UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
EDUARDO TEIXEIRA DE CARVALHO JUNIOR
O MÉTODO EM VERNEY E O ILUMINISMO EM PORTUGAL
CURITIBA
2015
EDUARDO TEIXEIRA DE CARVALHO JUNIOR
O MÉTODO EM VERNEY E O ILUMINISMO EM PORTUGAL
Tese apresentada como requisito parcial
à obtenção do grau de Doutor em
História, no Programa de Pós-Graduação
em História, Setor de Ciências Humanas
da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Professor Dr. Antonio Cesar
de Almeida Santos
CURITIBA
2015
Agradecimentos
A todos que apoiaram direta ou indiretamente para a produção desta tese.
Agradecimentos especiais ao meu orientador Antonio Cesar de Almeida Santos, que
desde minha graduação me instigou a refletir sobre questões relacionadas à
historiografia luso-brasileira do século XVIII, pelas conversas e pelas orientações, e
principalmente por ter apoiado e acreditado em meu projeto de doutorado.
Ao professor Renato Lopes Leite, que desde a iniciação científica e no mestrado,
ajudou no encaminhamento das questões que foram investigadas no doutorado.
Ao professor José Roberto Braga Portella pelos debates na disciplina de História da
Ciência e por ajudar na construção dos caminhos que me levaram a esta tese.
A todos os colegas que discutiram meu projeto nos seminários, e nas disciplinas, e
deram suas contribuições.
A Maria Cristina por todo apoio nos encaminhamentos como aluno do programa.
Ao André Luiz Leme pela paciência na leitura atenta do texto e pelas sugestões.
A Capes por todo apoio e por ter acreditado em meu projeto cedendo uma bolsa
sanduíche que não foi possível ter sido utilizada.
A minha mãe por ter me acolhido novamente em sua casa no processo de escrita da
tese, pela troca de ideias e suas preciosas pontuações.
Ao meu pai e a meu irmão pelo suporte familiar na minha ausência como pai, nos
difíceis momentos do processo de escrita.
A meus filhos, Sabrina e Carlos Eduardo por todo amor e inspiração.
Por fim à Vanessa, a quem dedico esta tese, por todo amor e dedicação, e por
sempre me apoiar nos momentos mais difíceis deste percurso. Agradeço por todo
carinho e paciência na leitura dos textos, e por ter sido minha interlocutora,
debatendo comigo as ideias desta tese.
RESUMO
O objetivo do presente trabalho de tese em História é apontar para a ideia de
método como uma ideia-chave no contexto do Iluminismo português. Procurou-se,
nesse sentido, compreender os diferentes usos e significados em torno deste
conceito em relação à época, especialmente desde a publicação do Verdadeiro
Método de Estudar, de Luís António Verney, em 1746, sendo esta a principal fonte
de nosso estudo, até o período das reformas pombalinas da educação, com a
publicação dos Estatutos da Universidade de Coimbra, no ano de 1772. Dessa
forma, buscando as principais características do conceito de método e
problematizando o papel desempenhado por Luís António Verney em suas diversas
relações com a sociedade de seu tempo, apresentamos uma análise das reações
causadas pela obra do autor no ambiente intelectual português, contemplando a
forma como foi discutida e também como serviu para referir a diferentes posturas
ideológicas, colocando em questão toda a cultura portuguesa do século XVIII.
Palavras-chave: Método. Iluminismo. Século XVIII. Portugal.
ABSTRACT
The purpose of this thesis in History is to point to the idea of method as a key idea in
the Portuguese Enlightenment context. We are looking forward, this way, to
understand the different uses and meanings around this specific concept in relation
to that time, especially since the publication of the work Verdadeiro Método de
Estudar, of Luís António Verney, in 1746, which is the main source of our study, until
the period of Pombal's educational reforms, with the publication of the "Estatutos" of
the University of Coimbra, in the year 1772. In this way, seeking the principal
characteristics of the concept of method and questioning the role played by Luís
António Verney in his various relationships with the society of that time, we present
an analysis of the reactions caused by the author's work in the Portuguese
intellectual environment, considering the way it was discussed and how it was also
used to refer to different ideological positions, calling into question the entire
Portuguese culture of the eighteenth century.
Keywords: Method. Enlightenment. XVIII century. Portugal.
RESUMEN
El objetivo de este trabajo de tesis en Historia es apuntar a la idea de método como
una idea clave en el contexto de la Ilustración portuguesa. Se busca, en este
sentido, comprender los diferentes usos y significados en torno a este concepto en
relación a su tiempo, especialmente desde la publicación del Verdadeiro Médoto de
Estudar, de Luís António Verney, en 1746, obra que es la fuente principal de
nuestro estudio, hasta el período de las reformas de Pombal en la educación, con la
publicación de los “Estatutos” de la Universidad de Coimbra, en el año 1772. Por lo
tanto, buscando las principales características del concepto de método y
cuestionando el papel desempeñado por Luís António Verney en sus diversas
relaciones con la sociedad de su tiempo, presentamos un análisis de las reacciones
provocadas por la obra del autor en el ambiente portugués, teniendo en cuenta la
forma como se discutió y como también sirvió para referirse a diferentes posiciones
ideológicas, poniendo en cuestión toda la cultura portuguesa del siglo XVIII.
Palabras clave: Método. Ilustración. Siglo XVIII. Portugal.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................
8
CAP I – VERNEY: UM ILUSTRE CITADINO A SERVIÇO DO ESTADO.........
20
1.1 A trajetória de um filósofo reformista português.....................................
1.1.1 A formação inicial de Verney e a juventude em Portugal...........................
1.1.2 Verney e a cultura portuguesa da primeira metade do século XVIII..........
1.2 Verney e o ambiente intelectual italiano...................................................
1.2.1 Caindo em desgraça: Verney e os deveres do príncipe............................
1.2.2 Considerações gerais sobre Verney..........................................................
1.2.3 Cronologia..................................................................................................
20
24
29
33
40
50
51
CAP II - OS ELEMENTOS DO VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR..........
54
2.1 O contexto e as condições de publicação do “Verdadeiro Método de
Estudar”......................................................................................................... 55
2.2 Aspectos estilísticos da obra: gênero epistolar satírico?........................ 67
2.3 O método como palavra-chave da obra...................................................... 77
CAP III - O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR: EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E
MÉTODO.............................................................................................................
83
3.1 A filosofia natural como paradigma do Iluminismo ................................
3.1.1 O sistema verneyano..................................................................................
3.2 Uma nova organização das ideias e instituições.....................................
3.2.1 A superioridade da filosofia moderna: a História como argumento...........
3.2.2 Algumas diferenças entre a filosofia escolástica e a filosofia moderna...
3.2.3 O método e a medicina..............................................................................
3.2.4 A lógica e o método...................................................................................
3.3 O Iluminismo católico de Verney..............................................................
83
85
90
96
98
102
105
109
CAP IV - MÉTODO COMO TERMO-CHAVE NO ILUMINISMO PORTUGUÊS
4.1. O termo-chave e seus diferentes usos na história.................................
4.1.1 O método e a filosofia escolástica............................................................
4.2 O método e o ambiente intelectual português........................................
4.2.1 Ciência, moda, e as viagens filosóficas....................................................
4.2.2 A moda e as polêmicas do verdadeiro método.........................................
114
114
116
120
123
128
CAP V - A IDEIA DE MÉTODO E O IDEÁRIO REFORMISTA.........................
135
5.1 O ideário reformista...................................................................................
5.1.1 A ideia de atraso e a identidade católica portuguesa...............................
5.1.2 O papel da educação no ideário reformista..............................................
5.1.3 Educação: o estado como promotor das leis e dos costumes..................
5.2 O método e a era do reformismo português...........................................
5.2.1 Iluminando a nação: o diagnóstico da crise e as medidas........................
5.2.2 O método e as reformas da educação......................................................
5.2.3 O restabelecimento da monarquia e os novos estatutos da universidade
136
141
147
151
156
161
163
170
CAP VI - MÉTODO COMO RENOVAÇÃO CULTURAL...................................
175
6.1 A retórica como Perspectiva da Razão....................................................
6.1.1 Inimigos e defensores da nação...............................................................
6.1.2 O ataque pessoal como estratégia de guerra...........................................
6.1.3 A crítica dos moderados: o caso de frei Manuel do Cenáculo..................
6.1.4 Pina e Melo e a inconstância da filosofia..................................................
6.2 A medicina e as polêmicas do método....................................................
6.2.1 Filósofos médicos ou gladiadores literários?............................................
176
180
189
192
196
199
205
CONCLUSÃO....................................................................................................
211
REFERÊNCIAS..................................................................................................
218
8
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo inserir o pensamento de Luís António Verney
no contexto de ideias do século XVIII, procurando problematizar a maneira peculiar
com que a ideia de método foi debatida e discutida em Portugal a partir das
polêmicas provocadas pela sua obra o Verdadeiro Método de Estudar. Diante das
mudanças que se operavam na Europa das Luzes1, em que novas ideias vinham
sendo utilizadas em diferentes ambientes intelectuais da Europa, esta tese procura
argumentar que o método foi uma ideia-chave2 no contexto específico português.
O Iluminismo tem sido um conceito utilizado na historiografia para se pensar a
mentalidade europeia do século XVIII. Na sua definição mais ampla, já serviu para
designar toda a filosofia de uma época e representar uma unidade de ideias em
torno de temas comuns, representados por meio de um conjunto de textos clássicos.
O Iluminismo português, quando comparado com outras regiões da Europa, foi
tratado pela historiografia luso-brasileira como problemático, em grande parte devido
a forte presença da igreja e os laços com o catolicismo.
As polêmicas sobre o Iluminismo português já podem ser encontradas no
debate provocado pelas ideias de Luís António Verney, que acabaram se projetando
na historiografia portuguesa do século XIX e XX. A importância de novos estudos
sobre a trajetória de Verney para a compreensão da cultura das “Luzes” em
Portugal3 ficou evidenciada no congresso realizado em 2013 na Biblioteca Nacional
de Portugal intitulado “Luís António Verney e a Cultura Luso-Brasileira do seu
1
No contexto de ideias do século XVIII a palavra Luzes é utilizada pelos filósofos para fazer
referência a toda uma nova era na história do pensamento humano, aos “tempos iluminados”. Nas
fontes analisadas nesta tese não foi encontrada a palavra Iluminismo, apenas o verbo “iluminar”, o
termo “iluminado” ou “aluminado”. Mas mesmo sendo uma palavra estranha ao contexto analisado,
preferimos manter, sempre que possível, o uso do termo Iluminismo, que foi consagrado pela
historiografia, para fazer referência ao contexto de ideias do século XVIII.
2
Consideramos uma idéia-chave, termo-chave ou palavra-chave, uma palavra utilizada para
descrever e avaliar uma determinada realidade social, podendo ser aplicada, como se verá ao longo
desta tese, para casos em que envolvam propostas de inovação cultural e legitimação social. Para
um maior detalhamento sobre esta questão ver: SKINNER, Quentin. A Ideia de um Léxico Cultural.
(In). Visões da política: sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005.p.221-244.
3
Sobre a Cultura das Luzes em Portugal Cf. ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em
Portugal : temas e problemas. Lisboa : Livros Horizonte, 2003. SANTOS, Antonio Cesar de
Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi,
v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 75-95; _____Reformas educacionais e as ´Luzes´ em Portugal. Anais
do V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na
ExpansãoUltramarina (Sec XVI ao XIX), Maceió 19 a 22 de agosto de 2014, p.200-2006. Disponível
em:
http://www.academia.edu/11489518/REFORMAS_EDUCACIONAIS_E_AS_LUZES_EM_PORTUGAL
9
tempo”.4 Na abertura do evento, Manuel Curado ratificou o caráter polêmico das
ideias de Verney quando assinalou que “Luís António Verney é muita coisa na
cultura portuguesa, é um modelo a se seguir, muitas vezes, é um modelo a ponderar
outras vezes, é um modelo a não seguir, algumas vezes”.5
Na dissertação de mestrado procuramos discutir a possibilidade de uso do
conceito habermasiano de “esfera pública literária” para se referir ao contexto
intelectual português setecentista.6 Como é de conhecimento, na perspectiva de
Habermas, a “esfera pública literária”, associada à ampliação dos ambientes de
sociabilidade do século XVIII - como os cafés, salões e academias - foi essencial
para o desenvolvimento do Iluminismo, entendido como um espaço público de
crítica.
Esses novos locais - que adquirem uma função social da crítica - são
interligados por uma crescente circulação do escrito, por meio de livros e da
imprensa. A esfera pública literária, segundo Habermas, adquire uma função política
e coloca-se em oposição à autoridade do estado e da igreja.7 Esta abordagem teria
grande recepção entre os historiadores franceses, conforme apontou Chartier:
No coração do século XVIII, mais cedo ou mais tarde, em um ou
outro lado, surge uma “esfera pública política”, chamada também de
“esfera pública burguesa”, duplamente caracterizada. Do ponto de
vista político, define um espaço de discussão e de crítica
independente da influência do Estado e crítico com respeito aos atos
e fundamentos deste.8
As tentativas de compreender a dimensão social da experiência dos filósofos
do Iluminismo levantavam questões sobre as relações entre o campo das ideias e as
novas formas de sociabilidade que emergiam no século XVIII.
4
De acordo com
Para mais informações sobre o evento:
http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=843:congresso-luis-antonioverney-e-a-cultura-luso-brasileira-do-seu-tempo-16-18-set&catid=163:2013&Itemid=869
5
Para assistir ao pronunciamento de Manuel Curado na conferência de abertura:
https://www.youtube.com/watch?v=c542BC_5lOM (Cf.Intervalo de 4,50s)
6
CARVALHO JR, Eduardo Teixeira de. A questão do iluminismo em Portugal: uma análise da
obra de Verney. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal do Paraná, 2005.
7
Para haver uma esfera pública política, é necessário primeiramente o surgimento de uma esfera
pública literária. HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003, p.46.
8
“[…] en el corazón del siglo, más tarde o más temprano, en uno u otro lado, aparece una “esfera
pública política”, llamada también “esfera pública burguesa”, doblemente caracterizada. Desde el
punto de vista político, define un espacio de discusión y de crítica sustraído a la influencia del Estado
(es decir, a la “esfera del público”) u crítico con respecto a los actos o fundamentos de éste”. Cf.
CHARTIER, Roger. Espacio Público, Crítica y Desacralización en el siglo XVIII. Barcelona:
Gedisa, 1995. p.33. Tradução nossa.
10
Robert Darnton, “enquanto os historiadores das ideias mapeavam a vista de cima,
os historiadores sociais estavam escavando em profundidade os substratos das
sociedades do século XVIII”.9 Ao analisar o caso português, apontei para certa
fragilidade da “esfera pública literária”, o que poderia ser compreendido como um
dos traços da especificidade do Iluminismo em Portugal. Ao consultar a historiografia
disponível sobre o espaço público português, observa-se um caráter mais brando,
mais leve, para caracterizar o Iluminismo português.10 No que se refere aos meios
de publicação em Portugal, José Tengarrinha, por exemplo, apontava que os jornais
na segunda metade do século XVIII eram, em sua maioria, frívolos e não possuíam
um caráter predominante político. Havia grande irregularidade nas publicações, e a
circulação era pequena, reduzindo-se praticamente aos assinantes.11
Em geral,
reproduziam notícias publicadas semanas ou meses antes por folhas estrangeiras.
Enquanto no período pombalino, criaram-se dez ou onze jornais, segundo Burke,
não menos que 1.267 periódicos em francês foram criados entre 1600 e 1789, 176
deles entre 1600 e 1699 e o restante a partir de então.12 No que se refere à primeira
metade do século XVIII, Ana Cristina Araújo também apontou para a posição
periférica dos ibéricos no terreno editorial que, devido a uma “censura apertada”,
limitou a expansão do mercado livreiro.13 Concluí que em Portugal havia ocorrido
algo diferente. Comparando-o com o caso francês, por exemplo, foi o estado quem
teve o papel modernizador, que submeteu a cultura tradicional, adequando as
instituições portuguesas aos novos tempos.
Na historiografia luso-brasileira é muito comum associar Iluminismo com
Pombalismo, com destaque para o papel central desempenhado pelas Reformas da
Universidade de 1772. Esta relação foi em grande parte sedimentada pelo trabalho
clássico de Falcon, em que ilustração e governação pombalina convivem em um
mesmo espaço-tempo, a tal ponto que se torna difícil pensar uma coisa sem a outra.
De acordo com esta perspectiva, a Reforma da Universidade de Coimbra acabou
servindo aos interesses do Estado, enquadrada dentro do projeto político de
9
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.198.
Cf.CARVALHO JR, Eduardo Teixeira de. A questão do iluminismo em Portugal: uma análise da
obra de Verney. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal do Paraná, 2005.
11
Cf.TENGARRINHA, José. História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Portugália, 1995.
p.43.
12
Cf. BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de
Janeiro : Jorge Zahar, 2003. p.51.
13
Cf. ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa:
Livros Horizonte, 2003, p.14.
10
11
Pombal, uma política regalista, que visava promover o avanço do Estado em direção
aos demais setores da sociedade.14 Porém, tendo como referência o conceito de
esfera pública de Habermas, o papel central exercido pela Universidade de Coimbra
no Iluminismo português deveria ser relativizado, pois as reformas implementadas
em 1772 não corresponderam a um processo resultante de um debate crítico
promovido na sociedade, mas acima de tudo fruto do absolutismo ilustrado de
Pombal.
A interpretação de Habermas sobre o Iluminismo apresenta semelhanças com
a abordagem de Reinhart Koselleck. Para Koselleck, o estado e o campo da “opinião
pública” deveriam estabelecer uma dualidade, condição sine qua non, para haver o
que ele chama de crítica. Para que possa haver crítica, deve haver uma dualidade
necessária entre o campo da moral – que contém a consciência do bem e do mal, do
certo e do errado, da mentira e da verdade, das ideias que substituiriam a fonte da
moral da Religião – e o campo político – da ação onde a vontade é expressa através
do monarca. Assim, de acordo com Koselleck, o movimento Iluminista desenvolveuse a partir do Absolutismo, no início como sua consequência interna, em seguida
como sua contraparte dialética e como inimigo que preparou a sua decadência.15 A
opinião pública seria portadora da modernidade e o estado absolutista, seu opositor
e adversário. Porém, no caso português, pensando sobretudo
no papel
desempenhado pelas reformas da educação, parecia haver uma inversão de
polaridade, pois o estado, na condição de reformador, teria exercido a função da
crítica, e a sociedade seu elemento de oposição.
Mas olhando por outro ponto de vista, conforme sugeriu Kenneth Maxwell, o
Iluminismo português, na sua expressão de estado, foi um dos mais modernos de
sua época. 16 Talvez a tentativa de explicar a especificidade do Iluminismo português
por abordagens conceituais apresente certas limitações. Conforme aponta Franco
Venturi, “de Kant a Cassirer e mais além, o Iluminismo europeu tem sido dominado
por essa interpretação filosófica da Aufklärung alemã”.17 Ainda segundo Venturi, a
interpretação
14
kantiana
se
tornou
praticamente
dominante,
não
permitindo
Cf. FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia
ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
15
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio
de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 19.
16
Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996
17
Cf. VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru: EDUSC, 2003.
12
compreender o “ritmo diferenciado do desenvolvimento do Iluminismo na Europa
setecentista”.18
Cabral de Moncada, um dos principais estudiosos da obra de Verney, ao
escrever na década de 1940, já criticava as interpretações do Iluminismo como um
movimento de ideias “uniforme e homogêneo” para toda a Europa. 19 Conforme
afirmava: “Não houve, rigorosamente, um Iluminismo único: houve vários
Iluminismos”.20 Considerava que o Iluminismo havia se propagado de formas distinta
para cada região da Europa, mas que os países católicos como Itália, Espanha e
Portugal seguiam características comuns:
Este Iluminismo era assim, pode dizer-se, essencialmente
Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era, não revolucionário,
nem anti-histórico, nem irreligioso, como o francês; mas
essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista.
Era o Iluminismo italiano.
É este o Iluminismo que Verney representa. 21
A abordagem de Cabral de Moncada sobre a trajetória intelectual de Verney,
além de apresentar uma interpretação sobre o Iluminismo português, colocava em
questão a historiografia portuguesa dos séculos XIX e XX, quando autores como
Oliveira Martins, Antero de Quental e António Sérgio apontavam para um isolamento
cultural de Portugal em relação ao que se passava no restante da Europa
setecentista. Ao inserir Verney no contexto do Iluminismo, Moncada questionava a
exclusão dos portugueses daquele movimento de ideias.
Mas como se deu este fenômeno do Iluminismo em outras regiões,
particularmente, por exemplo, na península itálica e na península ibérica? As
tentativas de adotarem uma explicação única, como uma modernidade entendida
exclusivamente como um movimento de dessacralização e de secularização,
certamente esconde uma série de distorções e contradições que uma visão
homogênea do Iluminismo não consegue dar conta. Ao mesmo tempo, acredito que
não deveríamos negligenciar as tentativas de elaboração de grandes sínteses, como
é o caso da abordagem de Cassirer, desde que tenhamos em conta que são
18
VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo, op.cit., p.51.
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney, op.
cit., p.11.
20
Ibid., p.11.
21
Ibid., p.12.
19
13
interpretações22. Deve-se reconhecer os limites de uma interpretação, além de não
dar conta da totalidade de um assunto, acaba deixando de lado dados e outros
aspectos para reforçar um determinado ponto de vista, que poderá mais tarde ser
reinterpretado e suscitar outras análises, e assim, fazendo com que nossos
conhecimentos sobre aquele assunto possam ser ampliados. Conforme assinalou
Quentin Skinner sobre esta questão:
Qualquer análise do fenômeno do Iluminismo estaria inevitavelmente
assente num conjunto de avaliações a priori acerca da natureza das
suas preocupações mais características, além de outras tantas
considerações acerca da melhor maneira de as elucidar.23
Estudos recentes têm reforçado que o Iluminismo não foi um movimento de
ideias homogêneo e que, em cada região da Europa, ele assumiu particularidades
distintas, existindo, na verdade, vários Iluminismos.24 No século XVIII, Portugal ainda
era um dos maiores impérios da Europa, e ao mesmo tempo em que precisava se
adequar a nova dinâmica europeia do século XVIII, permanecia ligado a certos
elementos da cultura tradicional. Foi necessário um equilíbrio entre o ideário
iluminista, com toda a sua “modernidade”, e a necessidade de manter certos
princípios da tradição, que possibilitassem um controle legítimo de todo o seu vasto
território de além-mar. O ideário reformista português representa um conjunto de
ideias específicas que foram utilizadas visando aperfeiçoar o sistema administrativo
e de controle do estado, cujas diretrizes, usando uma expressão de Gertrude
Himmelfarb, revelam como os portugueses “confrontaram o mundo moderno”.25
Um dos objetivos desta tese é de propor uma abordagem que procurasse
priorizar o debate de ideias em seu contexto, e não tanto o debate sobre o conceito
de Iluminismo, conforme havia trabalhado na dissertação. Tentou-se ampliar o
entendimento sobre o confronto entre o moderno e o tradicional para o caso da
experiência portuguesa.
22
Cf.CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992.
SKINNER, Quentin. A prática da história e o culto do fato. (In) Visões da política: sobre os
métodos históricos. Algés: Difel, 2005, p.24.
24
OUTRAM, Dorinda. O iluminismo. Lisboa: Temas e Debates, 2001. Sobre as variações
geográficas do iluminismo ver também: DARNTON, Robert. Os dentes falsos de Geoge
Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras,
2005. Ver também: HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os Iluminismos
britânico, francês e americano. São Paulo: Realizações Editora, 2011.
25
HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os Iluminismos britânico, francês e
americano. São Paulo: Realizações Editora, 2011, p.36
23
14
Para uma melhor compreensão do ambiente de ideias de Portugal no século
XVIII, procurei levar em conta algumas contribuições de Quentin Skinner para quem,
se queremos realmente entender o significado de uma ideia, devemos analisá-la
dentro de seu contexto intelectual de produção. Ao analisar as fontes foi possível
observar que a palavra método aparecia com muita frequência, sendo utilizada para
balizar o debate em torno das propostas de Verney. Tendo isto em vista, a
abordagem de Skinner apresentava-se muito promissora, pois parte do princípio que
as ideias emergem dentro de disputas ideológicas e são utilizadas para se defender
determinadas posições em diferentes contextos sociais. Além de compreender o
significado da palavra método, seria fundamental compreender os diferentes usos
desta ideia no contexto intelectual português.26
Skinner também alerta sobre os perigos que se deve evitar para não cair no
anacronismo e no que denomina de “mitologias”. 27 A contaminação ideológica do
olhar do historiador, definida por ele de prolepse, nos adverte sobre o erro de
analisar a realidade do passado a partir dos termos de nosso presente. 28 Skinner
recomenda que o historiador procure levar em conta “como nossos antepassados
pensavam e olhavam para as coisas da forma como eles olhavam”.29 Este é o
princípio mais fundamental do contextualismo proposto por Skinner.
Ideias e conceitos são utilizados de diversas maneiras, com diversas
intenções. O historiador das ideias deve procurar captar os variados usos que
diferentes autores, de uma mesma época, fazem de um determinado vocabulário de
ideias para representar o mundo à sua volta. Dependendo da forma como são
utilizadas, como em um jogo de palavras, podem-se produzir diferentes enunciados.
Outro aspecto importante da abordagem “contextualista” de Skinner é o
campo de ação dos pensadores no momento em que escreveram suas ideias,
conforme ressalta Falcon:
26
Embora não utilize a mesma metodologia proposta por Skinner, o antropólogo francês Denys
Cuche faz uma interessante análise sobre o debate franco-alemão em torno da ideia de cultura. No
século XIX, os alemães, em defesa da autonomia nacional, preferiam o uso da palavra Kultur para
opor o “espírito nacional” alemão à ideia universalista de Civilização, utilizada pelos franceses.Cf.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc,1999
27
SKINNER, Quentin. Significação e compreensão na história das ideias. (In) Visões da política:
sobre os métodos históricos, op. cit., p.84.
28
Ibid., p.104.
29
SKINNER, Quentin. Interpretação, racionalidade e verdade. (In) Visões da política: sobre os
métodos históricos Ibid., p.68.
15
Desenvolvendo sua análise, Skinner sublinha um fato para ele
essencial: os conceitos ou as “ideias” não se esgotam uma vez
(re)conhecido o seu significado; é necessário saber quem os maneja
e com quais objetivos, o que só é possível através do
(re)conhecimento dos vocabulários políticos e sociais da respectiva
época ou período histórico, a fim de que seja possível situar os
“textos” no seu campo específico de “ação” ou de atividade
intelectual. 30
Skinner,
portanto,
propõe
a
compreensão
de
uma
idéia
a
partir,
principalmente, do conhecimento das convenções linguísticas que historicamente
contextualizam o texto. Radicalizando esta ideia, afirmou: “A única história das ideias
que deve ser feita é a história dos usos a que as ideias estão sujeitas”. 31 Ou seja, ao
contrário da perspectiva tradicional da história das ideias, que costuma priorizar a
compreensão dos cânones clássicos, analisando sua difusão, a recepção de suas
obras e as apropriações que sofreram suas ideias, a valorização do contexto deixa
de lado a exclusividade dos autores clássicos para enfocar a matriz mais ampla de
que nasceram suas obras.32 Além disso, a recuperação das ideias de autores
considerados “menores”, pode auxiliar na compreensão dos cânones clássicos.
Para inserir o pensamento de Verney no contexto intelectual português do
século XVIII, será apresentado o lugar ocupado pela idéia de método na sua obra e
a forma como foi discutida e debatida pelos seus críticos. Em seguida, procura-se
mostrar como a ideia de método aparece mais tarde nos textos das reformas da
educação, até os novos estatutos da Universidade de Coimbra (1772). O termo
método, muitas vezes, aparece nos documentos de forma ambígua e só passa a
adquirir relevância tendo em vista o lugar que ocupa nos diferentes discursos
analisados deste contexto. Seguimos a premissa de que a idéia de método, pela
maneira como foi utilizada, serviu para separar duas visões de mundo diferentes: o
tradicional e o moderno. Conforme nos ensina Skinner, nosso sistema de crença são
sempre mediados pelos conceitos de que dispomos para descrever e avaliar a
realidade social, mas o uso de um conceito significa avaliar e classificar uma
30
FALCON, Francisco C. História das idéias: pluralidade disciplinar e conceitual. Da história das
idéias à história intelectual e/ou cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.),
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.97.
31
SKINNER, Quentin. Significação e compreensão na história das ideias. (In) Visões da política:
sobre os métodos históricos. op. cit., p.119.
32
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia
das Letras: 1996, p. 10.
16
realidade a partir de um ponto de vista específico.33Aqui tentaremos analisar o ponto
de vista de Verney e de seus críticos acerca da noção de método, para depois
avaliar os desdobramentos deste debate no contexto das reformas da educação.
Apresentaremos uma análise do pensamento de Verney e a sua relação com
as principais correntes de pensamento do século XVIII, procurando demonstrar
como a idéia de método em Verney articulava-se com um amplo conjunto de
mudanças que transcendiam o aspecto educacional, constituindo-se como uma
ampla renovação cultural. Ao apresentarmos as reações causadas por estas ideias
no ambiente intelectual português, tentar-se-á compreender aquilo que Verney
pretendia com a utilização da ideia de método e, conforme ressalta Skinner, “captar
a natureza e o tipo de coisas que poderiam, reconhecidamente, terem sido
realizadas com esse conceito em particular, com o tratamento deste tema em
particular e nessa época em particular”.34
Sabemos que alguns autores criticaram a proposta historiográfica de Skinner,
acusando-o de antiquarismo, argumentando que seria mais importante recuperar
aquilo que um texto tem para nos dizer hoje e adaptá-lo aos nossos objetivos, do
que analisar o seu significado em um passado estranho e distante.35 Outros
defenderam que esta tarefa de se compreender os textos do passado de acordo
com os próprios termos dos autores que os conceberam seria algo impossível do
ponto de vista hermenêutico, e como argumenta Gadamer, além de ser impossível,
tal empreendimento seria desnecessário e inútil.36 Skinner procurou responder aos
seus críticos e hoje é possível dizer que existe um interessante diálogo entre
diferentes propostas teóricas para o campo da história das ideias, sobretudo entre a
escola de Cambridge e a Begrifgechichte de Koselleck.37
Embora a perspectiva teórica de Skinner seja utilizada para fundamentar o
eixo principal de nossa argumentação, seria oportuno fazer algumas considerações
sobre nosso posicionamento acerca da abordagem de Koselleck. Conforme definiu
33
SKINNER, Quentin. Interpretação, racionalidade e verdade. (In) Visões da política: sobre os
métodos históricos. op. cit., p.119.
34
Ibid., p.119
35
JASMIN, M.G.; FRERES Jr., J (Org). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de
Janeiro: Editora PUC - Rio; Loyola. IUPERJ, 2006.
36
LOPES, Marcos Antônio Lopes. O problema do sentido histórico em história das ideias: notas
acerca da interpretação de textos políticos. (In) GIANNATTASIO, Gabriel; IVANO, Rogério (orgs.).
Epistemologias da história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pósmodernidade. Londrina: Eduel, 2011, p.194
37
SKINNER, Visões da Política: sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005.
17
Koselleck, todo conceito é uma palavra, mas nem toda palavra é um conceito.38
Determinadas palavras, como estado, sociedade, liberdade, são palavras que
possuem
uma
história,
são
palavras
que
passaram
por
certo
grau
de
teorização/abstração. Mas também são palavras que passam a ser utilizada para
definir diferentes posicionamentos ideológicos, ou seja, os agentes sociais passam a
utilizá-la com diferentes propósitos visando atingir objetivos políticos.
Seguindo alguns dos princípios metodológicos de Koselleck, nossa tese
procura argumentar que no espaço da língua portuguesa, no século XVIII, a palavra
método torna-se uma palavra que assume um dimensão ideológica, que a grosso
modo, norteou o debate entre os defensores das reformas, como Verney, e seus
opositores.
Assim palavra método produziu uma polarização, separou dois mundos
diferentes, que no limite serviu como divisor de águas entre projetos antagônicos: os
conservadores, representados sobretudo pelos jesuítas, e os reformadores,
rotulados pela historiografia de estrangeirados.39
Para o desenvolvimento destas questões, a tese foi dividida em seis
capítulos. No primeiro é apresentada uma breve análise da trajetória de Verney,
momento em que procuramos perceber e caracterizar as relações de Verney no
quadro da cultura política do Antigo Regime português. São abordados alguns
aspectos de sua formação intelectual em Portugal e sua permanência no ambiente
intelectual italiano. Nesta abordagem, utilizaremos as cartas italianas de Verney.
Trata-se de um conjunto de dez cartas escritas de Roma, Pisa e Livorno, datadas
entre 1751 e 1766, sem sabermos ao certo os destinatários.40
No segundo capítulo, procuramos inserir o Verdadeiro Método de Estudar
no contexto das convenções da escrita do século XVIII. Além de apresentar alguns
aspectos da forma e estrutura da obra, analiso questões relacionadas ao estilo e ao
uso da retórica como elementos importantes do discurso verneyano.
No terceiro capítulo abordamos as principais ideias a que Verney adere e de
que maneira as utiliza no Verdadeiro Método de Estudar para criticar o modelo
38
KOSELLECK, R. Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, vol.5, n.10, 1992, p.134- 146.
39
Este termo costuma ser utilizado na historiografia para denominar alguns portugueses do século
XVIII, como Verney, que viveram a maior parte de suas vivendo no estrangeiro e defenderam a
necessidade de uma modernização da cultura portuguesa.
40
VERNEY, Luís António. Cartas Italianas. Lisboa: Edições Silabo, Ltda, 2008.
18
escolástico adotado no sistema de ensino português. Apresentamos os principais
argumentos utilizados por ele para marcar a superioridade da filosofia moderna em
relação à filosofia escolástica, para apontar como o método acabou se tornando a
linha mestra de todo o programa de reformas proposto por ele. E, por fim,
demonstramos os limites do seu projeto iluminista, que ficou circunscrito aos ditames
do catolicismo e subordinado aos interesses do estado.
No quarto capítulo apresentamos uma reflexão teórica sobre a possibilidade
do uso de um termo-chave ou ideia-chave para a compreensão de um contexto
intelectual. Pretende-se argumentar que a ideia de método serviu como uma palavra
fundamental para balizar o debate do Iluminismo em Portugal. Além disso, serão
apresentados alguns dados do contexto social no qual as polêmicas do método
ocorreram, visando compreender a articulação entre o campo social e o campo das
ideias.
No quinto capítulo identificamos outros portugueses que contribuíram para o
vocabulário de ideias do reformismo português, como D. Luís da Cunha, Martinho de
Mendonça de Pina e Proença e António Nunes Ribeiro Sanches. Analisamos como
estes autores diagnosticaram os problemas da cultura portuguesa, apontando para a
necessidade de se repensar o estado e suas necessidades. Depois, discutimos a
forma como a palavra método foi utilizada nos textos ligados às reformas da
educação. Procuramos chamar a atenção para o fato deste termo, no caso do
reformismo português, ser utilizado para referenciar conteúdos que vão além de
aspectos epistemológicos e pedagógicos, sendo utilizado também para referenciar
elementos culturais.
No último capítulo, apontamos para a centralidade da palavra método nos
debates entre Verney e seus adversários. Procuramos chamar a atenção para a
forma como a palavra método foi utilizada para colocar em questão toda a
identidade e todo o valor da cultura portuguesa, opondo de forma antagônica
“defensores da nação” e seus “traidores”.
De forma geral, procuramos reinserir Verney no contexto do Iluminismo,
tentando rever determinadas balizas, buscando compreender sua trajetória,
recorrendo às fontes, contextualizando com outros textos, reanalisando outras fontes
à luz dos ensinamentos da historiografia contemporânea, sobretudo na perspectiva
da história do pensamento político. Dentro de certas limitações, procuro contribuir
19
para compreensão da diversidade cultural do Iluminismo europeu, tentando ampliar
o espectro deste debate, visando reavaliar alguns argumentos e reafirmar outros.
Além disso, devemos reconhecer todas as limitações inerentes a esta tese,
desde as dificuldades em transpor os resultados da investigação para o papel, para
que as considerações necessárias pudessem ser apreciadas da forma mais clara e
interessante possível. Também é necessário considerar possíveis limitações
impostas pelo falta de acesso a outras fontes, que poderiam ter ajudado a ampliar
nossa capacidade de análise.
20
CAPITULO I – VERNEY: UM ILUSTRE CITADINO A SERVIÇO DO ESTADO
O desejar todo o bem a uma nação, o querer que faça
figura entre as outras, o administrar-lhe todos os meios
literários para conseguir este fim, e ainda mais censurar
os defeitos daqueles nacionais que a desviam deste fim
[...] o louvar e exaltar todos os erros, despropósitos,
futilidades, que a fazem ridicularizar pelas nações mais
cultas, isto chama-se ser um ilustre citadino.41
Luiz António Verney
Este capítulo apresenta um pequeno esboço biográfico, cuja finalidade é
auxiliar a compreensão do autor e de suas ideias, entre as quais aquelas que
nortearam a elaboração desta tese. Apresenta-se inicialmente, a atmosfera
intelectual vivida por Verney em Portugal no início de sua formação, para depois
situá-lo no ambiente intelectual italiano, onde viveu a maior parte de sua vida.42
Procurou-se pensar a trajetória de Verney tendo em vista as suas relações
com a cultura das sociedades do Antigo Regime, organizada a partir de valores de
lealdade, afeto, gratidão e fidelidade.43 E dentro do possível, considerou-se as
questões levantadas pelas novas abordagens no campo da biografia, levando em
conta a questão do indivíduo na história, sua singularidade, suas crenças individuais
e a maneira específica com que representa o mundo a sua volta.44
1.1 A trajetória de um filósofo reformista português
Na historiografia sobre o Iluminismo em Portugal, Luiz António Verney é
considerado um dos seus principais representantes e sua obra, o Verdadeiro
Método de Estudar (1746), é referência obrigatória nas discussões sobre este
41
Carta escrita de Pisa, 8 de outubro de 1766. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit.,
p. 198.
42
Ao final do capítulo apresentamos uma breve cronologia com as principais datas e acontecimentos
abordados neste capítulo.
43
Sobre as sociedades do Antigo Regime ver: ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte: investigação
sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. MONTEIRO,
Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal. A idade moderna. Lisboa: Círculo dos
Leitores, 2010. OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e valimento na linguagem cortesã do Antigo
Regime. Tempo, V11, n 21- 08, p. 97-120.
44
Cf. LEVI, Giovanni. Usos da biografia; BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: AMADO,
Janaína; FERRERA, Marieta de Moraes, (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1996.
21
tema.45 Contudo, existem poucas informações sobre a vida deste “ilustre citadino”.
Conforme apontou António Salgado Júnior na sua “breve biografia”, além de uma
deficiência documental, os dados disponíveis não são exatos e são bastante
omissos, havendo muitas lacunas e informações desencontradas.46 A biografia mais
completa de Verney continua sendo a monumental obra de António Alberto Banha
de Andrade, Verney e a Cultura do seu tempo.47
Um dos documentos mais reveladores sobre a vida de Verney é uma carta
“autobiográfica” escrita de Roma, em 1786, ao P. Joaquim de Foyos, da
Congregação do Oratório. Nesta carta, conforme apontou António Salgado Jr, a sua
vida é identificada com a sua obra, e nela se revela o que ele chamou de “drama
íntimo”48 de sua vida, que o acompanhou desde o Verdadeiro Método de Estudar.
Trata-se de sua desilusão, bem como o fracasso como escritor, conforme é possível
perceber no trecho abaixo:
45
Cf. MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney.
São Paulo: Saraiva & C.a Editores, 1941. DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura
Européia. Coimbra Editora: Coimbra, 1952. CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico
português. Lisboa: Editorial Caminho AS, 2001. Volume III. ANDRADE, António Alberto de. Vernei e
a cultura de seu tempo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1966. COXITO, Amândio. Luís
António Verney e o Iluminismo Francês. Comunicação apresentada na Universidade de Coimbra
em setembro 2008. CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública.
São Paulo: Saraiva, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1978. PRAÇA, J.J. Lopes. História da
Filosofia em Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 1988. 3ª Edição, p. 242. ARRIAGA, José de. A
Filosofia Portuguesa 1720-1820. História da Revolução Portuguesa de 1820. Lisboa: Guimarães
Editores, 1980, p.23-55. Em alguns trechos do presente trabalho de tese utilizaremos a abreviatura
VM para referenciar o Verdadeiro Método de Estudar.
46
Cf. “Biografia breve de Luís António Verney”, que se encontra no prefácio do segundo volume da
edição do Verdadeiro Método de Estudar organizada por António Salgado Júnior, edição que foi
utilizada como referência nesta tese. Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar.
Volume II. Estudos Literários. Lisboa: Livraria Sá da Costa – Editora, 1950, p.VII – XLVIII. Manuel
Curado não descarta a possibilidade de que sejam descobertos nos arquivos, outras cartas,
correspondências ou missivas, que possam revelar outras perspectivas sobre a trajetória de Verney.
Cf. Comunicação feita por Manuel Curado na conferência de abertura do Congresso realizado na
Biblioteca Nacional de Portugal intitulado Luís António Verney e a Cultura Luso-Brasileira do seu
tempo entre os dias 16 e18 Setembro de 2013. Para mais informações sobre o evento:
http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=843:congresso-luis-antonioverney-e-a-cultura-luso-brasileira-do-seu-tempo-16-18-set&catid=163:2013&Itemid=869
Para assistir ao pronunciamento de Manuel Curado na conferência de abertura:
https://www.youtube.com/watch?v=c542BC_5lOM
47
Esta obra, publicada em 1965, foi elaborada a partir de uma pesquisa em fontes que até então não
haviam sido consultadas por nenhum de seus biógrafos. No apêndice da obra foram anexados
algumas cartas e documentos que foram de grande importância na pesquisa desta tese.
48
Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar. Volume II, op. cit., p. XI. Banha de
Andrade também apontou para o que identificou como “trágico drama” da vida de Verney, porém sem
a mesma ênfase dada na interpretação de António Salgado Jr. Cf. ANDRADE, António Alberto Banha
de. Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p.409.
22
Eu sim tive ao princípio particular ordem da Corte de iluminar a nossa
nação em tudo o que pudesse, mas nunca me deram os meios para
executá-lo. Tive largas promessas de prêmios, e de renda, e ajudas
de custo, e vieram recomendações repetidas aos Ministros para me
darem um conto de reis sobre os Benefícios do Reino que ca se
provessem. Mas tudo isto ficou na esfera dos possíveis, e nunca se
verificou por culpa dos Ministros, e outras pessoas, as quais sempre
embasaram para adular os jesuítas, que sempre me perseguiram
com ódio imortal.49 (grifo nosso)
As coisas não aconteceram como esperava, estava frustrado e ressentido.
Analisando o epistolário de Verney encontramos um tema que é muito recorrente, o
importante papel reservado aos “homens iluminados” em aconselhar os reis e os
príncipes, e também a obrigação destes em se aconselhar com estes homens para
executar as ações necessárias, visando a promoção do estado.50
As ideias de Verney estavam articuladas a um conjunto de temas associados
a uma geração de intelectuais51 portugueses - a exemplo de D. Luís da Cunha52,
Martinho de Mendonça Pina e Proença53 e António Nunes Ribeiro Sanches54 - que
viveram a maior parte de suas vidas no estrangeiro e procuraram dar conselhos,
propondo ideias para a modernização e melhor organização do reino. Sebastião de
Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, também participou de missões
diplomáticas no estrangeiro antes de se tornar um dos reformadores no reinado de
D. José I. Estes homens refletiram sobre temas importantes, como a educação, e
49
Carta de Roma, fevereiro de 1786, ao P. Joaquim de Foyos, da Congregação do Oratório. (In)
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney, op.
cit., p.146-147. Na transcrição dos textos das fontes utilizadas nesta tese optou-se pela atualização
ortográfica.
50
Destacamos as cartas traduzidas por Manuel Curado e Ana Lúcia Curado. Cf. VERNEY, Luís
António. Cartas Italianas. Lisboa: Edições Silabo, Ltda, 2008. Trata-se de um conjunto de dez cartas
escritas em italiano, ou como definem os tradutores: cartas italianas com traços de latim. As cartas
haviam sido publicadas primeiramente por Cabral de Moncada em dois apêndices: Um Iluminista
Português do Século XVIII: Luís António Verney. São Paulo: Saraiva & C.a Editores, 1941.
51
Considero um intelectual aquele que possuía conhecimento e faziam uso deste conhecimento no
contexto social ao qual estavam inseridos.
52
D. Luís da Cunha (1662-1749) destacou-se pela sua vivência como embaixador nas principais
capitais da Europa. Chamava a atenção para a importância de se observar outros fatores do
desenvolvimento da economia de um reino, como uso produtivo das terras e a necessidade de se
aumentar a população.
53
Martinho de Mendonça de Pina e Proença (1693-1743) viajou extensamente pela Europa,
conheceu Crhistian Wolff na Saxônia e W.Gravesande na Holanda e estudou com eles as ideias de
Leibniz e Newton Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 11. Também foi associado à Academia Real da História.
54
António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783) foi sócio da Academia das Ciências de Paris e
colaborou na Encyclopédie, escrevendo sobre diversos assuntos, com destaque para a medicina, a
pedagogia e a economia. António Nunes Ribeiro Sanches alertava sobre a necessidade de Portugal
se adequar aos novos tempos, em que a riqueza dependia cada vez mais da indústria e do comércio.
23
sobre as reformas necessárias que pudessem restabelecer o poder e a riqueza de
Portugal, que consideravam superados por outras potências como França e
Inglaterra.55 Portanto, o Iluminismo português está articulado a um conjunto de
ideias cujo sentido mais fundamental era atender, acima de tudo, aos interesses do
estado, conforme conclui Antonio Cesar de Almeida Santos:
Enfim, parece-me que Carvalho e Melo realmente colocou em prática
a exigência de os governantes construírem um “claro conhecimento”
dos estados por eles administrados, em consonância com o ideal
científico da época. Assim, ele realizou uma acurada observação de
diversos elementos da sociedade portuguesa – comércio,
instituições, educação, agricultura etc. – para levar ao seu soberano
as medidas que julgava necessárias para fazer com que “um
pequeno país” se igualasse a outros “em riqueza e em forças”. 56
Neste sentido a obra de Venturi Utopia e Reforma no Iluminismo é muito útil
para se pensar o enquadramento da situação portuguesa no quadro geral da Europa
Setecentista. Evidenciando mais as questões político-econômicas do que a história
das ideias, este estudo procura captar o fluxo do Iluminismo a partir de um eixo
comum (uma lógica histórica) a toda a Europa. Este eixo é pensado a partir das
tensões entre Utopia (Revolução) e Reforma (Despotismo Esclarecido). Conforme
poderá ser observado, o epistolário de Verney aponta para o caso do Despotismo
Esclarecido.57
Refletindo sobre o Iluminismo em Portugal e a importância de Pombal neste
contexto, é possível perceber uma convergência das ideias de Verney com os
princípios que nortearam as ações empreendidas por Sebastião de Carvalho e Melo
no governo de D. José I. Como se verá ao longo desta tese, Verney defendia a
necessidade de haver uma regeneração cultural a partir de um novo método de
estudos, que teria como base a filosofia dos modernos. Entretanto, apesar das
semelhanças com as ideias que norteariam as reformas do ensino, Verney acabaria
entrando em choque com Pombal.
55
Cf. CARVALHO JUNIOR, E. T. A ideia de atraso e o papel da educação na modernização
portuguesa da segunda metade do século XVIII. e-hum, Belo Horizonte, Vol.5, n.2, pp. 25-44, 2012.
Disponível em: www.unibh.br/revistas/ehum. Cf. também: MAXWELL, Kenneth. O Marquês de
Pombal: paradoxo do iluminismo, op. cit., p.10.
56
Cf. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da
estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 88, 2011.
57
Cf. VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo, op. cit.
24
1.1.1 A formação inicial de Verney e a juventude em Portugal
O pai de Verney, o francês Diogo Verney, vindo de Lyon, instalou-se no final
do século XVII em Lisboa, e se casou com Maria da Conceição Arnaut, também de
origem francesa, nascida na vila de Penela. Diogo era um vendedor de drogas para
boticas, atendendo no balcão juntamente com seus caixeiros; embora fosse bem
sucedido, sua profissão não oferecia prestígio social.58 Deste casamento, em 23 de
julho de 1713, nasceu Luís António. Diz-se que com apenas seis anos já lia e
escrevia só de ouvir as lições dadas aos irmãos mais velhos.59 É provável, como
aponta António Salgado Jr, que Verney estivesse familiarizado com a língua
francesa - língua que provavelmente era falada em sua casa - o que bem teria
facilitado seu contato com a filosofia moderna.60 Seu pai se encarregou da sua
educação designando seu antigo capelão, P. Manuel de Aguiar Paixão, para lhe
inserir nos primeiros estudos. Mais tarde Verney entraria para o colégio jesuíta de
Santo Antão, depois seria aluno do colégio do Oratório, e antes de viajar para a
Itália, ainda passaria pela Universidade de Évora.
As informações biográficas sobre o período que vai de seu nascimento até a
publicação do Verdadeiro Método de Estudar em 1746, incluindo os primeiros anos
de sua formação, são muito escassas.61 Temos poucas notícias sobre sua
passagem pelo Colégio de Santo Antão e sobre as disciplinas frequentadas por
Verney. Entretanto, apoiando-se no que escreveu Pedro José de Figueiredo62,
Banha de Andrade acredita que Verney tenha estudado neste colégio entre os anos
de 1720 e 1727.63 De acordo com programa de ensino dos colégios jesuítas para os
estudos menores, o aluno deveria cursar cinco anos de Gramática, dois anos de
58
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.1.
Ibid., p.14.
60
Cf. “Biografia breve de Luís António Verney”, que se encontra no prefácio do segundo volume da
edição do Verdadeiro Método de Estudar organizada por António Salgado Júnior, edição que foi
utilizada como referência nesta tese. Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar.
Volume II, op. cit., p.XVIII.
61
Cf. “Biografia breve de Luís António Verney”, que se encontra no prefácio do segundo volume da
edição do Verdadeiro Método de Estudar organizada por António Salgado Júnior, edição que foi
utilizada como referência nesta tese. Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar.
Volume II, op. cit., p.X.
62
Pedro José de Figueiredo escreveu uma biografia sobre Verney na obra “Retratos e Elogios dos
Varões e Donas que ilustraram a Nação Portuguesa”, tomo I, Lisboa, 1817.
63
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.10.
59
25
Latinidade e dois de Retórica.64 Porém, Verney cursou apenas três anos. Acredita-se
que tenha se adiantado em relação aos demais alunos - talvez devido às aulas de P.
Manuel de Aguiar Paixão - tendo concluído mais cedo as disciplinas exigidas.65
De forma geral, no colégio de Santo Antão seguia-se as diretrizes da
escolástica. Algumas críticas apresentadas por Verney no Verdadeiro Método de
Estudar podem estar relacionadas com o método de ensino praticado pelos jesuítas
neste colégio. Outro aspecto da cultura portuguesa que receberia críticas de Verney
era o que ele identificava por um excesso de orgulho próprio dos portugueses.66
Desprezava a literatura laudatória, voltada para o culto dos “grandes homens da
nação” e faria críticas severas a Camões e ao Padre Vieira. Banha de Andrade
aponta para as festas literárias que aconteciam nos pátios do colégio, festas que
atraiam a nobreza e gente do povo. A maioria destas festas era voltada para louvar
a “nação Portuguesa”, e os feitos dos portugueses pelo mundo. Eram declamados
poemas, havia apresentações musicais e peças de teatro.67
Entre os professores do colégio podemos citar, por exemplo, Paulo Amaro,
provavelmente um dos professores de retórica de Verney e que mais tarde se
tornaria um de seus adversários nas polêmicas do novo método. No que se refere às
obras de referência utilizadas no Colégio de Santo Antão, podemos citar o famoso
compêndio de gramática do Padre Manuel Alvares, o qual mais tarde receberia
críticas severas de Verney. No que se refere ao ensino de matemática nas escolas
portuguesas, sabe-se que Manuel de Campo imprimiu em Lisboa em 1735, para a
aula do colégio Os elementos de geometria plana e sólida e também editou outros
manuais de trigonometria plana e esférica.68 Além disso, havia um Observatório no
Colégio de Santo Antão, em que o padre Carbone e Domingos Capassi, ambos
jesuítas italianos que vieram prestar serviço em Portugal a pedido do rei, assistiram
a um eclipse da lua69. Isso pode indicar que o Colégio de Santo Antão não estava
tão atrasado, e poderia ser considerado moderno, quando comparado com outras
64
Entretanto, conforme aponta Banha de Andrade, os jesuítas não seguiam esta norma em todos os
Colégios, variando de acordo com o número de classes, de alunos e das possibilidades financeiras.
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p. 10.
65
Ibid., p.11.
66
V.M. Estudos Filosóficos. V.3, p.16.
67
Por exemplo, em 18 de julho de 1720, foi apresentada uma peça dramática em honra do novo
bispo de Angola, D. Fr. Manuel de Santa Catarina. Cf. Banha de Andrade, p.12. Como se verá, mais
tarde Verney expressaria um desprezo pelos grandes autores nacionais, portugueses “ilustres” como
o Padre António Vieira e Luís de Camões.
68
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.16.
69
Ibid., p.16.
26
escolas portuguesas da época.70 No programa de ensino do colégio era oferecida a
Aula de Esfera, que era voltada para a matemática, mas que incluía também uma
diversidade de disciplinas como geometria, óptica e engenharia militar.71
Depois de deixar o Colégio de Santo Antão, Verney passaria a ser aluno da
Congregação do Oratório, provavelmente entre 1727-1730. A ordem dos oratorianos
era considerada mais aberta às inovações; de acordo com os Estatutos da
Congregação, poderiam frequentar as aulas “os de fora” que tivessem “bons
procedimentos” e que frequentassem os exercícios espirituais da Congregação. 72 A
postura mais aberta da Congregação do Oratório perante as novidades no campo da
filosofia levaram, assim como aconteceu com Verney, a uma situação de confronto
com os jesuítas.73
Verney foi aluno no curso de Filosofia que lecionava o P. Estácio de Sá, que
já criticava as “prolixidades” do modelo tradicional.74 Foi nesta época que João
Batista começou a ensinar o seu “ecletismo de forma aristotélica e fundo
moderno”.75 O padre João Batista, que introduziu na Congregação do Oratório o
ensino da física newtoniana desde 1737, publicou em 1748 uma obra filosófica que
apresentava
Restituta.
76
uma
série
de
inovações
intitulada
Philosophia
Aristotelica
Nesta obra, assim como no Verdadeiro Método de Estudar, critica-se
a filosofia peripatética77, apontando para as distâncias entre eles e Aristóteles.
De acordo com Dias, João Batista é o que ele chama de “eclético”, segue
principalmente
as ideias
de
Descartes,
porém
utilizava
alguns
princípios
newtonianos para a explicação do movimento e da luz. 78 Sua obra poderia ser
tratada como uma tentativa de conciliar a “metafísica aristotélica com a física
70
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.16.
No início do século XVII, O padre italiano Cristóvão Borri, ensinava a doutrina copernicana na Aula
de Esfera. Cf. DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração è Catolicismo. Teodoro de Almeida,
Lisboa, Colibri, 1994, p.35.
72
Ibid., p.29.
73
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.155. No confronto entre
oratorianos e jesuítas foi publicada a Carta Exortatória, que procurava defender os oratorianos das
perseguições dos jesuítas. Cf. REMÉDIOS, Mendes dos remédios. Carta Exhortatoria aos padres
da Companhia de Jesus: Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1909.
74
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.154.
75
Ibid., p. 149.
76
Um dos principais discípulos de João Batista foi Teodoro de Almeida, cuja obra, Recreação
Filosófica, contribuiu para a difusão da filosofia moderna em Portugal. DOMINGUES, Francisco
Contente. Ilustração e Catolicismo, op. cit., p.38.
77
Trata-se da filosofia elaborada pelos interpretadores de Aristóteles, que no vocabulário de Verney
era o mesmo que escolásticos.
78
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.151.
71
27
moderna”.79 Ao se referir às obras do Padre João Batista, em carta escrita de Roma
datada de 1750, Verney afirmava que suas obras eram “uma misturada de
Gassendiana com Peripatética que merece compaixão”.80
João Batista, assim como o padre Manuel do Cenáculo, que será abordado
mais adiante, buscava uma linha intermediária, conciliatória entre a escolástica e a
filosofia moderna. Cenáculo teve uma postura diferente de Verney: este, ao publicar
o Verdadeiro Método de Estudar, partiu para o ataque contra a filosofia
escolástica.
Quando estava no segundo ano do curso da Congregação do Oratório, no
inicio de 1729, Verney resolveu alistar-se para servir como soldado nas campanhas
militares que partiriam para as Índias.81 Nesta época, o império português, que se
estendia pelos oceanos Atlântico e Índico, era constituído por um vasto conjunto de
territórios, que naquele momento sofria ataques em diversas frentes no estado da
Índia. O Vice-Rei do estado da Índia, João de Saldanha da Gama, havia deslocado
suas tropas para Mombaça, e solicitava reforços para a defesa de Goa. 82 O
Conselho Ultramarino sugeriu ao Rei enviar o maior número de gente possível,
inclusive de “diferente qualidade”; assim, os interessados deveriam apresentar seus
papeis na Secretaria do Conselho Ultramarino. O monarca oferecia uma série de
benesses para aqueles que se submetessem à convocação e oferecia distinção
nobiliárquica, de acordo com o desempenho dos que servissem nas campanhas.
Depois de ter sido aceito como soldado, Verney chegou a requerer o posto de
capitão de uma Companhia, porém sem sucesso; mais tarde foi nomeado Sargento
da Companhia de Infantaria, e seu capitão era Caetano Correa de Sá, filho do
Visconde de Asseca.83 Depois de partir com a Nau de Guerra N. S. do Livramento, o
comandante escreveria mais tarde da Bahia relatando problemas com a
embarcação, pois o mastro havia se quebrado. O que aconteceu depois disso não
se sabe, porém no mesmo ano de 1729 Verney retorna para Portugal, onde então
aparece matriculado na Universidade de Évora. O motivo de seu retorno também
não se sabe.
79
Ibid., p.149.
Carta escrita de Roma de 1 de janeiro de 1753. Cf. VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p. 47.
81
Carta escrita de Roma de 1 de janeiro de 1753. Cf. VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p. X-XI.
82
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p. 20.
83
Ibid., p.22.
80
28
Nesta aventura, tudo indica que Verney buscava se encaixar em uma carreira
que lhe pudesse oferecer uma benesse, e a carreira militar costumava ser bastante
promissora. Entretanto, a sua condição de filho de um boticário significava um
obstáculo e até mesmo um impedimento, pois para a habilitação de ordens militares
exigia-se ausência de “vicio mecânico” nos exames de habilitação.84 Além disso, era
necessário comprovar não ter nem pai nem avô com esta condição. Mai tarde
Verney tentaria ser admitido na Ordem de Cristo, pois pertencer a esta Ordem
conferia importância social, honra, e aqueles que recebiam esta mercê gozavam de
benefícios fiscais. Nos Estatutos da Ordem de Cristo exigia-se que fosse nobre,
fidalgo, ou cavaleiro, sem mácula nenhuma em seu nascimento e sem defeitos; além
disso, os Papas haviam proibido que entrassem filhos ou netos de mecânicos.85 O
exame era rígido e nas inquirições eram ouvidas no mínimo seis testemunhas que
não poderiam ter grau de parentesco até o terceiro grau. O pedido de Verney foi
indeferido, com a alegação de “falta de qualidade”.86 Mesmo assim, Verney
conseguiria reverter esta decisão alegando fazer parte do corpo eclesiástico, o que
significava ter “limpeza de sangue”, sem “mácula de judeu ou mouro”. 87
Na Universidade de Évora, cujo ensino também era dirigido pelos jesuítas,
Verney cursou Teologia. De acordo com os estatutos da Universidade de Évora, os
professores
eram
obrigados
a
seguir
os
doutores,
cuja
autoridade
era
reverenciada.88 Como o método de ensino praticado pelos jesuítas tinha como base
a filosofia escolástica, a qual mais tarde seria desprezada por Verney, grande parte
das críticas que foram feitas no Verdadeiro Método de Estudar podem estar
associadas a sua própria experiência como aluno neste contexto educacional. Até
mesmo, o programa de ensino dos Oratorianos, embora fosse mais permeável a
novidades, também seguia de maneira geral a filosofia de Aristóteles. 89
84
Mecânicos eram aqueles que viviam do trabalho de suas próprias mãos. Nesta época os boticários
ainda continuavam a ter um estatuto de arte subalterna da medicina, assim como os cirurgiões, eram
atividades que não estavam livres de “vívio mecânico”. Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre
na Colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 23.
85
Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia, op. cit., p.99.
86
Parecer da Mesa de Consciência de setembro 1749. (In) ANDRADE, António Alberto de. Vernei e
a cultura de seu tempo, op. cit., p. 538.
87
Depois de deferida sua solicitação, Verney recebe o habito de cristo em novembro de 1749.
88
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.31.
89
Ibid., p.18.
29
1.1.2 Verney e a cultura portuguesa da primeira metade do século XVIII
Ao se referir a D. João V, Voltaire teria afirmado que “Quando queria uma
festa, ordenava um desfile religioso, Quando queria uma construção nova, erigia um
convento. Quando queria uma amante, arrumava uma freira”.90 Diferentemente
desta visão de um beato mulherengo, a historiografia tem chamado a atenção para a
importância do longo reinado de D. João V (1706-1750), que teria sido ofuscado pela
chamada Era Pombalina (1750-1777). Conforme têm destacado alguns trabalhos
recentes, a herança joanina foi muito importante para a efetivação das reformas que
ocorreriam no reinado josefino.91
Neste contexto, há que se considerar a emergência de outras potências como
Holanda, Inglaterra e França, que passaram a concorrer com Portugal na exploração
do novo mundo, deslocando sua posição de vanguarda para potência de segunda
ordem. A frágil situação de Portugal colocava em risco seus domínios ultramarinos,
sobretudo a América portuguesa, da qual se tornava cada vez mais dependente.
Esta questão não passaria despercebida pelos intelectuais portugueses que
apontavam para o atraso português e a necessidade de se fazer reformas.
O reinado de D. João V (1707-1750) viveu o auge da produção aurífera e das
riquezas vindas do Brasil, o que acabou se refletindo nos domínios cultural, artístico
e arquitetônico. Foram enviados funcionários nas cortes estrangeiras para informar
sobre
“as
novidades
dignas
de
serem
imitadas”,
principalmente
aquelas
provenientes da corte francesa de Luis XIV, o rei sol. Foi contratado, por exemplo, o
compositor Domenico Scarlatti e foi construído o Palácio de Mafra, de tal maneira
que pudesse rivalizar com os outros grandes palácios, como o Escorial, palácio dos
reis da Espanha, e Versalhes, da França.
D. João V chegou a planejar uma grande viagem pela Europa para se inteirar
dos progressos da ciência, das técnicas e das artes, porém, esta viagem acabou
não acontecendo.92 Uma importante mudança na sociedade portuguesa setecentista
90
Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, op. cit., p.17.
Cf. ALVIM, Gilmar Araujo. Linguagens do poder no Portugal setecentista: um estudo a partir da
Dedução Cronológica e Analítica (1767). Dissertação Mestrado. Niterói-RJ: Universidade Federal
Fluminense, 2010. Ver também. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os
intelectuais, o poder cultural e o poder monárquico no séc.XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra,
2003, p. 52.
92
CARVALHO, Rómulo de. A física experimental em Portugal no séc. XVIII. Lisboa: ICALP, 1982.
p. 54.
91
30
ocorreu com a fundação da Academia Real de História em 1720. Ela representa um
aspecto importante que marca o caráter moderno do reinado de D. João V.
De acordo com Isabel Ferreira da Mota, a Academia Real de História foi
instituída com a finalidade de promover a cultura erudita, e assim, marcar uma
crescente presença do estado nos diversos setores da sociedade portuguesa da
primeira metade do século XVIII. Observa-se uma maior centralização do poder na
medida em que o estado passa a submeter as demais autoridades políticas e os
obriga a reconhecer seu estatuto privilegiado.93 A Academia Real de História,
diferentemente das academias científicas, tinha o patrocínio real e ficava isenta da
censura da Inquisição. Possuindo toda autonomia garantida oficialmente pelo Rei,
funcionava como um instrumento de representação e reafirmação de seu poder.
Conforme ressalta Isabel Ferreira da Mota:
Como academia real ela é, de facto, uma novidade no país. É,
claramente, uma empresa de Estado e o monarca vai apoiá-la e
rodeá-la de toda uma aparelhagem legislativa que a suporta e lhe
permite
ter
uma
actuação
eficaz,
nalgumas
facetas
94
paragovernamental.
