Philip K. Dick Fluam, minhas lágrimas, disse o policial Tradução de Isa Mara Lando Copyright © 1974 Por Philip K. Dick. Título original: Flow my Tears the Policeman Said. © Copyright da tradução: Editora Brasiliense S.A. para publicação e comercialização, somente no Brasil. Título Original: Identidade perdida Ettore Bottini Revisão: Elvira da Rocha Newton T.L. Sodré Digitalização e revisão: Gnosys O amor que há neste romance é para Tessa, e o amor que há em mim é para ela também. Ela é a minha canção. PARTE UM Jorrem minhas lágrimas, brotem de suas fontes! Exilado para sempre, deixai-me chorar; Onde o pássaro noturno e negro canta sua triste infâmia, Ali deixai que eu esquecido viva. 1 Na terça-feira, 11 de outubro de 1988, o Show Jason Taverner durou trinta segundos a menos. O técnico que observava através da bolha plástica da cabine de controle congelou os créditos finais do vídeo e apontou a câmera para Jason Taverner, que já ia saindo de cena. O técnico indicou seu relógio e apontou para a boca. Jason disse então com suavidade no microfone: — Continuem mandando cartas e cartões, pessoal. E continuem sintonizando agora As Aventuras de Scotty, o Cão Extraordinário. O técnico sorriu; Jason sorriu também e tanto o áudio como o vídeo foram desligados. Seu programa de uma hora de música e variedades, considerado o segundo melhor da tevê, chegava agora ao final. E tudo transcorrera bem. — Onde foi que perdemos meio minuto? — disse Jason para sua convidada especial da noite, Heather Hart. Ficou intrigado; gostava de controlar o tempo de seus shows. Heather respondeu: — Não se preocupe com isso. — Tocou a testa um pouco suada de Jason e passou com carinho a mão fresca em seu cabelo cor de areia. — Você percebe o poder que você tem? — perguntou Al Bliss, o empresário, chegando perto. Aliás, como sempre, perto demais. — Trinta milhões de pessoas viram você fechar o zíper da calça hoje. Isso é um verdadeiro recorde. — Eu fecho o zíper da calça todas as semanas — disse Jason. — É minha marca a registrada. Ou será que você não assiste ao show? — Mas trinta milhões! disse Bliss, com sua cara redonda e corada cheia de gotas de suor. — Pense nisso! E há os remanescentes, também. Jason foi seco. — Antes que os remanescentes deste show nos deem alguma coisa, eu já estarei morto. Graças a Deus. — Provavelmente você estará morto hoje mesmo — disse Heather com todos esses fãs amontoados aí fora. Estou só esperando para picar você pedacinhos pequenininhos do tamanho de um selo. — Alguns são seus fãs Srta. Hart disse Al Bliss, com a voz ofegante como a de um cachorro. — Raios os partam— disse Heather, ríspida. — Porque eles não vão embora? Será que eles não estão fazendo nada contra a lei, vadiagem, ou algo assim? Jason apertou a mão dela com força, fazendo com que ela se voltasse franzindo o cenho. Ele nunca compreendera o fato de ela detestar os fãs: para ele, eram a força vital de sua existência pública. E sua existência pública, seu papel de apresentador de tevê de alcance mundial era para ele a própria existência, ponto final. — Você não devia ser artista — disse para Heather— já que se sente assim. Saia do ramo. Vá ser assistente social num campo de trabalhos forçados. — Lá também tem gente — respondeu Heather, soturna. Dois guardas da polícia especial abriram caminho até Jason Taverner e Heather. — Já esvaziamos o corredor ao máximo — disse, ofegante, o guarda mais gordo. — Vamos sair agora, Sr. Taverner. Antes que o público do auditório chegue até as saídas laterais. Fez sinal a outros três guardas da polícia especial, que logo avançaram pela passagem quente e apinhada de gente que levava à rua noturna. E lá fora estava estacionado o aerocarro Rolls Royce em todo o seu luxuoso esplendor, com o foguete traseiro pulsando á espera. Como um coração mecânico, pensou Jason. Um coração que batia só para ele, para ele, o astro. Bem, por extensão batia em resposta às necessidade de Heather também. Ela merecia: tinha cantado bem aquela noite. Quase tão bem como... Jason sorriu para si mesmo. Que diabos, vamos encarar os fatos, pensou. Eles não ligam todas essas tevês em cores em três dimensões para ver o artista convidado. Existem mil artistas convidados espalhados pela face da Terra, e mais alguns nas colônias em Marte. Eles ligam a tevê, pensou, para ver a mim. E estou sempre lá. Jason Taverner nunca desapontou seus fãs e nunca vai desapontá-los. Seja lá o que for que Heather sinta pelos fãs dela. — Você não gosta deles — disse Jason, enquanto abria caminho aos empurrões e cotoveladas pelo corredor enfumaçado cheirando a suor. — Não gosta deles porque não gosta de si mesma. No fundo você acha que eles têm mau gosto. — Eles são burros — retorquiu Heather, mal-humorada; xingou baixo ao ver que seu grande chapéu de abas largas caiu e desapareceu para sempre naquele ventre de baleia que era a multidão de fãs apertados ao seu redor. — São ordinários — disse Jason ao ouvido dela, meio escondido na massa emaranhada de cabelo vermelho e brilhante. Aquela famosa cascata de cabelo, copiada com tanta habilidade nos salões de beleza de toda a Terra. Heather irritou-se: — Não diga essa palavra. — Eles são ordinários — repetiu Jason — e são uns imbecis. Porque — continuou, mordiscando a orelha dela —, porque é isso que significa ser do tipo ordinário. Certo? Ela suspirou: — Oh, meu Deus, como eu queria estar no aerocarro voando pelo vazio. É isso que estou querendo: um vazio infinito. Sem vozes humanas, sem cheiros humanos, sem mandíbulas humanas mastigando chiclete de plástico em nove cores iridescentes. — Você os odeia mesmo — disse ele. — Sim — ela assentiu com convicção. — E você também. — Parou por um instante, voltando-se para encará-lo. — Você sabe que a sua porcaria de voz já se acabou; sabe que está só aproveitando seus dias de glória, que não voltam mais. — Sorriu então para ele. Calorosamente. — Será que estamos ficando velhos? — perguntou, fazendo-se ouvir acima dos murmúrios e gritinhos dos fãs. —Juntos? Como marido e mulher? — Os do tipo seis não envelhecem — disse Jason. — Ah, sim disse — Heather. — Envelhecem, sim. — Tocou o cabelo dele castanho ondulado. — Há quanto tempo você já tinge, querido? Um ano? Três anos? — Entre no aerocarro disse ele brusco, conduzindo-a para fora do edifício até a calçada do Boulevard Hollywood. — Eu entro — disse Heather — se você cantar para mim um si natural agudo. Lembra quando você... Jason empurrou-a para dentro do aerocarro, espremeu-se pura entrar também, virou se para ajudar Al Bliss a fechar a porta, e logo estavam lá em cima, no céu noturno embaçado de chuva. O grande céu iluminado de Los Angeles, brilhante como o meio dia, e é assim mesmo para você e para mim, pensou ele. Para nós dois, por todos os tempos que virão. Sempre será como agora, porque nós somos do tipo seis. Nós dois. Quer eles saibam ou não. Só que não sabem, refletiu pensativo, saboreando o humor negro da situação. O conhecimento que eles dois tinham, o conhecimento não-compartilhado. Pois assim é que devia ser. E sempre tinha sido... mesmo agora, depois que tudo tinha dado errado. Isto é, errado para os projetistas. Os grandes sábios com suas hipóteses — hipóteses erradas. Quarenta e cinco belos anos atrás, quando o mundo era jovem e as gotinhas de chuva ainda se apegavam às cerejeiras, agora desaparecidas, em Washington, D.C. E o cheiro de primavera pairava sobre o nobre experimento. Por algum tempo, ao menos. — Vamos para Zurique — disse ele. — Estou muito cansada — disse Heather. — Além disso aquele lugar me deixa entediada. — A casa? — perguntou Jason, incrédulo. Fora Heather quem escolhera a casa para eles, e havia anos que para lá fugiam — especialmente dos fãs que ela tanto detestava. Heather suspirou e disse: — A casa. Os relógios suíços. O pão. As ruas de pedra. A neve nas colinas. — Nas montanhas — disse ele, ainda melindrado Bom, vou sem você então. — E vai levar outra pessoa? Ele simplesmente não conseguia compreender. — Você quer que eu leve outra pessoa comigo? — perguntou. — Você e o seu magnetismo. Seu charme. Você conseguiria qualquer garota no mundo para ir com você para aquela cama tão grande, com a cabeceira de bronze. Não que você seja grande coisa depois que se deita. — Meu Deus — disse ele com repulsa. — De novo. Sempre o mesmo tormento. As mesmas velhas angústias. E as angústias da sua fantasia, é a essas coisas que você mais se apega. Virando-se para olhá-lo de frente, Heather disse com franqueza: — Você sabe a aparência que tem, mesmo agora na sua idade. Você é lindo. Trinta milhões de pessoas comem você com os olhos uma hora por semana. O que os interessa não é ouvir você cantar... é a sua incurável beleza física. — Pode-se dizer o mesmo de você — disse ele, cáustico. Sentia-se cansado e ansiava pela privacidade e a reclusão da casa nos arredores de Zurique, esperando em silêncio que voltassem mais uma vez. E era como se a casa (pusesse que eles ficassem não uma noite, nem sele noites, mas para sempre. — Eu não mostro minha idade — disse Heather. Jason deu uma rápida olhada para ela, e em seguida estudou-a com atenção. O volumoso cabelo vermelho, a pele pálida com algumas sardas, um forte nariz, romano. Grandes olhos fundos, cor de violeta, l ia tinha razão; não mostrava a idade. Claro que ela nunca se ligava A rede telefônica transexual, como ele. Mas na verdade ele fazia isso raras vezes. Portanto, não era viciado, e no seu caso não houvera dano cerebral nem envelhecimento prematuro. — Você é uma pessoa estupidamente bonita — disse ele, com ressentimento. — E você? — disse Heather. Ele não se deixaria abalar por isso. Sabia que ainda possuía seu carisma, a força que haviam gravado em seus cromossomos quarenta e dois anos antes. Verdade que o cabelo tinha embranquecido muito e que ele o tingia. E algumas rugas haviam surgido aqui e ali. Mas... — Enquanto tiver minha voz — disse ele — estarei bem. Terei o que quero. Você está errada a meu respeito; é a sua arrogância de tipo seis, a sua assim chamada individualidade que você tanto preza. Está bem, se você não quer ir até a casa de Zurique, para onde quer ir então? Para minha casa? Sua casa? — Quero me casar com você — disse Heather. — Aí não haverá mais minha casa versus sua casa, mas sim nossa casa. E vou parar de cantar vou ter três filhos, todos parecidos com você. — As meninas também? — Vão ser só meninos — disse Heather. Jason inclinou-se beijou a no nariz. Ela sorriu e pegou a mão dele afetuosamente. — Podemos ir para qualquer lugar esta noite — disse ele numa voz baixa, firme, controlada bem projetada, quase uma voz paternal; em geral isso dava bom resultado com Heather, quando nada mais funcionava. A menos que eu a deixe, pensou ele. Ela temia isso. Às vezes, quando brigavam, em especial na casa de Zurique, onde ninguém podia ouvi-los e nem interferir, ele vira o medo no rosto dela. A ideia de ficar sozinha a deixava apavorada; ele sabia disso, ela sabia disso; o medo fazia parte da realidade da sua vida em comum. Não da vida pública; para eles, como autênticos comunicadores profissionais, tinha de haver total controle racional: por mais zangados e distanciados que estivessem, continuavam funcionando juntos naquele grande mundo da adoração dos espectadores, das cartas, dos fãs barulhentos. Nem o ódio declarado alterava isso. Mas de qualquer forma não podia haver ódio entre eles. Tinham demasiadas coisas em comum. Recebiam muito um do outro. Até o mero contato físico, como o que tinham naquele momento, sentados lado a lado no aerocarro Rolls, os fazia felizes. Pelo menos enquanto durava. Enfiando a mão no bolso interno do terno de seda pura feita sob medida — do qual haveria talvez, dez similares no mundo todo —, ele tirou um maço de notas autenticadas pelo governo. Uma grande quantidade de notas, apertadas num gordo pacote. — Você não devia andar com tanto dinheiro — disse Heather, aborrecendoo com aquele tom de voz que ele detestava tanto: a voz de mãe dogmática. — Com isto aqui — disse Jason, mostrando o maço de notas — podemos entrar em qualquer... — Se é que algum estudante não registrado que fugiu ontem de um refúgio numa universidade não decepar seu pulso e fugir com tudo, com a sua mão e todo esse dinheiro espalhafatoso. Você sempre foi espalhafatoso. Espalhafatoso e vulgar. Olhe a sua gravata. Olhe! — Ela levantara a voz; parecia genuinamente zangada. — A vida é curta — disse Jason. — E a prosperidade mais curta ainda. — Porém recolocou o maço de notas no bolso interno e alisou o volume formado em seu impecável temo. — Quero que você compre alguma coisa com isso — disse. Na verdade essa ideia acabara de lhe ocorrer; o que tinha planejado fazer com o dinheiro era algo um pouco diferente: tencionava levá-la para Las Vogas, para as mesas de vinte-e-um. Sendo um tipo seis, ele sempre ganhava no vinte-e-um; tinha vantagem sobre todo mundo, até sobre o crupiê. Até mesmo, pensou com prazer, sobre o dono do cassino. — Você está mentindo — disse Heather. — Você não tinha intenção de me comprar nada. Você nunca pensa nisso; é tão egoísta e só pensa em si. Esse dinheiro é para trepar; você vai é comprar alguma loira de peito grande e levá-la para a cama com você. Provavelmente na nossa casa de Zurique, onde aliás não vou há quatro meses. Posso muito bem estar grávida. Ele estranhou que ela dissesse justamente isso, de todas as possíveis réplicas que poderiam aflorar à sua mente loquaz. Mas havia muito em Heather que ele não compreendia; para ele, assim como para os fãs, ela não revelava muitas coisas. Entretanto, com o passar dos anos ele aprendera muito sobre ela. Sabia, por exemplo, que em 1982 ela fizera um aborto; este também era um segredo bem guardado. Sabia que numa época fora casada ilegalmente com o líder de uma comuna estudantil, e que— durante um ano vivera nas tocas subterrâneas da Universidade de Colúmbia, junto com todos aqueles estudantes barbudos e malcheirosos, que viviam permanentemente debaixo da terra por medo dos tiras e dos GN a polícia e a Guarda Nacional que rodeavam todos os campus, impedindo que os estudantes emergissem para a sociedade, como se fossem ratos negros debandando de um navio que se afunda. E sabia também que um ano antes ela fora presa por porte de drogas. Apenas a família, rica e poderosa, conseguira tirála daquela: o dinheiro, o carisma e a fama de Heather de nada valeram na hora da confrontação com a polícia. Ela ficara um pouco marcada por tudo o que lhe acontecera, mas Jason sabia que agora ela estava bem como todos os do tipo seis, tinha uma enorme capacidade de recuperação. Era algo que havia sido cuidadosamente incorporado em cada um deles. Assim como muitas, muitas outras coisas. Nem mesmo ele, aos 42 anos, sabia de todas essas coisas. E muito acontecera a ele também principalmente sob a forma de cadáveres, os restos de outros apresentadores em quem pisoteara ao longo de sua longa escalada até o topo. Estas gravatas “espalhafatosas" começou, mas nesse momento o telefone do aerocarro tilintou Jason atendeu. Devia ser Al Bliss com os índices de audiência do show daquela noite. Mas não era. Uma estridente voz feminina feriu seu ouvido, dizendo alto: — Jason? — Sim — respondeu. Tapando o bocal do telefone, disse a Heather: — É a Marilyn Mason. Porque diabos dei a ela o número do meu aerocarro? — E quem é essa tal de Marilyn Mason? — perguntou Heather. — Eu lhe digo depois. — Destapou o bocal. Sim, querida, aqui fala Jason em pessoa, ele mesmo em carne e osso. O que foi? Sua voz está terrível. Estão despejando você de novo? — Piscou para Heather com um sorrisinho. — Dispense essa mulher — disse Heather. Tapando outra vez o bocal, ele respondeu: — É o que estou tentando fazer; não está percebendo? Continuou ao telefone: — Certo, Marilyn. Desabafe suas mágoas comigo; é para isso que estou aqui. Nos últimos dois anos Marilyn Mason fora sua protegida, por assim dizer. Queria ser cantora; ser famosa, rica e amada — como ele. Um dia ela aparecera no estúdio durante um ensaio, e chamou a atenção dele. Um rostinho espremido e preocupado, pernas curtas, saia curtíssima — tudo isso ele notou no primeiro olhar, como era seu costume. Uma semana depois conseguiu um teste para ela na Columbia Records com o chefe dos artistas e do repertório. Muita coisa aconteceu naquela semana, mas sem nada a ver com música. A voz estrídula de Marilyn chegou ao seu ouvido: — Preciso ver você. Se não vou me matar e a culpa vai ser sua. Para o resto da sua vida. E vou contar àquela fulaninha, aquela tal de Heather Hart, que nós dormimos juntos o tempo todo. Interiormente ele deu um suspiro. Caramba, já eslava cansado do seu show, onde durante uma hora só fazia sorrir, sorrir, sorrir. — Estou a caminho da Suíça, onde vou passar o resto da noite — disse com firmeza, como se falasse com uma criança histérica. Em geral isso funcionava quando Marilyn entrava num dos seus acessos acusatórios, quase paranoides. Mas dessa vez não, é claro. — Leva cinco minutos para você chegar até aqui nesse seu aerocarro Rolls Royce de um milhão de dólares — era a voz de Marilyn penetrando de novo seu ouvido. — Só quero falar com você cinco segundos. Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. “Deve estar grávida”, pensou Jason. Em algum momento, premeditadamente ou não, ela esquecera de tomar a pílula. — O que você pode me dizer em cinco segundos que eu ainda não saiba? retorquiu ele, brusco. — Diga agora. — Quero você aqui comigo — disse Marilyn, com sua costumeira total falta de consideração. — Você tem que vir. Faz seis meses que não vejo você e tenho pensado muito sobre nós dois especialmente sobre aquele último teste. — Está bem disse ele, sentindo-se ressentido e amargurado. Era isso o que ganhava tentando fabricar para ela, que não tinha talento algum, uma carreira. Desligou o telefone com força, virou-se se para Heather e disse: — Ainda bem que você nunca cruzou com ela, é uma verdadeira... — Conversa fiada — disse Heather. — Eu nunca “cruzei com ela" porque você sempre tomou o máximo cuidado para que isso não acontecesse. — Bem de qualquer forma — disse ele, fazendo uma curva á direita com o aerocarro — consegui para ela não só um teste, mas dois, e ela levou bomba nos dois. E para conservar o auto respeito ela tem que pôr a culpa em mim. Fui eu que de algum jeito a levei ao fracasso. Você já viu tudo, não é? — Ela tem os peitos bonitos? perguntou Heather. — Para falar a verdade, tem. Deu um largo sorriso, e Heather também riu. Você já conhece meu ponto fraco. Mas eu fiz minha parte do trato; consegui um teste para ela; aliás, dois. O último foi há seis meses e sei muito bem que ela ainda está ruminando a coisa toda e fumegando de raiva. Só gostaria de saber o que ela quer me dizer. A justou o módulo de controle para dirigir-se automaticamente ao prédio de apartamentos de Marilyn, que tinha no (elo um pequeno mas adequado campo de pouso. — Ela deve estar apaixonada por você — disse Heather, enquanto ele estacionava o aerocarro na vertical e baixava a escada. — Como quarenta milhões de outras — disse Jason, afável. Acomodando-se no assento, Heather disse: — Não demore, senão juro que vou decolar sem você. — E vai me deixar preso com Marilyn? — disse ele — Ambos riram. — Volto já. — Atravessando o campo de pouso, foi até o elevador e apertou o botão. Quando entrou no apartamento de Marilyn, viu de imediato que ela estava fora de si. Seu rosto estava lodo contraído e seu corpo tão encolhido que parecia que ela estava tentando ingerir a si mesma. E os olhos. Havia muito poucas coisas nas mulheres que o embaraçavam, mas esses olhos o deixaram desconcertado. Olhos bem redondos, com pupilas enormes que o penetravam enquanto ela o encarava em silêncio, de braços cruzados, rígida e irredutível como uma barra de ferro. — Pode falar — disse Jason, tentando perceber onde poderia levar uma vantagem. Em geral — na verdade, quase sempre — ele conseguia controlar uma situação que envolvia uma mulher; era, a bem dizer, sua especialidade. Mas agora... sentia-se constrangido. Ela continuava sem dizer nada. Seu rosto, sob várias camadas de maquilagem, tornara-se totalmente exangue, como se ela fosse um cadáver ambulante. — Você está querendo outro teste? perguntou Jason. — É isso? Marilyn fez que não. — Está bem; me diga então o que há disse aborrecido, e ainda contrafeito. Contudo, não mostrava na voz o constrangimento; era demasiado astucioso, demasiado experiente, para deixá-la perceber sua insegurança. No confronto com uma mulher noventa por cento era blefe, de ambos os lados. Tudo dependia de como se fazia a coisa, não da coisa em si. — Tenho algo para você. Marilyn virou-se e foi para a cozinha, saindo da sua vista. Jason foi andando atrás dela. — Você ainda está me culpando pelo insucesso dos seus dois... — começou ele. — Aqui está — disse Marilyn. Tirou da pia um saco plástico, segurou-o por um momento, com o rosto ainda pálido e hirto, seus olhos fixos e saltados, e então com um puxão abriu o saco, balançou o e aproximou-se rapidamente de Jason. Tudo aconteceu muito depressa. Ele se afastou por instinto, mas tarde demais, e muito devagar. A esponja gelatinosa Calisto com seus cinquenta tubos de alimentação prendeu se nele, grudando se em seu peito. De um pulo ele alcançou o armário da cozinha, apanhou uma garrafa de uísque, abriu a tampa com dedos ágeis e derramou o liquido na criatura gelatinosa. Sua mente estava lúcida, até brilhante. Não entrou em pânico; apenas continuava derramando uísque em cima daquela coisa. Por alguns instantes nada aconteceu. Ele ainda conseguiu manter a calma não entrar em pânico. E a coisa então começou a formar bolhas, encolheu-se toda e caiu do seu peito no chão tinha morrido. Sentindo-se fraco, sentou se a mesa da cozinha. Agora viu se lutando para não perder a consciência. Alguns tubos de alimentação continuavam dentro dele, ainda vivos. — Nada mal — conseguiu dizer. — Você quase me pega, sua putinha. — Quase não — disse Marilyn Mason num tom neutro, sem emoção. — Alguns tubos de alimentação ainda estão em você, e você sabe disso; estou vendo na sua cara. E não é uma garrafa de uísque que vai conseguir tirá-los. Nada vai conseguir tirá-los. Neste ponto ele desmaiou. Viu vagamente o assoalho verde e cinza levantar-se para recebê-lo e então houve o vazio. Um vácuo onde nem ele mesmo estava. Dor. Abriu os olhos, tocou seu peito devagar. Seu terno feito a mão desaparecera; estava com um roupão hospitalar de algodão, deitado numa padiola. — Meu Deus — disse com voz pastosa, enquanto dois ajudantes empurravam depressa a padiola pelo corredor do hospital. Heather Hart inclinou-se sobre ele; estava chocada e ansiosa, mas como ele, em perfeita posse de suas faculdades. — Sabia que alguma coisa estava errada — disse ela. Logo que os ajudantes o trouxeram na padiola até o quarto. — Não esperei por você no aerocarro; desci atrás de você. — Deve ter pensado que estávamos na cama disse ele, fraco. O médico falou — continuou Heather que em mais quinze segundos você teria sucumbido à "violação somática”, como ele disse. Aquela coisa ia entrar em você. — Peguei a coisa — disse ele. — Mas não todos os tubos. Foi tarde demais. — Eu sei — disse Heather. — O médico me falou. Estão querendo operar o mais rápido possível; é possível fazer alguma coisa se os tubos ainda não penetraram fundo demais. — Fui bom na crise — disse Jason, rangendo os dentes; fechou os olhos e suportou a dor. — Mas não tão bom quanto deveria. Não tanto. — Abrindo os olhos, viu que Heather estava chorando. — É tão grave assim? — perguntou; estendeu o braço e pegou a mão dela. Sentiu a pressão do amor de Heather que lhe apertava os dedos, e então não houve mais nada. Exceto a dor. Mas nada mais, nem Heather, nem hospital, nem ajudantes, nem luz. E nenhum som. Foi um momento eterno que o absorveu por completo. 2 A luz voltou a infiltrar-se, preenchendo seus olhos fechados com uma iluminada membrana vermelha. Abriu os olhos, levantou a cabeça para olhar em volta. Procurou Heather ou um médico. Estava sozinho no quarto. Ninguém mais. Uma penteadeira com um espelho rachado, velhas e feias luminárias projetando-se das paredes engorduradas. E de algum lugar próximo o alarido de uma tevê. Não estava num hospital. E Heather não estava com ele; sentia a ausência dela, o vazio total de tudo, por causa dela. "Meu Deus", pensou. “O que aconteceu?" A dor no peito desaparecera, assim como tantas outras coisas. Trêmulo, afastou o cobertor manchado, sentou-se, esfregou a testa, pensativo, concentrou sua vitalidade. Isto é um quarto de hotel, percebeu. Um hotel barato, sujo e cheio de insetos. Sem cortinas, sem banheiro. Como hotel que morara anos atrás, no começo de sua carreira. Naquele tempo em que era desconhecido e não tinha dinheiro. Os dias negros que ele procurava afastar ao máximo da memória. O dinheiro. Apalpou suas roupas, descobriu que não estava com o roupão do hospital, mas sim, outra vez com o seu terno feito a mão, muito amassado. E no bolsointerno o maço de notas altas, o dinheiro que ele pretendia levar para Las Vegas. Pelo menos isto ele ainda tinha. Logo olhou em volta, procurando um telefone. Não, claro que não havia. Mas devia haver um no corredor. Mas quem iria chamar? Heather? Seu agente Al Bliss? Mory Mann, o produtor de seu show? Seu advogado, Bill Wolfer? Ou talvez todos eles, e o mais rápido possível. Com as pernas trêmulas, conseguiu ficar em pé; ficou ali balançando, xingando por razões que não compreendia. Um instinto animal o segurava; com seu corpo forte de tipo seis preparou-se para lutar. Mas não conseguia discernir o antagonista, e isso o assustou. Pela primeira vez, tanto quanto pudesse se lembrar, sentiu pânico. Será que já passou muito tempo? perguntou-se. Não sabia dizer; estava sem noção de tempo. Era de dia. As mosquinhas voavam zunindo no céu, que via pela vidraça suja da janela. Olhou o relógio; eram dez e trinta. E daí? Podia ser mil anos depois, pelo que sabia. Seu relógio não era de nenhuma ajuda. Mas o telefone sim. Conseguiu sair para o corredor empoeirado, encontrou as escadas, desceu degrau por degrau segurando no corrimão até que se viu enfim num saguão vazio e deprimente, com poltronas estofadas caindo aos pedaços. Felizmente tinha moedas. Introduziu uma moeda de ouro de um dólar e discou o número de Al Bliss. — Agência de Talentos Bliss — veio a voz de All. — Escute — disse Jason —, não sei onde estou. Pelo amor de Deus, venha me buscar; me tire daqui, me leve para algum lugar. Está entendendo. All? Está compreendendo? Silêncio no fone. E então numa voz distante e impassível Al Bliss perguntou: — Com quem estou falando ? Jason respondeu, enrolando a língua. — Não o conheço, Sr. Jason Taverner — disse Al Bliss, de novo com sua voz mais neutra e imparcial. — Tem certeza de que discou o número correto? Com quem o senhor desejava falar? Com você, Al. Com Al Bliss, meu agente. O que aconteceu no hospital? Como foi que eu saí de lá e cheguei aqui? Você sabe? Seu pânico diminuiu à medida que se forçou a recobrar o autocontrole; conseguiu fazer as palavras saírem razoavelmente claras. — Dá para você chamar a Healher para mim? — A Srta Hart? disse Al, com uma risadinha. Não respondeu. — Você — disse Jason com violência — está acabado como meu agente. Ponto final. Seja qual for a situação. Você está fora da jogada. Ouviu Al Bliss rir outra vez; então com um clique a linha telefônica emudeceu. Al Bliss tinha desligado. "Eu mato esse filho da mãe”, disse Jason para si mesmo "Vou picar em pedacinhos aquele gordão careca filho da puta." "Mas o que ele está querendo fazer comigo? Não compreendo. O que tem contra mim de repente? Que diabo eu lhe fiz? Ele é meu amigo e agente há dezenove anos. E numa aconteceu nada desse tipo.” "Vou tentar Bill Wolfer", decidiu, “Ele está sempre no escritório ou visitando clientes; vou falar com ele e descobrir que negócio é esse." Colocou mais uma moeda de ouro de um dólar no telefone e discou outra vez, lembrando-se do número de cor. — Wolfer e Blaine, Advogados — veio a voz de uma recepcionista. — Quero falar com Bill disse Jason. — Aqui fala Jason Taverner. Você sabe quem eu sou. — O Sr. Wolfer está hoje no tribunal. O senhor gostaria de falar com o Sr. Blaine, ou prefere que o Sr. Wolfer ligue quando voltar para o escritório mais tarde? — Você sabe quem eu sou? — perguntou Jason. — Sabe quem é Jason Taverner? Você assiste televisão? — Sua voz quase sumiu nesse ponto; ouviua falhar e subir de novo com grande esforço conseguiu controlá-la, mas não podia impedir que suas mãos tremessem; na verdade seu corpo todo tremia. — Lamento, Sr Taverner — disse a recepcionista. — Não posso responder pelo Sr. Wolfer, nem... — Você assiste televisão? — ele interrompeu — Sim. — E nunca ouviu falar de mim? O Show Jason Taverner, terça-feira às nove horas? — Sinto muito, Sr. Taverner. O senhor precisa mesmo falar diretamente com o Sr. Wolfer. Me dê o número de onde o senhor está ligando e eu lhe pedirei que ligue para o senhor ainda hoje. Ele desligou. “Estou louco”, pensou. “Ou ela está louca. Ela e o Al Bliss, aquele filho da puta. Meu Deus.” Trêmulo, afastou— se do telefone e sentou-se numa poltrona desbotada. Era bom sentar; fechou os olhos, respirou bem fundo devagar. E refletiu. “Tenho cinco mil dólares em notas de alto valor. Portanto não estou totalmente indefeso. E aquela coisa saiu do meu peito, com todos os tubos de alimentação. Eles devem ter conseguido tirá-los com a cirurgia. Quer dizer que pelo menos estou vivo; já é um motivo para eu ficar contente. Será que houve um lapso de tempo? Onde haveria um jornal?” Encontrou um Los Angeles Times em cima de um sofá e leu a data. Doze de outubro de 1988. Nenhum lapso de tempo. Era o dia seguinte ao dia do seu show, quando Marilyn o mandara ao hospital, morrendo. Ocorreu-lhe uma ideia. Folheou o jornal até encontrar a coluna dos espetáculos. No momento ele se apresentava todas as noites no Salão Persa do Hollywood Hilton; vinha fazendo isso há três semanas, exceto às terças feiras, quando tinha seu show na tevê. Seu anúncio, que o pessoal do hotel vinha colocando diariamente há três semanas, não estava em nenhum lugar daquela página. Um pouco tonto, pensou que talvez estivesse em outra página. Percorreu minuciosamente toda a seção de espetáculos do jornal. Anúncios e mais anúncios de shows, mas nenhuma menção a ele. E seu rosto vinha aparecendo na seção de espetáculos dos jornais há dez anos. Sem interrupção. “Vou fazer mais uma tentativa”, decidiu. “Vou tentar Mory Mann.” Pegou sua carteira e procurou um papel onde tinha o número de Mory. A carteira eslava muito fina. Todos os seus documentos tinham sumido. Cartões que possibilitavam sua existência. Cartões que o faziam passar por barricadas de tiras e GNs sem levar um tiro nem ser mandado para um campo de trabalhos forçados. "Não posso viver nem duas horas sem minha carteira de identidade", disse para si mesmo. "Não me atrevo nem a sair do saguão desta espelunca e andar na calçada. Eles vão pensar que sou algum aluno ou professor que escapou de uma universidade. Vou passar o resto da minha vida como escravo, fazendo trabalho pesado. Sou o que eles chamam de não-pessoa. "Portanto minha primeira tarefa”, pensou, "é continuar num vivo. Que se dane Jason Taverner como figura pública, posso pensar nisso depois. " Sentia agora em seu cérebro os poderosos elementos tipo seis já entrando em foco. "Não sou como os outros homens", pensou "Vou conseguir sair desta situação, seja qual for. De algum jeito. " "Por exemplo", percebeu. "com todo esse dinheiro posso ir até Watts e comprar documentos falsos. Posso encher a carteira com eles. Deve haver uns cem fulaninhos fazendo esse serviço, pelo que ouvi. Mas nunca pensei que chegaria a precisar deles. Eu, Jason Taverner, um comunicador com um público de trinta milhões de pessoas.” “Entre esses trinta milhões”, perguntou-se, “não haverá um que se lembre de mim? Se é que ‘lembrar-se’ é a palavra certa. Estou falando como se já tivesse passado muito tempo, como se eu fosse agora velho e superado, vivendo das glórias do passado. E não é isso que está acontecendo.” Voltando ao telefone, procurou o número do Centro de Registro de Nascimentos de Iowa; com diversas moedas de ouro conseguiu afinal contatá-los, depois de muita espera. — Meu nome é Jason Taverner — disse ao funcionário. — Nasci em Chicago, no Hospital Memorial, em 16 de dezembro de 1946. O senhor poderia conferir e me fazer uma cópia de minha certidão de nascimento? Preciso dela para me candidatar a um emprego. — Pois não, um momento. Jason esperou e o funcionário voltou à linha. — Sr. Jason Taverner, nascido no condado de Cook em 16 de dezembro de 1946. — Sim — respondeu Jason. — Não temos nenhum registro de nascimento com esse nome, lugar e data. O senhor tem certeza absoluta dos dados? — Está perguntando se eu sei meu nome, onde e quando nasci? — Sua voz mais uma vez fugiu ao controle, mas dessa vez ele não a impediu; sentiu-se inundado de pânico. — Obrigado — disse e desligou, tremendo com violência. Tremendo de corpo e alma. “Eu não existo”, disse para si mesmo. “Não há nenhum Jason Taverner. Nunca houve e nunca haverá. Para o inferno com minha carreira; quero apenas viver. Se há alguém ou alguma coisa querendo eliminar minha carreira, tudo bem, fique à vontade. Mas será que não tenho licença nem para existir? Será que eu nem nasci?” Algo se mexeu em seu peito. Pensou com terror: “Eles não extraíram todos os tubos; alguns ainda estão crescendo e se alimentando dentro de mim. Aquela vagabunda sem talento nenhum! Tomara que ela acabe rodando a bolsinha por dois dólares a bimbada”. “Depois de tudo que fiz por ela. Consegui dois testes para ela com o pessoal do estúdio. Mas enfim, comi-a uma porção de vezes. Acho que estamos quites.” Voltando ao seu quarto de hotel, deu uma boa olhada no espelho todo cheio de sujeira de mosca. Sua aparência não se havia alterado; apenas precisava fazer a barba. Não estava mais velho. Nenhuma ruga nova, nenhum cabelo branco aparecendo. Os ombros e braços fortes de sempre. Nenhuma gordura na cintura, o que lhe permitiria usar a roupa justa que estava na moda para os homens. “E isso é importante para a imagem de uma pessoa”, pensou. “O tipo de ternos que se pode usar, especialmente aqueles apertados na cintura. Devo ter uns cinquenta desses. Ou pelo menos tinha. Onde estarão agora?”, perguntouse. “O pássaro se foi; em que ravina cantará agora? Ou algo assim.” Uma coisa do passado, do seu tempo de escola. Esquecida até este momento. ‘‘Que estranho”, pensou, “as coisas que aparecem na cabeça da gente numa situação desconhecida e sinistra. Às vezes são as coisas mais triviais que se possa imaginar. "Se querer fosse poder, os mendigos seriam príncipes. Coisas assim. Dá pra deixar a gente louco.” Perguntou se quantos postos de tiras e GNs haveria entre este hotel miserável e o falsificador mais próximo em Watts. Dez? Treze? Dois? 'Para mim”, pensou, “basta um. Se por acaso eu for entrevistado por uma patrulha com uma equipe de três GNs... Com aquela droga de rádio que os comunica com a central de informações dos tiras em Kansas City, onde eles tem os arquivos.” Arregaçou a manga da camisa e examinou seu braço. Sim, lá estava: seu número de identidade tatuado. Sua chapa de identidade somática, que seria levada por ele pela vida toda, e por fim enterrada com ele em seu almejado túmulo. Bem. Os tiras e GNs da patrulha comunicariam seu número de identidade para Kansas City e aí — o que aconteceria? Seu dossiê ainda estaria lá, ou teria sumido também, como o registro do nascimento? E se não estivesse lá, o que achariam de tudo isso os burocratas da GN? "Um erro de arquivamento. Alguém arquivou em lugar errado o microfilme do dossiê. Vai acabar reaparecendo. Algum dia, quando isso já não tiver nenhuma importância, quando eu já tiver passado anos da minha vida numa pedreira da Lua trabalhando com uma picareta. Se o dossiê não estiver lá, eles vão concluir que sou um estudante foragido, pois só os estudantes não têm dossiê na GN; até mesmo alguns estudantes, os líderes mais importantes, estão fichados.” "Estou no fundo do poço”, percebeu. “E não consigo nem alcançar de novo a mera existência física. Eu, um homem que ontem tinha um público de trinta milhões. Algum dia de algum jeito, vou conseguir chegar até eles de novo Mas não agora. Há outras coisas que vêm primeiro. O esqueleto mais elementar da existência, que cada homem traz ao nascer: não tenho nem sequer isso. Mas vou conseguir: um tipo seis não é um ordinário. Nenhum ordinário teria sobrevivido nem física nem psicologicamente se passasse pelo que passei. Especialmente pela incerteza." “Um tipo seis sempre tem precedência, sejam quais forem as circunstâncias externas. Porque é dessa forma que eles nos definiram geneticamente.” Saiu de novo do quarto, desceu a escada e chegou até a mesa da recepção. Um homem de meia-idade com um bigodinho fino estava lendo a revista Box; sem levantar os olhos disse: — Sim, senhor. Jason tirou o maço do bolso e pôs uma nota de quinhentos dólares no balcão em frente ao homem. O recepcionista deu uma olhada para a nota e em seguida olhou de novo com os olhos bem abertos. Com cautela olhou então para Jason, com ar interrogativo. — Meus documentos foram roubados — disse Jason. — Essa nota de quinhentos é sua se você conseguir alguém que me arranje outras IDs.{1} Se você quiser, é pra já; não vou esperar. “Esperar até ser preso por um tira ou um GN”, pensou. “Apanhado aqui neste hotelzinho vagabundo.” — Ou pego na calçada em frente à entrada — disse o funcionário. — Sou meio telepata. Sei que este hotel não é grande coisa, mas não temos percevejos. Uma época tivemos pulgas de areia vindas de Marte, mas se acabaram. — Pegou a nota de quinhentos dólares. — Vou levar você para alguém que pode ajudá-lo — disse. Examinando com atenção o rosto de Jason, fez uma pausa e disse: Você acha que é famoso. Bem, aqui já tivemos de tudo. — Vamos embora — disse Jason, ríspido. — Agora. — Agora mesmo — disse o funcionário, e pegou seu casaco de plástico brilhante. 3 Dirigindo devagar seu velho e barulhento mosquinha, o funcionário do hotel disse inesperadamente a Jason, sentado ao seu lado: — Estou captando uma porção de coisas estranhas em sua mente. — Saia da minha mente disse Jason rispidamente, com aversão. Sempre detestara os abelhudos telepatas, movidos pela curiosidade, e essa vez não foi exceção. — Deixe minha mente em paz e me leve para a pessoa que vai me ajudar. E trate de não passar por nenhuma barricada da GN. Se é que você espera sair vivo dessa. O funcionário disse com suavidade: — Você não precisa me dizer isso; sei o que aconteceria com você se nós fôssemos detidos. Já fiz isso muitas vezes. Para os estudantes. Mas você não é estudante. Você é um homem rico e famoso. Mas ao mesmo tempo não é. Ao mesmo tempo não é ninguém. Você nem existe, do ponto de vista legal. — Deu um risinho cansado, com os olhos fixos no trânsito à sua frente. Jason notou que guiava como uma velha, com as duas mãos agarrando o volante. Chegaram então às favelas de Watts, lojinhas escuras de ambos os lados da rua atravancada, latas de lixo transbordantes, a calçada cheia de garrafas quebradas, placas mal pintadas mostrando Coca-Cola em letras grandes e o nome da loja bem pequeno. Numa esquina um negro idoso tentava atravessar, hesitante, tateando como se estivesse cego pela idade. Ao vê-lo, Jason sentiu uma estranha emoção. Havia agora tão poucos negros ainda vivos, devido á famosa lei de esterilização de Tidman que o Congresso aprovara nos terríveis dias da Insurreição. Com cuidado o funcionário diminuiu a marcha de seu resfolegante mosquinha para não assustar o negro idoso, com seu terno marrom amassado e descosturado. Era claro que sentia o mesmo que ele. — Você se dá conta —disse ele a Jason — que se eu o atropelar estarei sujeito à pena de morte? — É assim que deve ser — disse Jason. — São como o último bando de grous — disse o funcionário, seguindo em frente agora que o negro idoso tinha chegado à outra calçada. — São protegidos por mil leis. Não se pode mexer com eles; não se pode entrar numa briga com eles sem se arriscar a pegar um processo criminal e dez anos de cadeia. Mesmo assim estamos conseguindo que eles morram aos poucos. É isso que queria Tidman, e também, creio eu, a maioria dos Silenciadores, mas... — fez um gesto, tirando pela primeira vez uma mão do volante. — Tenho saudades das crianças. Lembro quando tinha dez anos e brincava com um menininho negro... Aliás não foi longe daqui. Ele sem dúvida deve estar esterilizado, hoje. — Mas ele teve um filho — observou Jason. — Sua mulher teve que entregar o cupom de nascimentos quando nasceu seu único filho... Mas eles têm essa criança. A lei permite que, eles a tenham. E há milhões de estatutos que protegem a segurança deles. — Dois adultos, uma criança — disse o funcionário. — Assim a população negra vai-se reduzindo à metade em cada geração. Engenhoso. Temos que tirar o chapéu a Tidman: ele resolveu mesmo o problema racial. — Alguma coisa tinha que ser feita — disse Jason; sentava-se rígido no assento, examinando a rua, procurando sinais de alguma patrulha de tiras ou barricada de GNs. Não via nada do gênero; mas quanto tempo ainda teriam que continuar a rodar? — Estamos quase chegando — disse o funcionário com calma. Virou a cabeça por um momento para encarar Jason. — Não gosto de suas ideias racistas — disse. — Mesmo com os quinhentos dólares que você está me pagando. — Os negros que ainda estão vivos para mim bastam —disse Jason. — E quando morrer o último? Jason disse: — Você pode ler meus pensamentos; não preciso lhe dizer. — Puxa — exclamou o funcionário, voltando sua atenção para o trânsito. Viraram bruscamente à direita e prosseguiram por prosseguiram por uma que estreita viela que tinha portas de madeira fechadas e trancadas de ambos os lados. Nenhuma tabuleta por aqui. Apenas silencio, caluda. E pilhas de entulho. — O que há atrás dessas portas? perguntou Jason. — Pessoas como você. Pessoas que não podem sair à rua. Mas são diferentes de você num aspecto: não têm quinhentos dólares... E muito mais ainda, se é que estou captando você direito. — Vai me custar muito dinheiro — Jason disse cabisbaixo — conseguir meus documentos. Provavelmente tudo o que tenho. — Ela não vai cobrar muito de caro você — disse O funcionário estacionando o mosquinha com a frente sobre a calçada da viela. Jason espiou para fora pela janela e viu um restaurante abandonado, todo fechado por tabuas, com as janelas quebradas. Dentro, totalmente escuto. O lugar o repugnava, mas pelo jeito era lá mesmo. Teria que aceitar, dada a sua situação; não podia se dar ao luxo de escolher. Além disso tinham evitado todos os postos de fiscalização e barricadas do caminho; o funcionário escolhera bem a rota. No fim das contas, tinha muito pouco de que reclamar. Aproximou-se com o funcionário da porta quebrada do restaurante, que estava aberta. Nenhum dos dois falava: concentravam-se em evitar os pregos enferrujados que saíam das placas de compensado que haviam sido pregadas com certeza para proteger as janelas. — Me dê a mão — disse o funcionário, estendendo a sua na escuridão cheia de sombras que os cercava. — Conheço o caminho e está muito escuro. Cortaram a eletricidade desse quarteirão há três anos. Para tentai forçar as pessoas a deixarem vagos os edifícios e assim poderem queimar tudo. Mas a maioria continua aqui. A mão úmida e fria do funcionário do hotel o conduziu através do que lhe pareceu ser cadeiras e mesas amontoadas, formando pilhas irregulares de pernas e superfícies, entremeadas de teias de aranha e poeira granulosa. Enfim deram de encontro com uma parede negra e imóvel; ali o funcionário parou, soltou a mão de Jason e mexeu em alguma coisa na escuridão. — Não dá para abrir — disse ele, ainda remexendo na parede. — Só abre por dentro, pelo lado dela. Estou só dando o sinal de que estamos aqui. Um pedaço da parede deslizou para o lado com um mugido. Jason olhou para dentro mas viu apenas mais escuridão. E abandono. — Entre — disse o funcionário, conduzindo-o para dentro. Após uma pausa, a parede deslizou outra vez e fechou-se atrás deles. Luzes piscavam. Ofuscado, Jason protegeu a vista e deu então uma boa olhada no ateliê. Era pequeno. Mas viu vários objetos que lhe pareceram ser máquinas complexas e altamente especializadas. No extremo oposto, uma bancada de trabalho. Ferramentas às centenas, todas dispostas ordenadamente nas paredes. Sob a bancada grandes caixas de papelão, provavelmente contendo papéis de vários tipos. Uma pequena impressora movida por um gerador. E a garota. Estava sentada num banquinho alto, compondo a mão uma linha de tipos. Jason conseguiu distinguir seu cabelo claro, muito longo e fino, que lhe escorria pela nuca até a camisa de trabalho de algodão. Usava jeans e mostrava os pequeninos pés descalços. Pareceu-lhe que teria quinze ou dezesseis anos. Não se podia dizer que tivesse seios, mas tinha belas pernas longas; ele gostava disso. Não usava nenhuma maquilagem, o que deixava suas feições com um tom esbranquiçado, meio pastel. — Oi — ela cumprimentou. O funcionário disse: — Já vou indo. Vou tentar não gastar os quinhentos dólares num lugar só. Tocou um botão que fez a parede deslizar para o lado; ao mesmo tempo as luzes do ateliê se apagaram, deixando os outra vez em completa escuridão. Do seu banquinho a garota disse: — Eu sou Kathy. — Meu nome e Jason. A parede se fechara de novo e as luzes se acenderam. “Ela é muito bonita mesmo”, pensou. Exceto pelo seu ar passivo, quase indiferente. Como se para ela nada valesse nada. Apatia? Não, foi a conclusão dele. Era tímida, era essa a explicação. — Você deu a ele quinhentos dólares para trazê-lo aqui? disse Kathy, espantada. Observou-o com ar crítico, como se quisesse tirar uma conclusão a respeito dele, baseando se na sua aparência. — Meu terno não costuma estar tão amassado — disse Jason. — É um belo terno. De seda? — Sim. — Você é estudante? perguntou Kathy, ainda o examinando. — Não, não é não; você não tem aquela cor pastosa que eles têm, de tanto viver nos subterrâneos. Bem, isso só deixa uma outra possibilidade. — Que eu seja um criminoso — disse Jason. — Tentando mudar minha identidade antes que os tiras e os GNs me peguem. — É isso? — perguntou ela, sem nenhum traço de apreensão. Foi uma pergunta simples e objetiva. — Não. — No momento não se estendeu em detalhes. Talvez mais tarde. Kathy disse: — Você não acha que muitos desses GNs são robôs e não pessoas reais? Como eles sempre estão com aquelas máscaras de gás, não dá para se ver. — Para mim já basta detestá-los — disse Jason. — Não preciso investigar o assunto mais a fundo. — Que tipo de ID você quer? Carteira de motorista? Ficha policial? Atestado de emprego legal? — Tudo — respondeu ele. — Incluindo a carteirinha de sócio do Sindicato dos Músicos, Local Doze. — Ah, você é músico — ela o olhou com mais interesse. — Sou vocalista — disse ele. — Sou animador de um programa de variedades na tevê, que vai ao ar As terças feiras das nove às dez. Talvez você já tenha assistido. É o Show Jason Taverner. — Não tenho mais televisão — disse a garota. — Assim, não poderia reconhecê-lo. É divertido fazer esse show? — Às vezes. A gente fica conhecendo uma porção de gente do show-biz, e isso é bom, se é o que a gente quer. — Descobri que de modo geral eles são pessoas como outras quaisquer. Têm lá os seus medos. Não são perfeitos. Alguns são muito engraçados, tanto na frente como atrás das câmeras. — Meu marido sempre me dizia que não tenho senso de humor — disse a garota. — Ele achava tudo engraçado. Achou engraçado até quando foi convocado para a GN. — E ele ainda estava rindo quando saiu? — perguntou Jason. — Não chegou a sair. Foi morto num ataque de surpresa dos estudantes. Mas não foi culpa deles; levou um tiro de outro GN. Jason perguntou: — Quanto vai me custar para ter todos os meus documentos? É melhor você me dizer agora, antes de começar a trabalhar. — Eu cobro conforme o que a pessoa pode pagar — disse Kathy, voltando a compor a linha de tipos. — Vou cobrar caro de você porque estou vendo que você é rico; deu quinhentos dólares para Eddy trazê-lo aqui e está com um terno de seda. Certo? — Deu uma olhada rápida para ele. — Ou estou errada? Me diga. — Tenho cinco mil dólares no bolso —— disse Jason. — Ou melhor, isso menos quinhentos. Sou um artista famoso no mundo inteiro; além do meu show, apresento-me um mês por ano no Sands. Aliás me apresento em vários clubes de primeira categoria, quando consigo achar um tempinho para eles na minha agenda apertada. — Puxa — disse Kalhy. Gostaria de já ter ouvido falar de você para poder ficar impressionada. Ele riu. — Falei uma bobagem? perguntou Kathy, tímida. — Não — disse Jason. Kathy, quantos anos você tem? —Dezenove, faço anos em dezembro, quer dizer que tenho quase vinte. Quantos anos você pensou que eu tinha, pela minha aparência? — Uns l6. Kathy fez um muxoxo infantil. — É o que todo mundo fala — disse em voz baixa. — É, porque não tenho busto nenhum. Se tivesse busto, aparentaria 21. Que idade tem você? Parou de mexer com os tipos e olhou com atenção. — Eu diria que uns cinquenta. Jason sentiu uma onda de raiva. E de sofrimento. — Parece que eu feri seus sentimentos — disse Kathy. — Tenho 42 anos — disse Jason, tenso. — Bem, que diferença faz? Quer dizer, tanto faz... — Vamos ao que interessa — interrompeu Jason. — Me dê papel e lápis; vou anotar quais os documentos que quero e o que cada um deve dizer sobre mim. Quero que o serviço saia perfeitamente correto. É bom você caprichar. — Você ficou com raiva — disse Kathy porque falei que você parece ter cinquenta anos. Olhando bem, não parece. Aparenta uns trinta. Passou lhe o lápis e o papel sorrindo com timidez, como pedindo desculpas. — Esqueça — disse Jason, dando lhe uma palmadinha nas costas. — Prefiro que as pessoas não me toquem — disse Kathy, esquivando-se. “É como uma gazela no bosque”, pensou ele. “Que estranho; ela tem medo até de um toque, mesmo de leve, e não tem medo de forjar documentos, um delito que pode lhe dar vinte anos de prisão. Talvez ninguém lhe tenha dito que é contra a lei. Talvez não saiba.” Alguma coisa brilhante e colorida na parede oposta chamou sua atenção; foi até lá examiná-la. Viu que era um manuscrito medieval com iluminuras; ou melhor, uma página de um manuscrito. Já linha lido a respeito, mas nunca vira um com os próprios olhos. — Isso é muito valioso? — perguntou. — Se fosse genuíno valeria cem dólares — disse Kathy— Mas não é; eu o fiz anos atrás, quando estava no ginásio da Força Aérea Americana. Copiei o original dez vezes até conseguir um bom resultado. Tenho amor pela boa caligrafia; gosto disso desde criança. Talvez porque meu pai desenhava capas de livros. — Isso enganaria um museu? — perguntou ele. Por um momento Kathy o fitou com atenção. Depois assentiu. — Eles não reconheceriam pelo papel? — É pergaminho daquela época. É a mesma técnica que se usa para falsificar selos antigos; pega-se um selo velho, sem valor, elimina-se a impressão e... — fez uma pausa. — Você está ansioso para eu começar a trabalhar nos seus seus documentos. — Sim — disse Jason. Passou-lhe o papel onde escrevera as informações. O mais importante eram os passes para transitar depois do toque de recolher, com impressões digitais, fotografias e assinaturas holográficas; tudo com datas de validade bem próximas. Teria que conseguir novos documentos outra vez dentro de três meses. — Dois mil dólares — disse Kathy, estudando a lista. Ele sentiu vontade de dizer: “Por esse preço posso também ir para a cama com você?”