam para que "ídolos" conhecessem os seus seguidores.
Que ídolos? Aqui, leia-se garotos e garotas que não são atores, cantores ou qualquer coisa parecida.
São jovens da periferia donos de perfis "famosinhos" que chegam a ter até 80 mil seguidores no Facebook,
como o caso do adolescente Vinicius Andrade, 17.
Com uma quantidade dessas de "fãs", ávidos por contato, conhecer um por vez seria impossível.
Assim nasceram os "protorolezinhos" que cresceram com o tempo.
O melhor lugar para isso, claro, shoppings afastados das áreas centrais da cidade - os mesmos que
eles sempre frequentaram.
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"Tem que ser em um lugar onde dê pra zoar e tirar foto com o ídolo", afirma Jhenifer, 17, que foi a
sete "encontros de fãs" e passou a frequentar os "rolezinhos" em 7 de dezembro, data do primeiro rolê de
que se tem notícia.
De lá para cá, outros cinco já ocorreram, quase todos com registro de correria.
Estagiária de uma empresa no centro de São Paulo, à Jhenifer só falta uma "carteirinha" para
completar o perfil da fã perfeita.
Dos R$ 700 que recebe por mês, gasta cerca de R$ 100 em presentes para seus ídolos. Isso, fora o
tempo despendido em cartas e recados para eles. Por quê?
"Eles colocam vídeos no Facebook e nos dão atenção. Quero retribuir e que eles saibam que eu
existo", diz.
Entre o "panteão" de ídolos da periferia, está Juan Carlos Silvestre, 16, ou "Don Juan" - como é
conhecido na internet desde 2012. O jovem é o preferido de Jhenifer e tem mais de 50 mil seguidores.
A devoção das garotas é proporcional ao tom sedutor do conquistador do Campo Belo, zona sul, que
costuma terminar suas conversas com um "valeu gata, beijinho".
No dia do primeiro "rolezinho", em 7 de dezembro, em Itaquera, centenas de garotas queriam
encontrá-lo.
De lá, Juan saiu com roupas de marca, ursinhos de pelúcia, cartas, perfumes e uma camiseta oficial
do Corinthians, seu time do coração.
A vida de celebridade da internet, porém, não parece fazer a cabeça do menino. "Neste ano, vou
investir mais na carreira de MC", diz Juan, com a certeza de sucesso que só os ídolos podem ter.
O mesmo caminho querem trilhar David Maciel, 13, e Rodrigo Micael, 16. Os dois também têm lá
suas fãs no Facebook: quase 20 mil cada um deles. Pouco se comparado a "Don Juan", mas o suficiente para
"lotar um pouquinho um shopping", diz David.
Boné para trás, Nike Shox no pé, camisa de marca e corrente dourada pendurada no pescoço, David
costuma ser levado pelos pais até o shopping da zona leste.
Quando soube que o filho tinha fãs, Tatiane Maciel, 30, mãe do garoto, quase caiu para trás. "É
impossível ir com ele a uma loja, as meninas nos param a cada minuto para tirar foto", diz ela, que afirma se
preocupar com um possível "ego inflado" do menino.
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BONDE DO ROLÊ
Nem só de ídolos, claro, são feitos os "rolezinhos" - que ganharam vida própria, transformando-se
em baladas.
Lucas não está entre os famosos, mas nem por isso se diverte menos. Em dois rolês anteriores, ele
garante ter beijado "16 ou 17 meninas", perde-se no cálculo.
E a questão política? "Não perco meu tempo em manifestações, os políticos vão continuar
roubando", diz.
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Durante duas semanas, a Folha acompanhou a rotina dele e de seus amigos, que convocam os
eventos, com o objetivo principal de se dar bem com as garotas.
Lucas não sabia, mas estava "na mira das autoridades" desde o fim do ano passado, quando postou
no Facebook a convocação para o "Rolezinho Shopping Itaquera Part 3", como o nome deixa claro, o
terceiro no mesmo local.
Antes mesmo dos garotos entrarem, oficiais de Justiça já aguardavam na porta para cumprir liminar
que proibia a realização do evento, sob pena de multa de R$ 10 mil por dia a quem fosse pego fazendo
arruaça.
Lucas gasta todo o dinheiro que ganha em roupas de marca, parceladas no cartão.
O centro da sua diversão está no mesmo lugar de onde foi retirado no último sábado. "Vim me
divertir, não fiz nada errado, não roubei, não matei e venho aqui há cinco anos", reclama.
Ele faz parte de um grupo de meninos e meninas que passam os dias conectados no celular e na
internet, combinando os próximos eventos. Querem impressionar e disputam quem vai chamar mais a
atenção "das cocotinhas" e dos "gatinhos".
"A gente só quer ver os amigos, conhecer gente, comer no Mc [Donald's] e acaba apanhando", diz
Letícia Gomes, 15, estudante do segundo ano do ensino médio da rede pública.
O saldo do "rolezinho" de Itaquera, no último sábado, para Lucas: nenhum beijo na boca e um
citação de um oficial de Justiça.
"Onde é que eu vou arrumar esse dinheiro?", diz.
Texto disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1397831-rolezinhos-surgiram-comjovens-da-periferia-e-seus-fas.shtml. Acesso em 24 de jan. 2014.
Texto 1.1.3 – Reportagem
João Fellet
Da BBC Brasil em Brasília
Atualizado em 24 de janeiro, 2014 - 06:49 (Brasília) 08:49 GMT
O crescimento do fenômeno dos rolezinhos e a organização de uma série de protestos contra a Copa
do Mundo voltaram a testar a capacidade dos governantes brasileiros de responder à agitação nas
ruas.
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Nesta semana, o governo federal foi instado pela Associação Brasileira de Lojistas de Shopping
(Alshop) a se posicionar diante da polêmica causada pelos rolezinhos. Inicialmente restritos a shoppings na
periferia de São Paulo, os eventos ganharam a adesão de outros públicos e passaram a ser marcados também
em shoppings em zonas centrais de várias cidades.
O crescimento do fenômeno se deveu à repressão contra participantes por policiais e seguranças e a
decisões judiciais que proibiram alguns eventos.
A Alshop pediu uma reunião com a presidente Dilma Rousseff para tratar do prejuízo de
comerciantes com os atos. A presidente deverá escalar ministros para dialogar com a associação na semana
que vem.
'Não vai ter Copa'
Segundo relatos em jornais, Dilma recentemente convocou uma reunião para tratar do assunto,
preocupada com a possibilidade de que os encontros se transformassem em protestos.
A prefeitura de São Paulo e o governo paulista também têm acompanhado a evolução do movimento
com atenção.
Outro motivo de receio para as autoridades são os protestos agendados para este sábado em várias
cidades do país. "Não vai ter Copa" é o mote das manifestações, que têm sido encaradas como um ensaio
para novos atos contra o Mundial nos próximos meses.
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Para Maria do Socorro Souza Braga, professora de ciências políticas da Universidade de São Paulo
(USP), os governos têm agido com cuidado para não repetir os erros cometidos em junho, quando a dura
repressão policial às primeiras manifestações deram força ao movimento.
"Vejo uma tentativa de se organizar, de preparar as instituições que estão à frente da segurança
pública para que sejam capazes de controlar as manifestações sem meios brutais", ela afirma à BBC Brasil.
Segundo Braga, para tentar acalmar os ânimos, os governantes poderiam intensificar o diálogo com os
organizadores de protestos e lideranças de movimentos sociais.
Para a secretária Nacional da Juventude, Severine Macedo, o governo federal já tem agido para
ampliar a comunicação com esses grupos e com os jovens brasileiros. Ela cita a criação do Observatório
Participativo da Juventude, espaço virtual para discussão de políticas para os jovens, e o siteparticipa.br,
para consultas públicas.
Segundo Macedo, tanto os rolezinhos quanto as manifestações de junho se enquadram num
"conjunto de fenômenos não tão novos que tem ganhado força neste período do Brasil, fruto de mobilidade
social e ampliação do reconhecimento dos jovens quanto a seus direitos".
"Com a melhoria de renda das pessoas, a cobrança se torna maior."
Para ela, a reação do governo a esses movimentos não pode ser pontual.
"Não é por conta de rolezinhos ou manifestações que o governo deve agir, o governo tem que
construir uma agenda de políticas para a juventude e para a ampliação de oportunidades para esses jovens".
As respostas dos governantes, diz ela, devem abarcar a melhoria dos serviços públicos e a criação de
áreas de lazer nas cidades.
Divisão política
Para Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP, não há por ora motivos
para que os rolezinhos gerem entre o governo federal e o PT a mesma preocupação que os protestos de
junho.
Isso porque, segundo ele, diferentemente da onda de manifestações, os rolezinhos têm provocado
"uma divisão política clara, com a direita contra e a esquerda a favor."
Ribeiro avalia, porém, que nem Dilma nem os demais governantes, de forma geral, souberam
responder aos protestos de junho, o que deixa no ar a possibilidade de novas eclosões de revolta.
Para ele, há um "debate político fortíssimo, às vezes até cruel" que dificulta o avanço de políticas de
inclusão que poderiam, com o tempo, atacar os problemas que levaram as pessoas às ruas.
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Um episódio recente que, segundo Ribeiro, exemplifica essa disputa foi a ação da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para frear o aumento do IPTU (Imposto Predial e Territorial
Urbano) em São Paulo.
Por conta da ação da Fiesp, a prefeitura paulistana teve de recuar das alterações planejadas na
cobrança do imposto, o que reduzirá suas receitas neste ano.
"A prefeitura está sendo forçada a fazer mais, há uma demanda maior por serviços públicos, mas não
há um sistema tributário justo que tire mais de quem tem mais para cobrir novas despesas."
E o problema se agrava, segundo ele, porque Dilma e boa parte dos governantes (entre os quais cita
os governadores de São Paulo, Rio e Minas) têm grande dificuldade em se posicionar publicamente sobre a
turbulência nas ruas, em entrar nesse debate.
"Os quatro principais executivos eleitos do Brasil são pessoas que não parecem estar propondo um
rumo."
"De repente chegou uma conta gigantesca que, em 500 anos, a sociedade brasileira não pagou."
Texto disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/01/140111_rolezinho_protestos_mdb_jf.shtml.
Acesso em 24 de jan. 2014
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25/01/2014 14h41 - Atualizado em 25/01/2014 16h09
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Parque Prado fechou por volta das 13h, segundo os comerciantes. Clientes que estavam no Centro de Compras
podiam ir embora.
15
O Shopping Parque Prado, em Campinas (SP), fechou as portas por volta das 13h deste sábado (25) e
pediu que os clientes deixassem o local após a informação de que um “Rolezinho” estava agendado para
acontecer. O que não ocorreu. Os "Rolezinhos" são encontros marcados por jovens que utililizam as redes sociais
para se comunicar.
Um comerciante, que pediu para não ser identificado, disse ao G1 que os clientes que estavam no centro
de compras podiam sair, mas após o fechamento das portas ninguém poderia adentrar ao shopping. Funcionários
de restaurantes que iam trabalhar a partir das 14h foram impedidos de entrar e estavam preocupados em perder o
dia de trabalho. A Polícia Militar e a Guarda Municipal estiveram no local. A informação extraoficial é que o
centro de compras reabriria às 15h, o que não ocorreu.
"Vim almoçar e dei de cara com a porta fechada. Achei um absurdo não deixarem aviso que iam fechar",
lamenta a estudante Mariana Medeiros, de 18 anos. Questionada sobre os "Rolezinhos", a estudante disse que não
vê problema, desde que seja para o lazer dos organizadores.. "Agora, fechar sem saber do que se trata é
preconceito", finaliza. O shopping ainda não se pronunciou, mas distribuiu um comunicado aos lojistas na sextafeira (24). Nele pede que as lojas fechem às 13h e que seja evitado a venda de bebidas alcoólicas para evitar
"exageros". O boletim informa ainda que o centro de compras seria reaberto após o fim do "Rolezinho".
Texto disponível em http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2014/01/temendo-um-rolezinhoshopping-de-campinas-fecha-e-impede-entrada.html. Acesso em 25 de jan. 2014.
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Professores universitários postam no Facebook crítica contra pobre em avião
Do UOL, em São Paulo - Atualizada 07/02/2014 - 12h10
A professora universitária Rosa Marina Meyer postou uma foto de um homem de bermuda e regata
no seu perfil no Facebook na noite desta quarta (5) com o comentário: "aeroporto ou rodoviária?". O
conteúdo dos comentários que seguem a publicação da docente da PUC-Rio também critica a presença de
passageiros pobres nos voos.
"O 'glamour' foi para o espaço", escreveu o reitor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro), Luiz Pedro Jutuca. Ao que a docente respondeu: "Puxa, mas para glamour falta muuuitooo!!!
Está mais para estiva".
Outra colega docente emendou: "E sabe o que é pior? quando esse tipo de passageiro senta
exatamente a seu lado e fica roçando o braço peludo no seu, porque - claro - não respeita (ou não cabe) nos
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limites do seu assento". A frase é a reprodução exata do que a professora Daniela T. Vargas, também da
PUC-Rio, publicou.
Dilma Bolada e internautas bravos
Reproduzida pelo personagem fictício Dilma Bolada, a publicação foi compartilhada por mais de
6.000 outros perfis até às 22h desta quinta (6). Irônica, Dilma Bolada escreveu: "Estou boladíssima: vejam
só o que essa asquerosa postou no Facebook... Esse é o problema de certos animais que não se conformam
que hoje não é só rico que anda de avião no Brasil. Não suportam ter que dividir o mesmo espaço com
pessoas que não pertencem a sua mesma 'classe social'..."
Os comentários dos internautas que seguem o personagem de humor são enfurecidos -- praticamente
todos contra o preconceito social expressado na postagem. Alguns levantam a ideia de que a professora
deveria ser processada.
Por volta das 20h desta quinta (6), Rosa Marina fez um pedido público de desculpas: "Sabedora do
desconforto que posso ter criado com um post meu publicado ontem à noite, peço desculpas à pessoa
retratada e a todos os que porventura tenham se sentido atingidos ou ofendidos pelo meu comentário.
Absolutamente não foi essa a minha intenção".
Rosa Marina também fechou o acesso a suas postagens e trocou a foto do seu perfil pela foto de dois
gatos.
Após a repercussão, o reitor da Unirio também publicou uma nota sobre o caso: "O reitor da Unirio,
professor Luiz Pedro San Gil Jutuca, lamenta a repercussão e a má interpretação de seu comentário em
publicação da rede social Facebook, e garante que não pretendeu, em momento algum, manifestar-se de
forma preconceituosa ou ofensiva. A intenção foi apenas se referir ao estado dos aeroportos no país, que não
remete mais aos tempos passados, e não criticar qualquer pessoa ou comportamento. No entanto, o reitor
reitera o pedido de desculpas àqueles que se sentiram ofendidos pelo comentário."
Texto disponível em http://educacao.uol.com.br/noticias/2014/02/06/professores-universitarios-postam-nofacebook-critica-contra-pobre-em-aviao.htm. Acesso em 07 de fev. 2014.
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O repórter Leandro Machado, em "Os rolezinhos estão aí porque são divertidos" ("Cotidiano", 18/1),
relembrou de alguns pontos de referência que existiam e existem nos bairros para ver e ser visto. Com a
internet e as redes sociais, agora esses pontos de encontro são escolhidos, podendo inclusive ser alvo de
pequenos grupos mal intencionados.
O melhor foi a constatação de que "hoje, com o 'rolezinho' pop, existe o coitadismo, que tenta
vitimar demais o morador da periferia", e que "o pior, penso, é que a periferia virou causa e alvo de críticas
sem antes ser ouvida".
Wilson Aparecido de Oliveira (São Paulo, SP)
Texto disponível em http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2014/01/1400008-leitores-comentam-osrolezinhos-em-shoppings.shtml. Acesso em 23 de jan. 2014.
Texto 1.3.2. – Carta de leitor
Os shoppings estão nas cidades e a segurança pública é responsabilidade dos Estados. Entretanto, os
lojistas envolveram o Judiciário com liminares e agora o governo federal com reuniões por causa do
"rolezinho".
Melhorar a mobilidade urbana e estabelecer áreas de lazer e cultura depende das cidades. A
segurança pública deve ser acionada apenas se houver manifestantes com bandeiras, problema de desordem
ou ameaça de saque.
Luiz Roberto da Costa Jr. (Campinas, SP)
Texto disponível em http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2014/01/1400008-leitores-comentam-osrolezinhos-em-shoppings.shtml. Acesso em 23 de jan. 2014.
Texto 1.3.3. – Carta de leitor
Temos que dar um voto de confiança aos shoppings. Afinal, a ascensão social promovida pelos
últimos governos foi algo tão rápido que de uma hora para outra um novo contingente de pessoas passou a
frequentar esses estabelecimentos, pegando-os de surpresa, já que não prepararam uma estrutura para
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receber um público tão grande. Que museus, teatros e bibliotecas fiquem avisados sobre esse novo
fenômeno.
Geraldo Magela da SILVA Xavier (Belo Horizonte, MG)
Texto disponível em http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2014/01/1400008-leitores-comentam-osrolezinhos-em-shoppings.shtml. Acesso em 23 de jan. 2014.
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Roberto Moll
Nos últimos dias, jornais e articulistas identificados, abertamente ou não, com a direita se apressaram
em revelar que o fenômeno do rolezinho não tem nada de político e, muito menos, de esquerda. As notícias e
as colunas vieram recheadas com falas de participantes do rolezinho, que desmentiam qualquer ação de
caráter político e reafirmavam o desejo de consumo e ostentação, identificados com um segmento do funk.
Portanto, os jovens do rolezinho estariam afinados com o capitalismo, mas de forma bárbara e, ao contrário
do que pensa a esquerda, não tem nenhuma questão racial ou social em seus atos. Nas entrelinhas, o que
faltaria a esses jovens seria um processo civilizador, que não pode prescindir do aparato policial e da
adequação ao espaço privado, sacralizado. Assim, a ação da policia e dos shoppings é quase educativa e não
discriminatória. Afinal, nenhum shopping nunca proibiu a entrada de ninguém, independente do dinheiro
que tem no bolso ou da cor. Ainda nesta lógica, o problema é que uma parte da esquerda, oportunista, quer
direcionar os rolezinhos para um caminho político e criou toda celeuma que envolve a questão. Esta
esquerda, permeada por sociólogos e outros intelectuais, supostamente, desconhece a realidade dos
integrantes do rolezinho porque está confinada aos apartamentos nas zonas mais ricas da cidade, consome do
bom e do melhor nos shoppings e escreve no facebook diretamente de Iphones e bebendo starbucks.
Não há dúvidas de que o rolezinho não é um movimento organizado de anticapitalistas e de
esquerda. Nem é preciso ouvir o funk ostentação para concluir isso. Contudo, dizer que não é um ato
político é outra coisa. Ao menos se considerarmos como atos políticos todos os atos que buscam interferir,
pela manutenção ou transformação, na forma como as relações sociais se estabelecem. Por isso, o rolezinho
é um grito político, daqueles que são frequentemente excluídos dos espaços de consumo e dos desejos
consumistas, que, se realizados, “agregam valor” na sociedade pautada pelo capitalismo do novo milênio.
20
De certo, nenhum shopping nunca deve ter proibido a entrada de negros ou pobres, ainda que alguns, como
um carioca muito conhecido, tenha tentado impor um código de vestimenta nas babás, negras e pobres. Isto
nunca aconteceu porque, felizmente, embora sejam negócios privados, a lei brasileira impede que
estabelecimentos comerciais abertos ao público discriminem a entrada de qualquer tipo de pessoa.
Entretanto, a exclusão do espaço não acontece apenas em sua forma física, mas através da violência
simbólica nos olhares e em cada passo que os seguranças dão para seguir qualquer um que, segundo os
padrões da civilização de consumo, não tem a condição e o direito de estar naquele lugar. É assim, muito
anterior as proibições legais do rolezinho.
Como as próprias falas dos jovens deixam transparecer, o que leva os jovens a “causar” nos
shoppings é a vontade de reafirmar sua existência como sujeito ativo em uma sociedade que valoriza o
consumo. Em outras palavras, como consumidor de bens e lazer. Esta necessidade só existe na medida em
que a exclusão, por discriminação e por falta de outros espaços, é a norma. O que impulsiona os jovens para
o rolezinho é a mesma força que movem outros jovens para esquerda: a percepção de que vivem em uma
sociedade na qual a maioria é excluída das benesses do capitalismo enquanto a minoria goza de privilégios.
Os articulistas antiesquerda não conseguem ver esta identificação e classificam a possível relação entre os
movimentos sociais e o rolezinho como oportunismo. Mas, se os movimentos de esquerda não se
envolvessem seriam acusados de negligência ou algum tipo de elitismo. Os defensores da direita
civilizadora não percebem que os movimentos sociais de esquerda fazem política, como deve ser, e não a
partir de gabinetes institucionais ou de propaganda, modos de operar tão criticados nas manifestações do ano
passado.
Sobra o caviar. Quer dizer, a acusação de que há contradição entre apoiar o rolezinho como
manifestação política voltada para inclusão no espaço consumista e opressor – o Shopping – e a própria
esquerda, que frequenta, tranquilamente, o mesmo espaço sem deixar de consumir. É a famosa esquerda
caviar, que virou tema de livro a fim de mostrar que muitos sujeitos identificados com o fim da desigualdade
não abrem mão da boa vida no Leblon, na Europa e até nos Estados Unidos. Os defensores de tal argumento
são incapazes de perceber ou fingem não perceber que ser de esquerda não é ser contra o desenvolvimento
técnico, a produção e o consumo. Mais do que isso, não sabem ou fingem não saber que desenvolvimento,
produção e consumo não são exclusividade do capitalismo. É óbvio ululante, mas não custa lembrar que
antes do capitalismo, os homens desenvolveram máquinas, produziram e consumiram, primeiro aquilo que é
indispensável a sua vida material e depois aquilo que dá conforto e alivia o peso do próprio esforço de
produção. Ademais, o próprio modo de produção comunista realmente existente impulsionou o
desenvolvimento, a produção e o consumo, ainda que controlado e planejado. Se a esquerda entra e
contradição ao consumir Iphones porque é resultado do capitalismo, a direita capitalista deveria abandonar a
21
agricultura, que não é invenção do capitalismo ou qualquer outra técnica produção anterior ao capitalismo
ou desenvolvidas em países do comunismo realmente existente.
Desenvolver técnicas, produzir e consumir são atividades inexoráveis da vida dos seres humanos.
Quer dizer, quem é de esquerda ou de direita precisa de desenvolver técnicas, produzir e consumir,
sobretudo para viver bem em uma sociedade capitalista. Ser de esquerda não é deixar de desenvolver,
produzir ou consumir. É lutar pela socialização do desenvolvimento, da produção e do consumo.
Certamente, impõe limites ao consumismo que “agrega valor ao camarote”, mas não ao “consumo que
agrega valor a vida”. Para aqueles que não entendem isso, a esquerda não tem lugar: ou cultua a, suposta,
“pobreza cubana” ou é “caviar”. Ademais, a própria produção de um volume sobre a esquerda caviar com
argumentos tão rasteiros revela a debilidade do mercado editorial que patrocina publicação deste tipo
enquanto estudos sérios, de pesquisadores de esquerda e de direita, ou romances de jovens escritores
enfrentam imensa dificuldade de produção. Mas, este é outro tema. Por fim, os mais cínicos dirão que os
rolezinhos são desculpas, de pobres e esquerdistas, para roubar e vandalizar os shoppings. Não parece ser
tônica. As próprias administradoras dos shoppings negam qualquer dano grave. Se existe qualquer infração,
a polícia deve investigar e punir, na medida da lei, os infratores. Bombas, balas de borracha e proibições só
demonstram o preconceito – estabelecido na ideia de que qualquer aglomeração de pobres e negros é uma
ameaça – e a incapacidade da polícia, que ao invés de punir o infrator pune qualquer um com “aparência
suspeita”.
Texto disponível em http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/01/20/a-direita-o-rolezinho-e-ocaviar/. Acesso em 23 de jan. 2014.
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*23
"Rolezinho": Liberdade ou Libertinagem?
Por Felipe Pires Morandini
Nas últimas semanas, surgiu uma nova onda de eventos nos Shopping Centers de São Paulo, que mais
tarde expandiriam para outras cidades do Brasil: O "Rolezinho". Esses eventos, organizados pela internet,
consistem em uma reunião de um número massivo de pessoas dentro de determinado Shopping Center com
o único propósito de se divertir.
22
O evento sempre acaba gerando confusão. Com a entrada dos participantes, aos montes, muitos
clientes saem dos estabelecimentos às pressas, lojistas fecham suas lojas, e, no meio da confusão, infiltramse delinquentes, que se aproveitam da confusão para cometer crimes. Pensando nisso, alguns shoppings se
anteciparam, e obtiveram decisões judiciais que proibiam tal ato.
Ao contrário do shopping Metrô Itaquera, onde o "rolezinho" acabou em violência
na noite deste sábado (11), não foram registrados incidentes nos outros centros
comerciais que também obtiveram decisões na Justiça proibindo os atos.
Os 'rolezinhos' são encontros que atraem centenas de jovens que entram
pacificamente em centros comercias e, uma vez lá dentro, promovem correria.
No JK Iguatemi (zona sul), mais de 2.000 pessoas haviam confirmado presença pelo
Facebook no 'rolezaum', marcado para as 13h30 deste sábado.
Dois dias antes, porém, o shopping já havia conseguido decisão que determinava ao
'movimento' que não se manifestasse na parte interna ou externa do
empreendimento, "sob pena de incorrer cada manifestante identificado" em multa de
R$ 10 mil.
Na decisão, o juiz Alberto Gibin Villela afirma que apesar do direito constitucional
de livre manifestação, o espaço dos shoppings é "impróprio" para a atividade.
(Folha- http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1396696-segurancascobram-identidade-no-jk-iguatemi.s...)
É certo que a Constituição garante as liberdades de locomoção (Art. 5º, XV, CF) e de reunião
(Art. 5º, XVI, CF) como direitos individuais fundamentais, porém tudo isso tem limites. Esses direitos se
limitam ao entrar em choque com outros direitos, dos outros indivíduos. Nesse caso, o direito de reunião
desses jovens esbarra no direito dos lojistas, que pagam uma pequena fortuna para manter suas lojas no
estabelecimento e vender seus produtos. Muitos aceitam pagar mais caro pelas compras no Shopping pela
segurança proporcionada pelo complexo. A partir do momento em que eclodem tais movimentos, a
segurança do estabelecimento se esvai, e os clientes fogem, causando enorme prejuízo para os lojistas e para
o shopping. Quanto à relatividade dos Direitos e Garantias Fundamentais, aduz Alexandre de Moraes:
"Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e
coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados
como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco
23
como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal
por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro
Estado de Direito.
Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal,
portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais
direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio de relatividade ou da
convivência das liberdades públicas).
(MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012)
É certo que o legislador constituinte, ao declarar as liberdades de locomoção e reunião como direitos
individuais fundamentais, não previu tal episódio. É necessário que se formem novas interpretações desses
direitos, de forma que se mantenha um direito vivo e atual, aplicável a todas as novidades da sociedade. O
abuso do direito não deve ser algo tolerado na sociedade, que deve ser harmônica. Ao entrar em sociedade, o
indivíduo abre mão de determinadas liberdades em prol da convivência social, e é essa "boa convivência"
que mantêm a sociedade em funcionamento.
Frente à ameaça de ocorrência de tal evento, os centros comerciais tomam providências drásticas
para impedir os prejuízos por eles causados. É importante ressaltar que, embora o shopping seja espaço
aberto ao público, não é espaço público. Shopping tem dono, e pode ditar as próprias regras (Não havendo
nenhuma atitude propriamente "racista", como foram acusados os seguranças do shopping JK Iguatemi). A
"baderna" e a perturbação do sossego não podem, em nenhum momento ser defendidas, configurando,
inclusive, contravenção, nos termos do art. 42 da LCP.
O "rolezinho", embora aparentemente reunião legítima, não é movimento a ser defendido. É movimento que
visa conseguir diversão mediante algazarra, causando prejuízos aos comerciantes do estabelecimento. A
reunião aparentemente pacífica e inofensiva não é tão pacífica assim, formada por jovens libertinos, que
nada mais visam do que "fazer bagunça". O poder público deve estar atento a esse novo movimento, que
cresceu drasticamente nos últimos dias.
Felipe Pires Morandini é estudante e entusiasta do Direito e das Ciências Sociais
Texto disponível em http://felipemorandini.jusbrasil.com.br/artigos/112341646/rolezinho-liberdade-oulibertinagem. Acesso em 25 de jan. 2014.
TEXTO 1.4.3 – Artigo de Opinião
24
Saudade tem idade e sobrenome
Por Barbara Gancia
Quero propor um experimento de deixar o Hélio Schwartsman radiante: pegue um filhote de lulu da
pomerânia, aquele que parece uma raposinha que teve a má sorte de encostar numa cerca elétrica.
Jogue-o num quintal e deixe-o lá, desatendido. De quando em quando, use um porrete para descer o
sarrafo no bicho. Não se acanhe, bata com gosto.
Ao mesmo tempo, em outro espaço distinto, você coloca outro filhote de lulu da pomerânia,
idealmente que seja da mesma ninhada do primeiro, e o cria sem nunca deitar um dedo nele.
Desconfio que, ao cabo de dois anos, quando os cães estiverem maduros, aquele que apanhou sistematicamente será um tico mais irritadiço do que o outro. Será?
A maioria de nossos jovens de baixa renda, negros e pardos na maioria, já nasce praticamente
apanhando da polícia.
Para essa juventude é rotina ser parado na rua para averiguação. Ninguém é louco de andar sem
carteira de trabalho. Quem não tem, corre o risco de ser confundido com outro "Marcos Ferreira da Silva" ou
outro "Joaquim Souza Costa" que tenham cometido delitos. Se forem, o risco é de passar um bom período na
detenção ou, no mínimo, de ter a dignidade aviltada e tomar uma surra. Essa é a realidade palpável - a
qualquer hora do dia-- para milhares de guris que você e eu cruzamos na rua diariamente.
O mesmo medo que sentimos de tomar um tiro na cara de um assaltante, o jovem da periferia que
tenha entre 8 e 28 anos tem da polícia. A cada farda que vê, camarada pensa: "É agora!" Um líder negro me
explicou que uma das razões que a molecada agora quer passar tempo no shopping é que lá tem câmera para
registrar eventuais excessos cometidos por policiais.
Pergunto: frases como "Vagabundo tem mais é que morrer" ou "A polícia faz bem em matar" não
alimentam o sistema de mais um cão raivoso?
Não existe dicotomia entre democracia e "ordem e progresso". Quem imagina isso é o "clube da
saudade" que não consegue enxergar o fato de que, na época dos militares, quando alguns imaginavam que
reinasse a paz, a perifa cuja existência eles só percebem agora já existia. Só que viviam mais longe, pior e
não ousavam abrir o bico.
Pois agora eles sabem de seus direitos. E o dever de quem sempre esteve por cima, se tivesse alguma
decência, seria dinamitar barreiras e promover mudanças de mãos dadas. Ou foi para ficar tudo igual que
saímos às ruas em junho?
Na quarta, o comandante-geral da PM, general Benedito Roberto Meira me disse que nossa PM "não
é violenta". Para ele pode ser. Mas não é o que pensa a população carente nem o que dizem as estatísticas
que tanto chocam o mundo.
25
E os índices de latrocínio, o mais temido dos crimes, só fazem crescer em SP, donde se conclui que o
especialista em segurança pública, consultor do governo FHC, antropólogo e professor da UERJ, Luiz
Eduardo Soares, está coberto de razão ao colocar como prioridade absoluta a desmilitarização da polícia
(desmilitarização, note, não significa desarmamento). "O objetivo do Exército é defender o território. Para
cumprir essa função, ele se organiza para mobilizar grandes contingentes com máxima celeridade sob ordens
vindas de um só comando. Sua estrutura organizacional é totalmente verticalizada. O exército luta contra o
inimigo. Já a polícia é outro tipo de instituição. Seu papel é prestar serviço, fazer ronda, patrulhamento,
diagnosticar problemas, mediar conflitos, dialogar e evitar a judialização."
"Confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o
Exército, mas correspondem a menos de 1% das atividades da polícia." Só de ouvir uma coisa dessas da
vontade fugir para Miami, não dá, clube da saudade?
Texto
disponível
em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/150169-saudade-tem-idade-esobrenome.shtml. Acesso em 31 de jan. 2014.
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Texto disponível em http://latuffcartoons.wordpress.com/2014/01/15/nossa-centenaria-policia-militar-nosexplica-o-que-e-o-rolezinho-via-revistasamuel/. Acesso em 23 de jan. 2014.
26
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6
Texto disponível em http://www.seuguara.com.br/2014/01/suspeito-de-rolezinho-charge-do-pelicano.html.
Acesso em 24 de jan. 2014.
Texto 1.5.3. – Charge
Texto disponível em http://www.humorpolitico.com.br/preconceito/rolezinho/. Acesso em 24 de jan. 2014.
27
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2
2
Texto disponível em https://www.facebook.com/events/431525700309637/?fref=ts. Acesso em 23 de jan.
de 2014.
28
TEXTO 1.7 – Enquete
Texto disponível em http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/files/2014/01/Captura-de-tela-201401-21-%C3%A0s-13.00.34.png. Acesso em 24 de jan. 2014.
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NEGUINHO – Gal Costa
Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho
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Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem – neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den’dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho
Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nós
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
30
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Texto disponível em http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/gal-costa/neguinho/2523639. Acesso
em 24 de jan. 2014.
Texto 1.8.2 – Música
Neguinho Poeta - Bebeto
Neguinho era um poeta sonhador
sonhava com alguém jamais sonhou
E no anonimato ele vivia
cultivando a flor da ilusão
E assim como todo bom sonhador
havia uma musa em sua vida
a quem ele sempre presenteou
com frases que jamais foram ouvidas
Neguinho, o poeta
Neguinho, o poeta
neguinho poeta
Neguinho, o poeta
neguinho, o poeta
Pelo mundo todo prosa
navegou num mar de rosas
abusou da perfeição
Tornou o feio bonito
transformou o mundo aflito
em amo, em união.
Texto disponível em http://www.kboing.com.br/musica-e-letra/bebeto/85366-neguinho-poeta/. Acesso em
24 de jan. 2014.
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Texto disponível em http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/01/20/a-direita-o-rolezinho-e-ocaviar/. Acesso em 24 de jan. 2014.
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Texto disponível em http://flangoflito.blogspot.com.br/. Acesso em 24 de jan. 2014.
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Texto disponível em http://www.tirinhasdoze.com/2014/01/rolezinho-n-1922.html. Acesso em 24 de jan.
2014.
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CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam. Jovens em situação de pobreza, vulnerabilidades sociais e
violências. Texto disponível em http://www.scielo.br/pdf/cp/n116/14402.pdf. Acesso em 24 de jan. 2014.
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DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude.
http://www.scielo.br/pdf/%0D/ep/v28n1/11660.pdf. Acesso em 24 de jan. 2014.
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DAYRELL,
Juarez.
O
jovem
como
sujeito
social.
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a04.pdf. Acesso em 24 de jan. 2014.
Texto
disponível
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JOVENS EM SITUAÇÃO DE POBREZA,
VULNERABILIDADES SOCIAIS E VIOLÊNCIAS
MARY GARCIA CASTRO
Pesquisadora da Unesco e pesquisadora associada à Unicamp/
Centro de Estudos de Migrações Internacionais
[email protected]
MIRIAM ABRAMOVAY
Consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID
[email protected]
RESUMO
Neste artigo são examinadas algumas dimensões centrais na vida dos jovens de 15 a 24
anos, apreendidas em pesquisa coordenada pela Unesco, sob o título Cultivando vidas. Desarmando violências. Tais dimensões foram consideradas centrais, de acordo com o acervo
de trabalhos sobre jovens em situações de pobreza no Brasil, informações oficiais disponíveis
e o que sentem os próprios jovens, pais e educadores. A amostra constitui-se de jovens
residentes em capitais e em alguns outros municípios. A análise macrorreferenciada é
entremeada de discussões dos agentes sobre o sentido, percepção e importância das dimensões examinadas 1.
ADOLESCÊNCIA – POBREZA – UNESCO – BRASIL
1. As referências e análises qualitativas provêm da referida pesquisa da Unesco sobre experiências de organizações não governamentais e do poder público que desenvolvem projetos nas
áreas de educação para a cidadania, lazer, esporte, cultura e arte. Elas incluem jovens residentes em bairros pobres de capitais e de outras cidades nos estados do Pará, Maranhão, Ceará,
Pernambuco, Bahia, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Foram realizados
grupos focais e entrevistas com jovens, arte-educadores, parceiros das experiências, pais,
mães e responsáveis, membros da comunidade de residência (ver Castro et al., 2001). Recorreu-se também a diversas fontes de informação divulgadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, e pelo CNPD, 1998, e ainda a outras disponíveis no Sistema
de Informação sobre Mortalidade – SIM; Departamento de Informática do Sistema Único de
Saúde – SUS; Cebrid; Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos/Ministério da Educação e da
Cultura – Inep/MEC. O material coletado nos grupos focais constitui a matéria-prima desta
análise.
2002 julho/ 2002
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/
p. 143-176,
143
ABSTRACT
This article presents some central dimensions of life for those from 15 to 24 years old from
the capital cities and some Brazilian towns in the study Cultivando vidas. Desarmando violências coordinated by Unesco. These central dimensions are defined according to the reserve
of information on young people in situations of poverty in Brazil and taking into account
available official information in addition to what the young people, their parents and teachers
have to say. These macro references are combined with excerpts from the discourse of the
subjects on sensation, perception and the importance of the dimensions analyzed.
ADOLESCENCE – POVERTY – Unesco – BRAZIL
MARCO DA ANÁLISE
Após uma visão panorâmica da representação demográfica da população
jovem, focalizam-se temas associados ao trabalho (tipo de inserção no mercado,
segundo o grau de formalidade desse, e uso do dinheiro e obstáculos percebidos
para conseguir um emprego); às atividades de lazer (consideraram-se, nesse caso,
mapa de equipamentos das cidades pesquisadas e oportunidades disponíveis aos
jovens para ocupação do tempo livre nas comunidades de residência); às diversas
formas de discriminação experimentadas por jovens, em especial provenientes do
grupo social de referência.
Está implícita no plano de organização deste artigo a tese de que várias são as
situações que condicionam comportamentos violentos e que “vitimam” os jovens,
em particular os que vivem na pobreza.
A violência, em suas diversas facetas, é tema de análise, com ênfase em significados, manifestações e reações dos jovens, assim como o uso de drogas.
Este é um trabalho de cunho mais exploratório, em que se apresentam tãosomente dimensões e significados das situações analisadas, segundo atores que convivem com jovens em situações de pobreza, e os próprios jovens, em áreas urbanas do Brasil.
Os jovens a que se refere a pesquisa vivem em famílias com renda de até três
salários mínimos per capita, sendo que muitos provêm de famílias de pais e mães
desempregados; alguns já passaram por experiência de viver na rua ou estar envolvidos em atos de delinqüência. Todos estavam, quando da pesquisa de campo,
freqüentando projetos/experiências que investiam em educação para a cidadania,
atividades de lazer, de profissionalização em comunicação e informática, ou participavam de atividades artísticas e culturais, todas voltadas tanto para o direito de acesso a bens culturais como para a formação de valores contrários à violência, além de
144
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
terem como expectativa afastar os jovens de situações de risco. Daí entitular-se a
pesquisa da Unesco: Cultivando vidas. Desarmando violências.
Marco conceitual – vulnerabilidades sociais
Um dos conceitos nucleares deste texto é o de vulnerabilidades sociais.
O conceito de vulnerabilidades sociais tem sido utilizado por distintas agências, mas aqui vamos nos ater a algumas referências, como as de autores da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal – que organizaram, em
junho de 2001, um seminário preparatório para documentos, recorrendo ao conceito para debate sobre a situação da América Latina. Parte-se do conceito corrente
de debilidades, ou fragilidades, para elaborações que fogem do sentido passivo que
sugere tal uso. Na elaboração mais conceitual, vulnerabilidade pede recorrência a
diversas unidades de análise – indivíduos, domicílios e comunidades –, além de
recomendar que se identifiquem cenários e contextos (Vignoli, 2001; Arriagada,
2001, Filgueira, 2001, entre outros). Pede, portanto, diferentemente do conceito
de exclusão, olhares para múltiplos planos, e, em particular, para estruturas sociais
vulnerabilizantes ou condicionamentos de vulnerabilidades.
Durante la década de los noventa, el desarrollo del marco “activos-vulnerabilidad” o
del a set-vulnerability-framework, para expressarlo em su terminologia original, se
volvió una de las ideas mas novedosas de la literatura que estudia el fenómeno de la
pobreza en las sociedades contemporáneas y en particular, en los paises de la periferia. En su concepción inicial, el nuevo marco estuvo orientado por el interés en
demostrar las potencialidades de un abordaje acerca de los recursos que pueden
movilizar los hogares o los individuos, sin circunscribirlo a la noción de capital en
terminos exclusivamente economicos o monetarios.... Recorre a diversas disciplinas, como la sociología, la antropología y la psicología social... con la preocupación
de diseno e instrumentos de políticas sociales (por ejemplo, de combate a pobreza)... identifica activos relevantes para el desempeno de los individuos, como el
“capital social”... (Filgueira, 2001, p. 2)
Com o debate sobre vulnerabilidades sociais pretende-se sair de análises de
posições, morfologias estáticas, e reconhecer processos contemporâneos, remodelações de relações sociais nas quais, sublinhamos, a cultura e a subjetividade não
seriam nem superestruturas, nem serendipities, turbulências laterais. Por outro lado,
tentam-se compreender, de forma integral, diversidade de situações e diversidade
de sentidos para diferentes grupos, indivíduos, tipos de famílias ou domicílios e comunidades. Implícitas estariam as transformações por conta de novos perfis do mundo
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
145
do trabalho ou do não-trabalho, e, como referência mais ampla, por conta de tempos em que modernidade, diversidade e insegurança se combinam, e em que múltiplos sistemas de normas de discriminações se combinam, mas guardam identidades próprias.
Ademais, vários autores, como os citados, recorrem, por exemplo, ao conceito de vulnerabilidades sociais para tentar desconstruir sentidos únicos e identificar
potencialidades de acionar atores e atrizes para resistir e enfrentar situações socialmente negativas. Haveria portanto uma vulnerabilidade positiva, quando se aprende, pelo vivido, a tecer formas de resistências, formas de lidar com os riscos e
obstáculos de modo criativo. O conceito constituinte desse plano de vulnerabilidade
(a vulnerabilidade positiva) seria subsidiário dos debates de Bourdieu (2001) sobre
capital cultural, social e simbólico, ou seja, o que se adquire por “relações de comunicação”, tomando consciência de violências simbólicas, do que aparece como arbitrário. É quando as vulnerabilidades vividas trazem a semente positiva de “um poder
simbólico de subversão” (p.15)
Avança-se, no texto de Vignoli (2001) para o reconhecimento de que o
enfoque de diretos humanos, e neste, o de direitos específicos em relação à existência de específicos sistemas de adscrições e discriminações, assim como de específicas linguagens quanto a sentidos, não deveria ser congelado como figura de retórica no discurso político, ou princípio abstrato. Em estudos sobre vulnerabilidades
sociais que acessam os indivíduos, as famílias e grupos na comunidade, tende-se a
trabalhar com o esperado em diferentes sistemas de linguagens, reconhecendo a
força da subjetividade, do desejo, e a distância entre o vivido e o esperado quanto a
direitos humanos.
É preciso, contudo, pesquisar mais sobre ambientes ou “inseguranças e incertezas” (Vignoli, 2001; Cepal, 2000), bem como sobre o reconhecimento do
direito a ter direitos, tal como o refere Hanna Arendt no debate sobre cidadania
(apud Duarte 2001). Para tanto, é necessário recorrer a diversos planos analíticos.
Análises sobre vulnerabilidades contemporâneas na América Latina, como a
“juvenilização” da mortalidade, em particular entre grupos na pobreza e por causas
violentas, sugeririam, por exemplo, que não basta referir-se a direitos individuais,
mas também de grupos e gerações e a características de um tempo e de sociedades. Quais seriam as marcas desta geração, e de gerações nessas sociedades?
Afetam a geração dos jovens, o desencanto, as incertezas em relação ao
futuro, o distanciamento em relação às instituições, a descrença na sua legitimidade
e na política formal, além de resistência a autoritarismos e “adultocracia”. Nesse
146
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
caso, a escola e a família já não teriam a mesma referência que tiveram para outras
gerações, além de que há diversidades quanto a construções dessas referências em
grupos em uma mesma geração. Por outro lado, o apelo da sociedade de espetáculo e o apelo aos padrões de consumo conviveriam com chamadas para a responsabilidade social e o associativismo. Essas e outras tendências contraditórias também
potencializariam vulnerabilidades negativas e positivas (no sentido de fragilidades,
obstáculos, capital social e cultural e formas de resistência no plano ético cultural).
Dessa forma, discutir juventudes pede discutir modernidade e sua realização
em distintos planos e para distintos grupos sociais.
Autores de textos que subsidiam a Reunião de Cúpula da Cepal, que será
realizada em Salvador, Bahia, em 2002, e cujo tema são as vulnerabilidades sociais,
ao se referirem ao enfoque de vulnerabilidade, consideram os “choques para as
comunidades, lares e indivíduos”, o “enfoque dos riscos” e o “enfoque dos ativos”,
ou a intenção de identificar “recursos mobilizáveis nas estratégias das comunidades,
lares e pessoas” (Vignoli, 2001, p. 58). Caberia, por outro lado, ter o cuidado de
não incorrer em uma falácia de níveis equivocados, devendo o pesquisador estar
consciente de que pode haver contradição de sentidos também entre subunidades,
ou componentes de uma determinada unidade, por exemplo, entre pais e filhos, ou
membros da família homens e outros membros, mulheres. Não basta, portanto,
referir-se a famílias vulneráveis (Arriagada, 2001).
Recorre-se, no léxico cepalino, junto com a vulnerabilidade, a termos emprestados da lógica de mercado, como capital social, riscos e ativos. Cabe, portanto, também investir mais na crítica dessa lógica – o que foge, por agora, ao âmbito
deste texto – para que, recorrendo ao conceito de vulnerabilidade, não se escorregue no mesmo viés dos debates sobre exclusão e pobreza, como se os jovens mais
vulneráveis fossem considerados não como parte, mas excluídos ou fora do sistema, o que levaria a ficar com indicadores de posição, sem avançar na análise para
compreender processos e relações sociais.
Em resumo, autores que recorrem hoje ao conceito de vulnerabilidades sociais (Vignoli, 2001; Filgueira, 2001; Arriagada, 2001) indicam a dialética possível no
uso do conceito, referindo-se tanto ao negativo, ou seja, a obstáculos para as comunidades, famílias e indivíduos, assim como a riscos, quanto ao positivo, considerando possibilidades, ou a importância de se identificarem “recursos mobilizáveis
nas estratégias das comunidades, famílias e indivíduos” (Vignoli, 2001, p. 58).
Neste artigo, opta-se pelo descrito por jovens, animadores nos projetos,
pais, mães e responsáveis, destacando-se o negativo – tônica comum, em particular
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
147
nas falas dos jovens –, mas, por outro lado, alertando para a possibilidade do positivo – ou seja, a consciência quanto a riscos e obstáculos vividos e a busca de uma
ética de vida que representaria um capital simbólico e cultural, que se insinua no
exercício da crítica social.
REPRESENTAÇÃO DEMOGRÁFICA DOS JOVENS
Nas capitais e em alguns municípios em que foi realizada a pesquisa, a coorte
entre 15 e 24 anos correspondia, em 1998, a cerca de 1/5 da população. Os percentuais
encontrados variam do mínimo de 17%, no Rio de Janeiro, e de 19%, em São Paulo,
ao máximo de 24%, em São Luís (Tabela 1). Nessas localidades a participação dos
jovens na população total é superior à registrada no Brasil como um todo, em 1995
(8,5%), o que confirma a concentração juvenil nas áreas urbanas (78% em 1996).
Praticamente não há diferenças na distribuição por sexo nessa faixa etária.
Segundo estudos sobre a dinâmica populacional do segmento jovem, ainda
que acompanhando a redução do ritmo de crescimento da população, somente
no período 1991/1996, em todo o Brasil, esse grupo etário cresceu a uma taxa
média anual de 1,7%, contabilizando-se cerca de 31 milhões de jovens em 1996.
Note-se que, na maioria das regiões metropolitanas – RMs – (referências para
algumas capitais e municípios desta pesquisa, com exceção de Recife), ocorrem
taxas médias de crescimento anual da população entre 15 e 24 anos, bem superiores ao país como um todo, a saber: Belém, 2,43%; Fortaleza, 2,26%; Salvador, 3,14%; Vitória, 3,37%; Rio de Janeiro, 1,12%; São Paulo, 2,51% e Curitiba,
3,81% (Oliveira et al., 1998).
Tais dados por si já sinalizam a importância de políticas públicas para esse
expressivo contingente da população. Por outro lado, os dados anotados indicam o
crescimento dessa coorte, em que pese a tendência recente ao envelhecimento
demográfico da população brasileira. Como observa Madeira, referindo-se ao ritmo de crescimento da população entre 15 e 24 anos, seria pertinente destacar, no
panorama demográfico brasileiro, uma “onda jovem”, chamando a atenção para o
fato de que estaríamos “vivendo um pico abrupto no número de adolescentes, cuja
média gira em torno de 17 anos” (Madeira, 1998, p. 431).
TRABALHO
Vários estudos alertam para a situação de vulnerabilidade dos jovens quanto
ao trabalho, sendo esse um dos contingentes populacionais que apresentam algu-
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
TABELA 1
POPULAÇÃO ENTRE 15 E 24 ANOS NA POPULAÇÃO TOTAL,
POR SEXO, SEGUNDO CIDADES SELECIONADAS, 1998 (%)
Cidade
Homens
Mulheres
Total
Belém
23 (553.204)
23 (616.664)
23 (1.169.868)
São Luís
23 (378.660)
25 (436.999)
24 (815.659)
Fortaleza
20 (959.251)
21 (1.091.542)
21 (2.050.793)
21 (634.416)
20 (729.507)
21 (1.363.923)
Camaragibe
23 (56.268)
22 (59.647)
22 (116.275)
Cabo de Sto. Agostinho
23 (72.148)
22 (74.353)
23 (146.501)
22 (1.066.327)
23 (1.202.220)
22 (2.268.547)
Cuiabá
22 (218.581)
22 (227.656)
22 (446.237)
Vitória
20 (127.022)
20 (141.971)
20 (268.993)
Rio de Janeiro
18 (2.616.395)
16 (2.950.498)
17 (5.566.893)
São Paulo
20 (4.749.910)
19 (5.145.276)
19 (9.895.186)
20 (744.178)
20 (804.170)
20 (1.548.348)
Recife
Salvador
Curitiba
Fonte:FIBGE, 2001. Os números absolutos correspondem ao total sobre o qual foram calculados os percentuais em
cada categoria.
mas das mais altas taxas de desemprego e de subemprego no país 2. Eles enfrentam
problemas singulares quanto à primeira inserção no mercado, o que, em alguma
2. Em 1995, dos 4,5 milhões de desempregados no Brasil, cerca de 48% (2,1 milhões) eram
jovens – entre 15 e 24 anos. Ou seja, ll,1% dos jovens no mercado de trabalho, de fato,
estariam procurando trabalho, na semana da coleta de dados da PNAD. Nas regiões metropolitanas havia, em 1995, “uma taxa média de desemprego juvenil da ordem de 16,2%,
sendo que no grupo social mais pobre – até meio salário mínimo per capita – essa porcentagem se eleva a 27,1% e, no seguinte – de meio até um salário mínimo per capita –, a 20,7%”
(Arias, 1998).
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
149
medida, deve-se à exigência dos empregadores de prova de experiência. É também uma população que tem demandado novos enfoques da educação e qualificação profissional, não acessíveis aos jovens de famílias pobres. De fato, as mudanças
no mundo do trabalho, a desregulamentação e a flexibilização da economia demandariam habilidades nem sempre disponíveis entre os jovens de setores populares –
como conhecimentos em informática e línguas estrangeiras – isso em contexto de
diminuição dos postos de trabalho para grande parte da população.
No Brasil, a população economicamente ativa – PEA – de 15 a 24 anos
correspondia, em 1995, a 65,2% dessa faixa etária, representando 18,8 milhões de
jovens (Arias, 1998). Portanto, a partir da realidade atual (o que não corresponde a
uma situação ideal) – haveria a necessidade de se criarem fontes de sobrevivência
para grande parte da população jovem e para familiares que dependem do seu
trabalho – quer no sentido de minimizar os atritos entre participação no mercado
de trabalho e o investimento educacional a largo prazo, quer no sentido de investir
mais na qualificação desses jovens3.
Entre os jovens com participação ativa no mercado de trabalho encontramse diferenças segundo o tipo de inserção – trabalho formal ou informal – e também
por sexo, como se registra na tabela 2.
Ao se compararem os dois tipos de inserção no mercado – formal e informal – observa-se (Tabela 2) que os percentuais de jovens que realizam trabalho
formal são significativamente inferiores aos que executam atividades informais. Os
primeiros variam do mínimo de 15% para ambos os sexos, em Belém, ao máximo
de 27% das moças em Curitiba. Já os que executam trabalho informal são bem mais
numerosos, variando do mínimo de 31%, no Rio de Janeiro, para os dois sexos, ao
máximo de pouco mais de 40% de rapazes e moças, em Curitiba (FIBGE, 2001a).
