Ano XVIII boletim 08 - Maio de 2008
Português: um nome,
muitas línguas
SUMÁRIO
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
PROPOSTA PEDAGÓGICA …............................................................................................... 03
Carlos Alberto Faraco
PGM 1 - LÍNGUA PORTUGUESA: UM BREVE OLHAR SOBRE SUA HISTÓRIA ................ 12
Carlos Alberto Faraco
PGM 2 - UMA LÍNGUA, MUITAS GENTES ........................................................................... 22
Silvio Renato Jorge
PGM 3 - A DIVERSIDADE E A DESIGUALDADE LINGÜÍSTICA NO BRASIL ..................... 29
Dante Lucchesi
PGM 4 - VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS FALADO E ESCRITO NO BRASIL .......................... 38
Ana Maria Stahl Zilles
PGM 5 - A DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA DO BRASIL E A ESCOLA .................................. 55
Stella Maris Bortoni-Ricardo
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
2.
PROPOSTA PEDAGÓGICA
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
Carlos Alberto Faraco1
Quando queremos ampliar nosso conhecimento da língua portuguesa e da realidade lingüística
do nosso país, precisamos, antes de qualquer coisa, aprender a nos maravilhar com a
diversidade que aqui existe. Precisamos aprender a nos reconhecer como um país multilíngüe;
precisamos abrir nossos ouvidos e olhos, sem restrições e sem pré-julgamentos, para todas as
variedades do nosso português; precisamos deixar que as inúmeras maneiras de falar a língua
ressoem tranqüilamente em nós e encantem o nosso coração.
Isso, obviamente, não é fácil porque a nossa cultura, tradicionalmente, tem sido intolerante
com muitas das variedades brasileiras do português. E transformou em fator de discriminação
social o modo como parte da população fala a língua.
Por outro lado, nossa cultura tem desmerecido, quando não ignorado, a multiplicidade de
línguas faladas na sociedade brasileira. Somos um país multilíngüe – aqui são faladas
centenas de línguas indígenas e dezenas de línguas de imigração, e há ainda remanescentes de
línguas africanas. Apesar disso, nós temos nos idealizado como um país monolíngüe.
Os efeitos negativos dessas representações culturais não são pequenos. Vários segmentos da
nossa população são prejudicados em razão do modo como falam a língua portuguesa; outros
são prejudicados porque, embora cidadãos brasileiros, não têm o português como sua língua
materna; por fim, a educação que temos dado a nossos estudantes não lhes oferece as
condições para transitar com segurança por entre as variedades do português que existem em
nosso país, em especial no domínio da língua escrita.
Parece claro, então, que precisamos trilhar outros caminhos. Para isso, será indispensável
conhecer melhor nossa história lingüística e reconhecer que somos um país multilíngüe. Será
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
3.
também importante entender por que e como o português se tornou a língua hegemônica do
país, avaliando os custos desse processo e as conseqüências disso tudo para a educação.
Ao mesmo tempo, será indispensável nos abrirmos positivamente para as muitas variedades
brasileiras do português, compreendendo como a língua existe socialmente e porque ela é tão
diversificada.
Teremos, desse modo, dado passos importantes para nos livrar de atitudes intolerantes e
discriminatórias. Mais ainda: tendo essa compreensão, vamos poder garantir que a escola
passe a valorizar nosso patrimônio lingüístico. Ao mesmo tempo, vamos poder assegurar que
ela seja, de fato, um centro de promoção do nosso português, da sua diversidade, da sua
riqueza, e ofereça aos estudantes uma educação lingüística que lhes dê trânsito livre e seguro
por entre as muitas variedades, faladas e escritas, que constituem a língua no Brasil. Só assim
terão eles condições de ampliar suas competências lingüísticas e de se tornar participantes
efetivos das nossas práticas socioculturais.
Embora tudo isso seja bastante claro e óbvio, todos sabemos das dificuldades que temos tido
para mudar as concepções, atitudes e comportamentos nesta área. Basta lembrar, nesse
sentido, que estas questões têm sido – há pelo menos trinta anos – extensamente debatidas
entre nós, em especial no contexto do ensino da língua. No entanto, persistem as atitudes
negativas, os problemas, as incompreensões e as dificuldades da escola para lidar com a
diversidade e para encontrar um norte que assegure uma boa educação lingüística aos alunos.
Estamos, assim, desafiados a contribuir para a mudança dessa situação.
Há ainda um outro aspecto que não podemos deixar de considerar quando tratamos da língua
portuguesa. Como resultado do colonialismo português, ela é hoje uma língua internacional.
Se é importante olharmos para dentro, observando e reconhecendo as variedades do português
que falamos no Brasil, é igualmente importante olhar para fora, buscando conhecer como o
português se materializa nos outros países em que é língua oficial, como expressa a
diversidade cultural desse imenso contingente de mais de 200 milhões de falantes espalhados
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
4.
por quatro continentes e como essas culturas podem se aproximar por compartilharem a
língua.
Para dar uma boa base à nossa discussão, é fundamental lembrar que não existe nenhuma
língua una e homogênea. Qualquer língua é sempre diversificada e heterogênea.
Nós damos às línguas um nome. E este nome é sempre singular (o português, o francês, o
tapirapé, o suaíli). Talvez seja por isso que nós tendemos a imaginar que a língua é uma
realidade una, singular, homogênea e tenhamos dificuldades para conviver com a diversidade.
A língua, no entanto, é sempre plural, diversificada e heterogênea. Por isso é que dizemos que
ela é, de fato, um conjunto de variedades. Não existe a língua de um lado e as variedades de
outro – a língua é o próprio conjunto das variedades.
Poderíamos, então, dizer que uma língua é, no fundo, muitas línguas. Ou, em outras palavras,
o nome singular (português) recobre um balaio de variedades diferentes (“o português são
muitos portugueses”).
E isso é assim porque a língua está profundamente enraizada na vida cotidiana, nas
experiências históricas e culturais de cada uma das comunidades que a falam. Como a vida, a
história e a cultura de cada uma dessas comunidades são muito diversificadas, assim também
será seu modo de falar.
As variedades se diferenciam pelo modo como os enunciados são pronunciados, como as
frases são construídas, como os processos morfológicos (conjugação dos verbos, por
exemplo) se realizam e também pelas palavras que são mais comumente usadas e pelos
sentidos agregados a cada uma delas.
Diante de toda essa grande diversidade, cabe, então, a pergunta: por que podemos dizer que
todas essas comunidades falam a mesma língua? Sabemos que, muitas vezes, os falantes de
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5.
diferentes variedades não se entendem de imediato, isto é, a compreensão entre eles não é
direta. Apesar disso, eles se dizem falantes da mesma língua e, por isso, acabam por encontrar
meios para se entender.
Isso é possível porque acreditamos que as variedades – embora diferentes na pronúncia, no
modo de construir as frases, na realização dos processos morfológicos, no vocabulário mais
usado e nos sentidos que agregam às palavras – partilham, lá no fundo, um núcleo gramatical
(alguns princípios gerais de organização como, por exemplo, a ordem das palavras na frase) e
um vocabulário básico (por exemplo, o nome dos números, de algumas partes do corpo, das
ações do cotidiano e assim por diante).
Sabemos ainda pouco sobre o que constitui, de fato, esse núcleo. No entanto, acreditamos que
ele existe e julgamos que ele resulta da história, ou seja, as comunidades vão se desdobrando,
se estabelecendo em novos espaços, se diferenciando, se misturando e as variedades da
língua, acompanhando esses processos, vão saindo umas das outras, vão se afastando e se
aproximando, vão se interinfluenciando e se mesclando.
Dizemos, então, que falamos a mesma língua quando nossas variedades compartilham um
núcleo comum. É ele que nos permite negociar significações e construir a mútua
compreensão, mesmo quando, num primeiro momento, não conseguimos eventualmente nos
compreender.
Para entender isso mais claramente, imaginemos duas situações. Numa delas, encontram-se
um chinês, um alemão, um brasileiro e um árabe (cada um sabendo apenas sua própria
língua). Na outra, uma moradora de uma vila ribeirinha do Rio Amazonas (Brasil), um
pescador dos Açores (Portugal), um pedreiro de Maputo (Moçambique) e uma feirante de
Luanda (Angola).
Num primeiro momento, haverá dificuldades de comunicação no interior dos dois grupos. No
entanto, os falantes do segundo grupo têm uma vantagem: eles podem mais facilmente
superar essas dificuldades e construir uma base de mútua compreensão por serem falantes de
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
6.
variedades que, embora muito diferentes entre si, são constitutivas da mesma língua, por
compartilharem o mesmo fundamento.
A língua, obviamente, não é só diversidade. Há fatores que contribuem para que certas
variedades tenham ampla circulação social, ultrapassando em muito os limites da vida
cotidiana e das experiências locais.
Podemos fazer menção aqui a dois desses fatores. Nas sociedades modernas, os meios de
comunicação social (em especial o rádio e a televisão) recobrem um território vastíssimo (o
país inteiro) e alcançam as mais diferentes comunidades. As variedades da língua usadas
nesses meios acabam por exercer um papel unificador: por serem ouvidas no país inteiro, elas
constituem um fator de aproximação de comunidades distantes e diferenciadas.
É preciso ficar claro, porém, que essa unidade possibilitada pela tecnologia atual não dissolve
jamais a diversidade. A vida corrente, a história e a cultura locais continuam existindo e se
movendo em suas dinâmicas próprias. As comunidades vivem, no mundo da comunicação
moderna, no entrecruzamento contínuo dos fatores locais (que favorecem a diversidade) com
aqueles de caráter mais geral (que possibilitam uma certa unidade, um certo chão comum).
Outro fator que exerce um papel unificador é a escrita, em especial a que se destina a públicos
amplos, diversos e distribuídos para além de limites estritamente locais. É o caso de parte da
imprensa, das publicações acadêmicas (científicas e filosóficas), dos documentos oficiais de
governo e, em boa medida, da literatura.
Nestes materiais escritos, é costume privilegiar algumas variedades da língua. A escrita – para
alcançar os diferentes públicos a que se destina – tende a se distanciar das características
muito locais. A própria dinâmica histórica das práticas de escrita veio favorecendo a
configuração dessas variedades peculiares a ela, pondo alguns limites à diversidade.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
7.
De novo, essa limitação contribui para uma certa unidade lingüística, sem, contudo, excluir ou
anular a diversidade. Bem ao contrário: parte importante da literatura contemporânea em
português tem sido um espaço de acolhimento das variedades em geral e de um trabalho
interessante e rico com elas no sentido de dar visibilidade à enorme diversidade cultural que
se expressa em português (ou em portugueses) em lugares tão distintos quanto Portugal,
Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e TimorLeste.
Por fim, cabe comentar que a escola exerce também um papel unificador. Como sabemos,
uma de suas principais tarefas é introduzir as crianças no mundo da escrita, alfabetizando-as
(ensinando-as a ler e escrever) e letrando-as (dando-lhes acesso ao vasto universo da cultura
escrita e estimulando-as a efetivamente participar desse universo pela escrita de suas próprias
experiências). Ao cumprir estas tarefas, a escola difunde a escrita e, com ela, promove seu
papel unificador.
No entanto, essa ação primordial da escola não pode nem deve desmerecer a diversidade. A
escola tem de ser uma instituição receptiva às mais diferentes experiências culturais da
sociedade e, ao mesmo tempo, contribuir significativamente para ampliar a vivência
sociocultural dos estudantes, indo além de seus limites locais. Para isso, é importante que eles
compreendam, pelo menos, os seguintes tópicos:
- nosso país é multilíngüe;
- a diversidade do nosso português é riqueza cultural inestimável;
- são errôneos e infundados os valores sociais negativos que recobrem algumas das variedades
do nosso português;
- os falantes vão amadurecendo lingüisticamente à medida que vão se tornando capazes de
circular com segurança por diferentes variedades da língua, desde as mais comuns em suas
relações sociais próximas até as de ampla circulação social; desde as estritamente orais até as
fundamentalmente escritas.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
8.
Nesta série, questões como essas serão trazidas para o debate:
- por que o português se tornou uma língua internacional?
- de que modo as diferentes culturas que se expressam em português podem se aproximar por
compartilharem a língua?
- por que o Brasil, sendo um país multilíngüe, tem se idealizado como monolíngüe?
- como o português se tornou a língua materna da maioria da população em nosso país?
- como se configura, em linhas gerais, o português hoje no Brasil?
- que desafios a diversidade lingüística do Brasil e a variabilidade do nosso português põem à
escola?
Temas que serão debatidos na série Português: um nome,
muitas línguas, que será apresentada no programa Salto para
o Futuro/TV Escola (SEED/MEC) de 26 a 30 de maio de 2008:
PGM 1 - Língua portuguesa: um breve olhar sobre sua história
O objetivo do primeiro programa é rever brevemente aspectos da história do português, em
especial o processo de sua difusão internacional. O programa vai também apresentar a
situação da língua em cada um dos oito países em que ela é oficial, comentando, em especial,
as conseqüências de ela ser majoritária (em Portugal e no Brasil) ou minoritária (nos demais
países).
PGM 2 - Uma língua, muitas gentes
O ponto central do segundo programa é a questão cultural. De um lado, interessa destacar
como a língua portuguesa, por sua variabilidade, dá expressão a culturas diversas; e, de outro,
mostrar como essas culturas podem se aproximar pelo fato de compartilharem a língua.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
9.
PGM 3 - A diversidade e a desigualdade lingüística no Brasil
O eixo do terceiro programa será a diversidade lingüística do Brasil. Serão discutidos aspectos
de nossa história lingüística, de modo a dar relevo ao nosso patrimônio lingüístico. Ao mesmo
tempo, serão apontados e debatidos os conflitos que estiveram na base do processo que tornou
o português a nossa língua hegemônica.
PGM 4 - Variação no português falado e escrito no Brasil
O objetivo do quarto programa é traçar um perfil da variabilidade atual do português em
nosso país. Pretende-se mostrar como as variedades expressam a experiência de vida dos
grupos que as falam e como elas participam fortemente da construção das identidades sociais
(são, por isso, riqueza). Por outro lado, pretende-se destacar as variedades de amplo alcance
social e os seus efeitos unificadores. O desafio é mostrar que as comunidades falantes vivem
no entrecruzamento dos fatores diversificadores com os fatores unificadores. Ou, em outras
palavras, que a unidade e a diversidade não se excluem, mas se interinfluenciam.