. Mas disse apenas: — Quanto tempo vai demorar? Horas? Dias? E se forem in dias, onde é que eu vou... — Horas — disse Kathy. Ele sentiu uma vasta onda de alívio. — Sente-se e me faça companhia — disse Kathy, indicando um banquinho em um canto. — Você pode me contar sobre sua carreira de artista de televisão bemsucedido. Deve ser fascinante, todos os cadáveres que se deve pisotear até chegar ao topo. Se é que você chegou ao topo. — Cheguei — respondeu ele, seco —, mas não há cadáveres. Isso é um mito. O que vale é o talento, só o talento, e não o que você disser ou fizer para outras pessoas, quer estejam acima ou abaixo de você. E dá muito trabalho; não é só chegar lá. dançar um sapateadinho e logo assinar um contrato com a NBC ou a CBS. Eles são homens de negócios experientes, duros. Principalmente o pessoal da A&R: Artistas e Repertório. Eles é que decidem quem vão contratar, listou falando dos discos. É por aí que se deve começar para chegar a um nível nacional; naturalmente, pode se trabalhar em clubes por aí até... — Aqui está a sua carteira de motorista de mosquinha — disse Kathy. Com cuidado passou-lhe uma carteirinha preta. Agora vou começar seu certificado de serviço militar é um pouco mais, difícil por causa das fotos de frente e de perfil, mais podemos dar um jeito ali — indicou um canto do ateliê onde havia uma tela branca, uma máquina fotográfica montada num tripé e um flash. — Você tem o equipamento completo — disse Jason, postando se rigidamente em frente á tela branca; já haviam tirado tantas fotos suas durante a sua longa carreira que sempre sabia exatamente onde se colocar e que expressão revelar. Mas parecia que dessa vez fizera algo de errado. Kathy o examinava com a expressão severa. — Você está todo iluminado — ela disse, meio para si mesma. — Está com um brilho falso. — Fotos para publicidade — disse Jason. — Aquelas brilhantes, dezoito por vinte e quatro. — Estas não são desse tipo. Estas são para evitar que você passe o resto da sua vida num campo de trabalhos forçados. Não sorria. Ele não sorriu. — Certo — disse Kathy. Tirou as fotos da câmera e levou as com cuidado para sua bancada de trabalho, abanando as para secar. — Essa droga de foto animada em três dimensões que eles querem nos papéis do serviço mlitar. Essa câmera me custou mil dólares e preciso dela só para isso. nada mais... Mas sou obrigada a tê-la. — Olhou bem para ele: — Você vai ter que pagar. — Está bem — disse ele, impassível. Já imaginava isso. Kathy trabalhou sem muito entusiasmo por algum tempo e disse então, virando-se abruptamente: — Mas afinal quem é você, de verdade? Você está acostumado a posar; eu vi isso, vi como você ficou paradinho com aquele sorriso alegre e os olhos brilhantes, tudo no lugar. — Já lhe disse, sou Jason Taverner, apresentador de tevê. Vou ao ar todas as terças-feiras à noite. — Não — disse Kathy, abanando a cabeça. — Não é da minha conta, desculpe; eu não devia ter perguntado.— Mas continuou a olhar para ele, como que exasperada. — Você está fazendo tudo errado. Você é de fato uma celebridade; posou para aquela foto instintivamente. Mas você não é celebridade nenhuma. Não existe nenhuma pessoa importante chamada Jason Taverner. Quem é você, então? Um homem que é fotografado a todo momento e que ninguém conhece, ninguém ouviu falar. — Estou agindo da mesma maneira que agiria qualquer celebridade de quem ninguém ouviu falar. Ela o encarou por um momento e então riu. — Sei. Bom, essa foi ótima. Foi ótima mesmo; não posso me esquecer dessa. — Voltou sua —atenção para os documentos que estava falsificando. — Nesse trabalho — disse, absorvida pelo que estava fazendo — procuro não conhecer as pessoas para quem faço os documentos. Mas — deu uma olhada para ele — até que gostaria de conhecer você. Você é estranho. Já vi vários tipos, talvez centenas; mas ninguém como você. Sabe o que eu acho? — Você acha que sou louco — disse Jason. — Sim — Kathy concordou. — Clinicamente, legalmente, ou seja lá como for. Você é psicótico; tem dupla personalidade. É o Sr. Ninguém e o Sr. Todo Mundo. Como conseguiu sobreviver até hoje? Ele não respondeu. Era impossível explicar. — Está bem — disse Kathy. Com habilidade e eficiência forjou, um a um, os documentos necessários. Eddy, o funcionário do hotel, estava sentado meio escondido no fundo, fumando um falso charuto Havana; não tinha nada a dizer nem o que fazer, mas por algum motivo obscuro continuava por ali. “Esse cara podia dar o fora daqui”, pensou Jason. “Gostaria de falar mais com ela...” — Venha aqui comigo — disse Kathy de repente. Desceu do banquinho de trabalho e indicou-lhe uma porta de madeira à direita da bancada. Quero sua assinatura cinco vezes, cada uma um pouquinho diferente da outra, para que não possam ser superpostas. É nesse ponto que tantos documentadores— é assim que nós nos chamamos — estragam tudo. — Abriu a porta sorrindo. — Eles pegam uma só assinatura e a transferem para todos os documentos. Percebe? — Sim disse ele, entrando atrás dela num quartinho cheio de mofo, mais parecendo um armário. Kathy fechou uma porta e após uma pausa disse: — Eddy é dedo-duro da polícia. — Por quê? — perguntou ele. — Por que o quê? Por que ele é dedo-duro da polícia? Ora, por dinheiro. Pelo mesmo motivo que eu sou. Jason disse: — Raios te partam! Agarrou-a pelo pulso direito e a puxou; ela fez uma careta quando os dedos dele se apertaram. — E ele já... — Eddy ainda não fez nada — disse ela, irritada, tentando soltar o pulso. — Está doendo. Escute, acalme-se; eu mostro para você está bem? Com relutância, o coração batendo de medo, ele a soltou. Kathy acendeu uma lâmpada forte e colocou três documentos forjados sob a luz. — Veja este pontinho vermelho na margem de cada um disse indicando um ponto quase invisível. — É um microtransmissor; assim você vai emitir um bip a cada cinco segundos, onde quer que esteja. Eles estão atrás de conspirações; querem as pessoas com quem você anda. — Não ando com ninguém — respondeu Jason, ríspido. — Mas eles não sabem disso. — Esfregou o pulso, franzindo o cenho como uma menina emburrada, e murmurou: — Vocês, as celebridades de quem ninguém ouviu falar, têm umas reações bem rápidas. — Por que você me contou? — perguntou Jason. — Depois de forjar tudo, depois de tanto... — Quero que você vá embora — ela disse com simplicidade. — Por quê? — ele não compreendia. — Bem, porque... Diabo, você tem uma espécie de magnetismo; notei isso assim que você entrou no ateliê. Você é... — ela procurou a palavra certa — sexy. Mesmo na sua idade. — Tenho presença — disse ele. — Sim. Já tinha visto isso em pessoas famosas, à distância mas nunca assim de perto. Dá para entender porque você imagina que é uma personalidade da tevê; você parece mesmo alguém assim. — Como é que saio daqui? — ele perguntou. — Você vai me dizer? Ou isso custa um pouco mais? — Meu Deus, como você é cínico. Ele riu e segurou-a de novo pelo pulso. — Acho que você não tem culpa — disse Kathy, sacudindo a cabeça e fazendo uma expressão impassível como uma máscara. — Bem, em primeiro lugar, você pode comprar o Eddy. Mais quinhentos devem bastar. Quanto a mim, você não precisa me comprar; isto é, com uma condição. Estou falando sério. Com a condição de que você fique um pouco comigo. Você tem... um charme, um fascínio. É como um bom perfume. Você me atrai, e isso nunca me acontece com os homens. — Com as mulheres, então? — disse ele com malicia. Ela deixou passar sem comentário. —— Você fica? — perguntou. — Diabos — disse ele —, vou embora. — Abriu a porta e passando por ela entrou no ateliê. E1a o seguiu depressa. Entre as sombras do restaurante abandonado ela o alcançou; encarou-o na escuridão e lhe disse, arquejando: — Você já está com um transmissor implantado dentro de você. — Duvido — ele respondeu. — É verdade. Eddy o enxertou em você. — Conversa fiada — disse ele, e afastou-se dela, encaminhando-se para a luz que vinha da porta quebrada do restaurante. Correndo atrás dele como um animalzinho ágil, Kathy disse, ofegante: — Mas suponha que seja verdade. Poderia ser. — Postou-se na passagem entre ele e a liberdade. Levantou as mãos como se fosse aparai um golpe e disse depressa: — Fique comigo uma noite. Venha para a cama comigo. Está bem? Uma noite basta, prometo. — Você faria isso, uma noite só? “Um pouco das minhas habilidades”, pensou ele, “das minhas supostas e bem conhecidas capacidades, chegou comigo até aqui, até este estranho lugar onde estou vivendo agora. Este lugar onde não existo exceto em documentos forjados por uma informante da polícia. Que estranho!” Jason estremeceu. “Documentos com microtransmissores embutidos, para me denunciarem à polícia, denunciarem a mim e a quem estiver comigo. Só que, como ela diz, tenho charme. Meu Deus! E pensar que é só isso que me impede de ir parar num campo de trabalho forçado.” — Está bem — disse então. Parecia a opção mais inteligente, de longe. — Vá pagar o Eddy — disse ela — Resolva logo esse assunto e veja se ele dá o fora. — Gostaria de saber por que ele ainda está por aqui disse Jason. — Será que sentiu o cheiro de mais dinheiro? — Acho que sim — disse Kathy. — A gente tem que fazer isso o tempo todo — disse Jason, tirando o dinheiro do bolso. POH. Procedimento Operacional Básico. Kathy disse, alegre: — Eddy é psiônico. 4 A dois quarteirões dali, no segundo andar de um edifício de madeira sem pintura mas que já fora branco, Kathy tinha um quarto com uma diminuta cozinha onde se podia preparar refeições para uma só pessoa. Jason olhou ao redor. Um quarto de moça: a caminha de solteiro coberta por uma colcha feita a mão, com fileiras e mais fileiras de bolinhas de tecido verde. “Como um cemitério militar”, pensou ele, mórbido, sentindo-se oprimido pela pequenez do quarto. Numa mesa de vime viu um livro: Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. — Até que pedaço você leu? — perguntou ele. — Até À Sombra das Garotas em Flor. — Kathy trancou a porta dando duas voltas na chave e ligou um dispositivo eletrônico que ele não conhecia. — Não foi muito longe, então — disse Jason. Tirando seu casaco plástico, Kathy perguntou: — E você, leu até onde? — Pendurou num pequenino armário embutido seu casaco e o dele também. — Nunca li esse livro — disse Jason. Mas uma vez no meu programa fizemos uma dramatização de uma cena... Não sei qual. Recebemos muitas cartas elogiando o programa, mas nunca repetimos a experiência. Essas coisas extras a gente tem que ter cuidado para não mostrar muito. Do contrário elas matam todo mundo, todas as emissoras, pelo resto do ano. — Percorreu o quarto atravancado, examinando aqui um livro, ali uma fita cassete, uma revista sonora. Kathy tinha até mesmo um brinquedo falante. “Como uma criança”, pensou ele; “ela ainda não é adulta.” Curioso, voltou sua atenção para o brinquedo falante. — Oi! — falou o brinquedo. — Sou o Fábio Falante e não há dúvida de que estou sintonizado no seu comprimento de onda. Não há ninguém chamado Fábio Falante no meu comprimento de onda — disse Jason. Já ia desligá-lo, quando o boneco protestou. — Desculpe — disse Jason —, mas vou desligar você seu chatinho. — Mas eu te amo! — protestou Fábio Falante em sua voz metálica. Jason parou com o dedo já em cima do botão para desligá-lo. — Prove — disse ele ao boneco. Em seu show já havia feito comerciais para porcarias daquele tipo. Detestava-os igualmente: tanto as geringonças como os comerciais. — Me dê um dinheiro, já que gosta de mim. — Sei como você pode conseguir de volta seu nome, sua fama e fortuna — informou-o Fábio Falante. — Serve como aperitivo? — Claro — disse Jason. — Vá procurar sua namorada — veio a vozinha de Fábio Falante. — De quem você está falando? — perguntou Jason, cauteloso. — Heather Hart — respondeu Fábio Falante num tom ainda mais agudo. — Meio difícil — disse Jason. — Mais algum conselho? — Já ouvi falar de Heather Hart — disse Kathy, trazendo uma garrafa de suco de laranja da geladeira embutida. A garrafa só estava um quarto cheia; ela a agitou e serviu aquele suco artificial instantâneo, cheio de espuma, com dois copos de geleia. — Ela é linda. Tem aquele cabelão vermelho. É verdade que ela é sua namorada? O Fábio tem razão? — Todo mundo sabe — disse Jason que Fábio Falante sempre tem razão. — Sim, acho que é verdade. — Kathy misturou no suco de laranja gim de má qualidade, Mountballen Selo de Ouro. — É um hi-fi — disse com orgulho. — Está servido? — Não, obrigado — disse ele. — Não a essa hora do dia. "Nem se fosse uísque escocês legítimo”, pensou. “Essa porcaria de quartinho... Será que ela não ganha nada, nem como dedo-duro nem como falsificadora? Será que ela é mesmo informante da polícia, como diz? Muito estranho. “Talvez ela seja as duas coisas. Talvez nem uma, nem outra.” Pergunte para mim! — gritou Fábio Falante. — Estou vendo que você está com alguma coisa na cabeça, Sr. Seu bonitão filho da mãe. Jason deixou passar essa. Começou a perguntar: — Esta garota... — mas no mesmo instante Kathy arrancou Fábio Falante das suas mãos e encarou Jason indignada, as narinas dilatadas de raiva. — Nunca pergunte sobre mim ao meu Fábio Falante disse ela, arqueando as sobrancelhas. “É como um pássaro selvagem”, pensou ele, “fazendo tudo para proteger seu ninho.” Jason riu. — Qual é a graça? — perguntou Kathy. — Esses brinquedos falantes — disse ele — são mais chatos do que úteis. Deviam ser abolidos. Afastou-se dela e viu uma pilha de correspondência numa mesinha de tevê. Percorreu os envelopes a esmo, notando que nenhum dos que continham contas havia sido aberto. — São meus — disse Kathy na defensiva, observando-o. — Você recebe muitas contas — disse ele considerando que é uma moça que mora sozinha num quartinho. Você compra suas roupas na Metter’s? Interessante. Eu... eu uso um tamanho especial. — E sapatos da Sax and Crombie disse ele. — No meu trabalho... — começou ela, mas ele a interrompeu com um gesto. — Não me venha com essa — disse, irritado. — Pode olhar no meu armário. Você não vai ver grande coisa. Nada de extraordinário, só que o que tenho é de boa qualidade. Prefiro ler poucas coisas, mas boas... — Começou a arrastar as palavras. — Sabe como é — continuou, num tom vago —, é melhor do que um monte de porcarias. — Você tem outro apartamento — disse Jason. — Acertou na mosca; ela piscou os olhos, procurando dentro de si alguma resposta. Para ele aquela atitude já era uma resposta clara. — Vamos para lá — disse ele. Já estava enjoado daquele quartinho atravancado. — Não posso levar você lá — disse Kathy — porque moro com duas outras garotas e nós dividimos o tempo de uso de cada uma, de modo que... — Você obviamente não estava tentando me impressionar. — Aquilo o divertia, mas também o irritava; de alguma forma nebulosa, sentia-se degradado. — Eu teria levado você lá se hoje fosse o meu dia — disse Kathy. — É por isso que tenho que manter este quartinho; tenho que ter algum lugar para ir quando não é meu dia. Meu próximo dia será na sexta-feira, a partir do meio — dia. — Seu tom de voz era agora sincero. Como se realmente quisesse convencêlo. Provavelmente, pensou ele, era verdade. Mas aquilo tudo o incomodava. Ela e a vida que levava. Sentia-se como se tivesse sido capturado por alguma coisa que o arrastava para umas profundezas que nunca antes conhecera, nem mesmo nos tempos difíceis do início. Não estava gostando nada daquilo. De repente teve uma tremenda vontade de sair dali. O animal acuado era ele mesmo. — Não me olhe desse jeito — disse Kathy, bebericando seu hi-fi. Jason disse para si mesmo, mas em voz alta: — Abriste a porta da vida com tua grande cabeça densa. E agora quem a pode fechar? — De onde é isso? — perguntou Kathy. — Da minha vida. — Mas parece poesia. — Se você assistisse ao meu show, saberia que dou umas tiradas dessas de vezem quando. Encarando-o o calmamente, Kathy disse: — Vou olhar a programação de tevê e ver se você está listado. Deixou seu drinque na mesa e pegou uns jornais velhos empilhados na prateleira debaixo da mesinha da tevê. — Eu nem sequer nasci — disse ele. — Já verifiquei isso. — E seu show não é mencionado aqui — disse Kathy, dobrando o jornal e estudando a programação de tevê. — Isso mesmo — disse ele. — Agora você já tem todas as, informações a meu respeito. — Deu uma palmadinha no bolso do colete, cheio de documentos forjados. — Inclusive essas aqui. Com microtransmissores e tudo, se é que isso é verdade. — Me devolva isso e eu elimino os microtransmissores. Demora só um minuto. — Estendeu a mão, à espera. Ele lhe devolveu os documentos. — Você não se importa se eu tirar ou não? — perguntou Kathy. Jason respondeu com sinceridade: — Para falar a verdade, não. Perdi a capacidade de saber o que é bom e o que é ruim, o que é verdadeiro e o que e falso. Se você quiser tirar os pontinhos, tire. Se for do seu agrado. Depois de um momento ela lhe devolveu os documentos, com seu vago sorriso de 16 anos. Notando a juventude dela, seu brilho natural, ele disse: Sinto-me velho como um longínquo olmo. — Isso é do Finnegans Wake — disse Kalhy, feliz. — Quando as velhas lavadeiras ao anoitecer se confundem com as árvores e as rochas. — Você leu Finnegans Wake'! Perguntou ele, surpreso. — Assisti ao filme. Quatro vezes. Gosto de Hazeltine; na minha opinião é o melhor diretor vivo. — Ele veio uma vez ao meu show disse Jason. — Quer saber como ele é na vida real? — Não — respondeu Kathy. — Talvez você deva saber. — Não — repetiu ela, abanando a cabeça; falava agora mais alto. — E por favor não me diga, está bem? Eu acredito no que quero acreditar, e você acredita no que quiser. Está certo? — Claro — disso ele. Simpatizou com aquilo. Muitas vezes já tinha pensado que a verdade era uma virtude supervalorizada. Na maioria dos casos uma mentira simpática funcionava melhor e era mais caridosa. Em especial entre um homem e uma mulher; aliás, sempre que havia uma mulher na história. É claro que aquela não era, a bem dizer, uma mulher, mas sim uma garota, li portanto, resolveu ele, a mentira piedosa era ainda mais necessária. — Ele é um estudioso, um artista — disse Jason. — É mesmo? Ela o olhou cheia de esperança. — Sim. Com isso ela suspirou aliviada. — Quer dizer que você acredita — atacou ele — que conheço Michael Hazeltine, o melhor diretor de cinema vivo, conforme você mesma disse. Então você acredita que sou um tipo seis. Ele se interrompeu; não era isso que pretendia dizer. — Um tipo seis — repetiu Kathy, franzindo o cenho como se tentasse recordar-se. — Já li sobre eles na revista Time. Eles já não morreram todos? O governo não recolheu todos e mandou matá-los depois que o líder deles — como era o nome dele? — Teagarden; sim, era isso. Willard Teagarden. Ele tentou — como se diz? Dar um golpe contra a GN. Tentou dissolver a GN, alegando que era uma associação paramutual... — Paramilitar — disse Jason. — Você não está dando a mínima para o que estou dizendo. Com sinceridade Jason disse: — É claro que estou. — Esperou. A garota não continuou. — Raios! — exclamou com raiva. — Termine o que você estava dizendo! — Acho — disse Kathy por fim — que foram os tipos sete que impediram o golpe. Tipo sete, pensou ele. Nunca em sua vida tinha ouvido falar, dos tipos sete. Nada poderia tê-lo chocado mais. “Ainda bem", pensou ele, “que deixei escapar esse lapsus linguae' Agora eu realmente aprendi alguma coisa. Finalmente. Nesse labirinto de confusão e coisas semi-reais.” Uma pequena parte da parede abriuse ligeiramente com um rangido e um gatinho preto e branco entrou no quarto. Imediatamente Kathy o pegou no colo, com o rosto todo iluminado. — É a filosofia de Dinman — disse Jason. — O gato obrigatório. — Conhecia bem essas ideias; na verdade, apresentara Dinman aos telespectadores, num de seus programas especiais. — Não; gosto dele, só isso — disse Kathy com os olhos brilhantes, levando o filhotinho para que Jason o visse. — Mas você acredita — disse ele, acariciando a cabecinha do gato — que ter um animal aumenta a capacidade de empatia da... — Dane-se tudo isso — disse Kathy, apertando o gato contra o peito como uma criança de cinco anos com seu primeiro bichinho. A pesquisa da escola; a cobaia da classe. — Esse aqui é o Domênico — disse. — Em homenagem a Domênico Scarlatti? — Não, ao Armazém Domênico, nessa mesma rua; passamos por lá quando viemos até aqui. — Quando estou no miniapartamento, isto é, neste quarto, faço minhas compras lá. Domênico Scarlatti é um músico? Acho que já ouvi falar dele. — Foi professor de inglês de Abraham Lincoln no ginásio — disse Jason. — Ah! — Kathy assentiu distraída, embalando o gato no colo. — Estou brincando com você — disse ele. — Foi maldade minha. Desculpe. Kathy olhou para ele com seriedade, abraçando seu gatinho. — Nunca sei a diferença — murmurou. — É por isso que é maldade — disse Jason. — Por quê? — perguntou ela. — Se nem sei quem é. Quer dizer, isso significa que sou burra. — Não é mesmo? — Você não é burra — disse Jason. — Só inexperiente. — Calculou a diferença de idade entre eles. — Eu já vivi duas vezes mais do que você — observou. — E nos últimos dez anos estive numa posição que me permitiu conhecer algumas das pessoas mais famosas do mundo. E... — E — disse Kathy — você é um tipo seis. Ela não esquecera o lapso dele. Claro que não. Ele poderia lhe dizer um milhão de coisas, e todas seriam esquecidas dez minutos depois, exceto aquele único lapso verdadeiro. Bem, o mundo era assim mesmo. Ele já se acostumara com isso; fazia parte de ter a idade que tinha, e não a idade dela. — O que significa Domênico para você? — perguntou Jason, mudando de assunto de modo brusco; percebeu isso, mas foi em frente. — O que ele dá para você que os seres humanos não dão? Ela franziu a testa, ficou pensativa. — Ele está sempre ocupado. Sempre tem algum projeto. Como por exemplo caçar algum bichinho. Ele é bamba com as moscas; já aprendeu a comê-las antes que sumam. Deu um sorriso atraente. — Além disso não preciso ficar me perguntando a respeito dele, “devo ou não entregá-lo ao Sr. McNulty?”. O Sr. McNulty é o meu contato na polícia. E para ele que dou os receptores analógicos que correspondem aos microtransmissores, aqueles pontinhos que mostrei a você. — E ele lhe paga? Ela assentiu. — E mesmo assim você vive desse jeito. — Eu... — ela procurou uma resposta. — Não tenho muitos fregueses. — Bobagem. Você é perita; observei-a quando trabalhava. Você tem experiência. — Tenho talento. — Mas é um talento treinado. — Está bem; o dinheiro vai todo para o apartamento na cidade. O meu maxiapartamento. — Cerrou os dentes; não estava gostando de ser pressionada. — Não. — Jason não acreditou. Kathy disse então, depois de uma pausa: — Meu marido está vivo. Está num campo de trabalhos forçados no Alasca. Estou tentando tirá-lo de lá passando informações para o Sr. McNulty. Daqui a um ano — ela deu de ombros, sua expressão era agora tristonha e introvertida, ele diz que Jack vai poder sair. E voltar pra cá. “Então você manda outras pessoas para os campos pensou ele, “para tirar seu marido de lá. Parece um típico ato com a polícia. Deve ser verdade.” — É um arranjo incrível para a polícia — disse ele— Perdem um homem e ganham — quantos você diria que já entregou a eles? Montes? Centenas? Ela refletiu e respondeu enfim: — Talvez cento e cinquenta. — Isso é maldade — disse ele. — É mesmo? — ela o olhou nervosa, apertando Domenico contra seu peito achatado. Então aos poucos foi ficando zangada; era claro pelo rosto dela e pela maneira como apertava o gato com força contra o peito. — Dane-se! — exclamou com violência. — Eu amo Jack e ele me ama. Ele me escreve o tempo todo. Com crueldade ele disse: — Cartas forjadas. Por algum empregado dos tiras. Começaram a jorrar lágrimas dos olhos dela em quantidade espantosa. — Você acha mesmo? Às vezes também acho. Você quer vê-las? Você saberia dizer? — Não devem ser forjadas. É mais barato e simples mantê-lo vivo e deixálo escrever suas próprias cartas. — Esperou que esse argumento a faria sentir-se melhor, e foi o que aconteceu: as lágrimas pararam de rolar. — Não tinha pensado nisso — disse ela assentindo, mas sem sorrir; seu olhar se perdeu ao longe enquanto continuava embalando o gatinho preto e branco. — Se o seu marido ainda está vivo — disse ele, dessa vez com cautela —, você acha que é certo ir para a cama com outros homens, como eu? — Ah, claro! Jack nunca se opôs a isso. Mesmo antes de ser pego. E estou certa de que não se opõe agora. Na verdade ele me escreveu sobre isso. Deixe-me ver; foi uns seis meses atrás. Acho que consigo encontrar a carta; tenho todas elas microfilmadas. Lá na loja. — Por quê? — Ás vezes eu amplio para os clientes. Assim mais tarde eles compreenderão por que fiz aquilo que faço. Nessas alturas ele francamente não sabia que emoção sentia para com ela, nem o que devia sentir. Ao longo dos anos ela aos poucos se envolvera numa situação da qual não conseguia se livrar. E ele não via saída para ela agora; já fora longe demais. A fórmula se tornara fixa. As sementes do mal já haviam brotado. — Para você não há volta — disse ele, sabendo disso, sabendo que ela sabia. — Escute — disse num tom gentil. Pôs a mão no ombro dela, mas, como antes, ela se esquivou de imediato. — Diga a eles que você o quer de volta agora mesmo, e que você não vai entregar mais ninguém. — Eles o soltariam, então, se eu dissesse isso? — Tente. — Sem dúvida não faria mal algum. -Mas Jason imaginava bem como era o Sr. McNulty e como vigiava Kathy. Ela nunca conseguiria enfrentálo; os McNultys do mundo não eram enfrentados por ninguém. Exceto quando algo dava errado, estranhamente errado. — Sabe o que você é? — disse Kathy. — Você é uma pessoa muito boa. Compreende? Ele deu de ombros. Como a maioria das verdades, era questão de opinião. Talvez fosse mesmo bondoso. Nessa situação, pelo menos. Em outras já não. Mas Kathy não sabia disso. — Sente-se — disse ele —, faça carinho no seu gato, beba seu hi-fi. Não pense em nada; seja, apenas. Você consegue fazer isso? Esvaziar sua mente por alguns instantes? Experimente. Trouxe-lhe uma cadeira; ela sentou, obediente. — Faço isso o tempo todo — disse ela com a expressão vazia, entediada. — Mas não negativamente — disse Jason. — Faça isso de maneira positiva. — Como assim? O que você quer dizer? — Faça isso com um objetivo real, não apenas para evitar encarar fatos tristes. Faça isso porque você ama seu marido e o quer de volta. Quer que tudo seja como era antes. — Sim — ela concordou. — Mas agora encontrei você. — E isso significa o quê? — Ele ficou de sobreaviso; a resposta o desorientou. — Você é mais magnético do que Jack — disse ela. Ele é magnético, mas você é muito, muito mais. Talvez depois de conhecer você não possa amar Jack de verdade outra vez. Ou você acha que a gente pode amar duas pessoas igualmente, mas de maneiras diferentes? Meu grupo de terapia diz que não; dizem que tenho que escolher, que é um dos aspectos básicos da vida. Agora não sei mesmo o que fazer. É muito difícil resolver essas coisas porque a gente não tem com quem falar; ninguém compreende. A gente tem que passar por isso sozinha, e às vezes fazemos a escolha errada. Por exemplo, se eu escolher você em vez de Jack e aí ele voltar e eu não ligar mais para ele; o que acontece? Como ele vai-se sentir? Isso é importante, mas também é importante o que eu sinto. Se eu gosto de você, ou de alguma outra pessoa como você, mais do que dele, então tenho que realizar isso, como se diz no nosso grupo de terapia. Sabia que eu estive oito semanas num hospital psiquiátrico? O Centro Morningside de Higiene Mental, em Atherton. Meus pais pagaram. Custou uma fortuna pois por alguma razão nós não tínhamos direito à ajuda comunitária nem federal. Bem, de qualquer forma ali aprendi muito sobre mim mesma e fiz uma porção de amigos. A maioria das pessoas que realmente conheço são as que encontrei no Morningside. Naturalmente quando os conheci, naquela época, tinha um delírio de que eram pessoas famosas como Mickey Quinn e Arlene Howe. Sabe como é celebridades. Como você. — Conheço tanto Mickey Quinn como Arlene Howe disse ele — e você não perdeu nada. Examinando-o bem, ela disse: — Talvez você não seja uma celebridade; talvez tenha voltado à minha época de delírio. Eles me disseram que isso provavelmente aconteceria, mais cedo ou mais tarde. Quem sabe chegou a hora. — Nesse caso — observou ele — eu seria uma alucinação sua. Tente mais um pouco; não me sinto totalmente real. Ela riu. Mas continuava com um humor sombrio. — Não seria estranho se tivesse inventado você, como você disse agora? Que se eu me recuperasse por completo você desapareceria? — Não desapareceria. Mas deixaria de ser uma celebridade. — Isso você já deixou de ser. — Ela levantou a cabeça e o encarou firme. Quem sabe é isso. É por isso que você é uma celebridade de quem ninguém ouviu falar. Inventei você; você é um produto da minha mente delirante, e agora estou ficando boa de novo. — Uma visão solipsista do Universo. — Não faça isso. Você sabe que não tenho ideia do que significam palavras assim. Que tipo de pessoa você acha que sou? Não sou famosa e poderosa como você; sou apenas uma pessoa que faz um trabalho terrível, pavoroso, que manda gente para a prisão, porque amo Jack mais do que o resto da humanidade. Escute — sua voz tornou-se firme e decidida. — A única coisa que me devolveu a saúde mental foi o fato de que amava Jack mais do que Mickey Quinn. Sabe, achei que um rapaz, que havia lá, chamado David, era na realidade Mickey Quinn, e que era um grande segredo que Mickey Quinn havia perdido a razão e ido para esse hospital psiquiátrico para curar-se, e ninguém devia ficar sabendo de nada porque isso acabaria com a imagem dele. Por isso fingia chamar-se David. Mas eu sabia. Ou melhor, achava que sabia. E o dr. Scott disse que eu tinha que escolher entre Jack e David, ou entre Jack e Mickey Quinn, quem eu achava que David de fato era. E escolhi Jack. Foi assim que saí de lá. Talvez — ela agora fraquejava, seu queixo tremia —, talvez agora você compreenda por que eu tenho que acreditar que Jack é mais importante do que qualquer coisa, qualquer pessoa, do que um monte de outras pessoas. Percebe? Ele percebia, e assentiu. — Nem mesmo homens como você— continuou Kathy que são mais magnéticos do que ele, podem me tirar de Jack. — Não quero fazer isso. — Pareceulhe uma boa ideia deixar esse ponto bem claro. — Quer sim. Em algum nível você quer. É uma competição. — Para mim — disse Jason — você é apenas uma mocinha num quartinho de um prediozinho. Para mim o mundo inteiro é meu, com todas as pessoas que nele existem. — Não se você está num campo de trabalhos forçados. Ele teve que concordar. Kathy tinha o hábito irritante de desmontar qualquer argumentação. Ela continuou: — Agora você compreende um pouquinho, não? A respeito da minha relação com Jack e do porquê eu posso ir para a cama com você sem trair Jack. Dormi com David quando estávamos em Morningside, mas Jack compreendeu; ele sabia que eu tinha que fazer aquilo. Você no lugar dele teria compreendido? — Se você fosse psicótica... — Não, não por causa disso. E porque era meu destino dormir com Mickey Quinn. Tinha que acontecer; estava cumprindo meu destino cósmico. Compreende? — Certo — concordou ele com delicadeza. — Acho que estou bêbada — disse Kathy examinando seu hi-fi. — Você tem razão; é muito cedo para beber isso. Deixou na mesa seu copo pela metade e continuou: — Jack compreendia. Ou pelo menos dizia que compreendia. Será que estava mentindo? Para não me perder? Porque se eu tivesse que escolher entre ele e Michael Quinn... — ela fez uma pausa. — Mas eu escolhi Jack. Sempre teria feito isso. Mas mesmo assim tinha que dormir com David. Isto é, com Mickey Quinn. “Eu me meti com uma criatura complicada, muito especial e que não bate muito bem da bola”, pensou Jason Taverner. “Tão ruim, ou até pior do que Heather Hart. A pior que já encontrei em 42 anos de vida. Mas como posso me livrar dela sem que o Sr. McNulty fique sabendo de tudo? Meu Deus”, pensou, desanimado, “talvez não consiga. Talvez ela queira brincar comigo até enjoar, e aí chame os tiras. E esse vai ser o meu fim.” — Você não acha — disse ele em voz alta — que daqui a mais quatro décadas eu teria aprendido a resposta? — A resposta para mim? — disse ela. Com agudeza. Ele assentiu. — Você está achando que depois que dormir com você vou denunciá-lo. A essa altura, ele ainda não tinha chegado exatamente a essa conclusão. Mas a ideia geral era essa mesmo. Portanto respondeu com cautela: — O que acho é que você já aprendeu, com esse seu jeito inocente e ingênuo de garota de 19 anos, a usar as pessoas. O que eu considero muito mau. E como já começou, não consegue parar. — Você nem sabe que está fazendo isso. — Eu nunca iria denunciá-lo. Amo você. — Você me conhece há umas cinco horas. Nem isso. — Mas sempre sei quando isso acontece. — Seu tom de voz, sua expressão, eram firmes. E de uma profunda solenidade. — Você nem tem certeza de quem eu sou! — Nunca tenho certeza de quem quer que seja. Nesse ponto, evidentemente, ela tinha razão. Jason tentou portanto uma nova tática. — Ouça. Você é uma estranha combinação de romântica inocente e... fez uma pausa; a palavra “traidora” viera à sua mente, mas ele a descartou depressa — e uma manipuladora sutil e calculista. — “Você”, pensou ele, “é uma prostituta mental. E é a sua mente que está se prostituindo, antes e mais do que a de qualquer outra pessoa. Apesar de você mesma nunca conhecer isso. E se reconhecesse, diria que foi forçada a fazer isso. Sim, forçada; mas por quem? Por Jack? Por David? Por você mesma. Por querer dois homens ao mesmo tempo — e conseguir os dois.” “Pobre Jack”, pensou ele. “Seu infeliz filho da mãe. Carregando merda num campo de trabalhos forçados no Alasca, esperando que essa criançona toda complicada o salve. Pode esperar sentado.” Naquela noite mesmo sem convicção Jason jantou com Kathy num restaurante italiano a um quarteirão do apartamento dela. Kathy parecia conhecer de leve o proprietário e os garçons; seja como for, eles a cumprimentaram e ela respondeu distraída, como se não os ouvisse bem. Ou, pensou Jason, como se não tivesse inteira consciência de onde estava. “Menininha”, pensou ele, “onde está o resto da sua cabeça?” — A lasanha aqui é muito boa — disse Kathy sem olhar para o menu; parecia agora estar muito longe afastando-se mais e mais. A cada momento. Ele sentiu que uma crise se aproximava. Mas não a conhecia o suficiente; não fazia ideia da forma que tomaria essa crise. E não estava gostando nada daquilo. — Quando você pira — disse ele de sopetão, tentando pegá-la desprevenida —, o que você faz? — Ah — disse ela sem expressão —, me jogo no chão e começo a gritar. Ou a dar pontapés. Chuto quem tentar me segurar. Quem quiser interferir com a minha liberdade. — Você está com vontade de fazer isso agora? Ela levantou um pouco o rosto e deu uma olhada para ele. — Estou. — Jason notou que o rosto dela transformara-se numa máscara contorcida e angustiada. Mas os olhos continuavam totalmente secos. Desta vez não haveria lágrimas. — Não tenho tomado meu remédio. Tenho que tomar vinte miligramas de Actozine por dia. — E por que não toma? — Nunca tomavam; ele já havia encontrado essa anomalia várias vezes. — Embota minha mente — ela respondeu, tocando o nariz com o dedo indicador, como se estivesse cumprindo um ritual que devia ser executado com absoluta correção. — Mas se... Kathy interrompeu, brusca: — Eles não vão foder com a minha cabeça. Não vou deixar nenhum arrebenta-cabeças me pegar. — Sabe o que são os AC? — Você acabou de dizer. — Jason falou baixo e devagar, fixando toda sua atenção nela... como se tentasse segurála, manter a cabeça dela bem firme. A comida chegou. Estava horrível. — Não é uma maravilha, essa comida italiana autêntica? — disse Kathy, enrolando com destreza o espaguete no garfo. — É, sim — ele concordou, vago. — Você está achando que vou pirar. E não quer se envolver. — Isso mesmo — disse Jason. — Vá embora, então. — Eu... — ele hesitou. — Gosto de você. Quero ter certeza de que você vai estar bem. — Uma mentira benigna, do tipo que ele aprovava. Pareceu-lhe melhor do que dizer: “Porque se eu for embora você vai telefonar para o Sr. McNulty daqui a vinte segundos”. O que na verdade era o que ele achava. — Vou ficar bem. Eles me levam para casa. — Indicou vagamente o restaurante em volta, os clientes, garçons, o caixa. O cozinheiro em meio ao vapor da cozinha superaquecida e sem ventilação. O bêbado no bar, brincando com seu copo de cerveja Olympia. Jason disse, após calcular com cuidado e ter uma razoável certeza de estar tomando a atitude certa: — Você não está assumindo a responsabilidade. — Por quem? Não estou assumindo responsabilidade pela sua vida, se é isso que quer dizer. Isso é problema seu. Não ponha esse peso nas minhas costas. — Responsabilidade — ele disse — pelas consequências que os seus atos acarretam para os outros. Você está indo à deriva moralmente, eticamente. Emergindo aqui e ali, depois afundando de novo. Como se nada estivesse acontecendo. Está deixando que os outros apanhem do chão os seus destroços. Levantando a cabeça ela o enfrentou: — Eu lhe fiz algum mal? Salvei você dos tiras; foi isso que fiz para você. Foi errado? Diga, foi errado? — A voz dela aumentou de volume; encarava-o sem piscar, sem dó, ainda segurando o garfo cheio de espaguete. Ele suspirou. Não adiantava. — Não — disse —, não foi errado. Obrigado. Eu lhe agradeço pelo que fez. — E enquanto dizia isso sentiu um ódio direto contra ela. Por enredá-lo daquela maneira. Uma ordinariazinha de 19 anos, apanhando um adulto tipo seis como ele. Era tão improvável que parecia absurdo; num certo nível, sentiu vontade de rir. Mas nos outros níveis não. — Você está reagindo ao meu calor? — perguntou ela. — Sim. — Você está sentindo o meu amor chegando até você, não está? Ouça. Quase dá para ouvir. — Ela escutou ateu lamente. — Meu amor está crescendo, e é um fruto tenro. Jason fez sinal ao garçom. — O que vocês têm para beber? — perguntou ao garçom com rispidez. — Só cerveja e vinho? E maconha, senhor. Acapulco Gold da melhor qualidade. E haxixe também, tipo A. — Nenhuma bebida forte? — Não, senhor. Com um gesto dispensou o garçom. — Você o tratou como um empregado — disse Kathy. — E — disse ele, gemendo alto. Fechou os olhos e massageou o nariz e os olhos. Podia ir até o fim agora; afinal, tinha conseguido atiçar a raiva dela. — Ele é um péssimo garçom — disse — e este aqui é um péssimo restaurante. Vamos embora. Kathy comentou com amargura: — Então é isso que significa ser uma celebridade. Agora compreendo. — Em silêncio pôs o garfo na mesa. — O que você acha que compreende? — disse ele, revelando tudo agora; sua atitude conciliadora desaparecera de uma vez. Para nunca mais voltar. Levantou-se e pegou seu casaco. — Estou indo embora — disse. E vestiu o casaco. — Oh, meu Deus — disse Kathy, fechando os olhos; sua boca abriu-se num esgar. — Oh, meu Deus. Não. O que você fez? Você sabe o que acaba de fazer? Você tem consciência? Você percebe? — Fechou então os olhos, cerrou os pulsos, e de cabeça baixa começou a gritar. Ele nunca tinha ouvido gritos assim, e ficou paralisado, embotado por aquele alarido e pela imagem do rosto da moça, crispado e disforme. “São gritos psicóticos”, disse para si mesmo. “Do inconsciente da raça. Não vêm de uma pessoa, mas de um nível mais profundo, de uma entidade coletiva.” Saber disso não ajudava em nada. O proprietário e dois garçons acorreram, ainda com os menus na mão; Jason, estranhamente, notou os detalhes. Parecia que tudo se tinha congelado com os gritos dela. Tudo se tornara fixo. Os fregueses levantando os garfos, abaixando as colheres, mastigando... Tudo parou e sobrou apenas aquele som feio, terrível. E ela dizia também palavras. Palavras cruas, como se estivesse lendo grafites de algum muro de quintal. Palavras curtas, destrutivas, que ofendiam a todos no restaurante, inclusive a ele. Especialmente a ele. O proprietário, com o bigode tremendo, fez sinal aos dois garçons, que levantaram Kathy da cadeira, seguraram — na pelos ombros e, seguindo o breve sinal do proprietário, arrastaram-na pelo restaurante até a rua. Jason pagou a conta e correu atrás. Ã porta, contudo, o proprietário o deteve. Estendeu a mão: — São 300 dólares. — Pelo quê? Por arrastá-la para fora do restaurante? — Por não chamar os tiras — respondeu o proprietário. Jason pagou, carrancudo. Os garçons a tinham depositado na beira da calçada, e ali ela se sentou, apertando os olhos com as mãos, balançando-se, fazendo com a boca movimentos sem som. Os garçons a rodeavam, aparentemente procurando ver se ela iria ou não causar mais problemas; tendo tomado, então, sua decisão conjunta, apressaram-se a entrar de volta no restaurante. Deixando-o com Kathy ali na calçada, debaixo do letreiro de neon. Ajoelhando-se ao lado dela, Jason pôs a mão em seu ombro. Desta vez ela não tentou afastar-se. — Desculpe — disse ele. Com sinceridade. — Desculpe ter forçado você. — “Desafiei o seu blefe”, pensou consigo, “e não era blefe. Está bem, você venceu. Desisto. De agora em diante será o que você quiser. Diga lá. Mas ande logo, pelo amor de Deus. Me deixe sair desse negócio o mais rápido que puder.” Mas tinha uma intuição de que não seria nada rápido. 