Situações no trabalho
Para freqüentar os projetos de arte, cultura, esporte e outros que constavam
das experiências pesquisadas, exige-se que os jovens estejam matriculados em uma
3. Importante notar que o intervalo etário de 15 a 24 anos esconde realidades heterogêneas
quando o foco é participação no mercado de trabalho, em especial, em horizonte diacrônico.
Segundo Arias (1998) enquanto a taxa de atividade do grupo de 15 a 19 anos caiu de 59,8% em
1992, para 56,6%, em 1995, já aquela relativa aos jovens entre 20 e 24 anos se manteve
inalterável no período, cerca de 75%. Esse autor também adverte sobre marcas de classe na
relação entre juventude e trabalho. Em 1995, no Brasil, cerca de 39% dos jovens estariam em
famílias sem rendimentos ou com rendimentos per capita de apenas até meio salário mínimo.
150
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
TABELA 2
POPULAÇÃO DE 15 A 24 ANOS NA POPULAÇÃO ECONOMICAMENTE ATIVA
(PEA), POR TIPO DE INSERÇÃO NO TRABALHO (1) E POR SEXO,
SEGUNDO CIDADES SELECIONADAS, 1998 (%)
Cidade
Tr a b a l h o
formal
homens
Tr a b a l h o
formal
mulheres
Tr a b a l h o
informal
homens
Tr a b a l h o
informal
mulheres
15 (80.973)
15 (52.977)
33 (44.113)
35 (19.232)
Fortaleza
21 (237.211)
18 (160.172)
38 (148.553)
32 (77.849)
Recife
19 (298.657)
17 (159.581)
39 (137.730)
39 (58.833)
Salvador
18 (291.142)
16 (204.151)
31 (103.599)
33 (56.834)
Rio de Janeiro
17 (1.341.159)
17 (770.805)
31 (364.223)
31 (364.223)
São Paulo
23 (2.175.465)
26 (1.413.303)
39 (755.054)
34 (392.271)
25 (339.609)
27 (218.219)
42 (95.013)
41 (43.068)
Belém
Curitiba
Fonte: FIBGE, 2001. Os números absolutos correspondem ao total sobre o qual
foram calculados os percentuais em cada categoria.
(1) Trabalho formal: trabalhadores com carteira assinada, militares e funcionários
públicos estatutários. Trabalho informal: todas as demais categorias,
denominadas “outros”.
escola pública e, em muitas, acompanha-se o seu rendimento escolar. Considerase que o tempo de ser jovem é tempo de formação educacional, então o ideal é
que não estejam trabalhando, mas também, em muitos casos, são oferecidas oportunidades aos jovens para desenvolverem atividades remuneradas no campo das
experiências, como artistas e monitores.
Há um consenso de que o desejo dos jovens é se empregar logo, sendo
comum a sua apreensão e de seus pais acerca do futuro. O trabalho tem uma
centralidade referencial, é uma preocupação constante. Por outro lado, o emprego
que muitos exercem é irregular ou instável, realidade tanto na vida dos beneficiários
dos projetos como na de seus pais, muitos dos quais estão desempregados. Os
depoimentos que se seguem, colhidos em grupos focais com educadores e familiares no âmbito da pesquisa, corroboram a concentração do público jovem em atividades informais, desnudando tanto as precárias situações vividas nas relações de
trabalho como a vulnerabilidade a explorações (ver quadro 1).
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
151
QUADRO 1
MUITOS ESTÃO ESMOLANDO...
Muitos jovens são engraxates, fazem pequenos bicos, pequenas entregas,
fazem montagens de coisas, alguma pintura, qualquer atividade que requeira baixo conhecimento. Ajudam o pai a fazer trabalho de pedreiro, vão
capinar, outros são flanelinhas, e há quem trabalhe vigiando carros. Alguns,
aqueles que têm um pouco de sorte, vão ser contínuos, mas a grande maioria
está no mercado informal, não tem carteira assinada, não conhece seus
direitos, é explorada.
Muitos estão esmolando, vendendo em feiras livres, mercados, e nos finais de
semana, vendendo também nas praias. À noite muitos dos jovens também
vendem na rua. (Entrevista de educadores com experiências com jovens)
O significado e a importância do trabalho
Os jovens entrevistados frisam ser de extrema importância conseguir um
trabalho, como meio de sobrevivência individual e, muitas vezes, de suas famílias,
ou mesmo como a forma de atingir a independência financeira necessária para se
sentirem pessoas e construírem sua auto-estima, ou seja, como meio de inspirarem
respeito na comunidade. Também insistem que a remuneração proporcionada pelo
trabalho possibilita-lhes maior autonomia no plano das relações familiares: “não ficar
dependendo do dinheiro da mãe”, por exemplo.
Os jovens, a modo dos pais, enfatizam a importância do trabalho como forma de ocupação do tempo e da mente, o que os impediria de pensar em cometer
qualquer infração. Assim, afirmam que, se houvesse emprego, muitos jovens não
estariam envolvidos em atividades ilícitas. Segundo mães entrevistadas: “Como diz
o outro: ‘cabeça parada, oficina do diabo’. [...] O trabalho foi importante para o
amadurecimento de meus filhos”.
Contudo, paradoxalmente, o trabalho tanto pode ser meio para afastar-se
das drogas como para assegurar o acesso a elas. Em alguns casos, parte do dinheiro
que os jovens conseguem é usada para comprar drogas: “eu compro roupa, compro maconha, cola, crack, cocaína”.
152
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
Em outros casos, trabalho e violência se associariam, por não dependerem da
vontade dos jovens e remeterem a situações que atingiriam não só os jovens, mas os
trabalhadores que residem nas periferias:
O que mais preocupa é quando o cara vai para o serviço, tem que acordar às cinco
horas da manhã, e aí sai e vai seguindo a estrada. Não sabe se tem um maconheiro
fumando e rodeando a estrada. Isso aí é uma preocupação porque o cara trabalha e
não sabe o que tem pela frente. (Grupo focal com jovens)
Obstáculos percebidos quanto a ter um trabalho
Alguns pais entrevistados reclamaram que os filhos fazem cursos profissionalizantes, mas depois, quando saem, não aplicam o conhecimento adquirido devido
às dificuldades para conseguir emprego. Destacam a falta de perspectiva, em relação ao futuro, para o jovem.
As dificuldades mais comuns para os jovens conseguirem emprego, segundo
os entrevistados, são:
• a alegação de falta de experiência por parte de empregadores;
• a exigência do 2º grau e de conhecimentos de informática;
• a falta de preparo escolar para a competição no mercado;
• a discriminação por residirem em comunidades periféricas, o que limitaria
suas oportunidades;
• preconceito racial;
• em vários casos, o envolvimento do jovem com a violência e a criminalidade
seria destacado como um dos maiores impedimentos à sua inserção no
mercado de trabalho, uma vez que, em diversas experiências, alguns
beneficiários já cometeram pequenos delitos e esbarram na exigência do
certificado de bons antecedentes para conseguir um emprego.
A esses obstáculos se somam outros, relacionados ao avanço tecnológico,
dificilmente acompanhado pelas camadas de baixa renda, gerando um apartheid
ocupacional e digital, segundo expressão do coordenador de um dos projetos
pesquisados:
Enquanto um terço dos europeus acessa a Internet, no Brasil, só 4% da população
acessam a Internet e só 9% têm acesso a computadores, no trabalho ou em locais
públicos. Desses 4% que acessam a Internet, 16% são da classe média e apenas 4%
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
153
de setores populares. Essa situação já configura uma situação de apartheid digital, em
que estão se formando legiões de excluídos tecnológicos. Então uma ação emergencial
pra combater o analfabetismo digital é fundamental para essa população de baixa
renda que precisa ter acesso ao que a tecnologia traz em termos de mercado de
trabalho, oportunidades de serviço, de lazer e entretenimento, e principalmente de
educação. (Entrevista com coordenador de projetos)
Pais, educadores e líderes comunitários enfatizam que a falta de alternativas de
trabalho para os jovens dificultaria atingir as propostas dos projetos, bem como afastá-los
de situações de violência, influenciar comportamentos e valores e incentivar posturas
éticas de compromisso social.
A exclusão dos jovens, em particular das classes trabalhadoras e de setores
populares, leva também ao desencanto em relação ao valor da escolaridade.
De fato vários jovens entrevistados manifestam desalento, sugerindo a perda
do significado da escolaridade como credencial para o trabalho, expressão de uma
conjuntura que eles próprios estranham: “Falta emprego para quem tem escolaridade ou não. Tem gente por aí formado, e não consegue emprego”.
Muitos pais e animadores das experiências analisadas são bastante críticos
acerca do lugar da escolarização na história de vida ocupacional de seus filhos, questionando o valor da escola em si, devido à qualidade do ensino e sua inadequação às
demandas do mercado:
Uma escola que não é interessante, uma escola que na verdade não busca esse jovem,
que espera que esse jovem se enquadre a uma estrutura que é defasada, um ensino
pouco interessante com metodologias ultrapassadas. (Coordenadora de projetos)
Ainda que se registrem reflexões críticas sobre a relação entre o ensino formal e o engajamento no mercado de trabalho, de uma forma ambígua, também os
jovens, como seus pais, buscam valorizar a escolaridade como fundamental para
alcançar bons postos no mercado de trabalho: “Porque a primeira coisa que se
exige para conseguir emprego é estudo, até para ser catador de lixo”.
Mais consensual é a leitura dos efeitos do desemprego e do afastamento da
escola no condicionamento de desencantos, na baixa auto-estima e na insegurança
que, por sua vez, seriam possíveis desencadeadores de envolvimentos com violências e drogas:
Um problema é o desemprego e o outro é o pessoal não ter a questão da educação, um grande número não está estudando, uma parcela muito pequena que estu-
154
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
da. Desemprego gera o quê? Desmotivação, baixa auto-estima; o fato de não estar
estudando deixa eles despreparados para o mercado de trabalho e isso os leva a se
envolver com outros tipos de atividades não saudáveis, como drogas e outras coisas. (Entrevista com diretora de projeto de ONG que trabalha com jovens)
Contudo, haveria que “relativizar”, por um lado, a idéia de que o desemprego é uma situação associada tão somente à falta de escolaridade e, por outro lado,
que seja um problema de grupos jovens. Informações sobre outros contingentes
populacionais sugerem ser este um dos problemas de um tempo, de uma sociedade. Por exemplo, o saldo entre admissão e desligamento do emprego na população
TABELA 3
TRABALHADORES ADMITIDOS E DESLIGADOS, SEGUNDO CIDADES
SELECIONADAS, EM DEZEMBRO/2000 (NÚMEROS ABSOLUTOS, SALDO E RAZÃO)
Cidade
(a) Total de
admitidos
(b) Total de
desligados
Saldo (b-a)
Razão (b/a)
Belém
4.163
5.246
-1.083
1,26
São Luís
2.604
3.031
-427
1,16
Fortaleza
9.901
10.829
-928
1,09
Recife
7.724
8.777
-1.053
1,14
Camaragibe
128
164
-36
1,29
Cabo de Sto. Agostinho
334
389
-55
1,16
Salvador
9.452
10.838
-1.386
1,15
Vitória
3.829
4.327
-498
1,13
Rio de Janeiro
43.031
47.311
-4.280
1,1
São Paulo
66.895
83.285
-16.390
1,25
Curitiba
14.439
19.222
-4.783
1,33
Cuiabá
2.864
3.512
-648
1,23
Fonte:MTE – Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, 2001.
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
155
total, conforme os dados do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE – na tabela 3,
mostra-se negativo em todas as cidades focalizadas, sendo particularmente elevado em
Curitiba, Camaragibe, Belém, São Paulo e Cuiabá.
Os dados da tabela 3 reafirmam a tese de que não apenas os jovens têm de
enfrentar os obstáculos próprios ao primeiro ingresso no mercado de trabalho, mas
que devem fazê-lo em uma conjuntura adversa para a classe trabalhadora: “O desemprego afeta os jovens porque os pais não têm trabalho, isso afeta muito o jovem. Muitos, jovens ou não, vão traficar já que não encontram emprego, então vão
achar jeito de ganhar dinheiro” (Grupo focal com mães).
Entre os jovens empregados também são comuns as críticas às relações de
trabalho, à remuneração, sendo freqüente considerarem que o trabalho atual
pouco contribui para suas vidas futuras. Reclamam da falta de reconhecimento
profissional e da falta de oportunidades de mobilidade na atividade que realizam.
Já entre os jovens que estão no mercado de produção artística, mesmo quando
fazem esporádicas apresentações ou com baixa remuneração, são mais comuns
declarações positivas sobre o que fazem, sugerindo haver compensação do ganhar pouco por estarem no que gostam, o que, por outras avaliações, dá-lhes
alguma gratificação.
Lazer
Lazer pode associar-se tanto a estímulo como a antídoto contra violências.
Os indicadores sobre equipamentos culturais no Brasil justificam e reforçam
a preocupação com a falta de espaços de lazer e de cultura para a população jovem,
em especial para aqueles em situações de pobreza. Cerca de 19% dos municípios
brasileiros não têm uma biblioteca pública; cerca de 73%, não dispõem de um
museu; cerca de 75%, não contam com um teatro ou casa de espetáculo, e em
83%, não existe um cinema. Predominam carências também quanto a ginásios
poliesportivos, já que cerca de 35% dos municípios não contam com tal equipamento, enquanto que em 64% deles não há uma livraria (FIBGE, 1999). Na maioria das cidades capitais há menos de uma biblioteca para cada mil jovens. Já a situação quanto a cinemas também deixa a desejar. Em São Paulo, por exemplo, conta-se
com 0,04 cinemas para cada mil jovens que aí moram.
Depoimentos colhidos na pesquisa corroboram as hipóteses sobre uma desigual distribuição desses equipamentos entre áreas da cidade. Nas comunidades
pobres, seriam escassas as oportunidades de os jovens usufruírem de bens culturais
e terem acesso ao capital cultural e artístico cultivado pela humanidade e parte do
156
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
patrimônio nacional. Quando indagados a respeito de seu lazer, os jovens respondem
que jogam bola. A praia, eventuais festas e brincadeiras também são citadas como opções
de lazer. Divertem-se escutando música – gostam de ouvir rap, axé, samba, rock e funk
– tocando em bandas, ensaiando em grupos de pagode, reggae, grupos de dança, andando de skate, e declaram que alguns “bebem muito”. À noite, alguns passeiam, ficam pelas
ruas.
Além da falta de equipamentos nas comunidades, os jovens circulam em raio
restrito, segregados nos seus bairros, não necessariamente exercendo direitos de
cidadania social, como, o benefício do uso da cidade em que vivem.
A carência de atividades de diversão na comunidade é explorada pelo tráfico
que, em muitos lugares, marca presença, ocupando um espaço deixado em aberto
pelo poder público, constituindo referência para os jovens.
QUADRO 2
O TRÁFICO FORAM NOSSOS HERÓIS
[Os traficantes] Colocaram lazer na comunidade, organizaram o futebol,
coisa que a comunidade ama. Colocaram o baile funk, que na época a gente
adorava. Colocaram uma série de outras atividades, assim, para animar a
comunidade. Poxa, os traficantes foram os nossos heróis, entendeu? Na
época, os traficantes eram os meus heróis e não os policiais.
(Grupo focal com jovens)
Discriminação
Os jovens sentem-se discriminados por várias razões: por serem jovens,
pelo fato de morarem em bairros da periferia ou favelas, pela sua aparência física,
pela maneira como se vestem, pelas dificuldades de encontrar trabalho, pela condição racial e até pela impossibilidade de se inscreverem nas escolas de outros bairros. Há reações contra os jovens que aprendem dança e música, e eles próprios
são violentos contra os homossexuais, ou seja, reproduzem discriminações.
Na medida em que existe uma representação social da juventude como irresponsável, muitos são discriminados simplesmente por ser jovens, o que diversos enfatizam. Os adultos desconfiam deles, não acreditam na sua capacidade, o que muitas
vezes rebaixa sua auto-estima, faz com que se sintam desrespeitados e maltratados:
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
157
Eu acho isso também discriminação. No mundo de hoje, em termos de trabalho,
assim o jovem é muito, vamos dizer, considerado irresponsável. Porque um erra e
eles culpam geral. Todo mundo quer objetivo na vida. Pois é, eu acho as portas têm
que ser mais abertas para os jovens acreditarem mais. Você não pode, hoje, julgar
cem mil por causa de um. O dono de empresa pensa muito, vamos dizer, assim, se
tem 35 anos e eu 17: “Ah, não quero não, ele vai faltar, chegar tarde, não vai ter
responsabilidade”. (Grupo focal com jovens)
Um outro motivo de discriminação é o estigma de morar na periferia, que é
associada com miséria, violência e criminalidade. Assim, o local de moradia, por si
só, é um fator de exclusão no trabalho e na escola. Tais discriminações são reforçadas por não aceitarem, os adultos e a mídia, uma maneira de vestir que é peculiar
não somente a esses jovens, os pobres, mas que no seu caso codifica-os negativamente:
Na verdade, a mídia acaba criando uma resistência da sociedade para com os jovens
de periferia. Cria um paradigma em que esse jovem é qualificado como um marginal
por não ter condição social de andar bem-arrumado. Então a sua pequena tatuagem, o seu short, o seu brinco, a sua condição de ser negro, por exemplo, já há
uma discriminação terrível, que se torna muitas vezes um critério de avaliação, se o
jovem é bandido ou não. (Entrevista com coordenador de projeto)
A percepção sobre determinados bairros, como violentos, leva a exclusões
imediatas, fechando também as possibilidades de trabalho. A distinção entre ser
honesto ou marginal é simplificada e está relacionada ao local de moradia, de maneira que uma sociedade excludente classifica como “marginais” os pobres:
Eu já botei vários currículos em lojas. Em uma, o gerente mandou me chamar. Eu
disse que morava aqui no bairro, que eu estava fazendo o 1º ano. Um dos pretextos
dele para não me colocar foi porque eu era do 1º ano. Eu sabia que ele não queria
que eu trabalhasse lá porque eu disse que era do bairro. A discriminação é muito
grande e injusta porque não existe só marginal, existe gente honesta até demais, e
pessoas que gostam de zelar pela sua cultura. (Grupo focal com jovens)
Uma discriminação que violenta jovens e adultos em sua humanidade e cidadania é a que se relaciona ao racismo.
O preconceito racial é, segundo os jovens residentes em periferias dos centros urbanos, um condicionador de violências, das quais participam todos os envolvidos: “O que mais afeta os jovens na violência é o racismo; [...] Como aconteceu
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
hoje comigo: eu vim trabalhar e uma moça segurou a bolsa, eu voltei e dei uma bronca
nela”.
O racismo manifesta-se também na seleção negativa e arbitrária das oportunidades de trabalho, confirmando os estereótipos sociais atribuídos aos negros:
QUADRO 3
JULGAM SE VOCÊ É NEGRO
Hoje em dia, já é difícil você arrumar um emprego, porque eles não olham
a capacidade que você tem de profissionalismo. Julgam pela sua maneira de
vestir. Como usa o cabelo; se você é negro. O racismo no Brasil é cordial.
O racismo é aquele de nos atenderem bem, servir café para você tomar,
conversar. Depois que você sai, ele rasga seu currículo. (Grupo focal com
jovens)
A discriminação racial expressa-se, ainda, no tratamento conferido pela polícia aos jovens, quando estereótipos e preconceitos se traduzem em agressões até
físicas:
QUADRO 4
PREFERE PARAR O NEGRO
[...] não está fazendo nada, é negro, vem na rua sem camisa, mão aberta,
falando muito... isso é o bastante. Não é novidade nenhuma o que estou
falando. Porque tem polícia assim: se está passando um branco e um negro
assim, acho que ele prefere parar o negro e deixar o branco, isso aí que é
racismo. (Entrevista com coordenador de projeto)
Muitos jovens seriam empurrados para o tráfico, que se apresenta como
única alternativa não somente econômica, mas de exercício de algum protagonismo,
ou lugar de poder:
Tem o depoimento de um jovem que eu achei lindíssimo: “Sou negro já tenho outra
barreira para mim, eu sei que eu nunca vou ter uma casa boa para morar, eu sei que
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
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eu nunca vou ter um carro como eu gostaria de ter. Mas na minha rua, professora,
tem um pessoal que faz ‘aviãozinho’, e acho que desse jeito eles têm mais condições. Porque olha, eles têm tênis de marca, eles andam muito arrumados. E eu que
fico lá, meu pai falando que é importante ser honesto, ser isso, ser aquilo, eu não
tenho nada. Então eu preciso ficar muito firme com minha cabeça para eu não ir
desse lado, porque eu sei que o meu pai mora nessa favela há quinze anos, não
conseguiu sair. Tudo o que a gente conseguiu fazer foi um cômodo de alvenaria”.
Então, para esse rapaz, o futuro é ter uma casa para morar, um carro, um emprego.
E ele, de antemão, já está vendo que vai ser impossível com a sociedade que está aí.
Uma sociedade seletiva, discriminatória, então ele está sentindo que ele não vai
conseguir, e ele também está vendo o outro lado. (Entrevista com professor)
São múltiplas as normas de relações sociais que se pautam por discriminações. Por exemplo, também ocorre discriminação devido aos estereótipos em torno das opções de exercício da sexualidade e das atividades artísticas a elas associadas no imaginário social. Especialmente os rapazes enfrentam preconceito pelo fato
de praticarem uma atividade tradicionalmente associada às moças.
Um jovem que pratica dança relata como se sente vítima de preconceito: “a
maioria do pessoal aqui acha que quem dança é bicha”.
Além disso, quem pratica música também pode ser discriminado e visto como
“vadio, truqueiro, ladrão”.
A norma de discriminação contra homossexuais e travestis pode levar a atos
de extrema violência por parte dos próprios jovens:
Teve uma época que eu possuía um revólver, [...], a gente foi para a cidade; chegando lá uns travestis queriam ficar com a gente, eu não tenho nada contra, mas eles
vieram para cima de mim e eu não gostei da atitude deles, puxei o revólver, comecei
a massacrá-los e fui dizendo: “Meu irmão, se oriente, eu não gosto de frango não,
sou homem, meu irmão, você saia daqui porque eu vou acabar lhe matando”. Dei
um tiro e quando cheguei em casa deu o arrependimento... foi grande... no outro
dia mesmo eu vendi o revólver, como a turma diz, vendi barato demais, dei o revólver. (Grupo focal com jovens)
Os jovens que freqüentam projetos que trabalham na área de arte e cultura
seriam discriminados também em virtude do seu passado de pichadores, de membros de gangues ou porque integram um movimento (hip-hop), o que os identifica
como “marginais”: “Se o menino anda em grupo de pichações, de não sei quê,
então eu já não quero mais nem saber dele. Então ele já é colocado de lado. Até
mesmo a igreja teme desenvolver o trabalho”.
160
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
Os meios de comunicação contribuiriam para produzir uma realidade social
distorcida, com modelos que a sociedade segue e que os jovens não podem alcançar:
Uma coisa também que tem de ser abolida é a ditadura da boa aparência. A boa
aparência no Brasil é como ator de novela da Globo. Nós somos diferentes. Nós
não temos obrigação de ter olho azul e nem cabelo liso. Nós queremos ser como
Deus fez a gente, e temos capacidade. E não é nossa cor, não é nossa estatura, não
é nosso peso que vai nos diferenciar de qualquer outra pessoa. (Grupo focal com
jovens)
VIOLÊNCIA
Dados de diversos estudos, assim como as percepções coletadas em grupos
focais na pesquisa, sugerem que, além da falta de oportunidades de trabalho e de
alternativas de lazer, uma marca singular dos jovens, nestes tempos, é a sua
vulnerabilidade à violência, o que se traduz na morte precoce de tantos. De fato,
alguns dos autores citados e outros consideram que, se a falta de alternativas de
trabalho e lazer não é traço novo na vida dos jovens de baixa renda no Brasil, o
medo, a exposição à violência e a participação ativa em atos violentos e no tráfico de
drogas seriam marcas identitárias de uma geração, de um tempo no qual vidas
jovens são ceifadas. O que ocorreria hoje mais que em nenhum outro período da
idade moderna, exceto em circunstâncias de guerra civil ou entre países. Ou seja: a
violência que mata e sangra seria marca dos tempos atuais e não peculiar de uma
classe, a pobre, fato que se destaca em pesquisa sobre juventude e violência em
Brasília, entre jovens de classe média e alta, que também adverte para a propriedade
de se considerar a juventude no plural: “Não há um tipo único de jovem. Os jovens da
periferia apresentam descontentamento por sua exclusão social agravada, circunstancialmente de forma violenta, buscam reconhecimento e valorização como cidadãos”.
Com relação aos jovens de classe média, nota-se a existência de poucos
estudos a respeito. Explica-se essa ausência pelo estereótipo que associa violência à
miséria. As classes populares já seriam “perigosas”, e as classes médias estariam em
um processo de crise. Alguns estudos tendem a demonstrar que os jovens de classe
média experimentam exclusão existencial em processos identitários.
Considerando-se o total de mortes por coorte, a faixa de 15 a 24 anos de
idade exibe maior concentração na categoria de óbitos por “violência conjunta”
(decorrentes de homicídios, agressões e acidentes de trânsito) do que na categoria
de óbitos por “causas internas” (relacionadas a doenças). Essa tendência é bastante
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
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mais acentuada que nas demais coortes de idade. Por exemplo, no Rio de Janeiro, em
1998, enquanto as mortes por “violência conjunta” representaram 55% do total de
óbitos de indivíduos na faixa de 15 a 24 anos, na mesma cidade e período, os que
faleceram pelos mesmos motivos não excederam 5%, tanto entre a coorte de zero a 14
anos como na de mais de 24 anos (Brasil, FIBGE).
Em Camaragibe, os óbitos na faixa de 15 a 24 anos foram, em 1997, 17%
devido a causas internas e 83%, à violência conjunta. Os percentuais de 1996 são
de 20% e 80%, respectivamente. Em Cabo de Santo Agostinho, em 1997, na
mesma faixa etária, foram 16% os óbitos devido a causas internas, e 84%, à violência conjunta. Em 1996, foram, respectivamente, 41%, devido a causas internas, e
59%, à violência conjunta.
De fato, como se mostra na Tabela 4, a morte devido às causas da violência
conjunta assumem singular magnitude entre os jovens de 15 a 24 anos, variam do
mínimo de 29% em São Luís e 31% em Salvador, até o estarrecedor percentual de
97% em Camaragibe.
Comparando-se somente as capitais de Estados, o percentual de jovens que
perderam a vida por violência conjunta (comparando-se as mortes por causas internas) varia de 29% e 31% (São Luís e Salvador), atinge a casa dos 50% em Fortaleza
e Belém, cresce um pouco mais em Curitiba (52%) e Rio de Janeiro (55%), chega
a 3/5 em Cuiabá (60%), aumentando em Vitória (64%) e Recife (68%) para se
aproximar de 3/4 em São Paulo (74%).
