UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS NATAL/RN 2011 LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS Dissertação apresentada a Banca Examinadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Profª Drª Rita de Lourdes de Lima NATAL/RN 2011 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Silva, Luisa de Marilac de Castro. Concepções e práticas dos profissionais que atuam na educação infantil diante da violência doméstica contra crianças de zero a cinco anos / Luisa de Marilac de Castro Silva. - Natal, RN, 2011. 164 f. Orientadora: Drª. Rita de Lourdes de Lima. Dissertação (Mestrado em Serviço social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pósgraduação em Serviço social. 1. Serviço social - Dissertação. 2. Violência doméstica - Crianças – Dissertação. 3. Educação infantil – Professor - Dissertação. 4. Prática Docente – Educação infantil – Dissertação. I. Lima, Rita de Lourdes de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 364.62-47.053.2 LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS Dissertação apresentada a Banca Examinadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Aprovado em 29/07/2011 BANCA EXAMINADORA RITA DE LOURDES DE LIMA (Presidente) ELIANA COSTA GUERRA (Membro Interno) GLAUCIA HELENA ARAUJO RUSSO – UERN (Membro Externo) ROSÂNGELA ALVES DE OLIVEIRA (Suplente) Aos meus pais, Juarez e Maria José. AGRADECIMENTOS À Profª Drª Rita de Lourdes de Lima, minha adorável orientadora, pela maneira firme e doce com que conduziu este árduo processo de construção. À Profª Drª Silvana Mara, sem sua intervenção eu não teria conseguido. Ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, pelo acolhimento. Ao meu marido Mardes e aos meus filhos Asafe e Ana Luisa por compreenderem minha ausência. À Nita, que cuidou da casa, das compras e das “crianças” enquanto eu pesquisava. Aos colegas das turmas 2008 e 2009 pela convivência, antes e depois do Timor-Leste. Aprendi demais com vocês. À Igreja Betesda de Natal por apoiar meus sonhos. RESUMO O estudo apresenta a problemática da violência doméstica contra crianças de zero a cinco anos no contexto dos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) no município de Natal-RN. Constitui-se em uma análise sob o enfoque teórico-metodológico de base qualitativa, na perspectiva de totalidade, tendo como pressuposto a violência doméstica contra crianças nas suas dimensões sociais, legais, histórico-culturais que norteiam o tema. Objetiva investigar se os profissionais que atuam na Educação Infantil são capazes de identificar possíveis situações de violência doméstica contra crianças que se encontram sob sua responsabilidade e ainda se, em casos de suspeita ou identificação de casos concretos sabem quais encaminhamentos devem ser adotados. O percurso estabelecido entre conhecimento e método envolve: análise conceitual sobre a infância, a educação infantil e a violência doméstica contra crianças, além da realização de grupos focais com os participantes da pesquisa com os respectivos registros em diário de campo. Apreendem-se nesse estudo as contradições existentes no enfrentamento da violência doméstica contra crianças. Mesmo tendo conhecimento teórico sobre a temática, os profissionais não conseguem dar os encaminhamentos adequados no sentido de proteger a criança e fazer cessar a violência. Identifica-se que as condições objetivas de trabalho dos profissionais que atuam nos CMEI, associadas ao pouco conhecimento sobre a temática, contribuem para os não encaminhamentos. Conclui-se que se faz necessário o envolvimento da Secretaria Municipal de Educação, sem esquecer de que todas as ações têm limites, visto que a violência doméstica contra a criança está também relacionada a questões estruturais da sociabilidade capitalista. Palavras-chave: Violência doméstica. Criança. Infância. Educação Infantil. RESUMEN El estudio presenta el problema de la violencia doméstica contra los niños de hasta cinco años en el contexto de los centros municipales de Educación Infantil (CMEI) en la ciudad de Natal-RN. Constituye un análisis bajo el enfoque teórico y metodológico de carácter cualitativo, en vista de la totalidad, con la asunción de la violencia doméstica contra los niños en su guía sociales, legales, históricos y culturales con el tema. Tiene como objetivo investigar si los profesionales que trabajan en Educación Infantil son capaces de identificar las posibles situaciones de violencia doméstica contra los niños que están bajo su responsabilidad, e incluso si, en los casos de los casos sospechosos o reales de la identidad de saber que las referencias deben ser adoptadas. La ruta entre el conocimiento y el método establecido implica el análisis conceptual de la infancia, la educación infantil y violencia doméstica contra los niños, además de la realización de grupos focales con los participantes de la encuesta con sus registros en un diario de campo. Perciben a sí mismos para el estudio de las contradicciones en la lucha contra la violencia doméstica contra los niños. Incluso con los conocimientos teóricos sobre el tema, los profesionales no pueden dar referencias adecuadas para proteger a los niños y detener la violencia. Nos encontramos con que las condiciones objetivas del trabajo de los profesionales que trabajan en CMEI, asociados con poco conocimiento sobre el tema, no contribuyen a las referencias. Llegamos a la conclusión de que es necesario la participación de la Secretaría Municipal de Educación, sin olvidar que todas las acciones tienen limitaciones como la violencia doméstica contra los niños también se relaciona con problemas estructurales de la sociabilidad capitalista. Palabras clave: violencia doméstica. Niño. La infancia. Educación Infantil. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9 2 CONTEXTUALIZANDO A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL .............. 19 2.1 A Concepção de Criança e a Educação Infantil no Brasil ....................................... 26 2.1.1 Especificidades e funções da Educação Infantil ......................................................... 37 2.1.2 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil ...................... 47 2.2 A Educação Infantil em Natal ....................................................................................... 51 2.2.1 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil no âmbito da Secretaria Municipal de Educação no município do Natal......................................... 56 3 COMPREENDENDO O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS .......................................................................................... 60 3.1 Modelos explicativos da violência doméstica contra a criança .............................. 68 3.2 Que terminologia empregar? Que conceituação escolher? .................................... 71 3.3 Modalidades de violência doméstica contra crianças .............................................. 74 3.3.1 Violência física ........................................................................................................ 74 3.3.2 Violência psicológica .............................................................................................. 76 3.3.3 Violência sexual ...................................................................................................... 