PGM 5 - A diversidade lingüística do Brasil e a escola
O tema central do quinto programa é a relação da escola com o caráter multilíngüe do país e
com as diferentes variedades do nosso português. O objetivo maior é defender a importância
de a escola desenvolver uma atitude positiva frente ao modo de falar de seus estudantes,
considerando que ele é a expressão das experiências de vida da respectiva comunidade. Só
vencendo o silêncio histórico sobre nosso multilingüismo e a tradição de intolerância e
depreciação que afeta as variedades e os falantes do chamado português popular é que
teremos um chão firme para construir uma pedagogia capaz de assegurar aos estudantes o
trânsito livre e seguro entre as variedades. Nessa vivência, eles poderão ir se apropriando das
variedades faladas e escritas de ampla circulação social sem que seja necessário desvalorizar
ou proscrever as variedades que já dominam.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
10 .
Bibliografia de apoio
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras
no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
lingüística. São Paulo: Parábola, 2007.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris.
Nós cheguemu na escola, e agora?
Sociolingüística & educação. São Paulo: Parábola, 2005.
ILARI, Rodolfo & BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos/ a
língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. Ensaios para uma sócio-história do português
brasileiro. São Paulo: Parábola, 2004.
__________. “O português são dois...”: novas fronteiras, velhos problemas.
Paulo: Parábola, 2004.
Nota:
Professor da Universidade. Federal do Paraná. Consultor desta série.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
11 .
São
PROGRAMA 1
LÍNGUA PORTUGUESA: UM BREVE OLHAR SOBRE SUA
HISTÓRIA
Carlos Alberto Faraco1
A língua que designamos pelo nome de português é o desdobramento histórico dos falares
românicos (de origem latina) que se desenvolveram no noroeste da Península Ibérica, numa
área que abrange hoje o norte de Portugal e a Galiza (região da Espanha).
Dessa região, tendo por base o Condado Portucalense, avançaram para o sul, no século 12,
forças comandadas pelo conde Afonso Henriques envolvidas no processo histórico da
chamada Reconquista, ou seja, a retomada dos territórios ibéricos aos árabes.
A extensão das fronteiras do Condado para o sul terminou por dar forma a uma unidade
política que logo se consolidou como um reino autônomo, o reino de Portugal, quando, em
1139, depois da batalha de Ourique, o conde Afonso Henriques passou a usar o título de rei.
Poucos anos depois, em 1147, se deu a conquista de Lisboa e, progressivamente, a
incorporação do Alentejo e do Algarve. Na metade do século 13, Portugal tinha já suas
fronteiras atuais claramente definidas.
O deslocamento das fronteiras para o sul, a constituição do novo reino (que se estendia do Rio
Minho ao Algarve), a fixação do seu governo no centro-sul (primeiro em Coimbra e, depois,
em Lisboa) e a permanência da Galiza fora dos domínios de Portugal foram os principais
fatores que concorreram para quebrar, em parte, a unidade lingüística original. A essa língua
antiga os estudiosos costumam dar o nome de galego-português. Nela foi escrita, no século
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12 .
13, uma rica literatura lírica. Foi também utilizada literariamente mesmo por poetas
castelhanos até meados do século 14.
Considerando os processos que afetaram a antiga unidade lingüística românica do noroeste da
península Ibérica e considerando que o nome que damos às línguas é, antes de tudo, um gesto
político-cultural, podemos afirmar que, modernamente, o antigo galego-português se
desdobrou em duas línguas: o galego e o português. A grande semelhança lexical e gramatical
de ambas justifica, porém, que pensemos, no contexto histórico atual, em ações conjuntas das
duas comunidades lingüísticas quando se trata de dar expressão mundial ao grupo dos falares
originários do antigo galego-português.
A partir de meados do século 15, o português – na esteira da expansão marítima de Portugal –
se tornou uma língua internacional, com falantes seus se estabelecendo em enclaves ao longo
da costa do continente africano, alcançando a Índia em 1498, a América em 1500, a China por
volta de 1515 e o Japão em 1543.
A principal característica do império mercantil português na África e na Ásia era o
estabelecimento não de colônias de ocupação territorial e povoamento, mas de pequenos
enclaves que tinham basicamente duas funções: (a) serviam de entrepostos para a obtenção
junto às populações locais dos produtos que movimentavam a rede mercantil portuguesa; e (b)
eram portos de apoio às frotas comerciais que transportavam as especiarias do Oriente para a
Europa.
Em cada entreposto, havia sempre poucos europeus. Apenas o suficiente para garantir a
dinâmica dos negócios. Só assim se explica que um país com cerca de dois milhões de
habitantes tenha sido capaz de dominar, sem concorrência, por praticamente um século, o
comércio marítimo internacional na chamada rota do sudoeste, ou seja, aquela que cobria a
costa africana e chegava à Índia, à Malaca, ao Timor e a Macau.
Se, de um lado, essa característica da expansão de Portugal fez a sua língua ressoar na África
e na Ásia, de outro, deu também origem, por força do intercâmbio com as populações locais, a
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13 .
várias línguas de contato – os pidgins e crioulos africanos e asiáticos de base portuguesa. A
maioria destas línguas está hoje desaparecida; outras sobrevivem, seja como línguas nacionais
(Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe), seja como expressão de pequenas
comunidades em Goa e Malaca, com resquícios em Macau e Timor.
No século 17, Portugal perdeu para os holandeses boa parte dessa rota comercial. De seus
entrepostos asiáticos, manteve apenas Macau (até 1999), Timor-Leste (até 1975) e Damão,
Diu e Goa, na Índia (até 1961).
Com a perda dos entrepostos, retraiu-se também a presença da língua portuguesa na Ásia, que
já não era grande quando do domínio português, considerando que a população que a falava
como primeira língua sempre tinha sido numericamente pouco expressiva.
À medida que Portugal foi perdendo sua rota asiática para os holandeses, crescia sua presença
no Atlântico Sul, presença que se sustentava em dois eixos integrados (cf. Alencastro, 2000).
O primeiro foi a ocupação agrícola do Brasil a partir da segunda metade do século 16. Nesse
processo, uma economia de coleta (baseada no corte do pau-brasil e na exploração do trabalho
indígena) foi transformada numa economia de produção açucareira intensiva baseada no
trabalho escravo.
O segundo eixo era o tráfico de escravos africanos que fornecia a mão-de-obra demandada
pela economia açucareira da América. Sustentados pelos entrepostos da costa africana, os
comerciantes portugueses – ou, mais propriamente, luso-brasileiros – controlavam esse tráfico
praticamente sem concorrência e forneciam escravos não só para o Brasil (seu principal
destino), mas também para as colônias açucareiras nas Antilhas controladas por espanhóis,
franceses, holandeses e ingleses (cf. Silva, 2003).
No caso do Brasil, portanto, a presença portuguesa não se limitou a estabelecer entrepostos
comerciais, mas constituiu uma colônia de exploração e povoamento permanente.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
14 .
Antes de impulsionar a produção açucareira no Brasil, os portugueses a tinham desenvolvido
nas ilhas e arquipélagos do Atlântico ocupados por eles já nas primeiras décadas da expansão
marítima. A ilha da Madeira foi ocupada em 1419, os Açores em 1431, Cabo Verde em 1460
e São Tomé e Príncipe em 1470.
Cada um desses empreendimentos coloniais teve história e desdobramentos diferentes, o que
se reflete na atual situação de cada um deles. Nenhuma dessas áreas era habitada ao tempo da
chegada dos primeiros navegadores portugueses. Sua povoação incluiu, no início, escravos
trazidos da costa africana para trabalharem nas plantações de algodão (em Cabo Verde) e de
cana-de-açúcar nos demais territórios insulares. No entanto, com o passar do tempo, duas
situações diferentes se configuraram. Para Madeira e Açores foram sucessivamente
deslocados, em maior número, povoadores vindos de Portugal. Já Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe passaram a receber majoritariamente populações vindas de diferentes pontos da costa
africana.
Esse perfil profundamente heterogêneo de sua população e a situação dessas ilhas no contexto
colonial português no Atlântico (foram basicamente entrepostos do tráfico de escravos)
favoreceram o desenvolvimento de línguas crioulas de base portuguesa ainda hoje faladas
pela maioria das respectivas populações (a saber, o crioulo cabo-verdiano e o são-tomense).
Também o território da hoje Guiné-Bissau não foi mais que um entreposto, seja, num
primeiro momento, para o comércio do ouro com as populações saarianas, seja,
posteriormente, para o tráfico de escravos. A diversidade étnica e lingüística do território e o
fluxo do tráfico provocaram também ali o surgimento de uma língua crioula de base
portuguesa (o crioulo guineense) que é hoje falada pela maior parte da população, ao lado de
dezoito outras línguas africanas.
Em Angola e Moçambique, a ocupação se fez, de início, basicamente na costa e assim
permaneceu até as últimas décadas do século 19. Sua função principal era fornecer escravos
para o tráfico. Com a extinção deste em 1850, Portugal – que perdera o Brasil em 1822 –
passou a dar maior atenção a esses dois territórios. Estimulou seus emigrantes a se dirigirem
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para lá com vistas à sua ocupação. Com isso, Portugal procurava repor – pela intensificação
da produção agrícola e da exploração das riquezas minerais – as perdas econômicas
decorrentes do fim do tráfico de escravos. Ao mesmo tempo, buscava garantir seu domínio
colonial destes territórios na época em que Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Bélgica
desenvolviam suas agressivas políticas neocoloniais, dividindo entre si o continente africano.
Quando se iniciou a chamada descolonização da África, na década de 1950, Portugal – sob a
ditadura salazarista desde 1928 – se recusou a abrir mão dos territórios que ocupava. Em
1961, viu seus enclaves indianos serem invadidos pela Índia e incorporados a ela. E, em
seguida, passou a se envolver num confronto militar com os movimentos nacionalistas de
Angola, Moçambique e Guiné-Bissau que lutavam pela independência de seus países.
A guerra deixou Portugal cada vez mais isolado internacionalmente e, ao mesmo tempo,
esgotou o país. Basta dizer que 40% do orçamento português para o ano de 1970 eram
destinados aos gastos com a guerra na África (para detalhes desta situação, ver Maxwell,
2007).
Em 1974, a chamada Revolução dos Cravos – movimento desencadeado pela oficialidade
jovem das Forças Armadas – derrubou a ditadura e, na seqüência, desmontou a estrutura
colonial, reconhecendo, entre fins daquele ano e meados de 1975, a independência de Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.
Cada um desses novos países adotou a língua portuguesa como língua oficial. Apesar de ser a
língua do antigo colonizador, estes países consideraram que ela poderia ser útil para lhes
facilitar o intercâmbio internacional e mesmo a organização nacional, atribuindo a ela o
estatuto de língua comum em suas sociedades em geral multilíngües (estima-se – as
estatísticas são ainda frágeis – que são faladas perto de 15 línguas autóctones em Angola, 18
na Guiné-Bissau e 20 em Moçambique).
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16 .
A situação política pós-independência foi particularmente traumática em Angola e
Moçambique, que se viram envoltos em trágicas guerras civis. Moçambique só veio a
conhecer a paz em 1992, e Angola apenas em 2002.
Em 1975, três dias depois da declaração da independência, o Timor-Leste foi invadido pela
Indonésia e brutalmente dominado até 1999, quando, num referendo conduzido pela ONU, a
maioria absoluta da população optou pela independência.
Podemos resumir a situação atual da língua portuguesa no mundo apontando os seguintes
aspectos:
a) ela é a língua hegemônica em apenas dois países: Portugal e Brasil;
b) é a língua oficial de oito países (Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste) e de Macau, que foi incorporado em 1999
à China como Região Administrativa Especial;
c) é falada em comunidades de imigrantes em vários lugares do mundo, dentre outros nos
Estados Unidos, no Canadá, na Venezuela, na África do Sul, na França, na Alemanha, no
Japão, no Paraguai, na Austrália;
d) é ainda falada em pequenas comunidades remanescentes do colonialismo português na
rota da Ásia, como em Goa (Índia); ou em áreas de antiga ocupação portuguesa, como no
norte do Uruguai.
Em todos esses contextos, com exceção de Portugal e Brasil, o português é língua minoritária.
No caso das comunidades de imigrantes e das comunidades remanescentes, seu futuro é
incerto. Poderá continuar sendo falada (se essas comunidades mantiverem laços estreitos de
identidade, seja internamente, seja com os países donde se originaram) ou, em caso contrário
e sob pressão da língua majoritária, tenderá progressivamente a desaparecer – como tem
muitas vezes ocorrido com as línguas de imigração.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
17 .
Nos contextos em que ela é língua oficial mas não hegemônica, prevê-se que ela ampliará sua
presença, seja como língua materna, seja como segunda língua. Essa ampliação vai depender
de vários fatores, como a própria dinâmica social (aumento da urbanização e do alcance dos
meios de comunicação social, por exemplo), políticas governamentais (políticas de educação,
por exemplo) e do jogo dos valores sociolingüísticos que afetam o uso e o sentido social do
português e das demais línguas nacionais em sociedades multiétnicas e multilíngües.
Nos países africanos e no Timor, estará sempre presente, como foco de relativa tensão, o
estatuto das demais línguas nacionais, patrimônio de que, certamente, nenhuma dessas
sociedades abrirá mão, considerando sua força identitária.
Do ponto de vista quantitativo, há hoje aproximadamente 220 milhões de pessoas que falam o
português, como primeira ou segunda língua, no mundo2. Isso torna o português a terceira
língua européia mais falada, perdendo apenas para o inglês e o espanhol. Com este
contingente de falantes, está entre as dez línguas mais faladas do mundo, ocupando
possivelmente a sexta posição.
Apesar de ser uma língua internacional e contar com esse expressivo número de falantes, há
peculiaridades que relativizam este seu peso quantitativo e embaraçam, de certa forma, a
possibilidade de ela adquirir uma maior projeção em meio às demais línguas internacionais.
De início, é preciso lembrar que praticamente 85% de seus falantes estão concentrados em um
único país – o Brasil. Parece inegável que essa alta concentração de falantes dá ao Brasil um
papel fundamental no futuro da língua e de sua difusão internacional. No entanto, o Brasil
parece não querer assumir esse papel. É ainda pouco institucionalizada a ação do país na
difusão da língua no exterior, na cooperação lingüístico-cultural sistemática com os demais
países de língua oficial portuguesa e mesmo na indispensável promoção da língua no interior
de suas próprias fronteiras.
Mas o Brasil tem também outros problemas que limitam seu protagonismo no âmbito da
gestão e difusão da língua:
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18 .
– os seus índices de analfabetismo são ainda elevados: 12% da população entre 15 e 65 anos
são analfabetos. Por outro lado, são altos os índices do chamado analfabetismo funcional.
