Philip K. Dick
Fluam, minhas
lágrimas, disse o
policial
Tradução de Isa Mara Lando
Copyright © 1974 Por Philip K.
Dick.
Título original: Flow my Tears the
Policeman Said.
© Copyright da tradução: Editora
Brasiliense S.A. para publicação e
comercialização, somente no Brasil.
Título Original: Identidade perdida
Ettore Bottini
Revisão:
Elvira da Rocha
Newton T.L. Sodré
Digitalização e revisão: Gnosys
O amor que há neste romance é para
Tessa, e o amor que há em mim é para
ela também.
Ela é a minha canção.
PARTE UM
Jorrem minhas lágrimas, brotem de
suas fontes!
Exilado para sempre, deixai-me
chorar;
Onde o pássaro noturno e negro
canta sua triste infâmia, Ali deixai que
eu esquecido viva.
1
Na terça-feira, 11 de outubro de
1988, o Show Jason Taverner durou
trinta segundos a menos. O técnico que
observava através da bolha plástica da
cabine de controle congelou os créditos
finais do vídeo e apontou a câmera para
Jason Taverner, que já ia saindo de
cena. O técnico indicou seu relógio e
apontou para a boca.
Jason disse então com suavidade no
microfone:
— Continuem mandando cartas e
cartões, pessoal. E continuem
sintonizando agora As Aventuras de
Scotty, o Cão Extraordinário.
O técnico sorriu; Jason sorriu
também e tanto o áudio como o vídeo
foram desligados. Seu programa de uma
hora de música e variedades,
considerado o segundo melhor da tevê,
chegava agora ao final. E tudo
transcorrera bem.
— Onde foi que perdemos meio
minuto? — disse Jason para sua
convidada especial da noite, Heather
Hart. Ficou intrigado; gostava de
controlar o tempo de seus shows.
Heather respondeu:
— Não se preocupe com isso. —
Tocou a testa um pouco suada de Jason e
passou com carinho a mão fresca em seu
cabelo cor de areia.
— Você percebe o poder que você
tem? — perguntou Al Bliss, o
empresário, chegando perto. Aliás,
como sempre, perto demais.
— Trinta milhões de pessoas viram
você fechar o zíper da calça hoje. Isso é
um verdadeiro recorde.
— Eu fecho o zíper da calça todas as
semanas — disse Jason.
— É minha marca a registrada. Ou
será que você não assiste ao show?
— Mas trinta milhões! disse Bliss,
com sua cara redonda e corada cheia de
gotas de suor.
— Pense nisso! E há os
remanescentes, também.
Jason foi seco.
— Antes que os remanescentes deste
show nos deem alguma coisa, eu já
estarei morto. Graças a Deus.
— Provavelmente você estará morto
hoje mesmo — disse Heather com todos
esses fãs amontoados aí fora.
Estou só esperando para picar você
pedacinhos pequenininhos do tamanho
de um selo.
— Alguns são seus fãs Srta. Hart
disse Al Bliss, com a voz ofegante como
a de um cachorro.
— Raios os partam— disse Heather,
ríspida. — Porque eles não vão
embora? Será que eles não estão
fazendo nada contra a lei, vadiagem, ou
algo assim?
Jason apertou a mão dela com força,
fazendo com que ela se voltasse
franzindo o cenho. Ele nunca
compreendera o fato de ela detestar os
fãs: para ele, eram a força vital de sua
existência pública. E sua existência
pública, seu papel de apresentador de
tevê de alcance mundial era para ele a
própria existência, ponto final.
— Você não devia ser artista —
disse para Heather— já que se sente
assim. Saia do ramo. Vá ser assistente
social num campo de trabalhos forçados.
— Lá também tem gente —
respondeu Heather, soturna.
Dois guardas da polícia especial
abriram caminho até Jason Taverner e
Heather.
— Já esvaziamos o corredor ao
máximo — disse, ofegante, o guarda
mais gordo.
— Vamos sair agora, Sr. Taverner.
Antes que o público do auditório chegue
até as saídas laterais.
Fez sinal a outros três guardas da
polícia especial, que logo avançaram
pela passagem quente e apinhada de
gente que levava à rua noturna. E lá fora
estava estacionado o aerocarro Rolls
Royce em todo o seu luxuoso esplendor,
com o foguete traseiro pulsando á
espera.
Como um coração mecânico, pensou
Jason. Um coração que batia só para ele,
para ele, o astro. Bem, por extensão
batia em resposta às necessidade de
Heather também.
Ela merecia: tinha cantado bem
aquela noite. Quase tão bem como...
Jason sorriu para si mesmo. Que diabos,
vamos encarar os fatos, pensou. Eles
não ligam todas essas tevês em cores em
três dimensões para ver o artista
convidado. Existem mil artistas
convidados espalhados pela face da
Terra, e mais alguns nas colônias em
Marte.
Eles ligam a tevê, pensou, para ver a
mim. E estou sempre lá. Jason Taverner
nunca desapontou seus fãs e nunca vai
desapontá-los. Seja lá o que for que
Heather sinta pelos fãs dela.
— Você não gosta deles — disse
Jason, enquanto abria caminho aos
empurrões e cotoveladas pelo corredor
enfumaçado cheirando a suor.
— Não gosta deles porque não gosta
de si mesma. No fundo você acha que
eles têm mau gosto.
— Eles são burros — retorquiu
Heather, mal-humorada; xingou baixo ao
ver que seu grande chapéu de abas
largas caiu e desapareceu para sempre
naquele ventre de baleia que era a
multidão de fãs apertados ao seu redor.
— São ordinários — disse Jason ao
ouvido dela, meio escondido na massa
emaranhada de cabelo vermelho e
brilhante. Aquela famosa cascata de
cabelo, copiada com tanta habilidade
nos salões de beleza de toda a Terra.
Heather irritou-se:
— Não diga essa palavra.
— Eles são ordinários — repetiu
Jason — e são uns imbecis. Porque —
continuou, mordiscando a orelha dela
—, porque é isso que significa ser do
tipo ordinário. Certo?
Ela suspirou:
— Oh, meu Deus, como eu queria
estar no aerocarro voando pelo vazio. É
isso que estou querendo: um vazio
infinito. Sem vozes humanas, sem
cheiros humanos, sem mandíbulas
humanas mastigando chiclete de plástico
em nove cores iridescentes.
— Você os odeia mesmo — disse
ele.
— Sim — ela assentiu com
convicção. — E você também. — Parou
por um instante, voltando-se para
encará-lo.
— Você sabe que a sua porcaria de
voz já se acabou; sabe que está só
aproveitando seus dias de glória, que
não voltam mais. — Sorriu então para
ele. Calorosamente. — Será que
estamos ficando velhos? — perguntou,
fazendo-se ouvir acima dos murmúrios e
gritinhos dos fãs. —Juntos? Como
marido e mulher?
— Os do tipo seis não envelhecem
— disse Jason.
— Ah, sim disse — Heather. —
Envelhecem, sim. — Tocou o cabelo
dele castanho ondulado.
— Há quanto tempo você já tinge,
querido? Um ano? Três anos?
— Entre no aerocarro disse ele
brusco, conduzindo-a para fora do
edifício até a calçada do Boulevard
Hollywood.
— Eu entro — disse Heather — se
você cantar para mim um si natural
agudo. Lembra quando você...
Jason empurrou-a para dentro do
aerocarro, espremeu-se pura entrar
também, virou se para ajudar Al Bliss a
fechar a porta, e logo estavam lá em
cima, no céu noturno embaçado de
chuva. O grande céu iluminado de Los
Angeles, brilhante como o meio dia, e é
assim mesmo para você e para mim,
pensou ele. Para nós dois, por todos os
tempos que virão. Sempre será como
agora, porque nós somos do tipo seis.
Nós dois. Quer eles saibam ou não.
Só que não sabem, refletiu pensativo,
saboreando o humor negro da situação.
O conhecimento que eles dois tinham, o
conhecimento não-compartilhado. Pois
assim é que devia ser. E sempre tinha
sido... mesmo agora, depois que tudo
tinha dado errado. Isto é, errado para os
projetistas. Os grandes sábios com suas
hipóteses — hipóteses erradas. Quarenta
e cinco belos anos atrás, quando o
mundo era jovem e as gotinhas de chuva
ainda se apegavam às cerejeiras, agora
desaparecidas, em Washington, D.C. E o
cheiro de primavera pairava sobre o
nobre experimento. Por algum tempo, ao
menos.
— Vamos para Zurique — disse ele.
— Estou muito cansada — disse
Heather. — Além disso aquele lugar me
deixa entediada.
— A casa? — perguntou Jason,
incrédulo. Fora Heather quem escolhera
a casa para eles, e havia anos que para
lá fugiam — especialmente dos fãs que
ela tanto detestava.
Heather suspirou e disse:
— A casa. Os relógios suíços. O
pão. As ruas de pedra. A neve nas
colinas.
— Nas montanhas — disse ele, ainda
melindrado Bom, vou sem você então.
— E vai levar outra pessoa?
Ele simplesmente não conseguia
compreender.
— Você quer que eu leve outra
pessoa comigo? — perguntou.
— Você e o seu magnetismo. Seu
charme. Você conseguiria qualquer
garota no mundo para ir com você para
aquela cama tão grande, com a
cabeceira de bronze. Não que você seja
grande coisa depois que se deita.
— Meu Deus — disse ele com
repulsa. — De novo. Sempre o mesmo
tormento. As mesmas velhas angústias.
E as angústias da sua fantasia, é a essas
coisas que você mais se apega.
Virando-se para olhá-lo de frente,
Heather disse com franqueza:
— Você sabe a aparência que tem,
mesmo agora na sua idade. Você é lindo.
Trinta milhões de pessoas comem você
com os olhos uma hora por semana. O
que os interessa não é ouvir você
cantar... é a sua incurável beleza física.
— Pode-se dizer o mesmo de você
— disse ele, cáustico. Sentia-se cansado
e ansiava pela privacidade e a reclusão
da casa nos arredores de Zurique,
esperando em silêncio que voltassem
mais uma vez. E era como se a casa
(pusesse que eles ficassem não uma
noite, nem sele noites, mas para sempre.
— Eu não mostro minha idade —
disse Heather.
Jason deu uma rápida olhada para
ela, e em seguida estudou-a com
atenção. O volumoso cabelo vermelho, a
pele pálida com algumas sardas, um
forte nariz, romano. Grandes olhos
fundos, cor de violeta, l ia tinha razão;
não mostrava a idade. Claro que ela
nunca se ligava A rede telefônica
transexual, como ele. Mas na verdade
ele fazia isso raras vezes. Portanto, não
era viciado, e no seu caso não houvera
dano cerebral nem envelhecimento
prematuro.
— Você é uma pessoa estupidamente
bonita — disse ele, com ressentimento.
— E você? — disse Heather.
Ele não se deixaria abalar por isso.
Sabia que ainda possuía seu carisma, a
força que haviam gravado em seus
cromossomos quarenta e dois anos
antes. Verdade que o cabelo tinha
embranquecido muito e que ele o tingia.
E algumas rugas haviam surgido aqui e
ali. Mas...
— Enquanto tiver minha voz — disse
ele — estarei bem. Terei o que quero.
Você está errada a meu respeito; é a sua
arrogância de tipo seis, a sua assim
chamada individualidade que você tanto
preza. Está bem, se você não quer ir até
a casa de Zurique, para onde quer ir
então? Para minha casa? Sua casa?
— Quero me casar com você —
disse Heather. — Aí não haverá mais
minha casa versus sua casa, mas sim
nossa casa. E vou parar de cantar vou
ter três filhos, todos parecidos com
você.
— As meninas também?
— Vão ser só meninos — disse
Heather.
Jason inclinou-se beijou a no nariz.
Ela sorriu e pegou a mão dele
afetuosamente.
— Podemos ir para qualquer lugar
esta noite — disse ele numa voz baixa,
firme, controlada bem projetada, quase
uma voz paternal; em geral isso dava
bom resultado com Heather, quando
nada mais funcionava. A menos que eu a
deixe, pensou ele.
Ela temia isso. Às vezes, quando
brigavam, em especial na casa de
Zurique, onde ninguém podia ouvi-los e
nem interferir, ele vira o medo no rosto
dela. A ideia de ficar sozinha a deixava
apavorada; ele sabia disso, ela sabia
disso; o medo fazia parte da realidade
da sua vida em comum. Não da vida
pública; para eles, como autênticos
comunicadores profissionais, tinha de
haver total controle racional: por mais
zangados e distanciados que estivessem,
continuavam funcionando juntos naquele
grande mundo da adoração dos
espectadores, das cartas, dos fãs
barulhentos. Nem o ódio declarado
alterava isso.
Mas de qualquer forma não podia
haver ódio entre eles. Tinham
demasiadas coisas em comum.
Recebiam muito um do outro. Até o
mero contato físico, como o que tinham
naquele momento, sentados lado a lado
no aerocarro Rolls, os fazia felizes. Pelo
menos enquanto durava.
Enfiando a mão no bolso interno do
terno de seda pura feita sob medida —
do qual haveria talvez, dez similares no
mundo todo —, ele tirou um maço de
notas autenticadas pelo governo. Uma
grande quantidade de notas, apertadas
num gordo pacote.
— Você não devia andar com tanto
dinheiro — disse Heather, aborrecendoo com aquele tom de voz que ele
detestava tanto: a voz de mãe dogmática.
— Com isto aqui — disse Jason,
mostrando o maço de notas — podemos
entrar em qualquer...
— Se é que algum estudante não
registrado que fugiu ontem de um refúgio
numa universidade não decepar seu
pulso e fugir com tudo, com a sua mão e
todo esse dinheiro espalhafatoso. Você
sempre foi espalhafatoso. Espalhafatoso
e vulgar. Olhe a sua gravata. Olhe! —
Ela levantara a voz; parecia
genuinamente zangada.
— A vida é curta — disse Jason. —
E a prosperidade mais curta ainda. —
Porém recolocou o maço de notas no
bolso interno e alisou o volume formado
em seu impecável temo. — Quero que
você compre alguma coisa com isso —
disse. Na verdade essa ideia acabara de
lhe ocorrer; o que tinha planejado fazer
com o dinheiro era algo um pouco
diferente: tencionava levá-la para Las
Vogas, para as mesas de vinte-e-um.
Sendo um tipo seis, ele sempre ganhava
no vinte-e-um; tinha vantagem sobre
todo mundo, até sobre o crupiê. Até
mesmo, pensou com prazer, sobre o
dono do cassino.
— Você está mentindo — disse
Heather. — Você não tinha intenção de
me comprar nada. Você nunca pensa
nisso; é tão egoísta e só pensa em si.
Esse dinheiro é para trepar; você vai é
comprar alguma loira de peito grande e
levá-la para a cama com você.
Provavelmente na nossa casa de
Zurique, onde aliás não vou há quatro
meses. Posso muito bem estar grávida.
Ele estranhou que ela dissesse
justamente isso, de todas as possíveis
réplicas que poderiam aflorar à sua
mente loquaz. Mas havia muito em
Heather que ele não compreendia; para
ele, assim como para os fãs, ela não
revelava muitas coisas.
Entretanto, com o passar dos anos ele
aprendera muito sobre ela. Sabia, por
exemplo, que em 1982 ela fizera um
aborto; este também era um segredo bem
guardado. Sabia que numa época fora
casada ilegalmente com o líder de uma
comuna estudantil, e que— durante um
ano vivera nas tocas subterrâneas da
Universidade de Colúmbia, junto com
todos aqueles estudantes barbudos e
malcheirosos, que viviam
permanentemente debaixo da terra por
medo dos tiras e dos GN a polícia e a
Guarda Nacional que rodeavam todos os
campus, impedindo que os estudantes
emergissem para a sociedade, como se
fossem ratos negros debandando de um
navio que se afunda.
E sabia também que um ano antes ela
fora presa por porte de drogas. Apenas a
família, rica e poderosa, conseguira tirála daquela: o dinheiro, o carisma e a
fama de Heather de nada valeram na
hora da confrontação com a polícia.
Ela ficara um pouco marcada por
tudo o que lhe acontecera, mas Jason
sabia que agora ela estava bem como
todos os do tipo seis, tinha uma enorme
capacidade de recuperação. Era algo
que havia sido cuidadosamente
incorporado em cada um deles. Assim
como muitas, muitas outras coisas. Nem
mesmo ele, aos 42 anos, sabia de todas
essas coisas. E muito acontecera a ele
também principalmente sob a forma de
cadáveres, os restos de outros
apresentadores em quem pisoteara ao
longo de sua longa escalada até o topo.
Estas gravatas “espalhafatosas"
começou, mas nesse momento o telefone
do aerocarro tilintou Jason atendeu.
Devia ser Al Bliss com os índices de
audiência do show daquela noite.
Mas não era. Uma estridente voz
feminina feriu seu ouvido, dizendo alto:
— Jason?
— Sim — respondeu. Tapando o
bocal do telefone, disse a Heather:
— É a Marilyn Mason. Porque
diabos dei a ela o número do meu
aerocarro?
— E quem é essa tal de Marilyn
Mason? — perguntou Heather.
— Eu lhe digo depois. — Destapou o
bocal. Sim, querida, aqui fala Jason em
pessoa, ele mesmo em carne e osso. O
que foi? Sua voz está terrível. Estão
despejando você de novo? — Piscou
para Heather com um sorrisinho.
— Dispense essa mulher — disse
Heather.
Tapando outra vez o bocal, ele
respondeu:
— É o que estou tentando fazer; não
está percebendo?
Continuou ao telefone:
— Certo, Marilyn. Desabafe suas
mágoas comigo; é para isso que estou
aqui.
Nos últimos dois anos Marilyn
Mason fora sua protegida, por assim
dizer. Queria ser cantora; ser famosa,
rica e amada — como ele. Um dia ela
aparecera no estúdio durante um ensaio,
e chamou a atenção dele. Um rostinho
espremido e preocupado, pernas curtas,
saia curtíssima — tudo isso ele notou no
primeiro olhar, como era seu costume.
Uma semana depois conseguiu um teste
para ela na Columbia Records com o
chefe dos artistas e do repertório.
Muita coisa aconteceu naquela
semana, mas sem nada a ver com
música. A voz estrídula de Marilyn
chegou ao seu ouvido:
— Preciso ver você. Se não vou me
matar e a culpa vai ser sua. Para o resto
da sua vida. E vou contar àquela
fulaninha, aquela tal de Heather Hart,
que nós dormimos juntos o tempo todo.
Interiormente ele deu um suspiro.
Caramba, já eslava cansado do seu
show, onde durante uma hora só fazia
sorrir, sorrir, sorrir.
— Estou a caminho da Suíça, onde
vou passar o resto da noite — disse com
firmeza, como se falasse com uma
criança histérica. Em geral isso
funcionava quando Marilyn entrava num
dos seus acessos acusatórios, quase
paranoides. Mas dessa vez não, é claro.
— Leva cinco minutos para você
chegar até aqui nesse seu aerocarro
Rolls Royce de um milhão de dólares —
era a voz de Marilyn penetrando de
novo seu ouvido. — Só quero falar com
você cinco segundos. Tenho uma coisa
muito importante para lhe dizer.
“Deve estar grávida”, pensou Jason.
Em algum momento, premeditadamente
ou não, ela esquecera de tomar a pílula.
— O que você pode me dizer em
cinco segundos que eu ainda não saiba?
retorquiu ele, brusco.
— Diga agora.
— Quero você aqui comigo — disse
Marilyn, com sua costumeira total falta
de consideração. — Você tem que vir.
Faz seis meses que não vejo você e
tenho pensado muito sobre nós dois
especialmente sobre aquele último teste.
— Está bem disse ele, sentindo-se
ressentido e amargurado. Era isso o que
ganhava tentando fabricar para ela, que
não tinha talento algum, uma carreira.
Desligou o telefone com força, virou-se
se para Heather e disse:
— Ainda bem que você nunca cruzou
com ela, é uma verdadeira...
— Conversa fiada — disse Heather.
— Eu nunca “cruzei com ela" porque
você sempre tomou o máximo cuidado
para que isso não acontecesse.
— Bem de qualquer forma — disse
ele, fazendo uma curva á direita com o
aerocarro — consegui para ela não só
um teste, mas dois, e ela levou bomba
nos dois. E para conservar o auto
respeito ela tem que pôr a culpa em
mim.
Fui eu que de algum jeito a levei ao
fracasso. Você já viu tudo, não é?
— Ela tem os peitos bonitos?
perguntou Heather.
— Para falar a verdade, tem. Deu um
largo sorriso, e Heather também riu.
Você já conhece meu ponto fraco. Mas
eu fiz minha parte do trato; consegui um
teste para ela; aliás, dois. O último foi
há seis meses e sei muito bem que ela
ainda está ruminando a coisa toda e
fumegando de raiva. Só gostaria de
saber o que ela quer me dizer.
A justou o módulo de controle para
dirigir-se automaticamente ao prédio de
apartamentos de Marilyn, que tinha no
(elo um pequeno mas adequado campo
de pouso.
— Ela deve estar apaixonada por
você — disse Heather, enquanto ele
estacionava o aerocarro na vertical e
baixava a escada.
— Como quarenta milhões de outras
— disse Jason, afável.
Acomodando-se no assento, Heather
disse:
— Não demore, senão juro que vou
decolar sem você.
— E vai me deixar preso com
Marilyn? — disse ele — Ambos riram.
— Volto já. — Atravessando o campo
de pouso, foi até o elevador e apertou o
botão.
Quando entrou no apartamento de
Marilyn, viu de imediato que ela estava
fora de si. Seu rosto estava lodo
contraído e seu corpo tão encolhido que
parecia que ela estava tentando ingerir a
si mesma. E os olhos. Havia muito
poucas coisas nas mulheres que o
embaraçavam, mas esses olhos o
deixaram desconcertado. Olhos bem
redondos, com pupilas enormes que o
penetravam enquanto ela o encarava em
silêncio, de braços cruzados, rígida e
irredutível como uma barra de ferro.
— Pode falar — disse Jason,
tentando perceber onde poderia levar
uma vantagem. Em geral — na verdade,
quase sempre — ele conseguia controlar
uma situação que envolvia uma mulher;
era, a bem dizer, sua especialidade. Mas
agora... sentia-se constrangido. Ela
continuava sem dizer nada. Seu rosto,
sob várias camadas de maquilagem,
tornara-se totalmente exangue, como se
ela fosse um cadáver ambulante.
— Você está querendo outro teste?
perguntou Jason. — É isso?
Marilyn fez que não.
— Está bem; me diga então o que há
disse aborrecido, e ainda contrafeito.
Contudo, não mostrava na voz o
constrangimento; era demasiado
astucioso, demasiado experiente, para
deixá-la perceber sua insegurança. No
confronto com uma mulher noventa por
cento era blefe, de ambos os lados.
Tudo dependia de como se fazia a coisa,
não da coisa em si.
— Tenho algo para você. Marilyn
virou-se e foi para a cozinha, saindo da
sua vista. Jason foi andando atrás dela.
— Você ainda está me culpando pelo
insucesso dos seus dois... — começou
ele.
— Aqui está — disse Marilyn. Tirou
da pia um saco plástico, segurou-o por
um momento, com o rosto ainda pálido e
hirto, seus olhos fixos e saltados, e então
com um puxão abriu o saco, balançou o
e aproximou-se rapidamente de Jason.
Tudo aconteceu muito depressa. Ele
se afastou por instinto, mas tarde
demais, e muito devagar. A esponja
gelatinosa Calisto com seus cinquenta
tubos de alimentação prendeu se nele,
grudando se em seu peito.
De um pulo ele alcançou o armário
da cozinha, apanhou uma garrafa de
uísque, abriu a tampa com dedos ágeis e
derramou o liquido na criatura
gelatinosa. Sua mente estava lúcida, até
brilhante. Não entrou em pânico; apenas
continuava derramando uísque em cima
daquela coisa.
Por alguns instantes nada aconteceu.
Ele ainda conseguiu manter a calma não
entrar em pânico. E a coisa então
começou a formar bolhas, encolheu-se
toda e caiu do seu peito no chão tinha
morrido.
Sentindo-se fraco, sentou se a mesa
da cozinha. Agora viu se lutando para
não perder a consciência. Alguns tubos
de alimentação continuavam dentro dele,
ainda vivos.
— Nada mal — conseguiu dizer. —
Você quase me pega, sua putinha.
— Quase não — disse Marilyn
Mason num tom neutro, sem emoção. —
Alguns tubos de alimentação ainda estão
em você, e você sabe disso; estou vendo
na sua cara. E não é uma garrafa de
uísque que vai conseguir tirá-los. Nada
vai conseguir tirá-los.
Neste ponto ele desmaiou. Viu
vagamente o assoalho verde e cinza
levantar-se para recebê-lo e então houve
o vazio. Um vácuo onde nem ele mesmo
estava.
Dor. Abriu os olhos, tocou seu peito
devagar. Seu terno feito a mão
desaparecera; estava com um roupão
hospitalar de algodão, deitado numa
padiola.
— Meu Deus — disse com voz
pastosa, enquanto dois ajudantes
empurravam depressa a padiola pelo
corredor do hospital.
Heather Hart inclinou-se sobre ele;
estava chocada e ansiosa, mas como ele,
em perfeita posse de suas faculdades. —
Sabia que alguma coisa estava errada —
disse ela.
Logo que os ajudantes o trouxeram na
padiola até o quarto.
— Não esperei por você no
aerocarro; desci atrás de você.
— Deve ter pensado que estávamos
na cama disse ele, fraco.
O médico falou — continuou Heather
que em mais quinze segundos você teria
sucumbido à "violação somática”, como
ele disse. Aquela coisa ia entrar em
você.
— Peguei a coisa — disse ele. —
Mas não todos os tubos. Foi tarde
demais.
— Eu sei — disse Heather. — O
médico me falou. Estão querendo operar
o mais rápido possível; é possível fazer
alguma coisa se os tubos ainda não
penetraram fundo demais.
— Fui bom na crise — disse Jason,
rangendo os dentes; fechou os olhos e
suportou a dor.
— Mas não tão bom quanto deveria.
Não tanto. — Abrindo os olhos, viu que
Heather estava chorando.
— É tão grave assim? — perguntou;
estendeu o braço e pegou a mão dela.
Sentiu a pressão do amor de Heather que
lhe apertava os dedos, e então não houve
mais nada. Exceto a dor. Mas nada mais,
nem Heather, nem hospital, nem
ajudantes, nem luz. E nenhum som. Foi
um momento eterno que o absorveu por
completo.
2
A luz voltou a infiltrar-se,
preenchendo seus olhos fechados com
uma iluminada membrana vermelha.
Abriu os olhos, levantou a cabeça para
olhar em volta. Procurou Heather ou um
médico.
Estava sozinho no quarto. Ninguém
mais. Uma penteadeira com um espelho
rachado, velhas e feias luminárias
projetando-se das paredes
engorduradas. E de algum lugar próximo
o alarido de uma tevê.
Não estava num hospital.
E Heather não estava com ele; sentia
a ausência dela, o vazio total de tudo,
por causa dela.
"Meu Deus", pensou. “O que
aconteceu?"
A dor no peito desaparecera, assim
como tantas outras coisas. Trêmulo,
afastou o cobertor manchado, sentou-se,
esfregou a testa, pensativo, concentrou
sua vitalidade.
Isto é um quarto de hotel, percebeu.
Um hotel barato, sujo e cheio de insetos.
Sem cortinas, sem banheiro. Como hotel
que morara anos atrás, no começo de sua
carreira. Naquele tempo em que era
desconhecido e não tinha dinheiro. Os
dias negros que ele procurava afastar ao
máximo da memória.
O dinheiro. Apalpou suas roupas,
descobriu que não estava com o roupão
do hospital, mas sim, outra vez com o
seu terno feito a mão, muito amassado. E
no bolsointerno o maço de notas altas, o
dinheiro que ele pretendia levar para
Las Vegas.
Pelo menos isto ele ainda tinha.
Logo olhou em volta, procurando um
telefone. Não, claro que não havia. Mas
devia haver um no corredor. Mas quem
iria chamar? Heather? Seu agente Al
Bliss? Mory Mann, o produtor de seu
show? Seu advogado, Bill Wolfer? Ou
talvez todos eles, e o mais rápido
possível.
Com as pernas trêmulas, conseguiu
ficar em pé; ficou ali balançando,
xingando por razões que não
compreendia. Um instinto animal o
segurava; com seu corpo forte de tipo
seis preparou-se para lutar. Mas não
conseguia discernir o antagonista, e isso
o assustou. Pela primeira vez, tanto
quanto pudesse se lembrar, sentiu
pânico.
Será que já passou muito tempo?
perguntou-se. Não sabia dizer; estava
sem noção de tempo. Era de dia. As
mosquinhas voavam zunindo no céu, que
via pela vidraça suja da janela. Olhou o
relógio; eram dez e trinta. E daí? Podia
ser mil anos depois, pelo que sabia. Seu
relógio não era de nenhuma ajuda.
Mas o telefone sim. Conseguiu sair
para o corredor empoeirado, encontrou
as escadas, desceu degrau por degrau
segurando no corrimão até que se viu
enfim num saguão vazio e deprimente,
com poltronas estofadas caindo aos
pedaços.
Felizmente tinha moedas. Introduziu
uma moeda de ouro de um dólar e
discou o número de Al Bliss.
— Agência de Talentos Bliss — veio
a voz de All.
— Escute — disse Jason —, não sei
onde estou. Pelo amor de Deus, venha
me buscar; me tire daqui, me leve para
algum lugar. Está entendendo. All? Está
compreendendo?
Silêncio no fone. E então numa voz
distante e impassível Al Bliss
perguntou:
— Com quem estou falando ?
Jason respondeu, enrolando a língua.
— Não o conheço, Sr. Jason
Taverner — disse Al Bliss, de novo
com sua voz mais neutra e imparcial.
— Tem certeza de que discou o
número correto? Com quem o senhor
desejava falar?
Com você, Al. Com Al Bliss, meu
agente. O que aconteceu no hospital?
Como foi que eu saí de lá e cheguei
aqui? Você sabe? Seu pânico diminuiu à
medida que se forçou a recobrar o
autocontrole; conseguiu fazer as
palavras saírem razoavelmente claras.
— Dá para você chamar a Healher para
mim?
— A Srta Hart? disse Al, com uma
risadinha. Não respondeu.
— Você — disse Jason com
violência — está acabado como meu
agente. Ponto final. Seja qual for a
situação. Você está fora da jogada.
Ouviu Al Bliss rir outra vez; então
com um clique a linha telefônica
emudeceu. Al Bliss tinha desligado.
"Eu mato esse filho da mãe”, disse
Jason para si mesmo "Vou picar em
pedacinhos aquele gordão careca filho
da puta."
"Mas o que ele está querendo fazer
comigo? Não compreendo. O que tem
contra mim de repente? Que diabo eu lhe
fiz? Ele é meu amigo e agente há
dezenove anos. E numa aconteceu nada
desse tipo.”
"Vou tentar Bill Wolfer", decidiu,
“Ele está sempre no escritório ou
visitando clientes; vou falar com ele e
descobrir que negócio é esse."
Colocou mais uma moeda de ouro de
um dólar no telefone e discou outra vez,
lembrando-se do número de cor.
— Wolfer e Blaine, Advogados —
veio a voz de uma recepcionista.
— Quero falar com Bill disse Jason.
— Aqui fala Jason Taverner. Você sabe
quem eu sou.
— O Sr. Wolfer está hoje no tribunal.
O senhor gostaria de falar com o Sr.
Blaine, ou prefere que o Sr. Wolfer
ligue quando voltar para o escritório
mais tarde?
— Você sabe quem eu sou? —
perguntou Jason. — Sabe quem é Jason
Taverner? Você assiste televisão? —
Sua voz quase sumiu nesse ponto; ouviua falhar e subir de novo com grande
esforço conseguiu controlá-la, mas não
podia impedir que suas mãos tremessem;
na verdade seu corpo todo tremia.
— Lamento, Sr Taverner — disse a
recepcionista. — Não posso responder
pelo Sr. Wolfer, nem...
— Você assiste televisão? — ele
interrompeu
— Sim.
— E nunca ouviu falar de mim? O
Show Jason Taverner, terça-feira às
nove horas?
— Sinto muito, Sr. Taverner. O
senhor precisa mesmo falar diretamente
com o Sr. Wolfer. Me dê o número de
onde o senhor está ligando e eu lhe
pedirei que ligue para o senhor ainda
hoje.
Ele desligou.
“Estou louco”, pensou. “Ou ela está
louca. Ela e o Al Bliss, aquele filho da
puta. Meu Deus.” Trêmulo, afastou— se
do telefone e sentou-se numa poltrona
desbotada. Era bom sentar; fechou os
olhos, respirou bem fundo devagar. E
refletiu.
“Tenho cinco mil dólares em notas de
alto valor. Portanto não estou totalmente
indefeso. E aquela coisa saiu do meu
peito, com todos os tubos de
alimentação. Eles devem ter conseguido
tirá-los com a cirurgia. Quer dizer que
pelo menos estou vivo; já é um motivo
para eu ficar contente. Será que houve
um lapso de tempo? Onde haveria um
jornal?”
Encontrou um Los Angeles Times em
cima de um sofá e leu a data. Doze de
outubro de 1988. Nenhum lapso de
tempo. Era o dia seguinte ao dia do seu
show, quando Marilyn o mandara ao
hospital, morrendo.
Ocorreu-lhe uma ideia. Folheou o
jornal até encontrar a coluna dos
espetáculos. No momento ele se
apresentava todas as noites no Salão
Persa do Hollywood Hilton; vinha
fazendo isso há três semanas, exceto às
terças feiras, quando tinha seu show na
tevê.
Seu anúncio, que o pessoal do hotel
vinha colocando diariamente há três
semanas, não estava em nenhum lugar
daquela página. Um pouco tonto, pensou
que talvez estivesse em outra página.
Percorreu minuciosamente toda a seção
de espetáculos do jornal. Anúncios e
mais anúncios de shows, mas nenhuma
menção a ele. E seu rosto vinha
aparecendo na seção de espetáculos dos
jornais há dez anos. Sem interrupção.
“Vou fazer mais uma tentativa”,
decidiu. “Vou tentar Mory Mann.”
Pegou sua carteira e procurou um
papel onde tinha o número de Mory.
A carteira eslava muito fina.
Todos os seus documentos tinham
sumido. Cartões que possibilitavam sua
existência. Cartões que o faziam passar
por barricadas de tiras e GNs sem levar
um tiro nem ser mandado para um campo
de trabalhos forçados.
"Não posso viver nem duas horas
sem minha carteira de identidade", disse
para si mesmo. "Não me atrevo nem a
sair do saguão desta espelunca e andar
na calçada. Eles vão pensar que sou
algum aluno ou professor que escapou
de uma universidade. Vou passar o resto
da minha vida como escravo, fazendo
trabalho pesado. Sou o que eles chamam
de não-pessoa.
"Portanto minha primeira tarefa”,
pensou, "é continuar num vivo. Que se
dane Jason Taverner como figura
pública, posso pensar nisso depois. "
Sentia agora em seu cérebro os
poderosos elementos tipo seis já
entrando em foco. "Não sou como os
outros homens", pensou "Vou conseguir
sair desta situação, seja qual for. De
algum jeito. "
"Por exemplo", percebeu. "com todo
esse dinheiro posso ir até Watts e
comprar documentos falsos. Posso
encher a carteira com eles. Deve haver
uns cem fulaninhos fazendo esse serviço,
pelo que ouvi. Mas nunca pensei que
chegaria a precisar deles. Eu, Jason
Taverner, um comunicador com um
público de trinta milhões de pessoas.”
“Entre esses trinta milhões”,
perguntou-se, “não haverá um que se
lembre de mim? Se é que ‘lembrar-se’ é
a palavra certa. Estou falando como se
já tivesse passado muito tempo, como se
eu fosse agora velho e superado,
vivendo das glórias do passado. E não é
isso que está acontecendo.”
Voltando ao telefone, procurou o
número do Centro de Registro de
Nascimentos de Iowa; com diversas
moedas de ouro conseguiu afinal
contatá-los, depois de muita espera.
— Meu nome é Jason Taverner —
disse ao funcionário. — Nasci em
Chicago, no Hospital Memorial, em 16
de dezembro de 1946. O senhor poderia
conferir e me fazer uma cópia de minha
certidão de nascimento? Preciso dela
para me candidatar a um emprego.
— Pois não, um momento.
Jason esperou e o funcionário voltou
à linha.
— Sr. Jason Taverner, nascido no
condado de Cook em 16 de dezembro de
1946.
— Sim — respondeu Jason.
— Não temos nenhum registro de
nascimento com esse nome, lugar e data.
O senhor tem certeza absoluta dos
dados?
— Está perguntando se eu sei meu
nome, onde e quando nasci? — Sua voz
mais uma vez fugiu ao controle, mas
dessa vez ele não a impediu; sentiu-se
inundado de pânico. — Obrigado —
disse e desligou, tremendo com
violência. Tremendo de corpo e alma.
“Eu não existo”, disse para si mesmo.
“Não há nenhum Jason Taverner. Nunca
houve e nunca haverá. Para o inferno
com minha carreira; quero apenas viver.
Se há alguém ou alguma coisa querendo
eliminar minha carreira, tudo bem, fique
à vontade. Mas será que não tenho
licença nem para existir? Será que eu
nem nasci?”
Algo se mexeu em seu peito. Pensou
com terror: “Eles não extraíram todos os
tubos; alguns ainda estão crescendo e se
alimentando dentro de mim. Aquela
vagabunda sem talento nenhum! Tomara
que ela acabe rodando a bolsinha por
dois dólares a bimbada”.
“Depois de tudo que fiz por ela.
Consegui dois testes para ela com o
pessoal do estúdio. Mas enfim, comi-a
uma porção de vezes. Acho que estamos
quites.”
Voltando ao seu quarto de hotel, deu
uma boa olhada no espelho todo cheio
de sujeira de mosca. Sua aparência não
se havia alterado; apenas precisava
fazer a barba. Não estava mais velho.
Nenhuma ruga nova, nenhum cabelo
branco aparecendo. Os ombros e braços
fortes de sempre. Nenhuma gordura na
cintura, o que lhe permitiria usar a roupa
justa que estava na moda para os
homens.
“E isso é importante para a imagem
de uma pessoa”, pensou. “O tipo de
ternos que se pode usar, especialmente
aqueles apertados na cintura. Devo ter
uns cinquenta desses. Ou pelo menos
tinha. Onde estarão agora?”, perguntouse. “O pássaro se foi; em que ravina
cantará agora? Ou algo assim.” Uma
coisa do passado, do seu tempo de
escola. Esquecida até este momento.
‘‘Que estranho”, pensou, “as coisas que
aparecem na cabeça da gente numa
situação desconhecida e sinistra. Às
vezes são as coisas mais triviais que se
possa imaginar.
"Se querer fosse poder, os mendigos
seriam príncipes. Coisas assim. Dá pra
deixar a gente louco.”
Perguntou se quantos postos de tiras e
GNs haveria entre este hotel miserável e
o falsificador mais próximo em Watts.
Dez? Treze? Dois? 'Para mim”, pensou,
“basta um. Se por acaso eu for
entrevistado por uma patrulha com uma
equipe de três GNs... Com aquela droga
de rádio que os comunica com a central
de informações dos tiras em Kansas
City, onde eles tem os arquivos.”
Arregaçou a manga da camisa e
examinou seu braço. Sim, lá estava: seu
número de identidade tatuado. Sua chapa
de identidade somática, que seria levada
por ele pela vida toda, e por fim
enterrada com ele em seu almejado
túmulo.
Bem. Os tiras e GNs da patrulha
comunicariam seu número de identidade
para Kansas City e aí — o que
aconteceria? Seu dossiê ainda estaria lá,
ou teria sumido também, como o registro
do nascimento? E se não estivesse lá, o
que achariam de tudo isso os burocratas
da GN?
"Um erro de arquivamento. Alguém
arquivou em lugar errado o microfilme
do dossiê. Vai acabar reaparecendo.
Algum dia, quando isso já não tiver
nenhuma importância, quando eu já tiver
passado anos da minha vida numa
pedreira da Lua trabalhando com uma
picareta. Se o dossiê não estiver lá, eles
vão concluir que sou um estudante
foragido, pois só os estudantes não têm
dossiê na GN; até mesmo alguns
estudantes, os líderes mais importantes,
estão fichados.”
"Estou no fundo do poço”, percebeu.
“E não consigo nem alcançar de novo a
mera existência física. Eu, um homem
que ontem tinha um público de trinta
milhões. Algum dia de algum jeito, vou
conseguir chegar até eles de novo Mas
não agora. Há outras coisas que vêm
primeiro.
O esqueleto mais elementar da
existência, que cada homem traz ao
nascer: não tenho nem sequer isso. Mas
vou conseguir: um tipo seis não é um
ordinário. Nenhum ordinário teria
sobrevivido nem física nem
psicologicamente se passasse pelo que
passei. Especialmente pela incerteza."
“Um tipo seis sempre tem
precedência, sejam quais forem as
circunstâncias externas. Porque é dessa
forma que eles nos definiram
geneticamente.”
Saiu de novo do quarto, desceu a
escada e chegou até a mesa da recepção.
Um homem de meia-idade com um
bigodinho fino estava lendo a revista
Box; sem levantar os olhos disse:
— Sim, senhor.
Jason tirou o maço do bolso e pôs
uma nota de quinhentos dólares no
balcão em frente ao homem. O
recepcionista deu uma olhada para a
nota e em seguida olhou de novo com os
olhos bem abertos. Com cautela olhou
então para Jason, com ar interrogativo.
— Meus documentos foram roubados
— disse Jason.
— Essa nota de quinhentos é sua se
você conseguir alguém que me arranje
outras IDs.{1} Se você quiser, é pra já;
não vou esperar.
“Esperar até ser preso por um tira ou
um GN”, pensou. “Apanhado aqui neste
hotelzinho vagabundo.”
— Ou pego na calçada em frente à
entrada — disse o funcionário. — Sou
meio telepata. Sei que este hotel não é
grande coisa, mas não temos percevejos.
Uma época tivemos pulgas de areia
vindas de Marte, mas se acabaram. —
Pegou a nota de quinhentos dólares.
— Vou levar você para alguém que
pode ajudá-lo — disse. Examinando
com atenção o rosto de Jason, fez uma
pausa e disse: Você acha que é famoso.
Bem, aqui já tivemos de tudo.
— Vamos embora — disse Jason,
ríspido. — Agora.
— Agora mesmo — disse o
funcionário, e pegou seu casaco de
plástico brilhante.
3
Dirigindo devagar seu velho e
barulhento mosquinha, o funcionário do
hotel disse inesperadamente a Jason,
sentado ao seu lado:
— Estou captando uma porção de
coisas estranhas em sua mente.
— Saia da minha mente disse Jason
rispidamente, com aversão. Sempre
detestara os abelhudos telepatas,
movidos pela curiosidade, e essa vez
não foi exceção. — Deixe minha mente
em paz e me leve para a pessoa que vai
me ajudar. E trate de não passar por
nenhuma barricada da GN. Se é que
você espera sair vivo dessa.
O funcionário disse com suavidade:
— Você não precisa me dizer isso;
sei o que aconteceria com você se nós
fôssemos detidos. Já fiz isso muitas
vezes. Para os estudantes. Mas você não
é estudante. Você é um homem rico e
famoso. Mas ao mesmo tempo não é. Ao
mesmo tempo não é ninguém. Você nem
existe, do ponto de vista legal. — Deu
um risinho cansado, com os olhos fixos
no trânsito à sua frente. Jason notou que
guiava como uma velha, com as duas
mãos agarrando o volante.
Chegaram então às favelas de Watts,
lojinhas escuras de ambos os lados da
rua atravancada, latas de lixo
transbordantes, a calçada cheia de
garrafas quebradas, placas mal pintadas
mostrando Coca-Cola em letras grandes
e o nome da loja bem pequeno. Numa
esquina um negro idoso tentava
atravessar, hesitante, tateando como se
estivesse cego pela idade.
Ao vê-lo, Jason sentiu uma estranha
emoção. Havia agora tão poucos negros
ainda vivos, devido á famosa lei de
esterilização de Tidman que o
Congresso aprovara nos terríveis dias
da Insurreição. Com cuidado o
funcionário diminuiu a marcha de seu
resfolegante mosquinha para não
assustar o negro idoso, com seu terno
marrom amassado e descosturado. Era
claro que sentia o mesmo que ele.
— Você se dá conta —disse ele a
Jason — que se eu o atropelar estarei
sujeito à pena de morte?
— É assim que deve ser — disse
Jason.
— São como o último bando de grous
— disse o funcionário, seguindo em
frente agora que o negro idoso tinha
chegado à outra calçada. — São
protegidos por mil leis. Não se pode
mexer com eles; não se pode entrar
numa briga com eles sem se arriscar a
pegar um processo criminal e dez anos
de cadeia. Mesmo assim estamos
conseguindo que eles morram aos
poucos. É isso que queria Tidman, e
também, creio eu, a maioria dos
Silenciadores, mas... — fez um gesto,
tirando pela primeira vez uma mão do
volante. — Tenho saudades das
crianças. Lembro quando tinha dez anos
e brincava com um menininho negro...
Aliás não foi longe daqui. Ele sem
dúvida deve estar esterilizado, hoje.
— Mas ele teve um filho — observou
Jason. — Sua mulher teve que entregar o
cupom de nascimentos quando nasceu
seu único filho... Mas eles têm essa
criança. A lei permite que, eles a
tenham. E há milhões de estatutos que
protegem a segurança deles.
— Dois adultos, uma criança —
disse o funcionário.
— Assim a população negra vai-se
reduzindo à metade em cada geração.
Engenhoso. Temos que tirar o chapéu a
Tidman: ele resolveu mesmo o problema
racial.
— Alguma coisa tinha que ser feita
— disse Jason; sentava-se rígido no
assento, examinando a rua, procurando
sinais de alguma patrulha de tiras ou
barricada de GNs. Não via nada do
gênero; mas quanto tempo ainda teriam
que continuar a rodar?
— Estamos quase chegando — disse
o funcionário com calma. Virou a
cabeça por um momento para encarar
Jason. — Não gosto de suas ideias
racistas — disse.
— Mesmo com os quinhentos dólares
que você está me pagando.
— Os negros que ainda estão vivos
para mim bastam —disse Jason.
— E quando morrer o último?
Jason disse:
— Você pode ler meus pensamentos;
não preciso lhe dizer.
— Puxa — exclamou o funcionário,
voltando sua atenção para o trânsito.
Viraram bruscamente à direita e
prosseguiram por prosseguiram por uma
que estreita viela que tinha portas de
madeira fechadas e trancadas de ambos
os lados. Nenhuma tabuleta por aqui.
Apenas silencio, caluda. E pilhas de
entulho.
— O que há atrás dessas portas?
perguntou Jason.
— Pessoas como você. Pessoas que
não podem sair à rua. Mas são
diferentes de você num aspecto: não têm
quinhentos dólares... E muito mais
ainda, se é que estou captando você
direito.
— Vai me custar muito dinheiro —
Jason disse cabisbaixo — conseguir
meus documentos. Provavelmente tudo o
que tenho.
— Ela não vai cobrar muito de caro
você — disse O funcionário
estacionando o mosquinha com a frente
sobre a calçada da viela. Jason espiou
para fora pela janela e viu um
restaurante abandonado, todo fechado
por tabuas, com as janelas quebradas.
Dentro, totalmente escuto. O lugar o
repugnava, mas pelo jeito era lá mesmo.
Teria que aceitar, dada a sua situação;
não podia se dar ao luxo de escolher.
Além disso tinham evitado todos os
postos de fiscalização e barricadas do
caminho; o funcionário escolhera bem a
rota. No fim das contas, tinha muito
pouco de que reclamar.
Aproximou-se com o funcionário da
porta quebrada do restaurante, que
estava aberta. Nenhum dos dois falava:
concentravam-se em evitar os pregos
enferrujados que saíam das placas de
compensado que haviam sido pregadas
com certeza para proteger as janelas.
— Me dê a mão — disse o
funcionário, estendendo a sua na
escuridão cheia de sombras que os
cercava.
— Conheço o caminho e está muito
escuro. Cortaram a eletricidade desse
quarteirão há três anos. Para tentai
forçar as pessoas a deixarem vagos os
edifícios e assim poderem queimar tudo.
Mas a maioria continua aqui.
A mão úmida e fria do funcionário do
hotel o conduziu através do que lhe
pareceu ser cadeiras e mesas
amontoadas, formando pilhas irregulares
de pernas e superfícies, entremeadas de
teias de aranha e poeira granulosa.
Enfim deram de encontro com uma
parede negra e imóvel; ali o funcionário
parou, soltou a mão de Jason e mexeu
em alguma coisa na escuridão.
— Não dá para abrir — disse ele,
ainda remexendo na parede. — Só abre
por dentro, pelo lado dela. Estou só
dando o sinal de que estamos aqui.
Um pedaço da parede deslizou para o
lado com um mugido. Jason olhou para
dentro mas viu apenas mais escuridão. E
abandono.
— Entre — disse o funcionário,
conduzindo-o para dentro. Após uma
pausa, a parede deslizou outra vez e
fechou-se atrás deles.
Luzes piscavam. Ofuscado, Jason
protegeu a vista e deu então uma boa
olhada no ateliê.
Era pequeno. Mas viu vários objetos
que lhe pareceram ser máquinas
complexas e altamente especializadas.
No extremo oposto, uma bancada de
trabalho. Ferramentas às centenas, todas
dispostas ordenadamente nas paredes.
Sob a bancada grandes caixas de
papelão, provavelmente contendo papéis
de vários tipos. Uma pequena
impressora movida por um gerador.
E a garota. Estava sentada num
banquinho alto, compondo a mão uma
linha de tipos. Jason conseguiu
distinguir seu cabelo claro, muito longo
e fino, que lhe escorria pela nuca até a
camisa de trabalho de algodão. Usava
jeans e mostrava os pequeninos pés
descalços. Pareceu-lhe que teria quinze
ou dezesseis anos. Não se podia dizer
que tivesse seios, mas tinha belas pernas
longas; ele gostava disso. Não usava
nenhuma maquilagem, o que deixava
suas feições com um tom esbranquiçado,
meio pastel.
— Oi — ela cumprimentou.
O funcionário disse:
— Já vou indo. Vou tentar não gastar
os quinhentos dólares num lugar só.
Tocou um botão que fez a parede
deslizar para o lado; ao mesmo tempo as
luzes do ateliê se apagaram, deixando os
outra vez em completa escuridão.
Do seu banquinho a garota disse:
— Eu sou Kathy.
— Meu nome e Jason. A parede se
fechara de novo e as luzes se
acenderam. “Ela é muito bonita mesmo”,
pensou. Exceto pelo seu ar passivo,
quase indiferente. Como se para ela
nada valesse nada. Apatia? Não, foi a
conclusão dele. Era tímida, era essa a
explicação.
— Você deu a ele quinhentos dólares
para trazê-lo aqui? disse Kathy,
espantada. Observou-o com ar crítico,
como se quisesse tirar uma conclusão a
respeito dele, baseando se na sua
aparência.
— Meu terno não costuma estar tão
amassado — disse Jason.
— É um belo terno. De seda?
— Sim.
— Você é estudante? perguntou
Kathy, ainda o examinando. — Não, não
é não; você não tem aquela cor pastosa
que eles têm, de tanto viver nos
subterrâneos. Bem, isso só deixa uma
outra possibilidade.
— Que eu seja um criminoso —
disse Jason. — Tentando mudar minha
identidade antes que os tiras e os GNs
me peguem.
— É isso? — perguntou ela, sem
nenhum traço de apreensão. Foi uma
pergunta simples e objetiva.
— Não. — No momento não se
estendeu em detalhes. Talvez mais tarde.
Kathy disse:
— Você não acha que muitos desses
GNs são robôs e não pessoas reais?
Como eles sempre estão com aquelas
máscaras de gás, não dá para se ver.
— Para mim já basta detestá-los —
disse Jason. — Não preciso investigar o
assunto mais a fundo.
— Que tipo de ID você quer?
Carteira de motorista? Ficha policial?
Atestado de emprego legal?
— Tudo — respondeu ele. —
Incluindo a carteirinha de sócio do
Sindicato dos Músicos, Local Doze.
— Ah, você é músico — ela o olhou
com mais interesse.
— Sou vocalista — disse ele. — Sou
animador de um programa de variedades
na tevê, que vai ao ar As terças feiras
das nove às dez. Talvez você já tenha
assistido. É o Show Jason Taverner.
— Não tenho mais televisão — disse
a garota.
— Assim, não poderia reconhecê-lo.
É divertido fazer esse show?
— Às vezes. A gente fica conhecendo
uma porção de gente do show-biz, e isso
é bom, se é o que a gente quer.
— Descobri que de modo geral eles
são pessoas como outras quaisquer. Têm
lá os seus medos. Não são perfeitos.
Alguns são muito engraçados, tanto na
frente como atrás das câmeras.
— Meu marido sempre me dizia que
não tenho senso de humor — disse a
garota. — Ele achava tudo engraçado.
Achou engraçado até quando foi
convocado para a GN.
— E ele ainda estava rindo quando
saiu? — perguntou Jason.
— Não chegou a sair. Foi morto num
ataque de surpresa dos estudantes. Mas
não foi culpa deles; levou um tiro de
outro GN.
Jason perguntou:
— Quanto vai me custar para ter
todos os meus documentos? É melhor
você me dizer agora, antes de começar a
trabalhar.
— Eu cobro conforme o que a pessoa
pode pagar — disse Kathy, voltando a
compor a linha de tipos. — Vou cobrar
caro de você porque estou vendo que
você é rico; deu quinhentos dólares para
Eddy trazê-lo aqui e está com um terno
de seda. Certo? —
Deu uma olhada rápida para ele.
— Ou estou errada? Me diga.
— Tenho cinco mil dólares no bolso
—— disse Jason. — Ou melhor, isso
menos quinhentos. Sou um artista famoso
no mundo inteiro; além do meu show,
apresento-me um mês por ano no Sands.
Aliás me apresento em vários clubes de
primeira categoria, quando consigo
achar um tempinho para eles na minha
agenda apertada.
— Puxa — disse Kalhy. Gostaria de
já ter ouvido falar de você para poder
ficar impressionada.
Ele riu.
— Falei uma bobagem? perguntou
Kathy, tímida.
— Não — disse Jason. Kathy,
quantos anos você tem?
—Dezenove, faço anos em dezembro,
quer dizer que tenho quase vinte.
Quantos anos você pensou que eu tinha,
pela minha aparência?
— Uns l6.
Kathy fez um muxoxo infantil.
— É o que todo mundo fala — disse
em voz baixa.
— É, porque não tenho busto nenhum.
Se tivesse busto, aparentaria 21. Que
idade tem você? Parou de mexer com os
tipos e olhou com atenção. — Eu diria
que uns cinquenta.
Jason sentiu uma onda de raiva. E de
sofrimento.
— Parece que eu feri seus
sentimentos — disse Kathy.
— Tenho 42 anos — disse Jason,
tenso.
— Bem, que diferença faz? Quer
dizer, tanto faz...
— Vamos ao que interessa —
interrompeu Jason. — Me dê papel e
lápis; vou anotar quais os documentos
que quero e o que cada um deve dizer
sobre mim. Quero que o serviço saia
perfeitamente correto. É bom você
caprichar.
— Você ficou com raiva — disse
Kathy porque falei que você parece ter
cinquenta anos. Olhando bem, não
parece. Aparenta uns trinta. Passou lhe o
lápis e o papel sorrindo com timidez,
como pedindo desculpas.
— Esqueça — disse Jason, dando lhe
uma palmadinha nas costas.