O estado passa a financiar uma produção de obras, sobretudo memorialistas,
visando à promoção de seu próprio interesse. Os beneficiários do mecenato do
estado passaram a receber subsídios exclusivos para a produção erudita,
diferentemente do que ocorria anteriormente no clientelismo, em que o patrono
sustentava o escritor não exclusivamente para a produção de obras eruditas, mas
também como preceptor ou secretário.95 Em Portugal já existiam academias desde o
final do século XVII, como as do Conde de Ericeira, mas o caso da Academia Real é
mais específico, conforme definiu com precisão Isabel Ferreira da Mota, “tinha uma
noção de Estado e uma concepção da função governativa do rei, claras e
pragmáticas”.96
A Academia era controlada diretamente por D. João V e recebia seu incentivo
e sua atenção, por isso todo o mérito e reputação de seus autores dependiam
93
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. op. cit., 2003, p.35.
Ibid., p.35.
95
Ibid., p.127.
96
Ibid., p.34.
94
31
exclusivamente do seu reconhecimento.97 “Entrar na Academia é entrar ao serviço
do rei”, este era o critério que deveria ser observado por aqueles que participavam
do círculo seleto da Academia.98 Todos estavam a serviço “de sua majestade”, e o
mecenato poderia premiar um autor, seja com uma renda, com uma pensão ou com
um cargo.99 Além disso, o rei poderia decretar ser fidalgo até mesmo quem não
possuía terras.100
Na lógica do antigo regime, as mercês e as benesses eram decorrência dos
serviços prestados pelos vassalos à coroa. Em uma sociedade na qual a maioria dos
escritores ainda não conseguia sobreviver somente da venda de seus livros, o
mecenato tornava-se fundamental para o exercício deste ofício que passava a
ganhar cada vez mais prestígio social. Conforme aponta Isabel Mota: “Escrever
estabelecia fronteiras e distinções, servia à ambições políticas e dava força à
pretensões de família”.101 Portanto, ao criar a Academia o rei inaugurava um
ambiente intelectual que não realça distinções por nascimento, misturando eruditos
com nobres de grande nascimento.102 Os acadêmicos se destacavam pela
“produção para a imprensa”, em torno de investigações de temas e áreas
preestabelecidas pelo monarca, mas também por estarem inseridos em uma “rede
de contatos e relacionamentos com outros eruditos, nacionais e estrangeiros”. 103
Até mesmo aqueles que se encontravam no estrangeiro, como D. Luís da
Cunha, receberam a honra da nomeação para participarem da academia, um
reconhecimento do rei pelos serviços prestados para a diplomacia portuguesa. 104 O
mesmo aconteceria com Sebastião de Carvalho e Melo, nomeado para a Academia
em 1736. Embora tivesse o perfil intelectual exigido pela Academia, Verney não
chegou a se tornar um de seus membros.
Mais tarde Verney faria uma série de críticas às publicações da Academia. 105
Contrariando a opinião de que fosse constituída por um corpo de “homens de
97
Na sua fundação participaram importantes eruditos como D. Manuel Caetano de Sousa, o Conde
de Ericeira e Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A
Academia Real da História, op. cit., p.344.
98
Ibid., p.340
99
Ibid., p.253
100
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia, op. cit., p.17.
101
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História, op. cit., p. 321.
102
Ibid., p.321.
103
Ibid., p.341.
104
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia, op. cit., p.324.
105
Tudo indica que se referia à Coleção dos Documentos e Memórias da Academia Real de
História Portuguesa, publicadas entre 1721 e 1736.
32
grandes luzes e de bom gosto pelas letras”, apontava para uma série de “defeitos”:
“as orações pecam no estilo” pelo seu “seiscentismo” e havia excessos nos elogios.
Satirizava acerca de “um pensar tão pueril que um homem que saiba elogiar não os
pode ler sem riso”.106 E acrescentava que todos estes “defeitos” se devem à “falta de
critério”, de “um juízo exercitado“ e de um estudo com bons autores por meio de
uma “comunicação com os homens doutos das nações aluminadas” 107 e “por isso na
dita Academia se tem adoptado tantas fábulas históricas de que o mundo erudito se
ri”.108 Estes recursos de retórica como a sátira e a ironia são elementos que estão
presentes nas suas obras, conforme analisaremos no próximo capítulo.
Em 1722 D. João V mandou vir a Portugal dois jesuítas napolitanos, João
Baptista Carbone e Domingos Capacci, para elaborarem um levantamento
cartográfico de algumas regiões do império. O Cosmógrafo-Mor do reino, Luís
Francisco Pimentel, na conferência da Academia Real de História Portuguesa de 7
de março de 1726 informava que o P. Carbone, a partir de observações feitas,
chegou a valores mais precisos da latitude e longitude de Lisboa. 109 Sete anos
depois, Capacci seguiu para o Brasil, e Carbone ficou em Portugal, tornando-se
mais tarde pessoa íntima do rei, ocupando o cargo de reitor do Colégio de Santo
Antão, local que, conforme já vimos, Verney estudou na sua formação inicial. A
vinda destes jesuítas italianos ilustra os aportes no campo científico da corte joanina,
tanto no que se refere ao envio de indivíduos para acompanhar os progressos
científicos de outras cortes como em relação ao patrocínio da vinda de estrangeiros
para Portugal que pudessem atender às demandas estratégicas, tal como no
conhecimento do território de além-mar e no uso de técnicas para demarcá-lo e
garantir a posse perante as disputas com outras potências rivais.110
Assim como outros soberanos, a exemplo de Pedro o Grande da Rússia, D.
João V procurou estimular a ciência em seu reino. Além de mandar instalar um
observatório astronômico no colégio jesuíta de Santo Antão, concedeu para a ordem
dos oratorianos o Convento de Nossa Senhora das Necessidades, com uma
biblioteca de trinta mil volumes e um gabinete de física, que segundo Teodoro de
106
Carta de Roma de 1753. VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p. 52.
Aluminadas neste contexto significa as nações que vivem de acordo com as “luzes”, são as
nações cultas.
108
Carta de Roma de 1753. VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p. 53.
109
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p. 16.
110
Cf. OLIVEIRA, Ricardo. Política, diplomacia e o império colonial português na primeira metade do
século XVIII. História: Questões & Debates, Curitiba: UFPR, n. 36, p. 251-278, 2002.
107
33
Almeida - outro importante filósofo da segunda metade do século XVIII português chegou a receber a visita do próprio Rei para assistir a alguns experimentos.111
Ao apoiar os oratorianos, com a benesse do Palácio das Necessidades e o
gabinete de física, D. João V promove uma instituição de ensino capaz de concorrer
com a hegemonia dos jesuítas na educação, cujo modelo de ensino costumava não
ser afeito a novas ideias. Mais tarde seria permitido que o exame de entrada para a
Universidade de Coimbra fosse ministrado também pelos oratorianos, rompendo
com o monopólio deste privilégio exclusivo dos jesuítas, o que indica uma
intervenção importante do estado no setor da educação.
O governo de D. João V apresentava características importantes que
apontavam para uma expansão do poder régio sobre setores cuja autoridade era
sustentada por outras ordens sociais. Além disso, a valorização de conhecimentos
científicos para o conhecimento do território e o estímulo à produção literária são
aspectos importantes deste contexto, e que podem muito bem ter afetado a
formação inicial de Verney. Entretanto, no que se refere ao programa de ensino das
escolas portuguesas, Verney apontava para o atraso e argumentava sobre a
necessidade de reformas. Esta percepção, segundo ele mesmo afirmou, ocorreu-lhe
quando passou a frequentar o ambiente intelectual italiano, que lhe permitiu um
acesso facilitado a “bons livros”.112
1.2 Verney e o ambiente intelectual italiano
Até aqui procuramos apresentar alguns aspectos da trajetória de Verney,
desde o seu nascimento, em 1713, até agosto 1736, quando interrompe o curso de
Teologia em Évora e viaja para Roma. A partir desta data Verney passou a viver na
Itália sem nunca mais retornar para sua terra natal. Até o momento não se sabe
exatamente o que foi fazer em Roma. Na historiografia tornou-se muito comum a
ideia de que saiu de Portugal devido a sua insatisfação com a filosofia que era
111
CARVALHO, Rómulo de. A física experimental em Portugal no séc. XVIII, op. cit., p.56. Ver
também MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, op. cit., p.14.
112
Conforme é possível observar na carta escrita.
34
ensinada nas universidades portuguesas, e que procurava justamente um lugar no
qual pudesse ampliar a sua formação intelectual.113
Verney foi indicado para receber uma benesse pelo Núncio, Mons. Caetano
Orsini de Cavalieri, Arcebispo de Tarso, que enviou uma carta de indicação para o
Secretário de Estado do Papa Clemente XII, o Cardeal Firrao. Verney disputava a
mercê com Francisco de Alamada e Mendonça, primo de Sebastião de Carvalho e
Melo, que neste momento ainda não havia assumido o cargo de Secretário de
Estado dos Negócios do Reino. O Padre Carbone, considerado muito próximo a D.
João V, também procurou interceder em favor de Verney enviando uma carta
recomendando-o ao Ministro em Roma, o Comendador Pereira de Sampaio,
sugerindo que lhe fosse concedido algum benefício.114 Na carta a Pereira de
Sampaio, o P. Carbone informa que se encontrava em Roma há algum tempo Luís
António Verney, a quem pretendia “recolher-se para este Reino provido de algum
beneficio” e que não “seria fácil consegui-lo ao dito pretendente sem que lhe
estendessem a mão”.
115
O Padre Carbone, percebendo a demora na efetivação da
mercê que havia solicitado em favor de Verney, teve que reforçar seu pedido a
Pereira de Sampaio alegando que havia recebido “particular insinuação de S.
Majestade, ainda que não quer o mesmo Senhor que se interponha o seu Real
nome, como V. Mercê bem sabe”.116 Parecia haver a intenção de D. João V de
beneficiar Verney, porém não desejava tornar pública sua vontade
Em outra carta, Pereira de Sampaio explicava ao P. Carbone que havia um
“grande empenho pelo R. mo Évora a favor de Francisco de Almada” que tentava
anular a concessão da graça, que naquela presente data já havia sido conferida a
Verney mediante a assinatura do Papa. Sampaio explica que teve de interceder
diretamente com o R. mo Évora e com o Cardeal Corsiini justificando que seu
“empenho pelo Abade Vernei não era amizade pois que nenhum trato familiar tinha
com ele, mas bem sim o ser sujeito por quem me tinha vindo recomendação da corte
113
Maria Lucília Gonçalves Pires afirma que a tese de uma insatisfação de Verney com o ensino
universitário português já pode ser percebida pelo já citado Pedro José de Figueiredo. Cf. VERNEY,
Luís António. Verdadeiro Método de Estudar (cartas sobre Retórica e Poética). Lisboa: Editorial
Presença, 1991, p.8. Esta interpretação foi reiterada recentemente por Amandio Coxito na introdução
da tradução do Re Metaphysica. Cf. p.5.
114
CARBONE Apud ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op.
cit., p. 541.
115
CARBONE Apud ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op.
cit., p. 541.
116
Carta do P. Carbone a Pereira de Sampaio de 12 de janeiro de 1740. In: ANDRADE, António
Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p.542.
35
[...]”.117 Verney venceria a disputa com Almada e a sua benesse viria com a Bula de
concessão do Arcediagado de Évora, em 1741, o que lhe permitiu recursos para se
manter na capital da igreja durante a maior parte de sua vida.
Após chegar à Itália, inscreveu-se primeiramente em Direito na Universidade
de Roma, e depois passou a cursar Teologia, terminando o curso em 1741, mesmo
ano em que receberia a benesse do arcediagado de Évora.118 Se concordarmos com
as informações de Banha de Andrade, Verney exagerou na forma como descreveu o
caráter moderno do ambiente acadêmico italiano, pois a orientação do curso de
teologia na Universidade de Roma não diferia muito do de Coimbra e de Évora, e as
mudanças importantes só ocorreriam mais tarde, principalmente no curso de
Filosofia, com a criação de gabinetes de ciências e o fim da cátedra das Decretais
por Bento XIV.
Em 1746 inicia-se um período importante da vida de Verney, primeiramente
com a publicação do seu polêmico Verdadeiro Método de Estudar, depois com a
publicação de uma série de compêndios em latim: De Ortographia latina (1747), De
Re Logica (1751) e Apparatus ad philosophiam et theologiam (1751) e o De Re
Metafísica (1753). Nas cartas escritas neste período, Verney apontava que o
ambiente intelectual italiano era mais iluminado, e que Portugal estava atrasado em
relação às novidades no campo das ciências e da filosofia. Argumentava que
filósofos como Grócio, Pufendorf, Wolff, não eram citados pelos portugueses e que
as disciplinas de Ética e Direito Natural não eram ensinadas em Portugal. Segundo
ele “estas duas ciências” eram ministradas com muita atenção nas Universidades
Italianas.119
Verney defendia a necessidade de se promover a circulação de livros em
Portugal argumentando que na capital da igreja o acesso às novas publicações no
campo da ciência e da filosofia era facilitado. Chamava atenção para o fato de que
estar em Roma naquela ocasião (janeiro de 1753) lhe proporcionava uma condição
intelectual privilegiada. Fazendo um diagnóstico da cultura portuguesa, fez as
seguintes afirmações:
117
Carta do P. Carbone a Pereira de Sampaio de 12 de janeiro de 1740. In: ANDRADE, António
Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo, op. cit., p. 542.
118
Ibid., p.97.
119
Carta escrita de Roma, 1 janeiro de 1753. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas. Lisboa:
Edições Silabo, Ltda, 2008, p. 48.
36
Mas primeiro deves-me conceder três coisas sem as quais não é
possível que argumentemos com efeito e bom sucesso e sem
dúvidas. 1. Que eu tenho muito mais notícias de livros e dos
melhores autores do que tu tens, e talvez nenhum lá tenha. 2.Que
ninguém pode julgar se os autores de uma são bons ou não sem
conhecer perfeitamente o que fazem os autores das outras nações
cultas porque da comparação de uns com outros é que se deve
inferir se fazem bem ou mal. 3. Que os estudos de Belas Letras e
Ciências florescem em grau perfeito nas nações estrangeiras, em
proporção reservada, quero dizer, uns mais em umas regiões que
outras. Se me negas estas três proposições, não estas capaz de
argumentar comigo nestes pontos. Se concedes, facilmente te
convencerei.120
Conforme podemos observar a partir do trecho acima, para Verney, seu
interlocutor, estando em Portugal, encontrava-se em uma posição de inferioridade,
tendo em vista que o autor sugere que o ambiente intelectual português era mais
fechado às novidades.121 Entre os “melhores autores” citados por ele poderíamos
destacar Newton, considerado por ele o filósofo mais importante de sua época.
Segundo aponta Franco Venturi, no inicio do século XVIII, devido à variedade
de suas formas políticas, a península itálica era uma espécie de “microcosmo de
toda a Europa” com suas monarquias, vice-reinos, ducados e repúblicas, sem contar
a teocracia papal.122 A difícil manutenção da independência das repúblicas da
península itálica se dava pelo fato de faltar um centro de poder, uma política
econômica a qual pudesse ir além dos interesses dos grupos familiares.123 E de
acordo com Perry Anderson, a riqueza e a vitalidade das cidades da península
Itálica, devido ao capital mercantil, impediu o surgimento de um Estado feudal
unificado.124
As repúblicas italianas tinham sobrevivido às margens dos estados modernos
em formação, sua natureza social era aristocrática e patrícia, burguesa e municipal,
assemelhando-se justamente àquelas estruturas que as monarquias estavam por
então tentando controlar e submeter.125 Por isso, ideias que visavam ampliar a
liberdade política e de pensamento perante os poderes da igreja e do estado eram
mais toleradas e muitas vezes ganhavam proteção. Isto pode explicar o fato de
120
Carta escrita de Roma, 1 janeiro de 1753. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit.,
p.46.
121
Não se sabe quem era o destinatário desta carta. Esta questão será abordada mais adiante.
122
VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo, op. cit., p.55-56.
123
Ibid., p.88.
124
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 143.
125
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista, op. cit., p.58.
37
Verney ter mandado imprimir a primeira edição do Verdadeiro Método de Estudar
em Nápoles. De acordo com Banha de Andrade, além de evitar problemas com os
jesuítas romanos, Verney dirigiu-se a Nápoles porque neste Reino os jesuítas
sofriam perseguição da autoridade régia.126
Verney trocou cartas com iluministas italianos como Ludovico Antonio
Muratori127 e Antonio Genovesi.128 Afirmava que na Itália se ensinava publicamente
a filosofia moderna e que mesmo dominicanos e jesuítas, os defensores do antigo
método, começaram admitir a nova filosofia não só na França, mas também em
Roma, no centro da igreja católica.129 Entretanto, ao analisar a difusão das ideias de
Newton na Europa, Paolo Casini pondera que, embora elas fossem admitidas por
alguns jesuítas italianos, a autoridade da igreja não permitia que defendessem
abertamente as teses de Copérnico e de Newton. Em Roma, o ensino de astronomia
ficava encoberto por “embaraçantes sofismas”, e para contornar a censura, alguns
padres jesuítas utilizavam de “elucubrações epistemológicas” e “acrobacias
conceituais”.130 Isto pode indicar que os indivíduos (padres jesuítas) adotavam os
modernos, mas a instituição (a Ordem), não.
O campo de circulação de ideias se tornava cada vez mais intenso no século
XVIII, seja através da publicação de livros, periódicos, correspondências, das
narrativas literárias, seja na institucionalização de comunidades de cientistas como a
Royal Society, que tinha muito prestígio em toda a Europa, onde Newton exerceu o
cargo de presidente de 1703 a 1727. Havia diferenças entre o ambiente acadêmico
das universidades e dos demais círculos sociais, como das academias, dos salões e
dos cafés. Newton chegou a ser uma moda em alguns reinos italianos. De acordo
com Antonio Genovesi, Newton foi uma moda nos salões, citá-lo era uma forma de
126
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo. op. cit., p.172.
Muratori (1672 - 1750) é considerado um dos mais importantes representantes do iluminismo
italiano, estabeleceu contato com importantes pensadores de sua época, se correspondeu com
pensadores importantes como Jean Mabillon (1632-1707) e com Leibniz, com quem chegou a trocar
71 cartas Cf. MORAIS, Regina Célia de Melo. L. A. Muratori e o cristianismo feliz na missão do
Paraguay. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2006, p.33. Muratori foi um pensador
prolífico, publicou uma vasta obra sobre Direito e Teologia, foi arquivista e bibliotecário em Modena a
serviço do Duque Rinaldo I d´Este. Ibid, p.18.
128
Genovesi manteve estreito contato com Gian Battista Vico, adaptou o newtonianismo a uma visão
católica, tornando-se professor da primeira cátedra de economia política da Europa. A sua obra A
Instituição da Lógica (1746) foi selecionada pelos reformistas da Universidade de Coimbra para
compor a bibliografia básica do recém-criado curso de Filosofia. Cf. OLIVEIRA, Aline Brito. Antônio
Genovesi na bibliografia oficial do marquês de pombal. Usos do Passado’ — XII Encontro
Regional de História ANPUH-RJ 2006.
129
VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar. Volume III, op. cit., p.35 e 36.
130
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia. São Paulo: Unesp, 1995, p.154.
127
38
ganhar prestígio, por isso reclamava da “grande multidão da Itália, que quer parecer
newtoniana”.131 Acusava-os de se proclamarem adeptos da filosofia de Newton,
porém sem o compreendê-lo.
A síntese newtoniana representou uma experiência intelectual decisiva aos
homens cultos do século XVIII. Voltaire, por exemplo, é considerado o grande
divulgador de Newton na França; publicou Éléments de la philosophie de Newton
(1738), considerado por muitos como um dos melhores manuais de divulgação
disponível da Europa setecentista.132 A forma contundente com que Newton explicou
uma série de fenômenos naturais, como o estudo das cores, a explicação físicomatemática do arco-íris, da aurora boreal, e sobretudo da gravidade, alimentou a
produção de diversos poemas e textos em prosa, como a Farbenlehre de Goethe.
Pela sua neutralidade ideológica - o deísmo de Newton133 - a adesão ao
paradigma newtoniano foi assumida por alguns católicos esclarecidos sem suscitar
grandes movimentos de opinião; como se tivesse sido imposto pela “força da
verdade”.134
Verney elogiava a mente brilhante de Newton:
Aristóteles e Descartes não passavam de copistas e imitadores dos
filósofos que os precederam, e, quando filosofam, ou se enganam ou
fazem suposições que jamais demonstram. Pelo contrário, o
Cavaleiro Newton nada disse que não seja original e nada expôs que
não tenha rigorosamente demonstrado e que não possa demonstrar
quando quiser.135
A difusão do newtonianismo na Itália ocorreu também por meio de obras de
pendor literário, cujo caráter pedagógico apresentava consistência de autênticos
tratados sobre a física newtoniana. Publicavam-se poemas que enalteciam as
explicações sobre a luz e os movimentos dos corpos. O professor Carlo Noceti, por
exemplo, publicou De Iride, De Aurora boreali, e os cinco Diálogos sobre a aurora
boreal publicados em 1748 no Giornale de´Letterati.136
131
Genovesi Apud Casini. Extraído de uma carta escrita de Nápoles a Antonio Conti datada de 3 de
março de 1746. Cf. CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia, op. cit., p.187. Antonio Conti
foi admitido como membro da Royal Society e conviveu no círculo de amigos de Newton.
132
Ibid., p.100.
133
Newton nunca duvidou da existência de Deus.
134
Cf. CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia, op. cit., p. 180.
135
Ibid., p. 189.
136
Ibid., p. 157.
39
Para Verney, o método de Newton é superior ao de Descartes, e de acordo
com ele a filosofia de Newton vinha sendo adotada pelos doutos e pelos que eram
considerados entendidos: “hoje o método de Cartésio quase não tem sequazes”.137
As ideias de Newton também circularam por meio de poemas que enalteciam
as novas descobertas da ciência. Havia uma curiosidade em torno das experiências
científicas que costumavam ser realizadas publicamente. Nas Academias de Ciência
havia um senso de cosmopolitismo onde se debatia sobre as novas teorias e
propostas de explicação sobre os fenômenos naturais. Além de servirem para
atender a uma demanda de curiosos, os poemas e folhetos de divulgação do
newtonianismo serviam a uma renovação consentida pela Ratio Studiorum visando
“acrescentar às tradicionais leituras dos poetas latinos novos textos de conteúdo
científico, capazes de estimular nos estudantes das classes de “retórica” e de
“humanidades” novos interesses pela astronomia óptica e matemática”.138 A
divulgação da ciência por meio de modalidades de escrita tradicionais como os
poemas, refletia talvez a necessidade dos colégios atraírem os jovens estudantes,
que muito provavelmente vinham estabelecendo contato com o newtonianismo.
Diversos exemplares da primeira edição dos Principia Matemática (1687) de
Newton poderiam ser encontrados nas bibliotecas de Roma, Florença, Pisa,
Nápoles, Parma, Veneza, Milão, Módena.139 Francesco Bianchini (1662-1729), na
condição de secretário para a reforma do calendário juliano na corte papal presidida
pelo Cardeal Noris, visitou Newton pessoalmente quando este era presidente da
Royal Society em janeiro de 1713, e na ocasião comunicou que repetira com
sucesso as experiências com o prisma.140
Neste contexto destaca-se a originalidade das obras do jesuíta italiano
Ruggero Boscovich, que mesmo sem comprovação empírica, demonstrou grande
originalidade nas suas tentativas de avançar em algumas hipóteses lançadas por
Newton.141 Entretanto, Boscovich foi perseguido por defender teses muito ousadas e
obrigado a abandonar o Colégio Romano e a própria cidade para se dedicar à
diplomacia dentro da ordem dos jesuítas.142 Carlo Benvenuti, que o sucedeu na
137
VM , Volume III, p. 201.
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia, op. cit., p. 157.
139
Ibid., p. 182.
140
Ibid., p. 182-185.
141
Ibid., p. 168.
142
Ibid., p. 176
138
40
cátedra do Colégio Romano, também teve que abandoná-la para ensinar liturgia.143
Em 1739 foi condenado pelo Index o livro Newtonianismo para as damas, de
Francesco Algaroti (Il newtonianismo per le Dame, owero Dialoghi sopra la luce
e i colori), Nápoles, 1737.144 Algaroti teve que introduzir nela uma série de
modificações, inclusive negar a hipótese copernicana, para poder republicar o livro
com o novo título de Diálogos sobre a óptica newtoniana.145
Levando em conta alguns dados sobre o contexto intelectual italiano, é
provável que a adesão de Verney ao newtonianismo esteja associada à forma como
esta corrente filosófica se difundiu na Itália.
1.2.1 Caindo em desgraça: Verney e os deveres do príncipe
Em fim Deus não quis que eu iluminasse a nossa
nação e eu me conformo com a sua vontade.146
Luiz António Verney
Verney, ao escrever o Verdadeiro Método de Estudar em 1746, talvez tenha
exagerado o atraso português como uma estratégia para valorizar sua posição,
visando receber a graça e mercê régios para justamente sustentar seu privilégio
como um importante interlocutor português inserido no ambiente intelectual italiano.
O mesmo desdém com que tratou a obra do oratoriano João Batista pode ser
percebido no caso das obras do jesuíta português Inácio Monteiro, apontado por
Silva Dias como o “jesuíta português mais lúcido e ilustrado do século XVIII”.147
Inácio Monteiro, após a expulsão dos jesuítas de Portugal, passou a viver em
Ferrara. Na sua trajetória intelectual também combateu a filosofia escolástica e
publicou uma obra sobre física (Philosofia Libera seu Ecletica) em sete tomos em
1766, que adotavas princípios filosóficos muito semelhantes aos adotados no
143
Ibid., p. 175
Em Edital datado de 1739 do papa Clemente XII. Cf. ANDRADE, António Alberto de. Vernei e a
cultura de seu tempo, op. cit., p.150. Ver também: CASINI, Paolo. Newton e a Consciência
Europeia, op. cit., p. 221.
145
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia. São Paulo: Unesp, 1995, p. 222
146
Carta de Roma, fevereiro de 1786, ao P. Joaquim de Foyos, da Congregação do Oratório. In:
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney, op.
cit., p.148.
147
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.250.
144
41
Verdadeiro Método de Estudar.148 Verney negou qualquer valor na obra de Inácio
Monteiro e foi muito severo na sua crítica: “O autor é um escolástico que começa a
balbuciar nas coisas modernas e mostra em tudo ser um jesuíta português”. 149
Nem os jesuítas, nem os oratorianos escaparam à forma irônica com que
Verney atacou os intelectuais portugueses. Certamente as questões políticas
influenciaram no seu posicionamento, que talvez tenham o impedido de fazer uma
avaliação mais positiva das ideias destes intelectuais portugueses. No caso de
Inácio Monteiro, Verney reclamava da demora em receber o dinheiro para a
publicação de sua Física, e queixava: “ele já tem impressos todos os seus sete
volumes, no presente ano, e eu ainda não sei quando poderei imprimir os meus”.
150
Conforme aponta Calafate, Verney procurou seguir o grupo cultural de Pombal.
Entretanto, mais tarde, conforme veremos na próxima seção, também seria afastado
por razões políticas.
Não há documentos que possam comprovar se Verney recebeu os recursos
para o pagamento das impressões do Verdadeiro Método de Estudar. Sabe-se que
recebeu os recursos necessários para a impressão do De Re Logica e De Re
Metaphysica, obras que dedicou ao Rei.151 Mas conforme sabiamente assinalou
António Salgado Jr, é justamente um ano após a publicação do Verdadeiro Método
de Estudar que as coisas parecem melhorar para Verney. A partir daí, inicia-se o
período mais prolífico de sua vida como escritor. Em 1747 publica o De ortographia
latina e reimprimi o Verdadeiro Método de Estudar. Mais tarde, já no reinado de D.
José, publicou em 1751 o De Re Logica e o Apparatus ad philosophiam et
theologiam, e em 1753 o De Re Metaphysica.
A dedicatória a D. José, que escreveu no De Re Metaphysica inicia-se da
seguinte maneira: “O estudo da metafísica, Rei Excelente, José, não é penoso,
sendo até muito digno de quem se dedique à chefia do Estado”152. Ao longo da
148
Pedro Calafate não vê grandes diferenças entre Verney e Inácio Monteiro, apontando influências
comuns entre os dois pensadores, particularmente Locke. Cf. CALAFATE, Pedro (dir). História do
Pensamento Filosófico Português, op. cit., p.183-184.
149
Carta escrita de Livorno, 29 de outubro de 1766). In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p. 202.
150
Carta escrita de Livorno, 29 de outubro de 1766). In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p. 206.
151
Cf. “Biografia breve de Luís António Verney”, que se encontra no prefácio do segundo volume da
edição do Verdadeiro Método de Estudar organizada por António Salgado Júnior, edição que foi
utilizada como referência nesta tese. Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar.
Volume II. op. cit., p.XXV.
152
VERNEY, Luís António. Metafísica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p.26.
42
dedicatória, Verney apresenta uma série de argumentos para provar que a
Metafísica era uma disciplina muito importante para a “ciência da administração do
estado”, e de forma categórica, afirmava: “declaro ser necessária para os
verdadeiros políticos que desejam sobretudo a felicidade dos súditos nos seus
reinos”.153
Na dedicatória de seu manual sobre física Verney chamava a atenção para a
importância desta disciplina na administração do reino:
Todas as artes e disciplinas, JOSÉ I, Rei Potentíssimo, sobre as
quais se assentam a conservação e a felicidade de uma Nação,
encontram-se coligadas por admirável enlace; isto é o que a Física,
mais do que qualquer outra disciplina, cabalmente demonstra. Pois
duas são as fontes de que depende a felicidade de toda Nação: a
Conservação dos Cidadãos e a Tranqüilidade da Nação. A primeira
abrange a Agricultura, as Artes Liberais e o Comércio; e a segunda
encerra em si outras partes. Mas em cada uma delas é notável a
utilidade das Instituições de Física, ora porque subministram o
necessário e o satisfatório a todos os homens, ora porque são por
estes utilizadas em maior proveito da Sociedade Civil. 154
De fato, as novas descobertas científicas se tornavam cada vez mais
necessárias para a construção das fortificações, embarcações e armas militares.
Assim, Verney procurava valorizar a importância de seu manual de física neste
contexto. De certa forma, colocava-se como o elo de ligação entre Portugal e
“nações mais cultas” da Europa e buscava reconhecimento por seu empenho em
escrever manuais atualizados com o que havia de mais moderno no campo da
filosofia.
Antes de imprimir seu manual de física, Verney havia se empenhado em sua
campanha para receber os fundos para a impressão de sua Física e reclamava não
receber resposta de Sebastião de Carvalho e Melo Pombal: “Se eu fosse rico não o
teria pedido, mas faria ponto de honra em consagrar o meu ao bem público, como
lhe consagrei fadigas, saúde e tudo”.155 Demonstrava-se orgulhoso de seus
trabalhos; sobre o seu manual de gramática, por exemplo, considerava que tinha
153
Ibid., p.32.
Dedicatória escrita de Pisa, 13 de janeiro de 1765. Cf. LOPES, Frederico José Andries. O prefácio
do livro De Re Physica de Luís António Verney. Revista Brasileira de História da Matemática - Vol.
10 no 19 (abril/2010-setembro/2010), p.69.
155
Carta enviada de Pisa em 28 de maio de 1766. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p.183.
154
43
tudo o necessário para a gramática e a latinidade, “o que não se encontra em
nenhum outro”.156
Aproximadamente um ano após escrever a dedicatória a D. José, ainda não
havia recebido os recursos para a publicação do De Re Physica (Física). Em uma
de suas cartas comenta que já havia escrito ao Conde de Oeiras, futuro Marques de
Pombal, para lembrá-lo de que o Rei havia prometido pagar a impressão de todas as
suas obras. Até então já havia recebido os recursos para a impressão do Apparatus
ad Philosophiam et Theologiam, De Re Logica e De Re Metaphysica157, e
solicitava agora verificar a ordem para pagar a Física. Na carta, Verney se queixava
por ainda não ter recebido uma resposta do ministro:
O senhor Conde, em seguida, teve a honra de ter reformado o reino,
não pode ver com olhos indiferentes um súdito de quem as obras são
apreciadas pelas nações estrangeiras e louvado nos seus jornais
preferidos em muitas escolas àquelas dos seus nacionais. O que é
glória do nosso reino e gloria do próprio senhor Conde, sob quem
estas coisas se publicam.158
Conforme assinalou António Salgado Júnior, nas correspondências que vão
de 17 de julho de 1765 a 29 de setembro de 1766, Verney parece “esquecer que era
um pedagogo” e passa a exercer sua vocação política.159 Desde 1760 estavam
rompidas as relações diplomáticas entre Portugal e os estados pontifícios. O
rompimento com Roma se deu devido a uma disputa sobre uma dispensa papal para
o casamento de Dona Maria, princesa do Brasil com seu tio Don Pedro, irmão do
Rei. Diante da demora de Roma e do que se considerava um insulto à dignidade do
monarca português, o núncio papal foi expulso de Portugal em 15 de junho de
1760.160 O rompimento entre Lisboa e o Vaticano durou nove anos. Neste contexto,
156
Carta enviada de Pisa em 28 de maio de 1766. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p.184.
157
Trata-se de uma obra escrita por Verney em Latim. A obra teve um parecer favorável do Fr.
Joannes De Luca Venetus. Há uma dedicatória ao Rei José I. Na autoria da obra aparece o nome de
Verney em latim: Aloysius Antonius Verneius Verney. A obra se propõe a apresentar a melhor forma
de se fazer filosofia (disputar) para que os adolescentes portugueses pudessem usá-la com
facilidade, como “um aparato”. Esta obra ainda não foi traduzida para o português.
158
Carta enviada de Pisa em 28 de maio de 1766. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p. 184.
159
Cf. “Biografia breve de Luís António Verney”, que se encontra no prefácio do segundo volume da
edição do Verdadeiro Método de Estudar organizada por António Salgado Júnior, edição que foi
utilizada como referência nesta tese. Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar.
Volume II, op. cit., p.XXXII.
160
Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, op. cit., p.99.
44
Pombal desempenhava uma política externa visando combater a presença da
Companhia de Jesus em toda a Europa . A extinção da ordem dos jesuítas dos
estados pontifícios pelo papa Clemente XIII ocorreu em 1773. Após o corte das
relações diplomáticas, os súditos portugueses tiveram que sair de Roma; assim,
Verney acabou indo para Pisa, e mais tarde passaria por outras cidades italianas.
É deste período a maior parte das cartas que foram traduzidas por Manuel
Curado e Ana Lúcia escritas da Itália. Não sabemos exatamente a quem foram
endereçadas, provavelmente para uma pessoa que ocupava um lugar de influência,
conforme é indicado em alguns trechos, alguém que poderia interceder a seu favor
perante Pombal. Para Luís Cabral de Moncada o destinatário das cartas seria
Francisco de Almada e Mendonça, ministro do estado português em Roma 161. Já
para Banha de Andrade trata-se de Ayres de Sá e Melo, secretário dos negócios
estrangeiros.162 Como os manuscritos não revelam o destinatário e tendo em vista
que apenas uma das cartas está autografada por Verney para Manuel Curado e Ana
Lúcia Curado, a questão do destinatário continua sem resposta.163
Nas cartas escritas neste período, Verney fazia um elogio aos monarcas
empenhados em promover o “bem público” e “reformar as desordens”, e que
apoiavam seus governos no conselho de filósofos164. O czar Pedro I, por exemplo,
tomou medidas e pode vê-las realizadas apoiando-se em pessoas de sua confiança
“sem ter a vaidade de querer ser o inventor delas”, e ensinou aos monarcas
modernos a servirem-se não daqueles homens de “mérito metafísico”, mas de
“homens capazes”, “do mérito físico e real”.165
Verney se colocava como “alguém capaz” para o aconselhamento do rei
português. Citava exemplos de outros soberanos como Catarina II da Prússia, e
Carlos I da Espanha e chamava a atenção para a importância do papel dos filósofos
nestes governos, “daqueles grandes homens, que só eles podiam abrir os olhos aos
seus nacionais e introduzir, com o bom gosto da ciência, o recto pensar, sem o qual
na política, nem em nenhuma outra matéria, se faz alguma coisa boa”. 166
161
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney,
op. cit., p.17.
162
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. op. cit., p. 648.
163
VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p. 12.
164
Cartas de Pisa, 17 de julho de 1765 e carta de Livorno 1765. Ibid., p.83, 101.
165
Cartas de Pisa, 17 de julho de 1765 e carta de Livorno 1765. Ibid., p. 83, 101.
166
Carta escrita de Pisa, 17 de Julho de 1765. Ibid., p. 80.
45
Para Verney os príncipes já não eram mais “senhores dos dinheiros públicos,
mas meros administradores, unicamente para vantagem dos povos”. 167 Uma das
obrigações dos governantes, de acordo com ele, era prover os “meios necessários”
para que os filósofos pudessem iluminar seus governos, dentre eles “a quietude”, “o
ter suficiente dinheiro na mão, para livros”, “para comer, vestir, habitar”, e que “todas
estas coisas não se fazem com esperanças, nem com meras honras, mas com
dinheiros reais, e muitos”.168 Em tom satírico, expôs a questão de forma bastante
realista:
É coisa risível o ouvir dizer a certos falsos políticos que se deve
servir a pátria e o soberano por mera honra. Nunca vi nenhum rei,
nem primeiro-ministro, nem secretário de estado, etc.,etc., contentarse com a honra, mas todos querem os seus tostões, e muitos, para
manter o decoro, donde todos eles se contradizem na prática.169
Comentando sobre o contexto político de Portugal da época fazia críticas à
forma como o reino vinha sendo administrado: “Vejo ai grandes prejuízos, grandes
prevenções, grandes paixões, etc.,”.170 Em um ambiente onde as intrigas eram
recorrentes e os indivíduos subiam e desciam de acordo com a lógica dos afetos,
Verney talvez tenha faltado com decoro na forma como criticou nas cartas a ação de
Carvalho e Melo, chegando a apontar para a “idade avançada do ministro”. 171 Em
outra carta escrita a Carvalho e Melo, elogiava a disposição do Conde em receber
novas ideias, e com cordialidade e respeito, colocava-se como alguém capaz de
servir às necessidades do reino:
Se todos os que recorrerem a V. Ex.a com alguma ideia para o bem
público, de qualquer Nação que sejam, são bem recebidos, e
grandiozamente remunerados, como é fama pública por toda a
Europa; com razão eu, que sendo súdito do Rei Fidelíssimo, tive a
honra da licença de lhe dedicar todas as minhas obras, de que já lhe
presenteei parte, e experimentei os efeitos da beneficência Real; e
tudo com a aprovação de V. E., me animo a lhe ir falar em um
negócio, que para mim é grande, e para um tão grande Ministro
167
Carta escrita de Pisa, 17 de Julho de 1765. Ibid., p. 82.
Carta escrita de Pisa, 17 de Julho de 1765. Ibid., p. 81.
169
Carta escrita de Pisa, 17 de Julho de 1765. Ibid., p. 81.
170
Carta escrita em 24 de fevereiro de 1766, sem indicação do local. Ibid., p. 147.
171
Carta escrita de Livorno, 25 de dezembro de 1765. Ibid., p.128.
168
46
como V. E., é a mínima coisa, que pode conceder a sua equidade, e
generosidade. 172
O negócio a que Verney se refere era sobre a impressão da sua Física,
assunto ao qual parece ter se ocupado bastante. Verney explicava que imprimiu a
Gramática por iniciativa própria e que por medo da perseguição dos jesuítas a
publicou anônima. Informava sobre sua vontade de publicar a Física, obra em
quatro tomos, mas que não tinha dinheiro suficiente para imprimi-las. Implorava o
patrocínio do Conde de Oeiras enaltecendo sua grandeza e sua “mente ornada nas
mais sólidas ideias da verdadeira filosofia”.173 Procurava reforçar as intenções que
embasavam as suas solicitações ao ministro: “Sei muito bem que V.E não necessita
de meus conselhos, e projetos: mas ao menos ve nisto meu animo patriótico, e a
lizura com que le falo”.174
Sem ainda receber o que havia solicitado, dois anos mais tarde, escreveu
novamente a Carvalho e Melo, argumentando que havia recebido a promessa de
receber todos os recursos para mandar imprimir seus escritos do Rei, mas que
infelizmente a documentação comprobatória teria se perdido no terremoto de
1755.175
Em 1768, Verney seria nomeado secretário de Legação na corte romana, e
sua função era auxiliar o ministro plenipotenciário, Francisco de Almada e
Mendonça, primo de Pombal. Neste contexto, Verney e Almada - que conforme já
apontamos, haviam disputado a mercê do Arcediagado de Évora - passaram a
dividir a mesma residência, e devido a uma série de desentendimentos, tornaram-se
inimigos. O fato de Verney ter se tornado um desafeto de Almada contribuiu para a
sua desgraça. Nas correspondências entre Francisco de Almada e Mendonça e
Sebastião Carvalho de Melo, é possível perceber toda a rede de intrigas nas quais
Verney estava envolvido.
Desde 1756, Sebastião Carvalho de Melo ocupava o cargo de Secretário de
Estado dos Negócios do Reino. Havia ganhado a confiança do Rei principalmente
pela forma como atuou na reconstrução de Lisboa, depois que a cidade foi destruída
pelo terremoto de 1755. Em correspondência oficial do ministro Almada de
172
Carta escrita ao Conde de Oeiras de Pisa, 28 de maio de 1766. In: ANDRADE, António Alberto de.
Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p. 621.
173
Carta escrita ao Conde de Oeiras de Pisa, 28 de maio de 1766. Ibid., p.623
174
Carta escrita a Conde de Oeiras de Pisa, 28 de maio de 1766. Ibid., p.623.
175
Carta escrita por Verney de julho de 1768, Siena, ao Conde de Oeiras. Ibid., p.625.
47
Mendonça com o Marques de Pombal, escrita de Roma em agosto de 1757, Almada
considerava ilegítimas algumas solicitações de Verney por não possuir as
“circunstâncias de merecimento” para a graça a qual reclamava, e o mesmo também
deveria ser considerado para a mercê que já havia recebido (Arcediago de Évora),
pois afirmava que Verney “se preza mais de ser Frances do que ser Nacional”.176
Almada escrevia a Pombal argumentando que Verney era totalmente inútil ao
serviço de Sua Majestade e solicitava se livrar deste sujeito “desnecessário e
pernicioso”. Em carta de 14 de agosto de 1770, de forma irônica e mais incisiva,
cobrava uma promessa que teria sido feita por Pombal na resolução do problema
que o incomodava: “Eu já tenho pedido a V. Ex. a que de a este grande letrado, e
refinado Francês o premio que merece, e espero que o faça com brevidade [...]”.177
Quando procurou o impressor italiano Salomoni para a impressão da Física,
Verney também havia contrariado a vontade de Almada, que tinha preferência por
Pagliarini, impressor que era seu amigo.178 Por isso seria acusado de contratar os
serviços de um impressor que costumava atender aos trabalhos dos jesuítas e de
desprezar os impressores fiéis às orientações políticas de Portugal. Depois de
imprimir seu compêndio de física (De Re Physica ad usum Lusitanorum
Adolescentium) não publicou mais nenhuma obra.179
Imprimi então com meu dinheiro a Física, que me custou muito sem
utilidade, porque as esperanças, que me deram de se introduzir nas
escolas se desvaneceram. Mandei-a apresentar ao Rei pelo Pombal,
mas nunca tive resposta. E assentei comigo de não imprimir mais
coisa alguma, porque os tempos eram infelizes, e os meninos não
eram para graças.180
As súplicas de Almada ao seu primo e ministro não tardariam: a punição de
Verney viria no dia 7 de junho de 1770, sendo expulso de Roma por ordem da corte
portuguesa, passando a viver na Toscana.181 Segundo a versão de Verney, ele foi
acusado pelo ministro Almada por praticar espionagem a favor dos jesuítas, o que o
176
Cf. Correspondência oficial do ministro Almada de Mendonça com o Marques de Pombal escrita
de Roma de agosto de 1757. Ibid., p. 564.
177
Excerto de uma carta de Almada para Pombal de Roma, 14 de agosto de 1770. Ibid., p. 638.
178
Cf. ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo. op. cit., p. 409-410.
179
Ibid., p. 409-410.
180
Carta ao Padre Joaquim de Foyos. In: MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do
Século XVIII: Luís António Verney, op. cit., p.147.
181
ANDRADE, António Alberto de. Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p. 409-426.
48
teria levado a cair em desgraça perante Pombal, sofrendo retaliações e
“ingratidão”.182
Logo eu previ os desgostos, e desgraças, que me podiam suceder.
Porque o Almada era meu antigo inimigo por causa de certos
Benefícios, não sabia escrever o seu nome, era soberbo, invejoso, e
muito mau, e fiava-se no parentesco do Marquês, o qual defendia
sempre todos os despropósitos do Almada. Com tudo isto aceitei o
cargo, e me recomendei à Providência.183
Nos despachos da Ordem de Expulsão, Almada relata que foi comunicado ao
Rei “a soberba, a petulância, o incorrigível espírito de orgulho, e intriga, e a
infidelidade com que Luís António Verney se fez indigno, não só do Real Serviço do
mesmo Senhor, mas até da denominação de português”.184 Os relatórios
informavam que Verney tinha um temperamento marcado por uma “vaidade
desmedida”.
No inventário dos papéis que se encontravam no seu quarto foram
encontradas correspondências entre Verney e Ayres de Sá de Mello.185 O relator
que fez a análise dos papeis faz uma comparação do caráter de cada um dos
correspondentes:
Este fidalgo mostra conhecer bem que uma teoria não basta para a
felicidade das resoluções, e que é necessário saber combinar as
regras que se aprendem com as circunstâncias que ocorrem: não se
ve este caráter nos escritos de Verney: mas esta é a diferença de
quem estuda para ser útil e de quem por ostentação escreve.186
Ayres de Sá é descrito como um fidalgo que escreve para ser útil ao reino, ao
passo que Verney é avaliado como alguém que escrevia apenas por vaidade e para
promover a si mesmo. Após os anos de exílio, Verney procurou recuperar a sua
honra no reinado da rainha D. Maria I. De acordo com seu processo de reabilitação,
182
Cf. Biografia de Verney, escrita por António Salgado Junior. In: VERNEY, Luís António.
Verdadeiro Método de Estudar, op. cit., p. XL-XLI.
183
Carta ao Padre Joaquim de Foyos. In: MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do
Século XVIII: Luís António Verney. op. cit., p.147.
184
Oficio de Ordem de Expulsão, 8 de maio de 1771. In: ANDRADE, António Alberto Banha de.
Vernei e a Cultura de seu tempo. op. cit., p. 642-643.
185
Aires de Sá e Melo ocupou o posto de Secretário de Estado Adjunto do Reino tornando-se braço
direito de Carvalho e Melo. Entre 1760 e 1764 substituiu José da Silva Pessanha na legação de
Portugal em Nápoles e mais tarde se tornaria secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra de 1775 a 1786. Ibid., p. 498.
186
Inventário dos papeis de Verney que foram recolhidos na ocasião de sua expulsão. Ibid., p. 648.
49
fora solicitado a Ayres de Sá - que neste momento ocupava o cargo de secretário de
Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra - a emitir um relatório sobre o seu
caso. Depois de avaliar o processo e os fatores que o teriam levado a cair em
desgraça, Ayres de Sá relata que Verney se conduziu mal, “faltando as obrigações
de seu emprego subalterno”, demonstrando vaidade de seu talento, mas que não
mereceu o “vergonhoso tratamento” “e a injúria com que foi castigado”. 187 E segue
dizendo que a honra de Verney deveria ser restituída, mas que não deveria ser
empregado novamente por não ser capaz de subordinação.188
Verney ainda buscou receber benefícios no governo de D. Maria I; havia sido
nomeado sócio da Academia Real de Ciências de Lisboa, mas ainda se queixava do
estado em que se encontrava:
Despedido que foi o Pombal o novo Governo reconheceu, e publicou,
a minha inocência, e me permitiu voltar para Roma. Deste modo
ficou salva a minha honra, mas os gravíssimos prejuízos de todo
gênero, que sofri, e sofro, nunca me salvaram. E causa admiração a
todos os políticos iluminados, que no governo duma Rainha tão pia,
tão prudente, tão benemérita, e servida por Ministros tão justos,
iluminados, e grandiosos, eu me ache no deplorável estado, em que
me vejo. 189
Quando escreveu esta carta ao Padre Joaquim de Foyos da Congregação do
Oratório, a qual já foi mencionada no inicio deste capítulo, Verney procurava
justificar o fato de que desde sua nomeação para a Academia não havia escrito
nada. Reclamava de sua saúde debilitada - “as moléstias cresceram” – e por não ter
recebido o apoio que achava ter merecido. Queixava-se de ter caindo em desgraça,
vítima de perseguições.190
Mais tarde, em 1790, Verney seria eleito deputado honorário da Mesa de
Consciência e Ordens191, função para a qual receberia quatrocentos e oitenta mil
187
Carta escrita por Ayres de Sá de Roma, 17 de junho de 1779. Ibid., p.652.
Carta escrita por Ayres de Sá de Roma, 17 de junho de 1779. Ibid., p. 652.
189
Carta de Roma, fevereiro de 1786, ao P. Joaquim de Foyos, da Congregação do Oratório. (In)
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António Verney. op.
cit.,p.148
190
Ibid., p.148. Nesta carta, Verney ainda cita obras escritas por ele que se encontravam inacabadas,
como a sua Teologia, da qual já estavam compostos seis tomos, mas que resolveu queimá-las.
Outros textos, segundo ele, haviam se perdido ficando junto com os papéis confiscados pelo Almada,
porém, comenta sobre outras obras, “que talvez sejam as melhores”, e que por ocasião de sua morte
deixaria para algum amigo. Infelizmente, não se tem notícias sobre estas obras citadas por Verney.
191
Mesa de Consciência e Ordens ou Real Mesa Censória foi criada por Pombal em 1768 para a
fiscalização e censura do impresso. A criação deste órgão representa a grosso modo uma
188
50
reis pagos anualmente.192 Dois anos após esta nomeação, morre no dia 20 de
março de 1792. No final de sua vida, quando se dirigiu ao Notário para ditar o
testamento em 18 de agosto de 1791, além do seu mal estado de saúde, reclamava
da situação de pobreza e abandono de seus familiares.
1.2.2 Considerações sobre Verney
Em uma sociedade regida pela lógica dos afetos e das relações de amizade,
muitos eram injustiçados e caiam em desgraça. O mérito muitas vezes perdia a sua
importância perante o lugar social ocupado pelos indivíduos. Ser bem relacionado e
possuir laços de parentesco com alguém poderoso, muitas vezes tornava-se
elemento decisivo para o êxito ou fracasso pessoal.193 Para ser bem sucedido no
“jogo da corte”, era importante ter habilidade política, saber administrar o orgulho e
ter “honra”.194
Analisando a questão da “desgraça” apontada por Verney quando avalia sua
trajetória, há algumas hipóteses. À luz do contexto no qual estava inserido, ele
poderia ter caído em desgraça pela sua falta de habilidade política, por seu excesso
de orgulho - conforme afirmou Ayres de Sá -, ou, quem sabe, por inveja de seus
adversários. Mas convém pensarmos sobre que “desgraça” ele estava se referindo.
Pois, olhando por outro ponto de vista, e diante do que foi apresentado, Verney não
foi tão mal sucedido assim, pois recebeu benefícios e conseguiu publicar parte de
suas obras.
Mas enfim, quem era Verney? Na tentativa de responder a esta difícil
pergunta, e sem negar o caráter crítico de seu pensamento, o trecho abaixo é
bastante interessante para situarmos Verney no contexto das luzes:
“estatização” da Inquisição, o estado se apropria das atribuições da censura, que antes eram
praticamente monopolizadas pela Igreja.
192
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a Cultura de seu tempo. op. cit., p. 662.
193
Cf. OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e valimento na linguagem cortesã do Antigo Regime.
Tempo, V11, n 21- 08, p. 97-120.
194
A honra, entendida aqui, como um valor social importante na sociedade do século XVIII. Um
indivíduo para ter honra deveria seguir determinadas regras de conduta, deveria, por exemplo, saber
representar o valor moral do outro: sua virtude, seu prestígio, seu status e, assim, seu direito à
precedência. O desconhecimento das regras e das condutas ou a falta de sua observância poderiam
levar um indivíduo a um estado de exclusão social.Sobre a questão da honra ver. PITT-RIVERS,
Julian. A doença da honra. In: GAUTHERON, Marie (org.). A honra: imagem de si ou dom de si – um
ideal equívoco. Porto Alegre: LP&M, 1992.
51
Observou-se que os diabos têm grande medo dos países em que se
sabe bem filosofia, medicina, lei e teologia, porque nunca se arriscam
em tais lugares em fazer pacto com nenhum homem.195
Nesta passagem, Verney reforça a metáfora das Luzes contra a escuridão
das trevas. Podemos concordar que Verney realmente acreditava na possibilidade
de existir pacto do Diabo com os homens, mas também, por outro ponto de vista,
poderíamos concordar que Verney estava reafirmando esta crença visando atingir
um determinado objetivo. Por isso, quando se analisou as fontes tivemos a
preocupação de analisar criticamente sobre como poderiam ser interpretadas as
suas afirmações. Ele acreditava realmente nesta ideia a qual estava afirmando? O
que pensava, o que estava fazendo Verney ao fazer esta afirmação? Tudo indica
que estava servindo ao estado, reafirmando o que considerava uma crença útil e
necessária, que deveria ser mantida e sustentada, assim como defendia a
necessidade da Inquisição como uma arma para combater os jesuítas.
Neste capítulo procuramos analisar como a trajetória de Verney está
intimamente articulada à dinâmica das sociedades do antigo regime. Verney
procurou sustentar sua posição com um português no estrangeiro capaz de servir à
corte, mantendo Portugal atualizado sobre os conhecimentos mais importantes que
circulavam entre as “nações cultas europeias”. Vimos como Verney solicitava apoio
e patrocínio do Rei para a publicação de suas obras e, assim, exercer seus serviços
de aconselhamento. No próximo capítulo analisaremos de que maneira alguns
destes elementos poderão ser identificados no estilo de seus escritos e nas
estratégias utilizadas na publicação de sua obra mais importante, o Verdadeiro
Método de Estudar.
1.2.3 Cronologia
1713
Nascimento de Verney
1725
Conclusão dos estudos menores ?
1720-1727?
Colégio de Santo Antão
1727-1730
Congregação do Oratório
195
Carta escrita de livorno, 25 de dezembro de 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas,
op. cit., p. 106.
52
1730-1736
Colégio Madres de Deus – Universidade de Évora
1736
Saída para Roma
1741
Bula de concessão do Arcediago de Évora
1746
Publicação do Verdadeiro Método de Estudar
1747
De Orthographia Latina
1748-1750
Publicação das Respostas as Reflexões Apologéticas e Parecer
do Dr. Philomuso
Publicação da obra De Relogica e Apparatus ad philosophiam et
theologiam
De Re Metaphysica
1751
1753
1756
1759
Sebastião Carvalho de Melo passa a ocupar o cargo de Secretário de
Estado dos Negócios do Reino
Publicação do De Re Physica e publica anonimamente a Gramática
Latina
Sebastião de Carvalho e Melo recebe o título de Conde de Oeiras
1759
Expulsão da Companhia de Jesus
1760
1762
Quebra das relações diplomáticas entre Portugal e o Vaticano, os
portugueses residentes em Roma são expulsos e Verney se instala
em Pisa
3ª edição da De Re Logica
1765
2ª edição do De Re Metaphysica
1768
Nomeado secretário da Legação de Portugal em Roma
1769
As relações entre Portugal e o Vaticano são reatadas
1770
Sebastião de Carvalho e Melo recebe o título de Marquês de Pombal
1771
1772
Demissão do cargo de secretário da Legação e ordem de desterro
para a Toscana, onde passa a residir em San Miniato
Reforma da Universidade de Coimbra
1777
Morte de D. José e queda de Pombal
1780
Retorna a Roma e é nomeado sócio da Academia Real de Ciências
de Lisboa
Carta autobiográfica escrita de Roma ao Padre Foyos
1758
1786
1790
1792
Depois de ter permissão para retornar a Roma, em 1790 é nomeado
deputado honorário da Mesa de Consciência e Ordens
Morte de Verney
53
Figura 1 – Retrato de Luís António Verney
Fonte: Portal Público http://goo.gl/nfrBri (acesso em 22/07/2015)
54
CAPÍTULO II – OS ELEMENTOS DO VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR
Nada aponto que não visse executar a muitos
rapazes; e posso afirmar a V.P que estes
estudos não são dificultosos em si mesmo; o
mau método os pinta dificultosos. Contudo, não
obrigo; aponto somente a utilidade.196
No quadro mais amplo do pensamento filosófico do século XVIII, o
Verdadeiro Método de Estudar pode ser considerado uma obra de vulgarização
dos princípios elementares da chamada “filosofia moderna”. Aspecto, devemos
ressaltar, que contrasta com o impacto causado no ambiente intelectual português
de meados do setecentos.
Muitos trabalhos acadêmicos analisaram as principais correntes filosóficas a
que Verney adere, apontando para a forma como se apropriou das ideias de
filósofos modernos como Descartes, Locke e Newton.197 Nesta tese procurou-se
analisar como Verney, a partir de Roma, articulou estas ideias no final da primeira
metade do século XVIII, visando propor uma reforma do sistema de ensino
português, o que, conforme buscaremos analisar, implicava indiretamente em uma
renovação cultural. O método proposto por Verney envolvia uma série de aspectos
que vão além do seu significado epistemológico e pedagógico. Além de apontar o
atraso do sistema educacional, Verney criticava os valores e costumes que estavam
arraigados na cultura portuguesa desde o século XVI, com a entrada dos jesuítas
em Portugal, pois de acordo com seu argumento, a partir desta época, Portugal
havia entrado em estado de estagnação.198
A seguir serão apresentados alguns elementos que constituem o pensamento
de Verney por meio de uma análise do Verdadeiro Método de Estudar. Serão
abordados alguns aspectos como as condições de publicação da obra e seus
196
VERNEY, Luiz António. Verdadeiro Método de Estudar, Volume I, op. cit., p.274.
Dentre outros autores como Charles Rollin, Cristian Wolff, Samuel Pufendorf, Hugo Grócio. Na
edição do Verdadeiro Método de Estudar utilizada nesta pesquisa, há uma série de notas e
esclarecimentos detalhando as obras e pensadores que fundamentaram as principais ideias de
Verney. A riqueza e erudição dos comentários do editor a tornam uma das referências mais
completas sobre a análise das influências da filosofia moderna no pensamento de Verney. Será
utilizada a abreviatura VM para se referir a esta obra, seguido pelo volume e o número da página.
198
Cf. VERNEY, Luís António de. Respostas as Reflexões que o R.P.M.Fr. Arsenio da Piedade
Capucho fez ao Livro intitulado: Verdadeiro Método de Estudar. Valência: Na oficina de Antonio
Balle, 1748, p.3
197
55
problemas com a censura, as convenções linguísticas em que estava inserida, sua
organização e estrutura, e principalmente, alguns elementos estilísticos, os quais
foram fundamentais para o impacto causado pelo Verdadeiro Método de Estudar
no ambiente intelectual português do setecentos.
A palavra método, conforme
proponho demonstrar, além de um termo chave e fio condutor de toda sua obra, foi
utilizada por Verney para desacreditar o modelo de filosofia praticado nas
universidades e escolas portuguesas da época.
2.1 O contexto e as condições de publicação do “Verdadeiro Método de
Estudar”
Conforme foi apresentado no primeiro capítulo, depois de se estabelecer em
Roma, Verney teve contato com o ambiente intelectual italiano, onde trocou cartas
com filósofos como Ludovico Antonio Muratori e Antonio Genovesi.199 Em carta
escrita de Roma a Ludovico Muratori, datada de 7 de abril de 1745, Verney
demonstra desejo em conhecer as obras do filósofo italiano e solicita que lhe
informasse quantas obras havia escrito, pois segundo ouvira dizer, Muratori havia
publicado algumas obras anonimamente. Em contrapartida, para que pudesse “fazer
este pedido mais à vontade”, Verney se justifica, passando a explicar o que
pretendia com seus escritos:
Na verdade, eu, que acima de tudo tenho tomado a peito ajudar, pela
minha parte, a nossa mocidade, tenho escrito algumas coisas em
vernáculo sobre as melhores Letras, a fim de destruir nos espíritos
muito preconceitos dos nossos, e de a instruir sobre aquilo que ela
deveria saber e, mais ainda, sobre aquilo que não deveria saber.
Com efeito, adiro a esta heresia: nas coisas claras, uma grande
quantidade de regras só serve para sobrecarregar a inteligência e
impedir o progresso da ciência, devendo nós pôr o melhor desta, não
em aprender muito, mas em saber distinguir umas coisas das outras,
199
Muratori e Genovesi são considerados representantes do Iluminismo italiano. Muratori escreveu
sobre temas como Direito e Teologia e trocou cartas com filósofos de destaque, como Leibniz. sobre
as missões jesuíticas no Paraguai, em 1743, obra de referência do Iluminismo católico. Cf. MORAIS,
Regina Célia de Melo. L. A. Muratori e o cristianismo feliz na missão do Paraguay. Rio de
Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2006. Genovesi, por sua vez, manteve estreito contato
com Giovanbattista Vico, adaptou o newtonianismo a uma visão católica, tornando-se professor da
primeira cátedra de economia política da Europa. A sua obra A Instituição da Lógica (1746) foi
selecionada pelos reformistas da Universidade de Coimbra para compor a bibliografia básica do
recém-criado curso de Filosofia. Cf. OLIVEIRA, Aline Brito. Antônio Genovesi na bibliografia oficial
do marquês de pombal. Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História, ANPUH-RJ, 2006.
56
por forma a saber dar o seu a seu dono. É isso que duma maneira
rápida julgo ter procurado alcançar em alguns livros que publiquei.200
Até onde se sabe Verney não havia publicado nenhuma obra até 1745, ano
em que escreveu esta carta para Muratori. Estaria ele se referindo aos manuscritos
do Verdadeiro Método de Estudar? Ou estava se referindo sobre obras ainda
desconhecidas pela historiografia e que teriam sido publicadas também sob
pseudônimo, como foi o caso do Verdadeiro Método de Estudar? Ou, quem sabe,
estava ele se vangloriando perante o ilustre filósofo italiano? O que me parece
revelar neste trecho da carta são os objetivos de Verney, os quais, conforme
verificamos acima, estariam voltados para “ajudar a mocidade a fim de destruir nos
espíritos preconceitos e a instruir sobre aquilo que ela deveria saber e, mais ainda,
sobre aquilo que não deveria saber”. Ao longo desta carta, Verney demonstra uma
preocupação constante em escrever livros que pudessem instruir os estudantes e
facilitar o aprendizado. Em resposta, Muratori faz elogios às intenções de Verney, e
aproveita para criticar o primeiro volume da Real Academia de História;
decepcionado, comenta sobre a carência dos portugueses de “um sábio conselheiro
e de modelo forte, para poderem voltar-se para as melhores coisas” e que pudesse
aconselhar “o uso de métodos mais salutares à tua gente”.201 Entretanto, alertava
para os possíveis obstáculos desta empreitada, pois se dizia preocupado com a
censura em Portugal, sobretudo com “os rigores da Inquisição portuguesa, que
todos italianos lhes tem horror”.202 Sobre a sugestão de Muratori, de se elaborar uma
obra que pudesse “chamar seus compatriotas a melhores estudos”, Verney
responderia em outra carta: “Esforçar-me-ei, quanto a mim caiba, por realizar aquilo
a que me aconselhas.”203
Verney concorda com Muratori sobre suas críticas à Academia Real de
História de Lisboa, pois “aquela Academia tem na sua maior parte como alunos
frades que inconsideradamente se deleitam só com a Filosofia peripatética”, mas
negava que a inquisição portuguesa, conforme pensavam os italianos, fosse um
tribunal cruel. Verney explica a Muratori a questão dos judeus que haviam se
convertido para evitar o exílio, mas que pela tenacidade com que seguiam a crença
200
Carta escrita de Verney a Muratori escrita de Modena, 25 de abril de 1745. In: MORAIS, Regina
Célia de Melo. L. A. Muratori e o cristianismo feliz na missão do Paraguay, op. cit., p.128-129.
201
Carta escrita de Verney a Muratori escrita de Modena, 25 de abril de 1745. Ibid., p.128
202
Carta escrita de Verney a Muratori escrita de Modena, 25 de abril de 1745. Ibid., p.128
203
Carta escrita de Verney a Muratori de Roma em dezembro de 1745. Ibid., p. 134.
57
de seus avós, passaram “a trazer uma coisa na boca e outra no coração”,
propagando o judaísmo. Concordava que os tribunais portugueses eram severos
com a lei, mas que não eram cruéis, e que aqueles que mesmo ainda praticando o
judaísmo, continuavam a dizer que “criam em Cristo”, a esses a Inquisição
portuguesa “mandou apertar o pescoço e queimar depois de mortos”, e pondera:
“[...] que vês tu em tudo isto que não seja justo, equitativo e consentâneo com as
leis?”.204
Verney considerava a Inquisição necessária em Portugal “a fim de conter as
populações e evitar que elas, por superstição ou leviandade de espírito, caiam em
doutrinas absurdas”.205 Este posicionamento favorável à Inquisição afastava Verney
da mentalidade iluminista europeia, mas por outro lado, o aproximava das questões
específicas do contexto português. Este posicionamento também aponta para o que
considerava medidas necessárias “proporcionadas ao estilo de Portugal”. Segundo,
ele, não se tratava de mera crueldade, mas um Tribunal necessário para os
portugueses.