Calcula-se que apenas ¼ da população adulta alfabetizada – aproximadamente 26 milhões de
pessoas – alcança nível razoável de domínio funcional da escrita, ou seja, apenas essa
pequena parcela da população é que lê e escreve fluentemente3;
– o sistema educacional, embora tenha universalizado, no fim da década de 1990, o acesso
infantil às primeiras séries do Ensino Fundamental, não conseguiu ainda superar os altos
índices de evasão e o baixo rendimento do trabalho escolar. O Ensino Médio, por sua vez,
está ainda distante de se universalizar – basta mencionar que dos 10 milhões de jovens entre
15 e 17 anos, metade está fora da escola4;
– por fim, o Brasil até hoje não conseguiu resolver adequadamente a questão de sua norma de
referência. Há um conflito histórico entre a norma efetivamente praticada no país (a chamada
norma culta) e a norma gramatical definida artificialmente no século 19 (a chamada normapadrão) e ainda defendida por uma tradição estreita e dogmática, que tem adeptos no sistema
de ensino e nos meios de comunicação social. Embora essa defesa não tenha nenhum
resultado prático, ela tem efeitos negativos sobre o modo como tradicionalmente se representa
a língua no imaginário do Brasil. Nosso português costuma ser visto, com freqüência, como
cheio de erros e deformações. O país tem tido, ao longo de século e meio, grandes
dificuldades para reconhecer seu rosto lingüístico e, em conseqüência, para promover uma
educação lingüística consistente.
É paradoxal que o país tenha realizado, com financiamento público, extensos levantamentos
de sua complexa realidade dialetológica e sociolingüística; tenha feito, já na década de 1970,
um estudo de sua norma urbana falada; disponha de um amplo registro de sua língua escrita
nos últimos 50 anos e não tenha conseguido, ainda, reconhecer adequadamente seu rosto
lingüístico e reconfigurar suas referências normativas, abandonando o artificialismo criado no
século 19.
Um outro aspecto que embaraça a possibilidade de o português adquirir uma maior projeção
em meio às demais línguas internacionais é seu caráter de língua minoritária nos países em
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
19 .
que é oficial mas não hegemônica. Parece estar havendo, principalmente em Angola e
Moçambique, uma expansão de sua presença, pelo menos como segunda língua, entre as
populações mais urbanizadas (as estatísticas são ainda, infelizmente, muito precárias e pouco
confiáveis).
De qualquer modo, é ainda longo o caminho para sua consolidação como língua comum
nestas sociedades. Além disso, são sociedades em que o analfabetismo é muito elevado (em
alguns casos, ele afeta mais de 50% da população), os sistemas educacionais são ainda de
restrito alcance social e os índices de pobreza alarmantes.
Essa situação aponta para a necessidade de uma cooperação sistemática e contínua entre os
países lusófonos, de modo a assegurar a promoção da língua interna e externamente. Os
primeiros passos foram dados com a criação, em 1996, da organização internacional
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Esta, no entanto, não conseguiu ainda
ser, por várias razões, mais que um belo projeto.
Sugestão de leitura
BEARZOTI FILHO, Paulo. Formação lingüística do Brasil. Curitiba: Editora Nova
Didática (atual Editora Positivo), 2002.
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MAXWELL, Kenneth. O império derrotado: revolução e democracia em Portugal. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
20 .
SILVA, Alberto da Costa. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na
África. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira; Editora da UFRJ, 2003.
Notas:
Professor da Universidade. Federal do Paraná. Consultor desta série.
2
Adotamos aqui os dados estatísticos fornecidos pelo Observatório da
Língua
Portuguesa
em
sua
página
na
internet
no
endereço
www.observatoriolp.com, consultado por nós em 02/02/2008.
3
Estamos utilizando aqui os dados do INAF - Indicador de Alfabetismo
Funcional, que é uma pesquisa realizada periodicamente pelo Instituto
Paulo Montenegro, vinculado ao IBOPE. Sua edição de 2005 pode ser
acessada no endereço eletrônico www.ipm.org.br – consultado por nós em
02/02/2008.
4
Dados sobre a educação brasileira podem ser obtidos na página do INEP –
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira em
www.inep.gov.br – consultado por nós em 02/02/2008.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
21 .
PROGRAMA 2
UMA LÍNGUA, MUITAS GENTES
Silvio Renato Jorge1
É José Saramago quem afirma, ao pensar sua relação com a língua portuguesa: “Quase me
apetece dizer que não há uma língua portuguesa; há línguas em português” 2. De certa forma, o
comentário do escritor português reforça as considerações já tão divulgadas acerca do caráter
múltiplo de nosso idioma, capaz de manter-se uno em sua enorme diversidade. O português
compõe, hoje, a cultura de várias nações, em diversas partes do mundo. Por isso, creio que
podemos ler aí também a referência à estreita relação entre língua e cultura e, por conseguinte,
entre língua e identidade. A língua portuguesa, em suas variações, possibilita a manifestação
de culturas diversas, sem, contudo, deixar de afirmar a possibilidade de diálogo entre tais
culturas.
Esse diálogo, no entanto, não deve ser visto como um instrumento de homogeneização ou de
anulação das diferenças. A célebre afirmação “minha pátria é a língua portuguesa” pode
ocultar a associação entre o uso do legado lingüístico do colonizador e a manutenção de
princípios e valores próprios do discurso imperialista, em que Portugal aparece como “dono”
da língua e os demais países, por a “usarem” e por terem sidos colonizados por ele, como uma
espécie de inquilinos de sua cultura. Nesse sentido, já o nosso José de Alencar, ao pensar as
relações possíveis entre nós brasileiros e a língua trazida por nosso colonizador, indagava: “O
povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual
pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
Através da distância entre os verbos sorver e chupar e da seleção lexical, Alencar realça o
modo como as diferenças culturais, para além dos hábitos alimentares, podem ser assinaladas
pelo uso da língua. Quando a referência é à Europa, Alencar cita “sorver”, associando o verbo
a frutas de clima temperado; ao passo que o verbo “chupar” – manga, cambucá ou jabuticaba,
frutas tropicais – estabelece relação explícita com o povo brasileiro. Por isso, é seguindo um
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
22 .
percurso pautado na diferença que devemos considerar a partilha desse idioma, hoje presente
como língua oficial em quatro continentes.
É importante considerar, portanto, que se Angola, Brasil, Cabo Verde, Goa, Macau,
Moçambique e Portugal, para citar alguns desses espaços habitados pela língua portuguesa,
partilham do uso de uma mesma língua é porque vivenciaram um passado colonial comum,
com tudo o que isso pode representar de uma memória marcada por afetos, mas, também – e
sobretudo no caso dos países africanos, em que a independência é ainda recente – pela
violência. É esse passado colonial, associado às especificidades de cada local, que irá
determinar o curso da língua portuguesa nas diversas regiões, influenciando o modo como
chega aos dias de hoje.
Vejamos, por exemplo, o caso de Cabo Verde, arquipélago situado no Oceano Atlântico e
inicialmente desabitado, onde o colonizador aportou para estabelecer um entreposto no
negócio da escravatura. Para lá foram levados escravos de grupos étnicos distintos, mistos, e
essa população, para sua própria sobrevivência, teve de renunciar às suas línguas maternas,
propiciando o nascimento de uma língua auxiliar que teve o nome de pitim. Com o passar do
tempo, o pitim passou por um processo de complexificação, com base no léxico do português,
dando origem a uma nova língua, o criollo. Assim, diferentemente do que ocorre em Portugal,
em Cabo Verde o português é língua segunda, desempenhando funções de língua oficial, mas
substituído no dia-a-dia pelo criollo.
Em Angola e Moçambique, a presença do português, inicialmente superstrato, foi assegurada
pelos colonos que lá se estabeleceram, principalmente durante os séculos XIX e XX. Tais
colonos acabaram por impor um modelo de prestígio social em que o domínio da língua
portuguesa era pré-requisito para aqueles que quisessem ascender socialmente. Além disso, o
seu uso era obrigatório no contato interétnico. Com isto, podemos afirmar que o português só
se apresenta como língua materna para aquelas populações africanas que sofreram esse
contato de forma intensa, a partir da migração interna para as grandes cidades.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
23 .
Na Ásia, formaram-se alguns criollos de base portuguesa em lugares como Índia, Ceilão,
Macau e Timor. Tais criollos se extinguiram progressivamente e, segundo Rita Marquilhas
(SANTOS et al., 1998, p. 28), nos locais em que se manteve a administração portuguesa até o
século XX – como Goa e Macau – ocorreu uma “descrioulização”, pois diversas estruturas da
língua foram se aproximando do português falado em Portugal e apenas deixaram vestígios
naquilo que hoje é o português falado por algumas comunidades macauenses e goesas.
Percebe-se, nitidamente, uma diferença no modo como a permanência do português se
manifesta nessas sociedades. Em Goa e Macau, o idioma se une ao desejo de afirmação
identitária de parcela da comunidade, reforçando o que foi a presença duradoura do
colonizador. Na África, em geral, por conta das vicissitudes de diversos mecanismos ligados
ao processo de independência e a questões de ordem política, a presença da língua faz parte de
uma intervenção autoritária. Boa parte da população de Angola e de Moçambique não fala o
português, principalmente se considerarmos aqueles indivíduos que vivem longe dos centros
urbanos. Nos dois países há mais de uma dezena de línguas nativas diferentes entre si. Dessa
forma, se por um lado o português pode vir a ser utilizado como um instrumento de
integração nacional, por outro, ao menos em um primeiro momento, para esses indivíduos ele
funcionará sempre como uma segunda língua.
Portanto, após esse breve percurso, parece claro que falar português em Portugal não é o
mesmo que falar português no Brasil ou, sobretudo, na África de língua portuguesa. Ao
usarmos uma língua em condições de monolingüismo, bilingüismo ou de multilingüismo,
estaremos diante de condições diversas, que impõem opções distintas, até mesmo em uma
perspectiva ideológica. Mais uma vez citando Marquilhas (Ibidem, p. 29), “falar português em
Portugal, independentemente do dialeto de origem, não implica uma escolha consciente entre
dois códigos distintos”. No Brasil, a opção por um socioleto culto é condição sine qua non
para que o indivíduo se integre a uma certa elite socioeconômica, ou seja, o nosso aparente
monolingüismo – que já sabemos ser falso – escamoteia a complexidade de nossas relações
sociais. Nas condições de plurilingüismo próprias de Angola e Moçambique, há possibilidade
de opção por códigos distintos por parte da população, o que significa que o uso do português
acarreta uma escolha significativa, reforçando a posição político-ideológica do indivíduo.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
24 .
A literatura, como produção cultural diretamente ligada ao exercício da língua, não poderia
afastar-se dessas questões. De Alencar aos autores ligados ao nosso Modernismo, um largo
caminho se desenvolveu, mas é curioso notar como se acentuou a reflexão acerca da
especificidade do português no Brasil, através da recuperação, nos textos, de elementos
próprios de nossa linguagem oral. Oswald de Andrade, ciente dos problemas referentes ao uso
da língua – “Tupy or not tupy, this is the question” – levanta com extrema ironia as distinções
existentes entre os diferentes modos de dizer, como podemos observar no poema “Brasil”:
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval.
Aqui se manifesta a consciência de uma cultura mestiça que não abre mão de exercitar todas
as suas possibilidades, ao mesmo tempo em que, pelo viés da ironia, exerce um movimento de
apropriação antropofágica da língua do colonizador. É conhecida a proposta oswaldiana de reelaboração do que recebemos de fora – língua, arte, cultura em geral – a partir de um processo
em que o elemento estrangeiro entra em diálogo com o nacional, gerando um terceiro termo,
diferente, mas que contém os dois primeiros. A valorização de uma “língua brasileira”,
conforme é apresentada pelos autores dessa geração, parte de tal perspectiva, já de certo modo
vislumbrada por Lima Barreto e intuída por Alencar.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
25 .
No contexto africano, alguns outros elementos devem ser identificados. Na verdade, parte
significativa da literatura produzida nesses países a partir da década de quarenta do século
vinte possui um caráter emancipatório, ocupando lugar de destaque na luta pela liberdade.
Vários escritores ajudaram a construir o processo de independência, seja através da escrita,
seja pela participação ativa na luta de libertação e, mais tarde, nos quadros de governo. Nesse
universo, não é difícil supor a importância que autores brasileiros, sobretudo aqueles ligados
às experiências estéticas do Modernismo e também ao romance regionalista de 30, assumiram
nesse contexto, sugerindo caminhos e novas perspectivas. Ao lado da reflexão acerca das
contradições sociais próprias das sociedades periféricas – constantemente referidas nos
romances de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz –,
importou aos autores africanos o exercício de dessacralização da língua portuguesa,
compreendida em toda a sua potencialidade na constituição de novas formas de dizer. Porém,
é importante destacar que, em termos ideológicos, para estes escritores o uso do português
trazia um problema imediato: como criar um texto capaz de evidenciar a ruína do sistema
colonial tendo como ponto de partida a língua difundida pelo colonizador? Aliás, uma língua
que era apresentada não apenas como fator de união, mas, principalmente, como responsável
por anular as diferenças culturais entre a metrópole e as províncias, com clara prevalência
daquela. Para esses autores – dos quais poderíamos destacar, a título de exemplo, o poeta José
Craveirinha, em Moçambique, e, mais tarde, o romancista Luandino Vieira, em Angola – foi
necessário ir além da incorporação de elementos próprios do português oral, em sua forma
mais coloquial. O que se dá nessas literaturas é a incorporação de diversos elementos das
línguas indígenas: do léxico a determinadas características sintáticas na construção da frase,
realiza-se uma “implosão” do português como usado pelo colonizador. Os versos de “Sangue
da minha mãe” (fragmento), de Craveirinha, incorporando características da língua ronga,
mostram com clareza esse processo:
Xipalapala3 está chamar
Oh, sangue de minha mãe
Xigubo4 vai começar
Xigubo vai rebentar
E xipalapala está chamar sangue de minha mãe. [...]
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
26 .
Esse exercício da diferença traduz, da mesma forma que o poema de Oswald, o desejo de
apropriar-se da língua portuguesa para, com ela, expressar o que há de específico nas culturas
de cada grupo. Enfrentando o discurso da grande civilização portuguesa conforme
apresentado no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, os poemas que destacamos buscam
apoio em uma concepção da língua portuguesa que realça sua variabilidade e sua capacidade
de interação com outros sistemas lingüísticos. Através deles, percebemos que a língua não
impõe um modelo cultural, mas entra em diálogo com a realidade social que a circunda.