— Prefiro que as pessoas não me
toquem — disse Kathy, esquivando-se.
“É como uma gazela no bosque”,
pensou ele. “Que estranho; ela tem medo
até de um toque, mesmo de leve, e não
tem medo de forjar documentos, um
delito que pode lhe dar vinte anos de
prisão. Talvez ninguém lhe tenha dito
que é contra a lei. Talvez não saiba.”
Alguma coisa brilhante e colorida na
parede oposta chamou sua atenção; foi
até lá examiná-la. Viu que era um
manuscrito medieval com iluminuras; ou
melhor, uma página de um manuscrito.
Já linha lido a respeito, mas nunca vira
um com os próprios olhos.
— Isso é muito valioso? —
perguntou.
— Se fosse genuíno valeria cem
dólares — disse Kathy— Mas não é; eu
o fiz anos atrás, quando estava no
ginásio da Força Aérea Americana.
Copiei o original dez vezes até
conseguir um bom resultado. Tenho
amor pela boa caligrafia; gosto disso
desde criança. Talvez porque meu pai
desenhava capas de livros.
— Isso enganaria um museu? —
perguntou ele.
Por um momento Kathy o fitou com
atenção. Depois assentiu.
— Eles não reconheceriam pelo
papel?
— É pergaminho daquela época. É a
mesma técnica que se usa para falsificar
selos antigos; pega-se um selo velho,
sem valor, elimina-se a impressão e...
— fez uma pausa.
— Você está ansioso para eu
começar a trabalhar nos seus seus
documentos.
— Sim — disse Jason. Passou-lhe o
papel onde escrevera as informações. O
mais importante eram os passes para
transitar depois do toque de recolher,
com impressões digitais, fotografias e
assinaturas holográficas; tudo com datas
de validade bem próximas. Teria que
conseguir novos documentos outra vez
dentro de três meses.
— Dois mil dólares — disse Kathy,
estudando a lista.
Ele sentiu vontade de dizer: “Por
esse preço posso também ir para a cama
com você?”. Mas disse apenas:
— Quanto tempo vai demorar?
Horas? Dias? E se forem in dias, onde é
que eu vou...
— Horas — disse Kathy.
Ele sentiu uma vasta onda de alívio.
— Sente-se e me faça companhia —
disse Kathy, indicando um banquinho em
um canto. — Você pode me contar sobre
sua carreira de artista de televisão bemsucedido. Deve ser fascinante, todos os
cadáveres que se deve pisotear até
chegar ao topo. Se é que você chegou ao
topo.
— Cheguei — respondeu ele, seco
—, mas não há cadáveres. Isso é um
mito. O que vale é o talento, só o
talento, e não o que você disser ou fizer
para outras pessoas, quer estejam acima
ou abaixo de você. E dá muito trabalho;
não é só chegar lá. dançar um
sapateadinho e logo assinar um contrato
com a NBC ou a CBS. Eles são homens
de negócios experientes, duros.
Principalmente o pessoal da A&R:
Artistas e Repertório. Eles é que
decidem quem vão contratar, listou
falando dos discos. É por aí que se deve
começar para chegar a um nível
nacional; naturalmente, pode se
trabalhar em clubes por aí até...
— Aqui está a sua carteira de
motorista de mosquinha — disse Kathy.
Com cuidado passou-lhe uma carteirinha
preta. Agora vou começar seu
certificado de serviço militar é um
pouco mais, difícil por causa das fotos
de frente e de perfil, mais podemos dar
um jeito ali — indicou um canto do
ateliê onde havia uma tela branca, uma
máquina fotográfica montada num tripé e
um flash.
— Você tem o equipamento completo
— disse Jason, postando se rigidamente
em frente á tela branca; já haviam tirado
tantas fotos suas durante a sua longa
carreira que sempre sabia exatamente
onde se colocar e que expressão revelar.
Mas parecia que dessa vez fizera
algo de errado. Kathy o examinava com
a expressão severa.
— Você está todo iluminado — ela
disse, meio para si mesma. — Está com
um brilho falso.
— Fotos para publicidade — disse
Jason. — Aquelas brilhantes, dezoito
por vinte e quatro.
— Estas não são desse tipo. Estas
são para evitar que você passe o resto
da sua vida num campo de trabalhos
forçados. Não sorria.
Ele não sorriu.
— Certo — disse Kathy. Tirou as
fotos da câmera e levou as com cuidado
para sua bancada de trabalho, abanando
as para secar. — Essa droga de foto
animada em três dimensões que eles
querem nos papéis do serviço mlitar.
Essa câmera me custou mil dólares e
preciso dela só para isso. nada mais...
Mas sou obrigada a tê-la. — Olhou bem
para ele: — Você vai ter que pagar.
— Está bem — disse ele, impassível.
Já imaginava isso.
Kathy trabalhou sem muito
entusiasmo por algum tempo e disse
então, virando-se abruptamente:
— Mas afinal quem é você, de
verdade? Você está acostumado a posar;
eu vi isso, vi como você ficou paradinho
com aquele sorriso alegre e os olhos
brilhantes, tudo no lugar.
— Já lhe disse, sou Jason Taverner,
apresentador de tevê. Vou ao ar todas as
terças-feiras à noite.
— Não — disse Kathy, abanando a
cabeça. — Não é da minha conta,
desculpe; eu não devia ter perguntado.—
Mas continuou a olhar para ele, como
que exasperada. — Você está fazendo
tudo errado. Você é de fato uma
celebridade; posou para aquela foto
instintivamente. Mas você não é
celebridade nenhuma. Não existe
nenhuma pessoa importante chamada
Jason Taverner. Quem é você, então?
Um homem que é fotografado a todo
momento e que ninguém conhece,
ninguém ouviu falar.
— Estou agindo da mesma maneira
que agiria qualquer celebridade de quem
ninguém ouviu falar.
Ela o encarou por um momento e
então riu.
— Sei. Bom, essa foi ótima. Foi
ótima mesmo; não posso me esquecer
dessa. — Voltou sua —atenção para os
documentos que estava falsificando. —
Nesse trabalho — disse, absorvida pelo
que estava fazendo — procuro não
conhecer as pessoas para quem faço os
documentos. Mas — deu uma olhada
para ele — até que gostaria de conhecer
você. Você é estranho. Já vi vários
tipos, talvez centenas; mas ninguém
como você. Sabe o que eu acho?
— Você acha que sou louco — disse
Jason.
— Sim — Kathy concordou. —
Clinicamente, legalmente, ou seja lá
como for. Você é psicótico; tem dupla
personalidade. É o Sr. Ninguém e o Sr.
Todo Mundo. Como conseguiu
sobreviver até hoje?
Ele não respondeu. Era impossível
explicar.
— Está bem — disse Kathy. Com
habilidade e eficiência forjou, um a um,
os documentos necessários.
Eddy, o funcionário do hotel, estava
sentado meio escondido no fundo,
fumando um falso charuto Havana; não
tinha nada a dizer nem o que fazer, mas
por algum motivo obscuro continuava
por ali.
“Esse cara podia dar o fora daqui”,
pensou Jason. “Gostaria de falar mais
com ela...”
— Venha aqui comigo — disse Kathy
de repente. Desceu do banquinho de
trabalho e indicou-lhe uma porta de
madeira à direita da bancada. Quero sua
assinatura cinco vezes, cada uma um
pouquinho diferente da outra, para que
não possam ser superpostas. É nesse
ponto que tantos documentadores— é
assim que nós nos chamamos —
estragam tudo. — Abriu a porta
sorrindo. — Eles pegam uma só
assinatura e a transferem para todos os
documentos. Percebe?
— Sim disse ele, entrando atrás dela
num quartinho cheio de mofo, mais
parecendo um armário.
Kathy fechou uma porta e após uma
pausa disse:
— Eddy é dedo-duro da polícia.
— Por quê? — perguntou ele.
— Por que o quê? Por que ele é
dedo-duro da polícia? Ora, por
dinheiro. Pelo mesmo motivo que eu
sou.
Jason disse:
— Raios te partam! Agarrou-a pelo
pulso direito e a puxou; ela fez uma
careta quando os dedos dele se
apertaram. — E ele já...
— Eddy ainda não fez nada — disse
ela, irritada, tentando soltar o pulso. —
Está doendo. Escute, acalme-se; eu
mostro para você está bem?
Com relutância, o coração batendo de
medo, ele a soltou. Kathy acendeu uma
lâmpada forte e colocou três documentos
forjados sob a luz.
— Veja este pontinho vermelho na
margem de cada um disse indicando um
ponto quase invisível. — É um
microtransmissor; assim você vai emitir
um bip a cada cinco segundos, onde quer
que esteja. Eles estão atrás de
conspirações; querem as pessoas com
quem você anda.
— Não ando com ninguém —
respondeu Jason, ríspido.
— Mas eles não sabem disso. —
Esfregou o pulso, franzindo o cenho
como uma menina emburrada, e
murmurou:
— Vocês, as celebridades de quem
ninguém ouviu falar, têm umas reações
bem rápidas.
— Por que você me contou? —
perguntou Jason.
— Depois de forjar tudo, depois de
tanto...
— Quero que você vá embora — ela
disse com simplicidade.
— Por quê? — ele não compreendia.
— Bem, porque... Diabo, você tem
uma espécie de magnetismo; notei isso
assim que você entrou no ateliê. Você
é... — ela procurou a palavra certa —
sexy. Mesmo na sua idade.
— Tenho presença — disse ele.
— Sim. Já tinha visto isso em
pessoas famosas, à distância mas nunca
assim de perto. Dá para entender porque
você imagina que é uma personalidade
da tevê; você parece mesmo alguém
assim.
— Como é que saio daqui? — ele
perguntou. — Você vai me dizer? Ou
isso custa um pouco mais?
— Meu Deus, como você é cínico.
Ele riu e segurou-a de novo pelo
pulso.
— Acho que você não tem culpa —
disse Kathy, sacudindo a cabeça e
fazendo uma expressão impassível como
uma máscara. — Bem, em primeiro
lugar, você pode comprar o Eddy. Mais
quinhentos devem bastar. Quanto a mim,
você não precisa me comprar; isto é,
com uma condição. Estou falando sério.
Com a condição de que você fique um
pouco comigo. Você tem... um charme,
um fascínio. É como um bom perfume.
Você me atrai, e isso nunca me acontece
com os homens.
— Com as mulheres, então? — disse
ele com malicia.
Ela deixou passar sem comentário.
—— Você fica? — perguntou.
— Diabos — disse ele —, vou
embora. —
Abriu a porta e passando por ela
entrou no ateliê. E1a o seguiu depressa.
Entre as sombras do restaurante
abandonado ela o alcançou; encarou-o
na escuridão e lhe disse, arquejando:
— Você já está com um transmissor
implantado dentro de você.
— Duvido — ele respondeu.
— É verdade. Eddy o enxertou em
você.
— Conversa fiada — disse ele, e
afastou-se dela, encaminhando-se para a
luz que vinha da porta quebrada do
restaurante.
Correndo atrás dele como um
animalzinho ágil, Kathy disse, ofegante:
— Mas suponha que seja verdade.
Poderia ser. — Postou-se na passagem
entre ele e a liberdade. Levantou as
mãos como se fosse aparai um golpe e
disse depressa:
— Fique comigo uma noite. Venha
para a cama comigo. Está bem? Uma
noite basta, prometo.
— Você faria isso, uma noite só?
“Um pouco das minhas habilidades”,
pensou ele, “das minhas supostas e bem
conhecidas capacidades, chegou comigo
até aqui, até este estranho lugar onde
estou vivendo agora. Este lugar onde
não existo exceto em documentos
forjados por uma informante da polícia.
Que estranho!” Jason estremeceu.
“Documentos com microtransmissores
embutidos, para me denunciarem à
polícia, denunciarem a mim e a quem
estiver comigo. Só que, como ela diz,
tenho charme.
Meu Deus! E pensar que é só isso
que me impede de ir parar num campo
de trabalho forçado.”
— Está bem — disse então. Parecia a
opção mais inteligente, de longe.
— Vá pagar o Eddy — disse ela —
Resolva logo esse assunto e veja se ele
dá o fora.
— Gostaria de saber por que ele
ainda está por aqui disse Jason. — Será
que sentiu o cheiro de mais dinheiro?
— Acho que sim — disse Kathy.
— A gente tem que fazer isso o
tempo todo — disse Jason, tirando o
dinheiro do bolso.
POH. Procedimento Operacional
Básico.
Kathy disse, alegre:
— Eddy é psiônico.
4
A dois quarteirões dali, no segundo
andar de um edifício de madeira sem
pintura mas que já fora branco, Kathy
tinha um quarto com uma diminuta
cozinha onde se podia preparar
refeições para uma só pessoa.
Jason olhou ao redor. Um quarto de
moça: a caminha de solteiro coberta por
uma colcha feita a mão, com fileiras e
mais fileiras de bolinhas de tecido
verde.
“Como um cemitério militar”, pensou
ele, mórbido, sentindo-se oprimido pela
pequenez do quarto.
Numa mesa de vime viu um livro: Em
Busca do Tempo Perdido, de Proust.
— Até que pedaço você leu? —
perguntou ele.
— Até À Sombra das Garotas em
Flor. — Kathy trancou a porta dando
duas voltas na chave e ligou um
dispositivo eletrônico que ele não
conhecia.
— Não foi muito longe, então —
disse Jason.
Tirando seu casaco plástico, Kathy
perguntou:
— E você, leu até onde? — Pendurou
num pequenino armário embutido seu
casaco e o dele também.
— Nunca li esse livro — disse
Jason. Mas uma vez no meu programa
fizemos uma dramatização de uma
cena... Não sei qual. Recebemos muitas
cartas elogiando o programa, mas nunca
repetimos a experiência. Essas coisas
extras a gente tem que ter cuidado para
não mostrar muito. Do contrário elas
matam todo mundo, todas as emissoras,
pelo resto do ano. — Percorreu o quarto
atravancado, examinando aqui um livro,
ali uma fita cassete, uma revista sonora.
Kathy tinha até mesmo um brinquedo
falante.
“Como uma criança”, pensou ele;
“ela ainda não é adulta.”
Curioso, voltou sua atenção para o
brinquedo falante.
— Oi! — falou o brinquedo.
— Sou o Fábio Falante e não há
dúvida de que estou sintonizado no seu
comprimento de onda.
Não há ninguém chamado Fábio
Falante no meu comprimento de onda —
disse Jason. Já ia desligá-lo, quando o
boneco protestou. — Desculpe — disse
Jason —, mas vou desligar você seu
chatinho.
— Mas eu te amo! — protestou Fábio
Falante em sua voz metálica.
Jason parou com o dedo já em cima
do botão para desligá-lo.
— Prove — disse ele ao boneco. Em
seu show já havia feito comerciais para
porcarias daquele tipo. Detestava-os
igualmente: tanto as geringonças como
os comerciais.
— Me dê um dinheiro, já que gosta
de mim.
— Sei como você pode conseguir de
volta seu nome, sua fama e fortuna —
informou-o Fábio Falante. — Serve
como aperitivo?
— Claro — disse Jason.
— Vá procurar sua namorada — veio
a vozinha de Fábio Falante.
— De quem você está falando? —
perguntou Jason, cauteloso.
— Heather Hart — respondeu Fábio
Falante num tom ainda mais agudo.
— Meio difícil — disse Jason. —
Mais algum conselho?
— Já ouvi falar de Heather Hart —
disse Kathy, trazendo uma garrafa de
suco de laranja da geladeira embutida.
A garrafa só estava um quarto cheia; ela
a agitou e serviu aquele suco artificial
instantâneo, cheio de espuma, com dois
copos de geleia.
— Ela é linda. Tem aquele cabelão
vermelho. É verdade que ela é sua
namorada? O Fábio tem razão?
— Todo mundo sabe — disse Jason
que Fábio Falante sempre tem razão.
— Sim, acho que é verdade. —
Kathy misturou no suco de laranja gim
de má qualidade, Mountballen Selo de
Ouro. — É um hi-fi — disse com
orgulho. — Está servido?
— Não, obrigado — disse ele. —
Não a essa hora do dia. "Nem se fosse
uísque escocês legítimo”, pensou. “Essa
porcaria de quartinho... Será que ela não
ganha nada, nem como dedo-duro nem
como falsificadora? Será que ela é
mesmo informante da polícia, como diz?
Muito estranho.
“Talvez ela seja as duas coisas.
Talvez nem uma, nem outra.” Pergunte
para mim! — gritou Fábio Falante.
— Estou vendo que você está com
alguma coisa na cabeça, Sr. Seu bonitão
filho da mãe.
Jason deixou passar essa. Começou a
perguntar:
— Esta garota... — mas no mesmo
instante Kathy arrancou Fábio Falante
das suas mãos e encarou Jason
indignada, as narinas dilatadas de raiva.
— Nunca pergunte sobre mim ao meu
Fábio Falante disse ela, arqueando as
sobrancelhas.
“É como um pássaro selvagem”,
pensou ele, “fazendo tudo para proteger
seu ninho.” Jason riu.
— Qual é a graça? — perguntou
Kathy.
— Esses brinquedos falantes —
disse ele — são mais chatos do que
úteis. Deviam ser abolidos. Afastou-se
dela e viu uma pilha de correspondência
numa mesinha de tevê. Percorreu os
envelopes a esmo, notando que nenhum
dos que continham contas havia sido
aberto.
— São meus — disse Kathy na
defensiva, observando-o.
— Você recebe muitas contas —
disse ele considerando que é uma moça
que mora sozinha num quartinho. Você
compra suas roupas na Metter’s?
Interessante.
Eu... eu uso um tamanho especial.
— E sapatos da Sax and Crombie
disse ele.
— No meu trabalho... — começou
ela, mas ele a interrompeu com um
gesto.
— Não me venha com essa — disse,
irritado.
— Pode olhar no meu armário. Você
não vai ver grande coisa. Nada de
extraordinário, só que o que tenho é de
boa qualidade. Prefiro ler poucas
coisas, mas boas... — Começou a
arrastar as palavras.
— Sabe como é — continuou, num
tom vago —, é melhor do que um monte
de porcarias.
— Você tem outro apartamento —
disse Jason.
— Acertou na mosca; ela piscou os
olhos, procurando dentro de si alguma
resposta. Para ele aquela atitude já era
uma resposta clara.
— Vamos para lá — disse ele. Já
estava enjoado daquele quartinho
atravancado.
— Não posso levar você lá — disse
Kathy — porque moro com duas outras
garotas e nós dividimos o tempo de uso
de cada uma, de modo que...
— Você obviamente não estava
tentando me impressionar. — Aquilo o
divertia, mas também o irritava; de
alguma forma nebulosa, sentia-se
degradado.
— Eu teria levado você lá se hoje
fosse o meu dia — disse Kathy. — É
por isso que tenho que manter este
quartinho; tenho que ter algum lugar para
ir quando não é meu dia. Meu próximo
dia será na sexta-feira, a partir do meio
— dia.
— Seu tom de voz era agora sincero.
Como se realmente quisesse convencêlo. Provavelmente, pensou ele, era
verdade. Mas aquilo tudo o incomodava.
Ela e a vida que levava. Sentia-se como
se tivesse sido capturado por alguma
coisa que o arrastava para umas
profundezas que nunca antes conhecera,
nem mesmo nos tempos difíceis do
início. Não estava gostando nada
daquilo.
De repente teve uma tremenda
vontade de sair dali. O animal acuado
era ele mesmo.
— Não me olhe desse jeito — disse
Kathy, bebericando seu hi-fi.
Jason disse para si mesmo, mas em
voz alta:
— Abriste a porta da vida com tua
grande cabeça densa. E agora quem a
pode fechar?
— De onde é isso? — perguntou
Kathy.
— Da minha vida.
— Mas parece poesia.
— Se você assistisse ao meu show,
saberia que dou umas tiradas dessas de
vezem quando.
Encarando-o o calmamente, Kathy
disse:
— Vou olhar a programação de tevê
e ver se você está listado. Deixou seu
drinque na mesa e pegou uns jornais
velhos empilhados na prateleira debaixo
da mesinha da tevê.
— Eu nem sequer nasci — disse ele.
— Já verifiquei isso.
— E seu show não é mencionado
aqui — disse Kathy, dobrando o jornal e
estudando a programação de tevê.
— Isso mesmo — disse ele. —
Agora você já tem todas as, informações
a meu respeito. — Deu uma palmadinha
no bolso do colete, cheio de documentos
forjados. — Inclusive essas aqui. Com
microtransmissores e tudo, se é que isso
é verdade.
— Me devolva isso e eu elimino os
microtransmissores. Demora só um
minuto. — Estendeu a mão, à espera.
Ele lhe devolveu os documentos.
— Você não se importa se eu tirar ou
não? — perguntou Kathy.
Jason respondeu com sinceridade:
— Para falar a verdade, não. Perdi a
capacidade de saber o que é bom e o
que é ruim, o que é verdadeiro e o que e
falso. Se você quiser tirar os pontinhos,
tire. Se for do seu agrado.
Depois de um momento ela lhe
devolveu os documentos, com seu vago
sorriso de 16 anos.
Notando a juventude dela, seu brilho
natural, ele disse:
Sinto-me velho como um longínquo
olmo.
— Isso é do Finnegans Wake —
disse Kalhy, feliz. — Quando as velhas
lavadeiras ao anoitecer se confundem
com as árvores e as rochas.
— Você leu Finnegans Wake'!
Perguntou ele, surpreso.
— Assisti ao filme. Quatro vezes.
Gosto de Hazeltine; na minha opinião é
o melhor diretor vivo.
— Ele veio uma vez ao meu show
disse Jason. — Quer saber como ele é
na vida real?
— Não — respondeu Kathy.
— Talvez você deva saber.
— Não — repetiu ela, abanando a
cabeça; falava agora mais alto. — E por
favor não me diga, está bem? Eu
acredito no que quero acreditar, e você
acredita no que quiser. Está certo?
— Claro — disso ele. Simpatizou
com aquilo. Muitas vezes já tinha
pensado que a verdade era uma virtude
supervalorizada. Na maioria dos casos
uma mentira simpática funcionava
melhor e era mais caridosa. Em especial
entre um homem e uma mulher; aliás,
sempre que havia uma mulher na
história.
É claro que aquela não era, a bem
dizer, uma mulher, mas sim uma garota,
li portanto, resolveu ele, a mentira
piedosa era ainda mais necessária.
— Ele é um estudioso, um artista —
disse Jason.
— É mesmo? Ela o olhou cheia de
esperança.
— Sim.
Com isso ela suspirou aliviada.
— Quer dizer que você acredita —
atacou ele — que conheço Michael
Hazeltine, o melhor diretor de cinema
vivo, conforme você mesma disse. Então
você acredita que sou um tipo seis. Ele
se interrompeu; não era isso que
pretendia dizer.
— Um tipo seis — repetiu Kathy,
franzindo o cenho como se tentasse
recordar-se. — Já li sobre eles na
revista Time. Eles já não morreram
todos? O governo não recolheu todos e
mandou matá-los depois que o líder
deles — como era o nome dele? —
Teagarden; sim, era isso. Willard
Teagarden. Ele tentou — como se diz?
Dar um golpe contra a GN. Tentou
dissolver a GN, alegando que era uma
associação paramutual...
— Paramilitar — disse Jason.
— Você não está dando a mínima
para o que estou dizendo.
Com sinceridade Jason disse:
— É claro que estou. — Esperou. A
garota não continuou. — Raios! —
exclamou com raiva.
— Termine o que você estava
dizendo!
— Acho — disse Kathy por fim —
que foram os tipos sete que impediram o
golpe.
Tipo sete, pensou ele. Nunca em sua
vida tinha ouvido falar, dos tipos sete.
Nada poderia tê-lo chocado mais.
“Ainda bem", pensou ele, “que deixei
escapar esse lapsus linguae' Agora eu
realmente aprendi alguma coisa.
Finalmente. Nesse labirinto de confusão
e coisas semi-reais.”
Uma pequena parte da parede abriuse ligeiramente com um rangido e um
gatinho preto e branco entrou no quarto.
Imediatamente Kathy o pegou no colo,
com o rosto todo iluminado.
— É a filosofia de Dinman — disse
Jason. — O gato obrigatório. —
Conhecia bem essas ideias; na verdade,
apresentara Dinman aos telespectadores,
num de seus programas especiais.
— Não; gosto dele, só isso — disse
Kathy com os olhos brilhantes, levando
o filhotinho para que Jason o visse.
— Mas você acredita — disse ele,
acariciando a cabecinha do gato — que
ter um animal aumenta a capacidade de
empatia da...
— Dane-se tudo isso — disse Kathy,
apertando o gato contra o peito como
uma criança de cinco anos com seu
primeiro bichinho. A pesquisa da
escola; a cobaia da classe.
— Esse aqui é o Domênico — disse.
— Em homenagem a Domênico
Scarlatti?
— Não, ao Armazém Domênico,
nessa mesma rua; passamos por lá
quando viemos até aqui.
— Quando estou no miniapartamento, isto é, neste quarto, faço
minhas compras lá. Domênico Scarlatti
é um músico? Acho que já ouvi falar
dele.
— Foi professor de inglês de
Abraham Lincoln no ginásio — disse
Jason.
— Ah! — Kathy assentiu distraída,
embalando o gato no colo.
— Estou brincando com você —
disse ele. — Foi maldade minha.
Desculpe.
Kathy olhou para ele com seriedade,
abraçando seu gatinho.
— Nunca sei a diferença —
murmurou.
— É por isso que é maldade — disse
Jason.
— Por quê? — perguntou ela. — Se
nem sei quem é. Quer dizer, isso
significa que sou burra. — Não é
mesmo?
— Você não é burra — disse Jason.
— Só inexperiente. — Calculou a
diferença de idade entre eles. — Eu já
vivi duas vezes mais do que você —
observou. — E nos últimos dez anos
estive numa posição que me permitiu
conhecer algumas das pessoas mais
famosas do mundo. E...
— E — disse Kathy — você é um
tipo seis.
Ela não esquecera o lapso dele.
Claro que não. Ele poderia lhe dizer um
milhão de coisas, e todas seriam
esquecidas dez minutos depois, exceto
aquele único lapso verdadeiro. Bem, o
mundo era assim mesmo. Ele já se
acostumara com isso; fazia parte de ter a
idade que tinha, e não a idade dela.
— O que significa Domênico para
você? — perguntou Jason, mudando de
assunto de modo brusco; percebeu isso,
mas foi em frente. — O que ele dá para
você que os seres humanos não dão?
Ela franziu a testa, ficou pensativa.
— Ele está sempre ocupado. Sempre
tem algum projeto. Como por exemplo
caçar algum bichinho. Ele é bamba com
as moscas; já aprendeu a comê-las antes
que sumam.
Deu um sorriso atraente.
— Além disso não preciso ficar me
perguntando a respeito dele, “devo ou
não entregá-lo ao Sr. McNulty?”. O Sr.
McNulty é o meu contato na polícia. E
para ele que dou os receptores
analógicos que correspondem aos
microtransmissores, aqueles pontinhos
que mostrei a você.
— E ele lhe paga?
Ela assentiu.
— E mesmo assim você vive desse
jeito.
— Eu... — ela procurou uma
resposta. — Não tenho muitos fregueses.
— Bobagem. Você é perita;
observei-a quando trabalhava. Você tem
experiência.
— Tenho talento.
— Mas é um talento treinado.
— Está bem; o dinheiro vai todo para
o apartamento na cidade. O meu maxiapartamento. —
Cerrou os dentes; não estava
gostando de ser pressionada.
— Não. — Jason não acreditou.
Kathy disse então, depois de uma
pausa:
— Meu marido está vivo. Está num
campo de trabalhos forçados no Alasca.
Estou tentando tirá-lo de lá passando
informações para o Sr. McNulty. Daqui
a um ano — ela deu de ombros, sua
expressão era agora tristonha e
introvertida, ele diz que Jack vai poder
sair. E voltar pra cá.
“Então você manda outras pessoas
para os campos pensou ele, “para tirar
seu marido de lá. Parece um típico ato
com a polícia. Deve ser verdade.”
— É um arranjo incrível para a
polícia — disse ele— Perdem um
homem e ganham — quantos você diria
que já entregou a eles? Montes?
Centenas?
Ela refletiu e respondeu enfim:
— Talvez cento e cinquenta.
— Isso é maldade — disse ele.
— É mesmo? — ela o olhou nervosa,
apertando Domenico contra seu peito
achatado. Então aos poucos foi ficando
zangada; era claro pelo rosto dela e pela
maneira como apertava o gato com força
contra o peito.
— Dane-se! — exclamou com
violência. — Eu amo Jack e ele me ama.
Ele me escreve o tempo todo.
Com crueldade ele disse:
— Cartas forjadas. Por algum
empregado dos tiras.
Começaram a jorrar lágrimas dos
olhos dela em quantidade espantosa.
— Você acha mesmo? Às vezes
também acho. Você quer vê-las? Você
saberia dizer?
— Não devem ser forjadas. É mais
barato e simples mantê-lo vivo e deixálo escrever suas próprias cartas. —
Esperou que esse argumento a faria
sentir-se melhor, e foi o que aconteceu:
as lágrimas pararam de rolar.
— Não tinha pensado nisso — disse
ela assentindo, mas sem sorrir; seu olhar
se perdeu ao longe enquanto continuava
embalando o gatinho preto e branco.
— Se o seu marido ainda está vivo
— disse ele, dessa vez com cautela —,
você acha que é certo ir para a cama
com outros homens, como eu?
— Ah, claro! Jack nunca se opôs a
isso. Mesmo antes de ser pego. E estou
certa de que não se opõe agora. Na
verdade ele me escreveu sobre isso.
Deixe-me ver; foi uns seis meses atrás.
Acho que consigo encontrar a carta;
tenho todas elas microfilmadas. Lá na
loja.
— Por quê?
— Ás vezes eu amplio para os
clientes. Assim mais tarde eles
compreenderão por que fiz aquilo que
faço.
Nessas alturas ele francamente não
sabia que emoção sentia para com ela,
nem o que devia sentir. Ao longo dos
anos ela aos poucos se envolvera numa
situação da qual não conseguia se livrar.
E ele não via saída para ela agora; já
fora longe demais. A fórmula se tornara
fixa. As sementes do mal já haviam
brotado.
— Para você não há volta — disse
ele, sabendo disso, sabendo que ela
sabia. — Escute — disse num tom
gentil. Pôs a mão no ombro dela, mas,
como antes, ela se esquivou de imediato.
— Diga a eles que você o quer de
volta agora mesmo, e que você não vai
entregar mais ninguém.
— Eles o soltariam, então, se eu
dissesse isso?
— Tente. — Sem dúvida não faria
mal algum. -Mas Jason imaginava bem
como era o Sr. McNulty e como vigiava
Kathy. Ela nunca conseguiria enfrentálo; os McNultys do mundo não eram
enfrentados por ninguém. Exceto quando
algo dava errado, estranhamente errado.
— Sabe o que você é? — disse
Kathy.
— Você é uma pessoa muito boa.
Compreende?
Ele deu de ombros. Como a maioria
das verdades, era questão de opinião.
Talvez fosse mesmo bondoso. Nessa
situação, pelo menos. Em outras já não.
Mas Kathy não sabia disso.
— Sente-se — disse ele —, faça
carinho no seu gato, beba seu hi-fi. Não
pense em nada; seja, apenas. Você
consegue fazer isso? Esvaziar sua mente
por alguns instantes? Experimente.
Trouxe-lhe uma cadeira; ela sentou,
obediente.
— Faço isso o tempo todo — disse
ela com a expressão vazia, entediada.
— Mas não negativamente — disse
Jason. — Faça isso de maneira positiva.
— Como assim? O que você quer
dizer?
— Faça isso com um objetivo real,
não apenas para evitar encarar fatos
tristes. Faça isso porque você ama seu
marido e o quer de volta. Quer que tudo
seja como era antes.
— Sim — ela concordou. — Mas
agora encontrei você.
— E isso significa o quê? — Ele
ficou de sobreaviso; a resposta o
desorientou.
— Você é mais magnético do que
Jack — disse ela. Ele é magnético, mas
você é muito, muito mais. Talvez depois
de conhecer você não possa amar Jack
de verdade outra vez. Ou você acha que
a gente pode amar duas pessoas
igualmente, mas de maneiras diferentes?
Meu grupo de terapia diz que não; dizem
que tenho que escolher, que é um dos
aspectos básicos da vida. Agora não sei
mesmo o que fazer. É muito difícil
resolver essas coisas porque a gente não
tem com quem falar; ninguém
compreende. A gente tem que passar por
isso sozinha, e às vezes fazemos a
escolha errada. Por exemplo, se eu
escolher você em vez de Jack e aí ele
voltar e eu não ligar mais para ele; o que
acontece? Como ele vai-se sentir? Isso é
importante, mas também é importante o
que eu sinto. Se eu gosto de você, ou de
alguma outra pessoa como você, mais do
que dele, então tenho que realizar isso,
como se diz no nosso grupo de terapia.
Sabia que eu estive oito semanas num
hospital psiquiátrico? O Centro
Morningside de Higiene Mental, em
Atherton. Meus pais pagaram. Custou
uma fortuna pois por alguma razão nós
não tínhamos direito à ajuda comunitária
nem federal. Bem, de qualquer forma ali
aprendi muito sobre mim mesma e fiz
uma porção de amigos. A maioria das
pessoas que realmente conheço são as
que encontrei no Morningside.
Naturalmente quando os conheci,
naquela época, tinha um delírio de que
eram pessoas famosas como Mickey
Quinn e Arlene Howe. Sabe como é
celebridades. Como você.
— Conheço tanto Mickey Quinn
como Arlene Howe disse ele — e você
não perdeu nada.
Examinando-o bem, ela disse:
— Talvez você não seja uma
celebridade; talvez tenha voltado à
minha época de delírio. Eles me
disseram que isso provavelmente
aconteceria, mais cedo ou mais tarde.
Quem sabe chegou a hora.
— Nesse caso — observou ele — eu
seria uma alucinação sua. Tente mais um
pouco; não me sinto totalmente real.
Ela riu. Mas continuava com um
humor sombrio.
— Não seria estranho se tivesse
inventado você, como você disse agora?
Que se eu me recuperasse por completo
você desapareceria?
— Não desapareceria. Mas deixaria
de ser uma celebridade.
— Isso você já deixou de ser. — Ela
levantou a cabeça e o encarou firme.
Quem sabe é isso. É por isso que você é
uma celebridade de quem ninguém ouviu
falar. Inventei você; você é um produto
da minha mente delirante, e agora estou
ficando boa de novo.
— Uma visão solipsista do Universo.
— Não faça isso. Você sabe que não
tenho ideia do que significam palavras
assim. Que tipo de pessoa você acha que
sou? Não sou famosa e poderosa como
você; sou apenas uma pessoa que faz um
trabalho terrível, pavoroso, que manda
gente para a prisão, porque amo Jack
mais do que o resto da humanidade.
Escute — sua voz tornou-se firme e
decidida. — A única coisa que me
devolveu a saúde mental foi o fato de
que amava Jack mais do que Mickey
Quinn. Sabe, achei que um rapaz, que
havia lá, chamado David, era na
realidade Mickey Quinn, e que era um
grande segredo que Mickey Quinn havia
perdido a razão e ido para esse hospital
psiquiátrico para curar-se, e ninguém
devia ficar sabendo de nada porque isso
acabaria com a imagem dele. Por isso
fingia chamar-se David. Mas eu sabia.
Ou melhor, achava que sabia. E o dr.
Scott disse que eu tinha que escolher
entre Jack e David, ou entre Jack e
Mickey Quinn, quem eu achava que
David de fato era. E escolhi Jack. Foi
assim que saí de lá. Talvez — ela agora
fraquejava, seu queixo tremia —, talvez
agora você compreenda por que eu tenho
que acreditar que Jack é mais importante
do que qualquer coisa, qualquer pessoa,
do que um monte de outras pessoas.
Percebe?
Ele percebia, e assentiu.
— Nem mesmo homens como você—
continuou Kathy que são mais
magnéticos do que ele, podem me tirar
de Jack.
— Não quero fazer isso. — Pareceulhe uma boa ideia deixar esse ponto bem
claro.
— Quer sim. Em algum nível você
quer. É uma competição.
— Para mim — disse Jason — você
é apenas uma mocinha num quartinho de
um prediozinho. Para mim o mundo
inteiro é meu, com todas as pessoas que
nele existem.
— Não se você está num campo de
trabalhos forçados.
Ele teve que concordar. Kathy tinha o
hábito irritante de desmontar qualquer
argumentação. Ela continuou:
— Agora você compreende um
pouquinho, não? A respeito da minha
relação com Jack e do porquê eu posso
ir para a cama com você sem trair Jack.
Dormi com David quando estávamos em
Morningside, mas Jack compreendeu;
ele sabia que eu tinha que fazer aquilo.
Você no lugar dele teria compreendido?
— Se você fosse psicótica...
— Não, não por causa disso. E
porque era meu destino dormir com
Mickey Quinn. Tinha que acontecer;
estava cumprindo meu destino cósmico.
Compreende?
— Certo — concordou ele com
delicadeza.
— Acho que estou bêbada — disse
Kathy examinando seu hi-fi. — Você
tem razão; é muito cedo para beber isso.
Deixou na mesa seu copo pela
metade e continuou: — Jack
compreendia. Ou pelo menos dizia que
compreendia. Será que estava mentindo?
Para não me perder? Porque se eu
tivesse que escolher entre ele e Michael
Quinn... — ela fez uma pausa. — Mas eu
escolhi Jack. Sempre teria feito isso.
Mas mesmo assim tinha que dormir com
David. Isto é, com Mickey Quinn.
“Eu me meti com uma criatura
complicada, muito especial e que não
bate muito bem da bola”, pensou Jason
Taverner. “Tão ruim, ou até pior do que
Heather Hart. A pior que já encontrei em
42 anos de vida. Mas como posso me
livrar dela sem que o Sr. McNulty fique
sabendo de tudo? Meu Deus”, pensou,
desanimado, “talvez não consiga. Talvez
ela queira brincar comigo até enjoar, e
aí chame os tiras. E esse vai ser o meu
fim.”
— Você não acha — disse ele em
voz alta — que daqui a mais quatro
décadas eu teria aprendido a resposta?
— A resposta para mim? — disse
ela. Com agudeza.
Ele assentiu.
— Você está achando que depois que
dormir com você vou denunciá-lo.
A essa altura, ele ainda não tinha
chegado exatamente a essa conclusão.
Mas a ideia geral era essa mesmo.
Portanto respondeu com cautela:
— O que acho é que você já
aprendeu, com esse seu jeito inocente e
ingênuo de garota de 19 anos, a usar as
pessoas. O que eu considero muito mau.
E como já começou, não consegue parar.
— Você nem sabe que está fazendo
isso.
— Eu nunca iria denunciá-lo. Amo
você.
— Você me conhece há umas cinco
horas. Nem isso.
— Mas sempre sei quando isso
acontece. — Seu tom de voz, sua
expressão, eram firmes. E de uma
profunda solenidade.
— Você nem tem certeza de quem eu
sou!
— Nunca tenho certeza de quem quer
que seja.
Nesse ponto, evidentemente, ela tinha
razão. Jason tentou portanto uma nova
tática.
— Ouça. Você é uma estranha
combinação de romântica inocente e...
fez uma pausa; a palavra “traidora”
viera à sua mente, mas ele a descartou
depressa — e uma manipuladora sutil e
calculista. — “Você”, pensou ele, “é
uma prostituta mental. E é a sua mente
que está se prostituindo, antes e mais do
que a de qualquer outra pessoa. Apesar
de você mesma nunca conhecer isso. E
se reconhecesse, diria que foi forçada a
fazer isso. Sim, forçada; mas por quem?
Por Jack? Por David? Por você mesma.
Por querer dois homens ao mesmo
tempo — e conseguir os dois.”
“Pobre Jack”, pensou ele. “Seu
infeliz filho da mãe. Carregando merda
num campo de trabalhos forçados no
Alasca, esperando que essa criançona
toda complicada o salve. Pode esperar
sentado.”
Naquela noite mesmo sem convicção
Jason jantou com Kathy num restaurante
italiano a um quarteirão do apartamento
dela. Kathy parecia conhecer de leve o
proprietário e os garçons; seja como for,
eles a cumprimentaram e ela respondeu
distraída, como se não os ouvisse bem.
Ou, pensou Jason, como se não tivesse
inteira consciência de onde estava.
“Menininha”, pensou ele, “onde está
o resto da sua cabeça?”
— A lasanha aqui é muito boa —
disse Kathy sem olhar para o menu;
parecia agora estar muito longe
afastando-se mais e mais. A cada
momento. Ele sentiu que uma crise se
aproximava. Mas não a conhecia o
suficiente; não fazia ideia da forma que
tomaria essa crise. E não estava
gostando nada daquilo.
— Quando você pira — disse ele de
sopetão, tentando pegá-la desprevenida
—, o que você faz?
— Ah — disse ela sem expressão —,
me jogo no chão e começo a gritar. Ou a
dar pontapés. Chuto quem tentar me
segurar. Quem quiser interferir com a
minha liberdade.
— Você está com vontade de fazer
isso agora?
Ela levantou um pouco o rosto e deu
uma olhada para ele.
— Estou. — Jason notou que o rosto
dela transformara-se numa máscara
contorcida e angustiada. Mas os olhos
continuavam totalmente secos. Desta vez
não haveria lágrimas.
— Não tenho tomado meu remédio.
Tenho que tomar vinte miligramas de
Actozine por dia.
— E por que não toma? — Nunca
tomavam; ele já havia encontrado essa
anomalia várias vezes.
— Embota minha mente — ela
respondeu, tocando o nariz com o dedo
indicador, como se estivesse cumprindo
um ritual que devia ser executado com
absoluta correção.
— Mas se...
Kathy interrompeu, brusca:
— Eles não vão foder com a minha
cabeça. Não vou deixar nenhum
arrebenta-cabeças me pegar. — Sabe o
que são os AC?
— Você acabou de dizer. — Jason
falou baixo e devagar, fixando toda sua
atenção nela... como se tentasse segurála, manter a cabeça dela bem firme.
A comida chegou. Estava horrível.
— Não é uma maravilha, essa
comida italiana autêntica? — disse
Kathy, enrolando com destreza o
espaguete no garfo.
— É, sim — ele concordou, vago.
— Você está achando que vou pirar.
E não quer se envolver.
— Isso mesmo — disse Jason.
— Vá embora, então.
— Eu... — ele hesitou. — Gosto de
você. Quero ter certeza de que você vai
estar bem. — Uma mentira benigna, do
tipo que ele aprovava. Pareceu-lhe
melhor do que dizer:
“Porque se eu for embora você vai
telefonar para o Sr. McNulty daqui a
vinte segundos”. O que na verdade era o
que ele achava.
— Vou ficar bem. Eles me levam
para casa. — Indicou vagamente o
restaurante em volta, os clientes,
garçons, o caixa. O cozinheiro em meio
ao vapor da cozinha superaquecida e
sem ventilação. O bêbado no bar,
brincando com seu copo de cerveja
Olympia.
Jason disse, após calcular com
cuidado e ter uma razoável certeza de
estar tomando a atitude certa:
— Você não está assumindo a
responsabilidade.
— Por quem? Não estou assumindo
responsabilidade pela sua vida, se é
isso que quer dizer. Isso é problema seu.
Não ponha esse peso nas minhas costas.
— Responsabilidade — ele disse —
pelas consequências que os seus atos
acarretam para os outros. Você está indo
à deriva moralmente, eticamente.
Emergindo aqui e ali, depois afundando
de novo. Como se nada estivesse
acontecendo. Está deixando que os
outros apanhem do chão os seus
destroços.
Levantando a cabeça ela o enfrentou:
— Eu lhe fiz algum mal? Salvei você
dos tiras; foi isso que fiz para você. Foi
errado? Diga, foi errado? —
A voz dela aumentou de volume;
encarava-o sem piscar, sem dó, ainda
segurando o garfo cheio de espaguete.
Ele suspirou. Não adiantava.
— Não — disse —, não foi errado.
Obrigado. Eu lhe agradeço pelo que fez.
— E enquanto dizia isso sentiu um ódio
direto contra ela. Por enredá-lo daquela
maneira. Uma ordinariazinha de 19 anos,
apanhando um adulto tipo seis como ele.
Era tão improvável que parecia absurdo;
num certo nível, sentiu vontade de rir.
Mas nos outros níveis não.
— Você está reagindo ao meu calor?
— perguntou ela.
— Sim.
— Você está sentindo o meu amor
chegando até você, não está? Ouça.
Quase dá para ouvir. — Ela escutou ateu
lamente. — Meu amor está crescendo, e
é um fruto tenro.
Jason fez sinal ao garçom.
— O que vocês têm para beber? —
perguntou ao garçom com rispidez. —
Só cerveja e vinho?
E maconha, senhor. Acapulco Gold
da melhor qualidade. E haxixe também,
tipo A.
— Nenhuma bebida forte?
— Não, senhor.
Com um gesto dispensou o garçom.
— Você o tratou como um empregado
— disse Kathy.
— E — disse ele, gemendo alto.
Fechou os olhos e massageou o nariz e
os olhos. Podia ir até o fim agora; afinal,
tinha conseguido atiçar a raiva dela.
— Ele é um péssimo garçom — disse
— e este aqui é um péssimo restaurante.
Vamos embora.
Kathy comentou com amargura:
— Então é isso que significa ser uma
celebridade. Agora compreendo. — Em
silêncio pôs o garfo na mesa.
— O que você acha que compreende?
— disse ele, revelando tudo agora; sua
atitude conciliadora desaparecera de
uma vez. Para nunca mais voltar.
Levantou-se e pegou seu casaco.
— Estou indo embora — disse. E
vestiu o casaco.
— Oh, meu Deus — disse Kathy,
fechando os olhos; sua boca abriu-se
num esgar.
— Oh, meu Deus. Não. O que você
fez? Você sabe o que acaba de fazer?
Você tem consciência? Você percebe?
— Fechou então os olhos, cerrou os
pulsos, e de cabeça baixa começou a
gritar.
Ele nunca tinha ouvido gritos assim, e
ficou paralisado, embotado por aquele
alarido e pela imagem do rosto da moça,
crispado e disforme. “São gritos
psicóticos”, disse para si mesmo. “Do
inconsciente da raça. Não vêm de uma
pessoa, mas de um nível mais profundo,
de uma entidade coletiva.”
Saber disso não ajudava em nada.
O proprietário e dois garçons
acorreram, ainda com os menus na mão;
Jason, estranhamente, notou os detalhes.
Parecia que tudo se tinha congelado
com os gritos dela. Tudo se tornara fixo.
Os fregueses levantando os garfos,
abaixando as colheres, mastigando...
Tudo parou e sobrou apenas aquele som
feio, terrível.
E ela dizia também palavras.
Palavras cruas, como se estivesse lendo
grafites de algum muro de quintal.
Palavras curtas, destrutivas, que
ofendiam a todos no restaurante,
inclusive a ele. Especialmente a ele.
O proprietário, com o bigode
tremendo, fez sinal aos dois garçons,
que levantaram Kathy da cadeira,
seguraram — na pelos ombros e,
seguindo o breve sinal do proprietário,
arrastaram-na pelo restaurante até a rua.
Jason pagou a conta e correu atrás.
à porta, contudo, o proprietário o
deteve. Estendeu a mão:
— São 300 dólares.
— Pelo quê? Por arrastá-la para fora
do restaurante?
— Por não chamar os tiras —
respondeu o proprietário.
Jason pagou, carrancudo.
Os garçons a tinham depositado na
beira da calçada, e ali ela se sentou,
apertando os olhos com as mãos,
balançando-se, fazendo com a boca
movimentos sem som. Os garçons a
rodeavam, aparentemente procurando
ver se ela iria ou não causar mais
problemas; tendo tomado, então, sua
decisão conjunta, apressaram-se a entrar
de volta no restaurante. Deixando-o com
Kathy ali na calçada, debaixo do letreiro
de neon.
Ajoelhando-se ao lado dela, Jason
pôs a mão em seu ombro. Desta vez ela
não tentou afastar-se.
— Desculpe — disse ele. Com
sinceridade. — Desculpe ter forçado
você. — “Desafiei o seu blefe”, pensou
consigo, “e não era blefe. Está bem,
você venceu. Desisto. De agora em
diante será o que você quiser. Diga lá.
Mas ande logo, pelo amor de Deus. Me
deixe sair desse negócio o mais rápido
que puder.”
Mas tinha uma intuição de que não
seria nada rápido.
5
Juntos, de mãos dadas, passearam à
noite pela calçada inundada por cores
contrastantes de luminosos que
piscavam, girando e pulsando. Jason não
gostava desse tipo de bairro; já o vira
um milhão de vezes, duplicado por toda
a face da Terra. Foi de algo assim que
ele fugira, ainda cedo na vida, usando
seus privilégios de tipo seis para cair
fora. Agora estava de volta.
Não fazia objeções às pessoas: via
que estavam presas numa armadilha, os
ordinários que sem culpa nenhuma
tinham que ficar ali. Não tinham
inventado aqui; não gostavam;
aguentavam, como ele não tivera que
aguentar.
Com efeito, sentia-se culpado ao ver
suas caras soturnas, nas bocas
retorcidas. Bocas amargas, infelizes.
— Sim — disse Kathy por fim —,
acho que estou ficando apaixonada por
você. Mas é culpa sua; é esse campo
magnético tão poderoso que você
irradia. Sabe que consigo enxergar a sua
aura?
— Puxa — exclamou ele,
mecanicamente.
— É cor de púrpura aveludada —
disse Kathy, apertando-lhe a mão com
seus dedos com força surpreendente. —
Muito intensa. Você consegue ver a
minha? Minha aura magnética?
— Não.
— Fico surpresa. Achei que você
conseguisse.
Kathy parecia calma agora; a
explosão de gritos deixara atrás de si
uma relativa estabilidade. “Uma
personalidade quase pseudoepileptoide”, ele conjecturou. Isso vai
acumulando dia a dia até...”
— Minha aura — ela interrompeu
seus pensamentos é de um vermelhobrilhante. Cor da paixão.
— Fico contente por você — disse
Jason.
Ela parou e virou-se para fitar bem o
rosto dele. Para decifrar seus
sentimentos. Ele esperou que estivesse
inexpressivo, como convinha.
— Você está zangado porque perdi
as estribeiras? — ela perguntou.
— Não.
— Parece zangado. Acho que está
zangado, sim. Bem, acho que só o Jack
compreenderia. E o Mickey.
— Mickey Quinn — disse ele,
pensativo.
— Ele não é uma pessoa notável? —
disse Kathy.
— Muito. — Poderia ter-lhe dito
muita coisa a respeito, mas não havia
motivo. Ela na realidade não queria
saber; acreditava que já sabia.
“Em que mais você acredita, menina?
”, pensou ele. “Por exemplo, o que você
acha que sabe a meu respeito? Tão
pouco quanto o que sabe sobre Mickey
Quinn e Arlene Howe e todos os outros
que para você não existem na realidade.
Pense no que eu poderia lhe dizer se por
um momento você fosse capaz de ouvir!
Mas você não consegue ouvir. Ficaria
assustada com o que poderia ouvir. E de
qualquer forma você já sabe tudo. ”
— Qual é a sensação — ele
perguntou — de ter dormido com tanta
gente famosa?
Ao ouvir isso ela parou
abruptamente.
— Você acha que eu dormi com eles
porque eram famosos? Acha que sou
uma PC, Papa-Celebridades? É essa sua
opinião a meu respeito?
“Como papel pega-moscas”, ele
pensou. Ela o emaranhava em cada
palavra que ele dizia. Ele nunca levava
a melhor.
— Acho que você — disse ele —
leva uma vida interessante. Você é uma
pessoa interessante.
E importante — acrescentou ela.
— Sim, importante também. Em certo
sentido a pessoa, mais importante que já
encontrei. É uma experiência
— Está falando sério?
— Sim disse ele com veemência. E
de certa forma, meio pelo avesso, era
verdade. Ninguém, nem mesmo Heather
já o tinha amarrado tão completamente.
Estava passando por algo que não
conseguia suportar e de que também não
conseguia safar-se. Parecia-lhe que
estava sentado ao volante de seu
mosquinha original, feito de encomenda,
vendo um semáforo que acendia ao
mesmo tempo a luz vermelha a luz verde
e a amarela; não havia resposta racional
possível. A irracionalidade dela
impossibilitava a razão. O terrível
poder da ilógica, pensou ele. Dos
arquétipos. Funcionando lá das lúgubres
profundezas do inconsciente coletivo,
que o ligavam a ela e a todas as outras
pessoas. Num nó que jamais poderia ser
desfeito, enquanto vivessem.
Não admira, pensou, que algumas
pessoas, muitas pessoas, anseiem pela
morte.
— Quer assistir a um filme do
capitão Kirk? — perguntou Kathy.
— Qualquer coisa — respondeu ele,
breve.
— Há um bom filme no Cinema
Doze. Passa-se num planeta no sistema
Betelgeuse, muito parecido com o
planeta de Tarberg, sabe, no sistema
Próxima. Só que no Capitão Kirk ele é
habitado por escravos de seres
invisíveis que...
— Já assisti — disse ele. Na
verdade, um ano atrás Jeff Pomeroy, que
fazia o papel de capitão Kirk, viera ao
seu programa. Tinham até filmado uma
pequena cena: as trocas de favores de
costume, eu-te-visito-você-me-visita,
com o estúdio de Pomeroy. Não tinha
gostado naquela época e duvidava que
gostaria agora. E detestava Jeff
Pomeroy, tanto na tela como fora dela.
Para ele isso era tudo.
— Não é um bom filme? —
perguntou Kathy com confiança.
— Para mim — disse ele —, Jeff
Pomeroy é o maior bundão do mundo.
Ele e os outros da mesma laia. Os
imitadores dele.
— Ele passou uma temporada em
Moningside — disse ela. — Não
cheguei a conhecê-lo, mas ele esteve lá.
— Acredito — disse ele, meio que
acreditando.
— Sabe o que ele me disse uma vez?
— Conhecendo-o — começou Jason
—, eu diria que...
— Disse que eu era a pessoa mais
mansa que ele já tinha conhecido. Não é
interessante? E me viu ter uma crise
mística — sabe como é, quando eu caio
no chão e grito — e mesmo assim disse
aquilo. Acho que ele é uma pessoa muito
perceptiva; acho mesmo. Você não
acha?
— Acho.
Vamos voltar para o meu quarto,
então? — perguntou Kathy. — E trepar
como duas martas?
Ele fez um muxoxo de espanto. Será
que ela tinha mesmo dito aquilo?
Virando-se, tentou distinguir o rosto
dela, mas estavam nesse momento numa
área negra entre dois luminosos de neon;
tudo estava escuro. “Jesus”, pensou,
“tenho que escapar disso tenho que
achar o caminho de volta para meu
próprio mundo! ”
— Minha honestidade incomoda
você? — ela perguntou.
— Não — ele respondeu sombrio. —
Para ser uma celebridade a gente tem
que ser capaz de aguentar isso. — “Até
isso”, pensou.
— Todos os tipos de honestidade —
disse. — Principalmente o seu tipo.
— Qual é o meu tipo? — Kathy
perguntou.
— Honestidade honesta.
Então você me compreende — ela
disse.
— Sim — ele assentiu. —
Compreendo mesmo.
— E você não me despreza? Como a
uma fulaninha sem valor que deveria
estar morta?
— Não — disse ele. — Você é uma
pessoa muito importante. E muito
honesta também. Uma das pessoas mais
honestas e direitas que já encontrei.
Estou falando sério, juro por Deus.
Ela lhe deu uma palmadinha amistosa
no braço:
— Não fique nervoso com isso.
