II Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais do
Programa "San Tiago Dantas" (UNESP, UNICAMP e PUC/SP)
16, 17 e 18 de Novembro de 2009
ISSN 1984-9265
AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE BRASIL E PORTUGAL NA QUESTÃO
DOS TERRITÓRIOS COLONIAIS PORTUGUESES NA ÁFRICA (1961 – 1964)
SALGADO, Carolina de Oliveira
Mestranda em Relações Internacionais
UERJ
RESUMO
O presente trabalho destina-se a analisar as relações diplomáticas entre o Brasil e Portugal,
especialmente na questão da emancipação política dos territórios coloniais portugueses no período
em que o histórico e incondicional apoio do Brasil dado a Portugal, principalmente ao longo dos anos
50, ruía. O Presidente Jânio Quadros, em seu curto mandato, desenvolveu um projeto diferenciado
de política externa para o Brasil, a Política Externa Independente (PEI). Jânio Quadros e seu
chanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, deram largos passos na direção do apoio as
independências dos territórios portugueses não autônomos na África, embora esta questão tenha se
caracterizado mais como uma política de duas faces deste governo, uma vez que a política externa
brasileira apoiava a liberdade de todos os povos coloniais, mas adotava reservas quanto aos povos
submetidos “à sagrada missão civilizadora de Portugal”. Tal postura se verifica nas abstenções do
Brasil que, mediante, por exemplo, o Tratado de Amizade e Consulta, não podia solidarizar-se com a
condenação de Portugal e a recomendação de sanções àquele país, nas Assembléias e Resoluções
das Nações Unidas sobre o assunto.
Palavras-chave: política externa independente, territórios coloniais portugueses na África, política
colonial, Assembléias da ONU e relações luso-brasileiras.
Introdução
Com objetivos de cooperação e maior união, por meio de um instrumento
jurídico que deu forma às relações políticas luso-brasileiras - entre uma ditadura e
uma democracia -, em 16 de novembro de 1953 foi assinado, no Rio de Janeiro, o
Tratado de Amizade e Consulta entre o Brasil e Portugal, aprovado no Congresso
brasileiro pelo Decreto legislativo número 59 de 25 de outubro de 1954: momento
em que o Brasil se encontrava profundamente voltado às suas questões internas
(suicídio de Getúlio Vargas, pleito eleitoral a se realizar naquele mês).
Um princípio fundamental em diplomacia é o da reciprocidade, tanto nas
vantagens como nas obrigações. Reciprocidade que deve ser rigorosa e perfeita em
quaisquer atos internacionais. Precisamente o artigo 1º e o 2º do Tratado de
Amizade e Consulta tornam quase impossível o resguardo dessa condição, sem a
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qual as relações entre os países deixam de afirmar-se em termos da soberania
nacional de cada um deles. Nas Notas Interpretativas entendiam os portugueses
que, na comunidade do Tratado, ficava incluído todo o território brasileiro, para a
vantagem política e econômica do Estado português, enquanto na mesma
comunidade definida pelo mesmo Tratado, não estariam compreendidos as
províncias ultramarinas de Portugal, a única possível vantagem a ser-nos concedida,
num mínimo de reciprocidade, mediante alguma influência de nossa cultura e de
nossa economia nas colônias portuguesas da África1.
O referido Tratado que entrou em execução foi instrumento de pesados
prejuízos materiais e morais para o nosso país, prova do alinhamento incondicional
do então Presidente, Juscelino Kubitschek, com o então ditador, Oliveira Salazar.
Mais do que isso, o Tratado de Amizade e Consulta não foi sequer um instrumento
diplomático de caráter afetivo, cultural, econômico, comercial, nem qualquer coisa,
entre os dois países, no estilo dos acordos inofensivos para o alcance de alguma
estreita unidade de língua, religião ou etnia. Trata-se, rigorosamente, de um
instrumento político, sob o qual a Presidência e a Diplomacia brasileiras não tiveram
consciência dos nossos sentimentos e interesses, sem a capacidade de negociarem
com a ditadura portuguesa em igualdade de condições.
A idéia da restrição territorial portuguesa a ser abrangida no Tratado partira
do próprio governo português, contra a qual se insurgiu, na altura, o deputado
brasileiro Cardoso de Miranda - o prenúncio de que o tema dos territórios coloniais
portugueses na África seria o alvo de inúmeras tensões entre as duas nações. No
presente trabalho procurarei mapear como a Presidência e a Diplomacia brasileiras
se posicionaram em relação a Portugal diante da questão do colonialismo deste país
na África, no período compreendido entre 1961 e 1964, precisamente quando a
postura das nossas autoridades, ao longo da década de 50, manteve o silêncio
diante da ditadura do Estado Novo português – esta, imbuída de todo um discurso
em defesa da continuidade do seu colonialismo, intransigente e já condenado por
toda a sociedade internacional nas Assembléias da ONU −, ruiu.
O governo de Jânio Quadros, ainda que de curta duração, foi bastante
atuante em relação à política externa do Brasil. Quadros fez com que este campo
viesse a se tornar influente e importante dentro da visão do governo, como um
1
LINS, Álvaro, Missão em Portugal, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1960. P. 379.
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instrumento essencial para o alcance dos objetivos desenvolvimentistas que o
Presidente entendia como os primordiais para o país. Em artigo intitulado Nova
política externa do Brasil, publicado na Revista Foreign Affairs, em 1961, Jânio
Quadros
fala
em
desenvolvimento
nacionalismo,
econômico,
democracia,
com
reajustamento
diversificação
de
da
parceiros
política
com
e
quem
precisávamos nos relacionar. Esta foi uma perspectiva inovadora, cujos elementos
são, primordialmente, a base da Política Externa Independente, o projeto de política
internacional de Quadros que predominou até o golpe militar de 1964.