Mesmo ao apontarmos toda essa diversidade e as questões políticas que envolvem o uso do
português em suas diversas realidades, não é possível descartar o caráter integrador que o uso
de uma mesma língua pode gerar. Vivemos, como já o disse Benjamin Abdala Jr., em um
mundo de fronteiras múltiplas e, com isto, se torna indispensável considerar o valor
estratégico de associações supranacionais comunitárias. O que nos une aos países de língua
oficial portuguesa não é apenas o uso de uma língua em comum, ainda que isso facilite todo o
processo de trocas culturais: é bom lembrar, por exemplo, o sucesso das novelas e da música
brasileiras na maioria desses países e o modo como esses produtos acabam por interagir com
as culturas locais. O que nos une é também uma infinidade de laços advindos do
compartilhamento de séculos de história em comum e da experiência colonial, responsável
por um excesso de violência capaz de atingir a todos, colonizados e colonizadores.
Nesse sentido, mostra-se coerente a busca por estabelecer laços comunitários sob a égide da
língua portuguesa, desde que esta concorra para aproximar nações sem, no entanto, anular as
diferenças. Somos todos falantes de uma mesma língua e, no entanto, para cada um de nós –
brasileiros, portugueses, africanos ou asiáticos – ela se manifesta na inteireza de suas
singularidades.
Indicação de Leitura:
ABDALA JR., Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre
mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
27 .
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO / SECRETARIA DA EDUCAÇÃO CONTINUADA.
Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília:
SECAD, 2006.
Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. Sonhos d’ouro. São Paulo: Ática, 1981.
ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966.
CRAVEIRINHA, José. Obra poética. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2002.
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos et al. O que é esta tal comunidade? Identidade
nacional nos territórios de fala portuguesa. In: IV CONGRESSO LUSO-AFROBRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 1 a 5 de setembro de 1996, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: IFCS, 1998, p. 25-36.
Notas:
Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF.
2
Depoimento apresentado no documentário Língua: vidas em português,
dirigido por Victor Lopes.
3
Xipalapala: trompa ou trombeta feita com o chifre do antílope palapala e
utilizada para convocar o povo.
4
Xigubo: dança de exaltação guerreira, que pode ocorrer antes ou depois
da batalha.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
28 .
PROGRAMA 3
A DIVERSIDADE E A DESIGUALDADE LINGÜÍSTICA NO
BRASIL
Dante Lucchesi1
São faladas no Brasil atualmente cerca de 200 línguas indígenas que devem ser preservadas
como forma de conservar a riqueza de nosso patrimônio cultural. Da mesma forma, as
comunidades lingüísticas de alemães, italianos, japoneses e de tantos que para cá vieram só
vêm enriquecer o mosaico cultural deste país, que tem se formado a partir do encontro de
diferentes povos. A importância de se reconhecer e preservar a diversidade e o plurilingüismo
no Brasil é cada vez maior, na medida em que o país está se tornando praticamente
monolíngüe, pois cerca de 98% da sua população tem o português como língua materna. O
reduzido e localizado plurilingüismo atual deixa no esquecimento o fato de que, no passado, o
português era apenas uma das muitas línguas que se falavam no Brasil.
Quando se iniciou a colonização, na década de 1530, habitavam o território brasileiro pelo
menos um milhão e meio de índios. Esse número foi drasticamente reduzido já no primeiro
século de colonização, em função do genocídio que se perpetrou sobretudo nas populações
indígenas da costa brasileira, desde o Rio de Janeiro até Pernambuco. Entretanto, o
nascimento de filhos dos colonizadores portugueses com as mulheres indígenas em algumas
regiões do país resultou na formação de uma sociedade mestiça, cujos membros eram
chamados de mamelucos. A língua familiar das mulheres e crianças era uma língua de base
tupi, chamada língua geral. Só uma reduzida parcela dos homens ligados à administração
colonial dominava plenamente a língua portuguesa, que as crianças aprendiam quando tinham
a oportunidade de ir à escola, conforme o testemunho histórico do grande padre jesuíta
Antônio Vieira, que nos conta também que o uso da língua geral predominou na sociedade
paulista até o século XVII, deixando marcas extensas na sua toponímia (Ibirapuera, Morumbi,
Anhangabaú, etc.). Do Maranhão, o uso da língua geral se estendeu para a região amazônica,
sendo ainda falada, com a denominação de nheengatu, que significa ‘língua boa’.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
29 .
Por outro lado, já nas últimas décadas do século XVI, começaram a ser trazidos negros
escravizados do continente africano, sobretudo para o trabalho forçado nas grandes plantações
de cana-de-açúcar. A mão-de-obra africana foi o motor dos principais ciclos econômicos no
período colonial e do Império: tanto do ciclo da cana-de-açúcar, quanto do ciclo do ouro, no
século XVIII e o do café, no século XIX. Em cerca de 300 anos de tráfico negreiro (desde
1550 até 1850, aproximadamente), foram trazidos para o Brasil pelo menos quatro milhões de
africanos, que falavam cerca de 200 línguas diferentes. Os negros escravizados eram
capturados basicamente em duas regiões da África: uma que compreende o território atual das
repúblicas do Togo, do Benin e da Nigéria; e outra que se concentrava em Angola, atingindo
também o Congo. Na primeira região, predominavam os falantes das línguas iorubá, ewe e
fon; a segunda compreendia os falantes das línguas banto, principalmente o quimbundo, mas
também o quicongo e o umbundo.
A primeira gramática do quimbundo foi escrita em Salvador por um padre jesuíta, em 1694, o
que revela que nessa época a maioria dos escravos da cidade da Bahia falava essa língua. É
provável que o quimbundo também fosse usado em Alagoas, no quilombo dos Palmares, que
foi desbaratado nessa altura. Um português escreveu um manual de conversação da língua fon
em Vila Rica, em 1734, o que mostra que essa língua era corrente entre os escravos da região
mineira na primeira metade do século XVIII. Os primeiros líderes das revoltas de escravos
que aterrorizam a Bahia, entre 1807 e 1835, eram hauçás, convertidos ao Islã, e alfabetizados
em árabe. Foram sucedidos pelos iorubás, que protagonizaram a famosa Revolta dos Malês,
nome que designava os muçulmanos na sociedade baiana da época. E o médico Nina
Rodrigues, em um estudo antropológico pioneiro, registrou o uso de seis línguas africanas em
Salvador no final do século XIX, afirmando que o iorubá era de uso corrente entre os
africanos, seus descendentes e mestiços.
Mas, se até meados do século XIX o português tinha de conviver, muitas vezes em situação
de inferioridade, com as línguas indígenas e africanas, o colonizador foi impondo a sua
língua, em função do prestígio social e do poder econômico, sem deixar de recorrer à
violência e à repressão aberta à religião, à cultura e à língua dos povos dominados. Em 1757,
um decreto do governo do Marquês de Pombal proibia o uso da língua geral no Brasil,
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
30 .
afirmando que o seu uso poderia levar à ruína do domínio colonial. Os escravos africanos
eram deliberadamente misturados para que não pudessem se comunicar em suas línguas
nativas e, com isso, tramar rebeliões. Até meados do século XX, as manifestações religiosas e
culturais dos africanos, como o candomblé e a capoeira, eram reprimidas pela polícia. E
suprema ironia: se hoje o carnaval baiano é mundialmente famoso graças aos blocos afro,
como o Ilê Ayê e o Olodum, o Jornal das Notícias, da elite baiana da época, deplorava nos
anos de 1901 e 1902, a presença no carnaval dos “grupos africanizados de canzás e búzios”,
que “deprimem o nome da Bahia”. E o jornal chegava mesmo a pedir a intervenção policial,
afirmando que: “não seria má a proibição desses candomblés nas festas carnavalescas”.
A desarticulação das redes sociais e familiares dos africanos, durante a escravidão, e a força
da repressão à sua cultura fizeram com que nenhuma língua africana se conservasse no Brasil.
Sobreviveram apenas as línguas rituais no espaço de resistência dos terreiros de candomblé, e
duas comunidades rurais isoladas de afrodescendentes, em São Paulo e Minas Gerais, que
ainda usam uma língua secreta com base em um vocabulário de origem banto. Até a
contribuição vocabular africana para o português é pequena, restringindo-se às áreas em que a
sua influência é maior, a culinária e a religião: abará e acarajé, orixá, axé e Iemanjá (de
origem iorubá); e, obviamente, à escravidão: senzala, mucama, mocambo e quilombo (de
origem banto). Como os falantes das línguas banto foram mais representativos durante todo o
período da escravidão, são dessas línguas as poucas palavras que passaram a integrar o
vocabulário básico do português brasileiro: caçula, moleque, molambo, camundongo e
cachaça.
O extermínio e o processo de aculturação forçada dos povos indígenas em mais de 500 anos
de colonização também levaram ao desaparecimento da maioria das línguas indígenas no
Brasil. E das remanescentes, a maioria corre sério risco de extinção, contando muitas vezes
com pouco mais de uma dezena de falantes idosos. E a contribuição das línguas indígenas
para o vocabulário do português é quase que exclusivamente de origem tupi, restringindo-se,
como seria natural, à fauna e à flora: caju, abacaxi, mandioca, tatu, tamanduá etc.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
31 .
Mas se a língua portuguesa se impôs para praticamente toda a sociedade brasileira, ela não se
impôs de maneira igual. Como a língua reflete a estrutura social da comunidade que a usa, as
desigualdades da língua portuguesa no Brasil refletem as desigualdades da sociedade
brasileira.
A língua nas sociedades ditas civilizadas apresenta normalmente diferenças que refletem as
diversas formas de organização social. Existe, por um lado, a língua do espaço institucional e
do saber formalizado (usada no parlamento, nas repartições públicas, nos documentos oficiais,
no ensino, nas instituições de pesquisa, e no que se chama de alta cultura), que é chamada de
norma culta. A norma culta se distingue da linguagem familiar, da convivência informal entre
vizinhos, da língua da cultura e das festas populares, que podemos chamar de linguagem
coloquial. A norma culta é regida por um modelo do bom uso da língua, fixado pela tradição
literária, dos escritores clássicos, uma língua ideal, codificada nos livros de gramática, que
constitui o padrão normativo da língua, ou simplesmente norma padrão. As pessoas
escolarizadas procuram ajustar a sua fala e sobretudo a sua escrita ao padrão normativo, mas
nem sempre o que escrevem e principalmente o que falam está em conformidade com os
modelos prescritos pela tradição gramatical; daí a diferença entre a norma culta e norma
padrão, que muitas vezes escapa à compreensão dos gramáticos normativistas. Uma outra
divisão lingüística relevante é a que separa a cidade da zona rural. A normativização está
muito mais presente nos centros urbanos, onde se concentram os espaços institucionais, do
que no campo, onde a linguagem é mais conservadora e mais distante do padrão.
Todas essas diferenças sociais da língua se intensificam com a imensa desigualdade
socioeconômica da sociedade brasileira. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
revelou recentemente que cerca de 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas)
detém uma renda equivalente à renda dos 50% mais pobres (86,5 milhões). Ainda segundo
essa pesquisa, o Brasil é uma das nações mais socialmente injustas do planeta, sendo superada
apenas por Serra Leoa, na África, no aspecto da desigualdade na distribuição de renda, em
uma lista de 130 países. No Brasil, só uma minoria tem acesso à educação e à assistência
médico-hospitalar de qualidade e ao espaço da cidadania, enquanto a grande maioria da
população ainda está lutando pelos direitos sociais básicos e pela cidadania plena. Isso se
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
32 .
manifesta na polarização sociolingüística do Brasil, que tem, de um lado, a linguagem das
pessoas que têm acesso à escolarização e à cidadania, a norma culta brasileira, e a linguagem
da grande maioria de excluídos e com pouca ou nenhuma escolarização, a norma popular.
Do ponto de vista lingüístico, a diferença mais notável entre a norma culta e a norma popular
é a freqüência no emprego das regras de concordância nominal e verbal, que é um verdadeiro
divisor de águas na realidade lingüística do Brasil. Enquanto uma pessoa escolarizada diz
normalmente “meus filhos mais velhos já estão na escola”, uma pessoa sem escolaridade no
interior do país diz: “meus filho mais velho já está na escola”. Outra diferença é que,
enquanto na norma culta o pronome pessoal muda de forma quando muda de função sintática
(a chamada flexão de caso), isso muitas vezes não ocorre na linguagem popular. Assim, na
fala culta temos “nós estávamos discutindo, quando João nos encontrou”, e na norma popular:
“nós tava discutindo quando João encontrou nós”. Na norma popular, a indeterminação do
sujeito é feita normalmente sem a partícula se: “planta muita mandioca no Nordeste”; ao invés
de: “planta-se muita mandioca no Nordeste”. E em comunidades rurais afro-brasileiras
isoladas, muitas delas provenientes de antigos quilombos, as diferenças podem ser ainda mais
radicais, sendo possíveis frases como ‘eu trabalha muito no roça”, sem concordância verbal
com a 1ª pessoa e sem concordância de gênero; e “dei os meninos o remédio” (ao invés de
“dei o remédio aos meninos”).
Tudo isso faz com que a língua padrão seja quase uma língua estrangeira para um falante da
norma popular, criando sérios obstáculos para a alfabetização e para o ensino de língua
portuguesa nas escolas públicas da periferia das grandes cidades e da zona rural. Contudo,
mais grave ainda é o preconceito, que usa as diferenças lingüísticas como um poderoso
mecanismo de dominação e exclusão política e social. As formas da língua popular podem
atrair o estigma social sobre os seus usuários. Parte da elite brasileira, por exemplo, expressa
o seu descontentamento com a presença de um torneiro mecânico na Presidência da República
dizendo que quem não faz corretamente as concordâncias não é capaz de governar o país.
Mas todo esse preconceito não tem o menor fundamento lingüístico. Faz parte do
funcionamento de toda língua viva a possibilidade de dizer a mesma coisa de formas
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
33 .
diferentes, é o que se chama de variação lingüística. E, no plano estritamente lingüístico, não
há razão para considerar uma forma superior a outra. A falta de concordância nominal e
verbal, por exemplo, não compromete o poder expressivo de uma variedade lingüística. Uma
boa parte dos mais importantes textos da civilização ocidental foi escrita em duas línguas que,
como a nossa norma popular, praticamente não têm concordância nominal e verbal: o francês
e o inglês. É possível escrever um ensaio filosófico ou um artigo científico em português sem
usar as regras de concordância, pois a coerência e a articulação de um texto não dependem do
emprego dessas regras. Isso só não acontece porque as pessoas que escrevem ensaios e artigos
científicos estão habituadas a ler textos que empregam tais regras, de modo que elas passam a
empregá-las naturalmente. A difusão da norma culta ocorre paralelamente à difusão do saber
e à ampliação do universo da cidadania, como o demonstram as pesquisas sociolingüísticas,
que revelam que, nas comunidades de fala popular e rural, os mais jovens empregam mais as
regras de concordância do que os mais velhos. Isso é o reflexo da massificação da rede
pública de ensino e do vertiginoso crescimento dos meios de comunicação de massa. Os mais
jovens fazem mais concordância porque freqüentaram ou freqüentam a escola e assistem mais
televisão do que os mais velhos.