79 3.3.4. Negligência e Abandono ...................................................................................... 81 3.4 A Política Nacional de Assistência Social e o Sistema de Garantia de Direitos: dois instrumentos na luta contra a violência doméstica infantil .................................... 83 4 OS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS ............................................. 95 4.1 O referencial teórico-metodológico da pesquisa....................................................... 98 4.2 (Re)conhecimento do campo e definições iniciais ................................................. 104 4.3 Concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica contra a criança ......................................................................... 115 CONCLUSÕES APROXIMATIVAS .................................................................. 137 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 142 ANEXO ................................................................................................................. 155 9 1 INTRODUÇÃO A violência doméstica contra crianças permeia todas as classes sociais como violência de natureza interpessoal. É uma realidade dolorosa que sempre contou com a condescendência da sociedade. Sua prática remonta a idade antiga e as justificativas que buscam legitimá-la estão fundamentadas em mitos e preconceitos historicamente constituídos. Os mitos são crenças resistentes a evidências empíricas cuja manutenção se explica por desconhecimento, ignorância ou interesses ideologicamente camuflados1. Nossa sociedade alimenta a falsa ideia de que a família é sem mácula, perfeita, harmoniosa e que a criança precisa de disciplina para se tornar um adulto idôneo. Assim, somos levados a crer, partindo do senso comum2, que todos os pais amam a seus filhos e que são incapazes de fazer-lhes mal. Porém, tal mito pode ser facilmente desconstruído à medida que observamos as diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e lugares. A infância não existe como categoria estática, mas muda historicamente com os diferentes contextos sociais, econômicos e geográficos. As crianças de hoje não são exatamente iguais às do século passado, nem serão idênticas às que virão nos próximos séculos. A concepção que nossos pais tinham de nós quando éramos crianças é muito diferente da concepção que possamos ter agora de nossos filhos (ARROYO, 1994). Existem registros apontando que as práticas realizadas pelos adultos, hoje denominadas de violência doméstica contra a criança, estiveram presentes em diferentes períodos da humanidade. Os relatos históricos apontam que o assassinato de crianças pelos pais era uma prática utilizada 1 Mitos também eram narrativas utilizadas pelos povos antigos para explicar fatos da realidade e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles. Os mitos antigos foram a base do pensamento racional. 2 O senso comum descreve as crenças e proposições que aparecem como normal, sem depender de uma investigação detalhada para alcançar verdades mais profundas como as científicas. 10 nas sociedades antigas. Nos séculos XI e XII a.C. as crianças eram propriedade do pai, que podia dispor sobre suas vidas e morte. Naquele tempo era comum, caso não fossem desejadas, por nascerem com alguma deficiência, por exemplo, serem abandonadas nas estradas. Qualquer adulto que as encontrassem poderia transformá-las em escravas. O abandono e a morte de crianças também aconteciam com vistas ao equilíbrio de sexo, por motivos religiosos ou por corte de despesas financeiras (CUNHA, 2004). Com o passar do tempo e com o desenvolvimento das ciências, os membros da sociedade começam a recusar este tipo de atitude contra as crianças. O infanticídio foi declarado um crime alvo de punição a partir de 374 d.C. No século XII a Inglaterra promulgou a primeira lei igualando a morte de crianças ao homicídio de adultos (ASSIS, 1994). Mas a aplicação de castigos físicos pelos pais e responsáveis às crianças que os desobedecessem ainda continuava sendo uma prática aceitável. No século XVII, a aplicação de práticas disciplinares rígidas é ressaltada por Guerra (1989). De acordo com a autora, nessa época, havia uma atenção aos dizeres bíblicos, especialmente por parte dos fundamentalistas: “Aquele que poupa a vara, quer mal ao seu filho, mas o que o ama, corrige-o continuamente” (PROVÉRBIOS 13:24), “Castigando- o com a vara, salvará sua vida da morada dos mortos” (PROVÉRBIOS 23:14). Defendia-se, dessa forma, a punição física como método disciplinar, mas não aquela que pudesse levar a criança à morte (GUERRA, 1989). De acordo com Ariès (1981), nesse século, a família e a Igreja utilizaram, com as crianças, o chicote e as correções aplicadas aos condenados das classes mais populares. No entanto, a aplicação destas punições traduzia, segundo este autor, um amor obsessivo à criança. Até o século XII o conceito de infância ainda não tinha sido “descoberto” e a criança era considerada como um adulto em miniatura. O começo da descoberta do conceito de infância ocorreu a partir do século XIII, quando a criança passou a ser retratada nas artes de forma diferente do adulto. Contudo, o conceito de infância apareceu de forma mais clara somente a partir do século XIX em diante, quando a criança passou a ser objeto de estudos da psicologia, psicanálise e pediatria. Estas ciências, recém-descobertas, deram à criança um sentido de valor e importância, de modo que o século XX foi 11 denominado o “século das crianças”. Assim, inúmeros esforços foram empreendidos a fim de que este indivíduo fosse protegido, fazendo surgir vários documentos cujo objetivo seria legitimar esta proteção (ARIÈS, 1981). De fato, desde a segunda metade do século XX, sob o ponto de vista normativo, a proteção integral da criança tem avançado e vem permeando documentos internacionais e ordenamentos jurídicos em todo o mundo. Em 1959 a Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU)3 aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, cujo preâmbulo afirma que em decorrência da sua imaturidade física e mental, a criança precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois de seu nascimento. O contexto da análise das políticas sociais, da assistência e das legislações à infância no Brasil no período histórico compreendido entre os anos 60 e 80 do século XX reflete as continuidade e descontinuidades quanto à garantia dos direitos. Nos anos 1960, o país se insere na conjuntura de crescente organização dos movimentos populares, que exigiam reformas de base em todas as áreas, ocasionando importantes conquistas. Mas o Golpe Militar de 1964 interrompeu o avanço da democracia no país por mais de 20 anos, afetando diretamente o avanço na esfera da conquista dos direitos civis. A área infanto-juvenil, durante a Ditadura Militar (1964-1985), foi pautada por dois documentos significativos e indicadores da visão vigente: a Lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513 de 1/12/64) e o Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79). A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) tinha como objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem Estar do Menor, e se propunha a ser a grande instituição de assistência à infância, cuja linha de 3 Trata-se de uma organização internacional cujo objetivo declarado é facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial. A ONU foi fundada em 1945 após a Segunda Guerra Mundial para substituir a Liga das Nações, com o objetivo de deter guerras entre países e para fornecer uma plataforma para o diálogo. Ela contém várias organizações subsidiárias para realizar suas missões (Disponível em http://www.onubrasil.org.br. Acesso: 22/07/2011). 