A aproximação entre Juscelino Kubitschek e Oliveira Salazar versus a OPA
Foi Juscelino Kubitschek quem deu nova existência, atualidade dinâmica e
condições de aplicabilidade executiva ao Tratado de Amizade e Consulta. E a
Operação Pan-americana, neste contexto? Ficou em cheque: Kubitschek assinou
atos de política externa em Lisboa e se autoproclamou americanista; afirmou, na
Declaração de Santiago do Chile, documento assinado em 1959 pelas Repúblicas
Americanas sobre os compromissos continentais, que os povos americanos anseiam
viver em paz no amparo de instituições democráticas alheias a toda intervenção e a
toda influência de caráter totalitário, entretanto, determinou a plena execução do
Tratado de Amizade e Consulta, no qual se diz que o Brasil democrático e
americano, em harmonia com o Portugal totalitário e afro-europeu, concorda em que
se consultarão sempre sobre todos os problemas internacionais de seu manifesto
interesse comum, segundo o artigo 2º.2
O Brasil, seguindo uma perspectiva hemisférica, se voltou para os EUA e para
a América Latina e, neste sentido, a OPA não pretendia tratar do mais importante
fenômeno do processo histórico mundial, entre 1958-1960: a liberdade africana.
Votávamos sempre com as potências coloniais nas Nações Unidas, cedíamos a
todas as pressões portuguesas do governo oligárquico de Salazar e, por vezes,
disfarçávamos nosso alinhamento colonial com abstenções.
O
Brasil
sempre
teve
coerência
no
estudo
de
projetos
sobre
o
desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos, contudo, JK não
2
LINS, Álvaro, Missão em Portugal, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1960. P. 411.
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percebeu que o problema do subdesenvolvimento só podia ser vencido se fosse
evitada a queda dos preços dos produtos de exportação. Era fácil reconhecer que a
concorrência entre os países subdesenvolvidos não deveria ser motivo de luta, mas
de união, em defesa dos interesses comuns. A OPA não se propunha a tratar de
outras dimensões da política externa brasileira, como por exemplo, a realidade afroasiática: enquanto territórios não autônomos, sob tutela das grandes potências
européias, os países africanos foram incluídos no Mercado Comum Europeu,
adquirindo enormes vantagens na exportação de produtos tropicais, em uma
concorrência extremamente prejudicial ao Brasil e às economias dos países latinoamericanos.
A reação latino-americana aos privilégios do Mercado Comum Europeu tem
na própria África seus aliados: alguns são contra a idéia de associação com os
europeus por motivos ideológicos, receios do neocolonialismo; segundo Sékou
Touré, o então Presidente da Guiné, “a Europa está apressadamente organizando o
Mercado Comum e ansiosa por nele incluir a África. Nós dizemos não. Constituímos
no presente um mercado muito pequeno.devemos primeiro aumentar o nosso
próprio mercado livre. Não temos nada contra ninguém, mas preferimos livremente
negociar acordos e pensamos que é mais honesto dizê-lo. Somos subdesenvolvidos
e economicamente atrasados. É melhor para nós explorar o que temos e cooperar
com quem quer que deseje trabalhar conosco.”3 O Brasil deveria pensar, já àquela
altura, na cooperação, no comércio mundial sem limitações para o desenvolvimento
nacional.
Em Portugal, vigorava o regime ditatorial de Oliveira Salazar. Segundo
Williams Gonçalves, as razões para tamanha durabilidade do regime devem ser
buscadas nos elementos estruturais: 1º, a condição de país periférico no contexto do
sistema capitalista internacional, com uma organização econômica de base rural e
traços marcadamente tradicionais manteve Portugal à margem das renovações
mundiais. O Estado sempre se manteve como força tutelar da economia portuguesa.
2º, a posse do império colonial, que contribuiu como válvula de escape para a
3
RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1964. P.262.
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remediação das deficiências e insuficiências da economia portuguesa. As colônias
eram enquadradas administrativamente como uma extensão da metrópole.4
Salazar desenvolveu todo um discurso em defesa da manutenção de seu
colonialismo, se utilizando de adequações léxicas e de uma retórica baseada no
caráter específico do colonialismo português, diferente do europeu em geral, por não
se apegar a finalidades estritamente econômicas, mas outras, mais amplas e
duradouras de enraizamento dos valores culturais e cristãos. A África era o epicentro
político para Salazar: a aliança com os nacionalistas conservadores europeus e com
o Brasil se lhe afiguravam como as peças fundamentais para a sua estratégia
colonialista.
Em 1955, com a entrada de Portugal na ONU, Salazar viu-se em meio ao
turbilhão de discussões sobre o movimento pelas descolonizações africanas; a partir
de então, a evolução do sistema internacional vai se revelar cada vez mais adversa
aos interesses coloniais portugueses. Enquanto as demais metrópoles européias,
apoiadas em sólido e crescente desenvolvimento econômico, negociavam as
independências de suas colônias de modo a manter os vínculos de dependência
econômica, Portugal, com uma economia capitalista sem dinamismo industrial,
refugiou-se numa posição jurídico-defensiva ante a pressão descolonizadora.
Com a revisão de 1951, alterou-se a Constituição e o Acto Colonial: as
colônias portuguesas passam a chamar-se províncias ultramarinas e o império
colonial português passou a chamar-se império ultramarino português. E foi assim,
por meio dessa adaptação léxica, que o Estado Novo português esperava escapar
do alcance dos artigos 73 e 74 da Carta das Nações Unidas, que tratavam da
situação relativa aos “territórios não autônomos”.
