II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE BRASIL E PORTUGAL NA QUESTÃO DOS TERRITÓRIOS COLONIAIS PORTUGUESES NA ÁFRICA (1961 – 1964) SALGADO, Carolina de Oliveira Mestranda em Relações Internacionais UERJ RESUMO O presente trabalho destina-se a analisar as relações diplomáticas entre o Brasil e Portugal, especialmente na questão da emancipação política dos territórios coloniais portugueses no período em que o histórico e incondicional apoio do Brasil dado a Portugal, principalmente ao longo dos anos 50, ruía. O Presidente Jânio Quadros, em seu curto mandato, desenvolveu um projeto diferenciado de política externa para o Brasil, a Política Externa Independente (PEI). Jânio Quadros e seu chanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, deram largos passos na direção do apoio as independências dos territórios portugueses não autônomos na África, embora esta questão tenha se caracterizado mais como uma política de duas faces deste governo, uma vez que a política externa brasileira apoiava a liberdade de todos os povos coloniais, mas adotava reservas quanto aos povos submetidos “à sagrada missão civilizadora de Portugal”. Tal postura se verifica nas abstenções do Brasil que, mediante, por exemplo, o Tratado de Amizade e Consulta, não podia solidarizar-se com a condenação de Portugal e a recomendação de sanções àquele país, nas Assembléias e Resoluções das Nações Unidas sobre o assunto. Palavras-chave: política externa independente, territórios coloniais portugueses na África, política colonial, Assembléias da ONU e relações luso-brasileiras. Introdução Com objetivos de cooperação e maior união, por meio de um instrumento jurídico que deu forma às relações políticas luso-brasileiras - entre uma ditadura e uma democracia -, em 16 de novembro de 1953 foi assinado, no Rio de Janeiro, o Tratado de Amizade e Consulta entre o Brasil e Portugal, aprovado no Congresso brasileiro pelo Decreto legislativo número 59 de 25 de outubro de 1954: momento em que o Brasil se encontrava profundamente voltado às suas questões internas (suicídio de Getúlio Vargas, pleito eleitoral a se realizar naquele mês). Um princípio fundamental em diplomacia é o da reciprocidade, tanto nas vantagens como nas obrigações. Reciprocidade que deve ser rigorosa e perfeita em quaisquer atos internacionais. Precisamente o artigo 1º e o 2º do Tratado de Amizade e Consulta tornam quase impossível o resguardo dessa condição, sem a Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 1 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 qual as relações entre os países deixam de afirmar-se em termos da soberania nacional de cada um deles. Nas Notas Interpretativas entendiam os portugueses que, na comunidade do Tratado, ficava incluído todo o território brasileiro, para a vantagem política e econômica do Estado português, enquanto na mesma comunidade definida pelo mesmo Tratado, não estariam compreendidos as províncias ultramarinas de Portugal, a única possível vantagem a ser-nos concedida, num mínimo de reciprocidade, mediante alguma influência de nossa cultura e de nossa economia nas colônias portuguesas da África1. O referido Tratado que entrou em execução foi instrumento de pesados prejuízos materiais e morais para o nosso país, prova do alinhamento incondicional do então Presidente, Juscelino Kubitschek, com o então ditador, Oliveira Salazar. Mais do que isso, o Tratado de Amizade e Consulta não foi sequer um instrumento diplomático de caráter afetivo, cultural, econômico, comercial, nem qualquer coisa, entre os dois países, no estilo dos acordos inofensivos para o alcance de alguma estreita unidade de língua, religião ou etnia. Trata-se, rigorosamente, de um instrumento político, sob o qual a Presidência e a Diplomacia brasileiras não tiveram consciência dos nossos sentimentos e interesses, sem a capacidade de negociarem com a ditadura portuguesa em igualdade de condições. A idéia da restrição territorial portuguesa a ser abrangida no Tratado partira do próprio governo português, contra a qual se insurgiu, na altura, o deputado brasileiro Cardoso de Miranda - o prenúncio de que o tema dos territórios coloniais portugueses na África seria o alvo de inúmeras tensões entre as duas nações. No presente trabalho procurarei mapear como a Presidência e a Diplomacia brasileiras se posicionaram em relação a Portugal diante da questão do colonialismo deste país na África, no período compreendido entre 1961 e 1964, precisamente quando a postura das nossas autoridades, ao longo da década de 50, manteve o silêncio diante da ditadura do Estado Novo português – esta, imbuída de todo um discurso em defesa da continuidade do seu colonialismo, intransigente e já condenado por toda a sociedade internacional nas Assembléias da ONU −, ruiu. O governo de Jânio Quadros, ainda que de curta duração, foi bastante atuante em relação à política externa do Brasil. Quadros fez com que este campo viesse a se tornar influente e importante dentro da visão do governo, como um 1 LINS, Álvaro, Missão em Portugal, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1960. P. 379. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 2 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 instrumento essencial para o alcance dos objetivos desenvolvimentistas que o Presidente entendia como os primordiais para o país. Em artigo intitulado Nova política externa do Brasil, publicado na Revista Foreign Affairs, em 1961, Jânio Quadros fala em desenvolvimento nacionalismo, econômico, democracia, com reajustamento diversificação de da parceiros política com e quem precisávamos nos relacionar. Esta foi uma perspectiva inovadora, cujos elementos são, primordialmente, a base da Política Externa Independente, o projeto de política internacional de Quadros que predominou até o golpe militar de 1964. A aproximação entre Juscelino Kubitschek e Oliveira Salazar versus a OPA Foi Juscelino Kubitschek quem deu nova existência, atualidade dinâmica e condições de aplicabilidade executiva ao Tratado de Amizade e Consulta. E a Operação Pan-americana, neste contexto? Ficou em cheque: Kubitschek assinou atos de política externa em Lisboa e se autoproclamou americanista; afirmou, na Declaração de Santiago do Chile, documento assinado em 1959 pelas Repúblicas Americanas sobre os compromissos continentais, que os povos americanos anseiam viver em paz no amparo de instituições democráticas alheias a toda intervenção e a toda influência de caráter totalitário, entretanto, determinou a plena execução do Tratado de Amizade e Consulta, no qual se diz que o Brasil democrático e americano, em harmonia com o Portugal totalitário e afro-europeu, concorda em que se consultarão sempre sobre todos os problemas internacionais de seu manifesto interesse comum, segundo o artigo 2º.2 O Brasil, seguindo uma perspectiva hemisférica, se voltou para os EUA e para a América Latina e, neste sentido, a OPA não pretendia tratar do mais importante fenômeno do processo histórico mundial, entre 1958-1960: a liberdade africana. Votávamos sempre com as potências coloniais nas Nações Unidas, cedíamos a todas as pressões portuguesas do governo oligárquico de Salazar e, por vezes, disfarçávamos nosso alinhamento colonial com abstenções. O Brasil sempre teve coerência no estudo de projetos sobre o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos, contudo, JK não 2 LINS, Álvaro, Missão em Portugal, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1960. P. 411. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 3 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 percebeu que o problema do subdesenvolvimento só podia ser vencido se fosse evitada a queda dos preços dos produtos de exportação. Era fácil reconhecer que a concorrência entre os países subdesenvolvidos não deveria ser motivo de luta, mas de união, em defesa dos interesses comuns. A OPA não se propunha a tratar de outras dimensões da política externa brasileira, como por exemplo, a realidade afroasiática: enquanto territórios não autônomos, sob tutela das grandes potências européias, os países africanos foram incluídos no Mercado Comum Europeu, adquirindo enormes vantagens na exportação de produtos tropicais, em uma concorrência extremamente prejudicial ao Brasil e às economias dos países latinoamericanos. A reação latino-americana aos privilégios do Mercado Comum Europeu tem na própria África seus aliados: alguns são contra a idéia de associação com os europeus por motivos ideológicos, receios do neocolonialismo; segundo Sékou Touré, o então Presidente da Guiné, “a Europa está apressadamente organizando o Mercado Comum e ansiosa por nele incluir a África. Nós dizemos não. Constituímos no presente um mercado muito pequeno.devemos primeiro aumentar o nosso próprio mercado livre. Não temos nada contra ninguém, mas preferimos livremente negociar acordos e pensamos que é mais honesto dizê-lo. Somos subdesenvolvidos e economicamente atrasados. É melhor para nós explorar o que temos e cooperar com quem quer que deseje trabalhar conosco.”3 O Brasil deveria pensar, já àquela altura, na cooperação, no comércio mundial sem limitações para o desenvolvimento nacional. Em Portugal, vigorava o regime ditatorial de Oliveira Salazar. Segundo Williams Gonçalves, as razões para tamanha durabilidade do regime devem ser buscadas nos elementos estruturais: 1º, a condição de país periférico no contexto do sistema capitalista internacional, com uma organização econômica de base rural e traços marcadamente tradicionais manteve Portugal à margem das renovações mundiais. O Estado sempre se manteve como força tutelar da economia portuguesa. 2º, a posse do império colonial, que contribuiu como válvula de escape para a 3 RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964. P.262. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 4 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 remediação das deficiências e insuficiências da economia portuguesa. As colônias eram enquadradas administrativamente como uma extensão da metrópole.4 Salazar desenvolveu todo um discurso em defesa da manutenção de seu colonialismo, se utilizando de adequações léxicas e de uma retórica baseada no caráter específico do colonialismo português, diferente do europeu em geral, por não se apegar a finalidades estritamente econômicas, mas outras, mais amplas e duradouras de enraizamento dos valores culturais e cristãos. A África era o epicentro político para Salazar: a aliança com os nacionalistas conservadores europeus e com o Brasil se lhe afiguravam como as peças fundamentais para a sua estratégia colonialista. Em 1955, com a entrada de Portugal na ONU, Salazar viu-se em meio ao turbilhão de discussões sobre o movimento pelas descolonizações africanas; a partir de então, a evolução do sistema internacional vai se revelar cada vez mais adversa aos interesses coloniais portugueses. Enquanto as demais metrópoles européias, apoiadas em sólido e crescente desenvolvimento econômico, negociavam as independências de suas colônias de modo a manter os vínculos de dependência econômica, Portugal, com uma economia capitalista sem dinamismo industrial, refugiou-se numa posição jurídico-defensiva ante a pressão descolonizadora. Com a revisão de 1951, alterou-se a Constituição e o Acto Colonial: as colônias portuguesas passam a chamar-se províncias ultramarinas e o império colonial português passou a chamar-se império ultramarino português. E foi assim, por meio dessa adaptação léxica, que o Estado Novo português esperava escapar do alcance dos artigos 73 e 74 da Carta das Nações Unidas, que tratavam da situação relativa aos “territórios não autônomos”. O conceito português de território ultramarino e a sustentação teórica de Gilberto Freire – o luso-tropicalismo A estratégia colonialista de Salazar se baseou em uma articulada manobra jurídico-constitucional, conjuntamente com um discurso único sobre a significação de território colonial, primordialmente sustentado pela teoria do luso-tropicalismo 4 GONÇALVES, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal, Lisboa: Editora Imprensa de Ciências Sociais, 2003. P. 74. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 5 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 desenvolvida pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire. Descreve Franco Nogueira que “por imposição constitucional, Portugal era uma nação politicamente unitária: a soberania era indivisa e os seus órgãos eram os mesmos para todo o território nacional. A Constituição portuguesa não reconhecia a existência, dentro da nação, de territórios não autônomos, e não era lícito que algumas partes desta nação tivessem um determinado estatuto internacional e outras partes um estatuto diferente.” 5 Fazem parte dos princípios do colonialismo português, primeiro, a unidade do Império, e daí o rótulo de províncias ultramarinas (“Portugal e suas colônias foram uma unidade completa e indivisível.”); segundo, a assimilação das populações, que teve, em boa parte, o significado de tentar aportuguesar os africanos, na língua, nas normas oficiais e na religião. A ideologia que coadunava com a posição jurídicopolítica e com tais princípios foi inspirada nos estudos do sociólogo Gilberto Freire, era a do mito de que a presença portuguesa na África revestia-se de caráter humanitário. Casa Grande e Senzala, publicada em dezembro de 1933, reconciliou o Brasil com Portugal, cujas relações haviam estremecido com a Proclamação da República no Brasil em 1889. A obra de Gilberto Freire preparou o terreno para a exacerbada fraternidade luso-brasileira manifestada na segunda metade dos anos 50 nos discursos das elites intelectuais e políticas de ambos os países. A tese de Gilberto Freire representou verdadeira revolução no entendimento social do Brasil, bem como assegurou toda a base teórica da aproximação já existente com Portugal e mantida por JK: a mestiçagem entre o branco português, o índio e o africano havia produzido uma civilização superior, porque tropical, original e racialmente democrática. Para críticos, antropólogos e sociólogos da época, a obra definiu uma tomada de consciência histórica, na medida em que nela o Brasil se reconheceu e foi reconhecido. Para Freire, as especificidades que forjaram o passado cultural português revelaram-se sob a forma de três atributos básicos e essenciais para a tarefa de colonização: miscibilidade (tendência natural a misturar-se), mobilidade (incomum 5 NOGUEIRA, Franco, “As Nações Unidas e Portugal”, Lisboa: Ed. Ática, 1961, pp.101-102 In: GONÇALVES, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal, Lisboa: Editora Imprensa de Ciências Sociais, 2003. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 6 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 capacidade de resistência do português ao meio ambiente hostil) e aclimatabilidade (qualidade resultante da proximidade da África, que se pronuncia, entre outras influências, no clima)6. Gilberto Freire rejeitava as teorias pelas quais se explicava o atraso brasileiro devido à colonização portuguesa, pois a entendia como um êxito principalmente no que tange à miscigenação predominante no Brasil. Este autor buscava exatamente na colonização portuguesa o motivo do nosso avançado legado de democracia racial7, alegando, entre outros elementos, que a noção de tempo ibérico, por privilegiar o ritmo do processo civilizador, era totalmente diferente da noção de tempo anglo-saxã, que procurava otimizá-lo prioritariamente para o trabalho. Daí o aproveitamento da colonização portuguesa não só em termos econômicos, de exploração de recursos naturais e mão-de-obra, mas também, em termos sócio-culturais, pois não havia, segundo o autor, nação mais aberta às misturas do que a portuguesa. Faltava ao Estado Novo português ainda um instrumento discursivo legítimo historicamente, de defesa do colonialismo português, que se opusesse ao pressuposto da racionalidade econômica e se fundasse nos valores culturaiscivilizacionais. Mais uma vez, Gilberto Freire foi o criador, através do luso- tropicalismo, teoria exposta em “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”, que contém a argumentação básica de que o povo português possui uma aptidão única em civilizar os trópicos, mediante, principalmente, sua tendência a se miscigenar sem preconceitos. Enquanto as obras publicadas fizeram de Gilberto Freire um escritor e personalidade extremamente respeitada e homenageada em Portugal, no Brasil sua imagem ficou completamente comprometida junto aos setores que o viam como um instrumento da ditadura salazarista e do colonialismo. Com base fundamentalmente na defesa jurídica nas Nações Unidas, na valorização econômica das colônias e na aliança político-diplomática com o Brasil, Portugal resistiu, ao longo dos anos 50, à 6 FREIRE, Gilberto, Integração portuguesa nos trópicos, Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1958. 7 Vale ressaltar que o termo “democracia racial” foi cunhado e posto em uso devido à defesa de Gilberto Freire em relação à miscigenação como um processo positivo ocorrido no Brasil, entretanto, atualmente, literatos e acadêmicos estudiosos de África criticam o termo veementemente, alegando que uma democracia jamais pode ser racial, posto que esta já é uma nomenclatura anti-democrática, como quaisquer critérios, referências ou termos sociais baseados na diferenciação de raças. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 7 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 ofensiva do movimento anticolonialista. Contudo, o futuro de tal articulação defensiva, em 1961, começaria a perder os seus alicerces. O governo de Jânio Quadros e a política de duas faces “Em conseqüência da formação histórica, cultural e cristã, tanto quanto a situação geográfica, nossa nação é predominantemente ocidental (...) nossa dedicação à democracia é maior do que a de outras nações da nossa esfera cultural. Tornamo-nos, assim, o exemplo mais bem sucedido de coexistência racial e integração conhecido na história. (...) É inegável que temos outros pontos em comum, com a América Latina em particular e com os povos recentemente emancipados da Ásia e da África, que não podem ser ignorados, porque se encontram na base do reajustamento da nossa política e sobre eles convergem muitas das linhas principais do desenvolvimento da civilização brasileira. (...) O fato comum a todos eles é o de que nossa situação econômica coincide com o dever de formar uma frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as formas de opressão.”8 O Presidente Jânio Quadros fala, neste artigo, em ocidentalismo, democracia, reajustamento da política e desenvolvimento econômico, com diversificação de parceiros com quem podemos e precisamos nos relacionar. Estes elementos são, primordialmente, a base da Política Externa Independente, o projeto de política internacional de Jânio Quadros que predominou até o golpe militar, em março de 1964. Quadros foi o responsável pela mundialização da política externa brasileira, mediante um processo de ajustamento que continuava a respeitar o regionalismo hemisférico e a não desvalorizar os objetivos continentais, mas que ampliava o comércio e as relações políticas na recusa aos comprometimentos absolutos, principalmente com os Estados Unidos, assegurando, dessa forma, os interesses nacionais brasileiros. Politicamente direcionada à idéia do desenvolvimento econômico, da total liberdade de ação internacional e da ampliação das relações políticas e econômicas com todos os agrupamentos do mundo (socialistas e povos recém-libertos, inclusive), a PEI tinha o entendimento de que os EUA é uma legítima filiação que 8 QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. Pp.: 147-148. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 8 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 devemos manter para nossa segurança e desenvolvimento, mas isso não retira a possibilidade de nos desentendermos, sempre que nossos interesses forem ofendidos ou prejudicados, pois estamos conscientes de nossa significação mundial. “Com tais princípios, a PEI foi apoiada pela nação; pelas classes médias e trabalhadoras, que eram excluídas de qualquer área de influência, especialmente no Itamarati.”9 Conforme analisa José Honório Rodrigues, “a situação internacional está sempre em constante fluxo de mudanças e nela se atritam os interesses e as exigências de mais de cem nações soberanas. É difícil, nesta dinâmica, fazer predominar a nossa liberdade de iniciativa e o direito de divergir dos países mais fortes; combater o ocidentalismo tradicional, que mantinha o Brasil sob a ordem hierárquica dos EUA e da Europa, para inaugurar um nacionalismo multilateralizante, que abre as portas da economia do país a quaisquer nações que conosco quiserem comercializar, é um largo passo à frente na direção desenvolvimentista.”10 Em janeiro de 1961, Jânio Quadros confirmou seu compromisso de uma política de independência e de relações com todos os países, que nos libertava de classificações como latino-americanização, isto é, satelitização econômica do continente aos interesses norte-americanos ou do imperialismo europeu. Esta mudança de paradigma, do ocidentalismo ao nacionalismo, se encaixou muito bem no “novo” Brasil, país anticolonialista e antiracista, convicto da necessidade do desenvolvimento como base da democracia e, neste sentido, com uma política internacional voltada a apoiar sinceramente os esforços do mundo africano pela liberdade. Tratar, então, da questão colonial portuguesa no governo de Jânio Quadros é entendê-la no âmbito da PEI. Esta abarcava também outros pontos que deram todo o sentido a postura presidencial em relação a Portugal, na questão colonial: o apoio aos princípios de não intervenção e autodeterminação dos povos, dentro da estrita obediência ao direito internacional; o suporte à emancipação dos territórios ainda não autônomos, sob qualquer designação jurídica; autonomia na formulação de 9 RODRIGUES, José Honório, “Uma Política Externa Própria e Independente” In: Política Externa Independente. A crise do pan-americanismo, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. 10 RODRIGUES, José Honório, “Uma Política Externa Própria e Independente” In: Política Externa Independente. A crise do pan-americanismo, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. P. 39. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 9 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 projetos de desenvolvimento econômico e na implementação de ajuda internacional; a ampliação dos mercados externos para a produção brasileira, através da intensificação do comércio com todos os países da Ásia, África e América Latina, além da comunidade socialista. “Afirmo o reconhecimento da legitimidade da luta pela liberdade econômica e política. O desenvolvimento é um objetivo comum ao Brasil e às nações com as quais procuramos ter relações mais íntimas e a rejeição do colonialismo é o corolário inevitável e imperativo dessa meta.”11 Esta declaração do presidente evidencia claramente que os esforços da PEI e de seu governo seriam todos na direção da autonomia política aos povos para que se tornassem possíveis parceiros econômicos do Brasil; este romperia, assim, com a barreira do americanismo, paradigma no qual o Brasil se viu inserido durante muito tempo e que, de acordo com o pensamento de Jânio Quadros, especialmente devido à lógica inerente ao processo de industrialização, deveria ser imediatamente substituído pelo multilateralismo que ele almejava adotar. O Presidente Jânio Quadros entendia a África como uma nova dimensão da política brasileira. Tanto na esfera político-social, onde Brasil e África têm as mesmas aspirações por liberdade, bem-estar e desenvolvimento, quanto na econômica, onde ambos fazem parte do bloco subdesenvolvido, o presidente via tal relacionamento de forma muito promissora – o soerguimento dos níveis econômicos dos povos africanos era de vital importância para a economia do Brasil. Para além, o ‘destino natural’ de grandeza internacional do Brasil, assim compreendido pelo presidente, o fazia crer que era “precisamente na África que o Brasil poderia prestar o melhor serviço aos conceitos de vida e métodos políticos ocidentais (...) dar às nações do Continente Negro um exemplo de completa ausência de preconceito racial, juntamente com provas cabais de progresso sem solapar o princípio da liberdade.”12 A postura terceiro-mundista representava uma alteração sem precedentes na política exterior brasileira; o apoio à descolonização da África, a lusitana inclusive, era pragmaticamente bem definido dentro dos objetivos brasileiros, pois a manutenção de vínculos entre as colônias, concorrentes da produção de gêneros 11 12 QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. P. 148. QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. P. 151. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 10 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 primários brasileiros, e suas metrópoles dificultava as exportações nacionais, além de serem as nações jovens um mercado alternativo na troca de produtos industriais pouco sofisticados por petróleo. Contudo, como percebeu Adolpho Justo Bezerra de Menezes, “nosso governo não tem ainda uma política firmada em assuntos africanos; temos apenas interesses econômicos muito limitados que não chegam a servir de incentivo para o traçar de uma política global de longo alcance para estas regiões tão importantes.”13 E foi dentro da diretriz política da PEI que se deu uma das maiores contradições e recuos da política de Jânio Quadros. No caso de Angola, em março de 1961, o Itamarati distribuiu nota oficial declarando que haviam sido expedidas instruções à nossa delegação nas Nações Unidas, no sentido de se abster da votação sobre a matéria: realmente, a determinação de consulta sobre problemas internacionais de manifesto interesse comum, artigo primeiro do Tratado de Amizade e Consulta de 1953, no caso, manifesto interesse lusitano, comprometeu nossas relações com os países do continente africano. “Como se vê, houve um impulso inicial, um apaixonado interesse pela África, mas política africana, propriamente, nunca se formulou, para além das abstenções nas Nações Unidas contra a Argélia e Angola.”14 Aí está o ponto em que se verifica a política de duas faces do governo de Quadros: por um lado, profundamente anticolonialista, apoiando e reconhecendo os movimentos pela independência dos territórios não autônomos das potências européias; por outro, se posicionando fora dos debates sobre a independência das colônias portuguesas, uma vez que ainda se fazia presente no ethos político brasileiro o sentimentalismo e a retórica da afetividade. Pode-se verificar que as relações luso-brasileiras seguiram criando extremas dificuldades nas tentativas de formulação de nossa política africana. Mais uma prova de que o sentimentalismo não pode influir no campo da política externa, pois se fazia necessário distinguir a ajuda a Portugal da constante colaboração do Brasil com sua arcaica visão do mundo; deixar de fortalecer a posição colonialista e salazarista e, em lugar, falar com clareza e objetividade que, para continuar contando com o apoio 13 DE MENEZES, Adolpho Justo Bezerra, O Brasil e o mundo ásio-africano, Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1956. P. 336. 14 RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 11 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 do Brasil, Portugal deveria rever a sua política internacional, tornando-a mais flexível. O período de 1961 – 1968 foi o de endurecimento da ditadura salazarista, correspondente ao retorno ao autoritarismo repressivo de antes da guerra. A causa determinante foi o início da luta armada nas colônias, dirigidas pelos movimentos de libertação nacional. Mais uma vez Portugal se vê isolado internacionalmente15. Jânio Quadros declarou que por muitos anos o Brasil cometeu o erro de apoiar o colonialismo europeu nas Nações Unidas e que “nossas relações fraternais com Portugal influíram na complacência demonstrada pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil nesse assunto.” Também teve influência decisiva nesta postura a questão do café: Quadros não podia deixar de apoiar os produtores nacionais que, no momento de seu governo, se debatiam numa forte crise no mercado internacional em virtude da concorrência do café angolano. “A recusa das autoridades portuguesas em aceitar uma proposta dos produtores brasileiros para se associarem aos produtores de Angola aumentou a animosidade dos cafeeiros do Brasil à política ultramarina portuguesa.”16 O Brasil, durante o governo de Jânio Quadros e do chanceler Afonso Arinos de Melo Franco, recusou-se a prosseguir a política dos seus antecessores, empenhando-se, ao contrário, em convencer os dirigentes portugueses a colaborar com as Nações Unidas para uma autodeterminação não violenta e controlada. Porém, diante de todas as recusas portuguesas, a orientação brasileira era a de não tomar atitudes ou posições que pudessem desagradar ou provocar sanções ao Estado português. Uma política realmente difícil de acompanhar e de compreender. A continuação das diretrizes e bases da PEI no governo de João Goulart, porém com o ineditismo de San Tiago Dantas João Goulart começou seu governo em 1961 em pleno clima de instabilidade política. Quando da súbita renúncia de Jânio Quadros, Goulart, que era o seu vicepresidente, encontrava-se na China e os militares viam uma ameaça ao país, 15 Como se comprovará adiante, através das Assembléias e das constantes Resoluções da ONU, sempre em manifesto contrário a continuidade da dominação portuguesa, principalmente em Angola, que teve como conseqüência uma guerra civil de enormes proporções e que mobilizou toda a comunidade internacional contra a posição reacionária e arcaica de Portugal. 16 MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P. 101. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 12 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 temendo a exacerbação dos movimentos populares e dos partidos e grupos de esquerda. Porém, a Constituição era clara e a campanha pela legalidade, liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, logrou êxito. Em 1962 foi convocado um plebiscito sobre a manutenção do parlamentarismo ou o retorno ao presidencialismo para janeiro de 1963. O parlamentarismo foi, no voto popular, amplamente rejeitado, graças, em parte, às propagandas feitas por Jango. Como pode-se notar, o mandato de Jango foi profundamente conturbado pela oposição radical e sistemática movida pelos partidos de centro-direita e também por segmentos das Forças Armadas, o que não lhe propiciou muito tempo e disponibilidade para travar mudanças ou atitudes significativas quanto à política externa do Brasil. Para além, Jango seguia a linha de pensamento autonomista e multilateral de Jânio Quadros, o que justifica a continuidade da atuação da PEI, tanto quanto as posições adotadas pelos representantes brasileiros nas Assembléias das Nações Unidas. San Tiago Dantas foi o ministro das Relações Exteriores durante o período do regime parlamentarista de João Goulart e, em 1962, escreveu em livro intitulado Política externa independente: “Na linha anticolonialista do Brasil houve pequenos desvios de atitude apenas pelo desejo de dar a nações tradicionalmente amigas do nosso país oportunidades para que definissem, por movimento próprio, uma posição evolutiva em relação a territórios não-autônomos confiados à sua administração. Esses desvios foram, porém, superados e retificados na XVI Assembléia Geral das Nações Unidas, em que a delegação brasileira firmou, pela voz do embaixador Afonso Arinos, o ponto de vista do Brasil.”17 O Ministro San Tiago Dantas, apesar do governo parlamentar, aprofundou a diplomacia do desenvolvimento. Em suas primeiras declarações, reafirmou os princípios da não intervenção, da autodeterminação e do anticolonialismo. Nesse sentido, sua política foi firmemente executada, inclusive nas Nações Unidas quando, pela primeira vez, se votou a favor do projeto de Resolução número 1.742, de 30 de janeiro de 1962, que criava uma Comissão para coligir informações sobre a situação dos territórios sob a administração portuguesa. A política africana, entretanto, mais uma vez, não existiu; apenas se seguiu condenando o colonialismo e manifestando 17 MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P. 102. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 13 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 solidariedade às aspirações de independência, bem como o reconhecimento de algumas, como Argélia, Ruanda e Urundi. Ainda em 1962, o embaixador brasileiro em Lisboa, Negrão de Lima, chamado ao Brasil para conferenciar com San Tiago Dantas, já havia visitado o ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Franco Nogueira. O objetivo de tal visita era o de poder transmitir ao ministro brasileiro, San Tiago Dantas, qualquer modificação da posição portuguesa que pudesse causar atritos com o Brasil. Porém, este objetivo não se consumou. O embaixador Negrão de Lima, após inúmeras tentativas de negociações, declarou: “o Brasil não podia entrar em entendimento ou assumir atitudes que pudessem interpretar-se como um apoio ao status quo ultramarino português, ou como uma sua consolidação.”18 Não surpreende então que, em julho de 1963, em um projeto de resolução apresentado no Conselho de Segurança da ONU, convidando Portugal a reconhecer imediatamente o direito à autodeterminação e à independência dos seus territórios ultramarinos, o Brasil tenha dado o seu voto favorável à aprovação. O Brasil procurou sempre justificar sua postura favorável à descolonização nas resoluções estabelecidas na Carta das Nações Unidas e na legalidade dos princípios consagrados dessa Organização. Em declaração do representante do Brasil no Conselho de Segurança, sobre a situação dos territórios sob dominação portuguesa, em 12 de agosto de 1963, registrou-se claramente a postura brasileira: “Ninguém tem dúvida de que a Carta de São Francisco, no seu capítulo XI, pôs ponto final à ‘legalidade’ do colonialismo. (...) Entre as obrigações constitucionais figuram, em primeiro plano, a de preparar os povos das antigas colônias para a autodeterminação e a independência. A Carta das Nações Unidas legaliza, assim, a evolução anticolonialista (...) pela primeira vez, o Conselho de Segurança é chamado a examinar a situação do conjunto dos territórios não autônomos sob administração portuguesa, em virtude do não-cumprimento, pelo governo português, das obrigações decorrentes da Carta (...) A delegação do Brasil, baseada na larga experiência histórica de suas relações com Portugal, tem motivos para esperar que o governo português não permita que a situação se agrave e que aceitará, portanto, o diálogo com as Nações Unidas, tomando as providências que o levarão ao 18 MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P. 106. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 14 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 cumprimento de suas obrigações e, conseqüentemente, ao preparo de suas colônias para a autodeterminação e a independência.”19 A política do Brasil nas Nações Unidas: questões coloniais20 Em 1955 entrava Portugal, com o apoio brasileiro, para as Nações Unidas, sob o manto do discurso de que “a independência real é o fruto do crescimento natural das instituições políticas, fundadas em uma sólida estrutura econômica e social. Os povos devem amadurecer e suas instituições se desenvolverem para que a independência seja uma benção.”21 Esta posição tão cautelosa serve como uma luva a todos os colonialistas, que alegam a inviabilidade da descolonização pelo despreparo das populações nativas. A Delegação do Brasil acreditava permanecer eqüidistante das partes e poder assumir atitudes conciliatórias, imparciais, discretas. Levava-se, assim, para a política externa, a velha teoria da conciliação e do compromisso, que tem nas