12 ação tinha na internação, tanto dos abandonados e carentes como dos infratores, seu principal foco. O Código de Menores de 1979 constituiu-se em uma revisão do Código de Menores de 1927, não rompendo, no entanto, com sua linha principal de arbitrariedade, assistencialismo e repressão junto à população infanto-juvenil. Esta lei introduziu o conceito de "menor em situação irregular", que reunia o conjunto de meninos e meninas que estavam dentro do que alguns autores denominam infância em "perigo" e infância "perigosa". Esta população era colocada como objeto potencial da administração da Justiça de Menores. No final da década de 1970 e parte dos anos de 1980, na esteira do processo de redemocratização do país, os movimentos sociais populares articulados por grupos de oposição ao então regime militar surgiram por diversas regiões, contribuindo para a conquista de direitos sociais novos, inscritos na Constituição de 1988. Nesta perspectiva, a Constituição Federal do Brasil (CF), promulgada em 1988, determina que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, Art.227) Portanto, compete ao Estado formular políticas, implementar programas e viabilizar recursos que garantam à criança desenvolvimento integral e vida plena. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 (BRASIL,1990), regulamentou os artigos da Constituição Federal referente à garantia de proteção à infância e adolescência 13 e passou a ter força de lei, reconhecendo as crianças e adolescentes como sujeitos de direito. Em razão de sua dependência física e emocional em relação ao adulto, para não mencionar sua dependência econômica, a criança detém vários direitos humanos. Tais direitos não devem apenas ser respeitados pelos adultos, antes, faz-se necessário que a sociedade se conscientize sobre seu papel social de proteção à infância. Assim, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a concepção de atendimento a criança e ao adolescente mudou, pois essa lei garante que suas necessidades sejam atendidas de forma prioritária, por parte da família, da sociedade e do Estado. Portanto a esse grupo é assegurado direitos especiais, ou seja, ao mesmo tempo em que deve ser protegido, precisa ser respeitado, por causa de sua condição de pessoa humana em desenvolvimento físico, moral e psicológico. (BRASIL, 1990). As legislações mencionadas acima inserem a criança brasileira no mundo dos direitos humanos e determinam políticas de atendimento e de proteção à criança e ao adolescente, sendo especificadas ainda medidas de punição aos agressores. Mas apesar dos avanços, sabe-se que diariamente milhares de crianças são submetidas as mais variadas formas de violência. Entre elas, a violência doméstica se destaca como um câncer silenciosamente espalhado pelas casas de qualquer cidade. Em uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) da Universidade de São Paulo (USP) entre 1996 e 2007 foi feito um levantamento do número de casos notificados de violência doméstica contra a criança, em três meses do primeiro semestre de cada ano, nas instituições de proteção dos 182 municípios aos quais pertenciam os alunos inscritos num curso oferecido por eles. Os resultados obtidos apontam para 159.754 casos notificados (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007). Em outra pesquisa, realizada em Ribeirão Preto/São Paulo, buscou-se mensurar a prevalência de violência doméstica, por amostragem, em crianças matriculadas de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental nos estabelecimentos de ensino da rede pública e particular. Os resultados 14 apontaram – numa amostra de 3.885 crianças, a existência de 152 casos de violência doméstica (FALEIROS, 2006). Dessa forma, é notório que a violência contra a criança no ambiente familiar persiste nos dias atuais, demonstrando a fragilidade da infância brasileira bem como a dificuldade de planejar e executar ações visando o enfrentamento deste fenômeno. Diante do exposto até aqui se evidencia a necessidade urgente de promovermos reflexões e ações que visem ao rompimento do ciclo de violência contra a criança. A questão da violência contra crianças é, pois, o grande desafio colocado para todos os segmentos da sociedade, conforme está posto na Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Dessa forma, a atuação frente à violência deixa de ser privilégio da segurança pública e da justiça, para ser também responsabilidade dos demais setores governamentais bem como da sociedade civil. Assim, a responsabilidade pela luta contra a violência doméstica dirigida à criança deve ser compartilhada pelas diversas instituições sociais, inclusive pelas instituições educacionais, locais onde as crianças passam boa parte dos seus dias. Nesse contexto, as instituições educativas infantis especialmente as creches e pré-escolas têm enorme destaque, tendo em vista que os estudos sobre a violência doméstica apontam as crianças da faixa etária atendida pela Educação Infantil como sendo as mais vulneráveis à violência familiar. No entanto, pesquisas indicam que profissionais de creches e pré-escolas têm dificuldades para a identificação do fenômeno e que, no Brasil, a participação dessas instituições na notificação de casos aos órgãos de proteção da infância é muito pequena (AZEVEDO; GUERRA, 2006). Estando na função de assessora pedagógica da SME, atuando e discutindo a temática com profissionais do órgão central e das unidades de ensino, bem como com profissionais de outras secretarias e instituições não governamentais, algumas perguntas foram surgindo. Qual o papel do setor educacional e dos profissionais da educação diante da violência doméstica contra as crianças? Como esses profissionais têm se posicionado diante dela? 15 Que discursos sustentam sua prática? Por que o tema suscita tantas angustias e medos quando os profissionais são chamados a fazer alguma coisa em favor das crianças? Por que muitos profissionais não conseguem ver a violência da qual as crianças são vítimas? Que estratégias poderiam ajudar a dirigir tais questões junto a esses profissionais de modo a tornar efetiva alguma ação nesta área? Diante dessa realidade, nossa pesquisa teve como objetivo investigar se os profissionais lotados nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) no município de Natal-RN são capazes de identificar possíveis situações de violência doméstica contra as crianças de zero a cinco anos que se encontram nas suas salas de aula e se sabem quais encaminhamentos devem ser adotados quando se deparam com casos suspeitos ou ocorridos. Os CMEI são instituições educativas infantis, que atendem crianças de zero a três anos (creche) e de quatro a cinco anos (pré-escola), conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelece a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica. Os