O conceito português de território ultramarino e a sustentação teórica de
Gilberto Freire – o luso-tropicalismo
A estratégia colonialista de Salazar se baseou em uma articulada manobra
jurídico-constitucional, conjuntamente com um discurso único sobre a significação de
território colonial, primordialmente sustentado pela teoria do luso-tropicalismo
4
GONÇALVES, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal, Lisboa: Editora
Imprensa de Ciências Sociais, 2003. P. 74.
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desenvolvida pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire. Descreve Franco Nogueira
que “por imposição constitucional, Portugal era uma nação politicamente unitária: a
soberania era indivisa e os seus órgãos eram os mesmos para todo o território
nacional. A Constituição portuguesa não reconhecia a existência, dentro da nação,
de territórios não autônomos, e não era lícito que algumas partes desta nação
tivessem um determinado estatuto internacional e outras partes um estatuto
diferente.” 5
Fazem parte dos princípios do colonialismo português, primeiro, a unidade do
Império, e daí o rótulo de províncias ultramarinas (“Portugal e suas colônias foram
uma unidade completa e indivisível.”); segundo, a assimilação das populações, que
teve, em boa parte, o significado de tentar aportuguesar os africanos, na língua, nas
normas oficiais e na religião. A ideologia que coadunava com a posição jurídicopolítica e com tais princípios foi inspirada nos estudos do sociólogo Gilberto Freire,
era a do mito de que a presença portuguesa na África revestia-se de caráter
humanitário.
Casa Grande e Senzala, publicada em dezembro de 1933, reconciliou o Brasil
com Portugal, cujas relações haviam estremecido com a Proclamação da República
no Brasil em 1889. A obra de Gilberto Freire preparou o terreno para a exacerbada
fraternidade luso-brasileira manifestada na segunda metade dos anos 50 nos
discursos das elites intelectuais e políticas de ambos os países. A tese de Gilberto
Freire representou verdadeira revolução no entendimento social do Brasil, bem
como assegurou toda a base teórica da aproximação já existente com Portugal e
mantida por JK: a mestiçagem entre o branco português, o índio e o africano havia
produzido uma civilização superior, porque tropical, original e racialmente
democrática. Para críticos, antropólogos e sociólogos da época, a obra definiu uma
tomada de consciência histórica, na medida em que nela o Brasil se reconheceu e
foi reconhecido.
Para Freire, as especificidades que forjaram o passado cultural português
revelaram-se sob a forma de três atributos básicos e essenciais para a tarefa de
colonização: miscibilidade (tendência natural a misturar-se), mobilidade (incomum
5
NOGUEIRA, Franco, “As Nações Unidas e Portugal”, Lisboa: Ed. Ática, 1961, pp.101-102 In:
GONÇALVES, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal, Lisboa: Editora
Imprensa de Ciências Sociais, 2003.
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capacidade de resistência do português ao meio ambiente hostil) e aclimatabilidade
(qualidade resultante da proximidade da África, que se pronuncia, entre outras
influências, no clima)6. Gilberto Freire rejeitava as teorias pelas quais se explicava o
atraso brasileiro devido à colonização portuguesa, pois a entendia como um êxito
principalmente no que tange à miscigenação predominante no Brasil.
Este autor buscava exatamente na colonização portuguesa o motivo do nosso
avançado legado de democracia racial7, alegando, entre outros elementos, que a
noção de tempo ibérico, por privilegiar o ritmo do processo civilizador, era totalmente
diferente da noção de tempo anglo-saxã, que procurava otimizá-lo prioritariamente
para o trabalho. Daí o aproveitamento da colonização portuguesa não só em termos
econômicos, de exploração de recursos naturais e mão-de-obra, mas também, em
termos sócio-culturais, pois não havia, segundo o autor, nação mais aberta às
misturas do que a portuguesa.
Faltava ao Estado Novo português ainda um instrumento discursivo legítimo
historicamente, de defesa do colonialismo português, que se opusesse ao
pressuposto da racionalidade econômica e se fundasse nos valores culturaiscivilizacionais.
Mais uma vez, Gilberto Freire foi o criador, através do luso-
tropicalismo, teoria exposta em “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”, que contém
a argumentação básica de que o povo português possui uma aptidão única em
civilizar os trópicos, mediante, principalmente, sua tendência a se miscigenar sem
preconceitos.
Enquanto as obras publicadas fizeram de Gilberto Freire um escritor e
personalidade extremamente respeitada e homenageada em Portugal, no Brasil sua
imagem ficou completamente comprometida junto aos setores que o viam como um
instrumento da ditadura salazarista e do colonialismo. Com base fundamentalmente
na defesa jurídica nas Nações Unidas, na valorização econômica das colônias e na
aliança político-diplomática com o Brasil, Portugal resistiu, ao longo dos anos 50, à
6
FREIRE, Gilberto, Integração portuguesa nos trópicos, Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar,
1958.
7
Vale ressaltar que o termo “democracia racial” foi cunhado e posto em uso devido à defesa de
Gilberto Freire em relação à miscigenação como um processo positivo ocorrido no Brasil, entretanto,
atualmente, literatos e acadêmicos estudiosos de África criticam o termo veementemente, alegando
que uma democracia jamais pode ser racial, posto que esta já é uma nomenclatura anti-democrática,
como quaisquer critérios, referências ou termos sociais baseados na diferenciação de raças.
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ofensiva do movimento anticolonialista. Contudo, o futuro de tal articulação
defensiva, em 1961, começaria a perder os seus alicerces.
O governo de Jânio Quadros e a política de duas faces
“Em conseqüência da formação histórica, cultural e cristã, tanto quanto a
situação geográfica, nossa nação é predominantemente ocidental (...) nossa
dedicação à democracia é maior do que a de outras nações da nossa esfera cultural.