5 Juntos, de mãos dadas, passearam à noite pela calçada inundada por cores contrastantes de luminosos que piscavam, girando e pulsando. Jason não gostava desse tipo de bairro; já o vira um milhão de vezes, duplicado por toda a face da Terra. Foi de algo assim que ele fugira, ainda cedo na vida, usando seus privilégios de tipo seis para cair fora. Agora estava de volta. Não fazia objeções às pessoas: via que estavam presas numa armadilha, os ordinários que sem culpa nenhuma tinham que ficar ali. Não tinham inventado aqui; não gostavam; aguentavam, como ele não tivera que aguentar. Com efeito, sentia-se culpado ao ver suas caras soturnas, nas bocas retorcidas. Bocas amargas, infelizes. — Sim — disse Kathy por fim —, acho que estou ficando apaixonada por você. Mas é culpa sua; é esse campo magnético tão poderoso que você irradia. Sabe que consigo enxergar a sua aura? — Puxa — exclamou ele, mecanicamente. — É cor de púrpura aveludada — disse Kathy, apertando-lhe a mão com seus dedos com força surpreendente. — Muito intensa. Você consegue ver a minha? Minha aura magnética? — Não. — Fico surpresa. Achei que você conseguisse. Kathy parecia calma agora; a explosão de gritos deixara atrás de si uma relativa estabilidade. “Uma personalidade quase pseudoepileptoide”, ele conjecturou. Isso vai acumulando dia a dia até...” — Minha aura — ela interrompeu seus pensamentos é de um vermelhobrilhante. Cor da paixão. — Fico contente por você — disse Jason. Ela parou e virou-se para fitar bem o rosto dele. Para decifrar seus sentimentos. Ele esperou que estivesse inexpressivo, como convinha. — Você está zangado porque perdi as estribeiras? — ela perguntou. — Não. — Parece zangado. Acho que está zangado, sim. Bem, acho que só o Jack compreenderia. E o Mickey. — Mickey Quinn — disse ele, pensativo. — Ele não é uma pessoa notável? — disse Kathy. — Muito. — Poderia ter-lhe dito muita coisa a respeito, mas não havia motivo. Ela na realidade não queria saber; acreditava que já sabia. “Em que mais você acredita, menina? ”, pensou ele. “Por exemplo, o que você acha que sabe a meu respeito? Tão pouco quanto o que sabe sobre Mickey Quinn e Arlene Howe e todos os outros que para você não existem na realidade. Pense no que eu poderia lhe dizer se por um momento você fosse capaz de ouvir! Mas você não consegue ouvir. Ficaria assustada com o que poderia ouvir. E de qualquer forma você já sabe tudo. ” — Qual é a sensação — ele perguntou — de ter dormido com tanta gente famosa? Ao ouvir isso ela parou abruptamente. — Você acha que eu dormi com eles porque eram famosos? Acha que sou uma PC, Papa-Celebridades? É essa sua opinião a meu respeito? “Como papel pega-moscas”, ele pensou. Ela o emaranhava em cada palavra que ele dizia. Ele nunca levava a melhor. — Acho que você — disse ele — leva uma vida interessante. Você é uma pessoa interessante. E importante — acrescentou ela. — Sim, importante também. Em certo sentido a pessoa, mais importante que já encontrei. É uma experiência — Está falando sério? — Sim disse ele com veemência. E de certa forma, meio pelo avesso, era verdade. Ninguém, nem mesmo Heather já o tinha amarrado tão completamente. Estava passando por algo que não conseguia suportar e de que também não conseguia safar-se. Parecia-lhe que estava sentado ao volante de seu mosquinha original, feito de encomenda, vendo um semáforo que acendia ao mesmo tempo a luz vermelha a luz verde e a amarela; não havia resposta racional possível. A irracionalidade dela impossibilitava a razão. O terrível poder da ilógica, pensou ele. Dos arquétipos. Funcionando lá das lúgubres profundezas do inconsciente coletivo, que o ligavam a ela e a todas as outras pessoas. Num nó que jamais poderia ser desfeito, enquanto vivessem. Não admira, pensou, que algumas pessoas, muitas pessoas, anseiem pela morte. — Quer assistir a um filme do capitão Kirk? — perguntou Kathy. — Qualquer coisa — respondeu ele, breve. — Há um bom filme no Cinema Doze. Passa-se num planeta no sistema Betelgeuse, muito parecido com o planeta de Tarberg, sabe, no sistema Próxima. Só que no Capitão Kirk ele é habitado por escravos de seres invisíveis que... — Já assisti — disse ele. Na verdade, um ano atrás Jeff Pomeroy, que fazia o papel de capitão Kirk, viera ao seu programa. Tinham até filmado uma pequena cena: as trocas de favores de costume, eu-te-visito-você-me-visita, com o estúdio de Pomeroy. Não tinha gostado naquela época e duvidava que gostaria agora. E detestava Jeff Pomeroy, tanto na tela como fora dela. Para ele isso era tudo. — Não é um bom filme? — perguntou Kathy com confiança. — Para mim — disse ele —, Jeff Pomeroy é o maior bundão do mundo. Ele e os outros da mesma laia. Os imitadores dele. — Ele passou uma temporada em Moningside — disse ela. — Não cheguei a conhecê-lo, mas ele esteve lá. — Acredito — disse ele, meio que acreditando. — Sabe o que ele me disse uma vez? — Conhecendo-o — começou Jason —, eu diria que... — Disse que eu era a pessoa mais mansa que ele já tinha conhecido. Não é interessante? E me viu ter uma crise mística — sabe como é, quando eu caio no chão e grito — e mesmo assim disse aquilo. Acho que ele é uma pessoa muito perceptiva; acho mesmo. Você não acha? — Acho. Vamos voltar para o meu quarto, então? — perguntou Kathy. — E trepar como duas martas? Ele fez um muxoxo de espanto. Será que ela tinha mesmo dito aquilo? Virando-se, tentou distinguir o rosto dela, mas estavam nesse momento numa área negra entre dois luminosos de neon; tudo estava escuro. “Jesus”, pensou, “tenho que escapar disso tenho que achar o caminho de volta para meu próprio mundo! ” — Minha honestidade incomoda você? — ela perguntou. — Não — ele respondeu sombrio. — Para ser uma celebridade a gente tem que ser capaz de aguentar isso. — “Até isso”, pensou. — Todos os tipos de honestidade — disse. — Principalmente o seu tipo. — Qual é o meu tipo? — Kathy perguntou. — Honestidade honesta. Então você me compreende — ela disse. — Sim — ele assentiu. — Compreendo mesmo. — E você não me despreza? Como a uma fulaninha sem valor que deveria estar morta? — Não — disse ele. — Você é uma pessoa muito importante. E muito honesta também. Uma das pessoas mais honestas e direitas que já encontrei. Estou falando sério, juro por Deus. Ela lhe deu uma palmadinha amistosa no braço: — Não fique nervoso com isso. Deixe que a coisa venha naturalmente. — Mas vem naturalmente — ele garantiu. — Vem mesmo. — Que bom — disse Kathy, parecendo feliz. Era evidente que ele dissipara suas preocupações; Kathy agora confiava nele. E disso dependia a vida dele... seria mesmo? Não estaria capitulando ao raciocínio patológico dela? Naquele momento realmente não sabia. — Escute — disse ele, hesitante. — Vou lhe dizer uma coisa e quero que escute bem. Você deveria estar numa prisão para loucos criminosos. De modo estranho e assustador ela não reagiu; não disse nada. Ele continuou: — E quero ficar à máxima distância possível de você. Arrancou sua mão da dela, virou-se e saiu andando na direção oposta. Ignorando-a. Perdendo-se na multidão de ordinários que andavam de lá para cá pelas calçadas ordinárias e iluminadas por neon, naquela desagradável parte da cidade. “Eu a perdi”, pensou ele, “e com isso é provável que tenha perdido também a merda da minha vida. ” E agora? Deteve-se, olhou ao redor. “Estarei carregando comigo um microtransmissor, como ela diz? ”, perguntou-se. “Estarei me traindo a cada passo que dou? ” “ o Fábio Falante”, pensou, me disse para procurar Heather Hart. E como é do conhecimento de todo mundo na tevelândia, Fábio Falante sempre tem razão. ” “Mas será que vou viver o suficiente? ”, perguntou-se, 'Para chegar até Heather Hart? E se conseguir chegar até ela e estiver mesmo sendo seguido, não estarei simplesmente levando minha morte até ela? Como uma peste irracional? E se Al Bliss não me reconheceu e Bill Wolfer não me reconheceu, por que Heather haveria de me reconhecer? Mas Healher é um tipo seis, como eu. A única outra pessoa do tipo seis que conheço. Talvez isso faça diferença. Se é que há alguma diferença. ” Encontrou um telefone público, entrou na cabine, fechou a porta isolando-se do ruído do trânsito e colocou uma moeda de ouro na ranhura. Heather Hart possuía diversos números telefônicos não listados. Alguns eram para negócios, alguns para amigos pessoais, um para os — falando sem cerimônia — seus amantes. Ele, é claro, conhecia aquele número, tendo sido para Heather aquilo que fora e que esperava ainda ser. A teletela se acendeu. Jason distinguiu formas cambiantes que indicavam que ela estava atendendo do carro— fone. — Oi — disse Jason. Forçando a vista para discerni-lo, Heather disse: — Mas quem diabos é você? — Seus olhos verdes faiscavam. O cabelo vermelho brilhava. — Jason. — Não conheço ninguém chamado Jason. Como você conseguiu este número? — Seu tom de voz era preocupado mas também ríspido. — Saia já do meu telefone, cacete! — gritou ela da teletela, e disse: — Quem lhe deu este número? Quero saber o nome do cara! — Você me disse o número há seis meses atrás — disse Jason. — Logo que você o instalou. Era o mais particular de seus telefones particulares; lembra-se? Era assim que você chamava. — Quem lhe contou isso? — Você. Estávamos em Madri. Você estava filmando umas tomadas externas e eu estava passando uma semana de férias a um quilômetro do seu hotel. Você costumava vir me encontrar no seu mosquinha Rolls-Royce todos os dias às três da tarde. Lembra-se? Heather perguntou num tom animado, em staccato: — Você é de alguma revista? — Não — disse Jason —, sou seu bem-amado número um. — Meu o quê? — Amante. — Você é um fã? Você é um fã, um fanzoca de merda. — Eu te mato se você não cair fora do meu telefone. — O som e a imagem morreram; ela havia desligado. Ele colocou mais uma moeda, ligou outra vez. — O fanzoca de novo — disse Heather ao atender. Parecia mais controlada agora. Ou estaria resignada? — Você tem um dente falso — disse Jason. — Quando você está com algum dos seus amantes você o cola no lugar com um cimento dental especial que você compra na Haneys. Mas comigo você às vezes o tira fora e o coloca num copo com loção para dentaduras Dr. Sloom. É o produto que você prefere para limpar a dentadura. Você diz que é porque ele lembra a época em que o Bromo Seltzer era legal e não se vendia no mercado negro, nem era fabricado no porão de alguém usando todos os três bromatos que o Bromo Seltzer parou de usar anos atrás quando... — Mas como — Heather interrompeu — você conseguiu essas informações? — Seu rosto estava rígido, suas palavras, afiadas e diretas. O tom da sua voz... Ele o conhecia bem. Heather o usava com as pessoas que detestava. — Não use comigo este tom de “não estou nem aí” — disse ele com raiva. — Seu dente falso é um molar. Você o chama de Andy. Certo? — Um fanzoca de merda que sabe tudo isso a meu respeito. Meu Deus. Meu pior pesadelo se realizando! Qual é o nome do seu fã-clube, quantos fãs há nele, de onde você é, e como, em nome de Cristo, conseguiu saber detalhes da minha vida particular que não tem direito nenhum d saber? Estou dizendo que isso que você está fazendo é ilegal; é uma invasão da minha privacidade. Vou mandar os tiras atrás de você se me telefonar de novo. — Fez um gesto para desligar o telefone. — Sou um tipo seis — disse Jason. — Você é o quê? Seis o quê? Você tem seis pernas, é isso? Ou seis cabeças, mais provavelmente. — Você também é tipo seis — disse Jason. — E isso que nos manteve unidos este tempo todo. — Vou morrer — disse Heather, agora com o rosto cor de cinza; mesmo com a pouca luz no mosquinha dela ele percebeu a mudança de cor em suas feições. — Quanto vai me custar para você me deixar em paz? Sempre soube que algum fanzoca de merda ia acabar... — Pare de me chamar de fanzoca de merda — disse Jason com raiva; aquilo o deixava absolutamente furioso. Era o máximo do desprezo; uma tijolada abaixo da cintura, como se dizia agora. — O que você quer? — perguntou Heather. — Encontrar você no Altrocci. — Claro, você sabe disso também. O único lugar onde posso ir em paz, sem que uns idiotas venham babar em cima de mim e me pedir para autografar menus que nem sequer são deles. Deu um suspiro terrivelmente infeliz. — Bem, agora acabou. Não vou encontrar você nem no Altrocci nem em lugar nenhum. Caia fora da minha vida senão vou mandar meus tiras particulares arrancar suas bolas fora e... — Você só tem um tira particular — interrompeu Jason. — Tem 62 anos de idade e se chama Fred. Antigamente era atirador de elite da Guarda Regional de Orange County; costumava atirar nos estudantes rebeldes da Universidade da Califórnia. Naquela época ele era bambam, mas hoje não assusta ninguém. — É mesmo? — disse Heather. — Escute, deixe-me dizer mais uma coisa que como você acha que eu poderia saber? Lembra-se de Constance Ellar? — Sim disse Heather. — Aquela nulidade aspirante a estrela que parece uma boneca Barbie, só que com a cabeça pequena e o corpo inchado como se alguém a tivesse inflado com uma cápsula de CO². — Torceu os lábios. — E uma perfeita idiota. — Certo — ele concordou. — Uma perfeita idiota. É a expressão exata. Lembra-se do que fizemos com ela no meu show? Foi a primeira vez que ela aparecia para todo o planeta, porque fazia parte de um acordo conjunto. Você se lembra do que nós fizemos, eu e você? Silêncio. Jason continuou: — Para nos compensar pôr a termos em nosso show, o agente dela concordou em deixá-la fazer um comercial para um patrocinador nosso. Ficamos curiosos para saber qual era o produto, então antes de a Srta Ellar chegar em nós abrimos o saco de papel e descobrimos que era um creme para depilar as pernas. Puxa, Heather, você deve... — Estou ouvindo — disse Heather. — Tiramos o creme depilador e pusemos no lugar um desodorante íntimo feminino e o mesmo texto do comercial, que dizia apenas: “Demonstrar o uso do produto com expressão de contentamento e satisfação”. Depois escapamos dali e esperamos. — Foi mesmo? — A Srta Ellar finalmente apareceu, foi para o camarim, abriu o saco de papel e aí — é esse pedaço que ainda me faz dar risada — chegou para mim com a cara mais séria e disse: “Sr. Taverner, sinto incomodá-lo por causa disso, mas para demonstrar o Spray Desodorante de Higiene Feminino tenho que tirar a saia e a calcinha. Bem ali diante da câmera de tevê”. “E daí? ”, eu disse. “Qual é o problema? ” E a Srta. Ellar disse: “Preciso de uma mesinha para pôr minhas roupas. Não posso largá-las no chão; não ficaria bem. Veja, vou estar aplicando um spray na minha vagina na frente de sessenta milhões de pessoas, e quando se faz uma coisa dessas não se pode largar as roupas jogadas no chão de qualquer jeito. Não é elegante”. Ela ia mesmo fazer isso, se Al Bliss não tivesse... — Que história de mau gosto! — Mas você achou muito engraçado. Aquela perfeita idiota tendo sua primeira chance, e pronta para fazer aquilo. “Demonstrar o uso do produto com expressão de contentamento e...” Heather desligou. “Como posso fazê-la compreender?”, perguntou a si mesmo com violência, rangendo os dentes e quase arrancando fora uma obturação de prata. Ele odiava aquela sensação de morder fora um pedaço de uma obturação. Impotente, estava destruindo seu próprio corpo. ‘‘Ela não percebe que o fato de eu saber tudo sobre ela significa algo importante? Quem poderia saber dessas coisas? Obviamente só alguém que tivesse estado muito próximo a ela fisicamente por algum tempo. ” Não poderia haver outra explicação, e mesmo assim Heather tinha arranjado alguma outra razão tão elaborada que ele não conseguia chegar até ela. E era algo que estava bem na frente dos olhos dela. Seus olhos tipo seis. Mais uma vez introduziu uma moeda e discou. — Oi de novo — disse, quando Heather enfim atendeu ao fone em seu carro. — Também sei isso a seu respeito: você não aguenta deixar o telefone tocar; é por isso que tem dez números particulares, cada um para uma finalidade própria e bem diferente. — Tenho três — disse Heather. — Quer dizer que você não sabe de tudo. — Só quis dizer... — começou Jason. — Quanto? — Já estou cheio disso por hoje — disse ele com sinceridade. — Você não pode me comprar porque não é isso que eu quero. O que eu quero... me ouça, Heather! Quero descobrir por que ninguém me conhece. Você principalmente. E já que você é tipo seis pensei que fosse capaz de explicar. Você não tem nenhuma lembrança de mim? Olhe para mim na teletela. Olhe bem! Ela olhou bem, erguendo o cenho. — Você é jovem, mas não muito. Você é bonito. Sua voz tem autoridade e você não tem nenhuma relutância em me atormentar desse jeito. Você tem exatamente a aparência, a voz e as atitudes de um fanzoca de merda. Está bem assim? Está satisfeito? — Estou numa enrascada — disse ele. Era totalmente irracional dizer aquilo, uma vez que ela não tinha a mínima lembrança dele. Mas ao longo dos anos ele se acostumara a despejar seus problemas sobre ela — e a ouvir os problemas dela — e o hábito não morrera. O hábito ignorava aquilo que ele via como a realidade da situação; continuava funcionando movido por uma força própria. — Que pena — disse Heather. — Ninguém se lembra de mim. E não tenho certidão de nascimento; nunca nasci, nem sequer nasci! Assim, naturalmente, não tenho documentos exceto umas IDs falsas que comprei de uma dedo-duro da polícia por dois mil dólares, mais mil para o meu contato. Estou levando esses documentos comigo, mas pode ser que eles tenham micro— transmissores embutidos. Puxa vida! Mesmo sabendo disso tenho que andar com eles; você sabe porquê. Mesmo você que está lá em cima sabe como nossa sociedade funciona. Até ontem eu tinha trinta milhões de espectadores que gritariam indignados a plenos pulmões se um tira ou um GN tocasse num fio de cabelo meu. E agora estou vendo bem na minha frente um CTF. — O que é CTF? — Campo de trabalhos forçados. — Disse essas palavras num rosnado, tentando pressioná-la e por fim agarrá-la — Aquela garota filha da puta que forjou meus documentos me fez levá-la a um restaurantezinho avacalhado onde o Judas perdeu as botas, e enquanto estávamos ali, só conversando, ela se jogou no chão gritando. Gritos de psicótico: ela é foragida do Morningside, ela mesma confessou. Isso me custou mais trezentos dólares e agora quem sabe? Provavelmente ela atiçou tanto os tiras quanto os GNs para virem atrás de mim. — Forçando um pouco mais na auto piedade, completou: — É provável que eles estejam escutando este telefonema agora mesmo. — Ai, meu Deus! — gritou Heather, e desligou de novo. Suas moedas de ouro haviam-se acabado. Portanto neste momento desistiu. Percebeu que fizera uma bobagem da grossa ao dizer que o telefonema podia estar sendo monitorado. Qualquer pessoa desligaria depois disso. “Eu me estrangulei em minha própria teia de aranha”, percebeu. "Bem no meio. Como um tubo achatado nos dois lados. Como um grande ânus artificial. ” Abriu a porta da cabine telefônica e saiu para a calçada noturna cheia de gente... “Logo aqui”, pensou com azedume, “nesta Favelândia. Logo aqui onde os dedo-duros pululam. Que belo show, como diz aquele clássico anúncio de televisão que estudamos na escola. ” “Seria engraçado se estivesse acontecendo com outra pessoa. Mas está acontecendo comigo. Não, não tem graça nenhuma, nem de um jeito nem do outro. Porque há sofrimento de verdade e morte de verdade aguardando nos bastidores. Prontos para entrarem em cena a qualquer momento. ” “Gostaria de ter gravado esse telefonema, assim como tudo que Kathy me disse e que eu disse a ela. Colorido em três dimensões, em videotape, seria uma boa atração extra para o meu show, perto do fim quando às vezes acaba todo o material. Às vezes uma ova; em geral. Sempre. Para o resto da minha vida. ” Podia ouvir agora sua introdução: “O que pode acontecer com um homem, um homem de bem com ficha limpa na polícia, um homem que de repente um belo dia perde todos os seus documentos e se vê frente a frente com...”. E assim por diante. Isso atrairia a atenção deles, de todos os trinta milhões. Porque é disso que cada um deles tem medo. “Um homem invisível”, diria na sua introdução, “e no entanto um homem que chama demais a atenção. Legalmente é invisível; ilegalmente é visível demais. O que acontece com esse homem, se ele não conseguir substituir...”. Blá blá blá. E por aí afora. Para o diabo com tudo aquilo. Nem tudo que ele dizia ou fazia ou que tinha acontecido com ele entrava no show; o mesmo sucederia com esse episódio. Mais um perdedor entre muitos. “Muitos são os chamados”, pensou, “mas poucos os escolhidos. É isso que significa ser profissional. Ê assim que levo a minha vida, tanto pública como particular. Diminua as perdas e aja no momento certo”, disse para si mesmo, citando uma frase sua dos velhos bons tempos quando seu primeiro show mundial foi transmitido por satélite. “Vou encontrar outro falsificador”, decidiu, “um que não seja dedo-duro, e vou conseguir um novo conjunto de documentos, desta vez sem microtransmissores. E evidentemente preciso de uma arma. ” “Devia ter pensado nisso logo que acordei naquele quarto de hotel”, disse para si mesmo. Uma vez, anos atrás, quando o sindicato da Reynolds tentara comprar um lugar no seu show, aprendera a usar uma arma, e a levara consigo: uma Barber’s Hoop com alcance de três quilômetros sem desvio de trajetória até os trezentos metros finais. O “transe místico” de Kathy, seu ataque de gritos. O áudio mostraria uma voz masculina madura dizendo com os gritos dela ao fundo: “É isso que significa ser psicótico. Ser psicótico é sofrer, sofrer além de...”, e assim por diante. Blá blá blá. Inspirou uma profunda lufada do frio ar noturno, estremeceu, e uniu-se aos passageiros no mar da calçada, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Encontrou-se então em frente a uma fila que ia de dez em dez em frente a uma patrulha de controle da polícia. Um tira vestido de cinza controlava o fim da fila para que ninguém escapasse na direção oposta. — Não dá para você passar, amigo? — disse-lhe o tira quando ele sem querer fez menção de ir embora. — Claro — disse Jason. — Ótimo — disse o tira, bemhumorado. — Porque estamos aqui fazendo controle desde as oito da manhã e ainda não preenchemos nossa cota de trabalho. 6 Dois policiais corpulentos vestidos de cinza, ao compararem o homem na frente de Jason, disseram: — Esses aqui foram forjados uma hora atrás; ainda estão úmidos, está vendo? Vê a tinta escorrer com o calor? Certo! Deram sinal com a cabeça e o homem, agarrado por quatro liras reforçados, desapareceu num furgãomosquinha estacionado, pintado com as lúgubres cores cinza e negra: cores da polícia. — Muito bem — disse um dos tiras para Jason com amabilidade —, vamos ver quando os seus foram impressos. — Há anos tenho estes documentos — disse Jason, e entregou aos tiras sua carteira com os sete documentos de identidade. — Transfira as assinaturas — disse o tira mais graduado ao seu companheiro. — Veja se elas se superpõem. Kathy estava certa. — Não — disse o tira júnior, olhando através de sua câmara oficial. — Não ficam superpostas. Mas parece que esse aqui, o certificado militar, já teve um microponto que depois foi raspado fora. E com muita perícia. Só dá para ver com a lente. — Trouxe a luz e a lente de aumento portátil, iluminando os documentos falsificados de Jason até aparecerem com todos os detalhes. — Está vendo?— Quando você terminou o serviço militar— perguntou o tira mais velho — esse certificado ltinha ponto eletrônico? Você não se lembra? — Ambos os tiras examinavam Jason esperando a resposta. Que diabos ele deveria dizer? — Não sei — respondeu. — Não sei nem que cara tem um mi... — ia dizer “microtransmissor” mas corrigi" e emendou em tempo: — um ponto eletrônico. — É um pontinho, Sr. — informou o tira júnior, — O senhor não está ouvindo? O senhor toma drogas? ()llu— aqui: na sua carteira de registro de drogas não há nenhuma ocorrência no último ano. Um dos tiras reforçados manifestouse: — Isso prova que não são forjados; quem iria forjar um delito num documento de identidade? Só um louco faria isso. — Sim — concordou Jason. — Bem, isso não é da nossa área — disse o tira graduado. Devolveu os documentos a Jason. — Ele terá que levar isso ao seu inspetor de drogas. Vá andando. Com o cassetete foi empurrando Jason, enquanto já pegava os documentos do próximo da fila. — É só isso? — perguntou Jason aos tiras. Não conseguia acreditar. “Não demonstre”, disse para si mesmo. “ Vá andando'. E foi o que fez. Das sombras de um poste de iluminação quebrado Kathy estendeu a mão e o tocou; ele se paralisou ao toque, sentindo-se gelar inteiro, começando pelo coração. — O que você acha de mim agora? — perguntou Kathy. — Do meu trabalho, do que fiz por você? — Funcionou — disse ele, seco. — Não vou denunciar você — disse Kalhy —, apesar de que você me insultou e me abandonou. — Mas você tem que ficar comigo esta noite, como prometeu. Compreende? Ele foi obrigado a admirá-la. Escondendo-se nas proximidade do posto de controle, obtivera uma prova em primeira mão de que os documentos que forjara foram tão bem feitos que conseguiram fazê-lo passar pelos tiras. Com isso de repente a situação entre eles se alterara: era ele quem tinha agora uma dívida para com ela. Não estava mais na situação de vítima ofendida. Ela agora possuía uma parte moral dele. Primeiro o anzol: a ameaça de delatá-lo à polícia. Em seguida a isca: os documentos bem forjados. De fato a garota o tinha nas mãos. Tinha que reconhecer isso, para ela e para si mesmo. — De qualquer modo eu poderia ter feito você passar disse Kathy. Levantou o braço direito e apontou para a manga da blusa. — Tenho aqui uma etiqueta de identificação policial; aparece com a macrolente deles. Assim não posso ser pega por engano. Eu teria dito a eles... — Deixa pra lá — interrompeu ele com aspereza. — Não quero saber. — Afastou-se dela; a garota veio saltitando atrás dele como um passarinho. — Quer voltar ao meu miniapartamento? — perguntou ela. — Aquela porcaria de quartinho? — “Tenho uma casa flutuante em Malibu”, pensou ele, “com oito quartos, seis banheiras giratórias e uma sala em quatro dimensões com teto infinito. E por causa de alguma coisa que não compreendo e que não posso controlar, tenho que passar meu tempo desse jeito. Em lugares decadentes e marginais. Barzinhos vagabundos, ateliês avacalhados e quartinhos ainda mais avacalhados. Será que estou pagando por alguma coisa que fiz? Algo de que nem me lembro? Mas ninguém paga nada. Já aprendi isso muito tempo atrás: não se recebe de volta nem o bem nem o mal que se faz. No fim não há justiça. Será que nem isso aprendi até agora? — Adivinhe qual é a primeira coisa que vou comprar amanhã — disse Kathy. — Moscas mortas. Sabe por quê? — Têm muita proteína. — Sim, mas não é por isso. Não vou comprá-las para mim. Toda semana compro um saco de moscas mortas para Bill, minha tartaruga. — Não vi tartaruga nenhuma. — Está no maxi-apartamento. Você não estava achando que eu iria comprar moscas mortas para mim mesma, estava? — De gustibus non disputandum est — citou ele. — Vejamos... gosto não se discute; certo? — Certo. Quer dizer, se você quer comer moscas mortas, então tudo bem, coma. — É Bill quem come; ele gosta. Ele é dessas tartaruguinhas verdes... Não daquelas tartarugas de terra. Você já viu como eles abocanham a comida, como fazem com uma mosca na água? Mesmo pequenininha, é horrível. Num momento a mosca está lá, e dali a um segundo, nhact — já está dentro da tartaruga. — Kathy riu. — Já está sendo digerida. Isso nos dá uma lição. — Que lição? — Ele já imaginou. — É que quando a gente morde, ou pega tudo ou nada, mas nunca só uma parte. — É isso que acho. — E o que você conseguiu? Tudo ou nada? — Bem... não sei — respondeu ela. — Boa pergunta, bem, não tenho Jack. Mas talvez não o queira mais. Já faz tanto tempo, que merda! Acho que ainda preciso dele. Mas preciso mais de você. — Pensei que você fosse aquela que conseguia amar dois homens igualmente. — Eu disse isso? — Ela refletiu enquanto caminhavam. — O que quis dizer é que esse é o ideal, mas na vida real a gente só consegue se aproximar disso... Compreende? Dá para você acompanhar meu raciocínio? — Estou acompanhando — disse ele — e estou vendo onde isso leva. Leva ao abandono temporário de Jack enquanto eu estiver por aqui, e a uma volta psicológica a ele depois que tiver ido embora. É assim que você faz sempre? — Nunca o abandono — disse Kathy, brusca. Continuaram caminhando em silêncio até chegar ao velho edifício com sua floresta de antenas de tevê em desuso projetando-se de todas as partes do teto. Kathy remexeu na bolsa, encontrou a chave e abriu a porta de seu quarto. As luzes estavam acesas. E sentado no sofá embolorado, bem em frente a eles, um homem de meia-idade, encanecido, com um terno cinza. Um homem corpulento mas imaculado, perfeitamente escanhoado; nenhum corte em seu rosto, nenhuma mancha vermelha, nenhum erro. Estava perfeitamente vestido e penteado, com cada fio de cabelo no lugar. Kathy gaguejou, vacilante: — O Sr. McNulty. Levantando-se, o grandão estendeu a mão a Jason. Automaticamente Jason estendeu a sua para cumprimentá-lo. — Não — disse o homenzarrão. — Não vou apertar a sua mão; quero ver seus documentos, os que ela fez para você. Passe para cá. Sem uma palavra — não havia nada a dizer —, Jason passou-lhe sua carteira. — Não foi você quem fez estes aqui — disse McNulty, após um breve exame. — A menos que você tenha melhorado pra caramba. — Alguns desses documentos estão comigo há anos — disse Jason. — É mesmo? — murmurou McNulty. Devolveu a carteira e os documentos a Jason. — Quem colocou os microtransmissores nele? Foi você? — perguntou a Kathy. Ou foi Eddy? — Eddy — disse Kathy. — O que temos aqui? — disse McNulty examinando Jason de alto a baixo como se estivesse tirando suas medidas para um caixão. — Um homem de seus quarenta anos, bem vestido, com roupas modernas. Sapatos caros... de couro legítimo. Certo, Sr. Taverner? — São de couro de vaca — disse Jason. — Seus documentos dizem que o senhor é músico — disse McNulty. — O senhor toca algum instrumento? — Eu canto. — Cante alguma coisa para nós agora — disse McNulty. — Vá para o inferno — disse Jason, controlando sua respiração de forma que as palavras saíram exatamente como ele pretendia. Nem mais, nem menos. McNulty disse para Kathy: — Ele não parece estar intimidado. Ele sabe quem eu sou? — Sim — respondeu Kathy. — Eu... eu lhe contei. Em parte. — Você lhe contou sobre o Jack — disse McNulty. E para Jason: — Não existe nenhum Jack. Ela acredita que existe, isso é uma ilusão psicótica, o marido dela morreu três anos atrás num acidente de carro; nunca esteve num campo de trabalhos forçados. — Jack ainda está vivo — disse Kathy. — Está vendo? — disse McNulty para Jason. — Ela se adaptou bastante bem ao mundo exterior, exceto por essa ideia fixa. Nunca vai desaparecer; ela a conservará para sempre para manter o equilíbrio de sua vida. — Deu de ombros. — É uma ideia inofensiva, e é o que segura Kathy. Portanto não fizemos nenhuma tentativa de tratá-la com psiquiatria. Kathy havia começado a chorar em silêncio. Grandes lágrimas escorriam lhe pelas faces e caíam como glóbulos em sua blusa, formando manchas escuras aqui e ali. — Vou falar com Eddy daqui a uns dois dias — disse McNulty. — Vou perguntar-lhe por que colocou os microtransmissores em você. Ele tem uma boa intuição; deve ter sido um pressentimento. — Refletiu por um momento. — Lembre-se de que esses documentos na sua carteira são reproduções de documentos verdadeiros que estão arquivados em diversos bancos de dados espalhados pela planeta. Suas reproduções são satisfatórias, mas posso querer checar os originais. Esperemos que estejam tão em ordem quanto essas cópias que você tem. Kathy disse em voz fraca: — Mas este é um procedimento muito raro. Estatisticamente... — Neste caso específico — disse McNulty — creio que vale a pena tentar. — Por quê? — perguntou Kathy. — Porque achamos que você não está nos entregando todo mundo. Meia hora atrás esse Taverner aqui conseguiu passar por um posto de controle. Nós o seguimos usando os microtransmissores. E seus papéis me parecem estar em ordem. Mas Eddy diz que... — Eddy bebe — falou Kathy. — Mas nós podemos contar com ele. — McNully deu um sorriso, um raio de sol profissional no quartinho chinfrim. — E não podemos contar com você cem por cento. Tirando da carteira seu certificado militar, Jason esfregou a pequena foto em quatro dimensões que mostrava seu rosto de perfil. E a foto falou com voz metálica: “Bom— dia, como vai sua tia?”. — Como isso aqui poderia ser falso? — disse Jason. — Este é o tom de voz que eu tinha há dez anos, quando fui um GN involuntário. — Duvido — disse McNulty. Olhou o relógio. — Nós lhe devemos alguma coisa, Srta. Nelson? Ou estamos quites por esta semana? — Quites — disse ela com certo esforço. Numa voz baixa e insegura sussurrou: — Depois que Jack sair, vocês não vão mais poder contar comigo, nem um pouco. — Para você Jack nunca vai sair — disse McNulty, jovial. Piscou para Jason. Jason também piscou para ele. Duas vezes. Compreendia McNulty. O homem se aproveitava das fraquezas alheias; era o tipo de manipulação que Kathy usava e que provavelmente aprendera com ele. E com os companheiros dele, pitorescos e joviais. Compreendia agora como ela se tornara o que era agora. A traição era rotina diária; uma recusa a trair, como acontecera no seu caso, era milagrosa. Só lhe restava cismar naquilo e vagamente agradecer. “Estamos num estado de traição”, percebeu. “Quando eu era famoso estava isento disso. Agora sou como todo mundo; tenho que enfrentar o que eles sempre enfrentaram. E... o que eu mesmo enfrentei nos primeiros tempos, e depois eliminei da minha memória. Porque acreditar me faria sofrer demais... Houve época em que tive escolha, e escolhi não acreditar.” McNulty pôs sua mão carnuda e sardenta no ombro de Jason e disse: — Venha comigo. — Aonde? — perguntou Jason, esquivando-se de McNulty de uma maneira que percebeu ser exatamente igual à maneira como Kathy tinha-se esquivado dele. Isso também ela aprendera com os McNultys deste mundo. — Você não pode fazer nenhuma acusação contra ele! Disse Kathy em voz rouca, cerrando os punhos. McNulty respondeu imperturbável: — Não vamos acusá-lo de nada; apenas quero suas impressões digitais e vocais, marcas dos pés e eletroencefalograma. Certo, Sr. Tavern? Jason começou a dizer: — Lamento ter que corrigir um oficial de polícia — mas interrompeu-se ao ver o olhar de admoestação de Kathy —, um oficial de polícia que está cumprindo seu dever completou —, portanto vou com o senhor. — Talvez Kathy tivesse razão; talvez lhe fosse útil que o tira se enganasse quanto ao seu nome e continuasse a chamá-lo de Tavern. Quem sabe? Só o tempo poderia dizer. — Tavern — repetiu McNulty devagar, levando-o até a porta do quarto. — Parece “taverna”. Lembra cerveja, calor e aconchego, não é? — Olhou para Kathy e disse em tom áspero: — Não é? O Sr. Tavern é um homem caloroso — disse Kathy, com os dentes cerrados. A porta fechou-se atrás deles e McNulty o guiou pelo corredor e escada abaixo, enquanto sentia o cheiro de cebola e molho quente vindo de todas as direções. Na delegacia do Distrito 469, Jason Taverner viu-se perdido na multidão de homens e mulheres que perambulavam sem objetivo, esperando para entrar, esperando para sair, esperando informações, esperando que alguém lhes dissesse o que fazer. McNulty prendera uma fita colorida na lapela; só Deus e a polícia sabiam o que significava. Era óbvio que significava alguma coisa. U m oficial uniformizado atrás de um balcão que ia de parede a parede lhe fez sinal. — Certo — disse o polícia. — O inspetor McNulty já preencheu parte do seu formulário J-2. Jason Tavern. Endereço: Rua Víne, 2048. Onde McNulty arranjara aquilo? Jason ficou intrigado. Rua Vine. Percebeu então que era o endereço de Kathy. McNulty assumira que estavam morando juntos; com o excesso de trabalho que assolava todos os tiras, ele escrevera o endereço que exigia o mínimo esforço. Uma lei da natureza: qualquer objeto, ou ser vivo, percorre o caminho mais curto entre dois pontos. Jason preencheu o restante do formulário. — Coloque a mão naquela abertura — disse o oficial, indicando a máquina de tirar impressões digitais. Jason obedeceu. O oficial prosseguiu: — Agora tire um sapato, pode ser o direito ou o esquerdo. A meia também. Pode sentar-se aqui. — Fez, deslizar uma parte do balcão, revelando uma entrada e uma cadeira. — Obrigado — disse Jason, sentando-se. Após registrar a marca de seu pé, falou para outra máquina a sentença: “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Com isso a impressão vocal estava registrada. Em seguida sentou-se de novo e deixou que afixassem terminais em vários pontos de sua cabeça; a máquina cuspiu um metro de papel todo cheio de rabiscos, e foi tudo. Esse era o EEG, seu eletroencefalograma. Com isso, terminavam-se os testes. McNulty, parecendo alegre, apareceu no balcão. Na crua luz branca que vinha do teto a sombra de uma barba vespertina aparecia em seu rosto, queixo e lábio superior. — Como vamos com o Sr. Tavern? — perguntou. — Vamos agora fazer uma pesquisa de nomenclatura no arquivo. — Ótimo — disse McNulty. — Vou ficar por aqui e ver o que vai aparecer. O oficial uniformizado enfiou numa abertura o formulário preenchido por Jason, e apertou alguns botões coloridos. Por algum motivo Jason notou que todos os botões eram verdes, com letras maiúsculas. Por uma abertura semelhante a uma boca na extremidade do longo balcão saiu a cópia de um documento, que caiu num cesto metálico. — Jason Tavern — disse o oficial, examinando o documento. — Mora em Kememmer, estado de Wyoming. Idade: 39. Mecânico de motores diesel. Olhou para a foto: — Foto tirada há quinze anos. — Algum registro na polícia? — perguntou McNulty. — Nenhum problema de espécie alguma — disse o oficial. — Não há nenhum outro Jason Tavern no fichário da polícia? — perguntou McNulty. O oficial apertou um botão amarelo e abanou a cabeça. — Certo — disse McNulty. — Então é ele. — Examinou Jason. — Você não tem cara de mecânico de motores a diesel. — Não trabalho mais com isso — disse Jason. — Agora sou vendedor. Vendo equipamento agrícola. Quer ver meu cartão? — Era um blefe: pôs a mão no bolso superior do casaco. McNulty fez que não com a cabeça. Então era isso; como costumavam fazer os burocratas, haviam pesquisado a ficha errada. E na pressa deixaram-na ficar. Jason pensou: “Graças a Deus que há pontos fracos neste vasto e complicado aparato que se estende por todo o planeta. Gente demais, máquinas demais. Esse erro começara com um inspetor de polícia e chegara até o BDP, o Banco de Dados da Polícia em Memphis, Tennessee. Nem com minhas impressões digitais, vocais, cerebrais e marcas dos pés eles provavelmente não conseguirão corrigilo. Agora não conseguirão mais, com meu formulário já arquivado”. — Devo processá-lo? — perguntou o oficial a McNulty. — Pelo quê? — disse McNulty. — Por ser um mecânico diesel? — Com camaradagem deu uma palmadinha nas costas de Jason. — O senhor pode ir para casa, Sr. Tavern. Pode voltar para sua queridinha com cara de criança. Sua virgenzinha. — Com um largo sorriso, sumiu na multidão de homens e mulheres ansiosos e confusos. — Pode ir embora, senhor — disse o oficial a Jason. Jason assentiu e, deixando a delegacia de polícia do Distrito 469, saiu para a rua noturna, misturando-se às pessoas livres e decididas que lá moravam. “Mas eles vão acabar me pegando”, pensou. “Vão comparar todos os registros. Mas mesmo assim, se faz quinze anos que a foto foi tirada, talvez façam quinze anos que tiraram um EEG e uma impressão vocal dele.” Mas ainda sobravam as impressões digitais e as marcas dos pés. Estas não mudavam. “Talvez”, pensou, “joguem a cópia da ficha numa máquina de triturar papéis, e pronto. E vão enviar as informações que conseguiram sobre mim para Memphis, onde será incorporada à minha — ou melhor, à ‘minha’ ficha permanente. Ou seja, à ficha de Jason Tavern.” “Graças a Deus que Jason Tavern, mecânico diesel, nunca infringira as leis, nunca se metera com tiras nem GNs. Sorte dele.” Um helicóptero de polícia veio oscilando logo acima dele com seu holofote vermelho e anunciou pelos altofalantes: “Sr. Jason Tavern, volte imediatamente para a delegacia do Distrito 469. Isto é uma ordem da polícia. Sr. Jason Tavern...”. A voz metálica não cessava. Jason parou, atônito. Já o haviam descoberto. Não em questão de horas, dias ou semanas, mas de minutos. Voltou à delegacia de polícia, subiu as escadas de stiraplex, passou pelas portas eletrônicas, atravessou a multidão de infelizes que andavam de lá para cá e voltou ao oficial uniformizado que tratara de seu caso. E lá estava também McNulty. Os dois confabulavam, de cenho franzido. — Bem — disse McNulty, ao vê-lo —, aqui está o nosso Sr. Tavern outra vez. O que o traz de volta aqui, Sr. Tavern? — O helicóptero da polícia... — começou, mas McNulty o interrompeu. — Aquilo foi feito sem autorização. Apenas irradiamos um aviso e algum idiota elevou a coisa a nível de pesquisa por helicóptero. Mas já que está aqui — McNulty virou um documento para que Jason visse a foto — o senhor era assim há quinze anos? — Creio que sim — disse Jason. A foto mostrava um indivíduo de faces encovadas e um pomo de Adão protuberante, dentes ruins e olhos que fixavam o vazio com severidade. Seu cabelo espetado, cor de palha de milho, caía sobre as orelhas de abano. — O senhor fez cirurgia plástica — disse McNulty. — Sim — respondeu Jason. — Porquê? — Quem iria querer ter essa cara? — disse Jason. — Não admira então que o senhor seja tão bem apessoado, com essa aparência tão digna — disse McNulty. — — Tão imponente. Tão... — procurou a palavra — tão autoritário. É difícil acreditar que disso — colocou o indicador na foto — eles conseguiram fazer isso. — Bateu amigavelmente no braço de Jason. — Mas como conseguiu dinheiro para isso? Enquanto McNulty falava, Jason lia depressa os dados do documento. Jason Tavern nascera em Cícero, estado de Illinois; seu pai fora torneiro-mecânico, seu avô proprietário de uma cadeia de lojas de equipamento agrícola — uma feliz coincidência, considerando o que dissera a McNulty sobre seu trabalho atual. — Foi Windslow quem me deu — disse Jason. — Desculpe; sempre me refiro a ele pelo nome, e me esqueço que os outros não podem fazer o mesmo. Seu treino profissional viera em seu auxílio; havia lido e assimilado quase toda a página enquanto McNulty falava. — Meu avô. Tinha bastante dinheiro, e eu era seu favorito. Eu era o único neto, sabe como é. McNulty examinou o documento e assentiu. — Eu parecia um caipirão — disse Jason. — Parecia bem o que eu era: um caipira lá do interior. O melhor emprego que podia conseguir era consertar motores diesel, e eu queria mais que isso. Então peguei o dinheiro que Windslow me deixou e fui para Chicago... — Certo — disse McNulty. — As informações coincidem. Nós sabemos que é possível fazer cirurgias plásticas assim radicais, e a um custo não tão alto. Mas em geral quem faz isso são as nãopessoas ou os foragidos dos campos de trabalho. Nós monitoramos todas essas lojas de enxerto, como as chamamos. — Mas veja como eu era feio — disse Jason. McNulty deu uma risada profunda e gutural. — Era mesmo, Sr. Tavern. Tudo bem; lamento tê-lo incomodado. Pode ir. — Fez um gesto, e Jason começou a abrir caminho entre as pessoas. — Ah! — McNulty o chamou de volta com um gesto. — Mais uma... — Sua voz, abafada pelo ruído da multidão, não o alcançou. Portanto, com o coração frio como gelo, Jason começou a andar. “Depois que eles prestam atenção em você”, Jason percebeu, “eles nunca abandonaram completamente a sua ficha. Não se pode nunca mais voltar ao anonimato. Por isso é vital acima de tudo não ser notado. Mas eu já fui.” — O que foi? — perguntou a McNulty, em desespero. Estavam brincando com ele, acabando com ele; sentia dentro de si o coração, o sangue, todos os órgãos vitais se abalarem. Até mesmo sua magnífica fisiologia de tipo seis vacilava com tudo aquilo. McNulty estendeu a mão. — Passe seus documentos. Quero mandar fazer alguns exames de laboratório neles. Se estiverem corretos o senhor os terá de volta depois de amanhã. Jason protestou: — Mas se a polícia der uma batida... — Vamos lhe dar um passe policial — disse McNulty. Fez sinal a um oficial mais velho com uma enorme barriga. — Tire uma foto dele em 4-D e faça um passe total. — Sim, inspetor — disse o barrigudo, ligando um equipamento fotográfico com suas gordas patas. Dez minutos depois Jason Taverner viu-se mais uma vez na calçada agora quase deserta, e dessa vez com um passe policial autêntico melhor que qualquer coisa que Kathy pudesse fabricar para ele... Só que válido por uma semana apenas. Mas mesmo assim... Durante uma semana, podia dar-se ao luxo de não se preocupar. Depois disso... Conseguira o impossível: trocar uma carteira cheia de documentos fajutos por um passe genuíno. Examinando o passe à luz da rua, viu que a data de validade era holográfica... e havia lugar para acrescentar mais um número. Lá dizia “7 dias”. Podia pedir a Kathy que alterasse o número para 75, 97, ou o que fosse mais fácil. E então lhe ocorreu que, assim que o laboratório da polícia concluísse que seus documentos eram falsos, o número do seu passe, seu nome, sua foto, seriam transmitidos para todos os postos policiais do planeta. Mas até isso acontecer estava a salvo. PARTE DOIS Apagai-vos, luzes vãs; não mais brilheis! Nem o negror da mais funérea noite basta. Para os que em desespero lamentam sua fortuna perdida. A luz nada mais revela que sua profunda desonra. 7 No anoitecer cinzento, antes que as calçadas regurgitassem com o burburinho da noite, o general de Polícia Felix Buckman aterrissou com seu opulento mosquinha oficial no teto do edifício da Academia de Polícia de Los Angeles. Ficou sentado por algum tempo, lendo os artigos da primeira página do único jornal vespertino da cidade; dobrando então o jornal com cuidado, colocou-o no assento traseiro do mosquinha, abriu a porta e saiu. Abaixo daquele nível, nenhuma atividade. Um turno começava a sair; o próximo ainda não começara a chegar. Gostava daquela hora do dia: naqueles momentos o grandioso edifício parecia pertencer-lhe. “E deixa o mundo à escuridão e a mim”, pensou, recordando uma linha da Elegia de Thomas Gray. Obra favorita sua há muito tempo; na verdade desde a infância. Com sua chave abriu o canal expresso do edifício e desceu rapidamente até seu andar, o décimoquarto. Onde trabalhara a maior parte de sua vida adulta. Mesas sem ninguém, fileiras e fileiras delas. Exceto um oficial sentado no outro extremo do salão, esforçando- se para escrever um relatório. E perto da máquina de café, uma funcionária bebendo numa caneca. — Boa-noite — disse-lhe Buckman. Ele não a conhecia, mas não tinha importância: ela, assim como todos no edifício, o conhecia. — Boa-noite, Sr. Buckman. — A moça aprumou-se, como que ficando em posição de sentido. — Está cansada. — Como disse, senhor? — Vá para casa. — Afastou-se dela e passou pela fileira posterior de mesas, aquelas caixas quadradas de metal cinzento sobre as quais se fazia todo o trabalho daquele departamento da polícia planetária. A maioria das mesas estava sem nada: os funcionários haviam deixado tudo em ordem antes de ir embora. Mas na mesa 37 havia diversos papéis. O Sr. Alguém tinha trabalhado até mais tarde, concluiu. Inclinou-se para ler a plaquinha com o nome. Inspetor McNulty, é claro. A maravilha da Academia. Sempre ocupado inventando tramas e traições... Buckman sorriu, sentou-se na cadeira giratória e pegou os papéis. TAVERNER, JASON. CÓDIGO AZUL. Uma cópia xerox de um registro dos arquivos policiais. Tirada do vazio pelo inspetor McNulty, ansioso demais. E gordo demais. Uma pequena anotação a lápis: “Taverner não existe”. Estranho, pensou. E começou a folhear os papéis. — Boa-noite, Sr. Buckman. — Era seu assistente, Herbert Maime, jovem e inteligente, elegantemente vestido à paisana; apreciava aquele privilégio, assim como Buckman. Parece que McNulty anda trabalhando na ficha de alguém que não existe — disse Buckman. — Em qual distrito ele não existe? — disse Maime, e ambos riram. Não gostavam muito de McNulty, mas a cinzenta polícia precisava de tipos como ele. Tudo estaria muito bem enquanto os McNultys da Academia não subissem a posições de comando. Felizmente isso raramente acontecia. Pelo menos no que dependia de Buckman. Deu o nome de Jason Taverner. Foi dada busca erradamente na ficha de Jason Tavern, residente em Kememmer, Wyoming, mecânico de motores diesel. Alegou ser Tavern após cirurgia plástica. Os documentos o identificam como Taverner, Jason, mas não há registro de tal pessoa. Interessante, pensou Buckman ao ler as notações de McNulty. Absolutamente nenhum registro do homem. Terminou de ler as anotações: Bem vestido, sua aparência sugere dinheiro; talvez tenha influência para conseguir que sua ficha fosse retirada dos bancos de dados. Examinei sua relação com Katharine Nelson, contato da polícia na área. Será que ela sabe quem ele é? Tentou não delatá-lo, mas o contato 1659BD inseriu nele um microtransmissor. O suspeito está neste momento num táxi. Setor N8823B, indo para o leste em direção a Las Vegas. Deve chegar em 11/4 às 10h, hora da Academia. Próximo relatório às 2h40, hora da Academia. Katharine Nelson. Buckman a encontrara uma vez, num curso de orientação para contatos policiais. Era a garota que só entregava os indivíduos de quem não gostava. De uma maneira estranha, elíptica, ele a admirava, e se ele próprio não tivesse interferido, ela teria sido enviada em 8/4/82 para um campo de trabalhos forçados na Colúmbia Britânica. Buckman disse para Herb Maime: — Chame McNulty para mim no telefone. Acho melhor falar com ele sobre isso. Passado um momento Maime lhe passou o aparelho. A pequena tela cinzenta mostrava o rosto de McNulty, que parecia amarfanhado. Assim como sua sala de estar. Ambos pequenos e desarranjados. — Sim, Sr. Buckman — disse McNulty, concentrando sua atenção nele e ficando em rígida posição de sentido, mesmo cansado como estava. Apesar da fadiga e do excesso de alguma coisa, McNulty sabia exatamente como comportar-se com seus superiores. — Me dê um resumo da história desse Jason Taverner disse Buckman. — Não estou conseguindo coordenar direito suas anotações. — O suspeito alugou um quarto de hotel na rua Eye, 453. Conheceu o contato policial 1659BD, conhecido como Eddy, e pediu para que o levasse a um falsificador de documentos. Eddy colocou microtrans no suspeito e o levou ao contato 1980CC, Kathy. — Katharine Nelson — disse Buckman. — Sim, senhor. Ela fez um serviço extraordinário nos documentos; já os mandei para testes preliminares de laboratório e eles quase passaram. Ela deve ter desejado que ele escapasse. — Você contatou Katharine Nelson? — Encontrei ambos no quarto dela. Nenhum dos dois cooperou comigo. Examinei os documentos do suspeito, mas... — Pareciam autênticos — interrompeu Buckman. — Sim, senhor. — Você ainda acha que pode fazer isso a olho nu. — Sim, Sr. Buckman. Mas com esses documentos ele passou por uma patrulha de controle; eram quase perfeitos. — Que sorte a dele. McNulty continuou: — Tomei seus documentos e lhe dei um passe válido para sete dias, passível de anulação. — Levei-o então para a delegacia do distrito 469, onde tenho meu escritório auxiliar, e pedi sua ficha... que, como vimos depois, era a ficha de Jason Tavern. O suspeito contou uma longa história sobre cirurgia plástica; como parecia plausível, nós o soltamos. Não, um momento: só lhe dei o passe quando ele... — Bem — interrompeu Buckman —, qual é a dele? Quem é ele? — Nós o estamos seguindo por meio dos microtransmissores. Estamos tentando encontrar material a respeito dele nos bancos de dados. Mas como o senhor leu nas minhas anotações, creio que o suspeito conseguiu retirar sua ficha de todos os principais bancos de dados. Simplesmente não há ficha, e tem que haver, pois temos fichas de todas as pessoas, como qualquer criança sabe; é o que dita a lei, e temos que fazer isso. — Mas nós não fazemos — disse Buckman. — Eu sei, Sr. Buckman. Mas quando uma ficha não está no arquivo, tem que haver uma razão. Não é por acaso que não está; alguém a surrupiou de lá. — Surrupiou — repetiu Buckman, divertido. — Roubou, subtraiu. — McNulty parecia desconcertado. — Acabo de tomar conhecimento desse assunto, Sr. Buckman; vou saber mais dentro de vinte e quatro horas. Mas que diabo, podemos apanhá-lo quando quisermos. Não creio que seja tão importante. Ele é apenas algum sujeito cheio da grana e com influência suficiente para tirar sua ficha do... — Está bem — disse Buckman. — Vá dormir. — Desligou o telefone, ficou ali parado um momento, e seguiu então na direção de seu escritório particular. Refletindo. No seu escritório principal, deitada no sofá estava sua irmã Alys. Vestida, como viu Felix Buckman com agudo desprazer, com uma calça preta colante, um casaco de couro masculino, brincos de aro e uma corrente na cintura com uma fivela de ferro trabalhado. Era óbvio que havia tomado drogas. E como tantas vezes já fizera, tinha-se apossado de uma chave dele. — Raios a partam — disse para ela, fechando a porta antes que Herb Maime a visse. Alys mexeu-se em seu sono. Seu rosto felino enrugou— se numa careta irritada, e com a mão direita tateou procurando o interruptor para apagar a luz fluorescente que Buckman acendera. Tomando-a pelos ombros e sentindo sem prazer seus músculos rijos, Buckman a forçou a sentar-se. — O que foi desta vez? — perguntou, severo. — Termalina? — Não. — A voz dela, é claro, saía pastosa. — Hidrossulfato de hexofenoprina. Sem mistura. Subcutâneo. Abriu seus grandes olhos claros e o fitou com rebeldia. — Por que raios você sempre vem para cá? — perguntou Buckman. Sempre que ela tomava muita droga ou se envolvia em fetichismo acabava despencando no seu escritório principal. Ele não compreendia porquê, e ela nunca dissera. O máximo que conseguira extrair dela foi qualquer coisa murmurada entre dentes sobre “o olho do tufão”, dando a entender que se sentia a salvo da prisão no escritório central da Academia de Polícia. Por causa, é óbvio, da posição dele. — Fetichista — ele a xingou, furioso. — Nós processamos uma centena de vocês por dia, vocês com seu couro, suas correntes e seus consoladores. Meu Deus! — Ficou ali respirando com força, sentindo-se tremer. Bocejando, Alys deslizou do sofá, levantou-se e esticou seus longos braços esguios. Ainda bem que é noite — disse afetada, com os olhos bem apertados. — Agora posso ir para casa me deitar. — Como você está pensando em sair daqui? — ele perguntou. Mas já sabia. Todas as vezes era o mesmo ritual. O tubo de transporte para prisioneiros políticos “reclusos” entrava em ação; conectava seu escritório na ala norte com o teto do edifício, e deste ao campo de pouso de mosquinhas. Alys ia e vinha por esse caminho, trazendo animadamente a chave dele na mão. — — Algum dia — disse ele com ar sombrio — um oficial vai estar usando o tubo para um fim legítimo, e vai dar de cara com você. — E o que ele poderia fazer? — Ela passou a mão no cabelo embranquecido dele, cortado a escovinha. — Diga— me por gentileza, meu senhor. Me esmurrar até eu pedir perdão de joelhos? Basta olhar para você com essa expressão saciada no rosto... — Eles sabem que sou sua irmã. — Sabem — respondeu Buckman com aspereza —, porque você está toda hora vindo aqui, por esse ou aquele motivo, ou então sem motivo nenhum. Alys sentou-se na beirada de uma mesa enlaçando os joelhos e o encarou com seriedade. — Isso o incomoda mesmo. — Sim, me incomoda muito. — Incomoda a você que eu venha aqui e ponha seu emprego em risco. — Você não pode pôr meu emprego em risco — disse Buckman. — Só há cinco homens acima de mim, sem contar o Diretor nacional, e todos eles sabem de você e não fazer nada. Portanto, pode fazer o que quiser. Dito isto saiu intempestivamente do escritório norte e caminhou pelo corredor sombrio até a grande suíte onde fazia a maior parte de seu trabalho. Tentou evitar olhar para ela. — Mas bem que você teve o cuidado de fechar a porta disse Alys, seguindo despreocupada atrás dele. — Assim aquele Herbert Blame ou Mame ou Maine ou seja lá o que for não pode me ver. — Você — disse Buckman — é repelente para um homem natural. — O Maime é natural? Como você sabe? Já trepou com ele? — Se você não sair daqui — disse ele em voz baixa, olhando-a a duas mesas de distância — vou mandar te fuzilar. Juro por Deus. Ela ergueu com indiferença os ombros musculosos. E sorriu. — Nada te dá medo — disse ele, acusando-a. — Desde sua operação no cérebro. Você sistematicamente, deliberadamente, mandou remover todos os seus centros humanos. Agora você é uma — lutou para encontrar a palavra; Alys sempre o deixava assim incapacitado, tirando-lhe até a habilidade de usar as palavras. — Você disse por fim quase sufocando — é uma máquina com reflexos que passa o tempo todo numa auto enganação sem fim, como um rato de laboratório. Você se liga no nódulo de prazer do seu cérebro e puxa a alavanca cinco mil vezes por hora todos os dias da sua vida, quando não está dormindo. É um mistério para mim por que você se dá ao trabalho de dormir; por que não se engana vinte e quatro horas por dia? Esperou, mas Alys não disse nada. — Algum dia — disse ele — um de nós dois vai morrer. — Ah, é? — disse ela, erguendo uma fina sobrancelha verde. — Um de nós — disse Buckman — vai sobreviver ao outro. E esse então vai se alegrar. O telefone na mesa maior tocou. Mecanicamente Buckman atendeu. Na tela apareceram as feições enrugadas e tensas de McNulty. — Lamento incomodá-lo, general Buckman, mas acabo de receber um telefonema de um dos meus homens. Não há nenhum registro em Omaha de que uma certidão de nascimento alguma vez tenha sido emitida em nome de Jason Taverner. Com paciência, Buckman disse: — Nesse caso trata-se de um nome falso. — Tiramos impressões digitais e vocais, marcas dos pés, EEG. Mandamos tudo para a Central Um, o banco de dados geral em Detroit. Não há equivalência. Essas impressões digitais, vocais, EEG, marcas dos pés, não existem em nenhum banco de dados da Terra. McNulty aprumou-se e sussurrou em tom de desculpas: — Jason Taverner não existe. 