Segundo informações do Banco de Dados do Movimento Nacional de Direitos Humanos, que trabalha com matérias de jornais, em Salvador, de 1996 a
1999, a imprensa noticiou 3.369 assassinatos. O perfil da vítima típica seria: homem
(92,3% dos casos), entre 15 a 24 anos (41,8%), negro (30,7%) e de “cor” não
noticiada na imprensa baiana, cerca de 68,3%. Apenas 1,0% das vítimas seriam
mencionadas como de cor branca (Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de
Salvador, 2000).
É preciso também considerar que no intervalo de idade entre 15 a 24 anos
há oscilações em relação ao tipo de mortalidade por causas violentas. Por exemplo
em relação a homicídios, segundo o Mapa da Violência II (Waiselfisz, 2000, p. 56),
a morte por tal causa atingiria a marca de 37,1% na idade de 20 anos, a de 35,4%,
aos 18 anos e a de 23%, aos 15 anos (Dados para o Brasil, 1998).
A acentuada vulnerabilidade negativa à violência aparece claramente nas falas
dos atores entrevistados na pesquisa, em que são evidenciadas as diversas facetas
da violência, que produz não somente essas mortes, mas deixa seqüelas de vários tipos
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
TABELA 4
ÓBITOS NA POPULAÇÃO DE 15 A 24 ANOS, POR GRUPOS DE CAUSAS,
SEGUNDO CIDADES SELECIONADAS, 1998 (%)
Fonte: Brasil, FIBGE,
Notas: (1) Óbitos por causas internas: doenças de todo tipo.
(2) Óbitos por violência conjunta: decorrentes de homicídios, agressões e acidentes de trânsito.
(3) Vale esclarecer que a assimetria desses percentuais é específica para o ano de 1998.
em suas vítimas diretas e indiretas.
Tanto os jovens como os responsáveis pelos projetos, além dos técnicos e
outros membros, relatam um ambiente no qual a violência deixou de ser um componente de excepcionalidade e se disseminou a tal ponto que se naturalizou, banalizouse, passando a ser elemento comum no cotidiano das populações de baixa renda.
No depoimento de mães, evidencia-se o medo que sentem dos criminosos,
o que impede a denúncia de crimes que ocorrem no bairro: “... A gente não pode
nem abrir a boca pra dizer assim: ‘Ele fez’. Porque ele vai e diz assim: ‘Olha, ali a
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
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fulaninha que disse que tu fez’. Aí a polícia pega ele e diz que foi a gente que disse, aí a gente
fica calada, com medo”.
O discurso dos jovens reitera, várias vezes e pelas mais vívidas imagens, o ambiQUADRO 5
QUALQUER UM JÁ VIU: NEGO MORRENDO, APANHANDO
Porque isso aqui, qualquer um já viu – nego morrendo, apanhando. Quer
dizer, eu acho que já viu, porque por mais que você seja bonzinho, você
acaba não se tornando ruim, mas você tem que aprender nesse mundo. Eu
era uma criança, eu também era diferente. Mas depois você começa a ver
tanta coisa, eu tive que aprender a ser ruim. Porque tem aquela história – se
você não bate, apanha. Se o cara tá errado, igual ele falou, o cara tava
errado – se ele fosse se meter ia morrer também, então você tem que
aprender o que você tem que fazer – você tem que aprender a correr.
Você não deve pra polícia, mas quando solta fogos, a gente tem que correr
com os traficantes. Tinha vezes, que quem não tinha nada a ver, que estava
numa casa cheia de traficantes e a polícia chegava e queria matar todo mundo. Mas, por quê? Se você não corre, fica – morre. E se você corre atrás do
traficante, a polícia pega e mata, então você tem que escolher o que vai
fazer: Ou corre e fica com os traficantes e diz assim –”Não, eu vou conseguir fugir com eles porque os caras conhecem mais do que eu a favela e
estão armados ou eu vou ficar e a polícia vai me pegar, vai bater, vai me
matar.” Então ninguém quer isso pra si. (Grupo focal com jovens)
ente de violência em que transcorre suas vidas:
Os jovens, de um modo geral, reclamam da violência existente entre gangues ou
QUADRO 6
AMAMENTADOS AO SOM DOS TIROS
A gente fala que fomos amamentados pelo som dos tiros. Porque várias
vezes, a gente tava na rua, ou a gente tava em casa e, constantemente, era
muito tiro... e tinha muita coisa que a gente via. (Grupo focal com jovens)
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
galeras que dominam territórios nos bairros. Queixam-se da brutal rivalidade entre as
gangues, o que afeta diretamente a sua liberdade de circulação:
Hoje em dia é isso, a gente não pode ir num bairro. Se um cara está todo arrumado,
quando ele passa na rua, eles querem tomar as coisas. Não deveria ter esse tipo de
gangue aí... se eu moro aqui no bairro, e vou para o [...], só porque eu sou do bairro
de [...] eles quebram o pau. Isso não podia existir. (Grupo focal com jovens)
Entre os jovens, são comuns os relatos do seu próprio envolvimento com
gangues, com tráfico de drogas, violência sexual e com a prostituição. Membros de
vários projetos nas experiências estudadas têm ficha policial resultante de delitos
como roubos e agressões físicas:
Antes de eu entrar no [projeto], eu vivia muito na rua. Andava junto com os
“pichadores”. Eu já fiz parte de gangue, ia para outras áreas brigar. A gente apanhava,
mas também batia. A gente já furou gente lá. O pessoal da nossa gangue foi furado e
a gente também furou juntos. (Grupo focal com jovens)
Violência enlaça-se com reações, em si violentas, em um sistema de vingança, no qual os assaltados esperam o momento oportuno de revanche:
Quando a turma me tomou o chapéu, depois de um tempo, apareceu um só deles
lá na rua que eu moro, aí juntei uns colegas meus e massacramos ele. Eu acho que
na hora eu pensava que estava certo, mas depois eu vi que estava errado, mas eles
também não pensaram assim quando me pegaram. (Grupo focal com jovens)
QUADRO 7
E MATARAM....
Está com dois meses que ele foi para o pagode, e eu acordei de manhã com
a notícia de que ele estava com um tiro na Restauração, cheguei lá, pensei
que ele nem estava andando, porque disseram que tinha atingido a rótula,
outros disseram que tinha torado a mão, foi só a notícia, cheguei lá, tinha
pegado a orelha dele, varou do outro lado, trouxe ele para casa e pronto.
[...] Meu filho nunca foi violento, não respondia, não brigava, não chegava
com confusão, não dizia pornografia, se estivesse num canto e dissessem
“vou dizer a tua mãe” pronto: ele saía, não respondia a ninguém. E mataram
ele sem ter nem para quê. Quando eu soube, ele já estava morto, aqui é
fogo, é preciso muita sorte mesmo. (Grupo focal com mães)
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
165
Para as mães, a violência entre os jovens é corriqueira, mas, nem por isso, menos
sofrida: “puxam logo uma arma, matam com revólver, tudo, é muita violência”. Buscar um
filho no hospital ou perdê-lo em razão de brigas, ou até mesmo sem ter motivo, é
rotineiro.
Violência doméstica
Muitos dos jovens tiveram contato com a violência de forma direta ainda no
ambiente familiar4. Os coordenadores dos projetos chamam a atenção para o fato
de que muitos dos meninos que foram encontrados nas ruas deixaram a família por
serem vítimas de maus-tratos pelos próprios pais:
Os meninos que estão na rua sempre têm uma história que vem da família. É um
padrasto que espanca, uma mãe que espanca, é um abuso, um irmão, um padrasto
que tenta abusar, é uma morte. Às vezes, no interior, a família se desmancha mesmo. Cada um vai para um lado, a criança fica só, fica abandonada. (Grupo focal com
técnicos de projeto)
Ocorrências de violência doméstica contra meninas são também relatos que
se repetem:
Já foram muitos os casos de violência familiar! Por parte de padrasto, do pai, as
meninas vítimas de estupro. É uma coisa muito triste, tanto que muitos nem moram
com a família, moram com uma família alternativa, tio, avô, ou algum parente mais
velho. (Entrevista com coordenador de projeto)
A exposição a atos de violência no âmbito doméstico destruiria a auto-estima
dos jovens, que se encontrariam inseguros, sem referências, já que os pais seriam
os agressores, seus algozes.
4. Em Salvador, dados da Delegacia Estadual de Repressão contra Crimes à Criança e Adolescentes – Derca –, indicavam que 20% das denúncias recebidas referiam-se à violência sexual,
sendo que, em 65% dos casos, a família aparecia como responsável (o pai, em 60% e o
padrasto, em 25%) Entre os agredidos se destacavam os jovens entre 15 a 17 anos. Entre os
crimes mais freqüentes contra as crianças e os adolescentes figurariam: agressão (43%); lesão
corporal (20%); ameaça (8%); apareceriam com uma proporção entre 6% e 5%, estupro,
lesão corporal, atentado ao pudor, maus-tratos, atos libidinosos, sedução, ameaça de morte
e outros (Carvalho, 2001, p. 32).
166
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
Tem muita jovem que já começa a ser violentada e espancada em casa. Acorda de
manhã cedo já sendo espancada pelo pai embriagado, pela mãe que acabou de
chegar, e a criança já sai para a rua desesperada. Qualquer coisa para ela, ou para
ele, vai servir, que ele bata uma carteira, que cheire uma cola, que se drogue para
esquecer o que aconteceu na casa da mãe: ao se levantar nem o prato de comida
tinha, tinha somente espancamento. Aí a violência já começa de casa. Chega na rua,
vai encontrar o quê? Mais violência. (Grupo focal com mães)
A violência doméstica seria um elemento desencadeador do que poderia ser
denominado cadeia de violências ou reprodução de violências. Pais e mães violentos que têm os filhos como suas vítimas que, por sua vez, se tornariam violentos,
fazendo outras vítimas.
O alerta para o terrível e perigoso efeito da violência doméstica na constituição do que se denomina cadeia de violência ou de sujeitos violentos não necessariamente se destaca com o intuito de culpar os pais ou as mães, mas para chamar a
atenção para contextos de violência.
Violência institucional
Os relatos apontam para abuso de autoridade por parte de membros da
justiça e do aparato policial. Os jovens se dizem vítimas de maus-tratos dos policiais,
por isso não os percebem como agentes da sua segurança. Pelo contrário, para
eles, na melhor das hipóteses, polícia e bandido são imagens que se confundem.
Quando questionados a respeito do que mudariam no mundo, muitos respondem
que acabariam com a polícia, como exemplificam falas de jovens:
QUADRO 9
TINHA QUE FAZER TUDO OU APANHAVA
Eu uma vez vinha do ensaio... os policiais me pegaram na rua e me pediram
a identidade. Eu era menor, tinha 15 anos, eles colocaram uma arma no
meu rosto. E me fizeram sambar, eu tive que sambar. Perguntaram se eu
tocava, “Você canta?” “Canto”, cantei para eles. “Você dança?” “Danço”.
“Você bate palma?” “Bato”. “Bata palma”, tinha que fazer tudo isso ou apanhava. (Grupo focal com jovens)
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A violência policial é um indutor, ou produtor, de sujeitos violentos, tornando os
jovens, pela revolta, agentes de violências. O depoimento de um jovem morador de uma
favela descreve tal revolta e ambiência propícia ao crescimento da violência e seu incentivo
pelos “homens da lei”:
Eu nasci aqui, sempre vivi aqui na favela e vendo o quê? Vendo a polícia entrando,
subindo a passarela ali, e já dando tiro cá dentro. E se dane quem tava no meio da rua.
Eles não querem nem saber... eu cresci vendo a polícia massacrando meus familiares,
meus amigos e o pessoal da comunidade. Vendo a polícia dar tapa na minha cara,
esculachar minha família, minha mãe e me mandar ir embora, entendeu? Essa é uma
coisa que vai despertando uma revolta, sabe? Eu era um moleque muito rebelde,
muito revoltado em função de tudo isso, tudo isso. (Grupo focal com jovens)
Muitos consideram que as arbitrariedades cometidas por policiais contra a
população pobre, em especial os jovens, derivariam também de um sistema de
preconceitos contra os negros:
Eu acho que a polícia, apesar de ganhar pouco, deveria ser mais educada, pois só
porque moramos aqui no... um bairro que 90% são negros, tem essa discriminação
de ela chegar, sem procurar saber quem usa droga e quem não usa [...] ela chega
batendo, às vezes leva até preso, sem a gente dever nada... Isso foi uma coisa muito
humilhante que eu sofri, que vai marcar sempre a minha vida. (Grupo focal com
jovens)
Drogas
O crescimento do consumo de drogas lícitas e ilícitas é indicado na tabela 5.
Ao contrário do que usualmente se supõe, em São Paulo, Rio de Janeiro e
Salvador, a tendência ao consumo de drogas reduziu-se entre os estudantes
pesquisados. Em contrapartida, aumentou 10% em Recife; 59% em Fortaleza; 68%
em Curitiba; e 81% em Belém.
Dados do Cebrid mostram que, entre 1987 e 1997, o uso freqüente de
solventes por estudantes do ensino fundamental e médio, em capitais brasileiras,
aumentou de 1,7% para 2%; o de maconha cresceu de 0,4% para 1,7%; o de
ansiolíticos subiu de 0,7% para 1,4%; o de anfetamínicos aumentou de 0,4% para
1%, enquanto o de cocaína passou de 0,1% para 0,8%.
Apesar das limitações desses dados, que se restringem à população
escolarizada e ao consumo, eles cumprem a função de dimensionar aproximada-
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TABELA 5
ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO, CONSUMIDORES
DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS, POR ANO DO LEVANTAMENTO,
SEGUNDO CIDADES SELECIONADAS (%) 1987/1997
Fonte: Cebrid, 2001.
Nota: Número Absoluto (N): 1987=16.149 e 1997= 15.503.
mente o problema do consumo de drogas entre os jovens alunos. Entretanto, ao abordar a temática das drogas é preciso distinguir claramente o consumo e o tráfico, pois
embora possam estar entrelaçadas, cada uma dessas atividades leva a conseqüências
diferentes.
De fato, é necessário ter em mente que: (a) o consumo inclui drogas lícitas e
ilícitas, e ambas as modalidades acarretam alterações dos estados de consciência,
possibilitando resultados direta ou indiretamente prejudiciais aos indivíduos; (b) não
necessariamente o consumo de drogas está diretamente associado à violência, enquanto o tráfico está; (c) embora os usuários de drogas possam ser mais vulneráveis
à violência, esta pode atingir – e freqüentemente atinge – inclusive os que não usam
drogas e que são contra o seu consumo.
Do ponto de vista do consumo, o problema das drogas permeia o discurso
tanto dos adolescentes envolvidos nos projetos constantes da pesquisa quanto dos
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169
pais e responsáveis. Os depoimentos que se seguem ilustram a ênfase atribuída à temática das drogas:
Se juntou com pessoas que não era para se juntar, quando eu vi, que a mãe é a última
a saber, já estava muito... viciado em droga. Quando foi para eu tirar, não tinha mais
jeito. Porque acho que todas as mãe aqui, têm filho que usa droga, não é? Não faz
vergonha dizer, não é? (Grupo focal com pais/mães/responsáveis)
Alguns jovens dos projetos relatam conviver com o tráfico de drogas no seu diaa-dia e se assumem como usuários: “antes de chegar aqui... já cheirei cola, fumei de
âmbar, cheirei dissolvente”.
Vários jovens apontam as drogas como um dos principais e mais graves problemas enfrentados por eles. Na sua concepção, a morte aparece como evento
próximo de jovens dependentes de drogas.
É interessante frisar que os jovens se referiram tanto às drogas ilícitas, em
especial à maconha, quanto às lícitas, com destaque para as bebidas alcoólicas.
Motivos do envolvimento com drogas
O consumo de drogas lícitas, especialmente o álcool, em alguns casos, iniciase na própria família. Por ser socialmente aceito, o álcool é incorporado como elemento de sociabilidade em todas as camadas sociais. Encontram-se vários casos de
alcoolismo de pais, irmãos ou parentes dos jovens.
Já a droga ilícita – os inalantes, a maconha, o crack, ou outros – começa a ser
consumida geralmente fora do espaço da família, a partir de uma relação de amizade ou de pertencimento a um grupo. De fato, os relatos enfatizam que os jovens
envolvem-se com drogas principalmente pelas amizades:
Tem vez que é a amizade. Porque a amizade dá a primeira vez e dá a segunda, na
terceira ele já está viciado. Aí, na terceira, ele começa a roubar porque o pai ou a mãe
não vai dar dinheiro para comprar maconha. Se ele não trabalha ele vai ter que roubar
e quando ele começa a roubar acontece isso, porque não tem um que está aqui que
vá dar dinheiro para o filho comprar maconha, porque existe cidadão que fuma maconha, todo mundo sabe que existe, mas pai e mãe não quer. (Grupo focal com mães)
Também se envolvem com drogas, segundo alguns, “porque a vida é difícil”,
querem sentir-se mais leves, mais contentes, e, segundo vários pais e animadores
de projetos, porque “muitos carecem de referência familiar”; já o tráfico atuaria em
espaços de múltiplas vulnerabilidades sociais negativas:
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QUADRO 10
O TRAFICANTE ADOTA
Aí você já deve ter ouvido dizer que o traficante adota. E adota mesmo. Se
a gente não teve com os filhos os olhos bem aberto... e não quero saber se
ele vai estar com 17, 18 ou 20 anos, eu vou andar atrás dele como eu ando
hoje. Porque eu acho que ele precisa da minha orientação, porque se eu
não ensinar, a vida vai ensinar para ele. E muitas mães, às vezes, por falta de
instrução, não faz isso. Não liga para conversar com o filho, para sentar,
para falar o que você fez hoje? E o seu amigo? Saber quem são os seus
amigos, saber qual lição ele teve na escola e por aí... (Entrevista com membros da comunidade)
QUADRO 11
EM TERMOS DE RISCOS E VULNERABILIDADES
E no contexto onde ele vive, em termos de riscos e vulnerabilidade, a droga, a delinqüência e crime estão ali, do lado. Ele sai da casa dele na favela e
na esquina, tem um desmanche. As figuras com as quais ele se identifica são
o chefe do tráfico, o chefe do crime. Até porque são poucos os homens
nessas famílias. A maioria das famílias são famílias monoparentais ou que
tem um homem mas é um homem que, na maioria das vezes, é distante e,
como referencial, quase nulo para eles. Então a referência que eles têm, em
termos de modelo, são os líderes em áreas de ilegalidade. (Grupo focal
com animadores de projetos)
O envolvimento com o tráfico de drogas pode estar relacionado com o financiamento do próprio vício. Porém, mais freqüentemente, no ambiente de exclusão social a que estão submetidas as comunidades em que vivem os jovens, a
atividade no tráfico é uma via para a satisfação de aspirações de consumo para a qual
a sociedade não oferece meios legítimos:
Chega um cara e chama para ganhar um dinheiro maior do que você ganha trabalhando. Você está com a mente vazia, você não tem nem culpa porque quando nós
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nascemos já encontramos essas coisas todas erradas. Mas às vezes você está apertada, precisando, você não vai nem se lembrar do que você vai passar depois... Arrisca naquela hora você ir. É o que está acontecendo aqui, muito garoto aí com mente
vazia, criança, adolescente, quando vê, está mais nas mãos da polícia. (Grupo focal
com pais)
Eu acho que violência vem através, principalmente, da oportunidade de trabalho, a
pessoa não tendo oportunidade de trabalho, não conseguindo um emprego, no
desespero, ela vai entrar no tráfico. E o tráfico, pelo que dizem, eu não sei e não
quero nem saber, está dando mais oportunidade para as pessoas, o salário parece
que está melhor, apesar do risco de vida. (Grupo focal com jovens)
Para esses jovens, o tráfico representa a possibilidade de atingir um status
social e obter respeito da sociedade. O traficante é visto como um indivíduo respeitado, que possui poder e dinheiro, algo quase inatingível em uma comunidade de
baixa renda. No imaginário de vários jovens, é o traficante quem zela pelo bemestar da comunidade, na medida em que faz benfeitorias (muitas vezes substituindo
o papel do Estado). Acima de tudo, é quem os respeita como cidadãos.
O jovem, eu acho que é vítima e agente dessa violência. Pela própria infra-estrutura
que você tem dentro das comunidades – onde hoje em dia, muitas vezes o Estado
é ausente – infelizmente existem grupos de marginais dentro das próprias comunidades que assumem esse papel do Estado. E isso é muito ruim, pois muitas vezes
esses jovens sentem empatia pela ação desse grupo, você vê hoje nas comunidades,
jovens de 12, 13 anos já envolvidos com o tráfico, envolvido com a violência. (Entrevista com coordenador de projeto)
Exclusões, violências várias corroem a auto-estima, minam vontades e reproduzem violências, sendo que, em muitos casos, enredam os jovens como vítimas e como agressores.
Reflexões gerais – Marcas de uma Geração
Neste artigo lida-se com riscos, obstáculos, ou seja, expressões de vulnerabilidades negativas, porém os jovens que freqüentam os projetos analisados na pesquisa apreendem certa positividade de tais vulnerabilidades, resistindo, buscando
armar-se de valores por cultura de paz, ética de solidariedade e demonstrar uma
perspectiva de crítica social, sem auto-inculpações ou determinismos, como se indica por suas falas sobre suas condições de vida.
Ao nos acercarmos, neste texto, de informações sobre o que se denomina
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
violência, a que mata, fere e sangra, por informações sobre outras dimensões do cotidiano da vida dos jovens em situação de pobreza, como trabalho, exclusões quanto a bens
culturais e oportunidades de lazer e racismo, a intenção é evitar o risco de substituir a
necessária ênfase na economia política e em limites estruturais que afetam a sobrevivência
física e a qualidade de vida de tais populações, por um enfoque culturalista, como suficiente para lidar com exclusões e pobreza, ou por abordagem centrada em um tipo de
violência, ou em uma instituição, como o aparato de repressão ou de segurança pública.
É fundamental ter em mente a sobrevivência física e a qualidade de vida das populações
pobres e, dentro dessas populações, a singular vulnerabilidade social negativa dos jovens.
Não se nega a importância de reformas no sistema de segurança, controles sobre
abusos de poder e desrespeito aos direitos humanos e a relação entre violência e crise de
democracia e a necessidade de afirmação de um Estado de Bem-Estar (Peralva, 2000).
Segundo a autora se faz necessário, no Brasil:
Construir um Estado que, em nome da sociedade civil, seja capaz de controlar
eficazmente o funcionamento do conjunto das instituições, sem no entanto contradizer o princípio das liberdades individuais. [Este] é provavelmente um dos problemas
mais importantes com que a democracia brasileira se defrontará em futuro próximo. (p.22)
Insistimos, também, tanto na tradicional tese sobre o papel, se não
determinante, pelo menos de forte condicionamento, das desigualdades sociais para
o crescimento da violência e do desencanto, sobre o futuro, em particular dos
jovens em situações de pobreza5, quanto na tese de que há de se investir em valores voltados para uma cultura de paz, ética de convivência, e, mais que tolerância,
reconhecimento das alteridades e da diversidade, tônica dos trabalhos que, no Brasil, contam com a colaboração da Unesco6. Ou seja, insiste-se na equação “cultivando vida e desarmando violências” pelo resgate da dignidade, da auto-estima e do
direito à participação dos jovens, e a necessária formação de uma massa crítica, com
responsabilidade social e canais de representação dos jovens, como também na importância de espaços de lazer, esporte, arte, cultura e educação para a cidadania.
Reconhece-se, por outro lado, que os jovens fazem parte e circulam por distintas
5. Abramo, 1994; Abramovay et al., 1999; Bercovich, Dellasopa, Arriaga, 1998; Hopenhayn,
2001; Zaluar, 1994; Jorge, 1998, entre outros.
6. Ver, entre outros, Abramovay et al., 1999; Castro, Abramovay, 1998; Castro et al., 2001.
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
173
instituições, como a família, o mercado de trabalho e a escola; são produtores e consumidores de espetáculos e notícias, sendo produzidos por e reproduzindo formas de ser
e de pensar. Por um lado respondem ao apelo do consumo, da competitividade, do
individualismo e da fixação no poder – marcas de uma época, de uma geração –, mas
muitos desenvolvem um pensamento crítico, buscam saídas e resistem, ainda que o
horizonte do possível para os pobres seja limitado. Insistimos na parte de vulnerabilidade
positiva do jovem, ou seja, na consciência crítica que se registra neste texto em relação ao
vivido.
Por outro lado urge desenvolver políticas voltadas para juventude. Elas são
importantes, como também as políticas de caráter universal, com corte geracional,
mas não são em si suficientes, sem a crítica político-social sobre um momento, uma
época, uma história, um modelo de relações sociais, de organização da sociedade
no plano global e local.
Como frisam vários autores, estes são tempos de incerteza, medos e vulnerabilidades negativas, “estruturadas e estruturantes” (Bourdieu, 2001). Não é necessariamente uma geração que está em crise, mas a crise de uma geração, entendida
como um tempo na história, como um modelo de sociedade, o que vem afetando,
envolvendo, de maneira singular, uma geração, um ciclo de vida – o dos jovens, em
particular, daqueles em situações de pobreza, mas não marca somente a esses.
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176
Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/ 2002
O rap e o funk na socialização da juventude
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
O texto se propõe a discutir a importância dos grupos musicais
juvenis nos processos de socialização vivenciados por jovens
pobres na periferia de Belo Horizonte, problematizando o peso
e o significado de ser membro de um grupo musical no conjunto da vida de cada um. Tem como foco os integrantes de
três grupos de rap e três duplas de funk, procurando analisar
as suas experiências culturais e o sentido que tais práticas adquirem no conjunto dos processos sociais que os constituem
como sujeitos. Significa compreender como eles elaboram as
suas vivências em torno do estilo, e os significados que atribuem a elas, no contexto social onde se inserem como jovens
pobres.
A discussão aponta que os jovens rappers e funkeiros encontram poucos espaços nas instituições do mundo adulto para
construir referências e valores por meio dos quais possam se
construir como sujeitos. Os estilos rap e funk assumem uma
centralidade na vida desses jovens por intermédio das formas
de sociabilidade que constroem, da música que criam, e dos
eventos culturais que promovem.
Esses estilos possibilitaram e vem possibilitando a esses jovens
práticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaços
próprios, significando uma referência na elaboração e vivência
da sua condição juvenil, além de proporcionar a construção de
uma auto-estima e identidades positivas.
Palavras-chave
Juventude – Socialização – Cultura juvenil – Sociabilidade.
Correspondência:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: [email protected]
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
117
The rap and the funk in the socialization of
youngsters
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais
Abstract
The text proposes to discuss the importance of youngster
music bands in the socialization processes experienced by poor
youngsters from the outskirts of Belo Horizonte,
problematizing the weight and meaning of belonging to a
music band in the life of each one of them. The article focuses
on the members of three rap bands and three funk duos,
attempting to analyze their cultural experiences and the
meaning that those practices acquire within the social processes that constitute them as subjects. That entails
understanding how they elaborate on their experiences related
with their music style and the meanings their attribute to it in
their social context of poor youngsters.