Tornamo-nos, assim, o exemplo mais bem sucedido de coexistência racial e
integração conhecido na história. (...) É inegável que temos outros pontos em
comum, com a América Latina em particular e com os povos recentemente
emancipados da Ásia e da África, que não podem ser ignorados, porque se
encontram na base do reajustamento da nossa política e sobre eles convergem
muitas das linhas principais do desenvolvimento da civilização brasileira. (...) O fato
comum a todos eles é o de que nossa situação econômica coincide com o dever de
formar uma frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as formas
de opressão.”8
O Presidente Jânio Quadros fala, neste artigo, em ocidentalismo, democracia,
reajustamento da política e desenvolvimento econômico, com diversificação de
parceiros com quem podemos e precisamos nos relacionar. Estes elementos são,
primordialmente, a base da Política Externa Independente, o projeto de política
internacional de Jânio Quadros que predominou até o golpe militar, em março de
1964. Quadros foi o responsável pela mundialização da política externa brasileira,
mediante um processo de ajustamento que continuava a respeitar o regionalismo
hemisférico e a não desvalorizar os objetivos continentais, mas que ampliava o
comércio e as relações políticas na recusa aos comprometimentos absolutos,
principalmente com os Estados Unidos, assegurando, dessa forma, os interesses
nacionais brasileiros.
Politicamente direcionada à idéia do desenvolvimento econômico, da total
liberdade de ação internacional e da ampliação das relações políticas e econômicas
com todos os agrupamentos do mundo (socialistas e povos recém-libertos,
inclusive), a PEI tinha o entendimento de que os EUA é uma legítima filiação que
8
QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. Pp.: 147-148.
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devemos manter para nossa segurança e desenvolvimento, mas isso não retira a
possibilidade de nos desentendermos, sempre que nossos interesses forem
ofendidos ou prejudicados, pois estamos conscientes de nossa significação mundial.
“Com tais princípios, a PEI foi apoiada pela nação; pelas classes médias e
trabalhadoras, que eram excluídas de qualquer área de influência, especialmente no
Itamarati.”9
Conforme analisa José Honório Rodrigues, “a situação internacional está
sempre em constante fluxo de mudanças e nela se atritam os interesses e as
exigências de mais de cem nações soberanas. É difícil, nesta dinâmica, fazer
predominar a nossa liberdade de iniciativa e o direito de divergir dos países mais
fortes; combater o ocidentalismo tradicional, que mantinha o Brasil sob a ordem
hierárquica
dos
EUA
e
da
Europa,
para
inaugurar
um
nacionalismo
multilateralizante, que abre as portas da economia do país a quaisquer nações que
conosco quiserem comercializar, é um largo passo à frente na direção
desenvolvimentista.”10
Em janeiro de 1961, Jânio Quadros confirmou seu compromisso de uma
política de independência e de relações com todos os países, que nos libertava de
classificações como latino-americanização, isto é, satelitização econômica do
continente aos interesses norte-americanos ou do imperialismo europeu. Esta
mudança de paradigma, do ocidentalismo ao nacionalismo, se encaixou muito bem
no “novo” Brasil, país anticolonialista e antiracista, convicto da necessidade do
desenvolvimento como base da democracia e, neste sentido, com uma política
internacional voltada a apoiar sinceramente os esforços do mundo africano pela
liberdade.
Tratar, então, da questão colonial portuguesa no governo de Jânio Quadros é
entendê-la no âmbito da PEI. Esta abarcava também outros pontos que deram todo
o sentido a postura presidencial em relação a Portugal, na questão colonial: o apoio
aos princípios de não intervenção e autodeterminação dos povos, dentro da estrita
obediência ao direito internacional; o suporte à emancipação dos territórios ainda
não autônomos, sob qualquer designação jurídica; autonomia na formulação de
9
RODRIGUES, José Honório, “Uma Política Externa Própria e Independente” In: Política Externa
Independente. A crise do pan-americanismo, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965.
10
RODRIGUES, José Honório, “Uma Política Externa Própria e Independente” In: Política Externa
Independente. A crise do pan-americanismo, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1965. P. 39.
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projetos de desenvolvimento econômico e na implementação de ajuda internacional;
a ampliação dos mercados externos para a produção brasileira, através da
intensificação do comércio com todos os países da Ásia, África e América Latina,
além da comunidade socialista.
“Afirmo o reconhecimento da legitimidade da luta pela liberdade econômica e
política. O desenvolvimento é um objetivo comum ao Brasil e às nações com as
quais procuramos ter relações mais íntimas e a rejeição do colonialismo é o corolário
inevitável e imperativo dessa meta.”11 Esta declaração do presidente evidencia
claramente que os esforços da PEI e de seu governo seriam todos na direção da
autonomia política aos povos para que se tornassem possíveis parceiros
econômicos do Brasil; este romperia, assim, com a barreira do americanismo,
paradigma no qual o Brasil se viu inserido durante muito tempo e que, de acordo
com o pensamento de Jânio Quadros, especialmente devido à lógica inerente ao
processo
de
industrialização,
deveria
ser
imediatamente
substituído
pelo
multilateralismo que ele almejava adotar.