8 Jason Taverner não queria, no momento, voltar para junto de Kathy. Tampouco queria tentar Heather Hart mais uma vez. Apalpou o bolso do paletó; ainda tinha seu dinheiro, e com o passe da polícia estava livre para viajar à vontade. O passe policial era um passaporte para o planeta inteiro; até que emitissem um aviso a seu respeito, podia viajar para qualquer lugar, incluindo áreas não desenvolvidas tais como certas ilhas cheias de florestas no Pacífico Sul. Num lugar assim eles poderiam levar meses para contrata-lo, com tudo que o seu dinheiro poderia comprar num local desse tipo. “Tenho três coisas a meu favor”, percebeu ele. “Tenho dinheiro, boa aparência e personalidade. Quatro coisas: tenho também 42 anos de experiência como tipo seis.” “Um apartamento.” “Mas”, pensou, “se eu alugar um apartamento o síndico é obrigado por lei a tirar minhas impressões digitais e mandá-las para a Central de Dados da Polícia... E quando a polícia descobrir que meus documentos são falsos, vão ver que têm uma linha direta comigo. Portanto, não dá.” “O que eu preciso é encontrar alguém que já tenha um apartamento em seu nome, com suas próprias impressões digitais." “Isso significa outra garota.” “Onde posso encontrar uma assim? ”, perguntou-se, mas já tinha a resposta na ponta da língua: num clube noturno de primeira. Do tipo que muitas mulheres frequentam, com um trio tocando jazz, de preferência um trio de negros. Bem vestidos. “Mas será que eu estou bem vestido? ” Deu uma boa examinada em seu terno de seda à luz de um imenso anúncio da AAMCO. Não era seu melhor terno, mas quase. Porém amassado. Bem, na luz de um clube noturno isso não apareceria. Chamou um táxi e logo estava dentro do mosquinha voando para a parte mais aceitável da cidade, onde estava acostumado a circular — isto é, acostumado durante os últimos anos de sua vida, de sua carreira. Depois que atingira o topo. “Um clube onde já me apresentei”, pensou. “Um clube que eu conheça bem. Um lugar onde conheço o mestre, a garota da chapelaria, a florista... A menos que todos eles, tal como eu, estejam um pouco mudados. ” Mas até agora parecia-lhe que nada exceto ele havia mudado. As suas circunstâncias, não as deles. O Salão Raposa Azul no Hotel Hayette em Reno. Apresentara-se lá diversas vezes; conhecia o local e os funcionários de olhos fechados. Disse para o táxi automático: — Reno. O táxi fez uma linda ampla curva à direita; Jason sentiu-se girar com ele e saboreou essa sensação. O táxi pegou mais velocidade; haviam entrado num corredor de ar quase não usado, onde o limite de velocidade chegava talvez a 300 quilômetros por hora. — Gostaria de usar o telefone — disse Jason. A parede esquerda do táxi abriu-se revelando um fone com um fio que se enrolava em voltas barrocas. Sabia de cor o número do Salão Raposa Azul; discou, esperou e logo uma voz masculina atendeu dizendo: “Salão Raposa Azul, apresentando Freddy Hidrocéfalo em dois shows diários, às oito e à meia-noite; apenas trinta dólares e garotas para você se divertir enquanto aprecia o show. — Posso ajudá-lo?” — É o Jumpy Mike velho de guerra? — perguntou Jason. — O velho Jumpy Mike em pessoa? — Sim, ele mesmo. — A formalidade da voz diminuiu — Com quem estou falando, posso saber? Deu uma risadinha afetuosa. Respirando fundo, Jason disse: — Aqui fala Jason Taverner. — Sinto muito, Sr. Taverner. — Jumpy Mike parecia intrigado. — Nesse momento parece que não consigo... — Já faz muito tempo — interrompeu Jason. — Pode me reservar uma mesa na frente? — Todas as mesas já estão reservadas, Sr. Taverner — respondeu Jumpy Mike com sua voz de gordo. — Sinto muito. — Não há mais nenhuma mesa? — perguntou Jason. — Por nenhum preço? — Lamento, Sr. Taverner; nenhuma. — A voz foi sumindo à distância. — Tente de novo daqui a duas semanas. O velho Jumpy Mike desligou. Silêncio. “Cacete”, disse Jason com seus botões. E falou alto: — Meu Deus! Que vá para o inferno. — Seus dentes rangiam, mandando ondas de dor pelo seu nervo trigêmeo. — Novas instruções, chefe? — perguntou o táxi, indiferente. — Vamos para Las Vegas — disse Jason irritado. “Vou tentar o Salão Nellie Melba do Brasão do Duque”, decidiu. Pouco tempo antes tivera boa sorte nesse lugar, numa ocasião em que Heather fazia uma temporada na Suécia. Um bom número de garotas razoavelmente grã-finas rodavam por ali, jogando, bebendo, ouvindo os cantores, curtindo. Valia a pena tentar, já que o Raposa Azul e outros do gênero estavam fechados para ele. Afinal, o que tinha a perder? Meia hora depois o táxi o deixou no teto do Brasão do Duque. Estremecendo de frio no ar noturno, Jason desceu a esteira rolante acarpetada e logo depois entrava na luz-cor— calor-movimento do Nellie Melba. Eram sete e meia. O primeiro show começaria dentro em breve. Olhou o cartaz: Freddy Hidrocéfalo apresentava — se também ali, mas num show mais curto, a preços mais baixos. “Quem sabe ele se lembra de mim”, pensou Jason. “Provavelmente não. ” E, refletindo melhor, pensou: “Sem qualquer chance”. Se Healher Hart não se lembrava dele, ninguém se lembraria. Sentou-se no bar lotado, no único banquinho ainda vazio e, quando o garçom finalmente notou sua presença, pediu uísque com mel. Uma rodela de manteiga veio flutuando na bebida. — São três dólares — disse o garçom. — Ponha na minha... — começou Jason, mas desistiu. Deu uma nota de cinco. E foi então que a viu. Estava sentada vários bancos depois dele. Fora sua amante anos atrás; havia um longuíssimo tempo que não a via. Mas observou que ainda tinha um corpo elegante, mesmo estando bem mais velha. Ruth Rae, entre todos os mortais. Uma boa coisa de Ruth Rae: tinha a inteligência de não bronzear demais a pele. Nada envelhece tanto a pele de uma mulher como a cor morena de sol, e parece que poucas mulheres se dão conta disso. Para uma mulher da idade de Ruth — calculou que ela devia ter agora 38 ou 39 anos — a pele bronzeada se transformaria num couro enrugado. Além disso ela se vestia bem. Mostrava sua bela silhueta. Se o tempo não tivesse tido tantos encontros com seu rosto... Mas de qualquer forma, Ruth ainda tinha um belo cabelo negro, puxado num coque na nuca. Usava cílios de plástico ultraleve, e traços de um vermelho brilhante que atravessavam a face, como se tivesse sido arranhada pelas garras de um tigre psicodélico. Usando um sári colorido, descalça — como de costume, ela havia chutado fora seus sapatos de salto alto — e sem óculos, não lhe pareceu feia. “Ruth Rae”, refletiu. “Faz suas próprias roupas. Usa óculos bifocais mas não quando há alguém por perto... Exceto eu. Será que ela ainda lê a seleção do mês do Clube do Livro? Será que ainda se excita lendo aqueles intermináveis romances chatos sobre perversões sexuais em cidadezinhas estranhas, mas aparentemente normais lá do MeioOeste? ” Esta era uma característica de Ruth Rae: sua obsessão pelo sexo. Ele se lembrava que num determinado ano ela havia dormido com sessenta homens, sem contar Jason: ele entrara e saíra antes, quando a contagem ainda não era tão alta. E Ruth sempre gostara das músicas que ele cantava. Gostava de cantores sexy, baladas românticas e orquestras de cordas adocicadas — enjoativas de tão melosas. Havia certa vez montado em seu apartamento em Nova Iorque um enorme sistema de som quadrifônico e vivia praticamente dentro dele, comendo sanduíches dietéticos e tomando refrigerantes artificiais espumantes feitos de nada. Ouvindo quarenta e oito horas seguidas de discos e mais discos do Purple People Strings, que ele abominava. Uma vez que o gosto dela em geral o horrorizava, ficava aborrecido por ser ele próprio um dos seus favoritos. Era uma anomalia que nunca conseguira compreender. O que mais lembrava sobre ela? Uma colher de sopa de um óleo amarelo todas as manhãs: vitamina E. Era estranho que no caso dela aquilo não parecia ser frescura: sua energia erótica aumentava a cada colherada. Parecia transpirar sensualidade por todos os poros. E lembrava-se também de que ela detestava animais. Isso o fez pensar em Kathy e seu gato Domênico. Ruth e Kathy nunca se dariam bem, pensou. Mas não imporia; nunca irão se encontrar. Descendo de seu banquinho foi andando com seu drinque ao longo do balcão e parou em frente a Ruth Rae. Não esperava que ela o reconhecesse, mas em outros tempos ela o achava irresistível... Por que isso não aconteceria também agora? Ninguém julgava uma oportunidade sexual melhor do que Ruth. — Oi — cumprimentou. Como se estivesse atrás de um nevoeiro — pois não estava de óculos — Ruth Rae ergueu a cabeça e o examinou. — Oi — disse com sua voz rouca de conhaque. — Quem é você? — Nós nos encontramos alguns anos atrás em Nova Iorque — disse Jason. Eu fazia uma ponta num episódio do Bailarino Fantasma... Se bem me recordo, você fazia os figurinos. — Aquele episódio — disse Ruth Rae em sua voz gutural — em que o Bailarino Fantasma era atacado por piratas bichas de outra era. — Soltou uma gargalhada e depois sorriu para ele. — Qual é o seu nome? — perguntou, balançando os seios expostos sustentados por uma armação de arame. — Jason Taverner. — Você se lembra do meu nome? — Claro — ele disse. — Ruth Rae. — Agora é Ruth Gomen — disse ela. — Sente-se. — Olhou ao redor e não viu nenhum lugar vazio. — Naquela mesa ali. — Desceu do banquinho com o máximo cuidado e foi gingando em direção a uma mesa vazia; ele lhe pegou o braço e a foi levando. Após alguns momentos de difícil navegação, conseguiu sentá-la e sentou-se bem junto a ela. Você está exatamente tão linda quanto... — começou ele, mas ela o interrompeu bruscamente. — Estou velha. Estou com 39. — Isso não é velhice — disse Jason. — Estou com 42. — Para um homem não tem importância. Para uma mulher tem. — Com olhos turvos ficou olhando para o martini que tinha na mão. — Sabe o que o Bob faz? Bob Gomen? Cria cachorros. Cachorros grandes, metidos, espalhafatosos, de pelo longo. O pelo deles entra até na geladeira. — Bebericou seu martini, pensativa. De repente seu rosto brilhou com animação; virou-se para ele e disse: — Você está ótimo. Sabe o que acho? Você deveria trabalhar na televisão, ou no cinema. Jason disse com cautela: — Já trabalhei na tevê. Um pouquinho. — Ah, como no Show do Bailarino Fantasma. Bem, vamos encarar os fatos: nem eu nem você conseguimos nada. — Vou beber em homenagem a isso — disse ele, divertindo-se com ironia; tomou um gole de seu uísque com mel. A manteiga já derretera. — Creio que me lembro de você— disse Ruth Rae. — Vi nr não tinha planos de construir uma casa lá no Pacífico, mil milhas da Austrália? Não era você? — Era eu — disse ele, mentindo. — E tinha um aerocarro Rolls Royce. — Sim — disse ele. Esse pedaço era verdade. Ruth Rae disse sorrindo: — Sabe o que estou fazendo aqui? Não tem ideia? — Estou tentando encontrar o Freddy Hidrocéfalo. Estou apaixonada por ele. — Deu aquela risada gutural que ele lembrava dos velhos tempos. — Fico mandando bilhetes a dizendo “Eu te amo”, e ele responde com bilhetes escritos a máquina dizendo: “Não quero me envolver; tenho problemas pessoais”. — Riu outra vez e terminou seu drinque. — Mais um? — perguntou Jason, levantando-se. — Não — Ruth abanou a cabeça. — Não bebo mais. — Houve uma época... — fez uma pausa, a expressão perturbada. — Será que algo assim já aconteceu com você? Pelo jeito, não parece. — Se já me aconteceu o quê? Ruth Rae respondeu, brincando com seu copo vazio: — Eu bebia o tempo todo. Desde as nove da manhã. E sabe o que isso me fez? Me fez parecer mais velha. Aparentava cinquenta anos. Merda de bebida! Tudo aquilo que você tem medo que te aconteça, a bebida fará acontecer. Na minha opinião a bebida é a maior inimiga da vida. Você concorda? — Não tenho certeza — disse Jason. — Acho que a vida tem inimigos piores que a bebida. — Deve ter. Como os campos de trabalhos foiçados. Sabe que eles tentaram me mandar para um campo no ano passado? Foi uma fase terrível para mim; estava sem dinheiro — eu ainda não tinha encontrado o Bob Gomen — e trabalhava para uma companhia de poupança e empréstimos. Um dia chegou um depósito em dinheiro... Três ou quatro notas de cinquenta dólares. — Ruth parou um pouco para refletir. — Bem, o fato é que peguei as notas e coloquei o envelope e o canhoto do depósito na máquina de triturar papéis. Mas eles me pegaram. Foi uma cilada. Planejada. — Puxa!— ele exclamou. — Mas sabe... Eu estava tendo um caso com meu chefe. Os tiras queriam me levar para um campo de trabalhos forçados na Geórgia, onde eu ia acabar sendo estuprada e morta por um bando de caipiras, mas ele me protegeu. Até hoje não sei como ele conseguiu isso, mas eles me soltaram. Devo muito a esse homem, mas agora não o vejo mais. A gente nunca encontra as pessoas que realmente gostam da gente e nos ajudam; estamos sempre envolvidos com estranhos. — Você me considera um estranho? — perguntou Jason. Pensou consigo “Lembro de mais uma coisa sobre você, Ruth Rae”. Ela sempre mantinha um apartamento de um luxo impressionante. Não importava com quem estivesse casada no momento: ela sempre vivia bem. Ruth Rae olhou bem para ele, com ar interrogativo: — Não. Considero você um amigo. — Obrigado. — Estendendo a mão pegou a mão seca de Ruth por um momento, soltando-a no momento exato. 9 O apartamento de Ruth Rae deixou Jason assombrado com seu luxo. Devia custar a ela, pensou, no mínimo 400 dólares por dia. Concluiu que Bob Gomen estava em boa situação financeira. Ou, ao menos, estivera. — Você não precisava comprar aquela garrafa de Vat 69 — disse Ruth tomando o casaco dele e o guardando junto com o dela num armário que se abria automaticamente. — Tenho aqui Cutty Sark, Hiram Walker e... Ela aprendera muito desde a última vez dormira com ele; isso era verdade. Esvaziado, estava deitado nu entre os cobertores da cama de água esfregando uma mancha que havia acabado de despontar no nariz. Ruth Rae, ou melhor, a Sra. Ruth Gomen estava sentada no chão acarpetado, fumando um Pall Mall. Nenhum dos dois falava; o quarto estava silencioso. “Silencioso”, pensou ele, “e esgotado como eu. Não há um princípio da termodinâmica que diz que o calor não pode ser destruído, mas apenas transferido? Mas há também a entropia.” “Estou sentindo agora”, concluiu, “o peso da entropia sobre mim. Eu me descarreguei dentro de um vácuo, e nunca vou recuperar aquilo que dei. É uma coisa que vai e não volta. Sim, estou certo de que esta é uma das leis fundamentais da termodinâmica.” — Você tem aí uma máquina enciclopédica? — perguntou. — Puxa, não tenho — ela mostrou preocupação em seu rosto enrugado como uma ameixa seca. “Ameixa seca não”, ele retirou a imagem; parecia injusta. “Seu rosto vivido”, resolveu. “Era mais isso.” — Em que você está pensando? — ele perguntou. — Não, diga você no que está pensando — disse Ruth. — O que se passa nesse seu grande cérebro supersecreto, tipo consciênciaalfa? — Você se lembra de uma garota chamada Mônica Buff? — perguntou Jason. Se me lembro! Mônica Buff foi minha cunhada durante seis anos. Durante todo esse tempo ela não lavou a cabeça nem uma única vez. Tinha aquele cabelo castanho escuro imundo e emaranhado como pelo de cachorro, que caía em cima da cara pastosa e do pescoço todo sujo. — Não sabia que você não gostava dela. — Jason, ela costumava roubar. Se a gente deixasse a bolsa por perto, ela tirava tudo; não só as notas, as moedas também. Tinha um cérebro de galinha e uma voz de gralha quando falava, o que graças a Deus não era muito frequente. Sabe que essa guria costumava ficar seis, sete dias uma vez ficou oito dias — sem dizer nem uma palavra? Encolhida num canto como uma aranha alquebrada, batendo naquele violão de cinco dólares que ela tinha. Nunca aprendeu nem os acordes elementares. Tá certo, até que ela era bonitinha lá do seu jeito desgrenhado. Reconheço isso. Para quem gosta de casca grossa. — Como ela se sustentava? — perguntou Jason. Ele tivera pouco contato com Mônica Buff, que conhecera através de Ruth. Mas durante aquele breve tempo tivera um caso explosivo com ela. — Roubando das lojas — respondeu Ruth. — Ela tinha uma cesta grande de vime que comprou na Baixa Califórnia... Costumava enfiar um monte de coisas nessa cesta e depois saía da loja na maior cara de pau. — Como ela não era pega? — Ela foi pega. Deram-lhe uma multa e o irmão dela apareceu com a grana, de modo que logo mais ela estava de novo pela rua, andando descalça — verdade! Pela avenida Shrewsbury em Boston, roubando pêssegos das quitandas. Costumava passar dez horas por dia “fazendo com pras”, como ela dizia. — Olhando bem para ele, Ruth continuou: — Sabe o que ela fez e nunca foi pega? — Ruth abaixou a voz. — Costumava dar comida para estudantes foragidos. — E eles nunca a apanharam? — Dar abrigo ou comida para um estudante foragido dava dois anos num CTF. Isso da primeira vez. Na reincidência a pena era de cinco anos. — Não, eles nunca a pegaram. Se ela desconfiava que os tiras vinham dar uma batida na área, logo telefonava para a central de polícia e dizia que tinha um homem tentando entrar na casa. Aí ela punha o estudante para fora e se trancava por dentro; quando os tiras chegavam ele estava lá esmurrando a porta, exatamente como ela havia descrito. Então eles levavam o cara embora e a deixavam em paz. Ruth deu uma risadinha. — Uma vez eu a ouvi dar um desses telefonemas para a polícia. Pelo jeito que ela falava, parecia que o cara... — Mônica foi minha garota durante três semanas disse Jason. — Há uns cinco anos, mais ou menos. — Você alguma vez a viu lavar a cabeça durante esse tempo? — Não — ele reconheceu. — E ela não usava calcinha — disse Ruth. Mas, por que um homem bonito como você haveria de ter um caso com uma vira-lata suja e pirada como Mônica Buff? Você não poderia levá-la a lugar nenhum; ela cheirava mal. Nunca tomava banho. — Hebefrenia — disse Jason. — Sim — concordou Ruth —, foi esse o diagnóstico. Não sei se você sabe disso, mas no fim ela simplesmente foise embora, durante uma de suas expedições “As compras”, e nunca mais voltou; nós não a vimos mais. Nestas alturas deve estar morta. Ainda agarrando a cesta de vime que comprou na Baixa Califórnia. Esse foi o grande momento da vida dela, aquela viagem ao México. Naquela ocasião ela tomou um banho, e eu arrumei o cabelo dela — depois que o lavei umas dez vezes. Mas o que você viu nela? Como você conseguia suportá-la? — Gostava do seu senso de humor — disse Jason. “É injusto”, pensou ele, “comparar Ruth com uma garota de 19 anos. Até mesmo com Mônica Buff. Mas...” a comparação continuava na sua mente. Fazendo com que lhe fosse impossível sentir atração por Ruth Rae. Apesar de ela ser boa — ou pelo menos, experiente — na cama. “Eu a estou usando”, pensou. “Assim como Kathy me usou. Assim como NcNulty usou Kathy.” “McNulty. Será que não estou com um microtransmissor em algum lugar?” Jason agarrou depressa suas roupas e entrou no banheiro. Ali, sentado na borda da banheira, começou a inspecionar cada peça. Levou meia hora. Mas finalmente conseguiu localizar o ponto. Mesmo pequenino. Jogou-o na privada e deu a descarga; voltou então para o quarto, abalado. “Quer dizer que no fim das contas eles sabem onde estou”, percebeu. “Não posso ficar aqui.” “E coloquei em perigo a vida de Ruth Rae a troco de nada.” — Espere — disse ele. — Sim? — perguntou Ruth, de braços cruzados, apoiando-se com ar cansado na parede do banheiro. Os microtransmissores — disse Jason devagar — dão apenas uma localização aproximada. A menos que haja alguma coisa que capte seus sinais com exatidão. Até aí... Não tinha certeza. Afinal, McNulty estava esperando no apartamento de Kathy. Mas será que McNulty fora lá em resposta ao microtrans, ou porque sabia que Kathy morava lá? Zonzo com tanta ansiedade, sexo e uísque, não conseguia lembrar-se; sentou na beira da banheira esfregando a testa, esforçando-se para pensar, para lembrar-se exatamente do que fora dito quando entrou com Kathy no quarto dela e encontrou McNulty esperando por eles. “Foi o Eddy”, pensou. “Eles disseram que foi Eddy quem colocou os micropontos em mim. Quer dizer que foi por aí que me localizaram. Mas...” Mas talvez o ponto lhes tivesse informado apenas a direção geral. E a partir daí eles tivessem deduzido, corretamente, que estaria no apartamento de Kathy. Disse então para Ruth Rae, com a voz falhando: — Puxa vida, espero não ter mandado os porcos dos tiras atrás de você; isso seria demais, demais mesmo. — Balançou a cabeça, tentando clarear as ideias. — Você não tem aí um café bem quente? — Vou ver no fogão. — Descalça, usando apenas um bracelete de madeira, Ruth encaminhou-se com leveza do banheiro para a cozinha. Dali a um momento voltou com uma grande caneca plástica de café, onde se lia PÉ NA TABUA. Ele a aceitou e bebeu o café fumegante. — Não posso ficar mais — disse ele. — E de qualquer forma, você já está muito velha. Ela o encarou de um modo ridículo, como uma boneca pisoteada e retorcida. E correu então para a cozinha. “Por que eu falei isso?”, ele se perguntou. “Foi a pressão; foram os meus temores.” Foi atrás dela. Na porta da cozinha Ruth apareceu com uma travessa de pedra na mão, onde se lia LEMBRANÇA DA FAZENDA KNOTTS BERRY. Correu cegamente e bateu com a travessa na cabeça dele; sua boca se torcia como uma coisa recém- nascida que acabava de tomar vida. No último segundo ele conseguir erguer o cotovelo esquerdo e assim aparar o golpe; a travessa quebrou em três pedaços, e o sangue escorreu pelo braço de Jason. Ele ficou olhando para o sangue, para os pedaços da travessa no carpete e para ela. — Sinto muito — disse ela num sussurro. Mal conseguindo emitir as palavras. As cobras recém-nascidas contorciam-se o tempo todo, pedindo desculpas. — Desculpe — disse Jason. — Vou colocar um band-aid — Ruth dirigiu-se para o banheiro. — Não — disse ele. — Estou indo embora. O corte está limpo; não vai infeccionar. — Por que você me disse aquilo? — perguntou Ruth ium voz rouca. — Por causa do meu próprio medo de envelhecer — disse Jason. — Porque esse medo está acabando comigo, acabando com o que resta de mim. Praticamente não tenho mais energia. Nem para um orgasmo. — Você esteve ótimo. — Mas foi o último — disse ele. Entrou no banheiro e lavou o sangue do braço, deixando a água escorrer no corte até principiar a coagulação. Cinco minutos, cinquenta; ele não saberia dizer. Apenas ficou ali, com o cotovelo debaixo da torneira. Ruth Rae tinha ido sabe Deus para onde. “Provavelmente me dedar para os tiras”, pensou sem forças; estava exausto demais para se incomodar. “Também, que diabos”, pensou. “Depois do que eu disse para ela, não é para menos. ” 10 — Não — disse o general de Polícia Felix Buckman, abanando a cabeça com vigor. — Jason Taverner existe, sim. De algum jeito ele conseguiu retirar seus dados de todos os bancos centrais. — O general refletiu um momento. — Tem certeza de que você consegue apanhá-lo, se for necessário? — Uma má notícia a respeito disso, Sr. Buckman — disse McNulty. — Ele encontrou o microtrans e deu fim nele. Portanto não sabemos se ainda está em Las Vegas. Se ele tiver um mínimo de inteligência, o que é quase garantido, deve ter seguido em frente. — É melhor você voltar para cá — disse Buckman. — Se ele é capaz de roubar informações, material de primeira classe como esse, dos nossos bancos de dados, deve estar envolvido em atividades de alto nível. Você o localizou com que precisão? — Ele está... isto é, foi localizado num dos 85 apartamentos de uma ala de um conjunto residencial de 600 unidades de luxo, modernas, no bairro de Fireflash, em Las Vegas; o conjunto se chama Copperfield II. — Peça para o pessoal em Las Vegas dar uma batida nos 85 apartamentos até encontrá-lo. E quando o encontrar, mande-o diretamente para mim. Mas mesmo assim quero que você esteja em sua mesa de trabalho. Tome uns estimulantes, esqueça a sua soneca, e venha para cá.— Sim, Sr. Buckman — disse McNulty fazendo uma careta de dor. — Você não acredita que vamos encontrá-lo em Las Vegas — disse Buckman. — Não, senhor. — Talvez sim. Como deu fim no microponto, ele pode achar que agora está em segurança. — Peço licença para discordar — disse McNulty. — Como encontrou o ponto, ficou sabendo que o seguimos até lá em Fireflash. Portanto deve ter dado o fora. E depressa. — Ele faria isso — disse Buckman — se as pessoas agissem racionalmente. Mas não é assim que elas agem. Ou será que você ainda não notou isso, McNulty? Em geral elas funcionam de maneira caótica. — “E isso provavelmente lhes presta um bom serviço”, pensou. “Faz com que sejam menos previsíveis. ” — Já notei que... — Esteja aqui no seu posto dentro de meia hora — disse Buckman, e desligou. O jeito presunçoso e pedante de McNulty sempre o irritava, assim como sua hiperatividade diurna e letargia noturna. Alys, que observava tudo, disse: — Um homem que cancelou sua própria existência. Isso já aconteceu alguma vez? — Não. Nem desta vez. Em algum lugar, em algum obscuro local, ele deve ter-se esquecido de um documento Sem importância. E continuaremos a procurar até achá-lo. Mais cedo ou mais tarde nós encontraremos uma impressão vocal ou um EEG que coincidam com os dele, e então saberemos quem ele é na realidade. — Talvez ele seja exatamente quem diz que é. — Allys estivera examinando as anotações estapafúrdias de McNulty. — “O suspeito pertence ao sindicato dos músicos. Diz, que é cantor. Talvez uma impressão vocal seria o seu...” — Saia do meu escritório — disse Buckman. — Estou só fazendo uma especulação. Quem sabe foi ele quem gravou esse novo sucesso pornográfico, “Mais Embaixo Rapaz”, que... — Quer saber de uma coisa? — disse Buckman. — Vá para casa e procure na biblioteca um envelope transparente na gaveta do meio da minha escrivaninha. Você vai encontrar, meio escondido, um exemplar perfeito do selo negro de um dólar da Trans-Mississipi. Consegui esse selo para minha coleção, mas pode ficar com ele; arranjo outro. Mas vá embora daqui. Vá para casa, pegue o raio do selo e o guarde no seu álbum, no seu cofre, para sempre. Nem olhe nunca mais para ele; contente-se em possuí-lo. E me deixe trabalhar em paz. Combinado? — Orra! — disse Alys, com os olhos brilhando. — Onde você o conseguiu? — Com um prisioneiro político a caminho de um campo de trabalhos forçados. Ele deu o selo em troca da liberdade. Achei que era um trato justo. Você não acha? — O selo mais maravilhosamente bem impresso jamais emitido — disse Alys. — Em qualquer época. Por qualquer país. — Você o quer? — Sim. — Foi saindo do escritório para o corredor. — Te vejo amanhã. Mas não precisa me dar uma coisa dessas para me fazer ir embora; quero ir para casa, tomar um banho, trocar de roupa e dormir umas horas. Por outro lado, se você quiser... — Eu quero — disse Buckman, e para si próprio: “Por que tenho tanto medo de você, caramba, um medo tão básico, ontológico, de tudo que se refere a você, até da sua boa vontade em ir embora? ” “Por quê?", ele se perguntou, vendoa encaminhar-se para o tubo secreto de subida para prisioneiros no final da ala. “Eu a conheci em criança e já então eu a temia. Porque, creio eu, de alguma maneira fundamental que não consigo apreender, ela não segue as regras do jogo. Todos nós temos regras; elas diferem, mas todos jogamos de acordo com elas. Por exemplo, não matamos um homem que acabou de nos prestar um favor. Mesmo aqui, neste Estado policial, até mesmo nós obedecemos a esta regra. E não destruímos intencionalmente objetos que nos são preciosos. Mas Alys é capaz de ir para casa, achar o selo negro e queimá-lo com o cigarro. Eu sei disso e mesmo assim lhe dei o selo; continuo rezando para que lá no fundo, ou no fim, ou seja lá quando for, ela volte a jogar bolinha de gude conosco como todo mundo faz” “Mas ela nunca fará isso. ” Continuou refletindo: “Há o motivo pelo qual oferecei o selo é que simplesmente esperava tentála, enganá-la, fazê-la voltar para as regras que nós compreendemos. As regras que todos nós aplicamos. Eu a estou subornando, e é uma perda de tempo, ou algo pior ainda, e sei disso e ela sabe também. Sim. Ela provavelmente vai botar fogo no selo negro de um dólar, o mais perfeito selo jamais impresso, um item filatélico que nunca vi à venda em toda a minha vida. Nem em leilões. E quando eu voltar para casa hoje à noite ela vai me mostrar as cinzas. Talvez ela deixe um cantinho do selo sem queimar, como prova do que fez. ” “E eu vou acreditar. E vou ficar com mais medo ainda. ” Pensativo, o general Buckman abriu a terceira gaveta de sua grande escrivaninha, tirou um rolo de fita gravada e colocou-a no pequeno gravador que sempre mantinha na mesma gaveta. Ãrias de Dowland para quatro vozes... Ficou ouvindo uma delas de que gostava muito, entre todas as canções de Dowland para alaúde. ... Pois agora, esquecido e abandonado Sento-me, suspiro, choro, desmaio, morro Em dor mortal e infinita agonia. O primeiro homem, refletiu Buckman, que escreveu música abstrata. Tirou a fita, colocou outra de alaúde, e ficou ouvindo a “Pavana Lachrimae Antiquae”. “Disto aqui”, ponderou, “acabaram vindo os últimos quartetos de Beethoven. E tudo o mais. Exceto Wagner.” Detestava Wagner. Wagner e seus similares, tais como Berlioz, haviam atrasado a música em três séculos. Até que Kaillieinz Stockhausen com suas “Canções da Juventude” trouxera novamente a música para o presente. Em pé ao lado de sua mesa, olhou por um momento para a foto recente em 4-D de Jason Taverner — a foto tirada por Katharine Nelson. “Que diabo de homem bonito”, pensou. “De uma boa pinta quase profissional. Bem, ele é cantor; está certo. É um artista. ” Tocou a foto em 4-D e ouviu-a dizer: “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Buckman sorriu. E ouvindo mais uma vez a “Pavana Lachrimae Antigae”, pensou: Jorrem, minhas lágrimas... “Será que tenho mesmo carma de tira? ”, perguntou— se. “Com esse amor pela música e pelas palavras? Sim, sou um tira magnífico porque eu não penso como tira. Não penso, por exemplo, como McNulty, que sempre será — como é mesmo que eles chamavam? — um tira porcão pelo resto da vida. Não penso como as pessoas que tentamos prender, mas sim como as pessoas importantes que tentamos prender. Como este homem, este Jason Taverner. Tenho um palpite, uma intuição irracional mas maravilhosamente funcional de que ele ainda está em Las Vegas. Vamos apanhá-lo lá, e não mais longe onde McNulty acha que vamos, com toda sua lógica e raciocínio.” “Sou como Byron, lutando pela liberdade, dando a vida para lutar pela Grécia. Só que não estou lutando pela liberdade; estou lutando por uma sociedade coerente. ” “Será isso realmente verdade? Será por isso que faço aquilo que faço? Para criar ordem, estrutura, harmonia? Regras. Sim; as regras são muito importantes para mim, e é por isso que sinto em Alys uma ameaça; é por isso que consigo encarar tantas outras coisas, mas não ela. ” “Graças a Deus que eles todos não são como ela”, pensou Buckman. “Graças a Deus que na verdade ela é um tipo único, sui generis." Apertou um botão no interfone em sua mesa e disse: — Herb, quer vir aqui, por favor? Herbert Maime entrou no escritório, trazendo nas mãos uma fita de computador; parecia preocupado. — Quer fazer uma aposta, Herb? — disse Buckman. — Quer apostar como Jason Taverner ainda está em Las Vegas? — Por que você está se preocupando com esse titica de galinha? — disse Herb. Isso é do nível do McNulty, não seu. Sentando-se, Buckman começou a brincar preguiçosamente como os coros que apareciam na tela do telefone; chamou as bandeiras de várias nações extintas. — Veja o que este homem fez. De algum jeito conseguiu tirar todos os dados a seu respeito de todos os bancos de dados do planeta, mais os lunares, mais os das colônias em Marte... McNulty chegou a tentar até isso. Pense por um minuto no que é necessário para fazer isso. — Dinheiro? Quantias imensas. Subornos. Astronômicos. Se Taverner está jogando tanta grana é porque a parada é alta. Influência? Mesma conclusão: ele tem muito poder e nós temos que considera-lo uma figura de vulto. Mas o que mais me interessa são aqueles que ele representa; acho que há algum grupo, em algum lugar da Terra, que está por trás dele, mas não tenho ideia de quem nem porquê. Mas tudo bem; digamos que eles eliminem todos os dados a respeito dele; Jason Taverner é o homem que não existe. Mas tendo feito isso, o que conseguiram? Herb ponderou. — Não consigo compreender — disse Buckman. — Não faz sentido. Mas se eles se interessam em fazer isso, é porque deve significar alguma coisa. Do contrário eles não gastariam tanto — fez um largo gesto — do que quer que seja que gastaram. Dinheiro, tempo, influência, sei lá. Talvez as três coisas. Mais grandes esforços. — Estou compreendendo — disse Herb. Às vezes — continuou Buckman — a gente chega no peixe grande fisgando o peixe pequeno. É por isso que nunca se sabe se o próximo peixe que vamos pescar será o elo com algo gigantesco ou apenas — deu de ombros — apenas mais uma arraia miúda para ser jogada na burocracia da polícia. Talvez seja isso que Jason Taverner é. Posso estar inteiramente errado. Mas estou interessado. — E isto — disse Herb — é péssimo para Taverner. — Sim — assentiu Buckman. — Agora considere, — Parou por um momento para soltar um peido silencioso e continuou. Taverner conseguiu chegar até uma falsificadora de documentos, uma falsária comum que trabalha nos fundos de um restaurante abandonado. Ele não tinha contatos; imagine quem o levou lá? O recepcionista do hotel onde estava hospedado. Portanto devia estar desesperado para conseguir documentos. Muito bem; onde estavam, então, seus poderosos mandantes? Por que eles mesmos não lhe deram ótimos documentos forjados, já que conseguiram fazer todo o resto? Santo Cristo, eles o mandaram para a rua, para a sarjeta, na selva da cidade, direitinho para uma informante da polícia. Eles puseram tudo em risco! — Sim — concordou Herb. — Alguma coisa saiu errada. — Certo. Alguma coisa saiu errada. De repente ele se viu ali, no meio da cidade, sem nenhuma ID. Tudo que tinha consigo foi forjado por Kathy Nelson. Como isto foi acontecer? Como eles fizeram para foder com tudo e mandá-lo em desespero procurar IDs forjadas para poder andar três quarteirões na rua? Vê onde quero chegar? — Mas foi assim que nós os apanhamos. — Como? — perguntou Buckman, e abaixou o volume da música para alaúde que tocava no gravador. — Se eles não cometessem erros assim — disse Herb nós não teríamos chance. Eles ficariam sendo uma entidade metafísica para nós, de quem nunca suspeitaríamos e nunca veríamos sequer de relance. É de erros assim que nós vivemos. Não acho que é importante saber por que eles cometeram um erro; o que interessa é que cometeram. E temos que ficar contentes com isso. “Pois estou contente”, pensou Buckman com seus botões. Inclinou-se sobre a mesa e discou para o ramal de McNulty. Ninguém atendeu. McNulty ainda não estava de volta ao edifício. Buckman consultou o relógio. Mais uns quinze minutos. Discou para a central de informações. O que aconteceu com a operação no bairro de Fireflash em Las Vegas? — perguntou a uma das telefonistas que, sentadas em banquinhos altos em frente a um mapa, moviam pequenas reproduções de plástico usando longos tacos. — Estou me referindo à busca do indivíduo que alega chamar-se Jason Taverner. Ouviu um zunido e um clique do computador enquanto a telefonista com destreza apertava vários botões. — Vou passar ao senhor o capitão do destacamento em questão. Na tela do telefone de Buckman apareceu um tipo de uniforme, com uma cara plácida de idiota. — Pois não, general Buckman? — Já pegou Taverner? — Ainda não, senhor. Já revistamos trinta unidades do conjunto em... — Quando pegá-lo — disse Buckman — me avise imediatamente. — Deu o número de seu ramal direto ao porcão típico e desligou, com um vago sentimento de derrota. — Leva tempo — disse Herb. — Como cerveja da boa — murmurou Buckman, olhando para o vazio, sua cabeça trabalhando a mil. Mas trabalhando sem resultado. — Você e suas intuições junguianas — disse Herb. — É isso que você é na tipologia junguiana: uma personalidade pensadora, intuitiva, tendo a intuição como módulo funcional principal, e o pensamento... — Foda-se. — Buckman amassou a folha com as toscas anotações de McNulty e a jogou na máquina trituradora de papéis. — Você não leu Jung? — Claro. Quando fiz meu mestrado em Berkeley todo o departamento de ciência política tinha que ler Jung. Aprendi tudo que você aprendeu e mais um pouco. — Percebeu o tom irritado de sua voz e não gostou. — Eles devem estar dando a busca feito uns lixeiros, fazendo a maior zoeira e gritaria... Taverner vai ouvi-los muito antes de chegarem ao apartamento onde ele está. Você acha que vai apanhar mais alguém quando fisgar Taverner? Alguém mais para cima na... Ele não iria estar com ninguém importante. Sabendo que suas IDs estão na delegacia de polícia. Sabendo que estamos assim tão próximos dele. Não espero nada. Nada além do próprio Taverner. — Faço uma aposta com você — disse Herb. Diga lá. — Aposto cinco moedas de ouro que quando você o pegar, não vai conseguir nada. Sobressaltado, Buckman sentou-se rigidamente na cadeira. Parecia uma de suas próprias intuições: sem fatos, sem informações de base, apenas palpite puro. — Quer fazer a aposta? — perguntou Herb. — Já lhe digo o que vou fazer — disse Buckman. Tirou a carteira e contou seu dinheiro. — Aposto com você mil dólares em dinheiro que quando pegarmos Taverner vamos entrar numa das áreas mais importantes em que já nos envolvemos. — Não vou apostar tanto dinheiro — disse Herb. — Você acha que tenho razão? O telefone tocou e Buckman atendeu. Na tela formaram-se as feições do tira porco de Las Vegas. — Nosso termo-radex mostra uma pessoa do sexo masculino com o peso, a altura e a compleição de Taverner. Está em um dos apartamentos restantes que ainda não investigamos. Estamos nos aproximando com muito cuidado, evacuando todos os apartamentos vizinhos. — Não o matem. — De jeito nenhum, Sr. Buckman. — Mantenha-se em contato comigo — disse Buckman. — Quero assumir este caso de agora em diante. — Sim, senhor. Buckman disse então a Herb Maime: — Agora ele está no papo. — Deu um sorriso deliciado. 11 Quando Jason Taverner foi buscar suas roupas, encontrou Ruth Rae na semiescuridão do quarto, sentada na cama desarranjada e ainda quente, inteiramente vestida e fumando seu costumeiro cigarro. A luz cinzenta da noite filtrava-se pelas janelas. A ponta do cigarro brilhava nervosa, com sua alta temperatura. — Esse negócio ainda vai te matar — ele falou. — Há bons motivos para haver um racionamento de um maço por semana por pessoa. — Foda-se — disse Ruth Rae, e continuou fumando. — Mas você consegue no mercado negro — ele disse. Uma vez fora com ela comprar um pacote inteiro. Mesmo com seu salário, o preço o deixara assombrado. Mas ela não pareceu se incomodar. Era óbvio que já esperava por aquilo; sabia quanto custava seu vício. — Eu consigo. — Apagou o cigarro ainda quase inteiro num cinzeiro de cerâmica com a forma de um pulmão. — Você está desperdiçando. — Você amava Mônica Buff? — perguntou Ruth. — Claro. j — Não compreendo como. — Há diferentes tipos de amor — disse Jason. — É como o coelho de Emily Fusselman. — Olhou para ele e continuou: — Uma mulher que conheci, casada e com três filhos; tinha dois gatinhos e arranjou um grande coelho belga, cinzento, desses que andam saltando naquelas enormes patas traseiras. No primeiro mês o coelho tinha medo de sair da gaiola. Era um macho, ou pelo menos foi o que nós achamos, pelo que dava para ver. Aí depois de um mês ele saía da gaiola e ficava pulando pela sala. Depois de dois meses aprendeu a subir a escada e arranhar a porta do quarto de Emily para acordá-la de manhã. — Começou a brincar com os gatos, e aí começaram os problemas, porque ele não era tão esperto como os gatos. — O cérebro dos coelhos é menor — disse Jason. — Deve ser — disse Ruth. — Seja como for, ele adorava os gatos e tentava fazer tudo o que eles faziam. Até aprendeu a usar a caixa de areia deles. Arrancou tufos de pelo do peito e fez com eles um ninho atrás do sofá; queria que os gatinhos ficassem lá. Mas eles nunca iam. O fim dele, ou quase, chegou no dia em que ele tentou brincar de esconde-esconde com um pastor alemão que era de uma senhora que veio fazer uma visita. Sabe, o coelho tinha aprendido uma brincadeira com os gatos, e com Emily e as crianças: ele se escondia atrás do sofá e aí saía de lá correndo, correndo em círculos muito depressa, e todo inundo tentava pegá-lo, mas em geral não conseguiam, e aí ele voltava a se esconder em segurança atrás do sofá, onde estava entendendo que ninguém devia segui-lo. Mas o cachorro não conhecia as regras do jogo e quando o coelho se escondeu atrás do sofá foi atrás dele e lhe deu uma tremenda dentada no traseiro. Emily conseguiu abrir as mandíbulas do cachorro e salvar o coelho, mas ele ficou muito machucado. Depois se recuperou, mas ficou com pavor de cachorros, e fugia quando via algum, nem que fosse pela janela. E a parte do seu corpo que o cachorro mordeu ele escondia atrás da cortina porque ficou sem pelo naquele lugar, e tinha vergonha. Mas o que era tocante nele era ver como forçava os limites da sua — como se diz? — fisiologia? Suas limitações de coelho, tentando tornar-se uma forma de vida mais evoluída, como os gaios. Queria estar com eles o tempo todo e brincar com eles de igual para igual. É só isso, na verdade. Os gatinhos não queriam ficar no ninho que ele lhes fez, e o cachorro não conhecia as regras e o apanhou. Viveu vários anos. Mas quem iria pensar que um coelho poderia desenvolver uma personalidade tão complexa? E quando alguém estava sentado no sofá e ele queria que a pessoa saísse para ele se deitar, cutucava a gente, e se a pessoa não se afastasse, mordia. Mas veja as aspirações desse coelho, e veja como fracassou. Uma vidinha inteira tentando. Tentando inutilmente, o tempo todo. Mas o coelho não sabia disso. Ou talvez sabia, mas continuava tentando mesmo assim. Mas acho que não compreendia. Apenas queria tanto fazer tudo aquilo. Era toda a vida dele, porque amava os gatos. — Pensei que você não gostasse de animais — disse Jason. — Não gosto mais. Depois de tantas derrotas e fracassos. Como o coelho: no fim, é claro, ele morreu. Emily Fusselman chorou vários dias. Uma semana. Vi como ela ficou com aquilo e não queria me envolver. — Mas você parou de gostar de animais por completo, e assim você... — A vida deles é tão curta. Tão estupidamente curta. Certo, tem gente que quando perde uma criatura querida segue em frente e transfere seu amor para outra. Mas dói: o fato é que dói. — Por que então o amor é tão bom? — Ele havia refletido sobre isso, estando ou não de caso com alguém, toda a sua longa vida adulta. Agora refletia intensamente sobre tudo isso, tudo que lhe acontecera recentemente, até chegar ao coelho de Emily Fusselman. Neste momento de dor. — Você ama alguém e a pessoa vai embora. Chega em casa um dia e começa a fazer as malas, e você diz: “O que aconteceu? ”, e a pessoa responde: “Tive outra oferta melhor”, e lá se vai, sai da sua vida para sempre, e depois disso até o dia da sua morte você carrega consigo esse enorme pedaço de amor sem ter para quem dar. E se por acaso você encontra alguém para quem dar, acontece a mesma coisa outra vez. Ou então você telefona para a pessoa um dia e diz: "Aqui é o Jason”, e a pessoa diz: “Quem? ”, e aí você percebe que é o fim. A pessoa nem sabe quem você é. Quer dizer então, creio eu, que nunca soube; você nunca chegou a ter aquela pessoa. Ruth disse: — O amor não é apenas querer ter outra pessoa do mesmo jeito que você quer possuir um objeto que vê numa loja. Isto é só desejo. Você quer ter aquilo por perto, levá-lo para casa e colocá-lo em algum lugar do apartamento, como um lustre. O amor é — fez uma pausa, refletindo — é como um pai que salva seus filhos de uma casa em chamas; consegue tirá-los de lá e ele mesmo morre. Quando a gente ama para de viver para a gente mesmo; vive-se para a outra pessoa. — E isso é bom? — Para ele não parecia tão bom. — É algo que supera o instinto. O instinto nos leva a lutar pela sobrevivência. Como os tiras dando batidas nos campus. A gente sobrevive às custas dos outros; cada um de nós tenta subir com unhas e dentes. Posso lhe dar um bom exemplo. Meu vigésimo primeiro marido, Frank. Ficamos casados seis meses. Nesse tempo ele parou de me amar e tornou-se horrivelmente infeliz. Mas eu ainda o amava; queria ficar com ele, mas isso estava fazendo mal a ele. Portanto deixei-o ir embora. Percebe? Era melhor para ele, e como eu o amava, era isso que importava. Compreende? — Mas por quê — perguntou Jason — é bom ir contra o instinto da sobrevivência? — Você acha que não sei por quê. — Não. — É porque o instinto de sobrevivência acaba perdendo. Em cada criatura viva, seja uma toupeira um morcego, um homem ou um sapo. Até os sapos que fumam charuto e jogam xadrez. A gente nunca consegue realizar aquilo que o instinto de sobrevivência exige, de modo que no fim das contas toda sua luta termina em fracasso e a gente sucumbe à morte, e esse é o fim. Mas se você ama, pode apagar-se e observar... — Ainda não estou pronto para me apagar — disse Jason. ... pode se apagar e observar, sentindo-se muito feliz, com uma satisfação contida, madura, do tipo alfa, a forma mais alta de contentamento, a continuidade da vida de alguém que você ama. — Mas essa pessoa também acaba morrendo. — Isso é verdade. — Ruth Rae mordeu o lábio. — É melhor não amar, assim isso nunca vai te acontecer. Nem mesmo um animal de estimação, um cachorro ou um gato. Como você disse, a gente ama alguém e a criatura morre. Se a morte de um coelho já é ruim... — Jason teve então um vislumbre de horror: os ossos esmigalhados e o cabelo de uma garota que sangrava, presa nas mandíbulas de um inimigo indistinto, mais assustador que qualquer cão. — Mas pode-se sofrer — disse Ruth, estudando o rosto dele com ansiedade. — Jason! O sofrimento é a mais poderosa emoção que um homem, criança ou animal podem sentir. É um sentimento bom. — Bom de que jeito, porra? — O sofrimento faz você sair de si mesmo, sair fora do limite da sua própria pele. E não se pode sentir o sofrimento a menos que já se tenha amado antes. O sofrimento é o resultado final do amor, porque é o amor perdido. Você compreende, não? Sei que compreende. Mas acontece que você não quer pensar nisso. É o ciclo completo do amor: amar, perder, sofrer, separar-se, e então amar de novo. Jason, sofrer é estar ciente de que você vai ter que acabar sozinho, e não há nada mais além disso porque estar só é o destino final e definitivo de cada criatura viva. É isso a morte, a grande solidão. Lembro-me da primeira vez que experimentei maconha com um narguilé em vez de fumar um baseado. A fumaça veio fria, e não percebi o quanto já tinha tragado. De súbito, morri. Foi só um instante, mas durou vários segundos. O mundo, todas as sensações, inclusive a percepção de meu próprio corpo, e até mesmo a consciência de ter um corpo, tudo sumiu. E não me deixou num isolamento, no sentido comum da palavra, porque quando você está sozinho no sentido comum, ainda recebe informações sensoriais, nem que seja só do seu próprio corpo. Mas até mesmo a escuridão desapareceu. Tudo simplesmente parou. Silêncio. Nada. Solidão. Eles devem ter embebido o fumo numa dessas merdas tóxicas, que costumavam acabar com as pessoas antigamente. — Sim, tenho sorte de que minha cabeça depois voltou ao lugar. Foi uma coisa fora do comum — já tinha queimado fumo muitas vezes antes, mas isso nunca me aconteceu. É por isso que só fumo tabaco agora, depois disso mas não foi igual a um desmaio; não senti que ia cair, porque não tinha com o que cair, não tinha corpo... e não havia nada embaixo onde pudesse cair. Tudo, inclusive eu mesma, simplesmente — Ruth fez um gesto — expirou. Como a última gota de uma garrafa. E dali a pouco eles começaram a passar o filme outra vez. O filme que chamamos de realidade. — Ruth fez uma pausa, dando uma tragada em seu cigarro e disse: — Nunca tinha contado isso a ninguém. — Você ficou assustada? — Ela assentiu. — Foi a consciência da inconsciência, compreende o que quero dizer? Quando morrermos de verdade não vamos sentir isso, porque a morte é isso, a perda de tudo. Daí que, por exemplo, não tenho mais medo nenhum de morrer, depois daquela bad trip com fumo. Mas sofrer é diferente: é morrer e estar vivo ao mesmo tempo. Portanto, a experiência mais absoluta, mais avassaladora que se pode sentir. Às vezes poderia jurar que nós não fomos feitos para passar por isso; é demais. O corpo da gente quase se destrói a si mesmo de tanto chorar e soluçar. — Mas eu quero sofrer. Derramar lágrimas. — Por quê? — Ele não conseguia compreender; para ele era algo a ser evitado. Quando começava a sentir algo assim, saía dessa o mais rápido possível. O sofrimento nos une de novo aquilo que perdemos. É uma fusão; a gente vai junto com a coisa ou a pessoa amada que está indo embora. De certa forma você se separa de você mesmo e acompanha o ser amado numa parte do seu caminho. Você o segue até onde dá para ir. Lembro-me de que uma vez tive um cachorro que amava, eu devia ter 17 ou 18 anos, por aí — chegando na maioridade, lembro-me bem. O cachorro ficou doente e nós o levamos ao veterinário. Lá me disseram que ele havia comido veneno de rato e que suas entranhas viraram um saco de sangue; nas próximas vinte e quatro horas poderiam dizer se iria sobreviver. Fui para casa esperar e lá pelas onze da noite desmaiei na cama. O veterinário ia me telefonar de manhã para me dizer se Hank tinha sobrevivido. Levantei às oito e meia e tentei segurar minha cabeça, esperando o telefonema. Fui ao banheiro escovar os dentes e lá vi Hank, no chão, no canto esquerdo do banheiro; ele estava subindo uma escada invisível, devagar e com muita dignidade. Fiquei vendo ele subir em diagonal, lutando degrau por degrau, até desaparecer finalmente no canto direito do teto, ainda subindo. Não olhou para trás nenhuma vez. Sabia que tinha morrido. Aí o telefone tocou e o veterinário me disse que Hank estava morto. Mas eu o vi subindo. É claro que senti um sofrimento terrível, avassalador, e nisso me perdi de mim mesma e fui atrás dele, subindo aquela porra daquela escada. Ambos ficaram em silêncio por algum tempo. — Mas no fim — disse Ruth, limpando o pigarro — o sofrimento passa e você aos poucos vai voltando para este mundo. Sem o ser amado. — E pode-se aceitar isso. — Que escolha a gente tem? Você chora, continua a chorar, porque a gente nunca volta por completo daquele lugar onde se foi atrás dele; um fragmento do seu coração que bate e pulsa continua lá. Um pedaço do seu coração. Um corte que nunca cicatriza. E quando isso acontece vezes sem conta na sua vida, um pedaço muito grande do seu coração acaba indo embora, e aí não se pode mais sentir o sofrimento. Então é você mesmo que está pronto para morrer. Vai subir aquela escada em diagonal e alguma outra pessoa vai ficar atrás, sofrendo por você. — Não há cortes no meu coração — disse Jason. — Se você for embora agora — disse Ruth com voz roufenha, mas com uma compostura incomum — é assim que vai ser para mim, no mesmo momento. — Fico até amanhã — disse ele. Seria o tempo mínimo que o laboratório da polícia levaria para perceber que suas IDs eram falsas. “Será que Kathy me salvou”, ele se perguntou. “Ou me destruiu? ” Na verdade não sabia. “Kathy, que me usou, que aos 19 anos sabe mais do que nós dois juntos. Mais do que vamos descobrir pelo resto das nossas vidas, até chegar ao cemitério. ” — Como uma boa líder de um grupo de encontro, ela o havia destruído — para quê? Para reconstruí-lo mais forte do que antes? Não acreditava nisso. Mas era uma possibilidade. Não devia ser esquecida. Sentiu em relação a Kathy uma estranha e cínica confiança, que era absoluta mas não convencia; metade do seu cérebro a via como digna de confiança, mais do que as palavras pudessem dizer; a outra metade a via como baixa, vendida, e estragando tudo à sua volta. Não conseguia juntar as duas visões em uma. As duas imagens de Kathy continuavam superpostas na sua cabeça. “Talvez consiga resolver minhas concepções paralelas de Kathy antes de sair daqui”, pensou. Antes da manhã seguinte. Mas talvez pudesse ficar ainda mais um dia.... Contudo, isso seria esticar demais as coisas. “Será que a polícia é mesmo eficiente? ”, pensou. “Eles erraram o meu nome; pegaram a ficha errada. Não será possível que estraguem tudo, a sequência toda da investigação? Talvez. Mas talvez não. ” Ele também tinha conceitos contraditórios sobre a polícia. E também não conseguia resolvê-los. E então, como um coelho, como o coelho de Emily Fusselman, ficou paralisado onde estava. Com a esperança de que todo mundo compreendesse as regras; não se destrói uma criatura que não sabe o que fazer. 