Sobre a censura de livros, Verney explicava que esta não era feita
diretamente pelo tribunal por seu próprio critério, mas sim pelo critério de seus
conselheiros que determinavam se uma obra poderia ou não ser publicada, e isso
iria depender da sorte, pois existiam censores velhos, cheios de preconceitos, mas
existiam aqueles que pensavam e julgavam de outro modo. Contudo, Verney explica
a Muratori que havia tomado medidas para a publicação de suas obras para evitar
os obstáculos da censura portuguesa:
Resolvi mandar imprimir os meus livros não em Portugal, mas noutra
parte; em segundo lugar, porque nada escrevo, nem penso, que não
seja conforme em todos os sentidos com as opiniões da Igreja
Romana. Sei também que a minha gente recebe com suprema
veneração, as decisões romanas, e nunca se atreveria a repreender
aquilo que se sabe defender-se em Roma com tantos aplausos.206
Em outra carta datada de 24 de dezembro de 1746, Verney se desculpa pela
demora em responder a carta de Muratori em função de um “urgente negócio” que o
havia obrigado a sair da cidade e a percorrer diversas províncias, entre elas
204
Carta escrita de Verney a Muratori de Roma em dezembro de 1745. Ibid., p.133 e 134
Carta escrita de Verney a Muratori de Roma em dezembro de 1745. Ibid., p.133.
206
Carta escrita de Verney a Muratori de Roma em dezembro de 1745. Ibid., p.134.
205
58
Nápoles, justamente o local da primeira edição do Verdadeiro Método de Estudar.
O manuscrito da primeira edição foi revisado e submetido às autoridades
eclesiásticas de Nápoles, que não haviam encontrado “nada de ofensivo à Fé
Católica ou aos bons costumes”.207 Uma remessa desta primeira edição fora enviada
a Portugal, e como havia sido impressa fora do reino, foi apreendida e submetida à
censura do Santo Ofício.208 Não se conhece o paradeiro dos pareceres dos
censores que proibiram a sua circulação209, entretanto, no mesmo ano, circularam
edições clandestinas atribuídas a um impressor chamado António Balle, que
indicava Valença como local de impressão.
Esta
edição
vinha
acompanhada
de
uma
carta
dedicatória
“Aos
Reverendíssimos PADRES MESTRES da Venerável Religião da Companhia de
Jesus no Reino e Domínio de Portugal”.210 Esta carta, que não existia na primeira
edição, possui um contraste significativo em relação ao restante das cartas que
compõe a obra.211
A primeira edição do Verdadeiro Método de Estudar, impressa em uma
oficina de Nápoles, em 1746, é constituída por dezesseis cartas distribuídas em dois
volumes, cada uma abordando diferentes áreas do conhecimento. A edição utilizada
nesta pesquisa, que segue basicamente a mesma estrutura da primeira edição, é
dividida em 5 volumes.212
O volume I, intitulado Estudos Linguísticos, contém a Cartas I (Introdução);
Carta II (Língua Portuguesa); Carta III (Gramática Latina) e Carta IV (Latinidade).
207
Cf. ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p.172.
MARTINS, Teresa Payan. Verdadeiro Método de Estudar. Revista do IEEE América Latina , v. 9,
p. 221, 1997. Disponível em: http://goo.gl/2SOLg0 (acesso em 10/02/2013).
209
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p.173.
210
VM, Volume I, p.1.
211
Por meio de um estudo comparativo dos filigranas e dos caracteres tipográficos que marcam o
papel das duas primeiras edições, Teresa Payan considera que a primeira e a segunda edição
identificadas por Banha de Andrade são na realidade apenas uma, a única diferença entre elas são
as folhas que antecedem a obra, pois a edição indicada por Nápoles não contem a Carta Dedicatória.
Desta primeira edição conhecem-se apenas dois exemplares; o da Biblioteca de Madrid (só contém o
segundo tomo) e o da Biblioteca Nacional de Nápoles. MARTINS, Teresa Payan. Verdadeiro Método
de Estudar, op. cit., p.15.
212
Nesta pesquisa utilizamos a edição organizada pelo professor Salgado Junior que segue
basicamente a mesma divisão utilizada na primeira publicação do Verdadeiro Método, com as
seguintes alterações: a carta I, que na primeira edição trata da língua portuguesa, corresponde à
Carta Dedicatória aos jesuítas; na primeira edição as Cartas V e VI tratam da retórica, na edição do
Professor Salgado Junior o tema da retórica ficou concentrado na Carta VI. A edição do Professor
Salgado Junior é dividida em 5 volumes, enquanto que a primeira edição do Verdadeiro Método de
Estudar está dividida em dois tomos: o primeiro tomo constituído pelas cartas I até a carta VIII e o
segundo tomo das cartas IX a carta XVI.
208
59
O volume II, intitulado Estudos Literários, a Carta V (Línguas Orientais);
Carta VI (Retórica) e Carta VII (Poesia).
O volume III, Estudos Filosóficos, a Carta VIII (Lógica); Carta IX
(Metafísica); Carta X (Física) e a Carta XI (Ética).
O volume IV, Estudos Médicos, Jurídicos e Teológicos, a Carta XII
(Medicina); Carta XIII (Direito Civil) e Carta XIV (Teologia).
E por fim, o volume V, intitulado Estudos Canônicos, Regulamentação –
Sinopse, constituído pela Carta XV (Direito Canônico); Carta XVI (Regulamentação
geral dos Estudos).
Figura 2 – Capa da obra Verdadeiro Método de Estudar
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, http://purl.pt/118 (acesso em 22/07/2015)
60
Apresentando um conjunto de conhecimentos muito amplo, as cartas
abordam a maioria dos temas filosóficos discutidos no século XVIII, bem como as
disciplinas vigentes no sistema de ensino da época.
As cartas são apresentadas pelo editor como sendo “de um autor moderno
que teriam circulado manuscritas até que chegasse a suas mãos” e que, pela
utilidade das mesmas, resolveu imprimi-las. Segundo o impressor, as cartas teriam
surgido a pedido de um “homem mui douto” da Universidade de Coimbra que pediu
a um religioso italiano, seu amigo, que vivia em Lisboa, “que lhe desse algumas
instruções, em todo o gênero de estudos”.213 O editor ainda justifica que resolveu
publicar as cartas à revelia do autor, mas que procurou ocultar o nome dos
correspondentes e de “algumas pessoas, que nelas se nomeavam” para “não revelar
os segredos das correspondências particulares”. E conclui que as cartas “encadeiam
tão bem umas com as outras, que se podem chamar um método completo de
estudos” (grifo nosso) e que podem “servir para todos; mas especialmente são
proporcionadas ao estilo de Portugal, pois este era o fim do autor”.214
A obra é dedicada aos jesuítas, contrastando com as duras críticas que são
feitas aos padres da Companhia ao longo obra, o que pode indicar certa ironia, ou
talvez, estratégia de publicação. Verney parecia ter consciência deste fato, conforme
a seguinte passagem:
Mas, porque poderá ler esta carta a algum ignorante ou malévolo,
que entenda que eu, dizendo o que me parece dos estudos, com isto
digo mal da Religião da Companhia de Jesus, que neste Reino é a
que principalmente ensina a Mocidade, devo declarar que não é esse
meu ânimo. Eu venero esta Religião doutíssima, por agradecimento
e por justiça. Por agradecimento, porque esse pouco que sei, eles
mo ensinaram, e, ainda que nas escolas não aprendesse tudo,
aprendi-o conversando com eles particularmente, e lendo os seus
autores. 215
De fato, como foi apresentado no primeiro capítulo, Verney estudou no
colégio jesuíta de Santo Antão e também recebeu apoio e indicações do jesuíta P.
Carbone para que recebesse a benesse do arcediagado de Évora. Além das críticas
213
VM, Volume I, p.2. Embora não existam provas definitivas sobre a autoria da carta de
apresentação do Verdadeiro Método de Estudar, quase não existem dúvidas de que foi escrita por
Verney. Há fortes indícios, o estilo e a ortografia adotada na carta de apresentação são os mesmo
apresentados ao longo da obra.
214
Ibid., p.2.
215
VM, Volume I, p. 21-22.
61
feitas por Verney ao sistema de ensino ao qual havia experimentado em sua
juventude, é provável que tenha ocorrido algo que aparentemente abalou as
relações entre Verney e os jesuítas alguns anos antes de 1746, data de publicação
do Verdadeiro Método de Estudar. Sem sabermos as razões que o levou a um
confronto aberto aos jesuítas, podemos constatar que a obra conseguiu chamar a
atenção dos letrados portugueses. Silva Dias é bastante enfático em relação a isso:
O Verdadeiro Método foi, acima de tudo, um despertador. Produziu o
choque psicológico das massas cultas, trazendo para a liça pública,
em corpo inteiro, ideias e questões anteriormente confinadas ao
murmúrio dos cenáculos ou à meia voz dos livros. Desempenhou em
Portugal o mesmo papel que o Discurso cartesiano coubera em
França, abrindo as hostilidades finais entre a cultura moderna e a
<<grave filosofia>> monacal>> de que falava António Vieira. 216
Utilizando o pseudônimo de “Padre Barbadinho da Congregação de Itália”,
Verney se coloca no lugar de um estrangeiro que se desculpa por “dar regras em
casa alheia”, mas que ousa inclusive a propor mudanças ortográficas em uma língua
que não é sua língua materna, o que revela o traço irônico e provocativo de sua
obra. Esta ousadia não passaria impune por seus críticos. Segundo Verney, seu
objetivo era servir à glória do reino e atingir principalmente um público formado pela
“mocidade” e de formadores de opinião:
Se os que a lerem, tiverem docilidade e bons princípios (sem isto é
tempo perdido), neste caso, com o que digo podem aproveitar-se
alguma coisa, e, com o tempo, adiantar-se muito, instruírem novos
discípulos, e terem a glória de ter feito esse serviço à República.217
Outro detalhe importante sobre as condições de publicação do Verdadeiro
Método de Estudar diz respeito à identidade do impressor, conforme analisa Teresa
Payan. Havia existido um impressor valenciano chamado Antonio Balle, mas que
estaria em atividade apenas entre os anos de 1721 a 1740 e que publicava as obras
tendo como local Valencia e nunca “Valensa”, como consta nas edições do
Verdadeiro Método de Estudar.218 Segundo Teresa Payan, Antonio Balle teria sido
o impressor português José da Silva da Natividade, que declarou perante o tribunal
216
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p. 204.
VM, Volume IV, p. 201
218
MARTINS, Teresa Payan. Verdadeiro Método de Estudar, op. cit., p.14.
217
62
da Inquisição que fora o responsável pela impressão clandestina de obras
relacionadas à polêmica do Verdadeiro Método de Estudar, como o Diálogo
Jocosério e Grosseria da Iluminação, obras dadas como impressas em Valensa,
por Antonio Balle, em 1751 e 1752 respectivamente.
Em 1751 é publicada outra edição clandestina do Verdadeiro Método de
Estudar, estampada no Convento de Santo Elói, indicando o local “Valensa”, na
oficina de António Balle; porém, alterou-se a data de impressão para 1747.219 O
responsável pela publicação, Padre Doutor Manuel de Santa Marta Teixeira, ao ser
inquirido pelo tribunal afirmou que:
[...] mandara dar ao prelo sem as ditas licenças os tomos do Novo
Método de Estudar, que lhe parece seria o número de oitocentos, a
qual impressão mandou fazer por ver a grande estimação que tinham
nesta Corte e que os Estrangeiros vendiam alguns por alto preço e
se querer, por este modo, utilizar do lucro e produto deles, sem que
tivesse outro algum fim mais do que o que acaba de dizer. 220
O padre se defendeu argumentando que o interesse comercial da obra
prevaleceu sobre as ideias e os princípios defendidos por ela, o que indica que havia
uma boa procura pelo Verdadeiro Método de Estudar no mercado de livros de
Portugal. Aspecto, consideramos aqui, importante para se pensar a circulação de
livros neste contexto, sobretudo para o caso do Verdadeiro Método de Estudar.
Em Abril de 1753 Manuel Soares Vivas declarou perante os inquisidores que
imprimiu, também clandestinamente, alguns folhetos a contestar o Verdadeiro
Método de Estudar, por ordem do dono da oficina, o próprio Padre Doutor Manuel
de Santa Marta Teixeira. Provavelmente, este padre foi responsável pela circulação
clandestina de uma série de impressos anônimos que alimentaram as polêmicas que
sucederiam em torno do novo método proposto por Verney. Isso indica que o
controle do impresso por parte do Santo Ofício não era absoluto e oferecia brechas
aos editores, havendo margens para a uma rede de publicação de obras proibidas.
O sucesso editorial do Verdadeiro Método de Estudar corrobora esta
afirmação e os próprios jesuítas, os maiores críticos de Verney, utilizaram deste
expediente para publicar suas críticas. Como é o caso das Reflexões Apologéticas
219
220
Ibid., p.18.
Ibid., p.18.
63
do jesuíta José de Araújo, um dos principais críticos de Verney, cuja obra foi
publicada sob o pseudônimo de Padre Arsenio da Piedade em 1748, também
editada por Antonio Balle e impressa em “Valensa”.
Na tabela abaixo são apresentadas algumas obras relacionadas à polêmica
do Verdadeiro Método de Estudar que foram analisadas neste trabalho, contendo
o título, ano de publicação, autoria e, para a maioria dos casos, o pseudônimo
utilizado:
TÍTULO DA OBRA
ANO
PUBLICAÇÃO
AUTOR
PSEUDÔNIMO
Verdadeiro Método de Estudar
1746
Luís Antônio Verney
Padre Barbadinho
da Congregação
de Itália
Reflexões Apologéticas a obra
entitulada Verdadeiro Método de
221
Estudar
1748
José de Araújo (padre
da Companhia de
Jesus)
Frei Arsênio da
Piedade
Respostas as Reflexões que o
R.P.M.Fr. Arsênio da Piedade
Capucho fez ao Livro intitulado:
Verdadeiro Método de Estudar
1748
Luís Antônio Verney
anônimo
Carta de um Filólogo de Espanha a
outro de Lisboa a cerca de certos
elogios lapidares
1749
Luís Antônio Verney
anônimo
Conversação Familiar e Exame
Crítico, em que se mostra reprovado
o método de estudar, que com o
título de verdadeiro, e aditamento de
útil à República e à Igreja, e
proporcionado ao estilo de Portugal
expoz em dezesseis cartas o R.P
Frey ****Barbadinho da
Congregação de Itália: e também
frívola a resposta do mesmo as
sólidas reflexões do P.Frey Arsênio
da Piedade, Religioso Capucho
1750
José de Araújo (padre
da Companhia de
Jesus, foi professor do
Colégio de Santo Antão)
221
222
Severino de
Modesto
De acordo com António Alberto Banha de Andrade, a obra Reflexões Apologéticas teve 3 edições,
sendo a 3ª impressa na oficina de Antonio Balle. Cf. ANDRADE, António Alberto Banha de. Verney e
a Cultura de seu tempo, op. cit., p.456
222
De acordo com Silva Dias, a Conversação Familiar foi escrita pelo jesuíta José de Araújo, o
mesmo que escreveu as Reflexões Apologéticas. DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a
Cultura Européia, op. cit., p. 205.
64
Parecer do doutor Apolônio
Philomuso Lisboense, dirigido a um
grande prelado do Reino de
Portugal, a cerca de um papel
intitulado Retrato de Mortecor, seu
autor P. Alethophilo Candido
Lacerda
Retrato de Mortecor
223
Iluminação Apologética do Retrato
de Mortecor: em que aparecem com
as mais vivas cores os erros do
autor do novo método, e seu
apologista, os quais pretendeu
defender um anônimo, por alcunha,
o Doutor Apolonio Philomuso, e se
lhe mostrão os muitos , que por
malicia, ou por ignorância cometeu.
2 tomos
Grosseria da Iluminiacao
Apologética, pelo que respeita a
uma página da segunda parte, em
que seu autor Teofilo Cardoso da
Silveira, presumio criticar o Dialogo
Jocoserio; notada e descoberta por
fulano indiferente
Doutor Apolônio
Philomuso
Lisboense
1750
Luís Antônio Verney
1751
Francisco Duarte (padre
da Companhia de
Jesus)
Aletofilo Cândido
de Lacerda
1751
Francisco Duarte
Theophilo
Cardoso da
Sylveira
Antônio Isidoro da
Nobrega (médico
formado pela
Universidade de
Coimbra e Secretário da
Sociedade MedicoLusitana)
anônimo
1752
Advertências Criticas e Apologéticas
Sobre o juízo, que nas matérias do
B. Raymundo Lullo formou o D.
Apolonio Philomuso, e comunicou ao
público em resposta ao Retrato de
Morte-Cor, que contra o autor do
Verdadeiro Método de Estudar
escreve o Reverendo Doutor
Alethophilo Candido de Lacerda.
Frei Manuel do Cenáculo. 1752 Frei
Manuel do Cenáculo
1752
Frei Manuel do
Cenáculo
não
Reposta compulsória à Carta
Exortatoria, para que se retrate o
seu autor das calunias que proferiu
contra os Reverendíssimos Padres
da Companhia de Jesus da
província de Portugal. E lha dedica
Francisco de Pina, e de Mello, moço
1755
Francisco de Pina, e de
Mello (poeta e escritor
português, estudou
filosofia na Universidade
de Coimbra e publicou
diversas obras ao longo
de sua vida, a maioria
não
223
De acordo com António Alberto Banha de Andrade, o Retrato de Mortecor, teve 2 edições, ambas
publicadas em Sevilha pela Imprenta de António Bucaferro. Cf. ANDRADE, António Alberto Banha
de. Verney e a Cultura de seu tempo. op. cit., p. 456.
65
fidalgo da Casa Real , e académico
da Academia Real da Historia
Portuguesa
poemas)
Defensa Del Barbadino En Obsequio
De La Verdad: Su Autor Don Joseph
Maymó Y Ribes, Do&Or En Sagrada
Theologia , Y Leyes, Abogado De
Los Reales Confejos , Y Del Colegio
En Esta Corte.
1758
Joseph Maymó Y
224
Ribes (advogado
espanho, publicou uma
tradução para o
espanhol do Verdadeiro
Método 1760)
não
Historia del famoso predicador Frey
Gerundio de Campazas
1758
José Francisco de Isla
(mais conhecido como
padre Isla, foi um jesuíta
espanhol, estudou
filosofia e teologia na
Universidade de
Salamanca, escreveu
varias obras de cunho
satírico, sendo a mais
famosa intitulada Fray
Gerundio de
Campazas que foi
proibida pela Inquisição)
Francisco Lobón
de Salazar
Conforme pode se observar a partir da tabela apresentada, o Verdadeiro
Método de Estudar provocou um debate que se prolongou por bastante tempo e
ultrapassou as fronteiras de Portugal, tendo repercussão em outras regiões da
Europa e até mesmo na América.225 A tradução do Verdadeiro Método de Estudar
para o espanhol foi feita por Joseph Maymó y Ribes em 1760, autor que, como
veremos, entrou em polêmica com outros espanhóis na defesa do Verdadeiro
Método de Estudar. Verney conseguiu chamar a atenção ao defender a
necessidade de toda uma renovação cultural e, de certa forma, indicava ter
consciência deste fato:
[...] isto de emendar o mundo e, principalmente, o querer arrancar
certas opiniões do ânimo de homens envelhecidos nelas e
consagradas já por um costume de que não há memória, é negócio
que excede as forças de um só homem; e principalmente de um
homem de tão pouco merecimento e autoridade como eu.226
224
Joseph Maymó Y Ribes também publicou uma tradução do Verdadeiro Método para o espanhol no
ano de 1760. Ibid., p. 82.
225
Cf. ANDRADE, António Alberto Banha de. Verney e a projeção de sua obra. Portugal: Instituto
de Cultura Portuguesa, 1980.
226
VM, Volume I, p. 19
66
Apesar de considerar todas as dificuldades, Verney seguiu firme na ideia de
propor uma mudança radical dos métodos e dos princípios adotados no sistema
educacional português que, até então, seguiam as diretrizes da escolástica.
A historiografia vem discutindo o que Verney “disse” acerca das ideias de
alguns pensadores da época moderna, como Descartes, Newton, Locke227, contudo,
propomos analisar esta questão tendo em vista o que estava fazendo Verney ao
escrever o Verdadeiro Método de Estudar, conforme sugerido por Skinner na
seguinte passagem:
[...] interpretar não apenas o significado do que foi dito, mas também
a intenção que o autor em questão pode ter dito ao dizer aquilo que
disse. Um estudo que se concentre exclusivamente naquilo que um
autor disse acerca de uma dada doutrina, não apenas será
inadequado, como também, em alguns casos, será a chave errada
para interpretar o que o autor em questão pretendia dizer.228
Aderindo as ideias modernas, Verney procurava desacreditar o método
adotado nas escolas portuguesas e, em alguns casos, exagerou na superioridade do
modelo o qual defendia e que considerava “verdadeiro”. Partindo desta hipótese,
surgem algumas questões importantes, como: por que Verney escreveu o
Verdadeiro Método de Estudar no estilo epistolar? Por que utilizou de um
determinado vocabulário, carregado de metáforas e ironias?
Na perspectiva de um “ato de comunicação intencional”, para utilizar uma
expressão utilizada por Skinner, o Verdadeiro Método de Estudar faria parte de um
“plano ou desígnio para criar certo tipo de obra”, como “perseguindo um propósito
em particular”.229 Assim, o Verdadeiro Método de Estudar estaria inserido em uma
ação, com vistas a cumprir com um determinado objetivo. E aqui, seguindo as
diretrizes da abordagem contextualista, cabe perguntar novamente: o que estava
fazendo Verney ao escrever o Verdadeiro Método de Estudar?
227
Em minha dissertação de mestrado, apontei como Verney chega a transcrever trechos longos da
obra de Locke. Cf. CARVALHO JR, Eduardo Teixeira de. A questão do iluminismo em Portugal:
uma análise da obra de Verney. Dissertação de Mestrado. UFPR, 2005.
228
Cf. SKINNER, Quentin. Significação e compreensão na história das ideias. (In) Visões da política,
op. cit., p.113. Ainda ressaltamos a seguinte passagem bastante esclarecedora sobre esta proposta
metodológica: “Estudar o que os pensadores do passado disseram sobre os temas canônicos da
história das ideias representa apenas uma das duas tarefas hermenêuticas, ambas indispensáveis se
o nosso objetivo é compreender, em termos históricos, aquilo que escreveram. Para além de tentar
descortinar o significado do que eles disseram, devemos ao mesmo tempo procurar compreender o
que é que eles queriam dar a entender com aquilo que estavam a afirmar”. Ibid, p.117
229
Ibid., p.139.
67
Além disso, segundo Skinner, é preciso ainda compreender não apenas o
significado das ideias que constituem a obra, mas também a “força ilocutória” 230 com
que são “ditas”, ou seja, considerar os recursos disponíveis para cumprir com o
objetivo que estava por trás de seu “ato de comunicação”. O que no nosso caso
pode significar a forma irônica e satírica com que Verney procura chamar a atenção
para o que considerava o “atraso”, bem como a “inutilidade” do método de ensino
utilizado nas escolas portuguesas. Fazendo uso de determinadas convenções
linguísticas, Verney estaria desempenhando um “ato ilocutório” ao escrever o
Verdadeiro Método de Estudar, utilizando dos recursos textuais de sua época de
tal maneira que pudesse atingir o efeito pretendido. A seguir serão apresentados
alguns elementos característicos do discurso verneyano e a maneira como estes
foram importantes para atingir seus objetivos.
2.2 Aspectos estilísticos da obra: gênero epistolar satírico?
A sátira não deve repreender senão o que
verdadeiramente é vicioso, para instruir os homens do
que devem fugir.231
O estilo irônico do Verdadeiro Método de Estudar levou um de seus críticos
a qualificar esta obra como “uma sátira descomedida”.232 Mesmo tratando de temas
importantes como a Religião, Verney ridicularizava seus críticos, utilizando de
expressões populares. Por exemplo, quando comenta sobre os argumentos de seus
adversários, afirma que: “são tais que nos obrigam a rir”. 233 Ao tratar sobre a
Medicina, Verney ressalta que a situação portuguesa tem “uma aparência de
comédia” e o desconhecimento da Anatomia era tal que tanto fazia eleger para
Cirurgião-mor um médico ou um sapateiro.234 O estilo irônico e provocativo usado
230
A força ilocutória é a forma específica com que fazemos uso da linguagem, utilizando-se por
exemplo de ironia, ênfase, exagero. Os atos ilocutórios correspondem a um determinado uso da
linguagem com finalidades específicas, como por exemplo para prometer, alertar, informar. Assim,
quando entendemos a força ilocutória de uma afirmação isso significa compreender aquilo que o seu
autor estava a fazer ao exprimir-se daquela maneira. Ibid., p.139.
231
VM, volume II, p.300.
232
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas a obra intitulada Verdadeiro Método de Estudar.
Valência: Na oficina de Antonio Balle, 1748, p.2.
233
VM, Volume IV, p.252.
234
Ibid., p.22.
68
por Verney para escrever o Verdadeiro Método de Estudar contribuiu
significativamente para a enorme repercussão de sua obra. 235
Notamos que no ambiente intelectual português do setecentos parece haver
uma preferência pelo gênero epistolar em relação ao formato de tratados. Além
disso, os tratados filosóficos geralmente eram escritos em latim. Os iluministas
portugueses procuravam tornar mais acessíveis conhecimentos que estavam se
popularizando nos principais centros da Europa, mas que ainda não haviam
penetrado nos currículos das escolas e universidades portuguesas. Respeitando
algumas diferenças de estilo, as obras mais importantes do Iluminismo português
utilizaram do formato de “conselhos” na produção de seus textos, o que aponta para
o seu caráter didático e pedagógico. Seguindo as tendências do século XVIII,
visavam levar as Luzes da razão aos portugueses, como é o caso dos
Apontamentos para a educação de hum menino nobre de Martinho de Mendonça
de Pina e Proença (1734) e as Cartas para a Educação da Mocidade (1760) de
António Nunes Ribeiro Sanches, textos que também serão apresentados ao longo
deste trabalho.236
O estilo de texto no formato de “conselhos”, além de um recurso literário que
cativa e envolve o leitor, tornando a leitura mais prazerosa, possibilitava ao autor
mais liberdade para expor as teorias para serem facilmente compreendidas. No caso
do Verdadeiro Método de Estudar, Verney cria um diálogo em que ele atende a
solicitação de um amigo para lhe dar conselhos sobre praticamente todas as
matérias. Devido à amplitude das cartas, Verney demonstrava estar ciente dos
riscos desta tarefa: “Mas V.P., que me obriga a falar em todas as matérias, deve
estar preparado para ouvir coisas boas, medíocres, e algumas mal ditas. E assim,
agradeça-me somente a boa vontade e prontidão com que obedeço ao que
manda”.237
235
O aspecto irônico e satírico da obra de Verney já foi analisado por Patrícia Domingos Woolley
Cardoso. A sua análise reforça nosso argumento de que o Verdadeiro Método de Estudar de
Verney não significou simplesmente uma discussão pedagógica, mas possuía uma importante
dimensão política que é evidenciada na abordagem da autora. Cf.CARDOSO, Patrícia Domingos
Woolley Cardoso. Os Jesuítas diante de ‘O Verdadeiro Método de Estudar’:conflitos políticos e
de idéias no setecentos português (C. 1740-1760). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
Fluminense, 2004.
236
Na mesma linha pedagógica foram publicados os dez volumes da Recreação Filosófica
publicados entre 1751-1800 de Teodoro de Almeida.
237
VM, volume II, p.337.
69
Ao longo do século XVIII algumas obras fizeram uso do recurso epistolar para
criar situações fictícias com o objetivo de discutir ideias subversivas e garantir o
anonimato. Em 1721, Montesquieu havia publicado suas Cartas Persas, obra que
apresentava as cartas de um persa que passara a viver na França, o que lhe
permitiu fazer uma crítica à sociedade francesa de sua época. Neste caso, seria
pertinente questionar sobre o enquadramento do Verdadeiro Método de Estudar
nas convenções da epistolografia portuguesa do século XVIII. Torna-se importante
analisar os meios discursivos disponíveis em determinada época histórica, cuja
eficácia persuasiva pode variar de acordo com as diferentes circunstâncias de sua
aplicação.238 Um texto literário, um poema, uma ata, ou um despacho burocrático
constituem modalidades de uso da escrita determinadas por convenções
históricas.239 Neste sentido, a capacidade de criação de cada autor está mais ou
menos limitada dentro de práticas discursivas localizáveis na história, como poderia
ser o caso do gênero epistolar utilizado por Verney.
De forma geral, as convenções eram orientadas de acordo com a
circunstância e sua finalidade. Na tradição epistolar havia dois tipos de
correspondências principais, as familiares e as negociais.240 A familiar trata de
assuntos particulares, já a negocial, de assuntos de interesse geral, admitindo a
erudição, a elocução ornada e a polêmica.241 Entretanto, do ponto de vista histórico,
“as apropriações fazem o mesmo discurso mudar de estatuto, na medida em que
produzem valores-de-uso distintos da finalidade inicial”.242
Portanto, ressalta-se
também o caráter mesclado refratário à classificação como “carta” ou como
“epístola”. Era muito comum a prática de se publicar correspondências que a priori
poderiam ser identificadas como cartas, mas que foram editadas na forma de
livros.243 As cartas sugerem uma comunicação entre um remetente e um destinatário
de forma privada, enquanto a epístola “não é individualizada, pois dirige-se à
238
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001,
p.11-16.
239
Ibid., p.14.
240
Cf. HANSEN, J.A, Correspondência de António Vieira. Discurso, São Paulo, n. 31, p.261, 2000.
241
Na resposta a um de seus críticos, Verney da a entender que considera o VM como cartas
familiares. Cf. VERNEY, Luís António de. Respostas as Reflexões que o R.P.M.Fr. Arsenio da
Piedade Capucho fez ao Livro intitulado: Verdadeiro Método de Estudar. op. cit., p.5.
242
HANSEN, J.A, Correspondência de António Vieira, op. cit., p.261.
243
Ibid., p.261-262.
70
coletividade de um público conhecido ou é genericamente pública, tratando de
questões teóricas e doutrinárias de modo dissertativo”.244
A tradição epistolar entre os séculos XVI e XVII seguia o modelo herdado da
Antiguidade, sobretudo dos autores latinos. Verney recomenda Cícero, sobretudo as
“Cartas de Cícero, a que chamam familiares” por serem “breves e claras, de sorte
que não enfadam o estudante, porque são compostas naquele estilo familiar que
todos entendem”.245
Em 1745 Francisco José Freire, autor que foi favorável a Verney nas
polêmicas do Verdadeiro Método de Estudar246, publicou a obra O Secretário
Portuguez Compendiosamente Instruído no modo de Escrever Cartas. Tratavase de um manual que abordava a forma correta de escrever em todos os estilos de
cartas. Advertia que na prática de dar conselho deveria haver prudência para evitar
a ambiguidade entre amor e ódio247. Francisco José Freire alertava sobre a
duplicidade do ato de dar conselho: podemos dar um conselho porque se quer o
bem, porque queremos o bem de nossos amigos, porque queremos sua “fama”, mas
também porque, em determinada circunstância, é necessário advertir sobre algo que
necessita uma correção.
O texto escrito por D. Luís da Cunha, intitulado Carta escrita de Paris ao
Sereníssimo Príncipe D. José para quando Subisse ao trono (1747), mais
conhecido como Testamento Político, é bastante emblemático. D. Luís da Cunha
aconselhava o futuro rei D. José uma série de medidas que considerava importantes
para o futuro de Portugal. Dentre os conselhos de D. Luís da Cunha, os quais serão
aprofundados no quinto capítulo, podemos citar a necessidade de reduzir o poder e
os privilégios da igreja. Apontava para a questão da improdutividade das terras e o
244
Ibid., p.261-262.
VM, Volume I, p.220.
246
Francisco José Freire escreveu em 1750, sob o pseudônimo de cândido Lusitano, a Ilustracao
Crítica a uma carta que um filósofo de Espanha escreveu a outro de Lisboa, acerca de certos
elogios lapidares, obra que foi favorável aos argumentos de Verney, sobretudo em relação ao mau
gosto dos portugueses no uso da língua e da eloquência. Cf. ANDRADE, António Alberto de. A
Reforma Pombalina dos Estudos Secundários (1759-1771). Volume I. Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1981.
247
CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. Aqui se abre hum largo theatro ao engenho do secretário
principiante: a escrita de cartas segundo Francisco José Freire (Portugal – séc. XVIII). História
Regional, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 24, jan./jun, 2010.
245
71
problema do despovoamento do reino com a fuga dos cristãos-novos e judeus
confessos diante das perseguições da Inquisição. 248
Verney também procura deixar claro sua intenção em dar conselhos para
promover uma mudança:
Meu amigo e senhor: Nesta última carta que recebo de V.P., entre
várias coisas que me propõe, é a principal o desejo que tem de que
eu lhe diga o meu parecer sobre o método de estudos deste Reino; e
lhe diga seriamente se me parece raciocinável para formar homens
que sejam úteis para a República e Religião; ou coisa se pode
mudar, para conseguir o dito intento. Além disto, quer também que
eu lhe dê alguma ideia dos estudos das outras Nações que eu tenho
visto. 249 (grifo nosso).
Como é possível observar neste trecho inicial do Verdadeiro Método de
Estudar, Verney cria um ato de correspondência entre um remetente e um
destinatário fictício. Abaixo apresentamos um trecho da apresentação da obra:
Saem à luz, Reverendíssimos Padres, as cartas de um autor
moderno, as quais até agora correram manuscritas por algumas
mãos; mas, chegando às minhas, e conhecendo eu que podiam
utilizar a muitos, me resolvi imprimi-las. O argumento delas é este:
Certo Religioso da Universidade de Coimbra, homem mui douto,
como mostra nas suas cartas, pediu a um Religioso Italiano, seu
amigo, que vivia em Lisboa, que lhe desse algumas instruções, em
todo o gênero de estudos, o que dito Barbadinho executa em
algumas cartas, explicando-lhe, em cada uma, o que lhe parece, e
acomodando tudo ao estilo de Portugal. Este autor escreveu-as sem
ao menos suspeitar que se poderiam imprimir, como consta de
alguns períodos destas, que não imprimi, e de outras que conservo,
em que declara com mais individuação o motivo desta
correspondência, e explica várias coisas que aqui não se acham.
Onde, para consolar o dito autor, que não sei se ainda vive, e fazer o
que desejava, não imprimi senão as que me pareceram necessárias;
e ainda nestas ocultei os nomes dos correspondentes e de algumas
pessoas, que nelas se nomeavam, parecendo-me justo e devido não
revelar
os
segredos
das
correspondências
particulares,
principalmente quando podia conseguir o fim de utilizar o Público
sem prejuízo de terceiro. As cartas encadeiam tão bem umas com
outras, que se podem chamar um método completo de estudos. 250
(grifo nosso).
248
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I. antes
do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu embaixador às
cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão Regia, 1820, p.51-54
249
VM, Volume I, p.17.
250
Ibid., p. 2.
72
Verney forjou uma situação para justificar a publicação das cartas. Podemos
apontar para uma ironia no fato de um “homem mui douto” da Universidade de
Coimbra solicitar instruções a um religioso italiano. Esta situação poderia sugerir que
os doutores de Coimbra estavam desatualizados e solicitavam conselhos. Verney se
colocava no lugar de um “Barbadinho italiano” que respondia a uma carta enviada
por seu amigo português, que lhe solicitava um parecer sobre o método de estudo
utilizado em Portugal e alguma notícia sobre o método praticado nas outras nações
europeias.
A opção por escrever no estilo epistolar, ironicamente, seguiu uma tradição
bastante disseminada dentro da Companhia de Jesus, que seguia os preceitos de
“simplicidade casual”, ditados no século XVI por Loyola.251 A “simplicidade casual”
reflete uma técnica gramatical e retórica que proporcionava um caráter humilde e
natural. Por escrever em primeira pessoa e se colocar no lugar de alguém que dá
conselhos, o estilo epistolar possibilitava discutir ideias como se fosse uma
conversação entre correspondentes. Além disso, no caso de Verney, o compromisso
do destinatário em não revelar ou publicar o conteúdo das cartas, neste momento
empregado como uma estratégia estilística, exime o autor de responsabilidade,
dando-lhe mais liberdade.
De certa forma, na apresentação do Verdadeiro Método de Estudar é
possível perceber alguns elementos que costumam ser utilizados em uma
dedicatória.252 Pode-se observar o objetivo de Verney em captar a simpatia dos
jesuítas e, por meio de saudações e elogios, receber louvor da causa pretendida:
Quem tem dado mais e mais ilustres escritores a esse Reino que a
Companhia? Quem tem promovido com mais empenho os estudos,
que os seus mestres? Onde florescem as letras com mais vigor, que
nos seus colégios? Que homem douto tem havido em Portugal, que
não bebesse os primeiros elementos nas escolas dessa Religião? 253
A parte de elogios segue ainda citando as virtudes da Companhia não só no
que se refere ao espírito missionário, mas sua importância para todo o Reino
251
HANSEN, João Adolfo. Correspondência de António Vieira: (1646-1694), op. cit., p.276.
No contexto da cultura política do Antigo Regime, as dedicatórias eram formas de se ganhar
prestígio, seus autores buscavam projetar suas obras em pessoas de importância social, como reis e
príncipes. A prática da dedicatória costumava seguir uma formula conhecida. DENIPOTI, Claudio;
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Sobre livros e dedicatórias: D. João e a Casa Literária do Arco
do Cego (1799-1801). História Unisinos, São Leopoldo, vol. 17, n.3, p.261, 2013.
253
VM, Volume I, p.4
252
73
português, utilizando-se de uma série de adjetivos: continência, moderação,
mansidão, afabilidade, respeito, magnificência, devoção. Reitera ainda funções
delegadas pelos monarcas, como a direção de suas consciências na condição de
confessores.
Os elogios de Verney aos jesuítas poderiam significar uma ironia, pois estes
receberam críticas muito severas e chegaram até mesmo a serem ridicularizados em
alguns momentos. Por isso o Verdadeiro Método de Estudar provocou diversas
reações, sobretudo a ira de alguns jesuítas, que apontaram para a falta de modéstia
e humildade nas suas críticas. O padre jesuíta Francisco Duarte, ao justificar a
publicação de sua obra de crítica ao Verdadeiro Método de Estudar, intitulada
Iluminação Apologética, declarou: “O fim, para que a divulgo, além do que
entenderás da lição dela, é para ensinar ao Barbadinho o estilo modesto de
criticar”.254
A posição representada pelos autores, na tradição epistolar deste período,
bem como no campo editorial e de circulação do impresso, dependia de seu lugar na
rede de relações sociais, que muitas vezes determinava seu campo de ação. Verney
se identifica como um religioso italiano, um Capuchinho da Ordem de São Francisco,
o Barbadinho, representante de uma Ordem religiosa considerada menor diante da
“importância” e “relevância” da Companhia de Jesus no reino português. O caráter
humilde do remetente o posiciona como um “sujeito de pouca doutrina” 255 e um
religioso de uma ordem na qual “florescem pouco os estudos”.256 Porém a ousadia e
os conhecimentos apresentados nas cartas do Verdadeiro Método de Estudar
contrastavam com o pretenso lugar social de sua produção (e isso não passou
despercebido), por isso o Barbadinho insistia para que seu interlocutor não
publicasse as cartas: “Que seria de mim se esses seus Coimbricenses ouvissem
dizer que um Religioso Capuchinho punha a boca nas Leis?”.257 Indiretamente,
Verney criticava os valores da cultura portuguesa. O que pensariam os “homens
doutos” se “chegassem a saber de quem eram as cartas [...]?”; caso soubessem que
se tratava de um simples capuchinho poderiam desprezar as cartas “sem terem a
paciência de examinar as minhas razões, por se persuadirem que certos acidentes
254
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética. Sevilha, Imprensa de Antonio Buccaferro, 1749,
p.4.
255
VM, Volume I, p.21
256
Ibid., p.19
257
VM, Volume IV, p.111
74
exteriores de emprego, vestido, etc., conduzem muito para o merecimento das obras
[...]”.258
Este contraste entre o caráter erudito das ideias do Verdadeiro Método de
Estudar com a posição pouco destacada de seu autor também servia como
elemento de ironia, pois sugeria que os jesuítas deveriam receber as críticas com a
mesma humildade representada pela figura do Padre Barbadinho e ainda reforçava
a ideia de que não se tratava de uma questão de hierarquia e autoridade, mas de
uma “verdade” e de um bom senso que seria independente da pessoa ou instituição
que a defendesse: “Se às vezes não me agradam as opiniões, nem por isso estimo
menos os sujeitos e autores.”259 Colocava-se em questão um outro critério a ser
utilizado nas disputas literárias. Ao defender a precedência do mérito intelectual
perante a posição social do indivíduo, Verney também criticava os valores da cultura
portuguesa.
Outro aspecto de ironia, já mencionado anteriormente, é o fato dele se colocar
como um estrangeiro: “Eu sou estrangeiro, e com dificuldade me explicarei em uma
língua que não mamei no berço”.260 Este seu posicionamento contrasta com a sua
proposta de uma reforma ortográfica para a língua portuguesa. Poderia ser
levantada a seguinte questão: como um estrangeiro que reconhece dificuldades de
expressão na língua que não é sua pode se considerar apto a dar conselhos sobre
questões relacionadas à ortografia, à estrutura e forma de uma língua a qual não
tem domínio? Mesmo assim, fazendo alusão às críticas que teria ouvido sobre o
famoso Vocabulário do P. Bluteau que, mesmo na condição de estrangeiro, propôs
um vocabulário em português, demonstrava receio de possíveis críticas que
pudessem diminuir o merecimento da obra por não ter sido escrita por um
português.261
Na sua “introdução ao estudo da língua portuguesa”, conforme é apresentado
no sumário da primeira carta, Verney faz um elogio aos romanos que, mesmo
conquistando os gregos, tiveram a humildade em aprender a sua língua:
258
VM, Volume I, p.19.
VM, Volume I, p.21.
260
Ibid., p.18.
261
O P. Bluteau nasceu em Londres, filho de pais franceses, veio para Portugal em 1668
permanecendo em Lisboa até sua morte em 1734.
259
75
Foram os romanos os primeiros que aprenderam voluntariamente
língua estrangeira, o que consta que povo algum, antes deles,
tivesse feito. E nisto mesmo me parecem mais raciocináveis; porque
conhecendo a necessidade dela para o estudo da Filosofia,
Matemática e Belas-Letras, não se envergonharam de receber lições
daqueles mesmos a quem tinham vencido e davam leis. Este é um
grande elogio para uma nação tão considerada como a romana:
conhecer que é vencida em merecimento, e confessar publicamente
esse vencimento, e pôr o remédio a essa falta.262
Assim argumenta que, mesmo na condição de conquistadores, os romanos
reconheceram a superioridade intelectual dos gregos. Verney ainda comenta que,
uma vez que a Grécia foi considerada como “mestra”, era comum que os romanos
enviassem seus nobres para lá estudarem e “aprenderem o bom gosto”. 263 Neste
caso, Verney recorreu à História para reforçar seu argumento sobre a necessidade
de mudança dos costumes portugueses, sobretudo o que considerava um excesso
de orgulho próprio e o preconceito em relação aos estrangeiros.
Silva Dias aponta para duas tendências no final do governo de João V: uma
“velha guarda inaciana”, que controlava a censura; e outra tendência, verificável
dentro da Companhia, mais favorável a uma renovação. Segundo ele, uma das
últimas manifestações de poder da ala mais fechada e conservadora da Companhia
ocorrera em edital de maio de 1746 da Universidade de Coimbra, que advertia:
nos exames ou lições, conclusões públicas ou particulares, se não
ensine defensão (doutrina) ou opiniões novas pouco recebidas ou
inúteis para o estudo das ciências maiores, como são as do Renato
Descartes, Gassendo, Neuton e outros”. 264
No mesmo ano seria publicado o Verdadeiro Método de Estudar; o conflito
que ocorria nos bastidores da corte, conforme aponta Silva Dias, entre antigos e
modernos, entre “estrangeirados” e nacionais conservadores, tornou-se público e
colocaria definitivamente em cheque o modelo de ensino dos jesuítas.265 Por atacar
esta tradição e, sobretudo, por recomendar autores considerados suspeitos pelo
Santo Ofício, O Verdadeiro Método de Estudar causou muitas reações contrárias
em Portugal. Vale ressaltar, conforme já aludimos no primeiro capítulo, que Verney
262
VM, Volume I, Carta I, p.28-29.
VM, Volume I, Carta I, p.30.
264
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia. op. cit., p.182-183.
265
Ibid., p.182-183.
263
76
considerava o ambiente intelectual italiano, no qual o autor estava inserido, este
mais permeável à circulação de novas ideias do que Portugal.
Contudo, sabendo da resistência a que teriam as suas ideias em Portugal,
procurava trazer outros exemplos da história para corroborar seus argumentos.
Considerava normal haver resistência às novidades, mas que a história faria
aparecer a sua conveniência:
Mas é necessário confessar uma verdade: em todo tempo houve
dificuldade em se receberem costumes novos, ainda que fossem
úteis. Os velhos não querem ceder dos costumes que uma vez
esposaram. Isto vimos em Roma, no consulado de Estrabo e
Messala, que publicaram um decreto em que ordenavam aos
filósofos e retóricos, saírem de Roma. Catão o velho, que temia que
os romanos, pela vaidade de quererem falar bem, servissem mal à
República no ofício das armas, foi um grande protetor disto. Mas a
verdade, por mais que se encubra, sempre transpira.266
Verney sabia que enfrentaria a resistência de alguns portugueses,
principalmente dos jesuítas. Em que pese a ironia nos elogios, posicionava-se no
lugar de alguém que não tinha a intenção de combater a Companhia de Jesus, mas
que estava preocupado com a renovação cultural dos portugueses. De acordo com
ele, outras ordens religiosas também deveriam ser advertidas pelo conservadorismo
e autoridade, “pois a maior parte cuida pouco nisso, e vão vivendo como seus
Mestres lhe ensinaram”.267 Entretanto, a proposta verneyana, inevitavelmente,
acabava entrando diretamente em rota de colisão com os jesuítas, que se tornaram
seus principais adversários.
Verney ponderava que alguns jesuítas já estavam abertos às mudanças que
ocorriam pela Europa, mas, em Portugal, o espírito corporativo da ordem oferecia
grande resistência, preferindo-se os livros e compêndios produzidos dentro da
própria Ordem:
Os doutíssimos Jesuítas ensinam grande parte da mocidade em
várias partes da Europa; e, não querendo apartar-se do seu Manuel
Álvares, rejeitaram todas as novas gramáticas. Alguns desses
religiosos, que trato familiarmente e estimo muito pela sua doutrina e
piedade, me disseram claramente que bem viam que o Álvares era
confuso e difuso, e que as outras eram melhores; nem se podia
negar que os princípios de Scioppio fossem claros e certos; mas que
266
267
VM, Volume I, p. 29.
Ibid., p.150.
77
o P. Geral não queria se apartassem do P. Álvares, por ser Religioso
da Companhia.268
A Gramática Latina do Padre jesuíta Manuel Álvares, conforme já
mencionada no primeiro capítulo, foi impressa pela primeira vez em 1572, e se
tornou referência e símbolo da escolarização dos jesuítas pelo mundo. Mais tarde
ela seria proibida nas reformas da educação promovidas por Pombal. No trecho
acima Verney comenta que alguns jesuítas também comungavam sua opinião sobre
a defasagem do compêndio de gramática do Padre Manuel Álvares, utilizado em
todas as escolas da Companhia. Porém, segundo Verney, uma ala mais
conservadora não era favorável a mudanças, pois nas “comunidades de uma
Religião, nem todas seguem o mesmo método”.269
2.3 Método como palavra-chave da obra
Nas cartas sobre estudos linguísticos e literários, Verney faz uma série de
críticas sobre os métodos de ensino das línguas em Portugal, sobretudo o latim. O
latim era Base de toda a educação dos estudos menores, entretanto, a maioria dos
estudantes não conseguiam aprendê-la satisfatoriamente. Considerada a língua dos
sábios e dos eruditos, alguns portugueses procuraram refletir sobre os meios pra
facilitar o seu estudo. 270
Verney procurava explicar os motivos destas dificuldades
apontando o seu “verdadeiro método” como mais útil e necessário para as
necessidades do reino português.
Ao comentar sobre os métodos utilizados no ensino do latim, Verney aponta
para o que chamava de “abusos das escolas deste reino, que impedem saber a
língua latina”.271 Pode-se perceber o estilo irônico utilizado neste pequeno trecho,
sobretudo na maneira exagerada de caracterizar o método tradicional. Verney
criticava o método utilizado nas escolas portuguesas antes do período pombalino,
que ao contrário de cumprir com sua função mais importante de ensinar, “impedem”
que os estudantes possam conhecer a língua latina. Percebe-se uma inversão de
valores no discurso de Verney, sobretudo na forma ironica e peculiar com que
268
Ibid., p.150.
Ibid., p.23.
270
ANDRADE, António Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários (17591771), Volume I, op. cit., p.20.
271
VM, volume I, p.193.
269
78
criticava as práticas de ensino das escolas portuguesas. Satirizava o método de
mandar os alunos, ainda iniciantes, traduzirem Bulas e poetas clássicos como
Virgílio e Horácio, e principalmente, o “abuso” de obrigar os alunos, mesmos os já
iniciados, a compor versos, “é loucura obrigar a fazer versos”, “seria melhor
empregar aquele tempo em coisa mais útil”.272 Verney argumentava que o método
tradicional era o responsável pelo que apontava como um estado de atraso da
cultura portuguesa. es o reino , segundo declarava, encontrava-se em um estado de
“atraso” em que se encontrava que a acabava impondo aos portugueses. Criticava a
prática de fazer o aluno repetir e decorar versos latinos sem explicar-lhes o
significado das frases e das palavras, segundo Verney “o método comum de dizer
de cor é falar como papagaios, e exposto a mil enganos”, e o pior de tudo,
ressaltava que quando os alunos erravam, eram molestados com “pancadas” 273. Ao
contrário, Verney propõe que os professores animem os estudantes “com prêmios, a
que decorem bem algumas coisas, remunerando ou louvando os que o fazem
melhor; sempre coisas úteis e que possam servir com o tempo”.274 Neste sentido, o
traço pedagógico de sua obra é evidente, afinal, discute não apenas o que ensinar,
mas como ensinar, sem “pancadas”, mas com “grande paciência”, pois, se o mestre
“lhe facilita o caminho para entendê-la” não haveria necessidade de se recorrer “as
muitas palmoadas que se mandam dar aos pobres principiantes”.275 Mas de acordo
com Verney, para isso seria necessário bons mestres, uma reforma do método e do
uso de compêndios mais modernos.
Verney não despreza a necessidade da memória, mas a forma como era
cultivada nas escolas portuguesas. Citava casos em que os estudantes eram
obrigados a decorar poemas e orações, muitas vezes sem conhecer seus
significados, somente para fixar as regras da gramática latina.276 Criticava a erudição
associada à memorização de trechos, falas, frases em latim, sem que o estudante
tivesse consciência de sua finalidade:
Quem obriga os rapazes a aprender muito verso e muita arenga, fazlhe mal, cuidando fazer-lhe bem. Eu comparo a memória cheia de
semelhantes ideias a uma livraria grande, cujos livros não estão nas
272
Ibid., p.189-190.
Ibid., p.221.
274
Ibid., p.238.
275
Ibid., p.35, p.179.
276
Ibid., p.142.
273
79
estantes, mas amontoados no meio e pelos cantos: quem nela
procura um livro determinado, não o encontra, mas oferecem-lhe
cem mil, que nada fazem ao caso. Da mesma sorte, a memória mal
regulada, quando lhe pedem uma ideia, oferece tantas e tão fora de
propósito, que é o retrato da confusão; de que nasce que nunca se
aprendem bem as outras Ciências.277
Verney argumenta que o mau uso da memória pode afetar o aprendizado das
outras ciências. Assim, a memória e a erudição, em sua opinião, só têm valor
quando sabemos como recorrer a elas para aplicá-las nas diferentes circunstâncias
em que se aplicam, tornando-se úteis quando, justamente, sabemos nos servir delas
quando a matéria exige.
Não despreza a importância da memória, mas faz
considerações sobre como saber cultiva-la, sem excesso e, principalmente, sem
“afectação”, o que para ele significava falta de bom gosto e estilo na língua latina.
Sobre o ensino do latim nas escolas menores, Verney é bastante rigoroso
sobre as indicações bibliográficas, que deveriam seguir exatamente determinada
ordem, “porque, sem ela, nascerá confusão e impedimento, como todos os dias
observamos no método vulgar”. 278 Devia-se começar pelos autores “que falaram a
língua naturalmente, do que os que abundam muito de metáforas e mil outros
ornamentos dificultosos”.279 E, na medida em que fosse lendo os autores mais
complexos, poderiam ir sendo apresentados os demais. Por isso dever-se-ia
começar pelas cartas, “que é um modo de compor fácil” 280, ao contrário dos poetas
heroicos como Horácio. No estudo do latim, Verney preferia autores cômicos como
Plauto e Terêncio, que usam frases mais curtas e naturais, sem os “ornamentos
obscuros” que demandariam erudição. Para adquirir gosto pelos conteúdos e
assuntos da latinidade e para que o estudante se identificasse com os autores,
seriam imprescindíveis conhecimentos básicos de Geografia:
[...] não pode o estudante entender com facilidade um autor que trata
a história de um conquistador, sem a notícia dos países de que fala;
e nem menos o poderá entender com gosto. Pelo contrário, se é
informado, ainda que superficialmente, desta notícia, percebe
maravilhosamente o fato: facilita-se a inteligência do autor, e por este
meio, a dita língua. Um moço, que ignora totalmente a Geografia,
toma limpamente um nome de cidade pelo de um reino, e pelo de
uma pessoa, e outros enganos, que vão acompanhados da
277
Ibid., p. 237.
Ibid., p.228.
279
Ibid., p.228.
280
Ibid., p.222.
278
80
ignorância da língua. Quem não souber, v.g. que Nápoles é nome de
uma cidade e de um reino juntamente, não só cofundirá os termos,
mas também as coisas que ambas se aplicam. E isto não é somente
dano da história, mas também impedimento para a inteligência da
língua latina.281
A Geografia era considerada por ele importante para o ensino da latinidade e,
inclusive, adverte que não era um exagero, mas algo necessário para o estudante
entender “nomes de gentes, de povos, regiões, cidades [...] Como há de entender as
conquistas de Alexandre, se ele não sabe por onde foi, que nações venceu, que
dificuldades superou?”.282
As críticas de Verney extrapolam o problema das deficiências do método de
ensino utilizado nas escolas menores. Fazendo uma série de considerações a
respeito da cultura portuguesa, acaba realizando uma associação entre o método e
tradição cultural. Com ironia, critica algumas tradições culturais portuguesa,
condenando a sua falta de bom gosto. Para exemplificar os exageros, o excesso de
erudição, ou o que ele chamava de “afetação”, Verney comenta sobre o uso feito
pelos portugueses do estilo lapidar, que era utilizado nas lápides dos antigos
monumentos romanos:
No tempo de Augusto, em que cozinheiros, pasteleiros e moços dos
moinhos sabiam mais eloquência e bom gosto do que a maior parte
destes modernos doutores, não se escrevia assim: as inscrições
eram naturais, claras e em poucas palavras. 283
Entre os romanos, Verney afirma que as inscrições das lápides eram feitas
“sem afectação”, porém, no fim do século XVI começaram a introduzir o que Verney
chama de “ridicularia”, o uso do estilo lapidar, cheio de “afectações” e para outros
propósitos, como para escrever livros: “ou é lápide, ou é livro. Não há coisa mais
ridícula que esta.”284
Suas críticas se estendem para os grandes autores da cultura portuguesa,
como ao Padre António Vieira e a Camões: “[...] se eu falasse com outra pessoa que
não fosse V.P., se escandalizaria muito que eu não aconselhasse aqui a leitura do
281
Ibid., p. 195.
Ibid., p.194
283
VM, volume II, p. 293.
284
Ibid., p.297.
282
81
P. Vieira [...]”.285 Embora fizesse elogios e demonstrasse respeito pelas suas
virtudes, não aprovava a ortografia usada por ele e criticou as suas cartas pela
“afectacao” em repetir exageradamente pronomes de tratamento, como Vossa
Excelência, Excelentíssimo senhor, causando “náusea” em seus leitores.286
No caso da poesia portuguesa, acusava os desvios das convenções e regras
pré-estabelecidas da chamada arte da poesia. Segundo Verney, os poetas
portugueses seguiram os melhores exemplos da Antiguidade e a “boa razão”; no
caso de Camões, teve muitas “qualidades de poeta”, mas querer compará-lo com
Homero, achava uma “temeridade”.287 Mesmo considerando algumas qualidades em
Camões, pelo seu “engenho, imaginação fecunda e grande”, destaca muitos
defeitos: errou o título da obra que, segundo os mestres da arte, tomavam o título da
obra pela pessoa, “como Odisseia, Eneida, ou do lugar da ação, como Ilíada, que é
tomado da cidade de Ílio”. Ao utilizar o título os Lusíadas, Camões, em vez de utilizar
como título Vasco da Gama, usa um termo que abarca todos os portugueses e ainda
peca por usar o plural, “que não tem exemplo na boa Antiguidade”.288 Camões errou
também porque, devendo focar apenas a ação de Vasco da Gama, propõe a ação
de “todos os varões ilustres de que se compõe a inteira história de Portugal”.
Verney também criticava a importância dada pela poesia no sistema de
ensino português. Para ele a poesia só tinha utilidade na medida em que ajudava na
compreensão da língua latina e no desenvolvimento da eloquência. Para os
estudantes que tivessem vocação para esta arte, deveriam frequentar uma escola
separada, caso contrário seria “loucura obrigar os rapazes a fazerem versos”. 289 E
ainda reiterava que “a poesia não é coisa necessária na República: é faculdade
arbitrária e de divertimento”. Bastaria ensinar as suas regras básicas para que os
estudantes pudessem entendê-las, para assim, liberta-los daquele “cativeiro” e
poderem se ocupar em coisas úteis.290
Alguns portugueses, conforme será aprofundado mais adiante em nosso
estudo, já vinham apontando para a necessidade de reformas no sistema de ensino
285
Ibid., p.174.
Ibid., p.191.
287
Ibid., p.306.
288
Ibid., p.308.
289
Ibid., p.332.
290
Ibid., p.336.
286
82
português, porém ninguém havia exposto estas ideias publicamente, e muito menos
da forma irônica como foi feito por Verney no Verdadeiro Método de Estudar.
Ao tornar público as ideias contidas nas cartas, o autor sabia que estava
confrontado todo um modelo hegemônico de ideias e que seria inevitável o choque
com os jesuítas. Alguns trechos do Verdadeiro Método poderiam também indicar
que havia sinceridade nas colocações de Verney e que sua intenção era criticar
apenas o sistema de ensino, e não a ordem dos jesuítas. Não há dúvida que queria
desqualificar e desacreditar o sistema filosófico dos inacianos, porém, Verney foi
muito severo, exagerou nas suas críticas e usou de sátira e termos incomuns para
um debate científico. Outrossim, apresentado o resultado obtido, sua obra cumpriu
com o objetivo de chamar a atenção dos letrados portugueses, causando uma série
de polêmicas.
No próximo capítulo serão apresentadas algumas ideias do Verdadeiro
Método de Estudar as quais foram incorporadas por Verney para a elaboração de
seus argumentos. Diante das novas ideias que circulavam na Europa na primeira
metade do século XVIII, tentar-se-á mostrar quais delas foram incorporadas e
utilizadas por ele, e quais foram rejeitadas.
83
CAPÍTULO III – O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR: EDUCAÇÃO, CIÊNCIA
E MÉTODO
Neste capítulo será apresentado o Verdadeiro Método de Estudar, visando
identificar as principais ideias do ideário das Luzes com as quais Verney dialoga.
Pretende-se discutir de que maneira Verney faz uso de um “vocabulário de ideias” que já estava disponível desde o século XVII, por meio da divulgação das obras de
filósofos modernos como Bacon, Descartes, Newton, Locke, entre outros - para
propor um novo método de estudos para Portugal. Procura-se, portanto, demonstrar
o que ele quis dizer com esta ideia, e quais os principais temas articulados a ela.
Ao apresentarmos os principais elementos do sistema filosófico proposto por
Verney no Verdadeiro Método de Estudar, buscaremos apontar como a concepção
de método, na abordagem de Verney, vai sendo construída a partir do contraste
entre o que ele entendia por “filosofia moderna” e “filosofia escolástica”.
3.1 A filosofia natural como paradigma no contexto do Iluminismo
Como se sabe, a modernidade provocou uma grande mudança na visão de
mundo dos homens, da sua relação com a natureza, da sua relação com a história.
Esta mudança já vinha sendo percebida quando os filósofos comparavam os
conhecimentos adquiridos em sua época com aqueles herdados dos antigos. A
leitura de Verney permite perceber um otimismo que será manisfestado no final do
século XVIII quando Kant, ao responder à pergunta “Was ist Aufklärung?”291,
identificava um momento importante na história do pensamento humano, tratando o
Iluminismo como um processo ainda em curso de constante progresso e
aperfeiçoamento do homem.
Respeitando o ritmo e a especificidade cultural de cada região, este otimismo
em relação às conquistas da filosofia moderna iria se difundir para todos os cantos
291
“O que é o Iluminismo?”. Aufklärung é comumente traduzido do alemão para o português como
Iluminismo, entretanto alguns autores, seguindo as propostas da Escola de Frankfurt, preferem o
termo Esclarecimento. Sérgio Paulo Rouanet propõe uma distinção entre Ilustração e Iluminismo. A
primeira, enquanto corrente intelectual historicamente situada, corresponde ao movimento de ideias
do século XVIII, e Iluminismo, como uma tendência transepocal, não situada, não limitada a uma
época específica. Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987. e ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: Ética. NOVAES,
Adauto (org.). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura: Companhia da Letras, 2002, p.153.
84
da Europa. E para o caso de Portugal, Verney foi talvez o seu maior representante,
sobretudo pela forma com que abraçou a física como modelo de seu método de
estudos e pelo exagero com que “pintou” o atraso português em relação ao que se
passava na “Europa culta”. Não há dúvida que Verney estava alinhado com o
Iluminismo.
Na interpretação de Cassirer, a filosofia do Iluminismo é caracterizada por
uma unidade na diversidade; não existe uma preocupação em dar conta da
totalidade dos problemas propostos pelo século das Luzes, mas sim identificar o que
seria, a seu ver, uma unidade de fonte intelectual e do princípio que a rege. No
contexto cultural do Iluminismo, a filosofia natural acabou se impondo como um
modelo a ser seguido.
Assim como o mundo físico poderia ser explicado e compreendido por leis
universais, a vida moral dos homens também teria as suas leis, que deveriam ser
explicadas pelo mesmo método utilizado na análise dos fenômenos físicos. Este
aspecto confere uma unidade dentro de toda amplitude e diversidade de temas e
problemas levantados pelos homens dos séculos XVII e XVIII. Há um elemento
comum: a síntese feita por Newton seria a base para toda uma nova visão de
mundo, uma nova Weltanschaung. A partir de Newton, impôs-se a ideia de que a
força fundamental que rege a vida dos corpos celestes seria exatamente a mesma
que rege a vida dos corpos na terra. O século XVIII é tomado por um encantamento
pela “Filosofia Experimental” newtoniana.292 Encontramos diferenças na maneira
como esta ideia foi pensada e discutida, porém o fundamento é o mesmo.
O ideário iluminista chamava a atenção em relação à importância da ciência
para o progresso do estado e como este também deveria ser compreendido a partir
do método que vinha sendo utilizado na explicação dos fenômenos naturais. Sendo
assim, o estado passa a ser percebido como um corpo, que possui suas
propriedades e suas leis de funcionamento. Acreditava-se que para se chegar a uma
ciência sobre o estado, bastaria transferir para a política o mesmo método da
física.293 Assim, a teoria do estado se adapta a filosofia natural, porque se adapta ao
seu método. O uso da física para pensar as questões políticas já estava presente
nas ideias de Thomas Hobbes. Partindo da premissa de que existem leis naturais
292
JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência: estudos de história das ciências. São Paulo: Letras e
Letras, 1991, p.123.
293
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992, p.339.