áreas nacional e internacional os mesmos aspectos negativos, quais sejam, o de atender aos privilegiados e buscar a conformação dos oprimidos, retardando a sua vitória por meio da defesa da manutenção do status quo. Até 1960, a orientação da política externa brasileira segue no sentido de reconhecer os novos Estados africanos independentes desde que alçados a esta condição com a concordância das antigas metrópoles e depois de constatada efetivamente a sua emancipação no sistema internacional. A esta época, algumas poucas nações européias ainda relutavam em assimilar o fenômeno da descolonização, insistindo na manutenção de alguns territórios sob seu controle, como Portugal (todas as colônias), França (Argélia) e Bélgica (Congo) o que, conseqüentemente, ocasionou conflitos de maiores proporções nessas áreas dominadas. O repetitivo discurso português se baseia na inexistência de territórios não autônomos sob sua administração, pois todo o seu território é dividido política e 19 Documento 23: Declaração do representante do Brasil no Conselho de Segurança, sobre a situação dos territórios sob dominação portuguesa, 12 de agosto de 1963. Pp.: 155-157. 20 RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964. P. 402. 21 RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964. P. 422. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 15 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 administrativamente em “províncias”, todas com estatuto legal, inclusive suas “províncias ultramarinas”22. A primeira reação do Brasil favorável aos povos colonizados só veio em 1960, pois, até então, reafirmava-se a posição brasileira em aceitar o colonialismo português, distinguindo-o dos demais. O Brasil tentava acompanhar a tendência verificada durante o ano de 1960, que indicava haver dentro da ONU uma posição majoritária a favor das independências, porém, numa tentativa de se manter fiel a Portugal, acabou gerando uma contradição, visto que as duas propostas eram inconciliáveis. Afonso Arinos foi bastante criticado pela imprensa conservadora, por setores de intelectuais e comunidades de imigrantes lusos por defender o processo de descolonização, inclusive para a África portuguesa; estes grupos sugeriam que o Brasil passasse a votar a favor de mudanças nas tendências das Nações Unidas. Arinos assim se manifestou ao Ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas: “Penso que não devemos participar jamais de qualquer medida de acusação exagerada ou condenação injusta de Portugal, conforme tem sido aventado por representantes do radicalismo africano; entretanto, um recuo nosso na decisão de adotar a recomendação que propugne a aplicação da citada resolução da Assembléia Geral e do capítulo XI da Carta no sentido do preparo de Angola para a autodeterminação seria irremediavelmente desastrosa e destruiria de um golpe o prestígio político e a autoridade moral que conquistamos, não só nas áreas afroasiáticas como nas democráticas e nas socialistas, além de provocar uma provável e violenta reação popular interna contra o governo. (...) Um recuo do Brasil em matéria do colonialismo africano e, particularmente no caso de Angola, que é o teste de nossa sinceridade, comprometeria qualquer aspiração brasileira na ONU.” (Telegrama número 43, de Afonso Arinos de Melo Franco, Delegação do Brasil junto à XVI Assembléia Geral das Nações Unidas para o então Ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas.) Na XV Assembléia Geral, sob a euforia da independência de um grande número de Estados africanos, foram aprovadas várias Resoluções que ajudavam na continuação deste processo. A Resolução número 1.514, de 14 de dezembro de 22 Conforme já foi visto, esta defesa se calcava no conceito português de território ultramarino e se coadunava com o aparato discursivo, criado por Gilberto Freire, que diferenciava os aspectos da colonização portuguesa com a dos outros países europeus. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 16 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 1960, “Declaração de Outorga da Independência aos Países e Povos Coloniais” contou com o voto brasileiro e viria a ser o instrumento fundamental da ação anticolonialista das Nações Unidas. XVI Sessão da Assembléia das Nações Unidas, setembro de 1961: apesar de afirmar que as boas relações com a França e com Portugal não impediriam o Brasil de tomar uma posição clara nas dolorosas divergências que se apresentavam na ONU a propósito do colonialismo africano, sendo a favor da autodeterminação dos povos, sob a responsabilidade do Ministro San Tiago Dantas, o Brasil se abstinha de votar o projeto de Resolução apresentado por 33 países africanos. XVII Sessão da Assembléia das Nações Unidas, setembro de 1962: o Brasil falava na liquidação do colonialismo, mas não saudava a nova Nação que nascera meses antes, Argélia. Esta teve o apoio do povo brasileiro, mas nenhuma manifestação otimista por parte da elite e dos representantes do povo. As duas questões que mais comprometeram o Brasil em matéria colonial foram: o processo emancipatório de Angola e a obrigatoriedade de transmissão de informações sobre os territórios não autônomos pelas Potências Administradoras. Quando Portugal foi admitido nas Nações Unidas, declarou que o artigo 73, letra e, da Carta (prescrevia a obrigação dos Poderes Administradores dos territórios não autônomos a transmitirem regularmente ao Secretário-Geral informações estatísticas ou de outro caráter técnico, relativas às condições econômicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais eram responsáveis, além de terem o dever de estimular a capacidade de governo próprio e do desenvolvimento das livres instituições políticas destes referidos territórios) não se aplicava aos seus territórios, pois estes eram partes integrantes da Nação portuguesa. O artigo, na interpretação portuguesa, entrava em conflito com as suas normas constitucionais, já que Portugal tinha uma única Constituição aplicada igualmente a todas as