The discussion points out that young rappers and funkers find
few spaces in the institutions of the adult world where they
can build up references and values through which they could
constitute themselves as subjects. The rap and funk styles take
on a central place in the lives of these youngsters by means of
the forms of sociability that those styles build, the music they
create, and the cultural events they promote. Those styles have
made possible to those youngsters practices, relations, and
symbols through which they create their own spaces,
representing a reference in the elaboration and experience of
their situation as youngsters, apart from allowing the
construction of positive identities and self-esteem.
Keywords
Youth – Socialization – Youth culture – Sociability.
Correspondence:
Juarez Dayrell
Rua Dores do Indaiá, 104/301
31010-360 – Belo Horizonte - MG
E-mail: [email protected]
118
E d u c a ç ã o e P e s q u i s a , S ã o P a u l o , v . 2 8 , n . 1 , p . 117-136, j a n . /
Nos últimos anos, e de forma cada vez
mais intensa, podemos observar que os jovens
vêm lançando mão da dimensão simbólica como
a principal e mais visível forma de comunicação,
expressa nos comportamentos e atitudes pelos
quais se posicionam diante de si mesmos e da
sociedade. É possível constatar esse fenômeno
nas ruas, nas escolas ou nos espaços de agregação juvenil, onde os jovens se reúnem em torno de diferentes expressões culturais, como a
música, a dança, o teatro, entre outras, e tornam visíveis, através do corpo, das roupas e de
comportamentos próprios, as diferentes formas
de se expressar e de se colocar diante do mundo.
O mundo da cultura aparece como um
espaço privilegiado de práticas, representações,
símbolos e rituais no qual os jovens buscam demarcar uma identidade juvenil. Longe dos olhares dos pais, professores ou patrões, assumem
um papel de protagonistas, atuando de alguma
forma sobre o seu meio, construindo um determinado olhar sobre si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Nesse contexto, a música é a
atividade que mais os envolve e os mobiliza.
Muitos deles deixam de ser simples fruidores e
passam também a ser produtores, formando
grupos musicais das mais diversas tendências,
compondo, apresentando-se em festas e eventos, criando novas formas de mobilizar os recursos culturais da sociedade atual além da lógica
estreita do mercado.
Esse processo não está presente apenas
entre os jovens de classe média. Nas periferias
constatamos uma efervescência cultural
protagonizada por parcelas dos setores juvenis.
Ao contrário da imagem socialmente criada a
respeito dos jovens pobres, quase sempre associada à violência e à marginalidade, eles também se posicionam como produtores culturais.1
Entre eles, a música é o produto cultural mais
consumido e em torno dela criam seus grupos
musicais de estilos diversos, dentre eles o rap e
o funk. Nesses grupos estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem, sonham,
enfim, vivem determinado modo de ser jovem.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
Autores como Mannheim (1982) ou
Melucci (1994) recomendam que devemos estar
atentos às expressões juvenis, pois estas podem
ser a ponta de um iceberg, que torna visíveis as
tensões e contradições da sociedade em que vivem. Se seguimos essa orientação, cabe-nos perguntar: O que pode estar significando esse fenômeno? Será que é apenas uma moda passageira, como tantas outras patrocinadas pela indústria cultural? Ou pode estar nos dizendo sobre
novos modos de ser jovem neste inicio de século ou mesmo apontando para novas formas de
socialização vivenciadas por eles?
A nossa hipótese é de que a centralidade do consumo e a da produção cultural para
os jovens são sinais de novos espaços, de novos
tempos e de novas formas de sua produção/formação como atores sociais. Ou seja, apontam
para novas formas de socialização, nas quais os
grupos culturais e a sociabilidade que produzem
vêm ocupando um lugar central. É o que nos
propomos discutir neste texto. Interessa-nos
apreender os significados que os jovens atribuem à experiência de participação nos grupos
musicais, buscando compreender os sentidos que
adquirem no processo de construção social de
cada um deles. Para tanto, tomaremos como
objeto de análise jovens da periferia de Belo
Horizonte que participam de grupos musicais
ligados aos estilos rap e funk.2 Iniciaremos com
uma discussão sobre a noção de socialização,
1.Nos limites deste texto não cabe desenvolver uma discussão sobre violência e juventude, que se torna cada vez mais séria, com índices alarmantes de homicídios envolvendo jovens. Como denunciou o
juiz Geraldo Claret, do Juizado da Infância e da Juventude de Belo
Horizonte, morrem assassinados na cidade, por ano, uma média de
400 jovens de 12 a 20 anos. (E stado de Minas, 13/10/2001). Mas é
importante ressaltar a necessidade de uma maior problematização
deste tema, superando as análises reducionistas que fazem uma
vinculação linear da violência à pobreza ou, pior, levam a generalizações preconceituosas que fazem de todo jovem pobre um marginal
em potencial, aumentando o fosso social já existente na nossa “cidade partida”.
2.Os dados empíricos utilizados são resultado da pesquisa que resultou na tese de doutorado intitulada:A música entra em cena: or a p
e o funkna socialização da juventude em Belo Horizonte,apresentada
na Faculdade de Educação da USP em julho de 2001. Nela, partimos
de um universo de 146 grupos musicais juvenis, de onde foram escolhidos seis grupos der a p e f u n k, a partir dos quais discutimos os
processos de socialização.
119
seguida por uma contextualização social dos
jovens pesquisados. Com esse pano de fundo,
desenvolveremos uma análise dos estilos rap e
funk e os significados que adquirem para os
jovens.
Juventude e socialização
Na sociologia clássica, desde Durkheim,
desenvolveram-se reflexões sobre a socialização
a partir de diversas perspectivas, de acordo com
o próprio contexto histórico, com concepções
distintas de sociedade, dos atores sociais e das
interações, exprimindo modelos determinados
de sociedade e de cultura. Vários autores questionam se tais paradigmas, produzidos no contexto de certa concepção clássica de sociedade, são capazes de explicar os processos sociais que ocorrem na sociedade contemporânea,
no bojo das profundas transformações que
vêm ocorrendo nas últimas décadas.
Van Haetcht (1992), por exemplo, evidencia que, nesses paradigmas anteriores, a
teoria da socialização dicotomiza a lógica estrutural e a lógica da atuação, compreendendo a socialização reduzida a um treino, que
gera a interiorização de um “programa” a ser
executado no futuro. Propõe entendê-la como
um processo adaptativo, articulando ator e estruturas, em que os efeitos da socialização seriam apenas os parâmetros da ação, não sendo, assim, irreversíveis. Nessa mesma direção,
Dubet (1994) aponta uma série de limites na
sociologia clássica para a compreensão dos
processos socializadores contemporâneos. Para
ele, tais teorias buscam entender e explicar a
socialização na perspectiva da reprodução social, perguntando como as instituições garantem a continuidade social. Nelas o ator é o sistema, ou seja, a conduta, a subjetividade, os
sentimentos são interiorizações de uma posição objetiva do sistema. Dessa forma, explicar
os indivíduos é explicar a determinação de seu
lugar social sobre sua personalidade, uma vez
que haveria um processo de interiorização do
120
social. O objeto de análise se constitui em torno da religião, da família e/ou da escola, instituições que permitem “fabricar” os atores
pelo sistema.
O autor propõe uma outra forma de
conceber os processos de socialização no contexto de uma sociedade em mutação, numa
superação dos limites das teorias clássicas. Para
Dubet, os atores e as instituições não são mais
redutíveis a uma lógica única, a um papel e a
uma programação cultural de condutas, como
era pensada a socialização na sociedade industrial. Passa a ocorrer uma heterogeneidade de
princípios culturais e sociais que organizam as
condutas, com os atores podendo adotar simultaneamente vários pontos de vista. Há
mutações globais dos quadros de referência, e
nenhuma delas assume uma centralidade. Não
há mais uma unidade do sistema e do ator. O
ator não é totalmente socializado a partir das
orientações das instituições nem a sua identidade é construída apenas nos marcos das categorias do sistema.
Para o autor existem três sistemas que
formam o conjunto social, cada qual regido
por uma lógica diferente: uma comunidade
estruturada por uma lógica de integração; um
ou mais mercados competitivos, dependendo
de uma lógica da estratégia e um sistema cultural correspondente a uma lógica da
subjetivação. Os indivíduos constroem-se socialmente através das experiências sociais, entendidas como a capacidade de o indivíduo articular esses tipos de ação, numa dinâmica que
leva à constituição da subjetividade do ator e
sua reflexividade. É a experiência social que
articula o trabalho do indivíduo, que constrói
uma identidade, uma coerência e um sentido
às suas ações sempre dialogando com as lógicas de ação que já se encontram determinadas.
Nessa medida a socialização e a formação dos
sujeitos são entendidas como o processo mediante o qual os atores constroem sua experiência, evidenciando uma equação na qual os
indivíduos se constroem e ao mesmo tempo
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
são construídos socialmente (Dubet, 1997).
Nessa mesma direção, Charlot (2000)
avança ao enfatizar um lugar à questão da
ação do indivíduo sobre o mundo e no mundo. É nesse autor que nos inspiramos para
definir determinada compreensão dos processos de socialização. Acreditamos que a socialização dos jovens pode ser compreendida
como os processos por meio dos quais os sujeitos se apropriam do social, de seus valores,
de suas normas e de seus papéis, a partir de
determinada posição e da representação das
próprias necessidades e interesses, mediando
continuamente entre as diversas fontes, agências e mensagens que lhes são disponibilizadas.
Em outras palavras, cada um dos jovens
rappers ou funkeiros encontra-se em determinado grupo social, mas não se reduz a esse
vínculo e ao que pode ser pensado a partir da
posição desse grupo em um espaço social. Encontra-se em uma sociedade cujas agências
clássicas de socialização, como veremos no
caso da escola e do trabalho, se mostram frágeis, não sendo uma referência de valores e
normas. Destas, a única instituição que continua tendo forte referência formativa é a família. Mas nenhuma delas, no contexto de uma
sociedade em mutação, oferece certezas e seguranças como no passado. Como lembra
Melucci (1996), as seguranças de que necessitamos devem ser construídas por nós mesmos.
Por outro lado, esse jovem vai abrindo
outros espaços, nos quais o grupo de pares, o
estilo ao qual adere e o consumo dos meios de
comunicação de massa vão cada vez mais se
constituindo como parâmetros de avaliação e
organização das relações interativas com a realidade externa. Esse jovem tem acesso a múltiplas referências culturais, constituindo um
conjunto heterogêneo de redes de significado
que são articuladas e adquirem sentido na sua
ação coti-diana. Assim, ele interpreta a sua
posição social, dá um sentido ao conjunto das
experiências que vivencia, faz escolhas, age na
sua realidade: a forma como ele se constrói e
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
é construído socialmente, como se representa
como sujeito, é fruto desses múltiplos processos.
O contexto: jovens pobres ou
excluídos?
Para melhor compreensão dos significados que os jovens pesquisados atribuem à
vivência dos estilos rap ou funk, é necessário
contextualizar a realidade deles, apreendendo
a forma como elaboram o conjunto das experiências que vivenciam no cotidiano. Por mais
óbvio que possa parecer, é importante ressaltar que nenhum deles é um rapper ou funkeiro
vinte e quatro horas ao dia. No cotidiano, a
maioria deles trabalha, alguns estudam, possuem família, vivenciam conflitos, divertem-se,
amam, sofrem, possuem desejos e propostas de
melhoria de vida. Privilegiaremos, assim, as
instâncias do trabalho, da escola e da família
para traçar o contexto em que se inserem.3
Os jovens rappers e funkeiros pesquisados estão situados no limiar da precariedade. Praticamente, todos eles começaram a
trabalhar muito cedo, em ocupações típicas de
adolescentes pobres, tais como lavar carros e
ser office-boy. Além de ser uma forma de contribuir em casa, o trabalho era a condição para
a vivência da condição juvenil:
A época do lava-jato foi a época que eu
mais tinha condição. Eu ganhava superpouco, eu fazia a feira de casa, eu comprava
o frango, entendeu, eu tinha a minha roupa,
eu bebia, eu namorava... Lá a gente ralava
sábado, entendeu, sábado tinha vez que eu
saía oito horas de lá, meu. Chegava em casa,
deitava no tapete do meu quarto, todo sujo
de graxa. Dormia até umas nove horas, aí
3.Reafirmo que estou me baseando na realidade dos dezoito integrantes dos três grupos der a p e t r ê s d e f u n kpesquisados. Esses
jovens se situam, na sua maioria, na faixa etária entre 17 e 24 anos,
sendo que apenas quatro deles estão acima dessa idade. Catorze deles
são solteiros, morando com os pais, e apenas quatro são casados.
121
tomava um banho, jantava. Tinha uma garrafa de vinho na geladeira, eu abria, tomava
o vinho, ia pra rua. Chegava e encontrava
no Vilarinho com a turma, aí a gente dançava e zoava pra caralho... (Nilson, 26 anos,
rapper)
Como evidenciam inúmeras pesquisas,
o trabalho juvenil não pode ser compreendido
apenas pelo contexto de pobreza em que vivem
os jovens. Aparece também como condição
para maior autonomia e liberdade em relação
à família, pela possibilidade do consumo de
bens e pela garantia de um mínimo de lazer,
enfim, é o trabalho que possibilita a vivência
da própria condição juvenil. Mas o que podia
ser visto como uma etapa inicial, tornou-se
uma constante em suas trajetórias no mercado de trabalho. Nenhum deles conseguiu se
qualificar em alguma profissão e todos sobrevivem ainda de bicos e empregos precários.
Expressam o contexto de uma crise pela qual
passa a sociedade brasileira, o que afeta as instituições clássicas responsáveis pela socialização. Essa crise se manifesta na desestruturação do mercado de trabalho e no aumento do desemprego juvenil, atingindo mais diretamente os jovens pobres (Pochmann,1998).
Dessa forma, o mundo do trabalho não
lhes aparece como um espaço de escolhas, ao
contrário, nenhum deles gosta do que faz, não
vendo nessas atividades nenhuma centralidade
além da renda. Para muitos deles, o
envolvimento com a música implicou uma tensão entre o tempo do trabalho e o tempo da
música:
Chegava dentro de uma firma e minha cabeça num era pra aquilo lá, trabalhei em muitos lugares, cara, mas minha cabeça num
aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso
porque eu pensava:“Pô, eu tenho de fazer é
música, o meu negócio é aquilo lá, é só com
isso que eu me entretenho, é nisso que eu
tenho uma vontade, cara!” (Pedro, 24 anos,
rapper)
122
Eles fazem uma dissociação entre o
emprego atual e a carreira musical: um é
aquele ao qual se vêem coagidos a exercer,
cuja valência é instrumental; a outra, a carreira musical, aponta para a possibilidade de
um trabalho que é visto como fonte de satisfação pessoal e como atividade criativa.
Como diz um deles, gostar de trabalhar eu
até gosto; a questão não é de não gostar de
trabalhar, é de fazer o que não gosto...
Podemos entender a postura desses
jovens como uma recusa das condições que
a sociedade lhes oferece para sua inserção
social. Por intermédio da música, experimentam a possibilidade de uma atividade
com sentido e não querem aceitar a sujeição às alternativas que lhes são postas. Dessa forma, o trabalho não constitui fonte de
expressividade. Reduz-se a uma obrigação
necessária para uma sobrevivência mínima,
perdendo os elementos de uma formação
humana que derivavam de uma cultura que
se organizava em torno do trabalho.
Esses jovens são exatamente os menos contemplados pela escola. A maioria
deles foi excluída da escola nos mais variados estágios e, grande parte, antes de
completar o ensino fundamental, com uma
trajetória marcada por repetências, evasões
esporádicas e retornos, até a exclusão definitiva. Apenas quatro jovens continuam a
estudar, alguns no ensino fundamental e
outros no ensino médio, sendo possível perceber que os significados que atribuem a
essa experiência é bem diversa. Para aqueles que ainda estudam, a escola aparece
como uma instituição distante e pouco significativa:
Antes eu não gostava de da escola de jeito
nenhum... Agora, tipo assim, eu tive que
gostar porque é uma coisa que eu dependo dela, tipo assim, eu aprendi a gostar
porque eu sei que preciso... mas se desse
pra viver sem escola eu preferia viver sem
escola... (Flavinho, 17 anos, funkeiro)
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
A construção de auto-imagens, como
a de “mau aluno”, ou as reprovações são alguns dos mecanismos internos à organização escolar que terminam por levá-los à
exclusão. A forma como muitos deles elaboram a saída da escola é marcada pela culpa
e pelo arrependimento: consideram-se os
únicos responsáveis pela falta de qualificação na qual se encontram atualmente. Não
levam em conta os mecanismos sociais perversos que interferiram nas suas escolhas,
com um sentimento de culpa que tende a
minar a auto-estima.
Dessa forma, as experiências escolares desses jovens, mesmo apresentando situ-
ações específicas, deixam claro que a instituição escolar é pouco eficaz no seu aparelhamento para enfrentar as condições adversas de vida com as quais vieram se defrontando, não constituindo referência de valores no seu processo de construção como
sujeitos.
A situação desses jovens se vê agravada pelo encolhimento do Estado na esfera pública, que não oferece soluções por
meios de políticas que contemplem a juventude, gerando privatização e despolitização
das condições de vida. Além da falta de
políticas nas áreas básicas de emprego ou
saúde, se defrontam com a falta de acesso
aos bens culturais. Todos afirmam não freqüentar cinema com a regularidade com que
gostariam de fazê-lo; grande parte nunca
freqüentou um teatro; todos gostariam de
fazer algum curso ligado à música, entre
outros exemplos, e não o fazem por falta de
recursos financeiros.
Para aqueles que se encontram desempregados, o cotidiano se mostra vazio.
Andando pelos bairros de periferia nos dias
de semana, é possível ver dezenas de jovens
pelas ruas e calçadas, conversando em grupos ou simplesmente sentados, passando o
dia sem ter o que fazer, sem acesso a equipamentos sociais, como centros culturais ou
mesmo praças públicas, sem espaços e tempo que os estimulem, que ampliem as suas
potencialidades. Não têm outra alternativa a
não ser levar uma vida empobrecida não só
de recursos materiais, mas, principalmente,
de recursos simbólicos que os capacitem a
enfrentar as transformações pelas quais a
sociedade vem passando. Talvez esteja aí
uma das principais razões que levam os jovens pobres a se envolverem com as drogas
e a marginalidade. Para os jovens ligados
aos grupos musicais, existe pelo menos o
sonho de se tornarem cantores, gravar, fazer
sucesso. Um sonho que, independentemente das possibilidades da sua realização, dá
um sentido ao cotidiano deles.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
123
A escola se realiza como uma provação, uma “chatice necessária” para um
credencia-mento que tem um peso relativo
no mercado de trabalho. Já para outros, a
experiência escolar carrega um sentido negativo, contribuindo para reproduzi-los na
condição de subalternos:
Eu larguei a escola depois que tomei a segunda bomba na 5ª série, isso eu tava
com 14 anos, já tinha tomado pau na 2ª,
e na 5ª série eu tomei dois. Minha lembrança da escola é péssima, eu nem gosto
muito de tocar nesse assunto não. Por
que assim, quando eu era novo eu era
muito complicado, ocê entendeu? Eu contestava muito, eu tenho um senso crítico
muito grande comigo mesmo. Então a escola nunca aguçou esse lado meu, entendeu? A professora falava lá, eu não gostava desses papos lá... eu sempre contestando o que ela falava. Sempre batendo de
contra, pelo menos o que eu achava. Ignorando, também, o lado da ignorância
minha. Eu queria mais era brincar, e sempre caía na turma dos mais bagunceiros.
Ah, sei lá, escola pra mim era um saco.
Resumindo, era um saco mesmo, era muita pouca coisa de escola que eu gostava
mesmo... (João, 21 anos, rapper)
Nesse contexto, as famílias se vêem
cada vez mais responsabilizadas por garantir a
reprodução dos seus membros, não contando
com quem possa “ajudá-las a se ajudar”. Como
lembra Telles (1992, p. 89),
uma proposital inclusão precária e instável,
marginal. São políticas de inclusão de pessoas nos processos econômicos, na produção
e circulação de bens e serviços, estritamente
em termos daquilo que é racionalmente
conveniente e necessário à mais eficiente reprodução do capital.
to de uma nova desigualdade social: aquela
que implica o esgotamento das possibilidades
de mobilidade social para a maioria da população. Nela, a pobreza mudou de forma, de
âmbito e de conseqüências. Se para as gerações
anteriores estava posta, mesmo que remotamente, a perspectiva de mobilidade por meio
da escola e/ou do trabalho, para os jovens de
hoje essa alternativa não mais se apresenta.
Nesse sentido se instaura o quadro da crise4 :
os velhos modelos nos quais as instituições tinham um lugar socialmente definido já não
correspondem à realidade. O trabalho não oferece mais um tipo de regulação da sociedade,
a escola não cumpre a função de moralização
e mobilidade social, e novos modelos ainda
não estão delineados. O que antes se caracterizava como possibilidade de passagem do
momento da exclusão para o momento da inclusão, hoje, para parcelas de jovens pobres,
está se transformando em meio de vida.
Vivemos no Brasil uma situação paradoxal. Nas últimas décadas vem ocorrendo uma
modernização cultural, consolidando uma sociedade de consumo, ampliando o mercado de
bens materiais e simbólicos, mas que não é
acompanhada de uma modernização social.
Assim, os jovens pobres inserem-se, mesmo que
de forma restrita e desigual, em circuitos de
informações, por meio dos diferentes veículos
da mídia, e sofrem o apelo da cultura de consumo, estimulando sonhos e fantasias, além
dos mais variados modelos e valores de humanidade. A esfera do consumo cultural torna-se
um momento importante para as trocas sociais, propiciando o acesso aos estilos, por exemplo. No caso dos jovens pesquisados, foi como
consumidores culturais de músicas, CDs, shows
d e rap e funk que eles puderam se transformar
em produtores e, nessa experiência, ressignificar a sua trajetória, criando formas próprias
de ser jovem.
Assim, é mais esclarecedor caracterizálos como jovens pobres, vivenciando formas
frágeis e insuficientes de inclusão num contex-
4. A noção de crise é utilizada não no sentido de ruptura, de caos,
mas de mutações e recomposições profundas nas relações sociais,
nas quais se esgotam modelos anteriores e ainda não estão delineadas
as novas relações, como sugere Melucci (1994).
a centralidade da família pode ser vista
como registro de uma sociedade na qual a
chamada questão social foi equacionada nas
formas de uma pobreza colonizada,
despolitizada e privatizada nas suas formas
de manifestação.
Nã o é sem razão que para a grande
maioria desses jovens a família ocupa um lugar central: as relações que estabelecem, a
qualidade das trocas, os conflitos e os arranjos existentes para garantir a sobrevivência são
dimensões que marcam a vida de cada um,
constituindo-se um filtro por meio do qual
traduzem o mundo social, significando um
espaço de experiências estruturantes. Nesse
sentido, a família ainda é uma das poucas instituições do mundo adulto com a qual esses
jovens podem contar.
Uma primeira tendência seria caracterizar esses jovens como excluídos. Mas tanto Castel
(1995) quanto Martins (1997) nos advertem sobre a imprecisão desse conceito, criticando certo fetichismo da idéia da exclusão que tende a
suprimir as mediações existentes entre a economia e outros níveis e dimensões da realidade social. Para Martins (1997, p. 20), o modelo
socioeconômico brasileiro implementa
124
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
Mas se há uma ampliação de possibilidades, há uma restrição ao seu acesso, sendo uma das faces perversas da nova desigualdade. Os jovens pobres se vêem, assim, privados da escola, do emprego, acompanhados da
limitação de meios para a participação efetiva
no mercado de consumo, da limitação das formas de lazer, da limitação dos direitos de
vivenciar a própria juventude e, o que é mais
sério, vêem-se privados da esperança.
É nesse contexto que temos de entender
os significados que adquirem para esses jovens a
experiência nos grupos musicais, sejam de rap ou
funk.
Juventude e música: o rap e o
funk
Em outro artigo,5 procurei discutir a
importância da música para os jovens, ressaltando que a relação entre a música e a juventude é uma construção histórica, iniciada principalmente a partir dos anos 1950 com o j a z z.
Mas foi a partir da década de 1970 que essa
relação adquiriu maior visibilidade, tanto pela
expansão quanto pela diversificação de estilos,
além de os jovens se posicionarem mais diretamente como produtores musicais, e não apenas como fruidores. Essa mudança foi resultado de uma série de fatores, dentre eles da
popularização da aparelhagem eletrônica e
mesmo do estímulo do movimento punk, com
o seu lema do it yourself – “faça sua música,
o seu estilo, não se acomode na postura do
espectador vazio”– apontando uma forma possível de produzir arte no contexto da cultura
de massas.
É também dessa mesma época uma
grande diversificação social da juventude urbana, com a crescente inserção dos jovens pobres
no mercado de trabalho, gerando a ampliação
do consumo juvenil, principalmente na moda
e no lazer, e criando espaços próprios de diversão nas periferias dos grandes centros, como
os bailes e sons. Desde então, a visibilidade social dos jovens vem se dando principalmente
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
por intermédio dos grupos culturais existentes,
sucedendo-se uma lista considerável de movimentos e tendências, umas mais passageiras,
outras ainda persistentes, envolvendo jovens de
diferentes camadas sociais, com diferentes projetos, níveis diferenciados de envolvimento,
mas tendo em comum uma proposta de
estilização6 e a eleição de determinado ritmo
musical. São os punks nas suas diversas variações, como o trash, o hardcore, o anarco-punk.
São os darks, o heavy metal, o reggae. É nessa esteira que podemos situar o hip hop e o
funk.
Esses dois estilos possuem uma mesma
origem – a música negra americana –, que incorporou a sonoridade africana, baseada no
ritmo e na tradição orais. Eles são herdeiros
diretos do soul que, depois de ser a trilha sonora dos movimentos civis americanos da década de 1960 e um símbolo da consciência
negra, perdeu essas características revolucionárias com a sua massificação. O funk radicalizou
o s o u l, empregando ritmos mais marcados e
arranjos mais agressivos, mas o funk também
sofreu um processo de comercialização, com a
remoção de sua base cultural, tornando-se
uma música mais digerível do grande público.
O rap surgiu, nesse período, como mais
uma reação da tradição black. Ele surge junto
a outras linguagens artísticas, como a das artes plásticas, a do grafite, da dança – o break
– e da discotecagem – o DJ. Juntas tornaramse os pilares da cultura hip hop, fazendo da
rua o espaço privilegiado da expressão cultural dos jovens pobres. O rap, palavra formada
pelas iniciais da expressão rhythm and poetry
(ritmo e poesia), tem como fonte de produção
a apropriação musical, sendo a música com5.Ver Dayrell (1999).