CMEI foram criados no município de Natal a partir dos anos 1990 na esteira das discussões abertas pela CF sobre o significado e a dimensão das funções da creche e pré-escola, no sentido de superação aos modelos assistencialistas que prevaleceram historicamente. Atualmente a Rede municipal conta com 61 CMEI, atendendo aproximadamente 15 mil crianças. Geralmente, as crianças passam muitas horas do seu dia no ambiente escolar (no caso específico deste trabalho, nos CMEI) e acreditamos que um profissional atento e com formação adequada será capaz de perceber se uma criança que está sob sua responsabilidade é vítima de violência doméstica, embora as evidências de situações concretas sejam compostas por múltiplos indicadores que dificultam o diagnóstico. É nesse contexto que se insere a presente pesquisa, que se justifica pela insuficiência de trabalhos acadêmicos que discutam sobre a responsabilidade e o papel dos profissionais que atuam das creches e préescolas na defesa dos direitos das crianças e que se dediquem a estudar a 16 Educação Infantil como espaço de proteção à criança no que se refere à violência doméstica. A nossa opção metodológica foi por uma pesquisa qualitativa, utilizando o grupo focal como norteador das questões, proporcionando aos participantes a expressão livre de suas ideias, opiniões e experiências, que foram devidamente registradas em um diário de campo. A decisão pela abordagem dos diferentes profissionais que atuam nos CMEI deu-se no sentido de apreendermos suas concepções e práticas, enquanto grupo, diante da violência doméstica contra as crianças atendidas naqueles espaços educativos. Para compreendermos quais concepções e práticas existem na Educação Infantil a respeito da violência doméstica contra crianças, mais especificamente no contexto dos CMEI, fez-se necessário uma discussão sobre infância, Educação Infantil e violência doméstica. Discutir sobre as concepções de infância construídas historicamente nos permitiu compreender que as formas de tratamento, algumas vezes cruéis, que eram dadas à criança no decorrer dos tempos históricos, nem sempre foram vistas como práticas violentas. A discussão sobre Educação Infantil possibilitou-nos visualizar as modificações ocorridas tanto em termos de legislação quanto em termos de concepções sobre a educação oferecida para a faixa etária compreendida entre zero e cinco anos. Ao discutir o conceito e as modalidades de violência doméstica contra crianças nos deparamos com concepções que se complementam e aprendemos que há necessidade de refletirmos sobre as especificidades de cada uma delas face ao recorte temático ao qual nos propomos. Assim, para apresentarmos o percurso desta pesquisa, este trabalho se divide em três capítulos além da Introdução e Conclusões Aproximativas. No segundo capítulo procuramos contextualizar a infância e a Educação Infantil no Brasil e em Natal, pois sabemos que a Educação infantil sofreu grandes transformações nos últimos tempos e o processo de aquisição 17 de uma nova identidade para as instituições que trabalham com crianças foi longo e difícil. Durante esse processo, nasce uma concepção de criança, totalmente diferente da visão tradicional. A criança, que por séculos foi vista como um ser sem importância, quase invisível, passou a ser considerada em todas as suas especificidades, dando origem a novas exigências sociais e econômicas, conferindo à criança um papel de investimento futuro. Desta forma, a criança passou a ser valorizada e, portanto o seu atendimento teve que acompanhar os rumos da história. Sendo assim, de uma perspectiva assistencialista, a Educação Infantil transformou-se em uma proposta pedagógica aliada ao cuidar, procurando atender a criança de forma integral, respeitando as suas especificidades. Nessa perspectiva nossa pesquisa propõe uma discussão sobre a evolução histórica da concepção de infância e sua repercussão no atendimento destinado ás crianças em instituições de Educação Infantil. No capítulo três, buscamos compreender o fenômeno da violência doméstica contra crianças, apresentando-a nas modalidades física, psicológica, sexual, negligência e abandono, a partir da conceituação de violência doméstica como sendo todo ato ou omissão praticado pelos responsáveis da criança contra ela, capaz de causar-lhe dano, seja este intencional ou não. Por último, apresentamos o porquê da pesquisa, as estratégias adotadas e as incursões feitas em campo, justificando a relevância desse trabalho diante da necessidade de estudos que busquem compreender o papel da Educação Infantil no enfrentamento da violência doméstica contra as crianças de zero a cinco anos. A abordagem teórico-metodológica contemplou autores tais como: Colin Heywood (2005) e Philip Ariés (1981) com concepções distintas, mas que se complementam na discussão a respeito da infância. A discussão sobre Educação Infantil pautou-se nos estudos de Nascimento (1999), Costa (2003), Oliveira (2001) etc. Na reflexão sobre violência doméstica foram contempladas: Eva Faleiros (2002), Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra (1994, 1998, 2005, 2006, 2007), Dalka Ferrari e Tereza Vecina (2002), entre outras. 18 Na pesquisa de campo buscamos apreender as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil através dos grupos focais realizados em cinco encontros com educadores infantis, gestores, coordenadores, merendeiras e auxiliares de serviços gerais, em um total de 31 profissionais que atuam nos CMEI. Os grupos focais foram realizados entre os meses de setembro/2010 e fevereiro/2011. Esta pesquisa se propõe a ensaiar algumas respostas, a partir do lugar dos próprios profissionais inseridos na Educação Infantil no município do NatalRN. Pretende compreender como esta demanda chega aos CMEI e as estratégias que vêm sendo utilizadas para enfrentá-la, na esperança de avançar em busca de pistas que nos ajudem a pensar saídas para a violência doméstica da qual nossas crianças são vítimas. Portanto se deu paralelamente ao trabalho que desenvolvemos no Setor de Ações e Projetos (SAPEI) do Departamento de Educação Infantil (DEI), na expectativa de lançar luz sobre a importância dos profissionais que atuam na Educação Infantil enquanto agentes estratégicos na perspectiva de proteção das crianças atendidas nos CMEI no município do Natal-RN. A pesquisa mostrou que os profissionais que receberam algum tipo de capacitação sobre a temática da violência doméstica contra a criança são mais sensíveis na identificação dos casos do que aqueles que não tiveram a oportunidade de participar de formações específicas. No entanto, ambos os profissionais mostram-se receosos de fazer os encaminhamentos necessários quando se deparam com situações concretas de violência doméstica contra as crianças que são atendidas nos CMEI e acabam por não fazê-los. 19 2 CONTEXTUALIZANDO A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL O que vem a ser infância? O senso comum costuma colocar a infância como sendo a fase da vida alegre, despreocupada, o melhor momento da vida. Mas basta olhar ao redor, para ver crianças na rua, sofrendo violências de todos os tipos. Será possível pensar que esses meninos e meninas não sejam crianças por não possuírem todos os atributos da infância? Para Frota (1995) a ideia da infância como um tempo de felicidade não pode ser garantida para todos. Segundo ele existe uma multiplicidade de infâncias na contemporaneidade, assim como existem diferentes concepções sobre a infância a partir de diferentes pontos de vista teóricos e olhares em nada neutros. Etimologicamente a palavra infância vem do latim “infantia” e refere-se ao indivíduo que ainda não é capaz de falar. Essa incapacidade estende-se até os sete anos, idade da razão. Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, criança são todas as pessoas menores de dezoito anos de idade. Já de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), é considerada criança a pessoa até os doze anos incompletos. No entanto, a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância. Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel (FROTA, 2007, p.147). Para Ariès (1981) a infância é uma invenção da modernidade, criação de um tempo histórico e de condições socioculturais determinadas. Trata-se de uma categoria social construída e não uma herança natural. Segundo o autor, a referência histórica à infância aparece muito tardiamente, somente no século XVIII. Até então, as crianças eram tratadas como pequenos adultos e os cuidados especiais eram reservados apenas aos primeiros anos de vida. A 20 partir dos três ou quatro anos já participavam das mesmas atividades dos adultos. Em seus estudos Ariès aponta que, pelo fato da sociedade tradicional da Idade Média não ver a criança como um ser diferente do adulto, só havia registro de crianças em referências biográficas, onde apareciam segundo o olhar de quem contava a história. Por vezes eram citadas também em registros dispersos nos testamentos, diários e documentos funerários. Heywood (2005), contrapondo-se às ideias de Ariès, mostra que havia uma infância presente na Idade Média e que a Igreja já se preocupava com a educação de crianças desde então. Ele afirma que é possível encontrar indícios de um investimento social e psicológico nas crianças já no século XII. Segundo ele, Ariès foi ingênuo no trato com suas fontes históricas e exagerado ao afirmar a inexistência de infância na civilização medieval, pois nos séculos XIV e XV já existia uma consciência de que as percepções de uma criança eram diferentes das dos adultos. Este autor diz ainda que a moderna ideia da infância só se cristaliza definitivamente no período histórico compreendido entre os Séculos XVII e XVIII, assumindo um caráter distintivo e constituindo-se como um grupo humano que não se caracteriza nem pela incompletude, nem pela imperfeição, tampouco pela miniaturização do adulto, mas por uma fase própria do desenvolvimento humano. Esta “evolução” nas concepções sobre a infância veio no bojo da emergência do capitalismo e das consequentes transformações pelas quais passaram a família. Novas necessidades sociais são criadas a partir de então nas quais a criança passará a ocupar um lugar de destaque na dinâmica familiar, saindo dos cuidados das amas para o controle dos pais e, posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos especialistas e das diferentes ciências (PETRY; RESMINI; FRANCO; MEIMES, 2010). A infância e a criança tornam-se objetos de estudos e saberes de diferentes áreas, constituindo-se num campo temático de natureza interdisciplinar. Independente da forma como era olhada, do posicionamento teórico que se tivesse sobre ela, a infância tornou-se visível como um estatuto teórico (FROTA, 2007, p.149). 21 Como se vê, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a noção de “pessoa humana”, por muito tempo o conceito de infância não foi problematizado na construção científica. Sendo a criança um ser em processo de transição para se tornar uma pessoa de fato e de direito, a complexidade da realidade social das crianças foi anulada por demasiado tempo (SARMENTO; PINTO, 1997). No Brasil, a história da infância se confunde com a história da exploração e do abandono, visto que desde seus primórdios há diferenciação entre as crianças, segundo sua classe social. E a entrada na Modernidade4 não trouxe muita diferença para os pequenos brasileiros. O sonho de infância feliz não parece ter sido vivido pelos “menores”. O termo “menor” foi inicialmente utilizado para designar uma faixa etária associada, pelo Código de Menores de 1927, às crianças pobres, passando a ter, posteriormente, uma conotação valorativa negativa. Menores eram aquelas crianças em situação de pobreza, a qual se associava uma provável marginalidade, pertencentes às famílias com uma estrutura diferente da convencional5. Os "menores" foram entregue aos cuidados do Estado, que tratou de institucionalizá-los, submetendo-os a tratamentos cruéis e preconceituosos. Por entender o “menor" como uma ameaça à sociedade, o primeiro Código de Menores, acabou por considerar tais crianças menos humanas, menos crianças do que as outras. Felizmente, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, o termo "menor" foi abolido e todas as crianças foram reconhecidas como sujeitos de direitos, com necessidades específicas, decorrentes de seu desenvolvimento peculiar, e que, por conta disso, deveriam receber uma política de atenção integral a seus direitos construídos social e historicamente (RIZZINI, 2000). 4 Por Modernidade entende-se o “período histórico que começou na Europa Ocidental no séc. XVII com uma série de transformações sócio estruturais e intelectuais profundas e atingiu a maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do iluminismo e depois como forma de vida socialmente consumada com o desenvolvimento da sociedade industrial capitalista (e depois comunista)" (BAUMAN, 1999, p. 299-300). 5 A família convencional segue o modelo nuclear composto pelo pai, mãe e filhos(as). 22 Ocorre que a distinção entre infância e idade adulta, produzida pela modernidade ocidental, não corresponde a uma só ideia da infância. Não há uma natureza universal da infância, tampouco a evolução das concepções da infância ocidental equivalem ao que ocorre noutras partes do mundo. As concepções de infância variam de acordo com a cultura, o espaço geográfico, a classe social, o grupo étnico, a religião predominante ou até mesmo de acordo com o nível de instrução. Por isso, o estudo das concepções da infância deve levar em conta os fatores de heterogeneidade que as geram, sem esquecer que sempre haverá em um dado contexto espaço-temporal, uma concepção que se torna dominante. E para não se deixar ofuscar pela luz que procede das concepções sobre a infância que não são expressas por palavras, mas que se apresentam de outras formas torna-se indispensável o estudo dessas concepções sob a forma de imagens sociais. Sarmento (2007) comenta algumas dessas imagens, lembrando que elas não correspondem a etapas históricas, mas coexistem e sobrepõem-se. São elas: a imagem da criança má, baseada na ideia do ‘pecado original’ e associada à conceituação do corpo como uma realidade a ser controlada; a imagem da criança inocente, fundada no mito romântico da infância como a idade da pureza e da bondade; a imagem da criança imanente, na qual a criança é uma tabula rasa a ser moldada pela sociedade; a imagem da criança naturalmente desenvolvida, que sofre um processo de maturação e se desenvolve em estágios e, ainda, a imagem da criança inconsciente, que