Deixe que a coisa venha naturalmente.
— Mas vem naturalmente — ele
garantiu. — Vem mesmo.
— Que bom — disse Kathy,
parecendo feliz.
Era evidente que ele dissipara suas
preocupações; Kathy agora confiava
nele. E disso dependia a vida dele...
seria mesmo? Não estaria capitulando
ao raciocínio patológico dela? Naquele
momento realmente não sabia.
— Escute — disse ele, hesitante. —
Vou lhe dizer uma coisa e quero que
escute bem. Você deveria estar numa
prisão para loucos criminosos.
De modo estranho e assustador ela
não reagiu; não disse nada. Ele
continuou:
— E quero ficar à máxima distância
possível de você. Arrancou sua mão da
dela, virou-se e saiu andando na direção
oposta. Ignorando-a. Perdendo-se na
multidão de ordinários que andavam de
lá para cá pelas calçadas ordinárias e
iluminadas por neon, naquela
desagradável parte da cidade.
“Eu a perdi”, pensou ele, “e com isso
é provável que tenha perdido também a
merda da minha vida. ”
E agora? Deteve-se, olhou ao redor.
“Estarei carregando comigo um
microtransmissor, como ela diz? ”,
perguntou-se.
“Estarei me traindo a cada passo que
dou? ” “ o Fábio Falante”, pensou, me
disse para procurar Heather Hart. E
como é do conhecimento de todo mundo
na tevelândia, Fábio Falante sempre tem
razão. ”
“Mas será que vou viver o
suficiente? ”, perguntou-se, 'Para chegar
até Heather Hart? E se conseguir chegar
até ela e estiver mesmo sendo seguido,
não estarei simplesmente levando minha
morte até ela? Como uma peste
irracional? E se Al Bliss não me
reconheceu e Bill Wolfer não me
reconheceu, por que Heather haveria de
me reconhecer? Mas Healher é um tipo
seis, como eu. A única outra pessoa do
tipo seis que conheço. Talvez isso faça
diferença. Se é que há alguma diferença.
”
Encontrou um telefone público,
entrou na cabine, fechou a porta
isolando-se do ruído do trânsito e
colocou uma moeda de ouro na ranhura.
Heather Hart possuía diversos
números telefônicos não listados.
Alguns eram para negócios, alguns para
amigos pessoais, um para os — falando
sem cerimônia — seus amantes. Ele, é
claro, conhecia aquele número, tendo
sido para Heather aquilo que fora e que
esperava ainda ser.
A teletela se acendeu. Jason
distinguiu formas cambiantes que
indicavam que ela estava atendendo do
carro— fone.
— Oi — disse Jason.
Forçando a vista para discerni-lo,
Heather disse:
— Mas quem diabos é você? — Seus
olhos verdes faiscavam. O cabelo
vermelho brilhava.
— Jason.
— Não conheço ninguém chamado
Jason. Como você conseguiu este
número? — Seu tom de voz era
preocupado mas também ríspido. —
Saia já do meu telefone, cacete! —
gritou ela da teletela, e disse:
— Quem lhe deu este número? Quero
saber o nome do cara!
— Você me disse o número há seis
meses atrás — disse Jason. — Logo que
você o instalou. Era o mais particular de
seus telefones particulares; lembra-se?
Era assim que você
chamava.
— Quem lhe contou isso?
— Você. Estávamos em Madri. Você
estava filmando umas tomadas externas
e eu estava passando uma semana de
férias a um quilômetro do seu hotel.
Você costumava vir me encontrar no seu
mosquinha Rolls-Royce todos os dias às
três da tarde. Lembra-se?
Heather perguntou num tom animado,
em staccato:
— Você é de alguma revista?
— Não — disse Jason —, sou seu
bem-amado número um.
— Meu o quê?
— Amante.
— Você é um fã? Você é um fã, um
fanzoca de merda.
— Eu te mato se você não cair fora
do meu telefone. — O som e a imagem
morreram; ela havia desligado.
Ele colocou mais uma moeda, ligou
outra vez.
— O fanzoca de novo — disse
Heather ao atender. Parecia mais
controlada agora. Ou estaria resignada?
— Você tem um dente falso — disse
Jason. — Quando você está com algum
dos seus amantes você o cola no lugar
com um cimento dental especial que
você compra na Haneys. Mas comigo
você às vezes o tira fora e o coloca num
copo com loção para dentaduras Dr.
Sloom. É o produto que você prefere
para limpar a dentadura. Você diz que é
porque ele lembra a época em que o
Bromo Seltzer era legal e não se vendia
no mercado negro, nem era fabricado no
porão de alguém usando todos os três
bromatos que o Bromo Seltzer parou de
usar anos atrás quando...
— Mas como — Heather interrompeu
— você conseguiu essas informações?
— Seu rosto estava rígido, suas
palavras, afiadas e diretas. O tom da sua
voz... Ele o conhecia bem. Heather o
usava com as pessoas que detestava.
— Não use comigo este tom de “não
estou nem aí” — disse ele com raiva. —
Seu dente falso é um molar. Você o
chama de Andy. Certo?
— Um fanzoca de merda que sabe
tudo isso a meu respeito. Meu Deus.
Meu pior pesadelo se realizando! Qual é
o nome do seu fã-clube, quantos fãs há
nele, de onde você é, e como, em nome
de Cristo, conseguiu saber detalhes da
minha vida particular que não tem
direito nenhum d saber? Estou dizendo
que isso que você está fazendo é ilegal;
é uma invasão da minha privacidade.
Vou mandar os tiras atrás de você se me
telefonar de novo. —
Fez um gesto para desligar o telefone.
— Sou um tipo seis — disse Jason.
— Você é o quê? Seis o quê? Você
tem seis pernas, é isso? Ou seis cabeças,
mais provavelmente.
— Você também é tipo seis — disse
Jason. — E isso que nos manteve unidos
este tempo todo.
— Vou morrer — disse Heather,
agora com o rosto cor de cinza; mesmo
com a pouca luz no mosquinha dela ele
percebeu a mudança de cor em suas
feições.
— Quanto vai me custar para você
me deixar em paz? Sempre soube que
algum fanzoca de merda ia acabar...
— Pare de me chamar de fanzoca de
merda — disse Jason com raiva; aquilo
o deixava absolutamente furioso. Era o
máximo do desprezo; uma tijolada
abaixo da cintura, como se dizia agora.
— O que você quer? — perguntou
Heather.
— Encontrar você no Altrocci.
— Claro, você sabe disso também. O
único lugar onde posso ir em paz, sem
que uns idiotas venham babar em cima
de mim e me pedir para autografar
menus que nem sequer são deles.
Deu um suspiro terrivelmente infeliz.
— Bem, agora acabou. Não vou
encontrar você nem no Altrocci nem em
lugar nenhum. Caia fora da minha vida
senão vou mandar meus tiras
particulares arrancar suas bolas fora e...
— Você só tem um tira particular —
interrompeu Jason. — Tem 62 anos de
idade e se chama Fred. Antigamente era
atirador de elite da Guarda Regional de
Orange County; costumava atirar nos
estudantes rebeldes da Universidade da
Califórnia. Naquela época ele era
bambam, mas hoje não assusta ninguém.
— É mesmo? — disse Heather.
— Escute, deixe-me dizer mais uma
coisa que como você acha que eu
poderia saber? Lembra-se de Constance
Ellar?
— Sim disse Heather. — Aquela
nulidade aspirante a estrela que parece
uma boneca Barbie, só que com a
cabeça pequena e o corpo inchado como
se alguém a tivesse inflado com uma
cápsula de CO². —
Torceu os lábios.
— E uma perfeita idiota.
— Certo — ele concordou. — Uma
perfeita idiota. É a expressão exata.
Lembra-se do que fizemos com ela no
meu show? Foi a primeira vez que ela
aparecia para todo o planeta, porque
fazia parte de um acordo conjunto. Você
se lembra do que nós fizemos, eu e
você?
Silêncio.
Jason continuou:
— Para nos compensar pôr a termos
em nosso show, o agente dela concordou
em deixá-la fazer um comercial para um
patrocinador nosso. Ficamos curiosos
para saber qual era o produto, então
antes de a Srta Ellar chegar em nós
abrimos o saco de papel e descobrimos
que era um creme para depilar as
pernas. Puxa, Heather, você deve...
— Estou ouvindo — disse Heather.
— Tiramos o creme depilador e
pusemos no lugar um desodorante íntimo
feminino e o mesmo texto do comercial,
que dizia apenas: “Demonstrar o uso do
produto com expressão de
contentamento e satisfação”. Depois
escapamos dali e esperamos.
— Foi mesmo?
— A Srta Ellar finalmente apareceu,
foi para o camarim, abriu o saco de
papel e aí — é esse pedaço que ainda
me faz dar risada — chegou para mim
com a cara mais séria e disse:
“Sr. Taverner, sinto incomodá-lo por
causa disso, mas para demonstrar o
Spray Desodorante de Higiene Feminino
tenho que tirar a saia e a calcinha. Bem
ali diante da câmera de tevê”.
“E daí? ”, eu disse. “Qual é o
problema? ” E a Srta. Ellar disse:
“Preciso de uma mesinha para pôr
minhas roupas. Não posso largá-las no
chão; não ficaria bem. Veja, vou estar
aplicando um spray na minha vagina na
frente de sessenta milhões de pessoas, e
quando se faz uma coisa dessas não se
pode largar as roupas jogadas no chão
de qualquer jeito. Não é elegante”. Ela
ia mesmo fazer isso, se Al Bliss não
tivesse...
— Que história de mau gosto!
— Mas você achou muito engraçado.
Aquela perfeita idiota tendo sua
primeira chance, e pronta para fazer
aquilo. “Demonstrar o uso do produto
com expressão de contentamento e...”
Heather desligou.
“Como posso fazê-la compreender?”,
perguntou a si mesmo com violência,
rangendo os dentes e quase arrancando
fora uma obturação de prata. Ele odiava
aquela sensação de morder fora um
pedaço de uma obturação. Impotente,
estava destruindo seu próprio corpo.
‘‘Ela não percebe que o fato de eu saber
tudo sobre ela significa algo importante?
Quem poderia saber dessas coisas?
Obviamente só alguém que tivesse
estado muito próximo a ela fisicamente
por algum tempo. ” Não poderia haver
outra explicação, e mesmo assim
Heather tinha arranjado alguma outra
razão tão elaborada que ele não
conseguia chegar até ela. E era algo que
estava bem na frente dos olhos dela.
Seus olhos tipo seis.
Mais uma vez introduziu uma moeda
e discou.
— Oi de novo — disse, quando
Heather enfim atendeu ao fone em seu
carro. — Também sei isso a seu
respeito: você não aguenta deixar o
telefone tocar; é por isso que tem dez
números particulares, cada um para uma
finalidade própria e bem diferente.
— Tenho três — disse Heather. —
Quer dizer que você não sabe de tudo.
— Só quis dizer... — começou Jason.
— Quanto?
— Já estou cheio disso por hoje —
disse ele com sinceridade. — Você não
pode me comprar porque não é isso que
eu quero. O que eu quero... me ouça,
Heather! Quero descobrir por que
ninguém me conhece. Você
principalmente. E já que você é tipo seis
pensei que fosse capaz de explicar.
Você não tem nenhuma lembrança de
mim? Olhe para mim na teletela. Olhe
bem!
Ela olhou bem, erguendo o cenho.
— Você é jovem, mas não muito.
Você é bonito. Sua voz tem autoridade e
você não tem nenhuma relutância em me
atormentar desse jeito. Você tem
exatamente a aparência, a voz e as
atitudes de um fanzoca de merda. Está
bem assim? Está satisfeito?
— Estou numa enrascada — disse
ele. Era totalmente irracional dizer
aquilo, uma vez que ela não tinha a
mínima lembrança dele. Mas ao longo
dos anos ele se acostumara a despejar
seus problemas sobre ela — e a ouvir os
problemas dela — e o hábito não
morrera. O hábito ignorava aquilo que
ele via como a realidade da situação;
continuava funcionando movido por uma
força própria.
— Que pena — disse Heather.
— Ninguém se lembra de mim. E não
tenho certidão de nascimento; nunca
nasci, nem sequer nasci! Assim,
naturalmente, não tenho documentos
exceto umas IDs falsas que comprei de
uma dedo-duro da polícia por dois mil
dólares, mais mil para o meu contato.
Estou levando esses documentos
comigo, mas pode ser que eles tenham
micro— transmissores embutidos. Puxa
vida! Mesmo sabendo disso tenho que
andar com eles; você sabe porquê.
Mesmo você que está lá em cima sabe
como nossa sociedade funciona. Até
ontem eu tinha trinta milhões de
espectadores que gritariam indignados a
plenos pulmões se um tira ou um GN
tocasse num fio de cabelo meu. E agora
estou vendo bem na minha frente um
CTF.
— O que é CTF?
— Campo de trabalhos forçados. —
Disse essas palavras num rosnado,
tentando pressioná-la e por fim agarrá-la
— Aquela garota filha da puta que
forjou meus documentos me fez levá-la a
um restaurantezinho avacalhado onde o
Judas perdeu as botas, e enquanto
estávamos ali, só
conversando, ela se jogou no chão
gritando. Gritos de psicótico: ela é
foragida do Morningside, ela mesma
confessou. Isso me custou mais trezentos
dólares e agora quem sabe?
Provavelmente ela atiçou tanto os tiras
quanto os GNs para virem atrás de mim.
— Forçando um pouco mais na auto
piedade, completou: — É provável que
eles estejam escutando este telefonema
agora mesmo.
— Ai, meu Deus! — gritou Heather,
e desligou de novo.
Suas moedas de ouro haviam-se
acabado. Portanto neste momento
desistiu. Percebeu que fizera uma
bobagem da grossa ao dizer que o
telefonema podia estar sendo
monitorado. Qualquer pessoa desligaria
depois disso. “Eu me estrangulei em
minha própria teia de aranha”, percebeu.
"Bem no meio. Como um tubo achatado
nos dois lados. Como um grande ânus
artificial. ”
Abriu a porta da cabine telefônica e
saiu para a calçada noturna cheia de
gente... “Logo aqui”, pensou com
azedume, “nesta Favelândia. Logo aqui
onde os dedo-duros pululam. Que belo
show, como diz aquele clássico anúncio
de televisão que estudamos na escola. ”
“Seria engraçado se estivesse
acontecendo com outra pessoa. Mas está
acontecendo comigo. Não, não tem graça
nenhuma, nem de um jeito nem do outro.
Porque há sofrimento de verdade e
morte de verdade aguardando nos
bastidores. Prontos para entrarem em
cena a qualquer momento. ”
“Gostaria de ter gravado esse
telefonema, assim como tudo que Kathy
me disse e que eu disse a ela. Colorido
em três dimensões, em videotape, seria
uma boa atração extra para o meu show,
perto do fim quando às vezes acaba todo
o material. Às vezes uma ova; em geral.
Sempre. Para o resto da minha vida. ”
Podia ouvir agora sua introdução: “O
que pode acontecer com um homem, um
homem de bem com ficha limpa na
polícia, um homem que de repente um
belo dia perde todos os seus documentos
e se vê frente a frente com...”. E assim
por diante. Isso atrairia a atenção deles,
de todos os trinta milhões. Porque é
disso que cada um deles tem medo. “Um
homem invisível”, diria na sua
introdução, “e no entanto um homem que
chama demais a atenção. Legalmente é
invisível; ilegalmente é visível demais.
O que acontece com esse homem, se ele
não conseguir substituir...”. Blá blá blá.
E por aí afora. Para o diabo com tudo
aquilo. Nem tudo que ele dizia ou fazia
ou que tinha acontecido com ele entrava
no show; o mesmo sucederia com esse
episódio. Mais um perdedor entre
muitos. “Muitos são os chamados”,
pensou, “mas poucos os escolhidos. É
isso que significa ser profissional. Ê
assim que levo a minha vida, tanto
pública como particular. Diminua as
perdas e aja no momento certo”, disse
para si mesmo, citando uma frase sua
dos velhos bons tempos quando seu
primeiro show mundial foi transmitido
por satélite.
“Vou encontrar outro falsificador”,
decidiu, “um que não seja dedo-duro, e
vou conseguir um novo conjunto de
documentos, desta vez sem
microtransmissores. E evidentemente
preciso de uma arma. ”
“Devia ter pensado nisso logo que
acordei naquele quarto de hotel”, disse
para si mesmo. Uma vez, anos atrás,
quando o sindicato da Reynolds tentara
comprar um lugar no seu show,
aprendera a usar uma arma, e a levara
consigo: uma Barber’s Hoop com
alcance de três quilômetros sem desvio
de trajetória até os trezentos metros
finais.
O “transe místico” de Kathy, seu
ataque de gritos. O áudio mostraria uma
voz masculina madura dizendo com os
gritos dela ao fundo:
“É isso que significa ser psicótico.
Ser psicótico é sofrer, sofrer além
de...”, e assim por diante. Blá blá blá.
Inspirou uma profunda lufada do frio ar
noturno, estremeceu, e uniu-se aos
passageiros no mar da calçada, com as
mãos enfiadas nos bolsos da calça.
Encontrou-se então em frente a uma
fila que ia de dez em dez em frente a
uma patrulha de controle da polícia.
Um tira vestido de cinza controlava o
fim da fila para que ninguém escapasse
na direção oposta.
— Não dá para você passar, amigo?
— disse-lhe o tira quando ele sem
querer fez menção de ir embora.
— Claro — disse Jason.
— Ótimo — disse o tira, bemhumorado. — Porque estamos aqui
fazendo controle desde as oito da manhã
e ainda não preenchemos nossa cota de
trabalho.
6
Dois policiais corpulentos vestidos
de cinza, ao compararem o homem na
frente de Jason, disseram:
— Esses aqui foram forjados uma
hora atrás; ainda estão úmidos, está
vendo? Vê a tinta escorrer com o calor?
Certo!
Deram sinal com a cabeça e o
homem, agarrado por quatro liras
reforçados, desapareceu num furgãomosquinha estacionado, pintado com as
lúgubres cores cinza e negra: cores da
polícia.
— Muito bem — disse um dos tiras
para Jason com amabilidade —, vamos
ver quando os seus foram impressos.
— Há anos tenho estes documentos
— disse Jason, e entregou aos tiras sua
carteira com os sete documentos de
identidade.
— Transfira as assinaturas — disse o
tira mais graduado ao seu companheiro.
— Veja se elas se superpõem.
Kathy estava certa.
— Não — disse o tira júnior,
olhando através de sua câmara oficial.
— Não ficam superpostas. Mas
parece que esse aqui, o certificado
militar, já teve um microponto que
depois foi raspado fora. E com muita
perícia. Só dá para ver com a lente. —
Trouxe a luz e a lente de aumento
portátil, iluminando os documentos
falsificados de Jason até aparecerem
com todos os detalhes.
— Está vendo?— Quando você
terminou o serviço militar— perguntou o
tira mais velho — esse certificado ltinha
ponto eletrônico? Você não se lembra?
— Ambos os tiras examinavam Jason
esperando a resposta.
Que diabos ele deveria dizer?
— Não sei — respondeu. — Não sei
nem que cara tem um mi... — ia dizer
“microtransmissor” mas corrigi" e
emendou em tempo: — um ponto
eletrônico.
— É um pontinho, Sr. — informou o
tira júnior,
— O senhor não está ouvindo? O
senhor toma drogas? ()llu— aqui: na sua
carteira de registro de drogas não há
nenhuma ocorrência no último ano.
Um dos tiras reforçados manifestouse:
— Isso prova que não são forjados;
quem iria forjar um delito num
documento de identidade? Só um louco
faria isso.
— Sim — concordou Jason.
— Bem, isso não é da nossa área —
disse o tira graduado. Devolveu os
documentos a Jason. — Ele terá que
levar isso ao seu inspetor de drogas. Vá
andando.
Com o cassetete foi empurrando
Jason, enquanto já pegava os
documentos do próximo da fila.
— É só isso? — perguntou Jason aos
tiras. Não conseguia acreditar.
“Não demonstre”, disse para si
mesmo. “ Vá andando'.
E foi o que fez.
Das sombras de um poste de
iluminação quebrado Kathy estendeu a
mão e o tocou; ele se paralisou ao toque,
sentindo-se gelar inteiro, começando
pelo coração.
— O que você acha de mim agora?
— perguntou Kathy. — Do meu
trabalho, do que fiz por você?
— Funcionou — disse ele, seco.
— Não vou denunciar você — disse
Kalhy —, apesar de que você me
insultou e me abandonou.
— Mas você tem que ficar comigo
esta noite, como prometeu.
Compreende?
Ele foi obrigado a admirá-la.
Escondendo-se nas proximidade do
posto de controle, obtivera uma prova
em primeira mão de que os documentos
que forjara foram tão bem feitos que
conseguiram fazê-lo passar pelos tiras.
Com isso de repente a situação entre
eles se alterara: era ele quem tinha
agora uma dívida para com ela. Não
estava mais na situação de vítima
ofendida.
Ela agora possuía uma parte moral
dele. Primeiro o anzol: a ameaça de
delatá-lo à polícia. Em seguida a isca:
os documentos bem forjados. De fato a
garota o tinha nas mãos. Tinha que
reconhecer isso, para ela e para si
mesmo.
— De qualquer modo eu poderia ter
feito você passar disse Kathy. Levantou
o braço direito e apontou para a manga
da blusa.
— Tenho aqui uma etiqueta de
identificação policial; aparece com a
macrolente deles. Assim não posso ser
pega por engano. Eu teria dito a eles...
— Deixa pra lá — interrompeu ele
com aspereza. — Não quero saber. —
Afastou-se dela; a garota veio saltitando
atrás dele como um passarinho.
— Quer voltar ao meu miniapartamento? — perguntou ela.
— Aquela porcaria de quartinho? —
“Tenho uma casa flutuante em Malibu”,
pensou ele, “com oito quartos, seis
banheiras giratórias e uma sala em
quatro dimensões com teto infinito. E
por causa de alguma coisa que não
compreendo e que não posso controlar,
tenho que passar meu tempo desse jeito.
Em lugares decadentes e marginais.
Barzinhos vagabundos, ateliês
avacalhados e quartinhos ainda mais
avacalhados. Será que estou pagando
por alguma coisa que fiz? Algo de que
nem me lembro? Mas ninguém paga
nada. Já aprendi isso muito tempo atrás:
não se recebe de volta nem o bem nem o
mal que se faz. No fim não há justiça.
Será que nem isso aprendi até agora?
— Adivinhe qual é a primeira coisa
que vou comprar amanhã — disse
Kathy.
— Moscas mortas. Sabe por quê?
— Têm muita proteína.
— Sim, mas não é por isso. Não vou
comprá-las para mim. Toda semana
compro um saco de moscas mortas para
Bill, minha tartaruga.
— Não vi tartaruga nenhuma.
— Está no maxi-apartamento. Você
não estava achando que eu iria comprar
moscas mortas para mim mesma, estava?
— De gustibus non disputandum est
— citou ele.
— Vejamos... gosto não se discute;
certo?
— Certo. Quer dizer, se você quer
comer moscas mortas, então tudo bem,
coma.
— É Bill quem come; ele gosta. Ele é
dessas tartaruguinhas verdes... Não
daquelas tartarugas de terra. Você já viu
como eles abocanham a comida, como
fazem com uma mosca na água? Mesmo
pequenininha, é horrível. Num momento
a mosca está lá, e dali a um segundo,
nhact — já está dentro da tartaruga. —
Kathy riu. — Já está sendo digerida.
Isso nos dá uma lição.
— Que lição? — Ele já imaginou. —
É que quando a gente morde, ou pega
tudo ou nada, mas nunca só uma parte.
— É isso que acho.
— E o que você conseguiu? Tudo ou
nada?
— Bem... não sei — respondeu ela.
— Boa pergunta, bem, não tenho Jack.
Mas talvez não o queira mais. Já faz
tanto tempo, que merda! Acho que ainda
preciso dele. Mas preciso mais de você.
— Pensei que você fosse aquela que
conseguia amar dois homens igualmente.
— Eu disse isso? — Ela refletiu
enquanto caminhavam. — O que quis
dizer é que esse é o ideal, mas na vida
real a gente só consegue se aproximar
disso... Compreende? Dá para você
acompanhar meu raciocínio?
— Estou acompanhando — disse ele
— e estou vendo onde isso leva. Leva
ao abandono temporário de Jack
enquanto eu estiver por aqui, e a uma
volta psicológica a ele depois que tiver
ido embora. É assim que você faz
sempre?
— Nunca o abandono — disse Kathy,
brusca.
Continuaram caminhando em silêncio
até chegar ao velho edifício com sua
floresta de antenas de tevê em desuso
projetando-se de todas as partes do teto.
Kathy remexeu na bolsa, encontrou a
chave e abriu a porta de seu quarto.
As luzes estavam acesas. E sentado
no sofá embolorado, bem em frente a
eles, um homem de meia-idade,
encanecido, com um terno cinza. Um
homem corpulento mas imaculado,
perfeitamente escanhoado; nenhum corte
em seu rosto, nenhuma mancha
vermelha, nenhum erro. Estava
perfeitamente vestido e penteado, com
cada fio de cabelo no lugar.
Kathy gaguejou, vacilante:
— O Sr. McNulty.
Levantando-se, o grandão estendeu a
mão a Jason. Automaticamente Jason
estendeu a sua para cumprimentá-lo.
— Não — disse o homenzarrão. —
Não vou apertar a sua mão; quero ver
seus documentos, os que ela fez para
você. Passe para cá.
Sem uma palavra — não havia nada a
dizer —, Jason passou-lhe sua carteira.
— Não foi você quem fez estes aqui
— disse McNulty, após um breve
exame. — A menos que você tenha
melhorado pra caramba.
— Alguns desses documentos estão
comigo há anos — disse Jason.
— É mesmo? — murmurou McNulty.
Devolveu a carteira e os documentos a
Jason. — Quem colocou os
microtransmissores nele? Foi você? —
perguntou a Kathy. Ou foi Eddy?
— Eddy — disse Kathy.
— O que temos aqui? — disse
McNulty examinando Jason de alto a
baixo como se estivesse tirando suas
medidas para um caixão.
— Um homem de seus quarenta anos,
bem vestido, com roupas modernas.
Sapatos caros... de couro legítimo.
Certo, Sr. Taverner?
— São de couro de vaca — disse
Jason.
— Seus documentos dizem que o
senhor é músico — disse McNulty. — O
senhor toca algum instrumento?
— Eu canto.
— Cante alguma coisa para nós agora
— disse McNulty.
— Vá para o inferno — disse Jason,
controlando sua respiração de forma que
as palavras saíram exatamente como ele
pretendia. Nem mais, nem menos.
McNulty disse para Kathy:
— Ele não parece estar intimidado.
Ele sabe quem eu sou?
— Sim — respondeu Kathy. — Eu...
eu lhe contei.
Em parte.
— Você lhe contou sobre o Jack —
disse McNulty. E para Jason:
— Não existe nenhum Jack. Ela
acredita que existe, isso é uma ilusão
psicótica, o marido dela morreu três
anos atrás num acidente de carro; nunca
esteve num campo de trabalhos
forçados.
— Jack ainda está vivo — disse
Kathy.
— Está vendo? — disse McNulty
para Jason. — Ela se adaptou bastante
bem ao mundo exterior, exceto por essa
ideia fixa. Nunca vai desaparecer; ela a
conservará para sempre para manter o
equilíbrio de sua vida. — Deu de
ombros.
— É uma ideia inofensiva, e é o que
segura Kathy. Portanto não fizemos
nenhuma tentativa de tratá-la com
psiquiatria.
Kathy havia começado a chorar em
silêncio. Grandes lágrimas escorriam
lhe pelas faces e caíam como glóbulos
em sua blusa, formando manchas escuras
aqui e ali.
— Vou falar com Eddy daqui a uns
dois dias — disse McNulty.
— Vou perguntar-lhe por que
colocou os microtransmissores em você.
Ele tem uma boa intuição; deve ter sido
um pressentimento. — Refletiu por um
momento.
— Lembre-se de que esses
documentos na sua carteira são
reproduções de documentos verdadeiros
que estão arquivados em diversos
bancos de dados espalhados pela
planeta. Suas reproduções são
satisfatórias, mas posso querer checar
os originais. Esperemos que estejam tão
em ordem quanto essas cópias que você
tem.
Kathy disse em voz fraca:
— Mas este é um procedimento muito
raro. Estatisticamente...
— Neste caso específico — disse
McNulty — creio que vale a pena tentar.
— Por quê? — perguntou Kathy.
— Porque achamos que você não está
nos entregando todo mundo. Meia hora
atrás esse Taverner aqui conseguiu
passar por um posto de controle. Nós o
seguimos usando os microtransmissores.
E seus papéis me parecem estar em
ordem. Mas Eddy diz que...
— Eddy bebe — falou Kathy.
— Mas nós podemos contar com ele.
— McNully deu um sorriso, um raio de
sol profissional no quartinho chinfrim.
— E não podemos contar com você cem
por cento.
Tirando da carteira seu certificado
militar, Jason esfregou a pequena foto
em quatro dimensões que mostrava seu
rosto de perfil. E a foto falou com voz
metálica:
“Bom— dia, como vai sua tia?”.
— Como isso aqui poderia ser falso?
— disse Jason. — Este é o tom de voz
que eu tinha há dez anos, quando fui um
GN involuntário.
— Duvido — disse McNulty. Olhou
o relógio. — Nós lhe devemos alguma
coisa, Srta. Nelson? Ou estamos quites
por esta semana?
— Quites — disse ela com certo
esforço. Numa voz baixa e insegura
sussurrou:
— Depois que Jack sair, vocês não
vão mais poder contar comigo, nem um
pouco.
— Para você Jack nunca vai sair —
disse McNulty, jovial. Piscou para
Jason. Jason também piscou para ele.
Duas vezes. Compreendia McNulty. O
homem se aproveitava das fraquezas
alheias; era o tipo de manipulação que
Kathy usava e que provavelmente
aprendera com ele. E com os
companheiros dele, pitorescos e joviais.
Compreendia agora como ela se
tornara o que era agora. A traição era
rotina diária; uma recusa a trair, como
acontecera no seu caso, era milagrosa.
Só lhe restava cismar naquilo e
vagamente agradecer.
“Estamos num estado de traição”,
percebeu. “Quando eu era famoso estava
isento disso. Agora sou como todo
mundo; tenho que enfrentar o que eles
sempre enfrentaram. E... o que eu mesmo
enfrentei nos primeiros tempos, e depois
eliminei da minha memória. Porque
acreditar me faria sofrer demais...
Houve época em que tive escolha, e
escolhi não acreditar.”
McNulty pôs sua mão carnuda e
sardenta no ombro de Jason e disse:
— Venha comigo.
— Aonde? — perguntou Jason,
esquivando-se de McNulty de uma
maneira que percebeu ser exatamente
igual à maneira como Kathy tinha-se
esquivado dele. Isso também ela
aprendera com os McNultys deste
mundo.
— Você não pode fazer nenhuma
acusação contra ele! Disse Kathy em voz
rouca, cerrando os punhos.
McNulty respondeu imperturbável:
— Não vamos acusá-lo de nada;
apenas quero suas impressões digitais e
vocais, marcas dos pés e
eletroencefalograma. Certo, Sr. Tavern?
Jason começou a dizer:
— Lamento ter que corrigir um
oficial de polícia — mas interrompeu-se
ao ver o olhar de admoestação de Kathy
—, um oficial de polícia que está
cumprindo seu dever completou —,
portanto vou com o senhor. — Talvez
Kathy tivesse razão; talvez lhe fosse útil
que o tira se enganasse quanto ao seu
nome e continuasse a chamá-lo de
Tavern. Quem sabe? Só o tempo poderia
dizer.
— Tavern — repetiu McNulty
devagar, levando-o até a porta do
quarto.
— Parece “taverna”. Lembra cerveja,
calor e aconchego, não é? — Olhou para
Kathy e disse em tom áspero: — Não é?
O Sr. Tavern é um homem caloroso
— disse Kathy, com os dentes cerrados.
A porta fechou-se atrás deles e McNulty
o guiou pelo corredor e escada abaixo,
enquanto sentia o cheiro de cebola e
molho quente vindo de todas as
direções.
Na delegacia do Distrito 469, Jason
Taverner viu-se perdido na multidão de
homens e mulheres que perambulavam
sem objetivo, esperando para entrar,
esperando para sair, esperando
informações, esperando que alguém lhes
dissesse o que fazer. McNulty prendera
uma fita colorida na lapela; só Deus e a
polícia sabiam o que significava.
Era óbvio que significava alguma
coisa. U m oficial uniformizado atrás de
um balcão que ia de parede a parede lhe
fez sinal.
— Certo — disse o polícia. — O
inspetor McNulty já preencheu parte do
seu formulário J-2. Jason Tavern.
Endereço: Rua Víne, 2048.
Onde McNulty arranjara aquilo?
Jason ficou intrigado. Rua Vine.
Percebeu então que era o endereço de
Kathy. McNulty assumira que estavam
morando juntos; com o excesso de
trabalho que assolava todos os tiras, ele
escrevera o endereço que exigia o
mínimo esforço. Uma lei da natureza:
qualquer objeto, ou ser vivo, percorre o
caminho mais curto entre dois pontos.
Jason preencheu o restante do
formulário.
— Coloque a mão naquela abertura
— disse o oficial, indicando a máquina
de tirar impressões digitais. Jason
obedeceu. O oficial prosseguiu:
— Agora tire um sapato, pode ser o
direito ou o esquerdo. A meia também.
Pode sentar-se aqui. —
Fez, deslizar uma parte do balcão,
revelando uma entrada e uma cadeira.
— Obrigado — disse Jason,
sentando-se.
Após registrar a marca de seu pé,
falou para outra máquina a sentença: “O
rato roeu a roupa do rei de Roma”. Com
isso a impressão vocal estava
registrada. Em seguida sentou-se de
novo e deixou que afixassem terminais
em vários pontos de sua cabeça; a
máquina cuspiu um metro de papel todo
cheio de rabiscos, e foi tudo. Esse era o
EEG, seu eletroencefalograma. Com
isso, terminavam-se os testes.
McNulty, parecendo alegre, apareceu
no balcão. Na crua luz branca que vinha
do teto a sombra de uma barba
vespertina aparecia em seu rosto, queixo
e lábio superior.
— Como vamos com o Sr. Tavern?
— perguntou.
— Vamos agora fazer uma pesquisa
de nomenclatura no arquivo.
— Ótimo — disse McNulty. — Vou
ficar por aqui e ver o que vai aparecer.
O oficial uniformizado enfiou numa
abertura o formulário preenchido por
Jason, e apertou alguns botões
coloridos. Por algum motivo Jason notou
que todos os botões eram verdes, com
letras maiúsculas.
Por uma abertura semelhante a uma
boca na extremidade do longo balcão
saiu a cópia de um documento, que caiu
num cesto metálico.
— Jason Tavern — disse o oficial,
examinando o documento.
— Mora em Kememmer, estado de
Wyoming. Idade: 39. Mecânico de
motores diesel.
Olhou para a foto:
— Foto tirada há quinze anos.
— Algum registro na polícia? —
perguntou McNulty.
— Nenhum problema de espécie
alguma — disse o oficial.
— Não há nenhum outro Jason
Tavern no fichário da polícia? —
perguntou McNulty. O oficial apertou
um botão amarelo e abanou a cabeça.
— Certo — disse McNulty.
— Então é ele. — Examinou Jason.
— Você não tem cara de mecânico de
motores a diesel.
— Não trabalho mais com isso —
disse Jason. — Agora sou vendedor.
Vendo equipamento agrícola. Quer ver
meu cartão? —
Era um blefe: pôs a mão no bolso
superior do casaco. McNulty fez que não
com a cabeça. Então era isso; como
costumavam fazer os burocratas, haviam
pesquisado a ficha errada. E na pressa
deixaram-na ficar.
Jason pensou:
“Graças a Deus que há pontos fracos
neste vasto e complicado aparato que se
estende por todo o planeta. Gente
demais, máquinas demais. Esse erro
começara com um inspetor de polícia e
chegara até o BDP, o Banco de Dados
da Polícia em Memphis, Tennessee.
Nem com minhas impressões digitais,
vocais, cerebrais e marcas dos pés eles
provavelmente não conseguirão corrigilo. Agora não conseguirão mais, com
meu formulário já arquivado”.
— Devo processá-lo? — perguntou o
oficial a McNulty.
— Pelo quê? — disse McNulty.
— Por ser um mecânico diesel? —
Com camaradagem deu uma palmadinha
nas costas de Jason.
— O senhor pode ir para casa, Sr.
Tavern. Pode voltar para sua queridinha
com cara de criança. Sua virgenzinha.
—
Com um largo sorriso, sumiu na
multidão de homens e mulheres ansiosos
e confusos.
— Pode ir embora, senhor — disse o
oficial a Jason.
Jason assentiu e, deixando a
delegacia de polícia do Distrito 469,
saiu para a rua noturna, misturando-se às
pessoas livres e decididas que lá
moravam.
“Mas eles vão acabar me pegando”,
pensou. “Vão comparar todos os
registros. Mas mesmo assim, se faz
quinze anos que a foto foi tirada, talvez
façam quinze anos que tiraram um EEG
e uma impressão vocal dele.”
Mas ainda sobravam as impressões
digitais e as marcas dos pés. Estas não
mudavam.
“Talvez”, pensou, “joguem a cópia
da ficha numa máquina de triturar
papéis, e pronto. E vão enviar as
informações que conseguiram sobre mim
para Memphis, onde será incorporada à
minha — ou melhor, à ‘minha’ ficha
permanente. Ou seja, à ficha de Jason
Tavern.”
“Graças a Deus que Jason Tavern,
mecânico diesel, nunca infringira as leis,
nunca se metera com tiras nem GNs.
Sorte dele.”
Um helicóptero de polícia veio
oscilando logo acima dele com seu
holofote vermelho e anunciou pelos altofalantes:
“Sr. Jason Tavern, volte
imediatamente para a delegacia do
Distrito 469. Isto é uma ordem da
polícia. Sr. Jason Tavern...”.
A voz metálica não cessava. Jason
parou, atônito. Já o haviam descoberto.
Não em questão de horas, dias ou
semanas, mas de minutos.
Voltou à delegacia de polícia, subiu
as escadas de stiraplex, passou pelas
portas eletrônicas, atravessou a multidão
de infelizes que andavam de lá para cá e
voltou ao oficial uniformizado que
tratara de seu caso. E lá estava também
McNulty. Os dois confabulavam, de
cenho franzido.
— Bem — disse McNulty, ao vê-lo
—, aqui está o nosso Sr. Tavern outra
vez. O que o traz de volta aqui, Sr.
Tavern?
— O helicóptero da polícia... —
começou, mas McNulty o interrompeu.
— Aquilo foi feito sem autorização.
Apenas irradiamos um aviso e algum
idiota elevou a coisa a nível de pesquisa
por helicóptero. Mas já que está aqui —
McNulty virou um documento para que
Jason visse a foto — o senhor era assim
há quinze anos?
— Creio que sim — disse Jason. A
foto mostrava um indivíduo de faces
encovadas e um pomo de Adão
protuberante, dentes ruins e olhos que
fixavam o vazio com severidade. Seu
cabelo espetado, cor de palha de milho,
caía sobre as orelhas de abano.
— O senhor fez cirurgia plástica —
disse McNulty.
— Sim — respondeu Jason.
— Porquê?
— Quem iria querer ter essa cara? —
disse Jason.
— Não admira então que o senhor
seja tão bem apessoado, com essa
aparência tão digna — disse McNulty.
—
— Tão imponente. Tão... — procurou
a palavra — tão autoritário. É difícil
acreditar que disso — colocou o
indicador na foto — eles conseguiram
fazer isso. — Bateu amigavelmente no
braço de Jason.
— Mas como conseguiu dinheiro
para isso?
Enquanto McNulty falava, Jason lia
depressa os dados do documento. Jason
Tavern nascera em Cícero, estado de
Illinois; seu pai fora torneiro-mecânico,
seu avô proprietário de uma cadeia de
lojas de equipamento agrícola — uma
feliz coincidência, considerando o que
dissera a McNulty sobre seu trabalho
atual.
— Foi Windslow quem me deu —
disse Jason. — Desculpe; sempre me
refiro a ele pelo nome, e me esqueço
que os outros não podem fazer o mesmo.
Seu treino profissional viera em seu
auxílio; havia lido e assimilado quase
toda a página enquanto McNulty falava.
— Meu avô. Tinha bastante dinheiro,
e eu era seu favorito. Eu era o único
neto, sabe como é.
McNulty examinou o documento e
assentiu.
— Eu parecia um caipirão — disse
Jason. — Parecia bem o que eu era: um
caipira lá do interior. O melhor emprego
que podia conseguir era consertar
motores diesel, e eu queria mais que
isso. Então peguei o dinheiro que
Windslow me deixou e fui para
Chicago...
— Certo — disse McNulty. — As
informações coincidem. Nós sabemos
que é possível fazer cirurgias plásticas
assim radicais, e a um custo não tão alto.
Mas em geral quem faz isso são as nãopessoas ou os foragidos dos campos de
trabalho. Nós monitoramos todas essas
lojas de enxerto, como as chamamos.
— Mas veja como eu era feio —
disse Jason.
McNulty deu uma risada profunda e
gutural.
— Era mesmo, Sr. Tavern. Tudo
bem; lamento tê-lo incomodado. Pode ir.
— Fez um gesto, e Jason começou a
abrir caminho entre as pessoas. — Ah!
— McNulty o chamou de volta com um
gesto.
— Mais uma... — Sua voz, abafada
pelo ruído da multidão, não o alcançou.
Portanto, com o coração frio como gelo,
Jason começou a andar.
“Depois que eles prestam atenção em
você”, Jason percebeu, “eles nunca
abandonaram completamente a sua ficha.
Não se pode nunca mais voltar ao
anonimato. Por isso é vital acima de
tudo não ser notado. Mas eu já fui.”
— O que foi? — perguntou a
McNulty, em desespero. Estavam
brincando com ele, acabando com ele;
sentia dentro de si o coração, o sangue,
todos os órgãos vitais se abalarem. Até
mesmo sua magnífica fisiologia de tipo
seis vacilava com tudo aquilo.
McNulty estendeu a mão.
— Passe seus documentos. Quero
mandar fazer alguns exames de
laboratório neles. Se estiverem corretos
o senhor os terá de volta depois de
amanhã.
Jason protestou:
— Mas se a polícia der uma batida...
— Vamos lhe dar um passe policial
— disse McNulty. Fez sinal a um oficial
mais velho com uma enorme barriga.
— Tire uma foto dele em 4-D e faça
um passe total.
— Sim, inspetor — disse o
barrigudo, ligando um equipamento
fotográfico com suas gordas patas.
Dez minutos depois Jason Taverner
viu-se mais uma vez na calçada agora
quase deserta, e dessa vez com um passe
policial autêntico melhor que qualquer
coisa que Kathy pudesse fabricar para
ele... Só que válido por uma semana
apenas. Mas mesmo assim...
Durante uma semana, podia dar-se ao
luxo de não se preocupar. Depois
disso...
Conseguira o impossível: trocar uma
carteira cheia de documentos fajutos por
um passe genuíno. Examinando o passe à
luz da rua, viu que a data de validade
era holográfica... e havia lugar para
acrescentar mais um número. Lá dizia “7
dias”. Podia pedir a Kathy que alterasse
o número para 75, 97, ou o que fosse
mais fácil.
E então lhe ocorreu que, assim que o
laboratório da polícia concluísse que
seus documentos eram falsos, o número
do seu passe, seu nome, sua foto, seriam
transmitidos para todos os postos
policiais do planeta.
Mas até isso acontecer estava a
salvo.
PARTE DOIS
Apagai-vos, luzes vãs; não mais
brilheis!
Nem o negror da mais funérea noite
basta.
Para os que em desespero lamentam
sua fortuna perdida.
A luz nada mais revela que sua
profunda desonra.
7
No anoitecer cinzento, antes que as
calçadas regurgitassem com o
burburinho da noite, o general de Polícia
Felix Buckman aterrissou com seu
opulento mosquinha oficial no teto do
edifício da Academia de Polícia de Los
Angeles. Ficou sentado por algum
tempo, lendo os artigos da primeira
página do único jornal vespertino da
cidade; dobrando então o jornal com
cuidado, colocou-o no assento traseiro
do mosquinha, abriu a porta e saiu.
Abaixo daquele nível, nenhuma
atividade. Um turno começava a sair; o
próximo ainda não começara a chegar.
Gostava daquela hora do dia:
naqueles momentos o grandioso edifício
parecia pertencer-lhe. “E deixa o mundo
à escuridão e a mim”, pensou,
recordando uma linha da Elegia de
Thomas Gray. Obra favorita sua há
muito tempo; na verdade desde a
infância.
Com sua chave abriu o canal
expresso do edifício e desceu
rapidamente até seu andar, o décimoquarto. Onde trabalhara a maior parte de
sua vida adulta.
Mesas sem ninguém, fileiras e
fileiras delas. Exceto um oficial sentado
no outro extremo do salão, esforçando-
se para escrever um relatório. E perto
da máquina de café, uma funcionária
bebendo numa caneca.
— Boa-noite — disse-lhe Buckman.
Ele não a conhecia, mas não tinha
importância: ela, assim como todos no
edifício, o conhecia. — Boa-noite, Sr.
Buckman. — A moça aprumou-se, como
que ficando em posição de sentido.
— Está cansada.
— Como disse, senhor?
— Vá para casa. — Afastou-se dela
e passou pela fileira posterior de mesas,
aquelas caixas quadradas de metal
cinzento sobre as quais se fazia todo o
trabalho daquele departamento da
polícia planetária.
A maioria das mesas estava sem
nada: os funcionários haviam deixado
tudo em ordem antes de ir embora. Mas
na mesa 37 havia diversos papéis. O Sr.
Alguém tinha trabalhado até mais tarde,
concluiu. Inclinou-se para ler a
plaquinha com o nome.
Inspetor McNulty, é claro. A
maravilha da Academia. Sempre
ocupado inventando tramas e traições...
Buckman sorriu, sentou-se na cadeira
giratória e pegou os papéis.
TAVERNER, JASON. CÓDIGO
AZUL.
Uma cópia xerox de um registro dos
arquivos policiais. Tirada do vazio pelo
inspetor McNulty, ansioso demais. E
gordo demais. Uma pequena anotação a
lápis:
“Taverner não existe”.
Estranho, pensou. E começou a
folhear os papéis.
— Boa-noite, Sr. Buckman. — Era
seu assistente, Herbert Maime, jovem e
inteligente, elegantemente vestido à
paisana; apreciava aquele privilégio,
assim como Buckman.
Parece que McNulty anda
trabalhando na ficha de alguém que não
existe — disse Buckman.
— Em qual distrito ele não existe? —
disse Maime, e ambos riram. Não
gostavam muito de McNulty, mas a
cinzenta polícia precisava de tipos como
ele. Tudo estaria muito bem enquanto os
McNultys da Academia não subissem a
posições de comando. Felizmente isso
raramente acontecia. Pelo menos no que
dependia de Buckman.
Deu o nome de Jason Taverner. Foi
dada busca erradamente na ficha de
Jason Tavern, residente em Kememmer,
Wyoming, mecânico de motores diesel.
Alegou ser Tavern após cirurgia
plástica. Os documentos o identificam
como Taverner, Jason, mas não há
registro de tal pessoa.
Interessante, pensou Buckman ao ler
as notações de McNulty. Absolutamente
nenhum registro do homem. Terminou de
ler as anotações:
Bem vestido, sua aparência sugere
dinheiro; talvez tenha influência para
conseguir que sua ficha fosse retirada
dos bancos de dados. Examinei sua
relação com Katharine Nelson, contato
da polícia na área. Será que ela sabe
quem ele é? Tentou não delatá-lo, mas o
contato 1659BD inseriu nele um
microtransmissor. O suspeito está neste
momento num táxi. Setor N8823B, indo
para o leste em direção a Las Vegas.
Deve chegar em 11/4 às 10h, hora da
Academia. Próximo relatório às 2h40,
hora da Academia.
Katharine Nelson. Buckman a
encontrara uma vez, num curso de
orientação para contatos policiais. Era a
garota que só entregava os indivíduos de
quem não gostava. De uma maneira
estranha, elíptica, ele a admirava, e se
ele próprio não tivesse interferido, ela
teria sido enviada em 8/4/82 para um
campo de trabalhos forçados na
Colúmbia Britânica.
Buckman disse para Herb Maime:
— Chame McNulty para mim no
telefone. Acho melhor falar com ele
sobre isso.
Passado um momento Maime lhe
passou o aparelho. A pequena tela
cinzenta mostrava o rosto de McNulty,
que parecia amarfanhado. Assim como
sua sala de estar. Ambos pequenos e
desarranjados.
— Sim, Sr. Buckman — disse
McNulty, concentrando sua atenção nele
e ficando em rígida posição de sentido,
mesmo cansado como estava. Apesar da
fadiga e do excesso de alguma coisa,
McNulty sabia exatamente como
comportar-se com seus superiores.
— Me dê um resumo da história
desse Jason Taverner disse Buckman.
— Não estou conseguindo coordenar
direito suas anotações.
— O suspeito alugou um quarto de
hotel na rua Eye, 453. Conheceu o
contato policial 1659BD, conhecido
como Eddy, e pediu para que o levasse a
um falsificador de documentos. Eddy
colocou microtrans no suspeito e o
levou ao contato 1980CC, Kathy.
— Katharine Nelson — disse
Buckman.
— Sim, senhor. Ela fez um serviço
extraordinário nos documentos; já os
mandei para testes preliminares de
laboratório e eles quase passaram. Ela
deve ter desejado que ele escapasse.
— Você contatou Katharine Nelson?
— Encontrei ambos no quarto dela.
Nenhum dos dois cooperou comigo.
Examinei os documentos do suspeito,
mas...
— Pareciam autênticos —
interrompeu Buckman.
— Sim, senhor.
— Você ainda acha que pode fazer
isso a olho nu.
— Sim, Sr. Buckman. Mas com esses
documentos ele passou por uma patrulha
de controle; eram quase perfeitos.
— Que sorte a dele.
McNulty continuou:
— Tomei seus documentos e lhe dei
um passe válido para sete dias, passível
de anulação.
— Levei-o então para a delegacia do
distrito 469, onde tenho meu escritório
auxiliar, e pedi sua ficha... que, como
vimos depois, era a ficha de Jason
Tavern. O suspeito contou uma longa
história sobre cirurgia plástica; como
parecia plausível, nós o soltamos. Não,
um momento: só lhe dei o passe quando
ele...
— Bem — interrompeu Buckman —,
qual é a dele? Quem é ele?
— Nós o estamos seguindo por meio
dos microtransmissores. Estamos
tentando encontrar material a respeito
dele nos bancos de dados. Mas como o
senhor leu nas minhas anotações, creio
que o suspeito conseguiu retirar sua
ficha de todos os principais bancos de
dados. Simplesmente não há ficha, e tem
que haver, pois temos fichas de todas as
pessoas, como qualquer criança sabe; é
o que dita a lei, e temos que fazer isso.
— Mas nós não fazemos — disse
Buckman.
— Eu sei, Sr. Buckman. Mas quando
uma ficha não está no arquivo, tem que
haver uma razão. Não é por acaso que
não está; alguém a surrupiou de lá.
— Surrupiou — repetiu Buckman,
divertido.
— Roubou, subtraiu. — McNulty
parecia desconcertado.
— Acabo de tomar conhecimento
desse assunto, Sr. Buckman; vou saber
mais dentro de vinte e quatro horas. Mas
que diabo, podemos apanhá-lo quando
quisermos. Não creio que seja tão
importante. Ele é apenas algum sujeito
cheio da grana e com influência
suficiente para tirar sua ficha do...
— Está bem — disse Buckman. —
Vá dormir. — Desligou o telefone, ficou
ali parado um momento, e seguiu então
na direção de seu escritório particular.
Refletindo.
No seu escritório principal, deitada
no sofá estava sua irmã Alys. Vestida,
como viu Felix Buckman com agudo
desprazer, com uma calça preta colante,
um casaco de couro masculino, brincos
de aro e uma corrente na cintura com
uma fivela de ferro trabalhado. Era
óbvio que havia tomado drogas. E como
tantas vezes já fizera, tinha-se apossado
de uma chave dele.
— Raios a partam — disse para ela,
fechando a porta antes que Herb Maime
a visse.
Alys mexeu-se em seu sono. Seu
rosto felino enrugou— se numa careta
irritada, e com a mão direita tateou
procurando o interruptor para apagar a
luz fluorescente que Buckman acendera.
Tomando-a pelos ombros e sentindo
sem prazer seus músculos rijos,
Buckman a forçou a sentar-se.
— O que foi desta vez? — perguntou,
severo. — Termalina?
— Não. — A voz dela, é claro, saía
pastosa. — Hidrossulfato de
hexofenoprina. Sem mistura.
Subcutâneo.
Abriu seus grandes olhos claros e o
fitou com rebeldia.
— Por que raios você sempre vem
para cá? — perguntou Buckman. Sempre
que ela tomava muita droga ou se
envolvia em fetichismo acabava
despencando no seu escritório principal.
Ele não compreendia porquê, e ela
nunca dissera. O máximo que conseguira
extrair dela foi qualquer coisa
murmurada entre dentes sobre “o olho
do tufão”, dando a entender que se sentia
a salvo da prisão no escritório central
da Academia de Polícia. Por causa, é
óbvio, da posição dele.
— Fetichista — ele a xingou, furioso.
— Nós processamos uma centena de
vocês por dia, vocês com seu couro,
suas correntes e seus consoladores. Meu
Deus! — Ficou ali respirando com
força, sentindo-se tremer.
Bocejando, Alys deslizou do sofá,
levantou-se e esticou seus longos braços
esguios.
Ainda bem que é noite — disse
afetada, com os olhos bem apertados.
— Agora posso ir para casa me
deitar.
— Como você está pensando em sair
daqui? — ele perguntou. Mas já sabia.
Todas as vezes era o mesmo ritual. O
tubo de transporte para prisioneiros
políticos “reclusos” entrava em ação;
conectava seu escritório na ala norte
com o teto do edifício, e deste ao campo
de pouso de mosquinhas. Alys ia e vinha
por esse caminho, trazendo
animadamente a chave dele na mão. —
— Algum dia — disse ele com ar
sombrio — um oficial vai estar usando o
tubo para um fim legítimo, e vai dar de
cara com você.
— E o que ele poderia fazer? — Ela
passou a mão no cabelo embranquecido
dele, cortado a escovinha. — Diga— me
por gentileza, meu senhor. Me esmurrar
até eu pedir perdão de joelhos?
Basta olhar para você com essa
expressão saciada no rosto...
— Eles sabem que sou sua irmã.
— Sabem — respondeu Buckman
com aspereza —, porque você está toda
hora vindo aqui, por esse ou aquele
motivo, ou então sem motivo nenhum.
Alys sentou-se na beirada de uma
mesa enlaçando os joelhos e o encarou
com seriedade.
— Isso o incomoda mesmo.
— Sim, me incomoda muito.
— Incomoda a você que eu venha
aqui e ponha seu emprego em risco.
— Você não pode pôr meu emprego
em risco — disse Buckman. — Só há
cinco homens acima de mim, sem contar
o Diretor nacional, e todos eles sabem
de você e não fazer nada. Portanto, pode
fazer o que quiser.
Dito isto saiu intempestivamente do
escritório norte e caminhou pelo
corredor sombrio até a grande suíte
onde fazia a maior parte de seu trabalho.
Tentou evitar olhar para ela.