6.Estou entendendo “estilo” como uma manifestação simbólica das
culturas juvenis, expressa em um conjunto mais ou menos coerente
de elementos materiais e imateriais, que os jovens consideram representativos da sua identidade individual e coletiva. Na construção
de um estilo, os jovens escolhem determinado gênero musical que
consomem, criam um tipo de visual e espaços próprios de diversão e
atuação. Assim o estilo pressupõe o cruzamento dos campos do lazer,
do consumo, da mídia e da criação cultural (Dayrell,1999; 2001).
125
posta pela seleção e combinação de partes de
faixas já gravadas, a fim de produzir uma nova
música. “Mixando”7 os mais variados estilos da
black music, o rap cria um som próprio, pesado e arrastado, reduzido ao mínimo, no qual
são utilizados apenas bateria, scratch8 e v o z .
Mais tarde, essa técnica seria enriquecida com
o surgimento do sampler. Desde então, o r a p
aparece como um gênero musical que articula
a tradição ancestral africana com a moderna
tecnologia, produzindo um discurso de denúncia da injustiça e da opressão a partir do seu
enraizamento nos guetos negros urbanos.9
No Brasil, a difusão do funk e do hip
hop remonta aos anos 1970, quando da proliferação dos chamados “bailes black” nas periferias dos grandes centros urbanos. Embalados pela black music americana, principalment e o soul e o funk, milhares de jovens encontraram nos bailes de finais de semana uma alternativa de lazer até então inexistente. Desenvolveram-se nos mesmos espaços, por jovens
de uma mesma origem social: pobres e negros,
na sua maioria. Tanto a música r a p e funk
quanto o seu processo de produção continuam apresentando algumas semelhanças, fiéis à
sua origem, tendo como base as batidas, a utilização de aparelhagem eletrônica e a prática
da apropriação musical. Os dois estilos são
mais democráticos, não tendo como pré-requisito a utilização de instrumentos musicais, o
domínio de habilidades técnicas musicais nem
mesmo maiores custos com a montagem e a
organização dos locais para exibição pública.
Para os jovens da periferia que, geralmente,
não têm acesso a uma formação musical, o rap
e o funk são dos poucos estilos que lhes permitem realizar-se como produtores musicais e
artistas. Não é sem razão que grupos de rap e
duplas de MCs10 tendem a cantar apenas suas
próprias músicas, sendo raro que cantem músicas de outros grupos.
Mas, no processo da sua elaboração e
reelaboração nos grandes centros urbanos bras i l e i r o s , o rap e o funk foram assumindo características próprias. As letras expressam outros
126
sentidos, as formas de sociabilidade possuem
especificidades, assim como os rituais que
constituem cada um desses estilos, ganhando
significados próprios para os jovens que deles
participam. É o que veremos a seguir na descrição dos grupos de rap e duplas de funk em
Belo Horizonte. O scratch consiste na obtenção de sons, girando manualmente o disco sob
a agulha em sentido contrário, produzindo
efeitos sonoros próprios.
Os jovens e o rap
O r a p começou a d i fundir-se em Belo
Horizonte a partir do final dos anos 1980.
Desde então, veio se construindo uma cena rap
que, mesmo ocupando um espaço marginal no
circuito cultural, se mantém viva e atuante,
apesar das oscilações entre momentos de
latência e de maior visibilidade. Ao mesmo
tempo, existe uma parte ainda mais submersa,
formada por um sem-número de jovens que se
reúnem e formam seus grupos nos bairros por
simples diversão, na maioria das vezes com
uma curta trajetória, sem se tornarem conhecidos no próprio meio hip hop. Durante todo
esse tempo existiu e existe ainda uma
rotatividade de grupos muito grande, vários se
desfazendo ou mesmo trocando de integrantes, e muito poucos permanecendo do início
do movimento na cidade.
Os três grupos pesquisados expressam
essa realidade:
• O grupo Processo Hip Hop – F o r mou-se no início de 1998 e teve uma vida relativamente curta, extinguindo-se no final de
1999. Era formado por três jovens, com idade
variando de 17 a 22 anos, sendo dois negros
7.A mixagem é a mistura de músicas feita pelo DJ, que utiliza o
aparelhomixer.
8. O s c r a t c hconsiste na obtenção de sons girando manualmente o
disco sob a agulha em sentido contrário, produzindo efeitos sonoros
próprios.
9.Para maiores detalhes da história dohip hop;ver, dentre outros,
Dayrell (2001), Sposito (1993), Silva (1998) e Tella (2000). Para uma
h i s t ó r i a d o f u n k, ver Vianna (1987) e Herschmann (1997, 2000).
10. O MC é o mestre de cerimônia, como se autodenominam os
cantores def u n k, quase sempre formados por duplas.
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
e um branco, todos moradores do Aglomerado da Serra, região centro-sul da cidade. É um
exemplo de grupos que se formam e se desfazem sem ganhar maior projeção na cena r a p,
não tendo CD nem fita demo gravados.
• O grupo Máscara Negra – É um grupo formado, desde 1996, por três integrantes,
todos negros, sendo dois com 20 anos e um
com 27 anos. Tem projeção na cena r a p, t e n do sido escolhido o melhor grupo de r a p em
1997. O grupo não tem nenhum CD gravado,
apenas fita demo.
• O grupo Raiz Negra – Formou-se no
início dos anos 1990, sendo o mais antigo dos
grupos pesquisados e um dos poucos desse período que ainda permanecem ativos. É formado por quatro integrantes, três deles negros,
com idade variando de 24 a 28 anos. Dentre
os grupos pesquisados, é o que apresenta o
perfil mais profissional, possuindo um CD grav ado.
A experiência desses jovens nos grupos
musicais revela múltiplos significados, interferindo diretamente na forma como se constroem e são construídos como sujeitos sociais e
como elaboram determinada identidade individual e coletiva.
Um primeiro aspecto a ser salientado é
a dimensão da escolha. Recuperando a trajetória dos grupos, constatamos inicialmente que
todos os jovens aderem ao estilo como consumidores do gênero musical. A passagem para
a condição de produtores significou para todos
um processo de envolvimento gradativo. É
possível perceber alguns fatores comuns que
explicam a escolha que realizam: o lugar social que ocupam e o capital cultural a que têm
acesso, os poucos pré-requisitos do rap para a
produção cultural, a identidade com o ritmo e
a temática abordada pelo estilo, dentre outros.
Significa dizer que a escolha e a adesão ao
estilo são frutos de uma complexa trama na
qual estão presentes os determinantes sociais,
mas também a expressão da subjetividade.
Mas o exercício da escolha não se dá
apenas no momento da adesão ao estilo. Os
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
jovens revelam que em vários momentos ocorreram dúvidas e crises, quando se perguntavam
a si mesmos se o caminho era realmente o da
música. Alguns se afastaram para depois
retornar; outros, como o Processo Hip Hop, s e
dissolveram. Mostram, assim, que a trajetória
no estilo não está separada da vida, com as
suas dúvidas e perplexidades, quando deparamos sempre com a necessidade de escolher.
Outro aspecto que ganha importância
na vida de cada um é a experiência, comum a
todos, como produtores culturais. Como já observamos, todos só cantam suas próprias músicas, sendo muito raro cantarem músicas de
outros grupos, o que envolve um exercício da
criatividade. Geralmente o processo de produção das músicas é individual e coletivo, sendo
um momento rico de trocas entre os integrantes do grupo quando todos discutem, opinam
e interferem na criação. Todos são autodidatas, mas expressam o desejo de estudar música e algum instrumento, condição essencial
para a profissionalização.
Em cada grupo sempre existe um que
tende a compor as “rimas”, através das quais
desenvolvem uma interpretação poética de si
mesmos e da condição social em que vivem.
Para muitos deles, compor a letra é um momento de extravasar, de traduzir em forma de
poesia os sentimentos que vivenciam:
Escrever as letras é tipo assim, uma muleta,
quando eu tô sentindo muita melancolia,
quando eu tô sentindo muitas vezes só, eu
sento e escrevo... Eu sempre escrevo quando
eu tô muito melancólico... (Nilson, 25 anos)
Nessa produção poética, a estrutura
das letras, a fidelidade ao território e a
explicitação de uma temática social são elementos identificadores do r a p em qualquer
lugar, seja no Brasil ou nos Estados Unidos. Ao
mesmo tempo, o conteúdo poético tende a
refletir o lugar social concreto onde cada jovem se situa e a forma como elabora suas
vivências, numa postura de denúncia das
127
condições em que vive: a violência, as drogas,
o crime, a falta de perspectivas, quando sobreviver é o fio da navalha. Mas também cantam a amizade, o espaço onde moram, o desejo de um “mundo perfeito”, a paz. Como
diz um deles, eu sou um mero observador do
comportamento do ser humano... num tenho
estudo, num sou nada, mas eu fico observando o comportamento das pessoas. Nesse sent i d o , o r a p pode ser visto como uma crônica
da realidade da periferia.
Eles atribuem a si mesmos o papel de
“porta-vozes” da periferia, um dos elementos
da identidade do estilo. Alguns deles se atribuem a “missão” de problematizar a realidade em que vivem através das músicas que
cantam, com a pretensão de “conscientizar os
caras” dos problemas e riscos que o meio
social lhes impõe:
O que a gente passa com a música é um
pouquinho de consciência, de amor próprio, de auto-estima... a gente quer levar o
nosso povo pra frente, a minha vontade é
essa, de revolucionar, abrir a cabeça de um
e de outro para eles terem consciência e
saber o que está fazendo, aprender o direito deles, nem que for um pouquinho, entendeu? (Pedro, 26 anos, rapper)
Para muitos desses jovens, o rap t o r na-se uma forma de intervenção social, mas
em outros moldes. Por meio da linguagem
poética, do corpo, do lazer propõem uma pedagogia própria, que tem como um dos instrumentos a polêmica. Talvez esteja aí uma
das dificuldades de estabelecerem um diálogo com as organizações políticas do mundo
adulto, como sindicatos, partidos e até mesmo o movimento negro, diante dos quais se
mostram desconfiados, mantendo distanciamento. Ao mesmo tempo, os grupos Máscara
Negra e Raiz Negra desenvolvem esporadicamente algumas atividades sociais, como oficinas de hip hop em escolas públicas e festas
beneficentes.
128
Um momento muito significativo para
todos os grupos são as apresentações que realizam. Para muitos, é no palco que se sentem
verdadeiramente rappers. A freqüência e o caráter dos shows são diferentes entre os grupos:
enquanto o Processo Hip Hop tem um número limitado de apresentações e sempre em
eventos no próprio bairro, o Raiz Negra e o
Máscara Negra se apresentam com mais regularidade tanto em eventos quanto em festas
promovidas em danceterias no centro da cidade. Todos os jovens reforçam a importância
dos shows na vida de cada um. Alguns ressaltam a emoção e o prazer – a maior adrenalina
– de estarem no palco mostrando o resultado
da sua produção. Outros ressaltam a auto-afirmação do que os shows representam, sendo
uma forma de resgatar a própria dignidade:
Trabalhava de faxina e o maior orgulho meu
era estar lá fazendo faxina e quando eu
chegava no palco eu era um rapper, entendeu? Eu tenho pouco estudo, nunca tive um
emprego bom, mas eu tenho uma cabeça
pra revolucionar, eu tenho dignidade porque
eu chego em casa e sou um rapper, tenho
uma missão... (Pedro, Máscara Negra)
Outros ainda enfatizam a importância
de serem reconhecidos no próprio meio em que
vivem. Podemos dizer que, para esses jovens,
aderir ao estilo possibilitou-lhes a abertura de
novos espaços, onde eles passaram a se colocar na cena pública em outros termos, como
artistas, como criadores, como sujeitos de um
projeto. Nesse sentido, o rap é um meio de que
se servem para articular uma auto-imagem positiva, uma forma de se afirmarem como “alguém” numa sociedade que massifica e os
transforma em anônimos. Ao mesmo tempo,
através das letras das músicas, do corpo e do
visual que valorizam a estética negra, na afirmação positiva do espaço da per i f e r i a , o rap
possibilita a muitos desses jovens reelaborar a
experiência social imediata em termos culturais, traduzida em forma de autoconsciência
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
diante do processo de segregação espacial e
dos preconceitos sociais e raciais que se acirram em Belo Horizonte, possibilitando a construção de uma identidade positiva como pobres e negros.
Por outro lado, podemos constatar que
o estilo proporciona algumas circunstâncias
centrais na construção de uma identidade juvenil: a música e um quadro de referências
comuns por meios dos quais fazem uma leitura
da realidade; as práticas coletivas, tanto na
produção musical quanto na fruição do lazer;
além de um conjunto de ícones que os distinguem do mundo adulto.
Para grande parte deles, a adesão ao
estilo se deu na adolescência, coincidindo com
um momento no qual procuravam romper com
tudo aquilo que os prendia ao mundo infantil, buscando outros referenciais para a construção da identidade fora da família, onde o
grupo de amigos passa a cumprir um papel
fundamental. Desde então, o r a p funcionou
como uma referência para a escolha dos amigos, bem como das formas de ocupação do
tempo livre. Inicialmente centrada no bairro, o
envolvimento com o estilo e a participação nos
eventos proporcionaram a quase todos uma
ampliação da rede de relações, estimulando-os
a se apropriarem da cidade.
As redes de relações construídas em
torno do rap apresentam densidades distintas,
o que leva os jovens a distinguir entre
“colegagem” e amizade. Aquela é mais fluida,
e esta é uma relação que traz uma conotação
familiar, de “irmão”, quase sempre presente nas
relações que se constroem no grupo musical.
Em cada um deles a rotina de encontros entre os seus integrantes é variável, dependendo
do ritmo dos ensaios e da disponibilidade para
o lazer de cada um.
Uma característica desses grupos é a
sua rotatividade. Todos narram uma trajetória
na qual há um contínuo nascer e renascer de
grupos, fazendo com que o percurso de crescimento e as experiências de agregação sejam
muito dinâmicos e singulares. Essa descon-
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tinuidade dos grupos e das relações pode ser
vista como uma característica da própria da
condição juvenil, e não tanto do estilo em si.
Mas o grupo é sempre uma referência
muito forte, aparecendo como um espaço privilegiado de investimento emocional e de construção de relações de confiança, numa complexa trama de conflitos e acordos, em um equilíbrio instável. Mas em todos eles parece que
a individualidade dos seus membros é assegurada, fazendo com que as relações sejam uma
contínua negociação com as diferenças e os
desejos individuais. Essa característica, perceptível em todos os grupos, parece mostrar a
necessidade que os jovens têm de garantir espaços, tempos e projetos individuais no coletivo. Podemos dizer, com Torti (1994, p. 62),
que sinalizam para novas formas da sociabilidade na sociedade contemporânea, que “induzem dinâmicas recíprocas de distanciamento e
aproximação. Nós nos aproximamos para depois nos distanciarmos num jogo entre necessidades de agregação e exigências de espaços
de individuação...”.
Mas as relações não se reduzem ao
grupo, estendendo-se a uma rede de
“colegagem”. Encontram-se nos momentos de
lazer, nas festas e nos eventos. Mesmo não
estabelecendo relações mais próximas, existe
uma solidariedade própria para com quem se
sente parte de um mesmo movimento. Os programas de lazer são um pouco desiguais no
ritmo e na qualidade, dependendo do momento de vida de cada um. Para aqueles mais novos, existe uma procura constante de programas, mobilizados pela diversão e pelo desejo de
estarem juntos com a turma de amigos. A
centralidade do lazer e dos amigos tende a se
transformar com o avanço da idade, dos compromissos afetivos com as esposas ou namoradas e das responsabilidades que cada um vai
assumindo, diminuindo a sua intensidade. No
geral, os programas mais comuns são a freqüência à casa de amigos, os bares e as festas
d e rap, que lhes abrem as possibilidades de um
lazer além da sua região, gerando um desloca-
129
mento que desafia a lógica perversa da metrópole, que tende a segregá-los nos bairros distantes da periferia, tornando-se uma forma
possível de ocupação da cidade.
Os jovens e o funk
O funk em Belo Horizonte é herdeiro
direto dos bailes black que se difundiram na
periferia da cidade desde os anos 1970. Até
o início da década de 1990, os jovens freqüentadores dos bailes não se identificavam
ainda como funkeiros, agregando-se em torno da música e no prazer da dança. Nos bailes não havia, como não há, uma fidelidade a
um estilo musical, convivendo os mais diferentes sons eletrônicos, além do rock e até do
pagode. Foi nos meados dessa década que começam a aparecer os “mestres de cerimônias”
(MCs) locais, duplas ou grupos que cantavam
suas músicas, influenciados pelo processo de
nacionalização do funk iniciado no Rio de Janeiro. Foi quando começou a se delinear, de
f a t o , o funk como estilo, com os jovens se
identificando como funkeiros. A cena funk n a
cidade está presente no circuito cultural formal, em grandes danceterias e programas em
rádios comerciais, mas também no circuito alternativo, nos bailes promovidos nos bairros,
em quadras cobertas ou em escolas. Isso se
deve à característica do estilo ser baseada nos
bailes, um tipo de lazer que tradicionalmente atrai uma massa de jovens, quer se identifiquem como funkeiros, quer não.
O funk, na forma como veio sendo
construído em Belo Horizonte, é uma reelaboração do estilo difundido no Rio de Janeiro. Não
significa, porém, que haja uma imposição linear da mídia na produção do estilo local. O que
podemos constatar é um processo por meio do
qual os jovens se apropriam do estilo difundido pelos meios de comunicação e o reelaboram
a partir das condições concretas em que vivem,
dos recursos de que dispõem, excluindo elementos ou ressignificando práticas.
Essa constatação põe em discussão os
130
processos de difusão cultural no contexto de
uma sociedade cada vez mais globalizada. O
e s t i l o funk, mas também o estilo rap, como expressões de uma cultura juvenil, não podem ser
vistos como resultado de uma progressiva
homoge-neização e massificação cultural, que
homologaria a um único registro uma produção cultural juvenil, independentemente das
condições estruturais concretas nas quais esses jovens estariam inseridos.
Ao contrário, a realidade dos grupos de
rap e funk e a história de cada um deles na cidade apontam para a existência de uma identidade própria a esses rappers e funkeiros. Uma
identidade que é fruto de uma reinterpretação
dos sons e ícones associados a esses estilos,
numa construção em que os sentidos que lhe
são atribuídos expressam não só as condições
estruturais nas quais se situam, mas também
o próprio contexto cultural do meio social no
qual vieram se construindo como sujeitos. Nesse sentido, concordamos com Sansone (1997,
p. 171), quando questiona as teses de homogeneização de uma cultura juvenil, mostrando
que, “ao lado de uma inquestionável globalização do universo da cultura juvenil, mantém-se uma série de aspectos locais, determinados por uma história local e contextos específicos”, fazendo com que o “local”
reinterprete o “global” de formas diferenciadas.
O funk será refletido a partir da realidade de três grupos pesquisados:
• A dupla Flavinho e Maninho – Ambos têm 17 anos, são brancos e moram com os
pais. Começaram a cantar juntos no início de
1998 e atualmente fazem parte da equipe de
DJ Vitor, a qual acompanham nas festas promovidas quase sempre na região norte da cidade. Já participaram de uma coletânea, com
uma música gravada, além de vários CDs demo.
• A dupla Marcos e Fred – Cantavam
juntos desde 1995, separando-se no final de
1998. Marcos é branco e tem 18 anos; Fred é
negro e tem 19 anos. Eles são um bom exemplo de centenas de duplas que se formam,
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
ganham alguma projeção, mas depois se desfazem, desiludidas com as perspectivas profissionais abertas pelo mercado musical. Por dois
anos fizeram parte da equipe Funk Music, do DJ
Vitor, fazendo shows em Belo Horizonte, no
interior de Minas Gerais e no Espírito Santo.
Chegaram a ter suas músicas gravadas em dois
CDs coletânea, que tiveram certa repercussão no
meio funk em BH.
• Os Cazuza – O grupo formou-se em
1996, contando com quatro integrantes, todos
negros, com idade variando entre 19 e 21 anos,
sendo dois deles casados. Gravaram uma música em um CD coletânea, e na época se dividiam entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, tentando a gravação de um CD e a contratação por
alguma equipe carioca.
Para esses jovens, aderir ao funk significa uma escolha, condicionada pela própria
condição juvenil e o campo de possibilidades
com o quais se deparam. Os fatores são semelhantes aos do rap: a atração pelo ritmo e pela
dança, a inexistência de maiores pré-requisitos
para a produção musical e a influência da mídia.
Mas o que parece ter influenciado de fato na
decisão dos jovens em se tornarem MCs foi a
identificação com o clima de alegria característico dos bailes, além de se destacarem diante
dos seus pares e, principalmente, das meninas.
Assim, a escolha pelo funk expressa determinada
forma de vivenciar a condição juvenil, com ênfase na diversão e na alegria que os bailes representam.
Da mesma forma como no r a p, os MCs
se colocam como produtores culturais, mas pouco interferem na produção das bases musicais,
uma tarefa dos DJs e de seus pequenos estúdios espalhados pela periferia. A música funk,
diferentemente da música r a p, não tem muito
sentido em si mesma, cumprindo o seu papel
efetivo como meio de animação dos bailes. Assim, a produção musical é caracterizada pela
transitoriedade, por ser descartável, executada
por um período relativamente curto, sendo logo
substituída por outra. Os temas abordados são
diretamente ligados ao universo das vivências
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
juvenis, sendo comum abordarem as relações
afetivas, a descrição de bailes e sua animação
ou temas jocosos de situações ocorridas na cidade, além da exaltação das diferentes galeras.
Outras características presentes em várias letras
são a exaltação da paz e a crítica às brigas,
numa resposta possível às situações de violência que ocorriam em alguns bailes.11
Os temas expressam aspectos da
vivência juvenil, não deixando de ser uma forma de refletirem sobre si mesmos e resgatarem
o prazer e o humor que são tão negados em um
cotidiano permeado pela lógica instrumental
dominante, o que é coerente com o sentido que
atribuem a si mesmos como MCs – serem os
mensageiros da alegria, promovendo a agitação
da galera.
O MC tem a obrigação de levantar a galera,
incentivar mesmo, procurar passar uma paz,
um agito, um ânimo pro pessoal pular mesmo, balançar, soltar os cachorros. Eu acho
que o MC se expressa num modo de progredir a festa, fazer a festa encaminhar...
(Flavinho,17 anos)
Se o rappers se vêem como porta-vozes
da periferia, assumindo a dimensão da denúncia, os MCs se percebem como aqueles que
contri-buem para criar a alegria da festa. Assumem, assim, dimensões particulares de uma
mesma realidade, pontuando questões cruciais
vividas pelos jovens.
Para esses jovens, ser um MC é uma experiência muito marcante. Assim como os
rappers, para os jovens funkeiros o estar no palco é fonte de emoção e prazer:
11. A pesquisa foi concluída antes da meteórica ascensão dof u n k
em 2000, não sendo pois objeto de análise desse trabalho. Mas é
necessário pontuar a estigmatização promovida pela mídia, numa
negação do estilo. As criticas sobre a qualidade das letras, o machismo,
a erotização pública exagerada, etc., se são até certo ponto pertinentes, não levam em conta que os jovens expõem na cena pública as
contradições do tecido social. Eles expressam, nas músicas e na dança, o caldo de cultura em que estão inseridos, fruto das condições em
que vivem e do acesso que possuem aos bens simbólicos. Mais do
que negar, é preciso aprofundar-se nos seus múltiplos significados.
131
Nó, cara, é bom demais, né, ver aquele povo
lá, a gente entrar e a massa ir ao delírio!
Depois gritando: “Marcos e Fred! Marcos e
Fred!” isso e aquilo, é gostoso demais...
quando a gente sobe a gente treme, vem
uma adrenalina! Dá uma vontade de
esguelar, sair gritando, pular lá em baixo,
curtir com o pessoal mesmo... (Fred, 18
anos)
Participar de shows e ter suas músicas
difundidas nas rádios é o desejo mais imediato desses jovens. Essas são formas de participação que os destacam da multidão anônima,
permitindo-lhes que se sintam alguém, com
reflexos na auto-imagem. Ao mesmo tempo,
proporciona-lhes descobrir e desenvolver as
próprias potencialidades, como compor e cantar, tornando-os sujeitos criativos.
Como jovens, o grupo de amigos, ou a
galera, constitui uma referência importante. E
para esses MCs o grupo de amigos mais próximo se articula em torno do funk. Os companheiros de dupla tendem a se tornar os amigos mais próximos, sendo com eles que se encontram com mais freqüência, conversam sobre os problemas ou casos afetivos, numa relação mais íntima. Mas, assim como no r a p,
existe uma mobilidade muito grande de grupos e duplas, expressão de um momento de
experimentações, típico da condição juvenil.
Também o funk possibilitou a esses jovens a
ampliação da rede de relações. Por meio dos
bailes e shows, estabeleceram uma rede de relações amplas – os conhecidos – que não possui uma estrutura de coesão tão forte entre
aqueles que dela participam: reconhecem-se no
funk, compartilham situações lúdicas, encontram-se nos bailes, sentindo-se parte de uma
rede simbólica (Arce, 1999).
Para esses jovens, o estilo se constrói
em torno dos bailes. Este é o elemento central
a partir do qual se articula a identidade do
funk. É neles que podem expressar os outros
elementos: o encontro com os amigos, o gosto pela música funk, um determinado jeito de
132
dançar e, principalmente, a oportunidade de se
mostrarem como MCs. Podemos dizer que o
baile funk representa, antes de tudo, a celebração da amizade, o espaço por excelência para
viverem dimensões constitutivas da condição
juvenil: a explosão emocional da alegria, a
identificação coletiva, o sentir-se em grupo.
Vianna (1987, p. 58) reforça essa dimensão ao
afirmar que “as pessoas freqüentam o baile
não por um tipo de música, mas principalmente pelo ambiente, isto é, as outras pessoas, os
amigos que se encontram e se divertem juntos,
a alegria de viver em bando”. Dessa forma, o
b a i l e funk constitui um espaço de sociabilidade, uma massa composta por grupos de amigos e galeras. Pode ser visto como uma opção
de agrupamento metropolitano, numa reação
possível à massificação da sociedade contemporânea.
Mas, afinal de contas, o que é ser
funkeiro? A própria definição é fluida, como
diz o Marcos:
O funk é um modo de pensar, d’ocê estar de
bem com a vida... mas não é uma idolatria,
um tipo de religião como o r a p, é mais um
modo d’ocê estar solto com a vida, não num
modo de não ter responsabilidade, mas
d’ocê ser alegre...