85
que regem os “corpos físicos”, o estudo das leis dos “corpos políticos” seria
essencialmente o que Hobbes chamou de política ou filosofia civil. 294 Assim,
pretendia descobrir: quais eram os princípios e as leis que governavam os corpos
políticos?.295
Conforme destacou Calafate, independente das diferenças entre Hobbes,
Descartes, Newton, Bacon, a grande mudança provocada pela filosofia moderna
representa uma “destruição de uma ideia de natureza submetidas aos conceitos de
matéria, forma e qualidades, para passar a encará-la como um conjunto de
fenômenos quantificáveis”.296 Esta nova percepção dos fenômenos naturais acabaria
se chocando com o modelo que era utilizado até então para explicar o homem e
suas relações com a natureza.297
3.1.1 O sistema verneyano
Mesmo fazendo críticas ao sistema cartesiano, o método pretendido por
Verney seguia o mesmo ânimo do Discurso sobre o Método de Descartes,
conforme podemos perceber no trecho abaixo:
[...] ao invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, podese encontrar uma filosofia prática, mediante a qual, conhecendo a
força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como
conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos, poderíamos
empregá-las do mesmo modo em todos os usos a que são
adequadamente e assim nos tornarmos como senhores e
possessores da natureza.298
O cartesianismo, como um sistema de pensamento, representava uma nova
ideia de natureza e as capacidades do homem em conhecê-la. Havia a possibilidade
do homem se assenhorear da natureza. Mesmo sendo criado por Deus, o homem
294
SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p.38.
De acordo com Skinner, entre os anos de 1634 e 1636 Hobbes passou a se interessar pelas
experiências científicas, foi quando teve uma intuição que serviria como um de ponto de partida ou
princípio geral de sua teoria: “a única coisa real é o movimento”. Inicialmente Hobbes trataria dos
corpos físicos, para somente depois analisar os fenômenos ligados aos corpos políticos. Entretanto,
devido ao contexto da guerra civil inglesa, a ordem de seu projeto foi alterada, começando pelo final.
296
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, Volume III, op. cit., p. 170.
297
Como foi o caso de alguns dogmas religiosos, como o milagre da eucaristia, cuja explicação
representava a fusão da filosofia escolástica com a Teologia.
298
DESCARTES, Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 69.
295
86
passa a ser percebido como a única criatura capaz de compreender a sua obra, o
único elemento capaz de explicar seu funcionamento, desvendar o funcionamento
das “máquinas dos corpos”. Ao aderir a esta perspectiva - embora não se considere
um cartesiano - Verney estava se apropriando de uma filosofia cujo sistema de
valores entrava em confronto direto com a “filosofia especulativa ensinada nas
escolas”. A ruptura provocada por Descartes no pensamento europeu moderno
colocava a posição do homem como um elemento capaz de reconhecer o mundo
criado por Deus e na condição de “senhores e possessores da natureza”, ao
contrário do homem tutelado por Deus. Segundo Verney, Descartes:
Foi o primeiro que abriu a porta à reforma dos estudos; pois ainda
que Bacon de Verulânio e Galileu Galilei tivessem indicado o método
de fazer progressos na Física (e alguns outros os fossem imitando),
é certo, porém, que Descartes foi o primeiro que fez um sistema ou
inventou hipótese para explicar todos os fenómenos naturais, e por
este princípio abriu a porta aos outros para a reforma das
Ciências.299
Verney também acompanha Descartes em sua defesa pela língua vulgar.
Assim como escreveu seu Discurso do Método em francês, Verney escreveu o
Verdadeiro Método de Estudar em português, e não em Latim, conforme a maioria
dos tratados filosóficos. A defesa da língua nacional visava garantir o acesso aos
novos princípios das Luzes e atendia à necessidade pedagógica de transmitir estes
novos conhecimentos a um público maior e mais variado. O leitor comum não
possuía o conhecimento do latim e geralmente o estudante ainda não o dominava.
Verney argumenta que esta preferência pelo vulgar na escrita de obras filosóficas já
vinha ocorrendo na Europa:
Antigamente, entendiam os doutos que era necessário saber Latim
para saber as Ciências; mas, no século passado e neste presente,
desenganou-se o mundo e se persuadiu que as Ciências se podem
tratar em todas as línguas [...] os Ingleses, Holandeses, Franceses,
Alemães etc. Começaram a tratar todas as Ciências em Vulgar. Esta
hoje é a moda. Os melhores livros acham-se escritos em Vulgar; e
qualquer homem, que saiba ler, pode entender na presente era todas
as Ciências. 300
299
300
VM, Volume III, p.15.
VM, Volume I, p.273.
87
As obras dos autores modernos eram publicadas nas línguas nacionais e nem
sempre traduzidas para o Latim. Esta era uma “moda”, usando a definição de
Verney, que caracterizava a Filosofia moderna. Por isso, recomendava também o
estudo de línguas estrangeiras, principalmente o Francês e o Italiano, e ressalta que
“para ser bom Filósofo, não é necessário saber Latim”301. Vale lembrar que, em
Portugal, o domínio do Latim ainda era considerado muito necessário para o acesso
aos cargos mais importantes da administração civil e eclesiástica.302
Mesmo entre os “modernos”, alertava Verney, existia grande diversidade, pois
os primeiros críticos de Aristóteles como Descartes, “ainda que fossem AntiAristotélicos nos fundamentos, muito se inclinavam ao Peripato no método”. A crítica
de Verney a Descartes explica-se pela sua preferência pelo experimentalismo de
Newton e Locke. No seu plano de estudos da Física, sugere que se deve primeiro
estudar os filósofos, para depois “determinar qual deles se deve abraçar,
examinando fundamentalmente as razões de Newton, de Cartésio, de Leibnitz”.303
A “filosofia moderna” era compreendida por Verney pela sua diversidade, não
pela adesão a um sistema único. O novo método “é não ter sistema”, e envolve
todas as contribuições de filósofos que restabeleceram a importância da Matemática
para a Física desde Galileu, Descartes, Hobbes, Newton.
304
A “filosofia moderna”,
na definição de Verney é:
Conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira
causa das coisas [...] saber a causa que faz subir a água na seringa
é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acesa
em uma mina despedaça um grande penhasco é Filosofia305.
Assim defendia que a filosofia moderna era um novo tipo de conhecimento
voltado sobretudo para a explicação das causas dos fenômenos naturais, isso “é
Filosofia”. Portanto, a filosofia moderna, na concepção mais ampla de Verney,
confunde-se com toda a ciência, e deve seguir o paradigma do método da física
experimental, ou seja, observar os fenômenos e explicar suas causas. Neste caso,
não há tanto uma preocupação em delimitar os campos específicos de cada
disciplina, mas defender a necessidade do uso de um mesmo método para todas
301
VM, Volume III, p.229.
CARVALHO, Laertes Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública, op. cit., p.65.
303
VM, Volume III, p.236
304
Ibid., p.217.
305
Ibid., p. 39.
302
88
elas. A centralidade do método experimental torna a Física a parte mais importante
de sua Filosofia.306 Portanto, a sua concepção filosófica segue o modelo da filosofia
natural307, que se torna um pré-requisito para as demais e constitui a base de todo
seu sistema filosófico, bem como de toda a sua proposta de ensino. Embora Verney
seja contra o que chama de “espírito de sistema”, o Verdadeiro Método de Estudar
segue uma lógica e um princípio que poderia ser compreendido como um sistema
filosófico cujo núcleo é o método da física experimental.
Seguindo a perspectiva newtoniana, considerava necessário a comprovação
das hipóteses por meio das experiências:
Este deve ser o primeiro emprego do Físico: observar e discorrer.
Não devemos querer que a natureza se componha segundo as
nossas ideias; mas devemos acomodar as nossas ideias aos efeitos
que observamos na natureza308.
O fim do Físico é descobrir a verdadeira causa dos efeitos naturais;
e, para conseguir este fim, não deve fazer caso do que dizem os
outros, sim do que mostra a experiência.309
Na concepção de Verney, a observação dos fenômenos passa a ser o ponto
de partida, e a comprovação por meio das experiências a condição sine qua non
para a produção do conhecimento acerca da natureza e do homem. Contrariando a
concepção segundo a qual a fonte do verdadeiro conhecimento eram os “Doutores”,
defendia que o raciocínio deveria ser fundado em princípios evidentes. Para ilustrar
esta ideia utiliza a seguinte metáfora:
Se V.P. ouvisse um homem que sem ter ido à Índia, ou ter lido muito
e conversado muito com os que lá foram e examinaram o caso bem,
dissesse mil coisas da Índia, e isto com tal confiança, que, sendo
contrariado constantemente pelos que lá foram e consideraram bem
aquela Península, ainda assim persistia na sua opinião, cuido que
não deixaria de rir. Pois também eu me rio muito dos que, sem irem
ao país da Física, falam e decidem sobre as suas partes.310
Os Doutores desprezavam todas as experiências e descobertas científicas
que vinham ocorrendo em sua época. Baseadas na observação e experiência e
306
Ibid., p.168.
Verney não distingue a física da filosofia natural, tratando estes termos como sinônimos.
308
VM, Volume III, p.190.
309
Ibid., p. 203.
310
Ibid., p.183.
307
89
“livre de paixão, cada filósofo propõe as suas razões sobre as coisas que observa:
as que são claras e certas se abraçam; as duvidosas, ou se rejeitam, ou se recebem
no grau de conjecturas”.311
O “novo método de estudar” proposto por Verney significava também uma
reorganização da estrutura curricular utilizada nas universidades portuguesas. Por
exemplo, a física era considerada uma disciplina fundamental ao estudante de
medicina, pois “nosso corpo é uma máquina hidráulica muito mais perfeita que um
relógio”.312 Entretanto, como a maioria dos médicos portugueses eram peripatéticos,
significava dizer que não sabiam Filosofia, especialmente a Física.313
A Física embasaria também o enfoque do ensino do Direito, que deveria ser
precedido pelo estudo da Ética. Segundo Verney, a Ética era tratada como um ramo
da Teologia nas escolas portuguesas, e por isso propõe a integração da Ética na
Filosofia, pois entende que a Ética “é aquela parte da Filosofia que mostra aos
homens a verdadeira felicidade, e regula as ações para conseguir” 314. Por meio do
método da observação seria possível identificar as “ações honestas e também úteis
à sociedade civil”.315
A reorganização das disciplinas a partir do método da Física implicava
considerar a Medicina como uma continuação da Física e a Jurisprudência uma
continuação da Ética. Tudo deveria ser submetido a um mesmo princípio. Para
Verney todos os problemas do ensino em Portugal tinham a mesma “doença” (a
filosofia escolástica) e o mesmo “remédio” (a filosofia moderna). Por exemplo, o
principal defeito da prática da Jurisprudência em Portugal, de acordo com ele, deviase à sua “falta de método”316, pois “nenhum juiz facilita a inteligência das coisas de
que trata; nenhum se contenta de dizer pouco, contanto que diga bem; todo o ponto
está em acarretar erudição e amontoar textos sem pé nem cabeça”.317
Seria
necessário que o estudante de Direito, antes de iniciar o estudo das leis,
conhecesse a Lógica para julgar bem e “aquela Física que ensina a formar
verdadeiro conceito do que é natureza criada e incriada.”318
311
Ibid., p.203
VM, Volume IV, p. XII e p.13
313
Ibid., Carta XII, p.11
314
VM, Volume III, p.254
315
Ibid., p.259.
316
VM, Volume IV, p.175.
317
Ibid., p.175.
318
Ibid., p.160.
312
90
O estudo da Teologia também deveria ser tutelado pelo método experimental
da física, e por isso estes estudos se encontravam atrasados em Portugal. Ao
contrário de uma Teologia que fosse útil “para defender a Religião”, se praticava
uma Teologia que custava o tempo de uma vida “para falar nas coisas sem
fundamento algum”.319 Para Verney este método era prejudicial aos dogmas e
dificultavam as disputas contra os hereges, pois “Não é o método o que se condena
nos Hereges; é a má interpretação”.320 Por isso recomendava o estudo da História
da igreja, aplicando o método crítico, pois “não basta que um homem afirme uma
coisa; é necessário que a prove e mostre que os monumentos de que tira as suas
provas são livres de toda a corrupção”.321 Neste caso, o empirismo serviria para
fundamentar as afirmações a partir de provas e documentos.322
3.2 Uma nova organização das ideias e instituições
A verdade é filha do tempo, não da autoridade.323
No contexto intelectual português, as críticas ao modelo escolástico já vinham
sendo debatidas antes de Verney reafirmá-las publicamente no Verdadeiro Método
de Estudar. Na Academia dos Generosos, por exemplo, círculo intelectual
capitaneado pelo 4º conde de Ericeira, contestava-se a autoridade de Aristóteles e
se considerava absurdo negar a “glória de novos inventos, como se os antigos
mestres esgotassem toda a ciência”.324 Elogiando a ciência e sua contribuição para
o desenvolvimento das Artes e Ciências, Rafael Bluteau apontava para a perfeição
atingida pelos modernos, que “excedem no número, methodo, noticia, e elegância
todas as obras dos antigos”.325 Para Bluteau, a ciência é a mãe de todas as Artes
(como os ofícios mecânicos), que ensina o Médico a curar as doenças e os políticos
a governarem.326
319
Ibid., p.252.
Ibid., p.231.
321
Ibid., p.266.
322
Neste sentido, Verney se aproximava do método de crítica das fontes proposto pelo francês Jean
Mabillon (1632-1707).
323
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da interpretação da
natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.66.
324
ARAÚJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal, op. cit., p.25
325
Ibid., p.27.
326
Ibid., p.37.
320
91
Outro português entusiasta da filosofia moderna foi Jacob de Castro
Sarmento, considerado o principal divulgador do baconismo e do newtonianismo em
Portugal; vivendo em Londres, chegou a tornar-se membro da Royal Society.327
Porém, ao contrário do êxito que algumas obras tiveram na Itália, como o
Newtonianismo para as damas (1733) de Algaroti, as obras de Castro Sarmento
praticamente caíram no esquecimento pela escassa divulgação que tiveram em
Portugal.328 Da mesma maneira D. Francisco Xavier de Menezes chegou a defender
as ideias de Newton na Academia Real da História, demonstrando conhecimentos
sobre a Física, a Astronomia e a Matemática, e só não propôs o paradigma
newtoniano devido aos efeitos e reações que poderiam ocorrer no círculo dos
acadêmicos.329
Verney faria uso de algumas das ideias de Bacon, sobretudo para defender a
filosofia de sua época (filosofia moderna) em comparação com a filosofia dos
antigos. Bacon reconhecia valor na filosofia de Aristóteles, mas considerava seu
método estéril, apropriado para disputas e contendas, porém inútil para a produção
de obras que pudessem beneficiar a vida dos homens.330 O método usado pela
maioria dos filósofos de sua época, que Bacon denomina de “método tradicional”,
era um procedimento caracterizado por reunir e consultar o que os outros disseram
antes.331 Sendo assim, propõe uma nova interpretação da natureza e considerava
que a Ciência até a presente data em que redigia o Novum Organum, provinha dos
gregos, mas que tinha o defeito de ser muito acadêmica e dada às disputas. 332
Lamentava o fato de “a filosofia natural”, até então, ter ocupado parte “insignificante
da atividade humana”.333
Para Bacon, o método significava também um conjunto de princípios voltados
para a utilidade social da ciência e argumentava que esta tinha a finalidade de
produzir novos inventos e recursos para os homens.334 Reclamava que poucos se
dedicavam a praticar a ciência com este objetivo, pois segundo ele, a maioria busca
apenas seu próprio lucro e glórias acadêmicas. Além disso queixava-se da falta de
327
Ibid., p.42
Ibid., p.44
329
Ibid., p.47
330
De acordo com os relatos do capelão e biógrafo de Bacon Willian Rawley. Cf. BACON, Francis.
Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da interpretação da natureza, op. cit., p.7.
331
Ibid., p.64.
332
Ibid., p.56-57.
333
Ibid., p.62.
334
Ibid., p.64.
328
92
estímulo, pois o cultivo das ciências não era favorecido com honrarias e
recompensas.
Na sua obra, Bacon não usa o termo methodus como Descartes, prefere o
termo ratio ou via, e argumentava que não adianta apenas realizar as experiências,
mas seria necessário um método para nos guiar “pela selva da experiência”.335
Apontava para o problema da autoridade presente na maioria das instituições como
um obstáculo para o progresso das ciências:
Nos costumes das instituições escolares, das academias, dos
colégios e estabelecimentos semelhantes, destinados à sede dos
homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se dispõe de forma
adversa ao progresso das ciências. De fato, as lições e os exercícios
estão de tal maneira dispostos que não é fácil venha a mente de
alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do rotineiro. Se
um ou outro, de fato, se dispusesse a fazer uso de sua liberdade de
juízo, teria que, por si só, levar a cabo tal empresa, sem esperar
receber nenhuma ajuda resultante do convívio com os demais. E,
sendo ainda capaz de suportar tal circunstância, acabará por
descobrir que a sua indústria e descortino acabarão por se constituir
em não pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os estudos dos
homens, nesses locais, estão encerrados, como em um cárcere, em
escritos de alguns autores. Se alguém deles ousa dissentir, é logo
censurado como espírito turbulento e ávido de novidades.336
Mesmo considerando a distância no tempo, em que Bacon escreveu seu
texto, mais cedo ou mais tarde, este choque entre a “filosofia tradicional”
(escolástica) e os princípios da filosofia moderna acabaria se difundindo para toda a
Europa.
De forma semelhante, Verney faria uso destes argumentos para
desacreditar a filosofia escolástica em Portugal que predominava nas instituições de
ensino. Assim como Bacon, Verney também reclamava a falta de apoio aos homens
de ciência e a censura por defenderem ideias inovadoras.
Na primeira metade do século XVIII, o debate entre antigos e modernos
ganharia cada vez mais importância em Portugal, e as polêmicas em torno do
Verdadeiro Método de Estudar representaram um momento chave deste processo.
A Carta VIII do Verdadeiro Método de Estudar, dedicada a Filosofia, foi a mais
polêmica de todas, pois Verney atacava a base de todo o sistema de ideias que
sustentava a filosofia tradicional e que exercia hegemonia em Portugal até a metade
335
336
Ibid., p.65.
Ibid., p.73.
93
do século XVIII. Os seguidores da filosofia escolástica costumavam ser identificados
pelos iluministas portugueses como “peripatéticos” ou “seita peripatética”, para que
fossem distinguidos do que consideravam ser o verdadeiro pensamento de
Aristóteles.337 Verney analisa sistematicamente a distância entre o que disse
Aristóteles e o que dizem aqueles que se chamam aristotélicos, ou “peripatéticos”,
definidos por ele como discípulos e herdeiros da doutrina de Aristóteles.338
Verney procurou desacreditar a filosofia escolástica e apontar para a
superioridade da filosofia moderna. Os conteúdos apresentados nas cartas sobre a
filosofia se dirigiam principalmente aos temas abordados no currículo das
universidades. Porém, deveria haver primeiramente uma mudança em toda a base
da Filosofia praticada em Portugal, mediante o abandono da Filosofia escolástica.
Nas escolas menores, ou “escolas baixas” na terminologia de Verney, em que
se preparava o aluno para o ingresso na universidade, a base principal era o estudo
do latim.
Porém, as mudanças necessárias no método de estudo da Filosofia
praticada no reino português eram as mais importantes e mais urgentes, pois
“necessitavam ainda maior reforma que as outras, porque o mau método das
escolas baixas alguma coisa se pode emendar com o tempo”, porém argumentava
que, uma vez iniciado no estudo da Filosofia pelo “mau método” praticado em
Portugal - cheio de “metafísicas obscuras” - não seria possível remediar o que
causava “a confusão na Medicina, Teologia e mais Ciências”.339
Na súmula da carta sobre a física, Verney não deixa dúvidas sobre sua
posição perante o estado desta disciplina em Portugal:
Mostra-se que coisa é Física. Que em Portugal não entendem o que
é, nem sabem tratar a Física. Prejuízos dos peripatéticos; e danos
que resultam da Física da Escola, Excesso da Filosofia moderna, e
principalmente da Física, sobre a antiga. Diversidade entre os
mesmos Modernos; e qual sistema se deve preferir [...].340
Quando trata de outras disciplinas, quase sempre segue a mesma estrutura,
apontando primeiro os defeitos da metodologia utilizada em Portugal, para depois
recomendar o seu método. Além de útil, seu método promoveria uma redução no
337
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, Volume III, op. cit., p.169.
VM, volume III, p.171.
339
Ibid., p.2.
340
Ibid., p. 167.
338
94
tempo necessário para o ensino das disciplinas. No caso do Direito, chega a afirmar
que reduziria o estudo das leis de oito anos para “um ou dois; e pode ser que ainda
menos [...] e que, seguindo a Lei pelo método que dizemos, não empregaria tanto
tempo, e sairia com mais utilidade”.341
O método proposto por Verney estava voltado para a formação de um “outro
homem”, a partir dos princípios da “filosofia moderna”, que pudesse entender “os
interesses dos Príncipes”, “premeditar um projeto avantajoso, estipular um contrato
útil” e “aconselhar o seu Embaixador sobre estas matérias”.342 Advertia sobre a
necessidade de formar homens preparados para as necessidades de seu tempo,
que pudessem ocupar cargos e defender com êxito as demandas do reino. 343 Assim,
era necessária uma reformulação de todo o sistema de ensino, mas, sobretudo, das
Universidades:
Porque, sendo costume que das Universidades se tirem os que hão
de administrar o Econômico e Político do Reino, e sucedendo alguma
vez que estes sejam mandados às Cortes estrangeiras por Enviados
etc. para negócios de grande consideração, não tendo os requisitos
necessários, não podem fazer bem a sua obrigação, e muitas vezes
podem fazer danos.344
Para Verney, um dos maiores problemas da filosofia praticada em Portugal
era o seu preconceito em relação à cultura estrangeira. Utilizava a palavra método
para designar a prática do intercâmbio intelectual entre as nações, chamando a
atenção para a importância do espírito cosmopolita das Luzes no sentido do
desenvolvimento científico das nações. Argumentava que “franceses, ingleses,
holandeses e alemães” “correm o mundo para formarem os costumes, acompanham
os avanços científicos das Academias de Ciências como a de Londres, Paris e
S.Petesburgo”, no entanto, “este método é ignorado nas Espanhas, e mui
principalmente em Portugal, onde vejo desprezar todos os estudos estrangeiros”.345
O desconhecimento da “filosofia moderna” em Portugal ou do que Verney
também identifica por “boa filosofia” ou “ciência” ou “amor da ciência” era
consequência do conservadorismo e do isolamento dos portugueses, pois “eles
341
VM, volume IV, p.142-143.
Ibid., p.132.
343
Ibid., p.132.
344
Ibid., p.130.
345
VM, Volume III, p.17-18.
342
95
confundem todos os autores modernos e, sem mais exame, os acusam dos mesmos
erros e, com estranha dialética, os condenam de ignorância”.346
Para ele, a superação da “filosofia aristotélica” tornava-se uma tarefa
imprescindível, como fica marcante na seguinte passagem:
As leis do movimento, que segundo Aristóteles, são a chave para
penetrar os segredos da natureza, hoje estão demonstradas, e,
mediante as ditas, explicam-se muitos efeitos de que se ignorava a
causa. Antigamente os Filósofos não viam nos animais senão aquilo
que podem observar os carniceiros; nas árvores, aquilo que sabem
os carpinteiros; não tinham mais conhecimento das plantas do que
pode ter um jardineiro; nem dos metais sabiam outra coisa se não o
que sabe um fundidor. Mas hoje os Filósofos fazem anatomia em
todas estas coisas; explica-se a disposição orgânica de muitas
destas partes como se explica a disposição de um relógio. Este
modo de examinar a natureza tem aberto os olhos aos Filósofos, e
tem-lhe mostrado que da disposição maquinal de várias partes
dependem alguns movimentos que se atribuíam a causas ocultas.347
Embora fizesse elogios às teorias que explicavam o funcionamento dos
organismos vivos como máquinas (como os relógios) – em uma perspectiva
mecanicista, Verney se defende e afirmava não desprezar a filosofia antiga, como
argumentavam seus críticos; o autor considera que muitas coisas que os antigos
disseram estavam corretas, mas que precisavam ser submetidas à experiência. Para
ele o problema dos antigos se encontrava no fato que estes não “tinham telescópios
para observar os astros [...] e os mais instrumentos sem número que o método
moderno enriqueceu a Física”.348 Com o uso de instrumentos adequados e com o
auxílio do método moderno seria possível distinguir o que era verdadeiro, daquilo
que era verossímil ou falso.
Outro aspecto importante da proposta metodológica de Verney envolve a
questão das disciplinas auxiliares e sobre a conexão entre as disciplinas. Em todas
as cartas faz um breve esboço histórico e defende que todo o aprendizado se inicie
por uma breve história do assunto. No caso do Latim, por exemplo, Verney defendia
a necessidade de conhecimentos de História para se conhecer o contexto e “fugir os
346
Ibid., p.12.
Ibid., p. 196.
348
Ibid., p.195-196.
347
96
anacronismos, ou confusão dos tempos”.349 Para o ensino do Direito, a história se
torna imprescindível:
Quando V.P. ouvir dizer um Jurista que não sabe a História Civil,
principalmente a Romana, e a um Teólogo que ignora a História da
Igreja, sem mais outro exame assente que nem Leis, nem Teologia
sabe; porque a História é uma parte principal destas duas
faculdades, sem a qual não é possível que um homem as entenda.350
Por isso recomenda o uso de Dicionários Históricos e Compêndios de História
para o ensino do Direito e da Teologia. Da mesma forma que defende a Física como
um pré-requisito para a Medicina, a História é considerada indispensável para o
ensino de Teologia e do Direito. Mas para além do aspecto pedagógico, ela é uma
ciência auxiliar, necessária tanto para o domínio como para se avançar no
conhecimento sobre o Direito e sobre a Teologia.
3.2.1 A superioridade da filosofia moderna: a História como argumento
Na sua abordagem da História da Filosofia, primeiramente se ocupa em
apresentar o percurso da filosofia de Aristóteles desde seu surgimento até a sua
recepção pelos Teólogos. Depois trata do surgimento da Filosofia moderna e as
disputas com os seguidores de Aristóteles, chamados de peripatéticos.351 Verney
argumentava que a filosofia moderna conseguiu se impor com seus argumentos e
passou a ser aceita entre os católicos de quase toda a Europa, mas que ainda eram
condenadas pelos “Mestres de Portugal”.352
De acordo com Verney, a escola filosófica chamada Peripatética foi fundada
por Aristóteles, discípulo de Platão, porém, nos tempos de Cícero esta escola já
estava em decadência.353 Mesmo assim, as obras de Aristóteles foram sendo
transmitidas entre seus discípulos e, depois de serem roubadas, enterradas e mais
349
VM, Volume I, p.199.
VM, Volume IV, p.119.
351
Deforma geral, Verney utiliza os termos “escolásticos” e “peripatéticos” como tendo o mesmo
significado. Da mesma forma no que se refere aos termos “filosofia escolástica” e “filosofia
peripatética”. Ao se referir mais tarde sobre as obras de filosofia publicadas pelos jesuítas de
Coimbra, Verney afirmou que [...] a dita Filosofia é ‘pura peripatética’, digo escolástica, que é o
mesmo que não valer nada.” Cf. Carta escrita de Roma em janeiro de 1753. In: VERNEY, Luís
António. Cartas Italianas, op. cit., p.56.
352
VM, Volume III, p.37.
353
Ibid., p.25.
350
97
tarde recuperadas, foram levadas de Atenas para Roma, onde foram feitas cópias
“sem as conferir com os originais”. E foi a partir destas cópias que Aristóteles passou
a ser conhecido pelos filósofos romanos, sobretudo Cícero.
Seguindo a abordagem histórica de Verney, com a ruína do Império Romano
a filosofia só seria retomada no século VIII pelos discípulos de Maomé, que
traduziram para o árabe a maior parte dos textos dos gregos, sobretudo os de
Filosofia e Matemática, porque estes não eram afeitos ao estudo de poetas e
oradores. Os principais autores traduzidos pelos árabes foram Aristóteles,
Hipócrates e Galeno.354 A fama de Aristóteles chegou até os cristãos por meio da
Universidade de Paris e, finalmente, “ou para poderem disputar com os Judeus e
maometanos [...] ou por outra razão que não se sabe, os teólogos receberam
benignamente Aristóteles e, pouco a pouco, o introduziram na Teologia”.355 Depois
do século XIV a filosofia de Aristóteles já estava introduzida entre os cristãos por
meio das obras de S. Tomás de Aquino, Duns Escoto e Guilherme de Occam, que
correspondem a distintas escolas filosóficas na maneira como interpretaram
Aristóteles.
Ora, ao apontar que a via de entrada das obras de Aristóteles se deu pelos
“seguidores de Maomé”, Verney colocava em xeque a principal crítica dos
portugueses aos filósofos modernos, que argumentavam tratar-se de autores
hereges. Com sua abordagem histórica, apresentava a ideia de que as correntes
filosóficas consideradas como mais verdadeiras precisaram ser primeiramente
introduzidas nas universidades, demorando certo tempo para serem aceitas. Além
disso, Verney tenta mostrar como Aristóteles era relativamente novo entre os
teólogos católicos, não sendo conhecido antes do século XIII, de tal maneira que “a
examinar bem o negócio, Aristóteles é mui moderno nas escolas católicas”356.
Verney consegue colocar em relevo a importância de se avaliar as condições
históricas que levaram a filosofia de Aristóteles a ser aceita ou adotada como
referência dentro da igreja católica. Podemos pensar também que Verney estava
sugerindo que Aristóteles, como um filósofo disseminado no período medieval pelos
“maometanos” - que significa dizer, no mínimo, “infiéis” – teve que ser debatido e
estudado antes de ser aceito. Isso lhe permitia argumentar que o mesmo havia
354
Ibid., p.27.
Ibid., p.28.
356
Ibid., p.38.
355
98
ocorrido com a filosofia moderna, que depois de ser considerada “herética” vinha
sendo acolhida pelas “nações doutas”.
Por volta do século XVI, nos tempos do Concílio de Trento, começou-se a
desenvolver a filosofia moderna, que na abordagem histórica de Verney resume-se
ao que ele chama de “física”, ou “verdadeiro método de se adiantar na física”, com
destaque para as contribuições de Francis Bacon, seguidas pelas de Galileu e
Descartes. A partir de então, os melhores filósofos passaram a se dedicar aos
“estudos naturais” e “começaram a deixar as sutilezas de Aristóteles”. Enfim, na
breve história da filosofia apresentada por Verney, ele procurou argumentar que a
filosofia moderna se desenvolveu a partir da superação de algumas ideias de
Aristóteles.
3.2.2 Algumas diferenças entre a filosofia escolástica e a filosofia moderna
Embora tenha ocorrido uma perseguição por parte da igreja aos filósofos
modernos, Verney argumenta que estes responderam com experiências que se
tornaram “balas eficazes” contra as perseguições dos peripatéticos. Foi o surgimento
das Academias Experimentais que deu novo impulso para a Filosofia moderna,
primeiramente com a Academia de Londres em 1662, a de Paris em 1666, mais
tarde a do imperador Leopoldo no ano de 1670, em Bolonha em 1712, e a de S.
Petersburgo em 1725.
Alguns historiadores defendem que a filosofia moderna desenvolveu-se de
forma geral fora das universidades.357 Devido ao conservadorismo dos centros
acadêmicos, surgiram “centros alternativos de conhecimento”, fazendo com que o
século XVIII fosse o século das Academias.358 Nestes espaços faziam-se
experiências e defendiam-se ideias e teorias que dificilmente eram aceitas nos
espaços tradicionais das universidades europeias. Isso levou Paolo Rossi, por
exemplo, a afirmar que o Iluminismo foi um movimento de ideias que existiu à
357
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia, op. cit., p.80; ARAÚJO, Ana
Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal, op. cit., p.75.
358
BAUMER, Franklin L. O pensamento Europeu Moderno. Volume I. Séculos XVII e XVIII. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1977, p.61.
99
margem das universidades.359 Mesmo assim, Verney aponta para uma progressiva
penetração da filosofia moderna nas instituições de ensino da Europa:
[...] infinitos se têm declarado contra o antigo estilo, e ensinam
publicamente a filosofia moderna. Em Itália, e ainda em Roma, por
toda a França, Alemanha etc., se tem divulgado este método; e os
mesmos regulares, que ao princípio o tinham proibido, não tem hoje
dificuldades alguma em defendê-lo. Verdade é que algumas religiões
ainda o não aprovaram; mas também é certo que muitos leitores
delas são declaradamente filósofos modernos. Os dominicanos e
jesuítas, que pareciam os mais empenhados pelo antigo método,
começaram a admitir a nova filosofia, não só em França, mas ainda
em Itália.360 (grifo nosso)
Segundo Verney, a física dos peripatéticos poderia ser resumida a três
elementos principais: a matéria, forma e privação, e cada um destes elementos
constituía um ente distinto, independente.
A forma, como um ente distinto da
matéria, poderia alterar, por exemplo, sua cor e esta alteração significava um
acidente. De forma geral, na filosofia escolástica os corpos eram formados por
matéria e forma, sendo a substância o conjunto destes dois elementos. Cada corpo
era tratado como uma substância, e nossos sentidos só poderiam ter acesso aos
acidentes (cor, peso, quantidade, forma); a cor não era, como para os modernos,
resultante de uma alteração que a superfície de um corpo provoca na luz. 361 Verney
dá o exemplo da “cor de uma pedra rústica, que era tratada como um acidente para
os peripatéticos, ou seja, uma entidade distinta da substância”.362
Para Aristóteles a luz era um acidente que se apresentava em determinados
corpos e que era revelada pelo fogo do sol. Aristóteles não explicou as relações
entre o sol e a luz, nem seus efeitos na estrutura dos objetos visíveis. A cor era uma
propriedade associada à mistura de luz branca e de sombra (escuridão), e não se
admitia que ela pudesse se propagar.363
Esta nova percepção dos fenômenos naturais acabaria se chocando com
alguns dogmas religiosos, como o milagre da eucaristia, cuja explicação
representava a fusão da filosofia escolástica com a Teologia. Na eucaristia, as
359
Ver, por exemplo, ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. São Paulo:
Edusc, 2001, p.10 .
360
VM, volume III, p.35-36
361
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, Volume III, op. cit., p.170.
362
VM, volume III, p.144.
363
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, Volume III, op. cit., p.289.
100
substâncias do pão e do vinho são substituídas pelo corpo e sangue de cristo,
continuando os sentidos humanos a perceber os mesmos acidentes. Para os
escolásticos o milagre é explicado por uma alteração dos acidentes (o corpo de
cristo está lá, porém, a ação milagrosa faz permanecer os acidentes do pão e do
vinho), ou seja, é o corpo de Cristo que está na hóstia, porém na forma, cheiro e
textura do pão.364 Os católicos modernos como Verney não duvidavam do milagre,
mas explicariam de uma maneira diferente: o milagre seria então esclarecido por
uma ação divina sobre nossos sentidos, fazendo com que permanecêssemos
percebendo a cor, o gosto e o peso da hóstia. Ou seja, para os modernos, o corpo e
o sangue de cristo também estão lá, mas o milagre ocorre em uma mudança de
percepção provocada por Deus.
Verney argumenta que, ao contrário da concepção dos peripatéticos, o
acidente da cor consiste na diversa disposição da superfície de um corpo que reflete
a luz; portanto, o efeito da cor estaria associado a uma propriedade intrínseca da
matéria, que poderia ser alterado mediante uma modificação da textura de sua
superfície, o que acabaria alterando as condições de reflexão da luz, modificando
assim a sua cor.365 Outro exemplo utilizado por Verney é a transparência ou
diafaneidade do vidro, também considerada pelos peripatéticos como uma entidade
distinta da matéria. Verney argumentava que com uma simples experiência provaria
os equívocos desta explicação, bastando usar de um esmeril ou de um areia fina
para alterar o estado de transparência do vidro.366
Portanto, seguindo a filosofia moderna, Verney não admitia que a forma fosse
um ente distinto da matéria e ressalta que Aristóteles nunca havia feito esta
separação, conforme era admitido pelos peripatéticos. E ainda argumenta que a
causa destes equívocos se deve aos filósofos que interpretaram mal, como Tomas
de Aquino, que “não o entendeu bem e que pessimamente o entendem todos os que
seguem estas pisadas”.367
Verney chama a atenção para o fato de que a ideia de corpo era fundamental
para a física moderna, e defendia a necessidade de se conhecer as propriedades
comuns a todos os corpos, como, por exemplo, a sua divisibilidade, sua extensão,
364
Ibid., p.170.
VM, volume III, p.144.
366
Ibid., p.144.
367
Ibid., p.171.
365
101
dureza, mobilidade.368 Verney não distingue a noção de matéria e de corpo, e
considera que este se compõe em partes “divisíveis in infinitum, não havendo coisa
neste mundo que não possa dividir”; seguia a proposta de Demócrito, que costuma
ser considerado o precursor da teoria dos átomos. Todo o corpo é limitado, o que
corresponde a sua superfície, mas para se conhecer as formas corpóreas seria
necessária a geometria, que, por sua vez, seria inseparável da aritmética e álgebra.
E assim, por meio do cálculo, os físicos poderiam conhecer o movimento dos corpos,
a que Verney chama de mecânica, e a dos movimentos dos fluídos, que chama de
hidráulica. Para ele, a física requer absolutamente a matemática. A separação entre
a física e a matemática ocorreu somente depois que os peripatéticos “reduziram a
física a uma mera especulação impertinente”, o bom filósofo seria um bom
matemático e vice versa.369 Verney exemplifica como os escolásticos costumavam
zombar daqueles que defendiam a importância da matemática para a filosofia:
E já assisti a umas conclusões de matemática em que, vendo-se o
defendente obrigado a mostrar o que dizia como uma figura, gritou o
arguente: - que bicharoco é esse?Tire para lá isso. O auditório
aplaudiu muito este dito; mas eu tive compaixão de uns e de outros.
Tal é a ignorância destes países! [...] E, finalmente, nunca vi
conclusões de Matemática em que não houvesse, risadas. De sorte
que vão às ditas conclusões como quem vai à comédia, porque
entendem que são ridicularias que só servem para divertir.370
De acordo com Rômulo de Carvalho, em Coimbra os jesuítas mais antigos
resistiam em lecionar a Matemática e por isso foram advertidos pelo Geral Tirso
Gonzales, o que indicaria talvez um descaso pela disciplina da Matemática, que
contrastava com a forma severa com a qual seguiam as regras da companhia. 371
Inclusive, segundo ele, na universidade de Coimbra a disciplina de matemática não
foi ensinada por muito tempo por falta de professores.372
Mas, de forma geral, segundo Verney, a física dos antigos, em grande parte
devedora de Aristóteles, cometeu equívocos pela sua falta de método, mas também
pela “corrupção dos livros”, quando se afirmava que determinado livro havia sido
escrito por um autor que o não escreveu. Além disso, criticava o fato de fazerem
368
Ibid., p.173.
Ibid., p.213.
370
Ibid., p. 222.
371
CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade
até o fim do regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.382.
372
Ibid., p.382.
369
102
suposições sobre palavras obscuras e “arrastam violentamente as outras palavras
para o mesmo sentido que querem e não fazem caso da prova claríssima que se tira
das suas mesmas obras”.373 E por isso toda a física dos aristotélicos é “mistério”,
“altíssimas contemplações”, “mil questões fantásticas” e deveria ser desprezada por
não explicar e causar confusão, o que não quer dizer que se menosprezavam os
antigos:
Todos estes homens merecem louvor por aquilo que nos deixaram
escrito, e porque chegaram a conhecer alguma coisa que nós hoje
temos demonstrada, e talvez nos indicaram a estrada em outras, etc
[...] Eu acho, nos antigos filósofos, espalhados alguns pensamentos
que nós hoje recebemos como certos; mas sem método, sem razão,
sem demonstração, e pela maior parte, por via de conjectura.(grifo
nosso). 374
Pelo exposto acima, para que houvesse o desenvolvimento científico na
antiguidade, faltava aos antigos a noção moderna de método, baseada na
observação e demonstração. Era este o divisor de águas, para Verney, entre antigos
e modernos: o método.
3.2.3 O método e a medicina
O médico necessita aprender bem a física experimental
antes de iniciar os estudos do corpo, pois esta disciplina
que lhe capacitará para compreender as propriedades
gerais de cada corpo, analisado-se principalmente suas
características físicas: “as cores, o frio, o calor, o cheiro,
a dureza, a brandura”. Pois ´objecto da Física
Experimental é indagar as propriedades de cada corpo
pela simples observação´. 375
De acordo com Verney, a medicina só começou a se desenvolver após as
contribuições da física, pois dessa “depende em tudo e por tudo”, e a medicina
receberia grande contribuição a partir das ideias de Newton.376 No século de Cristo,
embora tivesse “grande merecimento pessoal” e curasse muitas enfermidades,
373
VM, volume III, p.174
Ibid., p. 195.
375
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina. Universidade
da Beira Interior: Covilhã, Portugal, 2003, p.12. A primeira edição é de 1763.
376
VM , volume IV, p.36
374
103
Galeno foi o principal responsável por fazer “degenerar a medicina”. 377 Foi um bom
comentador de Hipócrates, mas por ser um peripatético: “inclinava infinitamente para
a especulação, daqui veio que tropeçou nas hipóteses; e, explicando as coisas por
este método, fez muito mau serviço à medicina.”378 Segundo Verney, desde então,
tudo o que se disse sobre a medicina até o século XVI foi ignorância e deveria ser
desprezado.379
Ainda que no século XVI reconheceu-se a necessidade da Anatomia, a
medicina não evoluiu porque os médicos ainda seguiam a filosofia peripatética, “a
qual impede fazer experiências”.380 Porém, no século XVII, Harvey “abriu os olhos”
dos médicos ao demonstrar a circulação do sangue por meio dos princípios da
física.381
De acordo com Verney, o maior erro do método dos peripatéticos é sustentar
“que a natureza é aquilo que leram nos seus livros; e, ao depois, reduzem tudo o
que observaram na natureza aos princípios que tem bebido”. 382 Por isso
recomendava que se o estudante fosse peripatético, a primeira providencia a ser
tomada deveria ser “mandar-lhe ler algumas histórias das melhores experiências
que se tem feito em toda a física”.383
Assim como Verney, Ribeiro Sanches adere ao paradigma da filosofia natural
como guia para o estudo de todas as disciplinas. Para ele, a medicina deveria ser
“fundada na verdadeira Física”, por um “método de pensar, fundado no
conhecimento interior provado pela experiência; e que tem por último fim e objecto
achar os princípios e as causas de todos os nossos conhecimentos”.384
Não somente os Médicos necessitam possuir a Ciência da Física
geral, mas também todos aqueles que se aplicam às Ciências e às
Artes. A Náutica, a Arquitectura, Arte Militar, a Jurisprudência Civil e
Política tem os seus principais fundamentos nesta Ciência: além
disso necessitamos dela em quase todas as ocorrências da vida.385
377
Ibid., p.32.
Ibid., p.32.
379
Ibid., p.29, 32.
380
Ibid., p.34
381
Cf. JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência, op. cit., p.102.
382
VM, volume IV, p.24.
383
VM, volume III, p.223.
384
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina, op. cit., p.1.
385
Ibid., p.12.
378
104
Sabemos que na biblioteca de Ribeiro Sanches havia um exemplar do
Verdadeiro Método de Estudar, assim como outras obras de filósofos modernos
como Spinoza, Pierre Bayle, Herman Boerhaave (seu amigo e professor), David
Hume, Grotius, Puffendorf, Montaigne, Muratori, Buffon, D’Álembert. Ribeiro
Sanches também contribuiu para a Enciclopédia de Diderot e D’Álembert com um
artigo anônimo sobre a sífilis.386 Demonstrava ter boa inserção no ambiente
intelectual francês, fez contatos com D´Álembert, Diderot, Buffon, e demonstrou
conhecimento das obras de Montesquieu, Voltaire e Rousseau.387
O Método para Aprender e Estudar a Medicina de Ribeiro Sanches foi
publicado em um contexto diferente no qual Verney publicara o Verdadeiro Método
de Estudar, pois as reformas dos estudos menores já estavam sendo
implementadas por Pombal. Contudo, mesmo considerando que escrevia por “ordem
de sua Majestade”, demonstrava preocupação com relação à recepção de suas
ideias em Portugal, ponderando que até então “não se ensinaram publicamente
estes conhecimentos: pelo contrário floresceram nele somente aquela Filosofia
escolástica, que servia de introdução para estudar esta ciência”.388
Esta preocupação de Ribeiro Sanches em relação à recepção de suas ideias
no ambiente intelectual português pode servir para medirmos o grau de radicalismo
das ideias do Verdadeiro Método de Estudar e o quanto eram ousadas para seu
contexto de publicação. Contudo, as intenções destes dois pensadores eram muito
semelhantes, conforme podemos perceber na seguinte passagem:
[...] quero introduzir na melhor porção da Nação Portuguesa o
método de comparar os efeitos para vir no conhecimento das suas
causas; e de comparar e combinar estas, para prever e conhecer os
efeitos que delas se poderão seguir: Que este foi o método de
Bacon, de Verulâmio, Locke, & de Descartes, autores hereges, e não
sem nota de Ateísmo. 389 (grifo nosso)
Ribeiro Sanches, assim como Verney, criticava o método praticado na
Universidade de Coimbra, considerado por ele “erróneo e precário”, cujos critérios
de convencimento não eram baseados nas “experiências observadas”, mas na
386
BOXER, Charles Ralph. Opera Minora III. Lisboa: Fundação Oriente, 2002, p.208.
ARAUJO, Ana Cristina. Ilustração, Pedagogia e ciência em António Nunes Ribeiro Sanches.
Revista de História das Ideias, Vol. 5, p.389, 1984.
388
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina, op. cit., p.1.
389
Ibid., p.1.
387
105
autoridade dos Doutores. Assim como para o estudo da Medicina era necessário o
estudo da Física, esta não poderia ser compreendida sem a Geometria, Álgebra,
Trigonometria, e as secções cônicas. Estes princípios poderiam ser facilmente
ensinados por um professor “amante e inteligente”, e “seis meses de tempo com
uma regular aplicação, seriam bastantes para adquirir estes princípios”. 390 Assim
como Verney, apostava na simplicidade e na rapidez em se adquirir os
conhecimentos necessários da física, que serviriam para a formação do médico.
Além disso, Ribeiro Sanches queria acabar com o preconceito em relação ao
cirurgião, desprezado por ser um ofício mecânico, e propunha que tal “classe de
homens” fosse extinta e “que todos os médicos deviam aprender a cirurgia prática
na Universidade”.391
Chamava a atenção para a importância da Anatomia, ou a Antropografia na
formação dos médicos. Ribeiro Sanches criticava a forma como ela era ensinada
pelos escolásticos, em relação aos conhecimentos desta disciplina: “não consiste
em disputar, ler continuadamente, e exercitar-se compondo discursos literários”, mas
sim “exercitarem-se as mãos e os olhos na investigação das partes do corpo
humano”, e “este estudo obriga ao Médico a observar, a trabalhar, e a indagar; e é o
mais poderoso para adquirir aquele génio filosófico tão necessário nesta Ciência”.392
Mesmo aderindo ao paradigma da física, havia uma diferença fundamental
entre Ribeiro Sanches e Verney. Sanches não é irônico nem provocativo como
Verney, usando de uma linguagem mais comedida, e são raros os momentos em
que sua crítica é dirigida à situação específica de Portugal, ou aos jesuítas.
3.2.4 A lógica e o método
Um aspecto importante da filosofia moderna diz respeito à maneira como
modificou a Lógica, uma disciplina importante da época e que possuía um
importante papel no sistema de ideias de Verney.
A partir do Renascimento
observa-se uma mudança do significado da Lógica, que não se contenta em
classificar e organizar um saber adquirido, mas que também quer ser um
390
Ibid., p.7.
Ibid., p.19.
392
Ibid., p.20.
391
106
instrumento do saber.393 Ocorre o nascimento de uma nova lógica que procura
superar a forma escolástica.394
Trata-se de uma nova organização do conhecimento que emerge da crítica à
lógica escolástica. Ribeiro Sanches, afirma que depois de estudar em Coimbra e
Salamanca ainda não tinha “adquirido aquela Lógica ou raciocínio, que sabe
discernir o falso do verdadeiro, o certo do duvidoso”. Isso só teria acontecido após
ter estudado com Boerhave por quase dois anos, e defendia que a Lógica não era
uma ciência, mas “um instrumento para adquiri-la, e para compreendê-la”.395
A Lógica passou a ser percebida como um método para a produção do
conhecimento científico, e também se tornava uma disciplina fundamental nas
propostas para o campo da educação formuladas por Ribeiro Sanches e Verney.
Ribeiro Sanches citava Locke para explicar o que acreditava ser o verdadeiro
objetivo da educação dos jovens: “não é para saírem perfeitos em ciência alguma, é
somente para abrir-lhes o entendimento, e ficarem com as luzes necessárias para
aprender aquela a que se quiserem aplicar”.396 A “boa lógica”, de acordo com
Verney, estava intimamente ligada às luzes.
Mas o maior peso da crítica de Verney contra a filosofia peripatética volta-se
para o silogismo, o modelo da prática discursiva utilizada nas disputas escolásticas.
No processo que leva ao conhecimento das coisas, a que Verney denominava de
Raciocínio ou Discurso, o que importa é que dada, uma certa ideia, seja possível
reconhecer sua “conveniência”, e assim o entendimento “corre da primeira para a
segunda, desta para a terceira etc”.397 Segundo ele, o problema do Silogismo é que
“não faz mais que mostrar a conexão das partes, sem ensinar a buscar as
provas”.398
Segundo Verney, o silogismo, enquanto uma forma de raciocinar e organizar
as ideias, não discute a origem e seus fundamentos, mas apenas estabelece uma
ordem simples que possibilita determinadas conclusões. Por exemplo: Todo homem
é animal – Pedro é homem – Logo Pedro é animal.399 O problema, para Verney, era
que o silogismo basicamente fazia um juízo a partir da conexão de ideias ou
393
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992, p.338.
Ibid., p.338.
395
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina, op. cit., p.10.
396
Ibid., p.10.
397
VM, Volume III, p.101.
398
Ibid., p.56.
399
Ibid., p.66.
394
107
premissas, “se uma delas for falsa, será falsa a conclusão”. Isto se agrava quando
se aplica o silogismo para ideias mais complexas, os chamados silogismos
compostos. O discurso seguindo o método silogístico geralmente é muito longo, pois
se repetem muitos termos porque “cada silogismo deve repetir uma das proposições
do antecedente”. Assim, o que poderia ser dito em breves palavras “enche boa meia
folha de papel”.400 O uso do silogismo implicava também uma forma específica de
discursar e elaborar um raciocínio que, para Verney, era uma prática que, além de
duvidosa, dava muito trabalho e pouco benefício. Para ele aprender o modo de não
se enganar se chama Lógica ou Dialética, “que é muito mais antiga que Aristóteles;
mas ele foi o que a compilou com melhor método a respeito de seu tempo, ainda
que muito imperfeita, se olharmos para nosso tempo”.401
A Lógica, segundo Verney, nada mais é do que “um método e regra que nos
ensina a julgar bem e discorrer acertadamente”.402 Por outro lado, em um sentido
latto define “método aquela operação do entendimento tão necessária em todo o
gênero de Ciências, e sem a qual não se pode discorrer bem”.403 Portanto, há uma
relação de similitude entre os termos lógica e método. A própria lógica era um
método, e o método a sua parte mais fundamental.
Assim com para Ribeiro Sanches, a Lógica moderna sugerida por Verney é
em grande medida devedora do Essay Concerning Human Understanding
(Ensaio sobre o entendimento humano) de Locke.404 Recomendava o abandono da
lógica dos antigos, que servia às disputas escolásticas e que, para o uso das
escolas, seria preferível que “não se fale em tais regras” e se adote outra que não
“foi feita para Clérigos, ou Frades, ou pessoas de uma esquisita erudição: deve
servir a todos os que falam e raciocinam, e não só em discursos estudados, mas em
qualquer sorte de discurso, público ou particular, sério ou agradável”. 405
Quando Verney define o conceito de método stricto sensu , aponta para dois
tipos. O primeiro, o analítico ou resolutivo consiste em dividir a coisa que queremos
conhecer nas suas partes. O segundo, o “método compositivo ou sintético ou
400
Ibid., p.68.
Ibid., p.39.
402
Ibid., p.39.
403
Ibid., p.105.
404
Ibid., p.168. Cf. Notas de António Salgado Júnior. Cf. VM, volume III, p.79. E ver também:
TEIXEIRA, Ivan. Ressonâncias de John Locke na ilustração portuguesa: Luís Antônio Verney e
Francisco José Freire. RevistaUsp, São Paulo, n. 34, pp. 108-124, 1997.
405
VM, Volume III, p.78
401
108
didático ou método de doutrina”, é voltado para ensinar, refere-se à forma como
organizamos a matéria para que os outros a conheçam.406 Assim, há dois princípios
que definem o conceito de método. Primeiro, uma forma de organização das ideias
na mente, que deveria seguir uma ordem natural, sendo “uma disposição do
entendimento para conhecer as coisas como são”.407 Segundo, em uma perspectiva
didático-pedagógica, é uma forma de ensinar a matéria. Esta dupla acepção não
diferia muito daquela que se encontra no dicionário de Rafael Bluteau, que definia o
método como “modo industrioso, ordem, & arte de obrar, discursar, ou ensinar com
mais brevidade, & facilidade [...]”.408
A lógica Peripatética, ensinada nas escolas do reino, “embrulham a mente”, e
a sua parte introdutória, chamada de Proemiais, era considerada por Verney como a
“coisa mais inútil do mundo”. Em seguida, o aluno aprendia os tratados chamados
de Universais e Sinais, que eram “coisas indignas de se lerem”.409 Sobre os Sinais,
no máximo se aprende “que as vozes servem para declarar as ideias da mente e os
afectos da alma [...] Esta é toda a notícia útil que se tira dos Sinais e isto é coisa que
se aprende em um quarto de hora”.410 Ironizando o “enfadonho” tratado de
Enunciatione, ou Proposição, que envolvia uma série de comentários e disputas,
Verney usa um exemplo bem didático para ilustrar seu ponto de vista.
Isto é o mesmo que se um carpinteiro tomasse um aprendiz, e, em
lugar de lhe ensinar como há-de servir dos instrumentos, fizesse
longuíssimos discursos sobre a diversidade de instrumentos de
carpinteiro, contando-lhe miudamente que a alguns não agradam
aqueles instrumentos, que outros escrevem que se deviam fabricar
de outra maneira, e todo tempo passasse com isto.411
Outro exemplo dado por Verney sobre a Lógica Peripatética envolvia a
aplicação das categorias do Priori e Posteriori. Cita o exemplo de uma operação
lógica bastante simples: quando se diz que nos estabelecimentos que possuem um
ramo em suas portas vendem-se vinhos, traduzindo para a forma discursiva da
406
Ibid., p.105.
Ibid., p.168.
408
BLUTEAU, R. Vocabulário Portugues e Latino. Volume V. Lisboa: Na oficina de Pascoal da
Silva, 1716, p.467.
409
VM, Volume III, p.43.
410
Ibid., p.43-44.
411
Ibid., p. 48.
407
109
lógica peripatética a conclusão é acompanhada por “arengas filosóficas sem
nenhuma necessidade e utilidade”:
Aquele ramo é sinal ex-instituto do vinho, que se constitui na razão
de sinal, por um respeito de dependência do ato da vontade, que
deputou para significar vinho; pelo que se distingue do sinal natural,
que se constitui por um respeito de independência. Depois de toda
esta arenga filosófica, o tal rapaz entenderá muito menos o que lhe
dizem do que se lhe falassem em Caldeu.412
Com ironia, Verney defendia o que considerava o estilo simples de discorrer
sobre os temas da filosofia, sem as “arengas” da filosofia escolástica. Combatendo o
método que considerava inútil e atrasado, propôs uma via para se chegar ao
conhecimento, porém sem ofender os dogmas do catolicismo. O método da filosofia
escolástica estava voltado sobretudo para uma sistematização dos dogmas da
igreja, em que a Teologia tinha um papel fundamental. O que propunha Verney e os
filósofos modernos era a ideia de que, para as questões de ciência, a Teologia não
dava mais conta, fazendo-se necessário tornar a física como seu ponto de partida.
3.3 O Iluminismo católico de Verney
“Devido à inconstância humana” e por sermos filhos do primeiro pecador
(Adão), Verney reconhece que todos estavam sujeitos ao erro e que “o que se
pensa” e “o que se escreve” devem ser compatíveis com os preceitos estabelecidos
pela
igreja
romana.
Por
isso,
defendia
que
todos
deveriam
submeter
“voluntariamente” seus escritos, quer os já publicados, quer os que fossem
posteriormente publicados, ao juízo do “Sumo Pontífice”. Não é o caso de uma
autoridade epistemológica, afinal de contas, no que tange à Filosofia, Verney
reconhecia somente o “tribunal da razão”. Mas ao contrário, trata da “utilidade” em
se reconhecer também uma outra autoridade: o Tribunal da Inquisição, que pudesse
avaliar e controlar o que poderia circular publicamente. Conforme já apresentamos
no primeiro capítulo, Verney era favorável à manutenção da Inquisição, desde que
fosse regulada para funcionar de acordo com a “utilidade” do estado.
412
Ibid., p. 50.
110
Havia uma ciência capaz de detectar os erros e enganos de interpretação
acerca das “verdades reveladas” por Deus: esta ciência era a Teologia, por isso
Verney alertava que se algumas vezes caímos no erro de elogiar um autor herético,
“elogiemos a erudição do indivíduo, mas abominemos a sua perversidade e não
ponhamos a sua obra a venda para ser lida, excepto se for permitida pela igreja”.413
Embora defensor da filosofia moderna, reconhecia a necessidade da censura para
manter certos limites necessários na preservação das “verdades reveladas”.
Para o desenvolvimento de uma mente virtuosa, Verney considerava
fundamental “humildade e fé em Deus”, caso contrário jamais se alcançaria “aquela
filosofia que não está sujeita a nenhum erro”.414 A Luz natural da razão era uma
dádiva divina, um dom e uma capacidade que todo o ser humano tem, e que o torna
capaz de conhecer toda a obra de Deus. Argumentava que os filósofos modernos,
conduzidos pela luz da razão natural dada por Deus, passaram a valorizar cada vez
mais a física e a matemática. Este tipo de racionalismo fundamentava-se em uma
filosofia deísta, na qual Deus é o criador do mundo, que estabeleceu suas leis fixas,
eternas e universais.415
Seguindo a perspectiva epistemológica de Descartes, o espaço material
torna-se “dessacralizado”, no sentido de que não deveria estar mais tutelado pelos
princípios da escolástica. Contudo, ainda se mantém preso em uma ontologia
dogmática.416 O que explica porque Newton havia seguido por tanto tempo os
ensinamentos de Descartes, sobretudo no começo de sua formação intelectual.417
Com o auxílio da “Física, e regulados por boa crítica”, a mesma luz da razão
utilizada para explicar os fenômenos da natureza serviria para confirmar alguns
dogmas da religião.418 Mesmo sendo Deus um objeto “pouco inteligível”, pois não
podemos explicar o que ele é com “razões ou experiências”, devemos acreditar que
há uma “suprema causa” e “só podemos saber de Deus aquilo que ele quis que nós
soubéssemos”.419 O problema da Teologia praticada nos conventos e na
universidade de Portugal se encontrava “nos prejuízos da Filosofia Peripatética”, que
413
VERNEY, Luís António. Lógica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p.61.
Ibid., p.61.
415
JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência, op. cit., p.104.
416
Ibid., p.115.
417
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Européia, op. cit., p.16.
418
VM, Volume IV, p.232
419
Ibid., p.238.
414
111
a tratava “pessimamente” de forma supérflua e prejudicial aos dogmas.420 Em
Portugal havia muita disputa entre os doutores, porém eles “não concluem nada que
sirva para declarar o dogma, que é o empenho do teólogo”.421
Além disso, a Teologia deveria ensinar as verdades da fé a todos os filhos de
Deus, principalmente os jovens, para defendê-los dos inimigos da fé. Para Verney,
eram motivo de riso os argumentos apresentados pelos professores portugueses
que defendiam a Teologia Escolástica:
Em certa ocasião me respondeu um professor que as controvérsias
eram boas lá para a Inglaterra e Roma, onde se convertem Hereges;
mas não eram necessárias em Portugal, onde, por graça de Deus,
estávamos livres desta peste [...].422
Para Verney, o maior erro da Teologia em Portugal foi não ter acompanhado
os avanços da Teologia ocorridos após o Concílio de Trento. Segundo ele, os
hereges que apareceram no século XVI estimularam um processo de modernização
e aperfeiçoamento da Teologia, quando passaram a utilizar de um novo método na
forma de argumentar. Para que pudessem se adiantar nos problemas e assuntos da
Teologia moderna, os católicos tiveram que seguir o exemplo dos hereges, e fazer
uso do mesmo método. Assim, propõe o que ele chama de “Teologia Dogmática”,
aquela teologia que é exposta “com claro e fácil método, e conforme ao estilo da
escola”.423 Ao comentar novamente sobre o que lhe havia dito tal professor
português, Verney afirmava:
Ela vale o mesmo que dizer que fora de Portugal se deve saber
Teologia bem, e explicar uma Teologia que possa ser útil à religião; e
que em Portugal se deve empregar toda vida em uma Teologia que
não serve para defender a religião, mas unicamente para falar nas
coisas sem fundamento algum.424
A forma como Verney desqualifica a Teologia praticada em Portugal é muito
severa. Provavelmente, o motivo pelo qual ele a trata com tanto desprezo, não seja
tanto, como afirmou acima, por ela “falar nas coisas sem fundamento algum”, mas
420
Ibid., p.227.
Ibid., p.250.
422
Ibid., p.252.
423
Ibid., p.267.
424
Ibid., p.252.
421
112
porque
ignora
e
desconsidera
todo
seu
fundamento
e
sua
finalidade.
Surpreendentemente, com um golpe de retórica, e invertendo todo o sentido do
problema, Verney afirma que a missão do teólogo moderno é combater um outro
inimigo:
Este é o maior trabalho que têm hoje os teólogos modernos. Não
consiste a dificuldade em batalhar com os hereges, mas com os
mesmos Escolásticos, e persuadir-lhes que devem mudar de
método.425
Ironicamente, Verney apontava para os perigos de dizer a um tomista que a
Suma de S. Tomás não serve mais para sua época, ou a um escotista para não
fazer caso do que disse Escoto, pois abre-se logo um “processo criminal de
religião”.426 Este seria um dos pontos mais importantes e polêmicos tratados pelos
críticos de Verney, que não receberam bem a forma ousada com que ele havia
criticado os célebres doutores da filosofia escolástica.
Os autores elogiados por Verney eram em sua maioria considerados por seus
inimigos como “suspeitos na fé”. Contudo, mesmo aderindo à filosofia moderna,
aponta para o que ele chama de “autores menos recomendáveis”, como Maquiavel,
Espinosa e Hobbes, pois:
O certo é que estes autores têm muita coisa boa, e também muita
má; onde, não servem senão para homens feitos e bem fundados
nos princípios da Religião Católica, que os podem ler sem perigo e
deles tirar o que é útil.427
devemos também estar muito advertidos de não abraçar, com olhos
fechados, tudo o que dizem alguns modernos em matéria de Política
[...] Acham-se modernos que observa numa Política ímpia, a qual
não tem mais fim que engrandecer o Estado, sem fazer caso da
religião, nem do Direito Natural. Deste gênero é Nicolau Maquiavel,
Tomás Hobbes, e alguns outros.428
Verney não deu importância para as ideias políticas que vinham sendo
discutidas entre os filósofos modernos, gastando apenas algumas linhas para
justificar sua rejeição ao que considera autores perigosos. Ele nos apresenta
425
Ibid., p.287.
Ibid., p.287.
427
Ibid., p.298.
428
Ibid., p.137.
426
113
Hobbes como um “grande filósofo e geômetra”, com destaque para as obras
Elementos e De Cive, mas por outro lado, introduziu “mil hipóteses falsas e
temerárias”.429 No caso destes autores não recomendados, adverte que seus livros
são feitos para “homens feitos e bem fundados nos princípios da Religião Católica,
que os podem ler sem perigo e deles tirar o que é útil”.430 Verney aponta para alguns
autores modernos, os quais, de acordo com sua opinião, visavam atender apenas
aos interesses do estado, “sem fazer caso da religião”, como era o caso de
Maquiavel. Assim, Verney faz um filtro do que poderia ser aproveitado da filosofia
moderna, sem, contudo, ferir o ideal cristão. Portanto, alguns livros não deveriam
circular publicamente, pois o contato com suas ideias políticas poderiam ser
perigosas para a juventude.
Procuramos no presente capítulo apresentar alguns elementos do Verdadeiro
Método de Estudar que serviram para fundamentar sua proposta de um novo
método. Tentamos refletir sobre como o método proposto por Verney estava
alinhado com o ideário iluminista. Considerando que o contato com paradigma da
filosofia natural - ou da física, como preferia Verney - foi um dos elementos centrais
da cultura do iluminsmo, a forma como foi aderida por ele reflete como este novo
ideário atingiu Portugal. Para compreendermos melhor como se deu este processo,
na perspectiva de um Iluminismo português, será importante também analisar as
formas de resistência às ideias modernas, por meio de alguns textos que
procuraram criticar o Verdadeiro Método de Estudar. Mas antes disso, faremos
uma breve discussão teórica sobre o uso de termos-chave para compreender os
diversos uso e significados que a palavra método assumiu no contexto intelectual
português.