— Mas bem que você teve o cuidado
de fechar a porta disse Alys, seguindo
despreocupada atrás dele.
— Assim aquele Herbert Blame ou
Mame ou Maine ou seja lá o que for não
pode me ver.
— Você — disse Buckman — é
repelente para um homem natural.
— O Maime é natural? Como você
sabe? Já trepou com ele?
— Se você não sair daqui — disse
ele em voz baixa, olhando-a a duas
mesas de distância — vou mandar te
fuzilar. Juro por Deus.
Ela ergueu com indiferença os
ombros musculosos. E sorriu.
— Nada te dá medo — disse ele,
acusando-a. — Desde sua operação no
cérebro. Você sistematicamente,
deliberadamente, mandou remover todos
os seus centros humanos. Agora você é
uma — lutou para encontrar a palavra;
Alys sempre o deixava assim
incapacitado, tirando-lhe até a
habilidade de usar as palavras.
— Você disse por fim quase
sufocando — é uma máquina com
reflexos que passa o tempo todo numa
auto enganação sem fim, como um rato
de laboratório. Você se liga no nódulo
de prazer do seu cérebro e puxa a
alavanca cinco mil vezes por hora todos
os dias da sua vida, quando não está
dormindo. É um mistério para mim por
que você se dá ao trabalho de dormir;
por que não se engana vinte e quatro
horas por dia?
Esperou, mas Alys não disse nada.
— Algum dia — disse ele — um de
nós dois vai morrer.
— Ah, é? — disse ela, erguendo uma
fina sobrancelha verde.
— Um de nós — disse Buckman —
vai sobreviver ao outro. E esse então
vai se alegrar.
O telefone na mesa maior tocou.
Mecanicamente Buckman atendeu. Na
tela apareceram as feições enrugadas e
tensas de McNulty.
— Lamento incomodá-lo, general
Buckman, mas acabo de receber um
telefonema de um dos meus homens. Não
há nenhum registro em Omaha de que
uma certidão de nascimento alguma vez
tenha sido emitida em nome de Jason
Taverner.
Com paciência, Buckman disse:
— Nesse caso trata-se de um nome
falso.
— Tiramos impressões digitais e
vocais, marcas dos pés, EEG.
Mandamos tudo para a Central Um, o
banco de dados geral em Detroit. Não há
equivalência. Essas impressões digitais,
vocais, EEG, marcas dos pés, não
existem em nenhum banco de dados da
Terra.
McNulty aprumou-se e sussurrou em
tom de desculpas:
— Jason Taverner não existe.
8
Jason Taverner não queria, no
momento, voltar para junto de Kathy.
Tampouco queria tentar Heather Hart
mais uma vez. Apalpou o bolso do
paletó; ainda tinha seu dinheiro, e com o
passe da polícia estava livre para viajar
à vontade. O passe policial era um
passaporte para o planeta inteiro; até
que emitissem um aviso a seu respeito,
podia viajar para qualquer lugar,
incluindo áreas não desenvolvidas tais
como certas ilhas cheias de florestas no
Pacífico Sul. Num lugar assim eles
poderiam levar meses para contrata-lo,
com tudo que o seu dinheiro poderia
comprar num local desse tipo.
“Tenho três coisas a meu favor”,
percebeu ele. “Tenho dinheiro, boa
aparência e personalidade. Quatro
coisas: tenho também 42 anos de
experiência como tipo seis.”
“Um apartamento.”
“Mas”, pensou, “se eu alugar um
apartamento o síndico é obrigado por lei
a tirar minhas impressões digitais e
mandá-las para a Central de Dados da
Polícia... E quando a polícia descobrir
que meus documentos são falsos, vão
ver que têm uma linha direta comigo.
Portanto, não dá.”
“O que eu preciso é encontrar
alguém que já tenha um apartamento
em seu nome, com suas próprias
impressões digitais." “Isso significa
outra garota.” “Onde posso encontrar
uma assim? ”, perguntou-se, mas já tinha
a resposta na ponta da língua: num clube
noturno de primeira. Do tipo que muitas
mulheres frequentam, com um trio
tocando jazz, de preferência um trio de
negros. Bem vestidos.
“Mas será que eu estou bem vestido?
” Deu uma boa examinada em seu terno
de seda à luz de um imenso anúncio da
AAMCO. Não era seu melhor terno, mas
quase. Porém amassado. Bem, na luz de
um clube noturno isso não apareceria.
Chamou um táxi e logo estava dentro
do mosquinha voando para a parte mais
aceitável da cidade, onde estava
acostumado a circular — isto é,
acostumado durante os últimos anos de
sua vida, de sua carreira. Depois que
atingira o topo.
“Um clube onde já me apresentei”,
pensou. “Um clube que eu conheça bem.
Um lugar onde conheço o mestre, a
garota da chapelaria, a florista... A
menos que todos eles, tal como eu,
estejam um pouco mudados. ”
Mas até agora parecia-lhe que nada
exceto ele havia mudado. As suas
circunstâncias, não as deles.
O Salão Raposa Azul no Hotel
Hayette em Reno. Apresentara-se lá
diversas vezes; conhecia o local e os
funcionários de olhos fechados.
Disse para o táxi automático:
— Reno.
O táxi fez uma linda ampla curva à
direita; Jason sentiu-se girar com ele e
saboreou essa sensação. O táxi pegou
mais velocidade; haviam entrado num
corredor de ar quase não usado, onde o
limite de velocidade chegava talvez a
300 quilômetros por hora.
— Gostaria de usar o telefone —
disse Jason.
A parede esquerda do táxi abriu-se
revelando um fone com um fio que se
enrolava em voltas barrocas.
Sabia de cor o número do Salão
Raposa Azul; discou, esperou e logo
uma voz masculina atendeu dizendo:
“Salão Raposa Azul, apresentando
Freddy Hidrocéfalo em dois shows
diários, às oito e à meia-noite; apenas
trinta dólares e garotas para você se
divertir enquanto aprecia o show.
— Posso ajudá-lo?”
— É o Jumpy Mike velho de guerra?
— perguntou Jason. — O velho Jumpy
Mike em pessoa?
— Sim, ele mesmo. — A
formalidade da voz diminuiu
— Com quem estou falando, posso
saber? Deu uma risadinha afetuosa.
Respirando fundo, Jason disse:
— Aqui fala Jason Taverner.
— Sinto muito, Sr. Taverner. —
Jumpy Mike parecia intrigado. — Nesse
momento parece que não consigo...
— Já faz muito tempo — interrompeu
Jason. — Pode me reservar uma mesa na
frente?
— Todas as mesas já estão
reservadas, Sr. Taverner — respondeu
Jumpy Mike com sua voz de gordo.
— Sinto muito.
— Não há mais nenhuma mesa? —
perguntou Jason.
— Por nenhum preço?
— Lamento, Sr. Taverner; nenhuma.
— A voz foi sumindo à distância. —
Tente de novo daqui a duas semanas.
O velho Jumpy Mike desligou.
Silêncio.
“Cacete”, disse Jason com seus
botões. E falou alto:
— Meu Deus! Que vá para o inferno.
— Seus dentes rangiam, mandando
ondas de dor pelo seu nervo trigêmeo.
— Novas instruções, chefe? —
perguntou o táxi, indiferente.
— Vamos para Las Vegas — disse
Jason irritado.
“Vou tentar o Salão Nellie Melba do
Brasão do Duque”, decidiu. Pouco
tempo antes tivera boa sorte nesse lugar,
numa ocasião em que Heather fazia uma
temporada na Suécia. Um bom número
de garotas razoavelmente grã-finas
rodavam por ali, jogando, bebendo,
ouvindo os cantores, curtindo. Valia a
pena tentar, já que o Raposa Azul e
outros do gênero estavam fechados para
ele. Afinal, o que tinha a perder?
Meia hora depois o táxi o deixou no
teto do Brasão do Duque. Estremecendo
de frio no ar noturno, Jason desceu a
esteira rolante acarpetada e logo depois
entrava na luz-cor— calor-movimento
do Nellie Melba.
Eram sete e meia. O primeiro show
começaria dentro em breve. Olhou o
cartaz: Freddy Hidrocéfalo apresentava
— se também ali, mas num show mais
curto, a preços mais baixos.
“Quem sabe ele se lembra de mim”,
pensou Jason. “Provavelmente não. ” E,
refletindo melhor, pensou: “Sem
qualquer chance”.
Se Healher Hart não se lembrava
dele, ninguém se lembraria.
Sentou-se no bar lotado, no único
banquinho ainda vazio e, quando o
garçom finalmente notou sua presença,
pediu uísque com mel. Uma rodela de
manteiga veio flutuando na bebida.
— São três dólares — disse o
garçom.
— Ponha na minha... — começou
Jason, mas desistiu. Deu uma nota de
cinco.
E foi então que a viu.
Estava sentada vários bancos depois
dele. Fora sua amante anos atrás; havia
um longuíssimo tempo que não a via.
Mas observou que ainda tinha um corpo
elegante, mesmo estando bem mais
velha. Ruth Rae, entre todos os mortais.
Uma boa coisa de Ruth Rae: tinha a
inteligência de não bronzear demais a
pele. Nada envelhece tanto a pele de
uma mulher como a cor morena de sol, e
parece que poucas mulheres se dão
conta disso. Para uma mulher da idade
de Ruth — calculou que ela devia ter
agora 38 ou 39 anos — a pele bronzeada
se transformaria num couro enrugado.
Além disso ela se vestia bem.
Mostrava sua bela silhueta. Se o tempo
não tivesse tido tantos encontros com
seu rosto... Mas de qualquer forma, Ruth
ainda tinha um belo cabelo negro,
puxado num coque na nuca. Usava cílios
de plástico ultraleve, e traços de um
vermelho brilhante que atravessavam a
face, como se tivesse sido arranhada
pelas garras de um tigre psicodélico.
Usando um sári colorido, descalça —
como de costume, ela havia chutado fora
seus sapatos de salto alto — e sem
óculos, não lhe pareceu feia. “Ruth
Rae”, refletiu. “Faz suas próprias
roupas. Usa óculos bifocais mas não
quando há alguém por perto... Exceto eu.
Será que ela ainda lê a seleção do mês
do Clube do Livro? Será que ainda se
excita lendo aqueles intermináveis
romances chatos sobre perversões
sexuais em cidadezinhas estranhas, mas
aparentemente normais lá do MeioOeste? ”
Esta era uma característica de Ruth
Rae: sua obsessão pelo sexo. Ele se
lembrava que num determinado ano ela
havia dormido com sessenta homens,
sem contar Jason: ele entrara e saíra
antes, quando a contagem ainda não era
tão alta.
E Ruth sempre gostara das músicas
que ele cantava. Gostava de cantores
sexy, baladas românticas e orquestras de
cordas adocicadas — enjoativas de tão
melosas. Havia certa vez montado em
seu apartamento em Nova Iorque um
enorme sistema de som quadrifônico e
vivia praticamente dentro dele, comendo
sanduíches dietéticos e tomando
refrigerantes artificiais espumantes
feitos de nada. Ouvindo quarenta e oito
horas seguidas de discos e mais discos
do Purple People Strings, que ele
abominava.
Uma vez que o gosto dela em geral o
horrorizava, ficava aborrecido por ser
ele próprio um dos seus favoritos. Era
uma anomalia que nunca conseguira
compreender.
O que mais lembrava sobre ela? Uma
colher de sopa de um óleo amarelo
todas as manhãs: vitamina E. Era
estranho que no caso dela aquilo não
parecia ser frescura: sua energia erótica
aumentava a cada colherada. Parecia
transpirar sensualidade por todos os
poros.
E lembrava-se também de que ela
detestava animais. Isso o fez pensar em
Kathy e seu gato Domênico. Ruth e
Kathy nunca se dariam bem, pensou.
Mas não imporia; nunca irão se
encontrar.
Descendo de seu banquinho foi
andando com seu drinque ao longo do
balcão e parou em frente a Ruth Rae.
Não esperava que ela o reconhecesse,
mas em outros tempos ela o achava
irresistível... Por que isso não
aconteceria também agora? Ninguém
julgava uma oportunidade sexual melhor
do que Ruth.
— Oi — cumprimentou.
Como se estivesse atrás de um
nevoeiro — pois não estava de óculos
— Ruth Rae ergueu a cabeça e o
examinou.
— Oi — disse com sua voz rouca de
conhaque.
— Quem é você?
— Nós nos encontramos alguns anos
atrás em Nova Iorque — disse Jason. Eu
fazia uma ponta num episódio do
Bailarino Fantasma... Se bem me
recordo, você fazia os figurinos.
— Aquele episódio — disse Ruth
Rae em sua voz gutural — em que o
Bailarino Fantasma era atacado por
piratas bichas de outra era. —
Soltou uma gargalhada e depois
sorriu para ele. — Qual é o seu nome?
— perguntou, balançando os seios
expostos sustentados por uma armação
de arame.
— Jason Taverner.
— Você se lembra do meu nome?
— Claro — ele disse. — Ruth Rae.
— Agora é Ruth Gomen — disse ela.
— Sente-se. — Olhou ao redor e não
viu nenhum lugar vazio. — Naquela
mesa ali. — Desceu do banquinho com o
máximo cuidado e foi gingando em
direção a uma mesa vazia; ele lhe pegou
o braço e a foi levando. Após alguns
momentos de difícil navegação,
conseguiu sentá-la e sentou-se bem junto
a ela.
Você está exatamente tão linda
quanto... — começou ele, mas ela o
interrompeu bruscamente.
— Estou velha. Estou com 39.
— Isso não é velhice — disse Jason.
— Estou com 42.
— Para um homem não tem
importância. Para uma mulher tem. —
Com olhos turvos ficou olhando para o
martini que tinha na mão. — Sabe o que
o Bob faz? Bob Gomen? Cria cachorros.
Cachorros grandes, metidos,
espalhafatosos, de pelo longo. O pelo
deles entra até na geladeira. —
Bebericou seu martini, pensativa. De
repente seu rosto brilhou com animação;
virou-se para ele e disse:
— Você está ótimo. Sabe o que
acho? Você deveria trabalhar na
televisão, ou no cinema.
Jason disse com cautela:
— Já trabalhei na tevê. Um
pouquinho.
— Ah, como no Show do Bailarino
Fantasma. Bem, vamos encarar os fatos:
nem eu nem você conseguimos nada.
— Vou beber em homenagem a isso
— disse ele, divertindo-se com ironia;
tomou um gole de seu uísque com mel. A
manteiga já derretera.
— Creio que me lembro de você—
disse Ruth Rae. — Vi nr não tinha
planos de construir uma casa lá no
Pacífico, mil milhas da Austrália? Não
era você?
— Era eu — disse ele, mentindo.
— E tinha um aerocarro Rolls Royce.
— Sim — disse ele. Esse pedaço era
verdade.
Ruth Rae disse sorrindo:
— Sabe o que estou fazendo aqui?
Não tem ideia?
— Estou tentando encontrar o Freddy
Hidrocéfalo. Estou apaixonada por ele.
— Deu aquela risada gutural que ele
lembrava dos velhos tempos.
— Fico mandando bilhetes a dizendo
“Eu te amo”, e ele responde com
bilhetes escritos a máquina dizendo:
“Não quero me envolver; tenho
problemas pessoais”. — Riu outra vez e
terminou seu drinque.
— Mais um? — perguntou Jason,
levantando-se.
— Não — Ruth abanou a cabeça. —
Não bebo mais.
— Houve uma época... — fez uma
pausa, a expressão perturbada. — Será
que algo assim já aconteceu com você?
Pelo jeito, não parece.
— Se já me aconteceu o quê?
Ruth Rae respondeu, brincando com
seu copo vazio:
— Eu bebia o tempo todo. Desde as
nove da manhã. E sabe o que isso me
fez? Me fez parecer mais velha.
Aparentava cinquenta anos. Merda de
bebida! Tudo aquilo que você tem medo
que te aconteça, a bebida fará acontecer.
Na minha opinião a bebida é a maior
inimiga da vida. Você concorda?
— Não tenho certeza — disse Jason.
— Acho que a vida tem inimigos piores
que a bebida.
— Deve ter. Como os campos de
trabalhos foiçados. Sabe que eles
tentaram me mandar para um campo no
ano passado? Foi uma fase terrível para
mim; estava sem dinheiro — eu ainda
não tinha encontrado o Bob Gomen — e
trabalhava para uma companhia de
poupança e empréstimos. Um dia chegou
um depósito em dinheiro... Três ou
quatro notas de cinquenta dólares. —
Ruth parou um pouco para refletir.
— Bem, o fato é que peguei as notas
e coloquei o envelope e o canhoto do
depósito na máquina de triturar papéis.
Mas eles me pegaram. Foi uma cilada.
Planejada.
— Puxa!— ele exclamou.
— Mas sabe... Eu estava tendo um
caso com meu chefe. Os tiras queriam
me levar para um campo de trabalhos
forçados na Geórgia, onde eu ia acabar
sendo estuprada e morta por um bando
de caipiras, mas ele me protegeu. Até
hoje não sei como ele conseguiu isso,
mas eles me soltaram. Devo muito a
esse homem, mas agora não o vejo mais.
A gente nunca encontra as pessoas que
realmente gostam da gente e nos ajudam;
estamos sempre envolvidos com
estranhos.
— Você me considera um estranho?
— perguntou Jason. Pensou consigo
“Lembro de mais uma coisa sobre você,
Ruth Rae”. Ela sempre mantinha um
apartamento de um luxo impressionante.
Não importava com quem estivesse
casada no momento: ela sempre vivia
bem.
Ruth Rae olhou bem para ele, com ar
interrogativo:
— Não. Considero você um amigo.
— Obrigado. — Estendendo a mão
pegou a mão seca de Ruth por um
momento, soltando-a no momento exato.
9
O apartamento de Ruth Rae deixou
Jason assombrado com seu luxo. Devia
custar a ela, pensou, no mínimo 400
dólares por dia. Concluiu que Bob
Gomen estava em boa situação
financeira. Ou, ao menos, estivera.
— Você não precisava comprar
aquela garrafa de Vat 69 — disse Ruth
tomando o casaco dele e o guardando
junto com o dela num armário que se
abria automaticamente.
— Tenho aqui Cutty Sark, Hiram
Walker e...
Ela aprendera muito desde a última
vez dormira com ele; isso era verdade.
Esvaziado, estava deitado nu entre os
cobertores da cama de água esfregando
uma mancha que havia acabado de
despontar no nariz. Ruth Rae, ou melhor,
a Sra. Ruth Gomen estava sentada no
chão acarpetado, fumando um Pall Mall.
Nenhum dos dois falava; o quarto
estava silencioso. “Silencioso”, pensou
ele, “e esgotado como eu. Não há um
princípio da termodinâmica que diz que
o calor não pode ser destruído, mas
apenas transferido? Mas há também a
entropia.”
“Estou sentindo agora”, concluiu, “o
peso da entropia sobre mim. Eu me
descarreguei dentro de um vácuo, e
nunca vou recuperar aquilo que dei. É
uma coisa que vai e não volta. Sim,
estou certo de que esta é uma das leis
fundamentais da termodinâmica.” —
Você tem aí uma máquina
enciclopédica? — perguntou.
— Puxa, não tenho — ela mostrou
preocupação em seu rosto enrugado
como uma ameixa seca. “Ameixa seca
não”, ele retirou a imagem; parecia
injusta.
“Seu rosto vivido”, resolveu. “Era
mais isso.”
— Em que você está pensando? —
ele perguntou.
— Não, diga você no que está
pensando — disse Ruth.
— O que se passa nesse seu grande
cérebro supersecreto, tipo consciênciaalfa?
— Você se lembra de uma garota
chamada Mônica Buff? — perguntou
Jason.
Se me lembro! Mônica Buff foi minha
cunhada durante seis anos. Durante todo
esse tempo ela não lavou a cabeça nem
uma única vez. Tinha aquele cabelo
castanho escuro imundo e emaranhado
como pelo de cachorro, que caía em
cima da cara pastosa e do pescoço todo
sujo.
— Não sabia que você não gostava
dela.
— Jason, ela costumava roubar. Se a
gente deixasse a bolsa por perto, ela
tirava tudo; não só as notas, as moedas
também. Tinha um cérebro de galinha e
uma voz de gralha quando falava, o que
graças a Deus não era muito frequente.
Sabe que essa guria costumava ficar
seis, sete dias uma vez ficou oito dias —
sem dizer nem uma palavra? Encolhida
num canto como uma aranha alquebrada,
batendo naquele violão de cinco dólares
que ela tinha. Nunca aprendeu nem os
acordes elementares. Tá certo, até que
ela era bonitinha lá do seu jeito
desgrenhado. Reconheço isso. Para
quem gosta de casca grossa.
— Como ela se sustentava? —
perguntou Jason. Ele tivera pouco
contato com Mônica Buff, que conhecera
através de Ruth. Mas durante aquele
breve tempo tivera um caso explosivo
com ela.
— Roubando das lojas — respondeu
Ruth. — Ela tinha uma cesta grande de
vime que comprou na Baixa Califórnia...
Costumava enfiar um monte de coisas
nessa cesta e depois saía da loja na
maior cara de pau.
— Como ela não era pega?
— Ela foi pega. Deram-lhe uma
multa e o irmão dela apareceu com a
grana, de modo que logo mais ela estava
de novo pela rua, andando descalça —
verdade! Pela avenida Shrewsbury em
Boston, roubando pêssegos das
quitandas. Costumava passar dez horas
por dia “fazendo com pras”, como ela
dizia. — Olhando bem para ele, Ruth
continuou:
— Sabe o que ela fez e nunca foi
pega? — Ruth abaixou a voz. —
Costumava dar comida para estudantes
foragidos.
— E eles nunca a apanharam? — Dar
abrigo ou comida para um estudante
foragido dava dois anos num CTF. Isso
da primeira vez. Na reincidência a pena
era de cinco anos.
— Não, eles nunca a pegaram. Se ela
desconfiava que os tiras vinham dar uma
batida na área, logo telefonava para a
central de polícia e dizia que tinha um
homem tentando entrar na casa. Aí ela
punha o estudante para fora e se
trancava por dentro; quando os tiras
chegavam ele estava lá esmurrando a
porta, exatamente como ela havia
descrito. Então eles levavam o cara
embora e a deixavam em paz. Ruth deu
uma risadinha.
— Uma vez eu a ouvi dar um desses
telefonemas para a polícia. Pelo jeito
que ela falava, parecia que o cara...
— Mônica foi minha garota durante
três semanas disse Jason. — Há uns
cinco anos, mais ou menos.
— Você alguma vez a viu lavar a
cabeça durante esse tempo?
— Não — ele reconheceu.
— E ela não usava calcinha — disse
Ruth. Mas, por que um homem bonito
como você haveria de ter um caso com
uma vira-lata suja e pirada como
Mônica Buff? Você não poderia levá-la
a lugar nenhum; ela cheirava mal. Nunca
tomava banho.
— Hebefrenia — disse Jason.
— Sim — concordou Ruth —, foi
esse o diagnóstico. Não sei se você sabe
disso, mas no fim ela simplesmente foise embora, durante uma de suas
expedições “As compras”, e nunca mais
voltou; nós não a vimos mais. Nestas
alturas deve estar morta. Ainda
agarrando a cesta de vime que comprou
na Baixa Califórnia. Esse foi o grande
momento da vida dela, aquela viagem ao
México. Naquela ocasião ela tomou um
banho, e eu arrumei o cabelo dela —
depois que o lavei umas dez vezes. Mas
o que você viu nela? Como você
conseguia suportá-la?
— Gostava do seu senso de humor —
disse Jason.
“É injusto”, pensou ele, “comparar
Ruth com uma garota de 19 anos. Até
mesmo com Mônica Buff. Mas...” a
comparação continuava na sua mente.
Fazendo com que lhe fosse impossível
sentir atração por Ruth Rae. Apesar de
ela ser boa — ou pelo menos, experiente
— na cama.
“Eu a estou usando”, pensou. “Assim
como Kathy me usou. Assim como
NcNulty usou Kathy.”
“McNulty. Será que não estou com
um microtransmissor em algum lugar?”
Jason agarrou depressa suas roupas e
entrou no banheiro. Ali, sentado na
borda da banheira, começou a
inspecionar cada peça.
Levou meia hora. Mas finalmente
conseguiu localizar o ponto. Mesmo
pequenino. Jogou-o na privada e deu a
descarga; voltou então para o quarto,
abalado.
“Quer dizer que no fim das contas
eles sabem onde estou”, percebeu. “Não
posso ficar aqui.”
“E coloquei em perigo a vida de Ruth
Rae a troco de nada.”
— Espere — disse ele.
— Sim? — perguntou Ruth, de
braços cruzados, apoiando-se com ar
cansado na parede do banheiro.
Os microtransmissores — disse
Jason devagar — dão apenas uma
localização aproximada. A menos que
haja alguma coisa que capte seus sinais
com exatidão. Até aí...
Não tinha certeza. Afinal, McNulty
estava esperando no apartamento de
Kathy. Mas será que McNulty fora lá em
resposta ao microtrans, ou porque sabia
que Kathy morava lá? Zonzo com tanta
ansiedade, sexo e uísque, não conseguia
lembrar-se; sentou na beira da banheira
esfregando a testa, esforçando-se para
pensar, para lembrar-se exatamente do
que fora dito quando entrou com Kathy
no quarto dela e encontrou McNulty
esperando por eles.
“Foi o Eddy”, pensou. “Eles
disseram que foi Eddy quem colocou os
micropontos em mim. Quer dizer que foi
por aí que me localizaram. Mas...”
Mas talvez o ponto lhes tivesse
informado apenas a direção geral. E a
partir daí eles tivessem deduzido,
corretamente, que estaria no apartamento
de Kathy.
Disse então para Ruth Rae, com a voz
falhando:
— Puxa vida, espero não ter
mandado os porcos dos tiras atrás de
você; isso seria demais, demais mesmo.
— Balançou a cabeça, tentando clarear
as ideias. — Você não tem aí um café
bem quente?
— Vou ver no fogão. — Descalça,
usando apenas um bracelete de madeira,
Ruth encaminhou-se com leveza do
banheiro para a cozinha. Dali a um
momento voltou com uma grande caneca
plástica de café, onde se lia
PÉ NA TABUA.
Ele a aceitou e bebeu o café
fumegante.
— Não posso ficar mais — disse ele.
— E de qualquer forma, você já está
muito velha.
Ela o encarou de um modo ridículo,
como uma boneca pisoteada e retorcida.
E correu então para a cozinha.
“Por que eu falei isso?”, ele se
perguntou. “Foi a pressão; foram os
meus temores.” Foi atrás dela.
Na porta da cozinha Ruth apareceu
com uma travessa de pedra na mão, onde
se lia LEMBRANÇA DA FAZENDA
KNOTTS BERRY. Correu cegamente e
bateu com a travessa na cabeça dele; sua
boca se torcia como uma coisa recém-
nascida que acabava de tomar vida. No
último segundo ele conseguir erguer o
cotovelo esquerdo e assim aparar o
golpe; a travessa quebrou em três
pedaços, e o sangue escorreu pelo braço
de Jason. Ele ficou olhando para o
sangue, para os pedaços da travessa no
carpete e para ela.
— Sinto muito — disse ela num
sussurro. Mal conseguindo emitir as
palavras. As cobras recém-nascidas
contorciam-se o tempo todo, pedindo
desculpas.
— Desculpe — disse Jason.
— Vou colocar um band-aid — Ruth
dirigiu-se para o banheiro.
— Não — disse ele. — Estou indo
embora. O corte está limpo; não vai
infeccionar.
— Por que você me disse aquilo? —
perguntou Ruth ium voz rouca.
— Por causa do meu próprio medo
de envelhecer — disse Jason. — Porque
esse medo está acabando comigo,
acabando com o que resta de mim.
Praticamente não tenho mais energia.
Nem para um orgasmo.
— Você esteve ótimo.
— Mas foi o último — disse ele.
Entrou no banheiro e lavou o sangue do
braço, deixando a água escorrer no corte
até principiar a coagulação. Cinco
minutos, cinquenta; ele não saberia
dizer. Apenas ficou ali, com o cotovelo
debaixo da torneira. Ruth Rae tinha ido
sabe Deus para onde. “Provavelmente
me dedar para os tiras”, pensou sem
forças; estava exausto demais para se
incomodar.
“Também, que diabos”, pensou.
“Depois do que eu disse para ela, não é
para menos. ”
10
— Não — disse o general de Polícia
Felix Buckman, abanando a cabeça com
vigor.
— Jason Taverner existe, sim. De
algum jeito ele conseguiu retirar seus
dados de todos os bancos centrais. — O
general refletiu um momento.
— Tem certeza de que você consegue
apanhá-lo, se for necessário?
— Uma má notícia a respeito disso,
Sr. Buckman — disse McNulty. — Ele
encontrou o microtrans e deu fim nele.
Portanto não sabemos se ainda está em
Las Vegas. Se ele tiver um mínimo de
inteligência, o que é quase garantido,
deve ter seguido em frente.
— É melhor você voltar para cá —
disse Buckman. — Se ele é capaz de
roubar informações, material de
primeira classe como esse, dos nossos
bancos de dados, deve estar envolvido
em atividades de alto nível. Você o
localizou com que precisão?
— Ele está... isto é, foi localizado
num dos 85 apartamentos de uma ala de
um conjunto residencial de 600 unidades
de luxo, modernas, no bairro de
Fireflash, em Las Vegas; o conjunto se
chama Copperfield II.
— Peça para o pessoal em Las Vegas
dar uma batida nos 85 apartamentos até
encontrá-lo. E quando o encontrar,
mande-o diretamente para mim. Mas
mesmo assim quero que você esteja em
sua mesa de trabalho. Tome uns
estimulantes, esqueça a sua soneca, e
venha para cá.— Sim, Sr. Buckman —
disse McNulty fazendo uma careta de
dor.
— Você não acredita que vamos
encontrá-lo em Las Vegas — disse
Buckman.
— Não, senhor.
— Talvez sim. Como deu fim no
microponto, ele pode achar que agora
está em segurança.
— Peço licença para discordar —
disse McNulty. — Como encontrou o
ponto, ficou sabendo que o seguimos até
lá em Fireflash. Portanto deve ter dado o
fora. E depressa.
— Ele faria isso — disse Buckman
— se as pessoas agissem racionalmente.
Mas não é assim que elas agem. Ou será
que você ainda não notou isso,
McNulty? Em geral elas funcionam de
maneira caótica. — “E isso
provavelmente lhes presta um bom
serviço”, pensou. “Faz com que sejam
menos previsíveis. ”
— Já notei que...
— Esteja aqui no seu posto dentro de
meia hora — disse Buckman, e desligou.
O jeito presunçoso e pedante de
McNulty sempre o irritava, assim como
sua hiperatividade diurna e letargia
noturna.
Alys, que observava tudo, disse:
— Um homem que cancelou sua
própria existência. Isso já aconteceu
alguma vez?
— Não. Nem desta vez. Em algum
lugar, em algum obscuro local, ele deve
ter-se esquecido de um documento Sem
importância. E continuaremos a procurar
até achá-lo. Mais cedo ou mais tarde nós
encontraremos uma impressão vocal ou
um EEG que coincidam com os dele, e
então saberemos quem ele é na
realidade.
— Talvez ele seja exatamente quem
diz que é. —
Allys estivera examinando as
anotações estapafúrdias de McNulty. —
“O suspeito pertence ao sindicato dos
músicos. Diz, que é cantor. Talvez uma
impressão vocal seria o seu...”
— Saia do meu escritório — disse
Buckman.
— Estou só fazendo uma
especulação. Quem sabe foi ele quem
gravou esse novo sucesso pornográfico,
“Mais Embaixo Rapaz”, que...
— Quer saber de uma coisa? —
disse Buckman.
— Vá para casa e procure na
biblioteca um envelope transparente na
gaveta do meio da minha escrivaninha.
Você vai encontrar, meio escondido, um
exemplar perfeito do selo negro de um
dólar da Trans-Mississipi. Consegui
esse selo para minha coleção, mas pode
ficar com ele; arranjo outro. Mas vá
embora daqui. Vá para casa, pegue o
raio do selo e o guarde no seu álbum, no
seu cofre, para sempre. Nem olhe nunca
mais para ele; contente-se em possuí-lo.
E me deixe trabalhar em paz.
Combinado?
— Orra! — disse Alys, com os olhos
brilhando. — Onde você o conseguiu?
— Com um prisioneiro político a
caminho de um campo de trabalhos
forçados. Ele deu o selo em troca da
liberdade. Achei que era um trato justo.
Você não acha?
— O selo mais maravilhosamente
bem impresso jamais emitido — disse
Alys. — Em qualquer época. Por
qualquer país.
— Você o quer?
— Sim. — Foi saindo do escritório
para o corredor. — Te vejo amanhã.
Mas não precisa me dar uma coisa
dessas para me fazer ir embora; quero ir
para casa, tomar um banho, trocar de
roupa e dormir umas horas. Por outro
lado, se você quiser...
— Eu quero — disse Buckman, e
para si próprio: “Por que tenho tanto
medo de você, caramba, um medo tão
básico, ontológico, de tudo que se refere
a você, até da sua boa vontade em ir
embora? ”
“Por quê?", ele se perguntou, vendoa encaminhar-se para o tubo secreto de
subida para prisioneiros no final da ala.
“Eu a conheci em criança e já então eu a
temia. Porque, creio eu, de alguma
maneira fundamental que não consigo
apreender, ela não segue as regras do
jogo. Todos nós temos regras; elas
diferem, mas todos jogamos de acordo
com elas. Por exemplo, não matamos um
homem que acabou de nos prestar um
favor. Mesmo aqui, neste Estado
policial, até mesmo nós obedecemos a
esta regra. E não destruímos
intencionalmente objetos que nos são
preciosos. Mas Alys é capaz de ir para
casa, achar o selo negro e queimá-lo
com o cigarro. Eu sei disso e mesmo
assim lhe dei o selo; continuo rezando
para que lá no fundo, ou no fim, ou seja
lá quando for, ela volte a jogar bolinha
de gude conosco como todo mundo faz”
“Mas ela nunca fará isso. ”
Continuou refletindo:
“Há o motivo pelo qual oferecei o
selo é que simplesmente esperava tentála, enganá-la, fazê-la voltar para as
regras que nós compreendemos. As
regras que todos nós aplicamos. Eu a
estou subornando, e é uma perda de
tempo, ou algo pior ainda, e sei disso e
ela sabe também. Sim. Ela
provavelmente vai botar fogo no selo
negro de um dólar, o mais perfeito selo
jamais impresso, um item filatélico que
nunca vi à venda em toda a minha vida.
Nem em leilões. E quando eu voltar para
casa hoje à noite ela vai me mostrar as
cinzas. Talvez ela deixe um cantinho do
selo sem queimar, como prova do que
fez. ”
“E eu vou acreditar. E vou ficar com
mais medo ainda. ”
Pensativo, o general Buckman abriu a
terceira gaveta de sua grande
escrivaninha, tirou um rolo de fita
gravada e colocou-a no pequeno
gravador que sempre mantinha na mesma
gaveta. Ãrias de Dowland para quatro
vozes... Ficou ouvindo uma delas de que
gostava muito, entre todas as canções de
Dowland para alaúde.
... Pois agora, esquecido e
abandonado
Sento-me, suspiro, choro, desmaio,
morro
Em dor mortal e infinita agonia.
O primeiro homem, refletiu Buckman,
que escreveu música abstrata. Tirou a
fita, colocou outra de alaúde, e ficou
ouvindo a “Pavana Lachrimae
Antiquae”. “Disto aqui”, ponderou,
“acabaram vindo os últimos quartetos de
Beethoven. E tudo o mais. Exceto
Wagner.”
Detestava Wagner. Wagner e seus
similares, tais como Berlioz, haviam
atrasado a música em três séculos. Até
que Kaillieinz Stockhausen com suas
“Canções da Juventude” trouxera
novamente a música para o presente.
Em pé ao lado de sua mesa, olhou
por um momento para a foto recente em
4-D de Jason Taverner — a foto tirada
por Katharine Nelson.
“Que diabo de homem bonito”,
pensou. “De uma boa pinta quase
profissional. Bem, ele é cantor; está
certo. É um artista. ”
Tocou a foto em 4-D e ouviu-a dizer:
“O rato roeu a roupa do rei de Roma”.
Buckman sorriu. E ouvindo mais uma
vez a “Pavana Lachrimae Antigae”,
pensou:
Jorrem, minhas lágrimas...
“Será que tenho mesmo carma de
tira? ”, perguntou— se. “Com esse amor
pela música e pelas palavras? Sim, sou
um tira magnífico porque eu não penso
como tira. Não penso, por exemplo,
como McNulty, que sempre será —
como é mesmo que eles chamavam? —
um tira porcão pelo resto da vida.
Não penso como as pessoas que
tentamos prender, mas sim como as
pessoas importantes que tentamos
prender. Como este homem, este Jason
Taverner. Tenho um palpite, uma
intuição irracional mas
maravilhosamente funcional de que ele
ainda está em Las Vegas. Vamos
apanhá-lo lá, e não mais longe onde
McNulty acha que vamos, com toda sua
lógica e raciocínio.”
“Sou como Byron, lutando pela
liberdade, dando a vida para lutar pela
Grécia. Só que não estou lutando pela
liberdade; estou lutando por uma
sociedade coerente. ”
“Será isso realmente verdade? Será
por isso que faço aquilo que faço? Para
criar ordem, estrutura, harmonia?
Regras. Sim; as regras são muito
importantes para mim, e é por isso que
sinto em Alys uma ameaça; é por isso
que consigo encarar tantas outras coisas,
mas não ela. ”
“Graças a Deus que eles todos não
são como ela”, pensou Buckman.
“Graças a Deus que na verdade ela é um
tipo único, sui generis."
Apertou um botão no interfone em sua
mesa e disse:
— Herb, quer vir aqui, por favor?
Herbert Maime entrou no escritório,
trazendo nas mãos uma fita de
computador; parecia preocupado.
— Quer fazer uma aposta, Herb? —
disse Buckman.
— Quer apostar como Jason
Taverner ainda está em Las Vegas?
— Por que você está se preocupando
com esse titica de galinha? — disse
Herb. Isso é do nível do McNulty, não
seu.
Sentando-se, Buckman começou a
brincar preguiçosamente como os coros
que apareciam na tela do telefone;
chamou as bandeiras de várias nações
extintas.
— Veja o que este homem fez. De
algum jeito conseguiu tirar todos os
dados a seu respeito de todos os bancos
de dados do planeta, mais os lunares,
mais os das colônias em Marte...
McNulty chegou a tentar até isso. Pense
por um minuto no que é necessário para
fazer isso.
— Dinheiro? Quantias imensas.
Subornos. Astronômicos. Se Taverner
está jogando tanta grana é porque a
parada é alta. Influência? Mesma
conclusão: ele tem muito poder e nós
temos que considera-lo uma figura de
vulto. Mas o que mais me interessa são
aqueles que ele representa; acho que há
algum grupo, em algum lugar da Terra,
que está por trás dele, mas não tenho
ideia de quem nem porquê. Mas tudo
bem; digamos que eles eliminem todos
os dados a respeito dele; Jason Taverner
é o homem que não existe. Mas tendo
feito isso, o que conseguiram?
Herb ponderou.
— Não consigo compreender —
disse Buckman. — Não faz sentido. Mas
se eles se interessam em fazer isso, é
porque deve significar alguma coisa. Do
contrário eles não gastariam tanto — fez
um largo gesto — do que quer que seja
que gastaram. Dinheiro, tempo,
influência, sei lá. Talvez as três coisas.
Mais grandes esforços.
— Estou compreendendo — disse
Herb.
Às vezes — continuou Buckman — a
gente chega no peixe grande fisgando o
peixe pequeno. É por isso que nunca se
sabe se o próximo peixe que vamos
pescar será o elo com algo gigantesco
ou apenas — deu de ombros — apenas
mais uma arraia miúda para ser jogada
na burocracia da polícia. Talvez seja
isso que Jason Taverner é. Posso estar
inteiramente errado. Mas estou
interessado.
— E isto — disse Herb — é péssimo
para Taverner.
— Sim — assentiu Buckman.
— Agora considere, —
Parou por um momento para soltar
um peido silencioso e continuou.
Taverner conseguiu chegar até uma
falsificadora de documentos, uma
falsária comum que trabalha nos fundos
de um restaurante abandonado. Ele não
tinha contatos; imagine quem o levou lá?
O recepcionista do hotel onde estava
hospedado. Portanto devia estar
desesperado para conseguir documentos.
Muito bem; onde estavam, então, seus
poderosos mandantes? Por que eles
mesmos não lhe deram ótimos
documentos forjados, já que
conseguiram fazer todo o resto? Santo
Cristo, eles o mandaram para a rua, para
a sarjeta, na selva da cidade, direitinho
para uma informante da polícia. Eles
puseram tudo em risco!
— Sim — concordou Herb. —
Alguma coisa saiu errada.
— Certo. Alguma coisa saiu errada.
De repente ele se viu ali, no meio da
cidade, sem nenhuma ID. Tudo que tinha
consigo foi forjado por Kathy Nelson.
Como isto foi acontecer? Como eles
fizeram para foder com tudo e mandá-lo
em desespero procurar IDs forjadas
para poder andar três quarteirões na
rua? Vê onde quero chegar?
— Mas foi assim que nós os
apanhamos.
— Como? — perguntou Buckman, e
abaixou o volume da música para alaúde
que tocava no gravador.
— Se eles não cometessem erros
assim — disse Herb nós não teríamos
chance. Eles ficariam sendo uma
entidade metafísica para nós, de quem
nunca suspeitaríamos e nunca veríamos
sequer de relance. É de erros assim que
nós vivemos. Não acho que é importante
saber por que eles cometeram um erro; o
que interessa é que cometeram. E temos
que ficar contentes com isso.
“Pois estou contente”, pensou
Buckman com seus botões. Inclinou-se
sobre a mesa e discou para o ramal de
McNulty. Ninguém atendeu. McNulty
ainda não estava de volta ao edifício.
Buckman consultou o relógio. Mais uns
quinze minutos.
Discou para a central de
informações.
O que aconteceu com a operação no
bairro de Fireflash em Las Vegas? —
perguntou a uma das telefonistas que,
sentadas em banquinhos altos em frente
a um mapa, moviam pequenas
reproduções de plástico usando longos
tacos. — Estou me referindo à busca do
indivíduo que alega chamar-se Jason
Taverner.
Ouviu um zunido e um clique do
computador enquanto a telefonista com
destreza apertava vários botões.
— Vou passar ao senhor o capitão do
destacamento em questão.
Na tela do telefone de Buckman
apareceu um tipo de uniforme, com uma
cara plácida de idiota.
— Pois não, general Buckman?
— Já pegou Taverner?
— Ainda não, senhor. Já revistamos
trinta unidades do conjunto em...
— Quando pegá-lo — disse Buckman
— me avise imediatamente. — Deu o
número de seu ramal direto ao porcão
típico e desligou, com um vago
sentimento de derrota.
— Leva tempo — disse Herb.
— Como cerveja da boa —
murmurou Buckman, olhando para o
vazio, sua cabeça trabalhando a mil.
Mas trabalhando sem resultado.
— Você e suas intuições junguianas
— disse Herb. — É isso que você é na
tipologia junguiana: uma personalidade
pensadora, intuitiva, tendo a intuição
como módulo funcional principal, e o
pensamento...
— Foda-se. — Buckman amassou a
folha com as toscas anotações de
McNulty e a jogou na máquina
trituradora de papéis.
— Você não leu Jung?
— Claro. Quando fiz meu mestrado
em Berkeley todo o departamento de
ciência política tinha que ler Jung.
Aprendi tudo que você aprendeu e mais
um pouco. — Percebeu o tom irritado de
sua voz e não gostou. — Eles devem
estar dando a busca feito uns lixeiros,
fazendo a maior zoeira e gritaria...
Taverner vai ouvi-los muito antes de
chegarem ao apartamento onde ele está.
Você acha que vai apanhar mais
alguém quando fisgar Taverner? Alguém
mais para cima na...
Ele não iria estar com ninguém
importante. Sabendo que suas IDs estão
na delegacia de polícia. Sabendo que
estamos assim tão próximos dele. Não
espero nada. Nada além do próprio
Taverner.
— Faço uma aposta com você —
disse Herb.
Diga lá.
— Aposto cinco moedas de ouro que
quando você o pegar, não vai conseguir
nada.
Sobressaltado, Buckman sentou-se
rigidamente na cadeira. Parecia uma de
suas próprias intuições: sem fatos, sem
informações de base, apenas palpite
puro.
— Quer fazer a aposta? — perguntou
Herb.
— Já lhe digo o que vou fazer —
disse Buckman. Tirou a carteira e contou
seu dinheiro.
— Aposto com você mil dólares em
dinheiro que quando pegarmos Taverner
vamos entrar numa das áreas mais
importantes em que já nos envolvemos.
— Não vou apostar tanto dinheiro —
disse Herb.
— Você acha que tenho razão?
O telefone tocou e Buckman atendeu.
Na tela formaram-se as feições do tira
porco de Las Vegas.
— Nosso termo-radex mostra uma
pessoa do sexo masculino com o peso, a
altura e a compleição de Taverner. Está
em um dos apartamentos restantes que
ainda não investigamos. Estamos nos
aproximando com muito cuidado,
evacuando todos os apartamentos
vizinhos.
— Não o matem.
— De jeito nenhum, Sr. Buckman.
— Mantenha-se em contato comigo
— disse Buckman. — Quero assumir
este caso de agora em diante.
— Sim, senhor.
Buckman disse então a Herb Maime:
— Agora ele está no papo. — Deu
um sorriso deliciado.
11
Quando Jason Taverner foi buscar
suas roupas, encontrou Ruth Rae na
semiescuridão do quarto, sentada na
cama desarranjada e ainda quente,
inteiramente vestida e fumando seu
costumeiro cigarro. A luz cinzenta da
noite filtrava-se pelas janelas. A ponta
do cigarro brilhava nervosa, com sua
alta temperatura.
— Esse negócio ainda vai te matar
— ele falou. — Há bons motivos para
haver um racionamento de um maço por
semana por pessoa.
— Foda-se — disse Ruth Rae, e
continuou fumando.
— Mas você consegue no mercado
negro — ele disse. Uma vez fora com
ela comprar um pacote inteiro. Mesmo
com seu salário, o preço o deixara
assombrado. Mas ela não pareceu se
incomodar. Era óbvio que já esperava
por aquilo; sabia quanto custava seu
vício.
— Eu consigo. — Apagou o cigarro
ainda quase inteiro num cinzeiro de
cerâmica com a forma de um pulmão.
— Você está desperdiçando.
— Você amava Mônica Buff? —
perguntou Ruth.
— Claro. j
— Não compreendo como.
— Há diferentes tipos de amor —
disse Jason.
— É como o coelho de Emily
Fusselman. — Olhou para ele e
continuou: — Uma mulher que conheci,
casada e com três filhos; tinha dois
gatinhos e arranjou um grande coelho
belga, cinzento, desses que andam
saltando naquelas enormes patas
traseiras. No primeiro mês o coelho
tinha medo de sair da gaiola. Era um
macho, ou pelo menos foi o que nós
achamos, pelo que dava para ver. Aí
depois de um mês ele saía da gaiola e
ficava pulando pela sala. Depois de dois
meses aprendeu a subir a escada e
arranhar a porta do quarto de Emily para
acordá-la de manhã. — Começou a
brincar com os gatos, e aí começaram os
problemas, porque ele não era tão
esperto como os gatos.
— O cérebro dos coelhos é menor —
disse Jason.
— Deve ser — disse Ruth. — Seja
como for, ele adorava os gatos e tentava
fazer tudo o que eles faziam. Até
aprendeu a usar a caixa de areia deles.
Arrancou tufos de pelo do peito e fez
com eles um ninho atrás do sofá; queria
que os gatinhos ficassem lá. Mas eles
nunca iam. O fim dele, ou quase, chegou
no dia em que ele tentou brincar de
esconde-esconde com um pastor alemão
que era de uma senhora que veio fazer
uma visita. Sabe, o coelho tinha
aprendido uma brincadeira com os
gatos, e com Emily e as crianças: ele se
escondia atrás do sofá e aí saía de lá
correndo, correndo em círculos muito
depressa, e todo inundo tentava pegá-lo,
mas em geral não conseguiam, e aí ele
voltava a se esconder em segurança
atrás do sofá, onde estava entendendo
que ninguém devia segui-lo. Mas o
cachorro não conhecia as regras do jogo
e quando o coelho se escondeu atrás do
sofá foi atrás dele e lhe deu uma
tremenda dentada no traseiro. Emily
conseguiu abrir as mandíbulas do
cachorro e salvar o coelho, mas ele
ficou muito machucado.
Depois se recuperou, mas ficou com
pavor de cachorros, e fugia quando via
algum, nem que fosse pela janela. E a
parte do seu corpo que o cachorro
mordeu ele escondia atrás da cortina
porque ficou sem pelo naquele lugar, e
tinha vergonha. Mas o que era tocante
nele era ver como forçava os limites da
sua — como se diz? — fisiologia? Suas
limitações de coelho, tentando tornar-se
uma forma de vida mais evoluída, como
os gaios. Queria estar com eles o tempo
todo e brincar com eles de igual para
igual. É só isso, na verdade. Os gatinhos
não queriam ficar no ninho que ele lhes
fez, e o cachorro não conhecia as regras
e o apanhou. Viveu vários anos. Mas
quem iria pensar que um coelho poderia
desenvolver uma personalidade tão
complexa?
E quando alguém estava sentado no
sofá e ele queria que a pessoa saísse
para ele se deitar, cutucava a gente, e se
a pessoa não se afastasse, mordia. Mas
veja as aspirações desse coelho, e veja
como fracassou. Uma vidinha inteira
tentando. Tentando inutilmente, o tempo
todo. Mas o coelho não sabia disso. Ou
talvez sabia, mas continuava tentando
mesmo assim. Mas acho que não
compreendia. Apenas queria tanto fazer
tudo aquilo. Era toda a vida dele,
porque amava os gatos.
— Pensei que você não gostasse de
animais — disse Jason.
— Não gosto mais. Depois de tantas
derrotas e fracassos. Como o coelho: no
fim, é claro, ele morreu. Emily
Fusselman chorou vários dias. Uma
semana. Vi como ela ficou com aquilo e
não queria me envolver.
— Mas você parou de gostar de
animais por completo, e assim você...
— A vida deles é tão curta. Tão
estupidamente curta. Certo, tem gente
que quando perde uma criatura querida
segue em frente e transfere seu amor
para outra. Mas dói: o fato é que dói.
— Por que então o amor é tão bom?
— Ele havia refletido sobre isso,
estando ou não de caso com alguém,
toda a sua longa vida adulta. Agora
refletia intensamente sobre tudo isso,
tudo que lhe acontecera recentemente,
até chegar ao coelho de Emily
Fusselman. Neste momento de dor.
— Você ama alguém e a pessoa vai
embora. Chega em casa um dia e começa
a fazer as malas, e você diz: “O que
aconteceu? ”, e a pessoa responde:
“Tive outra oferta melhor”, e lá se vai,
sai da sua vida para sempre, e depois
disso até o dia da sua morte você
carrega consigo esse enorme pedaço de
amor sem ter para quem dar. E se por
acaso você encontra alguém para quem
dar, acontece a mesma coisa outra vez.
Ou então você telefona para a pessoa um
dia e diz: "Aqui é o Jason”, e a pessoa
diz:
“Quem? ”, e aí você percebe que é o
fim. A pessoa nem sabe quem você é.
Quer dizer então, creio eu, que nunca
soube; você nunca chegou a ter aquela
pessoa.
Ruth disse:
— O amor não é apenas querer ter
outra pessoa do mesmo jeito que você
quer possuir um objeto que vê numa
loja. Isto é só desejo. Você quer ter
aquilo por perto, levá-lo para casa e
colocá-lo em algum lugar do
apartamento, como um lustre. O amor é
— fez uma pausa, refletindo — é como
um pai que salva seus filhos de uma casa
em chamas; consegue tirá-los de lá e ele
mesmo morre. Quando a gente ama para
de viver para a gente mesmo; vive-se
para a outra pessoa.
— E isso é bom? — Para ele não
parecia tão bom.
— É algo que supera o instinto. O
instinto nos leva a lutar pela
sobrevivência. Como os tiras dando
batidas nos campus. A gente sobrevive
às custas dos outros; cada um de nós
tenta subir com unhas e dentes. Posso
lhe dar um bom exemplo. Meu vigésimo
primeiro marido, Frank. Ficamos
casados seis meses. Nesse tempo ele
parou de me amar e tornou-se
horrivelmente infeliz. Mas eu ainda o
amava; queria ficar com ele, mas isso
estava fazendo mal a ele. Portanto
deixei-o ir embora. Percebe? Era
melhor para ele, e como eu o amava, era
isso que importava. Compreende?
— Mas por quê — perguntou Jason
— é bom ir contra o instinto da
sobrevivência?
— Você acha que não sei por quê.
— Não.
— É porque o instinto de
sobrevivência acaba perdendo. Em cada
criatura viva, seja uma toupeira um
morcego, um homem ou um sapo. Até os
sapos que fumam charuto e jogam
xadrez. A gente nunca consegue realizar
aquilo que o instinto de sobrevivência
exige, de modo que no fim das contas
toda sua luta termina em fracasso e a
gente sucumbe à morte, e esse é o fim.
Mas se você ama, pode apagar-se e
observar...
— Ainda não estou pronto para me
apagar — disse Jason.
... pode se apagar e observar,
sentindo-se muito feliz, com uma
satisfação contida, madura, do tipo alfa,
a forma mais alta de contentamento, a
continuidade da vida de alguém que
você ama.
— Mas essa pessoa também acaba
morrendo.
— Isso é verdade. — Ruth Rae
mordeu o lábio.
— É melhor não amar, assim isso
nunca vai te acontecer. Nem mesmo um
animal de estimação, um cachorro ou um
gato. Como você disse, a gente ama
alguém e a criatura morre. Se a morte de
um coelho já é ruim... — Jason teve
então um vislumbre de horror: os ossos
esmigalhados e o cabelo de uma garota
que sangrava, presa nas mandíbulas de
um inimigo indistinto, mais assustador
que qualquer cão.
— Mas pode-se sofrer — disse Ruth,
estudando o rosto dele com ansiedade.
— Jason! O sofrimento é a mais
poderosa emoção que um homem,
criança ou animal podem sentir. É um
sentimento bom.
— Bom de que jeito, porra?
— O sofrimento faz você sair de si
mesmo, sair fora do limite da sua
própria pele. E não se pode sentir o
sofrimento a menos que já se tenha
amado antes. O sofrimento é o resultado
final do amor, porque é o amor perdido.
Você compreende, não? Sei que
compreende. Mas acontece que você não
quer pensar nisso. É o ciclo completo do
amor: amar, perder, sofrer, separar-se, e
então amar de novo. Jason, sofrer é estar
ciente de que você vai ter que acabar
sozinho, e não há nada mais além disso
porque estar só é o destino final e
definitivo de cada criatura viva. É isso a
morte, a grande solidão. Lembro-me da
primeira vez que experimentei maconha
com um narguilé em vez de fumar um
baseado.
A fumaça veio fria, e não percebi o
quanto já tinha tragado. De súbito,
morri. Foi só um instante, mas durou
vários segundos. O mundo, todas as
sensações, inclusive a percepção de meu
próprio corpo, e até mesmo a
consciência de ter um corpo, tudo sumiu.
E não me deixou num isolamento, no
sentido comum da palavra, porque
quando você está sozinho no sentido
comum, ainda recebe informações
sensoriais, nem que seja só do seu
próprio corpo. Mas até mesmo a
escuridão desapareceu. Tudo
simplesmente parou. Silêncio. Nada.