tem em Freud e na Psicanálise a sua referência. O autor prossegue na sua reflexão afirmando que essas imagens da infância não são compartimentos estanques, mas dispositivos interpretativos que se revelam no plano da justificação da ação dos adultos com as crianças. Se na Idade Média a criança era considerada um pequeno adulto que executava as mesmas atividades dos mais velhos, a partir do século XVI surge a concepção da criança ingênua, alvo da paparicação dos adultos e também a ideia da criança incompleta, alvo da moralização a partir da perspectiva do adulto. Esta concepção se gesta em conjunto com a ideia de família moderna 23 (modelo convencional) e com a ideia do amor materno incondicional. Neste sentindo, a ideia de família, maternidade e paternidade que conhecemos hoje é uma construção histórico-social. Se na sociedade feudal, a criança começava a trabalhar como adulto aos sete anos aproximadamente, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura6. Surgem assim as primeiras propostas de educação e moralização infantil. Na Idade Moderna a visão que se tinha da criança foi modificada devido às mudanças sociais e intelectuais trazidas pela Revolução Industrial, o Iluminismo7 e a constituição de estados laicos. É provável que as rápidas e profundas mudanças nas circunstâncias sociais, culturais e econômicas tenham evidenciado os problemas relacionados às infâncias e às condições de vida das crianças, fazendo com que estas temáticas merecessem uma análise qualificada no campo científico e consequentemente, contribuído para a mudança nas concepções sobre a infância (COSTA, 2008). A ciência moderna ainda não havia triunfado e a educação nascia com uma função prática, ora de disciplinar, ora de proporcionar conhecimentos técnicos que, posteriormente, configuram uma escola para a elite e outra para o povo. No Século XVII John Locke defendia a educação na sua acepção disciplinar, onde o aprendizado se concretizava por meio do melhor método aplicado, resultando no desenvolvimento da capacidade mental de uma pessoa e na formação de seu caráter (CAMBI, 1999). No século XVIII Rousseau publica a obra “O Emílio” (1762) onde a função da educação se caracterizava por uma concepção de mundo baseada na igualdade, no respeito ao indivíduo, não impondo a este nenhum padrão institucional de aprendizado que o moldasse ao ambiente social vigente. A 6 Lógico que esta postura se dava para com as crianças da classe burguesa. As crianças filhas dos(as) trabalhadores(as) começavam a trabalhar desde cedo para ajudar no sustento da família. 7 Começa com a ilustração (o século das luzes - séc. XVI ao XVIII ) e atravessa os diversos períodos históricos, baseia-se na exaltação da razão e na capacidade do homem melhorar o mundo e a sociedade (NETTO, 2002). 24 educação deveria ser desenvolvida no cotidiano dos afazeres laborais, sem restrições ou métodos preestabelecidos. Segundo ele a educação não deveria instruir e sim permitir que as tendências naturais chegassem aos seus resultados. A teoria naturalista da educação de Rousseau culminou na chamada “educação nova”8, o que desencadeou posteriormente na concepção psicológica, sociológica e científica da educação (CAMBI, 1999). Depois de Rousseau a educação produziu uma teorização pedagógica cada vez mais atenta para o valor da infância. São sucessores de Rousseau e propagadores de suas teorias sobre a educação: Pestalozzi, Froebel e Herbart (CAMBI, 1999). O pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), influenciado pela concepção naturalista de Rousseau, solidificou a ideia da educação como instrumento de regeneração social. Destacou, também, a importância da educação em massa, colocando em evidência o indivíduo a ser educado, enquanto membro da sociedade. A sua pedagogia considerava o papel do professor como fundamental e produziu a convivência com uma pluralidade de métodos. O filósofo alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841) focalizou suas ideias no método de ensinar, e não na pessoa do aprendiz. Ao contrário de Rousseau, valorizava os elementos externos da aprendizagem, que transcendiam o educando no processo educativo. Na sua teoria, o professor e o processo de instrução são realçados. O educador alemão Friedrich Froebel (1782-1852), com a publicação de sua obra “Educação do homem” em 1826, contrapõe-se ao pensamento de Herbart. Froebel preocupou-se especificamente com desenvolvimento e possibilidades educativas adotadas na infância, apontando a escola como a instituição onde a criança descobrirá a sua própria individualidade, realizando sua personalidade e desenvolvendo o seu poder de iniciativa e execução. Pestalozzi, Froebel e Herbart foram os três mais importantes pedagogos do século XIX, visto que ofereceram os fundamentos para que a 8 Corrente educacional que trata de mudar o rumo da educação tradicional, intelectualista e livresca, dando-lhe um sentido mais vivo e ativo (SAVIANI, 2011). 25 criança se tornasse o sujeito educativo por excelência, “reclamando o ‘jardim de infância’ ao lado da escola, porque é justamente na idade pré-escolar que se desenvolve o germe da personalidade humana” (CAMBI, 1999, p. 387). No curso do século XIX tanto as ciências humanas quanto as instituições educativas burguesas colocaram a criança cada vez mais no centro da pedagogia. A criança foi então assumida na sua especificidade psicológica e na sua função social. A infância foi vista como uma idade radicalmente diferente em relação à adulta e este conhecimento tornou-se tão dominante que o século XX foi considerado “o século da criança”. Dessa forma, a educação das crianças em estabelecimentos específicos de Educação Infantil vem crescendo no mundo inteiro e de forma bastante acelerada, seja em decorrência da necessidade da família contar com uma instituição que se encarregue do cuidado e da educação de seus filhos pequenos, principalmente quando os pais trabalham fora de casa 9, seja pelos argumentos advindos das ciências que investigaram o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança. Em termos históricos, as concepções educacionais podem ser classificadas em tradicionais e renovadoras. A primeira tendência foi dominante até o final do século XIX. A característica própria do século XX é exatamente o deslocamento para a segunda tendência que veio a se tornar predominante. As correntes tradicionais desembocavam sempre em uma teoria do ensino. Pautando-se pela centralidade da instrução (formação intelectual) pensavam a escola como uma agência centrada no professor, cuja tarefa é transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade segundo uma gradação lógica, cabendo aos alunos assimilar os conteúdos que lhes eram transmitidos. Por sua vez, as correntes renovadoras, desde seus precursores como Rousseau e, de alguma forma, também Pestalozzi e Froebel, desembocam sempre na questão de como aprender, isto é, em teorias da aprendizagem, em 9 Sem dúvida, em finais do século XIX e início do século XX com as lutas feministas por igualdade entre homens e mulheres e a inserção feminina no mercado de trabalho, o investimento e estudos sobre Educação Infantil torna-se uma necessidade social premente. 