429
Paradoxalmente, conforme se verá no próximo capítulo, Hobbes e Verney combateram o mesmo
inimigo: a escolástica.
430
VM, Volume IV, p.298.
114
CAPÍTULO IV - MÉTODO COMO TERMO-CHAVE NO ILUMINISMO PORTUGUÊS
Este capítulo tem como objetivo principal argumentar que no contexto do
Iluminismo português a ideia de método implicava em uma renovação cultural que
transcendia os limites dos conteúdos disciplinares. Serão apresentados dados sobre
o ambiente político, social e cultural português, para uma melhor compreensão do
contexto em que o Verdadeiro Método de Estudar circulou. Em seguida procura-se
apresentar algumas reações provocadas pela obra de Verney, sobretudo no que se
refere à ideia de “método”, termo-chave da sua proposta filosófica.
4.1 O termo-chave e seus diferentes usos na história
As polêmicas sobre “Método” propostas pelo Barbadinho podem ser
consideradas o ponto culminante de um debate que já vinha ocorrendo nos
bastidores, mas que não havia se tornado público. Pois bem, as “polêmicas do
verdadeiro método” iniciam-se após a sua publicação e se prolongam por mais de
uma década, perdendo a sua vitalidade com a expulsão dos jesuítas, em 1759.
Envolveu principalmente a participação de escritores portugueses, projetando-se
para além de Portugal, atingindo também o reino da Espanha.
Estes debates refletiram de forma muito intensa o choque entre duas grandes
correntes de pensamento, que muitas vezes se posicionavam de forma antagônica.
Uma de pendor mais literário que se identificava com o modelo tradicional
escolástico, e outra favorável à necessidade de uma renovação - identificada com
toda a amplitude de temas da filosofia moderna.
O “novo método”, como era referenciado nos textos da polêmica, torna-se um
termo-chave na medida em que colocou em questão toda a cultura portuguesa, ou
seja, toda a “glória” e todo o “crédito da nação”. Entre os combatentes, os partidários
do método escolástico acusavam Verney de ser um “monstro” de “pigmeu”; por sua
vez, aqueles que o apoiavam o identificavam como um homem “aluminado” e
defensor da glória nacional.
Em uma perspectiva da história das ideias, um termo-chave pode ser um
conceito ou palavra central dentro de um determinado contexto de ideias. Seus
diferentes usos e significados ao longo da história transformam estes termos em
115
conceitos complexos. Conforme já analisamos, as fontes escritas também podem se
constituir como atos discursivos, como ações que visam algum objetivo particular.
Por isso Skinner chama a nossa atenção para a importância de se refletir sobre as
intenções dos autores, a respeito de como utilizaram determinadas ideias em seus
discursos para produzir um efeito específico. Trata-se de pensar não somente a
história de uma ideia a partir dos diferentes significados que possa ter assumido ao
longo do tempo. Mas também perceber, a partir de diferentes contextos linguísticos,
os seus diferentes significados e as diferentes maneiras em que ela poderia ter sido
utilizada.
Embora reconheça as diferenças entre a sua proposta e a de Reinhart
Koselleck431, Skinner aponta para uma linha de convergência fundamental entre
elas: “Tanto Koselleck como eu próprio defendemos que é necessário encarar os
nossos conceitos normativos não tanto como afirmações acerca do mundo, mas,
acima de tudo, como instrumentos e armas de debate ideológico”. 432 Conceitos
importantes como liberdade, cultura, civilização, podem ter o seu uso e significado
alterados a partir de diferentes contextos históricos.
Podemos concordar, seguindo o exemplo de Skinner, que os “urinóis” e
“cabides” de Marcel Duchamp são obras de arte relevantes, emolduradas e expostas
em galerias de arte. Porém, outros poderiam discordar, sustentando que obras de
arte têm de ser criadas deliberadamente para esta finalidade.433 Neste caso, não só
as circunstâncias do uso do termo “obra de arte” é utilizado em um contexto
diferente, como também transforma estes objetos em “obras de arte”: objetos que
recebem uma atenção especial e são carregados de uma áurea moral positiva.
Skinner apresenta um outro exemplo interessante para exemplificar seu
argumento. Podemos qualificar “corajosa” uma pessoa que se dispõe a se submeter
a uma morte dolorosa. Mas, em uma outra perspectiva, quando uma pessoa da
plateia de um circo se dispõe a ser ajudante de um domador de leões, podemos
contrapor afirmando que se trata de uma pessoa “imprudente”. Neste caso, o termo
431
Reinhart Koselleck é responsável pela chamada história conceitual alemã, ou Begriffsgeschichte.
A proposta metodológica de Koselleck para uma história dos conceitos é considerada inovadora no
campo da história das ideias.
432
SKINNER, Quentin. Retrospectiva : estudar a retórica e a mudança conceptual. (In)Visões da
política, op. cit., p. 248.
433
Ibid., p.228.
116
“corajoso” incide sobre o referente e não sobre o significado da palavra “corajoso”.434
Não está em questão o significado da palavra, mas do que Skinner chama de
“alcance referencial”, ou seja, trata-se de refletir sobre os critérios de sua aplicação.
Assim, para o caso do reformismo português, podemos indagar: qual a
relação da ideia de método com este contexto ideológico? Quais critérios foram
adotados no uso do termo “método” nestes debates? Quais seus diferentes
significados, seus diferentes usos e de que forma podem estar inseridos em um
vocabulário normativo específico?
No próprio título do Verdadeiro Método de Estudar de Verney
encontramos uma pista importante: o termo aparece em destaque classificado como
o método “verdadeiro”, sugerindo que os outros métodos poderiam ser classificados
como “duvidosos” ou “falsos”.
Porém, antes de abordarmos o debate sobre a ideia de método no contexto
português, faremos uma breve incursão sobre o significado desta palavra no
contexto mais amplo do pensamento filosófico europeu.
4.1.1 O método e a filosofia escolástica
Na Idade Média, a cultura escrita estava pouco disseminada e, de forma
geral, ficava sob o controle da igreja, que exercia uma espécie de monopólio do
conhecimento. As universidades, que surgem por volta do século XIII, cumpriam o
papel de defender as tradições intelectuais e manter o corpo de textos que
fundamentavam os dogmas da religião. A escolástica representava todo um conjunto
de doutrinas elaboradas a partir da fusão de elementos do aristotelismo com os
textos sagrados, era a filosofia praticada nas universidades e servia como um guia
para a correta interpretação dos textos canônicos. Havia uma preocupação em evitar
a penetração de elementos exteriores, constituindo-se assim como um “corpo
fechado de saber”. Por isso a escolástica fundamentava-se no princípio da
autoridade e na medida em que procurava manter a correta interpretação dos textos,
assumia o aspecto de uma ciência do comentário.435
434
Ibid., p.257. Skinner explica como a retórica pode ser utilizada como um importante instrumento
para a argumentação. Por meio da retórica a difamação pode passar por sinceridade, a imprudência
por coragem, a extravagância por abundância.
435
BARROS, José D´Assunção. A escolástica em seu contexto histórico. Fragmentos de Cultura,
Goiânia, v.22, n3, p. 232-239, 2012.
117
Todavia, o que conferia a verdadeira unidade à escolástica era um conjunto
de práticas, mais ou menos uniforme, que anacronicamente poderíamos chamar de
método. Estas práticas consistiam na leitura e comentário de textos canônicos e na
interpretação de alguns filósofos antigos recomendados pela igreja, principalmente
Aristóteles. O ensino era voltado, sobretudo, para saber ler e escrever o latim e
compreendia alguns elementos importantes, como a explicação gramatical das
palavras da frase, o comentário sobre o sentido da mesma e uma explicação
aprofundada e pessoal do professor sobre a passagem comentada.436
O papel centralizador representado pelas universidades é percebido na
imagem que os próprios universitários faziam dela, conforme lembrava Jean Gerson
(1363-1429), chanceler da Universidade de Paris. Para ele, a universidade era como
“a mãe dos estudos, mestra da ciência, ensinadora da verdade”.437 Orgulhava-se,
por exemplo, da superioridade dos médicos formados nas universidades em relação
aos tratamentos oferecidos pelos “feiticeiros, os mágicos, os encantadores e outras
gentes loucas”.438 Entretanto, ao contrário do papel intelectual, observado em suas
origens, percebe-se que entre os séculos XII e XV a universidade vai assumindo
cada vez mais um papel político de controle e conservação do conhecimento.
A Universidade de Coimbra, a mais antiga de Portugal, foi fundada em 1290,
no reinado de D. Dinis. Depois de funcionar em Lisboa, foi transferida para Coimbra
em 1308, alternando entre as duas cidades até 1537, quando se instala
definitivamente em Coimbra. Com a fundação do Colégio de Jesus, em 1542, os
jesuítas assumiram progressivamente uma hegemonia no sistema de ensino em
Portugal, tanto na formação básica - as escolas menores - quanto no ensino
superior.
A filosofia praticada pelos jesuítas seguia o modelo escolástico, subordinada
aos princípios da Ratio Studiorum.439 Segundo este texto normativo, que contém as
principais orientações pedagógicas da Companhia de Jesus, não poderia haver
436
Cf. HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolástico da leitura. (In) CAVALLO, Guglielmo;
CHARTIER, Roger. História da Leitura no mundo ocidental. São Paulo: Editora Ática, 2002, p.133.
437
De acordo com o depoimento de Jean Gerson, chanceler da Universidade de Paris. LE GOFF,
Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa:
Editorial Estampa, 1993, p.181.
438
Ibid., p.181.
439
Elaborado por uma comissão de jesuítas representantes das principais regiões da Europa, a Ratio
Studiorum foi promulgado em 1599 e serviu para todas as escolas da Companhia. Permaneceu
quase sem alteração até 1832. Cf. CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal, op.
cit., p.332.
118
diversidade de opiniões que pudesse por em risco a estabilidade da ordem e eram
proibidos de ensinar os professores inclinados a novidades no campo da Filosofia.440
Na 15ª Congregação Geral da Ordem, que ocorreu em Roma, em 1706,
concluiu-se que a obra de Descartes continha elementos que colocavam em risco os
dogmas da fé.441 Mais tarde, em 1712, por provisão de D. João V, advertia-se os
mestres do Colégio das Artes, em Coimbra, sobre a proibição dos desvios à filosofia
oficial: o aristotelismo escolástico.442
É importante ressaltar que, mesmo a filosofia de Aristóteles se tornando
preponderante, a maioria dos estudantes e professores não tinha acesso aos seus
textos originais e utilizava compilações de trechos, chamados florilégios. O acesso
aos originas era limitado por dois motivos: em primeiro lugar, o custo das obras; em
segundo, pelo fato do trabalho de cópia ter sido considerado por muito tempo uma
tarefa servil. Algumas ordens, inclusive, proibiam seus membros de gastar tempo
copiando textos, pois as horas de estudo eram consideradas preciosas. 443 Assim, a
maioria dos estudantes optaria pelo uso de florilégios e compilações, dispensando a
leitura do original.444 Geralmente os florilégios eram anônimos e não informavam os
critérios de seleção utilizados pelo autor; sobre este aspecto Jacqueline Hamesse
afirma:
A redução do pensamento original de um autor a uma série de
citações mais ou menos bem escolhidas e sempre tomadas fora de
seu contexto provocava a deformação de numerosas doutrinas e não
permitia que se entrasse em contato com a riqueza presente em
certas obras. Por outro lado, a escolha das citações utilizadas estava
relegada ao arbítrio do compilador, e passagens inteiras eram assim
votadas ao esquecimento quando não haviam sido julgadas dignas
de ser selecionadas.445
Portanto,
o
trabalho
de
pensamento original dos autores.
446
compilação
deformava
frequentemente
o
A partir do século XVI, os jesuítas passaram a
estimular a utilização destes manuais. Os principais livros didáticos aristotélicos
distribuídos para a Europa católica, no inicio do século XVII, eram comentários
440
Cf. CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal, op. cit., p.345- 346.
ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas, op. cit., p.32.
442
Ibid., p.32.
443
Ibid., p.32.
444
Ibid., p.34.
445
Cf. HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolástico da leitura, op. cit., p.132.
446
Ibid., p.135-136.
441
119
preparados pelos jesuítas da Universidade de Coimbra.447 Ao mesmo tempo, os
florilégios permitiam manter controle das interpretações e evitavam que os jovens
estudantes seguissem caminhos perigosos.
No pensamento escolástico, raramente o termo método aparecia com
relevância; costumava apenas ser mencionado como uma parte da lógica, e só
passou a receber maior atenção com a difusão da obra de Pierre Nicole e Antoine
Arnauld, a Lógica ou Arte de Pensar (1662), também conhecida por Lógica de
Port-Royal. Entretanto, segundo Calafate, a gênese do conceito de método foi
primeiramente estabelecida pelos dialéticos renascentistas, com destaque para
Filipe Melanchton e Pedro Ramo.448 O termo methodus não era desconhecido, mas
foi Filipe de Melachton quem inicialmente escreveu uma seção inteira dedicada a
esta questão, estabelecendo pela primeira vez o seu uso da maneira como seria
tratado posteriormente no século XVIII.
De forma geral, o método no século XVIII seria definido como uma forma de
conhecer a verdade e transmiti-la. Os filósofos modernos passaram a valorizar cada
vez mais a forma clara de explicar, confiando na “luz natural da razão”, dada por
Deus. Há uma progressiva confiança na lógica natural que seria colocada em
oposição à lógica formal dos escolásticos, cujo método passou a ser considerado
prolixo e inútil.
Por muito tempo, a filosofia de Aristóteles se manteve como o vetor do quadro
mais vasto do contrarreformismo.449 Para que ocorressem os avanços da ciência
moderna, seria necessário uma mutação no campo das possibilidades do
conhecimento e, para isso, era imprescindível uma superação das ideias de
Aristóteles.450 Contudo, não podemos deixar de considerar o caráter difuso das
correntes de pensamento que, naquela época, fizeram oposição ao aristotelismo.
Conforme ressaltou Paolo Rossi sobre esta questão, a filosofia moderna pode ser
caracterizada por correntes de pensamento bastante difusas:
447
HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolástico da leitura, op. cit., p.138,148.
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.230-223.
449
COXITO, A. Aristotelismo e antiaristotelismo no pensamento português: séculos XVI a XVIII. In:
CERQUEIRA, Luiz Alberto (org.). Aristotelismo e antiaristotelismo: Ensino de Filosofia. Rio de
Janeiro: Editora àgora da Ilha, 2000, p. 161. Ver também: CARVALHO, Laertes Ramos. As reformas
pombalinas da instrução pública, op. cit., p.37.
450
KOYRÉ, Alexandre. Estudos Históricos do Pensamento Científico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1982, p.55.
448
120
Baconismo, galileísmo, cartesianismo, newtonismo, leibnizianismo,
como o termo aristotelismo, são certamente etiquetas que recobrem
tendências e problemas diversos: são entidades não facilmente
isoláveis, variáveis no tempo, mas são sem dúvida também
programas ou tradições filosóficas e científicas em competição entre
si.451
O conflito entre antigos e modernos, que representa o conflito entre a
escolástica e a filosofia moderna, tem sido uma das linhas condutoras na
interpretação da história filosófica e cultural portuguesa. É preciso situar a
peculiaridade lusitana no processo mais amplo de modernização pelo qual passava
toda a Europa. Sem dúvida, o peso da igreja e a identidade católica em Portugal
foram elementos que revestiram este conflito com características específicas.
Conforme aponta Silva Dias, em Portugal “remontam aos fins do século XVII as
hostilidades desta guerra de cem anos” entre antigos e modernos, ou, como ele
também às vezes denomina, um conflito entre seiscentistas e renovadores.452
Este conflito permaneceu por muito tempo restrito ao ambiente institucional,
sem, contudo, tornar-se um debate público, como exatamente aconteceria em
meados do século XVIII, com as polêmicas em torno do Verdadeiro Método.
4.2 O método e o ambiente intelectual português
No século XVII, o jesuíta António Cordeiro, mesmo mantendo-se fiel ao
método e problemática dos escolásticos, foi afastado do Colégio das Artes por
demonstrar inclinação ao cartesianismo.453 Porém, as divergências entre Antonio
Cordeiro e os censores da Companhia de Jesus não representou um confronto entre
o sistema escolástico e a filosofia moderna que pudesse ameaçar a plataforma
filosófica da escolástica, ocorrendo apenas uma divergência interna. Ou seja, neste
caso não houve um confronto público entre a escolástica e os modernos, tanto que o
desvio de António Cordeiro foi tratado como um incidente isolado, ficando restrito ao
ambiente institucional. Porém, é possível constatar a penetração silenciosa das
451
ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica. São
Paulo: Editora UNESP, 1992, p.123.
452
DIAS, José Sebastião da Silva. O ecletismo em Portugal no século XVIII: gênese e destino de uma
atitude filosófica. Separata da Revista Portuguesa de Pedagogia. Coimbra, ano VI, p.3, 1972.
453
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura europeia, op. cit., p.60-64.
121
ideias modernas, mesmo que muitas vezes à margem do impresso e do ensino,
como uma realidade privada íntima.454
Conforme já apontamos, em Portugal, no inicio do século XVIII, já é possível
observar uma discussão em torno das novas ideias que circulavam na Europa
daquele período, com destaque para as reuniões no Palácio dos Condes da Ericeira.
Por volta da década de vinte, houve um círculo literário na casa de D. Francisco
Xavier de Menezes, o 4º Conde da Ericeira, que funcionou como uma espécie de
academia chamada dos “discretos".455 Nesta academia participaram, além de
estrangeiros, como António de Jussieu, membro da Academia de Ciências de Paris,
e eruditos, como D. Manuel Caetano de Souza, Manuel de Azevedo Fortes e,
principalmente, um dos principais animadores da academia e autor do famoso
Vocabulário Português e Latino (1712-1728), o francês D. Rafael de Bluteau.
Embora não tenha aderido a nenhum sistema moderno, Bluteau foi um grande
entusiasta da física e da matemática, as quais considerava importante para a
filosofia. Bluteau afirmava em seu Vocabulário que, “entre todas as ciências, só a
geometria tem verdades demonstrativas”.456
Esta elite aristocrática procurava promover reuniões, a princípio em caráter
de entretenimento cultural e para cultivar novas formas de sociabilidade e de
convívio, em que participavam muitos estrangeiros, como o abade de Estrées,
sucessor de Boileau na Academia Francesa.457 Havia um intercâmbio intelectual
com historiógrafos e diplomatas franceses, como Le Grand, Lequien de La Neufville,
membros da Académie Royale des Inscriptions et Belles Lettres e também de outras
nacionalidades, como o suíço Pierre Bayle. 458 Nas conferências, discutiam-se temas
como a lógica moderna, a filosofia natural, a ética, história, e inclusive a questão dos
métodos.459
454
DIAS, José Sebastião da Silva. “O ecletismo em Portugal no século XVIII. Gênese e destino de
uma atitude filosófica”, Revista Portuguesa de Pedagogia, ano VI, p.5, 1972.
455
Cf. DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.106.
456
Cf. BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino. Verbete matemática. Cf. DIAS, José
Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.109-110. Cf. também. DIAS. O
ecletismo em Portugal no século XVIII, op. cit., p.5.
457
ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal, op. cit., p.32.
458
Ibid., p.32.
459
Ibid., p.23-24.
122
Com a expansão dos espaços públicos, por meio da popularização das
Academias de Ciência, dos cafés, dos salões e das assembleias460, emergiam novos
espaços de sociabilidade que possibilitaram ambientes de discussão e debate de
novas ideias. Ampliou-se a difusão das Luzes através da circulação de livros, de
periódicos e das diversas modalidades de texto impresso, bem como sobre sua
recepção461. Neste conjunto de mudanças, Philippe Ariès aponta para o surgimento
de grupos de convivialidade nos meios que não pertenciam à corte e estavam acima
das classes populares.462 Neste sentido, as reuniões na casa dos Ericeira podem
representar um espaço de debates e discussão sobre as novidades científicas da
época.
Em
Portugal
nas
chamadas
assembleias,
homens
e
mulheres
se
encontravam para conversar e se divertir. Saber aparecer se tornava cada vez mais
um valor social importante.463 No ambiente de corte português, na primeira metade
do século XVIII, já havia o hábito de organizar saraus musicais, porém essa prática
ficava restrita à fidalguia.464 Conforme abordaremos mais adiante, os críticos da
filosofia moderna costumavam utilizar a ideia das modas e sua efemeridade para
justamente criticar e desqualificar os adeptos da filosofia moderna.
As modas eram consideradas por alguns como ondas que surgiam e
desapareciam com muita rapidez. A noção de moda geralmente estava relacionada
ao contexto dos novos padrões de convívio social que emergiam no século XVIII. No
dicionário de Rafael Bluteau, moda significa “modo de trajar, falar e fazer qualquer
coisa”. Geralmente inventadas por moças e moços e cuja “perpetua variedade de
460
Assembleia designa a forma portuguesa do salão. Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da
vida privada em Portugal, op. cit., p.445.
461
CHARTIER, Roger. Espacio Público, crítica y desacralización en el siglo XVIII: los orígenes
culturales de la Revolución francesa. Barcelona: Editorial Gedisa, 1991. CHARTIER, Roger. A
História Cultural. Lisboa: Difel, 1990. CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996. CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros. Brasília: UnB, 1994. CHARTIER, Roger.
A aventura do livro. São Paulo: Unesp, 1998. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França prérevolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. DARNTON, Robert. Os dentes falsos de
George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
462
ARIÈS Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada, 3; da Renascença ao século das
Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.15.
463
Conforme aponta Sennet, a sociabilidade é fruto do lazer, num estado de lazer as pessoas
interagem pelo simples prazer do contato. Quanto mais interagem fora dos rigores da necessidade,
mais os homens se tornarão atores. Por isso a cidade grande é um teatro, ao representar uma vida
pública, os homens perdem contato com a virtude moral, pois as pessoas se comportavam como
atores nas cidades como forma de serem sociáveis. Cf. SENNETT, Richard. O declínio do homem
público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das letras, 1988.
464
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal, op. cit., p. 447.
123
ornatos não deixam de ter perniciosas consequências, os que não a seguem,
parecem ridículos, os que com ela se conformam, desperdiçam patrimônio”.465
D. Luís da Cunha também comentou sobre o consumo de produtos de luxo,
considerados por ele como supérfluo, a “droga” que era enviada pelos franceses.
Queixava-se do que considerava uma “epidemia”, “de Paris mandam uma droga, a
que chamam moda, que vai por toda a Europa”. Apontava que eram enviados
“chapéus, cabeleiras, bordados, livros, castiçais de cobre prateados, jarros, sapatos
de homem e de mulher, rendas de seda, fivelas de prata, metal, e pedras falsas,
meias de seda”. Recomendava examinar quais destas mercadorias poderiam ser
proibidas por serem inúteis e quais poderiam ser fabricadas pelos portugueses.466
No bojo destas mudanças, a mulher, por exemplo, passou a ter mais
liberdade e a sua “pretensa inferioridade intelectual” seria questionada por Verney,
um dos primeiros portugueses a defender a ideia de educar as mulheres em
Portugal. No Verdadeiro Método de Estudar, ele propõe que as mulheres deveriam
ser educadas para atender as demandas específicas do ambiente doméstico, mas
também deveriam saber entreter seus maridos. Argumentava que, se os homens
preferiam levar uma vida boemia, longe de suas famílias, a culpa era das mulheres
que, por serem incapazes de levar uma boa conversa, não sabiam “adoçar o ânimo
agreste de um marido áspero e ignorante”, ou “entreter melhor a disposição de
ânimo de um marido erudito”.467
4.2.1 Ciência, moda, e as viagens filosóficas
É verdade que abundam as criticas contra as
Madames, e também é verdade que todas são
justíssimas; elas tem sido a ruína, e o estrago de
imensas famílias: o luxo tem pervertido a ordem das
sociedades, pobres pais, que com seus medíocres
lucros a penas podiam manter-se no regaço da paz
sem dívidas, eu os vejo pobres, empenhados, e
talvez faltos de crédito para cevarem o gosto de suas
filhas, e mulheres com as modas que de dia, em dia
se inovão, e se descobrem: e que modas são estas?
465
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, verbete “moda”, op. cit., p.526.
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I. antes
do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu embaixador às
cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749, op. cit., p.61-62.
467
VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar, V.5, op. cit., p.126.
466
124
Seja-me permitido esta expressão: ridicularias que já
mais se podem ver sem rizo, e sem escarneo.468
As tensões entre o antigo e o moderno vão se tornando cada vez mais
evidentes, na medida em que nos aproximamos do final do século XVIII. A partir da
segunda metade do século XVIII, o teatro e até mesmo a ópera vão ter um papel
cada vez mais importante na difusão de novos valores e padrões de
comportamento.469 Nos teatros, diversos costumes e situações do cotidiano passam
a ser representados, e nisso geralmente possuíam um duplo papel: ou serviam para
deixar uma lição de moral, ao reforçar comportamentos exemplares, ou serviam para
criticar e satirizar costumes antigos, considerados fora de moda. A partir da década
de 1780, observamos um aumento significativo da publicação de peças de teatro
que satirizavam a moda, principalmente o entremez, que em Portugal teve grande
repercussão. O entremez foi um modelo teatral cômico que abordava temas do
cotidiano de forma crítica e satírica, destacando-se pela forma como eram tratados
os conflitos entre os velhos costumes e as novas tendências ditadas pela
modernidade.470
Os defensores do método tradicional defendiam que os adeptos da filosofia
moderna seguiam uma moda passageira. O jesuíta Francisco Duarte, por exemplo,
advertia sobre a “cega estimação com que alguns atendem aos que tem peregrinado
em reinos estrangeiros”.471 De acordo com ele, chamava-se “moda” toda a
necessidade de se saber a notícia das “novas invenções que aparecem em outros
reinos, e da variedade, que reina na música, arquitetura, vestido, e em tudo o
mais”.472
Nas Reflexões apologéticas, o jesuíta José de Araújo acusava Verney de
ser um imitador destas modas, por aceitar acriticamente as obras de filósofos
modernos: “Reina esta moda muito em Inglaterra, França e Flandres. E posto que
muitos destes são Católicos, é necessária grande advertência para separar dos que
468
Graciosa, e divertida farça ou o novo entremez intitulado a defesa das madamas a favor das
modas, em que deixão convencida a peraltisse dos homens. Lisboa: Na oficina de Antonio
Gomes, 1792, p.8.
469
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal, op. cit., p.150.
470
Cf. FONSECA, Elizabeth Pereira Alves da. O casamento segundo o teatro de cordel em
Portugal (1783-1794). Monografia. UFPR, Curitiba, 2011.
471
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética. Sevilha, Imprensa de Antonio Buccaferro, 1749,
p.7.
472
Ibid., 57.
125
são suspeitos na Fé [...]”.473 O Verdadeiro Método de Estudar era descrito por ele
como “um par de críticas à moda impressas talvez para ganhar dinheiro, e que seu
estilo é contradizer tudo que podem, e não podem!”. Comparava Verney a um
alfaiate que “se aparece alguma coisa má ou menos ajustada, lá vai a tizourada...
mas se a ciência do mestre alfaiate é como a sua gaveta, onde se não acha pesa
inteira, tudo são retalinhos de bayeta, feno, seda, e de várias cores”. 474 Desconfiava
dos “tais modernos” por não serem “firmes na fé”, porque segundo ele, concordavam
“muito com as invectivas dos hereges contra todos os Doutores escolásticos”. 475
Para ele a defesa da filosofia moderna poderia levantar suspeita de heresia, o que
significava dizer inimigo da Religião e da nação.
Muitos letrados portugueses aproveitaram os novos gostos literários para
combater seus adversários na corte, principalmente os “fidalgos de sangue”,
considerados por eles de ignorantes. Neste contexto, o contato com o estrangeiro
ganhava uma conotação importante, enquanto possibilidade de conhecer o que
vinha sendo considerado o “bom gosto” nas principais capitais europeias; além
disso, as viagens passavam a ser também consideradas como uma forma de
instruir-se.
As narrativas e relatos de viagem constituía uma literatura de muito prestígio.
Conforme aponta Rui Ramos, os escritores deste gênero literário faziam parte de
uma elite culta, que para tirar vantagem e sustentar a sua posição no círculo da
corte procuraram “cobrir do mais escuro breu a situação nacional, ocultando assim
as condições que tinham possibilitado e permitiram a crítica”.476 Ou seja, conforme
discutimos no primeiro capítulo, para conquistarem prestígio e mercês, estes autores
buscavam valorizar suas opiniões e observações sobre a ciência, sobre a filosofia e
os costumes, em comparação com o que era praticado em Portugal.477
473
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.7. Araújo faz uma alusão à doutrina de
Cornélio Jansen, bispo de Ipres, sobre a graça e predestinação, a qual foi considerada herética pela
Igreja Católica.
474
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.8.
475
ARAÙJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.3.
476
RAMOS, Rui. Nas origens da “Lenda Negra”: as viagens filosóficas do século XVIII português.
Penélope. Fazer e desfazer a História, n.4, p.77, 1989.
477
Conforme apontou Rui Ramos, a disputa por prestígio, mercês e cargos tornaram a cultura e a
política como dois campos entrelaçados no século XVIII. José Roberto Braga Portela também
observou o desejo dos autores destes relatos em “mostrarem serviço” ou quem sabe agradar alguém
com vistas a obter algum tipo de benefício Cf. PORTELLA, José Roberto Braga. Descripçoens,
Memmórias, Noticias e Relaçoens. Administração e Ciência na construção de um padrão
textual iluminista sobre Moçambique, na segunda metade do Século XVIII. Tese em História,
Curitiba, UFPR, 2006, p.55.
126
As Memórias históricas, geográficas e políticas observadas de Paris a
Lisboa, publicadas por Pedro Norberto d´Aucourt e Padilha em 1746, no mesmo
ano de publicação do Verdadeiro Método de Estudar, circularam com todas as
licenças. Na análise da obra, o censor fez o seguinte comentário:
[...] vendo os nossos portugueses, ou detidos (como os
companheiros de Ulisses) da singular amenidade do país, ou
satisfeitos (como os atenienses) da instrução dos seus nacionais;
rara vez saem a aprender das outras nações polidas da Europa: e
juntamente entendendo, que a causa de muita ignorância é o não
sair, como advertiu outro sábio português, saiu da pátria para lhe
comunicar o que observasse, e para que os portugueses tivessem a
utilidade da instrução, sem o incômodo das jornadas” 478
A circulação de uma obra como a de Padilha, cuja “principal empresa” era a
de comunicar os diferentes costumes de outros povos, servia talvez mais para
atender a curiosidade de alguns nobres portugueses acerca dos costumes e modo
de vida das grandes cidades europeias. O fato de sua obra ter sido aceita pela
censura pode ser explicado pelo seu caráter despretensioso, até mesmo “exótico”.
Talvez não tivesse a intenção de comparar os lugares visitados com Portugal ou
criticar seu modelo de ensino e, principalmente, não atacar nenhuma instituição
portuguesa como a Companhia de Jesus.
Ao mesmo tempo, não deixava de exagerar na sua descrição das grandes
cidades como Paris, com suas “ruas e praças planejadas”, onde as pessoas
valorizavam mais as virtudes e não o nascimento, em que o merecimento pessoal
era o único critério de distinção.479 De acordo com Padilha, os nobres eram
educados nas artes da dança, da música e, principalmente, nas ciências e filosofia.
Paris era uma cidade cosmopolita, as óperas, os bailes, os jardins, as praças, as
casas de conversação, eram para todos, “todos se reputam iguais no que pagam
com o seu dinheiro”.480
A partir da segunda metade do século XVIII as chamadas “viagens filosóficas”
assumiriam o caráter de expedições científicas patrocinadas pelo estado. De acordo
com José Roberto Braga Portela, no quadro de centralização e racionalização da
administração do reino, a literatura dos relatos de viagem compunham um padrão
478
Pedro Norberto d´Aucourt e Padilha Apud RAMOS, Rui. Nas origens da “Lenda Negra”: as viagens
filosóficas do século XVIII português. Penélope. Fazer e desfazer a História, n.4, nov, p.62, 1989.
479
Ibid., p.63.
480
Ibid., p.63.
127
textual e um campo editorial próprio, definindo-se por uma visão enciclopedista de
produção de um conhecimento útil, que pudesse transformar a natureza em
riqueza.481
O tema das viagens também foi objeto da comédia musical de Carlo Goldoni
“O viajante ridículo”482, que relata a história de um cavaleiro regressado de uma
viagem por França e Inglaterra, que achava tudo mal na sua pátria, mas que
maliciosamente elogiava a liberdade das damas nestes lugares, pretendendo que as
suas amigas adotassem um comportamento mais liberal, para que ele pudesse se
aproveitar.483 A lição de moral oferecida por esta comédia pode ter sido mostrar que
entre os novos costumes havia efeitos indesejados, como a maior participação das
mulheres na vida social.484 Como se sabe, mais tarde Rousseau se tornaria um dos
principais críticos do estilo de vida das grandes cidades como Paris e Londres.
Apontava para a corrupção dos costumes nas grandes cidades, onde eram
cultivados prazeres que não contribuíam para se manter uma vida baseada no
trabalho, na família e no dever cívico.485
Em Portugal, as experiências científicas também se tornaram uma moda de
salão. Por volta de 1752 iniciou-se um ciclo de conferências sobre filosofia
experimental promovido pelos padres da Congregação do Oratório. Nestes
encontros eram realizadas diversas experiências científicas que atraíam grande
parte da elite curiosa de Lisboa. Além de ser uma introdução a aspectos genéricos
da filosofia experimental, havia um caráter lúdico inerente a estas manifestações que
contribuíram muito para o seu sucesso.486
Conforme aponta Francisco Contente Domingues, estas experiências
científicas eram bastante atrativas para aqueles que haviam se formado “na secura
do ensino livresco e reduzido ao comentário textual”. 487 Após o segundo ano de
481
Cf. PORTELLA, José Roberto Braga. Descripçoens, Memmórias, Noticias e Relaçoens.
Administração e Ciência na construção de um padrão textual iluminista sobre Moçambique, na
segunda metade do Século XVIII, op. cit., p.54-55.
482
Il viaggiatore ridicolo, 1770. Cf. Pedro Norberto d´Aucourt e Padilha Apud RAMOS, Rui. Nas
origens da “Lenda Negra”: as viagens filosóficas do século XVIII português. Penélope. Fazer e
desfazer a História, n.4, nov, p.63, 1989.
483
Ibid., p.75.
484
Sobre a mudança dos papéis femininos ao longo do século XVIII CF. Cf. LOPES, Maria Antónia.
Mulheres, espaço e sociabilidade. Lisboa: Estampa, 1988; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da
vida privada em Portugal. A idade moderna. Lisboa : Círculo dos Leitores, 2010.
485
Cf. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das letras, 1988.
486
DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e Catolicismo, op. cit., p.74-75.
487
Ibid., p.76.
128
existência das conferências, Teodoro de Almeida, sucessor de João Batista na
condução das conferências, chegou a reclamar do elevado número de pessoas que
participavam, o que impedia que todos pudessem ver nas melhores condições o
desenrolar das experiências.488 Teodoro de Almeida fazia também
sessões de
divulgação em alguns salões de Lisboa, onde a elite social assistia com ar de
diversão as curiosas experiências. Era uma moda de salão, pois muitos não
entendiam e não tinham consciência para avaliar a importância daquelas
experiências para o campo do conhecimento.489
Em 1752, o jesuíta Paulo Amaro, no seu Mercúrio Filosófico, escrito sob
pseudônimo, acusava que o que se fazia nestas demonstrações era enganar
“simples idiotas”. Acusava, ainda, de estar ocorrendo uma vulgarização da filosofia,
comunicando-a a pessoas que nem mesmo tinham os conhecimentos básicos de
latim.490 Paulo Amaro reclamava de que tudo o que se proclamava como novo já
havia sido dito por Aristóteles, mas que era vendido como novo nas palestras dos
oratorianos.491
4.2.2 A moda e as polêmicas do verdadeiro método
As reações mais fortes e contundentes ao Verdadeiro Método de Estudar
partiram dos jesuítas, que o consideravam uma sátira feita para ofender a glória e o
crédito da nação portuguesa. De forma geral, os jesuítas defendiam o importante
papel dos portugueses na grande missão de converter almas, desde as Índias,
China, Japão e América. Defendiam, ainda, que graças ao empenho dos jesuítas
expandiam a fé pelo mundo e lutavam contra as heresias no continente europeu.492
Portanto, os jesuítas procuravam reafirmar o importante papel da Companhia como
sendo o braço direito da igreja.493
O jesuíta José de Araújo procurou desacreditar a utilidade do novo método,
afirmava que: “são estes métodos excelentes para cavaleiros, que não tem mais
488
Ibid., p.76.
Ibid., p. 77.
490
RAMOS, Rui. Nas origens da “Lenda Negra”: as viagens filosóficas do século XVIII português, op.
cit., p.79.
491
DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e Catolicismo, op. cit., p.78.
492
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar. Valensa: Na oficina de Antonio Balle, 1750, p.26.
493
Ibid., p.26.
489
129
obrigação de estudos, que a sua louvável curiosidade”.494 Araújo ainda utilizava
termos como “livrinhos” e “filosofia de senhoras” para se referir às obras dos filósofos
modernos e, ao contrário de “abrir os olhos ao mundo”, os modernos iriam “introduzir
uma grande cegueira”.495 Demonstrava desprezo pela filosofia moderna por esta se
dedicar ao que chamava de questões frívolas e superficiais, pois segundo ele, as
grandes questões não poderiam ser tratadas por meio dela, mas somente por meio
da filosofia especulativa.496 Argumentava ainda que os autores que aderiam à
filosofia moderna acreditavam que “com pouco trabalho, e em breve tempo ficariam
grandes letrados”.497
Segundo Araújo, a filosofia moderna acabava tendo uma boa aceitação por
parte da juventude pelos seguintes motivos: “Primeira, por serem livros de
estrangeiros, cujas modas tem grande saída entre nós [...]”.498 Segundo, que sem
“animo para se cansarem nos estudos” e “vendo que as ciências são muito mais
largas, que a vida”, “aplicam-se com muito gosto a estes livrinhos”. E a terceira,
acusa a moda das experiências científicas como movidas por uma idiota
curiosidade, que “pasmão os aprendizes e dão a cousa por provada”. 499
Outro autor que procurou desacreditar o novo método foi o jesuíta Francisco
Duarte. Argumentava que naqueles “tempos de moda”, muitos prejuízos vinham
sendo cometidos contra as ciências, era preciso estar muito advertido para não
confundir “homens doutos com ignorantes”; segundo ele, havia uma “superficial
erudição” disseminada na corte.500 Reclamava de uma “ignorância mascarada”,
muitas pessoas tentando se passar por coisa que não eram, estudantes tentando
disfarçar sua pobreza para enganar a universidade. Defendia que não era
necessário viajar para se tornar um sábio:
Nem V.S. se deixe ocupar de uma cega estimação com que alguns
atendem aos que tem peregrinado em reinos estrangeiros. Algum dia
para entender um sistema de uma escola, para ouvir um filósofo,
para alcançar à mão um manuscrito era necessário ir ao Egito, com
494
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar, op. cit., p.292. Provavelmente estava se referindo a
“moda” de assistir às experiências nas Academias de Ciência, que se tornavam cada vez mais
populares na Europa do século XVIII.
495
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar, op. cit., p.293.
496
Ibid., p. 292.
497
Ibid., p.3.
498
ARAÙJO, José de. Reflexões Apologeticas, op. cit., p.7.
499
Ibid., p.7-8.
500
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., p.6-7.
130
Platão, ou à Pérsia, com Pitágoras; mas hoje, que por benefício da
imprensa temos dentro de quatro paredes notícias exatíssimas de
todo o mundo nos escritos dos sábios de todas as nações, pode um
homem enriquecer-se de uma vasta erudição sem sair de sua casa:
assim como pode ser na verdade mui idiota um peralvilho que andar
correndo a Europa toda. 501
Também queixava-se da persistência com que os apologistas do novo
método publicavam seus escritos, ponderando que a invenção da imprensa tinha
sido tão útil como prejudicial aos sábios. Acusava o Barbadinho de ter dado “ânimo
para que os ignorantes presumidos” publicassem ”os sentimentos, de que eles
mesmos se deveriam procurar esquecer”.502 E assim, a popularização do ofício de
escritor tornava-se mais um sinal da “corrupção dos novos tempos”: “Oh infeliz
aplicação tão prostituída neste século quanto o não está o oficio mais sórdido e
mecânico”.503
Ao contrário do que pensava Verney, José de Araújo defendia a necessidade
de se manter distância dos grandes centros irradiadores da moda, provavelmente
acreditando que com isso seria possível manter a identidade e a tradicional ordem
dos bons costumes: “não é necessário sair do reino para ser um bom conselheiro da
Fazenda, Ultramar, Secretário de Estado, e das Mercês”, pois para isso seria preciso
fazer todos “cavaleiros andantes”.504 Alegava que muitos ministros vinham para
Portugal de varias nações. Tanto eles como seus secretários vinham pela primeira
vez, e que se fosse assim, aquele que nunca tivesse saído do reino não saberia
discorrer, como pensava o Barbadinho, pois salientava que muitos que viajavam
para fora do país, voltavam “tão ignorantes, como foram; e outros ainda pior nos
costumes, e religião”.505
A verdade é, que para as Resoluções do Conselho de Ultramar
bastarão as noticias, que temos daquelas partes, os informes dos
Governadores, e Ministros delas, com a praxe do que se tem
ordenado em casos semelhantes, e sobre tudo a prudência, e
capacidade do Conselheiro; aliás será necessário, que tenha corrido
as quatro partes do mundo; porque em todas tem a Coroa domínio.
O mesmo bastará para o Conselho de Estado, e mais Tribunais. Isto
é falar com acerto, com honra, e respeito das, muitas e graves
501
Ibid., p.7.
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., p.6.
503
Ibid., p.7.
504
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar, op. cit., p. 407-408.
505
Ibid., p.408.
502
131
pessoas, que S. Magestade tem escolhido para estes Tribunais; e
não falar com a maledicência do Critico [...].506
Como é possível observar, para José Duarte, o fato de não haver motivo para
mudar os costumes portugueses, a grandeza de seu império e a forma como vinha
sendo administrado, era prova de que o autor do novo método não tinha nenhuma
razão, e que provavelmente seu objetivo era simplesmente “desagravar o crédito da
nação”. Além disso, apontava para a ousadia de seu adversário em colocar em
questão os critérios utilizados pelo Rei na escolha dos homens que ocupariam os
cargos mais importantes da administração do reino.
Nas Respostas as Reflexões Apologéticas, Verney rebateu as críticas de
José de Araújo, argumentando que esta era uma prática seguida pelos Reis da
Europa, inclusive em Portugal. Para reforçar seu argumento, citou os casos de
portugueses famosos que haviam ocupado cargos no estrangeiro, como D. Luís da
Cunha e o Conde de Tarouca. Verney considerava que para o caso da ciência da
política, havia muitos livros à disposição, mas para adquirir conhecimento para esta
“profissão” seria necessário ter “conhecimento dos homens”, das suas “paixões”, dos
seus costumes, seus “diferentes modos de obrar” e de “conservar a paz”, e por
esses motivos tudo isso para a nobreza estrangeira é parte da boa educação. 507
José de Araújo repreendeu Verney por fazer uso de nome de tais cavaleiros
de “conhecida capacidade” e por querer parecer alguém que “tem amizade com
pessoas grandes”.508 Argumentava que Verney quis fazer entender que D. Luís da
Cunha e o Conde de Tarouca eram “rudes” e “pouco instruídos” e que não “sabiam
discorrer” enquanto viviam em Portugal, e que só adquiriram sua inteligência e
capacidade no contato com outras nações.509
Porém, insistindo na sua argumentação, Verney pondera que se Luis XIV da
França tivesse fechado as portas do reino para evitar a introdução de novos
estudos, conforme sugeria seu adversário, a cultura francesa não teria florescido,
não teria produzido os homens que tem, e não teria influenciado os estudos de
outras nações, e não “daria aos Romanos norma para a Filosofia, Critica,
Cronologia, Geografia, e mais partes de Matemática; para a Historia Civil, e
506
Ibid., p.408.
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.26
508
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar. Valensa: Na oficina de Antonio Balle, 1750, p.409
509
Ibid., p.409.
507
132
Eclesiástica”.510 E da mesma forma, se o Gran Duque de Toscana proibisse a
Galileu, a Torrichelli de:
Introduzir método novo de filosofar, e totalmente contrario ao de
Aristóteles; teriam por ventura estas ilustres províncias produzido
aqueles homens grandes, que em várias partes da Filosofia, e
Matemática tem com tanta gloria ilustrado a Republica Literária?511
Verney, ainda, exemplificava seu argumento apontando para o caso
português. Defendia que se D. João V não tivesse convidado para o seu reino “os
estrangeiros doutos e escutado seus conselhos”, não se veria no reino importantes
obras de engenharia como o palácio de Mafra, o Aqueduto de Belas, não se teria
produzido artífices que com muita habilidade no trabalho com prata, ouro e madeira
causavam inveja a Roma, da mesma forma na música não teríamos o “culto divino
executado na sua última perfeição”.512 E ainda argumentava que se D. João V
pudesse ter executado todas as ideias que tinha idealizado para os portugueses se
veriam muito mais mudanças.513
Por isso Verney concluía que se deveria “louvar o Barbadinho, e aos outros,
que desejam introduzir este método em Portugal, para roubarem aos Estrangeiros a
gloria da primazia”.514
As polêmicas do novo método se estenderam para além de Portugal e
chegaram até a Espanha, quando o jesuíta José Francisco de Isla y Rojo, também
conhecido por Padre Isla, publicou em 1758 uma obra de cunho crítico e satírico que
citava o autor do Verdadeiro Método de Estudar como “um homem que a todos os
espanhóis tratou por bárbaros e ignorantes”. A obra do Padre Isla teve uma boa
recepção até ser proibida pela Inquisição em 1760. Não deixou de usar também de
ironia para apontar os exageros de Verney: “Pois até que ele veio ao mundo, não
sabíamos nem gramática, nem lógica, nem física, nem teologia, nem jurisprudência,
nem cânones, nem medicina, e ainda mais, não sabíamos nem ler nem escrever”. 515
510
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.20.
Ibid., p.20.
512
Ibid., p.21.
513
Ibid., p.21.
514
Ibid., p.23.
515
ISLA, José Francisco de. Fray Gerundio de Campazas. Madrid: Imprenta de Gabriel Ramírez,
1758. Disponível em: http://goo.gl/GWLpXy Acessado em: 14 de agosto de 2014.
511
133
O tradutor do Verdadeiro Método de Estudar na Espanha, o advogado
Joseph Maymó Y Ribes, publicou um texto em defesa de Verney, afirmando que ele
não havia julgado os portugueses e espanhóis de bárbaros e ignorantes, mas:
O que faz é manifestar, que o método que observam os portugueses
(que em algumas faculdades é o mesmo que em Espanha) não é útil
para estudar ciências, que é muito prolixo, e prejudicial para
aprender em cada uma delas o que é necessário, mas prova-o com
tanta evidencia, que não se pode negar o que disse.516
Maymó y Ribes demonstrava conhecimento das polêmicas ocorridas em
Portugal, citava as obras que faziam críticas ao novo método como sátiras
maliciosas, mas que foram incapazes de abalar a argumentação de Verney, que
segundo ele, saíra vitorioso em todas as disputas.517 Em sua defesa, acabava
reproduzindo os argumentos utilizados por Verney a favor do novo método, às vezes
com certo exagero. No que se refere ao ensino de Teologia, o método proposto por
Verney poderia reduzir seu ensino de vinte anos para quatro. Os estudantes
aprenderiam uma Teologia útil e seriam “capazes de convencer aos hereges mais
advertidos”.518 Porém,
Geralmente os religiosos e seculares se contentam com a filosofia e
teologia que aprenderam na escola e depois, ou porque não tem
quem os instrua no que devem estudar e porque creem que não há
outra coisa útil da que lhes ensinaram seus professores, porque
estão cansados com tantos anos de universidade mal empregados,
porque necessitam acomodar-se e dedicar-se a buscar sua
manutenção [...] Esta é a principal razão do método do Barbadinho
não parecer correto, porque é muito difícil arrancar aquelas opiniões
em que se criaram os homens, e estão consagradas pelos costumes,
e os velhos se acham bem com suas velhices, e não querem que
outro venha abrir seus olhos, para não perder seu conceito de douto,
em que são considerados e venerados.519 .
Ora, seria simplesmente a questão de método o que teria provocado o estado
de “atraso e decadência” da sociedade portuguesa e espanhola, conforme
argumentava Verney e seus defensores? Mas do ponto de vista epistemológico, qual
era o alcance efetivo do método como um conjunto de princípios que deveriam ser
516
MAYMÓ y RIBES, Joseph. Defensa del Barbadino en obsequio de la verdade. MADRID: En la
oficina de Joachín Iharra, 1758, p.16 (tradução nossa).
517
Ibid., p.7.
518
Ibid., p.60-61.
519
Ibid., p.90 (tradução nossa).
134
seguidos por todas as disciplinas? Que contribuições ele poderia trazer para outras
áreas do conhecimento?
Embora do ponto de vista epistemológico a ideia de método possa ser
compreendida como elemento de oposição às concepções escolásticas dominantes,
assumiu progressivamente uma dimensão ideológica, e conforme será discutido no
próximo capítulo, foi utilizada também para se referir à necessidade de uma
renovação cultural.
135
CAPÍTULO V - A IDEIA DE MÉTODO E O IDEÁRIO REFORMISTA
É o método o primeiro requisito do estudo, para
por meio dele se poder adquirir um
conhecimento profundo, e sólido das ciências.
Quem desconhece o método, não pode ter
ordem no estudo. E quem estuda sem ordem,
adianta-se pouco na estrada das ciências,
tropeça a cada passo, e perde um tempo
infinito.520
Este capítulo tem como objetivo principal discutir a importância da ideia de
método no ideário reformista, presente na sociedade portuguesa desde a primeira
metade do século XVIII. Tentar-se-á argumentar que a ideia de método foi utilizada
neste contexto para se referir à necessidade de uma renovação cultural.
Serão apresentados textos de alguns portugueses, como de D. Luís da
Cunha, Martinho de Pina e Proença, António Ribeiro Sanches e Verney, que
refletiram sobre a situação do reino português, desde seu período de glória na era
dos descobrimentos até as dificuldades para se adaptar à nova dinâmica do século
XVIII. Pretende-se analisar como cada um destes autores contribuiu para um
diagnóstico de atraso da cultura portuguesa, que foi fundamental para legitimar todo
o conjunto de reformas do reinado josefino. Em seguida, apresenta-se como a ideia
de método foi utilizada em alguns documentos das reformas da educação.
Além disso, serão apresentados dados sobre o ambiente político, social e
cultural português, apresentando algumas mudanças que se operavam na cultura
portuguesa no século XVIII.
Esta discussão tem como objetivo compreender a
tensão entre a religiosidade e a penetração das ideias modernas em Portugal. Na
perspectiva dos reformadores como António Ribeiro Sanches e Verney, a educação
assume um papel central para a formação de homens para servirem ao estado, e
isso não conforme o modelo cristão, revelando o traço reformador e pedagógico do
Iluminismo português. Assim, pretende-se chamar a atenção para a importância da
ideia de método dentro do contexto político português do século XVIII.
520
Compendio historico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos
denominados jesuitas e dos estragos feitos nas sciencias e nos professores, e directores que a
regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por elles fabricados. Lisboa : Na Regia
Officina Typografica, 1771, p.245.
136
5.1 O ideário reformista
Conforme aponta Pedro Calafate, havia uma interpretação histórica no ideário
reformista. Procurava-se exaltar o período de glória dos portugueses como os
descobridores do “novo mundo” e apontar para um suposto estado de decadência e
estagnação do reino:
Um dos aspectos mais relevantes do século XVIII português foi o
modo como se procurou distanciar da dinâmica da cultura do período
imediatamente anterior, lançando sobre ele a acusação de crise e
decadência da cultura nacional, na base da qual se ergueu uma
história-tribunal que se recusava compreender o barroco e a
escolástica na sua dinâmica particular.521
Um dos objetivos de Verney era justamente desacreditar o período histórico
anterior, que havia sido fundamentado na tradicional perspectiva escolástica,
alegando que era necessária uma mudança de rumos em direção ao moderno. Na
sua argumentação, havia uma percepção de que a cultura portuguesa precisava se
adequar às exigências dos novos tempos e de que o estado seria o responsável por
estas transformações. Por isso, era necessário reformar os costumes de acordo com
a utilidade do estado, para adequá-los conforme a nova realidade do século XVIII.
Em um dos textos que escreveu para se defender de seus críticos, Verney
evidenciava o argumento reformista de que os portugueses poderiam restabelecer
os tempos de glória, bastando que utilizassem o método correto:
Os nossos portugueses são capazes de tudo. Tem engenho ou tão
bom, ou melhor que as outras nações. Vivem em melhor clima, e sitio
que as nações setentrionais. A nada se tem aplicado de veras com
engenho, em que não saíssem excelentes. Se saem de Portugal, e
se aplicam ao que devem, não a quem lhe cheguem. Isto é
incontroverso entre todos os homens que tem experiência do mundo.
Falta-nos somente aplicação, e método522 (grifo nosso)
O contato de alguns portugueses com nações estrangeiras e com as novas
ideias que circulavam em outros ambientes intelectuais da Europa, os levaram a um
521
CALAFATE, Pedro (Coord.). Portugal como Problema: séculos XVII e XVIII - da obscuridade
profética à evidência geométrica. v. 2. Lisboa: Fundação Luso-Americana / Público, 2006, p.147.
522
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.22. Esta
obra será analisada com mais detalhes no próximo capítulo.
137
diagnóstico de um atraso cultural em Portugal. Como já comentamos, formularam
juízos sobre a necessidade de mudanças que viessem a fazer prosperar o reino. Na
primeira metade do século XVIII português, é marcante uma leitura histórica
comparando um período passado de glórias, com um presente decadente.523
Considerava-se que Portugal deixara de ser há muito a grande potência marítima da
era dos descobrimentos, ao mesmo tempo em que Holanda e Inglaterra o haviam
superado economicamente.
D. Luís da Cunha524, um dos principais diplomatas do período joanino, dava
conselhos baseados em princípios ou “máximas”, que havia observado “em
Inglaterra, em Holanda, e França”, os quais eram adotados por estes reinos
independentemente da “diferença dos climas, dos governos, dos interesses, dos
tempos”, e dos “diversos gênios da nação”.525 Sebastião de Carvalho e Melo, antes
de se tornar o Marquês de Pombal, também atuou em duas missões diplomáticas
no reinado de D. João V. Em 1738, Pombal foi para Londres onde permaneceu por
quatro anos, depois voltou para Lisboa e partiu para Viena, retornando em 1749.526
Em Londres teve contato com a filosofia moderna e chegou a frequentar os círculos
da Royal Society.527 Segundo Silva Dias, é neste período que se germina seu
programa de governo, a partir de sua percepção da situação de Portugal no
equilíbrio político da Europa.528 Pombal procurou compreender as origens da
superioridade comercial e militar da Grã-Bretanha e a fraqueza política de
Portugal.529
523
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808).
São Paulo: Editora Hucitec, 1989, p. 32.
524
D. Luís da Cunha (1662-1749) iniciou sua carreira em 1696 como embaixador de Portugal em
Londres. Em 1712 foi nomeado ministro plenipotenciário no Congresso de Utrecht e depois
embaixador de Portugal em Madri. Mais tarde, viveu temporariamente em outras cidades da Europa,
vindo a permanecer em Paris até sua morte em 1749. Ele e Alexandre de Gusmão foram figuras de
destaque no campo da diplomacia no período joanino, vivenciando as principais questões da política
externa portuguesa. Destacou-se pela sua vivência como embaixador nas principais capitais da
Europa, o que lhe possibilitou uma visão bastante realista do concerto entre as principais potências
do período.
525
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I. antes
do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu embaixador às
cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão Regia, 1820, p.4
526
SILVA DIAS, J.S da. Pombalismo e Projeto Político. Lisboa: Centro de História da Cultura da
Universidade Nova Lisboa, 1984.
527
MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal, op. cit., p.6
528
DIAS, Sebastião José da Silva. Pombalismo e Projeto Político. Lisboa : Centro de História da
Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984.
529
MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal, op. cit., p.6.
138
Portanto, o ideário reformista pode ser compreendido como um conjunto de
propostas e medidas a serem implementadas pelo estado, a partir das observações
feitas por alguns portugueses sobre a situação de Portugal em relação ao restante
da Europa, especialmente aquela parte que logrou um crescimento comercial mais
expressivo.530 D. Luís da Cunha afirmava que era preciso conhecer o reino, assim
como um médico, por isso era necessário examinar o paciente, “o aspecto, e a
conformação de Portugal”.531 O reino português estava doente e precisava de
cuidados:
É constante que se [...] não pode curar algum enfermo, sem que o
prudente médico observe o seu aspecto, considerando os sintomas,
a conformação do seu corpo, a constituição dos seus humores, as
suas forças, e tome todas as mais indicações para vir, tanto quanto
pode ser, no conhecimento das causas do mal, que o aflige; isto não
só para remediar a sua queixa, mas para prevenir o de que pode
estar ameaçado.532
No caso da educação, conforme já apontamos, a grande maioria dos
estabelecimentos de ensino em Portugal seguiam as orientações da filosofia
escolástica, método que passou a receber várias críticas dos simpatizantes da
filosofia moderna. Assim, neste contexto, a palavra método torna-se um termochave, utilizado para fazer oposição às concepções escolásticas dominantes e
criticar a orientação filosófica das escolas portuguesas.
Inicialmente, o espírito de renovação em Portugal envolveu uma adesão às
ideias de alguns filósofos modernos, como Descartes e Newton e a valorização das
experiências científicas. Com a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, a
palavra método passa a ser articulada com a área do ensino, a tal ponto de assumir
um aspecto nuclear no ideário reformista. Conforme será desenvolvido mais adiante,
a ideia de método assume progressivamente uma dimensão pragmática e utilitarista,
sendo empregada para justificar a necessidade das reformas. O método utilizado
530
Cf. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da
estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, 2011; e também SANTOS, Antonio
Cesar de Almeida. Reformas educacionais e as ´Luzes´ em Portugal. Anais do V Encontro
Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Sec. XVI
ao XIX), Maceió, 2014, p.2000-2006. Disponível em: http://goo.gl/V5OqHV (acesso em 22/07/2015).
531
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I. antes
do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu embaixador às
cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão Regia, 1820, p.21.
532
Ibid., p.22.
139
pelos jesuítas seria considerado pelos reformadores, o principal motivo do estado de
atraso e de decadência em que se encontrava o reino de Portugal.
A historiografia tem apontado que Portugal não esteve totalmente alheio aos
efeitos do Iluminismo, como sugeriam seus críticos. 533 Os mais radicais, como Luiz
António Verney, fizeram da ideia de atraso um elemento fundamental de suas
argumentações. Segundo Silva Dias, “Verney deixou-se cegar pelas ‘luzes’ do
século; exagerou os males da cultura nacional”.534 De fato, como apontou António
Manuel Hespanha, diante das mudanças que se operavam na Europa, “a questão
era saber se o particular modo de ser da nação portuguesa (no que tinha ele de bem
e mal) estava enraizado na própria natureza das coisas ou se era apenas a
epidérmica consequência de costumes sociais ou políticos reformáveis”. 535
Conforme ressalta Pedro Calafate:
Era tese da ideologia oficial, apresentada nos manifestos
pombalinos, que os “estragos” da Companhia estavam
profundamente relacionados com um método de ensino considerado
inútil, prolixo e de um “artificialismo” contrário à simplicidade da
“natureza” (entendida esta como a ordem da razão no exercício de
suas operações). Neste sentido, não pode avaliar-se a importância
que o tema do método assumiu entre nós, esquecendo a pujança
acusadora com que aqui se ergueu o tribunal da história, explorando
até a exaustão a ideia de crise e de decadência, não apenas
científica, mas também pedagógica.536 (grifo nosso)
Ou seja, a ideia da decadência dos povos peninsulares era, em grande
medida, devedora da interpretação histórica apresentada nos documentos
pombalinos das reformas de ensino. Esta ideia também pode ser compreendida
como um termo-chave para se compreender os fundamentos filosóficos das
chamadas “reformas pombalinas”. Ao analisar a questão da educação no século
XVIII português, Laerte Ramos de Carvalho aponta que as reformas das instituições
de ensino em Portugal encerram mais que um plano pedagógico. Segundo ele, há
533
CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de
Coimbra 1772. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, 2007. Cf. também ANDRADE,
António Alberto de. Vernei e a cultura de seu tempo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1966.
ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros
Horizonte, 2003. CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português. DIAS, José
Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia. Coimbra: Editora: Coimbra, 1952.
534
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia, op. cit., p.217.
535
HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana Cristina Nogueira. A identidade portuguesa. In:
MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. 4. Portugal: Estampa, 1998. p. 19.
536
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.208.
140
uma filosofia política, possivelmente fundamentada nas conexões entre o
reformismo e o problema do atraso da cultura portuguesa. 537
A ideia de atraso em relação a outros povos europeus está, em grande parte,
no germe do debate historiográfico sobre o Iluminismo em Portugal, como é possível
observar na produção dos séculos XIX e XX, com as ideias de Antero de Quental em
suas conferências sobre as causas da decadência dos povos peninsulares de 1871
e na abordagem da História da Civilização Ibérica de Oliveira Martins de 1879.
Poderíamos questionar até que ponto esta ideia de atraso reflete uma realidade
histórica específica. Banha de Andrade, por exemplo, questiona o diagnóstico de
Verney sobre a situação de atraso do ensino do latim em Portugal. Afirma que “O
ensino do latim nas escolas dos Jesuítas, não se revestia, pois, da aridez e confusão
de que foi acusado, por quem o reduzia à Gramática do P. Alvares e seus
comentadores [...]”.538
Em que medida a realidade social portuguesa da primeira metade dos
setecentos corresponde ao diagnóstico de Verney? Para respondermos a esta
pergunta é importante levarmos em conta não só a sua capacidade de representar
satisfatoriamente uma dada realidade cultural, mas também o que pretendia quando
escreveu seus textos. Conforme já apontamos, o estilo e a retórica utilizada no
Verdadeiro Método de Estudar foram fundamentais no impacto causado pela obra.
E não podemos esquecer que seu autor era um indivíduo inserido em uma
sociedade na qual para sobreviver era necessário saber servir e agradar.
D. Luiz da Cunha, Pina e Proença, António Nunes Ribeiro Sanches e Luiz
António Verney são autores geralmente identificados como “estrangeirados”.539 Este
termo costuma ser utilizado na historiografia para denominar alguns portugueses
que viveram a maior parte de suas vidas fora de Portugal e que a partir deste ponto
de vista discorreram sobre alguns temas fundamentais do reformismo português. Há
uma tendência em se relacionar os “estrangeirados” como os arautos das principais
537
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública, op. cit., p.6-7.
ANDRADE, António Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários (17591771), op. cit., p.21.
539
Este termo já foi reavaliado por alguns historiadores que procuraram observar que estes autores,
além de terem tido sua formação inicial em Portugal, não estavam alheios, nem fora da cultura
portuguesa, só porque estavam no estrangeiro. Pelo contrário, participaram ativamente dos debates
em torno dos problemas da sociedade portuguesa. Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real
da História, op. cit., p. 350. Ana Cristina de Araújo faz uma crítica ao uso do termo estrangeirado por
desvirtuar o universalismo que caracteriza o comércio de idéias do século XVIII. ARAÙJO, Ana
Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas, op. cit., p.21.
538
141
ideias que serviriam como fundamento das reformas ocorridas na administração do
Marques de Pombal.540 Embora possamos questionar até que ponto esses autores
representavam uma corrente de opinião, como um projeto político de modernização
da cultura portuguesa, é possível encontrar nas ideias desses intelectuais as ideiaschave do ideário reformista.541 Há uma lógica ligando o diagnóstico do atraso
português e as propostas de reforma, o que possibilita uma compreensão da
importância da percepção do atraso como recurso para a legitimação do discurso
reformista.
5.1.1 A ideia de atraso e a identidade católica portuguesa
Deus, tendo criado os homens para a sociedade, deulhes todos os meios para viverem felizes na mesma
sociedade. A estrada de os encontrar é a boa razão, que
ensina outros modos de descobrir a verdade [...] 542
Cristo nunca mandou que se matasse ninguém por
delitos da religião, nem durante muitos séculos os
concílios e os papas ordenaram tal coisa. Isto é um
invento do fanatismo dos séculos bárbaros, é uma
imitação de Maomé que depois os Portugueses e
Espanhóis aplicaram nas quatro partes do mundo,
matando cruel e injustamente milhões de homens, com o
pretexto de os querer tornar cristãos, mas em verdade,
para lhes arrebatar os tesouros e reinos. 543
O Verdadeiro Método de Estudar causou grande polêmica e teve ampla
divulgação nos meios letrados portugueses. Entretanto, o mesmo não ocorreu, por
exemplo, com os Apontamentos para a educação de um menino nobre (1734) de
Martinho de Mendonça de Pina e Proença e as Cartas para a educação da
mocidade (1760) de António Nunes Ribeiro Sanches, autores que também
discutiram criticamente questões sobre o sistema de ensino praticado em Portugal.