Solidão.
Eles devem ter embebido o fumo
numa dessas merdas tóxicas, que
costumavam acabar com as pessoas
antigamente.
— Sim, tenho sorte de que minha
cabeça depois voltou ao lugar. Foi uma
coisa fora do comum — já tinha
queimado fumo muitas vezes antes, mas
isso nunca me aconteceu. É por isso que
só fumo tabaco agora, depois disso mas
não foi igual a um desmaio; não senti
que ia cair, porque não tinha com o que
cair, não tinha corpo... e não havia nada
embaixo onde pudesse cair. Tudo,
inclusive eu mesma, simplesmente —
Ruth fez um gesto — expirou. Como a
última gota de uma garrafa. E dali a
pouco eles começaram a passar o filme
outra vez.
O filme que chamamos de realidade.
— Ruth fez uma pausa, dando uma
tragada em seu cigarro e disse:
— Nunca tinha contado isso a
ninguém.
— Você ficou assustada?
— Ela assentiu.
— Foi a consciência da
inconsciência, compreende o que quero
dizer? Quando morrermos de verdade
não vamos sentir isso, porque a morte é
isso, a perda de tudo. Daí que, por
exemplo, não tenho mais medo nenhum
de morrer, depois daquela bad trip com
fumo. Mas sofrer é diferente: é morrer e
estar vivo ao mesmo tempo. Portanto, a
experiência mais absoluta, mais
avassaladora que se pode sentir. Às
vezes poderia jurar que nós não fomos
feitos para passar por isso; é demais. O
corpo da gente quase se destrói a si
mesmo de tanto chorar e soluçar.
— Mas eu quero sofrer. Derramar
lágrimas.
— Por quê? — Ele não conseguia
compreender; para ele era algo a ser
evitado. Quando começava a sentir algo
assim, saía dessa o mais rápido
possível.
O sofrimento nos une de novo aquilo
que perdemos. É uma fusão; a gente vai
junto com a coisa ou a pessoa amada
que está indo embora. De certa forma
você se separa de você mesmo e
acompanha o ser amado numa parte do
seu caminho. Você o segue até onde dá
para ir. Lembro-me de que uma vez tive
um cachorro que amava, eu devia ter 17
ou 18 anos, por aí — chegando na
maioridade, lembro-me bem. O cachorro
ficou doente e nós o levamos ao
veterinário. Lá me disseram que ele
havia comido veneno de rato e que suas
entranhas viraram um saco de sangue;
nas próximas vinte e quatro horas
poderiam dizer se iria sobreviver. Fui
para casa esperar e lá pelas onze da
noite desmaiei na cama. O veterinário ia
me telefonar de manhã para me dizer se
Hank tinha sobrevivido.
Levantei às oito e meia e tentei
segurar minha cabeça, esperando o
telefonema. Fui ao banheiro escovar os
dentes e lá vi Hank, no chão, no canto
esquerdo do banheiro; ele estava
subindo uma escada invisível, devagar e
com muita dignidade. Fiquei vendo ele
subir em diagonal, lutando degrau por
degrau, até desaparecer finalmente no
canto direito do teto, ainda subindo. Não
olhou para trás nenhuma vez. Sabia que
tinha morrido. Aí o telefone tocou e o
veterinário me disse que Hank estava
morto. Mas eu o vi subindo. É claro que
senti um sofrimento terrível,
avassalador, e nisso me perdi de mim
mesma e fui atrás dele, subindo aquela
porra daquela escada.
Ambos ficaram em silêncio por
algum tempo.
— Mas no fim — disse Ruth,
limpando o pigarro — o sofrimento
passa e você aos poucos vai voltando
para este mundo. Sem o ser amado.
— E pode-se aceitar isso.
— Que escolha a gente tem? Você
chora, continua a chorar, porque a gente
nunca volta por completo daquele lugar
onde se foi atrás dele; um fragmento do
seu coração que bate e pulsa continua lá.
Um pedaço do seu coração. Um corte
que nunca cicatriza. E quando isso
acontece vezes sem conta na sua vida,
um pedaço muito grande do seu coração
acaba indo embora, e aí não se pode
mais sentir o sofrimento. Então é você
mesmo que está pronto para morrer. Vai
subir aquela escada em diagonal e
alguma outra pessoa vai ficar atrás,
sofrendo por você.
— Não há cortes no meu coração —
disse Jason.
— Se você for embora agora —
disse Ruth com voz roufenha, mas com
uma compostura incomum — é assim
que vai ser para mim, no mesmo
momento.
— Fico até amanhã — disse ele.
Seria o tempo mínimo que o laboratório
da polícia levaria para perceber que
suas IDs eram falsas.
“Será que Kathy me salvou”, ele se
perguntou. “Ou me destruiu? ” Na
verdade não sabia. “Kathy, que me usou,
que aos 19 anos sabe mais do que nós
dois juntos. Mais do que vamos
descobrir pelo resto das nossas vidas,
até chegar ao cemitério. ”
— Como uma boa líder de um grupo
de encontro, ela o havia destruído —
para quê? Para reconstruí-lo mais forte
do que antes? Não acreditava nisso. Mas
era uma possibilidade. Não devia ser
esquecida. Sentiu em relação a Kathy
uma estranha e cínica confiança, que era
absoluta mas não convencia; metade do
seu cérebro a via como digna de
confiança, mais do que as palavras
pudessem dizer; a outra metade a via
como baixa, vendida, e estragando tudo
à sua volta. Não conseguia juntar as
duas visões em uma. As duas imagens de
Kathy continuavam superpostas na sua
cabeça.
“Talvez consiga resolver minhas
concepções paralelas de Kathy antes de
sair daqui”, pensou. Antes da manhã
seguinte. Mas talvez pudesse ficar ainda
mais um dia.... Contudo, isso seria
esticar demais as coisas.
“Será que a polícia é mesmo
eficiente? ”, pensou.
“Eles erraram o meu nome; pegaram
a ficha errada. Não será possível que
estraguem tudo, a sequência toda da
investigação? Talvez. Mas talvez não. ”
Ele também tinha conceitos
contraditórios sobre a polícia. E também
não conseguia resolvê-los. E então,
como um coelho, como o coelho de
Emily Fusselman, ficou paralisado onde
estava.
Com a esperança de que todo mundo
compreendesse as regras; não se destrói
uma criatura que não sabe o que fazer.
12
Os quatro tiras de cinza formavam um
grupinho sob a luz da entrada, que vinha
de uma luminária de ferro batido em
forma de cone, imitando uma luz de
vela; a perpétua chama falsa tremeluzia
na escuridão da noite.
— Só faltam mais dois — disse o
cabo em tom quase inaudível; seus
dedos falavam por ele, ao percorrer a
lista dos apartamentos.
— Temos uma Sra. Ruth Gomen no
211 e um Allen Mufi no 212. Em qual
deles vamos primeiro?
— No tal de Mufi — disse um dos
tiras uniformizados; bateu na mão seu
cassetete plástico com balas, ansioso
para acabar com aquela história agora
que o fim estava próximo.
— Vamos então para o 212 — disse
o cabo.
Ao chegar à porta do 212, ergueu a
mão para tocar a campainha. Mas então
lhe ocorreu girar a maçaneta.
— Muito bem. Uma chance em
muitas, uma possibilidade pequena, mas
de repente útil e real: a porta estava
destrancada. Fez sinal de silêncio, deu
um breve sorriso e empurrou a porta.
Viram uma sala de estar escura, com
copos de bebida vazios e meio vazios
aqui e ali, alguns no chão. E uma grande
variedade de cinzeiros transbordando de
tocos de cigarro e maços amarfanhados.
Uma festa tabagífera, concluiu o
cabo. Já terminada. Todos já foram para
casa. Com exceção, talvez do Sr. Mufi.
Entrou, iluminou com a lanterna aqui
e ali e por fim viu uma porta no extremo
oposto da sala que levava aos recessos
do apartamento de luxo. Nenhum som.
Nenhum movimento. Exceto o balbucio
distante e quase imperceptível de um
rádio no volume mínimo.
Caminhou pelo tapete que se estendia
de uma parede a outra, e que mostrava
num desenho dourado Richard M. Nixon
subindo ao céu em meio a música e
júbilo vindos de cima, e choro e
lamentações vindos de baixo. Chegando
à porta do outro lado, pisou em Deus,
que estava sorridente ao receber em seu
seio seu Segundo Filho Unigênito. Abriu
então a porta.
Na grande cama de casal, com seu
colchão espesso e macio, dormia um
homem, de ombros e braços nus. Suas
roupas estavam amontoadas numa
cadeira ao seu lado. O Sr. Allen Mufi, é
claro. Em casa, em segurança, dormindo
em sua própria cama de casal. Mas... o
Sr. Mufi não estava sozinho em sua
própria cama. Enrolada em lençóis e
cobertores em tons pastel, uma segunda
forma indistinta dormia enrodilhada.
“A Sra. Mufi”, pensou o cabo, e
iluminou-a com sua lanterna, movido
por uma curiosidade masculina.
Imediatamente Allen Mufi —
supondo que fosse ele — se mexeu.
Abriu os olhos. E instantaneamente
sentou-se na cama num pulo, olhando
fixamente para os tiras. Olhando direto
para a luz da lanterna.
— O quê? — disse ele, e prendeu a
respiração aterrorizado; ofegou então
convulsivamente. — — Não! — disse
Mufi, e tentou pegar um objeto na
mesinha de cabeceira; mergulhou na
escuridão com seu corpo nu, branco e
peludo, buscando algo invisível mas
precioso. Procurava com desespero.
Sentou-se então de novo, arfando,
agarrando a coisa. Uma tesoura.
— Para que isso? — perguntou o
cabo, iluminando a tesoura metálica.
— Eu me mato — disse Mufi — se
vocês não forem embora e nos deixarem
em paz. — Encostou a ponta da tesoura
contra seu peito coberto de pelos
negros, perto do coração.
— Então não é a Sra. Mufi — disse o
cabo. — Moveu a lanterna para iluminar
a outra forma encolhida nos lençóis. —
Ah! Uma transa rapidinha?
Transformando seu apartamento de luxo
num motel? — Foi até a cama e deu um
puxão nos lençóis e cobertores.
Deitado ao lado do Sr. Mufi estava
um garoto nu, jovem e esguio, de longo
cabelo dourado.
— Essa não! — disse o cabo.
Um dos homens disse:
— Já peguei a tesoura. — Jogou-a no
chão, junto aos pés do cabo.
Ao Sr. Mufi, que sentado na cama
tremia e ofegava com os olhos
arregalados de terror, o cabo disse:
— Quantos anos tem esse menino?
O garoto tinha acordado; olhava
fixamente sem se mexer. Nenhuma
expressão aparecia em seu rosto macio,
ainda indefinido.
— Treze — disse o Sr. Mufi num
grunhido, quase implorando. — A idade
legal para o consentimento.
O cabo perguntou ao garoto:
— Tem provas? — Sentia agora uma
intensa repugnância. Uma aguda aversão
física, que lhe virava o estômago. A
cama estava úmida e manchada de suor
e secreções genitais.
— A ID — disse Mufi, arquejante —
está na carteira. Veja na calça dele, na
cadeira.
Um dos tiras disse ao cabo:
— Quer dizer que se esse moleque
tem 13 anos não há delito?
— Que diabo — disse outro tira,
indignado. — É óbvio que é um crime,
crime de perversão.
— Vamos autuar os dois!
— Espere um minuto, tá legal? — O
cabo encontrou a calça do garoto,
remexeu, encontrou a carteira e
inspecionou os documentos. Estava
certo: 13 anos de idade. Fechou a
carteira e a colocou de volta no bolso.
— Não — disse, ainda saboreando
um pouco a situação, divertindo-se com
a vergonha nua do Sr. Mufi, mas ficando
mais e mais revoltado com o horror
covarde que o homem sentia em ser
descoberto. — De acordo com a nova
revisão do Código Penal, versão 640.3,
12 anos é a idade mínima para um menor
ter relações sexuais, seja com outra
criança do sexo masculino ou feminino,
ou com um adulto, também de um ou de
outro sexo, mas apenas com uma pessoa
de cada vez.
— Mas isto é uma doença, é nojento
— protestou um dos tiras.
— Essa é a sua opinião— disse
Mufi, agora com mais coragem.
— Por que diabos não podemos levar
os dois presos? Insistiram os policiais.
— Eles estão tirando
sistematicamente do Código Penal todos
os crimes sem vítima — disse o cabo.
— Isso vem acontecendo há dez anos.
— Isto? Isto aqui é um crime sem
vítima?
O cabo se dirigiu a Mufi:
— O que você vê nos meninos que
você tanto gosta? Me explique; sempre
quis compreender as bichas como você.
— Bicha — repetiu Mufi, torcendo a
boca, aflito. — Quer dizer que é isso
que eu sou.
— É uma categoria — disse o cabo.
— Os que atacam menores para fins
homossexuais.
— Permitido por lei, mas mesmo
assim repugnante. O que você faz
durante o dia?
— Sou vendedor de mosquinhas
usados.
— E se eles, os seus patrões,
souberem que você é bicha, não vão
querer que você toque nos mosquinhas.
Não com essas mesmas mãos peludas
que tocam outras coisas depois de um
dia de trabalho. Certo, Sr. Mufi? Nem
mesmo um vendedor de mosquinhas
usados pode se safar moralmente sendo
bicha. Mesmo que isso não esteja mais
no Código Penal.
— É culpa da minha mãe — disse
Mufi. — Meu pai era um homem fraco, e
ela o dominava.
— Quantos menininhos você induziu
a te chupar durante os últimos doze
meses? — perguntou o cabo. — Estou
falando sério. São todos transas de uma
noite só, é?
— Eu amo Ben — disse Mufi,
olhando fixamente para a frente, mal
movendo a boca para falar. — Quando
estiver numa situação financeira melhor
e puder sustentá-lo, pretendo casar com
ele.
O cabo perguntou a Ben, o garoto:
— Quer que a gente leve você
embora daqui? De volta para a casa dos
seus pais?
— Ele mora aqui — disse Mufi, com
um sorriso.
— Sim, fico por aqui — disse o
menino, taciturno. Estremeceu de frio.
— Caramba, será que dá para me
devolver o cobertor? — Irritado,
alcançou a coberta.
— Tratem de não fazer barulho por
aqui — disse o cabo, afastando-se com
desânimo. — Meu Deus! E tiraram isso
do Código Penal!
— Provavelmente — disse Mufi com
mais confiança, agora que os tiras
começavam a sair de seu quarto —
porque vários daqueles oficiais velhos,
gordos e barrigudos também transam
com garotos e não querem ser flagrados.
Não suportariam o escândalo.
Seu sorriso era agora insinuante e
malicioso.
— Espero — disse o cabo — que
algum dia você cometa um delito de
verdade, vá preso, e que eu esteja de
plantão nesse dia. Aí vou prendê-lo
pessoalmente. — Puxou o cigarro, e
cuspiu no Sr. Mufi. Cuspiu naquela cara
barbuda e sem expressão.
Em silêncio, os tiras foram saindo
pela sala cheia de pontas de cigarro,
cinzas, maços amarfanhados, copos
meio cheios de bebida, até chegar ao
corredor externo. O cabo bateu na porta,
estremeceu, e parou por um momento,
sentindo sua mente vazia e desligada de
tudo que o rodeava. Disse então:
— Duzentos e onze, Sra. Ruth
Gomen. Onde o suspeito Taverner tem
que estar, se é que está por aqui, já que
é o último apartamento. — “E já não é
sem tempo”, pensou.
Bateu na porta do 211. E ficou
esperando, agarrando o cassetete com
balas; de repente teve uma sensação
terrível de estar pouco se lixando para o
seu serviço. — Já vimos o Mufi falou
baixo, meio para si mesmo. — Vamos
ver agora que tal a Sra. Gomen. Vocês
acham que ela vai ser muito melhor.
Esperemos. Não aguento muito mais esta
noite.
— Qualquer coisa é melhor que
aquilo — disse sombrio um dos tiras.
Todos concordaram e se agitaram,
inquietos, preparando-se para os passos
vagarosos que já se ouviam atrás da
porta.
13
Na sala de estar do novo, magnífico e
luxuoso apartamento de Ruth Rae, no
bairro de Fireflash em Las Vegas, Jason
Taverner disse:
Tenho absoluta certeza de que posso
contar com quarenta e oito horas no
exterior e mais vinte e quatro no
interior. Portanto, tenho uma boa certeza
de que não preciso sair daqui
imediatamente. —
“E se o nosso novo princípio
revolucionário está correto”, pensou,
“então esta certeza vai modificar a
situação, com vantagem para mim.
Estarei em segurança.”
A TEORIA MUDA...
— Fico contente — disse Ruth,
languidamente — que você possa ficar
aqui comigo de maneira civilizada, e
assim podemos conversar um pouquinho
mais. Quer beber mais alguma coisa?
Uísque com Coca-Cola?
A TEORIA MUDA A REALIDADE
QUE DESCREVE.
— Não — disse ele, e começou a
andar pela sala, escutando... O quê, não
sabia. Talvez a ausência de ruído.
Nenhum televisor ligado, nenhum som
de passos no apartamento de cima. Nem
mesmo um pornodisco berrando um som
quadrifônico. Perguntou de chofre a
Ruth: — Essses apartamentos têm
paredes grossas?
— Nunca escuto nada.— Não está
percebendo nada de estranho? Fora do
comum?
— Não.
— Sua burra, estúpida! — exclamou
ele com violência. Ela o encarou
perplexa com a injúria. — Eu sei —
continuou irritado — que eles já me
pegaram. Aqui. Agora. Nesta sala.
A campainha soou.
— Vamos fazer de conta que não
ouvimos — disse Ruth depressa,
gaguejando de medo. — Só quero sentar
e conversar com você, sobre as coisas
agradáveis da vida que você já viu,
sobre as coisas que você pretende
conseguir e não conseguiu ainda... — A
voz dela abaixou de tom e silenciou de
todo quando ele chegou até a porta. —
Deve ser o homem do andar de cima.
Ele vem pedir coisas emprestado.
Coisas esquisitas, como dois quintos de
uma cebola.
Jason abriu a porta. Três tiras de
uniforme cinza ocupavam toda a porta,
apontando para ele armas e cassetetes.
— Sr. Taverner? — perguntou o tira
mais graduado.
— Sim.
— O senhor está sendo levado em
custódia para sua própria proteção e
bem-estar, com vigência imediata;
portanto queira nos acompanhar e não se
volte nem faça nenhuma tentativa de
retirar-se fisicamente do contato
conosco. Seus pertences, se tiver algum,
serão recolhidos mais tarde e
transferidos ao local onde o senhor se
encontrar.
— Certo — disse ele, sentindo-se
muito pequeno.
Atrás dele Ruth Rae emitiu um
gritinho abafado.
— A senhora também, dona —disse
o tira graduado, fazendo sinal a ela com
o cassetete.
— Posso pegar meu casaco? —
perguntou ela com timidez.
— Venha aqui. — O tira passou por
Jason com dois passos seguros, agarrou
Ruth Rae pelo braço e a arrastou para
fora do apartamento até o corredor.
— Faça o que ele está mandando —
Jason disse a ela com aspereza.
Ruth choramingou:
— Eles vão me botar num campo de
trabalhos forçados.
— Não — disse Jason —,
provavelmente vão te matar.
— Poxa, como você é bonzinho! —
comentou um dos tiras, enquanto com o
auxílio de seus companheiros conduzia
Jason e Ruth escada abaixo até o térreo.
No estacionamento estava um furgão da
polícia, com vários tiras em volta,
parados sem fazer nada, as armas
pendendo frouxas na mão. Pareciam
inertes e entediados.
— Mostre sua ID — disse o tira
graduado, estendendo a mão a Jason.
— Tenho um passe policial válido
por sete dias — disse Jason. Com as
mãos tremendo, tirou o passe da carteira
e o entregou ao oficial.
Examinando o passe, o oficial
perguntou:
— O senhor admite de livre e
espontânea vontade que é Jason
Taverner?
— Sim.
Dois tiras habilidosos o revistaram
em busca de armas. Ele não opôs
resistência. Calado, continuava se
sentindo muito pequeno. Tinha apenas
um vago desejo de ter feito aquilo que
sabia que deveria fazer: continuar em
frente, sair de Las Vegas. Para qualquer
lugar.
— Sr. Taverner — disse o oficial —,
a Central de Polícia de Los Angeles nos
pediu que levássemos o senhor em
custódia para sua própria proteção e
bem-estar, transportando-o em
segurança e com as devidas precauções
para a Academia de Polícia no centro de
L. A. É o que passaremos a fazer agora.
O senhor tem alguma queixa quanto à
maneira como está sendo tratado?
— Não — disse Jason. — Ainda não.
— Entre atrás — disse o oficial,
indicando as portas abertas do furgãomosquinha.
Jason entrou.
Ruth Rae, espremida ao lado dele,
choramingava baixinho na escuridão. As
portas se fecharam com estrondo e
foram trancadas por fora. Ele passou o
braço pelos ombros Lola e a beijou na
face.
— O que foi que você fez? —
perguntou Ruth com a voz lamuriosa e
rouca de uísque. — Eles vão matar a
gente por quê?
Um tira passou da cabine do furgão
para o compartimento traseiro e disse:
— Não vamos apagar a senhora,
dona. Vamos levar vocês dois de volta
para L. A. Só isso.
— Calma.
— Não gosto de Los Angeles — Ruth
choramingou.
— Faz anos que não vou para lá.
Odeio Los Angeles. — Olhou em volta
com insolência.
— Eu também não — disse o tira;
trancou a porta que dava para a cabine e
passou a chave, por uma abertura, para
os tiras do lado de fora.
— Mas temos que aprender a viver
com ela; ela existe.
— Eles devem estar vasculhando
meu apartamento — Ruth lamuriou-se.
— Remexendo em tudo, quebrando tudo.
— De forma alguma — disse Jason,
sem expressão. Sua cabeça doía; sentiase nauseado. E cansado.
— Para quem vocês estão nos
levando? — perguntou ao tira. — Para o
inspetor McNulty?
— É mais provável que não — disse
o tira cordialmente, enquanto o furgãomosquinha levantava voo com muito
barulho. — Os que se intoxicam com
bebidas fazem de ti o tema de suas
canções, e os que se assentam nos
portões preocupam-se contigo, e de
acordo com eles o general da Polícia
Felix Buckman quer interrogá-lo. —
Suplicou:
— Isso é do Salmo 69. Sento-me ao
teu lado como uma Testemunha de Jeová
Ressurreto, que está neste mesmo
momento criando novos céus e uma nova
Terra, e as coisas que se deram antes
não serão chamadas A mente, nem
subirão ao coração. Isaías 65:13,17.
— Um general da Polícia? — disse
Jason, aturdido.
— É o que eles dizem — disse o
jovem tira, amável discípulo de Jesus.
— Não sei o que vocês andaram
fazendo, mas sem dúvida fizeram
direitinho.
Ruth Rae soluçou baixo na escuridão.
— Toda a carne é como a relva —
entoou o menino de Deus. — Deve ser
como um mato queimado bem
vagabundo. Para nós nasceu um menino,
para nós veio um murro. Os maus serão
corrigidos e os corretos serão
carregados.
— Tem um baseado aí? — Jason
perguntou a ele.
— Não, os meus acabaram. — O tira
de Jesus bateu na divisória de metal. —
Ei, Ralf, pode ceder um baseado para o
nosso irmão aqui?
— Pegue. — Pela abertura apareceu
um braço numa manga cinza, e na mão
um maço amarrotado de baseados
Acapulco Gold.
— Obrigado — disse Jason, e
acendeu um. — Quer um? — ofereceu
para Ruth Rae.
— Quero Bob — disse ela,
choramingando. — Quero meu marido.
Inclinado para a frente, Jason fumava
e refletia em silêncio.
— Não perca a esperança — disse na
escuridão o tira de Deus, espremido
junto a ele.
— Por que não? — disse Jason.
— Os campos de trabalhos forçados
não são tão ruins assim. No curso de
Orientação Básica eles nos levaram
para conhecer um; tem chuveiros, camas
com colchão, recreação vôlei, artes e
trabalhos manuais; sabe como é, fazer
velas, essas coisas. À mão. A família
pode mandar pacotes, e uma vez por mês
os parentes ou amigos podem visitar. —
Acrescentou: — E cada um pode
frequentar a igreja de sua escolha.
Jason disse, sardônico:
— A igreja de minha escolha é o
mundo, livre e aberto.
Depois disso fez-se silêncio, exceto
pelo barulho metálico do motor do
mosquinha e pelo choro abafado de Ruth
Rae.
14
Vinte minutos depois o furgãomosquinha pousava no teto da Academia
de Polícia de Los Angeles.
Tenso, Jason Taverner saiu do carro,
olhou cautelosamente em volta, sentiu o
cheiro do ar poluído, saturado de
fumaça, viu mais uma vez o céu amarelo
da maior cidade da América do Norte...
Virou-se para ajudar Ruth Rae a sair,
mas o amável tira de Deus já havia feito
isto.
Em volta deles logo se juntou um
grupo de tiras de Los Angeles,
interessados. Pareciam descontraídos,
curiosos e alegres. Jason não viu
maldade em nenhum deles e pensou:
“Depois que eles o pegam, são gentis. É
só quando o apanham que são venenosos
e cruéis. Porque há a possibilidade de
você escapar. E agora não existe mais
essa possibilidade.”
— Ele fez alguma tentativa de
suicídio? — perguntou um sargento de
Los Angeles ao tira o garoto de Deus.
— Não, senhor.
Então era por isso que o tira viera
com eles.
Jason não tinha nem pensado naquilo,
e provavelmente Ruth Rae também não...
Exceto talvez como um gesto de efeito,
teatral, que se imagina mas não se leva a
sério.
— Certo — disse o sargento de Los
Angeles para o destacamento de Las
Vegas. — Daqui por diante nós
assumimos formalmente a custódia dos
dois suspeitos.
Os tiras de Las Vegas pularam de
volta no furgão, que levantou voo
zunindo pelo ar, de volta a Nevada.
— Por aqui — disse o sargento,
indicando com a cabeça o tubo de
descida. Os tiras de L. A. pareceram a
Jason um pouco mais grossos, mais
duros e também mais velhos do que os
de Las Vegas. Ou talvez fosse a sua
imaginação; talvez fosse só o seu medo
que estava aumentando.
“O que se diz a um general da
Polícia”, pensou Jason. Especialmente
quando todas as suas teorias e
explicações sobre você mesmo já se
desgastaram, quando você não sabe de
mais nada, não acredita em nada, e o
resto é obscuro.
“Ah, para o inferno com tudo isso”,
resolveu, enfastiado, e deixou-se cair
virtualmente sem peso nenhum pelo tubo
de descida, junto com os tiras e Ruth
Rae.
No décimo quarto andar saíram do
tubo.
Um homem os esperava, bem vestido,
com óculos sem aro, um casaco dobrado
sobre o braço, sapatos de couro tipo
Oxford de ponta fina. Jason notou que
tinha dois dentes de ouro. Devia ter uns
cinquenta e poucos anos. Alto, ereto,
cabelos brancos, uma expressão de
cordialidade autêntica em seu rosto
aristocrático extremamente bem
proporcionado. Não parecia um tira.
— Você é Jason Taverner? —
perguntou o homem. Estendeu a mão;
Jason automaticamente a apertou. Para
Ruth o general disse:
— Pode descer; vou entrevistá-la
depois. No momento é com o Sr.
Taverner que quero falar.
Os tiras levaram Ruth embora; Jason
ficou ouvindo até que ela se perdeu de
vista. Encontrava-se agora em frente ao
general e a mais ninguém. Não havia
ninguém armado.
— Sou Felix Buckman — disse o
general. Indicou uma porta e um
corredor atrás de si:
— Venha para meu escritório. —
Virou-se e conduziu Jason para uma
enorme suíte pintada em tons pastel de
azul e cinza. Jason piscou os olhos;
nunca tinha visto este aspecto de uma
central de polícia. Nunca imaginara que
pudesse exibir uma qualidade tão alta.
Incrédulo, no momento seguinte Jason
viu-se sentado numa cadeira estofada e
forrada de couro; inclinou-se no encosto
macio. Buckman, porém, não se sentou
atrás de sua enorme e pesadíssima
escrivaninha de carvalho; em vez disso
foi até um armário e ocupou-se em
guardar seu sobretudo.
— Eu pretendia encontrar você lá no
teto — explicou.
— Mas o vento de Santana sopra
feito louco lá em cima a essa hora da
noite. Me dá sinusite. — Virou-se então
para Jason.
— Estou vendo algo em você que não
aparece na sua foto em 4-D. Nunca
aparece. É sempre uma surpresa
completa, ao menos para mim. Você é
um tipo seis, não é?
Jason de repente ficou totalmente
alerta. Ergueu-se um pouco da cadeira e
disse:
— O senhor também é tipo seis,
general?
Sorrindo e revelando seus dentes de
ouro — um custoso anacronismo —
Felix Buckman levantou sete dedos.
15
Em sua carreira de oficial de polícia,
Felix Buckman usava esse golpe cada
vez que se defrontava com um tipo seis.
Confiava nesse recurso especialmente
quando, como era o caso agora, o
encontro era repentino. Já encontrara
quatro deles. E todos acabaram por
acreditar nele. Achava esse falo
divertido. Os tipo seis, experimentos
eugênicos secretos, pareciam
extraordinariamente crédulos quando
defrontados com a afirmativa de que
havia outro projeto tão secreto quanto o
seu.
Sem esse golpe ele seria, para um
seis, nada mais do que um “ordinário”.
Não conseguiria lidar apropriadamente
com um tipo seis com uma desvantagem
desse porte. Daí o truque. Por meio dele
sua relação com um seis se invertia. E
nas condições assim recriadas, podia
lidar bem com um ser humano que de
outra forma seria impossível de
controlar.
A superioridade fisiológica que de
fato um seis possuía sobre ele era
abolida por um fato irreal. Gostava
muito disso.
Certa vez num momento de distração
dissera a Alys:
— Posso raciocinar melhor do que
um seis por uns dez ou quinze minutos.
Mas se durar mais do que isso...
Fizera um gesto, amassando um maço
de cigarros comprados nn mercado
negro. Com dois cigarros dentro. —
Aquele rompo elétrico supercarregado
acaba levando a melhor.
— O que preciso é de uma barra de
ferro para rachar aquela bosta de cabeça
altaneira que eles têm. — E, por fim,
tinha encontrado a arma.
— Por que “tipo sete”? — Alys
perguntara. — Já que você está
passando a conversa neles, por que não
diz tipo oito ou trinta e oito?
— O pecado da vangloria. Querer
demais. — Não quisera cometer aquele
erro lendário. — Digo a eles o que acho
que vão acreditar — falou, soturno. E no
fim provou estar certo.
— Eles não vão acreditar em você —
Alys dissera.
— Vão sim, porra! É o medo secreto
deles, sua bête noire. Eles estão no
sexto lugar nos sistemas de
reconstituição de DNA, e sabem que se
isso foi feito com eles, pode ser feito
com outros em grau ainda mais
avançado.
Alys, sem interesse, dissera baixinho:
— Você deveria fazer comerciais de
sabão em pó na tevê. — E essa fora sua
única reação. Se Alys não ligava para
alguma coisa, aquilo para ela cessava de
existir. E ela se saía bem com isso há
muito tempo, talvez demasiado tempo...
“Mas algum dia”, pensava ele muitas
vezes, “viria a retribuição: a realidade
negada volta a nos perseguir. Para nos
tomar de assalto sem aviso prévio e nos
enlouquecer. ”
“E Alys”, pensara ele inúmeras
vezes, “era de algum modo, de alguma
estranha forma clínica, uma pessoa
patológica. ”
Ele sentia isso, sem poder precisar
porquê. Contudo muitos dos seus
pressentimentos eram assim. Aquilo não
o incomodava, por mais que amasse a
irmã. Sabia que estava com a razão.
Agora frente a frente com Jason
Taverner, um tipo seis, desenvolveu seu
golpe.
— Havia muito poucos de nós —
disse Buckman, sentando-se em sua
enorme mesa de carvalho. — Só quatro
ao todo. Um já morreu, de modo que
ficaram três. Não tenho a menor ideia de
onde eles estão; temos ainda menos
contato entre nós do que vocês do tipo
seis. O que já é bem pouco.
— Quem foi seu inventor? —
perguntou Jason.
— Dill-Temko. O mesmo que
inventou vocês. Ele controlava os
grupos cinco, seis e sete, até se
aposentar. Como você deve saber, ele já
morreu.
— Sim — disse Jason. — Nós todos
ficamos muito chocados.
— Nós também — disse Buckman,
com sua voz mais sombria. — Dill-
Temko era nosso pai. Aliás, nosso pai e
mãe. Você sabia que quando morreu
tinha começado a planejar um oitavo
grupo?
— Como seria?
— Só mesmo Dill-Temko sabia —
disse Buckman, e sentiu aumentar sua
superioridade frente ao seis que o
encarava. Contudo, como era frágil sua
vantagem psicológica. Uma afirmação
errada, uma frase a mais, e ela
desapareceria. Uma vez perdida, nunca
a recuperaria.
Era o risco que assumia. Mas gostava
disso: sempre gostara de apostar no
azarão, arriscando no escuro. Em
momentos assim tinha um intenso
sentimento de sua própria capacidade. E
não a considerava imaginária... apesar
do que diria um seis que soubesse que
ele era um ordinário. Isto não o
incomodava em absoluto.
Apertando um botão, disse:
— Peggy, traga uma jarra de café
com creme e tudo o mais. Obrigado. —
Recostou-se então na cadeira, com um
bem-estar estudado. E examinou Jason
Taverner.
Qualquer pessoa que já tivesse
conhecido um tipo seis reconheceria
Taverner. O tórax forte, a conformação
das costas e braços maciços. Sua cabeça
poderosa como um aríete. Mas a maioria
dos ordinários nunca tivera consciência
de ter encontrado um seis. Não tinham a
experiência que ele tinha. Nem o
conhecimento que tinha a respeito deles,
cuidadosamente condensado.
Dissera certa vez a Alys:
— Eles nunca vão tomar o poder e
governar o meu mundo.
— Você não tem mundo. Você tem
um escritório.
Nesse ponto ele pusera fim à
discussão.
— Sr. Taverner — disse Buckman
sem rodeios —, como conseguiu tirar
documentos, fichas, microfilmes, até
dossiês inteiros dos bancos de dados de
todo o planeta? Tentei imaginar como se
poderia fazer isso, mas o resultado foi
nulo. — Fixou sua atenção no rosto bem
feito — mas envelhecido — daquele
tipo seis e esperou.
16
“O que posso dizer a ele? ”,
perguntou-se Jason Taverner, encarando
em silêncio o general de Polícia sentado
à sua frente.
“A verdade pura, tal como eu a
conheço? Isso é difícil, porque eu
próprio não a compreendo. ”
“Mas talvez um sete compreenda —
bem, sabe Deus do que eles são capazes.
É melhor", decidiu, “dar uma explicação
completa. ”
Mas quando começou a responder,
algo o impediu de falar. Não quero
contar nada para ele, percebeu.
Teoricamente não há limite para o que
ele pode fazer comigo; é um general,
uma autoridade, e se é um tipo sete...
talvez para ele o céu seja o limite.
Mesmo que não seja verdade, para
minha própria autopreservação devo
partir dessa base. ”
— O fato de você ser um seis —
disse Buckman depois de um lapso de
tempo em silêncio — me faz ver tudo
isso sob uma luz diferente. É com outros
seis que você está trabalhando?
Mantinha os olhos rigidamente fixos
no rosto de Jason, que se sentiu
incomodado e desconcertado.
— Acho que o que temos aqui —
disse Buckman — é a primeira prova
concreta de que os tipo seis são...
— Não — disse Jason.
— Não? — Buckman continuava a
encará-lo fixamente. Você não está
envolvido nisso com outros tipos seis?
— Só conheço uma outra pessoa tipo
seis — disse Jason. — Heather Hart. E
ela me considera um fanzoca de merda.
— Cuspiu essas palavras com amargura.
Isso interessou a Buckman; não era
de seu conhecimento que a conhecida
cantora Heather Hart era tipo seis. Mas,
pensando bem, parecia razoável. Em sua
carreira, entretanto, nunca tinha se
deparado com um tipo seis do sexo
feminino; seus contatos com eles não
eram tão frequentes.
— Se a Srta. Hart é tipo seis — disse
Buckman — talvez nós devêssemos
pedir a ela que venha também aqui
conferenciar conosco. — Esse
eufemismo policialesco rolou fácil de
sua boca.
— Faça isso — disse Jason. —
Ponha ela no pau-de-arara. — Seu tom
de voz era feroz. — Jogue ela na prisão.
Num campo de trabalhos forçados...
“Vocês do tipo seis”, pensou
Buckman, “têm muito pouca lealdade
uns com os outros. ” Ele já percebera
isso, mas sempre ficava surpreso.
Um grupo de elite, nascido de
círculos aristocráticos anteriores para
estabelecer e manter os padrões de elite
no mundo, que na prática fora se
extinguindo porque um não suportava o
outro. Riu para si mesmo, mostrando no
rosto um sorriso.
— Está achando engraçado? — disse
Jason. Não acredita em mim?
— Não importa. — Buckman pegou
uma caixa de charutos Cuesta Rey de
uma gaveta de sua escrivaninha e com
uma faquinha cortou a ponta de um
deles. A pequenina faca de aço feita
especialmente para esse fim.
Do outro lado da mesa Jason
Taverner o observava fascinado.
— Aceita um charuto? — Buckman
estendeu a caixa para Jason.
— Nunca fumei um bom charuto —
disse Jason. — Se descobrissem que
eu... — interrompeu a frase.
“Descobrissem”? — perguntou
Buckman, ficando mentalmente alerta.
— Se quem descobrisse? A polícia?
Jason não disse nada. Mas cerrou o
punho; sua respiração estava difícil.
— Há círculos onde você é bem
conhecido? — perguntou Buckman. —
Por exemplo, entre os intelectuais nos
campos de trabalhos forçados? Sabe,
aqueles que distribuem manuscritos
mimeografados.
—Não — disse Jason.
— Círculos musicais, então?
— Atualmente não — disse Jason,
tenso.
— Você já gravou discos?
— Não aqui.
Buckman continuou a examiná-lo
atentamente, sem piscar: através dos
anos adquirira esta habilidade.
— Onde, então? — perguntou numa
voz mal e mal audível. Uma voz bem
estudada: o tom calmante interferia com
a identificação do significado das
palavras.
Mas Jason Taverner deixou passar a
pergunta: não respondeu.
“Esses filhos da mãe desses tipo
seis”, pensou Buckman com raiva —
raiva sobretudo de si mesmo. "Não
posso blefar com um seis. Simplesmente
não funciona. A qualquer momento ele
pode cancelar da sua mente o que eu
disse sobre minha alegada superioridade
genética. ”
Apertou um botão no interfone.
— Mande trazer aqui uma certa Srta.
Katharine Nelson — ordenou a Herb
Maime.
— É uma informante da polícia de
Watts, aquele antigo bairro negro. Acho
que devo falar com ela.
— Meia hora.
— Obrigado.
Jason Taverner disse com voz rouca:
— Por que colocá-la nesta história?
— Ela fotjou seus papéis.
— Tudo que ela sabe sobre mim é o
que mandei pôr nas minhas IDs.
— E eram informações falsas?
Depois de uma pausa Jason fez que
não com a cabeça.
— Então você realmente existe.
— Não... aqui.
— Onde?
— Não sei.
— Me conte como você conseguiu
eliminar esses dados de todos os
bancos.
— Nunca fiz isso.
Ao ouvir isso Buckman sentiu um
fortíssimo palpite invadi-lo: parecia
agarrá-lo com mãos de ferro.
— Você não tirou material dos
bancos de dados; você tentou colocar
material neles. Não havia informação
nenhuma desde o início.
Finalmente Jason Taverner assentiu.
—Certo — disse Buckman; sentiu
agora o brilho da descoberta aparecer
dentro de si, manifestando-se numa série
de conclusões. — Você não tirou nada.
Mas há algum motivo para que as
informações não estivessem lá. Por que
não estavam? Você sabe?
— O que eu sei — disse Jason
cabisbaixo, olhando para a mesa com a
face retorcida como um galho torto.— é
que não existo.
— Mas já existiu.
— Sim — disse Taverner, assentindo
contra sua vontade. Dolorosamente.
— Onde?
— Não sei!
“Sempre acaba nisso”, pensou
Buckman. “Não sei. Bem, talvez ele não
saiba mesmo. Mas o fato é que ele foi de
L. A. para Las Vegas; transou com
aquela dona magrela e enrugada que os
tiras de Las Vegas trouxeram no furgão
junto com ele. Talvez consiga alguma
coisa com ela.”
Mas nesse ponto sua intuição lhe
disse que não.
— Você já jantou? — perguntou
Buckman.
— Sim — disse Jason.
— Mas vai me acompanhar num
lanche. Vou mandar buscar alguma coisa
para nós. — Mais uma vez usou o
interfone. — Peggy, já é tão tarde...
Traga dois lanches para nós daquele
lugar novo. Não aquele onde nós
costumávamos ir; o novo, na rua mais
abaixo, que tem um luminoso mostrando
um cachorro com cabeça de menina.
Barfy’s.
— Sim, Sr. Buckman — disse Peggy,
e desligou.
— Por que eles não o chamam de
“general”? — perguntou Jason.
— Quando alguém me chama de
general — disse Buckman — sinto que
deveria ter escrito um livro sobre como
invadir a França ficando fora das duas
frentes de guerra.
— Então eles simplesmente o
chamam de “senhor”?
— Correto.
— E eles permitem que faça isso?
— Para mim — disse Buckman —
não há “eles”. Excetuando cinco
marechais da polícia espalhados pelo
mundo, e eles também se fazem chamar
de “senhor”. — “E como esses cinco
gostariam de rebaixar mais ainda”,
pensou. “Por causa de tudo o que eu
fiz.”
— Mas e o Diretor?
— O Diretor nunca me viu. Nunca
vai me ver. Nem vai vê-lo tampouco, Sr.
Taverner. Mas ninguém pode vê-lo, pois
como o senhor mesmo já comentou, o
senhor não existe.
Uma policial uniformizada entrou no
escritório trazendo uma bandeja.
— É o que o senhor costuma pedir a
essa hora da noite disse ela, colocando a
bandeja na mesa de Buckman. — Um
cachorro quente com presunto extra e
outro com salsicha extra.
— O que o senhor prefere? —
perguntou Buckman a Jason.
— A salsicha está bem cozida? —
perguntou Jason, examinando os
sanduíches. — Acho que sim. — Fico
com esse aqui.
— São dez dólares e mais um cincão
de ouro — disse a policial. — Quem vai
pagar?
Buckman procurou nos bolsos e tirou
o dinheiro.
— Obrigado. — A moça se retirou.
— Você tem filhos? — perguntou
para Taverner.
— Não.
— Eu tenho um filho — disse o
general Buckman. — Vou lhe mostrar
uma foto em 3-D dele que acabo de
recebei Abriu a gaveta e tirou um
quadradinho colorido, tridimensional
mas sem movimento. Jason segurou a
foto sob a luz e viu a figura estática de
um menino de short e,suéter,descalço
correndo por um gramado segurando o
fio de uma pipa. Como o general, o
menino tinha o cabelo loiro e um queixo
impressionante, muito largo e forte. Já
naquela idade.
— Bonitinho — disse Jason, e
devolveu a foto.
— Ele nunca conseguiu empinar essa
pipa. Acho que ainda é muito pequeno.
Ou talvez tenha medo. Nosso garotinho é
muito ansioso; creio que é porque ele vê
muito pouco a mãe e a mim; está numa
escola na Flórida e nós aqui, o que não é
bom. Você disse que não tem filhos?
— Não que eu saiba — disse Jason.
— Não que você saiba? — Buckman
ergueu o cenho.
— Isso quer dizer que você nunca
investigou o assunto? Nunca tentou
descobrir? Pela lei, como você sabe, o
pai é obrigado a sustentar os filhos,
sejam ou não gerados num casamento.
Jason assentiu.
— Bem — disse Buckman,
guardando a foto na gaveta —, cada um
sabe de si. Mas pense no que você
excluiu de sua vida. Você nunca amou
uma criança? Dói no coração, na sua
parte mais íntima, ali onde se pode
morrer facilmente.
— Não sabia disso — disse Jason.
— Ah, sim. Minha mulher diz que se
pode esquecer qualquer amor, menos o
amor que se leve por uma criança. É
algo que não tem volta, li se acontece
alguma coisa que nos separa da criança
— como a morte, ou uma terrível
calamidade como o divórcio — a gente
nunca mais se recupera.
— Puxa vida — Jason fez um gesto
com o garfo cheio de salsicha — nesse
caso seria melhor não sentir esse tipo de
amor.
— Não concordo — disse Buckman.
A gente sempre deve amar, e
especialmente uma criança, pois é a
forma mais forte de amor.
— Compreendo — disse Jason.
— Não, você não compreende. Os do
tipo seis nunca compreendem; não
conseguem compreender.
Não vale a pena falar no assunto.
— Remexeu nuns papéis em cima da
mesa, franzindo o cenho; estava
intrigado e um pouco irritado.
Mas aos poucos acalmou-se e voltou
ao seu natural controlado e seguro. Mas
não conseguia compreender a atitude de
Jason Taverner. Para ele seu filho tinha
a máxima importância; o menino e, é
claro, o amor que sentia pela mãe do
garoto — era esse o pivô da sua vida.
Comeram sem falar por alguns
momentos; de repente nenhuma ponte
conectava um ao outro.
— Há uma lanchonete aqui no
edifício — disse Buckman por fim,
tomando um copo de refrigerante
artificial Tang. — Mas a comida lá é
envenenada. Acho que todos os
empregados têm parentes nos campos de
trabalhos forçados e descontam em nós.
— Buckman riu. Jason não riu.
— Sr. Taverner — disse Buckman,
limpando a boca com o guardanapo —,
vou deixá-lo ir embora. Não vou segurálo mais aqui.
Olhando-o com espanto, Jason
perguntou:
— Por quê?
— Porque você não fez nada.
Com voz rouca, Jason disse:
— Consegui documentos forjados. É
um delito.
— Tenho autoridade para cancelar
qualquer acusação que quiser disse
Huckman. Vejo que você foi forçado a
fazer isso em virtude de alguma situação
em que se encontrou, uma situação que
você se recusa a me relatar; mas já tenho
uma boa ideia do que seja.
Após uma pausa, Jason disse:
— Obrigado.
— Mas — disse Buckman — você
será monitorado eletronicamente onde
quer que vá. Nunca estará sozinho,
exceto pelos seus próprios pensamentos
em sua mente, e talvez nem mesmo isso.
Todas as pessoas que você contatar
ou visitar vão acabar sendo trazidas
aqui para serem interrogadas... assim
como estamos trazendo essa garota
Kathy Nelson agora mesmo.
— Debruçou-se para Jason, falando
devagar e marcando bem as palavras
para que Taverner compreendesse bem.
— Estou certo de que você não tirou
informações de nenhum banco de dados,
seja público ou privado. Acredito que
você não compreende sua própria
situação. Mas — aqui Buckman levantou
a voz perceptivelmente — mais cedo ou
mais tarde você compreenderá sua
situação e, quando isso acontecer,
queremos estar a par de tudo. Portanto
vamos estar sempre com você. Está
justo assim?
Jason Taverner levantou-se.
— Todos vocês do tipo sete pensam
dessa maneira?
— Que maneira?
— Essa maneira de tomar decisões
vitais instantaneamente. Como fez. O
modo como faz perguntas, o modo como
ouve — meu Deus, como o senhor ouve!
— e depois toma uma decisão
irrevogável.
Buckman respondeu, dizendo a
verdade:
— Não sei dizer, porque tenho tão
pouco contato com outros tipo sete.
— Obrigado — disse Jason.
Estendeu a mão, que Buckman apertou.
— Obrigado pelo lanche— Parecia
agora estar calmo. Controlado. E muito
aliviado.
— É só ir andando por aqui? Como
faço para chegar à rua?
— Vamos ter que segurá-lo aqui até
de manhã — disse Buckman. — É uma
regra da casa: os suspeitos nunca são
soltos à noite. Acontece muita coisa na
rua depois do escurecer. Vamos lhe dar
um quarto com uma cama; só que você
terá que dormir vestido. Às oito da
manhã vou pedir para Peggy escoltá-lo
até a porta principal da Academia. —
Apertando um botão no interfone, disse:
— Peg, leve o Sr. Taverner para
detenção por hoje; tire-o de lá amanhã
As oito em ponto. Certo?
— Sim, Sr. Buckman.
— Abrindo os braços e sorrindo, o
general Buckman disse:
— É só isso. Nada mais.
17
Sr. Taverner — disse Peggy com
insistência. — Queira me acompanhar;
vista-se e siga-me até o escritório
externo. Vou estar esperando lá. Basta
passar pela porta azul e branca.
Um pouco do lado, o general
Huckman ouvia a voz da moça; uma voz
bonita e viva que lhe soava bem; achou
que devia soar igualmente bem para
Taverner.
— Mais uma coisa— disse Huckman,
detendo Taverner que, sonolento e com
as roupas amarrotadas, dirigia-se para a
porta azul e branca.
— Não posso renovar seu passe
policial se alguém mais baixo o anular.
Compreende? O que você tem que fazer
é um requerimento dirigido a nós, de
acordo com todas as regras legais,
pedindo um novo conjunto de
documentos. Isso vai implicar um
interrogatório intensivo, mas — deu uma
palmada no braço de Jason — um tipo
seis aguenta.
— Certo — disse Jason. Saiu do
escritório, fechando atrás de si a porta
azul e branca.
Buckman ligou o interfone:
— Herb, mande colocar nele um
microtrans e uma bomba heterostática
tipo 80. Assim poderemos segui-lo, e se
for necessário, destruí-lo a qualquer
momento.
— Quer um monitor de voz também?
— perguntou Herb.
— Sim, se você conseguir colocá-lo
na garganta dele sem que ele perceba.
— Vou pedir para Peg colocá-lo —
disse Herb, e desligou.
“Será que um joão-ninguém
qualquer”, pensou Buckman, “entre
McNulty e eu, poderia ter conseguido
mais informações desse homem? Não”,
concluiu. “Porque ele simplesmente não
sabe. O que precisamos fazer é esperar
que ele mesmo descubra... e então estar
junto a ele, seja física ou
eletronicamente, quando isso acontecer.
Como eu lhe disse.”
“Mas ainda tenho a impressão de que
podemos muito bem ter topado por
acaso com alguma coisa que os tipo seis
estão fazendo em grupo, apesar da
costumeira hostilidade que têm entre si.”
Pressionou mais uma vez o botão do
interfone:
— Herb, mande seguir vinte e quatro
horas por dia aquela cantora Heather
Hart, ou seja lá como for o nome dela. E
pegue no Arquivo Central os dossiês de
todos os chamados “tipo seis”.
— Compreende?
— Será que os computadores estão
programados para isso? — perguntou
Herb.
— Provavelmente não — disse
Buckman, desanimado.
— Ninguém deve ter pensado nisso
dez, anos atrás, quando Dill-Temko
estava vivo, inventando outras formas de
vida ainda mais estranhas para rodar por
aí. •— “Como nós, os tipos sete”,
pensou, irônico. — E com certeza eles
não pensariam nisso hoje em dia, agora
que os tipo seis falharam politicamente.
Concorda?
— Concordo — disse Herb —, mas
vou tentar assim mesmo.
— Se os computadores estiverem
programados para isso — disse
Buckman —, quero que sigam vinte e
quatro horas por dia todos os tipo seis.
E mesmo que não peguemos todos,
podemos ao menos marcar bem aqueles
que detectarmos.
— Está falado, Sr. Buckman — e
Herb desligou.
18
— Até logo e boa sorte, Sr. Taverner
— disse a policial chamada Peg na
ampla entrada do grande edifício
cinzento da Academia.
— Obrigado — disse Jason. Inspirou
profundamente o ar da manhã, mesmo ar
infestado de fumaça. “Consegui sair”,
pensou. “Eles poderiam ter me indiciado
por mil coisas, mas não fizeram nada.”
Uma voz feminina bem gutural falou
de perto.
— E agora, baixinho?
Nunca em sua vida fora chamado de
“baixinho”; tinha mais de um metro e 80.
Virou-se, pronto para responder alguma
coisa, e viu então a criatura que lhe
dirigira a palavra.
Ela também tinha bem um metro e 80:
neste aspecto eram iguais. Mas em
contraste com ele, usava uma calça
negra colante, uma camisa de couro
vermelha com franjas, brincos de aro de
ouro e uma corrente na cintura. E
sapatos de salto fino.
“Nossa Senhora”, pensou ele,
estarrecido. “Cadê o chicote dela?”
— Falou comigo? — perguntou ele.
— Sim. — Ela sorriu, mostrando
seus dentes decorados em ouro com os
signos do zodíaco.
— Eles enfiaram três objetos em
você; achei que deveria saber.
— Eu sei — disse Jason,
perguntando-se quem ou o que era ela.
— Um deles — disse a moça — é
uma bomba H em miniatura. Pode ser
detonada por um sinal de rádio emitido
deste edifício. Sabia disso?
Dessa vez ele respondeu;
— Não. Não sabia.
— É assim que ele faz as coisas —
disse a garota. — Meu irmão... Fala com
você muito educadamente, suave,
meloso, e aí manda um dos homens dele
— ele tem um monte de subordinados —
enfiar essas porcarias na pessoa antes
que ela saia do edifício.
— Seu irmão? — disse Jason. — O
general Buckman.
Percebia agora a semelhança entre os
dois. O nariz fino e alongado, os
pômulos salientes, o pescoço tipo
Modigliani, de fina beleza. “Muito
aristocrático”, pensou. Ambos o
impressionavam.
“Então ela também deve ser tipo
sete”, pensou. Ficou outra vez
desconfiado, alerta, todo eriçado ao
confrontá-la.
— Eu os tiro de você — disse ela,
ainda sorrindo e mostrando, como o
general Buckman, seus dentes de ouro.
— Muito bem — disse Jason.
— Vamos para o meu mosquinha. —
Foi andando em passos ágeis; ele foi
atrás, desajeitado.
Logo estavam sentados lado a lado
no assento dianteiro do mosquinha.
— Meu nome é Alys — disse ela.
— Sou Jason Taverner—disse ele—
, cantor e animador de tevê.
— É mesmo? Não assisto a tevê
desde que tinha nove anos.
— Não perdeu grande coisa — disse
ele. Não sabia se dizia aquilo com
ironia ou não; “e francamente", pensou,
“estou cansado demais para me
preocupar com isso”.
— Essa bomba H é do tamanho de
uma semente — disse Alys. — E fica
grudada como um carrapato debaixo da
pele. Normalmente, mesmo que você
soubesse que estava escondida em
algum lugar do seu corpo nunca poderia
achá-la. Mas eu peguei isto emprestado
da Academia. —
— Mostrou-lhe uma lâmpada em
forma de tubo. — Isso aqui acende
quando se aproxima de uma bombasemente.
Começou de imediato, com eficiência
quase profissional, a percorrer o corpo
dele com a lâmpada.
Ao chegar no pulso esquerdo de
Jason a lâmpada acendeu.
— Também tenho aqui o equipamento
que eles usam para remover essas
bombinhas — disse Alys. Tirou da
bolsa um estojinho metálico e o abriu.
— Quanto antes a tirarmos de você,
melhor. — Dizendo isso retirou do
estojo um instrumento cortante.