Mas, se a difusão da norma culta tem um caráter democrático porque está relacionada ao
acesso ao conhecimento formal e à cidadania, o seu ensino não deve ser feito em função da
discriminação da norma popular e dos seus usuários. Nas últimas décadas, a consciência
social tem avançado muito em relação ao respeito às diferenças, não se admitindo mais que
uma pessoa seja discriminada pela cor da sua pele ou pela sua opção sexual, mas a língua
ainda permanece um espaço de intolerância, sendo normal uma pessoa ser ridicularizada por
sua forma de falar. Isso se deve à grande ignorância na sociedade em relação à pluralidade da
língua, alimentada pela mídia conservadora com seus programas de “auto-ajuda gramatical”,
que só reforçam o preconceito lingüístico. Tão importante quanto ensinar as formas da norma
culta é desenvolver no aluno a consciência e o respeito à diversidade lingüística. A fala do
povo deve ser respeitada como se respeita a cultura popular. E nomes como Patativa do
Assaré e Adoniran Barbosa demonstraram que é possível compor obras de grande valor
artístico e estético empregando a norma popular. Além disso, as diferenças entre as normas
culta e popular nada mais são do que o reflexo da história lingüística do Brasil.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
34 .
O ideal lingüístico brasileiro sempre esteve baseado nos padrões de uso da língua de Portugal.
Era natural que, durante todo o período colonial, a Metrópole portuguesa funcionasse como
modelo cultural e lingüístico. Surpreendente é que essa submissão lingüística à antiga
metrópole sobrevivesse à independência política, convivendo, ao longo do século XIX, com
as manifestações de nacionalismo do romantismo brasileiro. Assim, o grande romancista José
de Alencar, que se destacava por sua temática indianista, era duramente criticado pelos
puristas por escrever com uma sintaxe brasileira. Essa submissão diminuiu no século XX,
sobretudo com o Movimento Modernista de 1922. Porém, o nosso padrão normativo ainda é
decalcado dos modelos portugueses, tanto que a maioria de nossas gramáticas afirma que “a
colocação normal do pronome átono é ênclise” (ex.: “encarregaram-me desta tarefa”), quando
a colocação corrente do pronome no Brasil é a próclise (ex.: “me encarregaram desta tarefa”).
Mas, se o comportamento lingüístico de nossas elites tem sido marcado pelo conservadorismo
e pela submissão ao cânone coimbrão, no outro pólo de formação de nossa realidade
lingüística, a língua portuguesa passou por profundas transformações ao ser adquirida por
milhões de africanos escravizados e de índios e ao tornar-se a língua materna dos seus
descendentes. A forma como a língua portuguesa foi imposta a esses segmentos no Brasil se
assemelha muito à forma como surgiram línguas como o crioulo francês do Haiti, o crioulo
inglês da Jamaica e o crioulo português do arquipélago de Cabo Verde.
A maioria das línguas crioulas conhecidas atualmente encontra-se no Caribe, na costa da
África, no sul da Ásia e na Oceania e tem suas origens ligadas ao colonialismo europeu. No
período que se estende do século XV ao XIX, os colonizadores europeus subjugaram pela
força centenas de povos e, através do tráfico de escravos, seqüestraram milhões de indivíduos
de seu ambiente cultural de origem, submetendo-os às mais aviltantes condições de trabalho
forçado. Esses povos eram obrigados a adotar a língua do dominador, que adquiriam
precariamente. E, no fundo das mais abjetas condições sociais, operou-se um milagre
lingüístico. Como flores do pântano, novas línguas emergiram, combinando o vocabulário da
língua dominante com uma gramática inteiramente original.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
35 .
Ao contrário do que preconceituosamente afirmavam missionários e funcionários coloniais, as
línguas crioulas não são versões estropiadas da língua do colonizador, São línguas novas que
gozam de plenitude funcional, como nos mostram as belíssimas canções em crioulo
caboverdiano que nos chegam na voz forte de Cesária Évora, cujo talento é reconhecido
internacionalmente e muito elogiado por Caetano Veloso, um dos maiores nomes da MPB. O
que ocorre é que a estrutura dessas línguas é constituída apenas pelos elementos gramaticais
essenciais ao seu funcionamento. Elementos que não têm valor comunicativo como as regras
de concordância e a flexão de caso dos pronomes estão ausentes na estrutura das línguas
crioulas.
A escravidão no Brasil criou situações muito semelhantes àquelas em que se formaram as
línguas crioulas do Caribe, como o papiamento, um crioulo de origem portuguesa falado nas
ilhas de Aruba, Curaçao e Bonaire. Mas diversos fatores, como o elevado grau de mestiçagem
e as possibilidades de integração e assimilação de crioulos e mestiços que mediavam o
violento processo de opressão e exploração no complexo cenário sociológico brasileiro,
impediram que uma língua crioula se formasse e se mantivesse em uso entre os
afrodescendentes. Mas isso não significa que o contato entre línguas não afetou a transmissão
da língua portuguesa nesses segmentos. Ao contrário, como a maioria dos afrodescendentes e
índio-descendentes se encontra hoje na base da pirâmide social brasileira, é bastante razoável
pensar que as características atuais da norma popular brasileira resultem de mudanças muito
semelhantes àquelas que levaram à formação das línguas crioulas, como têm revelado as
pesquisas sociolingüísticas realizadas recentemente no interior do país.
Portanto, as características da fala popular sobre as quais recai o estigma social do preconceito
lingüístico nada mais são do que o reflexo mais notável do caráter pluriétnico e multicultural
da sociedade brasileira. E cabe à escola resgatar essa consciência histórica e promover o
respeito à diversidade cultural e lingüística. Isso não está em conflito com a tarefa de difundir
a norma culta como forma de ampliar o acesso ao conhecimento e à cidadania, pois a
democratização lingüística do Brasil passa necessariamente pela sua democratização social e
econômica, com o aprofundamento das políticas de distribuição de renda e a inclusão de
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
36 .
milhões de brasileiros no processo político, e – por que não dizer? – lingüístico de decisão
acerca da destinação e do uso das imensas riquezas deste país.
Sugestão de leitura
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português
brasileiro. São Paulo: Parábola, 2004.
Nota:
Professor da Universidade Federal da Bahia.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
37 .
PROGRAMA 4
VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS FALADO E ESCRITO NO BRASIL
Premissas, processos e avaliação social
Ana Maria Stahl Zilles1
1. Premissas
Neste texto, assumimos algumas premissas, que convém explicitar como ponto de partida.
• Todas as línguas são primordialmente faladas, e só secundariamente escritas, tanto na
história de vida de cada pessoa, quanto na história da humanidade e das comunidades.
• Todas as línguas variam no tempo e no espaço, seja este geográfico, social (dada a
conjunção de características de classe social, idade, gênero, profissão/ocupação, religião, etc.)
ou sociointeracional (afirmação de identidades, (as)simetria entre participantes, grau de
sintonia com o interlocutor, direitos e deveres em função do tipo de evento, entre outros
aspectos que serão abordados adiante, na discussão de exemplos).
• A variação e, mais especificamente, a escolha entre variantes está profundamente associada
à construção das identidades sociais: quando falamos como professores, usamos linguagem
distinta daquela que usamos quando falamos como pais, ou filhos, ou amigos.
• A variação pode levar ou não à mudança lingüística. A associação entre variação e mudança
pode ser observada, por exemplo, no uso de a gente em lugar de nós. Neste caso, trata-se,
evidentemente, de mudança ainda em andamento. Entretanto, a variação pode permanecer
estável e não acarretar mudança, como é o caso da redução dos ditongos, que há séculos tem
sido observada na língua falada. Assim, alternamos entre deixa ~ dexa, entre andou ~ andô,
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
38 .
conforme o contexto. Por isso, o locutor de um certo programa de rádio de Porto Alegre,
quando faz entrevistas com músicos, pede que eles sugiram a “faixa” do seu CD a ser
apresentada a cada momento do programa. Mas os entrevistados, muitas vezes, respondem
dizendo que se toque a “faxa” tal. De um lado, o locutor do programa parece estar cuidando
da linguagem que usa, monitorando-a e aproximando-a da norma culta e, mais ainda, da
língua escrita (lembremos que ele tem o CD na mão, ou seja, está diante de texto escrito, fato
que costuma desencadear esse tipo de ajuste). De outro, os entrevistados, muitas vezes
falando por telefone, parecem estar mais voltados para o estabelecimento de uma conexão
mais informal com o público ouvinte e referem-se à sua produção (as músicas do CD) com
mais intimidade e de modo mais direto, nomeando-as, em lugar de tratá-las por “faixa tal”.
• A variação e sua avaliação social se verificam em todos os níveis de análise lingüística: na
fonologia (ex: advogado ~ adivogado); na morfologia (ex: juntar ~ ajuntar; levantar ~
alevantar; entrar ~ adentrar); na sintaxe ou morfossintaxe (ex: é pra eu levar ~ é pra mim
levar; me telefona ~ telefona-me); no léxico: ex: aipim, macaxeira, macaxera, mandioca,
mandioca-doce, mandioca-mansa. E, evidentemente, há grande variabilidade no campo da
semântica (ou do sentido das palavras) e do uso contextualizado da linguagem. Considere-se,
por exemplo, a multiplicidade de sentidos da palavra tribo, seja pela área do conhecimento em
que é usada, seja por seu emprego recente para denominar grupos urbanos, especialmente de
jovens. Ou mesmo para designar, genericamente, filiação a esta ou àquela identidade social,
como se lê no excerto a seguir: “Uma tribo urbana é uma espécie de pacote de gosto musical,
ídolos, roupas e acessórios. É uma forma de sinalizar aos outros o que se é – ou não é nada
disso. Pode ser simplesmente a expressão sem compromisso da preferência momentânea por
uma moda ou por um artista pop” 2. Na mesma linha, basta pensar no sentido de palavras
como galera, balada, e por aí vai. Ao empregá-las, o falante faz o que tecnicamente recebe a
denominação de ato de identidade: pelo modo como fala, além de dizer um certo conteúdo,
diz de si, de sua orientação social, dos grupos com os quais se identifica e quer ser
identificado, bem como dos grupos dos quais quer ser distinguido. Acontece que, além disso,
o falante também precisa levar em conta a identidade da pessoa com quem ele fala: um
adolescente ao telefone, falando com outro adolescente, diz, a cada nova frase, expressões
como tá ligado; ao passo que, ao falar com seus pais, poderá não só reduzir o uso de ‘tá
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
39 .
ligado’, como também substituí-lo por expressões como ‘sabe’ ou ‘né’. Ao fazer essas
escolhas, está constantemente definindo e redefinindo, junto com seu interlocutor, uma
imagem de si e do outro, imagem que é variável, porque as identidades são múltiplas.
• A variabilidade é inerente à linguagem humana entendida como fenômeno social. É riqueza,
dinamismo, pluralidade, jogo de poder e muito mais. Quem se vale conscientemente disso em
seu dia-a-dia, seja para ouvir e falar, seja para ler e escrever, está em vantagem em relação
àqueles que acreditam que, de cada língua, só existe uma única forma correta de dizer cada
coisa. Essa crença é, de fato, uma visão extremamente empobrecida de uma língua e tem
servido, historicamente, para produzir exclusão social.
• Nenhuma língua é estática, todas elas mudam ao longo do tempo. O inglês antigo tinha uma
distinção entre singular e plural para o pronome reto de segunda pessoa: thou (singular) e you
(plural); hoje a língua emprega exatamente uma e a mesma forma nos dois sentidos: you, mas
a forma antiga ainda ocorre em textos poéticos e religiosos, por exemplo. Em português, o
pronome reto vós, que herdamos do latim, caiu em desuso e, em seu lugar, cunhamos um
novo pronome, vocês, que empregamos Brasil afora, na fala e na escrita. Evidentemente, nas
duas línguas, inglês e português, essas mudanças se associaram a outras (por exemplo, vosso
> de vocês) e produziram novos estados de língua, não sua deturpação ou degeneração.
• A mudança lingüística produz diferença, mas não resulta nem em evolução, nem em
degradação da língua, isto é, as línguas não ficam nem melhores nem piores. E ficam mais
ricas, pois as formas antigas, enquanto delas houver memória ou registro, podem ser
empregadas de modo a produzir efeitos particulares na interação social, seja oral, seja escrita.
É o que se observa no nome de um blog como “Coleguinhas, Uni-vos!” 3, que se descreve
divertidamente como “picadinho diário de jornalismo e mídia em geral”. É marcante o
contraste entre a escolha do jocoso e irreverente diminutivo “Coleguinhas” ao lado do sisudo
e incitador imperativo seguido de pronome oblíquo correspondente à antiga segunda pessoa
do plural (“Uni-vos!”), palavra de ordem de reuniões, assembléias, passeatas, comícios, etc.
Seria o mesmo dizer “Coleguinhas, unam-se!”? Talvez sim, do ponto de vista de um sentido
estrito da construção; mas certamente não, do ponto de vista do que “se quer dizer”.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
40 .
• Saber uma língua, portanto, implica ter o conhecimento e a capacidade de interpretar os
usos orais e escritos desta língua de acordo com o contexto sociointeracional. E aprender uma
língua implica aprender a participar desses usos, que são culturalmente co-construídos a cada
interação social.
• A língua (qualquer língua) só existe de fato e plenamente no seio da vida social, nas práticas
sociais dos falantes, no uso que dela fazem, seja oral, seja escrito. Desvinculá-la de seu
contexto de uso, da ocasião, da relação entre “quem disse o que a quem”, com que propósito,
etc., é tirar-lhe o sentido e a razão de ser.
• O contato entre línguas ou entre dialetos favorece a variação e a mudança lingüística. No
entanto, não é fator de degeneração, e sim de diversificação.
• As sociedades em todo o mundo, em sua maioria, são multidialetais e multilinguais; o
monolingüismo é, de fato, exceção e está, muitas vezes, vinculado a situações de opressão.