O Presidente Jânio Quadros entendia a África como uma nova dimensão da
política brasileira. Tanto na esfera político-social, onde Brasil e África têm as
mesmas aspirações por liberdade, bem-estar e desenvolvimento, quanto na
econômica, onde ambos fazem parte do bloco subdesenvolvido, o presidente via tal
relacionamento de forma muito promissora – o soerguimento dos níveis econômicos
dos povos africanos era de vital importância para a economia do Brasil. Para além, o
‘destino natural’ de grandeza internacional do Brasil, assim compreendido pelo
presidente, o fazia crer que era “precisamente na África que o Brasil poderia prestar
o melhor serviço aos conceitos de vida e métodos políticos ocidentais (...) dar às
nações do Continente Negro um exemplo de completa ausência de preconceito
racial, juntamente com provas cabais de progresso sem solapar o princípio da
liberdade.”12
A postura terceiro-mundista representava uma alteração sem precedentes na
política exterior brasileira; o apoio à descolonização da África, a lusitana inclusive,
era pragmaticamente bem definido dentro dos objetivos brasileiros, pois a
manutenção de vínculos entre as colônias, concorrentes da produção de gêneros
11
12
QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. P. 148.
QUADROS, Jânio. Nova política externa do Brasil. 1961. P. 151.
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primários brasileiros, e suas metrópoles dificultava as exportações nacionais, além
de serem as nações jovens um mercado alternativo na troca de produtos industriais
pouco sofisticados por petróleo.
Contudo, como percebeu Adolpho Justo Bezerra de Menezes, “nosso governo
não tem ainda uma política firmada em assuntos africanos; temos apenas interesses
econômicos muito limitados que não chegam a servir de incentivo para o traçar de
uma política global de longo alcance para estas regiões tão importantes.”13 E foi
dentro da diretriz política da PEI que se deu uma das maiores contradições e recuos
da política de Jânio Quadros.
No caso de Angola, em março de 1961, o Itamarati distribuiu nota oficial
declarando que haviam sido expedidas instruções à nossa delegação nas Nações
Unidas, no sentido de se abster da votação sobre a matéria: realmente, a
determinação de consulta sobre problemas internacionais de manifesto interesse
comum, artigo primeiro do Tratado de Amizade e Consulta de 1953, no caso,
manifesto interesse lusitano, comprometeu nossas relações com os países do
continente africano. “Como se vê, houve um impulso inicial, um apaixonado
interesse pela África, mas política africana, propriamente, nunca se formulou, para
além das abstenções nas Nações Unidas contra a Argélia e Angola.”14
Aí está o ponto em que se verifica a política de duas faces do governo de
Quadros: por um lado, profundamente anticolonialista, apoiando e reconhecendo os
movimentos pela independência dos territórios não autônomos das potências
européias; por outro, se posicionando fora dos debates sobre a independência das
colônias portuguesas, uma vez que ainda se fazia presente no ethos político
brasileiro o sentimentalismo e a retórica da afetividade.
Pode-se verificar que as relações luso-brasileiras seguiram criando extremas
dificuldades nas tentativas de formulação de nossa política africana. Mais uma prova
de que o sentimentalismo não pode influir no campo da política externa, pois se fazia
necessário distinguir a ajuda a Portugal da constante colaboração do Brasil com sua
arcaica visão do mundo; deixar de fortalecer a posição colonialista e salazarista e,
em lugar, falar com clareza e objetividade que, para continuar contando com o apoio
13
DE MENEZES, Adolpho Justo Bezerra, O Brasil e o mundo ásio-africano, Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti Editores, 1956. P. 336.
14
RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1964.
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do Brasil, Portugal deveria rever a sua política internacional, tornando-a mais
flexível.
O período de 1961 – 1968 foi o de endurecimento da ditadura salazarista,
correspondente ao retorno ao autoritarismo repressivo de antes da guerra. A causa
determinante foi o início da luta armada nas colônias, dirigidas pelos movimentos de
libertação nacional. Mais uma vez Portugal se vê isolado internacionalmente15.
Jânio Quadros declarou que por muitos anos o Brasil cometeu o erro de
apoiar o colonialismo europeu nas Nações Unidas e que “nossas relações fraternais
com Portugal influíram na complacência demonstrada pelo Ministério das Relações
Exteriores do Brasil nesse assunto.” Também teve influência decisiva nesta postura
a questão do café: Quadros não podia deixar de apoiar os produtores nacionais
que, no momento de seu governo, se debatiam numa forte crise no mercado
internacional em virtude da concorrência do café angolano. “A recusa das
autoridades portuguesas em aceitar uma proposta dos produtores brasileiros para se
associarem aos produtores de Angola aumentou a animosidade dos cafeeiros do
Brasil à política ultramarina portuguesa.”16
O Brasil, durante o governo de Jânio Quadros e do chanceler Afonso Arinos
de Melo Franco, recusou-se a prosseguir a política dos seus antecessores,
empenhando-se, ao contrário, em convencer os dirigentes portugueses a colaborar
com as Nações Unidas para uma autodeterminação não violenta e controlada.
Porém, diante de todas as recusas portuguesas, a orientação brasileira era a de não
tomar atitudes ou posições que pudessem desagradar ou provocar sanções ao
Estado português. Uma política realmente difícil de acompanhar e de compreender.
A continuação das diretrizes e bases da PEI no governo de João Goulart,
porém com o ineditismo de San Tiago Dantas
João Goulart começou seu governo em 1961 em pleno clima de instabilidade
política. Quando da súbita renúncia de Jânio Quadros, Goulart, que era o seu vicepresidente, encontrava-se na China e os militares viam uma ameaça ao país,
15
Como se comprovará adiante, através das Assembléias e das constantes Resoluções da ONU,
sempre em manifesto contrário a continuidade da dominação portuguesa, principalmente em Angola,
que teve como conseqüência uma guerra civil de enormes proporções e que mobilizou toda a
comunidade internacional contra a posição reacionária e arcaica de Portugal.
16
MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P.
101.