Levou dois minutos cortando com
destreza, ao mesmo tempo que borrifava
no corte um líquido analgésico. E logo
estava na sua mão. Como ela dissera,
era do tamanho de uma sementinha.
— Obrigado — disse ele. — Por
tirar o espinho da minha pata.
Alys riu, contente; guardou o
instrumento cortante no estojo, e este na
sua enorme bolsa de pano.
— Está vendo — disse — ele nunca
faz essas coisas; sempre é algum
funcionário. Assim pode se manter à
distância, com senso ético intacto, como
se o negócio não tivesse nada a ver com
ele. Acho que isso é o que mais odeio
nele. Refletiu um momento. Eu realmente
o odeio.
— Tem mais alguma coisa em mim
que você possa tirar fora? — perguntou
Jason.
Eles tentaram, isto é, Peg, que é
especializada em técnicas policiais,
tentou colar um monitor de voz na sua
goela; mas acho que não conseguiu. —
Examinou o pescoço dele com cuidado.
— Não, não colou; deve ter caído.
Ótimo; este ponto está resolvido. Mas
você ainda tem um microtrans em algum
lugar; vamos precisar de uma luz
estroboscópica para captar as emissões
dele. —
Vasculhou o porta-luvas do
mosquinha e tirou um disco
estroboscópico a pilha. — Acho que
consigo encontrá-lo — disse, ligando o
aparelho.
Acabou encontrando o microtrans no
punho da manga esquerda. Alys furou-o
com um alfinete, e pronto.
— Há mais alguma coisa? —
perguntou Jason.
— Possivelmente uma minicâmara.
Uma câmara minúscula que transmite
imagens para os monitores da
Academia. Mas não vi ninguém colocar
uma em você; acho que podemos nos
arriscar e esquecer isso.
— Virou-se para examiná-lo. —
Quem é você? — perguntou. — Já que
estamos no assunto.
— Uma não-pessoa — disse Jason.
— O que significa isso?
— Significa que não existo.
— Fisicamente?
— Não sei — respondeu ele, com
sinceridade. — “Talvez”, pensou, “se eu
tivesse me aberto mais com o irmão
dela, o general de Polícia... Talvez ele
tivesse dado um jeito. ” Afinal, Félix
Buckman era um tipo sete. O que quer
que isso significasse.
Mas ainda assim Buckman estava na
direção certa; tinha descoberto uma
série de coisas. E em muito pouco
tempo: o tempo de tomar um lanche de
madrugada e saborear um charuto.
— Então você é Jason Taverner —
disse a moça. — O homem que McNulty
estava tentando em vão agarrar. O
homem sobre quem não há informações
em nenhum lugar do mundo. Nem
certidão de nascimento, nem ficha
escolar, nem...
— Como você sabe de tudo isso?
— Dei uma olhada no relatório de
McNulty — disse Alys em tom alegre.
— No escritório de Félix. Achei
interessante.
— Então por que você me perguntou
quem eu sou?
— Quis ver se você sabia. Já tinha
ouvido a história de McNulty; agora
queria ouvir a sua versão. A versão
contra— tira, como eles dizem.
— Não posso acrescentar mais nada
ao que McNulty já sabe — disse Jason.
— Não é verdade. — Começara
agora a interrogá-lo exatamente da
mesma maneira como o irmão havia
feito pouco tempo antes. Num tom de
voz baixo e informal, como se algo
apenas casual estivesse em pauta; e logo
fixando seu rosto com intensidade, e
com gestos de mão graciosos, como se
ao falar com ele estivesse também
dançando um pouco. Dançando sozinha.
“A beleza dançando com a beldade”,
pensou; achava-a excitante fisicamente,
sexualmente. E já tinha se fartado de
sexo pelos próximos dias; Deus era
testemunha disso.
— Está certo — disse ele. — Sei de
mais coisas.
— Mais do que você contou a Félix?
Ele hesitou. E isso já foi uma
resposta.
— Sim — disse Alys.
Ele deu de ombros. Aquilo já era
óbvio.
— Sabe de uma coisa? — disse Alys.
— Você não gostaria de ver como vive
um general de Polícia? Ver sua casa?
Seu castelo de um bilhão de dólares?
— Você me levaria lá? — perguntou
ele, incrédulo. — Se ele descobrisse...
Fez uma pausa. —
“Aonde esta mulher está me
levando?”, pensou. Para um terrível
perigo. Tudo nele sentia isso; ficou de
repente alerta e cauteloso. Sentiu sua
própria esperteza percorrer lhe o corpo
todo, impregnando cada parte do seu ser
somático. Seu corpo sentia que nesse
momento, mais do que nunca, tinha que
tomar cuidado.
— Você tem acesso legal à casa
dele? — perguntou, acalmando-se; fez
com que sua voz saísse natural, sem
qualquer tensão incomum.
— Moro com ele, que diabo — disse
Alys. — Somos gêmeos; somos muito
próximos. Incestuosamente próximos.
— Não quero me introduzir num
acordo já estabelecido entre você e o
general Buckman.
— Um acordo estabelecido entre
Felix e eu? — ela deu uma risada aguda.
— Felix e eu não poderíamos colaborar
nem para pintar ovos de Páscoa. Venha;
vamos zarpar lá para casa. Temos
muitos objetos interessantes, meus e
dele. Jogo de xadrez medieval de
madeira maciça, antigas xícaras de
porcelana da Inglaterra. Alguns lindos
selos antigos americanos, impressos
pela Casa da Moeda Nacional. Você se
interessa por selos?
— Não.
— Armas?
Ele hesitou.
— De certa forma. — Lembrou-se de
sua arma; era a segunda vez em vinte e
quatro horas que teve uma razão para
lembrar-se dela.
Olhando bem para ele, Alys disse:
— Sabe, até que para um baixinho
você não é feio. E você é mais velho do
que eu gosto...
— Mas não muito mais velho. Você é
um tipo seis, não é?
Ele assentiu.
— E então? — disse Alys. — Não
quer ver o castelo de um general de
Polícia?
— Tudo bem — disse Jason. Eles o
encontrariam em qualquer lugar que
fosse, assim que o desejassem. Com ou
sem um microtrans escondido na manga.
Alys Buckman deu a partida no seu
mosquinha, girou o volante e apertou o
pedal; o mosquinha subiu zunindo,
fazendo um ângulo de 90 graus. “Motor
de polícia”, Jason percebeu; o dobro da
potência dos modelos domésticos.
— Há uma coisa — disse Alys,
desviando-se do trânsito — que quero
que fique bem clara na sua cabeça. —
Olhou para ele para certificar-se de que
ele a ouvia.
— Não tome nenhuma iniciativa
sexual comigo. Se você fizer isso, eu o
mato. — Deu uma palmada no cinto e ali
ele viu o tubo usado como arma pela
polícia; azul e negro, brilhava ao sol da
manhã.
— Visto e entendido — disse ele, e
sentiu-se apreensivo. Já não gostava das
roupas de couro e adereços de ferro que
ela usava; ali estavam envolvidas
profundas características fetichistas,
coisa que nunca o havia atraído, li agora
esse ultimato. Qual era a dela,
sexualmente? Estaria com a cabeça em
outras mulheres? Seria lésbica?
Respondendo a essa pergunta não
formulada, Alys disse calmamente:
— Toda a minha libido, minha
sexualidade, está ligada a Felix.
— Ao seu irmão? — Amedrontado,
sentiu uma fria incredulidade.
— Como assim?
— Há cinco anos temos uma relação
incestuosa — disse Alys, manobrando
com destreza o mosquinho no intenso
trânsito matinal de Los Angeles. —
Temos um menino de três anos. Está
com uma babá e uma governanta lá em
Key West, na Flórida. Seu nome é
Barney.
— E você está me contando isso? —
disse ele, pasmo de espanto.
— Contando para uma pessoa que
você nem conhece?
— Ah, eu conheço você muito bem,
Jason Taverner — disse Alys; apontou o
mosquinha para cima e chegou numa
pista aérea mais elevada, de maior
velocidade. O trânsito agora diminuíra;
estavam deixando L. A.
— Há anos que sou sua fã e assisto a
seu show das terças à noite na tevê.
Também tenho discos seus, e uma vez o
vi cantar ao vivo no Salão das
Orquídeas do Hotel Saint Francis, em
São Francisco.
Deu-lhe um breve sorriso. — Felix e
eu somos colecionadores... e uma das
coisas que coleciono são discos de
Jason Taverner. — Seu sorriso ousado,
frenético, aumentou. — Nestes últimos
anos adquiri todos os nove.
Jason disse com a voz engasgada e
trêmula:
— Dez. Já lancei dez LPs. Os últimos
com trilhas de projeção luminosa.
Nesse caso me falta um — disse
Alys, amável.
— Vire-se e dê uma olhada no banco
de trás.
Virando-se, viu sobre o assento
traseiro seu primeiro disco: Taverner e
os Blue, Blue, Blues.
— Sim — disse ele, pondo o disco
no colo.
— Tem mais um — disse Alys. —
Meu favorito.
Jason viu então um disco com a capa
muito usada, o Divirta-se com
Taverner.
— Sim, esse é o melhor que já
gravei.
— Está vendo? — disse Alys. O
mosquinha agora descia em espiral em
direção a um conjunto de grandes casas
cercadas de grama e árvores.
— É esta casa.
19
Com as hélices agora na vertical, o
mosquinha pousou num local asfaltado
no centro do grande gramado. Jason mal
notou a casa: três andares, estilo
espanhol com grades de ferro batido nas
varandas, teto de telhas vermelhas,
paredes de adobe ou de estuque, não
saberia dizer. Um grande casarão
rodeado de lindos carvalhos; fora
construído de modo a não destruir o
meio ambiente à sua volta, mas sim
mesclar-se com ele. A casa parecia
fazer parte do gramado, das árvores,
uma extensão no reino das coisas
fabricadas pelo homem.
Alys desligou o motor do mosquinha
e abriu com um chute a porta emperrada.
— Deixe os discos no carro e venha
comigo — disse, saindo para o
gramado.
Com relutância ele colocou os discos
de volta no carro e a seguiu, dando
largas passadas para alcançá-la; as
longas pernas da moça, em sua calça
negra colante, levavam-na com rapidez
para o enorme portão frontal da casa.
— Temos até cacos de vidro em cima
do muro. Para afastar os bandidos..,
Imagine, nos dias que correm. Esta casa
pertencia ao grande Ernie Till, ator de
faroestes. — Apertou um botão
embutido no portão e apareceu um
guarda particular em uniforme marrom,
que após um detido exame fez sinal com
a cabeça e ligou o mecanismo elétrico
que fazia o portão abrir-se deslizando
lateralmente.
Jason disse para Alys:
— O que você sabe? Sabe que sou...
— Você é fabuloso — disse Alys,
objetiva. — Há anos que sei disso.
— Mas você já esteve onde estive.
Onde sempre estou. Não aqui.
Tomando sou braço, Alys o conduziu
por um corredor coberto de telhas, e
descendo cinco degraus de tijolo
chegaram a uma sala de estar em plano
rebaixado, uma antiguidade naquela
época, mas belíssima.
Contudo, ele não deu a mínima para
nada daquilo; queria falar com ela,
descobrir o que ela sabia, e de que
forma chegara a saber. E o que aquilo
tudo significava.
— Lembra-se deste lugar? —
perguntou Alys.
— Não.
— Pois devia lembrar-se. Você já
esteve aqui.
— Não estive disse ele, cauteloso;
ela conquistara sua total credulidade
mostrando-lhe os dois discos. “Tenho
que pegar esses discos" . Pensou, para
mostrar para — sim, para quem? Para o
general Buckman? E se eu mostrar a ele,
o que vou conseguir com isso?
— Um comprimido de mescalina?
Perguntou Alys, dirigindo-se para o
armário das drogas, um grande gabinete
de nogueira lustrada a mão, montado no
final do bar em couro e latão do outro
lado da sala.
— Um pouquinho — disse ele. Mas
acrescentou algo que surpreendeu até a
si próprio:
— Quero conservar as ideias claras.
Alys veio trazendo uma pequenina
bandeja esmaltada própria para drogas,
com um copo de cristal e uma cápsula
branca.
— Coisa boa. Amarelo Número Um
da Harvey, importado da Suíça a granel
e embalado em Bond Street. —
acrescentou: — E nada forte. É só
corante.
Obrigado. — Aceitou o copo de água
e a cápsula branca e tomou a mescalina.
— Você não vai tomar? —
perguntou, sentindo-se — tardiamente
— desconfiado.
— Já estou viajando — disse Alys
com amabilidade, sorrindo com seus
dentes de ouro decorados.
— Não percebeu? Acho que não;
bem, você nunca me viu em outro
estado.
— Você sabia que eu seria trazido
para a Academia de Polícia de Los
Angeles? — perguntou Jason. — “Deve
ter sabido”, pensou, “porque você
estava com os meus dois discos. Se não
soubesse, suas chances de estar com
aqueles discos seriam praticamente zero
em um bilhão. ”
— Escutei algumas transmissões
deles — disse Alys; virou-se e começou
a andar pela sala, inquieta, batendo na
bandejinha esmaltada com suas longas
unhas.
— Por acaso peguei a conversa entre
Las Vegas e Felix. Gosto de escutar as
conversas dele às vezes, quando ele está
em serviço. Nem sempre, mas... —
apontou então para um aposento que
ficava ao lado de um corredor aberto —
quero ver uma coisa; vou mostrar para
você, se for mesmo o que Felix disse.
Ele a seguiu, mil perguntas zumbindo
em sua mente. “Se ela pode atravessar”,
pensou, “ir de cá para lá, como parece
que fez agora...”
Ele disse que estava na gaveta do
meio da escrivaninha — disse Alys,
pensativa, parando no centro da
biblioteca; estantes de livros
encadernados em couro elevavam-se até
o teto do aposento. Várias
escrivaninhas, um jogo de pequeninas
xícaras de vidro, vários jogos de xadrez
antigos, dois velhos baralhos de Taro...
Alys dirigiu-se a uma escrivaninha
colonial, abriu uma gaveta e espiou.
— Ah! — exclamou, pegando um
envelope translúcido.
— Alys — Jason começou, mas ela o
interrompeu estalando os dedos de
súbito.
— Fique quieto enquanto vejo isto.
— Pegou da mesa uma grande lente de
aumento e examinou o envelope.
— É um selo — explicou. — Vou
tirá-lo para que você o veja. — Com
uma pinça filatélica tirou o selo do
envelope com cuidado e colocou-o
sobre uma superfície de feltro na beira
da mesa.
Obedecendo, Jason olhou o selo pela
lente. Pareceu-lhe ser um selo como
outro qualquer, exceto porque, ao
contrário dos selos modernos, fora
impresso em uma só cor.
— Veja o desenho dos animais —
disse Alys. — O rebanho de bois. É
absolutamente perfeito; cada linha é
exata. Este selo nunca foi... — Segurou a
mão dele quando ele ia tocar no selo.
— Não, não! Nunca toque num selo
com a mão; use sempre a pinça.
— É muito valioso? — ele
perguntou.
— Nem tanto. Mas quase nunca são
vendidos. Eu lhe explicarei um dia este
aqui é um presente do Felix, porque ele
me ama. E porque, diz ele, sou boa de
cama.
— É um bonito selo — disse Jason,
desconcertado. Devolveu a ela a lente
de aumento.
— Felix me falou a verdade; é um
bom exemplar. Perfeitamente centrado
carimbo leve que não atinge o centro da
figura, e.., Com ajuda da pinça virou o
selo e colocou-o no feltro com a
estampa para baixo. No mesmo instante
sua expressão mudou; seu rosto brilhou,
quente de raiva, e exclamou:
— Aquele filho da puta!
— O que houve?
— Uma manchinha. -Tocou com a
pinça o canto do selo.
— Bem, de frente não se vê. Mas o
Felix é assim. Bom, de qualquer forma
provavelmente é falso. Só que Felix
sempre dá um jeito de não comprar
falsificações. Tá bem, Felix, é um a zero
para você. —
Pensativa, disse:
— Será que ele não tem outro na
coleção dele? Eu poderia trocá-los.
— Foi até um cofre embutido na
parede, mexeu um pouco na combinação
numérica, abriu-o enfim e tirou um
álbum enorme e pesado, que arrastou até
a escrivaninha.
Felix não sabe que eu sei a
combinação desse cofre. Portanto não
conte a ele. — Com cuidado, virou as
grossas páginas até chegar numa que
mostrava quatro selos.
— Nenhum negro de um dólar —
disse. — Mas ele pode tê-lo escondido
em algum outro lugar.
— Talvez até lá na Academia. —
Fechou o álbum e o recolocou no cofre
de parede.
— A mescalina está começando a me
afetar — disse Jason. Suas pernas
doíam; isso sempre era um sinal de que
a mescalina começava a agir no seu
sistema.
— Vou me sentar — disse e
conseguiu alcançar uma poltrona de
couro antes que suas pernas cedessem.
Ou talvez pareciam que iam ceder; na
verdade, não cederam, era uma ilusão
induzida pela droga. Mesmo assim, a
sensação era real.
— Gostaria de ver uma coleção de
caixas de rapé simples e ornamentadas?
— perguntou Alys. — Felix tem uma
coleção magnífica. Todas antigas, em
ouro, prata, metais, com gravações,
cenas de caça. Não? — Sentou-se em
frente a ele, cruzou suas longas pernas
cobertas de negro; balançava num pé o
sapato de salto.
— Uma vez Felix comprou uma caixa
de rapé num leilão, pagou caríssimo e a
trouxe para casa. Limpou o rapé que
havia dentro e encontrou uma
alavanquinha que funcionava com uma
mola, no fundo da caixa; ou melhor,
naquilo que parecia ser o fundo. A
alavanca funcionava quando se apertava
um parafusinho minúsculo. Ele levou o
dia todo para achar uma chavinha que
coubesse no parafuso. Mas no fim
conseguiu. — Alys riu.
— E o que aconteceu? — Jason
perguntou.
— No fundo da caixa havia uma
plaquinha escondida. Ele tirou a
plaquinha. — Ela tornou a rir, fazendo
brilhar os dentes enfeitados.
— No fim era uma figura
pornográfica de duzentos anos atrás. De
uma garota copulando com um potrinho.
Pintada a oito cores. Valeria, digamos,
cinco mil dólares.
— Não é muito, mas realmente nos
deliciou. Quem vendeu, é claro, não
sabia o que havia dentro.
— Sei — disse Jason.
— Você não se interessa muito por
caixas de rapé disse Alys, ainda com um
sorriso.
— Gostaria... de vê-la — ele disse.
E em seguida falou: — Alys, você sabe
a respeito de mim; sabe quem eu sou.
Por que ninguém mais sabe?
— Porque eles nunca estiveram lá.
— Onde?
Alys massageou as têmporas, estalou
a língua e olhou fixamente em frente,
como se perdida em seus pensamentos.
Como se mal o ouvisse.
— Você sabe — disse, parecendo
aborrecida e um tanto irritada.
— Meu Deus, homem, você viveu lá
42 anos. O que posso lhe dizer sobre
esse lugar que você já não saiba?
— Olhou para ele então, um sorriso
travesso nos grossos lábios.
— Como cheguei até aqui? — ele
perguntou.
— Você... — ela hesitou. — Não sei
se devo lhe contar.
Bem alto, ele perguntou:
— Por que não ?
— Deixe que isso venha com o
tempo. — Fez com a mão um gesto
desencorajado.
— Com o tempo, com o tempo. Veja,
rapaz você já foi muito atingido; você
quase foi enviado para um CTF, e sabe
de que tipo. Graças àquele imbecil do
McNulty e ao meu querido irmão. Meu
irmão, o general de Polícia. — Sua face
tornou-se feia com a repulsa, mas logo
deu mais uma vez seu sorriso
provocante. Seu sorriso de dentes de
ouro, preguiçoso, convidativo.
Jason falou:
— Quero saber onde estou.
— Você está na minha biblioteca, na
minha casa. Está em perfeita segurança;
já tiramos todos os percevejos
eletrônicos de você. E ninguém vai
entrar aqui. Sabe de uma coisa?
— Ficou em pé de um pulo, como um
animal superágil; sem querer ele recuou.
— Você já experimentou fazer por
telefone? — perguntou, com os olhos
brilhantes de expectativa.
— Fazer o quê?
— A rede — disse Alys. — Nunca
ouviu falar da rede telefônica?
— Não — ele disse. Mas já tinha
ouvido a respeito.
— Seus aspectos sexuais — isto é, os
de qualquer pessoa — são conectados
eletronicamente, e ampliados até o
máximo que você consiga aguentar.
Acaba viciando, porque é intensificado
eletronicamente. Tem pessoas que
mergulham tanto na coisa que não
conseguem mais sair; toda a vida deles
gira em torno daquele ritual semanal —
que nada, às vezes diário! — de ligar-se
à rede telefônica. São telefones comuns,
com tela, que funcionam com cartão de
crédito, de modo que você não paga
nada ao ligar; os patrocinadores te
mandam a conta uma vez por mês. Se
você não pagar eles cortam seu telefone
da rede.
— Quantas pessoas — ele perguntou
— estão envolvidas nisso?
— Milhares.
— De cada vez?
Alys fez que sim.
— A maioria já está nessa há dois,
três anos. Por causa disso se deterioram
física e mentalmente. É que a parte do
cérebro onde se experimenta o orgasmo
vai sendo aos poucos destruída. Mas
não despreze essas pessoas; algumas das
melhores e mais sensíveis cabeças do
planeta estão envolvidas. Para eles é
uma comunhão sagrada. Só que é fácil
reconhecer um usuário da rede: têm uma
aparência debochada, velha, gorda,
apática. Isto é, apática quando estão num
intervalo entre as sessões de orgia
telefônica, claro.
— E você faz isso? — Ela não lhe
parecia debochada, velha, gorda nem
apática.
— Uma vez ou outra. Mas nunca
fiquei viciada; sempre corto a ligação
com a rede bem a tempo. Quer
experimentar?
— Não.
— Está certo — disse Alys
calmamente, sem se dar por vencida.
— O que você gostaria de fazer?
Temos uma boa coleção de Rilke e
Brecht em discos com tradução
interlinear. Outro dia Felix chegou em
casa com um álbum quadrifônico com as
sete sinfonias de Sibelius; é muito bom.
Para o jantar Emma está preparando
pernas de rã... Felix adora pernas de rã
e escargots. Ele sempre come em bons
restaurantes franceses e bascos, mas
hoje...
— Quero saber — Jason interrompeu
— onde estou.
— Você não consegue simplesmente
ser feliz?
Com dificuldade ele se levantou e a
encarou, em silêncio.
20
A mescalina começara a afetá-lo
furiosamente; a sala encheu-se de cores
brilhantes, e a perspectiva alterou-se
tanto que o teto lhe pareceu ter um
milhão de quilômetros de altura. E ao
olhar para Alys, viu o cabelo dela tomar
vida... como o cabelo da Medusa,
pensou com medo.
Ignorando-o, Alys continuou:
— Felix gosta muito da cozinha
basca, mas eles põem tanta manteiga na
comida que lhe dá cólicas de estômago.
Ele também tem uma boa coleção de
Histórias Fantásticas, e adora beisebol.
E vamos ver... —
Andava pela sala, batendo um dedo
nos lábios enquanto refletia. — Ele se
interessa pelas coisas ocultas. Você
também?
— Estou sentindo uma coisa — disse
Jason.
— O quê?
— Que não consigo escapar.
— É a mesca. Vá com calma.
— Eu... — Parou para refletir; estava
com um peso gigantesco no cérebro, mas
através dele passavam raios de luz como
os insights da iluminação budista,
brilhando aqui e ali.
— Minhas coleções — disse Alys —
estão na sala ao lado, que chamamos de
biblioteca. Este aqui é o escritório. Na
biblioteca estão os livros de advocacia
de Felix... Sabia que ele é advogado,
além de general de Polícia?
— E já fez alguns bons trabalhos,
tenho que admitir. Sabe o que ele fez
uma vez?
Jason não conseguiu responder; só
conseguia ficar em pé. Inerte, ouvia os
sons mas não o significado. Deles.
— Durante um ano Felix foi o
encarregado legal de um quarto dos
campos de trabalhos forçados da Terra.
E descobriu uma lei obscura aprovada
anos atrás quando os campos de
trabalhos forçados mais pareciam
campos de extermínio, com um monte de
prisioneiros negros.
Bem, o fato é que ele descobriu que
essa lei autorizava os campos a
funcionarem apenas durante a Segunda
Guerra Civil. E ele tinha poder para
fechar qualquer campo, ou todos, a
qualquer momento que julgasse ser do
interesse público. Esses negros e os
estudantes que estiveram trabalhando
nos campos são superfortes e
resistentes, devido aos anos de trabalho
pesado. Não são como os estudantes
fracos, pálidos e pegajosos que vivem
debaixo das universidades.
E depois de outras pesquisas ele
descobriu outro regulamento obscuro:
qualquer campo que não esteja dando
lucro deve, ou melhor, devia ser
fechado. Portanto, Felix alterou a
quantia — muito pequena, é claro —
que era paga aos detentos. Assim a
única coisa que ele teve que fazer foi
aumentar o pagamento deles, mostrar
que os livros estavam no vermelho, e
pronto — podia fechar os campos.
— Alys riu.
Ele tentou falar, mas não conseguiu.
Sua mente rodopiava como uma bola de
borracha; afundava e subia, mais
devagar, mais depressa; sumindo e
depois brilhando; os raios de luz
passavam através dele penetrando cada
parte do seu corpo.
— Mas a grande coisa que Felix fez
— disse Alys foi com os comunas de
estudantes debaixo das universidades
queimadas. Muitos ficam desesperados
para conseguir comida e água; sabe
como é, os estudantes tentam chegar até
a cidade e saem atrás de comida,
roubando e saqueando. Bem, a polícia
tem um monte de agentes entre os
estudantes, agitando para provocar uma
confrontação final com a polícia... que
naturalmente a polícia e a GN esperam
com ansiedade. Mas veja...
— Eu vejo — disse ele — um
chapéu.
— Veja que Felix tentou evitar
qualquer tipo de confrontação violenta.
Mas para isso tinha que conseguir dar
mantimentos aos estudantes, percebe?
— O chapéu é vermelho — disse
Jason. — Como as suas orelhas.
Como Felix tinha o posto de
marechal na hierarquia da polícia, ele
tinha acesso a relatórios de informantes
sobre a condição de cada comuna
estudantil. Sabia quais estavam
fracassando e quais estavam dando
certo. Seu trabalho era concluir a partir
de um mar de relatórios os fatos mais
importantes: quais comunas estavam
indo à falência e quais não estavam.
Depois que fez a lista das que estavam
em dificuldades, outros policiais de alta
patente encontraram-se com ele para
decidir como poderiam pressionar essas
comunas para que seu fim chegasse mais
rápido. Agitação derrotista por agentes
da polícia, sabotagem dos suprimentos
de alimento e água. Incursões
desesperadas — ou melhor, sem
esperança alguma — fora da área do
campus em busca de auxílio. Por
exemplo, uma vez na Universidade de
Colúmbia eles fizeram um plano para
invadir o Campo de Trabalho Harry S.
Truman, libertar os prisioneiros e armálos; mas aí até mesmo Felix teve que
gritar “Intervenção!”.
Bem, de qualquer forma a tarefa de
Felix era determinar a tática a ser usada
com cada comuna. Muitas e muitas vezes
ele aconselhou que não se tomasse
medida alguma.
Por isso, é claro, os linha-dura o
criticavam, exigiam que fosse demitido
de seu posto. — Alys fez uma pausa.
— Pense que naquela época ele era
um marechal de polícia da ativa.
— Seu vermelho — disse Jason — é
fantídulo.
— Eu sei. — Alys apertou os lábios.
— Ei, cara, você não consegue se
segurar? Estou tentando contar uma
coisa para você. Felix foi rebaixado de
marechal para general da Polícia,
porque ele providenciava, sempre que
possível, que nas comunas os estudantes
tivessem banho, comida, remédios,
camas. Como fez com os campos de
trabalhos forçados na sua jurisdição.
Por isso agora ele é só general. Mas
eles o deixaram em paz. Já fizeram com
ele tudo que podiam e mesmo assim ele
ainda tem uma alta patente.
— Mas e o seu incesto — disse
Jason. — E se? — Fez uma pausa; não
conseguia lembrar o resto da sentença.
— Se — disse, e isso parecia tudo;
sentiu um furioso brilho vindo do fato de
que tinha conseguido transmitir sua
mensagem para ela.
— Se — disse mais uma vez, e o
brilho interno tornou-se violento, com
uma fúria feliz. Soltou uma exclamação
em voz alta.
— Você quer dizer e se os marechais
soubessem que Felix e eu temos um
filho? O que eles fariam?
— Eles fariam — disse Jason. —
Poderíamos ouvir um pouco de música?
Ou então me dê... — Suas palavras
cessaram; nenhuma palavra entrava mais
no seu cérebro.
— Puxa! — exclamou. — Minha mãe
não estaria aqui. Morte.
Alys inspirou profundamente e deu
um suspiro.
— Está bem, Jason — disse ela. —
Desisto de tentar conversar com você.
Até que a sua cabeça volte no lugar.
— Fale — ele disse.
— Gostaria de ver meus desenhos de
SM?
— O que é isso?
— Desenhos muito estilizados de
garotas amarradas, e homens...
— Posso me deitar? — ele disse. —
Minhas pernas não estão funcionando.
Acho que minha perna direita vai até a
lua. Acho que eu a quebrei enquanto
estava em pé.
— Venha aqui. — Ela o guiou passo
a passo do escritório até a sala de estar.
— Deite no sofá. — Com angustiosa
dificuldade ele se deitou.
— Vou pegar uma Thorazina para
você; vai cortar o efeito dessa zorra.
— É uma zorra mesmo — disse ele.
— Deixe ver... Onde foi mesmo que
coloquei aquele negócio? Nunca preciso
usar, mas tenho sempre à mão para um
caso assim... Que diabo, mas você não
consegue tomar uma única cápsula de
mesca e continuar sendo alguma coisa?
Eu tomo vinte de uma vez!
— Mas você é vasta — disse Jason.
— Vou subir e volto já.
Alys afastou-se em direção a uma
porta que ficava a muita distância; por
um longo, longo tempo ela foi
diminuindo — como ela conseguia?
Parecia incrível que ela pudesse
encolher de tamanho até quase nada — e
então desapareceu. Com isso ele sentiu
um terrível medo. Sabia que estava
agora só, sem-auxílio.
“Quem vai me ajudar? ”, perguntouse.
“Tenho que saltar fora desses selos e
xícaras e caixas de rapé e desenhos de
SM e redes telefônicas e pernas de rã
tenho que voltar para aquele mosquinha
tenho que ir embora e voltar para onde
conheço voltar para a cidade talvez com
Ruth Rae se eles já soltaram ela ou
talvez até com Kathy Nelson esta mulher
é demais para mim e o irmão dela
também e o filho incestuoso deles na
Flórida chamado o quê mesmo? ”
Levantou-se cambaleante, percorreu
um tapete de onde saltavam um milhão
de jorros de pigmento puro à medida
que ele pisava, esmagando-o com seus
poderosos sapatos; finalmente tropeçou
na porta fronteira do quarto. O quarto
que balançava todo.
A Luz do sol.
Estava do lado de fora.
O mosquinha.
Caminhou vacilante até ele.
Entrou e sentou-se direção,
desnorteado com a quantidade de
botões, alavancas, volantes, pedais,
mostradores.
— Por que ele não anda? — falou
alto. — Vamos, ande! — disse,
impulsionando o assento para a frente.
— Ela não vai me deixar ir embora? —
perguntou ao mosquinha.
As chaves. É claro que não andava;
não tinha chave.
O casaco dela no banco de trás; ele
havia visto. E também a grande bolsa de
pano. É lá, as chaves estão na bolsa
dela. É lá.
Os dois discos, Taverner e os Blue,
Blue, Blues. E o melhor de todos,
Divirta-se com Taverner. Com
dificuldade conseguiu pegar os discos e
colocar os dois no assento vazio ao seu
lado.
“Tenho a prova aqui”, percebeu.
“Está aqui nestes discos e está aqui na
casa. Com ela. Tenho que achar a prova
aqui, se estiver em algum lugar está
aqui. Em nenhum outro lugar. Nem o
general Sr. Felix Do-Que-Mesmo? Não
vai achar. Ele não sabe. Sabe tanto
quanto eu.”
Carregando os enormes discos,
correu de volta para a casa. Em torno
dele o jardim fluía, com altos
organismos em forma de árvore
respirando o ar do doce céu azul,
organismos que absorviam água e luz,
comiam a cor do céu...
Chegou ao portão, empurrou-o. O
portão não se mexeu. Botão.
Não encontrou.
Passo a passo. Tatear cada
centímetro com os dedos. Como no
escuro. “Sim”, pensou, “estou no
escuro.” Colocou no chão os discos
pesadíssimos, parou junto ao muro ao
lado do portão, devagar massageou a
superfície borrachosa do muro. Nada.
Nada.
O botão.
Ele o pressionou. Agarrou os discos,
parou em frente ao portão e o viu
deslizar incrivelmente devagar,
rangendo e protestando ao abrir-se.
Apareceu um homem de uniforme
marrom com uma arma na mão. Jason
disse:
— Precisei voltar ao mosquinha para
buscar uma coisa.
— Perfeitamente, senhor — disse o
homem de uniforme marrom. — Vi
quando o senhor saiu e sabia que iria
voltar.
— Ela é louca? — Jason perguntou.
— Não me encontro em condições de
saber, senhor — disse o homem, e
recuou, tocando a aba do quepe.
A porta da frente da casa continuava
aberta como ele a deixara. Caminhando
com dificuldade entrou, desceu alguns
degraus de tijolo e se encontrou de novo
na sala totalmente irregular, com seu teto
de um milhão de milhas.
— Alys! — chamou. Será que ela
estava na sala? Olhou com cuidado em
todas as direções; como fizera ao
procurar o botão, percorreu cada
centímetro visível da sala. O bar do
outro lado com o belo armário de
nogueira para guardar drogas... Sofá,
poltronas. Quadros nas paredes. Um
rosto num quadro zombou dele, mas
Jason não se importou; não poderia sair
da parede. O toca-discos quadrifônico.
Seus discos. Tocar seus discos.
Tentou levantar a tampa do tocadiscos, mas ela se recusava a abrir. Por
quê?, perguntou. Trancada? Não, era de
deslizar. Ele a fez deslizar fazendo um
terrível ruído, como se a tivesse
destruído. O braço do aparelho. O prato.
Tirou um dos discos da capa e o
colocou no prato.
Sei mexer com essas coisas — falou,
e ligou os amplificadores, colocando o
modo em fono. Um botão ativava o
braço. Ele o girou. O braço levantou; o
prato começou a girar com lentidão
angustiosa. O que estava acontecendo?
Velocidade errada? Não. Verificou:
trinta e três e um terço. O mecanismo do
braço por fim moveu-se e o disco caiu.
Ruído alto da agulha batendo no
sulco inicial. Crepitação de poeira,
estalidos. Típico dos velhos discos
quadrifônicos. Muito fáceis de riscar;
bastava um sopro para estragá-los.
Chiado ao fundo. Mais estalos.
Nada de música.
Levantou o braço com a agulha e o
colocou em outra faixa. Grande rangido
quando a agulha atingiu a superfície;
franziu o cenho, procurou o botão do
volume para diminuir o ruído. Ainda
nada de música. Nenhum som da voz
dele cantando.
O efeito da mescalina começava
agora a diminuir; sentiu-se sóbrio, uma
sensação fria e aguda. O outro disco.
Depressa o tirou da capa e o colocou no
prato em lugar do primeiro disco.
Som da agulha tocando a superfície
plástica. Chiados ao fundo e os
inevitáveis estalos e estouros. Nada de
música.
Os discos estavam em branco.
PARTE TRÊS
Que jamais se aliviem meus
tormentos;
Desde que a compaixão se foi
As lágrimas, suspiros e gemidos
privam
Meus dias sombrios de toda a
alegria.
21
Alys! — chamou Jason Taverner em
voz alta. Nenhuma resposta. “Será a
mescalina?”, perguntou-se. Foi
cambaleando do toca-discos até a porta
por onde Alys desaparecera.
Um longo corredor, um espesso
carpete de lã. No fim, uma escada com
corrimão de ferro batido levava ao
segundo andar.
Caminhou o mais rápido possível
pelo corredor até a escada e subiu os
degraus um a um.
O segundo andar. Um saguão tendo a
um lado uma antiga mesa Hepplewhite;
nela uma alta pilha de revistas Box. Isso,
estranhamente, captou sua atenção; quem
seria, Felix ou Alys, ou ambos, que lia
uma revista pornográfica de baixo nível
como a Box, feita para as massas? Foi
passando, ainda notando — certamente
por causa da mescalina — os pequenos
detalhes.
O banheiro; era lá que a encontraria.
— Alys — chamou, sombrio; gotas
de suor escorriam da testa pelo nariz e
as faces; suas axilas estavam molhadas
com as emoções que cascateavam pelo
seu corpo.
— Que diabo! — disse, falando com
ela embora não pudesse vê-la.
— Não há música nesses discos, não
estou neles. São falsos. Não são?
— Ou será a mescalina, pensou. —
Tenho que saber! — disse alto.
— Ponha-os para tocar, se estiverem
OK. O toca-disco está quebrado, é isso?
A agulha, ou a ponta, ou sei lá como se
chama, está quebrada? “Issoacontece”,
pensou.
“Talvez esteja encostando só na parte
de cima dos sulcos.”
Uma porta entreaberta; ele a abriu de
todo. Um quarto, com a cama por fazer.
E no chão um colchão onde haviam
jogado um saco de dormir. Uma pilha de
objetos masculinos: creme de barbear,
desodorante, barbeador, loção, pente...
“Um hóspede”, pensou; “alguém que
esteve aqui mas já se foi.”
— Tem alguém aqui? — berrou.
Silêncio.
À sua frente viu o banheiro; pela
porta meio aberta viu uma banheira
incrivelmente velha, com pés de leão de
esmalte pintado. Uma antiguidade,
pensou; até a banheira. Vacilante, veio
vindo pelo corredor, passando por
outras portas, até chegar ao banheiro; ali
abriu a porta.
E viu no chão um esqueleto.
Usava uma calça preta brilhante,
camisa de couro, na cintura uma corrente
com fivela de ferro trabalhado. Os ossos
do pé tinham afastado os sapatos de
salto alto. Alguns tufos de cabelo ainda
se prendiam ao crânio, mas afora isso,
nada mais restava: os olhos tinham
sumido, toda a carne tinha desaparecido.
Um esqueleto já amarelo.
— Meu Deus — disse Jason,
cambaleando; sentiu a visão falhar e sua
noção de gravidade se alterar; seu
ouvido médio flutuava em meio à
pressão, de modo que o aposento
rodopiava em volta dele em silêncio,
num perpétuo movimento de dança.
Como uma roda gigante num parque de
diversões.
Fechou os olhos, encostou-se na
parede e por fim olhou mais uma vez.
“Ela morreu”, pensou. Mas quando?
Cem mil anos atrás? Alguns minutos
atrás?
“Por que ela morreu?”, perguntou-se.
“Será a mescalina que tomei? Isto é
real?”
É real.
Inclinou-se e tocou a blusa franjada.
O couro era suave macio; não tinha se
deteriorado. O tempo deixara sua roupa
intacta; isto significava alguma coisa,
mas ele não compreendia o quê.
“Só ela”, pensou. “Tudo o mais nesta
casa continua como estava. Então não
pode ser efeito da mescalina. Mas não
posso ter certeza.”
Desceu a escada. Saiu dali.
Voltou pelo corredor em passadas
largas, inseguro da direção, ao mesmo
tempo em que arrastava os pés, de modo
que corria curvado como um estranho
macaco. Agarrou o corrimão de ferro
negro, desceu dois, três degraus de cada
vez, tropeçou e caiu, levantou-se de
novo. Em seu peito sentia o coração
trabalhar, e seus pulmões com o esforço
se enchiam e esvaziavam como um fole.
Num átimo atravessou a sala de estar
até a porta da frente; então, por razões
que lhe eram obscuras, mas de alguma
maneira importantes, agarrou os dois
discos que estavam no aparelho de som,
enfiou-os nas capas e os levou consigo,
saindo pela porta frontal da casa para
fora, para o quente e brilhante sol do
meio-dia.
— Já vai, senhor? — perguntou o
guarda particular de uniforme marrom,
vendo-o parado ali com o peito
ofegante.
— Estou doente.
— Lamento, senhor. Gostaria que lhe
trouxesse alguma coisa?
— As chaves do mosquinha.
— A Srta. Buckman em geral deixa a
chave no contato.
— Já olhei — disse Jason, arfando.
— Vou pedir à Srta. Buckman as
chaves para o senhor.
— Não — disse Jason, e pensou:
“Mas se é a mescalina, então tudo bem.
Não é?”
— “Não”? — disse o guarda, e de
repente sua expressão mudou.
— Fique onde está — disse. —
— Não se aproxime do mosquinha.
Virou-se e correu para dentro da casa.
Jason atravessou o gramado a passos
largos e chegou ao quadrado de asfalto e
ao mosquinha estacionado. As chaves;
estavam no contato? Não. A bolsa dela.
Agarrou-a e esvaziou-a no assento.
Caíram mil objetos, mas nada de chave.
E então um terrível grito o esmagou.
No portão frontal da casa apareceu o
guarda, com o rosto distorcido. Parou de
lado, ergueu a arma como num gesto
reflexo, segurando-a com as duas mãos,
e atirou em Jason. Mas a arma oscilou; o
guarda tremia demais.
Saindo pelo lado oposto do
mosquinha, Jason arrastou-se pela
espessa grania úmida em direção aos
carvalhos.
Mais uma vez o guarda atirou. Mais
uma vez errou o alvo. Jason ouviu-o
xingar; o guarda começou a correr
aproximando-se dele, mas de súbito
virou-se e correu para dentro de casa.
Jason conseguiu chegar até as
árvores. Forçou o caminho através da
vegetação seca e emaranhada que
estalava à sua passagem. Um alto muro
de adobe... E o que Alys dissera? Cacos
de vidro cimentados no topo? Foi
rastejando ao longo da base do muro,
lutando contra a vegetação espessa, e de
súbito viu-se em frente a uma porta
quebrada de madeira; estava meio
aberta, e para além dela viu uma rua
com outras casas.
Percebeu que não era a mescalina. O
guarda também a vira. Ali deitada. O
antigo esqueleto. Como se estivesse
morta todos esses anos.
Do outro lado da rua uma mulher,
com os braços cheios de pacotes, abria
a porta de seu pequeno helicóptero tipo
flipflap.
Jason atravessou a rua com
dificuldade, forçando sua mente a
trabalhar, afastando os resquícios da
mescalina.
— Dona — disse, ofegante.
— Espantada, a mulher levantou a
vista. Jovem, um tanto gorda, mas com
um lindo cabelo castanho-avermelhado.
— Sim? — disse ela, nervosa,
medindo-o com os olhos.
— Me deram uma dose tóxica de
alguma droga — disse Jason, tentando
manter a voz firme.
— A senhora poderia me levar para
um hospital?
Silêncio. Ela continuava a fitá-lo com
os olhos bem abertos. Ele não dizia
nada; apenas esperava, arquejante. Sim
ou não; tinha que ser uma das duas
coisas.
A moça gorda de cabelo castanho
disse:
— Eu... eu não dirijo muito bem.
Tirei carta do flipflap só na semana
passada.
— Eu dirijo — disse Jason.
— Então não vou junto. — Ela
recuou, agarrando seus pacotes
embrulhados em papel marrom. Devia
estar a caminho do correio.
— Quer me dar as chaves? — disse
ele, estendendo a mão. Esperou.
— Mas você pode desmaiar e aí meu
flipflap...
— Venha comigo, então — ele disse.
Ela lhe passou as chaves e sentou no
banco traseiro do flipflap. Jason, com o
coração pulsando de alívio, sentou-se ao
volante, colocou a chave no contato,
ligou o motor e num átimo lançou o
flipflap voando no céu, na sua
velocidade máxima de setenta
quilômetros por hora. Por algum
estranho motivo notou que era um
modelo muito barato de flipflap: um
Ford Greyhound. Um flipflap
econômico. E nada novo.
— Está com muitas dores? —
perguntou a moça, ansiosa; seu rosto,
que ele via pelo espelho retrovisor,
ainda mostrava nervosismo, até pânico.
A situação era demais para ela.
— Não — ele respondeu.
— Qual foi a droga?
— Eles não disseram. — A
mescalina agora já perdera praticamente
todo o efeito; graças a Deus sua
fisiologia de tipo seis tivera forças para
combatê-la, pois não lhe— agradava a
ideia de pilotar um lento flipflap através
do intenso tráfego de Los Angeles ao
meio-dia em meio a uma viagem de
mescalina. E uma tremenda viagem,
pensou ele com raiva. Apesar do que ela
dissera.
Ela. Alys.
“Por que os discos estão em
branco?”, perguntou-se em silêncio. Os
discos — onde estavam? Olhou em
volta, assustado. Ah! No assento ao seu
lado; sem pensar ele os jogara ali ao
entrar no flipflap. Então eles estão a
salvo. Posso tentar tocá-los em outro
toca-discos.
— O hospital mais próximo — disse
a moça — é o St. Martin na esquina da
rua Webster com a 35. É pequeno, mas
já estive lá para tirar uma verruga da
mão e eles foram muito gentis e
conscienciosos.
— Vamos para lá — disse Jason.
— Você está se sentindo melhor ou
pior?
— Melhor.
— Você estava na casa dos
Buckman?
— Sim.
— É verdade — perguntou a moça —
que eles são irmãos, o Sr. e a Sra.
Buckman? Quer dizer...
— Gêmeos — disse ele.
— Compreendo — disse a moça. —
Mas sabe, é estranho; quando a gente vê
os dois juntos parecem marido e mulher.
Eles se beijam, andam de mãos dadas, e
ele é muito atencioso com ela; agora, às
vezes eles têm brigas terríveis.
A moça silenciou um momento, e
então inclinando— se para a frente,
disse:
— Meu nome é Mary Anne Dominic.
Qual é o seu?
— Jason Taverner — ele a informou.
Não que aquilo significasse alguma
coisa. Depois de tudo. Depois do que
por um momento parecera — mas a voz
da moça interrompeu seus pensamentos.
— Sou ceramista — disse ela,
tímida. — Esses pacotes são vasos que
estou levando ao correio para mandar
para lojas no norte da Califórnia,
principalmente a Gump’s em São
Francisco e a Frazer em Berkeley.
— Você trabalha bem? — perguntou
ele; quase toda a sua mente, suas
faculdades, continuavam fixas no tempo,
fixas no instante em que abrira a porta
do banheiro e vira aquilo no chão. Mal
ouvia a voz da Srta. Dominic.
— Eu tento. Mas nunca se sabe. De
qualquer forma, vendo bem.
— Você tem mãos fortes — disse
ele, por falta de algo melhor a dizer;
suas palavras ainda saíam meio
mecanicamente, como se as formasse
com um fragmento apenas de sua mente.
— Obrigada — disse Mary Anne
Dominic.
Silêncio.
— Já passamos o hospital — disse
ela. — Ficou um pouquinho para trás, à
esquerda.
A ansiedade mais uma vez se
revelava em sua voz.
— Você está indo mesmo para lá ou
isso é algum...
— Não tenha medo — disse ele,
dessa vez prestando atenção ao que
dizia; usou toda a sua habilidade para
que a sua voz saísse gentil e
tranquilizadora.
— Não sou um estudante foragido.
Nem escapei de um campo de trabalhos
forçados. — Virou-se e encarou-a de
frente. — Mas estou em apuros.
— Então você não tomou uma droga
tóxica. — A voz dela vacilou. Era como
se aquilo que ela mais temera durante
toda a sua vida a tivesse enfim
dominado.
— Vou pousar — disse ele.— Assim
você se sentirá mais segura. Até aqui já
está bom para mim. Por favor, não entre
em pânico; não vou lhe fazer mal.
— Mas a moça sentava-se rígida no
assento, parecendo atingida, esperando
por — bem, nenhum dos dois sabia o
quê.
Num cruzamento movimentado, Jason
estacionou à beira da calçada e abriu a
porta. Mas então, seguindo um impulso
ficou dentro do flipflap por um
momento, ainda encarando a moça.
— Por favor, saia — disse ela em
voz trêmula. — Não quero ser maleducada, mas estou com medo mesmo. A
gente ouve falar de estudantes loucos de
fome que conseguem passar pelas
barricadas em volta dos campus...
— Escute o que vou dizer — disse
ele, interrompendo o jorro de palavras
que ela lançava.
— Está bem.
Ela se recompôs, com as mãos no
colo cheio de pacotes, esperando
obedientemente — e com modo.
— Você não deve se assustar com
tanta facilidade — disse Jason. —
Senão a vida vai ser dura demais para
você.
— Compreendo. — Ela assentiu
humildemente, ouvindo, prestando
atenção como se estivesse assistindo a
uma aula na universidade.
— Você sempre tem medo de
estranhos? — ele perguntou.
— Acho que sim. — Assentiu outra
vez, abaixando a cabeça como se ele a
tivesse repreendido, e de certa forma
tinha mesmo.
— O medo — disse Jason — pode
fazer mais mal do que o ódio ou o
ciúme. A pessoa que tem medo não se
entrega totalmente à vida; o medo faz a
pessoa estar sempre, sempre, guardando
alguma coisa.
— Acho que sei o que você quer
dizer — disse Mary Anne Dominic. —
Um dia, há mais ou menos um ano, ouvi
umas batidas horríveis na minha porta.
Corri para o banheiro e me tranquei lá
dentro, fingindo que não estava em casa,
porque achei que alguém estava tentando
arrombar a porta... E depois descobri
que a mulher do andar de cima tinha
prendido a mão no ralo da pia — ela
tem um desses trituradores de lixo na pia
e uma faca desceu pelo ralo, ela tentou
pegá-la e a mão ficou presa. E era o
filhinho dela batendo na minha porta...
— Então você compreende o que
quero dizer — interrompeu Jason.
— Sim. Gostaria de não ser desse
jeito, gostaria mesmo. Mas ainda sou.
— Quantos anos você tem? —
perguntou Jason.
— Trinta e dois.
Ficou surpreso; ela parecia muito
mais jovem. Era óbvio que não tinha se
tornado adulta. Simpatizou com ela;
como devia ter sido duro para ela deixálo tomar o flipflap. E seus temores
realmente estavam corretos num ponto:
ele não pedira ajuda pelo motivo que
alegou.
— Você é muito boa pessoa — ele
disse.
— Obrigada — ela disse, obediente.
Humildemente.
— Está vendo aquele café ali? —
disse ele, indicando um local moderno,
de clientela distinta. — Vamos até lá.
Quero conversar com você. —
“Tenho que falar com alguém, com
qualquer pessoa”, pensou, “do contrário
vou perder o juízo.”
— Mas — protestou ela, ansiosa —
tenho que levar meus pacotes para o
correio antes das duas, para serem
despachados hoje mesmo.
— Vamos lá primeiro, então — disse
ele. Tirou a chave do contato e a
devolveu para Mary Anne. — Você
dirige. Bem devagar, como quiser.
— Sr. ... Taverner — disse ela. —
Quero apenas ficar sozinha.
— Não, você não deve ficar sozinha.
Isto está matando você, está solapando
você. O tempo todo, todos os dias, você
deveria estar junto com outras pessoas.
Silêncio. Mary Anne disse então:
— O correio fica na esquina da rua
49 com a Fulton. Você poderia dirigir?
Estou um pouco nervosa.
Aquilo pareceu a ele uma grande
vitória moral; ficou satisfeito.
Pegou novamente a chave e logo
estavam a caminho da 49 com a Fulton.
22
Mais tarde sentaram-se numa mesinha
do café, um lugar limpo e atraente com
garçonetes jovens e uma freguesia
bastante moderna. O juke-box tocava
Lembranças do seu Nariz, de Louis
Panda.
Jason pediu apenas café; a Srta.
Dominic quis salada de frutas e chá
gelado.
— Que discos são esses que você
está levando? — ela perguntou.
Ele passou os dois para ela.
— Ora, são discos seus. Se é que é
você o Jason Taverner. É você?
— Sim.— Pelo menos disso ele tinha
certeza.
Acho que nunca ouvi você cantar —
disse ela. — Gostaria muito, mas não
costumo gostar de música pop gosto dos
bons cantores folk do passado, como
Buffy St. Marie. Ninguém canta tão bem
como Buffy.
— Concordo — disse ele, sombrio,
com a mente ainda voltada para a casa,
o banheiro, a fuga do frenético guarda de
uniforme marrom.
“Não foi a mescalina”, pensou mais
uma vez. “Porque o guarda também
vira.”
“Ou vira alguma coisa. ”
— Talvez ele não viu o que eu vi —
disse em voz alta.
Talvez ele apenas a viu ali deitada.
Talvez ela tivesse caído talvez....
“Talvez eu deva voltar lá”, pensou.
— Quem não viu o quê? — perguntou
Mary Ann, e logo seu rosto ficou de um
vermelho escarlate.
— Não tive intenção de me
intrometer na sua vida; você disse que
está em apuros e estou vendo que está
com algo muito pesado na cabeça, algo
que o está obcecando.
Tenho que ter certeza do que de fato
aconteceu. Tudo está lá naquela casa.
“E nesses discos”, pensou.
“Alys Buckman sabia do meu
programa de tevê. Sabia dos meus
discos. Sabia qual deles foi o maior
sucesso; possuía esse disco. Mas...”
Não havia música nos discos. Que
diabo, mesmo com a agulha estragada
algum som, mesmo que distorcido,
deveria ter saído. Tinha muita
familiaridade com discos e toca-discos
para não saber disso.
— Você é genioso — disse Mary
Anne. Tirou um par de óculos de sua
bolsinha de pano e pôs-se a ler
laboriosamente as informações
biográficas na capa dos discos.
— O que aconteceu comigo — disse
Jason, sem se estender no assunto — me
tornou uma pessoa geniosa.
— Diz aqui que você tem um
programa de tevê.
— Certo. Terça-feira às nove da
noite. Na NBC.
— Então você é famoso. E eu aqui
sentada, conversando com uma pessoa
famosa que eu deveria conhecer. Como
você se sente... com o fato de que não o
reconheci quando você me disse seu
nome?
Ele deu de ombros. Ironicamente,
aquilo o divertia.
Será que esse juke-box daqui tem
alguma canção sua? — Ela indicou a
máquina multicolorida, em estilo Gótico
Babilônico, no canto oposto do café.
— Talvez — disse ele. Era uma boa
pergunta.
— Vou ver. — A Srta. Dominic
pescou uma moeda do bolso e
atravessou o salão para verificar a lista
de títulos e intérpretes na vitrola
automática.
“Quando ela voltar, vai estar menos
impressionada comigo”, refletiu Jason.
Sabia que efeito tinha uma omissão; a
menos que ele se manifestasse em toda a
parte, que estivesse em todos os rádios,
aparelhos de som, vitrolas automáticas,
lojas de discos e telas de tevê do
universo, a mágica se desfazia.
Ela voltou sorrindo.
— Nada em Lugar Nenhum — disse
ela, sentando-se. Ele notou que já não
estava com a moeda na mão. — Deve
ser a próxima a tocar.
No mesmo instante ele se levantou e
atravessou o café até a juke-box.
Ela tinha razão. Era a música B4 —
seu sucesso mais recente, Nada em
Lugar Nenhum, uma canção sentimental.
E já o mecanismo da vitrola automática
começava a processar o disco.
Dali a um momento sua voz, adoçada
por pontos quadrifônicos e câmaras de
eco, enchia o café.
Atordoado, voltou à mesa.