Conforme já apontamos, antes da publicação do Verdadeiro Método de
Estudar, estavam se processando na sociedade lusitana profundas transformações
por meio de novas práticas culturais, novas formas de sociabilidade e,
540
Cf. MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís António
Verney. São Paulo: Saraiva & C.a Editores, 1941.
541
CARDIM, Pedro. Processo político (1621-1807), In: MATTOSO, José (Coord.). História de
Portugal. vol 4. Rio de Janeiro: Editorial Estampa, 1998. p. 415.
542
Carta escrita de Livorno, 25 dez 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p.112.
543
Carta escrita de Livorno, 25 dez 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p.110.
142
principalmente, pelo aumento da circulação de ideias – como sublinha Isabel
Ferreira da Mota, ao tratar do papel da Academia de História Portuguesa na
formação e preparação da geração que iria conduzir as mudanças do reinado de D.
José I.544
O padre António Vieira foi um dos primeiros a apontar para um estado de
isolamento do reino português. Na sua campanha anti-inquisitorial, comentava sobre
o “miserável estado do Reino e a necessidade de que tem de admitir os judeus
mercadores que andam por diversas partes da Europa”.545 No seu diagnóstico, as
razões de estado deveriam predominar diante dos preconceitos pelos judeus, por
isso defendia a necessidade de se reformar a Inquisição:
O estilo que guarda a Santa Inquisição de Portugal é diferente do
que todas as outras de toda a Cristandade costumam observar;
desta diferença de estilo têm resultado gravíssimos inconvenientes,
assim no temporal como no espiritual do Reino.546
Mais tarde, D. Luís da Cunha, também iria defender maior liberdade de
religião, principalmente aos judeus, aconselhando abolir o “injurioso nome de cristão
novo” e assegurando de que os seus bens não fossem confiscados, “pouco importa
que existam judeus ocultos, quando não escandalizam”. 547 Não se trata tanto de
uma questão de “tolerância religiosa”, mas medidas que visavam acima de tudo a
“utilidade do estado”, pois conforme apontava, toda a fabricação própria de lã e
sedas de Portugal havia se extinguido com a fuga dos judeus, devido às
perseguições da Inquisição.548
Para povoar as terras de além-mar sem despovoar Portugal, naquelas partes
que se encontravam ainda incultas, D. Luís da Cunha sugeria que fossem ocupadas
por estrangeiros com suas famílias, mas sem “examinar a sua religião”, assim como
haviam feito os ingleses na América.549 Como Verney, D. Luís da Cunha
argumentava que a Inquisição deveria se tornar um tribunal sob o controle do
544
Cf. MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o
poder monárquico no séc. XVIII. Coimbra: Edições Minerva, 2003.
545
Padre Vieira, Apud DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia, op. cit., p.101.
546
Ibid., p.101.
547
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I. antes
do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu embaixador às
cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão Regia, 1820, p.57.
548
Ibid., p.63.
549
Ibid., p.45.
143
estado550, preocupado mais com os erros de opinião, e ideias perigosas ao bem
público do que com as questões religiosas.
Sobre a Guerra de Restauração contra os espanhóis, D. Luís da Cunha
manifesta uma visão realista. Em seu Testamento político, de 1747, ao contrário
dos mitos ligados aos “milagres” protagonizados pelos portugueses nesta guerra,
percebe que as vitórias contra a Espanha não se deram por razões divinas,
conforme era compartilhado por muitos portugueses, mas pelo fato de que não só os
espanhóis se encontravam em diversas frentes de batalha, como também porque
interessava à Inglaterra e à França a independência de Portugal. Ou seja, no frágil
equilíbrio de forças entre as potências europeias, era fundamental tanto para a
França quanto para a Inglaterra, que a Espanha não se fizesse “senhora da prata e
ouro, e mais produtos de Portugal e da América [...] e esta razão de Estado é o
nosso melhor garante, em que, contudo, não devemos pôr toda a nossa
confiança”.551
Este princípio também serviria para se pensar as relações entre o reino
português e a igreja efetivamente, esta discussão embutia uma crítica a um dos
pilares da identidade portuguesa: a pureza de seu catolicismo. Português e católico
eram identidades inseparáveis, e a identidade religiosa concorria com a identidade
reinícula (nacional).
552
Considerava-se que a nação portuguesa fora eleita por Deus
na missão de combater os infiéis e expandir o catolicismo pelo mundo. Esta
identidade era reafirmada na recusa daqueles que não se enquadravam ao ideal
católico, como os pagãos, hereges, protestantes, judeus e “maometanos”. Conforme
assinalou Keneth Maxwell, “em nenhum outro país europeu a Contra-Reforma havia
sido implantada de maneira tão cabal e com tanta firmeza”.553
Entretanto, conforme assinala Silva e Hespanha, para alguns portugueses do
século XVII (“moralistas de Seiscentos”) o abandono dos campos pelo comércio ou
pelas conquistas, a adoção de modas estrangeiras e do estilo de vida das cortes e o
amolecimento pelo luxo e pela urbanidade eram fatores associados à decadência de
Portugal.554
550
Ibid., p.51.
Ibid., p.24.
552
Cf. HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana C. Nogueira. A identidade portuguesa, op. cit., p.21.
553
MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal, op. cit., p.99.
554
Cf. HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana C. Nogueira. A identidade portuguesa, op. cit., p.29.
551
144
A igreja gozava de muitos privilégios em Portugal, pois grande porção das
terras do reino encontrava-se sob sua posse. Essas propriedades eram isentas de
impostos, além de serem inalienáveis, e isso vale o mesmo que dizer que eram
improdutivas. De acordo com D. Luís da Cunha, os padres e as freiras, além de não
contribuírem nas despesas do reino, causavam grandes prejuízos para o setor da
agricultura e do comércio, pois desviavam grande parte dos recursos humanos para
uma área que não gerava dividendos econômicos. Para mudar esta situação, D.
Luís da Cunha recomendava confiscar as “terras incultas” daqueles que não as
quiser cultivar, “porque importa pouco que se faça uma injustiça a certo particular,
quando dessa resulta a utilidade comum”, além disso, “a salvação dos povos
consiste na cultura das terras”.555 Mais tarde, em 1766, Verney vinha reafirmar o
argumento de D. Luís da Cunha: “Sem agricultura, artes e comércio, a república é
um cadáver e, sem vassalos ricos, nenhum soberano é rico”. 556
Além disso, muito “frades e freiras” entravam para a religião não por
“vocação”, mas por necessidade. A carreira eclesiástica era vista por grande parte
da população como uma oportunidade de ascensão social. Por outro lado, o regime
de celibato dos clérigos e religiosos não contribuía para o incremento populacional, o
que, segundo o mercantilismo, era um dos principais fatores de riqueza de um
estado. D. Luís da Cunha apontava para a “sangria de gente” de ambos os sexos
que entravam para os conventos, que “comem e não propagam”.557 Sugeria a
necessidade de se criar uma lei proibindo que frades, e freiras pudessem herdar
bens de raiz.558
O mesmo digo aqui dos Conventos de Freiras, onde se achão
infinitas mulheres, ou porque seus pais as obrigão a entrar neles, ou
por gozarem da liberdade que não tinham em suas casas. Que V. A.
se faça dar uma lista de todos os frades, e freiras, que há no reino, e
verá que se metade deles, e delas se casassem, seja ou não com
desigualdade, o que importa pouco ao Estado, não haveria dúvida
555
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I.
antes do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu
embaixador às cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão
Regia, 1820, p.36.
556
Conselho apresentado nos anexos de um carta escrita por Verney em 14 de maio de 1766. In:
VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p.179.
557
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei D. Jose I.
antes do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e D. João v., e seu
embaixador às cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em 1749. Lisboa: Na Impressão
Regia, 1820, p.42.
558
Ibid., p.42.
145
em que cresceria o número dos seus sujeitos, e Portugal seria pelo
tempo adiante mais povoado, e a este fim seria de opinião que
ficasse livre de pagar algum imposto todo o lavrador que tivesse três
filhos, porque esta isenção os convidaria a não ficarem solteiro. 559
Conforme é possível perceber, a entrada da maioria das mulheres nos
conventos não se dava por vocação, mas por outros motivos. O que ele estava
propondo era uma mudança cultural muito importante, que pudesse fazer a
população do reino se multiplicar, contribuindo para o reino prosperar. Porém tal
mudança deveria ser promovida mediante intervenção do estado, de acordo com
uma outra finalidade, que não aquela voltada para os desígnios da igreja.
Os mesmos princípios que nortearam o Testamento Político de D. Luís da
Cunha estão presentes nas cartas escritas por Verney entre os anos de 1765 e 1766
- as quais já apresentamos no primeiro capítulo - sobretudo em relatórios anexos na
carta escrita de Pisa, em 1765, e outra de Livorno de 1766.560 Verney sugeria
medidas visando diminuir a influência da igreja e todos os prejuízos que ela causava
aos interesses do estado. Para ampliar a população aconselhou “Dar privilégios aos
pais de família que tivessem seis filhos vivos” e “Dar recompensas ou dotes àqueles
que casassem mais filhos. Sendo certo que sem população não há reino rico”.561
Sugeriu uma redução do número de mosteiros, permitindo apenas um para cada
cidade e também sugeriu proibir os conventos de “herdar ou fazer novas
aquisições”.562
Verney escreveu breves conselhos sobre os mais diversos temas: Comércio
(“Promover o comércio com honras” e “Fazer uma lei para que os nobres possam
exercer o grande comércio”), Inquisição (Eliminar completamente os autos de fé),
melhorias para o sistema econômico (criação de “Casas de Prego”), Instituições de
ensino (Introduzir as mesmas cátedras nas universidades de Coimbra e Évora e
atribuir os mesmos salários para seus professores), melhorias do sistema de
transporte (“Introduzir novas carruagens”, “aplanar os caminhos principais do reino”),
Instituições de Saúde (“reformar os hospitais”), e Administrativas (“Fundar novas
vilas nos lugares de maior afluência e passagem”).
559
Ibid., p.43.
Cf. Folha inclusa mencionada por Verney na carta escrita de Pisa (17 de julho de 1765) e no
apêndice da carta escrita de Livorno (14 de Maio de 1766). In: VERNEY, Luís António. Cartas
Italianas, op. cit., p.87, 163.
561
Ibid., p. 178.
562
Ibid., p. 166-167.
560
146
Outro problema apontado por Verney e D. Luís da Cunha era a severidade da
Inquisição, pois havia intolerância dos portugueses em relação às demais confissões
religiosas. Verney fazia uma série de críticas à Inquisição portuguesa, considerava
este tribunal um “obstáculo terrível ao bom gosto das ciências e ao progresso”. Seu
ponto de vista era de uma reforma da Inquisição, não de sua extinção, pois o hábito
de queimar pessoas já não era mais razoável naqueles “séculos iluminados [...] Se
ele é instituído a fim de conservar a fé e ganhar as almas de Deus, por que razão
não usa os meios brandos que ensina a religião e a prudência?”.563
Para D. Luís da Cunha, a severidade da Inquisição na península havia
provocado a fuga dos comerciantes judeus, fundamentais para o dinamismo do
comércio. D. Luís da Cunha é bastante enfático sobre esta questão, articulando
“razão temporal” com a “utilidade espiritual”:
Vi também muitos papéis, assaz longos, em que se apontam os
meios para se extinguir em Portugal o judaísmo, mas não vi algum
em que se tratasse de acordar a utilidade temporal do reino com a
espiritual da religião, que é todo o meu objeto. Assento pois por
princípio certo, que ninguém negará, que a utilidade temporal de
Portugal requer que o reino se não despovoe, antes abunde em
gente e que também o espiritual nos persuade a que nele se não
consintam judeus, inimigos de Jesus Cristo. 564
Outro problema apontado por ele era o confisco dos bens dos “hereges” pela
igreja, que por meio de “leis pervertidas”, afugentou os cristãos-novos e judeus que
possuíam os cabedais necessários para a prática do comércio. Para D. Luiz da
Cunha foi justamente esta intolerância que levou ao início da decadência do Império
português, que “fez D. João III a perder as Índias Orientais, do estabelecimento da
República da Holanda e a grandeza do comércio da Inglaterra”.565
As necessidades do estado português entravam em conflito com a sua forte
identidade religiosa e a estreita relação entre os domínios político e religioso
representava um obstáculo considerável para a modernização do estado. O trecho
abaixo resume bem o pensamento de Verney acerca da Inquisição em Portugal:
563
Carta escrita de Livorno, 25 dez 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit., p.107.
D. Luís da Cunha, Instruções políticas (1736), Apud CARDOSO, José Luís (Org.) Portugal como
Problema. A economia como solução (1625-1820): do mercantilismo à Ilustração. v. 5. Lisboa,
Fundação Luso-Americana / Público, 2006. p.16.
565
Ibid., p.16.
564
147
Com esta falta de bons princípios dá-se origem a que em
certos países nenhum homem, e muito menos um letrado,
pode dizer a verdade ao soberano e pode fazer grandes coisas
ao seu serviço público. Os homens doutos encontravam-se de
novo dentro de dois extremos perigosos: por um lado, há
alguma fortaleza, por outro, o Santo Ofício. Se alguém projeta
qualquer coisa para o bem público e para reformar as
desordens, morre na fortaleza. Se indica até onde se pode
estender a liberdade do príncipe e a liberdade do pensar,
reduz-se à Inquisição, quer dizer, àquele tribunal em que
quatro padres que não sabem os princípios nem os limites da
fé a julgam, e quatro frades que não conhecem a verdadeira
teologia juntam artigos ao Credo. Pelo que daí se segue que,
em semelhantes países, nunca se vêem florescer as ciências,
nem a política, nem o comércio, nem outras coisas que são
disso consequência. Ao contrário, onde estas coisas são bem
reguladas, vê-se outro esplendor e poder, até durante o tempo
de guerra. 566
5.1.2 O papel da educação no ideário reformista
No campo da educação, as primeiras manifestações em torno da ideia de um
atraso de Portugal já podem ser percebidas após a criação da Academia Real de
História Portuguesa, em 1720.
Jacob de Castro Sarmento, judeu exilado em
Londres, teria se esforçado em promover intercâmbio entre A Sociedade Real de
Londres, da qual era sócio, e a recém-criada Academia Real de História Portuguesa,
enviando amostras de espécies botânicas cultivadas nos jardins londrinos. Sem
sucesso, faria outra tentativa enviando um plano para a criação de um Jardim
Botânico, que acreditava ser muito útil aos estudantes de Medicina 567. Para divulgar
as ideias de Newton em Portugal, publicou a obra intitulada Teoria Verdadeira das
Marés conforme a Filosophia do imcomparável cavaleiro Newton, em 1737.
Nesta obra afirmou que:
A sua Filosofia Experimental (de Newton) e demonstrativa, armada
da verdade e força geométrica, tem entrado, senhor, por toda a
Europa, menos Portugal e Espanha, sem encontrar a menor
resistência, e como a preocupação com que os nossos portugueses
retêm geralmente as ideias de Aristóteles, e alguns as de Descartes,
566
Carta escrita de Pisa de 17 de julho de 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op. cit.,
p.83.
567
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia, op. cit., p.124.
148
são um gravíssimo impedimento para se difundir esta grande luz
nesse reino; levado da glória dessa nação e pátria minha, e do
natural impulso com que V.E. ama a matemática. 568
Jacob de Castro Sarmento não obteve apoio da corte para a divulgação de
sua obra em Portugal e lamentava que os portugueses estivessem “perdendo o seu
tempo e abusando da sua grande capacidade e agudeza, com uma filosofia falsa,
inútil e contenciosa”.569
A obra de Martinho de Mendonça de Pina e Proença, Apontamentos para a
educação de um menino nobre, publicada em 1734, teve uma boa receptividade
em Portugal, ganhando uma segunda edição em 1761.570 Embora afirmasse que a
finalidade de sua obra era facilitar a instrução de seus próprios filhos e que pudesse
servir aos demais, faz uma série de recomendações ao sistema de ensino em
Portugal. Pina e Proença defendia uma instrução voltada para a formação de um
homem da corte, que pudesse identificar as diversas “mascaras que encobrem os
corações dos homens e que os vários interesses os fazem camaleões das
conjunturas”.571 O autor dos Apontamentos nos leva a entender que os problemas
da educação em Portugal estavam relacionados à sua disfunção social, à sua “falta”
de finalidade:
O erro não consiste em estudar, está em estudar só para ter
estudado; em estudar para pompa, e para a vaidade, e não para
viver melhor, e para melhor satisfazer às obrigações do estado, que
a Providencia destina a cada um.572
Para ele, a educação deveria: “encaminhar todas as suas ações ao bem
público, trabalhando por satisfazer as obrigações de bom cidadão, e vassalo, e
adquirir noticias, e luzes necessárias para este fim”.573 Propõe um método diferente
de ensinar, mas não se atreve - como faria mais tarde Verney - a desaprovar o
568
CASTRO SARMENTO, Dedicatória, Apud, I. C. MOREIRA, C.A. NASCIMENTO, L.R. OLIVEIRA
Instituto de Física, UFRJ. Revista de Ensino de Física. Vol. 9 nº 1 Out./1987, p.10.
569
CASTRO SARMENTO, Apud DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op.
cit., p.125-126.
570
CORTESÂO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de Janeiro: Instituto Rio
Branco, 1950, p.100.
571
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a Educação de Hum
Menino Nobre. Lisboa Occidental, Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734, p.191.
572
Ibid., p.228.
573
Ibid., p.143.
149
método utilizado nas escolas públicas.574 Entretanto, em alguns trechos da obra,
sugere uma relação de causa e efeito entre uma situação de atraso e o método de
educação utilizado nas escolas. De acordo com ele, em Portugal, faltava à nobreza:
aquele método de educação, que praticam as nações mais polidas, e
que já os nossos vizinhos introduziram no Real Colegio de Madrid,
obra digna da grandeza, e virtude del Rei Católico, e com a qual
premiou para o zelo, e fidelidade, com que os espanhóis defenderão
no trono, contra o poder unido de quase toda a Europa: mas espero,
que não seja inútil a questão, porque que creio, que o nosso Augusto
Monarca, que às letras tem concedido a especial proteção, que
adimirão com inveja os estrangeiros, reformará as escolas, e fundará
colégios, em que a nobreza se instrua nos exercícios mais
convenientes ao seu estado.575 (grifo nosso)
Assim como Verney apontava no Verdadeiro Método de Estudar, Pina e
Proença criticava o valor que era dado à erudição em Portugal.
Para ele, a
verdadeira instrução deveria ensinar a governar a casa, a família, servir à pátria e ao
soberano. Todo o estudo ou ciência que não se dirigisse a este fim seria “uma
pompa vã”, “um adorno inútil”, “de que se não tira mais fruto, que ocupar o tempo,
divertindo de outros pensamentos, ou frívolos, ou perniciosos”.576 Somado a tudo
isso, Verney apontava como “perda de tempo” em se ensinar as “sutilezas da
filosofia
escolástica”
e
a
severidade
com
que
eram
transmitidos
estes
conhecimentos “inúteis”, tanto para a mocidade, quanto para o estado. Grande parte
do período escolar das escolas menores era dedicado ao estudo do latim, e
demandava muito tempo e esforço para se adquirir um domínio satisfatório.
Nas conversações quotidianas, Pina e Proença argumentava que se deveria
preferir o conhecimento das coisas e o amadurecimento do juízo, do que a pompa
da erudição e das disputas silogísticas.577 Seguindo este raciocínio, Verney aponta
para a importância de outros princípios que deveriam ser considerados nas
discussões públicas, e assim criticava os excessos e o uso desnecessário do Latim
para demonstrar erudição:
Um homem que verdadeiramente é douto e tem pensamentos
proporcionados não deve mostrar excesso sobre as pessoas com
574
Ibid., p.143.
Ibid., p.143.
576
Ibid., p.143.
577
Ibid., p.143.
575
150
quem fala. Primeiramente, é ridicularia e afetação introduzir textos
latinos quando não são necessários. Ainda quando a conversação é
erudita, se acaso não se faz expressa matéria dos ditos textos, é
puerilidade e afetação dizê-los em Latim; porque deve-se entender
que uma coisa é escola, e outra conversação.578
Para exemplificar este aspecto, Pina e Proença alegava que eram poucos
aqueles que conseguiriam escrever bem o latim e proferir discursos nesta língua
com elegância. Estes poucos atingiriam este nível mais devido ao gosto particular
por este tipo de estudo, tendo em vista que sempre teriam o empenho em “se
adiantar nesta matéria por mais imperfeito que seja o método utilizado”. E se
perguntava: e “este exato conhecimento, esta pureza e elegância” com que poucos
dominam o latim, “de que serve ao soldado, ao magistrado, ao eclesiástico? Não
mais que de lhe acrescentar um louvável adorno, sem o qual pode muito bem
satisfazer a todas as obrigações do seu estado”.579 Suas preocupações estavam
voltadas para promover uma mudança de sentido do sistema de ensino português,
que deveria ter a educação como um instrumento a serviço do estado, e a nenhuma
outra finalidade que não esta.580
Para atender às necessidades do estado e facilitar o aprendizado dos
estudantes, Verney propôs que os manuais de latim fossem elaborados em
português e , além disso, que este idioma também fosse ensinado nas escolas, pois
além de considerar necessário ter conhecimentos básicos sobre a língua nacional,
argumentava que facilitaria o aprendizado de outras disciplinas O jesuíta José de
Araújo, um dos principais críticos de Verney e da filosofia moderna em Portugal,
criticava este posicionamento apontando que aqueles que defendiam este ponto de
vista acreditavam que os estudantes “com pouco trabalho, e em breve tempo
ficariam grandes letrados”.581 Para ele, Verney e os adeptos da filosofia moderna
seguiam uma moda estrangeira:
578
V.M. Volume IV, p.129.
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a Educação de Hum
Menino Nobre, op. cit., p.274.
580
Pina e Proença não dava a mesma importância, como foi dado por Verney, ao estudo da Física,
“não vejo na física, cousa que mereça estudo de duas horas”. Para ele, são muitos sistemas e
causam embaraço ao jovem. Cf. PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos
para a Educação de Hum Menino Nobre, op. cit., p.334-335.
581
ARAÚJO, José de. Reflexões apologéticas a obra entitulada Verdadeiro método de estudar,
op. cit., p.3.
579
151
E que diremos de julgar que se devem introduzir no reino escolas
para os rapazes aprenderem a língua portuguesa? Haverá esta
moda em França? O homem tem boas ideias, e boa moda, que os
pais gastem dinheiro para que os filhos falem. Nas escolas de ler,
escrever, e gramática tanto falam eles em português, que amofinam
aos mestres, e é necessário castiga-los para que se calem. A nossa
língua não é morta, para que os naturais necessitem tal diligencia. As
razões, com que prova a sua resolução, são tais como o método.582
(grifo nosso)
A ideia de ensinar a língua portuguesa esbarrava na manutenção de uma
cultura voltada para a erudição, em que o latim era a sua base de transmissão. O
senso prático dos reformistas apontava para a necessidade do ensino do vernáculo;
nesse sentido, além do aspecto de sua utilidade - uma vez que era a língua mais
falada na sociedade - o vernáculo vinha sendo utilizado cada vez mais nas obras e
tratados de filosofia moderna: neste caso, ressaltando que um dos precursores
desta “moda” foi Descartes, que publicou seu Discurso do Método em francês.
5.1.3 Educação: o estado como promotor das leis e dos costumes
Nas reformas pombalinas, a educação assumiu uma importante função
aglutinadora na administração do estado. António Nunes Ribeiro Sanches foi talvez
o intelectual português que melhor analisou esta questão. Sua principal contribuição
foi pensar sobre um modelo de educação que estivesse alinhado “aos novos
tempos”, o que implicava pensar em uma nova concepção de estado.
Ribeiro Sanches foi sócio da Academia das Ciências de Paris e colaborou na
Encyclopédie, escrevendo sobre diversos assuntos, com destaque para a medicina,
a pedagogia e a economia. No catálogo de sua biblioteca encontravam-se, para
além dos autores mercantilistas como W.Petty e Cantillon, autores modernos como
Hobbes, Locke, Puffendorf, Montesquieu, Rousseau e portugueses como Vieira,
Teodoro de Almeida e o Verdadeiro Método de Estudar de Verney.583 Podemos
perceber em suas ideias o desenvolvimento de uma linha argumentativa que já
havia sido apresentada anteriormente, sobretudo por D. Luís da Cunha,
582
Ibid., p.17.
Cf. SERRÃO, José Vicente. Pensamento econômico e política econômica no período pombalino: o
caso de Ribeiro Sanches, p. 5. Ler História, Lisboa, n. 9, p. 3-39, 1986. Outros autores encontra
dois em sua biblioteca foram Spinoza, Pierre Bayle, Herman Boerhaave (amigo de Sanches) Hume,
Grotius, Montaigne, Muratori, Buffon, D’Álembert. Cf. BOXER, Charles Ralph. Opera Minora III.
Lisboa: Fundação Oriente, 2002.
583
152
Ribeiro Sanches argumentava que existiam dois modelos de monarquias, as
“que se conservam pela espada”, que predominaram até a descoberta do Novo
Mundo, e as “que se conservam através do Comércio e da Indústria”, que passaram
a dominar no período mercantilista. A Europa já havia superado a estrutura arcaica
das sociedades medievais, organizadas a partir das conquistas e batalhas. Um novo
dinamismo anunciava uma sociedade cuja riqueza cada vez mais era medida pelo
comércio, na esteira do mercantilismo: “deste modo toda a Europa mudou de face:
dantes se conservava roubando e conquistando, depois das descobertas dos novos
mundos começou a conservar-se pelo trabalho e indústria, base da navegação e do
comércio”.584
D. Luís da Cunha já aconselhava que para recuperar a glória perdida dos
portugueses seria necessário uma nova forma de governar, voltada sobretudo para
o fomento da indústria nacional, por isso defendia que a defesa dos produtos
fabricados internamente deveria partir do exemplo do próprio Rei, pois os súditos
acabariam por imitá-lo:
Eu saí de Portugal vestido do nosso pano, e com ele apareci em
Paris e em Londres, onde todos acharam muito bom; tanto com isto
se tinham adiantado as nossas fábricas até que o dito tratado [de
Methuen] foi causa de se não aperfeiçoarem ou se perderem,
ajuntando-se, como já disse, a ruína dos que as animavam; de sorte
que só o que digo as poderia restabelecer, fazendo Sua Majestade
mau semblante aos que o não imitassem; porque isto bastará para
que os seus vassalos não ousem comprar o que vem de fora.585
Como se vê nesta passagem, o Tratado de Methuen, assinado em 1703 entre
Portugal e Inglaterra, era considerado o grande responsável pela ruína da indústria
portuguesa. A manufatura têxtil, que já fora importante na nação, foi desestimulada
após o tratado, o que provocou o declínio do cultivo cerealífero em favor da cultura
da vinha, gerando a necessidade de importação de trigo.
Não obstante a posição de D. Luiz da Cunha, Vicente Serrão aponta que a
mesma tendência pode ser observada em países que não assinaram semelhante
tratado e que outros fatores, como as condições de mercado e os custos de
produção, podem ter contribuído, às vezes de maneira ainda mais decisiva que os
584
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade. Covilhã (Portugal):
Universidade da Beira Interior, 2003, p.29.
585
D. Luís da Cunha, Instruções políticas (1736) Apud CARDOSO, José Luís (Org.) Portugal como
Problema, op. cit., p. 16.
153
termos do Tratado de Methuem, para a efetivação de tal cenário.586 Entretanto, notese que, para além dos juízos de natureza econômica, a crítica ao tratado constituíase principalmente em uma crítica à própria situação portuguesa. Aliás, conforme
recorda Vicente Serrão, mesmo sem poder provar que estas críticas ao Tratado de
Methuem correspondessem à realidade econômica portuguesa, mais tarde a
sugestão de Ribeiro Sanches de “arrancar metade das vinhas e semeá-las de pão”
seria adotada pelo governo pombalino, em alvará de 26 de outubro de 1765.587
Tendo em vista este novo panorama, Ribeiro Sanches argumentou nas
Cartas para a educação da mocidade (1760) sobre a necessidade de mudanças
no sistema de educação em Portugal.
[...] toda a Educação, que teve a Mocidade Portuguesa, desde que
no Reino se fundarão Escolas e Universidades, foi meramente
Eclesiástica, ou conforme os dictames dos Eclesiásticos; e que todo
o seu fim foi, ou para conservar o Estado Eclesiástico, ou para
aumentá-lo.588
Este tipo de educação servia às necessidades de uma “monarquia formada
pela Conquista da espada”, mas já não se adequava às novas “monarquias
conservadas pelo comércio”, que eram “as mais indissolúveis forças para sustentar e
conservar o conquistado”. Portanto, de acordo com Ribeiro Sanches, a educação
deveria atender a uma outra finalidade: “formar homens úteis à nação”, capazes de
servir ao estado e promover o crescimento do comércio e da indústria. Seria
necessário toda uma reformulação de seus princípios, com a introdução de outros
conhecimentos, voltados mais para a utilidade do que para a erudição. 589 Sanches
defendia a necessidade de reformar o caráter confessional da universidade, pois
segundo ele, o aluno jurava fidelidade ao papa e seria considerado herege se o
traísse:
As ciências que se ensinam e ensinavam nestas Universidades
desde o seu estabelecimento tanto em Portugal, como no resto da
586
SERRÃO, José Vicente. Pensamento econômico e política econômica no período pombalino: o
caso de Ribeiro Sanches, op. cit., p. 5.
587
Como se sabe, o tratado de Methuen, assinado com a Grã-Bretanha, favorecia a entrada de
vinhos portugueses, e em troca Portugal dava preferência aos produtos fabricados pelos ingleses. Cf.
SERRÃO, José Vicente. Pensamento econômico e política econômica no período pombalino: o caso
de Ribeiro Sanches, op. cit., p. 5.
588
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade, op.cit., p.1.
589
Ibid., p. 30.
154
Europa Católica, sempre foram as mesmas; e as decisões do
Decreto, das Decretais e das Clementinas foram tão observadas e
ensinadas como as decisões do Concílio de Trento: a Mocidade não
podia aprender outra doutrina; e quando vinham a ser Magistrados
Desembargadores do Paço, e em outros Tribunais, não podiam
propor lei alguma nova, ou ab-rogar alguma velha, que não fosse
conforme à doutrina recebida que aprenderam nas Universidades
Católicas; e como os Reis não tinham outra sorte de Mestres, nem
de Conselheiros, firmavam tudo o que se lhes propunha, julgando-o
útil para a conservação do Estado.590
Quando as Cartas para a educação da mocidade foram divulgadas, os
jesuítas já haviam sido expulsos e o estado português já iniciara o processo de
reformas. Mesmo assim, as ideias de Ribeiro Sanches soavam como um discurso
legitimador para as mudanças que estavam sendo promovidas, no sentido de uma
crescente apropriação por parte do estado do sistema de ensino. A educação
deveria ser tutelada pelo estado e não pela igreja, o que tornava necessário discutir
os fundamentos do próprio estado:
O que constitui ser o Estado um ajuntamento, ou corpo civil e
sagrado, é o juramento de fidelidade mútuo entre o Soberano e os
Súbditos, tácita ou declaradamente. No acto desta convenção
invocam os contratantes deste pacto ou contrato, a Divindade que
mais veneram por testemunha e caução, que hão-de executar o que
prometem sujeitando-se ao prémio ou ao castigo, conforme o
cumprirem.591
Vemos que, para Ribeiro Sanches, entre soberano e súditos, existe uma
relação de reciprocidade: “o soberano de os conservar e os súditos, de obedecer”.
Assim, o rei dispõe de toda a jurisdição para criar leis e fazê-las cumprir, pois é o
“primeiro pai e conservador dos seus Estados”.592 Considerando que para a correta
administração do reino e sua conservação são necessários hábitos e costumes que
tenham a utilidade como seu último fim, a educação deveria ser de responsabilidade
do estado e não da igreja. Consequentemente, Ribeiro Sanches defende que é do
“jus da Majestade fomentar e promover a utilidade pública e particular com decência
e que nenhuma requer maior atenção no ânimo do Soberano, do que a educação da
Mocidade”.593 À igreja, por seu lado, caberia se encarregar da administração dos
590
Ibid., p.24.
Ibid., p.5.
592
Ibid., p.5.
593
Ibid., p.8.
591
155
sacramentos e dos bens espirituais. Desse modo, não haveria mais confusão sobre
os pecados do fiel e os crimes do súdito, nem tampouco exagero nos castigos contra
o primeiro como se fossem crimes contra o estado civil.
Para Ribeiro Sanches a educação teria papel fundamental neste processo,
constituindo-se em mecanismo que tornaria possível intervir nos costumes e valores
da sociedade portuguesa. Esta ideia também seria compartilhada por Pombal, que
sustentava os princípios da utilidade para a formação dos homens encarregados dos
negócios do estado.594 Nesta perspectiva, a educação, para Ribeiro Sanches, não
deveria ser universal, mas restritiva, visando exclusivamente o interesse do estado:
Que filhos de Jornaleiro, de Pescador, de Tambor, e outros ofícios
vis e muito penosos, sem os quais não pode subsistir a República,
quererão ficar no ofício de seus pais, se souberem ganhar a vida em
outro mais honrado e menos trabalhoso? [...] o remédio seria abolir
todas as escolas em semelhantes lugares [...] Todo o rapaz ou
rapariga que aprendeu a ler e a escrever, se há-de ganhar o seu
sustento com o seu trabalho, perde muito da sua força enquanto
aprende; e adquire um hábito de preguiça e de liberdade
desonesta.595
Para manter o interesse pelos ofícios manuais e mecânicos, era necessário
proibir a instrução em pequenos lugarejos. Verney, ao contrário, defendia uma visão
mais universal da educação, para ele “todas as aldeias pequenas e grandes”
deveriam ter “o seu mestre que ensine gratuitamente os meninos a ler, escrever a
aritmética vulgar, sendo pagos por todo o público”
596
Mais do que necessariamente uma visão elitista, a posição de Ribeiro
Sanches,revela a preocupação com o desvio de recursos humanos para áreas
consideradas improdutivas, tal como a carreira eclesiástica e a fidalguia. Esta
opinião é tributária dos princípios mercantilistas, segundo os quais o trabalho, que
dependia diretamente do componente demográfico, era o mais importante fator
produtivo. Para os intérpretes desta concepção, como W. Petty e R. Cantillon, a
594
Cf. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Aritmética política e a administração do estado português
na segunda metade do século XVIII. In: DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (Orgs.).
Temas setecentistas: governos e populações no Império português. Curitiba: UFPR / Fundação
Araucária, 2009, p. 143-152.
595
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade, op. cit., p.34.
596
Anexo da carta de Livorno, 14 de maio de 1766. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas, op.
cit., p.177.
156
população constituía a força essencial dos estados e a existência de uma população
grande e laboriosa era fundamental para a promoção da riqueza.597
Como judeu, Ribeiro Sanches defendia mais tolerância religiosa em Portugal.
No que se refere à questão, Verney tinha uma opinião conservadora: a tolerância
deveria existir, porém sem por em risco a religião nacional. Segundo ele, os judeus
que quisessem professar publicamente a sua religião deveriam “desnaturar-se e
esconder-se no reino, mas sem confiscação, e dar tempo ao arrependimento, que
talvez Deus o iluminará um dia”.598
5.2 O método e a era do reformismo português
Como se sabe, a relações entre o Iluminismo e a chamada Era Pombalina
(1750-1777) tem sido um dos temas mais discutidos na historiografia sobre o século
XVIII luso-brasileiro. Sem negar a importância do pombalismo para o século XVIII
português, algumas pesquisas têm chamado a atenção para o fato de que o governo
de Pombal implementou uma série de ideias que já vinham sendo apresentadas
anteriormente.
Há muitas semelhanças entre algumas ideias de Pombal, com as de D. Luís
da Cunha, Martinho de Pina e Proença e Luís António Verney pois, de forma geral,
procuraram diagnosticar o problema do atraso de Portugal. Mesmo levando em
consideração as coincidências que possam existir entre elas, devemos observar os
diferentes usos e contextos em que foram proferidas.
Embora seja possível
estabelecer um fio condutor ligando estas ideias, como pertencentes a um ideário
reformista, no campo político se percebe algumas contradições importantes. 599
Conforme apontou Laerte Ramos de Carvalho:
Este Iluminismo, enquanto pombalismo, constitui, na sua forma e
sentido, expressão de uma autoconsciência histórica da realidade
portuguesa, a que não faltaram sequer a perspicaz compreensão da
situação presente e a característica filosofia da história pela qual o
597
Cf. SERRÃO, José Vicente. Pensamento econômico e política econômica no período pombalino: o
caso de Ribeiro Sanches, op. cit., p. 19.
598
Carta escrita de livorno, 25 de dezembro de 1765. In: VERNEY, Luís António. Cartas Italianas,
op. cit., p.110.
599
Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo da iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996.
157
gabinete de D. José I procurou justificar a doutrina do seu
absolutismo.600 (grifo conforme o original)
Na medida em que as reformas da educação transcendem o plano
pedagógico, não podem ser compreendias sem levar em conta alguns elementos da
política pombalina, voltada exclusivamente aos interesses do estado. Estas
mudanças levariam inevitavelmente a um conflito com os jesuítas, e até mesmo com
alguns de seus adversários, como os oratorianos, que também haviam criticado o
método tradicional e colaborado para a introdução da filosofia moderna em Portugal.
Com a expulsão dos seus adversários em 1759, tudo parecia mais fácil para os
padres da Congregação do Oratório. Contudo, a hostilidade do poder pombalino se
inicia logo em 1760 com o exílio coletivo de quatro dos intelectuais mais
proeminentes da Congregação: João Baptista, Clemente Alexandrino, João
Chevalier e Teodoro de Almeida. 601
Teodoro de Almeida (1722-1804), assim como Verney, é considerado um dos
portugueses que melhor representa o espírito do Iluminismo Católico, caracterizado
por uma atitude conciliatória entre o iluminismo e a espiritualidade católica.
Francisco Contente Domingues considera o livro do autor intitulado Recreação
Filosófica, publicado em dez tomos entre 1751 a 1800, como a “obra mais acabada
do enciclopedismo em Portugal”.602 Escrita em forma de diálogo, a obra tem um
caráter de divulgação científica e teve grande sucesso editorial não apenas em
Portugal, mas também em Espanha. A pesar dos desencontros políticos, no que se
refere ao campo científico, as ideias apresentadas pela Recreação Filosófica
estavam em consonância com o projeto pombalino.603
Porém mais tarde, em 1768 decretou-se o encerramento das aulas na
Congregação do Oratório por “abuso prejudicial que faziam dos estudos e pela “falta
de método e regulamento”.604 Havia circulado uma carta pastoral distribuída pela
diocese, contendo um índice de livros proibidos considerados perigosos para a fé e
costumes. Entre eles figuravam obras de autores ditos anti-católicos, tais como
Voltaire, Rousseau e outros de inspiração regalista. Esta medida foi utilizada como
justificativa para o fechamento da ordem, pois acabavam invadidas as atribuições da
600
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública, op. cit., p.54
DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e Catolicismo, op. cit., p.88.
602
Ibid., p.160.
603
Ibid., p.91.
604
Ibid., p.92.
601
158
Real Mesa Censória, que havia sido instituída com a finalidade de fiscalização e
censura do impresso.605
Mas a culpa por todo o atraso português cairia sob os jesuítas. Desde a
expulsão da ordem em 1759 até a Reforma da Universidade de Coimbra em 1772,
os jesuítas foram considerados os culpados pelo método utilizado no sistema de
ensino português, que teria levado ao atraso e a decadência do reino. Esta ideia
seria a base de todo o discurso antijesuíta, que permeou a maioria dos discursos
pombalinos, como é possível observar na Dedução Cronológica e Analítica (1769),
no Compêndio Histórico (1771) e nos Estatutos da Universidade de Coimbra
(1772).
Nos documentos pombalinos o método escolástico foi tratado de forma
genérica, como método escolástico ou peripatético, sendo considerado como um
sistema de ignorância artificial, que teria sido implantado pelos jesuítas. O antigo
método seria eliminado radicalmente dos currículos escolares, bem como a
proeminência que, em certos meios, Aristóteles ainda mantinha.606
O Alvará de Reforma dos Estudos de 28 de junho de 1759 decretou o fim das
atividades educacionais dos jesuítas em todos os domínios portugueses.607 Foi
criado o cargo de Diretor dos Estudos, responsável por implementar as disposições
do referido Alvará e fazer a sua fiscalização. A partir deste momento, o estado
português se apropria de um setor que estava sob controle da igreja e elabora uma
justificativa de suas ações por meio de um discurso reformista. A resistência dos
jesuítas à filosofia moderna e seu apego à filosofia escolástica foram utilizados
sistematicamente como elementos do discurso antijesuíta.
Entretanto, a expulsão dos jesuítas não se explica apenas por motivos ligados
à educação. Conforme aponta Jorge Couto, é um complexo fenômeno histórico,
político, ideológico e religioso.608 Envolve um conjunto de fatores que levaram a uma
crescente hostilidade entre a corte e os jesuítas, e que, por fim, se consolida com a
605
Ibid., p. 97.
Cf. COXITO, Amandio. Aristotelismo e antiaristotelismo no pensamento português: séculos
XVI a XVIII, op. cit., p.9.
607
Alvará de Reforma dos Estudos de 28 de junho de 1759. In: Coleção da Legislação Portuguesa
desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo desembargador Antonio Delgado da
Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na Typografia Maigrense. Anno 1830, p.673. Disponível
em: http://goo.gl/19w3st (acesso em 22/07/2015).
608
Cf. COUTO, Jorge. As missões americanas na origem da expulsão da Companhia de Jesus de
Portugal. In: A expulsão dos jesuítas dos Domínios Portugueses: 250º aniversário. Lisboa:
Bibiloteca Nacional, 2009.
606
159
Carta Régia de 3 de Setembro de 1759. Para Gilmar Araujo Alvim, os conflitos entre
a administração pombalina e a Companhia de Jesus estão mais associados à
política colonial, como nas questões relacionadas à demarcação de fronteiras na
América Portuguesa e também nas relações dos jesuítas com os indígenas.
609
Portanto, a expulsão dos jesuítas não se explica exclusivamente pela sua posição
no sistema educacional português, mas outros aspectos, sobretudo políticos, foram
também importantes.
Assim, é possível sugerir que depois das “batalhas” travadas no campo das
ideias contra o método jesuítico, desencadeou-se um conjunto de ações políticas
que julgaram os perdedores e os condenaram à expulsão. No Alvará de Reforma
dos Estudos de 28 de junho de 1759, os jesuítas são apontados como conspiradores
e responsáveis por todo o atraso de Portugal perante a Europa. Além disso, de
acordo com este Alvará, os jesuítas utilizaram um método de ensino prejudicial para
enfraquecer os portugueses e melhor dominá-los. Os jesuítas resistiram, “com suas
maquinações” sem:
[...] cederem, nem à invencível força do exemplo dos maiores
Homens de todas as nações civilizadas; nem ao louvável, e fervoroso
zelo dos muitos Varões de eximia erudição, que clamarão altamente
nestes reinos contra o método; contra o mau gosto; e contra a ruína
dos Estudos.610
O inicio da decadência ocorreu quando os estudos foram “arrancados “ pelos
jesuítas das mãos de “Diogo Teive, e outros igualmente sábios, e eruditos mestres”.
Até então, Portugal vivia uma época de glória e conquistas e, sabendo da
importância de se criar colégios, haviam sido convocados “muitos sábios da
Universidade de Paris e de outras da Europa, famosos pelas suas erudições”.
André de Gouvea foi um dos fundadores do Colégio das Artes, seguido por Diogo de
Teive como o principal encarregado da sua organização. “Porém ‘depois daqueles
tempos se foram reduzindo os sobreditos Estudos e Colégios à grande decadência’
no momento em que o ‘insigne’ Diogo de Teive fora expulso pela Companhia
609
ALVIM, Gilmar Araújo. Linguagens do poder no Portugal Setecentista, op. cit., p.196.
Alvará de Reforma dos Estudos de 28 de junho de 1759. In: Coleção da Legislação Portuguesa
desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo desembargador Antonio Delgado da Silva.
Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na Typografia Maigrense, 1830, p.674.
610
160
‘chamada’ de Jesus”.
611
Uma vez no controle dos jesuítas, os colégios entraram em
estado de decadência, devido às desordens e aos “erros de método”.
Em 1761, seria fundado um novo colégio que recebeu o titulo de Colégio Real
dos Nobres, criado para restabelecer os estudos que antes “haviam florescido com
tanto crédito da nação” e para fazer renascer
[...] os gloriosos, e fecundos progressos, com que por efeito dos
estudos e da Companhia, que o memorável Infante D.Henrique
estabeleceu e fundou na Vila de Sagres e que formarão os muitos
sábios, e famosos varões, que , depois de haverem dilatado com
seus ilustres feitos os domínios desta coroa na África Ocidental, os
achou o reinado do Senhor Rei D.Manuel tão graduados, e tão
experimentados; não só naquelas utilíssimas disciplinas; mas
também na mais sã, e mais sólida política cristã, com que em poucos
anos por mares até então desconhecidos descobrirão, e
conquistarão duas grandes porções da Ásia, e da América.612
Neste colégio foi determinado que deveria haver um professor de Física que
passasse a ensinar “esta utilíssima parte da Filosofia; tratando só do que nela há de
sólido e de proveitoso: Ditando só o que for demonstrável pela Geometria; e pelo
Cálculo, ou qualificado por experiências certas”.613 Esta determinação que consta
nos estatutos da Carta de lei de criação do Colégio Real dos Nobres foi um
importante reconhecimento por parte do estado Português da necessidade de
conhecimentos que eram desprezados pelos escolásticos. Ressalta-se, também,
que o ensino da Física não deveria ultrapassar os limites do que poderia ser
comprovado empiricamente, o que indica uma preferência pelos conhecimentos que
pudessem ser utilizados a partir de experiências comprovadas, ao contrário das
chamadas “disputas inúteis” dos escolásticos.
611
Carta de lei com os Estatutos do Real Colégio dos Nobres de 7 de março de 1761. In:
Coleção da Legislação Portuguesa desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo
desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na Typografia
Maigrense, 1830, p. 774. Diogo de Teive sofreu processo de inquisição por volta do ano de 1550 pela
posse de livros suspeitos e por atitudes suspeitas na fé. SOARES, Nair de Nazaré Castro. Introdução.
In: TEIVE, João de. Tragédia do Príncipe João. Fundação Calouste Gulbenkian /Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, 2010, p.10, 15.
612
Carta de lei com os Estatutos do Real Colegio dos Nobres de 7 de março de 1761. In:
Coleção da Legislação Portuguesa desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo
desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. op. cit., p.773
613
Ibid., p.783.
161
5.2.1 Iluminando a nação: o diagnóstico da crise e as medidas
Em 1767, Pombal manda circular um importante documento intitulado
Dedução Cronológica e Analítica614, redigido para defender e legitimar o poder
exclusivo do rei de Portugal perante todos os demais corpos do reino, principalmente
voltado para atacar a “Companhia dita de Jesus”. Trata-se de um balanço histórico
abarcando desde o momento que os jesuítas teriam se “apoderado” da monarquia”,
provocando a “decadência do florescente e glorioso estado”, até a sua expulsão, no
ano de 1759. Neste documento, os jesuítas são acusados, por meio de “provas e
verdades físicas”, de terem implantando no meio da monarquia um “tirânico império”.
A “Companhia chamada de Jesus”, depois de se infiltrar na monarquia portuguesa,
por dois sucessivos séculos, “destruiu o comércio, a agricultura e todo reino”.615Para
tanto, utilizaram de seus “escolásticos sofismas” e “subterfúgios” para “enganar aos
homens doutos”, e as pessoas que julgavam “as coisas pelo que são em si mesmas”
e não como os “maliciosos” jesuítas queriam “fazer ver”.
Conforme assinala Pereira e Cruz, na interpretação histórica dos textos da
reforma, há um proposital exagero na forma como se procurou fazer tabula rasa de
todo o saber acumulado até então, para projetar uma nova era na história dos
portugueses, marcada pela perspectiva da ciência moderna.616 Os jesuítas são
acusados pela maioria dos infortúnios históricos do reino português, inclusive a
fatídica batalha de Alcacer Quibir que levou a morte de D. Sebastião e a perda da
independência para a Espanha. Foram acusados de terem “usurpado” a “liberdade e
a propriedade dos bens dos índios” na América portuguesa “negando-lhes todo o
conhecimento de que tinham um rei, de quem eram vassalos”, mas principalmente
por terem usurpado o poder do rei e arrogado para si o “governo espiritual e
temporal dos índios”. 617
614
Deducção Chronologica e Analytica. Parte Primeira, na qual se manifestão pela successiva
serie de cada hum dos Reynados da Morarquia Portugueza, que decorrêrão desde o Governo do
Senhor Rey D. João III. até o presente, os horrorosos estragos, que a Companhia denominada de
Jesus fez em Portugal, e todos seus Dominios, por hum Plano, e Systema por ella inalteravelmente
seguido desde que entrou neste Reyno, até que foi delle proscripta, e expulsa pela justa, sabia, e
providente Ley de 3. de Setembro de 1759. Dada a Luz pelo Doutor José Seabra da Silva. Lisboa:
1767.
615
Deducção Chronologica, op. cit., p.ii.
616
PEREIRA Magnus Roberto de Mello; CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Ciência e memória:
aspectos da reforma da universidade de Coimbra de 1772. Revista de História Regional, 14(1),
p.14-15, 2009.
617
Deducção Chronologica, op. cit., p.507.
162
Na Dedução Cronológica, o reinado de D. João V é assinalado como um
importante momento de mudanças na história de Portugal. Além da criação da
Academia Real de História deu apoio aos oratorianos para que ensinassem pelo
método moderno e não pelo dito “Método Jesuítico”.618 O Verdadeiro Método de
Estudar foi reconhecido como uma importante iniciativa para tentar libertar Portugal
daquele estado de atraso. De acordo com a Dedução Cronológica, o estado de
ignorância em que a tinham reduzido a nação portuguesa:
[...] levou alguns dos portugueses (até ali oprimidos da mesma
ignorância) a irem buscar instrução contra ela entre os sábios das
nações estrangeiras: como foi, por exemplo, o iluminado Zeloso, que
despertou a mocidade portuguesa do letargo, em que estava, pelo
próprio, e adequado meio do judicioso livro, que no ano de 1746 deu
à luz, datado em Valença com o título de Verdadeiro Método de
Estudar.619 (grifo nosso)
Ainda é relatado que a publicação do Verdadeiro Método de Estudar
provocou uma “sublevação contra os estudos jesuíticos”, e “Iluminando a nação”, o
autor do método usou de todo artifício para “extirpar toda a peste imaculada” pelos
jesuítas (como a arte do Padre Manuel Álvares) que havia infeccionado “os
engenhos portugueses”.620
Os Jesuítas por uma parte estimulados contra ele: por outra parte
assustados a vista do grande fruto, que ele fazia, Iluminando a
Nação : e pela outra parte vendo, que por consequência do referido,
virão a perder todo o credito, e reputação da literatura, que com
tantas maquinações se tinham apropriado: puseram em campo os
seus costumados estratagemas, para vencerem esta grande
batalha.621
De acordo com a Dedução Cronológica, os inimigos da nação contraatacaram com a obra publicada em 1748 pelo jesuíta José de Araújo, “que
disfarçado com o nome de Frei Arsenio da Piedade”, intitulada Reflexões
Apologéticas, procurou de forma caluniosa acusar o autor do método de ter
618
Ibid., p.499.
Ibid., p.496.
620
Ibid., p.497.
621
Ibid., p.497.
619
163
cometido heresia, e afirmava-se que “a obra havia sido publicada em Roma” e na
“presença do papa e de todas as congregações daquela cúria”.622
Porém, ainda conforme era relatado na Dedução, o “iluminado” autor não se
acomodou e não se deixou abalar, saindo com suas Respostas as Reflexões no
ano de 1748. No entanto, seus inimigos não desistiram de atacar aquele “solido
método” com suas “frívolas impugnações” e “pueris investidas”, publicando uma
série de outros escritos como o Retrato de Mortecor e a Conversação Familiar,
porém só serviram para tornar cada vez mais claras e “solidas” as “razões” com que
o “zeloso e bem instruído autor do método clamava desde Roma pela reforma dos
estudos”. E assim:
[...] entraram as luzes que deixaram patentes aos olhos de todo o
mundo imparcial os erros, e prejuízos do confuso, e nunca
perceptível Metodo chamado Jesuítico e a utilidade do outro solido,
claro, e breve Método pelos mesmos jesuítas debalde
impugnados.623(itálico no original)
5.2.2 O método e as reformas da educação
Em agosto 23 de dezembro de 1770, depois de feitas as considerações da
Dedução Cronológica, foi escrita uma carta, mais tarde registrada na Secretaria
dos Negócios do Reino, em que o Rei, aponta para o estado de ruína e decadência
do ensino em Portugal, desde que os “denominados jesuítas, depois de haverem
arruinado os estudos menores”, passaram a destruir os outros estudos maiores com
a finalidade de levar o reino de Portugal para “as trevas da ignorância”.624 Para
reparar os “danos” e os “estragos”, o Rei resolve instituir uma “junta de providencia
literária” para que fosse feito um levantamento de todos os prejuízos causados pelos
jesuítas nas escolas de Portugal.
Examinando com toda a exatidão as causas delas: Ponderando os
meios, que se considerassem mais próprios para a restauração dos
estudos públicos. E apontando os cursos científicos, e os métodos,
que se podiam estabelecer, para que as mesmas artes, e ciências,
que depois de mais de um século se acham infelizmente destruídas,
622
Ibid., p.497.
Ibid., p.499.
624
Compendio, op. cit., p.II.
623
164
fossem inteiramente preparadas: se lhe consultasse o que parecesse
a respeito de tudo sobredito.625 (grifo nosso)
A “junta de providencia literária” era constituída sob a inspeção do Conselho
de Estado, representados pelo Cardeal da Cunha e o Marquês de Pombal.
626
Ainda
foram nomeados como conselheiros da junta, o bispo de Beja e presidente da Real
Mesa Censoria, Frei Manuel do Cenáculo e outros doutores, como o autor
responsável pela Dedução Cronológica e Analítica, José Seabra da Silva. 627
O resultado deste trabalho foi publicado no Compendio Histórico, em que
são listados de uma maneira detalhada e sistemática, todos os “estragos e
impedimentos” provocados pelos jesuítas. A tese principal era a de que o corpo da
monarquia portuguesa havia sido envenenado, e era preciso combater o problema
tal como se combate uma peste. Por isso, a primeira providencia sugerida pela junta
foi revogar e abolir os velhos estatutos da Universidade de Coimbra, e a segunda,
ordenar a elaboração de novos estatutos.628 Neste documento, argumenta-se que os
jesuítas “arrancaram das mãos dos Reitores, e Diretores daquela infeliz
Universidade todo o governo dela” para produzir uma total “destruição de todas as
leis, regras, e métodos”.629
São retomadas algumas das teses da Dedução Cronológica e de forma
geral, os argumentos vão se repetindo para provar que os jesuítas impediram a
entrada de todos os progressos científicos, tornando todos os estudos das ciências
inúteis, enchendo as escolas de “contendas, de disputas e rixas”, fomentando a
preguiça, promovendo a distração, a confusão, ociosidade e diminuindo a toda a
“massa do estudo”.
630
Por meio de seu “despotismo”, impuseram pela força da
autoridade a sua “Teologia Escolástico-Peripatética” e a sua “Filosofia ArábicoAristotélica”, para não permitir o uso da crítica e da razão, obrigando os professores
e estudantes a seguir a opinião dos doutores como se fossem “infalíveis”. Além
disso, impuseram a opinião destes doutores não para se conhecer a verdade, mas
625
Ibid., p.VIII.
Ibid., p.II.
627
Ibid., p.III.
628
Ibid., p.295.
629
Ibid., p.VIII.
630
Ibid., p.98, 292.
626
165
sim argumentos e razões para “fazerem defensáveis as suas opiniões e
doutrinas”.631
Ainda que não se possa estabelecer uma correlação entre as ideias
expressas no Verdadeiro Método de Estudar e no Compendio Histórico,
percebe-se uma similaridade entre os elementos e argumentos presentes nos dois
textos. Assim como defendia Verney, o Compendio Histórico aponta que os
estragos nas instituições de ensino de Portugal começavam pelas escolas menores,
pois os alunos se matriculavam na universidade sem os conhecimentos básicos
necessários. Faltava aos estudantes um bom conhecimento do latim, da retórica, da
lógica e principalmente, toda a chamada “boa filosofia” ou “filosofia moderna”, que
vinha sendo praticada em outros reinos desde que os filósofos “subjugaram
Aristóteles” e passaram a filosofar de uma maneira diferente, fazendo surgir grandes
autores como “Bacon, Descartes, Gassendo, Galileu, Pascal, Newton, Torriceli ,
Leibniz”, entre outros. Estes autores deram uma “nova face” às ciências, lançando
os verdadeiros fundamentos da física, tornando possível a invenção de instrumentos
e máquinas que combateram fortemente as bases da filosofia Aristotelica.
632
No caso do Direito, por exemplo, o Compendio Histórico aponta que todas
as leis estavam escritas em Latim e a falta de conhecimento da língua arruinou esta
ciência, tudo devido ao “mau método, e grande desordem dos estudos de latinidade
nas escolas jesuíticas”.633 Os jesuítas, ao contrário de se utilizarem de uma
“Gramática breve, clara, e bem ordenada”, impuseram a “difusa Arte de seu Manoel
Alvares”. Além disso, cometeram o “absurdo” de ensinarem esta língua “por meio do
mesmo latim” que os alunos “inteiramente o ignoravam”. O método utilizado pelos
jesuítas, com muitas regras e cheias de exceções, confundiam os estudantes.634
Além disso, não lhes ensinavam a língua portuguesa, tão necessária para saberem
as leis pátrias.
O Compendio Histórico indica que os jesuítas erraram por seguirem a
filosofia peripatética de Aristóteles, “filósofo ateísta, que nenhuma crença teve em
Deus”. Além disso, “usaram de malicia” proibindo o método sintético
- que de
acordo com a definição verneyana, tratava-se do método voltado para facilitar o
631
Ibid., p.139.
Ibid., p.162.
633
Ibid., p.145.
634
Ibid., p.143.
632
166
ensino das matérias635 - “para impedir o aproveitamento dos alunos”.636 Ou seja, foi
sugerido que, de forma intencional, os jesuítas implantaram um
[...] doloso sistema de ignorância artificial, e de impossibilidade de se
aprenderem as mesmas ciências, que se fingiu quererem-se
ensinar...laborando para obstruírem todas as luzes naturais dos
felizes engenhos portugueses.637
O “novo método”, baseado nos princípios da filosofia moderna, voltado para
facilitar o ensino das matérias, é recomendado no Compendio para ser aplicado
também nas Ciências Teológicas, pois “só o dito método é o mais capaz, e
adequado para restituir não apenas aos Teólogos, mas a todas as disciplinas, o
espírito de exatidão, e de ordem”.638 Por isso, a principal tese apresentada pelo
Compêndio Histórico, defende que o meio mais importante utilizado pelos jesuítas
para controlar a universidade foi justamente através da manutenção de um método
que tornou possível manter todo o corpo da monarquia portuguesa “infectado” e
impotente, sob as trevas da ignorância:
E havendo claramente visto os mesmos Regulares, que nem naquele
tempo, então presente, podiam instaurar o grande número de
Professores, e de Homens doutos em todas as Ciências, que então
abundavam no mesmo infeliz Reino, sem que os ganhassem para a
sua infame conjuração; ou perdessem inteiramente, os que nela não
quisessem entrar, nem podiam para o tempo futuro precaver a
segurança daquelas suas maquinações, e atentados, em quanto
existissem na dita Universidade os Estatutos, as Regras, e os
Métodos, que tinham formado aqueles grandes homens; e em quanto
não introduzissem outros estatutos, outras Regras, e outros métodos,
que em vez de guiarem os Lentes, e os estudantes para as luzes das
ciências, os descaminhassem delas para as trevas da mais escura
ignorância: maquinaram, e executaram os mesmos façanhosos
regulares (de acordo com o dito monarca) todas as intrigas, e todas
as atrocidades, que constituíram a matéria dos seguintes
prelúdios.639 (grifo nosso)
Conforme é possível perceber a partir do trecho acima, a “inoculação” do
“veneno dos jesuítas” se deu quando estes progressivamente se apoderaram dos
635
Cf. VM, Volume III, p.105.
Compendio, op. cit., p.XI.
637
Ibid., p.XIII.
638
Ibid., p.50.
639
Compendio, parte I, prelúdio II, op. cit., p.15.
636
167
colégios e alteraram os estatutos da universidade. De forma a atender aos seus
interesses, baniram a prática de outros tempos, de se promover um intercâmbio
entre os sábios das universidades da Europa, para que professores e estudantes
portugueses ficassem acomodados e incapazes de se adiantarem nas ciências.
Portanto, de acordo o Compendio Histórico, um dos “estratagemas” utilizados
pelos jesuítas foi isolar os portugueses:
Pintando com cores negras, e horrorosas, todos os estrangeiros,
para assim nos dividirem e separarem deles: E para que privandonos da comunicação, que com eles tínhamos, nos fechassem a
entrada das luzes, que de fora se comunicavam.640
O Compendio ainda acusa os jesuítas de serem responsáveis pela
denominação de cristãos novos e cristãos velhos, enfraquecendo e desunindo o
povo português, de tal forma que os jesuítas fizessem o que quisessem, sem
nenhuma resistência. Vale lembrar que este problema já havia sido abordado D.
Luís da Cunha e Verney.
Por meio dos “Malvados Estatutos, e da Reformação, que os ampliou” os
jesuítas instalaram seu sistema de ignorância artificial: Fazendo com que os
professores deixassem de examinar as verdades, concentrando seus esforços para
descobrirem sutilezas e “sustentar a força de sofismas as opiniões dos doutores”.641
De acordo com o Compendio Histórico, o método dos jesuítas gerava uma
“perpetua guerra de contradições“ e assim a Universidade de Coimbra deixou de ser
uma universidade de Letras para se tornar uma “Oficina perniciosa, cujas máquinas
ficaram sinistramente laborando, para impedir a entrada de todas as luzes naturais
dos felizes Engenhos Portugueses”.642 Antes da ação da “Companhia, dita de
Jesus”, os portugueses haviam liderado o mundo com seus “feitos ilustres” e
“heroicos progressos”:
No continente, forçando os Mouros a irem buscar refugio além do
oceano, e do mediterrâneo: Na África, fazendo as conquistas, com
que subjugou, e fez tributários os mesmos infiéis: Na Ásia, e America
640
Ibid., p.62.
Ibid., p.93.
642
Ibid., p.94.
641
168
descobrindo novas regiões antes desconhecidas; e fundando nelas
os dois vastos senhorios do Brasil, e da Índia Portuguesa. 643
Porém, depois da implantação dos Estatutos e Reformas dos jesuítas, os
portugueses caíram em decadência. É com espanto e admiração, ressalta-se no
Compendio, a forma como os jesuítas deixaram a medicina em um estado de
calamidade, já que estes também dependiam da saúde de seu corpo físico.
Defende-se o exemplo de Hipócrates, “ pai da medicina”, e suas recomendações de
uma ciência baseada na razão e experiência, física, aritmética, matemática, lógica,
geometria. Nenhuma ciência precisava de tantos conhecimentos como a medicina,
e devido a sua importância e o descaso com que vinha sendo tratada, necessitava
dos maiores cuidados.
De acordo com o Compendio, a verdadeira “causa decadencia da medicina foi
a ruina dos estudos menores”. Defendia-se a importância da retórica para o médico,
que precisaria conversar e entender todos doentes, e também seria necessário ele
ser instruído na lingua grega para poder ler os originais de Hipócrates e Galeno.
644
A Lógica seria necessária para um bom juízo dos fenômenos, das doenças, e a
física, como ciência da natureza, seria indispensável à medicina. Assim como já
havia apontado Verney no Verdadeiro Método de Estudar, a medicina é
considerada uma das partes mais importantes da física, e os progressos da física
correspondem exatamente aos progressos da medicina, de tal sorte que, “é a física,
tal é a medicina; e reciprocamente qual é a medicina, tal é a física. 645 São
mencionados diversos problemas levantados a partir da análise dos regulamentos
elaborados pelos jesuítas, como a ausência da química, da botânica e da anatomia.