2. Variação e convergência no português falado e escrito no Brasil
Nosso objetivo neste texto é esboçar um perfil da variabilidade do português no Brasil. Para
tanto, certos aspectos de nossa constituição como país precisam ser levados em conta. O
primeiro aspecto a ser destacado diz respeito ao nosso imenso território e às decorrentes
dificuldades, e até mesmo ausência de contato entre as comunidades. Tais dificuldades de
contato, em qualquer lugar do mundo, sempre reduzem as oportunidades de estabelecimento
de práticas sociais comuns, seja de linguagem, seja de manifestações artísticas, seja ainda de
modos de viver e de sobreviver. Não foi diferente no Brasil: tanto a distância entre
comunidades locais e entre a colônia e a metrópole, quanto o isolamento na zona rural e entre
os núcleos urbanos constituíram forças centrífugas, ou seja, forças que, por se afastarem do
centro original, favoreceram a diversificação lingüística do português.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
41 .
No entanto, devemos reconhecer que, a partir do século 20, essas dificuldades começaram a se
reduzir no país, à medida que foram se expandindo os meios de telecomunicação (primeiro o
rádio e a telefonia; depois a televisão e a rede de computadores) e foi ampliada enormemente
a malha de estradas, encurtando distâncias tanto por canais reais quanto virtuais. Assim, as
possibilidades de contato e de estabelecimento de práticas sociais comuns têm aumentado
gradativamente. Esse processo, que podemos descrever como de maior integração nacional,
associado à maciça ampliação da rede escolar, vem tendo um forte impacto sobre a
linguagem: são forças centrípetas que promovem movimentos da sociedade na direção de
uma relativa unificação da língua. Ao tratarmos da concordância verbal, adiante, voltaremos a
tratar desse jogo de forças.
Outro aspecto a considerar para traçar o perfil da variabilidade da língua no país diz respeito à
multiplicidade de culturas forjadas ao longo de nossa história. Contribuíram para isso os
diferentes momentos de ocupação da terra e de formação dos núcleos urbanos, em função de
diferentes atividades econômicas e objetivos políticos. Foram momentos de reunir ou de
separar etnias e línguas, chegando, nos casos extremos, a seu extermínio. Foram,
principalmente, momentos de consolidar o poder de uma reduzidíssima elite, que assim
agregava prestígio a tudo o que lhe dissesse respeito, inclusive à sua linguagem, em
contraposição à privação e à estigmatização da maioria da população, a começar,
evidentemente, por seu modo de falar. Essas forças, portanto, são claramente centrífugas,
divergentes, e levam à diversificação da língua.
Um terceiro aspecto da variabilidade lingüística emerge dos anteriores. Trata-se também de
forças centrífugas relacionadas com o acesso à língua portuguesa. No Brasil, até o final do
século 19, grande parte, senão a maioria da população brasileira, não tinha o português como
sua primeira língua ou, quando o tinha, era por um processo de aprendizagem de variedades,
distantes, em maior ou menor grau, dos padrões da elite de fala portuguesa. Essas variedades
recebem até hoje denominações depreciativas, como as de língua misturada ou salada mista,
por oposição ao ideal de língua pura, e mais freqüentemente, de português errado, por
oposição ao ideal de língua correta. Essas denominações revelam um importante traço da
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
42 .
linguagem: ela é sempre associada, em todos os contextos, a valores sociais, como ficará mais
claro em alguns exemplos que vamos discutir.
Assim, o Brasil foi, na maior parte de sua história, um país multilíngüe em que o português
era língua minoritária. O próprio projeto de nação da elite luso-brasileira se construiu sobre a
desqualificação das outras muitas línguas que aqui foram faladas e de seus falantes. Desse
modo, a história social do Brasil impôs o português como língua oficial, sem dar à maioria
dos falantes oportunidades adequadas para a sua aprendizagem. Com isso, criaram-se
condições favoráveis à diversificação lingüístico-cultural de caráter social que hoje
caracteriza o país: reconhecemos nas mais diversas instâncias da vida a existência de um
continuum de variação que tem, num dos extremos, a chamada norma culta e, no outro, certas
variedades populares muito afastadas da culta. Mas note-se que as variedades populares não
devem ser confundidas com língua coloquial ou informal, porque fazer a oposição entre culto
e coloquial consiste em comparar coisas distintas, empregando, de um lado, o eixo das classes
sociais e, de outro, o eixo de grau de formalidade da linguagem como critério de julgamento.
Até aqui vimos que nossas condições sócio-históricas e territoriais favoreceram, de um lado, o
surgimento da variabilidade e, de outro, uma tendência à unificação.
A professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia, amplia nossa
compreensão da conjugação de forças e da atual configuração do português brasileiro ao
afirmar o que segue:
Numa perspectiva de mudança, com base nos estudos em que se fundamenta, defende
Dante Lucchesi a idéia de que a norma culta – ou seja, os padrões de uso dos segmentos
escolarizados, dos falantes das classes média e alta – tende a perder características que a
aproximam do padrão europeu original e a norma vernácula tende a adquirir
características que a aproximam da norma culta, num processo de convergência, mas com
nítidas diferenças quanto aos padrões de uso e aos sistemas de valores que subjazem a
eles4 (Mattos e Silva, 1998, p. 29).
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
43 .
3. A norma culta se afasta do português europeu
Poderíamos aqui discutir vários exemplos, tais como a colocação dos pronomes oblíquos
(próclise versus ênclise) e a locução verbal estou fazendo em lugar da locução estar a fazer.
Vamos, porém, nos concentrar no caso do uso de a gente, porque ele permite exemplificar as
múltiplas faces dos fatos de uso da língua que estamos interessados em apresentar e comentar.
Ao contrário do que ocorre em Portugal, o uso de a gente como pronome pessoal é
generalizado em nosso país, não só nas variedades populares, mas também na chamada fala
culta, das classes média e alta e dos segmentos altamente escolarizados da sociedade. Estamos
nos referindo a ocorrências como as que se observam a seguir na fala de uma professora com
ensino superior completo, na faixa etária entre 36 e 55 anos, entrevistada em 1972 pelo
Projeto NURC6 em Porto Alegre (inquérito 45):
Doc.: e em que ocasiões você costuma visitar seus amigos?...
Inf.: bom... visita mesmo... a gente (1) visita tão pouco hoje em dia e ainda ainda domingo
passado ainda li no jornal um artigo... não sei se vo/ se vocês leram... a respeito
justamente de negócio de visita né?... e ah::... a gente (2) se encontra sempre todos os
meses nesse jantar... com os amigos... quer dizer que pouco fora disso a gente (3) não se
encontra...
Há dois sentidos bem distintos nas ocorrências de a gente nesta parte da entrevista: em (1) o
pronome é usado para fazer referência genericamente a toda e qualquer pessoa. Em (2) e (3) o
pronome é usado para fazer referência a um conjunto específico de pessoas, no caso, a
informante e seu marido. Na entrevista, fica muito claro que ela está falando do casal, porque
dá muitos detalhes dessas atividades que os dois desenvolvem. Em qualquer dos casos, ela
poderia ter dito nós, pois este pronome também pode ser usado com referência genérica ou
específica. Sua escolha por a gente, então, atesta o quanto esse uso está consolidado no
português brasileiro, mesmo entre os chamados falantes cultos, mesmo em falas registradas há
mais de 30 anos.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
44 .
Uma evidência inequívoca do uso desse pronome pela elite chamada culta e, ao mesmo
tempo, de que se trata de processo de mudança em curso, sistemático, em ascensão gradual e
constante, já bastante avançado, pode ser vista na figura a seguir:
100
82
80
67
60
% a ge nte
40
20
24
0
1900-1925
1926-1950
1951-1975
Gráfico 1 - Percentuais do uso de “a gente” conforme o ano de nascimento dos falantes - dados de Porto
Alegre do NURC e do VARSUL (cf. Zilles, 20076).
Todas as pessoas cuja fala foi analisada nesta pesquisa têm, no mínimo, Ensino Médio
completo; a maioria, contudo, tem Curso Superior completo, o que significa que fazem parte
da chamada elite culta da sociedade. Observa-se, no gráfico, um acentuado crescimento no
uso de a gente num intervalo de tempo de 75 anos. Assim, as pessoas que nasceram no
primeiro quartel do século 20, ao serem entrevistadas, seja na década de 1970, seja na de
1990, apresentaram percentuais bem baixos de uso do novo pronome (24%), em contraste
com o uso do pronome nós. O percentual de uso de a gente para os nascidos no segundo
quartel do século alcança já 67% e chega a 82% para os nascidos no terceiro quartel. Esse
percentual, que é altíssimo, pode ser interpretado como sinal de mudança em curso bastante
avançada. Pelo fato de esses falantes fazerem parte da classe mais escolarizada do país, sua
progressiva adesão ao novo pronome confirma o fato de que ele goza de prestígio na
sociedade.
No entanto, há grande resistência, explícita ou não, ao uso de a gente na escrita, em geral,
mais conservadora, em particular nos textos institucionais como pareceres do Supremo
Tribunal Federal e do Judiciário em geral, documentos diplomáticos produzidos pelo
Itamaraty, documentos da Conferência dos Bispos, teses universitárias, etc. A restrição na
escrita é maior quando a gente significa aquele que fala e seu interlocutor, ou seja, quando
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
45 .
entra em lugar de nós, exatamente quando é, especificamente, pronome pessoal. Já em seu uso
como pronome indefinido, genérico, parece haver menor restrição.
Apesar disso tudo, há um uso crescente de ‘a gente’ na escrita. Um aspecto interessante é,
então, descobrir o caminho que leva a esta gradual aceitação. Admitimos como hipótese que
esse caminho esteja relacionado com gêneros textuais, alguns favorecendo e outros
desfavorecendo seu uso, como exemplificamos a seguir, com base na discussão desenvolvida
em Zilles (2007, p. 38-41).
A gente aparece, com valor de pronome pessoal pleno (eu+tu), em textos de literatura infantil,
como em “Tchau”, de Bojunga (2001): a certa altura de uma conversa entre mãe e filha, esta
diz àquela: “Sozinha como? e eu? e o Donatelo? a gente tá sempre junto, não tá?”
A gente ocorre também em textos que dão voz a crianças e criam vozes dirigidas a elas, como
no magistral conto de Carlos Drummond de Andrade (1989) intitulado “Na escola”. De um
lado, a fala dirigida pela professora aos alunos: “Muito bem. Será uma espécie de plebiscito.
A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as
opiniões, e a maioria é que decide.” De outro lado, a fala do aluno, em que a concordância
usada espelha a subversão da ordem proposta: “ – Legal! – exclamou Jorgito. – Uniforme está
superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer
jeito.”
Em outra frente, o novo pronome aparece sobejamente em textos publicitários e em
correspondência comercial, como nos dois exemplos que se seguem, colhidos aleatoriamente:
na correspondência de um determinado Banco, em dezembro de 2006, lê-se: “A sua
prosperidade, a gente vai celebrar juntos”; no informativo entregue juntamente com o cartão
do assinante do jornal Correio do Povo, em 2005, lê-se: “É um grande prazer ter você junto
com a gente”.
Mas, como dissemos antes, o pronome a gente não ocorre em muitos outros tipos de texto, a
não ser com seu significado genérico. Essas diferenças, é claro, revelam contradições na
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
46 .
avaliação social de a gente. Na fala, pode-se dizer que o pronome recebe prestígio encoberto,
não-consciente, dado o generalizado grau de adesão a seu uso por pessoas de todas as classes
sociais, tanto em contextos familiares quanto institucionais (na sala de aula, nas dependências
da escola e da universidade, nos serviços públicos, nas entrevistas de televisão, etc.). Mesmo
assim, há – curiosamente – casos de rechaço à própria pronominalização, como o de uma
senhora com mais de 60 anos entrevistada na década de 1990 pelo Projeto VARSUL7, em
Porto Alegre (POA 46):
E*Tá, agora- agora a gente vai perguntar pra [1senhora1]F* [Nós,1], a gente não, a gente é aquele que está agindo (“agora”) (risos e), nós!
E*Nós.
F* (inint) hoje, porque vocês hoje maltratam a língua (inint), ai meu Deus do céu, isso que
o pobre do Camões, o pobre do não sei mais o quê, do Rui Barbosa, (inint), que se
esmerava para punir, pra enriquecer. *Vocês hoje tratam de dilapidar, (inint) nem se usa
mais o pronome. *Pessoal ("largando") nós é a gente. *A gente é aquele que está agindo.
*É ou não é?
E *Nós então?
F *Nós! (riso geral) (inint)
E *Nós queremos saber (hes), por exemplo, a origem da sua família. *A senhora nasceu
aqui em Porto [2Alegre2] (inint)?
Ao dirigir-se desse modo às entrevistadoras (jovens auxiliares de pesquisa), corrigindo-as e
impondo um certo modo de falar, a entrevistada subverte a ordem estabelecida (direitos e
deveres de entrevistador e entrevistado) e inverte o caráter assimétrico da relação entre os
participantes, atribuindo a si o poder de determinar, ela mesma, e não à entrevistadora, o
tópico da conversa. Essa inversão de papéis, contudo, é logo revertida, e as entrevistadoras
passam a deter o controle da entrevista, com a anuência da entrevistada.
Já na escrita, o uso de a gente é alvo de restrições e recebe estigma aberto, explícito,
consciente, exceto nos casos de escrita que busca se aproximar ou representar a fala, como é o
caso da escrita usada em salas de conversa (chat) na Internet ou em sítios (sites) de
relacionamento, na recriação da fala de personagens em narrativas de ficção ou em discurso
reportado em textos jornalísticos. Temos aí um mundo de observações a fazer a fim de
compreendermos o jogo de forças entre inovação e preservação, entre o centrífugo e o
centrípeto, entre a diversidade e a unidade.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
47 .
Dada essa complexa avaliação social, é fundamental reconhecermos que a escolha entre nós e
a gente não é indiferente; pelo contrário, é recurso expressivo, é riqueza da língua.
4. Norma vernácula (variedades populares) se aproxima da norma culta
Ao contrário do que postula a gramática tradicional, a concordância verbal no Brasil é
variável, ou seja, nem sempre é usada e, muitas vezes, tem formas distintas das consideradas
padrão. Assim, o próprio título de um livro da professora Stella Maris Bortoni-Ricardo
exemplifica isso: “Nós chegemu na escola, e agora?”.
O que precisa ser posto em destaque é que a avaliação social negativa dessa variação é
altamente consciente e consistente. Os dois exemplos a seguir o demonstram. Em primeiro
lugar, mais um trecho de entrevista feita na década de 1970 pelo Projeto NURC em Porto
Alegre, desta vez com um dentista e também professor universitário, entre 25 e 35 anos,
(inquérito 09):
Doc.: Quais os defeitos mais comuns que você conhece no modo de falar?