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temendo a exacerbação dos movimentos populares e dos partidos e grupos de
esquerda. Porém, a Constituição era clara e a campanha pela legalidade, liderada
por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, logrou êxito. Em 1962
foi convocado um plebiscito sobre a manutenção do parlamentarismo ou o retorno
ao presidencialismo para janeiro de 1963. O parlamentarismo foi, no voto popular,
amplamente rejeitado, graças, em parte, às propagandas feitas por Jango.
Como pode-se notar, o mandato de Jango foi profundamente conturbado pela
oposição radical e sistemática movida pelos partidos de centro-direita e também por
segmentos das Forças Armadas, o que não lhe propiciou muito tempo e
disponibilidade para travar mudanças ou atitudes significativas quanto à política
externa do Brasil. Para além, Jango seguia a linha de pensamento autonomista e
multilateral de Jânio Quadros, o que justifica a continuidade da atuação da PEI, tanto
quanto as posições adotadas pelos representantes brasileiros nas Assembléias das
Nações Unidas.
San Tiago Dantas foi o ministro das Relações Exteriores durante o período do
regime parlamentarista de João Goulart e, em 1962, escreveu em livro intitulado
Política externa independente: “Na linha anticolonialista do Brasil houve pequenos
desvios de atitude apenas pelo desejo de dar a nações tradicionalmente amigas do
nosso país oportunidades para que definissem, por movimento próprio, uma posição
evolutiva em relação a territórios não-autônomos confiados à sua administração.
Esses desvios foram, porém, superados e retificados na XVI Assembléia Geral das
Nações Unidas, em que a delegação brasileira firmou, pela voz do embaixador
Afonso Arinos, o ponto de vista do Brasil.”17
O Ministro San Tiago Dantas, apesar do governo parlamentar, aprofundou a
diplomacia do desenvolvimento. Em suas primeiras declarações, reafirmou os
princípios da não intervenção, da autodeterminação e do anticolonialismo. Nesse
sentido, sua política foi firmemente executada, inclusive nas Nações Unidas quando,
pela primeira vez, se votou a favor do projeto de Resolução número 1.742, de 30 de
janeiro de 1962, que criava uma Comissão para coligir informações sobre a situação
dos territórios sob a administração portuguesa. A política africana, entretanto, mais
uma vez, não existiu; apenas se seguiu condenando o colonialismo e manifestando
17
MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P.
102.
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solidariedade às aspirações de independência, bem como o reconhecimento de
algumas, como Argélia, Ruanda e Urundi.
Ainda em 1962, o embaixador brasileiro em Lisboa, Negrão de Lima,
chamado ao Brasil para conferenciar com San Tiago Dantas, já havia visitado o
ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Franco Nogueira. O objetivo de tal
visita era o de poder transmitir ao ministro brasileiro, San Tiago Dantas, qualquer
modificação da posição portuguesa que pudesse causar atritos com o Brasil. Porém,
este objetivo não se consumou. O embaixador Negrão de Lima, após inúmeras
tentativas de negociações, declarou: “o Brasil não podia entrar em entendimento ou
assumir atitudes que pudessem interpretar-se como um apoio ao status quo
ultramarino português, ou como uma sua consolidação.”18 Não surpreende então
que, em julho de 1963, em um projeto de resolução apresentado no Conselho de
Segurança da ONU, convidando Portugal a reconhecer imediatamente o direito à
autodeterminação e à independência dos seus territórios ultramarinos, o Brasil tenha
dado o seu voto favorável à aprovação.
O Brasil procurou sempre justificar sua postura favorável à descolonização
nas resoluções estabelecidas na Carta das Nações Unidas e na legalidade dos
princípios consagrados dessa Organização. Em declaração do representante do
Brasil no Conselho de Segurança, sobre a situação dos territórios sob dominação
portuguesa, em 12 de agosto de 1963, registrou-se claramente a postura brasileira:
“Ninguém tem dúvida de que a Carta de São Francisco, no seu capítulo XI, pôs
ponto final à ‘legalidade’ do colonialismo. (...) Entre as obrigações constitucionais
figuram, em primeiro plano, a de preparar os povos das antigas colônias para a
autodeterminação e a independência. A Carta das Nações Unidas legaliza, assim, a
evolução anticolonialista (...) pela primeira vez, o Conselho de Segurança é
chamado a examinar a situação do conjunto dos territórios não autônomos sob
administração portuguesa, em virtude do não-cumprimento, pelo governo português,
das obrigações decorrentes da Carta (...) A delegação do Brasil, baseada na larga
experiência histórica de suas relações com Portugal, tem motivos para esperar que
o governo português não permita que a situação se agrave e que aceitará, portanto,
o diálogo com as Nações Unidas, tomando as providências que o levarão ao
18
MAGALHÃES, José Calvet de. Breve História das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. P.
106.
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cumprimento de suas obrigações e, conseqüentemente, ao preparo de suas colônias
para a autodeterminação e a independência.”19
A política do Brasil nas Nações Unidas: questões coloniais20
Em 1955 entrava Portugal, com o apoio brasileiro, para as Nações Unidas,
sob o manto do discurso de que “a independência real é o fruto do crescimento
natural das instituições políticas, fundadas em uma sólida estrutura econômica e
social. Os povos devem amadurecer e suas instituições se desenvolverem para que
a independência seja uma benção.”21 Esta posição tão cautelosa serve como uma
luva a todos os colonialistas, que alegam a inviabilidade da descolonização pelo
despreparo das populações nativas.
A Delegação do Brasil acreditava permanecer eqüidistante das partes e poder
assumir atitudes conciliatórias, imparciais, discretas. Levava-se, assim, para a
política externa, a velha teoria da conciliação e do compromisso, que tem nas áreas
nacional e internacional os mesmos aspectos negativos, quais sejam, o de atender
aos privilegiados e buscar a conformação dos oprimidos, retardando a sua vitória por
meio da defesa da manutenção do status quo.