Esse depoimento parece esclarecer os
contornos da identidade desses jovens com o
funk. S e r funkeiro não implica um conjunto de
valores e comportamentos comuns, como uma
“religião”, mas constitui uma forma determinada de vivenciar as demandas dessa fase da
vida. A identidade do funk é a oferecida pelo
estilo de possibilidades de viver e expressar as
pulsões, os desejos e as necessidades que caracterizam a condição juvenil. Tanto é que não
existe nenhuma exigência de coerência entre o
comportamento pessoal e o comportamento
como um MC, o que vimos existir entre os jovens que aderem ao r a p. Outro elemento é a
questão da cor e da origem social, quando
parecem não estabelecer relações entre o funk
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
e a identidade étnica ou como pobres. Enfim,
podemos dizer que, diferentemente do r a p, o
funk não se coloca como espaço de construção de uma identidade como negros e pobres.
Essas considerações indicam que a
identidade que esses jovens constroem como
funkeiros é fluida e efêmera, uma imbricação
com elementos simbólicos apropriados da cultura popular, da indústria cultural em geral,
como manifestação cultural híbrida. Essa identidade apresenta-se como uma fronteira provisória e móvel, operando a partir de múltiplos
registros na construção mais ampla de uma
identidade desses sujeitos como jovens. Podemos dizer que o funk é parte de determinado
estilo de vida juvenil, um marco identitário que
contribui para que esses jovens possam
vivenciar e se afirmar como sujeitos numa determinada fase da vida.
Os significados dos grupos
musicais na socialização dos
jovens
As experiências desses jovens rappers e
funkeiros nos levam a constatar que eles vieram se construindo e sendo construídos como
sujeitos sociais numa complexidade de espaços
e tempos, estabelecendo múltiplas relações a
partir do seu meio social, mas com uma referência central nos grupos musicais e na sociabilidade que produzem. Nesse processo, é evidente como eles encontram poucos espaços nas
instituições do mundo adulto para construir referências e valores por meio dos quais possam se
construir com identidades positivas, colocar-se na
cena pública como sujeitos, como cidadãos que
são. A sociedade não lhes oferece muitas perspectivas. O mundo do trabalho lhes fecha as portas, a escola se mostra distante, não conseguindo entender nem responder às demandas que
lhes são colocadas. Apesar de motivados e envolvidos com a música, não encontram estímulos e
espaços para aprimorar o potencial criativo que
demonstram, não existindo em Belo Horizonte
uma política cultural que os contemple.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002
Nesse contexto o rap e o funk cumpriram e vêm cumprindo um papel significati v o
na vida desses jovens. Um primeiro aspecto diz
respeito ao exercício da criatividade. Os estilos
rap e funk possibilitam que esses jovens se introduzam na cena pública para além da figura do espectador passivo, colocando-se como
criadores ativos, contra todos os limites de um
contexto social que lhes nega a condição de
criadores. Dessa forma, a experiência nos grupos musicais assume um valor em si, como
exercício das potencialidades humanas. A música que criam, os shows que fazem, os eventos culturais dos quais participam aparecem
como forma de afirmação pessoal, além do
reconhecimento no meio em que vivem, contribuindo para o reforço da auto-estima. Ao
mesmo tempo, através da produção cultural
que realizam, principalmente o rap e seu caráter de denúncia, colocam em pauta no debate
público o lugar social do pobre e da pobreza.
Mas cada um dos estilos possui a sua
especificidade. A melhor forma de caracterizálas é pelo duplo sentido que a palavra “diversão” oferece. Em um deles temos a diversão
como ato ou efeito de distrair ou distra i r - s e :
falta de atenção, abstração, irreflexão, esquecimento, divertimento (do latim, distractione) .
É o sentido do funk, no qual predominam as
emoções, mediadas pela música. Podemos ver
nele a expressão do direito legítimo dos jovens
à alegria, à fruição, ao prazer. Por outro lado,
a diversão surge como um ato ou efeito de
divergir: mudança de direção, desvio (do latim,
diversione). É o sentido do rap. Mais do que o
funk, o e s t i l o rap estimula o jovem a refletir
sobre si mesmo, sobre seu lugar social, contribuindo para a ressignificação das identidades do
jovem como pobre e negro. Ao mesmo tempo, ele
cria uma forma própria de o jovem intervir na
sociedade, por meio das suas práticas culturais.
Mas não significa necessariamente que se coloque como uma forma de resistência ou mesmo
como uma expressão política de oposição de
classe. Prefiro ressaltar o seu sentido formativo,
detectado numa pedagogia que parece gestar
133
entre eles. Uma pedagogia da palavra, emitida
pelas letras, por meio da qual não pretendem
impor uma compreensão da realidade, mas “fazer o cara pensar”, como nos disseram vários
deles. Uma pedagogia na qual há o respeito
pela diversidade, quando propõem que o outro, na sua condição de indivíduo, pense por
si mesmo e tire suas próprias conclusões. Essa
postura é coerente com as relações que estabelecem nos grupos, em que o coletivo não
subsume o individual, o “nós” não abdica da
condição do “eu”.
Apesar dessas especificidades, podemos
constatar significados comuns aos dois estilos.
Um deles diz respeito à dimensão da escolha.
O r a p e o funk se colocam como um dos poucos meios pelos quais os jovens puderam exercer o direito às escolhas, elaborando modos de
vida distintos e ampliando o leque das experiências vividas. Essa dimensão se torna mais
importante quando levamos em conta que é o
exercício da escolha, junto com a responsabilidade das decisões tomadas, uma das condições para a construção da autonomia. Se a
escolha e a autonomia são frutos de aprendizagens, podemos nos indagar: Quais os espaços que esses jovens encontram no mundo
adulto onde possam exercitar a prática de escolhas responsáveis, onde possam ir construindo-se como sujeitos autônomos?
Outra dimensão é a possibilidade que
esses estilos proporcionam de vivência da condição juvenil. Para a maioria dos jovens
pesquisados, os estilos funcionaram como um
rito de passagem para a juventude, fornecendo-lhes elementos simbólicos, expressos na
roupa, no visual ou na dança, para que pudessem construir uma identidade juvenil. Desde
então, passaram a ser uma referência para a escolha dos amigos, bem como para as formas de
ocupação do tempo livre, duas dimensões – o
grupo de pares e o lazer – constitutivas da
134
condição juvenil. A convivência continuada no
grupo ou na dupla possibilitou a criação de relações de confiança e a aprendizagem de relações coletivas, servindo também de espelho
para a construção de identidades individuais.
Todos enfatizam que a adesão aos estilos gerou uma ampliação dos circuitos e redes de trocas, evidenciando o r a p e o funk
como produtores de sociabilidades. A dinâmica das relações existentes, o exercício da razão
comunicativa, a existência da confiança, a
gratuidade das relações, sem outro sentido que
não a própria relação, são aspectos que apontam para a centralidade da sociabilidade no
processo de construção social desses jovens.
Nesse sentido, os estilos podem ser vistos
como respostas possíveis à despersonalização e
à fragmentação do sistema social, possibilitando-lhes relações solidárias e a riqueza da descoberta e do encontro com os outros.
Podemos concluir constatando que o
rap e o funk, mesmo com abrangências diferenciadas, significaram uma referência na elaboração e vivência da condição juvenil, contribuindo de alguma forma para dar um sentido à vida
de cada um, num contexto onde se vêem relegados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tempo, o estilo de vida rap e funk possibilitou a
muitos desses jovens uma ampliação significativa do campo de possibilidades, abrindo espaços para sonharem com outras alternativas de
vida que não aquelas, restritas, oferecidas pela
sociedade. Querem ser reconhecidos, querem
uma visibilidade, querem ser alguém num contexto que os torna invisíveis, ninguém na multidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruir
dela, transformando o espaço urbano em um
valor de uso. Enfim, querem ser jovens e cidadãos, com direito a viver plenamente a sua juventude. Este parece ser um aspecto central:
pelos estilos rap e funk, os jovens estão reivindicando o direito à juventude.
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
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Recebido em 25.02.2002
Aprovado em 03.05.2002
Juarez Tarcisio Dayrellé formado em Ciências Sociais pela UFMG. Tem vários artigos publicados além do livroMúltiplos olhares
sobre educação e cultura, pela Editora da UFMG. Atualmente é professor-adjunto na Faculdade de Educação da UFMG.
136
Juarez DAYRELL. Or a p e o funkna socialização da juventude
Juarez Dayrell
O jovem como sujeito social
Juarez Dayrell
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação
Introdução
Neste artigo tratamos de jovens ligados a grupos
musicais, especificamente de rappers e funkeiros. Mas
a discussão não será em torno dos estilos rap e funk
em si mesmos, o que de alguma forma já discuti em
artigos anteriores.1 Proponho um olhar sobre os jovens para além dos grupos musicais, buscando
compreendê-los como sujeitos sociais que, como tais,
constroem um determinado modo de ser jovem. Ou
seja, a pergunta sobre quem são esses jovens que
participam de grupos de rap e funk.
Ao analisar a produção teórica sobre os grupos
musicais juvenis no Brasil, pelo menos aquelas a que
tivemos acesso,2 percebi uma tendência na descrição
e análise dos grupos em si mesmos, possibilitando o
1
Ver Dayrell (1999, 2001, 2002a, 2002b).
2
Vianna (1987); Sposito (1993); Kemp (1993); Costa
(1993); Abramo (1994); Guerreiro (1994); Guimarães (1995);
Andrade (1996); Cechetto (1997); Silva (1998); Arce (1999);
Herschmann (2000); Tella (2000).
40
conhecimento da sua realidade cotidiana, a forma
como constroem o estilo, os significados que lhe atribuem e o que expressam no contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada. Esses estudos muito
contribuíram para problematizar a cultura juvenil contemporânea, evidenciando, por meio dela, os anseios e
os dilemas vividos pela juventude brasileira.
Contudo, apesar de suas contribuições, essa produção teórica apresenta uma lacuna. Ao construírem
o seu objeto, tais investigações recortam de tal forma
a realidade dos jovens que dificultam a sua compreensão como sujeitos, na sua totalidade. Podemos até conhecer o jovem como um rapper ou um funkeiro, mas
sabemos muito pouco a respeito do significado dessa
identidade no conjunto que, efetivamente, faz com
que ele seja o que é naquele momento.
Por outro lado, nos deparamos no cotidiano com
uma série de imagens a respeito da juventude que interferem na nossa maneira de compreender os jovens.
Uma das mais arraigadas é a juventude vista na sua
condição de transitoriedade, na qual o jovem é um
“vir a ser”, tendo no futuro, na passagem para a vida
adulta, o sentido das suas ações no presente. Sob essa
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
perspectiva, há uma tendência de encarar a juventude
na sua negatividade, o que ainda não chegou a ser
(Salem, 1986), negando o presente vivido. Essa concepção está muito presente na escola: em nome do
“vir a ser” do aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos de futuro, tende-se a negar o presente
vivido do jovem como espaço válido de formação,
assim como as questões existenciais que eles expõem,
bem mais amplas do que apenas o futuro.
Uma outra imagem presente é uma visão romântica da juventude que veio se cristalizando a partir
dos anos de 1960, resultado, entre outros fatores, do
florescimento da indústria cultural e de um mercado
de consumo dirigido aos jovens, que se traduziu, em
modas, adornos, locais de lazer, músicas, revistas etc.
(Leccardi, 1991; Abramo, 1994; Feixa, 1998). Nessa
visão, a juventude seria um tempo de liberdade, de
prazer, de expressão de comportamentos exóticos. A
essa idéia se alia a noção de moratória, como um tempo para o ensaio e o erro, para experimentações, um
período marcado pelo hedonismo e pela irresponsabilidade, com uma relativização da aplicação de sanções sobre o comportamento juvenil. Mais recentemente, acrescenta-se uma outra tendência de perceber
o jovem reduzido apenas ao campo da cultura, como
se ele só expressasse a sua condição juvenil nos finais de semana ou quando envolvido em atividades
culturais.
Essas imagens convivem com outra: a juventude
vista como um momento de crise, uma fase difícil,
dominada por conflitos com a auto-estima e/ou com
a personalidade. Ligada a essa idéia, existe uma tendência em considerar a juventude como um momento
de distanciamento da família, apontando para uma
possível crise da família como instituição socializadora. Alguns autores vêm ressaltando que a família,
junto com o trabalho e a escola, estaria perdendo o
seu papel central de orientação e de valores para as
gerações mais novas (Morcellini, 1997; Zaluar, 1997;
Abromavay et al.,1999).
Torna-se necessário colocar em questão essas
imagens, pois, quando arraigados nesses “modelos”
socialmente construídos, corremos o risco de anali-
Revista Brasileira de Educação
sar os jovens de forma negativa, enfatizando as características que lhes faltariam para corresponder a
um determinado modelo de “ser jovem”. Dessa forma, não conseguimos apreender os modos pelos quais
os jovens, principalmente se forem das camadas populares, constroem as suas experiências.
Com base nessas preocupações, pretendo evidenciar neste artigo como os jovens, enquanto sujeitos
sociais, constroem um determinado modo de ser jovem, baseados em seu cotidiano. Para isso tomaremos como foco jovens das camadas populares ligados a grupos musicais, no caso, rap e funk.3 Quem
são esses jovens fora dos grupos dos quais participam? Como constroem um determinado modo de ser
jovem no seu cotidiano?
Para desenvolver tais questões, torna-se necessário explicitar meu olhar sobre a juventude, bem
como minha compreensão do jovem como sujeito social. Comecemos por essa discussão.
Juventude? Juventudes...
Construir uma definição da categoria juventude
não é fácil, principalmente porque os critérios que a
constituem são históricos e culturais. Uma série de
autores já se debruçou sobre o tema, trazendo importantes contribuições, não sendo meu propósito aqui
recuperar toda essa discussão.4 Neste artigo, me limitarei a explicitar a minha posição, ressaltando a dimensão da diversidade presente na mesma.
Entendemos, como Peralva (1997), que a juventude é, ao mesmo tempo, uma condição social e um
tipo de representação. Se há um caráter universal dado
pelas transformações do indivíduo numa determina-
3
Os dados empíricos utilizados são parte da pesquisa que
resultou na tese de doutorado intitulada A música entra em cena:
o rap e o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte
(Dayrell, 2001).
4
Para uma discussão mais aprofundada a respeito da noção
de juventude, ver Pais (1993); Sposito (1993, 2000); Peralva
(1997); Feixa (1998); Dayrell (1999, 2001), entre outros.
41
Juarez Dayrell
da faixa etária, nas quais completa o seu desenvolvimento físico e enfrenta mudanças psicológicas, é
muito variada a forma como cada sociedade, em um
tempo histórico determinado, e, no seu interior, cada
grupo social vão lidar com esse momento e representá-lo. Essa diversidade se concretiza com base nas
condições sociais (classes sociais), culturais (etnias,
identidades religiosas, valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, dentre outros aspectos.
Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar, considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim
como parte de um processo de crescimento mais
totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos
no seu contexto social. Significa não entender a juventude como uma etapa com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação
que será superado com o chegar da vida adulta. Nessa direção, Melucci (apud Melucci & Fabbrini, 1992)
nos propõe uma outra forma de compreender a adolescência e a juventude. Para ele, existe uma seqüência temporal no curso da vida, cuja maturação biológica faz emergir determinadas potencialidades. Nesse
sentido, é possível marcar um início da juventude,
quando fisicamente se adquire a capacidade de procriar, quando a pessoa dá sinais de ter necessidade de
menos proteção por parte da família, quando começa
a assumir responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de auto-suficiência, dentre outros
sinais corporais e psicológicos.
Mas, para o autor, uma seqüência temporal não
implica necessariamente uma evolução linear, na qual
ocorra uma complexidade crescente, com a substituição das fases primitivas pelas fases mais maduras, de
tal forma a cancelar as experiências precedentes.
Melucci, ao contrário, defende a idéia de que os fenômenos evolutivos presentes nas mudanças dos ciclos
vitais são fatos que dizem respeito a cada momento
da existência, fazendo das mudanças ou transformações uma característica estável da vida do indivíduo.
Assim, a adolescência não pode ser entendida como
um tempo que termina, como a fase da crise ou de
42
trânsito entre a infância e a vida adulta, entendida
como a última meta da maturidade. Mas representa o
momento do início da juventude, um momento cujo
núcleo central é constituído de mudanças do corpo,
dos afetos, das referências sociais e relacionais. Um
momento no qual se vive de forma mais intensa um
conjunto de transformações que vão estar presentes,
de algum modo, ao longo da vida.
Dessa discussão, entendemos a juventude como
parte de um processo mais amplo de constituição de
sujeitos, mas que tem especificidades que marcam a
vida de cada um. A juventude constitui um momento
determinado, mas não se reduz a uma passagem; ela
assume uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual
se desenvolve e pela qualidade das trocas que este
proporciona. Assim, os jovens pesquisados constroem
determinados modos de ser jovem que apresentam
especificidades, o que não significa, porém, que haja
um único modo de ser jovem nas camadas populares.
É nesse sentido que enfatizamos a noção de juventudes, no plural, para enfatizar a diversidade de modos
de ser jovem existentes. Assim compreendida, tornase necessário articular a noção de juventude à de sujeito social.
Os jovens como sujeitos sociais
Geralmente, a noção de sujeito social é tomada
com um sentido em si mesma, sem a preocupação de
defini-la, como se fosse consensual a compreensão
do seu significado. Outras vezes é tomada como sinônimo de indivíduo, ou mesmo de ator social. Para
alguns, falar em “sujeito” implica uma condição que
se alcança, definindo-se alguns pré-requisitos para tal;
para outros, é uma condição ontológica, própria do
ser humano. Nos limites deste artigo não cabe uma
discussão que recupere a construção do conceito, assim me limitarei a assumir determinada posição.
Para efeitos desta análise, assumi a definição de
Charlot (2000, p. 33 e 51), para quem o sujeito é um
ser humano aberto a um mundo que possui uma historicidade; é portador de desejos, e é movido por eles,
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
além de estar em relação com outros seres humanos,
eles também sujeitos. Ao mesmo tempo, o sujeito é
um ser social, com uma determinada origem familiar,
que ocupa um determinado lugar social e se encontra
inserido em relações sociais. Finalmente, o sujeito é
um ser singular, que tem uma história, que interpreta
o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à
posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e à sua singularidade. Para
o autor, o sujeito é ativo, age no e sobre o mundo, e
nessa ação se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais no qual se insere.
Charlot relaciona a noção de sujeito às características que definem a própria condição antropológica que constitui o ser humano, ou seja, o ser que é
igual a todos como espécie, igual a alguns como parte de um determinado grupo social e diferente de todos como um ser singular. Nessa perspectiva, o ser
humano não é um dado, mas uma construção. A condição humana é vista como um processo, um constante tornar-se por si mesmo, no qual o ser se constitui como sujeito à medida que se constitui como
humano, com o desenvolvimento das potencialidades
que o caracterizam como espécie.
Charlot (2000) lembra ainda que a essência originária do indivíduo humano não está dentro dele
mesmo, mas sim fora, em uma posição excêntrica, no
mundo das relações sociais. Trata-se da outra face da
condição humana a ser desenvolvida: a sua natureza
social. Dizer que a essência humana é antes de tudo
social é o mesmo que afirmar que o homem se constitui na relação com o outro.
Ao mesmo tempo, a alteridade, vista nessa perspectiva, mostra que o ser humano se coloca no limite
entre a natureza e a cultura: a dimensão biológica e a
social influenciam-se mutuamente na produção humana. A possibilidade de o ser humano se constituir
como tal depende tanto do seu desenvolvimento biológico, em especial do sistema nervoso, quanto da
qualidade das trocas que se dão entre os homens no
meio no qual se insere. O homem se constitui como
ser biológico, social e cultural, dimensões totalmente
interligadas, que se desenvolvem com base nas rela-
Revista Brasileira de Educação
ções que estabelece com o outro, no meio social concreto em que se insere.
Podemos concluir que o pleno desenvolvimento
ou não das potencialidades que caracterizam o ser
humano vai depender da qualidade das relações sociais desse meio no qual se insere. Assim, concordo
com Charlot, quando afirma que todo ser humano é
sujeito. Mas temos de levar em consideração que existem várias maneiras de se construir como sujeito, e
uma delas se refere aos contextos de desumanização,
nos quais o ser humano é “proibido de ser”, privado de
desenvolver as suas potencialidades, de viver plenamente a sua condição humana, como foi possível constatar em grande parte dos jovens pesquisados. Não é
que eles não se construam como sujeitos, ou o sejam
pela metade, mas sim que eles se constroem como tais
na especificidade dos recursos de que dispõem. É essa
realidade que nos leva a perguntar se esses jovens não
estariam nos mostrando um jeito próprio de viver.
Quando cada um desses jovens nasceu, a sociedade já tinha uma existência prévia, histórica, cuja
estrutura não dependeu desse sujeito, portanto, não
foi produzida por ele. Assim, o gênero, a raça, o fato
de terem como pais trabalhadores desqualificados,
grande parte deles com pouca escolaridade, dentre
outros aspectos, são dimensões que vão interferir na
produção de cada um deles como sujeito social, independentemente da ação de cada um. Ao mesmo tempo, na vida cotidiana, entram em um conjunto de relações e processos que constituem um sistema de
sentidos, que dizem quem ele é, quem é o mundo,
quem são os outros. É o nível do grupo social, no
qual os indivíduos se identificam pelas formas próprias de vivenciar e interpretar as relações e contradições, entre si e com a sociedade, o que produz uma
cultura própria.
Meu contato com os jovens que pesquisei deixa
muito claro o aparente óbvio: eles são seres humanos, amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito
de suas condições e de suas experiências de vida,
posicionam-se, possuem desejos e propostas de melhoria de vida. Acreditamos que é nesse processo que
cada um deles vai se construindo e sendo construído
43
Juarez Dayrell
como sujeito: um ser singular que se apropria do social, transformado em representações, aspirações e
práticas, que interpreta e dá sentido ao seu mundo e
às relações que mantém.
Tomar os jovens como sujeitos não se reduz a
uma opção teórica. Diz respeito a uma postura metodológica e ética, não apenas durante o processo de
pesquisa mas também em meu cotidiano como educador. A experiência da pesquisa mostrou-me que ver
e lidar com o jovem como sujeito, capaz de refletir,
de ter suas próprias posições e ações, é uma aprendizagem que exige um esforço de auto-reflexão, distanciamento e autocrítica. A dificuldade ainda é maior quando o outro é “jovem, preto e pobre”, essa tríade que
acompanha muitos dos jovens como uma maldição.
Da mesma forma, acredito que este artigo não
apenas fala dos jovens, mas fala dos jovens na sua
relação com o pesquisador, e vice-versa. É resultado de um modo de observar centrado nas relações.
Significa dizer que os jovens não são apenas objeto
da observação, mas pessoas em relação com aquele
que observa. Tenho claro que construi um texto que
se refere a fatos socialmente construídos, com a
consciência da distância que separa a interpretação
da “realidade”.
Os sujeitos da pesquisa
rappers ou funkeiros. Os dois jovens expressam experiências e momentos de vida diferenciados, revelando mundos próprios.
João e a “correria” de um rapper
João é um rapper, integrante do grupo Máscara
Negra. Tem 22 anos, é negro e mora com sua mãe e
um irmão. A mãe trabalhava como cozinheira em bares e casas de família, estando atualmente aposentada por motivos de saúde. A sobrevivência da família
é garantida pela contribuição de todos no orçamento
doméstico, sendo que João é o que menos contribui,
numa estratégia de liberá-lo para investir na sua carreira musical. Isso mostra que sua família vê na música, no rap, uma carreira possível.
João considera que as relações familiares são
muito importantes para a sua vida (“Eu gosto da minha mãe e do meu irmão pra caralho...”). Todas as
vezes que ele se refere à mãe ou ao irmão, o faz com
admiração, evidenciando a importância que lhes atribui na sua formação. João enfatiza a importância atual
da prática do diálogo e das negociações no interior da
família no seu amadurecimento, diferente do clima
de conflitos constantes quando mais novo.
Agora lá em casa sempre rolou muita conversa. Sempre foi tudo aberto, assunto de sexo, assunto de música,
Para desenvolver essa reflexão, optei por privilegiar dois jovens que serão os fios condutores da análise: João é um rapper; Flavinho é um funkeiro.5 Não
tenho o propósito de tratá-los como modelos. Eles são
sujeitos concretos, com experiências singulares, cujas
trajetórias de vida podem fornecer elementos para
melhor compreendê-los além da identidade como
5
A escolha desses jovens se deu na última fase da pesquisa,
depois de uma série de passos metodológicos, entre eles a realização de uma pesquisa telefônica com 146 grupos musicais juvenis,
e a escolha de seis grupos de rap e funk. Com esses dois jovens
mantivemos contatos intensos, além de entrevistas em profundidade. Para maiores detalhes da metodologia, ver Dayrell (2001).
44
tudo rola, até assunto de televisão. Acho que é isso que me
ajudou muito a não ter um filho até hoje, essa história de
não ter feito muita treta (malandragem). A gente sempre
fala aberto...
João trabalha desde os 13 anos, nos mais diferentes “bicos”, sendo atualmente meio-oficial de serralheiro. No período em que o acompanhei não tinha
um emprego fixo, gastando boa parte do seu tempo
procurando trabalho, dirigindo-se às serralherias do
bairro para ver se encontrava algum “bico” para fazer, ganhando R$10,00 por dia. Ele não se sente um
profissional na ocupação que exerce, muito menos
gosta do que faz: “[A serralheria] é um trampo que eu
mais detesto, cara! Se ocê soubesse o que que é quei-
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
mar o olho na solda; o que que é ficar sem dormir por
causa das vista queimada. Eu vou te falar, é brabo...”.
Nas suas experiências no mundo do trabalho não
esteve e não está presente a dimensão da escolha, o
trabalho sendo encarado como uma obrigação necessária. Convive com o conflito entre o tempo de trabalho e o tempo das atividades musicais, quando o primeiro restringe as possibilidades de investir na música,
que é aquilo que gosta e que o faz se sentir produtivo.
Comentando sobre um dos poucos empregos fixos que
já teve, lembra:
Chegava dentro da firma e minha cabeça num era pra
aquilo lá, trabalhei em muitos lugares, cara, mas minha cabeça num aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso porque eu pensava: “Pô, eu tenho de fazer é música, o meu
negócio é aquilo lá, é só com isso que eu me entretenho, é
nisso que eu tenho uma vontade, cara!”
O grande sonho de João é sobreviver da música,
ou pelo menos de alguma atividade em torno do mundo da cultura.
Ele foi excluído da escola na 5a série do ensino
fundamental, não retomando os estudos desde então.
A escola é lembrada como um espaço que não o envolvia, distante dos seus interesses e necessidades:
“A escola não me cativava, não me despertava interesse, era um saco... aí eu fui desinteressando pelo
estudo...”. Lembra com mágoa das três reprovações;
da imagem de mau aluno que tinha, envolvido em
brigas e discussões com as professoras. Segundo ele,
a única lembrança boa é de uma professora que mandou um bilhete para a sua mãe, dizendo “[...] que eu
era carente e que eu precisava de carinho. Que eu não
era tão moleque como minha mãe imaginava. Depois
disso, né, fiquei na maior empolgação com ela, eu até
me apaixonei com ela”. Além disso, havia a necessidade e o desejo de trabalhar, para atender às demandas
mínimas de consumo e lazer. Atualmente reconhece
que a falta de um diploma diminui suas possibilidades
no mercado de trabalho e se diz arrependido de não
ter concluído o ensino básico, o que contribui para
minar a sua auto-estima.