26 sentido geral. Pautando-se na centralidade do educando, concebem a escola como um espaço aberto à iniciativa dos alunos que, interagindo entre si e com o professor, realizam a própria aprendizagem, construindo seus conhecimentos. Essa tendência ganha força no início do século XX torna-se hegemônica sob a forma do movimento da Escola Nova até o início da segunda metade daquele século e, diante das contestações críticas que enfrenta, assegura seu predomínio assumindo novas versões, entre as quais a pedagogia produtivista10, a concepção libertária11, as pedagogias críticas12 (SAVIANI, 2011). A concepção de educação aqui defendida vê a criança como um ser social que nasce com capacidades afetivas, emocionais e cognitivas, capaz de interagir e aprender através de trocas sociais com outras crianças e adultos (BRASIL, 1998). Assim, considera-se que a Educação Infantil terá um papel cada vez maior na formação integral da criança, no desenvolvimento de sua capacidade de aprendizagem e na elevação do nível de inteligência, mesmo porque inteligência não é herdada geneticamente nem transmitida pelo ensino, mas construída pela criança, a partir do nascimento, na interação social mediante a ação sobre os objetos, as circunstâncias e os fatos (VIGOTSKY, 1998). 2.1 A Concepção de Criança e a Educação Infantil no Brasil Estudos e pesquisas apontam que a infância é uma importante fase para o desenvolvimento integral da criança (VIGOTSKY, 1998; PIAGET, 1978; LURIA; YODOVICH, 1985). Com base nessa constatação, a Educação Infantil adquiriu importância crescente no cenário das políticas sociais brasileiras. 10 Orientação pedagógica inspirada na teoria do capital humano, cujo pressuposto central é que a educação é um investimento que permitirá ao indivíduo aumentar seus rendimentos (ALMEIDA; PEREIRA, 2011). 11 Desempenhou um papel importante na pedagogia do movimento operário. Segue a tendência filosófico-política da educação como transformação da sociedade (SILVA, 2011). 12 Operaram como contraponto às ideias sistematizadas na teoria do capital humano, buscando aportes em concepções marxistas (LIBÂNIO, 2011). 27 Muitos estudos vêm mostrando a importância desse período para o lançamento dos alicerces de um desenvolvimento integral, sadio e harmonioso da criança, do jovem e do adulto. A produção acadêmica sobre o tema tem aumentado, bem como também a consciência da necessidade de uma política de Educação Infantil, integrada e articulada nas três esperas de governo: União, estados e municípios (FONSECA, 1999, p.198). As primeiras iniciativas voltadas à criança em instituições brasileiras tiveram um caráter higienista e o trabalho – realizado por médicos e damas beneficentes – se dirigia contra o alto índice de mortalidade infantil. Até meados do século XIX praticamente não existia no Brasil um atendimento às crianças pequenas em instituições como creches e pré-escolas e as poucas instituições existentes tinham como objetivo precípuo suprir as necessidades de alimentação, higiene e segurança física das crianças pertencentes às famílias de baixa renda. Mas apesar do que muitas pesquisas tentam demonstrar, a concepção médico-higienista não era hegemônica. A influência religiosa, assim como a jurídico-policial13 também marcariam as concepções presentes nas instituições pré-escolares nesse período histórico (SOUZA, 2007). Os primeiros jardins de infância brasileiros, voltados para a elite, foram criados no Rio de Janeiro e em São Paulo, inspirados nas ideias do educador alemão Froebel. No setor privado, encontram-se as primeiras experiências com jardim de infância no Colégio Menezes Vieira no Rio de Janeiro, desde 1875, e na Escola Americana em São Paulo, desde 1877. Em 1877, os presbiterianos fundaram um jardim de infância na cidade de São Paulo. De acordo com o seu diretor, o reverendo Chamberlain, o jardim das crianças, será baseado no sistema Froebel e tem por fim o desenvolvimento intelectual desde a 13 Esta concepção estava ligada à ideia de infância moralmente abandonada e tinha como objetivo evitar a criminalidade que estaria relacionada à pobreza, percebida como uma ameaça à tranquilidade das elites. 28 mais tenra idade, por métodos intuitivos e naturais, tendo sempre em vista as necessidades físicas das crianças, atraindo-as ao conhecimento e desenvolvimento das faculdades observadoras, sem fadigas, sem desgostos, sem estudos forçados, sem constrangimentos dos corpos, aprendendo dos próprios brinquedos e alcançando assim os benéficos efeitos da disciplina e do uso dos sentidos (RAMALHO, 1976, p. 84-85). Embora houvesse referências à implantação de jardins-de-infância para atender à pobreza, estas não encontravam o menor eco em iniciativas concretas. Em São Paulo, o jardim-de-infância da Escola Normal Caetano de Campos, ligado ao setor público, foi inaugurado apenas em 1896, mais de vinte anos depois das fundações das primeiras experiências da iniciativa privada neste sentido. No Rio de Janeiro, as primeiras propostas de instituições préescolares para as crianças de menor poder aquisitivo aparecem somente em 1899, com a inauguração da creche da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado. “Esta foi a primeira creche brasileira para filhos de operários de que se tem registro. Neste ano, também ocorreu a fundação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro” (SOUZA, 2007, p.15). Porém, o desconhecimento dos objetivos da pré-escola e, consequentemente, de sua função educativa, levou diversos segmentos da sociedade brasileira a associar todas as instituições infantis à casas assistenciais de cunho religioso. Para o senso comum o jardim de infância não passava de uma instituição de caridade para crianças desvalidas (KISHIMOTO, 1988). Mas a partir de 1902, quando o modelo francês de escolas infantis, mais exigentes que o jardim de infância, se fez sentir no Brasil, o atendimento educacional direcionado ao público infantil foi se firmando de modo que, em 1919, foi criado o Departamento da Criança no Brasil e em 1922 surgem as primeiras regulamentações do atendimento às crianças pequenas em escolas maternais e jardins de infância, em decorrência do I Congresso Nacional Brasileiro de Proteção à Infância, realizado naquele ano. Estas primeiras regulamentações previam a instalação de salas de amamentação e creches 29 próximas ao trabalho das operárias, de forma a facilitar o atendimento ao lactante (VASCONCELOS, 2005). Ressalte-se que tais medidas visavam permitir o trabalho das mulheres em uma conjuntura na qual o governo brasileiro passa a investir na industrialização do país (modelo urbano-industrial) e consequentemente passa a se preocupar com a legislação trabalhista e social. Assim, é entre os anos 20 e 30 do século XX que surgem as primeiras medidas de proteção social (CAP’s – Caixas de Aposentadoria e Pensão, regulamentação do trabalho feminino, etc). Ressalte-se ainda que tais mudanças também derivam de um processo crescente de organização dos trabalhadores influenciados pelas ideias anarcocomunistas trazidas pelos imigrantes europeus que chegaram ao Brasil a partir de incentivo do governo brasileiro por ocasião da libertação dos escravos, na tentativa de ter mão-de-obra mais qualificada e de “branquear” o povo brasileiro. Assim, o processo de organização dos trabalhadores também forçou o governo a adotar medidas de cunho social e trabalhista (DA MATTA, 1989). Nesta época a Educação Infantil era vista como uma solução para os problemas sociais relacionados à criança, por isso destinava-se às crianças das classes populares e se constituía em um meio de promover a organização familiar e de dar condições para que as mães pudessem trabalhar. Assim, a Educação Infantil era vista como um direito da mãe trabalhadora e não da criança. As discussões sobre assistência social e creche como uma necessidade e direito da mãe trabalhadora, avançaram no início do século XX, denunciando, nas práticas de atendimento à criança pré-escolar, que a sociedade brasileira não estava preparada para ver a infância como um lugar de necessidades e direitos. Neste período, calcada na concepção naturalistamoralista14, a criança é representada pela ideia de que precisa ser recuperada ou reconstruída para a sociedade, por meio de processos pedagógicos. 