Até 1960, a orientação da política externa brasileira segue no sentido de
reconhecer os novos Estados africanos independentes desde que alçados a esta
condição com a concordância das antigas metrópoles e depois de constatada
efetivamente a sua emancipação no sistema internacional. A esta época, algumas
poucas nações européias ainda relutavam em assimilar o fenômeno da
descolonização, insistindo na manutenção de alguns territórios sob seu controle,
como Portugal (todas as colônias), França (Argélia) e Bélgica (Congo) o que,
conseqüentemente, ocasionou conflitos de maiores proporções nessas áreas
dominadas.
O repetitivo discurso português se baseia na inexistência de territórios não
autônomos sob sua administração, pois todo o seu território é dividido política e
19
Documento 23: Declaração do representante do Brasil no Conselho de Segurança, sobre a
situação dos territórios sob dominação portuguesa, 12 de agosto de 1963. Pp.: 155-157.
20
RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1964. P. 402.
21
RODRIGUES, José Honório, Brasil e África: outro horizonte, Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 1964. P. 422.
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administrativamente em “províncias”, todas com estatuto legal, inclusive suas
“províncias ultramarinas”22. A primeira reação do Brasil favorável aos povos
colonizados só veio em 1960, pois, até então, reafirmava-se a posição brasileira em
aceitar o colonialismo português, distinguindo-o dos demais.
O Brasil tentava acompanhar a tendência verificada durante o ano de 1960,
que indicava haver dentro da ONU uma posição majoritária a favor das
independências, porém, numa tentativa de se manter fiel a Portugal, acabou
gerando uma contradição, visto que as duas propostas eram inconciliáveis.
Afonso Arinos foi bastante criticado pela imprensa conservadora, por setores
de intelectuais e comunidades de imigrantes lusos por defender o processo de
descolonização, inclusive para a África portuguesa; estes grupos sugeriam que o
Brasil passasse a votar a favor de mudanças nas tendências das Nações Unidas.
Arinos assim se manifestou ao Ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas:
“Penso que não devemos participar jamais de qualquer medida de acusação
exagerada ou condenação injusta de Portugal, conforme tem sido aventado por
representantes do radicalismo africano; entretanto, um recuo nosso na decisão de
adotar a recomendação que propugne a aplicação da citada resolução da
Assembléia Geral e do capítulo XI da Carta no sentido do preparo de Angola para a
autodeterminação seria irremediavelmente desastrosa e destruiria de um golpe o
prestígio político e a autoridade moral que conquistamos, não só nas áreas afroasiáticas como nas democráticas e nas socialistas, além de provocar uma provável e
violenta reação popular interna contra o governo. (...) Um recuo do Brasil em matéria
do colonialismo africano e, particularmente no caso de Angola, que é o teste de
nossa sinceridade, comprometeria qualquer aspiração brasileira na ONU.”
(Telegrama número 43, de Afonso Arinos de Melo Franco, Delegação do Brasil junto
à XVI Assembléia Geral das Nações Unidas para o então Ministro das Relações
Exteriores, San Tiago Dantas.)
Na XV Assembléia Geral, sob a euforia da independência de um grande
número de Estados africanos, foram aprovadas várias Resoluções que ajudavam na
continuação deste processo. A Resolução número 1.514, de 14 de dezembro de
22
Conforme já foi visto, esta defesa se calcava no conceito português de território ultramarino e se
coadunava com o aparato discursivo, criado por Gilberto Freire, que diferenciava os aspectos da
colonização portuguesa com a dos outros países europeus.
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1960, “Declaração de Outorga da Independência aos Países e Povos Coloniais”
contou com o voto brasileiro e viria a ser o instrumento fundamental da ação
anticolonialista das Nações Unidas.
XVI Sessão da Assembléia das Nações Unidas, setembro de 1961: apesar de
afirmar que as boas relações com a França e com Portugal não impediriam o Brasil
de tomar uma posição clara nas dolorosas divergências que se apresentavam na
ONU a propósito do colonialismo africano, sendo a favor da autodeterminação dos
povos, sob a responsabilidade do Ministro San Tiago Dantas, o Brasil se abstinha de
votar o projeto de Resolução apresentado por 33 países africanos.
XVII Sessão da Assembléia das Nações Unidas, setembro de 1962: o Brasil
falava na liquidação do colonialismo, mas não saudava a nova Nação que nascera
meses antes, Argélia. Esta teve o apoio do povo brasileiro, mas nenhuma
manifestação otimista por parte da elite e dos representantes do povo.
As duas questões que mais comprometeram o Brasil em matéria colonial
foram: o processo emancipatório de Angola e a obrigatoriedade de transmissão de
informações sobre os territórios não autônomos pelas Potências Administradoras.
Quando Portugal foi admitido nas Nações Unidas, declarou que o artigo 73, letra e,
da Carta (prescrevia a obrigação dos Poderes Administradores dos territórios não
autônomos a transmitirem regularmente ao Secretário-Geral informações estatísticas
ou de outro caráter técnico, relativas às condições econômicas, sociais e
educacionais dos territórios pelos quais eram responsáveis, além de terem o dever
de estimular a capacidade de governo próprio e do desenvolvimento das livres
instituições políticas destes referidos territórios) não se aplicava aos seus territórios,
pois estes eram partes integrantes da Nação portuguesa. O artigo, na interpretação
portuguesa, entrava em conflito com as suas normas constitucionais, já que Portugal
tinha uma única Constituição aplicada igualmente a todas as províncias.