O tom dramático com que é abordado o caso da medicina é bastante
representativo para se compreender a forma como o discurso pombalino procurou
“demonizar” os jesuítas. Afirma-se que nunca se viu um “espetáculo tão triste”, a
medicina esteve envolvida nas trevas, “onde se ve o estado perder mais individuos
nas mãos dos medicos, do que nas de seus inimigos”
Tais deviam ser os efeitos de tantas máquinas, forjadas, e
levantadas de longo tempo para o estrago da Medicina. A primeira
vimos que foi a decadencia das Letras Humanas, da Filosofia, &. A
643
Ibid., p.95.
Ibid., p.299.
645
Ibid., p.336.
644
169
segunda a péssima Legislação, com que se regulou o Estudo
Médico. A terceira foi pois sustentar estas máquinas, fortalece-las, e
impedir, que elas se não prostrassem, para fazer a Medicina cada
vez mais tenebrosa, a entreter uma sanguinolenta, e surda guerra
dentro neste Reino. Com esta terceira maquinação acabaram os
denominados Jesuítas de consumar em toda esta dilatada serie de
anos a inteira execução do seu vasto Plano de destruição, e de ruina.
Faz-nos horror entrar na indagação de tão funebres ideias. Mas é
necessário fazer este sacrifício ao bem da humanidade, e do Estado.
Ver-se-á como estes homens, não já por maquinações ocultas, mas
sim claras, e manifestas, acabaram de destruir a Medicina, e de a
privar de tudo, quanto poderia servir-lhe de ilustração, e subsidio. 646
A explicação oferecida pelo Compendio para o caso de Jacob de Castro e
Sarmento não poderia ser diferente de toda a linha argumentativa que vinha sendo
desenvolvida. As suas tentativas de despertar o interesse da nação para as
novidades da ciência falharam devido aos “estratagemas” dos jesuítas. 647 E mais
importante ainda, é mencionado como os jesuítas desencorajaram o projeto de
modernização proposto pelo Verdadeiro Método de Estudar, com a publicação de
todos os “libelos” escritos contra esta obra, demonstrando assim seus “perversos
desígnios de impedir a reforma necessária”.648 O debate provocado pelo método de
Verney será tratado no próximo capítulo.
É importante ressaltar que no Verdadeiro Método de Estudar, em nenhum
momento Verney acusa os jesuítas de terem destruído propositadamente todo o
sistema de ensino. Aliás, vale lembrar que, como argumento, ele chegou a elogiar
alguns jesuítas franceses e italianos, como Regnault e Boscowisch, por suas teorias
e obras publicadas. Os jesuítas foram criticados por ele mais por “pecarem por
ignorância”, do que intencionalmente, conforme sugere o discurso pombalino. E a
despeito de todas as ironias que possam ser imputadas na dedicatória do
Verdadeiro Método de Estudar, tece uma série de elogios aos padres da
companhia por todos os seus trabalhos missionários de expansão do catolicismo no
mundo. Verney afirmava estar preocupado em servir ao estado. O que observamos
na Dedução Cronológica e no Compêndio Histórico, é o estado manifestando
todo o seu poder.
646
Ibid., p.334.
Ibid., p.346.
648
Ibid., p.348.
647
170
5.2.3 O restabelecimento da monarquia e os novos estatutos da universidade
A partir dos relatórios apresentados ao Rei no Compendio Histórico, foi
ordenado a elaboração dos novos estatutos da Universidade de Coimbra. Depois de
revisar as minutas e os originais, o Rei declarou na Carta de Roboração dos
Estatutos da Universidade de Coimbra de 28 de agosto de 1772, que D. José “por
graça de Deus”, “Rei e Senhor Soberano, que na temporalidade não reconhece na
Terra Superior; como protetor da sobredita Universidade”, aprova os novos estatutos
contendo todas as disposições sobre a organização e o funcionamento de todos os
cursos da universidade. Por meio de um ato fundante, o rei reafirma sua autoridade
política: os livros estavam “conformes em tudo com aquela minha resolução”, e
muito “acomodados ao bem, e aumento da sobredita Universidade; e muito úteis
para os progressos das Ciências, e Artes que nela se devem ensinar”.649 Os
Estatutos foram transformados em monumentos históricos, pois representavam um
novo começo, um restabelecimento do corpo monárquico. 650
Depois de tomar ciência dos “deploráveis estragos” feitos nos estudos das
ciências e das artes liberais em Portugal, em que havia se implementado um
“sistema de ignorância artificial; e um agregado de impedimentos dirigidos a
impossibilitarem o progresso dos mesmos estudos”, o Rei vinha por meio deste
documento remover “dos meus fieis vassalos a intolerável opressão de uma tão
injuriosa, e prejudicial ignorância; e facilitar-lhe (quanto possível for) os meios de
serem restituídos”. 651
Na historiografia, os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772
costumam representar o ponto mais alto das reformas da educação promovidas por
Pombal. Constituem todo o conjunto de medidas, com força de lei, que deveriam ser
adotadas para “uma nova criação da Universidade de Coimbra”. Recomenda-se uma
série de regras e condições a serem observadas por alunos e professores , como as
disciplinas que deveriam ser ensinadas, o tempo de duração de cada aula, e
649
Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da immediata e suprema inspecção
d'el-Rei D. José I pela Junta de Providencia Litteraria ultimamente roborados por sua magestade na
sua Lei de 28 de Agosto deste presente anno. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1772, V. I, p.VII
650
Conforme destaca Pereira e Cruz, os novos estatutos da Universidade de Coimbra apresentavam
o caráter de monumentos não apenas no que se refere aos seus conteúdos, mas a sua própria
materialidade, os livros dos novos estatutos receberam luxuosa encadernação e ficaram expostos à
veneração pública. Cf. PEREIRA Magnus Roberto de Mello; CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da.
Ciência e memória: aspectos da reforma da universidade de Coimbra de 1772, op. cit., p.25.
651
Estatutos, op. cit., p.V e VI.
171
principalmente sobre o “método das lições”.652 Em diversos trechos do documento
são mencionados novamente os “estragos” e as “maquinações” feitas pelos jesuítas
por meio do uso do método escolástico.
Logo no primeiro livro dos novos estatutos, que trata sobre o curso de
Teologia, é abordado o método de organização das matérias a ser utilizado em
todos os cursos de forma a facilitar o ensino e fazer progressos. Recomenda-se uma
boa disposição e distribuição de todas as suas partes, com tal ordem e método que
primeiro se inicie pelas disciplinas que preparam e dão “luz e inteligência das
outras”.653 Este método, chamado “Método Demonstrativo” (chamado por Verney de
Sintético) deveria ser utilizado para ensinar não só a Teologia, mas todas as
ciências.654 De acordo com os Estatutos, nesse método, os estudantes estariam
fazendo uso dos mesmos princípios do “Método Geométrico, ou Matemático”. Além
disso, conforme também era recomendado por Verney, o “estudo de qualquer
disciplina, ou Arte, deve “indefectivelmente” começar por uma breve história dela”.655
Para serem admitidos no curso de Teologia, os estudantes deveriam ter no
mínimo dezoito anos de idade, e ter verdadeiramente a vocação. Eles precisariam
examinar bem se realmente foram “chamados por Deus ao estudo desta sagrada
ciência” e ter “desejo puro, e sincero de aplicar-se ao estudo da Teologia para seus
fins legítimos”.656Assim como já havia alertado D. Luís da Cunha, deveriam ser
evitados os desvios e as desordens produzidas por aqueles estudantes que apenas
tem o “desejo de se habilitarem por meio de graus acadêmicos, para mais facilmente
alcançarem as honras, as distinções e os privilégios” que são oferecidos pela
generosidade piedade do rei.
657
O curso teria duração de cinco anos, e querendo o
estudante receber graus superiores, de licenciado e Doutor, seria obrigado a cursar
mais um ano, e depois de considerado “hábil”, seria “promovido ao dito grau”.658
Os estudantes que quisessem matricular-se em Teologia deveriam ter boa
instrução da Língua Latina, da Retórica, das disciplinas filosóficas, e “muito
principalmente da Logica”.659 Segundo os Estatutos do Curso Teológico, os
652
Ibid., Volume I, p.XIV, Cf. título III do curso de Teologia.
Ibid., p.22.
654
Ibid., p.23.
655
Ibid., p.24.
656
Ibid., p.4.
657
Ibid., p.2.
658
Ibid., p.10.
659
Ibid., p.5-6.
653
172
professores desta cadeira se preocupavam até então “em ditar Apostilas, e compor
Comentários difusos, seguindo neles o mesmo método, com que os Escolásticos
trataram a Teologia: Excitando questões subtis, e infructuosas”.660 Além disso, as
interpretações da escritura empregadas pelos Escolásticos eram consideradas sem
“nenhuma utilidade para os discípulos”.661 Por isso este método seria apontado
pelos reformistas como responsável pelos estragos causados ao reino, e assim a
“Teologia Pseudo-Escolástica, Sofística, ou Arábico-Peripatética”, foi abolida
“perpetuamente” das Escolas da Universidade de Coimbra, e de todas as demais
escolas, particulares ou públicas.662 São notáveis as similaridades entre as críticas
feitas por Verney ao método escolástico, como fica evidente no trecho abaixo:
Sou servido abolir, e desterrar não somente da Universidade, mas de
todas as Escolas públicas, e particulares, Seculares, e Regulares de
todos os Meus reinos, e domínios, a Filosofia Escolástica, emanada
das Lições frívolas, e capciosas dos Árabes, debaixo de qualquer
nome, ou título, com que ela seja denominada: entendendo-se
sempre por Escolástica toda aquela, que se compuser de questões
quodlibeticas, metafísicas, abstratas, e inúteis, com sofismas
intermináveis se disputam pela afirmativa, e pela negativa;
semelhantes as que escreveram os Comentadores de Aristóteles em
qualquer das Seitas, em que se dividiram. E os que contravierem a
esta disposição, além de serem considerados como inimigos do Bem
Público; e de incorrerem no Meu Real Desagrado; serão para sempre
suspensos de ensinar, não somente a Filosofia, mas outra qualquer
Arte, ou Ciência, e inábeis para obterem emprego, ou oficio algum
dos que se costumam dar às pessoas de Letras.663
No caso da Medicina, o aluno só poderia matricular-se depois de estudar
durante três anos a Física, e Matemática, além disso cursar mais um ano de Lógica,
que poderia ser facultativo mediante a apresentação de um certificado. 664 Porém,
não poderiam ser dispensados do curso de Física e Matemática, mesmo que
tivessem estudado “em outra parte esta filosofia”, por não conter os conhecimentos
necessários da “Ciência Natural”.665
Na medida em que os Estatutos recomendavam a “boa filosofia” (leia-se
filosofia moderna) como fundamento de todas as reformas para restaurar todo o
660
Ibid., p.15.
Ibid., p.15.
662
Ibid., p.18.
663
Estatutos, Volume III, p.3-4.
664
Ibid., Medicina, p.4.
665
Ibid., Medicina,14, 15.
661
173
corpo da universidade, o ideário reformista seguiu, assim como Verney, o método da
filosofia natural.
Poderíamos apontar para uma série de inverdades e exageros na
interpretação histórica que foi apresentada pelo discurso pombalino. O Verdadeiro
Método de Estudar, por exemplo, não foi publicado em Roma e não recebeu as
licenças da cúria romana conforme é apresentado na Dedução Cronológica. Como
concluiu Gilmar Araújo Alvim, Pombal visava justificar a centralização política que
vinha sendo promovida pelo estado português de acordo com a concepção política
do absolutismo–regalista.666 Para eliminar a presença física e simbólica dos jesuítas,
que haviam contribuído por séculos na construção do império português, era
necessário um discurso legitimador, que fosse eficaz e contundente. Da mesma
forma que Pombal erigiu um tribunal da história para expulsar os jesuítas, poder-seia colocá-lo sob o mesmo tribunal e acusá-lo de “plagiar”667 as ideias de Verney, e
depois de tê-las utilizado, para assim fazê-lo cair em desgraça, conforme sugeriu
Joaquim Ferreira no prefácio de uma antiga edição do
Verdadeiro Método de
Estudar:
O coração ferino de Pombal retribuía-lhe com flagelações os imensos
auxílios nas reformas [...] o estrangulador das consciências livres,
que ensandeceu de susto o povo; o monstro que inventou, em todas
as minúcias, o diabólico suplício dos Tavoras, não resistiu à
perspectiva de assassinar pela fome o pensador verdadeiramente
europeu que tivemos no século XVIII - o pedagogista e filósofo que
lhe inspirou o melhor do seu reformismo668
Nesta interpretação, Pombal é classificado como um tirano, e Verney um
herói. Penso que o mais importante, seguindo as sugestões de Skinner, é refletir
sobre a maneira como o discurso pombalino fez uso das ideias de Verney, em um
outro contexto e com outra intenção.
A carta enviada por Verney a Pombal, elogiando a Dedução Cronológica,
reforça a perspectiva acima, demonstrando que nas relações de poder, não existe
666
ALVIM, Gilmar Araujo. Linguagens do poder no Portugal setecentista, op. cit., p.197.
Camilo Castelo Branco, no seu no seu Perfil do Marquês, chamou a Verney o mais fecundo
oráculo do grande estadista. Cf. MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista português do século
XVIII, op. cit., p.16, 129.
668
Verney, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar. Porto: domingos Barreira Editor, 19?
Prefácio de Joaquim Ferreira. Esta edição foi incluída em uma coleção de obras clássicas, algumas
datadas da década de 1940, de autores portugueses como Camões, Gil Vicente, Fernão Lopes,
denominada Colecção-Portugal.
667
174
espaço para um maniqueísmo simplista. Verney faz um elogio a todo o sistema
político, a sua execução e, em especial, ao afastamento da Companhia de Jesus:
Mas o que me recreou mais foi a mesma matéria do livro, que é uma
consequência do belo sistema, que V. E. desde o 1759 formou, e
executou. V. E. ensinou às outras Cortes da Europa a verdadeira
Lógica, com que se deve argumentar concludentemente com os
Socios, que são poucas palavras, e obras eficazes.669
Interessante observar como o Compendio Histórico e a Dedução
Cronológica situaram historicamente o Verdadeiro Método de Estudar como uma
ruptura, um “despertador” da cultura portuguesa, inaugurando a interpretação que
seria reiterada mais tarde pela historiografia.670
Seria injusto julgar os críticos de Verney à luz do momento atual, sabendo
que suas ideias, do ponto de vista de uma história do pensamento ocidental, podem
ser consideradas como superadas. A dificuldade é analisá-las dentro de uma
perspectiva contextualista, observando o debate no seu contexto de ideias. Neste
caso, deveríamos tentar refletir não exatamente quem seria o vencedor, mas avaliar
os argumentos dos dois lados. No caso dos defensores da filosofia escolástica,
conforme se verá a seguir, era muito difícil abandonar os doutores, como Tomás de
Aquino, Duns Escoto, Santo Agostinho, dentre outros, que há séculos vinham sendo
considerados autoridades, e de repente, em um espaço de um ou dois séculos, ter
que admitir que estes autores estavam “errados”. Conforme sugere Skinner, é
preciso olhar como estes autores olhavam. Para desenvolvermos melhor esta
perspectiva, será necessário um aprofundamento nesse debate, o que será
realizado no próximo capítulo.
669
Carta de Verney a Pombal enviada de Pisa em novembro de 1767. Cf. ANDRADE, António Alberto
Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo, op. cit., p.623-624.
670
Para Silva Dias, a obra de Verney teve o mesmo papel do discurso cartesiano na França. Cf.
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Europeia, op. cit., p.204. Para Moncada,
Verney “foi o ponto mais elevado de articulação de Portugal com a Europa culta na época do
Iluminismo”. Cf. MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista português do século XVIII: Luís
António Verney, op. cit., p. 130. Falcon afirma que a importância da obra de Verney reside não
propriamente no seu conteúdo, mas no espírito que a comanda e na ruptura que representa. Cf.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada.
São Paulo: Ática, 1982. De forma geral, a maioria dos trabalhos sobre História das Ideias e do
pensamento português no século XVIII conferem um lugar de importância a Verney; destacamos
neste sentido as seguintes obras: ARAÚJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal:
temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003; CALAFATE, Pedro. História do Pensamento
filosófico português. Lisboa: Editorial Caminho AS, 2001. Volume III; MAXWELL, Kenneth. O
Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
175
CAPÍTULO VI - MÉTODO COMO RENOVAÇÃO CULTURAL
Conforme destaca Calafate, o discurso histórico das Luzes em Portugal
também pode ser caracterizado por uma reação regeneradora contra um inimigo, a
“Companhia, chamada de Jesus”, o que permitiu desencadear um processo de
ruptura e contraposição em relação a um passado cuja identidade possuía nos
jesuítas um de seus pilares de sustentação. Trata-se da constituição dos mitos, que
em muitos casos alimentam o discurso histórico.671
É justamente este traço peculiar que explica o caráter dramático com que
foram confrontados o novo e o tradicional, tornando a polêmica como uma das
peculiaridades do Iluminismo portugês. Posto isto, considerando as polêmicas do
método como o episódio que marca, no campo das ideias, a transição do reinado de
D. João V para o de D. José, significaria praticamente enquadrá-lo, como sugeriu
Hespanha - com todas as reservas e os riscos de se estabelecer limites cronológicos
- como o “princípio do fim” desta sociedade corporativa do setecentos.672 Nesse
sentido, Calafate destaca:
O Iluminismo, ao mesmo tempo que se afirma como um projeto é
também um antiescolasticismo, seja moderado, como em Frei
Manuel do Cenáculo, seja mais vincado e veemente, como em Luís
António Verney, sendo por essa razão que a globalidade dos nossos
teóricos das Luzes elabora os seus textos identificando com
frequência um inimigo, um pólo antitético, caracterizado como causa
de atraso, decadência, crise e isolamento cultural. Índice desta
realidade foi a extraordinária e ampla polêmica que abalou o
panorama cultural português a partir da publicação do Verdadeiro
Método de Estudar, de Luís António Verney, em 1746.673
Neste capítulo pretende-se dar prosseguimento a abordagem sobre as
polêmicas provocadas pela publicação do Verdadeiro Método de Estudar. Serão
apresentadas as ideias de alguns autores que, a princípio, poderíamos chamar de
moderados, pois aderiram a algumas propostas da filosofia moderna, enquanto
rejeitavam outras. Destacamos algumas intervenções de Frei Manuel do Cenáculo e
671
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.29.
HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana Cristina Nogueira. A identidade portuguesa. In:
MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, op. cit., p. 9.
673
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.29.
672
176
Pina e Proença nos debates sobre o novo método, como dois exemplos desta
posição mais moderada diante da filosofia moderna.
Para finalizar este capítulo, analisa-se de que maneira a polêmica do
verdadeiro método alcançou a década de 60 do século XVIII no campo da medicina,
dividindo a opinião de dois médicos portugueses: João Mendes Sachetti Barboza e
Duarte de Rebelo de Saldanha. Apresentaremos o debate destes dois autores para
podermos analisar as diferentes opiniões acerca da medicina moderna e da
medicina tradicional, ponderando sobre como este debate se articulava com o
conceito de método.
6.1 A retórica como Perspectiva da Razão
Assim como nenhuma nação pode mudar a
natureza, e paixões dos homens, assim
nenhuma pode inventar regras diferentes para
excitar estas paixões. Por força devemos
praticar aquilo, que a experiência mostrou ser
o único meio de conseguir, que são as regras,
que nos deixaram os antigos.674
Embora abraçasse os princípios da filosofia moderna, Verney valorizava
algumas tradições herdadas da antiguidade, como a cultura do latim (a latinidade) e
sobretudo a Retórica, disciplina que completava a parte dos estudos das escolas
baixas.675 Segundo ele, apesar de sua falta de método, Aristóteles havia acertado
em algumas faculdades, e para o caso da Retórica, é considerado por Verney o seu
mestre.676 A Retórica era a “arte de persuadir”, extremamente importante para
filósofos, advogados e pregadores:
Não agrada um livro, se não é escrito com arte; não persuade um
discurso, se não é formado com método; finalmente, uma carta, uma
resposta, todo o exercício da língua, necessita da direção da
Retórica677
Verney argumentava que mesmo tendo “boas razões e boas provas”, aquele
que não souber “vestir as verdades” com “palavras sensíveis”, capazes de “excitar
674
VERNEY, Luís António de. Respostas as Reflexões que o R.P.M.Fr. Arsenio da Piedade
Capucho fez ao Livro intitulado: Verdadeiro Método de Estudar, op. cit., p.27.
675
Cf. VM, Volume II, p.1.
676
Cf. VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.76.
677
VM, Volume II, p.6.
177
os afetos” e ordená-las com “justa proporção”, não será capaz de persuadir
ninguém.678 Nas palavras do autor:
Um homem douto advertidamente chamou à Retórica a Perspectiva
da razão, porque, na ordem intelectual, faz mesmo que a perspectiva
nas distâncias locais. Em uma tábua lisa, ideia a pintura um palácio
com imensa profundidade; e, muitas vezes, com tal artifício e tão
semelhante ao natural, que enganam os olhos. Não são as cores que
originam esta deliciosa equivocação, porque com uma só cor se
consegue o mesmo intento; mas a disposição das partes, o saber pôr
cada uma na sua justa distância, o saber-lhe dar as sombras com
proporção da arte, produz este maravilhoso efeito, e faz que eu veja,
reconheça e admire o que de outra sorte não poderia ver. Este
mesmo é o caso da Retórica. 679 (itálico conforme o original)
Hobbes também reconheceu a importância da retórica. Conforme já
abordamos no terceiro capítulo, ele acreditava que a ciência política deveria seguir o
mesmo método usado nas ciências naturais, aspecto que sobressai nas obras
Elementos e Sobre o Cidadão. Contudo, de acordo com Skinner, embora este
embasamento científico ainda continuasse presente, ocorreu uma reavaliação da
importância da retórica no Leviatã. A partir daí, Hobbes concordaria que os métodos
das ciências precisavam ser complementados pela eloquência.680 A retórica passou
a ser valorizada, pois percebeu que não bastava comprovar suas conclusões por
meio da razão, era importante também saber persuadir, fazer-se entender. Era
preciso um novo método para ensinar a nova filosofia; assim, os modernos
reconheciam que não seria fácil mudar uma crença e convencer seus adversários a
mudar de opinião.
Considerando que sempre existem dois lados em qualquer questão polêmica,
seria possível argumentar a favor de qualquer um deles por meio das técnicas de
retórica. No Leviatã, Hobbes teria percebido que o uso de determinadas técnicas do
discurso seriam fundamentais para combater os argumentos de seus adversários:
Pois as palavras são os calculadores dos sábios que só com elas
calculam: mas são a moeda dos tolos, que os avaliam pela
autoridade de um Aristóteles, de um Cícero ou de um Tomás, ou de
678
Ibid., p.6.
Ibid., p.8.
680
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: Fundação da Editora
da UNESP, 1999, p.446.
679
178
qualquer outro Doutor, ainda que ele nada mais seja que um
homem.681
Seguindo as tradições herdadas da Antiguidade, tanto Hobbes como Verney
usaram as técnicas de retórica contra seus críticos. As técnicas de retórica incluíam
o uso de métodos para mobilizar as emoções da plateia, como o uso de tropos de
linguagem, como a metáfora. Dessa forma, com a metáfora, é possível fazer as
coisas desconhecidas parecerem mais familiares. De acordo com Quintiliano, o bom
orador não expõe simplesmente sua visão dos fatos, ele faz com que sua plateia
compartilhe da sua relação emocional com os fatos narrados.682 Ele consegue
excitar, fazer com que seus ouvintes consigam imaginar, ou seja, o bom orador não
apenas “expõe” ou narra seu caso; ele “exibe” os fatos, de maneira que estes
possam ser como que visualmente inspecionados.683 Como um pintor, o bom orador
sabe realçar os aspectos que venham a contribuir para melhor representar a ideia
que pretende defender. De acordo com Verney:
E nisto é que se distingue o Orador do Filósofo. Ambos têm por
objeto a Verdade; mas o Filósofo não costuma mover a vontade;
contenta-se de expor as razões; porém, se acaso não acha um leitor
sem prejuízos e preocupações, não conclui nada. Mas o Orador
move as paixões, excita a curiosidade, mostra a verdade de tantos
modos, com tanta clareza, com tanta eficácia, desfaz os prejuízos
com tanto estudo, que finalmente convence o ouvinte. 684
O Padre jesuíta Francisco Duarte685, um dos principais críticos de Verney,
fazendo alusão sobre as semelhanças entre um pintor e um orador, afirmava ter
procurado apresentar na sua obra intitulada Iluminação Apologética com “as mais
vivas cores os erros do autor do novo método”.686 Para justificar a forma severa com
que havia “pintado” as ideias do Barbadinho, afirmava ter sido fiel à realidade e que
681
Hobbes Apud SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, op. cit., p.526.
Ibid., p.252.
683
Ibid., p.253.
684
VM, Volume II, p.148.
685
Frei Francisco Duarte foi cronista-mor da Companhia de Jesus e esteve preso no Forte da
Junqueira em 1759, juntamente com outros jesuítas que sofreram as perseguições de Pombal.
686
Trecho extraído do título da obra de Francisco Duarte. Cf. DUARTE, Francisco. Iluminação
Apologética do Retrato de Mortecor: em que aparecem com as mais vivas cores os erros do autor
do novo método, e seu apologista, os quais pretendeu defender um anônimo, por alcunha, o Doutor
Apolonio Philomuso, e se lhe mostrão os muitos, que por malicia, ou por ignorância cometeu. Sevilha,
Imprensa de Antonio Buccaferro, 1749.
682
179
havia utilizado “as tintas para lhe dar as cores ao retrato, se ficou medonho, culpa é
do original, e não do pincel”.687
O uso de metáforas permitia que as coisas desconhecidas fossem associadas
às coisas mais conhecidas, permitindo que sua plateia pudesse “ver“ com clareza
ainda maior de que forma incorporá-las em seus referencias de crenças já
existentes.688 Para combater a “vã filosofia de Aristóteles”, Hobbes ridicularizava os
argumentos dos doutores da escolástica por meio de metáforas, comparando-os
com “homens-de-palha” (“pessoa insignificante”; “espantalho”). Zombava de suas
doutrinas absurdas, que provocavam “uma Escuridão tão vasta no entendimento dos
homens que eles não discernem a quem foi que prometeram sua obediência”. 689
Hobbes associava a escolástica à escuridão, pois suas doutrinas não eram apenas
obscurantistas, mas diabólicas, mantendo os homens imersos em trevas. Além
disso, “tirava dos jovens o uso da Razão, os deixando imprestáveis para qualquer
outra coisa senão para executar o que eles é ordenado”.690
Guardadas as especificidades de cada contexto políticos e social, a ironia e o
sarcasmo foram recursos utilizados sistematicamente por Hobbes, Verney e seus
adversários.
Os
dois
combateram
inimigos
muito
semelhantes,
atacavam
principalmente os diversos admiradores escolásticos de Aristóteles e a influência
dos teólogos nas universidades. Hobbes a considerava tão disseminada a ponto de
o estudo da filosofia naquelas instituições “não ser propriamente Filosofia (cuja
natureza não depende de autores) mas aristotelia”.691 Ao mesmo tempo em que se
combatia Aristóteles no campo da física, na retórica ele continuava a ser uma
referência. É interessante observar que Verney nunca sugeriu banir Aristóteles,
como ocorreria nos novos Estatutos da universidade, o que, neste caso, revela um
ponto de descontinuidade entre as duas propostas.
De acordo com a abordagem de Skinner, um dos conceitos mais importantes
e negligenciados pelos estudiosos da obra de Hobbes foi o conceito de liberdade,
ideia-chave e fundamental de todo seu pensamento. Hobbes, como defensor do
sistema monárquico, teve que combater seus adversários republicanos e
escolásticos, os quais argumentavam que a monarquia era um regime de
687
Ibid., op. cit., p.19.
Cf. SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, op. cit., p.256.
689
Ibid., p.530.
690
Ibid., p.530-532.
691
Hobbes Apud SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, op. cit., p.538.
688
180
escravidão. Hobbes procurou desacreditar a ideia de liberdade definida pelos
escolásticos e republicanos; de acordo com ele, era expressão de uma ideia falsa e
confusa.
Se concordarmos com Skinner, que no contexto de ideia no qual Hobbes
escreveu suas obras o conceito de liberdade foi o termo mais importante discutido
entre aqueles debatedores, para o caso do Portugal setecentista, foi exatamente a
ideia de método o principal motivo de toda a polêmica. Ela acabou servindo para
separar dois sistemas de crença muito diferentes, que entraram em rota de colisão
no século XVIII.
6.1.1 Inimigos e defensores da nação
A partir da publicação do Verdadeiro Método de Estudar instaurou-se uma
verdadeira “guerra literária”, disputada por “gladiadores literários”. Em uma batalha
em que se disputavam os critérios de validação da “verdade”, a disputa entre o falso
e o verdadeiro dependia da eloquência dos adversários. Nestes debates, ter um bom
domínio sobre as técnicas de retórica poderia significar uma boa vantagem perante
seus opositores. O tom beligerante destes embates pode ser observado a seguir,
nestes trechos escritos por um dos principais inimigos de Verney, o Padre Francisco
Duarte:
Se quereis contender com as armas luzentes da crítica, e da razão,
tratarvos-ei mui cortesmente, e se quereis esgrimir a espada preta
dos dictérios, não me hei de negar ao desafio, e prometo-vos, que
nada vos hei de ficar devendo. 692
Jogai as armas contra o adversário, mas sejão só as da erudição [...]
Imitai aos Espartanos, gente discreta , e valorosa, que entravam na
batalha ao som de flautas, e suaves instrumentos” 693 (itálico no
original)
Os dois mais importantes críticos de Verney, os jesuítas José de Araújo e Frei
Francisco Duarte, foram os autores mais prolíficos e que mais o atacaram com
recursos de retórica. Com muita ironia e sarcasmo, procuraram desacreditar o “novo
método” do Verdadeiro Método de Estudar e seus seguidores, defendendo que
692
693
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética. Parte I, p.159.
Ibid., p.62.
181
seus argumentos não eram contundentes, mas mentiras e insultos. O pseudônimo
utilizado por Verney, o Barbadinho, foi motivo de longos debates. Para Duarte, seu
estilo satírico e seu desrespeito pelos portugueses faziam sua pena parecer a
“cauda de um escorpião”.694 Para rebater os “regozijos” de Verney sobre seu êxito
nas disputas, um de seus críticos afirmava que ele havia recebido “golpes
poderosos”. Avaliava que os argumentos dos adversários de Verney foram como
“pancada, que aleija”, ao passo que suas respostas não passavam de “pancadinha
de amor”.695 Duarte, vangloriando-se de sua vitória e satisfeito por ter atingido seu
objetivo, afirmava que depois de “açoita-lo” e tê-lo feito sentir-se “envergonhado” e
“arrependido”, declarava sentir pena e “compaixão”.696
Nesta guerra de retórica, vence quem tem mais capacidade de tornar
verossímeis as suas “invenções”. As situações inventadas para justificar a
publicação das obras eram submetidas a análises detalhadas. Não se discutia a
existência concreta das situações inventadas, pois já sabiam de antemão que eram
fictícias; o que se procura fazer, como em um jogo, era discutir os critérios utilizados
e os elementos utilizados para dar sustentação às situações fictícias. Em última
instância, analisava-se o critério e o uso adequado das convenções linguísticas,
para cada caso apresentado.
Na carta de apresentação da primeira obra publicada contra o Verdadeiro
Método de Estudar, o problema principal levantado nas polêmicas é apresentado
de forma sucinta:
Apareceu nesta corte uma obra dividida em várias cartas, com o
título, Verdadeiro Método de Estudar, intentando seu autor por
debaixo de um zelo tão fingido, como o nome, persuadir aos
portugueses um novo modo para aprender, e ensinar as Ciências,
que ordinariamente se praticam, e refutar o que até agora por tantos
Mestres insignes, e que chegaram a ser grandes entre os maiores,
se tem praticado neste Reino.697
694
Ibid., p.50.
Ibid., p.16.
696
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., parte II, p.2.
697
Reflexões Apologéticas, Carta de apresentação, p.ii.
695
182
Figura 3 – Capa da obra Reflexões Apologéticas
Fonte: Google Books, https://goo.gl/NPgKdN (acesso em 22/07/2015)
183
Publicada anonimamente pelo Jesuíta José de Araújo, as Reflexões
Apologéticas a obra intitulada Verdadeiro Método de Estudar (1748) tinham
como objetivo principal restituir “o crédito da nação” que havia sido “ingratamente
ofendida pela livre mordacidade de um crítico”.698 Tratava-se de uma reação à forma
como Verney havia tratado alguns doutores da filosofia escolástica. No caso de
Duns Escoto, Araújo se queixava da “audácia com que contra um gigante da
sabedoria se atreve um pigmeu, sem mais autoridade que a sua vaidade; e sem
mais fundamento que o da sua ideia” e que queria “lançar fora das aulas das
Universidades a tão grande homem”.699
Na sua resposta, Verney aponta para o “atrevimento” de Araújo em escrever
sobre matérias as quais não sabia e nunca havia estudado.700 Araújo é acusado de
ter envergonhado a nação portuguesa, por ter se ocupado de “matérias, que pediam
outra capacidade, outra doutrina, outro critério, outra eloquência, outra elegância”.701
Avaliava o risco de verem esta obra traduzida para outras línguas e sendo
distribuídas pelos jornalistas da Europa, colocando os portugueses no “ridículo”.
Acusava o autor de ter feito uma sátira ao fazer usos de termos como “ignorante”,
“presumido”, “atrevido”, e “coisas semelhantes”.702 Verney argumentava que ao
contrário de ser um inimigo, escrevia para defender a gloria da nação:
Escrevo esta carta por zelo da glória da nossa Religião, e da nossa
Nação, que vejo injuriadas com esta Apologia, que tendes publicado
contra o Novo Método. Estão pasmados os nossos Religiosos, que
sendo vós um Religioso tão moderado, e prudente, caísseis nesta
simplicidade e imprudência: não lhe chamo malivalência porque sei
que pecastes por ignorância. 703(grifo nosso)
Utilizando o pseudônimo de Severino de Modesto, José de Araújo publicou
uma resposta a Verney intitulada Conversação Familiar.704 Neste texto, o qual
abordamos no capítulo anterior, Araújo acusava Verney de ter aderido a uma moda,
698
Ibid., p.ii.
Reflexões Apologéticas, p.2, 3.
700
Resposta as Reflexões Apologéticas, p.2.
701
Ibid., p.1.
702
Ibid., p.2.
703
Ibid., p.6.
704
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar e Exame Crítico, em que se mostra reprovado o
método de estudar, que com o título de verdadeiro, e aditamento de útil à República e à Igreja,
e proporcionado ao estilo de Portugal expoz em dezesseis cartas o R.P Frey ****Barbadinho da
Congregação de Itália: e também frívola a resposta do mesmo as sólidas reflexões do P.Frey
Arsênio da Piedade, Religioso Capucho. Valensa: Na oficina de Antonio Balle, 1750.
699
184
a mesma que vinha corrompendo a juventude com falsas promessas, de que com
pouco esforço se tornariam grandes eruditos. Após a publicação desta obra, saiu
em sua defesa outro jesuíta, o padre Francisco Duarte, que em 1751, utilizando o
pseudônimo de Aletófilo Cândido Lacerda, publicou o Retrato de Mortecor, obra de
cunho literário e satírico, cheia de metáforas e ironia. O texto tem como ponto de
partida a situação de Aletófilo Cândido de Lacerda, que recebe de um amigo os dois
tomos do Verdadeiro Método de Estudar e as Reflexões Apologéticas de P.
Arsenio, para que analisasse o conteúdo das obras e lhe desse sua opinião.
Figura 4 – Retrato De Mortecòr
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal (versão digitalizada)
185
Duarte criticava sobretudo a forma com que Verney atacava aos seus
adversários, e utilizava de uma série de expressões carregadas de ironia para
representar as atitudes de Verney, tal como “vomitar palavras”, afirmando também
que ele tinha “uma boca tão grande, como a do rio das Amazonas”. 705 Para
ridicularizar seu oponente, usava ditos e expressões em latim, e trechos de textos
clássicos da antiguidade, como parábolas de Esopo:
O homem está persuadido que todos lhe tem medo, e eu creio que
esta presunção há de vir a ser ocasião de sua ruína. Valha-me aqui o
Esopo. Viu um jumento, que andava pastando, fugir um leão aterrado
do canto de um galo, que passeava na mesma floresta. Persuadiu-se
simplesmente que a nobre fera tinha medo do seu aspecto, e do seu
zurro, e a foi perseguindo: mas o leão advertindo na preza , que o
buscava, voltou sobre ela, e despedaçando-a lhe deu o castigo
merecido da sua asinina presunção. 706
Esta parábola de Esopo é utilizada para fazer representar Verney como o
“presumido” jumento que acabou sendo devorado pelo leão. José Duarte também
conforma-se com a ideia de que tal autor, pela “incivilidade” com que trata os
“grandes heróis da nação”, só poderia fazer parte da “plebe que tem capacidade
para compor semelhantes tratados”. Considerando que o autor do método fala “do
grande P. Antonio Vieira com aquela irracional descortesia, que a qualquer homem
de juízo causa horror” (itálico no original), e com aquela “petulância sem reparo, a
mesma mordacidade sem freio, o mesmo estilo sem cultura”. Ademais, reclama da
forma com que Verney se referiu à cultura portuguesa, como “pátria da
ignorância”.707
Diante de tudo isso, José Duarte conclui que o autor não era português, só
poderia ser um inimigo da nação e, por esse motivo, procurou advertir seu
adversário, que deveria estar “temeroso de que lhe deem o prêmio que merece”,
pois devia saber que :
[...] os Portugueses não respeitam barbas postiças, como mostraram
na batalha de Montes-Claros , e que
O Português se puxa
Por barbas grandes, quais as da Cartuxa
705
DUARTE, Francisco. Retrato de Mortecor. Sevilha, Imprensa de Antonio Buccaferro, 1749, p.3..
Ibid., p.14.
707
Ibid., p.24-26.
706
186
Ao primeiro encaixo
Barbas, e queixo tudo vem abaixo.708
Citando o trecho acima de um poema que tratava dos feitos heroicos dos
portugueses nas batalhas contra os espanhóis, Francisco Duarte procurava alertar
ao seu adversário, que se escondia em “barbas falsas”, que poderia a qualquer
momento ser atacado pelos gloriosos e heróis combatentes portugueses. Assim,
Duarte coloca-se como um defensor da nação portuguesa e Verney como seu
inimigo.
Ao escrever seu Retrato de Mortecor, defendia que o seu autor (Aletofilo,
figura fictícia criada por ele), pela forma como procurou defender a “glória” do povo
português, deveria ser tratado como um herói, pois sua intenção era a “coisa mais
nobre”, “mais generosa, mais cristã”.709
Para Duarte, não havia dúvida, o autor das Respostas era o próprio autor do
método:
Com tudo sempre quero mostrar, que desejo obedecer a V. S. em
tudo. Li com mais aplicação (por ler mais breve) a Resposta às
Reflexões, e estou do mesmo parecer, que V. S. acerca da
identidade do Autor. Todos os entendidos, com quem tenho falado,
tem isto por indubitável; e é certo, que quem observar em um , e
outro escrito a mesma petulância sem reparo, a mesma mordacidade
sem freio , o mesmo estilo sem cultura, dirá, que o Autor da
Resposta se parece com o do Methodo, como Cicero com Marco
Tulio. Não deixe V .S . de reparar também no muito tempo , que se
gastou em responder ás acertadas Reflexoens do P. Fr. Arsenio;
circunstância , que prova tambem a identidade porque se gastaram
alguns meses em . . . . mas ay ! por pouco que nao faço agora uma
de meus pecados! Depois que eu assentei neste pressuposto, tornei
a dar outra volta a Resposta , e a saltear alguns lugares do Methodo.
Não é possível (dizia, ) que mais aqui, mais ali naõ se descubra este
Author. Na Mauritania há umas Serpentes, que na pedra a onde
chegaõ a cuspir o veneno, imprimem a sua figura: este homem
vomitou nesta obra toda a sua maledicência: aqui hade estar seu
retrato. 710 (itálico no original)
Para o autor do Retrato de Mortecor, o que mais o “enfastiava” e
“desagradava” era o que considerava a “falta método no método” do Barbadinho,
pois toda obra consiste em dizer mal das composições dos outros e, muitas vezes,
708
Ibid., p.23.
Ibid., p.26.
710
Ibid., p.24.
709
187
de “homens da primeira nota”.711 Ficava perplexo pelo fato de o Barbadinho afirmar
que em Portugal não se sabe latim, retórica, não se sabe pregar, não se sabe
filosofia, não se sabe medicina, direito, “Nada, dirá o Barbadinho, nem ainda
escrever, e por isso nos manda todos á escola a aprender a lua nova”. Para Duarte,
um dos maiores insultos cometidos pelo autor do “novo método” foi ter
desqualificado o sistema de ensino praticado na Universidade de Coimbra:
[...] no conceito do Barbadinho não valem os portugueses coisa
alguma, se a venerável Academia Conimbricense vale pouco. Aqui
sim, que cortou de um golpe toda a Glória de Portugal: aqui nos tirou
a capacidade de aprender, pois nos intentou persuadir, que não tinha
aquela Universidade método de ensinar.712
Da mesma forma exagerada com que Verney havia descrito a situação das
ciências em Portugal, seus críticos também exageraram na forma como procuraram
descrever o tom satírico e o desprezo com que as cartas do Verdadeiro Método de
Estudar trataram os portugueses:
Talvez não teria tão má aceitação, se o critico, sem dizer mal do
método, que usamos, propusesse o seu, como mais útil, e com boa
retórica procurasse ganhar a benevolência dos leitores, usando
daquela urbanidade, e suavidade de palavras muito própria da nação
italiana, a quem, diz, que pertence, e da francesa, da qual tudo lhe
agrada.713
Admitindo certa severidade com que o autor das Reflexões Apologéticas
(José de Araújo) havia criticado o Verdadeiro Método de Estudar, Duarte
ponderava que este, antes de tudo, tinha muito mérito por “acudir e defender a
primeira gloria de Portugal”, que havia sido “ultrajada” pelo ataque feito pelo crítico
aos “grandes heróis” da nação portuguesa.714
Por outro lado, Verney se colocava como alvo de injustiças: “satirizando
injustamente aos que querem ajudar os portugueses, isto é o mesmo que querer
conservar, e perpetuar a ignorância no reino”.715 Para defender sua posição, citava
vários jesuítas italianos que na Itália também defenderam a filosofia moderna, mas
711
Ibid., p.18, 20.
Ibid., p.29.
713
ARAÚJO, José de. Reflexões apologéticas, op. cit., p.4.
714
DUARTE, Francisco. Retrato de Mortecor, op. cit., p.13.
715
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.23.
712
188
nem por isso foram considerados traidores. Dentre eles citava o padre jesuíta
Boscovich, que de acordo com ele “em Roma tem ilustrado a Filosofia newtoniana
em várias dissertações belíssimas”.716 Vale lembrar, conforme já assinalamos no
início deste trabalho, que mais tarde Boscovich cairia em desgraça sendo obrigado a
abandonar a cátedra de matemática que ocupava no Colégio Romano. 717 Carlo
Benvenuti, que o sucedeu na cátedra do Colégio Romano em 1754, também sofreu
perseguições por sua falta de obediência na atividade didática, sendo obrigado a
trocar o ensino da matemática pelo da liturgia.718
Defendendo o método dos jesuítas, Francisco Duarte argumentava que a
maior parte dos homens doutos “de que se tem notícia” tiveram seus primeiros
estudos com os jesuítas: bastaria examinar nas bibliotecas as suas histórias,
memórias e nos diários, para constatar que quase todos estudaram em colégios
jesuítas.719 Além disso, os hereges tinham uma grande dívida em relação a eles,
pois só escreveram as suas obras mediante a necessidade de defender seus erros
da “viva guerra” que os jesuítas lhes declararam, isso os “fez suar sangue aos seus
melhores engenhos”. E por um golpe de retórica, constatava: “Sendo pois tudo tão
manifestamente certo, julgais vós, que não fica também sendo certo moralmente o
acerto do Método de ensinar Jesuítico?”(itálico no original).720
Duarte ainda se queixava dos defensores do método moderno, por eles
buscarem convencer a todos de que tudo que sabiam os portugueses haviam
aprendido com os estrangeiros; esqueciam, ressalta o autor, que todos aqueles
“inventos admiráveis”, como a “pólvora, o vidro o papel”, também foram ensinados e
aprendidos pelos franceses e ingleses; além disso, ressaltava que foram os
portugueses que os ensinaram a navegar “por mares nunca, dantes navegados pois
à nação Portuguesa devem eles o descobrimento de novos rumos”.721
716
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense, p.100. VM, volume
IV, p.237 e 281.
717
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Européia, op. cit., p.168.
718
Ibid., p.175.
719
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., p. 84. De fato, Bacon, Descartes, e o
próprio Verney tiveram sua formação inicial tutelada pelos jesuítas.
720
Ibid., p.84.
721
Ibid., p.57.
189
6.1.2 O ataque pessoal como estratégia de guerra
O ataque direcionado à pessoa do autor foi uma das estratégias utilizadas
pelos adversários de Verney. Muitas folhas foram gastas nas análises sobre a
identidade e a figura fictícia do Barbadinho. O padre Francisco Duarte concluiu, com
ironia, que seria muito difícil descobrir a identidade do autor, pois poderia ser
qualquer um da plebe, qualquer um “que passa em conversa na botica do seu
bairro”, pois não respeita os “homens verdadeiramente sábios, que nos ensinaram o
que sabemos”.722 Para ele, o Barbadinho não poderia oferecer qualquer tipo de
credibilidade perante seus escritos, o que tornava secundária uma discussão sobre
as “regras do método”. Duarte também utilizou da estratégia de provar a
incapacidade inerente à pessoa do autor da obra.
Dizei-me, que lhe importava ao Alethophilo destruir as regras do
Methodo?
Era por ventura este o seu assunto? Valha-vos Deus por
impertinente: já mais de uma vez vos respondi neste ponto: não me
obrigueis a repetir tanto como vós. Mas falemos a verdade: quereis
vós melhor argumento contra as regras do Barbadinho, que em
mostrar, que o Barbadinho não é capaz de dar regras?723
Neste caso, Duarte procurava desviar a atenção em torno das disputas dos
argumentos para o status e o lugar social ocupado pelo autor da obra a qual
pretendia criticar. Partia-se do princípio que a autoridade epistemológica não se
fundava exclusivamente nos argumentos, mas também na qualidade da pessoa que
os manejava. Esta estratégia do ataque pessoal não passaria despercebida por
Verney, que ao responder às críticas do Retrato de Mortecor, no seu Parecer do
Doutor Apolonio Philomuso Lisboense724, afirmou que a intenção de seu crítico
foi “publicar uma sátira para descompor o Religioso Barbadinho”. Acusava-o de ter
escrito uma “dissertação longuíssima sobre nascimento e fidalguia do autor”, como
se tivesse “ordem do paço para lhe tirar as inquisições”. 725 Acusa-o de desqualificar
a falta de razão das ideias do autor do método pelo fato deste não ser um “fidalgo”.
722
DUARTE, Francisco. Retrato de Mortecor, op. cit., p.6.
Iluminação Apologética, Parte II, op. cit., p.3.
724
Parecer do Doutor Apolonio Philomuso Lisboense, é dirigido a um prelado do reino de
Portugal que solicita ao Doutor Apolonio um parecer acerca da obra “Retrato de Mortecor”.
725
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, disponível
em http://purl.pt/index/livro/aut/PT/47557.html. Acessado em 14 de agosto de 2014, p.2 e p.6.
723
190
Mais tarde Duarte se defendeu afirmando que não teve a intenção de dizer que o
Barbadinho era “mal nascido” e que não pretendia ofender aos seus pais, porém,
“que ele tinha mostrado no estilo de escrever ser de mui baixa condição”.726
Analisando a obra Parecer do Doutor Apolonio Philomuso, Duarte
ironizava o título da resposta dada por Verney: “Parecer? E parecer, que vos
mandou dizer hum grande Prelado? Quem sois vós, para que hum grande Prelado
vos confulte?”.727 Além disso, ironizava o título de Doutor, este que só poderia ter
sido comprado por meio de “propina”, pois segundo ele poderia ter sido obtido
facilmente na Universidade de Roma, “aonde se vende barato”.728
Figura 5 – A obra Parecer do Dr. Apolonio Philomuso
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal http://purl.pt/24179 (acesso em 22/07/2015)
726
Iluminação Apologética, parte I, op. cit., p. 32.
Ibid., p.14.
728
Ibid., p.14.
727
191
O que este crítico faz é questionar toda esta situação criada pelo autor do
Parecer, que neste caso, não importa tanto saber se é verdadeira ou “inventada”.
Nas batalhas literárias, em que vários jogadores dão seus “lances” por meio de atos
discursivos,
vencem
as
melhores
performances.
Assim,
Duarte
procurava
desacreditar a possibilidade do autor ser realmente um Doutor, da possibilidade de
um prelado português fazer tal solicitação a um autor que não poderia ser um Doutor
e, ainda, que este Doutor não possuía as credenciais, nem a erudição necessária
para julgar sobre a utilidade das obras que analisa e, ironizando o pseudônimo
Barbadinho, que isso não era tarefa para “homens de tão poucas barbas”.729
Verney, mascarado na figura do Doutor Apolonio, procurava desviar o alvo do
ataque de seus adversários: “que importa isso para o merecimento da obra? Seja
turco, ou persiano, respondeis vós aos argumentos, que tudo o mais é perder tempo,
e enganar o mundo, dizendo que desagravais a nação”.730 Francisco Duarte, para
além de uma advertência, sugeria maior seriedade no tratamento do caso da
publicação da obra do Barbadinho, que não deveria limitar-se a uma mera
curiosidade sobre o autor. Recomendava o castigo, criticava a condescendência dos
magistrados portugueses diante de algo tão sério e ameaçador para “a paz pública”
como foi a ocasião da publicação do novo método: “Busque-se com cuidado este
escritor e pratique-se com ele o que mandão as leis, e observaram os Tribunais mais
rectos”.731
O debate também envolvia a questão do gosto literário, e discutia-se como
adequar o estilo às matérias que eram debatidas. Duarte não admitia que alguns
homens como o autor do método e outros citados por ele, como Muratori, fizessem
críticas ao estilo escolástico de discursar; defendia, portanto, aquilo que seus
detratores chamavam de “afectação”, “arengas”, excessos nos ornamentos e os
desnecessários “enfeites de composição”.
Duarte ainda alegava que, mesmo sendo prolixo, o método antigo não poderia
deixar de ser bom.732 Defendia a tradição e a quantidade de opiniões favoráveis
como critérios para se definir e estabelecer quais as ideias deveriam ser
consideradas “verdadeiras”. Segundo ele, os modernos erravam por “querer
reprovar o gosto de todos os séculos”, mas também:
729
Ibid., p.22.
Respostas as Reflexões Apologéticas, p.4.
731
DUARTE, Francisco. Retrato de Mortecor, op. cit., p.11 e p.12.
732
Ibid., p.18.
730
192
Erram primeiramente em querer que o seu gosto particular seja regra
do bom gosto, sem advertir, que nesta matéria tem maior autoridade
o maior número. [...] Como nos poderão provar, que estes, e a maior
parte dos homens , que até aqui se tem aplicado ao estudo das belas
letras, tem vivido enganados, e tem enganado aos outros; e que só
eles, e os poucos, a quem seguem, acertaram com o bom gosto da
composição?733
Diante das experiências científicas que vinham sendo realizadas, Francisco
Duarte chegou a fazer algumas concessões e dizia concordar com algumas
inovações promovidas na física:
Não o desaprovo porque é preciso confessar, que depois, que o
grande Chanceler Francisco Bacon abriu esta escola, e depois, que a
Academia de Paris e a Sociedade de Londres se aplicarão a
observar os segredos da natureza, souberam os filósofos muitas
coisas que até ali se ignoravam . Porem a mim me parece , que ele
se persuade, que uma experiência testemunhada por um Monsíur, e
exposta por argumento de alguma sua opinião tem a mesma forca ,
que decisão de hum concilio, que corta todas as duvidas.734 (grifo
nosso)
Do trecho acima podemos observar que, mesmo quando se tratava de avaliar
a veracidade ou legitimidade das conclusões fundamentadas por meio dos
resultados das experiências científicas, para Duarte, a palavra final deveria vir da
opinião da igreja, ou seja, esta deveria permanecer como a fonte da autoridade
epistemológica.
6.1.3 A crítica dos moderados: o caso de Frei Manuel do Cenáculo
Diferentemente de Verney, Frei Manuel do Cenáculo ocupou cargos de
relevância e teve importante participação nas reformas do governo de D. José. Foi
Superior Provincial da Ordem Terceira de São Francisco, presidente da Real Mesa
Censória, membro da junta de Instrução literária, bispo de Beja e arcebispo de
Évora.735 Além disso, Cenáculo colaborou com o Compêndio Histórico da
733
Iluminação Apologética, Parte II, op. cit., p.41.
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., p.60.
735
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.39.
734
193
Universidade de Coimbra (1771), um dos principais documentos escritos contra os
jesuítas do período pombalino.
Porém, nas suas intervenções em torno das polêmicas do método não tomou
o partido de Verney, pelo contrário, lançou uma série de críticas sobre as
considerações feitas por ele acerca do filósofo Raimundo Lúlio. Assim como
Guilherme de Ockam (1285 - 1349), John Duns Escoto (1270 - 1308), Raimundo
Lúlio (1232/33-1316) costuma ser lembrado pelas suas contribuições no debate
sobre o problema das relações entre fé e razão. É considerado um autor marginal e
pouco
estudado
pela
filosofia
contemporânea,
talvez
por
sua
“estranha
originalidade”.736
É bem provável que à época em que escreveu esta crítica Frei Manuel do
Cenáculo ainda não havia recebido a influência da filosofia moderna, como poderia
ser observada mais tarde em outros textos de sua autoria.737 Contudo, embora tenha
demonstrado admiração pela filosofia moderna de Bacon e Newton, não defendeu
opiniões tão radicais como Verney, e talvez o seu afastamento em relação a
algumas destas posições tenha contribuído para o fato de ter tido uma carreira de
destaque, sendo mais aproveitado na administração do reino.
Cenáculo publicou anonimamente uma obra em 1752 intitulada Advertências
Criticas e Apologéticas738 em que acaba tomando o partido dos defensores do
método tradicional e apoiando, em certa medida, os jesuítas José de Araújo e
Francisco Duarte. Embora sustentasse os defensores do método tradicional, não
concorda com o estilo como foram dirigidas as críticas ao Barbadinho, adotando
uma postura muito mais ponderada e cordial. Considerava os textos das polêmicas
do método como “imitações perversas, e não crítica prudente”. 739 Porém, não
poupou esforços em desacreditar o que chamava de “monstruosidades” e
“falsidades” ditas pelo D. Apolonio sobre Raimundo Lúlio, e principalmente o fato de
tê-lo acusado de herege. Cenáculo acusava o Dr. Apolonio de não ter examinado
736
Cf. REBOIRAS, Fernando Domínguez. Una introducción a la vida, obra y pensamiento de
raimundo lulio. Anuario de historia de la Iglesia, n. 19, p. 383, 2010. Cf. também: ZILLES, Urbano.
Fé e Razão no Pensamento Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1993, p.97.
737
Os posicionamentos de Cenáculo a favor da filosofia moderna são mais perceptíveis no contexto
das reformas da universidade, a partir da década de 70 do século XVIII. Cf. CALAFATE, Pedro.
História do Pensamento filosófico português, op. cit., p.148-149.
738
Advertências Criticas e Apologéticas Sobre o juízo, que nas matérias do B. Raymundo Lullo
formou o D. Apolonio Philomuso, e comunicou ao público em resposta ao Retrato de Morte-Cor, que
contra o autor do Verdadeiro Método de Estudar escreve o Reverendo Doutor Alethophilo Candido de
Lacerda.Coimbra, 1752.
739
Advertências Críticas e Apologéticas, op. cit., p.4.
194
bem os livros de Lúlio, e que poucos realmente o leram e, mesmo sendo o crítico
“supostamente douto em História Literária”, deveria sobre este assunto “calar a boca
pelo que pertence a Lulo”.740
Figura 6 – Capa da obra Advertências Críticas e Apologéticas
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal http://purl.pt/1330 (acesso em 22/07/2015)
Além disso, Cenáculo apontava para o que considerava uma série de erros
sobre os momentos mais importantes da formação intelectual de Lúlio e das
acusações que havia recebido da igreja. Segundo Cenáculo, o Dr. Apolonio cometeu
o mesmo erro do qual acusava seus críticos: “não falar sobre livros que não havia
lido e conhecido” e de imputar a algum escritor “coisas que ele não disse”. 741
Referenciando o método crítico de Mabilon, Cenáculo criticava a falta de
740
741
Ibid., p.4.
Ibid., p.7.
195
fundamentos das acusações feitas contra Raimundo Lúlio, e como procurou
demonstrar, estas deveriam estar ancoradas em determinações pontifícias mais
“subsistentes” e não em “facilidades”.742
Cenáculo defendia o método de Lúlio como sendo “simplíssimo e semelhante
ao matemático [...] põe a definição dos termos, ou princípios; depois as máximas
formadas daqueles, e as regras de praticá-los, e logo ajunta os discursos aplicandolhe os fundamentos gerais”.743 Seu método é “recto e digesto”, mas que poderia ser
“labirinto para quem o tomar a olho”, ou seja, acusava os críticos de Lúlio de não o
terem compreendido devido à falta de empenho e erudição, que seria necessária
para superar a complexidade inerente à sua proposta teórica.744
Nas Advertências argumentava que, a pesar da dificuldade, não se deveria
abandoná-lo, pois o mesmo ocorre com outras artes como a “trigonometria e outras
espécies da matemática”. De acordo com Cenáculo, a mesma dificuldade poderia
ser encontrada em teorias como a de Boscovich e Newton, bem como outros
autores que utilizaram de símbolos da álgebra no desenvolvimento de suas teorias.
Ao contrário daqueles que acusavam Lúlio de tentar “reformar todas as ciências”,
Cenáculo afirmava que assim como Aristóteles, Bacon, e o próprio Barbadinho,
estava apenas propondo uma forma geral para discorrer em muitas ciências.745
Além de um grande filósofo, Cenáculo descrevia Raimundo Lúlio como um
homem “tão venerável, tão virtuoso em sua fé”, que jamais poderia ser tratado como
um “louco” e “fanático”. Afirmava acreditar que ele havia recebido sua doutrina de
“Cristo Crucificado”, e que desde que Deus o havia tocado “não cometera mais
pecados”, e por isso não poderia errar, pois seu método havia sido infundido por
Deus.746
Talvez possamos apontar para algumas diferenças na maneira como
Cenáculo e Verney encaravam a Teologia. Cenáculo seguia uma perspectiva mais
escolástica, ao passo que Verney compreendia a Teologia como subordinada à
filosofia moderna. No Verdadeiro Método de Estudar a fé e a questão da graça
talvez não tenham o mesmo peso que é dado por Cenáculo.
742
Ibid., p.9.
Ibid., p.15.
744
Ibid., p.15.
745
Ibid., p.56.
746
Ibid., p.53.
743
196
Nas suas Advertências, Cenáculo discutia a “misteriosa” transformação
intelectual de Raimundo Lúlio, que de “um homem rude”, tornou-se um “homem
douto”. Como seria possível “escrever de matérias tão profundas sem ter estudado
ciência alguma?”. Cenáculo concluía que “esta transformação de ignorante a sábio,
é obra sobrenatural”, e não uma obra do diabo, tal como alguns haviam dito. 747 No
final de suas Advertências, anexou alguns documentos para provar que Lúlio não
era um herege; entre eles um documento publicado pelo arcebispo de Mallorca de
1695, proibindo falsos testemunhos e injurias contra o “Iluminado Doctor e Martyr El
Raymundo Lullo”, ordenando que a partir daquela data seria proibido pronunciar que
o dito doutor era herege, sob pena de excomunhão.748
6.1.4 Pina e Melo e a inconstância da filosofia
Outro autor que procurou seguir um estilo mais moderado foi Francisco de
Pina e Melo749 que, no contexto das polêmicas, havia publicado uma obra intitulada
Balança Intelectual, situando-se ao lado dos jesuítas. Porém, concordava em
alguns pontos com Verney, no que considerava as “subtilezas tão confusas e
inúteis” dos escolásticos; e também concordava sobre a necessidade de rever
alguns aspectos sobre o método e a lógica nos estudos, principalmente sobre
proeminência da especulativa.750
Por outro lado, queixava-se dos exageros dos adeptos das modas europeias;
“Não se podem conter alguns gênios caprichosos de não encarecerem as modas:
sempre desejam levar tudo aos extremos, e não ha mediania , que os não aflija”.751
Procurou defender as acusações que haviam sido feitas aos jesuítas em uma obra
publicada em 1754 intitulada Carta Exhortatoria aos padres da companhia de
Jesus.752 Nesta obra, publicada com as devidas licenças dos órgãos censores, os
jesuítas eram acusados de alimentar uma inveja em relação ao novo método de
gramática publicada pelos oratorianos - o Novo método da gramática para uso
747
Ibid., p.54.
Ibid., p.120.
749
Embora seja mais conhecido pela sua obra como poeta, a obra de Francisco de Pina e Melo
(1695 – 1773) é vasta. Pina e Melo frequentou os cursos de Filosofia e de Cânones na Universidade
de Coimbra sem ter concluído, também foi sócio da Academia Real de História.
750
Cf. DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p.220-222.
751
PINA E MELO, Francisco. Resposta Compulsória, 1755, p.12.
752
REMÉDIOS, Mendes dos remédios. Carta Exhortatoria aos padres da Companhia de Jesus:
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra , 1909.
748
197
das escolas da real casa da Sra das Necessidades - e por estes terem uma
ciência superior a dos jesuítas. Segundo o autor da Carta Exhortatória, os jesuítas
tinham medo que a gramática dos oratorianos diminuísse a importância do
compendio do Padre Manoel Alvares, que segundo o autor, Mendes dos Remédios,
vinha sofrendo críticas.
Na Carta Exhortatória apontava-se para um processo de decadência da
língua latina em Portugal desde que os jesuítas, no tempo de João III, assumiram o
Colégio das Artes. Além disso, assinalava para um processo de decadência da
Companhia: depois de terem “homens doutos como o Vieira”, passou a existir o
Araujo, que “desfigurado em Fr. Arsenio da Piedade”, veio a criticar o verdadeiro
método dos estudos. Além disso, protestava-se pelo fato da Companhia ter
escolhido como seu cronista o P. Francisco Duarte, como vimos, outro importante
adversário de Verney. Mendes dos Remédios igualmente criticava a Companhia por
não aceitar a filosofia moderna, porque, segundo ele, queriam ser seus criadores, e
por isso continuavam “engatinhando como meninos pelo sistema da filosofia
moderna”.753 Com ironia afirmava: “Causa não pequeno riso a obstinada teima, com
que insultais a filosofia moderna, a qual se está ditando na cabeça do mundo
católico, e nas mais florentes Universidades Católicas”.754 Ainda defendia a
necessidade de se convencer o Soberano para entregar o ensino a pessoas
capazes de restituir a idade de ouro com que Portugal falava a língua latina.755
Em defesa dos jesuítas, Francisco de Pina e Melo publicou em 1755 uma
obra intitulada Resposta Compulsória. Assim como Frei Manuel do Cenáculo,
adota uma postura mais moderada na defesa do método tradicional, sem apelar
tanto para os ataques pessoais. Ao tratar sobre a questão da moda no campo da
filosofia questionava: “Filosofia moderna? Não foi já moderna, a que hoje se chama
antiga? Pois que lhe falta para ser tão boa como esta?”. Ironizava o fato dos
modernos presumirem que Newton e Descartes “tiveram melhor juízo” que Platão e
Aristóteles, para ele tratava-se de “um pensamento bem caprichoso”.756 Além disso
“Querer imaginar que a nova Filosofia, por ser mais moça, é mais sesuda, é uma
apreensão bem extravagante”. Pina e Melo defendia que não deveriam ser “tão
753
REMÉDIOS, Mendes dos remédios. Carta Exhortatória, op. cit., p.21.
Ibid., p.20.
755
Ibid., p.25.
756
PINA E MELO, Francisco. Resposta Compulsória, op. cit., p.30.
754
198
insultado, como alguns pretendem o método antigo”, porque com ele se formaram
grandes homens, muito antes da existência do método moderno.