Inf.: Quais os defeitos mais comuns no modo de falar? ... éh... não há concordância... do
verbo com a pessoa... às vezes a pes/ são várias pessoas e usa-se o verbo numa pessoa só...
ou para uma pessoa... eu posso estar aqui... perfeitamente devido ao nervosismo estar
falando erradamente...
Para este profissional liberal e professor universitário, a falta de concordância é um defeito,
um erro. Esse modo de representar a variação é, de fato, generalizado no país, e encontra,
certamente, bases profundas nos discursos escolares sobre o fenômeno. Note-se, ainda, que o
informante admite que isso possa acontecer com ele mesmo e, até, que poderia estar
acontecendo durante a própria entrevista. Esse aspecto de seu comentário é precioso para a
nossa reflexão, pois revela o quanto nos sentimos inseguros sobre o nosso uso do português.
Essa insegurança é fomentada cada vez que um professor, em sala de aula, não reconhece que
a concordância no português do Brasil é variável e não é, simplesmente, erro ou preguiça dos
alunos. Pelo que disse o dentista entrevistado, é uma insegurança que, injustamente,
carregamos pela vida afora.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
48 .
O segundo exemplo de avaliação negativa da falta de concordância foi extraído do livro
denominado Mal secreto, de Zuenir Ventura8. Num dado momento, o narrador refere-se à fala
da personagem dona Lucinda (uma mãe-de-santo) do seguinte modo: “Ela não gostou da
pergunta. ’Ninguém faz bem ou mal, os santos é que faz’, respondeu rispidamente,
estropiando a concordância.”
Ao caracterizar a fala da personagem, o narrador emite um juízo de valor extremamente
negativo por meio da palavra estropiando, que tem entre seus sinônimos as palavras aleijar e
mutilar. Mesmo com quase 30 anos de distância entre um e outro exemplo, fica claríssima a
relação entre as duas avaliações negativas apresentadas aqui: o aleijado, o mutilado é algo que
tem defeito! A força dessas metáforas revela o sucesso desse verdadeiro processo de
inculcação ideológica contra a variação que vem sendo realizado explicitamente no Brasil
desde o século 19.
Talvez essa enorme pressão negativa contra a variação na concordância verbal esteja no bojo
de um fenômeno que o estudo da língua falada vem revelando, e que tratamos a seguir. Tratase da “difusão ativa de traços da língua padrão à fala popular”, como discute o Professor
Gregory Guy9 em um interessante texto sobre a questão da crioulização prévia do português
do Brasil.
As pesquisas sociolingüísticas recentes atestam de modo inequívoco o movimento dos
falantes em direção à chamada norma culta, pois há um claro aumento de uso da concordância
verbal entre os mais jovens e mais escolarizados.
Este resultado mostra o importante papel da escola no uso da linguagem, ainda que não seja
ela, a escola, a única responsável por esta mudança em andamento. O que precisamos nos
perguntar é se faz sentido continuar tratando a variação como erro, quando sabemos que
forças sócio-históricas contribuíram para o seu estabelecimento. Também é necessário nos
perguntar se queremos continuar gerando insegurança lingüística entre os falantes, geração
após geração. Tais perguntas precisam ser feitas porque os juízos de valor colados à
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
49 .
linguagem podem ser mudados, porque são ativamente produzidos pelos próprios falantes no
contexto sociocultural, em particular por aqueles que detêm mais poder.
5. Variação e identidades sociais
Em certa medida, já tratamos da relação entre variação e identidades ao discutirmos os
exemplos acima apresentados. Devido à importância dessa dimensão da variabilidade,
examinemos mais alguns exemplos.
Uma generalização comum a respeito das características lingüísticas do Rio Grande do Sul é o
emprego do pronome tu. Entretanto, há no estado zonas de uso exclusivo de tu, zonas de uso
exclusivo de você e zonas em que as duas formas se alternam. Pelotas, RS, é uma cidade de
zona exclusiva de uso de tu. Será que o pronome tu é acompanhado de marca verbal de
segunda pessoa?
Em um amplo estudo sobre o emprego da marca de segunda pessoa do singular na fala de
Pelotas, realizado por Amaral (2003) 10, os resultados gerais mostram clara tendência ao não
uso de concordância, uma vez que os percentuais caem à medida que diminuem as idades dos
falantes, isto é, quanto mais jovem menos se dá a concordância. É o que está na tabela 1
abaixo.
Tabela 1: Distribuição da concordância verbal de segunda pessoa do singular em relação
a faixas etárias, em Pelotas (RS), cf. Amaral (2003)
Faixa Etária
+ de 65 anos
50 a 64 anos
38 a 49 anos
26 a 37 anos
21 a 25 anos
16 a 20 anos
Ocorrências
Percentual
293
289
237
504
415
392
13 %
12 %
15 %
4%
4%
3%
TOTAL 2.130
7%
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
50 .
O mesmo autor mostra que também há interação entre idade e gênero, pois as mulheres, em
todas as faixas etárias, tendem a usar mais concordância de segunda pessoa do singular do que
os homens, como mostra Amaral (2003).
Há também uma relação entre classe social e maior ou menor freqüência da concordância de
segunda pessoa, como se pode ver pelo gráfico abaixo.
%
12 %
8%
7%
6%
4%
Média-alta
Média
Média-baixa
Baixa
A LP
C las s es s ociais
Gráfico 2: relação entre classe social e maior ou menor freqüência da concordância de segunda
pessoa.
Por fim, a distribuição da marca de segunda pessoa por classe social mostra a estratificação do
uso dessa forma lingüística. Ainda que os percentuais não sejam muito distintos e sejam bem
baixos, o decréscimo é evidente. Portanto, a retenção da marca de pessoa é um traço de fala
que, em Pelotas, está claramente associada a acesso a bens culturais e econômicos, bem como
a práticas sociais em que a interação assimétrica favorece o uso da marca de segunda pessoa
na fala dirigida a pessoas hierarquicamente superiores ou com mais poder.
Acima de tudo, é interessante notar que os falantes que mais usam a marca são mulheres de
classe média, particularmente, por exemplo, as com educação de nível superior, as que
trabalham em certo tipo de comércio (butique voltada para a classe média e alta). A retenção
da marca, portanto, é um ato de identidade através do qual essas mulheres projetam de si uma
imagem associada a um símbolo de poder culturalmente superposto, a chamada língua
padrão (a que associamos com os modelos apresentados nas gramáticas). Com isso, elas
adquirem um capital simbólico no jogo de poder da sociedade. Falamos em retenção da marca
porque o baixíssimo percentual de uso do morfema de segunda pessoa verbal (apenas 7%) na
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51 .
amostra de 90 informantes é forte indicação de mudança quase completada, de não uso da
mesma. Retê-la parece ter o efeito, nesta sociedade, não de afetação ou esnobismo, mas sim
de nível social e educacional alto, de pertencimento a este grupo de referência, tal como vestir
roupas de grife ou usar jóias.
6.
Variação e escola
Carlos Alberto Faraco11, em texto recentemente publicado, caracteriza com muita clareza a
tarefa que nos cabe como professores. Diz ele:
(...) nosso grande desafio, neste início de século e milênio, é reunir esforços para construir
uma pedagogia da variação lingüística que não escamoteie a realidade lingüística do país
(reconheça-o como multilíngüe e dê destaque crítico à variação social do português); não
dê um tratamento anedótico ou estereotipado aos fenômenos da variação; localize
adequadamente os fatos da norma culta no quadro amplo da variação e no contexto das
práticas sociais que a pressupõem; abandone criticamente o cultivo da norma-padrão;
estimule a percepção do potencial estilístico e retórico dos fenômenos da variação.
Mas, acima de tudo, uma pedagogia que sensibilize as crianças e os jovens para a
variação de tal modo que possamos combater os estigmas lingüísticos, a violência
simbólica, as exclusões sociais e culturais fundadas na diferença lingüística.
Cabe a todos nós que trabalhamos com educação a responsabilidade de oferecer ensino de
qualidade a nossos alunos. Para fazê-lo, é indispensável que desenvolvamos uma nova postura
frente aos fatos da língua portuguesa e das demais línguas faladas no Brasil, sua relação com
as identidades sociais e com as culturas que aqui convivem. É indispensável que nossos
alunos tenham sua cultura e sua variedade de língua respeitadas na escola para que se sintam
valorizados e possam aprender, descobrindo-se e descobrindo o mundo, compreendendo as
relações sociais, as desigualdades, os conflitos e as potencialidades de desenvolvimento
pessoal e comunitário em nosso país. Ouvi-los pelo que eles têm a dizer, e não pelo modo
como dizem, pode ser um bom começo. Mas não podemos ficar só no começo. Por isso, é
importante ouvi-los e discutir com eles os efeitos sociais e estilísticos dos diferentes modos de
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52 .
dizer. Ouvi-los e incorporar seus sentidos, suas perguntas e respostas, suas propostas e sua
reflexão ao conhecimento que se vai co-construindo na sala de aula é um importante
encaminhamento para aulas de criar e aprender, e não de reproduzir e subjugar.
Sugestões de leitura
BORTONI-RICARDO, Stella Maris.
Nós cheguemu na escola, e agora?
Sociolingüística & educação. São Paulo: Parábola, 2005.
CORREA, Djane A. (org.) A relevância social da lingüística: linguagem, teoria e
ensino. São Paulo: Parábola, 2007.
_____________ & SALEH, Pascoalina B. de Oliveira (org.) Práticas de letramento no
ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola, 2007.
FARACO, C. A. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das
línguas. São Paulo: Parábola, 2005.
Notas:
Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.
2
Extraído de: http://veja.abril.com.br/especiais/jovens_2003/p_048.html,
acesso em 08/04/2008.
3
Extraído de http://www.coleguinhas.jor.br/picadinho.html, acesso em
08/03/2008.
4
Mattos e Silva, Rosa Virgínia. “Idéias para a história do português
brasileiro: fragmentos para uma composição posterior”. In CASTILHO,
Ataliba T. de. (org.) Para a história do português brasileiro. São Paulo:
Humanitas Publicações/ FFLCH/USP, 1998. V. 1. p.21-52.
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53 .
5
Projeto Norma Urbana Culta (NURC), desenvolvido em Porto Alegre, São
Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A primeira grande coleta de dados
de língua falada foi feita na década de 1970.
6
Zilles, Ana M. S. O que a fala e a escrita nos dizem sobre a avaliação social
do uso de a gente. In: Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 27 a 44,
junho, 2007.
7
Projeto Variação Lingüística Urbana da Região Sul (VARSUL), desenvolvido
na UFPR, UFSC, UFRGS e PUCRS.
8
Ventura, Z. Mal secreto. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 1998. p. 94.
9
Guy, Gregory R. A questão da crioulização no português do Brasil. In:
Zilles, Ana M. (org.) Estudos de Variação Lingüística no Brasil e no Cone Sul.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. p. 36.
10
Amaral, Luís I. C. A concordância verbal de segunda pessoa do singular
em Pelotas e suas implicações sociais. Porto Alegre, Tese de doutorado,
UFRGS, 2003.
11
Faraco, Carlos Alberto. Por uma pedagogia da variação lingüística. In:
Djane A. Correa (org.) A relevância social da lingüística: linguagem, teoria e
ensino. São Paulo: Parábola Editorial; Ponta Grossa, PR : UEPG, 2007. p. 46.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
54 .
PROGRAMA 5
A DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA DO BRASIL E A ESCOLA
Stella Maris Bortoni-Ricardo1
O Brasil multilíngüe
Costumamos pensar que em cada país fala-se uma única língua, mas não é bem assim. Em
quase todos os países do mundo falam-se duas ou mais línguas e há alguns onde são faladas
centenas de línguas, como é o caso da Índia, com mais de 200 línguas, e da Tanzânia, com
mais de 135 línguas.
Também costumamos pensar que o Brasil é um país monolíngüe, onde todos se comunicam
usando somente o português. Mas não é essa a realidade. No Brasil, hoje em dia, são falados
cerca de 200 idiomas, além do português. Estima-se que, quando os portugueses chegaram
aqui, há 500 anos, eram faladas no Brasil por volta de 1.078 línguas indígenas. Hoje as nações
indígenas sobreviventes preservam cerca de 180 línguas, conhecidas como línguas brasileiras,
muitas delas ameaçadas de extinção. Felizmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB, de 1996) e o Plano Nacional de Educação (Resolução 03 do Conselho
Nacional de Educação) garantem ensino de natureza intercultural e bilíngüe a mais de 174 mil
estudantes indígenas (Ver: Brasil/Minc, 2007).
Também as comunidades descendentes de imigrantes conservam, ainda, cerca de 30 línguas.
Além disso, são usadas duas línguas de sinais de comunidades surdas e em grupos afrobrasileiros podem-se encontrar características das línguas faladas pelos seus ancestrais em
antigos Quilombos.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
55 .
A língua portuguesa no Brasil e no mundo
A língua portuguesa, que a Constituição Brasileira (art. 13) declarou idioma oficial da
República Federativa do Brasil, tem aproximadamente 830 anos de idade2 [1], está entre as
dez mais empregadas do planeta e é a sexta língua materna mais falada do mundo. É língua
oficial de oito países lusófonos: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Timor-Leste.
O Brasil é o maior país de língua portuguesa em extensão territorial. Além disso, é também o
país onde vive o maior número de falantes de português (cerca de 182 milhões de habitantes
em 2004).
O analfabetismo em nosso país
Não obstante o uso extensivo da língua portuguesa no Brasil, o país enfrenta um seriíssimo
problema na familiarização de grande parte de seu contingente populacional com a
modalidade escrita da língua.
O analfabetismo está na raiz da maioria dos grandes problemas sociais da sociedade
brasileira, é praticamente tão antigo quanto o próprio país, e não foi ainda resolvido, apesar
das diversas campanhas de alfabetização que surgem no bojo de políticas educacionais.
Dados fidedignos sobre essa questão estão agora disponíveis no Mapa do Analfabetismo no
Brasil, que é uma iniciativa conjunta do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira), do Censo Escolar do MEC, do IBGE e do PNUD (Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas – United Nations Development Program – UNDP).
Segundo o referido mapa, o número de analfabetos varia bastante de região para região e é
inversamente proporcional ao Índice de Desenvolvimento Humano, IDH. Quanto mais baixo
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
56 .
o IDH (aferido em função da renda per capita, da longevidade e dos níveis de educação de
uma população) mais altos os índices de analfabetismo.
No Nordeste, o número de analfabetos é muito maior que nas regiões Sul e Sudeste. Quanto à
renda familiar, calculada em salários mínimos, constata-se que o analfabetismo chega a ser 20
vezes maior nas famílias mais pobres.