12 Os quatro tiras de cinza formavam um grupinho sob a luz da entrada, que vinha de uma luminária de ferro batido em forma de cone, imitando uma luz de vela; a perpétua chama falsa tremeluzia na escuridão da noite. — Só faltam mais dois — disse o cabo em tom quase inaudível; seus dedos falavam por ele, ao percorrer a lista dos apartamentos. — Temos uma Sra. Ruth Gomen no 211 e um Allen Mufi no 212. Em qual deles vamos primeiro? — No tal de Mufi — disse um dos tiras uniformizados; bateu na mão seu cassetete plástico com balas, ansioso para acabar com aquela história agora que o fim estava próximo. — Vamos então para o 212 — disse o cabo. Ao chegar à porta do 212, ergueu a mão para tocar a campainha. Mas então lhe ocorreu girar a maçaneta. — Muito bem. Uma chance em muitas, uma possibilidade pequena, mas de repente útil e real: a porta estava destrancada. Fez sinal de silêncio, deu um breve sorriso e empurrou a porta. Viram uma sala de estar escura, com copos de bebida vazios e meio vazios aqui e ali, alguns no chão. E uma grande variedade de cinzeiros transbordando de tocos de cigarro e maços amarfanhados. Uma festa tabagífera, concluiu o cabo. Já terminada. Todos já foram para casa. Com exceção, talvez do Sr. Mufi. Entrou, iluminou com a lanterna aqui e ali e por fim viu uma porta no extremo oposto da sala que levava aos recessos do apartamento de luxo. Nenhum som. Nenhum movimento. Exceto o balbucio distante e quase imperceptível de um rádio no volume mínimo. Caminhou pelo tapete que se estendia de uma parede a outra, e que mostrava num desenho dourado Richard M. Nixon subindo ao céu em meio a música e júbilo vindos de cima, e choro e lamentações vindos de baixo. Chegando à porta do outro lado, pisou em Deus, que estava sorridente ao receber em seu seio seu Segundo Filho Unigênito. Abriu então a porta. Na grande cama de casal, com seu colchão espesso e macio, dormia um homem, de ombros e braços nus. Suas roupas estavam amontoadas numa cadeira ao seu lado. O Sr. Allen Mufi, é claro. Em casa, em segurança, dormindo em sua própria cama de casal. Mas... o Sr. Mufi não estava sozinho em sua própria cama. Enrolada em lençóis e cobertores em tons pastel, uma segunda forma indistinta dormia enrodilhada. “A Sra. Mufi”, pensou o cabo, e iluminou-a com sua lanterna, movido por uma curiosidade masculina. Imediatamente Allen Mufi — supondo que fosse ele — se mexeu. Abriu os olhos. E instantaneamente sentou-se na cama num pulo, olhando fixamente para os tiras. Olhando direto para a luz da lanterna. — O quê? — disse ele, e prendeu a respiração aterrorizado; ofegou então convulsivamente. — — Não! — disse Mufi, e tentou pegar um objeto na mesinha de cabeceira; mergulhou na escuridão com seu corpo nu, branco e peludo, buscando algo invisível mas precioso. Procurava com desespero. Sentou-se então de novo, arfando, agarrando a coisa. Uma tesoura. — Para que isso? — perguntou o cabo, iluminando a tesoura metálica. — Eu me mato — disse Mufi — se vocês não forem embora e nos deixarem em paz. — Encostou a ponta da tesoura contra seu peito coberto de pelos negros, perto do coração. — Então não é a Sra. Mufi — disse o cabo. — Moveu a lanterna para iluminar a outra forma encolhida nos lençóis. — Ah! Uma transa rapidinha? Transformando seu apartamento de luxo num motel? — Foi até a cama e deu um puxão nos lençóis e cobertores. Deitado ao lado do Sr. Mufi estava um garoto nu, jovem e esguio, de longo cabelo dourado. — Essa não! — disse o cabo. Um dos homens disse: — Já peguei a tesoura. — Jogou-a no chão, junto aos pés do cabo. Ao Sr. Mufi, que sentado na cama tremia e ofegava com os olhos arregalados de terror, o cabo disse: — Quantos anos tem esse menino? O garoto tinha acordado; olhava fixamente sem se mexer. Nenhuma expressão aparecia em seu rosto macio, ainda indefinido. — Treze — disse o Sr. Mufi num grunhido, quase implorando. — A idade legal para o consentimento. O cabo perguntou ao garoto: — Tem provas? — Sentia agora uma intensa repugnância. Uma aguda aversão física, que lhe virava o estômago. A cama estava úmida e manchada de suor e secreções genitais. — A ID — disse Mufi, arquejante — está na carteira. Veja na calça dele, na cadeira. Um dos tiras disse ao cabo: — Quer dizer que se esse moleque tem 13 anos não há delito? — Que diabo — disse outro tira, indignado. — É óbvio que é um crime, crime de perversão. — Vamos autuar os dois! — Espere um minuto, tá legal? — O cabo encontrou a calça do garoto, remexeu, encontrou a carteira e inspecionou os documentos. Estava certo: 13 anos de idade. Fechou a carteira e a colocou de volta no bolso. — Não — disse, ainda saboreando um pouco a situação, divertindo-se com a vergonha nua do Sr. Mufi, mas ficando mais e mais revoltado com o horror covarde que o homem sentia em ser descoberto. — De acordo com a nova revisão do Código Penal, versão 640.3, 12 anos é a idade mínima para um menor ter relações sexuais, seja com outra criança do sexo masculino ou feminino, ou com um adulto, também de um ou de outro sexo, mas apenas com uma pessoa de cada vez. — Mas isto é uma doença, é nojento — protestou um dos tiras. — Essa é a sua opinião— disse Mufi, agora com mais coragem. — Por que diabos não podemos levar os dois presos? Insistiram os policiais. — Eles estão tirando sistematicamente do Código Penal todos os crimes sem vítima — disse o cabo. — Isso vem acontecendo há dez anos. — Isto? Isto aqui é um crime sem vítima? O cabo se dirigiu a Mufi: — O que você vê nos meninos que você tanto gosta? Me explique; sempre quis compreender as bichas como você. — Bicha — repetiu Mufi, torcendo a boca, aflito. — Quer dizer que é isso que eu sou. — É uma categoria — disse o cabo. — Os que atacam menores para fins homossexuais. — Permitido por lei, mas mesmo assim repugnante. O que você faz durante o dia? — Sou vendedor de mosquinhas usados. — E se eles, os seus patrões, souberem que você é bicha, não vão querer que você toque nos mosquinhas. Não com essas mesmas mãos peludas que tocam outras coisas depois de um dia de trabalho. Certo, Sr. Mufi? Nem mesmo um vendedor de mosquinhas usados pode se safar moralmente sendo bicha. Mesmo que isso não esteja mais no Código Penal. — É culpa da minha mãe — disse Mufi. — Meu pai era um homem fraco, e ela o dominava. — Quantos menininhos você induziu a te chupar durante os últimos doze meses? — perguntou o cabo. — Estou falando sério. São todos transas de uma noite só, é? — Eu amo Ben — disse Mufi, olhando fixamente para a frente, mal movendo a boca para falar. — Quando estiver numa situação financeira melhor e puder sustentá-lo, pretendo casar com ele. O cabo perguntou a Ben, o garoto: — Quer que a gente leve você embora daqui? De volta para a casa dos seus pais? — Ele mora aqui — disse Mufi, com um sorriso. — Sim, fico por aqui — disse o menino, taciturno. Estremeceu de frio. — Caramba, será que dá para me devolver o cobertor? — Irritado, alcançou a coberta. — Tratem de não fazer barulho por aqui — disse o cabo, afastando-se com desânimo. — Meu Deus! E tiraram isso do Código Penal! — Provavelmente — disse Mufi com mais confiança, agora que os tiras começavam a sair de seu quarto — porque vários daqueles oficiais velhos, gordos e barrigudos também transam com garotos e não querem ser flagrados. Não suportariam o escândalo. Seu sorriso era agora insinuante e malicioso. — Espero — disse o cabo — que algum dia você cometa um delito de verdade, vá preso, e que eu esteja de plantão nesse dia. Aí vou prendê-lo pessoalmente. — Puxou o cigarro, e cuspiu no Sr. Mufi. Cuspiu naquela cara barbuda e sem expressão. Em silêncio, os tiras foram saindo pela sala cheia de pontas de cigarro, cinzas, maços amarfanhados, copos meio cheios de bebida, até chegar ao corredor externo. O cabo bateu na porta, estremeceu, e parou por um momento, sentindo sua mente vazia e desligada de tudo que o rodeava. Disse então: — Duzentos e onze, Sra. Ruth Gomen. Onde o suspeito Taverner tem que estar, se é que está por aqui, já que é o último apartamento. — “E já não é sem tempo”, pensou. Bateu na porta do 211. E ficou esperando, agarrando o cassetete com balas; de repente teve uma sensação terrível de estar pouco se lixando para o seu serviço. — Já vimos o Mufi falou baixo, meio para si mesmo. — Vamos ver agora que tal a Sra. Gomen. Vocês acham que ela vai ser muito melhor. Esperemos. Não aguento muito mais esta noite. — Qualquer coisa é melhor que aquilo — disse sombrio um dos tiras. Todos concordaram e se agitaram, inquietos, preparando-se para os passos vagarosos que já se ouviam atrás da porta. 13 Na sala de estar do novo, magnífico e luxuoso apartamento de Ruth Rae, no bairro de Fireflash em Las Vegas, Jason Taverner disse: Tenho absoluta certeza de que posso contar com quarenta e oito horas no exterior e mais vinte e quatro no interior. Portanto, tenho uma boa certeza de que não preciso sair daqui imediatamente. — “E se o nosso novo princípio revolucionário está correto”, pensou, “então esta certeza vai modificar a situação, com vantagem para mim. Estarei em segurança.” A TEORIA MUDA... — Fico contente — disse Ruth, languidamente — que você possa ficar aqui comigo de maneira civilizada, e assim podemos conversar um pouquinho mais. Quer beber mais alguma coisa? Uísque com Coca-Cola? A TEORIA MUDA A REALIDADE QUE DESCREVE. — Não — disse ele, e começou a andar pela sala, escutando... O quê, não sabia. Talvez a ausência de ruído. Nenhum televisor ligado, nenhum som de passos no apartamento de cima. Nem mesmo um pornodisco berrando um som quadrifônico. Perguntou de chofre a Ruth: — Essses apartamentos têm paredes grossas? — Nunca escuto nada.— Não está percebendo nada de estranho? Fora do comum? — Não. — Sua burra, estúpida! — exclamou ele com violência. Ela o encarou perplexa com a injúria. — Eu sei — continuou irritado — que eles já me pegaram. Aqui. Agora. Nesta sala. A campainha soou. — Vamos fazer de conta que não ouvimos — disse Ruth depressa, gaguejando de medo. — Só quero sentar e conversar com você, sobre as coisas agradáveis da vida que você já viu, sobre as coisas que você pretende conseguir e não conseguiu ainda... — A voz dela abaixou de tom e silenciou de todo quando ele chegou até a porta. — Deve ser o homem do andar de cima. Ele vem pedir coisas emprestado. Coisas esquisitas, como dois quintos de uma cebola. Jason abriu a porta. Três tiras de uniforme cinza ocupavam toda a porta, apontando para ele armas e cassetetes. — Sr. Taverner? — perguntou o tira mais graduado. — Sim. — O senhor está sendo levado em custódia para sua própria proteção e bem-estar, com vigência imediata; portanto queira nos acompanhar e não se volte nem faça nenhuma tentativa de retirar-se fisicamente do contato conosco. Seus pertences, se tiver algum, serão recolhidos mais tarde e transferidos ao local onde o senhor se encontrar. — Certo — disse ele, sentindo-se muito pequeno. Atrás dele Ruth Rae emitiu um gritinho abafado. — A senhora também, dona —disse o tira graduado, fazendo sinal a ela com o cassetete. — Posso pegar meu casaco? — perguntou ela com timidez. — Venha aqui. — O tira passou por Jason com dois passos seguros, agarrou Ruth Rae pelo braço e a arrastou para fora do apartamento até o corredor. — Faça o que ele está mandando — Jason disse a ela com aspereza. Ruth choramingou: — Eles vão me botar num campo de trabalhos forçados. — Não — disse Jason —, provavelmente vão te matar. — Poxa, como você é bonzinho! — comentou um dos tiras, enquanto com o auxílio de seus companheiros conduzia Jason e Ruth escada abaixo até o térreo. No estacionamento estava um furgão da polícia, com vários tiras em volta, parados sem fazer nada, as armas pendendo frouxas na mão. Pareciam inertes e entediados. — Mostre sua ID — disse o tira graduado, estendendo a mão a Jason. — Tenho um passe policial válido por sete dias — disse Jason. Com as mãos tremendo, tirou o passe da carteira e o entregou ao oficial. Examinando o passe, o oficial perguntou: — O senhor admite de livre e espontânea vontade que é Jason Taverner? — Sim. Dois tiras habilidosos o revistaram em busca de armas. Ele não opôs resistência. Calado, continuava se sentindo muito pequeno. Tinha apenas um vago desejo de ter feito aquilo que sabia que deveria fazer: continuar em frente, sair de Las Vegas. Para qualquer lugar. — Sr. Taverner — disse o oficial —, a Central de Polícia de Los Angeles nos pediu que levássemos o senhor em custódia para sua própria proteção e bem-estar, transportando-o em segurança e com as devidas precauções para a Academia de Polícia no centro de L. A. É o que passaremos a fazer agora. O senhor tem alguma queixa quanto à maneira como está sendo tratado? — Não — disse Jason. — Ainda não. — Entre atrás — disse o oficial, indicando as portas abertas do furgãomosquinha. Jason entrou. Ruth Rae, espremida ao lado dele, choramingava baixinho na escuridão. As portas se fecharam com estrondo e foram trancadas por fora. Ele passou o braço pelos ombros Lola e a beijou na face. — O que foi que você fez? — perguntou Ruth com a voz lamuriosa e rouca de uísque. — Eles vão matar a gente por quê? Um tira passou da cabine do furgão para o compartimento traseiro e disse: — Não vamos apagar a senhora, dona. Vamos levar vocês dois de volta para L. A. Só isso. — Calma. — Não gosto de Los Angeles — Ruth choramingou. — Faz anos que não vou para lá. Odeio Los Angeles. — Olhou em volta com insolência. — Eu também não — disse o tira; trancou a porta que dava para a cabine e passou a chave, por uma abertura, para os tiras do lado de fora. — Mas temos que aprender a viver com ela; ela existe. — Eles devem estar vasculhando meu apartamento — Ruth lamuriou-se. — Remexendo em tudo, quebrando tudo. — De forma alguma — disse Jason, sem expressão. Sua cabeça doía; sentiase nauseado. E cansado. — Para quem vocês estão nos levando? — perguntou ao tira. — Para o inspetor McNulty? — É mais provável que não — disse o tira cordialmente, enquanto o furgãomosquinha levantava voo com muito barulho. — Os que se intoxicam com bebidas fazem de ti o tema de suas canções, e os que se assentam nos portões preocupam-se contigo, e de acordo com eles o general da Polícia Felix Buckman quer interrogá-lo. — Suplicou: — Isso é do Salmo 69. Sento-me ao teu lado como uma Testemunha de Jeová Ressurreto, que está neste mesmo momento criando novos céus e uma nova Terra, e as coisas que se deram antes não serão chamadas A mente, nem subirão ao coração. Isaías 65:13,17. — Um general da Polícia? — disse Jason, aturdido. — É o que eles dizem — disse o jovem tira, amável discípulo de Jesus. — Não sei o que vocês andaram fazendo, mas sem dúvida fizeram direitinho. Ruth Rae soluçou baixo na escuridão. — Toda a carne é como a relva — entoou o menino de Deus. — Deve ser como um mato queimado bem vagabundo. Para nós nasceu um menino, para nós veio um murro. Os maus serão corrigidos e os corretos serão carregados. — Tem um baseado aí? — Jason perguntou a ele. — Não, os meus acabaram. — O tira de Jesus bateu na divisória de metal. — Ei, Ralf, pode ceder um baseado para o nosso irmão aqui? — Pegue. — Pela abertura apareceu um braço numa manga cinza, e na mão um maço amarrotado de baseados Acapulco Gold. — Obrigado — disse Jason, e acendeu um. — Quer um? — ofereceu para Ruth Rae. — Quero Bob — disse ela, choramingando. — Quero meu marido. Inclinado para a frente, Jason fumava e refletia em silêncio. — Não perca a esperança — disse na escuridão o tira de Deus, espremido junto a ele. — Por que não? — disse Jason. — Os campos de trabalhos forçados não são tão ruins assim. No curso de Orientação Básica eles nos levaram para conhecer um; tem chuveiros, camas com colchão, recreação vôlei, artes e trabalhos manuais; sabe como é, fazer velas, essas coisas. À mão. A família pode mandar pacotes, e uma vez por mês os parentes ou amigos podem visitar. — Acrescentou: — E cada um pode frequentar a igreja de sua escolha. Jason disse, sardônico: — A igreja de minha escolha é o mundo, livre e aberto. Depois disso fez-se silêncio, exceto pelo barulho metálico do motor do mosquinha e pelo choro abafado de Ruth Rae. 14 Vinte minutos depois o furgãomosquinha pousava no teto da Academia de Polícia de Los Angeles. Tenso, Jason Taverner saiu do carro, olhou cautelosamente em volta, sentiu o cheiro do ar poluído, saturado de fumaça, viu mais uma vez o céu amarelo da maior cidade da América do Norte... Virou-se para ajudar Ruth Rae a sair, mas o amável tira de Deus já havia feito isto. Em volta deles logo se juntou um grupo de tiras de Los Angeles, interessados. Pareciam descontraídos, curiosos e alegres. Jason não viu maldade em nenhum deles e pensou: “Depois que eles o pegam, são gentis. É só quando o apanham que são venenosos e cruéis. Porque há a possibilidade de você escapar. E agora não existe mais essa possibilidade.” — Ele fez alguma tentativa de suicídio? — perguntou um sargento de Los Angeles ao tira o garoto de Deus. — Não, senhor. Então era por isso que o tira viera com eles. Jason não tinha nem pensado naquilo, e provavelmente Ruth Rae também não... Exceto talvez como um gesto de efeito, teatral, que se imagina mas não se leva a sério. — Certo — disse o sargento de Los Angeles para o destacamento de Las Vegas. — Daqui por diante nós assumimos formalmente a custódia dos dois suspeitos. Os tiras de Las Vegas pularam de volta no furgão, que levantou voo zunindo pelo ar, de volta a Nevada. — Por aqui — disse o sargento, indicando com a cabeça o tubo de descida. Os tiras de L. A. pareceram a Jason um pouco mais grossos, mais duros e também mais velhos do que os de Las Vegas. Ou talvez fosse a sua imaginação; talvez fosse só o seu medo que estava aumentando. “O que se diz a um general da Polícia”, pensou Jason. Especialmente quando todas as suas teorias e explicações sobre você mesmo já se desgastaram, quando você não sabe de mais nada, não acredita em nada, e o resto é obscuro. “Ah, para o inferno com tudo isso”, resolveu, enfastiado, e deixou-se cair virtualmente sem peso nenhum pelo tubo de descida, junto com os tiras e Ruth Rae. No décimo quarto andar saíram do tubo. Um homem os esperava, bem vestido, com óculos sem aro, um casaco dobrado sobre o braço, sapatos de couro tipo Oxford de ponta fina. Jason notou que tinha dois dentes de ouro. Devia ter uns cinquenta e poucos anos. Alto, ereto, cabelos brancos, uma expressão de cordialidade autêntica em seu rosto aristocrático extremamente bem proporcionado. Não parecia um tira. — Você é Jason Taverner? — perguntou o homem. Estendeu a mão; Jason automaticamente a apertou. Para Ruth o general disse: — Pode descer; vou entrevistá-la depois. No momento é com o Sr. Taverner que quero falar. Os tiras levaram Ruth embora; Jason ficou ouvindo até que ela se perdeu de vista. Encontrava-se agora em frente ao general e a mais ninguém. Não havia ninguém armado. — Sou Felix Buckman — disse o general. Indicou uma porta e um corredor atrás de si: — Venha para meu escritório. — Virou-se e conduziu Jason para uma enorme suíte pintada em tons pastel de azul e cinza. Jason piscou os olhos; nunca tinha visto este aspecto de uma central de polícia. Nunca imaginara que pudesse exibir uma qualidade tão alta. Incrédulo, no momento seguinte Jason viu-se sentado numa cadeira estofada e forrada de couro; inclinou-se no encosto macio. Buckman, porém, não se sentou atrás de sua enorme e pesadíssima escrivaninha de carvalho; em vez disso foi até um armário e ocupou-se em guardar seu sobretudo. — Eu pretendia encontrar você lá no teto — explicou. — Mas o vento de Santana sopra feito louco lá em cima a essa hora da noite. Me dá sinusite. — Virou-se então para Jason. — Estou vendo algo em você que não aparece na sua foto em 4-D. Nunca aparece. É sempre uma surpresa completa, ao menos para mim. Você é um tipo seis, não é? Jason de repente ficou totalmente alerta. Ergueu-se um pouco da cadeira e disse: — O senhor também é tipo seis, general? Sorrindo e revelando seus dentes de ouro — um custoso anacronismo — Felix Buckman levantou sete dedos. 15 Em sua carreira de oficial de polícia, Felix Buckman usava esse golpe cada vez que se defrontava com um tipo seis. Confiava nesse recurso especialmente quando, como era o caso agora, o encontro era repentino. Já encontrara quatro deles. E todos acabaram por acreditar nele. Achava esse falo divertido. Os tipo seis, experimentos eugênicos secretos, pareciam extraordinariamente crédulos quando defrontados com a afirmativa de que havia outro projeto tão secreto quanto o seu. Sem esse golpe ele seria, para um seis, nada mais do que um “ordinário”. Não conseguiria lidar apropriadamente com um tipo seis com uma desvantagem desse porte. Daí o truque. Por meio dele sua relação com um seis se invertia. E nas condições assim recriadas, podia lidar bem com um ser humano que de outra forma seria impossível de controlar. A superioridade fisiológica que de fato um seis possuía sobre ele era abolida por um fato irreal. Gostava muito disso. Certa vez num momento de distração dissera a Alys: — Posso raciocinar melhor do que um seis por uns dez ou quinze minutos. Mas se durar mais do que isso... Fizera um gesto, amassando um maço de cigarros comprados nn mercado negro. Com dois cigarros dentro. — Aquele rompo elétrico supercarregado acaba levando a melhor. — O que preciso é de uma barra de ferro para rachar aquela bosta de cabeça altaneira que eles têm. — E, por fim, tinha encontrado a arma. — Por que “tipo sete”? — Alys perguntara. — Já que você está passando a conversa neles, por que não diz tipo oito ou trinta e oito? — O pecado da vangloria. Querer demais. — Não quisera cometer aquele erro lendário. — Digo a eles o que acho que vão acreditar — falou, soturno. E no fim provou estar certo. — Eles não vão acreditar em você — Alys dissera. — Vão sim, porra! É o medo secreto deles, sua bête noire. Eles estão no sexto lugar nos sistemas de reconstituição de DNA, e sabem que se isso foi feito com eles, pode ser feito com outros em grau ainda mais avançado. Alys, sem interesse, dissera baixinho: — Você deveria fazer comerciais de sabão em pó na tevê. — E essa fora sua única reação. Se Alys não ligava para alguma coisa, aquilo para ela cessava de existir. E ela se saía bem com isso há muito tempo, talvez demasiado tempo... “Mas algum dia”, pensava ele muitas vezes, “viria a retribuição: a realidade negada volta a nos perseguir. Para nos tomar de assalto sem aviso prévio e nos enlouquecer. ” “E Alys”, pensara ele inúmeras vezes, “era de algum modo, de alguma estranha forma clínica, uma pessoa patológica. ” Ele sentia isso, sem poder precisar porquê. Contudo muitos dos seus pressentimentos eram assim. Aquilo não o incomodava, por mais que amasse a irmã. Sabia que estava com a razão. Agora frente a frente com Jason Taverner, um tipo seis, desenvolveu seu golpe. — Havia muito poucos de nós — disse Buckman, sentando-se em sua enorme mesa de carvalho. — Só quatro ao todo. Um já morreu, de modo que ficaram três. Não tenho a menor ideia de onde eles estão; temos ainda menos contato entre nós do que vocês do tipo seis. O que já é bem pouco. — Quem foi seu inventor? — perguntou Jason. — Dill-Temko. O mesmo que inventou vocês. Ele controlava os grupos cinco, seis e sete, até se aposentar. Como você deve saber, ele já morreu. — Sim — disse Jason. — Nós todos ficamos muito chocados. — Nós também — disse Buckman, com sua voz mais sombria. — Dill- Temko era nosso pai. Aliás, nosso pai e mãe. Você sabia que quando morreu tinha começado a planejar um oitavo grupo? — Como seria? — Só mesmo Dill-Temko sabia — disse Buckman, e sentiu aumentar sua superioridade frente ao seis que o encarava. Contudo, como era frágil sua vantagem psicológica. Uma afirmação errada, uma frase a mais, e ela desapareceria. Uma vez perdida, nunca a recuperaria. Era o risco que assumia. Mas gostava disso: sempre gostara de apostar no azarão, arriscando no escuro. Em momentos assim tinha um intenso sentimento de sua própria capacidade. E não a considerava imaginária... apesar do que diria um seis que soubesse que ele era um ordinário. Isto não o incomodava em absoluto. Apertando um botão, disse: — Peggy, traga uma jarra de café com creme e tudo o mais. Obrigado. — Recostou-se então na cadeira, com um bem-estar estudado. E examinou Jason Taverner. Qualquer pessoa que já tivesse conhecido um tipo seis reconheceria Taverner. O tórax forte, a conformação das costas e braços maciços. Sua cabeça poderosa como um aríete. Mas a maioria dos ordinários nunca tivera consciência de ter encontrado um seis. Não tinham a experiência que ele tinha. Nem o conhecimento que tinha a respeito deles, cuidadosamente condensado. Dissera certa vez a Alys: — Eles nunca vão tomar o poder e governar o meu mundo. — Você não tem mundo. Você tem um escritório. Nesse ponto ele pusera fim à discussão. — Sr. Taverner — disse Buckman sem rodeios —, como conseguiu tirar documentos, fichas, microfilmes, até dossiês inteiros dos bancos de dados de todo o planeta? Tentei imaginar como se poderia fazer isso, mas o resultado foi nulo. — Fixou sua atenção no rosto bem feito — mas envelhecido — daquele tipo seis e esperou. 16 “O que posso dizer a ele? ”, perguntou-se Jason Taverner, encarando em silêncio o general de Polícia sentado à sua frente. “A verdade pura, tal como eu a conheço? Isso é difícil, porque eu próprio não a compreendo. ” “Mas talvez um sete compreenda — bem, sabe Deus do que eles são capazes. É melhor", decidiu, “dar uma explicação completa. ” Mas quando começou a responder, algo o impediu de falar. Não quero contar nada para ele, percebeu. Teoricamente não há limite para o que ele pode fazer comigo; é um general, uma autoridade, e se é um tipo sete... talvez para ele o céu seja o limite. Mesmo que não seja verdade, para minha própria autopreservação devo partir dessa base. ” — O fato de você ser um seis — disse Buckman depois de um lapso de tempo em silêncio — me faz ver tudo isso sob uma luz diferente. É com outros seis que você está trabalhando? Mantinha os olhos rigidamente fixos no rosto de Jason, que se sentiu incomodado e desconcertado. — Acho que o que temos aqui — disse Buckman — é a primeira prova concreta de que os tipo seis são... — Não — disse Jason. — Não? — Buckman continuava a encará-lo fixamente. Você não está envolvido nisso com outros tipos seis? — Só conheço uma outra pessoa tipo seis — disse Jason. — Heather Hart. E ela me considera um fanzoca de merda. — Cuspiu essas palavras com amargura. Isso interessou a Buckman; não era de seu conhecimento que a conhecida cantora Heather Hart era tipo seis. Mas, pensando bem, parecia razoável. Em sua carreira, entretanto, nunca tinha se deparado com um tipo seis do sexo feminino; seus contatos com eles não eram tão frequentes. — Se a Srta. Hart é tipo seis — disse Buckman — talvez nós devêssemos pedir a ela que venha também aqui conferenciar conosco. — Esse eufemismo policialesco rolou fácil de sua boca. — Faça isso — disse Jason. — Ponha ela no pau-de-arara. — Seu tom de voz era feroz. — Jogue ela na prisão. Num campo de trabalhos forçados... “Vocês do tipo seis”, pensou Buckman, “têm muito pouca lealdade uns com os outros. ” Ele já percebera isso, mas sempre ficava surpreso. Um grupo de elite, nascido de círculos aristocráticos anteriores para estabelecer e manter os padrões de elite no mundo, que na prática fora se extinguindo porque um não suportava o outro. Riu para si mesmo, mostrando no rosto um sorriso. — Está achando engraçado? — disse Jason. Não acredita em mim? — Não importa. — Buckman pegou uma caixa de charutos Cuesta Rey de uma gaveta de sua escrivaninha e com uma faquinha cortou a ponta de um deles. A pequenina faca de aço feita especialmente para esse fim. Do outro lado da mesa Jason Taverner o observava fascinado. — Aceita um charuto? — Buckman estendeu a caixa para Jason. — Nunca fumei um bom charuto — disse Jason. — Se descobrissem que eu... — interrompeu a frase. “Descobrissem”? — perguntou Buckman, ficando mentalmente alerta. — Se quem descobrisse? A polícia? Jason não disse nada. Mas cerrou o punho; sua respiração estava difícil. — Há círculos onde você é bem conhecido? — perguntou Buckman. — Por exemplo, entre os intelectuais nos campos de trabalhos forçados? Sabe, aqueles que distribuem manuscritos mimeografados. —Não — disse Jason. — Círculos musicais, então? — Atualmente não — disse Jason, tenso. — Você já gravou discos? — Não aqui. Buckman continuou a examiná-lo atentamente, sem piscar: através dos anos adquirira esta habilidade. — Onde, então? — perguntou numa voz mal e mal audível. Uma voz bem estudada: o tom calmante interferia com a identificação do significado das palavras. Mas Jason Taverner deixou passar a pergunta: não respondeu. “Esses filhos da mãe desses tipo seis”, pensou Buckman com raiva — raiva sobretudo de si mesmo. "Não posso blefar com um seis. Simplesmente não funciona. A qualquer momento ele pode cancelar da sua mente o que eu disse sobre minha alegada superioridade genética. ” Apertou um botão no interfone. — Mande trazer aqui uma certa Srta. Katharine Nelson — ordenou a Herb Maime. — É uma informante da polícia de Watts, aquele antigo bairro negro. Acho que devo falar com ela. — Meia hora. — Obrigado. Jason Taverner disse com voz rouca: — Por que colocá-la nesta história? — Ela fotjou seus papéis. — Tudo que ela sabe sobre mim é o que mandei pôr nas minhas IDs. — E eram informações falsas? Depois de uma pausa Jason fez que não com a cabeça. — Então você realmente existe. — Não... aqui. — Onde? — Não sei. — Me conte como você conseguiu eliminar esses dados de todos os bancos. — Nunca fiz isso. Ao ouvir isso Buckman sentiu um fortíssimo palpite invadi-lo: parecia agarrá-lo com mãos de ferro. — Você não tirou material dos bancos de dados; você tentou colocar material neles. Não havia informação nenhuma desde o início. Finalmente Jason Taverner assentiu. —Certo — disse Buckman; sentiu agora o brilho da descoberta aparecer dentro de si, manifestando-se numa série de conclusões. — Você não tirou nada. Mas há algum motivo para que as informações não estivessem lá. Por que não estavam? Você sabe? — O que eu sei — disse Jason cabisbaixo, olhando para a mesa com a face retorcida como um galho torto.— é que não existo. — Mas já existiu. — Sim — disse Taverner, assentindo contra sua vontade. Dolorosamente. — Onde? — Não sei! “Sempre acaba nisso”, pensou Buckman. “Não sei. Bem, talvez ele não saiba mesmo. Mas o fato é que ele foi de L. A. para Las Vegas; transou com aquela dona magrela e enrugada que os tiras de Las Vegas trouxeram no furgão junto com ele. Talvez consiga alguma coisa com ela.” Mas nesse ponto sua intuição lhe disse que não. — Você já jantou? — perguntou Buckman. — Sim — disse Jason. — Mas vai me acompanhar num lanche. Vou mandar buscar alguma coisa para nós. — Mais uma vez usou o interfone. — Peggy, já é tão tarde... Traga dois lanches para nós daquele lugar novo. Não aquele onde nós costumávamos ir; o novo, na rua mais abaixo, que tem um luminoso mostrando um cachorro com cabeça de menina. Barfy’s. — Sim, Sr. Buckman — disse Peggy, e desligou. — Por que eles não o chamam de “general”? — perguntou Jason. — Quando alguém me chama de general — disse Buckman — sinto que deveria ter escrito um livro sobre como invadir a França ficando fora das duas frentes de guerra. — Então eles simplesmente o chamam de “senhor”? — Correto. — E eles permitem que faça isso? — Para mim — disse Buckman — não há “eles”. Excetuando cinco marechais da polícia espalhados pelo mundo, e eles também se fazem chamar de “senhor”. — “E como esses cinco gostariam de rebaixar mais ainda”, pensou. “Por causa de tudo o que eu fiz.” — Mas e o Diretor? — O Diretor nunca me viu. Nunca vai me ver. Nem vai vê-lo tampouco, Sr. Taverner. Mas ninguém pode vê-lo, pois como o senhor mesmo já comentou, o senhor não existe. Uma policial uniformizada entrou no escritório trazendo uma bandeja. — É o que o senhor costuma pedir a essa hora da noite disse ela, colocando a bandeja na mesa de Buckman. — Um cachorro quente com presunto extra e outro com salsicha extra. — O que o senhor prefere? — perguntou Buckman a Jason. — A salsicha está bem cozida? — perguntou Jason, examinando os sanduíches. — Acho que sim. — Fico com esse aqui. — São dez dólares e mais um cincão de ouro — disse a policial. — Quem vai pagar? Buckman procurou nos bolsos e tirou o dinheiro. — Obrigado. — A moça se retirou. — Você tem filhos? — perguntou para Taverner. — Não. — Eu tenho um filho — disse o general Buckman. — Vou lhe mostrar uma foto em 3-D dele que acabo de recebei Abriu a gaveta e tirou um quadradinho colorido, tridimensional mas sem movimento. Jason segurou a foto sob a luz e viu a figura estática de um menino de short e,suéter,descalço correndo por um gramado segurando o fio de uma pipa. Como o general, o menino tinha o cabelo loiro e um queixo impressionante, muito largo e forte. Já naquela idade. — Bonitinho — disse Jason, e devolveu a foto. — Ele nunca conseguiu empinar essa pipa. Acho que ainda é muito pequeno. Ou talvez tenha medo. Nosso garotinho é muito ansioso; creio que é porque ele vê muito pouco a mãe e a mim; está numa escola na Flórida e nós aqui, o que não é bom. Você disse que não tem filhos? — Não que eu saiba — disse Jason. — Não que você saiba? — Buckman ergueu o cenho. — Isso quer dizer que você nunca investigou o assunto? Nunca tentou descobrir? Pela lei, como você sabe, o pai é obrigado a sustentar os filhos, sejam ou não gerados num casamento. Jason assentiu. — Bem — disse Buckman, guardando a foto na gaveta —, cada um sabe de si. Mas pense no que você excluiu de sua vida. Você nunca amou uma criança? Dói no coração, na sua parte mais íntima, ali onde se pode morrer facilmente. — Não sabia disso — disse Jason. — Ah, sim. Minha mulher diz que se pode esquecer qualquer amor, menos o amor que se leve por uma criança. É algo que não tem volta, li se acontece alguma coisa que nos separa da criança — como a morte, ou uma terrível calamidade como o divórcio — a gente nunca mais se recupera. — Puxa vida — Jason fez um gesto com o garfo cheio de salsicha — nesse caso seria melhor não sentir esse tipo de amor. — Não concordo — disse Buckman. A gente sempre deve amar, e especialmente uma criança, pois é a forma mais forte de amor. — Compreendo — disse Jason. — Não, você não compreende. Os do tipo seis nunca compreendem; não conseguem compreender. Não vale a pena falar no assunto. — Remexeu nuns papéis em cima da mesa, franzindo o cenho; estava intrigado e um pouco irritado. Mas aos poucos acalmou-se e voltou ao seu natural controlado e seguro. Mas não conseguia compreender a atitude de Jason Taverner. Para ele seu filho tinha a máxima importância; o menino e, é claro, o amor que sentia pela mãe do garoto — era esse o pivô da sua vida. Comeram sem falar por alguns momentos; de repente nenhuma ponte conectava um ao outro. — Há uma lanchonete aqui no edifício — disse Buckman por fim, tomando um copo de refrigerante artificial Tang. — Mas a comida lá é envenenada. Acho que todos os empregados têm parentes nos campos de trabalhos forçados e descontam em nós. — Buckman riu. Jason não riu. — Sr. Taverner — disse Buckman, limpando a boca com o guardanapo —, vou deixá-lo ir embora. Não vou segurálo mais aqui. Olhando-o com espanto, Jason perguntou: — Por quê? — Porque você não fez nada. Com voz rouca, Jason disse: — Consegui documentos forjados. É um delito. — Tenho autoridade para cancelar qualquer acusação que quiser disse Huckman. Vejo que você foi forçado a fazer isso em virtude de alguma situação em que se encontrou, uma situação que você se recusa a me relatar; mas já tenho uma boa ideia do que seja. Após uma pausa, Jason disse: — Obrigado. — Mas — disse Buckman — você será monitorado eletronicamente onde quer que vá. Nunca estará sozinho, exceto pelos seus próprios pensamentos em sua mente, e talvez nem mesmo isso. Todas as pessoas que você contatar ou visitar vão acabar sendo trazidas aqui para serem interrogadas... assim como estamos trazendo essa garota Kathy Nelson agora mesmo. — Debruçou-se para Jason, falando devagar e marcando bem as palavras para que Taverner compreendesse bem. — Estou certo de que você não tirou informações de nenhum banco de dados, seja público ou privado. Acredito que você não compreende sua própria situação. Mas — aqui Buckman levantou a voz perceptivelmente — mais cedo ou mais tarde você compreenderá sua situação e, quando isso acontecer, queremos estar a par de tudo. Portanto vamos estar sempre com você. Está justo assim? Jason Taverner levantou-se. — Todos vocês do tipo sete pensam dessa maneira? — Que maneira? — Essa maneira de tomar decisões vitais instantaneamente. Como fez. O modo como faz perguntas, o modo como ouve — meu Deus, como o senhor ouve! — e depois toma uma decisão irrevogável. Buckman respondeu, dizendo a verdade: — Não sei dizer, porque tenho tão pouco contato com outros tipo sete. — Obrigado — disse Jason. Estendeu a mão, que Buckman apertou. — Obrigado pelo lanche— Parecia agora estar calmo. Controlado. E muito aliviado. — É só ir andando por aqui? Como faço para chegar à rua? — Vamos ter que segurá-lo aqui até de manhã — disse Buckman. — É uma regra da casa: os suspeitos nunca são soltos à noite. Acontece muita coisa na rua depois do escurecer. Vamos lhe dar um quarto com uma cama; só que você terá que dormir vestido. Às oito da manhã vou pedir para Peggy escoltá-lo até a porta principal da Academia. — Apertando um botão no interfone, disse: — Peg, leve o Sr. Taverner para detenção por hoje; tire-o de lá amanhã As oito em ponto. Certo? — Sim, Sr. Buckman. — Abrindo os braços e sorrindo, o general Buckman disse: — É só isso. Nada mais. 17 Sr. Taverner — disse Peggy com insistência. — Queira me acompanhar; vista-se e siga-me até o escritório externo. Vou estar esperando lá. Basta passar pela porta azul e branca. Um pouco do lado, o general Huckman ouvia a voz da moça; uma voz bonita e viva que lhe soava bem; achou que devia soar igualmente bem para Taverner. — Mais uma coisa— disse Huckman, detendo Taverner que, sonolento e com as roupas amarrotadas, dirigia-se para a porta azul e branca. — Não posso renovar seu passe policial se alguém mais baixo o anular. Compreende? O que você tem que fazer é um requerimento dirigido a nós, de acordo com todas as regras legais, pedindo um novo conjunto de documentos. Isso vai implicar um interrogatório intensivo, mas — deu uma palmada no braço de Jason — um tipo seis aguenta. — Certo — disse Jason. Saiu do escritório, fechando atrás de si a porta azul e branca. Buckman ligou o interfone: — Herb, mande colocar nele um microtrans e uma bomba heterostática tipo 80. Assim poderemos segui-lo, e se for necessário, destruí-lo a qualquer momento. — Quer um monitor de voz também? — perguntou Herb. — Sim, se você conseguir colocá-lo na garganta dele sem que ele perceba. — Vou pedir para Peg colocá-lo — disse Herb, e desligou. “Será que um joão-ninguém qualquer”, pensou Buckman, “entre McNulty e eu, poderia ter conseguido mais informações desse homem? Não”, concluiu. “Porque ele simplesmente não sabe. O que precisamos fazer é esperar que ele mesmo descubra... e então estar junto a ele, seja física ou eletronicamente, quando isso acontecer. Como eu lhe disse.” “Mas ainda tenho a impressão de que podemos muito bem ter topado por acaso com alguma coisa que os tipo seis estão fazendo em grupo, apesar da costumeira hostilidade que têm entre si.” Pressionou mais uma vez o botão do interfone: — Herb, mande seguir vinte e quatro horas por dia aquela cantora Heather Hart, ou seja lá como for o nome dela. E pegue no Arquivo Central os dossiês de todos os chamados “tipo seis”. — Compreende? — Será que os computadores estão programados para isso? — perguntou Herb. — Provavelmente não — disse Buckman, desanimado. — Ninguém deve ter pensado nisso dez, anos atrás, quando Dill-Temko estava vivo, inventando outras formas de vida ainda mais estranhas para rodar por aí. •— “Como nós, os tipos sete”, pensou, irônico. — E com certeza eles não pensariam nisso hoje em dia, agora que os tipo seis falharam politicamente. Concorda? — Concordo — disse Herb —, mas vou tentar assim mesmo. — Se os computadores estiverem programados para isso — disse Buckman —, quero que sigam vinte e quatro horas por dia todos os tipo seis. E mesmo que não peguemos todos, podemos ao menos marcar bem aqueles que detectarmos. — Está falado, Sr. Buckman — e Herb desligou. 