Nenhum destes grandes gênios nem de outros muitos, que
trabalharão toda a sua vida nestes estudos puderam até gora
resgatar a Filosofia da opinião, e da conjectura: E se é conjectural, e
opinativo tudo o que dizem, tudo o que propõem, tudo o que
discorrem, assim antigos, como Modernos, que vantagem é esta de
uma, para outra Filosofia?757
Citando Martinho de Pina e Proença, Pina e Melo argumenta que para o
estudo e aproveitamento da Gramática torna-se necessário muita aplicação do
aluno, pois a perfeição da doutrina depende de “um gênio hábil, aplicado e
curioso”.758 E por isso argumentava, em defesa dos jesuítas, que pouco importava
ensinarem a gramática pelo “método do seu Manoel Alvarez, ou pelo Sanches, Wolf,
e Port Royal, visto não depender a perfeição, do método, mas do gosto, e do gênio
do discípulo”.759
São as artes, e as ciências como as ondas; que em sucessivo
movimento umas vezes se enrolam , outras se encapelam, outras se
quebram: E até se parecem na sua mesma inconstância , pois não
só mudam de método, mas de climas: Passaram dos Egípcios para
os Gregos : dos Gregos para os Romanos : dos Romanos para os
Árabes , hoje se estendem pela Itália, pela França , e pela Grã
Bretanha , como se fosse portátil o trono de Minerva. Desta forte é
que vão fugindo, e sucedendo uns a outros instantes ; e esta é a
mesma mobilidade , que tem a vida , os costumes, os gostos , e os
conceitos dos homens.760 (grifo nosso)
Como é possível observar, Pina e Melo procura argumentar que a ideia de
método tinha a mesma diversidade dos “costumes”, dos “gostos” e dos “conceitos”.
Falando sobre as disputas literárias que ocorriam no campo da filosofia, ponderava:
“E nestas continuas irrupções, e repetidos ataques, cada um se aferra à sua
apreensão, com tanto afinco, como os navegantes, que se agarram dos rochedos
para escaparem do naufrágio”.761 Além disso, apontava para as guerras que
ocorriam dentro da própria filosofia moderna, “pois com muito maior fúria se
757
Ibid., p.30.
Ibid., p.75.
759
Ibid., p.76.
760
Ibid., p.30.
761
Ibid., p.31.
758
199
combatem os Cartesianos, Newtonianos, e Gassendistas com os seus mesmos
sistemas, do que todos juntos com o Peripato”.762
Pina e Melo acusava os modernos de terem plagiado os antigos; os Átomos,
ou corpúsculos de Gassendo eram uma “plagiaria da Filosofia de Demócrito, e
Epicuro”. Segundo ele, a gravitação e a atração de Newton:
Não consiste mais, do que em se ter mudado as vozes à simpatia, e
à qualidades ocultas, tão reprovadas pelos modernos [...] Pois aonde
estão aqui as novidades , que tanto encarecem estes senhores? [...]
E em que parte nos tem mostrado os Cartesianos , os Gassendistas ,
e os Newtonianos, que é melhor a sua doutrina, que a dos
Peripatéticos?763
E declarava que ainda não havia nenhum vencedor na batalha que estava
sendo travada entre antigos e modernos; argumentava, dessa forma, não haver
provas que pudessem indicar a superioridade da filosofia moderna:
Seria necessário mostrar, que, se os Jesuítas não tinham convencido
os Modernos, que os Modernos convenciam em todas as suas
disputas os Jesuítas: E se isto nunca sucedeu, e estou certo que não
há de suceder, aonde está depositada esta preferência, que tanto se
nos inculca, de que a Filosofia da moda é melhor do que a antiga ?
764
Assim, baseado em seu argumento sobre a “inconstância” das opiniões
filosóficas e por seu caráter histórico, Pina e Melo não via razão para se declarar a
superioridade da filosofia moderna perante a antiga.
6.2 A medicina e as polêmicas do método
No século XVII e XVIII, a medicina convivia com uma grande diversidade de
métodos de tratamento e as teorias de Harvey, Newton e Descartes não acarretaram
necessariamente um desenvolvimento proporcional ao campo da medicina.765
A perspectiva newtoniana de uma natureza dominada por leis exatas,
racionais e calculáveis, acabaria encontrando limites de aplicação. Ressalta-se que
762
Ibid., p.32.
Ibid., p.28.
764
Ibid., p.28.
765
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva,
1989, p.297.
763
200
as hipóteses de Newton para explicar a gravidade como forças ocultas da natureza
levaria a Física a se aproximar dos estudos de alquimia.766 Neste caso,
paradoxalmente, a ciência se aproximou da magia, na medida em que ambas
buscavam controlar as forças da natureza, mesmo que por caminhos distintos.767
Tendo isto em vista, Paolo Rossi procurou combater uma linha interpretativa
da história da ciência que desqualificava o momento de suas origens, por não haver
distinção entre o pensamento científico e o misticismo ou a magia. Para ele, o fato
de terem convivido em uma mesma época não significa que não existiu um
pensamento científico, conforme poderia parecer a princípio. Ressalta que a Idade
Média foi pintada como um período de escuridão e de barbárie pelos humanistas e
pelos defensores da modernidade que procuraram desqualificar o período anterior
ao deles, da pior forma possível, para garantir sua superioridade.768
Considerando as abordagens de Foucault sobre a história das ideias,
particularmente em sua Arqueologia do Saber, entre os séculos XVII e XVIII, as
disciplinas estavam se constituindo enquanto campos autônomos, por meio de uma
padronização de enunciados e regras que pudessem lhe conferir uma unidade. 769
No caso da medicina, com a emergência da filosofia moderna, houve um debate
entre os adeptos do modelo galenico-hipocrático contra aqueles que defendiam uma
medicina inspirada no método da física experimental de cunho newtoniano.
Diferentes propostas enunciativas foram debatidas em torno de temas e objetos
comuns, para que pudessem estabelecer uma ordem para o discurso médico.
A maioria dos campos disciplinares passaria por um confronto de posições,
muitas vezes divergentes. Para citar um exemplo, quando falamos da taxionomia de
Lineu, não podemos esquecer que se tratava de uma nova proposta de classificação
766
Darton nos mostra como alguns intelectuais iluministas encaravam a gravidade como um poder
oculto, assim como a eletricidade e o magnetismo. Exemplifica este lado obscuro da ciência no
século XVIII com as teorias do austríaco Franz Mesmer, que defendia a capacidade das forças
magnéticas da natureza para a cura de doenças. Cf. DARTON, Robert. O lado oculto da Revolução:
Mesmer e o final do Iluminismo na França. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
767
No pensamento alquimista de Newton havia uma noção de natureza repleta de forças vitais,
plásticas, geradoras. Cf. CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Européia, op. cit., p.54. Ver
também: MORAES, Reginaldo Carmello Corrêa de. Alquimia: Isaac Newton revisitado.
Transformação. vol.20, pp. 39-44,1997.
768
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa, op. cit., p.15.
769
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
201
dos seres vivos. E a classificação é um exercício de poder, conforme foi reiterado
por Darnton, na sua análise da Enciclopedié.770
Retomando algumas ideias de Verney sobre a medicina, ele a definiu como “a
Ciência que ensina a conservar e recuperar a vida perfeita e saúde do corpo
humano”, e assim faz uma importante distinção entre uma medicina pautada na
tradição, fundamentada na manutenção de uma prática e outra experimental,
considerada por ele, mais avançada. Por isso satirizava os médicos portugueses
comparando-os com os “mezinheiros”, que significava o mesmo que dizer
“curandeiros”. Insistia sobre a necessidade do médico ser também um físico:
“primeiro tomar justa ideia do corpo, e suas partes; (que é Anatomia;) e justa ideia
das doenças, que se podem formar nelas; (que é a teoria) e justa ideia do remédio,
(que é a Física)”.
De acordo com Verney, em Portugal, por serem todos galênicos, a medicina
não existia. Era praticada sem método, sem ordem, “sendo necessário ler muito para
vir a saber muito pouco”.771 Os problemas da medicina em Portugal estavam
relacionados ao mau método de curar praticado em Portugal: “ou o médico há de
renunciar os princípios da Filosofia galênica, ou deixar de estudar a boa
medicina”.772
Verney apontava para a necessidade do conhecimento de “princípios
necessários” sobre o verdadeiro conceito da enfermidade. Para o bom entendimento
sobre os mecanismos que controlam e articulam esta “máquina perfeita”, precisa o
médico ser antes de tudo um bom filósofo:
Quem hoje quiser mandar um médico português a Londres, Leiden,
Amsterdã, Haia, Paris, etc., para aprender Medicina, deve persuadirse que o manda aprender, não medicina, mas filosofia, e que por
força se há de esquecer do que tem estudado, para aprender
medicina. A boa medicina, ou moderna medicina, é unicamente uma
moderna filosofia mais circunstanciada. Os filósofos modernos
passam brevemente por algumas coisas que os médicos estudam
com escrúpulo e diligência infinita, por ser aquele o seu último
emprego. E daqui forma um método de curar totalmente diferente.773
(grifo nosso)
770
DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos, e outros episódios da história cultural
francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.249.
771
VM, volume IV, p.37.
772
Ibid., p.58.
773
Ibid., p.58.
202
A medicina moderna, para Verney, era representada pela física newtoniana
aplicada ao estudo do corpo humano. Partindo-se dos princípios da física
experimental, os médicos poderiam descobrir as leis de funcionamento desta
“máquina quase perfeita”. Porém, o padre José Duarte responderia de forma
bastante enfática que, além de ser desnecessária a anatomia, absolutamente não
era necessário saber filosofia para ser bom médico:
Não, e torno a dizer, não; por mais que vós espanteis, e fiqueis com
a boca aberta; por que talvez algum médico fanfarrão, v.g.o
insensato querendo acreditar-se de douto em muitas ciências, vos
meteu na cabeça que para um indivíduo se constituir um bom
médico, deve ser grande filósofo um consumado anatômico, e talvez
um astrônomo perfeito. 774
José de Araújo também insistia que o resultado era o que importava; o
desconhecimento de suas causas, seus princípios, efeitos, não deveria então
desacreditar a eficiência do método de curar tradicional, pois “Se mostra a
experiência que mandar sangrar, ou purgar a tempo, e com isso alivia o doente, que
nos importa, que a sua filosofia seja desta, ou daquela casta?”.775
Contudo, Verney procurava diferenciar tradição e experiência. Para o caso da
medicina, a tradição seria a manutenção de um hábito sem uma avaliação crítica de
seus resultados; a experiência, por outro lado, seria a prática do método
experimental, estabelecendo os princípios que fundamentam as leis da natureza.
Criticava o fato de que a medicina ainda convivia com receitas tradicionais, sem
reconhecer os elementos que a tornavam eficaz para o tratamento de determinadas
doenças. Por isso, não bastava saber o remédio correto para a cura, mas saber
como era produzido tal efeito; segundo ele, na medicina tradicional “[...] não se
aplicam os remédios porque se tem formado conceito deles e da enfermidade, mas
porque assim se pratica, e assim o fizeram os mestres que os ensinaram”. 776
Para exemplificar o mau método da medicina em Portugal, cita a obra Atalaia
da Vida contra as hostilidades da morte (1720), publicada pelo médico português
João Curvo Semedo. Foi um médico muito famoso, praticava uma medicina que
774
NOBREGA, Antônio Isidoro da. Grosseria da Iluminiacao Apologética, pelo que respeita a uma
página da segunda parte, em que seu autor Teofilo Cardoso da Silveira, presumio criticar o Dialogo
Jocoserio; notada e descoberta por fulano indiferente. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle,1752,
Parte II, p.101.
775
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.41.
776
VM, volume IV, p.39.
203
beirava o charlatanismo, associando as teorias de Galeno, Hipócrates juntamente
com crenças astrológicas e mágicas.777 De acordo com João Curvo Semedo, nos
lugares onde estivessem os homens feridos, não deveria se permitir a entrada de
“mulheres formosas, porque as feridas se assanham”.778 Verney argumenta que, se
o que distingue uma mulher feia de uma formosa é “ter a boca maior ou menor, o
nariz direito ou torto, os olhos negros ou desmaiados”, esses fatores não poderiam
explicar o fato das “feridas que se assanham”. E ainda ressalta que, por própria
experiência, havia estado em um exército em que mulheres formosas assistiam a
seus maridos e amantes, também em casas particulares, e que nunca tinha
verificado este problema, “nem queixaram-se ninguém de tal coisa”.779
Os defensores do método tradicional defendiam que era possível aprender a
anatomia sabendo especulativamente a estrutura do corpo humano, e que se
haviam médicos melhores que os portugueses no estrangeiro, nem por isso faziam
milagres. Segundo José de Araújo, por exemplo, a experiência dos médicos
independe do conhecimento dos sistemas filosóficos modernos e Harvey não teria
sido seu descobridor, mas o primeiro a afirmar a circulação do sangue. Segundo ele,
Hipocrates já falava sobre isso.780 Ao contrário das mudanças de método defendidas
por Verney, Francisco Duarte trata com saudosismo uma época em que a medicina
operava milagres, conforme podemos observar na sua Iluminação Apologética:
Ditosos tempos aqueles, em que Portugal tinha médicos, que nem
sabião a Descartes o nome, nem que em França houvesse
Gassendo, ou Newton em Inglaterra, e em cujas livrarias não entrava
livro francês, ou estava perpetramente fechado por falta de quem lhe
entendesse a língua: estes fizeram curas, e com receitas
particulares, que tinham adquirido, ou com o estudo, ou com a
experiência triunfaram muitas vezes do perigo, que fazia desmaiar
toda a esperança.781
José de Araújo acusava Verney de tentar desacreditar o método tradicional da
medicina utilizando de recursos de retórica: “para o pintar mais feio, diz, que veio
777
ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das
transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, p. 86, 2007. Ver
também: VM, volume IV. Cf. nota I, p.40.
778
VM, volume IV, p.42.
779
Ibid., p.42.
780
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar, op. cit., p.386-389.
781
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., parte II, p.103-104.
204
dos Árabes; e vimos a entender, que daquela terra não pode sair coisa boa”.782 A
expressão “pintar mais feio” como forma de referenciar o termo método, era
apontada por ele como uma estratégia usada por Verney para falar de forma
elogiosa sobre o método moderno e se defender daqueles que associavam a
filosofia moderna com os hereges.
No Verdadeiro Método de Estudar, Verney insistiu na importância da
anatomia para a medicina. Porém, José de Araújo considerava esta prática
desimportante e não via problema no fato dos portugueses a desprezarem, pois os
portugueses “pouco se aplicam em abrir corpos humanos”. Segundo ele, a anatomia
servia apenas para satisfazer a curiosidade de alguns, que poderia ser satisfeita
“pelos livros de que há muitos, e com estampas, muito bons, e com miúda
explicação”.783 Recomendava, portanto, que aqueles que quisessem estudar
anatomia, poderiam buscar este conhecimento nos livros. De fato, o estudo da
anatomia realmente não era bem visto em Portugal, pois D. João baixou um decreto
em 1739 proibindo a dissecação de cadáveres.784 A boa medicina, para José de
Araújo, se fazia “com o bom discurso, e muito pouca anatomia”.785 E reiterava:
Pois se o seu método é o verdadeiro, e o Galenico errado, por que
razão cá, e lá mas fadas há, e morrem uns, livrando outros, e
quantas notícias se conservam entre nós de médicos antigos, que
tivemos, e fizeram curas prodigiosas, sem que nesse tempo se
soubessem estas curas à moda, como as quer o crítico.786
A questão da longevidade, conforme apontado por Araújo, não poderia ser
considerada uma evidência da superioridade da medicina moderna, pois segundo
ele “no sertão de Angola, e nos do Brasil, na Etiópia, na Tartária, Pérsia, China,
Japão, &c. a gente vive tanto como em Portugal, e talvez mais; como nos ensinam
os itinerários mais célebres”.787 Neste caso, pondera Araújo, seria possível concluir
que os médicos portugueses eram muito melhores do que os médicos daquelas
regiões periféricas do império?
782
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.40.
Ibid., p.39.
784
ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das
transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, op. cit., p.90.
785
ARAÙJO, José de. Reflexões Apologéticas, op. cit., p.39.
786
Ibid., p.41.
787
Ibid., p.40.
783
205
Muitas vezes o debate entre a medicina moderna e a medicina tradicional
acabava representando um jogo de opiniões baseadas nas experiências individuais
de cada um e nas leituras possíveis sobre a filosofia moderna. Mesmo entre
médicos de profissão, conforme será analisado a seguir, os debates não ficaram
totalmente imunes ao caráter ideológico das disputas literárias.
6.2.1 Filósofos médicos ou gladiadores literários?
Na Grosseria da Iluminação788, publicada em 1752, o médico Antônio
Isidoro da Nobrega assumiria uma posição intermediária entre os defensores da
medicina moderna e da medicina tradicional. Nobrega era formado pela
Universidade de Coimbra e ocupava o cargo de Secretário da Sociedade MedicoLusitana. No contexto das polêmicas, havia publicado uma obra intitulada Diálogo
Jacoserio, em que dava razão a Verney nas críticas feitas por ele à filosofia
peripatética, pois acreditava ser impróprio tratar a física “com especulações e
questões intelectuais, sendo o mais acertado mostrar os efeitos da sua causa
experimentalmente”.789 Por isso foi atacado pelo padre Francisco Duarte, acusado
de um “idiota presumido”. Duarte argumentava que cada uma deveria deixar a cada
“profissão” o que lhe “pertencia” e a cada “professor o que lhe tocava”; mas, de
acordo com ele, Nobrega acabou se esquecendo desta sua “afectada modéstia”, ao
falar de disciplinas as quais desconhecia:
Entra pela Teologia, como por sua casa falando tão alto, como vilão
em casa de seu sogro; mandando, que se desterre da Teologia o
sistema Peripatético, porque com a Filosofia moderna se explicam
belamente os Acidentes Eucarísticos, e também a Graça Santificante
e os Hábitos790
As poucas páginas utilizadas por Duarte para tecer comentários do Diálogo
Jacosério valeram todas as cinquenta páginas da Grosseria da Iluminação, em
que Nobrega lhe responde com muita indignação. Segundo ele, Theophilo Cardoso
788
NOBREGA, Antônio Isidoro da. Grosseria da Iluminiacao Apologética, pelo que respeita a uma
página da segunda parte, em que seu autor Teofilo Cardoso da Silveira, presumio criticar o Dialogo
Jocoserio; notada e descoberta por fulano indiferente. Valensa : Na Oficina de Antonio Balle,1752.
789
NOBREGA, Antônio Isidoro da, Diálogo Jacosério Apud DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal
e a Cultura Européia, op. cit., p.222.
790
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética, op. cit., parte II, p.109.
206
da Sylveira, pseudônimo utilizado pelo padre Francisco Duarte, “pôs todo o seu
esforço, para censurar” e :
Vem tão fora de propósito, e traz tanta inverossimilhança, que nela
se adverte bem a total ignorância deste nosso pintor, que para fazer
iluminações, não sabe meter, nem temperar as cores; antes as
destempera na Retórica, Filosofia, e Teologia [...]791 (grifo no original)
Critica o Theophilo por se arriscar a falar de uma ciência a qual não estudou
apropriadamente: “porque há grande diferença em uma Ciência especulativa, qual é
a Teologia” e a “Medicina, que, sendo Ciência prática, deve acompanhar-se o seu
estudo com exercício. O que nunca teve, nem tem o senhor Teófilo, e outros
semelhantes, que nela se ostentam faladores”.792 Parece que Nobrega procurava
propor limites para o alcance dos debates filosóficos no que tange à medicina.
Argumentava que aquele que desconhecia as tradições desta profissão e não havia
tido a experiência de um médico, não poderia estar habilitado a falar sobre seus
métodos.
No que dizia respeito à medicina, Isidoro defendia que aqueles que não eram
médicos não deveriam se arriscar em uma ciência que não conheciam com
propriedade. Sob o pseudônimo de Fulano Indiferente, criticou os “autores que se
meteram a dar regras na medicina”, sem nunca a terem praticado. Já que se
consideravam “médicos, o Barbadinho, o P. Fr. Arsenio, o P. Lacerda, o P. Modesto,
o Philomuso, e os outros mais como R. Teofilo”, também seriam estes “juristas de
profissão, porque todos eles falam nestas ciências como se fossem mestres,
decidindo, expondo e escrevendo”.793 Como é possível observar, os nomes citados
por Isidoro eram todos pseudônimos utilizados nas polêmicas do Verdadeiro
Método de Estudar, todos se arriscaram, como Verney, a discutir o ensino da
medicina assim como trataram outros assuntos como o Direito, a Física e a Teologia,
sem necessariamente possuírem um domínio satisfatório destas ciências.
No caso da abordagem do novo método na medicina, Antônio Isidoro da
Nobrega posicionara-se como um observador externo diante da “batalha intelectual”
entre Verney e seus críticos; criticava os argumentos de ambos os lados, e
procurava um equilíbrio entre os polemistas.
791
NOBREGA, Antônio Isidoro da. Grosseria da Iluminiacao, op. cit., p.23.
Ibid., p.19.
793
Ibid., p.10.
792
207
Outra polêmica em torno dos métodos utilizados na Medicina portuguesa
ocorreu entre João Mendes Sachetti Barbosa e Duarte Rebello de Saldanha.
Saquetti Barbosa fez parte da Academia dos Imitadores da Natureza e da Arcadia
Lusitana que datam de 1749. Segundo Silva Dias, os debates ocorridos nesta
Academia teria sido a segunda grande manifestação de ideias novas depois do
Verdadeiro Método de Estudar e dos movimentos da Congregação de S. Filipe
Néri (Oratorianos).794 Os estatutos da Academia dos Imitadores da Natureza
defendiam que a finalidade de agremiação era o desenvolvimento da medicina
seguindo os experimentos práticos e o método experimental racional. Ou seja,
tratava-se de promover uma revisão da medicina a partir do olhar moderno,
fundamentado na experiência e na observação. Seguindo estes princípios, Sachetti
Barbosa publicou, em 1758, uma obra intitulada Considerações Médicas.
Sachetti Barboza era um médico de prestígio, membro da Royal Society e da
Academia Médica de Madrid. As Considerações Médicas foram publicadas com
todas as licenças, e de acordo com qualificador do Santo Oficio, Frei Jozé
Malachias, o livro poderia “sair á luz pública, não só de crédito da nação, mas de
grande utilidade ao bem público”.795 Sachetti Barboza relata que a partir da
experiência do grande terremoto de 1755, passou a refletir sobre um método para
curar doenças e epidemias. Após meditar por algum tempo sobre o assunto, afirma
que resolveu publicar seu trabalho para o “aumento da Medicina Portuguesa”, a qual
segundo ele se encontrava em estado de “decadência” perante as demais
nações796. Apoiando-se em importantes médicos portugueses, como Castro e
Sarmento e Ribeiro Sanches, Sachetti queria restabelecer o prestígio da profissão
de médico e a “extinta glória” da medicina portuguesa para combater a “má opinião
com que nos tratam as cortes estrangeiras”.797
Todo o fundamento, dos nossos censores consiste, em que usamos
de um método simplicicimo para tudo, e fazemos universal o de
leites, soros, e frangãos: que sangramos muito: que purgamos pouco
ou nada; e que ignoramos Botanica, Química, e Anatomia. 798
794
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia, op. cit., p. 239.
Censura do Frei Jozé Malachias.
796
BARBOSA, Sachetti. Considerações Médicas. 1758, p.ii.
797
Ibid., p.xxvii.
798
Ibid., p.xx e xxi.
795
208
Sachetti propõe uma medicina fundamentada na “observação, e sobre uma
Filosofia, e Medicina experimental, mecânica, e solida”.799 Defendia que a
“verdadeira medicina”, assim como Ribeiro Sanches, deveria ter como base o
sistema de Boherhave e ser praticada de acordo com os princípios da filosofia
moderna:
Pelo método de filosofar do incomparável Newton, que consiste em
acomodar a razão aos experimentos; e descobrir as leis da natureza,
depois de um suficiente numero de feitos constantes, critica, e
logicamente observados, em vez do contrario com que os filósofos, e
médicos extravagantes, querem que a natureza se sujeite nas suas
obras a nossa razão submergida em trevas, e destituída dos seus
melhores instrumentos, como são a Logica, a Critica, A Historia
literária, e as Matemáticas Puras, e Mistas com todos os seus
aparatos.800
Ponderava
que
os
professores
portugueses
não
deveriam
ser
responsabilizados pelo estado de decadência da medicina em Portugal, pois o
problema se encontrava nas leis e nos estatutos da universidade: “nossos Lentes da
Universidade, os quais se defendem Galeno, e Avicena, não é por inabilidade, ou
falta de melhor instrução, mas sim por observância da lei, e respeito reverencial aos
seus Estatutos”.801
Mais tarde, a obra de Sachetti Barbosa receberia uma crítica do médico da
corte Duarte de Rebelo de Saldanha, que publicou uma obra intitulada Ilustração
Médica em 1762. Afirma que muitas coisas que foram tratadas pelo Sachetti nas
suas Considerações Médicas são enganosas devido a uma falta de reflexão do
autor, que deveria examinar melhor as notícias “de fora sugeridas”, antes de as
considerar como verdadeiras. Aponta para uma “cega credulidade”, prejudicando a
medicina “destes nossos séculos”, pois de hipóteses não pode se extrair “um
verdadeiro método de curar”.802 Recomendava muita cautela em relação “os
sistemas dos Modernos, que fazem um estrondo muito maior, do que sua
utilidade”.803
799
Ibid., p.vii.
Ibid., p.iii.
801
Ibid., p.xxvii.
802
Ibid., p.XIV.
803
Ibid., p.405.
800
209
Em seu apoio, foram publicadas algumas cartas de alguns portugueses que
apoiavam a causa de Duarte de Rebelo de Saldanha. Nas cartas, encontramos uma
avaliação pessoal sobre a obra e a importância de seus argumentos para o bem
público. António Soares de Macedo Lobo, por exemplo, fez os seguintes
comentários:
Eu me persuado que os autores modernos não formaram sistemas,
de que não tivesse bastante Idea nos antigos; mas com o estrondoso
das suas vozes se fazem inventores de novos sistemas; ainda que
não confessem a fonte donde os tiraram.804
Em outra carta defende-se que o autor consegue ser bem sucedido na sua
crítica contra os modernos, pois consegue sustentar a “vacilância do sistema de
Boerhaave, e da Física de Newton” e o fato de esta, por ser baseada em cálculos,
atrações e repulsões, não seria útil à Medicina por ser “hipotética”. Argumenta-se
também que saber explicar os fenômenos da medicina pelo “peso de cada um dos
corpos, e pelas suas leis” de nada serviriam ao médico.805
[...] tendo certo, que os descobrimentos da física, muito tem
contribuído a fazer a sua teoria mais verdadeira, e instrutiva; mas
não é crível, que estes tenhão feito alguma mudança no exercício
clinico, como é conctante pela particular experiência de cada um
dos professores, que a exercita, e só o poderão intentar aqueles, que
levando nos seus descobrimentos a vaidade por base, profundão o
seu plano mais nas idéias precárias da sua fantasia, que na publica
utilidade das ciências806 (grifo nosso)
Este grupo de médicos criticava os adeptos da medicina moderna
argumentando que estes aderiram cegamente a uma nova proposta de método,
desconsiderando outros aspectos importantes no que diz respeito à medicina.
Questionava-se o fato de não haver indícios claros e evidentes sobre a “utilidade”
deste método para o “exercício clínico”. Defendia-se que os médicos não poderiam
simplesmente abandonar os conhecimentos de sua época fazendo tabula rasa sobre
as ações e os procedimentos utilizados até então pela medicina no combate às
doenças, e que, diante da diversidade das mesmas doenças, só poderiam ser
804
Carta do Doutor Cristovão Vaz. In: SALDANHA, Duarte de Rebelo de. Ilustração Médica. 1762.
sem numeração de página.
805
Ibid., p.2.
806
Ibid., p.6.
210
valorizados os conhecimentos adquiridos pela prática e pelo conhecimento deste
saber que provinham dos livros e dos tratados da medicina. Para eles, a medicina
não poderia ser orientada somente pelos princípios newtonianos, mas deveria ser
combinada com a contribuição dos métodos tradicionais. Assim, sustentavam que a
Medicina portuguesa não estava em decadência ou seria “inexistente”, conforme
argumentava Verney.
Talvez o grande legado da física newtoniana para a medicina portuguesa
tenha sido permitir examinar e estudar o corpo humano sem ofender aos dogmas
religiosos, abrindo-se o campo para a prática da anatomia. Um acesso que fosse
moralmente aceito e considerado legítimo para a causa da medicina. De fato,
Newton havia provocado uma revolução na maneira de explicar os fenômenos
naturais. Acreditava-se que a física newtoniana deveria ser o ponto de partida para o
estudo do corpo humano, e conforme já mencionamos, esta ideia apareceria nos
novos estatutos do curso de medicina da Universidade de Coimbra: “é a física, tal é
a medicina; e reciprocamente qual é a medicina, tal é a física.807
De forma geral, observou-se que, à medida que se intensifica o debate,
exigindo novas respostas de cada autor, mais ele se aproxima de uma disputa
literária, afastando-se de um debate que poderíamos atualmente chamar de
cientifico.808 Mas o que poderia ser considerado “científico”, para o caso do contexto
de ideias do século XVIII português? Muito provavelmente Verney responderia que
toda a investigação conduzida pelos princípios de seu “verdadeiro método”. De
forma geral, a maioria dos ilustrados portugueses considerava ciência tudo que
seguisse os princípios newtonianos da observação e experimentação. Mas qual a
contribuição da física newtoniana para a medicina? Basicamente, foi essa questão
que foi debatida entre alguns médicos portugueses no século XVIII. Para alguns,
enquanto não houvesse uma resposta satisfatória para esta pergunta, a tradição não
poderia ser descartada.
807
Compendio, op. cit., p.336.
Que a rigor, não poderia ser afetado por nenhuma ideologia, mas sim a partir de uma neutralidade
objetiva.
808
211
CONCLUSÃO
Nesta tese de doutorado foram apresentadas algumas ideias presentes no
Verdadeiro Método de Estudar de Luís António Verney e sua relação com o
contexto intelectual português do século XVIII. Vimos como esta obra foi construída
a partir de uma compilação das principais correntes da “filosofia moderna”809,
organizadas de tal forma a propor uma ampla reforma do sistema educacional
português. Procuramos mostrar que a ideia de método foi o fio condutor de toda a
obra e que ofereceu uma unidade ao amplo conjunto das disciplinas analisadas em
cada uma da cartas que constituem o Verdadeiro Método de Estudar (Língua
Portuguesa, Gramática, Latinidade, Línguas Orientais, Retórica, Poesia, Lógica,
Metafísica, Física, Ética, Medicina, Direito e Teologia). Considerando uso e o
significado do termo método como problemática e guiando-se pelo debate em torno
deste termo na análise dos documentos, concluímos que a ideia de método é um
elemento fundamental para a compreensão das questões fundamentais do contexto
intelectual português do século XVIII.
Verney era bastante otimista em relação a todo o potencial oferecido pelo
universo das Luzes. Ele não utilizou o termo Iluminismo nos escritos que
analisamos, somente o termo ”Luzes”, “aluminado”, ou o verbo “aluminar”. Quando
estes termos aparecem em seus textos, são utilizados para referenciar o que
identificava por “novos tempos”, uma época muito promissora, de muito otimismo,
sobre uma nova visão de homem e de natureza.
Verney e todos aqueles que
simpatizavam com as Luzes acreditavam na capacidade dos homens para se
servirem da “luz natural” da razão e dirigir não apenas suas vidas, mas todas as
coisas que lhes diziam respeito, incluindo as coisas do estado. Esta percepção
otimista em relação às capacidades do homem em conhecer e transformar o mundo
a sua volta passava necessariamente pela adoção de um novo método.
Procuramos apontar como Verney estava conectado ao ideário Iluminista,
sobretudo pela maneira como abraçou o paradigma da física newtoniana como
fundamento de toda a sua proposta metodológica. Aderindo aos princípios de alguns
809
A “filosofia moderna”, no contexto do século XVIII, estava associada a um amplo conjunto de
ideias que passaram a circular no contexto do Iluminismo, e que foram elaboradas por um grupo de
filósofos identificados como “modernos”, como Descartes, Newton e Locke, para citar apenas os mais
conhecidos.
212
filósofos como Descartes, Locke e, especialmente, Newton, Verney defendeu a ideia
de um novo método e sua superioridade para combater a filosofia escolástica. A
disputatio escolástica era definida, principalmente, pelo princípio da autoridade e não
se caracterizava por um debate sobre novas ideias, mas sim para a manutenção
daquelas consideradas verdadeiras, sempre de acordo com os dogmas da igreja.
Procuramos chamar a atenção para o caráter retórico do Verdadeiro Método
de Estudar, sobre o seu estilo carregado de ironias, e para a importância do estilo
epistolar utilizado na sua elaboração, aspectos que foram fundamentais para a
enorme polêmica que a obra causou.
Também foram apresentados outros textos - tanto escritos por Verney
(incluindo algumas cartas), como escritos por outros portugueses do século XVIII
(incluindo alguns documentos publicados no contexto das reformas pombalinas). A
partir da análise destes documentos, procuramos apontar para diferentes
significados e diferentes usos da ideia de método no contexto intelectual português.
No caso específico de Verney, a ideia de um novo método foi utilizada por ele
não apenas com um significado epistemológico e filosófico, mas para se referir à
necessidade de toda uma renovação cultural.
Analisando as reações provocadas por sua obra, tentamos demonstrar como
a ideia de método colocou em questão a identidade da cultura portuguesa, a glória
da nação e da religião portuguesa, que haviam sido colocados em questão pelas
críticas apresentadas no Verdadeiro Método de Estudar. Mostramos diferentes
posicionamentos diante do novo método, desde uma forte oposição, passando por
uma linha moderada, até uma adesão inconteste.
Verney, assim como Pina e Proença e Ribeiro Sanches, criticava o que
considerava as disputas inúteis dos escolásticos. Toda a argumentação de Verney
em seu Verdadeiro Método de Estudar estava voltada para apresentar o método
escolástico como parte de uma cultura arcaica, em descompasso com o que ele
considerava novo e moderno.
Enquanto seus adversários argumentavam que as ideias contrárias à filosofia
escolástica também contrariavam a igreja católica, Verney defendia que não havia
conflito entre a filosofia moderna e os dogmas da igreja. Afinal de contas, de acordo
com seu sistema de ideias, o método da filosofia moderna também deveria dirigir o
conhecimento da Teologia. Verney não estava propondo uma separação entre
213
filosofia e teologia, ao contrário: desde que ela estivesse fundamentada nos
princípios da filosofia moderna, a Teologia teria um importante papel de investigação
na ciência, a qual possuía como objeto o estudo “das coisas reveladas”, aquelas
coisas que Deus quis que nós soubéssemos.810 Verney se colocava como defensor
da Teologia moderna que, segundo ele, era a mesma que vinha sendo praticada
pelos “doutos” da Europa, dirigida por um método capaz de distinguir os documentos
verdadeiros dos falsos, e aqueles que pudessem servir para comprovar as principais
decisões na história da igreja.
Verney argumentava que os hereges passaram a utilizar do método moderno
de pregar e de disputar, o qual, devido a sua superioridade, fez com que eles
pudessem “dilatar” a sua religião pelo mundo e, além disso, encontrarem-se mais
preparados para disputar com os católicos. Portanto, para Verney, os verdadeiros
inimigos de Portugal eram aqueles que impediram a entrada do “novo método”, e a
tarefa mais importante para se reformar e restituir o lugar de importância da cultura
portuguesa era combater o método antigo, o que levaria inexoravelmente à
necessidade de se destruir a filosofia escolástica (peripatética).811
Como mostramos, aqueles que procuraram defender a escolástica acusavam
e rotulavam os adeptos da filosofia moderna como seguidores de uma moda, que
haviam aderido acriticamente às notícias e ideias vindas de fora. Os inimigos de
Verney procuraram defender aquilo que consideravam ser o melhor para Portugal:
manter a tradição e a pureza do catolicismo. Os críticos do “novo método” buscavam
defender as ideias dos doutores da escolástica, como Tomás de Aquino e Duns
Escoto, autores que vinham se impondo há séculos como autoridades. Para críticos
do método moderno, não havia razão para abandonar seus doutores para incorporar
aquelas ideias, as quais julgavam efêmeras como as modas - pois haviam aparecido
em um intervalo relativamente curto de tempo, entre os séculos XVI e XVII.
O Iluminismo colocava em questão toda a tradição e defendia uma nova visão
de mundo, ou seja, outra forma de pensar o homem e a natureza. A euforia em torno
das possibilidades desta nova filosofia, de todo o potencial proporcionado pelo
método moderno, ocasionaria alguns exageros, como aconteceu no caso da
810
Para um melhor aprofundamento da discussão sobre a conciliação entre Filosofia e Teologia no
pensamento de Verney. Cf. FERREIRA, Breno Ferraz Leal. Contra todos os inimigos. Luís António
Verney: historiografia e método crítico (1736-1750). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-Graduação em História Social. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p.149.
811
Cf. VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750, p.93
214
medicina. Alguns autores passaram a questionar a ideia sugerida por Verney de que
os médicos deveriam ser antes de tudo bons filósofos - o que de acordo com seu
sistema de pensamento significava ser um bom físico; ter domínio das leis da física,
dos corpos físicos e da matemática. Vimos como esta ideia foi combatida por alguns
médicos portugueses, que apontavam para os limites de aplicação dos princípios da
filosofia moderna, especialmente a física newtoniana, para a medicina e a
necessidade de se preservar a medicina tradicional.
Por meio da adesão ao método moderno, pretendia-se recuperar a gloria da
nação e promover uma mudança da mentalidade dos portugueses. Esta nova
perspectiva anunciava todo um conjunto de reformas do sistema educacional
português. No caso da Universidade de Coimbra, conforme foi estabelecido nos
novos Estatutos, a Filosofia e a Matemática tornaram-se pré-requisito para a
entrada em todos os cursos oferecidos.812 O método matemático deveria nortear as
principais faculdades - a Teologia, o Direito e a Medicina - “trazendo-as para
caminho seguro do Método Matemático” (itálico no original) e por tudo “quanto é
possível imitá-lo e segui-lo nos diferentes objetos das ditas Ciências”.813
Argumentava-se que a Matemática havia caído em descrédito porque fora
infeccionada pelas “sutilezas vãs, e contenciosas dos escolásticos”, por isso
procurava-se restituir a esta “tão importante faculdade” o “lugar que merece”. 814 Foi
criada a “profissão” de professor de Matemática como uma forma de estimular esta
carreira dentro da universidade e evitar a falta de professores desta disciplina.815
D. Francisco de Lemos, responsável por implementar as reformas, fez um
balanço dos cinco primeiros anos de funcionamento e apontou para a preocupante
falta de estudantes matriculados nos cursos de Filosofia e Matemática. 816 No
812
O Livro III dos novos estatutos da Universidade de Coimbra, composto pelas “ciências naturais e
filosóficas”, estava dividido em três partes, a primeira parte sobre a Medicina, a segunda parte sobre
o curso de Matemática, e a terceira sobre o Curso Filosófico, que de acordo com os estatutos
“consiste na aplicação da Razão a todos os diferentes objetos”. Estatutos, Livro III, 341
813
Estatutos, Livro III, 215.
814
Procurava-se transformá-la em uma “uma Faculdade Maior do ensino público” com as mesmas
“honras, insígneas”.Estatutos, Volume III, p.214 e p.216.
815
Nos Estatutos procurou-se tornar a Matemática uma faculdade importante. Estabelecer a Profissão
Matemática na Universidade de Coimbra em Corpo de Faculdade” significava uma forma de estimular
a carreira de professor de matemática dentro da universidade e evitar a falta de professores desta
disciplina. Estatutos, Livro III, 215
816
LEMOS, Francisco de. Relação do Estado Geral da Universidade de Coimbra. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1980, p.84. Os alunos ordinários eram alunos matriculados
especificamente no curso de Matemática, os demais eram identificados como obrigados, aqueles que
cursavam esta disciplina como pré-requisito e curso preparatório para os cursos de Direito, Teologia,
215
primeiro ano do curso de matemática, matricularam-se oito estudantes; no segundo
ano, apenas dois, mas só um apareceu; no terceiro, quatro; e no quinto ano, não se
matriculou nenhum. No curso Filosófico, apenas quatro estudantes haviam se
matriculado nos cinco primeiros anos. O curso de Direito continuou sendo preferido
pelos estudantes portugueses, mas os cursos de Física e Matemática, justamente
aqueles que representavam a base do novo método, estavam se arruinando pela
falta de alunos, caindo em “estado de abandono”.817
Ora, esta situação pode indicar uma resistência da sociedade portuguesa em
incorporar as diretrizes estabelecidas pelos reformistas e, ao mesmo tempo, uma
falta de efetividade destas propostas no que tange à importância conferida pelos
reformistas ao curso de Matemática e ao curso de Filosofia. Acreditava-se que a
sociedade pudesse ser reformada por meio da aplicação de um novo método de
ensino como diretriz dos novos estatutos da universidade. Não podemos deixar de
apontar a maneira como o caráter utilitário do método experimental seria utilizado
como um dos fundamentos dos procedimentos adotados no reino de D. José no
governo e na administração do reino. Também não se podem negar os resultados
advindos destas reformas educacionais para a modernização do estado português,
como por exemplo, na importância do método experimental na atuação de alguns
funcionários régios.818
Ao abordarmos o ideário reformista no quinto capítulo, apontamos como a
ideia de atraso, construída no reinado joanino, foi fundamental para legitimar as
ações políticas encampadas pelo estado no reinado josefino. Foram analisados
alguns autores da primeira metade do século XVIII para perceber como eles
contribuíram para a construção da ideia de atraso da cultura portuguesa perante as
demais potências, especialmente Inglaterra e França. D. Luís da Cunha, Verney e
Ribeiro Sanches concordavam sobre a necessidade de se reformar o reino nos
setores que consideravam estratégicos, sobretudo a economia, e sobre o papel da
igreja e da educação na sociedade portuguesa. Estes autores estavam propondo
ideias que acreditavam poder fazer Portugal voltar aos seus tempos de glória.
Medicina e Filosofia. Havia ainda os voluntários, que poderiam cursar por curiosidade ou para o
“ornamento de seu espírito”.Ibid., p.84.
817
Ibid., p.86.
818
Cf. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida Para a instrução dos homens encarregados dos negócios
públicos no final do Antigo Regime português. In: Thaïs Nivia de Lima e Fonseca. (Org.). As
reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
216
Analisando por outra perspectiva, não podemos deixar de observar e de nos
surpreender quanto ao fato do pequeno reino da península ibérica ter conseguido
manter um império tão vasto “longe de sua casa” por tanto tempo. A dimensão
imperial não pode ser negligenciada quando pensamos sobre o século XVIII
português. Foi justamente este equilíbrio entre o Iluminismo, com toda a sua
modernidade, e a necessidade de se manter preso aos laços da tradição que
possibilitavam o domínio de todo o seu vasto território de além-mar. Este contraste
aponta para uma relação diferente de Portugal com a modernidade, talvez mais
conservadora do que em outras partes da Europa, que poderia representar uma
variedade do que a historiografia identificou como Iluminismo Católico. Por isso a
igreja foi conservada dentro de alguns limites como uma instituição necessária,
conforme assinalou Falcon, “queria-se uma cultura moderna, sob a égide do Estado
secular, mas sobre uma base espiritual, religiosa”.819
Como uma singularidade do Iluminismo português, apontamos para a maneira
peculiar com que a ideia de método foi debatida e discutida em Portugal, cujo ponto
mais alto ocorreu nas polêmicas em torno do Verdadeiro Método de Estudar.
Porém, o contexto analisado na tese foi mais amplo, envolveu o período anterior à
publicação do Verdadeiro Método de Estudar, tendo talvez como referência principal
a obra de Martinho de Mendonça Pina e Proença Apontamentos para a educação
de um menino nobre (1734), até o período das Reformas da Universidade em
1772. A partir deste contexto procurou-se analisar como a palavra método foi
utilizada pelos filósofos e reformadores portugueses para justificar suas propostas
de modernização da sociedade portuguesa.
Por fim, foi possível perceber que a interpretação histórica elaborada pelos
reformistas no período pombalino acabou se tornando um modelo nas abordagens
historiográficas sobre o século XVIII em Portugal. O papel que foi dado a Verney na
Dedução Cronológica, como “o iluminado Zeloso, que despertou a mocidade
portuguesa do letargo, em que estava”, acabou se propagando para muito além do
século XVIII, como é possível observar nas abordagens de José Sebastião da Silva
Dias, Francisco José Calazans Falcon e Laerte Ramos de Carvalho, para citar
819
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina, op. cit., p.430.
217
apenas alguns exemplos mais significativos.820 Assim, procurou-se “desencarnar” o
discurso verneyano de seu estigma de ruptura, apontando para o seu “exagero” na
forma de caracterizar o estado de decadência da sociedade portuguesa do século
XVIII. Na medida em que Verney estava propondo um diagnóstico, baseado no seu
ponto de vista sobre a realidade europeia, procurou sustentá-lo como um discurso
verdadeiro sobre aquela realidade. Procuramos, assim, problematizar e reexaminar
a sua eficácia pela forma como seus sucedâneos constataram e declararam como o
mais impactante e eficaz discurso sobre o estado de decadência.
820
Cf. DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a cultura europeia, op. cit. p. 204. FALCON,
Francisco José Calazans. A época pombalina, op. cit., p.157 e 323. CARVALHO, Laertes Ramos de.
As reformas pombalinas da instrução pública, op. cit., p.60.
218
REFERÊNCIAS
FONTES
Advertências Criticas e Apologéticas Sobre o juízo, que nas matérias do B.
Raymundo Lullo formou o D. Apolonio Philomuso, e comunicou ao público em
resposta ao Retrato de Morte-Cor, que contra o autor do Verdadeiro Método de
Estudar escreve o Reverendo Doutor Alethophilo Candido de Lacerda. Coimbra,
1752.
Alvará de Reforma dos Estudos de 28 de junho de 1759. In: Coleção da
Legislação Portuguesa desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo
desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Na
Typografia Maigrense, 1830.
ARAÚJO, José de. Reflexões Apologéticas a obra intitulada Verdadeiro Método
de Estudar. Valência: Na oficina de Antonio Balle, 1748.
ARAÚJO, José de. Conversação Familiar e Exame Crítico, em que se mostra
reprovado o método de estudar, que com o título de verdadeiro, e aditamento de útil
à República e à Igreja, e proporcionado ao estilo de Portugal expoz em dezesseis
cartas o R.P Frey ****Barbadinho da Congregação de Itália: e também frívola a
resposta do mesmo as sólidas reflexões do P.Frey Arsênio da Piedade, Religioso
Capucho.. Valensa: Na oficina de Antonio Balle, 1750.
BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da
interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
BARBOSA, Sachetti. Considerações Médicas. 1758.
BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez e Latino. 5 volumes. Lisboa: Na oficina de
Pascoal da Silva, 1716.
Carta de lei com os Estatutos do Real Colégio dos Nobres de 7 de março de
1761. In: Coleção da Legislação Portuguesa desde a ultima compilação das
ordenações, redigida pelo desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de
1750 a 1762. Lisboa: Na Typografia Maigrense, 1830.
Cartas de Verney aos padres da Congregação do Oratório de Goa, compondo um
conjunto de onze cartas datadas de 1756 – 1771. Carta ao Padre Joaquim de Foyos
de 1786. In: MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século
XVIII: Luís António Verney. São Paulo: Saraiva & C.a Editores, 1941. Apêndice I e
II.
Carta dedicatória de sua obra Metafísica ao rei D.José escrita de Roma em 1753. In:
VERNEY, Luís António. Metafísica. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2008. Tradução de Amândio Coxito, p.26-34.
219
Compendio historico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão
dos denominados jesuitas e dos estragos feitos nas sciencias e nos professores, e
directores que a regiam pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por
elles fabricados. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1771. 3 v.
Correspondência entre Verney e Muratori, 1745-1749, compondo um total de vinte
cartas. In: MORAIS, Regina Célia de Melo. L. A. Muratori e o Cristianismo Feliz na
missão dos padres da companhia de Jesus no Paraguay. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal Fluminense, 2006. Anexo V, pp.124-147.
Deducção Chronologica, e Analytica. Parte Primeira, na qual se manifestão pela
successiva serie de cada hum dos Reynados da Morarquia Portugueza, que
decorrêrão desde o Governo do Senhor Rey D. João III. até o presente, os
horrorosos estragos, que a Companhia denominada de Jesus fez em Portugal, e
todos seus Dominios, por hum Plano, e Systema por ella inalteravelmente seguido
desde que entrou neste Reyno, até que foi delle proscripta, e expulsa pela justa,
sabia, e providente Ley de 3. de Setembro de 1759. Dada a Luz pelo Doutor José
Seabra da Silva. Lisboa: 1767.
DESCARTES, Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
DUARTE, Francisco. Iluminação Apologética do Retrato de Mortecor: em que
aparecem com as mais vivas cores os erros do autor do novo método, e seu
apologista, os quais pretendeu defender um anônimo, por alcunha, o Doutor
Apolonio Philomuso, e se lhe mostrão os muitos, que por malicia, ou por ignorância
cometeu. Sevilha, Imprensa de Antonio Buccaferro, 1749.
Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da immediata e
suprema inspecção d'el-Rei D. José I pela Junta de Providencia Litteraria
ultimamente roborados por sua magestade na sua Lei de 28 de Agosto deste
presente anno. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1772. 3 v.
Graciosa, e divertida farça ou o novo entremez intitulado a defesa das
madamas a favor das modas, em que deixão convencida a peraltisse dos
homens. Lisboa: Na oficina de Antonio Gomes, 1792.
ISLA, José Francisco de. Fray Gerundio de Campazas. Madrid: Imprenta de
Gabriel Ramírez, 1758.
LEMOS, Francisco de. Relação do Estado Geral da Universidade de Coimbra.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1980.
MAYMÓ y RIBES, Joseph. Defensa del Barbadino en obsequio de la verdade.
MADRID: En la oficina de Joachín Iharra, 1758.
NOBREGA, Antônio Isidoro da. Grosseria da Iluminiacao Apologética, pelo que
respeita a uma página da segunda parte, em que seu autor Teofilo Cardoso da
Silveira, presumio criticar o Dialogo Jocoserio; notada e descoberta por fulano
indiferente. Valensa: Na Oficina de Antonio Balle,1752.
220
PINA E MELO, Francisco. Resposta Compulsória, 1755.
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a Educação
de Hum Menino Nobre. Lisboa Occidental, Officina de Joseph Antonio da Sylva,
1734.
REMÉDIOS, Mendes dos remédios. Carta Exhortatoria aos padres da Companhia
de Jesus: Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra , 1909.
SALDANHA, Duarte de Rebelo de. Ilustração Médica. 1762.
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina.
Universidade da Beira Interior: Covilhã, Portugal, 2003.
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas para a educação da mocidade. Covilhã
(Portugal): Universidade da Beira Interior, 2003.
Testamento politico ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao senhor Rei
D. Jose I. antes do seu governo,o qual foi do conselho dos senhores D. Pedro I . e
D. João v., e seu embaixador às cortes de Viena, Haya, e de Paris; onde morreu em
1749. Lisboa: Na Impressão Regia, 1820.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar. Lisboa: Livraria Sá da
Costa – Editora, 1950. 5 v.
VERNEY, Luís António. Parecer do doutor Apolonio Philomuso Lisboense. 1750.
VERNEY, Luís António. Lógica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2010.
VERNEY, Luís António. Cartas Italianas. Lisboa: Edições Silabo, 2008.
VERNEY, Luís António de. Respostas as Reflexões que o R.P.M.Fr. Arsenio da
Piedade Capucho fez ao Livro intitulado: Verdadeiro Método de Estudar.
Valência: Na oficina de Antonio Balle, 1748.
VERNEY, Luís António. Metafísica. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2008.
VERNEY, Luís António. Gramatica Latina tratada por um Metodo novo, claro, e
fácil. Para uzo das pessoas, que querem aprendela brevemente, solidamente.
Traduzida de Francez em italiano: e de italiano em portuguez. Barcelona 1758.
221
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos
das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15,
jul.-dez. 2007, p. 80-104.
ALVIM, Gilmar Araujo. Linguagens do poder no Portugal setecentista: um estudo
a partir da Dedução Cronológica e Analítica (1767). Dissertação Mestrado. Niterói-RJ
: Universidade Federal Fluminense, 2010
ANDRADE, António Alberto Banha de. Vernei e a cultura de seu tempo. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1966.
ANDRADE, António Alberto Banha de. Verney e a projeção de sua obra. Portugal:
Instituto de Cultura Portuguesa, 1980.
ANDRADE, António Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos
Secundários (1759-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1981. v.1.
ANDRADE, António Alberto Banha de. O Iluminismo filosófico em Portugal. Revista
Portuguesa de Filosofia. T. 38, Fasc. 4, Actas do I Congresso Luso-Brasileiro de
Filosofia (Oct. - Dec., 1982), pp. 641-665.
ARAÚJO, Cícero. Um “giro linguístico” na história das ideias políticas. In: POCOCK,
John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1995.
ARAÙJO, Ana Cristina de. A Cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas.
Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
ARAUJO, Ana Cristina de. Ilustração, Pedagogia e ciência em António Nunes
Ribeiro Sanches. Revista de História das Ideias, vol. 5, p. 377-394, 1984.
ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada, 3; da Renascença
ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ARRIAGA, José de. A Filosofia Portuguesa 1720-1820. História da Revolução
Portuguesa de 1820. Lisboa: Guimarães Editores, 1980.
BARROS, José D´Assunção. A escolástica em seu contexto histórico. Fragmentos
de Cultura, Goiânia, v.22, n3, pp. 231-239, 2012.
BAUMER, Franklin L. O pensamento Europeu Moderno. Volume I. Séculos XVII e
XVIII. Rio de Janeiro: Edições 70, 1977.
BOXER, Charles Ralph. Opera Minora III. Lisboa: Fundação Oriente, 2002.
222
BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
CALAFATE, Pedro. História do Pensamento filosófico português. Lisboa:
Editorial Caminho AS, 2001. v.3.
CALAFATE, Pedro (Coord.). Portugal como Problema: séculos XVII e XVIII - da
obscuridade profética à evidência geométrica. v. 2. Lisboa: Fundação LusoAmericana / Público, 2006.
CARDIM, Pedro. Processo político (1621-1807). In: MATTOSO, José (Coord.).
História de Portugal. vol 4. Rio de Janeiro: Editorial Estampa, 1998. p. 401-428.
CARDOSO, Patrícia Domingos Woolley Cardoso. Os Jesuítas diante de ‘O
Verdadeiro Método de Estudar’:conflitos políticos e de idéias no setecentos
português (C. 1740-1760). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
Fluminense, 2004.
CARVALHO JR, Eduardo Teixeira de. A ideia de atraso e o papel da educação na
modernização portuguesa da segunda metade do século XVIII. e-hum, Belo
Horizonte, Vol.5, n.2, pp. 25-44, 2012.
CARVALHO JR, Eduardo Teixeira de. A questão do Iluminismo em Portugal: uma
análise da obra de Verney. Dissertação de Mestrado em História. Universidade
Federal do Paraná, 2005.
CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da
Universidade de Coimbra 1772. Dissertação de Mestrado. Universidade de
Brasília, 2007.
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública.
São Paulo: Saraiva, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1978.
CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal: desde a fundação da
nacionalidade até o fim do regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
CARVALHO, Rômulo de. A física experimental em Portugal no séc. XVIII . Lisboa:
ICALP, 1982.
CASINI, Paolo. Newton e a Consciência Europeia. São Paulo: Unesp, 1995.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992
CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustracion. Mexico: Fondo de Cultura
Economica, 1963.
CASTRO SARMENTO, Dedicatória, Apud, I. C. MOREIRA, C.A. NASCIMENTO, L.R.
OLIVEIRA Instituto de Física, UFRJ. Revista de Ensino de Física vol. 9 nº 1
Out./1987.
223
CHARTIER, Roger. Espacio Público, crítica y desacralización en el siglo XVIII:
los orígenes culturales de la Revolución francesa. Barcelona: Editorial Gedisa, 1991.
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Lisboa: Difel, 1990.
CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros. Brasília: UnB, 1994.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro. São Paulo: Unesp, 1998.
CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. Aqui se abre hum largo theatro ao engenho do
secretário principiante: a escrita de cartas segundo Francisco José Freire (Portugal –
séc. XVIII). História Regional, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 13-29, 2010.
CORTESÂO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de
Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950.
COUTO, Jorge. As missões americanas na origem da expulsão da Companhia de
Jesus de Portugal. In: A expulsão dos jesuítas dos Domínios Portugueses: 250º
aniversário. Lisboa: Bibiloteca Nacional, 2009.
COXITO, Amândio. Luís António Verney e o Iluminismo Francês. Comunicação
apresentada na Universidade de Coimbra em setembro 2008.
COXITO, Amândio. Aristotelismo e antiaristotelismo no pensamento português:
séculos XVI a XVIII. In: CERQUEIRA, Luiz Alberto (org.) Aristotelismo e
antiaristotelismo: Ensino de Filosofia. Rio de Janeiro: Editora àgora da Ilha, 2000.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc,1999
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de Geoge Washington: um guia não
convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005,
DARTON, Robert. O lado oculto da Revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na
França. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998
DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos, e outros episódios da história
cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DENIPOTI, Claudio; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Sobre livros e
dedicatórias: D. João e a Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801). História
Unisinos, São Leopoldo, vol. 17, n.3, pp.257-271, 2013.
224
DIAS, José Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia. Coimbra Editora:
Coimbra, 1952,
DIAS, José Sebastião da Silva. O ecletismo em Portugal no século XVIII: gênese e
destino de uma atitude filosófica. Separata da Revista Portuguesa de Pedagogia.
Coimbra, ano VI, p.3, 1972.
DIAS, Sebastião José da Silva. Pombalismo e Projeto Político. Lisboa: Centro de
História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984.
DIAS, José Sebastião da Silva. “O ecletismo em Portugal no século XVIII. Gênese e
destino de uma atitude filosófica”, Revista Portuguesa de Pedagogia, ano VI, pp.
3-22, 1972.
DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração è Catolicismo. Teodoro de Almeida,
Lisboa, Colibri, 1994.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e
monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
FALCON, Francisco C. História das idéias: pluralidade disciplinar e conceitual. Da
história das idéias à história intelectual e/ou cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion
& VAINFAS, Ronaldo (orgs.), Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 91-125.
FERREIRA, Breno Ferraz Leal. Contra todos os inimigos. Luís António Verney:
historiografia e método crítico (1736-1750). Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
FONSECA, Elizabeth Pereira Alves da. O casamento segundo o teatro de cordel
em Portugal (1783-1794). Monografia. UFPR, Curitiba, 2011.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1989.
GAUTHERON, Marie (org.). A honra: imagem de si ou dom de si – um ideal
equívoco. Porto Alegre: LP&M, 1992.
HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.
225
HANSEN, João Adolfo, Correspondência de António Vieira. Discurso, São Paulo, n.
31, pp.259-284, 2000.
HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolástico da leitura. In: CAVALLO, Guglielmo;
CHARTIER, Roger. História da Leitura no mundo ocidental. São Paulo: Editora
Ática, 2002.
HESPANHA, António Manuel. La gracia del derecho. Madrid: Centros de Estudos
Constitucionais. 1993.
HESPANHA, António Manuel; SILVA, Ana Cristina Nogueira. A identidade
portuguesa. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. 4. Portugal:
Estampa, 1998, p. 19-32.
HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: os Iluminismos
britânico, francês e americano. São Paulo: Realizações Editora, 2011.
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência: estudos de história das ciências. São
Paulo: Letras e Letras, 1991.
JASMIN, M.G.; FRERES Jr., J (Org). História dos conceitos: debates e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC - Rio; Loyola. IUPERJ, 2006.
KANTOR, Iris. Academias eruditas e estado moderno na Europa. (in).
Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana, 1724-1759. São
Paulo: Hucitec; Savador, BA: Centro de Estudos Baianos / UFBA, 2004, p.23-89.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos Históricos do Pensamento Científico. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1982.
KOSELLECK, Reihart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.
KOSELLECK, R. Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.5, n.10, 1992, p.134- 146.
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e
cultura no ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia; BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In:
AMADO, Janaína; FERRERA, Marieta de Moraes, (orgs.). Usos e Abusos da
História Oral. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
LOPES, Frederico José Andries. O prefácio do livro De Re Physica de Luís António
Verney. Revista Brasileira de História da Matemática, vol. 10, no 19, pp.67-73,
2010.
226
LOPES, Maria Antónia. Mulheres, espaço e sociabilidade. Lisboa: Estampa, 1988.
LOPES, Marcos Antônio Lopes. O problema do sentido histórico em história das
ideias: notas acerca da interpretação de textos políticos. (In) GIANNATTASIO,
Gabriel; IVANO, Rogério (orgs.). Epistemologias da história:verdade, linguagem,
realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade. Londrina: Eduel, 2011.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal. A idade
moderna. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2010.
MARTINS, Teresa Payan. Verdadeiro Método de Estudar. Revista do IEEE
América Latina , v. 9, p. 1-22, 1997.
MAXWELL, Kenneth. O Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996.
MONCADA, Luís Cabral de. Um Iluminista Português do Século XVIII: Luís
António Verney. São Paulo: Saraiva & C.a Editores, 1941.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História da vida privada em Portugal. A idade
moderna. Lisboa: Círculo dos Leitores, 2010.
MORAIS, Regina Célia de Melo. L. A. Muratori e o cristianismo feliz na missão
do Paraguay. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense , 2006.
MORAES, Reginaldo Carmello Corrêa de. Alquimia: Isaac Newton revisitado.
Transformação. vol. 20, pp. 39-44,1997.
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os intelectuais, o poder
cultural e o poder monárquico no séc.XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra,
2003,
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial
(1777-1808). São Paulo: Editora Hucitec, 1989.
OLIVEIRA, Aline Brito. Antônio Genovesi na bibliografia oficial do marquês de
pombal. Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006.
OLIVEIRA, Ricardo de. Amor, amizade e valimento na linguagem cortesã do Antigo
Regime. Tempo, V11, n 21- 08, p. 97-120.
OLIVEIRA, Ricardo. Política, diplomacia e o império colonial português na primeira
metade do século XVIII. História: Questões & Debates, Curitiba: UFPR, n. 36, p.
251-278, 2002.
OUTRAM, Dorinda. O Iluminismo. Lisboa: Temas e Debates, 2001.
PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2001.
227
PÉCORA, Alcir. O índio e o corpo místico. In: NOVAES, Adauto. Tempo e História.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 423-462.
PEREIRA Magnus Roberto de Mello; CRUZ, Ana Lúcia Rocha Barbalho da. Ciência
e memória: aspectos da reforma da universidade de Coimbra de 1772. Revista de
História Regional, 14(1), pp.17-48, 2009.
POCOCK, John G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
PORTELLA, José Roberto Braga. Descripçoens, Memmórias, Noticias e
Relaçoens. Administração e Ciência na construção de um padrão textual
iluminista sobre Moçambique, na segunda metade do Século XVIII. Tese em
História. Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2006.
PRAÇA, J.J. Lopes. História da Filosofia em Portugal. Lisboa: Guimarães
Editores, 1988.
RAMOS, Rui. Nas origens da “Lenda Negra”: as viagens filosóficas do século XVIII
português. Penélope. Fazer e desfazer a História, n.4, p.77, 1989.
REBOIRAS, Fernando Domínguez.
Una introducción a la vida, obra y
pensamiento de raimundo lulio. Anuario de historia de la Iglesia, n. 19, pp. 383388, 2010.
ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução
Científica. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. São Paulo: Edusc,
2001,
ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: Ética. NOVAES, Adauto
(org.). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura: Companhia da Letras, 2002,
p.153.
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à
inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, 2011.
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Reformas educacionais e as ´Luzes´ em
Portugal. Anais do V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura,
Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Sec. XVI ao XIX), Maceió, 2014,
p.2000-2006.
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Aritmética política e a administração do estado
português na segunda metade do século XVIII. In: DORÉ, Andréa; SANTOS,
Antonio Cesar de Almeida (Orgs.). Temas setecentistas: governos e populações no
Império português. Curitiba: UFPR / Fundação Araucária, 2009, p. 143-152.
228
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados
dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: Thaïs Nivia de Lima
e Fonseca. (Org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2011.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São
Paulo: Companhia das letras, 1988
SERRÃO, José Vicente. Pensamento econômico e política econômica no período
pombalino: o caso de Ribeiro Sanches. Ler História, Lisboa, n. 9, p. 3-39, 1986.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora Unesp,
2005,
SILVA DIAS, J.S da. Pombalismo e Projeto Político. Lisboa: Centro de História da
Cultura da Universidade Nova Lisboa, 1984.
SOARES, Nair de Nazaré Castro. Introdução. In: TEIVE, João de. Tragédia do
Príncipe João. Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, 2010,
SKINNER, Quentin. Visões da política: sobre os métodos históricos. Algés: Difel,
2005.
SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Unesp, 2010,
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. São Paulo: Unesp,
1999.
SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Unesp, 1999.
TEIXEIRA, Ivan. Ressonâncias de John Locke na ilustração portuguesa: Luís
Antônio Verney e Francisco José Freire. RevistaUsp, São Paulo, n. 34, pp. 108-124,
1997.
TENGARRINHA, José. História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa:
Portugália, 1995.
VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru: EDUSC, 2003.
ZILLES, Urbano. Fé e Razão no Pensamento Medieval. Porto Alegre: Edipucrs,
1993.
Download

da tese - Setor de Ciências Humanas