Observe-se, também, que as mulheres apresentam uma taxa de alfabetização superior à dos
homens. Em relação à variável “raça”, constatou-se que existem três vezes mais brancos
alfabetizados do que negros e pardos, o que confirma o peso do fator raça na desigualdade
social no Brasil (segundo dados das pesquisas citadas).
Considerando-se a dicotomia rural x urbano no país, os dados mostram que, no meio rural
brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana.
O analfabetismo funcional
Temos de considerar também uma mudança no conceito de analfabetismo. Em 1958, a
UNESCO definia como analfabeto um indivíduo que não conseguia decodificar palavras e ler
ou escrever algo simples. Duas décadas depois substituiu esse conceito pelo de analfabeto
funcional, que é um individuo que, mesmo sabendo decodificar palavras, ler e escrever frases
simples, não possui as habilidades necessárias para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia e
desenvolver-se pessoal e profissionalmente.
O Quinto Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), divulgado em setembro de
2005, pelo Instituto Paulo Montenegro - IPM - (disponível em: <www.ipm.org.br>) mostrou
que só 26% dos brasileiros na faixa de 15 a 64 anos de idade são plenamente alfabetizados.
Desses, 53% são mulheres, 47% são homens e 70%, jovens de até 34 anos.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
57 .
As raízes sócio-históricas do analfabetismo no Brasil
Para se entender as razões desse imenso contingente de brasileiros que vivem à margem das
culturas de letramento ou participam delas apenas tangencialmente, devemos estudar as
circunstâncias da transposição do português para o Brasil Colônia. Em nosso país, desde o
início da colonização, a cultura rural prevaleceu sobre a cultura urbana. Os núcleos urbanos
no Brasil Colonial ficaram praticamente restritos à faixa litorânea. Nos grandes espaços
interioranos, à medida que as terras eram desbravadas e se sucediam os ciclos na produção
agropecuária, desenvolviam-se núcleos de cultura rural.
O contato de línguas no Brasil Colônia
Desde o início da colonização até o final do século XVII, prevaleceu na colônia um
bilingüismo instável, em que predominavam dois sistemas lingüísticos: o primeiro era o que
veio a ser chamado de língua geral e também língua brasílica, originalmente falada pelos
índios Tupinambá, que se difundiu na costa brasileira, do litoral de São Paulo ao litoral do
Nordeste. O segundo era a língua portuguesa, que chegava junto com os jesuítas, a elite
administrativa e os aventureiros lusitanos que vinham à busca de enriquecimento rápido. A
língua brasílica foi aos poucos cedendo lugar, no repertório dos indígenas, à interlíngua
aprendida de oitiva, isto é, que eles ouviam e empregavam no esforço para se comunicar com
o elemento europeu. Em 1759, o Marquês de Pombal expulsa a Companhia de Jesus de todo o
território português, inclusive das colônias. Interrompe-se o trabalho nas escolas jesuíticas no
Brasil e aquele esforço de escolarização da população local – indígena, mestiça, ou
descendente de portugueses – não é retomado senão mais de uma década depois, de forma
bastante intermitente e irregular.
O ambiente de contato de línguas no Brasil Colônia era ideal para desencadear mudanças
rápidas no sistema da língua portuguesa. Não existem registros confiáveis desse contato de
línguas e da emergência de interlínguas, isto é, de variedades da língua portuguesa faladas por
indivíduos que não a tinham como língua materna, no caso, os indígenas. Mas, de fato, o
contato de línguas, a ausência de um sistema educacional e a ínfima circulação de textos
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
58 .
escritos em português (já que até 1808 era proibida na Colônia qualquer atividade de
imprensa) contribuíram para formar no Brasil uma variedade dialetal de português oral, muito
distinta da língua falada e escrita em centros urbanos em Portugal e, posteriormente, no
Brasil. Com pequenas diferenças regionais, essa variedade difundiu-se por todo o território
brasileiro, com mais vitalidade nas grandes extensões rurais, pois nas cidades que eram
formadas ela iria concorrer com o português lusitano, já em vias de padronização na sua
modalidade escrita.
Longe do efeito padronizador da cultura letrada, cultivada pelas instituições urbanas que são
agentes letradores, a variedade da língua usada pelas populações rurais e interioranas era
bastante diferente da língua falada em Portugal não só na gramática, mas também no
vocabulário, com forte influência da língua geral.
O componente africano na formação do português brasileiro
Esse multilingüismo da sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII torna-se mais complexo
com a chegada dos escravos africanos, que não eram portadores de língua e cultura
homogêneas porque provinham de diferentes grupos étnicos: os Yoruba, chamados nagô; os
Dahomey, denominados gegê e os Fanti-Ashanti, conhecidos como minas, além de outros
grupos menores, conforme nos ensina Darcy Ribeiro (1995), baseado nos estudos pioneiros de
Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Como o tráfico negreiro durou cerca de três séculos, havia
na sociedade colonial uma interação permanente entre escravos de diferentes gerações.
Estima-se que cerca de 4 milhões de escravos foram trazidos para o Brasil e aqui distribuídos
pelas áreas de lavouras ou abrigados nas cidades, nas casas de família, como escravos
domésticos. Esse grande número de africanos trazidos para o Brasil nunca teve oportunidade
de aprender o português sistematicamente. As escolas, que já eram raras, não se abriam para
os escravos, que ganharam a liberdade já quase ao final do século XIX, sem que, contudo,
tivessem as condições de inserção no sistema de produção. Permaneceram à margem desse
sistema, longe das escolas e da cultura letrada, e contribuíram para formar os grandes
contingentes de mão-de-obra barata e pouco valorizada, mesmo depois que o país entrou,
tardiamente, na era industrial.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
59 .
A padronização do português no Brasil e a urbanização
A padronização do português brasileiro correu paralelamente ao processo de urbanização,
ambos sujeitos a intermitências e meio caóticos. Podem-se identificar dois períodos na
urbanização brasileira. O primeiro tem início com a colonização, quando se criam os núcleos
urbanos litorâneos e o segundo, no século XX, com a implantação das primeiras indústrias.
O processo de industrialização só começou no Brasil no final dos anos 40 do século XX.
Inicia-se aí a segunda fase de urbanização, mas poucas cidades desenvolveram um sistema
social estratificado. Nas cidades menores e em regiões mais pobres, foram mantidas a
uniformidade e a tradição do modo rural de vida, inclusive as variedades lingüísticas rurais.
De fato, até hoje os grupos sociais radicados no campo, nas áreas rurbanas (de transição entre
o campo e a cidade) e nas áreas urbanas e cosmopolitas distribuem-se em um contínuo de
urbanização, sem fronteiras rígidas.
No entanto, de uma perspectiva sociolingüística, podemos dizer que, com a aceleração da
urbanização no Brasil no século XX, consolidam-se, em momentos distintos, duas sociedades
paralelas: a sociedade urbana, com acesso à cultura letrada, e a sociedade rural e a rurbana,
moldadas em práticas sociais predominantemente orais. A variação em nossa língua, cujas
origens remontam às desigualdades sociais vigentes desde o período colonial, está
diretamente relacionada ao acesso que os grupos sociais têm à cultura letrada, cultivada
principalmente pelas populações urbanas. O resultado dessa clivagem entre a população
letrada e a que não tem acesso à escolarização sistemática é que entramos neste milênio com
2/3 da população brasileira constituída de analfabetos funcionais.
Testes nacionais de leitura e matemática
Desde 1990, o Ministério da Educação vem conduzindo testes nacionais de compreensão de
leitura e habilidades matemáticas com alunos na 4ª e na 8ª séries do Ensino Fundamental e na
3ª série do Ensino Médio, identificados pela sigla SAEB: Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica, hoje denominados Prova Brasil. No ano em curso, vem sendo aplicada
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
60 .
também, nas classes de alfabetização, a Provinha Brasil. Os resultados desses testes de leitura
são bem conhecidos e mostram, por exemplo, que um terço das crianças brasileiras
matriculadas na 4ª série do Ensino Fundamental não sabe nem sequer o que deveria ter
aprendido ao final do 1º ano de escola. É uma tarefa prioritária da escola brasileira alterar essa
situação e entendemos que, para tal, um primeiro passo consiste em conscientizar professores
e escolas quanto às características do português falado pela grande maioria dos estudantes que
freqüentam o ensino básico.
A competência oral de nossos alunos
Quando nossos alunos chegam à escola, já têm uma competência comunicativa bem
desenvolvida. Já são capazes de se comunicar bem, no âmbito da família, e de conversar com
os amigos, colegas, professores, etc. Quando começam a ter contato com a língua escrita, ao
aprender a ler e escrever, vão-se valer dos conhecimentos que lhes permitem comunicar-se
oralmente para se comunicarem, também, por meio da língua escrita. Por isso, devemos
refletir muito sobre a integração entre os modos de falar que os estudantes já dominam e
novos modos de falar e modos de escrever que têm de incorporar ao seu repertório lingüístico,
de tal forma que estejam preparados para desempenhar as mais diversas tarefas na sociedade.
Como medida inicial, é importante que os professores conheçam os antecedentes
sociodemográficos de seus alunos: onde nasceram; em que comunidade estão sendo criados;
qual a profissão dos pais; se na família predomina uma cultura oral ou se no âmbito da família
combinam-se eventos de cultura oral e de cultura letrada, etc.
A variação própria dos nossos modos de falar
Nos modos de falar dos brasileiros em geral, cujas origens já vimos neste artigo, ocorrem
muitas regras variáveis. Estamos diante de uma regra variável na língua sempre que há duas
ou mais maneiras de se dizer a mesma coisa. Por exemplo, “Eu tô falano c’cê” / “Eu estou
falando com você”. Essa segunda variante tem prestígio, é valorizada e bem recebida,
enquanto a primeira, embora muito usada na comunicação oral, é considerada uma construção
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
61 .
ruim, que deve ser evitada.
Você, professor, deve estar-se perguntando: Por que temos, na
sociedade brasileira, variantes que são bem recebidas e outras que não o são? Boa pergunta!
Vamos a ela.
Normas sociais convencionais que regem a interação
A língua de uma comunidade é uma atividade social e, como qualquer atividade social, está
sujeita a normas e convenções de uso. Em qualquer língua podemos escolher entre usos mais
formais ou menos formais. Mas essa escolha não é totalmente livre. Ela é condicionada pelas
normas que definem quando e onde é adequado usar linguagem informal (não-monitorada) e
quando e onde se espera que os participantes da interação usem linguagem formal
(monitorada).
Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas cria
expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar.
Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo
computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu
comportamento, particularmente o seu comportamento lingüístico. Se todas elas consideram a
interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas lingüísticas
adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e
considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a situação.
Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos lingüísticos
informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas veja bem: às vezes uma pessoa
reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos
comunicativos próprios da fala monitorada.
Os recursos comunicativos
É por isso que a escola precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos
alunos. Dispondo de uma gama mais ampla de recursos comunicativos, os estudantes, sempre
que precisarem e desejarem, saberão monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
62 .
interlocutores e às normas sociais que determinam como as pessoas devem comportar-se em
cada situação. Ao fazer isso, estão seguindo normas sociais e serão bem recebidos pelos seus
interlocutores. Lembrem-se de que as normas sociais que definem um comportamento
lingüístico adequado podem ser implícitas, isto é, fazem parte das crenças e dos valores que as
pessoas têm. Mas podem ser explícitas também. É o caso das normas gramaticais, que são
explícitas. Mas não podemos nos esquecer de que as gramáticas normativas não admitem
flexibilidade. Não levam em conta a noção de adequação. São prescritivas: abonam uma
forma considerada correta e rejeitam as que são consideradas “erro”.
O que é o “erro de português”?
Preferimos colocar a expressão “erro de português” entre aspas porque a consideramos
inadequada e discriminatória. Erros de português são tão-somente diferenças entre variedades
da língua. Com freqüência essas diferenças se apresentam entre a variedade usada no domínio
do lar, onde predomina uma cultura de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e
informalidade, e a cultura de letramento, que é cultivada na escola e em outros domínios
sociais, como nas igrejas, nos escritórios, nas repartições públicas, etc.
Uma pedagogia sensível às características dos alunos
É no momento em que o estudante usa uma variante que a sociedade considera como “erro” e
o professor intervém, fornecendo a variante própria da escrita e dos estilos monitorados, que
as duas variedades se justapõem em sala de aula. Como proceder nesses momentos é uma
dúvida sempre presente entre os professores. Uma pedagogia que é culturalmente sensível aos
saberes dos educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles trazem consigo e a da
escola e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de conscientizar seus alunos
sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os
professores, que ficam inseguros sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem
corrigir ou até mesmo se podem falar em erros.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
63 .
O trabalho construtivo e respeitoso com a variação em sala de aula
Quando uma professora percebe o uso de regras não-padrão, nem sempre precisa corrigir o
aluno diretamente, mas pode retomar aquela contribuição, comentando-a ou ampliando-a.
Dessa forma, a professora está construindo um “andaime”, isto é, apresentando a variante
própria da língua escrita e também da fala monitorada, e chamando a atenção para as
diferenças entre as variantes.
O padrão de comportamento de uma professora ou um professor em relação ao uso de regras
não-padrão pelos alunos depende basicamente do tipo de evento em que essas ocorrem. De
modo geral, observamos que quase nunca os professores intervêm para corrigir os alunos
durante a realização de um evento de oralidade, isto é, trocas espontâneas de fala entre
professor e alunos, na administração da dinâmica de sala de aula.
Já nos eventos de
letramento, quando professor e alunos estão engajados em tarefas de leitura e escrita, os
professores intervêm com mais freqüência. Essas intervenções devem sempre ser respeitosas e
levar o estudante a refletir sobre os recursos que a língua oferece para adequarmos a nossa
fala às expectativas dos interlocutores e à formalidade de cada situação interacional.
Finalmente, não podemos nos esquecer de que a modalidade oral da língua, quando usada em
eventos de pouco formalidade, admite muita variação. Já em relação à modalidade escrita,
existem regras ortográficas e outras relacionadas à própria estruturação do texto escrito, que
têm de ser observadas. Portanto os professores têm de lidar com os modos de falar e com os
modos de escrever de formas distintas, levando em conta que a produção lingüística de seus
alunos tem sempre de estar adequada à situação de uso.
Bibliografia
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Editorial, 2001.
PORTUGUÊS: UM NOME, MUITAS LÍNGUAS
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Notas:
Professora da Universidade de Brasília – UnB.
2
Estou considerando aqui como marco inicial da língua portuguesa o
documento “A Notícia de Fiadores” de 1175 (Ver Ilari, R. e Basso, R., 2006).
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