— Sua voz é super maravilhosa —
disse Mary Anne quando a música
terminou. Talvez por educação,
considerando-se seu gosto musical.
— Obrigado. — Era ele mesmo, sem
dúvida. Os sulcos desse disco não
estavam em branco.
— Você é demais mesmo — disse
Mary Anne com entusiasmo, dando um
sorriso brilhante.
Jason disse com simplicidade.
— Estou no ramo há muito tempo. —
Ela parecera sincera em seu elogio.
— Você se sente mal por não ter
ouvido falar de você?
— Não. — Ele abanou a cabeça,
ainda atordoado. Com certeza não era só
ela que não tinha ouvido falar dele,
como mostravam os acontecimentos dos
últimos dois dias.
“Dois dias? Só isso?”
— Posso... pedir mais alguma coisa?
— perguntou Mary Anne, hesitante. —
Gastei todo meu dinheiro em selos; eu...
— Pode deixar, eu pago a conta —
disse Jason.
— Como você acha que deve estar o
bolo de morangos?
— Excelente — disse ele; por um
momento ela o divertia. A sinceridade
da mulher, suas ansiedades...
“Será que ela tem algum namorado?
”, perguntou-se. Provavelmente não...
Vivia num mundo de vasos, argila, papel
de embrulho marrom, problemas com
seu velho flipflap Greyhound; como
pano de fundo, a voz apenas em estéreo
dos bambas do passado: Judy Collins e
Joan Baez.
— Já ouviu Heather Hart? —
perguntou ele. Com delicadeza.
Ela franziu a testa.
— Não... não me lembro bem. Ela
canta folk ou... — Sua voz foi sumindo;
parecia ter-se entristecido. Como se
sentisse que estava falhando, que não
era o que deveria ser, que não sabia o
que qualquer pessoa razoável sabia.
Jason sentiu simpatia por ela.
— Baladas — disse Jason. — Como
as que canto.
— Poderíamos ouvir seu disco outra
vez?
Obsequioso, Jason voltou à vitrola
automática e programou-a para tocar seu
disco de novo.
Desta vez Mary Anne não pareceu
estar gostando.
— Qual é o problema? — ele
perguntou.
— Bem... Eu sempre digo para mim
mesma que sou criativa; faço cerâmica e
gosto disso. Mas não sei se meus
trabalhos são realmente bons. As
pessoas me falam que...
— As pessoas falam de tudo para a
gente. Umas dizem que o trabalho da
gente não tem valor; outras, que é
inestimável. Tanto o pior como o
melhor. A gente está sempre atingindo
alguém que está aqui — deu uma
pancadinha no saleiro — e não atingindo
alguém que está ali bateu na taça de
salada de frutas.
— Mas tem que haver um jeito...
— Há os especialistas. Pode-se ouvir
o que eles dizem, suas teorias. Eles
sempre têm teorias. Escrevem longos
artigos e discutem o trabalho da gente
desde o primeiro disco, de 19 anos
atrás. Comparam gravações que a gente
nem se lembra mais de ter feito. E os
críticos de tevê...
— Mas ser notado... — De novo os
olhos dela brilharam por um instante.
— Desculpe — ele disse,
levantando-se. Não conseguia esperar
mais.
— Tenho que dar um telefonema.
Espero estar de volta. Se não voltar —
ele pôs a mão no ombro dela, tocando o
suéter branco de tricô provavelmente
feito por ela mesma — foi bom conhecêla.
Intrigada, ela ficou olhando com seu
jeito dócil e obediente enquanto ele
abria caminho pelo café lotado de gente
até o telefone nos fundos.
Fechado na cabine telefônica, achou
o número da Academia de Polícia de
Los Angeles na lista dos números de
emergência, colocou uma moeda e
discou.
— Gostaria de falar com o general de
Polícia Felix Buckman — disse e, sem
surpresa, notou que sua voz tremia.
“Psicologicamente já foi a conta”,
pensou. “Tudo que já aconteceu... até
esse disco na juke-box é demais para a
cabeça. Estou pura e simplesmente com
medo. E desorientado. Então talvez o
efeito da mescalina ainda não passou.
Mas consegui dirigir sem problema o
flip flap zinho; isso indica alguma coisa.
Merda de droga. A gente sempre sabe
quando bateu, mas não quando passou o
efeito, se é que passa. Prejudica a gente
para sempre, ou é isso que a gente sente;
não se pode ter certeza. Talvez nunca
passe. E eles falam: ‘Ei, cara, teu miolo
já queimou’, e a gente fala ‘É, pode ser’.
Não se pode ter certeza que sim nem que
não. E tudo porque você tomou um
comprimido, ou um comprimido a mais,
que alguém te deu dizendo
“Ei, cara, esse aqui vai te dar uma
bela viagem...”
— Aqui fala a Srta. Beason — disse
uma voz feminina em seu ouvido.
— Assistente do Sr. Buckman. Posso
ajudá-lo?
— Peggy Beason — disse ele.
Respirou bem fundo e disse:
— Aqui fala Jason Taverner.
— Ah, sim, Sr. Taverner. O que o
senhor deseja? Esqueceu algo aqui?
— Quero falar com o general
Buckman...
— Sinto muito, mas o Sr. Buckman...
— É um assunto relacionado a Alys.
Silêncio. E em seguida:
— Um momentinho, por favor, Sr.
Taverner. Vou falar com o Sr. Buckman
e ver se ele pode atendê-lo.
Ouviu um clique. Uma pausa.
Silêncio. E outra voz:
— Sr. Taverner? — não era o
general Buckman. — Aqui é Herbert
Maime, chefe de pessoal do Sr.
Buckman. Pelo que entendi, o senhor
disse à Srta. Beason que seu assunto se
relaciona com a irmã do Sr. Buckman, a
Srta Alys Buckman. Com franqueza,
gostaria de lhe perguntar quais,
exatamente, foram as circunstâncias que
lhe permitiram vir a conhecer a Srta. ...
Jason desligou o telefone. E voltou às
cegas para sua mesa, onde Mary Anne
Dominic comia seu bolo de morango.
— Então você voltou! — disse ela,
alegre.
— Que tal o bolo?
— Um pouco cremoso demais. — E
acrescentou: — Mas gostoso.
Taciturno, Jason tornou a sentar-se.
Bem, tinha feito o possível para falar
com Felix Buckman. Para lhe contar
sobre Alys. Mas afinal o que poderia lhe
ter dito? A futilidade de tudo, a perpétua
impotência de seus esforços e
intenções... “ainda mais enfraquecidos”,
pensou, “pelo que ela me deu, aquele
comprimido de mescalina.”
Se é que era mescalina.
Isso abria uma nova possibilidade.
Ele não tinha nenhuma prova de que
Alys de fato lhe dera mescalina. Podia
ter sido qualquer outra coisa. Por
exemplo, o que tinha a ver mescalina
com a Suíça? Isso não fazia sentido;
dava ideia de algo sintético, não
orgânico; era um produto de laboratório.
Talvez uma nova droga da moda, com
múltiplos ingredientes. Ou algo roubado
dos laboratórios da polícia.
O disco com o Nada em Lugar
Nenhum. E se a droga o tivesse feito
ouvir aquela canção? E vê-la na lista do
juke— box? Mas Mary Anne Dominic
também o tinha ouvido; aliás, o tinha
descoberto.
Mas e os dois discos em branco? O
que dizer deles?
Enquanto refletia, um adolescente de
jeans e camiseta aproximou-se e
murmurou:
— Ei, o Sr. é o Jason Taverner, não
é? — Estendeu— lhe uma caneta
esferográfica e um pedaço de papel.
— Pode me dar seu autógrafo?
Atrás dele uma bonita adolescente
ruiva, de shorts branco e sem sutiã,
sorriu entusiasmada e disse:
— Nós sempre assistimos a seu show
da terça à noite. O senhor é fantástico! E
pessoalmente o senhor parece direitinho
como na televisão, só que ao vivo o
senhor é mais, sabe como, mais
queimado de sol.
— Seus seios balançavam
convidativos. Embotado, movido pelo
hábito, Jason assinou seu nome.
— Obrigado, pessoal — disse a eles.
Já havia quatro agora.
Tagarelando, os quatro jovens foram
embora. Agora as pessoas das mesas
próximas olhavam para Jason
interessadas e cochichavam entre si.
“Como sempre”, pensou ele. “É
assim que as coisas foram até outro dia.
Minha realidade está se impregnando
de volta. ” Sentiu uma felicidade
violenta, incontrolável. Era isso que ele
conhecia; esse era o seu estilo de vida.
Perdera-o por pouco tempo mas agora,
finalmente, pensou, “estou começando a
recuperá-lo! ”.
Heather Hart. “Agora posso ligar
para ela. E conseguir falar com ela. Ela
não vai pensar que sou um fanzoca de
merda. ”
“Talvez eu só exista enquanto tomo a
droga. Aquela droga, soja lá qual for,
que Alys me deu. ”
“Nesse caso minha carreira, os vinte
anos inteiros, não passa de uma
alucinação retroativa criada pela droga.
”
“O que aconteceu”, pensou Jason
Taverner, “é que o efeito da droga
passou. Ela — ou alguém — parou de
me dar a droga e acordei para a
realidade, lá naquele quartinho de hotel
fuleiro, com o espelho rachado e o
colchão cheio de percevejos. E fiquei
desse jeito até agora, quando Alys me
deu outra dose. ”
“Não admira que ela me conheça,
conheça meu show de terça-feira na
tevê. Por meio da droga ela criou tudo
isso. E aqueles dois discos — são
acessórios que ela usa para reforçar a
alucinação. ”
“Jesus Cristo, será isso mesmo? ”
“Mas e o dinheiro que estava comigo
quando acordei no hotel, todo aquele
maço de notas. ” Automaticamente levou
a mão ao bolso do casaco, sentindo a
existência palpável das notas, que ainda
estavam lá.
“Se na vida real eu passava meus
dias em hotéis pulguentos do bairro de
Watts, onde consegui esse dinheiro? ”
“E nesse caso eu estaria fichado no
arquivo da polícia, e em todos os
bancos de dados do mundo inteiro. Não
estaria classificado como um famoso
comunicador, mas estaria registrado lá
como um vagabundo maltrapilho que
nunca chegou a nada, cujos únicos
prazeres vinham de um vidro de
comprimidos. Deus sabe por quanto
tempo. Posso estar tomando essa droga
há anos. ”
“Alys”, lembrou-se, “disse que eu já
havia estado naquela casa. ”
“E pelo jeito é verdade. Para tomar
minha dose de droga. ”
“Talvez eu seja apenas um entre
muitíssimas pessoas que levam uma vida
sintética de popularidade, dinheiro,
poder, através de pílulas. Enquanto
vivem, na realidade, em quartos de hotel
vagabundos, infestados de ratos. Na rua
da amargura. Jogados para as traças, os
joão-ninguém. Não valem um tostão
furado. Mas, enquanto isso, sonham”.
— Puxa, você deve estar pensando
em coisas importantíssimas — disse
Mary Anne. Tinha terminado seu bolo;
parecia saciada agora. E feliz.
— Escute — disse ele, com a voz
mal passando pela garganta. — O meu
disco está mesmo nesse juke box.
Ela abriu bem os olhos, tentando
compreender:
— Como assim? Nós ouvimos o
disco. E aquele negocinho onde tem os
nomes dos discos, está lá. Os juke-box
nunca erram.
Ele pescou do bolso uma moeda.
— Ponha para tocar de novo. Ponha
para tocar três vezes seguidas.
Obediente, ela levantou e foi até a
vitrola, seu lindo cabelo longo batendo
contra os largos ombros. E então ele
ouviu sua canção, seu maior sucesso. E
as pessoas nas mesas e no balcão
sorriam e acenavam com a cabeça,
reconhecendo-o; sabiam que era ele
quem estava cantando. Seu público.
Quando a canção terminou, alguns
clientes do café o aplaudiram. Ele
automaticamente respondeu com um
largo sorriso profissional, retribuindolhes o reconhecimento e a aprovação.
— Está lá — disse ele, quando a
canção começou a tocar de novo. Cerrou
o punho com violência e bateu na mesa
que o separava de Mary Anne. — Que
diabos, está lá.
Por alguma nuance de um profundo e
intuitivo desejo feminino de ajudá-lo,
Mary Anne disse:
— E estou aqui também.
— Não estou num hotel vagabundo,
deitado numa cama e sonhando — disse
ele em voz rouca.
— Não, não está. — A voz dela era
terna, ansiosa. Era claro que se
preocupava por ele. Via como estava
agitado.
— Sou real de novo. Mas se isso
aconteceu uma vez, por dois dias... —
“Se podia ir e vir assim, aparecer e
desaparecer...”
— Talvez seja melhor nós irmos
embora — disse ela, apreensiva.
Isto clareou as ideias dele.
— Desculpe — disse, tentando
tranquilizá-la.
— Só estou querendo dizer que as
pessoas estão ouvindo.
— Isso não vai lhes fazer mal ele
disse.
— Deixe que elas ouçam; que vejam
como uma pessoa carrega consigo seus
problemas e preocupações, mesmo
sendo um artista mundialmente famoso.
—
Mesmo assim ele se levantou. —
Aonde você quer ir? — perguntou. —
Para o seu apartamento? Isso significava
voltar atrás, mas ele se sentia otimista o
bastante para arriscar.
— Meu apartamento? — ela vacilou.
— Você acha que eu lhe faria algum
mal?
Por um lapso de tempo ela ficou ali
sentada, refletindo nervosamente.
— N...não — disse por fim.
— Você tem um toca-discos? —
perguntou ele. — No seu apartamento?
— Sim, mas não é muito bom; é só
estéreo. Mas funciona.
— Está bem — ele disse, levando-a
pelo corredor até a caixa registradora.
— Vamos.
23
Mary Anne Dominic fizera sozinha a
decoração das paredes e do teto do seu
apartamento. Lindas cores, fortes e
intensas; ele olhou à volta, bem
impressionado. E os poucos objetos de
arte na sala eram de uma poderosa
beleza. Peças de cerâmica. Jason pegou
na mão um lindo vaso azul vitrificado e
o estudou com cuidado.
— Fui eu quem fez — disse Mary
Anne.
— Este vaso — ele disse — será
apresentado no meu show.
Mary Anne o olhou maravilhada.
— Vou levar este vaso para o meu
show logo mais. Aliás — ele já
visualizava — será um número com uma
grande produção; vou sair do vaso
cantando, como se fosse o gênio da
lâmpada mágica. — Segurou o objeto
bem alto, girando-o na mão. — Nada em
Lugar Nenhum, e sua carreira está
lançada.
— Talvez fosse melhor você segurálo com as duas mãos — disse Mary
Anne, apreensiva.
Nada em Lugar Nenhum, a canção
que nos trouxe mais popularidade... —
O vaso escorregou das suas mãos e
caiu no chão. Mary Anne pulou para
alcançá-lo, mas tarde demais. O vaso
quebrou-se em três pedaços, que caíram
no chão ao lado dos sapatos de Jason,
pedaços irregulares com as bordas
ásperas, já sem qualquer mérito
artístico.
Houve um longo silêncio.
— Acho que dá para consertar —
disse Mary Anne.
Ele não conseguia pensar em nada
para dizer.
— A coisa mais constrangedora que
já me aconteceu disse Mary Anne — foi
uma vez com a minha mãe. Sabe, minha
mãe tinha uma doença crônica dos rins
chamada mal de Bright; quando Eu era
criança ela vivia indo para o hospital
para se tratar disso, e no meio de
qualquer conversa ela sempre enfiava
esse assunto, que ia morrer daquilo e eu
iria sentir muito — como se fosse culpa
minha.
E eu acreditava mesmo que ela ia
morrer daquilo. Mas depois cresci, saí
de casa e ela não morreu. E eu meio que
me esqueci dela; tinha minha própria
vida e minhas coisas para fazer. Assim,
naturalmente esqueci daquela porcaria
de doença dos rins que ela tinha.
Aí um dia ela veio me visitar, não
aqui mas no outro apartamento que eu
tinha antes deste, e começou a me encher
a paciência, se queixando das suas
dores, falando sem parar da doença, até
que finalmente eu disse:
“Tenho que fazer as compras para o
jantar”, e fui saindo para o mercado.
Minha mãe foi mancando atrás de mim e
no caminho me deu a notícia de que
agora os dois rins dela estavam tão mal
que teriam que ser removidos, e ela iria
fazer uma operação etc. etc., e iam tentar
instalar um rim artificial nela, mas que
provavelmente não ia dar certo. Então
ela estava me contando tudo isso, que
agora o negócio tinha chegado mesmo;
ela ia mesmo morrer, como sempre tinha
dito... E de repente vi que estava no
supermercado, no balcão de carne, e um
funcionário muito bonitinho de quem eu
gostava já estava vindo me
cumprimentar, e perguntou:
“O que a senhora vai querer hoje?” e
eu disse: “Quero uma torta de rim para o
jantar”. Foi tão constrangedor!
“Uma torta de rim bem grande”, eu
disse, “bem macia, gostosa e suculenta”.
Ele perguntou: “Para quantas pessoas?
”. Minha mãe só olhava para mim, com
um olhar terrível. Eu não sabia mesmo
como sair daquela, depois que já estava
nela. Finalmente acabei comprando uma
torta de rim, mas na seção dos
importados; vinha numa lata fechada, da
Inglaterra. Acho que custou quatro
dólares. Estava muito gostosa.
— Pago pelo vaso — disse Jason. —
Quanto você quer por ele?
Ela respondeu hesitante:
— Bem, tem o preço por atacado,
que cobro das lojas. Mas de você tenho
que cobrar o preço do varejo, porque
você não tem registro de atacadista,
então...
Ele tirou o dinheiro do bolso.
— Varejo — disse.
— Vinte dólares.
— Posso introduzir você de outra
maneira — ele disse.
— Só precisamos de um bom ângulo.
Que tal este: podemos mostrar ao
público um vaso inestimável da
antiguidade, digamos um vaso chinês do
século V, e chega um especialista de um
museu, uniformizado, e garante a
autenticidade da peça. E aí você aparece
com seu torno de ceramista e faz um
vaso diante do público, e nós vamos
mostrar que o seu vaso é melhor.
— Não poderia ser melhor. A
cerâmica da China antiga é...
— Vamos mostrar a eles; vamos
fazer com que acreditem. Conheço meu
público. Aquelas trinta milhões de
pessoas seguem minhas reações; vai
haver um close do meu rosto, mostrando
minha expressão.
Em voz baixa, Mary Anne disse:
— Não posso subir lá no palco com
todas aquelas câmaras de tevê apontadas
para mim. Sou tão... gorda. As pessoas
dariam risada de mim.
— A publicidade que você vai
conseguir. As vendas. Os museus e as
lojas vão saber o seu nome, vão
conhecer seu trabalho, vão chover
compradores.
Mary Anne disse baixinho:
— Me deixe em paz, por favor. Sou
muito feliz assim. Sei que sou uma boa
ceramista; sei que as lojas, as boas
lojas, gostam do que faço. Será que tudo
tem que ser feito em grande escala, com
milhares de extras? Não posso levar
minha vidinha do jeito que quero?
Cravou os olhos nele, a voz quase
inaudível: — Não vejo o que toda a
publicidade e a fama fizeram por você.
Lá no café você me perguntou se o disco
estava mesmo na vitrola. Você estava
com medo de que não estivesse; estava
muito mais inseguro do que jamais me
senti.
— Falando nisso — disse Jason —
gostaria de tocar esses dois discos na
sua vitrola. Antes de ir embora.
— É melhor eu mesma colocar —
disse Mary Anne.
— Meu aparelho de som é meio
complicado. — Pegou os dois discos e
os vinte dólares; Jason ficou onde
estava, junto aos pedaços do vaso
quebrado.
Esperou até ouvir uma música bem
conhecida. Seu álbum de maior sucesso.
Os sulcos do disco não estavam mais em
branco.
— Pode ficar com esses discos —
ele disse. — Eu já vou embora. —
“Agora”, pensou, “não preciso mais
deles; provavelmente posso comprá-los
em qualquer loja de discos.
— Não é o tipo de música de que
gosto... Acho que não vou ouvi-los
muitas vezes.
— Vou deixá-los mesmo assim —
disse ele.
— Pelos seus vinte dólares vou lhe
dar outro vaso. Um momento. — Saiu da
sala; Jason ouviu ruídos de papel
amassado e muita atividade. Logo ela
voltou trazendo outro vaso azul
vitrificado. Este era ainda melhor; Jason
teve a intuição de que ela o considerava
uma de suas peças mais finas.
— Obrigado.
— Vou embrulhá-lo e colocá-lo numa
caixa para não se quebrar como o outro.
Passou a fazer isso, trabalhando com
cuidado e intensidade febril.
— Acho muito emocionante — disse,
passando a ele a caixa embrulhada
ter almoçado com um homem famoso.
Fico satisfeitíssima por tê-lo conhecido
e vou me lembrar disso por muito
tempo. E espero que seus problemas
passem, isto é, espero que aquilo que o
está preocupando acabe se resolvendo.
— Jason Taverner tirou do bolso
interno do paletó o porta-cartões com
suas iniciais em ouro; tirou dele um de
seus cartões coloridos em alto-relevo e
o deu a Mary Anne.
— Telefone para mim no estúdio
quando quiser. Se você mudar de ideia e
resolver aparecer no programa, tenho
certeza de que podemos encaixá-la.
Aliás, este é meu telefone particular.
— Até logo — disse ela, abrindo-lhe
a porta.
— Até logo. — Ele fez uma pausa,
querendo dizer mais alguma coisa. Mas
não havia nada mais a dizer. —
— Nós falhamos — disse então. —
Fracassamos redondamente. Nós dois.
Ela piscou, surpresa:
— Como assim?
— Cuide-se bem — disse ele, e
deixando o apartamento saiu para a
calçada, no meio da tarde. No sol quente
em pleno dia.
24
Ajoelhando-se ao lado do corpo de
Alys Buckman, o médico legista disse:
— Nesse momento só posso dizer
que ela morreu de uma dose excessiva
de uma droga tóxica ou semitóxica. Só
daqui a vinte e quatro horas poderemos
precisar que droga foi.
Felix Buckman disse:
—Isso tinha que acontecer. Algum
dia. — Surpreendentemente, não sentia
grande coisa. Na verdade de certa forma
sentiu um profundo alívio ao saber pelo
seu guarda, Tim Chancer, que Alys fora
encontrada morta no banheiro do
segundo andar da casa.
— Achei que aquele tal de Taverner
tinha feito alguma coisa para ela —
Chancer repetia muitas vezes, tentando
chamar a atenção de Buckman. — ele
estava agindo de modo estranho; eu
sabia que havia algo de errado. Dei dois
tiros, mas ele escapou. Acho que foi
bom não ter acertado ele, se ele não for
responsável. Ou talvez ele se sentiu
culpado porque a forçou a tomar a
droga; será isso?
— Ninguém precisava forçar Alys a
tomar uma droga disse Buckman sem
cerimônia. Saiu do banheiro e foi até o
saguão. Dois tiras em uniforme cinzento
estavam em posição de sentido,
esperando ordens.
“Ela não precisava que Taverner nem
ninguém lhe aplicasse droga nenhuma. ”
Sentia-se agora fisicamente doente.
“Meu Deus”, pensou. “Que efeito isso
vai ter sobre Barney? ” Essa era a pior
parte. Por motivos que lhe eram
obscuros, seu filho adorava a mãe.
“Bem”, pensou Buckman, “gosto não
se discute. ”
— Mas mesmo assim ele — ele
próprio — a amava. “Ela tinha uma
poderosa qualidade”, pensou. “Vou
sentir falta daquilo. Ela tomava um
bocado de espaço. ”
E uma boa parte da sua vida. Para o
pior e para o melhor.
Pálido, Herb Maime subiu a escada
de dois em dois degraus, fixando os
olhos em Buckman.
— Vim o mais rápido que pude —
disse Herb, estendendo a mão a
Buckman, que a apertou.
— O que foi? — perguntou. — Uma
overdose de alguma coisa?
— Parece que sim — disse Buckman.
— Recebi um telefonema de
Taverner hoje cedo — disse Herb. —
Ele queria falar com você; disse que era
algo relacionado a Alys.
— Queria me avisar da morte de
Alys. Ele estava aqui na ocasião.
— Por quê? Como ele a conhecia?
— Não sei — disse Buckman. Mas
naquele momento não lhe importava
muito. Não via razão para acusar
Taverner... Considerando-se o
temperamento e os hábitos de Alys, ela
provavelmente o induzira a vir até a
casa. Talvez quando Taverner saía da
Academia ela o apanhara e o arrastara
até ali em seu mosquinha desengonçado.
Até a casa. Afinal, Taverner era um tipo
seis. E Alys gostava dos tipo seis. Tanto
homens como mulheres.
Especialmente mulheres.
— Talvez estivessem tendo uma
orgia disse Buckman.
— Só os dois? Ou está querendo
dizer que havia outras pessoas aqui?
— Ninguém mais esteve aqui.
Chancer teria notado. Podem ter tido
uma orgia telefônica; é isso que quis
dizer. Quantas vezes ela esteve à beira
de esturricar o cérebro com essas
malditas orgias telefônicas. Como
gostaria que nós conseguíssemos
localizar os novos patrocinadores, os
que assumiram depois que matamos Bil,
Carol, Fred e Jill. Esses degenerados.
— Com as mãos tremendo, acendeu
outro cigarro e pôs-se a fumar
rapidamente.
— Isso me lembra algo que Alys
disse uma vez, e que foi engraçado sem
querer. Estava falando que queria fazer
uma orgia e se perguntando se deveria
enviar convites formais.
“É melhor eu mandar”, ela disse,
“senão eles não vão vir todos ao mesmo
tempo.”
Buckman riu.
— Você já me contou isso — disse
Herb.
— Ela está morta mesmo. Fria e
dura. — Buckman esmagou o cigarro
num cinzeiro.
— Minha mulher — disse para Herb
Maime. — Ela era minha mulher.
Com um movimento de cabeça Herb
indicou os dois tiras de cinza que
aguardavam ordens.
— E daí? — disse Buckman. — Será
que eles não leram o livreto de As
Valquírias?
Tremendo, acendeu outro cigarro. —
Sigmund e Siglinde. Schwester und
Braut:
Irmã e esposa. E para o inferno com
Hunding. — Deixou cair o cigarro no
carpete; ficou parado olhando o cigarro
fumegar, pondo fogo no tecido de lã.
Apagou-o então com o salto da bota.
— Você deveria se sentar disse
Herb. — Ou deitar, está com uma
aparência terrível.
— É uma coisa terrível — disse
Buckman. — É mesmo. Não gostava de
muitas coisas nela, mas puxa, como ela
era vital. Estava sempre experimentando
coisas novas. Foi isso que a matou,
provavelmente alguma nova droga que
ela e suas amigas bruxas fabricavam
naquela merda daqueles laboratórios de
porão. Alguma coisa contendo líquido,
revelador de filmes, ou Drano, ou algo
pior ainda.
— Acho que devemos falar com
Taverner — disse Herb.
— Está bem. Chame-o aqui. Ele está
com o microtrans embutido, não está.
— É claro que não. Todos os
percevejos que pusemos nele antes de
sair da Academia pararam de funcionar.
Exceto, talvez, a microbomba. Mas não
temos motivo para ativá-la.
— Taverner é um filho da mãe muito
esperto — disse Buckman. — Ou então
conseguiu ajuda. De alguém, ou de
várias pessoas com quem está
trabalhando. Não se dê ao trabalho de
tentar detonar a microbomba; sem
dúvida já deve ter sido retirada da pele
dele por algum colega obsequioso.
“Ou por Alys”, conjeturou. “Minha
irmãzinha prestativa. Sempre disposta a
ajudar a polícia. Que boazinha!”
— É bom você sair um pouco aqui da
casa — disse Herb. — Enquanto os
legistas trabalham.
— Me leve de volta para a Academia
— disse Buckman. — Acho que não
consigo dirigir; estou tremendo muito.
— Sentiu alguma coisa no rosto; tocou o
queixo com a mão e viu que estava
molhado.
— O que é isso no meu rosto? —
perguntou, espantado.
— Você está chorando — disse
Herb.
— Me leve de volta para a
Academia. Vou dar uma olhada no que
tenho para fazer e passar tudo para você
— disse Buckman. — Depois quero
voltar para cá. —
“Talvez Taverner tenha mesmo lhe
dado alguma coisa”, pensou. “Mas
Taverner não é nada. Foi ela mesma.
Mas mesmo assim...”.
— Vamos, venha — disse Herb,
tomando-o pelo braço e levando-o para
a escada.
Descendo os degraus, Buckman
disse:
— Nunca nessa merda de vida você
iria imaginar que um dia ia me ver
chorando.
— Nunca — disse Herb. — Mas é
compreensível. Você e ela eram muito
próximos.
— Próximos é pouco — disse
Buckman com repentina violência. —
Raios a partam! Eu disse a ela que no
fim isso ia acabar acontecendo. Os
amigos dela prepararam a droga e a
fizeram de cobaia.
— Não vá trabalhar muito no
escritório — disse Herb, enquanto
atravessavam a sala e saíam para o
gramado, onde seus dois mosquinhas
estavam estacionados. — Só dê uma
olhada no que for passar para mim.
— É isso mesmo que falei! — disse
Buckman. — Ninguém escuta o que falo,
caramba!
Herb deu-lhe uma palmada no ombro
sem dizer nada; os dois caminharam
pelo gramado em silêncio.
Voltando para a Academia, Herb, ao
volante, disse:
Tem cigarros no bolso do meu paletó.
— Foi a primeira frase pronunciada
desde que entraram no mosquinha.
— Obrigado — disse Buckman. Já
tinha consumido sua ração semanal de
cigarros.
— Quero discutir um assunto com
você — disse Herb.
— Gostaria de deixar para mais
tarde, mas é impossível.
— Não dá para esperar até que a
gente chegue ao escritório?
— Pode haver outros oficiais
graduados quando chegarmos lá. Ou
mesmo outras pessoas quaisquer, meus
funcionários, por exemplo.
— Nada que tenho a dizer é...
— Escute — disse Herb. — A
respeito de Alys. A respeito do seu
casamento com ela. Sua irmã.
— Meu incesto — disse Buckman,
brusco.
— Alguns marechais talvez saibam
disso. Alys contou a muita gente. Sabe
como ela era a respeito disso.
— Tinha orgulho disso disse
Buckman, acendendo um cigarro com
dificuldade. Ainda não tinha-se
recuperado do choque de ter-se flagrado
chorando.
“Eu devia gostar muito dela”, pensou,
“E me parecia que tudo que sentia era
medo e aversão. E atração sexual.
Quantas vezes falamos sobre isso antes
de fazer a coisa. Todos aqueles anos.”
— Nunca contei a ninguém, exceto a
você — disse a Herb.
Mas Alys contou.
— Está certo. Digamos que
possivelmente alguns marechais saibam
do caso, e também o Diretor, se é que se
importa com isso.
— Os marechais que são contra você
— disse Herb — e que sabem do... —
hesitou um pouco — do incesto, dirão
que ela cometeu suicídio. De vergonha.
Pode esperar por isso. E vão deixar isso
vazar para os meios de comunicação.
— Você acha? — disse Buckman.
“Sim”, pensou, "isso daria uma boa
história.” O casamento de um general de
Polícia com sua irmã, abençoados com
um filho secreto escondido na Flórida.
O general e sua irmã posando como
marido e mulher na Flórida, enquanto
estão com o garoto.
— E o garoto: portador de uma
herança genética degenerada.
— O que quero que você compreenda
— disse Herb — e sinto muito mas você
vai ter que pensar no caso agora, que
não é o momento ideal pois a Alys
acaba de morrer e...
— O médico-legista é nosso — disse
Buckman. — Temos ele nas mãos, lá na
Academia.
— Não compreendia onde Herb
queria chegar. — Ele vai dizer que foi
uma overdose de uma droga semitóxica,
como já nos disse.
— Mas ingerida deliberadamente —
disse Herb. — Uma dose suicida.
— O que você quer que eu faça?
— Obrigue-o, ordene a ele que dê um
veredicto de assassinato.
Foi então que compreendeu. Mais
tarde, depois que superasse parte da sua
dor, teria pensado naquilo ele mesmo.
Mas Herb Maime tinha razão: era
necessário tratar daquele assunto agora
mesmo. Antes que chegassem de volta à
Academia e encontrassem seus
funcionários.
— Então poderemos dizer — falou
Herb — que...
— Que elementos da alta hierarquia
da polícia — disse Buckman, tenso —
hostis à minha política em relação aos
campos de trabalhos e às universidades
se vingaram de mim assassinando minha
irmã. — Seu sangue gelava ao ver-se já
pensando nessas coisas. Mas...
— Algo do gênero — disse Herb. —
Não vamos citar nome de ninguém. De
nenhum marechal, quer dizer. Apenas
vamos sugerir que eles contrataram
alguém para fazer o serviço. Ou
mandaram algum oficial mais novo,
ansioso por uma promoção. Não
concorda que tenho razão? E precisamos
agir rápido; temos que declarar isso
imediatamente. Assim que chegarmos à
Academia você deve mandar um
memorando para o Diretor e todos os
marechais com uma declaração desse
teor.
“Tenho que transformar uma terrível
tragédia pessoal numa vantagem”,
Buckman percebeu. “Capitalizar a morte
acidental de minha própria irmã. Se é
que foi acidental. ”
— Talvez isso tudo seja verdade —
disse. Talvez o marechal Holbein, por
exemplo, que o odiava intensamente,
tivesse tramado tudo.
— Não — disse Herb. — Não é
verdade. Mas abra um inquérito. E você
tem que achar alguém para acusar; deve
haver um julgamento.
— Sim — concordou Buckman, sem
vontade. Um julgamento com todos os
detalhes. Terminando por uma execução,
com muitas menções nos noticiários de
que “altas autoridades” estavam
envolvidas no caso, mas não podiam ser
indiciadas em virtude de seus altos
postos. E o Diretor, esperava-se,
lamentaria oficialmente a tragédia,
expressando seu desejo de que o
culpado fosse encontrado e punido.
— Sinto ter que trazer este assunto à
baila tão cedo — disse Herb — mas
eles já rebaixaram você de marechal
para general; se a história do incesto for
divulgada poderão forçá-lo a entrar na
reserva. É claro que, mesmo se nós
tomarmos a iniciativa, eles poderão
divulgar a história do incesto.
Esperemos que você tenha uma boa
cobertura.
— Fiz todo o possível — disse
Buckman.
— Quem poderemos acusar? —
perguntou Herb.
— O marechal Holbein e o marechal
Ackers. — Buckman os odiava tanto
quanto eles o odiavam; cinco anos antes
os dois marechais haviam mandado
matar mais de dez mil estudantes na
Universidade de Stanford, a atrocidade
mais sangrenta e desnecessária daquela
pior das atrocidades que foi a Segunda
Guerra Civil.
— Não me refiro a quem planejou a
coisa. Isso é óbvio; como você disse,
Holbein, Ackers e seu grupo. Estou me
referindo a quem de fato injetou a droga
em Alys.
— A arraia miúda — disse Buckman.
— Algum prisioneiro político de um
campo de trabalhos forçados. — Na
verdade não importava. Serviria
qualquer dos milhares de prisioneiros
dos campos, ou qualquer estudante de
uma comuna em extinção.
— Diria que é melhor acusar alguém
situado mais em cima — disse Herb.
— Por quê? — Buckman não
acompanhou seu raciocínio. — É assim
que sempre se faz; o aparelho
burocrático sempre pega alguém
desconhecido, sem importância...
— Diga que foi algum dos amigos
dela. Alguém que poderia ter sido seu
igual. Aliás, pegue alguém bem
conhecido. Melhor ainda, pegue alguém
da área artística aqui da região; ela era
uma Papa-Celebridades.
— Por que alguém importante?
— Para fazer uma ligação de Holbein
e Ackers com aqueles degenerados com
quem ela andava, que faziam as orgias
telefônicas.
Herb parecia agora zangado de
verdade; Buckman o olhou espantado.
— Aqueles que realmente a mataram.
Seus amigos de culto. Pegue alguém na
mais alta posição possível. Aí sim você
terá algo bem quente para jogar em cima
dos marechais. Pense no escândalo que
isso vai dar. Holbein participando da
rede telefônica!
Buckman apagou seu cigarro e
acendeu outro. Enquanto isso, refletia.
“O que tenho que fazer é armar um
escândalo maior ainda que o deles.
Minha história tem que ser ainda mais
chocante do que a deles.”
Teria que ser uma história e tanto.
25
Em seu escritório na Academia de
Polícia de Los Angeles, Felix Buckman
repassava os documentos, cartas e
memorandos em sua mesa, separando
mecanicamente os que exigiam a atenção
de Herb Maime e descartando os que
podiam esperar.
Trabalhava depressa, sem interesse
genuíno. Enquanto examinava os papeis,
Herb, em seu próprio escritório,
começava a redigir a primeira
declaração extra-oficial que Buckman
iria divulgar a respeito da morte de sua
irmã.
Ambos terminaram rapidamente suas
tarefas e encontraram-se no escritório
onde Buckman exercia suas atividades
mais importantes.
Sentado em sua enorme escrivaninha
de carvalho, Buckman leu o rascunho de
Herb.
— Precisamos mesmo fazer isso? —
perguntou, ao terminar de ler.
— Sim — disse Herb. — Se você
não estivesse tão atordoado com os
acontecimentos, seria o primeiro a
reconhecer. É exatamente porque
consegue enxergar com clareza coisas
desse tipo que você ainda está no topo
da hierarquia; se não tivesse essa
capacidade eles o teriam rebaixado a
instrutor da Escola de Polícia anos
atrás.
— Se é assim, solte o relatório —
disse Buckman. — Espere fez sinal a
Herb para que voltasse. — Você
menciona o médico legista. O pessoal
dos meios de comunicação não vai saber
que a autópsia não poderia ter sido feita
em tão pouco tempo?
— Estou adiantando a data da morte.
Estou declarando que ocorreu ontem.
Por esse motivo.
— É necessário?
Herb disse com simplicidade:
— Nossa declaração tem que sair
primeiro. Antes da deles. E eles não vão
esperar o resultado da autópsia.
— Está certo — disse Buckman. —
Solte o relatório.
Peggy Benson entrou no escritório,
trazendo vários memorandos
confidenciais e uma pasta amarela.
— Sr. Buckman — disse ela — num
momento como este não gostaria de
incomodá-lo, mas estes...
— Pode me passar — disse
Buckman. “Mas só esses”, pensou.
“Depois vou para casa. ”
— Eu sabia que o senhor estava
procurando este dossiê. O inspetor
McNulty também. Acabou de chegar,
dez minutos atrás, da Central de Dados.
Colocou a pasta na escrivaninha, na
frente dele.
— É o dossiê de Jason Taverner.
Assombrado, Buckman disse:
— Mas não existe nenhum dossiê
sobre Jason Taverner.
— Parece que estava com outra
pessoa disse Peggy.
— Seja como for, acabam de
transmiti-lo, portanto devem tê-lo
conseguido de volta. Não mandaram
nenhuma explicação; a Central de Dados
apenas...
— Saia — e me deixe examiná-lo
disse Buckman.
Sem dizer nada Peggy Benson saiu do
escritório e fechou a porta.
— Não deveria ter falado com ela
daquele modo — disse Herb Maime a
Buckman.
— É compreensível.
Abrindo a pasta de Jason Taverner,
Buckman viu uma foto publicitária
12x20, em cores brilhantes. Preso a ela
um papel dizia: Cortesia do Show Jason
Taverner, todas as terças às nove da
noite na NBC.
— Meu Deus — disse Buckman. —
Os deuses estão brincando conosco.
Puxando as nossas asas.
Herb também se inclinou para olhar.
Ambos ficaram longo tempo fitando a
foto publicitária sem falar nada, até que
afinal Herb disse:
— Vamos ver o que mais há na pasta.
Buckman pôs a foto de lado e passou
a ler a primeira página do dossiê.
— Quantos telespectadores? —
perguntou Herb.
— Trinta milhões — disse Buckman.
— Pegou o interfone. — Peggy, ligue
para o escritório da NBC aqui em Los
Angeles. Chama-se KNBC ou algo
assim. Chame um dos diretores da rede,
quanto mais alto o posto melhor. Diga
que sou eu.
— Sim, Sr. Buckman.
Dali a alguns minutos apareceu na
teletela um rosto com ar responsável que
disse.
— Sim, senhor. Em que podemos
servi-lo, general?
— Vocês têm um programa chamado
Show Jason Taverner? — perguntou
Buckman.
— Todas as terças à noite, há três
anos. Às nove em ponto.
— Isso está no ar há três anos'!
— Sim, general.
Buckman desligou.
— Nesse caso — disse Herb Maime
— o que fazia Taverner em Watts
comprando documentos forjados?
— Não conseguimos nem uma
certidão de nascimento dele.
Procuramos em todos os bancos de
dados que existem, nos arquivos de
todos os jornais. Você já ouviu falar do
Show Jason Taverner, às terças-feiras
na NBC?
— Não — disse Herb cauteloso, com
hesitação.
— Não tem certeza?
— Já falamos tanto sobre Taverner...
— Nunca ouvi falar desse show —
disse Buckman.
— E eu assisto a duas horas de
televisão todas as noites. Das oito à dez.
— Passou à página seguinte do dossiê,
jogando de lado a primeira folha, que
caiu no chão; Herb a apanhou.
Segunda página: uma lista de todos
os discos que Jason Taverner gravara ao
longo dos anos, dando título, data e
número de série. Buckman olhou
espantado para a lista; começava 19
anos antes.
— Ele nos disse que era cantor —
disse Herb. — E um de seus documentos
era do sindicato dos músicos. Portanto
essa parte é verdade.
— Tudo isso é verdade — disse
Buckman, ríspido. Passou para a página
3. Revelava a situação financeira de
Taverner, suas fontes de renda e
respectivos valores.
— Muito mais do que ganho como
general de Polícia. Mais do que eu e
você ganhamos juntos.
— Ele tinha um montão de dinheiro
quando esteve aqui. E deu para Kathy
Nelson um dinheirão pelas IDs, lembrase?
— Sim, Kathy contou isso a McNulty;
lembro-me de ter lido no relatório dele.
— Buckman ficou refletindo, enquanto
mecanicamente dobrava o canto da
página xerocada. E então parou de
mexer na folha. De repente.
— O que foi? — perguntou Herb.
— Isto é uma cópia xerox. A Central
de Dados nunca extrai do arquivo
documentos originais; só enviam cópias.
— Mas eles têm que extrair os
documentos para tirar a xerox.
— Demora cinco segundos — disse
Buckman.
— Não sei — disse Herb. — Não me
peça para explicar isso. Não sei quanto
tempo demora.
— É claro que sabe. Todos nós
sabemos. Já vimos esse processo um
milhão de vezes. Fazem isso o dia
inteiro.
— Nesse caso o computador errou.
— Certo — disse Buckman. — Ele
nunca se filiou a nenhum partido
político; sua ficha policial é
inteiramente limpa. Sorte dele. —
Continuou percorrendo a pasta.
— Andou se metendo com o
sindicato uma época. Andava armado,
mas tinha porte de armas. Foi
processado há dois anos por um
espectador que disse que uma enquete
de seu programa era uma caricatura
dele. Um tal de Artemus Frank, residente
em Des Moines. O advogado de
Taverner ganhou a causa. —
Continuou lendo trechos daqui e dali,
sem procurar nada em especial, apenas
se admirando. — Seu disco número 45,
Nada em Lugar Nenhum, já vendeu
mais de dois milhões de cópias. Já
ouviu falar desse disco?
— Não sei — disse Herb.
Buckman o encarou fixamente.
— Pois eu nunca ouvi falar. Essa é a
diferença entre você e eu, Maime. Você
não tem certeza. Eu tenho.
— Tem razão — disse Herb. — Mas
neste momento realmente não sei. Acho
tudo isso muito confuso, e temos outras
coisas a fazer; temos que pensar em
Alys e no relatório do médico-legista.
Temos que falar com ele o mais rápido
possível. Ainda deve estar lá na casa;
vou telefonar e você pode...
— Taverner estava com ela quando
ela morreu — disse Buckman.
— Sim, já sabemos disso. Chancer
nos contou. Você não deu importância.
Mas continuo achando que, nem que seja
só para constar, devemos trazê-lo aqui e
falar com ele. Ver o que ele tem a dizer.
— Será que Alys já o conhecia
antes? — perguntou Buckman. Pensou
consigo: “Sim, ela sempre gostou dos
tipo seis, principalmente dos da área
artística. Como Heather Hart. Alys e
essa tal de Hart tiveram um romance de
três meses no ano retrasado... Essa foi
uma relação que quase não chegou ao
meu conhecimento: conseguiram
esconder a coisa direitinho. Foi uma das
poucas vezes em que Alys ficou de boca
fechada.”
Viu então no dossiê de Jason
Taverner uma menção a Heather Hart;
fixou os olhos nela enquanto pensava
naquela mulher. Heather Hart fora
amante de Taverner durante mais ou
menos um ano.
— Afinal — disse Buckman —, os
dois são tipo seis.
— Taverner e quem mais?
— Heather Hart, a cantora. Este
dossiê está atualizado; diz aqui que
Heather Hart apareceu no show de Jason
Taverner esta semana. Como convidada
especial.
Jogou de lado a pasta e procurou
cigarros no bolso do paletó.
— Pegue — Herb estendeu-lhe seu
próprio maço.
Buckman esfregou o queixo e disse:
— Vamos mandar trazer essa mulher,
essa Hart. Junto com Taverner.
— Certo. — Herb tomou nota do
pedido no bloquinho que sempre trazia
no bolso do colete.
— Foi Jason Taverner — disse
Buckman em voz baixa, como se falasse
para si mesmo — quem matou Alys. Por
ciúme de Heather Hart. Descobriu o
relacionamento das duas.
Herb Maime piscou os olhos.
— Não foi isso mesmo? — Buckman
olhou bem firme para Herb.
— Certo — disse Herb, depois de
um silêncio.
— Motivo. Oportunidade. Uma
testemunha: Chancer, que pode declarar
que Taverner saiu correndo,
preocupado, e tentou pegar as chaves do
mosquinha de Alys. Quando Chancer
entrou na casa para investigar,
suspeitando de alguma coisa, Taverner
correu e escapou. Mesmo com Chancer
atirando para cima, mandando-o parar.
Herb concordou, em silêncio.
— É isso aí — disse Buckman.
— Quer que ele seja trazido agora
mesmo?
— O mais rápido possível.
— Vamos avisar todos os postos de
controle. Emitir um alerta geral. Se ele
ainda estiver em Los Angeles
poderemos pegá-lo com uma projeção
do seu EEG transmitida de helicóptero,
até que encontrem um padrão
correspondente, como já estão fazendo
em Nova Iorque. Aliás, podemos até
mandar vir um helicóptero de Nova
Iorque só para isso.
— Ótimo — disse Buckman.
— Vamos dizer que Taverner estava
envolvido nas orgias dela?
— Não houve orgia nenhuma —
disse Buckman.
— Holbein e a turma dele vão...
— Deixe que eles provem — disse
Buckman. Num tribunal aqui da
Califórnia. Onde temos nossa jurisdição.
— Por que Taverner?
— Tem que ser alguém — disse
Buckman, mais para si mesmo; enlaçou
os dedos diante de si, sobre a grande
escrivaninha de carvalho. Apertou
convulsivamente os dedos, com toda a
força. —
— Sempre, sempre tem que ser
alguém — disse então.
— E Taverner é uma pessoa
importante. Bem como ela gostava. Na
verdade é por isso que ele esteve lá; é
bem o tipo de celebridade que ela
preferia. Além disso — olhou para
Herb.
— Por que não? Ele serve
perfeitamente. — “Sim, por que não?”,
pensou, e continuou, taciturno, a apertar
mais e mais os dedos enlaçados sobre a
mesa.
26
Andando pela rua ao sair do
apartamento de Mary Anne, Jason
Taverner pensou consigo: “Minha sorte
virou. Tudo voltou, tudo que perdi.
Graças a Deus! ”.
“Sou o homem mais feliz dessa porra
desse mundo”, pensou. “Este é o maior
dia da minha vida. A gente nunca dá
valor às coisas até perdê-las, até que de
repente não as têm mais. Bem, durante
dois dias perdi tudo e agora tudo voltou;
mas agora sei apreciar. ”
Segurando firme a caixa com o vaso
feito por Mary— Anne, correu pela rua
dando sinal a um táxi que passava.
— Para onde, senhor? — perguntou o
táxi automático abrindo a porta.
Ofegante de cansaço, Jason entrou e
fechou a porta manualmente.
— Norden Lane 803, em Beverly
Hills. — O endereço de Heather Hart.
Estava enfim voltando para ela. E tal
como ele era na realidade, não como ela
o vinha imaginando durante os dois
horríveis últimos dias.
O táxi zarpou verticalmente para o
espaço e Jason reclinou-se no assento
com gratidão, sentindo-se ainda mais
cansado do que no apartamento de Mary
Anne. Tanta coisa acontecera.
“E Alys Buckman?”, perguntou-se.
“Será que devo tentar entrar em contato
com o general Buckman de novo? Mas
por estas alturas ele já deve estar
sabendo. E eu deveria me manter longe
disso. ”
Um astro dos discos e detevê não
deve se meter em assuntos
sensacionalistas; “A imprensa marrom
está sempre a postos para exagerar as
coisas' ao máximo.”
“Mas alguma coisa eu devo a ela”,
pensou. “Ela tirou fora os aparelhos
eletrônicos que os tiras pregaram em
mim antes de seu sair da Academia de
Polícia. ”
“Mas agora eles não vão estar me
procurando. Tenho minha identidade de
volta; sou conhecido no planeta inteiro.
Trinta milhões de espectadores podem
testemunhar minha existência física e
legal. ”
“Nunca mais vou precisar ter medo
de uma batida policial”, pensou, e
fechou os olhos, caindo numa
sonolência.
— Chegamos, senhor — falou a voz
do táxi de repente. Jason abriu os olhos
e endireitou-se no assento. Já? Olhando
pela janela viu o conjunto residencial
onde Heather tinha seu esconderijo na
Califórnia.
— Ah, sim — disse, pescando no
bolso seu maço de notas. — Obrigado.
— Pagou, e o táxi abriu a porta para
deixai-lo sair. Sentindo se bemhumorado outra vez, perguntou: Se eu
não tivesse dinheiro para pagar a
corrida você não abriria a porta?
O táxi não respondeu. Não fora
programado para aquela pergunta. Mas
que diabos lhe importava aquilo? Ele
tinha o dinheiro.
Saiu caminhando pela calçada e
tomou em seguida a rampa de madeira
em espiral que levava ao saguão
principal. O luxuoso edifício de dez
andares flutuava sobre jatos de ar
comprimido a alguns palmos do solo. A
flutuação dava aos moradores uma
perpétua sensação de estar sendo
suavemente embalados, como num
gigantesco seio materno. Ele sempre
gostara daquilo. Na costa leste a ideia
não fizera sucesso, mas aqui na costa
oeste era um luxo que estava na moda.
Apertou na portaria eletrônica o
botão correspondente ao apartamento de
Heather e esperou, segurando a caixa
com o vaso nas pontas dos dedos da
mão direita erguida.
“É melhor não fazer isso”, resolveu;
“posso deixar cair como fiz com o outro.
Mas não vou deixar cair; minhas mãos
agora estão firmes. ”
“Vou dar esse raio de vaso para
Heather”, decidiu. “Um presente que
escolhi para ela porque compreendo o
gosto finíssimo que ela tem. ”
A tela da portaria eletrônica
iluminou-se e apareceu um rosto de
mulher que o examinava. Susie, a
empregada de Heather.
— Ah, Sr. Taverner — disse Susie, e
em seguida soltou o trinco da porta,
controlado a partir de regiões de
altíssima segurança.
— Entre. Heather saiu mas...
— Eu espero — disse ele. Cruzou o
saguão até o elevador, apertou o botão e
esperou.
Dali a um momento encontrou Susie
abrindo-lhe a porta do apartamento de
Heather. Miúda, morena e bonita,
cumprimentou-o como sempre fazia:
com calor. E familiaridade.
— Oi! — disse Jason, entrando.
— Como estava lhe dizendo — disse
Susie —, Heather saiu para fazer
compras mas deve voltar lá pelas oito.
Hoje ela tem bastante tempo livre; me
disse que queria aproveitá-lo bem
porque mais para o fim da semana terá
uma longa sessão de gravação na RCA.
— Não estou com pressa — disse
ele, com sinceridade. Entrando na sala,
colocou a caixa de papelão bem no
centro da mesa de café, onde Heather
por certo a veria.
— Vou ouvir um pouco de quadsom e
dar uma deitada — disse.
— Se não for incômodo.
— O senhor não faz isso sempre? —
disse Susie. — Eu também tenho que
sair; tenho dentista ;ás quatro e quinze e
é lá do outro lado de Hollywood.
— Ele a abraçou e apertou seu seio
firme.
— Hoje estamos com tesão — disse
Susie com agrado.
— Vamos lá — disse ele.
— O senhor é muito alto para mim —
disse Susie, e afastou-se para retomar
o serviço que estivera fazendo antes
de ele chegar.
Chegando no aparelho de som,
percorreu uma pilha de discos ouvidos
recentemente. Nenhum deles o atraiu;
inclinou-se então para examinar as
lombadas de toda a discoteca. Escolheu
vários discos de Heather e dois dos seus
próprios. Empilhou-os no toca-discos e
acionou o aparelho. O braço desceu e a
melodia de A Arte de Hart, uma favorita
de Jason, ecoou pela vasta sala, onde as
espessas cortinas enriqueciam o som
quadrifônico.
Jason deitou-se no sofá, tirou os
sapatos e ficou à vontade. “Ela fez um
belo serviço quando gravou isso aí”,
pensou. “Nunca na minha vida estive tão
exausto”, percebeu. “A mescalina me faz
isso. Eu poderia dormir uma semana.
Talvez durma mesmo. Ao som da voz de
Heather e da minha. Por que nós nunca
gravamos um disco juntos? É uma boa
ideia. Venderia. Venderia bem. ” Fechou
os olhos. “O dobro das vendas, e Al
poderia conseguir que saíssemos da
RCA. Mas tenho contrato com a
Reprise. Bem, pode-se dar um jeito. Dá
trabalho. Tudo dá trabalho. Mas vale a
pena.”
De olhos fechados, disse:
E agora o som de Jason Taverner.
O toca-discos deixou cair o próximo
disco. “Já?”, ele se espantou. Sentou-se,
olhou o relógio. Dormira ao som de A
Arte de Hart, mal o tinha ouvido.
Deitou-se e de novo fechou os olhos.
"Dormir”, pensou, "ouvindo o meu
som”. Sua voz, ampliada por dois canais
de cordas e guitarras, ressoou A sua
volta.
Escuridão. De olhos abertos sentouse no sofá sentindo que muito tempo se
passara.
Silêncio. O toca-discos já tocara toda
a pilha, horas seguidas de música. Que
horas seriam?
Apalpando em volta, localizou um
lustre que lhe era familiar e acendeu a
luz.
No seu relógio eram dez e trinta.
Sentiu frio e fome.
“Onde está Heather?”, perguntou-se,
tentando calçar os sapatos. “Estou com
os pés frios e úmidos e o estômago
vazio. Talvez eu possa...”
A porta da frente abriu-se. Ali estava
Heather, em seu casaco de peles, com
um jornal na mão, o Los Angeles Times.
Seu rosto severo e cinzento o
confrontava como uma máscara
mortuária.
— O que foi? — perguntou ele,
aterrorizado.
Aproximando-se, Heather lhe passou
o jornal. Em silêncio. Em silêncio ele o
pegou. E leu.