18 — Até logo e boa sorte, Sr. Taverner — disse a policial chamada Peg na ampla entrada do grande edifício cinzento da Academia. — Obrigado — disse Jason. Inspirou profundamente o ar da manhã, mesmo ar infestado de fumaça. “Consegui sair”, pensou. “Eles poderiam ter me indiciado por mil coisas, mas não fizeram nada.” Uma voz feminina bem gutural falou de perto. — E agora, baixinho? Nunca em sua vida fora chamado de “baixinho”; tinha mais de um metro e 80. Virou-se, pronto para responder alguma coisa, e viu então a criatura que lhe dirigira a palavra. Ela também tinha bem um metro e 80: neste aspecto eram iguais. Mas em contraste com ele, usava uma calça negra colante, uma camisa de couro vermelha com franjas, brincos de aro de ouro e uma corrente na cintura. E sapatos de salto fino. “Nossa Senhora”, pensou ele, estarrecido. “Cadê o chicote dela?” — Falou comigo? — perguntou ele. — Sim. — Ela sorriu, mostrando seus dentes decorados em ouro com os signos do zodíaco. — Eles enfiaram três objetos em você; achei que deveria saber. — Eu sei — disse Jason, perguntando-se quem ou o que era ela. — Um deles — disse a moça — é uma bomba H em miniatura. Pode ser detonada por um sinal de rádio emitido deste edifício. Sabia disso? Dessa vez ele respondeu; — Não. Não sabia. — É assim que ele faz as coisas — disse a garota. — Meu irmão... Fala com você muito educadamente, suave, meloso, e aí manda um dos homens dele — ele tem um monte de subordinados — enfiar essas porcarias na pessoa antes que ela saia do edifício. — Seu irmão? — disse Jason. — O general Buckman. Percebia agora a semelhança entre os dois. O nariz fino e alongado, os pômulos salientes, o pescoço tipo Modigliani, de fina beleza. “Muito aristocrático”, pensou. Ambos o impressionavam. “Então ela também deve ser tipo sete”, pensou. Ficou outra vez desconfiado, alerta, todo eriçado ao confrontá-la. — Eu os tiro de você — disse ela, ainda sorrindo e mostrando, como o general Buckman, seus dentes de ouro. — Muito bem — disse Jason. — Vamos para o meu mosquinha. — Foi andando em passos ágeis; ele foi atrás, desajeitado. Logo estavam sentados lado a lado no assento dianteiro do mosquinha. — Meu nome é Alys — disse ela. — Sou Jason Taverner—disse ele— , cantor e animador de tevê. — É mesmo? Não assisto a tevê desde que tinha nove anos. — Não perdeu grande coisa — disse ele. Não sabia se dizia aquilo com ironia ou não; “e francamente", pensou, “estou cansado demais para me preocupar com isso”. — Essa bomba H é do tamanho de uma semente — disse Alys. — E fica grudada como um carrapato debaixo da pele. Normalmente, mesmo que você soubesse que estava escondida em algum lugar do seu corpo nunca poderia achá-la. Mas eu peguei isto emprestado da Academia. — — Mostrou-lhe uma lâmpada em forma de tubo. — Isso aqui acende quando se aproxima de uma bombasemente. Começou de imediato, com eficiência quase profissional, a percorrer o corpo dele com a lâmpada. Ao chegar no pulso esquerdo de Jason a lâmpada acendeu. — Também tenho aqui o equipamento que eles usam para remover essas bombinhas — disse Alys. Tirou da bolsa um estojinho metálico e o abriu. — Quanto antes a tirarmos de você, melhor. — Dizendo isso retirou do estojo um instrumento cortante. Levou dois minutos cortando com destreza, ao mesmo tempo que borrifava no corte um líquido analgésico. E logo estava na sua mão. Como ela dissera, era do tamanho de uma sementinha. — Obrigado — disse ele. — Por tirar o espinho da minha pata. Alys riu, contente; guardou o instrumento cortante no estojo, e este na sua enorme bolsa de pano. — Está vendo — disse — ele nunca faz essas coisas; sempre é algum funcionário. Assim pode se manter à distância, com senso ético intacto, como se o negócio não tivesse nada a ver com ele. Acho que isso é o que mais odeio nele. Refletiu um momento. Eu realmente o odeio. — Tem mais alguma coisa em mim que você possa tirar fora? — perguntou Jason. Eles tentaram, isto é, Peg, que é especializada em técnicas policiais, tentou colar um monitor de voz na sua goela; mas acho que não conseguiu. — Examinou o pescoço dele com cuidado. — Não, não colou; deve ter caído. Ótimo; este ponto está resolvido. Mas você ainda tem um microtrans em algum lugar; vamos precisar de uma luz estroboscópica para captar as emissões dele. — Vasculhou o porta-luvas do mosquinha e tirou um disco estroboscópico a pilha. — Acho que consigo encontrá-lo — disse, ligando o aparelho. Acabou encontrando o microtrans no punho da manga esquerda. Alys furou-o com um alfinete, e pronto. — Há mais alguma coisa? — perguntou Jason. — Possivelmente uma minicâmara. Uma câmara minúscula que transmite imagens para os monitores da Academia. Mas não vi ninguém colocar uma em você; acho que podemos nos arriscar e esquecer isso. — Virou-se para examiná-lo. — Quem é você? — perguntou. — Já que estamos no assunto. — Uma não-pessoa — disse Jason. — O que significa isso? — Significa que não existo. — Fisicamente? — Não sei — respondeu ele, com sinceridade. — “Talvez”, pensou, “se eu tivesse me aberto mais com o irmão dela, o general de Polícia... Talvez ele tivesse dado um jeito. ” Afinal, Félix Buckman era um tipo sete. O que quer que isso significasse. Mas ainda assim Buckman estava na direção certa; tinha descoberto uma série de coisas. E em muito pouco tempo: o tempo de tomar um lanche de madrugada e saborear um charuto. — Então você é Jason Taverner — disse a moça. — O homem que McNulty estava tentando em vão agarrar. O homem sobre quem não há informações em nenhum lugar do mundo. Nem certidão de nascimento, nem ficha escolar, nem... — Como você sabe de tudo isso? — Dei uma olhada no relatório de McNulty — disse Alys em tom alegre. — No escritório de Félix. Achei interessante. — Então por que você me perguntou quem eu sou? — Quis ver se você sabia. Já tinha ouvido a história de McNulty; agora queria ouvir a sua versão. A versão contra— tira, como eles dizem. — Não posso acrescentar mais nada ao que McNulty já sabe — disse Jason. — Não é verdade. — Começara agora a interrogá-lo exatamente da mesma maneira como o irmão havia feito pouco tempo antes. Num tom de voz baixo e informal, como se algo apenas casual estivesse em pauta; e logo fixando seu rosto com intensidade, e com gestos de mão graciosos, como se ao falar com ele estivesse também dançando um pouco. Dançando sozinha. “A beleza dançando com a beldade”, pensou; achava-a excitante fisicamente, sexualmente. E já tinha se fartado de sexo pelos próximos dias; Deus era testemunha disso. — Está certo — disse ele. — Sei de mais coisas. — Mais do que você contou a Félix? Ele hesitou. E isso já foi uma resposta. — Sim — disse Alys. Ele deu de ombros. Aquilo já era óbvio. — Sabe de uma coisa? — disse Alys. — Você não gostaria de ver como vive um general de Polícia? Ver sua casa? Seu castelo de um bilhão de dólares? — Você me levaria lá? — perguntou ele, incrédulo. — Se ele descobrisse... Fez uma pausa. — “Aonde esta mulher está me levando?”, pensou. Para um terrível perigo. Tudo nele sentia isso; ficou de repente alerta e cauteloso. Sentiu sua própria esperteza percorrer lhe o corpo todo, impregnando cada parte do seu ser somático. Seu corpo sentia que nesse momento, mais do que nunca, tinha que tomar cuidado. — Você tem acesso legal à casa dele? — perguntou, acalmando-se; fez com que sua voz saísse natural, sem qualquer tensão incomum. — Moro com ele, que diabo — disse Alys. — Somos gêmeos; somos muito próximos. Incestuosamente próximos. — Não quero me introduzir num acordo já estabelecido entre você e o general Buckman. — Um acordo estabelecido entre Felix e eu? — ela deu uma risada aguda. — Felix e eu não poderíamos colaborar nem para pintar ovos de Páscoa. Venha; vamos zarpar lá para casa. Temos muitos objetos interessantes, meus e dele. Jogo de xadrez medieval de madeira maciça, antigas xícaras de porcelana da Inglaterra. Alguns lindos selos antigos americanos, impressos pela Casa da Moeda Nacional. Você se interessa por selos? — Não. — Armas? Ele hesitou. — De certa forma. — Lembrou-se de sua arma; era a segunda vez em vinte e quatro horas que teve uma razão para lembrar-se dela. Olhando bem para ele, Alys disse: — Sabe, até que para um baixinho você não é feio. E você é mais velho do que eu gosto... — Mas não muito mais velho. Você é um tipo seis, não é? Ele assentiu. — E então? — disse Alys. — Não quer ver o castelo de um general de Polícia? — Tudo bem — disse Jason. Eles o encontrariam em qualquer lugar que fosse, assim que o desejassem. Com ou sem um microtrans escondido na manga. Alys Buckman deu a partida no seu mosquinha, girou o volante e apertou o pedal; o mosquinha subiu zunindo, fazendo um ângulo de 90 graus. “Motor de polícia”, Jason percebeu; o dobro da potência dos modelos domésticos. — Há uma coisa — disse Alys, desviando-se do trânsito — que quero que fique bem clara na sua cabeça. — Olhou para ele para certificar-se de que ele a ouvia. — Não tome nenhuma iniciativa sexual comigo. Se você fizer isso, eu o mato. — Deu uma palmada no cinto e ali ele viu o tubo usado como arma pela polícia; azul e negro, brilhava ao sol da manhã. — Visto e entendido — disse ele, e sentiu-se apreensivo. Já não gostava das roupas de couro e adereços de ferro que ela usava; ali estavam envolvidas profundas características fetichistas, coisa que nunca o havia atraído, li agora esse ultimato. Qual era a dela, sexualmente? Estaria com a cabeça em outras mulheres? Seria lésbica? Respondendo a essa pergunta não formulada, Alys disse calmamente: — Toda a minha libido, minha sexualidade, está ligada a Felix. — Ao seu irmão? — Amedrontado, sentiu uma fria incredulidade. — Como assim? — Há cinco anos temos uma relação incestuosa — disse Alys, manobrando com destreza o mosquinho no intenso trânsito matinal de Los Angeles. — Temos um menino de três anos. Está com uma babá e uma governanta lá em Key West, na Flórida. Seu nome é Barney. — E você está me contando isso? — disse ele, pasmo de espanto. — Contando para uma pessoa que você nem conhece? — Ah, eu conheço você muito bem, Jason Taverner — disse Alys; apontou o mosquinha para cima e chegou numa pista aérea mais elevada, de maior velocidade. O trânsito agora diminuíra; estavam deixando L. A. — Há anos que sou sua fã e assisto a seu show das terças à noite na tevê. Também tenho discos seus, e uma vez o vi cantar ao vivo no Salão das Orquídeas do Hotel Saint Francis, em São Francisco. Deu-lhe um breve sorriso. — Felix e eu somos colecionadores... e uma das coisas que coleciono são discos de Jason Taverner. — Seu sorriso ousado, frenético, aumentou. — Nestes últimos anos adquiri todos os nove. Jason disse com a voz engasgada e trêmula: — Dez. Já lancei dez LPs. Os últimos com trilhas de projeção luminosa. Nesse caso me falta um — disse Alys, amável. — Vire-se e dê uma olhada no banco de trás. Virando-se, viu sobre o assento traseiro seu primeiro disco: Taverner e os Blue, Blue, Blues. — Sim — disse ele, pondo o disco no colo. — Tem mais um — disse Alys. — Meu favorito. Jason viu então um disco com a capa muito usada, o Divirta-se com Taverner. — Sim, esse é o melhor que já gravei. — Está vendo? — disse Alys. O mosquinha agora descia em espiral em direção a um conjunto de grandes casas cercadas de grama e árvores. — É esta casa. 19 Com as hélices agora na vertical, o mosquinha pousou num local asfaltado no centro do grande gramado. Jason mal notou a casa: três andares, estilo espanhol com grades de ferro batido nas varandas, teto de telhas vermelhas, paredes de adobe ou de estuque, não saberia dizer. Um grande casarão rodeado de lindos carvalhos; fora construído de modo a não destruir o meio ambiente à sua volta, mas sim mesclar-se com ele. A casa parecia fazer parte do gramado, das árvores, uma extensão no reino das coisas fabricadas pelo homem. Alys desligou o motor do mosquinha e abriu com um chute a porta emperrada. — Deixe os discos no carro e venha comigo — disse, saindo para o gramado. Com relutância ele colocou os discos de volta no carro e a seguiu, dando largas passadas para alcançá-la; as longas pernas da moça, em sua calça negra colante, levavam-na com rapidez para o enorme portão frontal da casa. — Temos até cacos de vidro em cima do muro. Para afastar os bandidos.., Imagine, nos dias que correm. Esta casa pertencia ao grande Ernie Till, ator de faroestes. — Apertou um botão embutido no portão e apareceu um guarda particular em uniforme marrom, que após um detido exame fez sinal com a cabeça e ligou o mecanismo elétrico que fazia o portão abrir-se deslizando lateralmente. Jason disse para Alys: — O que você sabe? Sabe que sou... — Você é fabuloso — disse Alys, objetiva. — Há anos que sei disso. — Mas você já esteve onde estive. Onde sempre estou. Não aqui. Tomando sou braço, Alys o conduziu por um corredor coberto de telhas, e descendo cinco degraus de tijolo chegaram a uma sala de estar em plano rebaixado, uma antiguidade naquela época, mas belíssima. Contudo, ele não deu a mínima para nada daquilo; queria falar com ela, descobrir o que ela sabia, e de que forma chegara a saber. E o que aquilo tudo significava. — Lembra-se deste lugar? — perguntou Alys. — Não. — Pois devia lembrar-se. Você já esteve aqui. — Não estive disse ele, cauteloso; ela conquistara sua total credulidade mostrando-lhe os dois discos. “Tenho que pegar esses discos" . Pensou, para mostrar para — sim, para quem? Para o general Buckman? E se eu mostrar a ele, o que vou conseguir com isso? — Um comprimido de mescalina? Perguntou Alys, dirigindo-se para o armário das drogas, um grande gabinete de nogueira lustrada a mão, montado no final do bar em couro e latão do outro lado da sala. — Um pouquinho — disse ele. Mas acrescentou algo que surpreendeu até a si próprio: — Quero conservar as ideias claras. Alys veio trazendo uma pequenina bandeja esmaltada própria para drogas, com um copo de cristal e uma cápsula branca. — Coisa boa. Amarelo Número Um da Harvey, importado da Suíça a granel e embalado em Bond Street. — acrescentou: — E nada forte. É só corante. Obrigado. — Aceitou o copo de água e a cápsula branca e tomou a mescalina. — Você não vai tomar? — perguntou, sentindo-se — tardiamente — desconfiado. — Já estou viajando — disse Alys com amabilidade, sorrindo com seus dentes de ouro decorados. — Não percebeu? Acho que não; bem, você nunca me viu em outro estado. — Você sabia que eu seria trazido para a Academia de Polícia de Los Angeles? — perguntou Jason. — “Deve ter sabido”, pensou, “porque você estava com os meus dois discos. Se não soubesse, suas chances de estar com aqueles discos seriam praticamente zero em um bilhão. ” — Escutei algumas transmissões deles — disse Alys; virou-se e começou a andar pela sala, inquieta, batendo na bandejinha esmaltada com suas longas unhas. — Por acaso peguei a conversa entre Las Vegas e Felix. Gosto de escutar as conversas dele às vezes, quando ele está em serviço. Nem sempre, mas... — apontou então para um aposento que ficava ao lado de um corredor aberto — quero ver uma coisa; vou mostrar para você, se for mesmo o que Felix disse. Ele a seguiu, mil perguntas zumbindo em sua mente. “Se ela pode atravessar”, pensou, “ir de cá para lá, como parece que fez agora...” Ele disse que estava na gaveta do meio da escrivaninha — disse Alys, pensativa, parando no centro da biblioteca; estantes de livros encadernados em couro elevavam-se até o teto do aposento. Várias escrivaninhas, um jogo de pequeninas xícaras de vidro, vários jogos de xadrez antigos, dois velhos baralhos de Taro... Alys dirigiu-se a uma escrivaninha colonial, abriu uma gaveta e espiou. — Ah! — exclamou, pegando um envelope translúcido. — Alys — Jason começou, mas ela o interrompeu estalando os dedos de súbito. — Fique quieto enquanto vejo isto. — Pegou da mesa uma grande lente de aumento e examinou o envelope. — É um selo — explicou. — Vou tirá-lo para que você o veja. — Com uma pinça filatélica tirou o selo do envelope com cuidado e colocou-o sobre uma superfície de feltro na beira da mesa. Obedecendo, Jason olhou o selo pela lente. Pareceu-lhe ser um selo como outro qualquer, exceto porque, ao contrário dos selos modernos, fora impresso em uma só cor. — Veja o desenho dos animais — disse Alys. — O rebanho de bois. É absolutamente perfeito; cada linha é exata. Este selo nunca foi... — Segurou a mão dele quando ele ia tocar no selo. — Não, não! Nunca toque num selo com a mão; use sempre a pinça. — É muito valioso? — ele perguntou. — Nem tanto. Mas quase nunca são vendidos. Eu lhe explicarei um dia este aqui é um presente do Felix, porque ele me ama. E porque, diz ele, sou boa de cama. — É um bonito selo — disse Jason, desconcertado. Devolveu a ela a lente de aumento. — Felix me falou a verdade; é um bom exemplar. Perfeitamente centrado carimbo leve que não atinge o centro da figura, e.., Com ajuda da pinça virou o selo e colocou-o no feltro com a estampa para baixo. No mesmo instante sua expressão mudou; seu rosto brilhou, quente de raiva, e exclamou: — Aquele filho da puta! — O que houve? — Uma manchinha. -Tocou com a pinça o canto do selo. — Bem, de frente não se vê. Mas o Felix é assim. Bom, de qualquer forma provavelmente é falso. Só que Felix sempre dá um jeito de não comprar falsificações. Tá bem, Felix, é um a zero para você. — Pensativa, disse: — Será que ele não tem outro na coleção dele? Eu poderia trocá-los. — Foi até um cofre embutido na parede, mexeu um pouco na combinação numérica, abriu-o enfim e tirou um álbum enorme e pesado, que arrastou até a escrivaninha. Felix não sabe que eu sei a combinação desse cofre. Portanto não conte a ele. — Com cuidado, virou as grossas páginas até chegar numa que mostrava quatro selos. — Nenhum negro de um dólar — disse. — Mas ele pode tê-lo escondido em algum outro lugar. — Talvez até lá na Academia. — Fechou o álbum e o recolocou no cofre de parede. — A mescalina está começando a me afetar — disse Jason. Suas pernas doíam; isso sempre era um sinal de que a mescalina começava a agir no seu sistema. — Vou me sentar — disse e conseguiu alcançar uma poltrona de couro antes que suas pernas cedessem. Ou talvez pareciam que iam ceder; na verdade, não cederam, era uma ilusão induzida pela droga. Mesmo assim, a sensação era real. — Gostaria de ver uma coleção de caixas de rapé simples e ornamentadas? — perguntou Alys. — Felix tem uma coleção magnífica. Todas antigas, em ouro, prata, metais, com gravações, cenas de caça. Não? — Sentou-se em frente a ele, cruzou suas longas pernas cobertas de negro; balançava num pé o sapato de salto. — Uma vez Felix comprou uma caixa de rapé num leilão, pagou caríssimo e a trouxe para casa. Limpou o rapé que havia dentro e encontrou uma alavanquinha que funcionava com uma mola, no fundo da caixa; ou melhor, naquilo que parecia ser o fundo. A alavanca funcionava quando se apertava um parafusinho minúsculo. Ele levou o dia todo para achar uma chavinha que coubesse no parafuso. Mas no fim conseguiu. — Alys riu. — E o que aconteceu? — Jason perguntou. — No fundo da caixa havia uma plaquinha escondida. Ele tirou a plaquinha. — Ela tornou a rir, fazendo brilhar os dentes enfeitados. — No fim era uma figura pornográfica de duzentos anos atrás. De uma garota copulando com um potrinho. Pintada a oito cores. Valeria, digamos, cinco mil dólares. — Não é muito, mas realmente nos deliciou. Quem vendeu, é claro, não sabia o que havia dentro. — Sei — disse Jason. — Você não se interessa muito por caixas de rapé disse Alys, ainda com um sorriso. — Gostaria... de vê-la — ele disse. E em seguida falou: — Alys, você sabe a respeito de mim; sabe quem eu sou. Por que ninguém mais sabe? — Porque eles nunca estiveram lá. — Onde? Alys massageou as têmporas, estalou a língua e olhou fixamente em frente, como se perdida em seus pensamentos. Como se mal o ouvisse. — Você sabe — disse, parecendo aborrecida e um tanto irritada. — Meu Deus, homem, você viveu lá 42 anos. O que posso lhe dizer sobre esse lugar que você já não saiba? — Olhou para ele então, um sorriso travesso nos grossos lábios. — Como cheguei até aqui? — ele perguntou. — Você... — ela hesitou. — Não sei se devo lhe contar. Bem alto, ele perguntou: — Por que não ? — Deixe que isso venha com o tempo. — Fez com a mão um gesto desencorajado. — Com o tempo, com o tempo. Veja, rapaz você já foi muito atingido; você quase foi enviado para um CTF, e sabe de que tipo. Graças àquele imbecil do McNulty e ao meu querido irmão. Meu irmão, o general de Polícia. — Sua face tornou-se feia com a repulsa, mas logo deu mais uma vez seu sorriso provocante. Seu sorriso de dentes de ouro, preguiçoso, convidativo. Jason falou: — Quero saber onde estou. — Você está na minha biblioteca, na minha casa. Está em perfeita segurança; já tiramos todos os percevejos eletrônicos de você. E ninguém vai entrar aqui. Sabe de uma coisa? — Ficou em pé de um pulo, como um animal superágil; sem querer ele recuou. — Você já experimentou fazer por telefone? — perguntou, com os olhos brilhantes de expectativa. — Fazer o quê? — A rede — disse Alys. — Nunca ouviu falar da rede telefônica? — Não — ele disse. Mas já tinha ouvido a respeito. — Seus aspectos sexuais — isto é, os de qualquer pessoa — são conectados eletronicamente, e ampliados até o máximo que você consiga aguentar. Acaba viciando, porque é intensificado eletronicamente. Tem pessoas que mergulham tanto na coisa que não conseguem mais sair; toda a vida deles gira em torno daquele ritual semanal — que nada, às vezes diário! — de ligar-se à rede telefônica. São telefones comuns, com tela, que funcionam com cartão de crédito, de modo que você não paga nada ao ligar; os patrocinadores te mandam a conta uma vez por mês. Se você não pagar eles cortam seu telefone da rede. — Quantas pessoas — ele perguntou — estão envolvidas nisso? — Milhares. — De cada vez? Alys fez que sim. — A maioria já está nessa há dois, três anos. Por causa disso se deterioram física e mentalmente. É que a parte do cérebro onde se experimenta o orgasmo vai sendo aos poucos destruída. Mas não despreze essas pessoas; algumas das melhores e mais sensíveis cabeças do planeta estão envolvidas. Para eles é uma comunhão sagrada. Só que é fácil reconhecer um usuário da rede: têm uma aparência debochada, velha, gorda, apática. Isto é, apática quando estão num intervalo entre as sessões de orgia telefônica, claro. — E você faz isso? — Ela não lhe parecia debochada, velha, gorda nem apática. — Uma vez ou outra. Mas nunca fiquei viciada; sempre corto a ligação com a rede bem a tempo. Quer experimentar? — Não. — Está certo — disse Alys calmamente, sem se dar por vencida. — O que você gostaria de fazer? Temos uma boa coleção de Rilke e Brecht em discos com tradução interlinear. Outro dia Felix chegou em casa com um álbum quadrifônico com as sete sinfonias de Sibelius; é muito bom. Para o jantar Emma está preparando pernas de rã... Felix adora pernas de rã e escargots. Ele sempre come em bons restaurantes franceses e bascos, mas hoje... — Quero saber — Jason interrompeu — onde estou. — Você não consegue simplesmente ser feliz? Com dificuldade ele se levantou e a encarou, em silêncio. 20 A mescalina começara a afetá-lo furiosamente; a sala encheu-se de cores brilhantes, e a perspectiva alterou-se tanto que o teto lhe pareceu ter um milhão de quilômetros de altura. E ao olhar para Alys, viu o cabelo dela tomar vida... como o cabelo da Medusa, pensou com medo. Ignorando-o, Alys continuou: — Felix gosta muito da cozinha basca, mas eles põem tanta manteiga na comida que lhe dá cólicas de estômago. Ele também tem uma boa coleção de Histórias Fantásticas, e adora beisebol. E vamos ver... — Andava pela sala, batendo um dedo nos lábios enquanto refletia. — Ele se interessa pelas coisas ocultas. Você também? — Estou sentindo uma coisa — disse Jason. — O quê? — Que não consigo escapar. — É a mesca. Vá com calma. — Eu... — Parou para refletir; estava com um peso gigantesco no cérebro, mas através dele passavam raios de luz como os insights da iluminação budista, brilhando aqui e ali. — Minhas coleções — disse Alys — estão na sala ao lado, que chamamos de biblioteca. Este aqui é o escritório. Na biblioteca estão os livros de advocacia de Felix... Sabia que ele é advogado, além de general de Polícia? — E já fez alguns bons trabalhos, tenho que admitir. Sabe o que ele fez uma vez? Jason não conseguiu responder; só conseguia ficar em pé. Inerte, ouvia os sons mas não o significado. Deles. — Durante um ano Felix foi o encarregado legal de um quarto dos campos de trabalhos forçados da Terra. E descobriu uma lei obscura aprovada anos atrás quando os campos de trabalhos forçados mais pareciam campos de extermínio, com um monte de prisioneiros negros. Bem, o fato é que ele descobriu que essa lei autorizava os campos a funcionarem apenas durante a Segunda Guerra Civil. E ele tinha poder para fechar qualquer campo, ou todos, a qualquer momento que julgasse ser do interesse público. Esses negros e os estudantes que estiveram trabalhando nos campos são superfortes e resistentes, devido aos anos de trabalho pesado. Não são como os estudantes fracos, pálidos e pegajosos que vivem debaixo das universidades. E depois de outras pesquisas ele descobriu outro regulamento obscuro: qualquer campo que não esteja dando lucro deve, ou melhor, devia ser fechado. Portanto, Felix alterou a quantia — muito pequena, é claro — que era paga aos detentos. Assim a única coisa que ele teve que fazer foi aumentar o pagamento deles, mostrar que os livros estavam no vermelho, e pronto — podia fechar os campos. — Alys riu. Ele tentou falar, mas não conseguiu. Sua mente rodopiava como uma bola de borracha; afundava e subia, mais devagar, mais depressa; sumindo e depois brilhando; os raios de luz passavam através dele penetrando cada parte do seu corpo. — Mas a grande coisa que Felix fez — disse Alys foi com os comunas de estudantes debaixo das universidades queimadas. Muitos ficam desesperados para conseguir comida e água; sabe como é, os estudantes tentam chegar até a cidade e saem atrás de comida, roubando e saqueando. Bem, a polícia tem um monte de agentes entre os estudantes, agitando para provocar uma confrontação final com a polícia... que naturalmente a polícia e a GN esperam com ansiedade. Mas veja... — Eu vejo — disse ele — um chapéu. — Veja que Felix tentou evitar qualquer tipo de confrontação violenta. Mas para isso tinha que conseguir dar mantimentos aos estudantes, percebe? — O chapéu é vermelho — disse Jason. — Como as suas orelhas. Como Felix tinha o posto de marechal na hierarquia da polícia, ele tinha acesso a relatórios de informantes sobre a condição de cada comuna estudantil. Sabia quais estavam fracassando e quais estavam dando certo. Seu trabalho era concluir a partir de um mar de relatórios os fatos mais importantes: quais comunas estavam indo à falência e quais não estavam. Depois que fez a lista das que estavam em dificuldades, outros policiais de alta patente encontraram-se com ele para decidir como poderiam pressionar essas comunas para que seu fim chegasse mais rápido. Agitação derrotista por agentes da polícia, sabotagem dos suprimentos de alimento e água. Incursões desesperadas — ou melhor, sem esperança alguma — fora da área do campus em busca de auxílio. Por exemplo, uma vez na Universidade de Colúmbia eles fizeram um plano para invadir o Campo de Trabalho Harry S. Truman, libertar os prisioneiros e armálos; mas aí até mesmo Felix teve que gritar “Intervenção!”. Bem, de qualquer forma a tarefa de Felix era determinar a tática a ser usada com cada comuna. Muitas e muitas vezes ele aconselhou que não se tomasse medida alguma. Por isso, é claro, os linha-dura o criticavam, exigiam que fosse demitido de seu posto. — Alys fez uma pausa. — Pense que naquela época ele era um marechal de polícia da ativa. — Seu vermelho — disse Jason — é fantídulo. — Eu sei. — Alys apertou os lábios. — Ei, cara, você não consegue se segurar? Estou tentando contar uma coisa para você. Felix foi rebaixado de marechal para general da Polícia, porque ele providenciava, sempre que possível, que nas comunas os estudantes tivessem banho, comida, remédios, camas. Como fez com os campos de trabalhos forçados na sua jurisdição. Por isso agora ele é só general. Mas eles o deixaram em paz. Já fizeram com ele tudo que podiam e mesmo assim ele ainda tem uma alta patente. — Mas e o seu incesto — disse Jason. — E se? — Fez uma pausa; não conseguia lembrar o resto da sentença. — Se — disse, e isso parecia tudo; sentiu um furioso brilho vindo do fato de que tinha conseguido transmitir sua mensagem para ela. — Se — disse mais uma vez, e o brilho interno tornou-se violento, com uma fúria feliz. Soltou uma exclamação em voz alta. — Você quer dizer e se os marechais soubessem que Felix e eu temos um filho? O que eles fariam? — Eles fariam — disse Jason. — Poderíamos ouvir um pouco de música? Ou então me dê... — Suas palavras cessaram; nenhuma palavra entrava mais no seu cérebro. — Puxa! — exclamou. — Minha mãe não estaria aqui. Morte. Alys inspirou profundamente e deu um suspiro. — Está bem, Jason — disse ela. — Desisto de tentar conversar com você. Até que a sua cabeça volte no lugar. — Fale — ele disse. — Gostaria de ver meus desenhos de SM? — O que é isso? — Desenhos muito estilizados de garotas amarradas, e homens... — Posso me deitar? — ele disse. — Minhas pernas não estão funcionando. Acho que minha perna direita vai até a lua. Acho que eu a quebrei enquanto estava em pé. — Venha aqui. — Ela o guiou passo a passo do escritório até a sala de estar. — Deite no sofá. — Com angustiosa dificuldade ele se deitou. — Vou pegar uma Thorazina para você; vai cortar o efeito dessa zorra. — É uma zorra mesmo — disse ele. — Deixe ver... Onde foi mesmo que coloquei aquele negócio? Nunca preciso usar, mas tenho sempre à mão para um caso assim... Que diabo, mas você não consegue tomar uma única cápsula de mesca e continuar sendo alguma coisa? Eu tomo vinte de uma vez! — Mas você é vasta — disse Jason. — Vou subir e volto já. Alys afastou-se em direção a uma porta que ficava a muita distância; por um longo, longo tempo ela foi diminuindo — como ela conseguia? Parecia incrível que ela pudesse encolher de tamanho até quase nada — e então desapareceu. Com isso ele sentiu um terrível medo. Sabia que estava agora só, sem-auxílio. “Quem vai me ajudar? ”, perguntouse. “Tenho que saltar fora desses selos e xícaras e caixas de rapé e desenhos de SM e redes telefônicas e pernas de rã tenho que voltar para aquele mosquinha tenho que ir embora e voltar para onde conheço voltar para a cidade talvez com Ruth Rae se eles já soltaram ela ou talvez até com Kathy Nelson esta mulher é demais para mim e o irmão dela também e o filho incestuoso deles na Flórida chamado o quê mesmo? ” Levantou-se cambaleante, percorreu um tapete de onde saltavam um milhão de jorros de pigmento puro à medida que ele pisava, esmagando-o com seus poderosos sapatos; finalmente tropeçou na porta fronteira do quarto. O quarto que balançava todo. A Luz do sol. Estava do lado de fora. O mosquinha. Caminhou vacilante até ele. Entrou e sentou-se direção, desnorteado com a quantidade de botões, alavancas, volantes, pedais, mostradores. — Por que ele não anda? — falou alto. — Vamos, ande! — disse, impulsionando o assento para a frente. — Ela não vai me deixar ir embora? — perguntou ao mosquinha. As chaves. É claro que não andava; não tinha chave. O casaco dela no banco de trás; ele havia visto. E também a grande bolsa de pano. É lá, as chaves estão na bolsa dela. É lá. Os dois discos, Taverner e os Blue, Blue, Blues. E o melhor de todos, Divirta-se com Taverner. Com dificuldade conseguiu pegar os discos e colocar os dois no assento vazio ao seu lado. “Tenho a prova aqui”, percebeu. “Está aqui nestes discos e está aqui na casa. Com ela. Tenho que achar a prova aqui, se estiver em algum lugar está aqui. Em nenhum outro lugar. Nem o general Sr. Felix Do-Que-Mesmo? Não vai achar. Ele não sabe. Sabe tanto quanto eu.” Carregando os enormes discos, correu de volta para a casa. Em torno dele o jardim fluía, com altos organismos em forma de árvore respirando o ar do doce céu azul, organismos que absorviam água e luz, comiam a cor do céu... Chegou ao portão, empurrou-o. O portão não se mexeu. Botão. Não encontrou. Passo a passo. Tatear cada centímetro com os dedos. Como no escuro. “Sim”, pensou, “estou no escuro.” Colocou no chão os discos pesadíssimos, parou junto ao muro ao lado do portão, devagar massageou a superfície borrachosa do muro. Nada. Nada. O botão. Ele o pressionou. Agarrou os discos, parou em frente ao portão e o viu deslizar incrivelmente devagar, rangendo e protestando ao abrir-se. Apareceu um homem de uniforme marrom com uma arma na mão. Jason disse: — Precisei voltar ao mosquinha para buscar uma coisa. — Perfeitamente, senhor — disse o homem de uniforme marrom. — Vi quando o senhor saiu e sabia que iria voltar. — Ela é louca? — Jason perguntou. — Não me encontro em condições de saber, senhor — disse o homem, e recuou, tocando a aba do quepe. A porta da frente da casa continuava aberta como ele a deixara. Caminhando com dificuldade entrou, desceu alguns degraus de tijolo e se encontrou de novo na sala totalmente irregular, com seu teto de um milhão de milhas. — Alys! — chamou. Será que ela estava na sala? Olhou com cuidado em todas as direções; como fizera ao procurar o botão, percorreu cada centímetro visível da sala. O bar do outro lado com o belo armário de nogueira para guardar drogas... Sofá, poltronas. Quadros nas paredes. Um rosto num quadro zombou dele, mas Jason não se importou; não poderia sair da parede. O toca-discos quadrifônico. Seus discos. Tocar seus discos. Tentou levantar a tampa do tocadiscos, mas ela se recusava a abrir. Por quê?, perguntou. Trancada? Não, era de deslizar. Ele a fez deslizar fazendo um terrível ruído, como se a tivesse destruído. O braço do aparelho. O prato. Tirou um dos discos da capa e o colocou no prato. Sei mexer com essas coisas — falou, e ligou os amplificadores, colocando o modo em fono. Um botão ativava o braço. Ele o girou. O braço levantou; o prato começou a girar com lentidão angustiosa. O que estava acontecendo? Velocidade errada? Não. Verificou: trinta e três e um terço. O mecanismo do braço por fim moveu-se e o disco caiu. Ruído alto da agulha batendo no sulco inicial. Crepitação de poeira, estalidos. Típico dos velhos discos quadrifônicos. Muito fáceis de riscar; bastava um sopro para estragá-los. Chiado ao fundo. Mais estalos. Nada de música. Levantou o braço com a agulha e o colocou em outra faixa. Grande rangido quando a agulha atingiu a superfície; franziu o cenho, procurou o botão do volume para diminuir o ruído. Ainda nada de música. Nenhum som da voz dele cantando. O efeito da mescalina começava agora a diminuir; sentiu-se sóbrio, uma sensação fria e aguda. O outro disco. Depressa o tirou da capa e o colocou no prato em lugar do primeiro disco. Som da agulha tocando a superfície plástica. Chiados ao fundo e os inevitáveis estalos e estouros. Nada de música. Os discos estavam em branco. PARTE TRÊS Que jamais se aliviem meus tormentos; Desde que a compaixão se foi As lágrimas, suspiros e gemidos privam Meus dias sombrios de toda a alegria. 21 Alys! — chamou Jason Taverner em voz alta. Nenhuma resposta. “Será a mescalina?”, perguntou-se. Foi cambaleando do toca-discos até a porta por onde Alys desaparecera. Um longo corredor, um espesso carpete de lã. No fim, uma escada com corrimão de ferro batido levava ao segundo andar. Caminhou o mais rápido possível pelo corredor até a escada e subiu os degraus um a um. O segundo andar. Um saguão tendo a um lado uma antiga mesa Hepplewhite; nela uma alta pilha de revistas Box. Isso, estranhamente, captou sua atenção; quem seria, Felix ou Alys, ou ambos, que lia uma revista pornográfica de baixo nível como a Box, feita para as massas? Foi passando, ainda notando — certamente por causa da mescalina — os pequenos detalhes. O banheiro; era lá que a encontraria. — Alys — chamou, sombrio; gotas de suor escorriam da testa pelo nariz e as faces; suas axilas estavam molhadas com as emoções que cascateavam pelo seu corpo. — Que diabo! — disse, falando com ela embora não pudesse vê-la. — Não há música nesses discos, não estou neles. São falsos. Não são? — Ou será a mescalina, pensou. — Tenho que saber! — disse alto. — Ponha-os para tocar, se estiverem OK. O toca-disco está quebrado, é isso? A agulha, ou a ponta, ou sei lá como se chama, está quebrada? “Issoacontece”, pensou. “Talvez esteja encostando só na parte de cima dos sulcos.” Uma porta entreaberta; ele a abriu de todo. Um quarto, com a cama por fazer. E no chão um colchão onde haviam jogado um saco de dormir. Uma pilha de objetos masculinos: creme de barbear, desodorante, barbeador, loção, pente... “Um hóspede”, pensou; “alguém que esteve aqui mas já se foi.” — Tem alguém aqui? — berrou. Silêncio. À sua frente viu o banheiro; pela porta meio aberta viu uma banheira incrivelmente velha, com pés de leão de esmalte pintado. Uma antiguidade, pensou; até a banheira. Vacilante, veio vindo pelo corredor, passando por outras portas, até chegar ao banheiro; ali abriu a porta. E viu no chão um esqueleto. Usava uma calça preta brilhante, camisa de couro, na cintura uma corrente com fivela de ferro trabalhado. Os ossos do pé tinham afastado os sapatos de salto alto. Alguns tufos de cabelo ainda se prendiam ao crânio, mas afora isso, nada mais restava: os olhos tinham sumido, toda a carne tinha desaparecido. Um esqueleto já amarelo. — Meu Deus — disse Jason, cambaleando; sentiu a visão falhar e sua noção de gravidade se alterar; seu ouvido médio flutuava em meio à pressão, de modo que o aposento rodopiava em volta dele em silêncio, num perpétuo movimento de dança. Como uma roda gigante num parque de diversões. Fechou os olhos, encostou-se na parede e por fim olhou mais uma vez. “Ela morreu”, pensou. Mas quando? Cem mil anos atrás? Alguns minutos atrás? “Por que ela morreu?”, perguntou-se. “Será a mescalina que tomei? Isto é real?” É real. Inclinou-se e tocou a blusa franjada. O couro era suave macio; não tinha se deteriorado. O tempo deixara sua roupa intacta; isto significava alguma coisa, mas ele não compreendia o quê. “Só ela”, pensou. “Tudo o mais nesta casa continua como estava. Então não pode ser efeito da mescalina. Mas não posso ter certeza.” Desceu a escada. Saiu dali. Voltou pelo corredor em passadas largas, inseguro da direção, ao mesmo tempo em que arrastava os pés, de modo que corria curvado como um estranho macaco. Agarrou o corrimão de ferro negro, desceu dois, três degraus de cada vez, tropeçou e caiu, levantou-se de novo. Em seu peito sentia o coração trabalhar, e seus pulmões com o esforço se enchiam e esvaziavam como um fole. Num átimo atravessou a sala de estar até a porta da frente; então, por razões que lhe eram obscuras, mas de alguma maneira importantes, agarrou os dois discos que estavam no aparelho de som, enfiou-os nas capas e os levou consigo, saindo pela porta frontal da casa para fora, para o quente e brilhante sol do meio-dia. — Já vai, senhor? — perguntou o guarda particular de uniforme marrom, vendo-o parado ali com o peito ofegante. — Estou doente. — Lamento, senhor. Gostaria que lhe trouxesse alguma coisa? — As chaves do mosquinha. — A Srta. Buckman em geral deixa a chave no contato. — Já olhei — disse Jason, arfando. — Vou pedir à Srta. Buckman as chaves para o senhor. — Não — disse Jason, e pensou: “Mas se é a mescalina, então tudo bem. Não é?” — “Não”? — disse o guarda, e de repente sua expressão mudou. — Fique onde está — disse. — — Não se aproxime do mosquinha. Virou-se e correu para dentro da casa. Jason atravessou o gramado a passos largos e chegou ao quadrado de asfalto e ao mosquinha estacionado. As chaves; estavam no contato? Não. A bolsa dela. Agarrou-a e esvaziou-a no assento. Caíram mil objetos, mas nada de chave. E então um terrível grito o esmagou. No portão frontal da casa apareceu o guarda, com o rosto distorcido. Parou de lado, ergueu a arma como num gesto reflexo, segurando-a com as duas mãos, e atirou em Jason. Mas a arma oscilou; o guarda tremia demais. Saindo pelo lado oposto do mosquinha, Jason arrastou-se pela espessa grania úmida em direção aos carvalhos. Mais uma vez o guarda atirou. Mais uma vez errou o alvo. Jason ouviu-o xingar; o guarda começou a correr aproximando-se dele, mas de súbito virou-se e correu para dentro de casa. Jason conseguiu chegar até as árvores. Forçou o caminho através da vegetação seca e emaranhada que estalava à sua passagem. Um alto muro de adobe... E o que Alys dissera? Cacos de vidro cimentados no topo? Foi rastejando ao longo da base do muro, lutando contra a vegetação espessa, e de súbito viu-se em frente a uma porta quebrada de madeira; estava meio aberta, e para além dela viu uma rua com outras casas. Percebeu que não era a mescalina. O guarda também a vira. Ali deitada. O antigo esqueleto. Como se estivesse morta todos esses anos. Do outro lado da rua uma mulher, com os braços cheios de pacotes, abria a porta de seu pequeno helicóptero tipo flipflap. Jason atravessou a rua com dificuldade, forçando sua mente a trabalhar, afastando os resquícios da mescalina. — Dona — disse, ofegante. — Espantada, a mulher levantou a vista. Jovem, um tanto gorda, mas com um lindo cabelo castanho-avermelhado. — Sim? — disse ela, nervosa, medindo-o com os olhos. — Me deram uma dose tóxica de alguma droga — disse Jason, tentando manter a voz firme. — A senhora poderia me levar para um hospital? Silêncio. Ela continuava a fitá-lo com os olhos bem abertos. Ele não dizia nada; apenas esperava, arquejante. Sim ou não; tinha que ser uma das duas coisas. A moça gorda de cabelo castanho disse: — Eu... eu não dirijo muito bem. Tirei carta do flipflap só na semana passada. — Eu dirijo — disse Jason. — Então não vou junto. — Ela recuou, agarrando seus pacotes embrulhados em papel marrom. Devia estar a caminho do correio. — Quer me dar as chaves? — disse ele, estendendo a mão. Esperou. — Mas você pode desmaiar e aí meu flipflap... — Venha comigo, então — ele disse. Ela lhe passou as chaves e sentou no banco traseiro do flipflap. Jason, com o coração pulsando de alívio, sentou-se ao volante, colocou a chave no contato, ligou o motor e num átimo lançou o flipflap voando no céu, na sua velocidade máxima de setenta quilômetros por hora. Por algum estranho motivo notou que era um modelo muito barato de flipflap: um Ford Greyhound. Um flipflap econômico. E nada novo. — Está com muitas dores? — perguntou a moça, ansiosa; seu rosto, que ele via pelo espelho retrovisor, ainda mostrava nervosismo, até pânico. A situação era demais para ela. — Não — ele respondeu. — Qual foi a droga? — Eles não disseram. — A mescalina agora já perdera praticamente todo o efeito; graças a Deus sua fisiologia de tipo seis tivera forças para combatê-la, pois não lhe— agradava a ideia de pilotar um lento flipflap através do intenso tráfego de Los Angeles ao meio-dia em meio a uma viagem de mescalina. E uma tremenda viagem, pensou ele com raiva. Apesar do que ela dissera. Ela. Alys. “Por que os discos estão em branco?”, perguntou-se em silêncio. Os discos — onde estavam? Olhou em volta, assustado. Ah! No assento ao seu lado; sem pensar ele os jogara ali ao entrar no flipflap. Então eles estão a salvo. Posso tentar tocá-los em outro toca-discos. — O hospital mais próximo — disse a moça — é o St. Martin na esquina da rua Webster com a 35. É pequeno, mas já estive lá para tirar uma verruga da mão e eles foram muito gentis e conscienciosos. — Vamos para lá — disse Jason. — Você está se sentindo melhor ou pior? — Melhor. — Você estava na casa dos Buckman? — Sim. — É verdade — perguntou a moça — que eles são irmãos, o Sr. e a Sra. Buckman? Quer dizer... — Gêmeos — disse ele. — Compreendo — disse a moça. — Mas sabe, é estranho; quando a gente vê os dois juntos parecem marido e mulher. Eles se beijam, andam de mãos dadas, e ele é muito atencioso com ela; agora, às vezes eles têm brigas terríveis. A moça silenciou um momento, e então inclinando— se para a frente, disse: — Meu nome é Mary Anne Dominic. Qual é o seu? — Jason Taverner — ele a informou. Não que aquilo significasse alguma coisa. Depois de tudo. Depois do que por um momento parecera — mas a voz da moça interrompeu seus pensamentos. — Sou ceramista — disse ela, tímida. — Esses pacotes são vasos que estou levando ao correio para mandar para lojas no norte da Califórnia, principalmente a Gump’s em São Francisco e a Frazer em Berkeley. — Você trabalha bem? — perguntou ele; quase toda a sua mente, suas faculdades, continuavam fixas no tempo, fixas no instante em que abrira a porta do banheiro e vira aquilo no chão. Mal ouvia a voz da Srta. Dominic. — Eu tento. Mas nunca se sabe. De qualquer forma, vendo bem. — Você tem mãos fortes — disse ele, por falta de algo melhor a dizer; suas palavras ainda saíam meio mecanicamente, como se as formasse com um fragmento apenas de sua mente. — Obrigada — disse Mary Anne Dominic. Silêncio. — Já passamos o hospital — disse ela. — Ficou um pouquinho para trás, à esquerda. A ansiedade mais uma vez se revelava em sua voz. — Você está indo mesmo para lá ou isso é algum... — Não tenha medo — disse ele, dessa vez prestando atenção ao que dizia; usou toda a sua habilidade para que a sua voz saísse gentil e tranquilizadora. — Não sou um estudante foragido. Nem escapei de um campo de trabalhos forçados. — Virou-se e encarou-a de frente. — Mas estou em apuros. — Então você não tomou uma droga tóxica. — A voz dela vacilou. Era como se aquilo que ela mais temera durante toda a sua vida a tivesse enfim dominado. — Vou pousar — disse ele.— Assim você se sentirá mais segura. Até aqui já está bom para mim. Por favor, não entre em pânico; não vou lhe fazer mal. — Mas a moça sentava-se rígida no assento, parecendo atingida, esperando por — bem, nenhum dos dois sabia o quê. Num cruzamento movimentado, Jason estacionou à beira da calçada e abriu a porta. Mas então, seguindo um impulso ficou dentro do flipflap por um momento, ainda encarando a moça. — Por favor, saia — disse ela em voz trêmula. — Não quero ser maleducada, mas estou com medo mesmo. A gente ouve falar de estudantes loucos de fome que conseguem passar pelas barricadas em volta dos campus... — Escute o que vou dizer — disse ele, interrompendo o jorro de palavras que ela lançava. — Está bem. Ela se recompôs, com as mãos no colo cheio de pacotes, esperando obedientemente — e com modo. — Você não deve se assustar com tanta facilidade — disse Jason. — Senão a vida vai ser dura demais para você. — Compreendo. — Ela assentiu humildemente, ouvindo, prestando atenção como se estivesse assistindo a uma aula na universidade. — Você sempre tem medo de estranhos? — ele perguntou. — Acho que sim. — Assentiu outra vez, abaixando a cabeça como se ele a tivesse repreendido, e de certa forma tinha mesmo. — O medo — disse Jason — pode fazer mais mal do que o ódio ou o ciúme. A pessoa que tem medo não se entrega totalmente à vida; o medo faz a pessoa estar sempre, sempre, guardando alguma coisa. — Acho que sei o que você quer dizer — disse Mary Anne Dominic. — Um dia, há mais ou menos um ano, ouvi umas batidas horríveis na minha porta. Corri para o banheiro e me tranquei lá dentro, fingindo que não estava em casa, porque achei que alguém estava tentando arrombar a porta... E depois descobri que a mulher do andar de cima tinha prendido a mão no ralo da pia — ela tem um desses trituradores de lixo na pia e uma faca desceu pelo ralo, ela tentou pegá-la e a mão ficou presa. E era o filhinho dela batendo na minha porta... — Então você compreende o que quero dizer — interrompeu Jason. — Sim. Gostaria de não ser desse jeito, gostaria mesmo. Mas ainda sou. — Quantos anos você tem? — perguntou Jason. — Trinta e dois. Ficou surpreso; ela parecia muito mais jovem. Era óbvio que não tinha se tornado adulta. Simpatizou com ela; como devia ter sido duro para ela deixálo tomar o flipflap. E seus temores realmente estavam corretos num ponto: ele não pedira ajuda pelo motivo que alegou. — Você é muito boa pessoa — ele disse. — Obrigada — ela disse, obediente. Humildemente. — Está vendo aquele café ali? — disse ele, indicando um local moderno, de clientela distinta. — Vamos até lá. Quero conversar com você. — “Tenho que falar com alguém, com qualquer pessoa”, pensou, “do contrário vou perder o juízo.” — Mas — protestou ela, ansiosa — tenho que levar meus pacotes para o correio antes das duas, para serem despachados hoje mesmo. — Vamos lá primeiro, então — disse ele. Tirou a chave do contato e a devolveu para Mary Anne. — Você dirige. Bem devagar, como quiser. — Sr. ... Taverner — disse ela. — Quero apenas ficar sozinha. — Não, você não deve ficar sozinha. Isto está matando você, está solapando você. O tempo todo, todos os dias, você deveria estar junto com outras pessoas. Silêncio. Mary Anne disse então: — O correio fica na esquina da rua 49 com a Fulton. Você poderia dirigir? Estou um pouco nervosa. Aquilo pareceu a ele uma grande vitória moral; ficou satisfeito. Pegou novamente a chave e logo estavam a caminho da 49 com a Fulton. 22 Mais tarde sentaram-se numa mesinha do café, um lugar limpo e atraente com garçonetes jovens e uma freguesia bastante moderna. O juke-box tocava Lembranças do seu Nariz, de Louis Panda. Jason pediu apenas café; a Srta. Dominic quis salada de frutas e chá gelado. — Que discos são esses que você está levando? — ela perguntou. Ele passou os dois para ela. — Ora, são discos seus. Se é que é você o Jason Taverner. É você? — Sim.