Revista Brasileira de Educação
No contexto em que João veio sendo socializado, o hip hop, e especificamente o rap,6 cumpriu e
ainda cumpre um papel significativo na sua vida. Ele
veio construindo a sua vida, a sua rede de relações e
os seus projetos em torno desse estilo,7 o que muito
interferiu na forma como ele se representa, na visão
de mundo que possui e nos comportamentos e valores que expressa, constituindo um estilo de vida.
João aderiu ao hip hop desde a adolescência, inicialmente participando de gangues de break, com quem
freqüentava os bailes, além de participar dos rachas e
competições na região onde morava. Segundo ele, a
adesão ao hip hop contribuiu para o aprimoramento do
seu gosto musical e para a descoberta de suas potencialidades artísticas como produtor musical e cantor.
Ao mesmo tempo, possibilitou-lhe uma ampliação do
domínio do espaço urbano além do bairro, pois passou
a freqüentar festas em diferentes regiões da cidade,
aumentando, assim, a sua rede de relações.
Com o hip hop passei a andar pra tudo quanto é lado.
Onde achava que tinha alguma coisa, a gente ia. Num tinha
limite, não. Tem uma festa em tal lugar? Rola? Vamo embora: bairro São Paulo, bairro Nacional, Industrial, no
Eldorado, tudo que é canto...
Em 1995 formou o Máscara Negra junto com
três amigos, com os quais atua até hoje. Eles apresentam-se em festas de rua e eventos de hip hop, possuindo uma certa projeção no meio.
6
Rap, palavra formada pelas iniciais da expressão rhythm
and poetry (ritmo e poesia) é a linguagem musical do movimento
hip hop, um estilo juvenil que agrega outras linguagens artísticas
como as artes plásticas, o grafite, a dança, o break e a discotecagem,
o DJ. Para maiores informações sobre o estilo, ver Sposito (1993),
Andrade (1996), Silva (1998), Tella (2000), entre outros.
7
Estamos entendendo estilo como uma manifestação sim-
bólica das culturas juvenis, que expressa um conjunto mais ou
menos coerente de elementos materiais e imateriais que os jovens
consideram representativos da sua identidade individual e coletiva (Feixa, 1998).
45
Juarez Dayrell
João se encontra com o grupo com muita regularidade, estando juntos praticamente todas as noites
para ensaios, produção de músicas ou para saírem
juntos. Ele admite que já tiveram e ainda têm muitos
atritos entre si, mas vieram aprendendo a conviver
com as diferenças, estreitando as relações. A amizade, junto com os interesses comuns, faz do grupo
uma referência importante para cada um deles; João
enfatiza as relações de confiança existentes: podem
contar uns com os outros, trocando idéias sobre a
vida pessoal e afetiva, construindo uma identidade
coletiva, mas também individual. Outro esteio com o
qual conta é a namorada, numa relação valorizada pelo
que ela significa de afirmação e estímulo para enfrentar as dificuldades e implementar os seus projetos.
Para João, o seu namoro é um dos fatores que o levam à transição para o mundo adulto, interferindo
nas suas opções. Outra referência, mas menos intensa, são os colegas, quase todos ligados ao movimento hip hop, com os quais se encontra nos momentos
de lazer.
João já se defronta com os dilemas típicos da
passagem para a vida adulta, ele mesmo se considerando um jovem adulto. O aumento das responsabilidades em casa e o próprio noivado são sinalizações
desse momento:
responsável x irresponsável. Diante dessas imagens,
há a exigência de uma nova postura. Se antes o que o
mobilizava era a diversão, agora ele exige de si mesmo maior seriedade. A própria turma de amigos torna-se mais reduzida, fruto de um processo de seleção. Essa postura se concretizava na divisão de tempo,
na escolha dos programas com os quais ocupava as
horas livres. Nessa época, os finais de semana eram
dedicados principalmente ao namoro, com a noiva
acompanhando-o aos shows nos quais o grupo se apresentava. Além disso, costumava freqüentar bares e
festas de hip hop, sempre com os amigos mais próximos. Mas não deixava de “dar um rolé” em bares
ou rodas de samba, dos quais gosta muito.
Podemos constatar que, no contexto no qual João
veio se construindo, o rap foi e é um dos poucos espaços, além da família, em que encontra apoio, pode
estabelecer trocas e elabora projetos que dão sentido
à sua vida no presente. Naquele momento, ele elaborava um projeto de vida:
Meu trabalho é a música e o que trampo que ela gera...
É isso que eu quero, ser respeitado dentro do campo musical... Eu quero conseguir um poder aquisitivo, um financeiro melhor, isso é lógico, quem viveu a vida inteira na
pobreza é lógico que quer subir na vida... [pausa]. Resumindo, isso aí mesmo. Coisa simples. No mais, quero ca-
Hoje eu tô preocupado em arrumar outras coisas, eu
sar, é lógico... Sou noivo, é minha idade, né? E ver minha
tenho noiva, que vem coisa séria, vem o grupo, ocê passa a
mãe melhor, esses trens assim. Dar à minha mãe o que ela
olhar mesmo a situação sua dentro de casa e tudo. Aí ocê
não teve, coisas assim, que todo mundo pensa.
passa a ficar um pouco mais sério, ocê entendeu? Hoje em
dia meus amigos é pouco, porque assim meus amigos foi
muito de zuera, né, e vai acabando esses tipo de amizade
assim de zuera. Nem todo mundo tem esse processo, mas eu
tive. Ocê fica mais sério, a gente vai ficando adulto, né, véio...
No momento das entrevistas, estava colocando
em questão a sua opção pela música, questionandose sobre as escolhas realizadas até então e as perspectivas de futuro. Nesse contexto ele expressa uma
certa representação socialmente construída do adulto, presente no meio popular, que apresenta algumas
polaridades em relação ao jovem, como: sério x zoador;
46
O que João expressa por intermédio do rap é o
desejo de realizar-se. Implica ser um artista profissional, ser respeitado como um criador musical, ter
uma vida digna para si e sua família, com um mínimo
de condições financeiras, casar-se e ter sua própria
família. Tudo muito simples, como ele diz, e ao mesmo tempo tão distante.
Flavinho: um funkeiro imerso no presente
Flavinho é um funkeiro, participando de uma dupla
com Leo. Ele tem 19 anos e é branco. É um exemplo
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
do jovem que vive plenamente a sua condição juvenil,
com tempo livre para dedicar-se ao funk, aos amigos
e à namorada.
É o filho mais novo entre quatro irmãos, todos
vivendo com a mãe, uma operária têxtil. Residem em
casa própria, em um conjunto habitacional localizado
em um bairro da periferia norte de Belo Horizonte. O
pai saiu de casa há sete anos e ele nunca mais o viu.
Flavinho, a exemplo de outros jovens pesquisados, diz ter uma relação mais estreita com a mãe, com
quem conversa mais. Mas quando compara a sua família com a de outros amigos, considera-a mais fechada:
Eu acho que aqui em casa o pessoal é mais fechado,
né? Não sou de conversar com eles [os irmãos], sou de conversar mais com minha mãe... Mas a minha mãe não conversa, e nem eu procuro conversar com ela sobre sexo ou
drogas, por exemplo... Eu acho que a família de outros
amigos são mais, assim, relacionadas com eles... Eu acho
isso legal... em certos pontos a família deles é mais legal do
que a minha...
Para ele, a família não é o lugar no qual ele pode
explicitar os dilemas da fase que vivencia, como a
descoberta da sexualidade ou as drogas. Nem na família nem em outros espaços, como a escola, esses
jovens têm canais de comunicação com o mundo adulto. A sua família assume uma postura permissiva em
relação ao estilo. A mãe não interferia em sua escolha pela música funk, vendo nela a evidência de um
momento que iria passar quando mais velho, mas sem
acreditar muito nos seus resultados futuros. Apesar
das críticas à sua família, Flavinho considera que ela
constitui um núcleo de proteção e segurança, cumprindo um importante papel na sua vida.
Flavinho nunca havia trabalhado até o momento
da entrevista. A sua condição de “caçula” lhe permitiu essa “regalia”, sendo também uma estratégia familiar para garantir os seus estudos. Ele expressa uma
realidade comum a milhares de jovens que se encontram na expectativa do primeiro emprego. Segundo
ele, existe o acordo de sua mãe sustentá-lo enquanto
Revista Brasileira de Educação
permanecer na escola. Ele considera suas condições
de vida melhores do que daqueles que trabalhavam,
como seu colega de dupla:
Acho que minha situação é melhor que a de Leo, porque posso ver os amigos todos os dias, ficar em casa, almoçar em casa, me divertir, dormir a hora que for... Nessa hora
eu estou melhor, mas se for olhar a situação depois eu acho
que a minha é pior, ele pode comprar as coisas dele...
Apesar disso, vivia uma certa preocupação diante das possibilidades reais de encontrar algum emprego: “De vez em quando eu paro pra pensar: ‘Né,
será que um dia eu vou trabalhar?’ É uma coisa que
vem na cabeça assim, porque é foda, as coisas como
estão aí fora...”.
Mas naquele momento, envolvido com a música, com tempo livre e disponível, sem um desejo mais
definido em relação a alguma ocupação, além de não
sofrer pressões da família, ele tinha todos os motivos
para permanecer numa certa inércia, sem enfrentar,
de fato, a labuta que é a procura de trabalho. Flavinho,
por enquanto, pretende ser um cantor de funk, sonhando sobreviver da atividade artística e, nessa expectativa, não alimenta outro sonho profissional. Vive
imerso no presente, não acreditando nas possibilidades de intervir no seu futuro, adiando as preocupações com a sua sobrevivência.
Flavinho cursa o 1o ano do ensino médio em uma
escola estadual. A escola é a única atividade fixa que
ele tem no seu cotidiano, além de ser a única instituição pública na qual pode ter acesso aos bens culturais
e a um espaço de reflexão metódica sobre si mesmo e
sobre o mundo. Mas a escola não consegue envolvêlo, tornando-se uma obrigação necessária que ele apenas suporta. Além disso, a instituição não se mostra
sensível à realidade vivenciada pelos alunos fora de
seus muros. Flavinho lembra que “[...] a escola tem
muito funkeiro, mas eu acho que os professores vão
contra o funk... porque assim, eles nem sabem que
todos os alunos lá gostam do funk... eu mesmo, nenhum professor sabe que eu escrevo letras, nem a de
Português...”.
47
Juarez Dayrell
Para ele, a escola carrega poucos significados
sob o aspecto de espaço de socialização. É uma experiência distante dos seus interesses, que pouco contribui para a sua construção como sujeito.
Flavinho está ligado ao funk desde os 15 anos,
encontrando nesse estilo o som, as práticas de sociabilidade e os símbolos que se tornaram referência para
estruturar uma condição juvenil que se inaugurava. A
ligação com a galera do bairro, o sair à noite, o visual
que passa a adotar e, principalmente, a freqüência aos
bailes, são sinais visíveis que funcionam como mecanismos simbólicos para demarcar a sua identidade
como jovem.
O estilo funk8 tem como epicentro os bailes, em
torno do qual se articula uma identidade própria. Esse
é o programa preferido de Flavinho, quase uma obrigação nos finais de semana. É também no baile que
ele pode expressar os outros elementos do estilo: o
encontro com os amigos, o gosto pela música funk,
um determinado jeito de dançar, ressaltando a festa, a
fruição do prazer e a alegria de estarem juntos. Mas o
baile é também a oportunidade de se mostrar como
MC.9 Para Flavinho, cantar em bailes é uma emoção
muito grande, sendo uma forma de tornar-se conhecido, principalmente no bairro e pelas meninas, além
de ampliar seu círculo de relações no meio funk.
Na dupla, é Flavinho quem escreve as letras, caracterizadas por temas que abordam as relações
afetivas, a descrição dos próprios bailes e sua animação, sendo comum também a abordagem de temas
jocosos de situações ocorridas na cidade, além da
exaltação das diferentes “galeras”, resgatando o prazer e o humor que são tão negados no cotidiano desses jovens.10 Esses temas são coerentes com o senti-
8
Para maiores informações sobre o funk, ver Vianna (1987),
Cechetto (1997), Herschmann (2000), Dayrell (2001), entre outros.
9
MC ou mestre de cerimônia é a forma como os cantores de
funk se autodenominam.
10
No período da realização da pesquisa (entre 1998 e 2000)
ainda não havia surgido o chamado “funk coreografia”, que ganhou sucesso na mídia por intermédio de grupos como o Tigrão.
48
do que atribui a si mesmo como MC: ser mensageiro
da alegria, promovendo a “agitação da galera”.
No cotidiano de Flavinho, a música ocupa um
lugar central; é nela que ele investe a maior parte do
seu tempo. Suas manhãs são curtas, pois geralmente
acorda tarde. Além de uma ou outra obrigação doméstica, passa as tardes ouvindo os programas de
funk de duas rádios comunitárias da região, nas quais
é comum suas músicas serem tocadas a pedido de
ouvintes. Fora isso, é encontrar com os amigos, uma
outra referência central, principalmente os mais
chegados:
Eles [os amigos] ocupam o lugar de irmão mesmo.
Com eles eu posso conversar, se eu tô com raiva de alguma
coisa posso conversar com eles, desabafar mesmo! Isso é
legal. Eles ocupam o lugar de irmão, porque eu não tenho
essa intimidade com os meus irmãos, aí eu procuro os meus
amigos.
O ponto de encontro é quase sempre em uma praça no bairro vizinho, a única da região. É ali que acontecem os encontros, as paqueras, as brincadeiras ou
simplesmente o passar o tempo. Os finais de semana
são preenchidos com a música. Geralmente os ensaios
da dupla são realizados aos domingos, porque Leo
trabalha durante a semana. É nesse dia que escutam
músicas, discutem letras, trocam idéias sobre as apresentações que pretendem realizar.
O funk é o eixo em torno do qual Flavinho estrutura suas relações, tanto com os amigos mais próximos quanto com os conhecidos. É a “galera”: reconhecem-se no funk, compartilham situações lúdicas,
encontram-se nos bailes, principalmente no Vilarinho,
sentindo-se parte de uma rede simbólica (Arce, 1999).
O fato de ser um MC contribui para ampliar essa rede:
“Com o funk hoje eu vivo pra fazer os outros mais
felizes, e eu fiz mais amizades também, e isso é legal... você tá no funk e tá rodeado de amigos. É uma
diversão, mas uma coisa divertida que a gente tenta
levar pro futuro...”. Para Flavinho, o funk não é apenas um espaço de vivência de sociabilidades, mas também um espaço de produção de sociabilidades.
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
Nos finais de semana também namora, o que faz
nas noites de sábado, antes de ir ao baile, e aos domingos; vem mantendo um namoro de mais de um
ano, o que tem significado um aprendizado para ele.
É interessante perceber o sentido do namoro nas diferentes fases da vida. Para João, numa fase de transição para a vida adulta, o namoro é parte integrante do
projeto de futuro; para Flavinho, o namoro é um momento de experimentação e descoberta do outro.
Quando avalia o seu cotidiano, Flavinho o designa como um pouco vazio, monótono, dizendo que
gostaria de ter mais coisas para fazer:
Meu dia-a-dia é muito repetitivo. Um dia é igual ao
outro. Coisas que mudam é os bailes, as músicas que eu faço,
mas quando não tem nada pra fazer o meu dia é igual ao
outro... fica assim meio vazio, porque é repetitivo, você tem
de fazer as mesmas coisas porque não tem nada pra fazer...
Naquele momento colocava para si duas alternativas: a realização por intermédio da música, ou
viver como um trabalhador pobre, em qualquer atividade que lhe garanta um salário com o qual possa
sustentar sua família. Diante das incertezas próprias
do nosso tempo e das reduzidas possibilidades de uma
inserção social mais qualificada, sua opção é viver o
presente, com o que este puder oferecer de prazer. No
seu caso, o sonho relacionado à música é o que dá
sentido ao seu cotidiano, mas também a esperança
que sempre lhe aponta um rumo, de forma a não se
perder nas malhas do presente.
Os modos de ser jovem
As trajetórias de vida de João e Flavinho, bem
como o nosso contato com os outros jovens pesquisados, nos levam a constatar que os estilos rap e funk
constituem um espaço e um tempo nos quais esses
jovens podem afirmar a experiência da condição juvenil. É por meio desses estilos que constroem determinados modos de ser jovem. E nessa construção colocam em questão as imagens, ou um certo “modelo”
de juventude.
Revista Brasileira de Educação
Uma primeira imagem que questionam é a juventude vista na sua dimensão de transitoriedade. Esses
jovens mostram que viver a juventude não é preparar-se para o futuro, para um possível “vir-a-ser”,
entre outras razões porque os horizontes do futuro
estão fechados para eles. O tempo da juventude, para
eles, localiza-se no aqui e agora, imersos que estão
no presente. E um presente vivido no que ele pode
oferecer de diversão, de prazer, de encontros e de
trocas afetivas, mas também de angústias e incertezas diante da luta da sobrevivência, que se resolve a
cada dia. Não significa que sejam alienados ou passivos, que não nutram sonhos e desejos. Eles os têm,
mas com uma especificidade: quase sempre estão ligados a uma realização na esfera musical e à possibilidade de uma vida com mais conforto, principalmente
para as mães. No entanto, esses sonhos e desejos não
se concretizam necessariamente em projetos de vida,
e quando o fazem, se mostram fluidos ou de curto
alcance. Assim, eles se centram no presente e nele
vão se construindo como jovens, não acreditando nas
promessas de um futuro redentor.
Outra imagem que esses jovens colocam em
questão é a juventude vista como um momento de
crise e distanciamento da família. No nível de aproximação que conseguimos estabelecer com os rappers
e funkeiros, foi possível constatar a existência de conflitos familiares, mas em nenhum momento esse quadro conflitivo colocou em questão a família como o
espaço central de relações. Ao contrário: no caso desses jovens, o núcleo familiar significou um espaço de
experiências estruturantes. As relações que estabelecem, a qualidade das trocas, os conflitos, os arranjos
existentes para garantir a sobrevivência e os valores
predominantes são dimensões que marcam a vida de
cada um, constituindo um filtro por meio do qual traduzem o mundo social e onde inicialmente descobrem
o lugar que nele ocupam (Sarti, 1996, 1999).
Essas experiências familiares vêm colocar em
questão uma imagem muito difundida sobre as famílias das camadas populares, vistas no ângulo da estruturação x desestruturação, na qual o critério de definição é o modelo de família nuclear, constituída por pai,
49
Juarez Dayrell
mãe e irmãos. Os dados coletados no mínimo problematizam essa imagem. Grande parte das famílias desses jovens não contam com a presença do pai, organizando-se em termos matrifocais, e nem por isso se
mostram “desestruturadas”, garantindo, com esforço,
a reprodução física e moral do núcleo doméstico. Mais
do que a presença ou não do pai, o que parece definir o
grau de estruturação familiar é a qualidade das relações que se estabelecem no núcleo doméstico e as redes sociais com as quais podem contar. E nisso a mãe
desempenha um papel fundamental. É ela a referência
de carinho, de autoridade e dos valores, para a qual é
dirigida a obrigação moral da retribuição. Não é de se
estranhar que ambos contemplem a mãe nos seus projetos, desejando dar-lhe uma vida mais confortável.
Outra imagem que os jovens colocam em questão é a da juventude como um momento de crise.
Naquilo que nos foi possível apreender, não evidenciamos a existência de uma crise na entrada da juventude, muito menos sinais de conflitos atribuídos tipicamente aos adolescentes. Se existe uma crise, esta
foi constatada na passagem para a vida adulta. A imagem de adulto que eles constroem é muito negativa.
Ser adulto é ser obrigado a trabalhar para sustentar a
família, ganhar pouco, na lógica do trabalho subalterno. Mas é também assumir uma postura “séria”,
diminuindo os espaços e tempos de encontro, com
uma moral baseada em valores mais rígidos, abrindo
mão da festa, da alegria e das emoções que vivenciam
no estilo. Para muitos, ser adulto implica ter de abrir
mão do estilo, fazendo dessa passagem um momento
de dúvidas e angústias, vivida sempre como tensão.
Não que recusem ou neguem essa passagem, mas a
vivenciam como uma crise. Uma crise vivida não na
entrada da juventude, mas na sua saída.
Finalmente, a trajetória desses jovens questiona
a visão romântica da juventude. A realidade dos
rappers e funkeiros pesquisados evidencia que a juventude para eles não corresponde a essa imagem.
Ao contrário, é um momento duro, de dificuldades
concretas de sobrevivência, de tensões com as instituições, como no caso do trabalho e da escola.
A realidade do trabalho aparece na sua precarie-
50
dade, expressão da crise da sociedade assalariada, que
atinge principalmente os jovens pobres. A relação
desses jovens com o mercado expressa uma lógica
presente na sociedade brasileira contemporânea, que,
segundo Martins, cria uma massa de população à
margem, com pouca chance de ser, de fato, reincluída
nos padrões atuais do desenvolvimento econômico.
Segundo ele, “o período da passagem do momento da
exclusão para o momento da inclusão está se transformando num modo de vida, está se tornando mais
do que um momento transitório” (1997, p. 33).
Vivendo de “bicos”, a maioria deles vem investindo na possibilidade de sobreviver da atividade artística, ou pelo menos de um trabalho autônomo ligado de alguma forma à área cultural. O trabalho aparece
como obrigação necessária, vivido como empecilho
às atividades musicais, por isso sonham com um trabalho expressivo, no qual possam realizar-se pessoalmente. Essa postura pode ser vista como expressão
de uma recusa, mesmo que provisória, das condições
que a sociedade lhes oferece para a sua inserção social. Mesmo aqueles que vivem ainda as incertezas da
expectativa do primeiro emprego, como Flavinho,
mostram-se descrentes do que o mundo do trabalho
possa lhes oferecer.
Podemos afirmar que o mundo do trabalho pouco
contribuiu no processo de humanização desses jovens,
não lhes abrindo perspectivas para que pudessem ampliar suas potencialidades, muito menos construir uma
imagem positiva de si mesmos. É um dos espaços do
mundo adulto que se mostra impermeável às necessidades dos jovens em construir-se como sujeitos.
Já as experiências escolares desses jovens evidenciam que a instituição se coloca distante dos seus
interesses e necessidades, não conseguindo entender
nem responder às demandas que lhe são colocadas,
pouco contribuindo também em sua construção como
sujeitos. Enfim, esses jovens expressam um contexto
de uma nova desigualdade social, numa sociedade que
apenas lhes abre perspectivas frágeis e insuficientes
de inclusão (Martins, 1997).
Nesse contexto, os estilos rap ou funk, mesmo
com abrangências diferenciadas, significaram uma
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
O jovem como sujeito social
forte referência na elaboração e na vivência da condição juvenil dos jovens pesquisados. Para todos, representaram uma ampliação dos circuitos e redes de
trocas, sendo o meio privilegiado pelo qual se introduziram na esfera pública. Na gratuidade daquelas
relações e nas atividades de lazer, vieram construindo formas de sociabilidade próprias, num exercício
de convivência social, aprendendo a conviver com as
diferenças. A vivência do estilo possibilitou a esses
jovens práticas, relações e símbolos por meio dos quais
se afirmaram com uma identidade própria, como jovens. Enfim, o estilo se coloca como mediador de um
determinado modo de ser jovem.
Podemos dizer que, através do rap ou do funk, os
jovens vivenciam a tentativa de alongar o período da
juventude o máximo que podem, experienciando assim uma moratória. O sentido dessa tentativa não é tanto
o de uma suspensão da vida social ou de irresponsabilidade, como geralmente é vista, mas de garantir espaços de fruição da vida, de não serem tão exigidos, de se
permitirem uma relação mais frouxa com o trabalho,
de investirem o tempo na sociabilidade e nas trocas
afetivas que esta possibilita. É o envolvimento com o
rap ou com o funk que cria, possibilita e legitima a
moratória como uma experiência válida.
Ao mesmo tempo, o estilo de vida rap e funk possibilita a muitos desses jovens uma ampliação significativa das hipóteses de vida (Giddens, 1995), abrindo
espaços para sonharem com outras alternativas de vida
que não aquelas restritas, oferecidas pela sociedade. Mas
as perspectivas são muito reduzidas. Na prática, o estilo
possui limites, não articulando uma resposta para as
questões centrais, como profissionalização e sobrevivência, principalmente durante a passagem para a vida
adulta. Vários deles, como João, mesmo com o passar
da idade e assumindo compromissos familiares como o
noivado, continuam a insistir. Mas a grande maioria
desiste, vê-se obrigada a abandonar o sonho com a carreira musical, uma vez que não mais consegue conciliála com as necessidades de sobrevivência. Assim, o estilo torna-se uma opção provisória, mesmo que seja mais
longa para alguns desses jovens. Para a maioria deles, a
vivência da juventude é muito intensa, mas curta.
Revista Brasileira de Educação
Podemos constatar que os rappers e os funkeiros
parecem reelaborar as imagens correntes sobre a juventude, criando modos próprios de ser jovem, sempre mediados pelo estilo. No contexto de transformações socioculturais mais amplas pelo qual passa o
Brasil, parecem surgir novos lugares no mundo juvenil, quase sempre articulados em torno da cultura.
O mundo da cultura se apresenta mais democrático,
possibilitando espaços, tempos e experiências que
permitem que esses jovens se construam como sujeitos. Mas não podemos esquecer que, no Brasil, a modernização cultural que influencia tanto a vida desses jovens não é acompanhada de uma modernização
social. Assim, se a cultura se apresenta como um espaço mais aberto é porque os outros espaços sociais
estão fechados para eles. Portanto, não podemos cair
numa postura ingênua de supervalorização do mundo da cultura como apanágio para todos os problemas e desafios enfrentados pelos jovens pobres. No
contexto em que vivem, qualquer instituição, por si
só – seja a escola, o trabalho ou aquelas ligadas à
cultura –, pouco pode fazer se não estiver acompanhada de uma rede de sustentação mais ampla, com
políticas públicas que garantam espaços e tempos
para que os jovens possam se colocar de fato como
sujeitos e cidadãos, com direito a viver plenamente a
juventude.
JUAREZ DAYRELL, doutor pela Faculdade de Educação
da USP, é professor adjunto da Faculdade de Educação da UFMG.
Organizou a coletânea Múltiplos olhares sobre educação e cultura, editado pela Editora da UFMG, e publicou diversos artigos
sobre o tema da juventude, entre eles: O rap e o funk na socialização da juventude (Educação e Pesquisa, v. 28, p. 117-136, jan.jun.) e Cultura e identidades juveniles (Revista Ultima Decada,
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Recebido em dezembro de 2002
Aprovado em abril de 2003
Set /Out /Nov /Dez 2003 No 24
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