O ano de 1962 foi incansável no exame de toda e qualquer informação
relativa aos territórios portugueses na África. Na XVII Assembléia Geral foi
examinado o relatório do Comitê de Sete países que viajaram à África entre maio e
junho de 1962. Neste, constava a utilização de armas da OTAN para abafar os
movimentos nacionalistas africanos e continha a urgente crença de que era passo
decisivo para Portugal reconhecer o direito do povo de seus territórios à
independência. Na Resolução número 1.742, de 30 de janeiro de 1962, o Brasil
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votou excepcionalmente a favor de que já se tornara deplorável a falta de
cooperação de Portugal nos trabalhos do Comitê de Sete, bem como a sua recusa
em reconhecer a independência de Angola. Este foi o voto histórico a que se refere,
em escritos autorais, San Tiago Dantas, pois, pela primeira vez, exprimíamos uma
só face em matéria colonial.
Conclusão
A herança recebida de Portugal marcou profundamente a formação do povo
brasileiro, sendo, indubitavelmente, um dos elementos formadores de sua
sociedade. Entretanto, neste mesmo povo, coexistem traços e influências africanas
que, em um bem sucedido processo de miscigenação sócio-cultural e civilizacional,
resultaram na construção identitária do Brasil.
A nação brasileira reconhece tanto a sua origem lusa quanto africana, porém,
por orientação de uma tradicional política de valorização européia e branca, se
distanciou da África a ponto de que, somente em 1957 surge, pela primeira vez, no
âmbito da Divisão Política do Itamarati, um memorando que inicia a discussão sobre
a questão africana e asiática e as suas implicações para o Brasil. Até então, muito
pouco se sabia sobre o vasto continente.
Para além das origens históricas, as relações do Brasil com a África foram
marcadas por ambigüidades e dubiedades que não podiam inspirar confiança nos
dirigentes africanos em relação à postura do Brasil, que oscilava na medida em que
ia avaliando as tendências da ONU e da sociedade internacional. Especialmente
com a África lusófona, esta relação não existiu: permaneceu por anos sob a sombra
de Portugal.
De fato, há ligação estreita entre a retórica da afetividade de Juscelino
Kubitschek e a política de duas faces de Jânio Quadros, no sentido de que a
primeira praticamente delineou a segunda. Ainda que notoriamente entusiasmado
em revolucionar a política externa do país, o que foi alcançado em larga medida,
Jânio Quadros não conseguiu se desvencilhar dos laços de afetividade e do
sentimentalismo que abarcam as classes dirigentes e os grandes grupos dominantes
do Brasil.
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Sob a questão de como o Brasil se colocou em meio à batalha colonial dos
territórios não autônomos sob administração portuguesa, concluo que a resposta é
tão pouco objetiva em reflexo do que foi a ação. O Brasil tentou unir propostas
inconciliáveis, tentou mediar situações extremas, que não clamavam por aparatos
discursivos ou medidas diplomáticas, pois estavam a ponto de explosão. Se
autoproclamar anticolonialista, favorável a não intervenção e a auto determinação
dos povos são princípios que o nosso país tentou afastar da causa das colônias
lusófonas por tentar convencer-se de que o que ali se passava eram casos distintos,
de um “colonialismo especial”, sob a sagrada missão civilizadora da nação pioneira
do processo de dominação.
A África não tem como característica primar por manobras no plano do
discurso, da diplomacia política, por ser um continente que vive sob constante
reação aos mandos e desmandos de todos os que a circundam – características
estas que, dentre outras, demonstravam que a verdade é que muito pouco se
conhecia no Brasil sobre a África. E vice-versa: nosso país estava longe de ser o
exemplo da coexistência racial na qual os africanos deveriam se espelhar, pois
longe estávamos física e emocionalmente, já que não participamos, nem com as
esperadas manifestações de apoio, a tais reações africanas e suas vitórias nas lutas
por se autoafirmar.
Não havia diálogo algum, de ambas as partes, até a década de 60 e pode-se
dizer que um verdadeiro projeto brasileiro de política africana só começou a ser
formulado durante o governo militar, posto que o grande fator que o propiciou foi a
queda do regime ditatorial salazarista em Portugal, em 25 de abril de 1974, com a
Revolução dos Cravos, quando o destino das colônias portuguesas já estava selado.
Ai, mais uma vez, é evidenciada a intervenção portuguesa como condicional ao
futuro das relações do Brasil com a África.
Em 1964 não chegou a haver uma inflexão total em tais relações, mas,
passada a fase da maioria das descolonizações, houve um esvaziamento do
discurso ideológico em favor da emancipação das outras colônias. O Itamarati
passou a dar mais ênfase nos aspectos econômicos e comerciais da ligação do
Brasil com a África, enviando, num curto espaço de tempo, duas missões comerciais
ao continente, em 1964 e 1965. Desde então, a começar por Geisel, o Brasil deu
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inicio a expansão das suas relações com o continente africano com mais
desenvoltura, livre que estava do “peso sentimental português”.
Foram privilegiadas as relações de caráter econômico sendo, portanto, os
países exportadores de petróleo os principais centros de atração, os quais também
tinham capacidade de compra dos produtos industrializados brasileiros. Enfim o
Brasil verificou que poderia efetivar-se um intercâmbio comercial assentado em
bases complementares e vantajosas para ambos os lados, o primeiro passo na
direção de uma aproximação mais ampla e que esperou tantos anos para acontecer.
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DE MENEZES, Adolpho Justo Bezerra, O Brasil e o mundo ásio-africano, Rio
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(Org.). – Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília:
Fundação Alexandre Gusmão, 2007. Volume 1: documento 14, artigo “Nova política
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Volume 2:
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Disponível em: http://www.unesp.br/santiagodantassp
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