— Pelo menos disso ele tinha certeza. Acho que nunca ouvi você cantar — disse ela. — Gostaria muito, mas não costumo gostar de música pop gosto dos bons cantores folk do passado, como Buffy St. Marie. Ninguém canta tão bem como Buffy. — Concordo — disse ele, sombrio, com a mente ainda voltada para a casa, o banheiro, a fuga do frenético guarda de uniforme marrom. “Não foi a mescalina”, pensou mais uma vez. “Porque o guarda também vira.” “Ou vira alguma coisa. ” — Talvez ele não viu o que eu vi — disse em voz alta. Talvez ele apenas a viu ali deitada. Talvez ela tivesse caído talvez.... “Talvez eu deva voltar lá”, pensou. — Quem não viu o quê? — perguntou Mary Ann, e logo seu rosto ficou de um vermelho escarlate. — Não tive intenção de me intrometer na sua vida; você disse que está em apuros e estou vendo que está com algo muito pesado na cabeça, algo que o está obcecando. Tenho que ter certeza do que de fato aconteceu. Tudo está lá naquela casa. “E nesses discos”, pensou. “Alys Buckman sabia do meu programa de tevê. Sabia dos meus discos. Sabia qual deles foi o maior sucesso; possuía esse disco. Mas...” Não havia música nos discos. Que diabo, mesmo com a agulha estragada algum som, mesmo que distorcido, deveria ter saído. Tinha muita familiaridade com discos e toca-discos para não saber disso. — Você é genioso — disse Mary Anne. Tirou um par de óculos de sua bolsinha de pano e pôs-se a ler laboriosamente as informações biográficas na capa dos discos. — O que aconteceu comigo — disse Jason, sem se estender no assunto — me tornou uma pessoa geniosa. — Diz aqui que você tem um programa de tevê. — Certo. Terça-feira às nove da noite. Na NBC. — Então você é famoso. E eu aqui sentada, conversando com uma pessoa famosa que eu deveria conhecer. Como você se sente... com o fato de que não o reconheci quando você me disse seu nome? Ele deu de ombros. Ironicamente, aquilo o divertia. Será que esse juke-box daqui tem alguma canção sua? — Ela indicou a máquina multicolorida, em estilo Gótico Babilônico, no canto oposto do café. — Talvez — disse ele. Era uma boa pergunta. — Vou ver. — A Srta. Dominic pescou uma moeda do bolso e atravessou o salão para verificar a lista de títulos e intérpretes na vitrola automática. “Quando ela voltar, vai estar menos impressionada comigo”, refletiu Jason. Sabia que efeito tinha uma omissão; a menos que ele se manifestasse em toda a parte, que estivesse em todos os rádios, aparelhos de som, vitrolas automáticas, lojas de discos e telas de tevê do universo, a mágica se desfazia. Ela voltou sorrindo. — Nada em Lugar Nenhum — disse ela, sentando-se. Ele notou que já não estava com a moeda na mão. — Deve ser a próxima a tocar. No mesmo instante ele se levantou e atravessou o café até a juke-box. Ela tinha razão. Era a música B4 — seu sucesso mais recente, Nada em Lugar Nenhum, uma canção sentimental. E já o mecanismo da vitrola automática começava a processar o disco. Dali a um momento sua voz, adoçada por pontos quadrifônicos e câmaras de eco, enchia o café. Atordoado, voltou à mesa. — Sua voz é super maravilhosa — disse Mary Anne quando a música terminou. Talvez por educação, considerando-se seu gosto musical. — Obrigado. — Era ele mesmo, sem dúvida. Os sulcos desse disco não estavam em branco. — Você é demais mesmo — disse Mary Anne com entusiasmo, dando um sorriso brilhante. Jason disse com simplicidade. — Estou no ramo há muito tempo. — Ela parecera sincera em seu elogio. — Você se sente mal por não ter ouvido falar de você? — Não. — Ele abanou a cabeça, ainda atordoado. Com certeza não era só ela que não tinha ouvido falar dele, como mostravam os acontecimentos dos últimos dois dias. “Dois dias? Só isso?” — Posso... pedir mais alguma coisa? — perguntou Mary Anne, hesitante. — Gastei todo meu dinheiro em selos; eu... — Pode deixar, eu pago a conta — disse Jason. — Como você acha que deve estar o bolo de morangos? — Excelente — disse ele; por um momento ela o divertia. A sinceridade da mulher, suas ansiedades... “Será que ela tem algum namorado? ”, perguntou-se. Provavelmente não... Vivia num mundo de vasos, argila, papel de embrulho marrom, problemas com seu velho flipflap Greyhound; como pano de fundo, a voz apenas em estéreo dos bambas do passado: Judy Collins e Joan Baez. — Já ouviu Heather Hart? — perguntou ele. Com delicadeza. Ela franziu a testa. — Não... não me lembro bem. Ela canta folk ou... — Sua voz foi sumindo; parecia ter-se entristecido. Como se sentisse que estava falhando, que não era o que deveria ser, que não sabia o que qualquer pessoa razoável sabia. Jason sentiu simpatia por ela. — Baladas — disse Jason. — Como as que canto. — Poderíamos ouvir seu disco outra vez? Obsequioso, Jason voltou à vitrola automática e programou-a para tocar seu disco de novo. Desta vez Mary Anne não pareceu estar gostando. — Qual é o problema? — ele perguntou. — Bem... Eu sempre digo para mim mesma que sou criativa; faço cerâmica e gosto disso. Mas não sei se meus trabalhos são realmente bons. As pessoas me falam que... — As pessoas falam de tudo para a gente. Umas dizem que o trabalho da gente não tem valor; outras, que é inestimável. Tanto o pior como o melhor. A gente está sempre atingindo alguém que está aqui — deu uma pancadinha no saleiro — e não atingindo alguém que está ali bateu na taça de salada de frutas. — Mas tem que haver um jeito... — Há os especialistas. Pode-se ouvir o que eles dizem, suas teorias. Eles sempre têm teorias. Escrevem longos artigos e discutem o trabalho da gente desde o primeiro disco, de 19 anos atrás. Comparam gravações que a gente nem se lembra mais de ter feito. E os críticos de tevê... — Mas ser notado... — De novo os olhos dela brilharam por um instante. — Desculpe — ele disse, levantando-se. Não conseguia esperar mais. — Tenho que dar um telefonema. Espero estar de volta. Se não voltar — ele pôs a mão no ombro dela, tocando o suéter branco de tricô provavelmente feito por ela mesma — foi bom conhecêla. Intrigada, ela ficou olhando com seu jeito dócil e obediente enquanto ele abria caminho pelo café lotado de gente até o telefone nos fundos. Fechado na cabine telefônica, achou o número da Academia de Polícia de Los Angeles na lista dos números de emergência, colocou uma moeda e discou. — Gostaria de falar com o general de Polícia Felix Buckman — disse e, sem surpresa, notou que sua voz tremia. “Psicologicamente já foi a conta”, pensou. “Tudo que já aconteceu... até esse disco na juke-box é demais para a cabeça. Estou pura e simplesmente com medo. E desorientado. Então talvez o efeito da mescalina ainda não passou. Mas consegui dirigir sem problema o flip flap zinho; isso indica alguma coisa. Merda de droga. A gente sempre sabe quando bateu, mas não quando passou o efeito, se é que passa. Prejudica a gente para sempre, ou é isso que a gente sente; não se pode ter certeza. Talvez nunca passe. E eles falam: ‘Ei, cara, teu miolo já queimou’, e a gente fala ‘É, pode ser’. Não se pode ter certeza que sim nem que não. E tudo porque você tomou um comprimido, ou um comprimido a mais, que alguém te deu dizendo “Ei, cara, esse aqui vai te dar uma bela viagem...” — Aqui fala a Srta. Beason — disse uma voz feminina em seu ouvido. — Assistente do Sr. Buckman. Posso ajudá-lo? — Peggy Beason — disse ele. Respirou bem fundo e disse: — Aqui fala Jason Taverner. — Ah, sim, Sr. Taverner. O que o senhor deseja? Esqueceu algo aqui? — Quero falar com o general Buckman... — Sinto muito, mas o Sr. Buckman... — É um assunto relacionado a Alys. Silêncio. E em seguida: — Um momentinho, por favor, Sr. Taverner. Vou falar com o Sr. Buckman e ver se ele pode atendê-lo. Ouviu um clique. Uma pausa. Silêncio. E outra voz: — Sr. Taverner? — não era o general Buckman. — Aqui é Herbert Maime, chefe de pessoal do Sr. Buckman. Pelo que entendi, o senhor disse à Srta. Beason que seu assunto se relaciona com a irmã do Sr. Buckman, a Srta Alys Buckman. Com franqueza, gostaria de lhe perguntar quais, exatamente, foram as circunstâncias que lhe permitiram vir a conhecer a Srta. ... Jason desligou o telefone. E voltou às cegas para sua mesa, onde Mary Anne Dominic comia seu bolo de morango. — Então você voltou! — disse ela, alegre. — Que tal o bolo? — Um pouco cremoso demais. — E acrescentou: — Mas gostoso. Taciturno, Jason tornou a sentar-se. Bem, tinha feito o possível para falar com Felix Buckman. Para lhe contar sobre Alys. Mas afinal o que poderia lhe ter dito? A futilidade de tudo, a perpétua impotência de seus esforços e intenções... “ainda mais enfraquecidos”, pensou, “pelo que ela me deu, aquele comprimido de mescalina.” Se é que era mescalina. Isso abria uma nova possibilidade. Ele não tinha nenhuma prova de que Alys de fato lhe dera mescalina. Podia ter sido qualquer outra coisa. Por exemplo, o que tinha a ver mescalina com a Suíça? Isso não fazia sentido; dava ideia de algo sintético, não orgânico; era um produto de laboratório. Talvez uma nova droga da moda, com múltiplos ingredientes. Ou algo roubado dos laboratórios da polícia. O disco com o Nada em Lugar Nenhum. E se a droga o tivesse feito ouvir aquela canção? E vê-la na lista do juke— box? Mas Mary Anne Dominic também o tinha ouvido; aliás, o tinha descoberto. Mas e os dois discos em branco? O que dizer deles? Enquanto refletia, um adolescente de jeans e camiseta aproximou-se e murmurou: — Ei, o Sr. é o Jason Taverner, não é? — Estendeu— lhe uma caneta esferográfica e um pedaço de papel. — Pode me dar seu autógrafo? Atrás dele uma bonita adolescente ruiva, de shorts branco e sem sutiã, sorriu entusiasmada e disse: — Nós sempre assistimos a seu show da terça à noite. O senhor é fantástico! E pessoalmente o senhor parece direitinho como na televisão, só que ao vivo o senhor é mais, sabe como, mais queimado de sol. — Seus seios balançavam convidativos. Embotado, movido pelo hábito, Jason assinou seu nome. — Obrigado, pessoal — disse a eles. Já havia quatro agora. Tagarelando, os quatro jovens foram embora. Agora as pessoas das mesas próximas olhavam para Jason interessadas e cochichavam entre si. “Como sempre”, pensou ele. “É assim que as coisas foram até outro dia. Minha realidade está se impregnando de volta. ” Sentiu uma felicidade violenta, incontrolável. Era isso que ele conhecia; esse era o seu estilo de vida. Perdera-o por pouco tempo mas agora, finalmente, pensou, “estou começando a recuperá-lo! ”. Heather Hart. “Agora posso ligar para ela. E conseguir falar com ela. Ela não vai pensar que sou um fanzoca de merda. ” “Talvez eu só exista enquanto tomo a droga. Aquela droga, soja lá qual for, que Alys me deu. ” “Nesse caso minha carreira, os vinte anos inteiros, não passa de uma alucinação retroativa criada pela droga. ” “O que aconteceu”, pensou Jason Taverner, “é que o efeito da droga passou. Ela — ou alguém — parou de me dar a droga e acordei para a realidade, lá naquele quartinho de hotel fuleiro, com o espelho rachado e o colchão cheio de percevejos. E fiquei desse jeito até agora, quando Alys me deu outra dose. ” “Não admira que ela me conheça, conheça meu show de terça-feira na tevê. Por meio da droga ela criou tudo isso. E aqueles dois discos — são acessórios que ela usa para reforçar a alucinação. ” “Jesus Cristo, será isso mesmo? ” “Mas e o dinheiro que estava comigo quando acordei no hotel, todo aquele maço de notas. ” Automaticamente levou a mão ao bolso do casaco, sentindo a existência palpável das notas, que ainda estavam lá. “Se na vida real eu passava meus dias em hotéis pulguentos do bairro de Watts, onde consegui esse dinheiro? ” “E nesse caso eu estaria fichado no arquivo da polícia, e em todos os bancos de dados do mundo inteiro. Não estaria classificado como um famoso comunicador, mas estaria registrado lá como um vagabundo maltrapilho que nunca chegou a nada, cujos únicos prazeres vinham de um vidro de comprimidos. Deus sabe por quanto tempo. Posso estar tomando essa droga há anos. ” “Alys”, lembrou-se, “disse que eu já havia estado naquela casa. ” “E pelo jeito é verdade. Para tomar minha dose de droga. ” “Talvez eu seja apenas um entre muitíssimas pessoas que levam uma vida sintética de popularidade, dinheiro, poder, através de pílulas. Enquanto vivem, na realidade, em quartos de hotel vagabundos, infestados de ratos. Na rua da amargura. Jogados para as traças, os joão-ninguém. Não valem um tostão furado. Mas, enquanto isso, sonham”. — Puxa, você deve estar pensando em coisas importantíssimas — disse Mary Anne. Tinha terminado seu bolo; parecia saciada agora. E feliz. — Escute — disse ele, com a voz mal passando pela garganta. — O meu disco está mesmo nesse juke box. Ela abriu bem os olhos, tentando compreender: — Como assim? Nós ouvimos o disco. E aquele negocinho onde tem os nomes dos discos, está lá. Os juke-box nunca erram. Ele pescou do bolso uma moeda. — Ponha para tocar de novo. Ponha para tocar três vezes seguidas. Obediente, ela levantou e foi até a vitrola, seu lindo cabelo longo batendo contra os largos ombros. E então ele ouviu sua canção, seu maior sucesso. E as pessoas nas mesas e no balcão sorriam e acenavam com a cabeça, reconhecendo-o; sabiam que era ele quem estava cantando. Seu público. Quando a canção terminou, alguns clientes do café o aplaudiram. Ele automaticamente respondeu com um largo sorriso profissional, retribuindolhes o reconhecimento e a aprovação. — Está lá — disse ele, quando a canção começou a tocar de novo. Cerrou o punho com violência e bateu na mesa que o separava de Mary Anne. — Que diabos, está lá. Por alguma nuance de um profundo e intuitivo desejo feminino de ajudá-lo, Mary Anne disse: — E estou aqui também. — Não estou num hotel vagabundo, deitado numa cama e sonhando — disse ele em voz rouca. — Não, não está. — A voz dela era terna, ansiosa. Era claro que se preocupava por ele. Via como estava agitado. — Sou real de novo. Mas se isso aconteceu uma vez, por dois dias... — “Se podia ir e vir assim, aparecer e desaparecer...” — Talvez seja melhor nós irmos embora — disse ela, apreensiva. Isto clareou as ideias dele. — Desculpe — disse, tentando tranquilizá-la. — Só estou querendo dizer que as pessoas estão ouvindo. — Isso não vai lhes fazer mal ele disse. — Deixe que elas ouçam; que vejam como uma pessoa carrega consigo seus problemas e preocupações, mesmo sendo um artista mundialmente famoso. — Mesmo assim ele se levantou. — Aonde você quer ir? — perguntou. — Para o seu apartamento? Isso significava voltar atrás, mas ele se sentia otimista o bastante para arriscar. — Meu apartamento? — ela vacilou. — Você acha que eu lhe faria algum mal? Por um lapso de tempo ela ficou ali sentada, refletindo nervosamente. — N...não — disse por fim. — Você tem um toca-discos? — perguntou ele. — No seu apartamento? — Sim, mas não é muito bom; é só estéreo. Mas funciona. — Está bem — ele disse, levando-a pelo corredor até a caixa registradora. — Vamos. 23 Mary Anne Dominic fizera sozinha a decoração das paredes e do teto do seu apartamento. Lindas cores, fortes e intensas; ele olhou à volta, bem impressionado. E os poucos objetos de arte na sala eram de uma poderosa beleza. Peças de cerâmica. Jason pegou na mão um lindo vaso azul vitrificado e o estudou com cuidado. — Fui eu quem fez — disse Mary Anne. — Este vaso — ele disse — será apresentado no meu show. Mary Anne o olhou maravilhada. — Vou levar este vaso para o meu show logo mais. Aliás — ele já visualizava — será um número com uma grande produção; vou sair do vaso cantando, como se fosse o gênio da lâmpada mágica. — Segurou o objeto bem alto, girando-o na mão. — Nada em Lugar Nenhum, e sua carreira está lançada. — Talvez fosse melhor você segurálo com as duas mãos — disse Mary Anne, apreensiva. Nada em Lugar Nenhum, a canção que nos trouxe mais popularidade... — O vaso escorregou das suas mãos e caiu no chão. Mary Anne pulou para alcançá-lo, mas tarde demais. O vaso quebrou-se em três pedaços, que caíram no chão ao lado dos sapatos de Jason, pedaços irregulares com as bordas ásperas, já sem qualquer mérito artístico. Houve um longo silêncio. — Acho que dá para consertar — disse Mary Anne. Ele não conseguia pensar em nada para dizer. — A coisa mais constrangedora que já me aconteceu disse Mary Anne — foi uma vez com a minha mãe. Sabe, minha mãe tinha uma doença crônica dos rins chamada mal de Bright; quando Eu era criança ela vivia indo para o hospital para se tratar disso, e no meio de qualquer conversa ela sempre enfiava esse assunto, que ia morrer daquilo e eu iria sentir muito — como se fosse culpa minha. E eu acreditava mesmo que ela ia morrer daquilo. Mas depois cresci, saí de casa e ela não morreu. E eu meio que me esqueci dela; tinha minha própria vida e minhas coisas para fazer. Assim, naturalmente esqueci daquela porcaria de doença dos rins que ela tinha. Aí um dia ela veio me visitar, não aqui mas no outro apartamento que eu tinha antes deste, e começou a me encher a paciência, se queixando das suas dores, falando sem parar da doença, até que finalmente eu disse: “Tenho que fazer as compras para o jantar”, e fui saindo para o mercado. Minha mãe foi mancando atrás de mim e no caminho me deu a notícia de que agora os dois rins dela estavam tão mal que teriam que ser removidos, e ela iria fazer uma operação etc. etc., e iam tentar instalar um rim artificial nela, mas que provavelmente não ia dar certo. Então ela estava me contando tudo isso, que agora o negócio tinha chegado mesmo; ela ia mesmo morrer, como sempre tinha dito... E de repente vi que estava no supermercado, no balcão de carne, e um funcionário muito bonitinho de quem eu gostava já estava vindo me cumprimentar, e perguntou: “O que a senhora vai querer hoje?” e eu disse: “Quero uma torta de rim para o jantar”. Foi tão constrangedor! “Uma torta de rim bem grande”, eu disse, “bem macia, gostosa e suculenta”. Ele perguntou: “Para quantas pessoas? ”. Minha mãe só olhava para mim, com um olhar terrível. Eu não sabia mesmo como sair daquela, depois que já estava nela. Finalmente acabei comprando uma torta de rim, mas na seção dos importados; vinha numa lata fechada, da Inglaterra. Acho que custou quatro dólares. Estava muito gostosa. — Pago pelo vaso — disse Jason. — Quanto você quer por ele? Ela respondeu hesitante: — Bem, tem o preço por atacado, que cobro das lojas. Mas de você tenho que cobrar o preço do varejo, porque você não tem registro de atacadista, então... Ele tirou o dinheiro do bolso. — Varejo — disse. — Vinte dólares. — Posso introduzir você de outra maneira — ele disse. — Só precisamos de um bom ângulo. Que tal este: podemos mostrar ao público um vaso inestimável da antiguidade, digamos um vaso chinês do século V, e chega um especialista de um museu, uniformizado, e garante a autenticidade da peça. E aí você aparece com seu torno de ceramista e faz um vaso diante do público, e nós vamos mostrar que o seu vaso é melhor. — Não poderia ser melhor. A cerâmica da China antiga é... — Vamos mostrar a eles; vamos fazer com que acreditem. Conheço meu público. Aquelas trinta milhões de pessoas seguem minhas reações; vai haver um close do meu rosto, mostrando minha expressão. Em voz baixa, Mary Anne disse: — Não posso subir lá no palco com todas aquelas câmaras de tevê apontadas para mim. Sou tão... gorda. As pessoas dariam risada de mim. — A publicidade que você vai conseguir. As vendas. Os museus e as lojas vão saber o seu nome, vão conhecer seu trabalho, vão chover compradores. Mary Anne disse baixinho: — Me deixe em paz, por favor. Sou muito feliz assim. Sei que sou uma boa ceramista; sei que as lojas, as boas lojas, gostam do que faço. Será que tudo tem que ser feito em grande escala, com milhares de extras? Não posso levar minha vidinha do jeito que quero? Cravou os olhos nele, a voz quase inaudível: — Não vejo o que toda a publicidade e a fama fizeram por você. Lá no café você me perguntou se o disco estava mesmo na vitrola. Você estava com medo de que não estivesse; estava muito mais inseguro do que jamais me senti. — Falando nisso — disse Jason — gostaria de tocar esses dois discos na sua vitrola. Antes de ir embora. — É melhor eu mesma colocar — disse Mary Anne. — Meu aparelho de som é meio complicado. — Pegou os dois discos e os vinte dólares; Jason ficou onde estava, junto aos pedaços do vaso quebrado. Esperou até ouvir uma música bem conhecida. Seu álbum de maior sucesso. Os sulcos do disco não estavam mais em branco. — Pode ficar com esses discos — ele disse. — Eu já vou embora. — “Agora”, pensou, “não preciso mais deles; provavelmente posso comprá-los em qualquer loja de discos. — Não é o tipo de música de que gosto... Acho que não vou ouvi-los muitas vezes. — Vou deixá-los mesmo assim — disse ele. — Pelos seus vinte dólares vou lhe dar outro vaso. Um momento. — Saiu da sala; Jason ouviu ruídos de papel amassado e muita atividade. Logo ela voltou trazendo outro vaso azul vitrificado. Este era ainda melhor; Jason teve a intuição de que ela o considerava uma de suas peças mais finas. — Obrigado. — Vou embrulhá-lo e colocá-lo numa caixa para não se quebrar como o outro. Passou a fazer isso, trabalhando com cuidado e intensidade febril. — Acho muito emocionante — disse, passando a ele a caixa embrulhada ter almoçado com um homem famoso. Fico satisfeitíssima por tê-lo conhecido e vou me lembrar disso por muito tempo. E espero que seus problemas passem, isto é, espero que aquilo que o está preocupando acabe se resolvendo. — Jason Taverner tirou do bolso interno do paletó o porta-cartões com suas iniciais em ouro; tirou dele um de seus cartões coloridos em alto-relevo e o deu a Mary Anne. — Telefone para mim no estúdio quando quiser. Se você mudar de ideia e resolver aparecer no programa, tenho certeza de que podemos encaixá-la. Aliás, este é meu telefone particular. — Até logo — disse ela, abrindo-lhe a porta. — Até logo. — Ele fez uma pausa, querendo dizer mais alguma coisa. Mas não havia nada mais a dizer. — — Nós falhamos — disse então. — Fracassamos redondamente. Nós dois. Ela piscou, surpresa: — Como assim? — Cuide-se bem — disse ele, e deixando o apartamento saiu para a calçada, no meio da tarde. No sol quente em pleno dia. 24 Ajoelhando-se ao lado do corpo de Alys Buckman, o médico legista disse: — Nesse momento só posso dizer que ela morreu de uma dose excessiva de uma droga tóxica ou semitóxica. Só daqui a vinte e quatro horas poderemos precisar que droga foi. Felix Buckman disse: —Isso tinha que acontecer. Algum dia. — Surpreendentemente, não sentia grande coisa. Na verdade de certa forma sentiu um profundo alívio ao saber pelo seu guarda, Tim Chancer, que Alys fora encontrada morta no banheiro do segundo andar da casa. — Achei que aquele tal de Taverner tinha feito alguma coisa para ela — Chancer repetia muitas vezes, tentando chamar a atenção de Buckman. — ele estava agindo de modo estranho; eu sabia que havia algo de errado. Dei dois tiros, mas ele escapou. Acho que foi bom não ter acertado ele, se ele não for responsável. Ou talvez ele se sentiu culpado porque a forçou a tomar a droga; será isso? — Ninguém precisava forçar Alys a tomar uma droga disse Buckman sem cerimônia. Saiu do banheiro e foi até o saguão. Dois tiras em uniforme cinzento estavam em posição de sentido, esperando ordens. “Ela não precisava que Taverner nem ninguém lhe aplicasse droga nenhuma. ” Sentia-se agora fisicamente doente. “Meu Deus”, pensou. “Que efeito isso vai ter sobre Barney? ” Essa era a pior parte. Por motivos que lhe eram obscuros, seu filho adorava a mãe. “Bem”, pensou Buckman, “gosto não se discute. ” — Mas mesmo assim ele — ele próprio — a amava. “Ela tinha uma poderosa qualidade”, pensou. “Vou sentir falta daquilo. Ela tomava um bocado de espaço. ” E uma boa parte da sua vida. Para o pior e para o melhor. Pálido, Herb Maime subiu a escada de dois em dois degraus, fixando os olhos em Buckman. — Vim o mais rápido que pude — disse Herb, estendendo a mão a Buckman, que a apertou. — O que foi? — perguntou. — Uma overdose de alguma coisa? — Parece que sim — disse Buckman. — Recebi um telefonema de Taverner hoje cedo — disse Herb. — Ele queria falar com você; disse que era algo relacionado a Alys. — Queria me avisar da morte de Alys. Ele estava aqui na ocasião. — Por quê? Como ele a conhecia? — Não sei — disse Buckman. Mas naquele momento não lhe importava muito. Não via razão para acusar Taverner... Considerando-se o temperamento e os hábitos de Alys, ela provavelmente o induzira a vir até a casa. Talvez quando Taverner saía da Academia ela o apanhara e o arrastara até ali em seu mosquinha desengonçado. Até a casa. Afinal, Taverner era um tipo seis. E Alys gostava dos tipo seis. Tanto homens como mulheres. Especialmente mulheres. — Talvez estivessem tendo uma orgia disse Buckman. — Só os dois? Ou está querendo dizer que havia outras pessoas aqui? — Ninguém mais esteve aqui. Chancer teria notado. Podem ter tido uma orgia telefônica; é isso que quis dizer. Quantas vezes ela esteve à beira de esturricar o cérebro com essas malditas orgias telefônicas. Como gostaria que nós conseguíssemos localizar os novos patrocinadores, os que assumiram depois que matamos Bil, Carol, Fred e Jill. Esses degenerados. — Com as mãos tremendo, acendeu outro cigarro e pôs-se a fumar rapidamente. — Isso me lembra algo que Alys disse uma vez, e que foi engraçado sem querer. Estava falando que queria fazer uma orgia e se perguntando se deveria enviar convites formais. “É melhor eu mandar”, ela disse, “senão eles não vão vir todos ao mesmo tempo.” Buckman riu. — Você já me contou isso — disse Herb. — Ela está morta mesmo. Fria e dura. — Buckman esmagou o cigarro num cinzeiro. — Minha mulher — disse para Herb Maime. — Ela era minha mulher. Com um movimento de cabeça Herb indicou os dois tiras de cinza que aguardavam ordens. — E daí? — disse Buckman. — Será que eles não leram o livreto de As Valquírias? Tremendo, acendeu outro cigarro. — Sigmund e Siglinde. Schwester und Braut: Irmã e esposa. E para o inferno com Hunding. — Deixou cair o cigarro no carpete; ficou parado olhando o cigarro fumegar, pondo fogo no tecido de lã. Apagou-o então com o salto da bota. — Você deveria se sentar disse Herb. — Ou deitar, está com uma aparência terrível. — É uma coisa terrível — disse Buckman. — É mesmo. Não gostava de muitas coisas nela, mas puxa, como ela era vital. Estava sempre experimentando coisas novas. Foi isso que a matou, provavelmente alguma nova droga que ela e suas amigas bruxas fabricavam naquela merda daqueles laboratórios de porão. Alguma coisa contendo líquido, revelador de filmes, ou Drano, ou algo pior ainda. — Acho que devemos falar com Taverner — disse Herb. — Está bem. Chame-o aqui. Ele está com o microtrans embutido, não está. — É claro que não. Todos os percevejos que pusemos nele antes de sair da Academia pararam de funcionar. Exceto, talvez, a microbomba. Mas não temos motivo para ativá-la. — Taverner é um filho da mãe muito esperto — disse Buckman. — Ou então conseguiu ajuda. De alguém, ou de várias pessoas com quem está trabalhando. Não se dê ao trabalho de tentar detonar a microbomba; sem dúvida já deve ter sido retirada da pele dele por algum colega obsequioso. “Ou por Alys”, conjeturou. “Minha irmãzinha prestativa. Sempre disposta a ajudar a polícia. Que boazinha!” — É bom você sair um pouco aqui da casa — disse Herb. — Enquanto os legistas trabalham. — Me leve de volta para a Academia — disse Buckman. — Acho que não consigo dirigir; estou tremendo muito. — Sentiu alguma coisa no rosto; tocou o queixo com a mão e viu que estava molhado. — O que é isso no meu rosto? — perguntou, espantado. — Você está chorando — disse Herb. — Me leve de volta para a Academia. Vou dar uma olhada no que tenho para fazer e passar tudo para você — disse Buckman. — Depois quero voltar para cá. — “Talvez Taverner tenha mesmo lhe dado alguma coisa”, pensou. “Mas Taverner não é nada. Foi ela mesma. Mas mesmo assim...”. — Vamos, venha — disse Herb, tomando-o pelo braço e levando-o para a escada. Descendo os degraus, Buckman disse: — Nunca nessa merda de vida você iria imaginar que um dia ia me ver chorando. — Nunca — disse Herb. — Mas é compreensível. Você e ela eram muito próximos. — Próximos é pouco — disse Buckman com repentina violência. — Raios a partam! Eu disse a ela que no fim isso ia acabar acontecendo. Os amigos dela prepararam a droga e a fizeram de cobaia. — Não vá trabalhar muito no escritório — disse Herb, enquanto atravessavam a sala e saíam para o gramado, onde seus dois mosquinhas estavam estacionados. — Só dê uma olhada no que for passar para mim. — É isso mesmo que falei! — disse Buckman. — Ninguém escuta o que falo, caramba! Herb deu-lhe uma palmada no ombro sem dizer nada; os dois caminharam pelo gramado em silêncio. Voltando para a Academia, Herb, ao volante, disse: Tem cigarros no bolso do meu paletó. — Foi a primeira frase pronunciada desde que entraram no mosquinha. — Obrigado — disse Buckman. Já tinha consumido sua ração semanal de cigarros. — Quero discutir um assunto com você — disse Herb. — Gostaria de deixar para mais tarde, mas é impossível. — Não dá para esperar até que a gente chegue ao escritório? — Pode haver outros oficiais graduados quando chegarmos lá. Ou mesmo outras pessoas quaisquer, meus funcionários, por exemplo. — Nada que tenho a dizer é... — Escute — disse Herb. — A respeito de Alys. A respeito do seu casamento com ela. Sua irmã. — Meu incesto — disse Buckman, brusco. — Alguns marechais talvez saibam disso. Alys contou a muita gente. Sabe como ela era a respeito disso. — Tinha orgulho disso disse Buckman, acendendo um cigarro com dificuldade. Ainda não tinha-se recuperado do choque de ter-se flagrado chorando. “Eu devia gostar muito dela”, pensou, “E me parecia que tudo que sentia era medo e aversão. E atração sexual. Quantas vezes falamos sobre isso antes de fazer a coisa. Todos aqueles anos.” — Nunca contei a ninguém, exceto a você — disse a Herb. Mas Alys contou. — Está certo. Digamos que possivelmente alguns marechais saibam do caso, e também o Diretor, se é que se importa com isso. — Os marechais que são contra você — disse Herb — e que sabem do... — hesitou um pouco — do incesto, dirão que ela cometeu suicídio. De vergonha. Pode esperar por isso. E vão deixar isso vazar para os meios de comunicação. — Você acha? — disse Buckman. “Sim”, pensou, "isso daria uma boa história.” O casamento de um general de Polícia com sua irmã, abençoados com um filho secreto escondido na Flórida. O general e sua irmã posando como marido e mulher na Flórida, enquanto estão com o garoto. — E o garoto: portador de uma herança genética degenerada. — O que quero que você compreenda — disse Herb — e sinto muito mas você vai ter que pensar no caso agora, que não é o momento ideal pois a Alys acaba de morrer e... — O médico-legista é nosso — disse Buckman. — Temos ele nas mãos, lá na Academia. — Não compreendia onde Herb queria chegar. — Ele vai dizer que foi uma overdose de uma droga semitóxica, como já nos disse. — Mas ingerida deliberadamente — disse Herb. — Uma dose suicida. — O que você quer que eu faça? — Obrigue-o, ordene a ele que dê um veredicto de assassinato. Foi então que compreendeu. Mais tarde, depois que superasse parte da sua dor, teria pensado naquilo ele mesmo. Mas Herb Maime tinha razão: era necessário tratar daquele assunto agora mesmo. Antes que chegassem de volta à Academia e encontrassem seus funcionários. — Então poderemos dizer — falou Herb — que... — Que elementos da alta hierarquia da polícia — disse Buckman, tenso — hostis à minha política em relação aos campos de trabalhos e às universidades se vingaram de mim assassinando minha irmã. — Seu sangue gelava ao ver-se já pensando nessas coisas. Mas... — Algo do gênero — disse Herb. — Não vamos citar nome de ninguém. De nenhum marechal, quer dizer. Apenas vamos sugerir que eles contrataram alguém para fazer o serviço. Ou mandaram algum oficial mais novo, ansioso por uma promoção. Não concorda que tenho razão? E precisamos agir rápido; temos que declarar isso imediatamente. Assim que chegarmos à Academia você deve mandar um memorando para o Diretor e todos os marechais com uma declaração desse teor. “Tenho que transformar uma terrível tragédia pessoal numa vantagem”, Buckman percebeu. “Capitalizar a morte acidental de minha própria irmã. Se é que foi acidental. ” — Talvez isso tudo seja verdade — disse. Talvez o marechal Holbein, por exemplo, que o odiava intensamente, tivesse tramado tudo. — Não — disse Herb. — Não é verdade. Mas abra um inquérito. E você tem que achar alguém para acusar; deve haver um julgamento. — Sim — concordou Buckman, sem vontade. Um julgamento com todos os detalhes. Terminando por uma execução, com muitas menções nos noticiários de que “altas autoridades” estavam envolvidas no caso, mas não podiam ser indiciadas em virtude de seus altos postos. E o Diretor, esperava-se, lamentaria oficialmente a tragédia, expressando seu desejo de que o culpado fosse encontrado e punido. — Sinto ter que trazer este assunto à baila tão cedo — disse Herb — mas eles já rebaixaram você de marechal para general; se a história do incesto for divulgada poderão forçá-lo a entrar na reserva. É claro que, mesmo se nós tomarmos a iniciativa, eles poderão divulgar a história do incesto. Esperemos que você tenha uma boa cobertura. — Fiz todo o possível — disse Buckman. — Quem poderemos acusar? — perguntou Herb. — O marechal Holbein e o marechal Ackers. — Buckman os odiava tanto quanto eles o odiavam; cinco anos antes os dois marechais haviam mandado matar mais de dez mil estudantes na Universidade de Stanford, a atrocidade mais sangrenta e desnecessária daquela pior das atrocidades que foi a Segunda Guerra Civil. — Não me refiro a quem planejou a coisa. Isso é óbvio; como você disse, Holbein, Ackers e seu grupo. Estou me referindo a quem de fato injetou a droga em Alys. — A arraia miúda — disse Buckman. — Algum prisioneiro político de um campo de trabalhos forçados. — Na verdade não importava. Serviria qualquer dos milhares de prisioneiros dos campos, ou qualquer estudante de uma comuna em extinção. — Diria que é melhor acusar alguém situado mais em cima — disse Herb. — Por quê? — Buckman não acompanhou seu raciocínio. — É assim que sempre se faz; o aparelho burocrático sempre pega alguém desconhecido, sem importância... — Diga que foi algum dos amigos dela. Alguém que poderia ter sido seu igual. Aliás, pegue alguém bem conhecido. Melhor ainda, pegue alguém da área artística aqui da região; ela era uma Papa-Celebridades. — Por que alguém importante? — Para fazer uma ligação de Holbein e Ackers com aqueles degenerados com quem ela andava, que faziam as orgias telefônicas. Herb parecia agora zangado de verdade; Buckman o olhou espantado. — Aqueles que realmente a mataram. Seus amigos de culto. Pegue alguém na mais alta posição possível. Aí sim você terá algo bem quente para jogar em cima dos marechais. Pense no escândalo que isso vai dar. Holbein participando da rede telefônica! Buckman apagou seu cigarro e acendeu outro. Enquanto isso, refletia. “O que tenho que fazer é armar um escândalo maior ainda que o deles. Minha história tem que ser ainda mais chocante do que a deles.” Teria que ser uma história e tanto. 25 Em seu escritório na Academia de Polícia de Los Angeles, Felix Buckman repassava os documentos, cartas e memorandos em sua mesa, separando mecanicamente os que exigiam a atenção de Herb Maime e descartando os que podiam esperar. Trabalhava depressa, sem interesse genuíno. Enquanto examinava os papeis, Herb, em seu próprio escritório, começava a redigir a primeira declaração extra-oficial que Buckman iria divulgar a respeito da morte de sua irmã. Ambos terminaram rapidamente suas tarefas e encontraram-se no escritório onde Buckman exercia suas atividades mais importantes. Sentado em sua enorme escrivaninha de carvalho, Buckman leu o rascunho de Herb. — Precisamos mesmo fazer isso? — perguntou, ao terminar de ler. — Sim — disse Herb. — Se você não estivesse tão atordoado com os acontecimentos, seria o primeiro a reconhecer. É exatamente porque consegue enxergar com clareza coisas desse tipo que você ainda está no topo da hierarquia; se não tivesse essa capacidade eles o teriam rebaixado a instrutor da Escola de Polícia anos atrás. — Se é assim, solte o relatório — disse Buckman. — Espere fez sinal a Herb para que voltasse. — Você menciona o médico legista. O pessoal dos meios de comunicação não vai saber que a autópsia não poderia ter sido feita em tão pouco tempo? — Estou adiantando a data da morte. Estou declarando que ocorreu ontem. Por esse motivo. — É necessário? Herb disse com simplicidade: — Nossa declaração tem que sair primeiro. Antes da deles. E eles não vão esperar o resultado da autópsia. — Está certo — disse Buckman. — Solte o relatório. Peggy Benson entrou no escritório, trazendo vários memorandos confidenciais e uma pasta amarela. — Sr. Buckman — disse ela — num momento como este não gostaria de incomodá-lo, mas estes... — Pode me passar — disse Buckman. “Mas só esses”, pensou. “Depois vou para casa. ” — Eu sabia que o senhor estava procurando este dossiê. O inspetor McNulty também. Acabou de chegar, dez minutos atrás, da Central de Dados. Colocou a pasta na escrivaninha, na frente dele. — É o dossiê de Jason Taverner. Assombrado, Buckman disse: — Mas não existe nenhum dossiê sobre Jason Taverner. — Parece que estava com outra pessoa disse Peggy. — Seja como for, acabam de transmiti-lo, portanto devem tê-lo conseguido de volta. Não mandaram nenhuma explicação; a Central de Dados apenas... — Saia — e me deixe examiná-lo disse Buckman. Sem dizer nada Peggy Benson saiu do escritório e fechou a porta. — Não deveria ter falado com ela daquele modo — disse Herb Maime a Buckman. — É compreensível. Abrindo a pasta de Jason Taverner, Buckman viu uma foto publicitária 12x20, em cores brilhantes. Preso a ela um papel dizia: Cortesia do Show Jason Taverner, todas as terças às nove da noite na NBC. — Meu Deus — disse Buckman. — Os deuses estão brincando conosco. Puxando as nossas asas. Herb também se inclinou para olhar. Ambos ficaram longo tempo fitando a foto publicitária sem falar nada, até que afinal Herb disse: — Vamos ver o que mais há na pasta. Buckman pôs a foto de lado e passou a ler a primeira página do dossiê. — Quantos telespectadores? — perguntou Herb. — Trinta milhões — disse Buckman. — Pegou o interfone. — Peggy, ligue para o escritório da NBC aqui em Los Angeles. Chama-se KNBC ou algo assim. Chame um dos diretores da rede, quanto mais alto o posto melhor. Diga que sou eu. — Sim, Sr. Buckman. Dali a alguns minutos apareceu na teletela um rosto com ar responsável que disse. — Sim, senhor. Em que podemos servi-lo, general? — Vocês têm um programa chamado Show Jason Taverner? — perguntou Buckman. — Todas as terças à noite, há três anos. Às nove em ponto. — Isso está no ar há três anos'! — Sim, general. Buckman desligou. — Nesse caso — disse Herb Maime — o que fazia Taverner em Watts comprando documentos forjados? — Não conseguimos nem uma certidão de nascimento dele. Procuramos em todos os bancos de dados que existem, nos arquivos de todos os jornais. Você já ouviu falar do Show Jason Taverner, às terças-feiras na NBC? — Não — disse Herb cauteloso, com hesitação. — Não tem certeza? — Já falamos tanto sobre Taverner... — Nunca ouvi falar desse show — disse Buckman. — E eu assisto a duas horas de televisão todas as noites. Das oito à dez. — Passou à página seguinte do dossiê, jogando de lado a primeira folha, que caiu no chão; Herb a apanhou. Segunda página: uma lista de todos os discos que Jason Taverner gravara ao longo dos anos, dando título, data e número de série. Buckman olhou espantado para a lista; começava 19 anos antes. — Ele nos disse que era cantor — disse Herb. — E um de seus documentos era do sindicato dos músicos. Portanto essa parte é verdade. — Tudo isso é verdade — disse Buckman, ríspido. Passou para a página 3. Revelava a situação financeira de Taverner, suas fontes de renda e respectivos valores. — Muito mais do que ganho como general de Polícia. Mais do que eu e você ganhamos juntos. — Ele tinha um montão de dinheiro quando esteve aqui. E deu para Kathy Nelson um dinheirão pelas IDs, lembrase? — Sim, Kathy contou isso a McNulty; lembro-me de ter lido no relatório dele. — Buckman ficou refletindo, enquanto mecanicamente dobrava o canto da página xerocada. E então parou de mexer na folha. De repente. — O que foi? — perguntou Herb. — Isto é uma cópia xerox. A Central de Dados nunca extrai do arquivo documentos originais; só enviam cópias. — Mas eles têm que extrair os documentos para tirar a xerox. — Demora cinco segundos — disse Buckman. — Não sei — disse Herb. — Não me peça para explicar isso. Não sei quanto tempo demora. — É claro que sabe. Todos nós sabemos. Já vimos esse processo um milhão de vezes. Fazem isso o dia inteiro. — Nesse caso o computador errou. — Certo — disse Buckman. — Ele nunca se filiou a nenhum partido político; sua ficha policial é inteiramente limpa. Sorte dele. — Continuou percorrendo a pasta. — Andou se metendo com o sindicato uma época. Andava armado, mas tinha porte de armas. Foi processado há dois anos por um espectador que disse que uma enquete de seu programa era uma caricatura dele. Um tal de Artemus Frank, residente em Des Moines. O advogado de Taverner ganhou a causa. — Continuou lendo trechos daqui e dali, sem procurar nada em especial, apenas se admirando. — Seu disco número 45, Nada em Lugar Nenhum, já vendeu mais de dois milhões de cópias. Já ouviu falar desse disco? — Não sei — disse Herb. Buckman o encarou fixamente. — Pois eu nunca ouvi falar. Essa é a diferença entre você e eu, Maime. Você não tem certeza. Eu tenho. — Tem razão — disse Herb. — Mas neste momento realmente não sei. Acho tudo isso muito confuso, e temos outras coisas a fazer; temos que pensar em Alys e no relatório do médico-legista. Temos que falar com ele o mais rápido possível. Ainda deve estar lá na casa; vou telefonar e você pode... — Taverner estava com ela quando ela morreu — disse Buckman. — Sim, já sabemos disso. Chancer nos contou. Você não deu importância. Mas continuo achando que, nem que seja só para constar, devemos trazê-lo aqui e falar com ele. Ver o que ele tem a dizer. — Será que Alys já o conhecia antes? — perguntou Buckman. Pensou consigo: “Sim, ela sempre gostou dos tipo seis, principalmente dos da área artística. Como Heather Hart. Alys e essa tal de Hart tiveram um romance de três meses no ano retrasado... Essa foi uma relação que quase não chegou ao meu conhecimento: conseguiram esconder a coisa direitinho. Foi uma das poucas vezes em que Alys ficou de boca fechada.” Viu então no dossiê de Jason Taverner uma menção a Heather Hart; fixou os olhos nela enquanto pensava naquela mulher. Heather Hart fora amante de Taverner durante mais ou menos um ano. — Afinal — disse Buckman —, os dois são tipo seis. — Taverner e quem mais? — Heather Hart, a cantora. Este dossiê está atualizado; diz aqui que Heather Hart apareceu no show de Jason Taverner esta semana. Como convidada especial. Jogou de lado a pasta e procurou cigarros no bolso do paletó. — Pegue — Herb estendeu-lhe seu próprio maço. Buckman esfregou o queixo e disse: — Vamos mandar trazer essa mulher, essa Hart. Junto com Taverner. — Certo. — Herb tomou nota do pedido no bloquinho que sempre trazia no bolso do colete. — Foi Jason Taverner — disse Buckman em voz baixa, como se falasse para si mesmo — quem matou Alys. Por ciúme de Heather Hart. Descobriu o relacionamento das duas. Herb Maime piscou os olhos. — Não foi isso mesmo? — Buckman olhou bem firme para Herb. — Certo — disse Herb, depois de um silêncio. — Motivo. Oportunidade. Uma testemunha: Chancer, que pode declarar que Taverner saiu correndo, preocupado, e tentou pegar as chaves do mosquinha de Alys. Quando Chancer entrou na casa para investigar, suspeitando de alguma coisa, Taverner correu e escapou. Mesmo com Chancer atirando para cima, mandando-o parar. Herb concordou, em silêncio. — É isso aí — disse Buckman. — Quer que ele seja trazido agora mesmo? — O mais rápido possível. — Vamos avisar todos os postos de controle. Emitir um alerta geral. Se ele ainda estiver em Los Angeles poderemos pegá-lo com uma projeção do seu EEG transmitida de helicóptero, até que encontrem um padrão correspondente, como já estão fazendo em Nova Iorque. Aliás, podemos até mandar vir um helicóptero de Nova Iorque só para isso. — Ótimo — disse Buckman. — Vamos dizer que Taverner estava envolvido nas orgias dela? — Não houve orgia nenhuma — disse Buckman. — Holbein e a turma dele vão... — Deixe que eles provem — disse Buckman. Num tribunal aqui da Califórnia. Onde temos nossa jurisdição. — Por que Taverner? — Tem que ser alguém — disse Buckman, mais para si mesmo; enlaçou os dedos diante de si, sobre a grande escrivaninha de carvalho. Apertou convulsivamente os dedos, com toda a força. — — Sempre, sempre tem que ser alguém — disse então. — E Taverner é uma pessoa importante. Bem como ela gostava. Na verdade é por isso que ele esteve lá; é bem o tipo de celebridade que ela preferia. Além disso — olhou para Herb. — Por que não? Ele serve perfeitamente. — “Sim, por que não?”, pensou, e continuou, taciturno, a apertar mais e mais os dedos enlaçados sobre a mesa. 26 Andando pela rua ao sair do apartamento de Mary Anne, Jason Taverner pensou consigo: “Minha sorte virou. Tudo voltou, tudo que perdi. Graças a Deus! ”. “Sou o homem mais feliz dessa porra desse mundo”, pensou. “Este é o maior dia da minha vida. A gente nunca dá valor às coisas até perdê-las, até que de repente não as têm mais. Bem, durante dois dias perdi tudo e agora tudo voltou; mas agora sei apreciar. ” Segurando firme a caixa com o vaso feito por Mary— Anne, correu pela rua dando sinal a um táxi que passava. — Para onde, senhor? — perguntou o táxi automático abrindo a porta. Ofegante de cansaço, Jason entrou e fechou a porta manualmente. — Norden Lane 803, em Beverly Hills. — O endereço de Heather Hart. Estava enfim voltando para ela. E tal como ele era na realidade, não como ela o vinha imaginando durante os dois horríveis últimos dias. O táxi zarpou verticalmente para o espaço e Jason reclinou-se no assento com gratidão, sentindo-se ainda mais cansado do que no apartamento de Mary Anne. Tanta coisa acontecera. “E Alys Buckman?”, perguntou-se. “Será que devo tentar entrar em contato com o general Buckman de novo? Mas por estas alturas ele já deve estar sabendo. E eu deveria me manter longe disso. ” Um astro dos discos e detevê não deve se meter em assuntos sensacionalistas; “A imprensa marrom está sempre a postos para exagerar as coisas' ao máximo.” “Mas alguma coisa eu devo a ela”, pensou. “Ela tirou fora os aparelhos eletrônicos que os tiras pregaram em mim antes de seu sair da Academia de Polícia. ” “Mas agora eles não vão estar me procurando. Tenho minha identidade de volta; sou conhecido no planeta inteiro. Trinta milhões de espectadores podem testemunhar minha existência física e legal. ” “Nunca mais vou precisar ter medo de uma batida policial”, pensou, e fechou os olhos, caindo numa sonolência. — Chegamos, senhor — falou a voz do táxi de repente. Jason abriu os olhos e endireitou-se no assento. Já? Olhando pela janela viu o conjunto residencial onde Heather tinha seu esconderijo na Califórnia. — Ah, sim — disse, pescando no bolso seu maço de notas. — Obrigado. — Pagou, e o táxi abriu a porta para deixai-lo sair. Sentindo se bemhumorado outra vez, perguntou: Se eu não tivesse dinheiro para pagar a corrida você não abriria a porta? O táxi não respondeu. Não fora programado para aquela pergunta. Mas que diabos lhe importava aquilo? Ele tinha o dinheiro. Saiu caminhando pela calçada e tomou em seguida a rampa de madeira em espiral que levava ao saguão principal. O luxuoso edifício de dez andares flutuava sobre jatos de ar comprimido a alguns palmos do solo. A flutuação dava aos moradores uma perpétua sensação de estar sendo suavemente embalados, como num gigantesco seio materno. Ele sempre gostara daquilo. Na costa leste a ideia não fizera sucesso, mas aqui na costa oeste era um luxo que estava na moda. Apertou na portaria eletrônica o botão correspondente ao apartamento de Heather e esperou, segurando a caixa com o vaso nas pontas dos dedos da mão direita erguida. “É melhor não fazer isso”, resolveu; “posso deixar cair como fiz com o outro. Mas não vou deixar cair; minhas mãos agora estão firmes. ” “Vou dar esse raio de vaso para Heather”, decidiu. “Um presente que escolhi para ela porque compreendo o gosto finíssimo que ela tem. ” A tela da portaria eletrônica iluminou-se e apareceu um rosto de mulher que o examinava. Susie, a empregada de Heather. — Ah, Sr. Taverner — disse Susie, e em seguida soltou o trinco da porta, controlado a partir de regiões de altíssima segurança. — Entre. Heather saiu mas... — Eu espero — disse ele. Cruzou o saguão até o elevador, apertou o botão e esperou. Dali a um momento encontrou Susie abrindo-lhe a porta do apartamento de Heather. Miúda, morena e bonita, cumprimentou-o como sempre fazia: com calor. E familiaridade. — Oi! — disse Jason, entrando. — Como estava lhe dizendo — disse Susie —, Heather saiu para fazer compras mas deve voltar lá pelas oito. Hoje ela tem bastante tempo livre; me disse que queria aproveitá-lo bem porque mais para o fim da semana terá uma longa sessão de gravação na RCA. — Não estou com pressa — disse ele, com sinceridade. Entrando na sala, colocou a caixa de papelão bem no centro da mesa de café, onde Heather por certo a veria. — Vou ouvir um pouco de quadsom e dar uma deitada — disse. — Se não for incômodo. — O senhor não faz isso sempre? — disse Susie. — Eu também tenho que sair; tenho dentista ;ás quatro e quinze e é lá do outro lado de Hollywood. — Ele a abraçou e apertou seu seio firme. — Hoje estamos com tesão — disse Susie com agrado. — Vamos lá — disse ele. — O senhor é muito alto para mim — disse Susie, e afastou-se para retomar o serviço que estivera fazendo antes de ele chegar. Chegando no aparelho de som, percorreu uma pilha de discos ouvidos recentemente. Nenhum deles o atraiu; inclinou-se então para examinar as lombadas de toda a discoteca. Escolheu vários discos de Heather e dois dos seus próprios. Empilhou-os no toca-discos e acionou o aparelho. O braço desceu e a melodia de A Arte de Hart, uma favorita de Jason, ecoou pela vasta sala, onde as espessas cortinas enriqueciam o som quadrifônico. Jason deitou-se no sofá, tirou os sapatos e ficou à vontade. “Ela fez um belo serviço quando gravou isso aí”, pensou. “Nunca na minha vida estive tão exausto”, percebeu. “A mescalina me faz isso. Eu poderia dormir uma semana. Talvez durma mesmo. Ao som da voz de Heather e da minha. Por que nós nunca gravamos um disco juntos? É uma boa ideia. Venderia. Venderia bem. ” Fechou os olhos. “O dobro das vendas, e Al poderia conseguir que saíssemos da RCA. Mas tenho contrato com a Reprise. Bem, pode-se dar um jeito. Dá trabalho. Tudo dá trabalho. Mas vale a pena.” De olhos fechados, disse: E agora o som de Jason Taverner. O toca-discos deixou cair o próximo disco. “Já?”, ele se espantou. Sentou-se, olhou o relógio. Dormira ao som de A Arte de Hart, mal o tinha ouvido. Deitou-se e de novo fechou os olhos. "Dormir”, pensou, "ouvindo o meu som”. Sua voz, ampliada por dois canais de cordas e guitarras, ressoou A sua volta. Escuridão. De olhos abertos sentouse no sofá sentindo que muito tempo se passara. Silêncio. O toca-discos já tocara toda a pilha, horas seguidas de música. Que horas seriam? Apalpando em volta, localizou um lustre que lhe era familiar e acendeu a luz. No seu relógio eram dez e trinta. Sentiu frio e fome. “Onde está Heather?”, perguntou-se, tentando calçar os sapatos. “Estou com os pés frios e úmidos e o estômago vazio. Talvez eu possa...” A porta da frente abriu-se. Ali estava Heather, em seu casaco de peles, com um jornal na mão, o Los Angeles Times. Seu rosto severo e cinzento o confrontava como uma máscara mortuária. — O que foi? — perguntou ele, aterrorizado. Aproximando-se, Heather lhe passou o jornal. Em silêncio. Em silêncio ele o pegou. E leu. FAMOSO ARTISTA DE TEVÊ PROCURADO SUSPEITO DA MORTE DA IRMÃ DE UM GENERAL DE POLICIA. — Você matou Alys Buckman? — perguntou Heather, áspera. — Não — disse ele, lendo o artigo. Segundo o Departamento de Polícia de Los Angeles, o popular artista de televisão Jason Taverner, apresentador de um show de variedades de uma hora, pode estar profundamente envolvido num crime que, de acordo com os especialistas da polícia, é uma vingança cuidadosamente planejada. Esta conexão foi anunciada hoje pela Academia de Polícia. Taverner, 42 anos de idade, está sendo procurado tanto pela... Jason parou de ler e amassou o jornal com raiva. — Merda! — exclamou. Respirando fundo, estremeceu. Violentamente. — Aqui