FAMOSO ARTISTA DE TEVÊ
PROCURADO
SUSPEITO DA MORTE DA IRMÃ
DE UM GENERAL DE POLICIA.
— Você matou Alys Buckman? —
perguntou Heather, áspera.
— Não — disse ele, lendo o artigo.
Segundo o Departamento de Polícia
de Los Angeles, o popular artista de
televisão Jason Taverner, apresentador
de um show de variedades de uma hora,
pode estar profundamente envolvido
num crime que, de acordo com os
especialistas da polícia, é uma vingança
cuidadosamente planejada. Esta conexão
foi anunciada hoje pela Academia de
Polícia. Taverner, 42 anos de idade,
está sendo procurado tanto pela...
Jason parou de ler e amassou o jornal
com raiva.
— Merda! — exclamou. Respirando
fundo, estremeceu. Violentamente.
— Aqui dão a idade dela como 32 —
disse Heather. — Sei com certeza
que ela tem — tinha — 34.
— Eu presenciei — disse Jason. —
Estava na casa.
— Não sabia que você a conhecia —
disse Heather.
— Tinha acabado de conhecê-la.
Hoje.
— Hoje? Só hoje? Duvido.
— É verdade. O general Buckman me
interrogou na Academia de Polícia e
ela me parou quando eu ia saindo.
Eles tinham enfiado em mim um
monte de aparelhos eletrônicos de
escuta, inclusive...
— Eles só fazem isso com os
estudantes — disse Heather.
Ele completou a frase:
—...e Alys os tirou fora. E aí me
convidou para ir à casa deles.
— E ela morreu.
— Sim. Eu vi o corpo dela como um
esqueleto todo murcho e amarelado, e
isso me assustou; você tem toda razão
em achar que me assustou. Dei o fora
de lá o mais depressa possível. —
— Você não faria o mesmo?
— Por que você a viu como um
esqueleto? Vocês dois tomaram
alguma droga? Ela sempre tomava,
portanto suponho que você tomou
também.
— Mescalina — disse Jason. — Foi
o que ela me disse, mas acho que não
era isso. — “Só gostaria de saber o
que era aquilo”, pensou consigo, o
coração ainda gelado de medo. “Será
que isto é uma alucinação provocada
pela droga, assim como a visão do
esqueleto? Estou vivendo mesmo isto
aqui ou estou naquele quarto de hotel
pulguento? Meu Deus, o que eu faço
agora? ”
— É melhor você se entregar —
disse Heather.
— Eles não podem me culpar —
disse ele. Mas sabia que não era
assim. Nos últimos dois dias
aprendera muita coisa sobre a polícia
que governava aquela sociedade.
Herança da Segunda Guerra Civil,
pensou. De porcos a tiras. O salto era
fácil.
— Se não foi você quem matou, eles
não vão culpá-lo. Os tiras não são
injustos. Não é como se os GNs
estivessem atrás de você.
Ele desamassou o jornal, leu mais um
pouco:
... que se acredita ser uma dose
excessiva de uma substância tóxica
administrada por Taverner enquanto a
Srta. Buckman estava dormindo ou num
estado...
— Eles dizem que o crime ocorreu
ontem — disse Heather. — Onde
você estava ontem? Telefonei para
seu apartamento e ninguém atendeu. E
você disse agora mesmo que...
— Não foi ontem. Foi hoje cedo. —
Tudo se tornara estranho; sentia-se
sem peso, como se flutuasse junto
com o apartamento num mar de
esquecimento sem fundo. — Eles
atrasaram a data — disse. — Uma
vez veio um técnico da polícia no
meu show e depois me contou como
eles...
— Cale a boca — disse Heather,
rude.
Jason parou de falar. Ficou ali,
desamparado. Esperando.
— Eles falam sobre mim no artigo —
disse Heather, cerrando os dentes. —
Veja na última página.
Obedecendo, ele procurou na última
página a continuação do artigo.
... os oficiais da polícia aventaram a
hipótese de que o relacionamento entre a
Srta. Buckman e Heather Hart, que
também é uma celebridade do mundo da
tevê e dos discos, provocou a expedição
de vingança de Taverner, em que...
— Que tipo de relacionamento você
teve com ela? — perguntou Jason. —
Conhecendo a Alys...
— Você disse que não a conhecia.
Disse que só a conheceu hoje.
— Ela era esquisita. Falando
francamente, acho que era lésbica.
Você teve um relacionamento sexual
com ela?
Percebeu que sua voz aumentava de
tom; não conseguia controlá-la. — É
isso que o artigo dá a entender. É
verdade?
A força do tapa fez seu rosto arder;
recuou sem querer, levantando as mãos
para proteger-se. Percebeu que nunca
tinha levado um tapa assim. Doía como
o diabo. Suas orelhas tiniram.
— Está bem — disse Heather. —
Bata em mim também.
Ele puxou o braço para trás, cerrou o
punho mas logo deixou o braço pender,
relaxando os dedos.
— Não consigo — disse. — Gostaria
de conseguir. Você tem sorte.
Acho que sim. Se você matou Alys,
com certeza poderia me matar também.
O que teria a perder? Eles vão te pôr na
câmara de gás de qualquer jeito.
— Você não acredita em mim —
disse Jason. — Não acredita que não
fiz nada.
— Não importa. Eles acham que foi
você. Mesmo se você se safar, isso
vai ser o fim da merda da sua
carreira, e aliás da minha também. É
o nosso fim; compreende? Você
percebe o que fez? — Estava agora
gritando com ele; assustado, ele se
aproximou dela, e quando o tom da
voz dela aumentou, afastou-se de
novo. Confuso.
— Se eu conseguisse falar com o
general Buckman — disse ele —
poderia...
— Com o irmão dela? Para ele que
você vai apelar? — Heather
aproximou-se, ameaçadora, os dedos
como garras.
— Ele é o chefe da comissão que
está investigando o crime!
— Assim que o médico-legista
declarou que foi um homicídio, o
general Buckman anunciou que iria se
ocupar pessoalmente do incidente.
Você não consegue ler o artigo
inteiro? Eu já o li dez vezes no
caminho para cá; comprei o jornal em
Bel Aire depois de buscar meu
casaco novo, que encomendaram da
Bélgica para mim. Finalmente
chegou. E agora veja. O que importa?
Jason tentou passar o braço em volta
de seus ombros. Ela se esquivou, rígida.
— Não vou me entregar — ele disse.
— Faça o que quiser. — A voz dela
caíra para um sussurro apagado. —
Não me importo. Contanto que vá
embora. Não quero ter mais nada a
ver com você. Gostaria que os dois
tivessem morrido, você e ela. Aquela
putinha magrela... para mim ela só
criou problemas. No fim tive que
chutá-la fora com toda força; ela
grudou em mim feito uma
sanguessuga.
— Ela era boa de cama? — ele
perguntou, e pulou para trás quando
Heather ergueu a mão, procurando
atingir seus olhos.
Durante algum tempo nenhum dos
dois disse nada. Estavam parados lado a
lado. Jason ouvia a respiração dela e a
dele próprio também. Flutuações de ar
rápidas e ruidosas. Inspirando e
expirando, inspirando e expirando.
Fechou os olhos.
— Faça o que quiser — disse
Heather. Vou-me entregar à
Academia.
— Eles estão procurando você
também? —Mas será que você não
consegue ler o artigo inteiro? Será
que não consegue fazer nem isso?
Eles querem meu testemunho. Sobre
como você se sentia a respeito de
meu relacionamento com Alys. É do
conhecimento público que na época
eu estava dormindo com você,
caramba.
— Não sabia do relacionamento de
vocês.
— Vou dizer isso a eles. Quando foi
— ela hesitou, depois continuou: —
quando foi que você descobriu?
— Nesse jornal. Agora mesmo.
— Você não sabia disso ontem
quando ela foi morta?
Com isso ele desistiu; não adiantava.
Era como viver num mundo de borracha.
Tudo pulava. Tudo mudava de forma
assim que se tocava ou mesmo se olhava
para as coisas.
— Está certo, então foi só hoje —
disse Heather. Se é nisso que você
acredita. Você deveria saber melhor
que ninguém.
— Até logo — ele falou. Sentando,
pescou seus sapatos debaixo do sofá,
calçou-os, amarrou os cadarços,
levantou-se. Pegou então a caixa de
papelão na mesa de café.
— Para você — disse, e jogou-lhe a
caixa. Heather a agarrou; a caixa lhe
bateu no peito e caiu no chão.
— O que é?
— Nessas alturas já esqueci.
Ajoelhando-se, Heather pegou a
caixa, abriu-a e tirou muitos jornais e
depois o vaso azul vitrificado. Não se
quebrara.
— Oh! — exclamou, suave.
Levantando-se, examinou o vaso
contra a luz. — É incrivelmente
lindo. Obrigada.
Jason disse:
— Não matei aquela mulher.
Afastando-se dele, Heather colocou o
vaso numa prateleira alta, cheia de
bibelôs. Não falou nada.
— O que posso fazer — disse ele —
a não ser ir embora? — Esperou, mas
ela não disse nada.
— Não vai falar nada? — perguntou.
— Telefone para eles — disse
Heather. E diga-lhes que está aqui.
Ele pegou o fone e chamou a
telefonista.
Gostaria que a senhora ligasse para a
Academia de Polícia de Los Angeles.
Para o general Felix Buckman. Diga a
ele que é Jason Taverner.
A telefonista ficou em silêncio. Ele
disse. — Alô?
— O senhor pode ligar para lá
diretamente.
— Quero que a senhora ligue.
— Mas, meu senhor...
— Por favor — ele disse.
27
Phil Westerburg, o médico-legista
principal da Academia de Polícia de
Los Angeles, disse para seu superior, o
general Felix Buckman:
— Vou lhe explicar da melhor
maneira o efeito dessa droga. O senhor
não ouviu falar dela porque ainda não
está sendo usada; sua irmã deve tê-la
surrupiado do laboratório de atividades
especiais da polícia. — Passou a
desenhar num pedaço de papel. — A
coordenação temporal é uma função
cerebral. É uma estruturação da
percepção e da orientação.
— Por que essa droga a matou? —
perguntou Buckman. Era tarde e estava
com dor de cabeça.
— Queria que o dia acabasse logo;
queria que tudo e todos fossem embora.
— Foi uma overdose — perguntou.
— Ainda não temos meios de
determinar o que constituiria uma dose
excessiva de KR-3. No momento está
sendo testada em voluntários internos no
campo de trabalhos forçados de San
Bernardino, mas até agora... —
Westerburg continuava a desenhar. —
Bem, seja como for, como estava
dizendo, a coordenação temporal é uma
função cerebral e funciona enquanto o
cérebro recebe informações. Agora já
sabemos também que o cérebro não
pode funcionar se não coordenar
também o espaço. Mas o porquê disso
ainda não sabemos. Provavelmente tem
algo a ver com o instinto de estabilizar a
realidade de tal forma que sequências de
eventos possam ser organizadas em
termos de antes-e-depois — isso seria o
tempo — e, mais importante, de
ocupação de espaço. É o que ocorre
com um objeto tridimensional
comparado com um desenho desse
objeto.
Mostrou seu desenho a Buckman.
Para ele não significava nada; olhou
aquilo desconcertado, e perguntou-se
onde, àquela hora da noite, poderia
conseguir Darvon para sua dor de
cabeça. “Será que Alys teria alguns
comprimidos?” Como um esquilo ela
vivia armazenando pílulas.
Westerburg continuou:
— Agora, um aspecto do espaço é
que qualquer determinada unidade
espacial exclui todas as outras unidades;
se um objeto está aqui, não pode estar
ali. Da mesma forma que no tempo se
um evento ocorreu antes, não pode
ocorrer também depois.
— Isso não poderia esperar até
amanhã? — perguntou Buckman. —
Você havia dito no início que levaria
vinte e quatro horas para dar um
relatório determinando a toxina em
questão. Vinte e quatro horas para mim é
satisfatório.
— Mas o senhor requisitou que
acelerássemos a análise — disse
Westerburg. — O senhor pediu que a
autópsia começasse imediatamente. Às
duas e dez da tarde de hoje, quando fui
chamado oficialmente pela primeira vez.
— Foi mesmo? — disse Buckman.
“Sim”, pensou, “fiz isso mesmo. Antes
que os marechais conseguissem armar a
história deles.”
— Por favor, não faça desenhos —
disse ao médico. — Minha vista está
doendo. Apenas me conte.
— A exclusividade do espaço, como
sabemos, é apenas uma função do
cérebro ao lidar com a percepção. Ele
controla as informações em termos de
unidades espaciais mutuamente
restritivas. — Milhões dessas unidades.
Aliás, teoricamente são trilhões. Mas o
espaço em si não é exclusivo. Na
verdade, o espaço em si não tem
existência alguma.
— E isto significa...?
Westerburg, controlando-se para não
desenhar, disse:
— Uma droga como o KR-3 destrói a
capacidade do cérebro de separar as
unidades espaciais umas das outras.
Portanto perde-se a noção do aqui
versus ali quando o cérebro tenta lidar
com a percepção. Não se sabe mais
dizer se um objeto já se foi ou se ainda
está ali. Quando isso ocorre o cérebro
não consegue mais excluir vetores
espaciais alternativos. Ele abre o leque
inteiro da variação espacial. O cérebro
não consegue mais diferenciar os
objetos que existem dos que são apenas
possibilidades latentes, não-espaciais.
Em resultado, abrem-se corredores
espaciais concorrentes, nos quais entra
um sistema de percepção deturpado, e
um universo inteiramente novo parece
estar em processo de criação.
— Compreendo — disse Buckman.
Mas na verdade não estava
compreendendo, nem se importando.
“Só quero ir para casa”, pensou. “E
esquecer tudo isso. ”
— Isto é muito importante — disse
Westerburg, com seriedade. — O KR-3
é uma grande conquista. A pessoa
afetada por essa droga é forçada a
perceber universos irreais, quer queira
ou não. Como disse, de repente trilhões
de possibilidades ficam teoricamente
reais; o acaso entra em jogo e o sistema
de percepção da pessoa escolhe uma
possibilidade entre as muitas que lhe
são abertas. O sistema tem que escolher,
pois do contrário os universos
concorrentes iriam se sobrepor, e o
próprio conceito de espaço
desapareceria. Está me acompanhando?
Sentado em sua mesa, a pouca
distância, Herb Maime disse:
— Ele está dizendo que o cérebro
agarra o universo espacial que estiver
mais próximo.
— Sim — disse Westerburg. — O
senhor leu o relatório confidencial do
nosso laboratório sobre o KR-3, não
leu, Sr. Maime?
— Li há pouco mais de uma hora —
disse Maime. — A maior parte era
técnica demais para mim. Mas notei que
os efeitos são transitórios. O cérebro
acaba reestabelecendo contato com os
objetos espaço-temporais verdadeiros,
que percebia antes.
— Certo — disse Westerburg. —
Mas enquanto a droga está ativa a
pessoa existe, ou acha que existe...
— Não há diferença — disse Herb
— entre as duas coisas, e assim que a
droga trabalha; ela abole esta distinção.
— Tecnicamente — disse
Westerburg. — Mas o sujeito da
experiência sente-se envolvido por um
ambiente real, ambiente estranho ao
anterior que sempre experimentou, e age
como se tivesse entrado num novo
mundo. Um mundo com aspectos
alterados... O grau de alteração é
determinado pela distância entre o
universo de espaço-tempo que ele
percebia antes e o novo universo em que
ele é forçado a funcionar.
— Vou para casa — disse Buckman.
— Não aguento mais. — Levantou-se.
— Obrigado, Westerburg — disse,
estendendo automaticamente a mão ao
médico-legista chefe, que a apertou. —
Faça um resumo para mim — disse para
Herb Maime — e eu dou uma olhada
amanhã de manhã. — Preparou-se para
sair, com o sobretudo dobrado sobre o
braço. Como sempre fazia.
— Você compreende agora o que
aconteceu com Taverner? — disse Herb.
— Não — respondeu Buckman.
— Passou para um universo em que
ele não existia. E nós passamos junto
com ele, pois somos objetos de seu
sistema de percepção. E quando o efeito
da droga se esvaneceu, ele voltou para
este universo. E o que o prendeu de
volta aqui não foi nada que ele tomou ou
deixou de tomar, mas sim a morte dela.
Portanto é claro que seu dossiê nos foi
enviado pela Central de Dados.
— Boa-noite — disse Buckman.
Saiu do escritório, atravessou a grande
sala silenciosa, cheia de mesas
metálicas imaculadas, todas iguais,
todas limpas no fim do dia, inclusive a
de McNulty. Por fim viu-se no tubo de
ascensão, subindo ao teto.
O ar noturno, claro e frio, fez sua
cabeça doer terrivelmente: fechou os
olhos e cerrou os dentes. Pensou então,
“Eu poderia arranjar um analgésico com
Phil Westerburg. Deve haver uns
cinquenta tipos diferentes na farmácia da
Academia, e Westerburg tem a chave”.
Tomando o tubo de descida, voltou
ao 14º andar e ao seu escritório, onde
Westerburg e Herb Maime ainda
conversavam.
Ao vê-lo, Herb disse:
— Quero lhe explicar uma coisa que
disse antes. Sobre o fato de nós sermos
objeto do sistema de percepção dele.
— Não somos disse Huckman.
— Somos e não somos — disse
Herb. — Não foi Taverner quem tomou
o KR-3. Foi Alys. Taverner, como todos
nós, tornou-se um dado no sistema de
percepção de sua irmã, e foi arrastado
também quando ela passou para um
conjunto alternativo de coordenadas. Ela
se interessava muito por Taverner. Era
um artista que correspondia aos seus
desejos, e ela alimentou por algum
tempo a fantasia de conhecê-lo
pessoalmente. Mas apesar de ter
conseguido realizar isso por meio da
droga, ao mesmo tempo tanto ele como
nós permanecemos em nosso próprio
universo. Ocupamos dois corredores
espaciais ao mesmo tempo, um real e o
outro irreal. Um é a realidade; o outro é
uma possibilidade latente entre muitas,
temporariamente especializada pelo
KR-3. Mas só temporariamente. Mais ou
menos por dois dias.
— Esse lapso de tempo — disse
Westerburg — é suficiente para causar
um enorme dano físico ao cérebro. O
cérebro de sua irmã, Sr. Buckman,
provavelmente foi destruído não tanto
pelo teor tóxico da droga mas por uma
sobrecarga muito alta e muito
prolongada. Talvez terminemos por
descobrir que a causa final da morte foi
o dano irreversível causado ao tecido
cortical, uma aceleração da deterioração
neurológica normal... O cérebro dela
morreu de velhice, por assim dizer, no
espaço de dois dias.
— Você pode me arranjar uns
comprimidos de Darvon? — perguntoulhe Buckman.
— A farmácia está fechada — disse
Westerburg.
— Mas você tem a chave.
— Tenho ordens para não usá-la na
ausência do farmacêutico.
— Abra uma exceção — disse-lhe
Herb com rispidez.
— Neste caso.
Westerburg afastou-se, procurando o
seu molho de chaves.
— Ora disse Buckman a Herb —, se
o farmacêutico f.hvcsse de plantão ele
não precisaria da chave.
— Este planeta inteiro — disse Herb
—, é governado por burocratas. —
Olhou com atenção para Buckman. —
Você está doente, não está em condições
de aguentar mais nada. Depois que ele
lhe der o Darvon, vá para casa.
— Não estou doente — disse
Buckman. — Apenas não me sinto bem.
Mas não fique por aqui. Deixe que
termino o serviço. Você já estava indo
embora e voltou de novo.
— Sou como um bicho — disse
Buckman. — Como um rato de
laboratório.
— Neste momento tocou o telefone
em sua grande escrivaninha de carvalho.
— Será que é um dos marechais? —
perguntou Buckman. — Não vou
conseguir falar com eles hoje; vão ter
que esperar.
Herb atendeu ao telefone. Ouviu por
um momento. Então, cobrindo o bocal
com a mão, disse:
— É Taverner. Jason Taverner.
— Eu falo com ele. — Buckman
pegou o fone e disse:
— Alô, Taverner. Já é tarde.
Num timbre metálico a voz de
Taverner chegou ao seu ouvido:
— Quero me entregar. Estou no
apartamento de Heather Hart. Estamos
os dois aqui esperando.
Buckman disse para Herb:
Ele quer se entregar.
— Diga-lhe que venha para cá —
disse Herb.
— Venha para cá — disse Buckman
ao telefone.
— Por que você quer desistir? —
perguntou. — No fim nós vamos te
matar, seu assassino miserável, filho da
puta. Você sabe disso. Por que não
foge?
— Para onde? — veio a voz
estridente de Taverner.
— Para uma universidade. Vá para
Colúmbia; lá eles têm estabilidade. Têm
comida e água por um tempo.
— Não quero mais ser caçado —
disse Taverner.
— Viver é ser caçado — disse
Buckman. — Está bem, Taverner. Venha
para cá e vamos abrir um inquérito
contra você. Traga também a tal de Hart
para pegarmos o testemunho dela. —
“Seu estúpido”, pensou. “Por que já
não aproveita e corta as bolas fora? Seu
idiota filho da puta.” Sua voz tremia.
— Quero limpar meu nome — veio a
vozinha de Taverner no ouvido de
Buckman.
— Quando você aparecer por aqui eu
te mato com meu próprio revólver. Por
resistir à prisão, seu degenerado. Ou por
qualquer outro motivo. Podemos dar
qualquer motivo que quisermos.
Qualquer coisa! — Desligou o telefone.
— Ele está vindo aqui para ser morto
— disse para Herb.
— Você resolveu que era ele. Pode
resolver o contrário, se quiser. Mande-o
de volta para seus discos e seu estúpido
programa de tevê.
— Não — Buckman abanou a
cabeça.
Westerburg apareceu com duas
cápsulas cor-de-rosa e um copo de
papel com água.
— Composto de Darvon — disse,
oferecendo-os a Buckman.
— Obrigado. — Buckman engoliu as
pílulas com água, amassou o copo de
papel e jogou-o na máquina de triturar
papéis. Sem ruído os dentes da máquina
giraram, e logo pararam
automaticamente. Silêncio.
— Vá para casa — disse-lhe Herb.
— Ou melhor ainda, vá para um hotel,
um bom hotel na cidade passar a noite.
Durma até tarde amanhã; deixe os
marechais por minha conta.
— Tenho que encontrar Taverner.
— Não tem, não. Deixe que trato
dele. Ou mando o sargento de plantão
abrir o inquérito. Como se fosse um
criminoso comum.
— Herb — disse Buckman —, eu
pretendo matar esse cara, como já disse
a ele no telefone. — Foi até sua
escrivaninha, destrancou a gaveta de
baixo, tirou uma caixa de cedro e a
colocou em cima da mesa. Abriu a caixa
e tirou dela uma pistola Derringer
calibre 22 de tiro único. Carregou-a
com uma bala oca e engatilhou-a, com o
cano voltado para cima por segurança.
Questão de hábito.
— Deixe me ver — disse Herb.
Buckman lhe passou a arma.
— Fabricada pela Colt — disse. —
A Colt adquiriu a patente e as matrizes,
não me lembro quando.
— É uma boa arma — disse Herb,
balançando-a na mão para sentir o peso.
— Um belo revólver. Devolveu-o a
Buckman. — Mas a bala 22 é muito
pequena. Você teria que acertá-lo bem
no meio dos olhos dele. Ele teria que
estar bem na sua frente.
Pôs a mão no ombro de Buckman. —
Use um 38 especial, ou um 45. Certo?
Vai fazer isso?
— Sabe de quem é essa pistola? —
perguntou Buckman. — De Alys. Ela a
guardava aqui; dizia que se a deixasse
em casa poderia usá-la contra mim
durante uma briga, ou tarde da noite
quando ela fica — ficava — deprimida.
Mas não é uma arma de mulher.
Derringer fazia armas para mulheres,
mas esta não é do tipo.
— Foi você quem a comprou para
ela?
— Não. Ela a achou numa loja de
penhores lá em Watts. Pagou 25 paus
por ela. Não é caro, considerando o
estado da arma. — Olhou para o rosto
de Herb. — Nós realmente temos que
matá-lo. Os marechais vão me crucificar
se nós não pusermos a culpa nele. E eu
não posso descer de cargo.
— Deixe por minha conta — disse
Herb.
— Está certo. Vou para casa agora.
— Recolocou a pistola na caixa, em seu
forro de veludo vermelho e fechou a
caixa. Abriu-a de novo e tirou a bala do
cano. Herb Maime e Phil Westerbug o
observavam.
— O cano abre deste lado neste
modelo — disse Buckman. — É raro.
— É melhor você ir para casa num
carro da polícia — disse Herb. — Do
jeito que você está se sentindo e com
tudo o que aconteceu você não deve
dirigir.
— Posso dirigir — disse Buckman.
— Sempre consigo dirigir. O que não
consigo fazer direito é matar um homem
com uma bala 22, um homem parado
bem na minha frente. Alguém tem que
fazer isso por mim.
— Boa-noite — disse Herb em voz
baixa.
— Boa-noite. — Buckman despediuse e foi saindo pelos vários escritórios,
suítes e câmaras desertas da Academia,
chegando mais uma vez ao tubo de
ascensão. O Darvon já começava a
diminuir sua dor de cabeça; sentiu-se
grato por isso. “Agora posso respirar o
ar da noite”, pensou. “Sem sofrer. ”
A porta do tubo de ascensão abriu-se.
Ali estava Jason Taverner. E com ele
uma mulher atraente. Ambos pareciam
assustados e pálidos. Os dois altos, bem
apessoados e nervosos.
Obviamente dois tipo seis. Tipo seis
derrotados.
— Você está detido pela polícia —
disse Buckman. — Aqui estão seus
direitos. Tudo o que disser pode ser
usado contra você. Tem direito a defesa,
e se não tiver condições de pagar um
advogado, o Estado lhe nomeará um.
Você tem direito de ser julgado por um
júri, e pode também renunciar a este
direito e ser julgado por um juiz
nomeado pela Academia de Polícia da
Cidade de Los Angeles. Compreendeu
tudo o que eu disse?
— Vim aqui para limpar a minha
situação — disse Jason Taverner.
— Meus funcionários tomarão o
depoimento de vocês disse Buckman. —
Entre naquele escritório azul ali, onde
você já esteve antes. — Apontou para
lá. — Está vendo aquele homem de
gravata amarela?
— Posso esclarecer minha situação?
— perguntou Jason. — Admito que
estive na casa quando ela morreu, mas
não tive nada a ver com aquilo. Quando
subi encontrei-a morta no banheiro. Ela
tinha ido buscar Thorazina para mim.
Para cortar o efeito da mescalina que me
havia dado.
— Ele a viu como um esqueleto —
disse a mulher, que obviamente era
Heather Hart. — Por causa da
mescalina. Será que ele não pode alegar
que estava sob o efeito de um poderoso
alucinógeno? Isso não basta para
inocentá-lo perante a lei? Ele não tinha
nenhum controle sobre o que fazia. Eu
também não tive absolutamente nada a
ver com tudo isso. Nem sabia que ela
tinha morrido até ler o jornal de hoje.
— Em alguns estados da União este
argumento poderia valer — disse
Buckman.
— Mas aqui não — disse a mulher,
desanimada. Entendendo.
Saindo de seu escritório, Herb
Maime percebeu a situação e disse:
— Vou autuá-lo e tomar o testemunho
dos dois, Sr. Buckman. O senhor pode
ir, como tínhamos combinado.
— Obrigado — disse Buckman. —
Onde está meu sobretudo? — Olhou em
volta, procurando.
— Meu Deus, que frio — disse. —
Eles desligam o aquecimento à noite —
explicou para Taverner e Heather.
— Desculpe.
— Boa-noite — disse Herb.
Buckman entrou no tubo de ascensão
e apertou o botão para fechar a porta.
Estava sem seu sobretudo. “Talvez eu
devesse mesmo pegar um carro daqui
para me levar”, pensou. “Arranjar um
desses cadetes ansiosos para agradar
que me leve para casa; ou, como disse
Herb, ir para um bom hotel na cidade.
Ou um dos novos motéis à prova de som
perto do aeroporto. Mas nesse caso meu
mosquinha ficaria aqui e não poderia vir
de carro para o trabalho amanhã. ”
Chegando ao teto estremeceu com o
ar frio e a escuridão. “Nem o Darvon
ajuda”, pensou. “Ainda estou com dor. ”
Abriu a porta do seu mosquinha,
entrou e bateu a porta. “Mais frio aqui
do que lá fora”, pensou. “Caramba. ”
Deu a partida e ligou o aquecedor. Um
vento frígido penetrou pelas aberturas
de ventilação; ele começou a tremer.
“Vou me sentir melhor quando chegar
em casa”, pensou. Olhou para o relógio:
duas e trinta. “Não admira que esteja tão
frio”, pensou.
“Por que escolhi Taverner?”, pensou.
“Num planeta de seis bilhões de
pessoas... Exatamente este homem que
nunca fez mal a ninguém, nunca fez nada
de errado exceto deixar que, seu dossiê
chamasse a atenção das autoridades. É
isso mesmo”, percebeu. “Jason Taverner
chamou a nossa atenção, e, como dizem,
uma vez que você chama a atenção das
autoridades, elas nunca te esquecem. ”
“Mas posso também tirar a culpa
dele, como Herb disse. ”
— Não. Mais uma vez, tinha que ser
não. Os dados estavam lançados desde o
começo. “Antes que qualquer um de nós
tivesse sequer tocado nos dados”,
pensou. “Taverner, você estava
predestinado desde o início. Desde o
seu primeiro gesto. ”
“Todos nós desempenhamos papéis”,
pensou Buckman. “Ocupamos
determinadas posições, umas menores
outras maiores. Umas comuns, outras
estranhas. Algumas insólitas e grotescas.
Algumas visíveis, outras invisíveis
ou quase. O papel de Jason Taverner no
fim tornou-se muito grande e visível, e
foi aí que a decisão teve que ser tomada.
Se ele tivesse ficado como estava, um
joão-ninguém sem documentos, morando
num hotel caindo aos pedaços numa
favela — se tivesse continuado assim
poderia se safar, ou na pior das
hipóteses acabaria num campo de
trabalhos forçados. Mas Taverner não
optou por essa vida. ” “Algum desejo
irracional dentro dele fazia com que
quisesse aparecer, ser visível, ser
conhecido. Tudo bem, Jason Taverner”,
pensou Buckman, “você agora é
conhecido outra vez, como era antes,
mas mais bem conhecido; será famoso
de outra maneira. De uma maneira que
serve a propósitos superiores —
propósitos que você desconhece
totalmente, mas deve aceitar sem
conhecer. Quando chegar à sua sepultura
sua boca ainda vai estar aberta,
perguntando: ‘Mas o que foi que eu fiz?
’ E assim você vai ser enterrado: com a
boca ainda aberta. ”
“E eu nunca poderia explicar isso
para você”, pensou Buckman. “Exceto
dizendo: nunca chame a atenção das
autoridades. Nunca deixe que nós
tenhamos interesse por você. Nunca nos
faça querer saber mais a seu respeito. ”
“Algum dia a sua história, a forma e
o ritual da sua queda serão divulgados,
num futuro remoto, quando isso já não
importar mais. Quando já não houver
campos de trabalhos forçados, nem
universidades cercadas por tiras com
metralhadoras e máscaras de gás que os
fazem parecer enormes roedores com
grandes focinhos e olhos esbugalhados,
como grandes animais nocivos.
Algum dia haverá um inquérito postmortem e todos vão saber então que
você na verdade não fez mal nenhum.
Não fez nada mais que chamar a
atenção. ”
“A verdade pura é que apesar da sua
fama e do seu grande público você é
descartável. E eu não. Essa é a diferença
entre nós dois. Portanto você deve
desaparecer, e eu devo ficar. ”
Seu carro flutuava, subindo em
direção às estrelas. Começou a
cantarolar em voz baixa, procurando
enxergar à frente adiantar o tempo,
visualizar o mundo do seu lar, mundo de
música, reflexão, amor, cheio de livros,
caixas de rapé ornamentadas e selos
raros. Para apagar por um momento o
vento que soprava à sua volta enquanto
prosseguia em seu mosquinha, partícula
de pó quase perdida na noite.
“Há uma beleza que nunca se
perderá”, afirmou para si mesmo; “vou
preservá-la; sou uma das pessoas que
sabem apreciá-la. E eu vou perdurar. E
só isso, em última análise, é o que
importa.”
Continuava cantarolando. Por fim
sentiu menos frio quando o aquecedor
do mosquinha começou a funcionar.
Alguma coisa pingou-lhe do nariz e
caiu em seu casaco.
“Meu Deus”, pensou horrorizado.
“Estou chorando outra vez. ” Limpou
dos olhos as lágrimas engorduradas.
“Por quem? ”, perguntou-se.
“Por Alys? Por Taverner? Pela tal de
Hart? Ou por todos eles? ”
“Não”, pensou. “É um reflexo.
Causado pelo cansaço e pela
preocupação. Não significa nada. Por
que um homem chora? ”, perguntou-se.
“Não é como uma mulher; não pelo
mesmo motivo. Não por
sentimentalismo. Um homem chora pela
perda de alguma coisa, de algo vivo. Um
homem chora por um animal doente, que
sabe que não vai sobreviver. Pela morte
de uma criança: um homem pode chorar
por isso. Mas não por que as coisas são
tristes. ”
“Um homem não chora pelo futuro
nem pelo passado”, pensou, “mas pelo
presente. E o que é o presente agora?
Neste momento estão autuando Jason
Taverner lá na Academia de Polícia e
ele está lhes contando sua história.
Como todo mundo, eles têm sua versão
para contar, versão que deixa bem clara
sua inocência. Jason Taverner, neste
momento em que viajo neste veículo,
está fazendo isso. ”
Girando a direção, direcionou o
mosquinha numa longa trajetória que por
fim o levou a um Immelman; fez o
veículo voltar pelo mesmo caminho em
que viera, sem aumentar nem diminuir a
velocidade. Apenas passou a voar na
direção oposta. De volta à Academia.
E continuava chorando. Suas
lágrimas de momento a momento
tornavam-se mais densas, mais rápidas,
mais profundas. “Estou indo na direção
errada”, pensou. “Herb tem razão: tenho
que escapar de lá. Não posso fazer mais
nada agora além de testemunhar algo que
não posso mais controlar. Tenho
camadas de tinta pintadas sobre mim,
como um afresco. Existo em apenas duas
dimensões. Eu e Jason Taverner somos
figuras num antigo desenho de criança.
Perdidos na poeira. ”
Pressionou o acelerador e puxou o
volante do mosquinha; o motor começou
a cuspir e estourar.
“O afogador automático ainda não
está funcionando”, pensou. “Eu devia ter
acelerado um pouco mais. Ainda está
frio.” Mais uma vez mudou de rumo.
Fatigado e com dor de cabeça,
colocou o cartão com a rota de casa no
controlador de direção do mosquinha e
ligou o piloto automático. “Eu deveria
descansar”, pensou. Levantando o braço,
ativou o circuito hipnótico embutido no
teto; o mecanismo começou a zumbir e
ele fechou os olhos.
O sono artificialmente induzido veio
como sempre de imediato. Sentiu-se cair
em espiral numa modorra, e ficou
contente. Mas logo em seguida, para
além do controle do circuito hipnótico,
veio um sonho. Era bem claro para ele
que não queria aquele sonho. Mas não
conseguia detê-lo.
Verão. O campo seco e queimado
onde vivera quando criança. Estava
andando a cavalo, e pela sua esquerda
veio chegando devagar um bando de
cavalos. Neles cavalgavam homens com
túnicas brilhantes, cada uma de cor
diferente; usavam capacetes pontiagudos
que faiscavam à luz do sol. Os solenes
cavaleiros se aproximavam lentamente,
e conseguiu distinguir o rosto de um
deles que passava: uma antiga face
marmórea, um homem terrivelmente
velho com uma cascateante barba
branca. Que nariz forte ele possuía. Que
feições nobres. Tão cansado, tão sério,
tão além dos homens comuns. Era
evidente que se tratava de um rei.
Felix Buckman deixou-os passar; não
falou com eles e os cavaleiros tampouco
lhe dirigiram a palavra. Encaminharamse para a casa da qual ele havia saído.
Um homem havia-se trancado na casa,
um homem vizinho: Jason Taverner, no
silêncio e na escuridão, sem janelas, em
inteira solidão, desde agora até a
eternidade. Sentado inerte, apenas
existindo. Felix Buckman continuou
cavalgando pelos vastos campos. E foi
então que ouviu atrás de si um terrível
grito, um só.
Haviam matado Taverner; vendo-os
entrar, sentindo a presença deles nas
sombras que o rodeavam, sabendo o que
pretendiam fazer, Taverner soltara
aquele grito.
Dentro de si Felix Buckman sentiu
uma terrível e desolada angústia. Mas
no sonho não voltou para a casa nem
olhou para trás. Nada havia que se
pudesse fazer. Ninguém poderia ter
detido o bando justiceiro em túnicas
multicores; ninguém lhes poderia dizer
não. E, de qualquer forma, tudo já tinha
terminado. Taverner estava morto.
Seu cérebro conturbado conseguiu
enviar um sinal através de minúsculos
eletrodos para o circuito hipnótico. Um
interruptor de voltagem ligou-se com um
estalido e um zumbido forte e
perturbador acordou Buckman de seu
sono e seu sonho.
“Meu Deus”, pensou com um
estremecimento. Como havia esfriado.
Como se sentia vazio e sozinho.
A plangente angústia deixada pelo
sonho ainda lhe corroía o peito;
continuou perturbado. “Tenho que
aterrissar”, pensou. “Ver alguém. Falar
com alguém. Não posso ficar sozinho.
Se eu pudesse só por um segundo...”
Desligou o piloto automático e
dirigiu o mosquinha para um quadrado
de luzes fluorescentes que via abaixo:
um posto de gasolina aberto a noite toda.
Dentro de instantes pousou com
muitos solavancos diante das bombas de
gasolina e parou próximo a outro
mosquinha estacionado, parecendo
abandonado. Ninguém em seu interior.
O clarão das lâmpadas iluminou a
figura de um negro de meia-idade
vestindo um sobretudo e uma distinta
gravata colorida; seu rosto era
aristocrático, com as feições bem
delineadas. O negro, de braços
cruzados, andava de lá para cá no chão
de cimento manchado de óleo, no rosto
uma expressão ausente. Era claro que
esperava que o robô que servia no posto
terminasse de encher o tanque de seu
mosquinha. O negro não mostrava
impaciência nem resignação; limitava-se
a existir, remoto, isolado e esplêndido,
com seu corpo forte e ereto, sem ver
nada pois não havia nada que lhe
interessasse ver.
Estacionando o mosquinha, Felix
Buckman desligou o motor, saiu e deu
alguns passos rígidos no ar frio da noite.
Encaminhou-se para o homem negro.
Este não olhou para ele. Manteve a
distância, caminhando a passos
tranquilos. Calado.
Felix Buckman remexeu no bolso do
paletó com os dedos trêmulos de frio;
encontrou sua caneta esferográfica e
passou a vasculhar os bolsos
procurando um pedaço de papel,
qualquer papel, qualquer folha de bloco.
Acabou encontrando e colocou a folha
sobre o teto do mosquinha do cavalheiro
negro. Ã luz crua e branca do posto de
gasolina, Buckman desenhou no papel
um coração trespassado por uma flecha.
Tremendo de frio, dirigiu-se ao negro e
estendeu-lhe o papel com o desenho.
Mostrando nos olhos o brilho de uma
surpresa fugaz, o negro soltou uma
exclamação espantada, aceitou o papel e
segurou-o na luz para examiná-lo.
Buckman esperou. O negro virou o
papel, viu que não havia nada do outro
lado, examinou mais uma vez o coração
flechado.
Franziu o cenho, deu de ombros,
devolveu o papel a Buckman e continuou
a caminhar em passadas calmas, mais
uma vez cruzando os braços, voltando
suas largas costas ao general de Polícia.
O pedaço de papel voou, perdido.
Em silêncio Felix Buckman retornou
ao seu mosquinha, abriu a porta e
sentou-se ao volante. Ligou o motor,
fechou a porta e levantou voo no ar
noturno, com as luzes vermelhas de
alerta piscando atrás e na frente do
veículo. Terminada a subida apagaramse automaticamente, e Felix prosseguiu
acompanhando a linha do horizonte, sem
pensar em nada.
Mais uma vez vieram as lágrimas.
Num movimento súbito girou a
direção; o mosquinha deu um violento
estouro no motor, baixou a frente e
iniciou uma trajetória vertical; em
alguns momentos ele mais uma vez
estacionava na luz crua do posto ao lado
do mosquinha vazio, do homem negro
que caminhava, das bombas de gasolina.
Buckman brecou, desligou o motor, saiu
do carro com as juntas estalando.
O negro agora olhava para ele.
Buckman caminhou em direção ao
negro. Este não recuou; ficou onde
estava. Buckman chegou até ele, abriu os
braços e deu-lhe um abraço apertado. O
negro soltou uma exclamação de
surpresa. E consternação.
Nenhum dos dois disse palavra.
Assim ficaram por um instante, até que
Buckman soltou o homem, virou-se e
voltou ao seu mosquinha em passos
inseguros.
— Espere — disse o negro.
Buckman voltou-se para encará-lo.
O negro hesitou por um momento,
tremendo de frio, e então disse:
O senhor sabe como se vai até
Ventura? Pela rota aérea 30? — Ficou
esperando. Buckman não disse nada.
— Sei que são uns oitenta
quilômetros ao norte daqui. — Buckman
continuava calado. — O senhor tem um
mapa desta região? — perguntou o
negro.
— Não — disse Buckman. — Sinto
muito.
— Vou perguntar no posto de
gasolina — disse o negro, e deu um
sorriso um pouco envergonhado. —
Muito prazer... em conhecê-lo. Como o
senhor se chama? — Esperou um longo
momento. — O senhor não quer me
dizer?
— Não tenho nome — disse
Buckman. Nesse momento, não tenho. —
De fato, naquele momento não suportava
pensar naquilo.
— O senhor por acaso é funcionário
público? Trabalha na Câmara de
Comércio de Los Angeles? — Já fiz
negócios com eles; são boa gente.
— Não — disse Buckman. — Sou um
indivíduo. Como o senhor.
— Bem, eu tenho nome — disse o
negro. Com agilidade tirou do bolso
interno do paletó um cartão em papel
grosso, que passou a Buckman.
— Montgomery L. Hopkins. Veja
esse cartão. Não é bem impresso? Gosto
dessas letras em alto-relevo. Cinquenta
dólares o milheiro foi o que me custou;
consegui um preço especial numa oferta
inaugural exclusiva.
— O cartão trazia belas letras negras
em relevo. — Fabrico fones de ouvido
analógicos com bio-realimentação. Não
são caros. Saem no varejo por menos de
cem dólares.
— Venha me visitar — disse
Buckman.
— Telefone para mim — disse o
negro. Devagar e com firmeza, mas num
tom de voz um pouco alto, disse: —
Esses lugares, esses postos de gasolina
automáticos com robôs, são deprimentes
à noite. Noutra hora podemos conversar
melhor. Em algum lugar mais agradável.
Compreendo como o senhor está se
sentindo; às vezes esses lugares deixam
a gente na fossa. Muitas vezes encho o
tanque quando volto da fábrica para
casa para não ter que parar aqui mais
tarde. Recebo muitos chamados à noite,
por vários motivos. Sim, estou vendo
que o senhor está meio por baixo. Sabe
como é. Deprimido.
É por isso que me deu aquele papel;
na hora infelizmente não compreendi o
que era, mas agora compreendo. Depois
quis me abraçar; naquele instante foi
como uma criança. Também já tive
algumas vezes na minha vida esse tipo
de inspiração, ou impulso. Estou com 47
anos. Eu compreendo. A gente não quer
ficar sozinho tarde da noite,
principalmente numa noite tão fria como
esta. Sim, concordo plenamente, e agora
o senhor não sabe bem o que dizer
porque fez uma coisa repentina num
impulso irracional, sem pensar nas
consequências. Mas tudo bem;
compreendo.
Não se preocupe, não se preocupe
nadinha mesmo. O senhor precisa vir me
visitar. Vai gostar da minha casa. É
muito agradável. Precisa conhecer
minha mulher e nossos filhos. São três.
— Está certo — disse Buckman. —
Vou guardar seu cartão. — Tirou a
carteira do bolso e guardou o cartão. —
Obrigado.
— Estou vendo que meu mosquinha
já está pronto — disse o negro. —
Estava precisando de óleo também. —
Hesitou um pouco, começou a afastar-se
mas voltou e estendeu a mão. Buckman a
apertou por um momento.
— Até logo — disse o negro.
Buckman ficou olhando para ele
enquanto ele ia embora; o negro pagou a
gasolina, entrou em seu mosquinha um
pouco malhado, deu a partida e levantou
voo na escuridão. Ao passar acima de
Buckman tirou a mão direita da direção
e lhe fez um aceno cordial.
“Boa-noite”, pensou Buckman,
acenando também em silêncio, com os
dedos mordidos de frio. Entrou então de
novo em seu mosquinha; hesitou,
sentindo-se embotado;
como não via mais nada, bateu a
porta bruscamente e deu a partida. Logo
mais estava cruzando o céu.
“Jorrem minhas lágrimas”, pensou.
“Foi a primeira música abstrata
jamais escrita. John Dowland, no seu
Segundo Livro para Alaúde, de 1600.
Vou tocá-lo no meu quadsom novo
quando chegar em casa. Aí posso me
lembrar de Alys e tudo o mais. Em casa,
com uma sinfonia, o fogo aceso na
lareira, muito calor. ”
“Vou pegar meu garotinho. Amanhã
cedo vou para a Flórida pegar o Barney.
De agora em diante ele vai ficar comigo.
Nós dois juntos. Não importam as
consequências. Mas agora não vai haver
nenhuma consequência; tudo terminou.
Tudo está a salvo. Para sempre. ”
O mosquinha voava pelo céu noturno.
Como um inseto ferido, meio dissolvido.
Levando-o para casa.
PARTE QUATRO
Ouvi, ó sombras que residem na
noite!
Aprendei a condenar a luz.
Ditosos, ó, ditosos os que no
inferno.
Não sofrem as afrontas do mundo.
Epílogo
O julgamento de Jason Taverner por
homicídio em primeiro grau de Alys
Buckman em circunstâncias misteriosas
saiu pela culatra, finalizando com um
veredicto de inocência, devido em parte
à excelente assistência legal
proporcionada pela NBC e por Bill
Wolfer, mas também devido ao fato de
que Taverner não cometera nenhum
crime.
Não houve na verdade crime algum, e
o relatório inicial do médico-legista foi
revogado; a isto se seguiu o afastamento
desse médico e sua substituição no
cargo por outro mais jovem.
Os índices de audiência do show de
Jason Taverner, que haviam baixado
muito durante o julgamento, subiram
com o veredicto e Taverner viu-se com
um público de 35 milhões em vez de 30.
A casa que Felix Buckman e sua irmã
Alys possuíam e ocupavam ficou vários
anos sendo objeto de uma nebulosa
disputa legal; Alys doara sua parte da
propriedade a uma organização lésbica
chamada Filhos de Caribron, cuja sede
ficava em Lee’s Summit, no Estado de
Missouri, e os membros da sociedade
desejavam transformar a casa num retiro
para os vários santos que cultuavam.
Em março de 2003 Buckman vendeu
sua parte para os Filhos de Caribron e
com o dinheiro que apurou mudou-se
com suas inúmeras coleções de objetos
para Bornéus, onde a vida era barata e a
polícia, amigável.
As experiências com a droga KR-3,
que induzia à multiespacialidade, foram
abandonadas no final de 1992 em
virtude de suas propriedades tóxicas.
Contudo, durante vários anos a polícia
utilizou-a em experimentos secretos com
internos em campos de trabalhos
forçados. Porém no final, em virtude dos
muitos perigos que acarretava, o Diretor
ordenou que o projeto fosse
abandonado.
Kathy Nelson um ano depois ficou
sabendo e aceitou o fato de que Jack,
seu marido, morrera há muito tempo,
como McNulty lhe havia dito. Este
reconhecimento precipitou uma grave
crise psicótica, que dessa vez a levou ao
internamento permanente num hospital
psiquiátrico muito menos elegante que o
de Morningside.
Pela quinquagésima e última vez em
sua vida Ruth Rae casou-se, desta feita
com um senhor de idade, rico e
barrigudo, importador de armas de fogo,
residente em Nova Jersey, cujos
negócios situavam-se nos limites do
permitido por lei. Na primavera de 1994
Ruth morreu de uma overdose de álcool
tomado com um novo tranquilizante, a
Frenozina, que age como depressor do
sistema nervoso central e suprime a
ação do nervo vago. Ao morrer pesava
46 quilos, em resultado de difíceis e
crônicos problemas psicológicos. Nunca
se conseguiu determinar com clareza se
sua morte foi acidental ou suicídio, pois
a droga era relativamente nova.
Seu marido, Jake Mongo, por ocasião
da morte de Ruth, havia-se endividado
muito e não sobreviveu mais do que um
ano. Jason Taverner compareceu ao
enterro de Ruth e na cerimônia ficou
conhecendo uma amiga dela chamada
Fay Krankheit, com quem passou a ter
um relacionamento que durou dois anos.
Através dela Jason ficou sabendo que
Ruth Rae periodicamente se conectava à
rede telefônica transexual; ao saber
disso compreendeu melhor por que ela
chegara no estado em que estava quando
a encontrou em Las Vegas.
Cínica e envelhecida, Heather Hart
foi abandonando aos poucos sua carreira
de cantora e sumiu de vista. Após fazer
algumas tentativas de localizá-la, Jason
Taverner desistiu e passou a considerála um dos maiores sucessos de sua vida,
apesar do final melancólico.
Jason também ficou sabendo que
Mary Anne Dominic ganhara um
importante prêmio internacional por
seus objetos culinários em cerâmica,
mas nunca se deu ao trabalho de tentar
localizá-la. Mônica Buff, contudo,
reapareceu em sua vida no final de
1998, desgrenhada como sempre mas
ainda atraente a seu modo. Jason saiu
com ela algumas vezes e depois lhe deu
o fora. Durante meses ela lhe escreveu
longas e estranhas cartas cheias de
sinais obscuros desenhados sobre as
palavras; isto também, contudo, acabou
cessando, o que o alegrou.
Nos subterrâneos das ruínas das
grandes universidades, a população
estudantil aos poucos desistiu de suas
vãs tentativas de manter a vida tal como
a entendiam e voluntariamente — em
geral — entraram em campos de
trabalhos forçados. Assim os resquícios
da Segunda Guerra Civil pouco a pouco
se desvaneceram e em 2004 um modelopiloto, a Universidade de Colúmbia, foi
reconstruído. Turmas de alunos sadios e
inócuos passaram a assistir a seus
cursos, sancionados pela polícia.
Já no fim de sua vida o general de
Polícia aposentado Felix Buckman, que
vivia em Bornéus com sua
aposentadoria, escreveu um relato
autobiográfico a respeito do aparato
policial planetário; o livro logo
começou a circular ilegalmente nas
principais cidades da Terra. Por este
motivo, no verão de 2017 o general
Buckman foi assassinado, sem que
jamais se identificasse o assassino nem
se fizesse nenhuma prisão. Seu livro, A
Ideologia da Obediência à Lei,
continuou a circular clandestinamente
por vários anos após sua morte; mas até
isso acabou caindo no esquecimento. Os
campos de trabalhos forçados foram-se
reduzindo e terminaram por
desaparecer. Ao longo das décadas o
aparato policial tornou-se pouco a
pouco tão grande e lerdo que já não
oferecia ameaça a ninguém.
Em 2136 o posto de marechal de
Polícia foi eliminado.
Alguns dos desenhos de
sadomasoquismo que Alys Buckman
colecionara durante sua vida
bruscamente interrompida foram parar
em museus que exibiam artefatos de
culturas populares desaparecidas; ela
acabou sendo oficialmente reconhecida
pela Revista Trimestral de
Biblioteconomia como a maior
autoridade dos fins do século XX em
arte SM. O selo negro de um dólar da
Trans-Mississippi que Felix Buckman
lhe dera foi comprado num leilão em
1999 por um negociante de Varsóvia, na
Polônia.
A partir daí desapareceu no nebuloso
mundo da filatelia, para nunca mais
emergir.
Barney Buckman, o filho de Felix e
Alys Buckman, teve uma juventude
difícil, entrou na polícia de Nova Iorque
e em seu segundo ano de serviço caiu de
uma escada de emergência defeituosa ao
atender a um chamado de tentativa de
assalto num cortiço que já fora habitado
por uma rica população negra.
Paralisado da cintura para baixo aos 23
anos, começou a interessar-se por
velhos comerciais de tevê e em pouco
tempo possuía uma coleção dos mais
antigos e valorizados espécimes do
gênero, que comprava, vendia e
permutava com astúcia.
Viveu até avançada idade,
conservando apenas uma tênue
lembrança de seu pai e absolutamente
nenhuma recordação da mãe. De modo
geral, Barney Buckman se queixava
pouco e continuou a absorver-se em
particular nos velhos anúncios de AlkaSeltzer, sua especialidade em meio a
todas aquelas trivialidades dos anos de
ouro.
Alguém na Academia de Polícia de
Los Angeles roubou a pistola Derringer
calibre 22 que Felix Buckman guardava
em sua escrivaninha, que assim
desapareceu para sempre. Naquela
época as armas com balas de chumbo já
quase não existiam mais, exceto como
peças de coleção, e o funcionário da
Academia encarregado de localizar a
Derringer deduziu com inteligência que
ela devia ter-se tornado um acessório no
apartamento de solteiro de algum
policial sem importância, e abandonou
neste ponto a investigação.
Em 2047 Jason Taverner, há muito
afastado da área artística, morreu, numa
casa de repouso elegante, de fibrose
alcoólica, moléstia adquirida pelos
terráqueos nas colônias marcianas
mantidas por fundos particulares para o
dúbio entretenimento das elites. Seus
bens consistiam de uma casa de cinco
quartos em Des Moines, repleta
sobretudo de souvenirs, e muitas ações
de uma companhia que havia tentado —
sem sucesso — financiar um serviço de
transporte para a Próxima Centaurus.
Seu falecimento não teve muita
repercussão, embora pequenos anúncios
fúnebres aparecessem na maioria dos
jornais metropolitanos; foi ignorado
pelas personalidades de tevê mas não
por Mary Anne Dominic, que, mesmo
aos oitenta anos, ainda considerava
Jason Taverner uma celebridade e seu
encontro com ele um marco da maior
importância em sua longa e bemsucedida existência.
O vaso azul feito por Mary Anne
Dominic e comprado por Jason
Taverner para presentear Heather Hart
acabou numa coleção particular de
cerâmica moderna. Está lá até hoje, e é
muito apreciado. Na verdade, é tido
como um tesouro por alguns
conhecedores de cerâmica, que lhe
devotam indisfarçado e genuíno amor.
FIM
Biografia
Philip K. Dick nasceu em Chicago,
em 1928. Apaixonado por música,
empregou-se numa loja de discos e
produziu um programa clássico na
estação de rádio KSMO, de San Mateo,
Califórnia. Estudou na Universidade
daquele Estado, mas não terminou o
curso porque “havia gente demais
fumando e lendo o Dayly Cal, o que não
me permitia ouvir os professores
Começou a ler ficção científica aos 12
anos, em consequência de um engano:
comprou Stirring Science Fiction em vez
de Popular Science. Lia muito Joyce,
Kafka, Steinbeck, Proust, Dos Passos e
Ibsen. Morreu em 1982.
{1}
ID = identidade, documento. (N.T.)