províncias. O ano de 1962 foi incansável no exame de toda e qualquer informação relativa aos territórios portugueses na África. Na XVII Assembléia Geral foi examinado o relatório do Comitê de Sete países que viajaram à África entre maio e junho de 1962. Neste, constava a utilização de armas da OTAN para abafar os movimentos nacionalistas africanos e continha a urgente crença de que era passo decisivo para Portugal reconhecer o direito do povo de seus territórios à independência. Na Resolução número 1.742, de 30 de janeiro de 1962, o Brasil Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 17 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 votou excepcionalmente a favor de que já se tornara deplorável a falta de cooperação de Portugal nos trabalhos do Comitê de Sete, bem como a sua recusa em reconhecer a independência de Angola. Este foi o voto histórico a que se refere, em escritos autorais, San Tiago Dantas, pois, pela primeira vez, exprimíamos uma só face em matéria colonial. Conclusão A herança recebida de Portugal marcou profundamente a formação do povo brasileiro, sendo, indubitavelmente, um dos elementos formadores de sua sociedade. Entretanto, neste mesmo povo, coexistem traços e influências africanas que, em um bem sucedido processo de miscigenação sócio-cultural e civilizacional, resultaram na construção identitária do Brasil. A nação brasileira reconhece tanto a sua origem lusa quanto africana, porém, por orientação de uma tradicional política de valorização européia e branca, se distanciou da África a ponto de que, somente em 1957 surge, pela primeira vez, no âmbito da Divisão Política do Itamarati, um memorando que inicia a discussão sobre a questão africana e asiática e as suas implicações para o Brasil. Até então, muito pouco se sabia sobre o vasto continente. Para além das origens históricas, as relações do Brasil com a África foram marcadas por ambigüidades e dubiedades que não podiam inspirar confiança nos dirigentes africanos em relação à postura do Brasil, que oscilava na medida em que ia avaliando as tendências da ONU e da sociedade internacional. Especialmente com a África lusófona, esta relação não existiu: permaneceu por anos sob a sombra de Portugal. De fato, há ligação estreita entre a retórica da afetividade de Juscelino Kubitschek e a política de duas faces de Jânio Quadros, no sentido de que a primeira praticamente delineou a segunda. Ainda que notoriamente entusiasmado em revolucionar a política externa do país, o que foi alcançado em larga medida, Jânio Quadros não conseguiu se desvencilhar dos laços de afetividade e do sentimentalismo que abarcam as classes dirigentes e os grandes grupos dominantes do Brasil. Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 18 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 Sob a questão de como o Brasil se colocou em meio à batalha colonial dos territórios não autônomos sob administração portuguesa, concluo que a resposta é tão pouco objetiva em reflexo do que foi a ação. O Brasil tentou unir propostas inconciliáveis, tentou mediar situações extremas, que não clamavam por aparatos discursivos ou medidas diplomáticas, pois estavam a ponto de explosão. Se autoproclamar anticolonialista, favorável a não intervenção e a auto determinação dos povos são princípios que o nosso país tentou afastar da causa das colônias lusófonas por tentar convencer-se de que o que ali se passava eram casos distintos, de um “colonialismo especial”, sob a sagrada missão civilizadora da nação pioneira do processo de dominação. A África não tem como característica primar por manobras no plano do discurso, da diplomacia política, por ser um continente que vive sob constante reação aos mandos e desmandos de todos os que a circundam – características estas que, dentre outras, demonstravam que a verdade é que muito pouco se conhecia no Brasil sobre a África. E vice-versa: nosso país estava longe de ser o exemplo da coexistência racial na qual os africanos deveriam se espelhar, pois longe estávamos física e emocionalmente, já que não participamos, nem com as esperadas manifestações de apoio, a tais reações africanas e suas vitórias nas lutas por se autoafirmar. Não havia diálogo algum, de ambas as partes, até a década de 60 e pode-se dizer que um verdadeiro projeto brasileiro de política africana só começou a ser formulado durante o governo militar, posto que o grande fator que o propiciou foi a queda do regime ditatorial salazarista em Portugal, em 25 de abril de 1974, com a Revolução dos Cravos, quando o destino das colônias portuguesas já estava selado. Ai, mais uma vez, é evidenciada a intervenção portuguesa como condicional ao futuro das relações do Brasil com a África. Em 1964 não chegou a haver uma inflexão total em tais relações, mas, passada a fase da maioria das descolonizações, houve um esvaziamento do discurso ideológico em favor da emancipação das outras colônias. O Itamarati passou a dar mais ênfase nos aspectos econômicos e comerciais da ligação do Brasil com a África, enviando, num curto espaço de tempo, duas missões comerciais ao continente, em 1964 e 1965. Desde então, a começar por Geisel, o Brasil deu Anais do II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp 19 II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP) 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 ISSN 1984-9265 inicio a expansão das suas relações com o continente africano com mais desenvoltura, livre que estava do “peso sentimental português”. Foram privilegiadas as relações de caráter econômico sendo, portanto, os países exportadores de petróleo os principais centros de atração, os quais também tinham capacidade de compra dos produtos industrializados brasileiros. Enfim o Brasil verificou que poderia efetivar-se um intercâmbio comercial assentado em bases complementares e vantajosas para ambos os lados, o primeiro passo na direção de uma aproximação mais ampla e que esperou tantos anos para acontecer. 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