dão a idade dela como 32 — disse Heather. — Sei com certeza que ela tem — tinha — 34. — Eu presenciei — disse Jason. — Estava na casa. — Não sabia que você a conhecia — disse Heather. — Tinha acabado de conhecê-la. Hoje. — Hoje? Só hoje? Duvido. — É verdade. O general Buckman me interrogou na Academia de Polícia e ela me parou quando eu ia saindo. Eles tinham enfiado em mim um monte de aparelhos eletrônicos de escuta, inclusive... — Eles só fazem isso com os estudantes — disse Heather. Ele completou a frase: —...e Alys os tirou fora. E aí me convidou para ir à casa deles. — E ela morreu. — Sim. Eu vi o corpo dela como um esqueleto todo murcho e amarelado, e isso me assustou; você tem toda razão em achar que me assustou. Dei o fora de lá o mais depressa possível. — — Você não faria o mesmo? — Por que você a viu como um esqueleto? Vocês dois tomaram alguma droga? Ela sempre tomava, portanto suponho que você tomou também. — Mescalina — disse Jason. — Foi o que ela me disse, mas acho que não era isso. — “Só gostaria de saber o que era aquilo”, pensou consigo, o coração ainda gelado de medo. “Será que isto é uma alucinação provocada pela droga, assim como a visão do esqueleto? Estou vivendo mesmo isto aqui ou estou naquele quarto de hotel pulguento? Meu Deus, o que eu faço agora? ” — É melhor você se entregar — disse Heather. — Eles não podem me culpar — disse ele. Mas sabia que não era assim. Nos últimos dois dias aprendera muita coisa sobre a polícia que governava aquela sociedade. Herança da Segunda Guerra Civil, pensou. De porcos a tiras. O salto era fácil. — Se não foi você quem matou, eles não vão culpá-lo. Os tiras não são injustos. Não é como se os GNs estivessem atrás de você. Ele desamassou o jornal, leu mais um pouco: ... que se acredita ser uma dose excessiva de uma substância tóxica administrada por Taverner enquanto a Srta. Buckman estava dormindo ou num estado... — Eles dizem que o crime ocorreu ontem — disse Heather. — Onde você estava ontem? Telefonei para seu apartamento e ninguém atendeu. E você disse agora mesmo que... — Não foi ontem. Foi hoje cedo. — Tudo se tornara estranho; sentia-se sem peso, como se flutuasse junto com o apartamento num mar de esquecimento sem fundo. — Eles atrasaram a data — disse. — Uma vez veio um técnico da polícia no meu show e depois me contou como eles... — Cale a boca — disse Heather, rude. Jason parou de falar. Ficou ali, desamparado. Esperando. — Eles falam sobre mim no artigo — disse Heather, cerrando os dentes. — Veja na última página. Obedecendo, ele procurou na última página a continuação do artigo. ... os oficiais da polícia aventaram a hipótese de que o relacionamento entre a Srta. Buckman e Heather Hart, que também é uma celebridade do mundo da tevê e dos discos, provocou a expedição de vingança de Taverner, em que... — Que tipo de relacionamento você teve com ela? — perguntou Jason. — Conhecendo a Alys... — Você disse que não a conhecia. Disse que só a conheceu hoje. — Ela era esquisita. Falando francamente, acho que era lésbica. Você teve um relacionamento sexual com ela? Percebeu que sua voz aumentava de tom; não conseguia controlá-la. — É isso que o artigo dá a entender. É verdade? A força do tapa fez seu rosto arder; recuou sem querer, levantando as mãos para proteger-se. Percebeu que nunca tinha levado um tapa assim. Doía como o diabo. Suas orelhas tiniram. — Está bem — disse Heather. — Bata em mim também. Ele puxou o braço para trás, cerrou o punho mas logo deixou o braço pender, relaxando os dedos. — Não consigo — disse. — Gostaria de conseguir. Você tem sorte. Acho que sim. Se você matou Alys, com certeza poderia me matar também. O que teria a perder? Eles vão te pôr na câmara de gás de qualquer jeito. — Você não acredita em mim — disse Jason. — Não acredita que não fiz nada. — Não importa. Eles acham que foi você. Mesmo se você se safar, isso vai ser o fim da merda da sua carreira, e aliás da minha também. É o nosso fim; compreende? Você percebe o que fez? — Estava agora gritando com ele; assustado, ele se aproximou dela, e quando o tom da voz dela aumentou, afastou-se de novo. Confuso. — Se eu conseguisse falar com o general Buckman — disse ele — poderia... — Com o irmão dela? Para ele que você vai apelar? — Heather aproximou-se, ameaçadora, os dedos como garras. — Ele é o chefe da comissão que está investigando o crime! — Assim que o médico-legista declarou que foi um homicídio, o general Buckman anunciou que iria se ocupar pessoalmente do incidente. Você não consegue ler o artigo inteiro? Eu já o li dez vezes no caminho para cá; comprei o jornal em Bel Aire depois de buscar meu casaco novo, que encomendaram da Bélgica para mim. Finalmente chegou. E agora veja. O que importa? Jason tentou passar o braço em volta de seus ombros. Ela se esquivou, rígida. — Não vou me entregar — ele disse. — Faça o que quiser. — A voz dela caíra para um sussurro apagado. — Não me importo. Contanto que vá embora. Não quero ter mais nada a ver com você. Gostaria que os dois tivessem morrido, você e ela. Aquela putinha magrela... para mim ela só criou problemas. No fim tive que chutá-la fora com toda força; ela grudou em mim feito uma sanguessuga. — Ela era boa de cama? — ele perguntou, e pulou para trás quando Heather ergueu a mão, procurando atingir seus olhos. Durante algum tempo nenhum dos dois disse nada. Estavam parados lado a lado. Jason ouvia a respiração dela e a dele próprio também. Flutuações de ar rápidas e ruidosas. Inspirando e expirando, inspirando e expirando. Fechou os olhos. — Faça o que quiser — disse Heather. Vou-me entregar à Academia. — Eles estão procurando você também? —Mas será que você não consegue ler o artigo inteiro? Será que não consegue fazer nem isso? Eles querem meu testemunho. Sobre como você se sentia a respeito de meu relacionamento com Alys. É do conhecimento público que na época eu estava dormindo com você, caramba. — Não sabia do relacionamento de vocês. — Vou dizer isso a eles. Quando foi — ela hesitou, depois continuou: — quando foi que você descobriu? — Nesse jornal. Agora mesmo. — Você não sabia disso ontem quando ela foi morta? Com isso ele desistiu; não adiantava. Era como viver num mundo de borracha. Tudo pulava. Tudo mudava de forma assim que se tocava ou mesmo se olhava para as coisas. — Está certo, então foi só hoje — disse Heather. Se é nisso que você acredita. Você deveria saber melhor que ninguém. — Até logo — ele falou. Sentando, pescou seus sapatos debaixo do sofá, calçou-os, amarrou os cadarços, levantou-se. Pegou então a caixa de papelão na mesa de café. — Para você — disse, e jogou-lhe a caixa. Heather a agarrou; a caixa lhe bateu no peito e caiu no chão. — O que é? — Nessas alturas já esqueci. Ajoelhando-se, Heather pegou a caixa, abriu-a e tirou muitos jornais e depois o vaso azul vitrificado. Não se quebrara. — Oh! — exclamou, suave. Levantando-se, examinou o vaso contra a luz. — É incrivelmente lindo. Obrigada. Jason disse: — Não matei aquela mulher. Afastando-se dele, Heather colocou o vaso numa prateleira alta, cheia de bibelôs. Não falou nada. — O que posso fazer — disse ele — a não ser ir embora? — Esperou, mas ela não disse nada. — Não vai falar nada? — perguntou. — Telefone para eles — disse Heather. E diga-lhes que está aqui. Ele pegou o fone e chamou a telefonista. Gostaria que a senhora ligasse para a Academia de Polícia de Los Angeles. Para o general Felix Buckman. Diga a ele que é Jason Taverner. A telefonista ficou em silêncio. Ele disse. — Alô? — O senhor pode ligar para lá diretamente. — Quero que a senhora ligue. — Mas, meu senhor... — Por favor — ele disse. 27 Phil Westerburg, o médico-legista principal da Academia de Polícia de Los Angeles, disse para seu superior, o general Felix Buckman: — Vou lhe explicar da melhor maneira o efeito dessa droga. O senhor não ouviu falar dela porque ainda não está sendo usada; sua irmã deve tê-la surrupiado do laboratório de atividades especiais da polícia. — Passou a desenhar num pedaço de papel. — A coordenação temporal é uma função cerebral. É uma estruturação da percepção e da orientação. — Por que essa droga a matou? — perguntou Buckman. Era tarde e estava com dor de cabeça. — Queria que o dia acabasse logo; queria que tudo e todos fossem embora. — Foi uma overdose — perguntou. — Ainda não temos meios de determinar o que constituiria uma dose excessiva de KR-3. No momento está sendo testada em voluntários internos no campo de trabalhos forçados de San Bernardino, mas até agora... — Westerburg continuava a desenhar. — Bem, seja como for, como estava dizendo, a coordenação temporal é uma função cerebral e funciona enquanto o cérebro recebe informações. Agora já sabemos também que o cérebro não pode funcionar se não coordenar também o espaço. Mas o porquê disso ainda não sabemos. Provavelmente tem algo a ver com o instinto de estabilizar a realidade de tal forma que sequências de eventos possam ser organizadas em termos de antes-e-depois — isso seria o tempo — e, mais importante, de ocupação de espaço. É o que ocorre com um objeto tridimensional comparado com um desenho desse objeto. Mostrou seu desenho a Buckman. Para ele não significava nada; olhou aquilo desconcertado, e perguntou-se onde, àquela hora da noite, poderia conseguir Darvon para sua dor de cabeça. “Será que Alys teria alguns comprimidos?” Como um esquilo ela vivia armazenando pílulas. Westerburg continuou: — Agora, um aspecto do espaço é que qualquer determinada unidade espacial exclui todas as outras unidades; se um objeto está aqui, não pode estar ali. Da mesma forma que no tempo se um evento ocorreu antes, não pode ocorrer também depois. — Isso não poderia esperar até amanhã? — perguntou Buckman. — Você havia dito no início que levaria vinte e quatro horas para dar um relatório determinando a toxina em questão. Vinte e quatro horas para mim é satisfatório. — Mas o senhor requisitou que acelerássemos a análise — disse Westerburg. — O senhor pediu que a autópsia começasse imediatamente. Às duas e dez da tarde de hoje, quando fui chamado oficialmente pela primeira vez. — Foi mesmo? — disse Buckman. “Sim”, pensou, “fiz isso mesmo. Antes que os marechais conseguissem armar a história deles.” — Por favor, não faça desenhos — disse ao médico. — Minha vista está doendo. Apenas me conte. — A exclusividade do espaço, como sabemos, é apenas uma função do cérebro ao lidar com a percepção. Ele controla as informações em termos de unidades espaciais mutuamente restritivas. — Milhões dessas unidades. Aliás, teoricamente são trilhões. Mas o espaço em si não é exclusivo. Na verdade, o espaço em si não tem existência alguma. — E isto significa...? Westerburg, controlando-se para não desenhar, disse: — Uma droga como o KR-3 destrói a capacidade do cérebro de separar as unidades espaciais umas das outras. Portanto perde-se a noção do aqui versus ali quando o cérebro tenta lidar com a percepção. Não se sabe mais dizer se um objeto já se foi ou se ainda está ali. Quando isso ocorre o cérebro não consegue mais excluir vetores espaciais alternativos. Ele abre o leque inteiro da variação espacial. O cérebro não consegue mais diferenciar os objetos que existem dos que são apenas possibilidades latentes, não-espaciais. Em resultado, abrem-se corredores espaciais concorrentes, nos quais entra um sistema de percepção deturpado, e um universo inteiramente novo parece estar em processo de criação. — Compreendo — disse Buckman. Mas na verdade não estava compreendendo, nem se importando. “Só quero ir para casa”, pensou. “E esquecer tudo isso. ” — Isto é muito importante — disse Westerburg, com seriedade. — O KR-3 é uma grande conquista. A pessoa afetada por essa droga é forçada a perceber universos irreais, quer queira ou não. Como disse, de repente trilhões de possibilidades ficam teoricamente reais; o acaso entra em jogo e o sistema de percepção da pessoa escolhe uma possibilidade entre as muitas que lhe são abertas. O sistema tem que escolher, pois do contrário os universos concorrentes iriam se sobrepor, e o próprio conceito de espaço desapareceria. Está me acompanhando? Sentado em sua mesa, a pouca distância, Herb Maime disse: — Ele está dizendo que o cérebro agarra o universo espacial que estiver mais próximo. — Sim — disse Westerburg. — O senhor leu o relatório confidencial do nosso laboratório sobre o KR-3, não leu, Sr. Maime? — Li há pouco mais de uma hora — disse Maime. — A maior parte era técnica demais para mim. Mas notei que os efeitos são transitórios. O cérebro acaba reestabelecendo contato com os objetos espaço-temporais verdadeiros, que percebia antes. — Certo — disse Westerburg. — Mas enquanto a droga está ativa a pessoa existe, ou acha que existe... — Não há diferença — disse Herb — entre as duas coisas, e assim que a droga trabalha; ela abole esta distinção. — Tecnicamente — disse Westerburg. — Mas o sujeito da experiência sente-se envolvido por um ambiente real, ambiente estranho ao anterior que sempre experimentou, e age como se tivesse entrado num novo mundo. Um mundo com aspectos alterados... O grau de alteração é determinado pela distância entre o universo de espaço-tempo que ele percebia antes e o novo universo em que ele é forçado a funcionar. — Vou para casa — disse Buckman. — Não aguento mais. — Levantou-se. — Obrigado, Westerburg — disse, estendendo automaticamente a mão ao médico-legista chefe, que a apertou. — Faça um resumo para mim — disse para Herb Maime — e eu dou uma olhada amanhã de manhã. — Preparou-se para sair, com o sobretudo dobrado sobre o braço. Como sempre fazia. — Você compreende agora o que aconteceu com Taverner? — disse Herb. — Não — respondeu Buckman. — Passou para um universo em que ele não existia. E nós passamos junto com ele, pois somos objetos de seu sistema de percepção. E quando o efeito da droga se esvaneceu, ele voltou para este universo. E o que o prendeu de volta aqui não foi nada que ele tomou ou deixou de tomar, mas sim a morte dela. Portanto é claro que seu dossiê nos foi enviado pela Central de Dados. — Boa-noite — disse Buckman. Saiu do escritório, atravessou a grande sala silenciosa, cheia de mesas metálicas imaculadas, todas iguais, todas limpas no fim do dia, inclusive a de McNulty. Por fim viu-se no tubo de ascensão, subindo ao teto. O ar noturno, claro e frio, fez sua cabeça doer terrivelmente: fechou os olhos e cerrou os dentes. Pensou então, “Eu poderia arranjar um analgésico com Phil Westerburg. Deve haver uns cinquenta tipos diferentes na farmácia da Academia, e Westerburg tem a chave”. Tomando o tubo de descida, voltou ao 14º andar e ao seu escritório, onde Westerburg e Herb Maime ainda conversavam. Ao vê-lo, Herb disse: — Quero lhe explicar uma coisa que disse antes. Sobre o fato de nós sermos objeto do sistema de percepção dele. — Não somos disse Huckman. — Somos e não somos — disse Herb. — Não foi Taverner quem tomou o KR-3. Foi Alys. Taverner, como todos nós, tornou-se um dado no sistema de percepção de sua irmã, e foi arrastado também quando ela passou para um conjunto alternativo de coordenadas. Ela se interessava muito por Taverner. Era um artista que correspondia aos seus desejos, e ela alimentou por algum tempo a fantasia de conhecê-lo pessoalmente. Mas apesar de ter conseguido realizar isso por meio da droga, ao mesmo tempo tanto ele como nós permanecemos em nosso próprio universo. Ocupamos dois corredores espaciais ao mesmo tempo, um real e o outro irreal. Um é a realidade; o outro é uma possibilidade latente entre muitas, temporariamente especializada pelo KR-3. Mas só temporariamente. Mais ou menos por dois dias. — Esse lapso de tempo — disse Westerburg — é suficiente para causar um enorme dano físico ao cérebro. O cérebro de sua irmã, Sr. Buckman, provavelmente foi destruído não tanto pelo teor tóxico da droga mas por uma sobrecarga muito alta e muito prolongada. Talvez terminemos por descobrir que a causa final da morte foi o dano irreversível causado ao tecido cortical, uma aceleração da deterioração neurológica normal... O cérebro dela morreu de velhice, por assim dizer, no espaço de dois dias. — Você pode me arranjar uns comprimidos de Darvon? — perguntoulhe Buckman. — A farmácia está fechada — disse Westerburg. — Mas você tem a chave. — Tenho ordens para não usá-la na ausência do farmacêutico. — Abra uma exceção — disse-lhe Herb com rispidez. — Neste caso. Westerburg afastou-se, procurando o seu molho de chaves. — Ora disse Buckman a Herb —, se o farmacêutico f.hvcsse de plantão ele não precisaria da chave. — Este planeta inteiro — disse Herb —, é governado por burocratas. — Olhou com atenção para Buckman. — Você está doente, não está em condições de aguentar mais nada. Depois que ele lhe der o Darvon, vá para casa. — Não estou doente — disse Buckman. — Apenas não me sinto bem. Mas não fique por aqui. Deixe que termino o serviço. Você já estava indo embora e voltou de novo. — Sou como um bicho — disse Buckman. — Como um rato de laboratório. — Neste momento tocou o telefone em sua grande escrivaninha de carvalho. — Será que é um dos marechais? — perguntou Buckman. — Não vou conseguir falar com eles hoje; vão ter que esperar. Herb atendeu ao telefone. Ouviu por um momento. Então, cobrindo o bocal com a mão, disse: — É Taverner. Jason Taverner. — Eu falo com ele. — Buckman pegou o fone e disse: — Alô, Taverner. Já é tarde. Num timbre metálico a voz de Taverner chegou ao seu ouvido: — Quero me entregar. Estou no apartamento de Heather Hart. Estamos os dois aqui esperando. Buckman disse para Herb: Ele quer se entregar. — Diga-lhe que venha para cá — disse Herb. — Venha para cá — disse Buckman ao telefone. — Por que você quer desistir? — perguntou. — No fim nós vamos te matar, seu assassino miserável, filho da puta. Você sabe disso. Por que não foge? — Para onde? — veio a voz estridente de Taverner. — Para uma universidade. Vá para Colúmbia; lá eles têm estabilidade. Têm comida e água por um tempo. — Não quero mais ser caçado — disse Taverner. — Viver é ser caçado — disse Buckman. — Está bem, Taverner. Venha para cá e vamos abrir um inquérito contra você. Traga também a tal de Hart para pegarmos o testemunho dela. — “Seu estúpido”, pensou. “Por que já não aproveita e corta as bolas fora? Seu idiota filho da puta.” Sua voz tremia. — Quero limpar meu nome — veio a vozinha de Taverner no ouvido de Buckman. — Quando você aparecer por aqui eu te mato com meu próprio revólver. Por resistir à prisão, seu degenerado. Ou por qualquer outro motivo. Podemos dar qualquer motivo que quisermos. Qualquer coisa! — Desligou o telefone. — Ele está vindo aqui para ser morto — disse para Herb. — Você resolveu que era ele. Pode resolver o contrário, se quiser. Mande-o de volta para seus discos e seu estúpido programa de tevê. — Não — Buckman abanou a cabeça. Westerburg apareceu com duas cápsulas cor-de-rosa e um copo de papel com água. — Composto de Darvon — disse, oferecendo-os a Buckman. — Obrigado. — Buckman engoliu as pílulas com água, amassou o copo de papel e jogou-o na máquina de triturar papéis. Sem ruído os dentes da máquina giraram, e logo pararam automaticamente. Silêncio. — Vá para casa — disse-lhe Herb. — Ou melhor ainda, vá para um hotel, um bom hotel na cidade passar a noite. Durma até tarde amanhã; deixe os marechais por minha conta. — Tenho que encontrar Taverner. — Não tem, não. Deixe que trato dele. Ou mando o sargento de plantão abrir o inquérito. Como se fosse um criminoso comum. — Herb — disse Buckman —, eu pretendo matar esse cara, como já disse a ele no telefone. — Foi até sua escrivaninha, destrancou a gaveta de baixo, tirou uma caixa de cedro e a colocou em cima da mesa. Abriu a caixa e tirou dela uma pistola Derringer calibre 22 de tiro único. Carregou-a com uma bala oca e engatilhou-a, com o cano voltado para cima por segurança. Questão de hábito. — Deixe me ver — disse Herb. Buckman lhe passou a arma. — Fabricada pela Colt — disse. — A Colt adquiriu a patente e as matrizes, não me lembro quando. — É uma boa arma — disse Herb, balançando-a na mão para sentir o peso. — Um belo revólver. Devolveu-o a Buckman. — Mas a bala 22 é muito pequena. Você teria que acertá-lo bem no meio dos olhos dele. Ele teria que estar bem na sua frente. Pôs a mão no ombro de Buckman. — Use um 38 especial, ou um 45. Certo? Vai fazer isso? — Sabe de quem é essa pistola? — perguntou Buckman. — De Alys. Ela a guardava aqui; dizia que se a deixasse em casa poderia usá-la contra mim durante uma briga, ou tarde da noite quando ela fica — ficava — deprimida. Mas não é uma arma de mulher. Derringer fazia armas para mulheres, mas esta não é do tipo. — Foi você quem a comprou para ela? — Não. Ela a achou numa loja de penhores lá em Watts. Pagou 25 paus por ela. Não é caro, considerando o estado da arma. — Olhou para o rosto de Herb. — Nós realmente temos que matá-lo. Os marechais vão me crucificar se nós não pusermos a culpa nele. E eu não posso descer de cargo. — Deixe por minha conta — disse Herb. — Está certo. Vou para casa agora. — Recolocou a pistola na caixa, em seu forro de veludo vermelho e fechou a caixa. Abriu-a de novo e tirou a bala do cano. Herb Maime e Phil Westerbug o observavam. — O cano abre deste lado neste modelo — disse Buckman. — É raro. — É melhor você ir para casa num carro da polícia — disse Herb. — Do jeito que você está se sentindo e com tudo o que aconteceu você não deve dirigir. — Posso dirigir — disse Buckman. — Sempre consigo dirigir. O que não consigo fazer direito é matar um homem com uma bala 22, um homem parado bem na minha frente. Alguém tem que fazer isso por mim. — Boa-noite — disse Herb em voz baixa. — Boa-noite. — Buckman despediuse e foi saindo pelos vários escritórios, suítes e câmaras desertas da Academia, chegando mais uma vez ao tubo de ascensão. O Darvon já começava a diminuir sua dor de cabeça; sentiu-se grato por isso. “Agora posso respirar o ar da noite”, pensou. “Sem sofrer. ” A porta do tubo de ascensão abriu-se. Ali estava Jason Taverner. E com ele uma mulher atraente. Ambos pareciam assustados e pálidos. Os dois altos, bem apessoados e nervosos. Obviamente dois tipo seis. Tipo seis derrotados. — Você está detido pela polícia — disse Buckman. — Aqui estão seus direitos. Tudo o que disser pode ser usado contra você. Tem direito a defesa, e se não tiver condições de pagar um advogado, o Estado lhe nomeará um. Você tem direito de ser julgado por um júri, e pode também renunciar a este direito e ser julgado por um juiz nomeado pela Academia de Polícia da Cidade de Los Angeles. Compreendeu tudo o que eu disse? — Vim aqui para limpar a minha situação — disse Jason Taverner. — Meus funcionários tomarão o depoimento de vocês disse Buckman. — Entre naquele escritório azul ali, onde você já esteve antes. — Apontou para lá. — Está vendo aquele homem de gravata amarela? — Posso esclarecer minha situação? — perguntou Jason. — Admito que estive na casa quando ela morreu, mas não tive nada a ver com aquilo. Quando subi encontrei-a morta no banheiro. Ela tinha ido buscar Thorazina para mim. Para cortar o efeito da mescalina que me havia dado. — Ele a viu como um esqueleto — disse a mulher, que obviamente era Heather Hart. — Por causa da mescalina. Será que ele não pode alegar que estava sob o efeito de um poderoso alucinógeno? Isso não basta para inocentá-lo perante a lei? Ele não tinha nenhum controle sobre o que fazia. Eu também não tive absolutamente nada a ver com tudo isso. Nem sabia que ela tinha morrido até ler o jornal de hoje. — Em alguns estados da União este argumento poderia valer — disse Buckman. — Mas aqui não — disse a mulher, desanimada. Entendendo. Saindo de seu escritório, Herb Maime percebeu a situação e disse: — Vou autuá-lo e tomar o testemunho dos dois, Sr. Buckman. O senhor pode ir, como tínhamos combinado. — Obrigado — disse Buckman. — Onde está meu sobretudo? — Olhou em volta, procurando. — Meu Deus, que frio — disse. — Eles desligam o aquecimento à noite — explicou para Taverner e Heather. — Desculpe. — Boa-noite — disse Herb. Buckman entrou no tubo de ascensão e apertou o botão para fechar a porta. Estava sem seu sobretudo. “Talvez eu devesse mesmo pegar um carro daqui para me levar”, pensou. “Arranjar um desses cadetes ansiosos para agradar que me leve para casa; ou, como disse Herb, ir para um bom hotel na cidade. Ou um dos novos motéis à prova de som perto do aeroporto. Mas nesse caso meu mosquinha ficaria aqui e não poderia vir de carro para o trabalho amanhã. ” Chegando ao teto estremeceu com o ar frio e a escuridão. “Nem o Darvon ajuda”, pensou. “Ainda estou com dor. ” Abriu a porta do seu mosquinha, entrou e bateu a porta. “Mais frio aqui do que lá fora”, pensou. “Caramba. ” Deu a partida e ligou o aquecedor. Um vento frígido penetrou pelas aberturas de ventilação; ele começou a tremer. “Vou me sentir melhor quando chegar em casa”, pensou. Olhou para o relógio: duas e trinta. “Não admira que esteja tão frio”, pensou. “Por que escolhi Taverner?”, pensou. “Num planeta de seis bilhões de pessoas... Exatamente este homem que nunca fez mal a ninguém, nunca fez nada de errado exceto deixar que, seu dossiê chamasse a atenção das autoridades. É isso mesmo”, percebeu. “Jason Taverner chamou a nossa atenção, e, como dizem, uma vez que você chama a atenção das autoridades, elas nunca te esquecem. ” “Mas posso também tirar a culpa dele, como Herb disse. ” — Não. Mais uma vez, tinha que ser não. Os dados estavam lançados desde o começo. “Antes que qualquer um de nós tivesse sequer tocado nos dados”, pensou. “Taverner, você estava predestinado desde o início. Desde o seu primeiro gesto. ” “Todos nós desempenhamos papéis”, pensou Buckman. “Ocupamos determinadas posições, umas menores outras maiores. Umas comuns, outras estranhas. Algumas insólitas e grotescas. Algumas visíveis, outras invisíveis ou quase. O papel de Jason Taverner no fim tornou-se muito grande e visível, e foi aí que a decisão teve que ser tomada. Se ele tivesse ficado como estava, um joão-ninguém sem documentos, morando num hotel caindo aos pedaços numa favela — se tivesse continuado assim poderia se safar, ou na pior das hipóteses acabaria num campo de trabalhos forçados. Mas Taverner não optou por essa vida. ” “Algum desejo irracional dentro dele fazia com que quisesse aparecer, ser visível, ser conhecido. Tudo bem, Jason Taverner”, pensou Buckman, “você agora é conhecido outra vez, como era antes, mas mais bem conhecido; será famoso de outra maneira. De uma maneira que serve a propósitos superiores — propósitos que você desconhece totalmente, mas deve aceitar sem conhecer. Quando chegar à sua sepultura sua boca ainda vai estar aberta, perguntando: ‘Mas o que foi que eu fiz? ’ E assim você vai ser enterrado: com a boca ainda aberta. ” “E eu nunca poderia explicar isso para você”, pensou Buckman. “Exceto dizendo: nunca chame a atenção das autoridades. Nunca deixe que nós tenhamos interesse por você. Nunca nos faça querer saber mais a seu respeito. ” “Algum dia a sua história, a forma e o ritual da sua queda serão divulgados, num futuro remoto, quando isso já não importar mais. Quando já não houver campos de trabalhos forçados, nem universidades cercadas por tiras com metralhadoras e máscaras de gás que os fazem parecer enormes roedores com grandes focinhos e olhos esbugalhados, como grandes animais nocivos. Algum dia haverá um inquérito postmortem e todos vão saber então que você na verdade não fez mal nenhum. Não fez nada mais que chamar a atenção. ” “A verdade pura é que apesar da sua fama e do seu grande público você é descartável. E eu não. Essa é a diferença entre nós dois. Portanto você deve desaparecer, e eu devo ficar. ” Seu carro flutuava, subindo em direção às estrelas. Começou a cantarolar em voz baixa, procurando enxergar à frente adiantar o tempo, visualizar o mundo do seu lar, mundo de música, reflexão, amor, cheio de livros, caixas de rapé ornamentadas e selos raros. Para apagar por um momento o vento que soprava à sua volta enquanto prosseguia em seu mosquinha, partícula de pó quase perdida na noite. “Há uma beleza que nunca se perderá”, afirmou para si mesmo; “vou preservá-la; sou uma das pessoas que sabem apreciá-la. E eu vou perdurar. E só isso, em última análise, é o que importa.” Continuava cantarolando. Por fim sentiu menos frio quando o aquecedor do mosquinha começou a funcionar. Alguma coisa pingou-lhe do nariz e caiu em seu casaco. “Meu Deus”, pensou horrorizado. “Estou chorando outra vez. ” Limpou dos olhos as lágrimas engorduradas. “Por quem? ”, perguntou-se. “Por Alys? Por Taverner? Pela tal de Hart? Ou por todos eles? ” “Não”, pensou. “É um reflexo. Causado pelo cansaço e pela preocupação. Não significa nada. Por que um homem chora? ”, perguntou-se. “Não é como uma mulher; não pelo mesmo motivo. Não por sentimentalismo. Um homem chora pela perda de alguma coisa, de algo vivo. Um homem chora por um animal doente, que sabe que não vai sobreviver. Pela morte de uma criança: um homem pode chorar por isso. Mas não por que as coisas são tristes. ” “Um homem não chora pelo futuro nem pelo passado”, pensou, “mas pelo presente. E o que é o presente agora? Neste momento estão autuando Jason Taverner lá na Academia de Polícia e ele está lhes contando sua história. Como todo mundo, eles têm sua versão para contar, versão que deixa bem clara sua inocência. Jason Taverner, neste momento em que viajo neste veículo, está fazendo isso. ” Girando a direção, direcionou o mosquinha numa longa trajetória que por fim o levou a um Immelman; fez o veículo voltar pelo mesmo caminho em que viera, sem aumentar nem diminuir a velocidade. Apenas passou a voar na direção oposta. De volta à Academia. E continuava chorando. Suas lágrimas de momento a momento tornavam-se mais densas, mais rápidas, mais profundas. “Estou indo na direção errada”, pensou. “Herb tem razão: tenho que escapar de lá. Não posso fazer mais nada agora além de testemunhar algo que não posso mais controlar. Tenho camadas de tinta pintadas sobre mim, como um afresco. Existo em apenas duas dimensões. Eu e Jason Taverner somos figuras num antigo desenho de criança. Perdidos na poeira. ” Pressionou o acelerador e puxou o volante do mosquinha; o motor começou a cuspir e estourar. “O afogador automático ainda não está funcionando”, pensou. “Eu devia ter acelerado um pouco mais. Ainda está frio.” Mais uma vez mudou de rumo. Fatigado e com dor de cabeça, colocou o cartão com a rota de casa no controlador de direção do mosquinha e ligou o piloto automático. “Eu deveria descansar”, pensou. Levantando o braço, ativou o circuito hipnótico embutido no teto; o mecanismo começou a zumbir e ele fechou os olhos. O sono artificialmente induzido veio como sempre de imediato. Sentiu-se cair em espiral numa modorra, e ficou contente. Mas logo em seguida, para além do controle do circuito hipnótico, veio um sonho. Era bem claro para ele que não queria aquele sonho. Mas não conseguia detê-lo. Verão. O campo seco e queimado onde vivera quando criança. Estava andando a cavalo, e pela sua esquerda veio chegando devagar um bando de cavalos. Neles cavalgavam homens com túnicas brilhantes, cada uma de cor diferente; usavam capacetes pontiagudos que faiscavam à luz do sol. Os solenes cavaleiros se aproximavam lentamente, e conseguiu distinguir o rosto de um deles que passava: uma antiga face marmórea, um homem terrivelmente velho com uma cascateante barba branca. Que nariz forte ele possuía. Que feições nobres. Tão cansado, tão sério, tão além dos homens comuns. Era evidente que se tratava de um rei. Felix Buckman deixou-os passar; não falou com eles e os cavaleiros tampouco lhe dirigiram a palavra. Encaminharamse para a casa da qual ele havia saído. Um homem havia-se trancado na casa, um homem vizinho: Jason Taverner, no silêncio e na escuridão, sem janelas, em inteira solidão, desde agora até a eternidade. Sentado inerte, apenas existindo. Felix Buckman continuou cavalgando pelos vastos campos. E foi então que ouviu atrás de si um terrível grito, um só. Haviam matado Taverner; vendo-os entrar, sentindo a presença deles nas sombras que o rodeavam, sabendo o que pretendiam fazer, Taverner soltara aquele grito. Dentro de si Felix Buckman sentiu uma terrível e desolada angústia. Mas no sonho não voltou para a casa nem olhou para trás. Nada havia que se pudesse fazer. Ninguém poderia ter detido o bando justiceiro em túnicas multicores; ninguém lhes poderia dizer não. E, de qualquer forma, tudo já tinha terminado. Taverner estava morto. Seu cérebro conturbado conseguiu enviar um sinal através de minúsculos eletrodos para o circuito hipnótico. Um interruptor de voltagem ligou-se com um estalido e um zumbido forte e perturbador acordou Buckman de seu sono e seu sonho. “Meu Deus”, pensou com um estremecimento. Como havia esfriado. Como se sentia vazio e sozinho. A plangente angústia deixada pelo sonho ainda lhe corroía o peito; continuou perturbado. “Tenho que aterrissar”, pensou. “Ver alguém. Falar com alguém. Não posso ficar sozinho. Se eu pudesse só por um segundo...” Desligou o piloto automático e dirigiu o mosquinha para um quadrado de luzes fluorescentes que via abaixo: um posto de gasolina aberto a noite toda. Dentro de instantes pousou com muitos solavancos diante das bombas de gasolina e parou próximo a outro mosquinha estacionado, parecendo abandonado. Ninguém em seu interior. O clarão das lâmpadas iluminou a figura de um negro de meia-idade vestindo um sobretudo e uma distinta gravata colorida; seu rosto era aristocrático, com as feições bem delineadas. O negro, de braços cruzados, andava de lá para cá no chão de cimento manchado de óleo, no rosto uma expressão ausente. Era claro que esperava que o robô que servia no posto terminasse de encher o tanque de seu mosquinha. O negro não mostrava impaciência nem resignação; limitava-se a existir, remoto, isolado e esplêndido, com seu corpo forte e ereto, sem ver nada pois não havia nada que lhe interessasse ver. Estacionando o mosquinha, Felix Buckman desligou o motor, saiu e deu alguns passos rígidos no ar frio da noite. Encaminhou-se para o homem negro. Este não olhou para ele. Manteve a distância, caminhando a passos tranquilos. Calado. Felix Buckman remexeu no bolso do paletó com os dedos trêmulos de frio; encontrou sua caneta esferográfica e passou a vasculhar os bolsos procurando um pedaço de papel, qualquer papel, qualquer folha de bloco. Acabou encontrando e colocou a folha sobre o teto do mosquinha do cavalheiro negro. Ã luz crua e branca do posto de gasolina, Buckman desenhou no papel um coração trespassado por uma flecha. Tremendo de frio, dirigiu-se ao negro e estendeu-lhe o papel com o desenho. Mostrando nos olhos o brilho de uma surpresa fugaz, o negro soltou uma exclamação espantada, aceitou o papel e segurou-o na luz para examiná-lo. Buckman esperou. O negro virou o papel, viu que não havia nada do outro lado, examinou mais uma vez o coração flechado. Franziu o cenho, deu de ombros, devolveu o papel a Buckman e continuou a caminhar em passadas calmas, mais uma vez cruzando os braços, voltando suas largas costas ao general de Polícia. O pedaço de papel voou, perdido. Em silêncio Felix Buckman retornou ao seu mosquinha, abriu a porta e sentou-se ao volante. Ligou o motor, fechou a porta e levantou voo no ar noturno, com as luzes vermelhas de alerta piscando atrás e na frente do veículo. Terminada a subida apagaramse automaticamente, e Felix prosseguiu acompanhando a linha do horizonte, sem pensar em nada. Mais uma vez vieram as lágrimas. Num movimento súbito girou a direção; o mosquinha deu um violento estouro no motor, baixou a frente e iniciou uma trajetória vertical; em alguns momentos ele mais uma vez estacionava na luz crua do posto ao lado do mosquinha vazio, do homem negro que caminhava, das bombas de gasolina. Buckman brecou, desligou o motor, saiu do carro com as juntas estalando. O negro agora olhava para ele. Buckman caminhou em direção ao negro. Este não recuou; ficou onde estava. Buckman chegou até ele, abriu os braços e deu-lhe um abraço apertado. O negro soltou uma exclamação de surpresa. E consternação. Nenhum dos dois disse palavra. Assim ficaram por um instante, até que Buckman soltou o homem, virou-se e voltou ao seu mosquinha em passos inseguros. — Espere — disse o negro. Buckman voltou-se para encará-lo. O negro hesitou por um momento, tremendo de frio, e então disse: O senhor sabe como se vai até Ventura? Pela rota aérea 30? — Ficou esperando. Buckman não disse nada. — Sei que são uns oitenta quilômetros ao norte daqui. — Buckman continuava calado. — O senhor tem um mapa desta região? — perguntou o negro. — Não — disse Buckman. — Sinto muito. — Vou perguntar no posto de gasolina — disse o negro, e deu um sorriso um pouco envergonhado. — Muito prazer... em conhecê-lo. Como o senhor se chama? — Esperou um longo momento. — O senhor não quer me dizer? — Não tenho nome — disse Buckman. Nesse momento, não tenho. — De fato, naquele momento não suportava pensar naquilo. — O senhor por acaso é funcionário público? Trabalha na Câmara de Comércio de Los Angeles? — Já fiz negócios com eles; são boa gente. — Não — disse Buckman. — Sou um indivíduo. Como o senhor. — Bem, eu tenho nome — disse o negro. Com agilidade tirou do bolso interno do paletó um cartão em papel grosso, que passou a Buckman. — Montgomery L. Hopkins. Veja esse cartão. Não é bem impresso? Gosto dessas letras em alto-relevo. Cinquenta dólares o milheiro foi o que me custou; consegui um preço especial numa oferta inaugural exclusiva. — O cartão trazia belas letras negras em relevo. — Fabrico fones de ouvido analógicos com bio-realimentação. Não são caros. Saem no varejo por menos de cem dólares. — Venha me visitar — disse Buckman. — Telefone para mim — disse o negro. Devagar e com firmeza, mas num tom de voz um pouco alto, disse: — Esses lugares, esses postos de gasolina automáticos com robôs, são deprimentes à noite. Noutra hora podemos conversar melhor. Em algum lugar mais agradável. Compreendo como o senhor está se sentindo; às vezes esses lugares deixam a gente na fossa. Muitas vezes encho o tanque quando volto da fábrica para casa para não ter que parar aqui mais tarde. Recebo muitos chamados à noite, por vários motivos. Sim, estou vendo que o senhor está meio por baixo. Sabe como é. Deprimido. É por isso que me deu aquele papel; na hora infelizmente não compreendi o que era, mas agora compreendo. Depois quis me abraçar; naquele instante foi como uma criança. Também já tive algumas vezes na minha vida esse tipo de inspiração, ou impulso. Estou com 47 anos. Eu compreendo. A gente não quer ficar sozinho tarde da noite, principalmente numa noite tão fria como esta. Sim, concordo plenamente, e agora o senhor não sabe bem o que dizer porque fez uma coisa repentina num impulso irracional, sem pensar nas consequências. Mas tudo bem; compreendo. Não se preocupe, não se preocupe nadinha mesmo. O senhor precisa vir me visitar. Vai gostar da minha casa. É muito agradável. Precisa conhecer minha mulher e nossos filhos. São três. — Está certo — disse Buckman. — Vou guardar seu cartão. — Tirou a carteira do bolso e guardou o cartão. — Obrigado. — Estou vendo que meu mosquinha já está pronto — disse o negro. — Estava precisando de óleo também. — Hesitou um pouco, começou a afastar-se mas voltou e estendeu a mão. Buckman a apertou por um momento. — Até logo — disse o negro. Buckman ficou olhando para ele enquanto ele ia embora; o negro pagou a gasolina, entrou em seu mosquinha um pouco malhado, deu a partida e levantou voo na escuridão. Ao passar acima de Buckman tirou a mão direita da direção e lhe fez um aceno cordial. “Boa-noite”, pensou Buckman, acenando também em silêncio, com os dedos mordidos de frio. Entrou então de novo em seu mosquinha; hesitou, sentindo-se embotado; como não via mais nada, bateu a porta bruscamente e deu a partida. Logo mais estava cruzando o céu. “Jorrem minhas lágrimas”, pensou. “Foi a primeira música abstrata jamais escrita. John Dowland, no seu Segundo Livro para Alaúde, de 1600. Vou tocá-lo no meu quadsom novo quando chegar em casa. Aí posso me lembrar de Alys e tudo o mais. Em casa, com uma sinfonia, o fogo aceso na lareira, muito calor. ” “Vou pegar meu garotinho. Amanhã cedo vou para a Flórida pegar o Barney. De agora em diante ele vai ficar comigo. Nós dois juntos. Não importam as consequências. Mas agora não vai haver nenhuma consequência; tudo terminou. Tudo está a salvo. Para sempre. ” O mosquinha voava pelo céu noturno. Como um inseto ferido, meio dissolvido. Levando-o para casa. PARTE QUATRO Ouvi, ó sombras que residem na noite! Aprendei a condenar a luz. Ditosos, ó, ditosos os que no inferno. Não sofrem as afrontas do mundo. Epílogo O julgamento de Jason Taverner por homicídio em primeiro grau de Alys Buckman em circunstâncias misteriosas saiu pela culatra, finalizando com um veredicto de inocência, devido em parte à excelente assistência legal proporcionada pela NBC e por Bill Wolfer, mas também devido ao fato de que Taverner não cometera nenhum crime. Não houve na verdade crime algum, e o relatório inicial do médico-legista foi revogado; a isto se seguiu o afastamento desse médico e sua substituição no cargo por outro mais jovem. Os índices de audiência do show de Jason Taverner, que haviam baixado muito durante o julgamento, subiram com o veredicto e Taverner viu-se com um público de 35 milhões em vez de 30. A casa que Felix Buckman e sua irmã Alys possuíam e ocupavam ficou vários anos sendo objeto de uma nebulosa disputa legal; Alys doara sua parte da propriedade a uma organização lésbica chamada Filhos de Caribron, cuja sede ficava em Lee’s Summit, no Estado de Missouri, e os membros da sociedade desejavam transformar a casa num retiro para os vários santos que cultuavam. Em março de 2003 Buckman vendeu sua parte para os Filhos de Caribron e com o dinheiro que apurou mudou-se com suas inúmeras coleções de objetos para Bornéus, onde a vida era barata e a polícia, amigável. As experiências com a droga KR-3, que induzia à multiespacialidade, foram abandonadas no final de 1992 em virtude de suas propriedades tóxicas. Contudo, durante vários anos a polícia utilizou-a em experimentos secretos com internos em campos de trabalhos forçados. Porém no final, em virtude dos muitos perigos que acarretava, o Diretor ordenou que o projeto fosse abandonado. Kathy Nelson um ano depois ficou sabendo e aceitou o fato de que Jack, seu marido, morrera há muito tempo, como McNulty lhe havia dito. Este reconhecimento precipitou uma grave crise psicótica, que dessa vez a levou ao internamento permanente num hospital psiquiátrico muito menos elegante que o de Morningside. Pela quinquagésima e última vez em sua vida Ruth Rae casou-se, desta feita com um senhor de idade, rico e barrigudo, importador de armas de fogo, residente em Nova Jersey, cujos negócios situavam-se nos limites do permitido por lei. Na primavera de 1994 Ruth morreu de uma overdose de álcool tomado com um novo tranquilizante, a Frenozina, que age como depressor do sistema nervoso central e suprime a ação do nervo vago. Ao morrer pesava 46 quilos, em resultado de difíceis e crônicos problemas psicológicos. Nunca se conseguiu determinar com clareza se sua morte foi acidental ou suicídio, pois a droga era relativamente nova. Seu marido, Jake Mongo, por ocasião da morte de Ruth, havia-se endividado muito e não sobreviveu mais do que um ano. Jason Taverner compareceu ao enterro de Ruth e na cerimônia ficou conhecendo uma amiga dela chamada Fay Krankheit, com quem passou a ter um relacionamento que durou dois anos. Através dela Jason ficou sabendo que Ruth Rae periodicamente se conectava à rede telefônica transexual; ao saber disso compreendeu melhor por que ela chegara no estado em que estava quando a encontrou em Las Vegas. Cínica e envelhecida, Heather Hart foi abandonando aos poucos sua carreira de cantora e sumiu de vista. Após fazer algumas tentativas de localizá-la, Jason Taverner desistiu e passou a considerála um dos maiores sucessos de sua vida, apesar do final melancólico. Jason também ficou sabendo que Mary Anne Dominic ganhara um importante prêmio internacional por seus objetos culinários em cerâmica, mas nunca se deu ao trabalho de tentar localizá-la. Mônica Buff, contudo, reapareceu em sua vida no final de 1998, desgrenhada como sempre mas ainda atraente a seu modo. Jason saiu com ela algumas vezes e depois lhe deu o fora. Durante meses ela lhe escreveu longas e estranhas cartas cheias de sinais obscuros desenhados sobre as palavras; isto também, contudo, acabou cessando, o que o alegrou. Nos subterrâneos das ruínas das grandes universidades, a população estudantil aos poucos desistiu de suas vãs tentativas de manter a vida tal como a entendiam e voluntariamente — em geral — entraram em campos de trabalhos forçados. Assim os resquícios da Segunda Guerra Civil pouco a pouco se desvaneceram e em 2004 um modelopiloto, a Universidade de Colúmbia, foi reconstruído. Turmas de alunos sadios e inócuos passaram a assistir a seus cursos, sancionados pela polícia. Já no fim de sua vida o general de Polícia aposentado Felix Buckman, que vivia em Bornéus com sua aposentadoria, escreveu um relato autobiográfico a respeito do aparato policial planetário; o livro logo começou a circular ilegalmente nas principais cidades da Terra. Por este motivo, no verão de 2017 o general Buckman foi assassinado, sem que jamais se identificasse o assassino nem se fizesse nenhuma prisão. Seu livro, A Ideologia da Obediência à Lei, continuou a circular clandestinamente por vários anos após sua morte; mas até isso acabou caindo no esquecimento. Os campos de trabalhos forçados foram-se reduzindo e terminaram por desaparecer. Ao longo das décadas o aparato policial tornou-se pouco a pouco tão grande e lerdo que já não oferecia ameaça a ninguém. Em 2136 o posto de marechal de Polícia foi eliminado. Alguns dos desenhos de sadomasoquismo que Alys Buckman colecionara durante sua vida bruscamente interrompida foram parar em museus que exibiam artefatos de culturas populares desaparecidas; ela acabou sendo oficialmente reconhecida pela Revista Trimestral de Biblioteconomia como a maior autoridade dos fins do século XX em arte SM. O selo negro de um dólar da Trans-Mississippi que Felix Buckman lhe dera foi comprado num leilão em 1999 por um negociante de Varsóvia, na Polônia. A partir daí desapareceu no nebuloso mundo da filatelia, para nunca mais emergir. Barney Buckman, o filho de Felix e Alys Buckman, teve uma juventude difícil, entrou na polícia de Nova Iorque e em seu segundo ano de serviço caiu de uma escada de emergência defeituosa ao atender a um chamado de tentativa de assalto num cortiço que já fora habitado por uma rica população negra. Paralisado da cintura para baixo aos 23 anos, começou a interessar-se por velhos comerciais de tevê e em pouco tempo possuía uma coleção dos mais antigos e valorizados espécimes do gênero, que comprava, vendia e permutava com astúcia. Viveu até avançada idade, conservando apenas uma tênue lembrança de seu pai e absolutamente nenhuma recordação da mãe. De modo geral, Barney Buckman se queixava pouco e continuou a absorver-se em particular nos velhos anúncios de AlkaSeltzer, sua especialidade em meio a todas aquelas trivialidades dos anos de ouro. Alguém na Academia de Polícia de Los Angeles roubou a pistola Derringer calibre 22 que Felix Buckman guardava em sua escrivaninha, que assim desapareceu para sempre. Naquela época as armas com balas de chumbo já quase não existiam mais, exceto como peças de coleção, e o funcionário da Academia encarregado de localizar a Derringer deduziu com inteligência que ela devia ter-se tornado um acessório no apartamento de solteiro de algum policial sem importância, e abandonou neste ponto a investigação. Em 2047 Jason Taverner, há muito afastado da área artística, morreu, numa casa de repouso elegante, de fibrose alcoólica, moléstia adquirida pelos terráqueos nas colônias marcianas mantidas por fundos particulares para o dúbio entretenimento das elites. Seus bens consistiam de uma casa de cinco quartos em Des Moines, repleta sobretudo de souvenirs, e muitas ações de uma companhia que havia tentado — sem sucesso — financiar um serviço de transporte para a Próxima Centaurus. Seu falecimento não teve muita repercussão, embora pequenos anúncios fúnebres aparecessem na maioria dos jornais metropolitanos; foi ignorado pelas personalidades de tevê mas não por Mary Anne Dominic, que, mesmo aos oitenta anos, ainda considerava Jason Taverner uma celebridade e seu encontro com ele um marco da maior importância em sua longa e bemsucedida existência. O vaso azul feito por Mary Anne Dominic e comprado por Jason Taverner para presentear Heather Hart acabou numa coleção particular de cerâmica moderna. Está lá até hoje, e é muito apreciado. Na verdade, é tido como um tesouro por alguns conhecedores de cerâmica, que lhe devotam indisfarçado e genuíno amor. FIM Biografia Philip K. Dick nasceu em Chicago, em 1928. Apaixonado por música, empregou-se numa loja de discos e produziu um programa clássico na estação de rádio KSMO, de San Mateo, Califórnia. Estudou na Universidade daquele Estado, mas não terminou o curso porque “havia gente demais fumando e lendo o Dayly Cal, o que não me permitia ouvir os professores Começou a ler ficção científica aos 12 anos, em consequência de um engano: comprou Stirring Science Fiction em vez de Popular Science. Lia muito Joyce, Kafka, Steinbeck, Proust, Dos Passos e Ibsen. Morreu em 1982. {1} ID = identidade, documento. (N.T.)