14 A criança é vista como um ser bom, puro, perfeito, do qual o ‘bom selvagem’ de Rousseau é um clássico em sua definição (CAMBI, 1999). 30 Neste mesmo período histórico outra concepção se revela em muitas práticas e propostas educativas. Esta concepção preconiza a salvação da criança dos efeitos da urbanização e da indústria e se caracteriza por recolher a criança em um infantilismo apenas lúdico e passivo. No período de 1930 a 1970, o país começa a se munir de instituições dedicadas à educação e ao cuidado de crianças pequenas. Em 1947, verificase em São Paulo uma tentativa de expansão da rede pública de ensino primário, que culminou em 1950 com a criação do Serviço de Educação Primária, voltado à assistência psicológica e pedagógica, e a atividades de expressão corporal e recreação, além de prestar assistência à vida familiar para a escolarização de crianças, pois os índices de repetência já eram altíssimos. Ocorreu a expressiva formação de classes infantis junto a estes estabelecimentos escolares primários com o objetivo de preparar as crianças para a entrada na educação formal. No entanto, essas classes infantis ainda não dispunham de equipamentos, instalações e corpo docente apropriado. A educação pré-primária, como era chamada, despontava como um idealismo de poucos e encontrava pequeno apoio social e político (COSTA, 2003). Contudo, os jardins de infância só foram incluídos no Sistema de Ensino a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4.024/1961). Essa mudança se insere na conjuntura de crescente organização dos movimentos populares nos anos 1960, que exigiam reformas de base em todas as áreas e que traz modificações importantes no campo educacional 15. Tais mudanças fazem com que a procura por jardins de infância aumentasse no país. Em 1964, a partir de um golpe, se instaura no Brasil, a Ditadura Militar (1964-1985). Durante o Regime Militar, o assistencialismo e o tradicionalismo são criticados e à educação são impostas algumas recomendações, propostas para os países do Terceiro Mundo16 por órgãos internacionais como: UNICEF 15 Entre as experiências inovadoras na área educacional nos anos 60 do século XX no RN, teremos a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, na cidade de Natal/RN e “As 40 horas de Angicos/RN”, baseada no método Paulo Freire (Ver a este respeito GERMANO, 1989). 16 Tais propostas se esgotam, sobretudo porque a ordem capitalista temia o surgimento de propostas revolucionárias socialistas a exemplo do que ocorreu em Cuba em 1959. 31 (Fundo das Nações Unidas para a Infância), FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) e OMS (Organização Mundial de Saúde). Estes órgãos tinham como objetivo anunciado resolver o subdesenvolvimento dos países pobres, no qual o Brasil estava incluído, atribuindo tal subdesenvolvimento à falta de assistência, saúde, educação e nutrição. (FONSECA, 1999). Com o Regime Militar, o Brasil ingressa em um sistema de internacionalização do mercado interno e os governos se voltam cada vez mais para a educação escolar das classes populares, visto que era preciso qualificar a força de trabalho para aumentar a produção. Na visão dos militares era preciso “purificar” as classes populares e suas novas gerações da educação “subversiva”, dando-lhes uma educação cívica, patriótica e purificada das ideologias estranhas ao “amável e cordial” povo brasileiro (GERMANO, 1989). A visão de criança pobre, carente e incapaz foi legitimada pela sociedade capitalista através das políticas governamentais, tecendo práticas pedagógicas calcadas na exclusão e na marginalização dos filhos da classe trabalhadora enquanto aos filhos da elite e da classe média reservou-se uma educação de cunho humanista e pragmático visando torna-los os dirigentes desta sociedade exploradora. Sabe-se que este modelo educacional burguês tem como principal objetivo a formação de trabalhadores para a reprodução do sistema do capital. Desta forma, as políticas educativas que deveriam orientar uma educação que possibilitasse o desenvolvimento máximo das capacidades da criança pobre, acabam por considerá-las apenas como futura mão-de-obra e não como sujeito em formação. Este grande investimento na educação escolar dos filhos da classe trabalhadora teve que ser repensado diante dos altos índices de repetência e evasão das crianças da classe pobre. Diante disso, visando suprir as supostas carências culturais17 existentes na educação familiar da classe trabalhadora, as políticas educacionais passaram então a investir na educação pré-escolar, 17 Acreditava-se que o meio social no qual viviam as crianças, filhas da classe trabalhadora, não era capaz de lhes transmitir os requisitos básicos necessários para garantir seu sucesso escolar, ou seja, estas crianças tinham carências culturais e a pré-escola iria suprir essas carências. 32 destinada a crianças de quatro a seis anos, ocasionando o aumento da demanda para o atendimento às crianças pequenas. Contudo, essas pré-escolas não possuíam um caráter formal e o trabalho pedagógico era desenvolvido por voluntários, sem qualificação profissional. Nesse contexto, as creches públicas ficaram vinculadas, por um longo período, a um caráter assistencialista, provocando um descrédito em relação a esta política educacional. Enquanto isso, as creches particulares desenvolviam atividades educativas, voltadas para aspectos cognitivos, emocionais e sociais (FARIA, 1997). No final da década de 1970 e parte dos anos de 1980, na esteira do processo de redemocratização do país, os movimentos sociais populares articulados por grupos de oposição ao então regime militar surgiram por diversas regiões, contribuindo para a conquista de direitos sociais novos, inscritos na Constituição de 1988, entre os quais o direito da mãe trabalhadora de deixar seus filhos sob a guarda de uma instituição que lhes garantisse cuidados e educação adequados. Assim, na Constituição Brasileira de 1988 houve o reconhecimento da educação em creches e pré-escolas como um direito da criança e um dever do Estado, a ser cumprido pelos sistemas de ensino (BRASIL, 1988). Desta forma, o atendimento à criança de zero a cinco anos e onze meses tem experimentado, no decorrer dos últimos vinte anos, profundas mudanças no Estado brasileiro, havendo um avanço significativo no entendimento sobre a criança e seu processo de desenvolvimento, cabendo à Educação Infantil atendê-la com ações complementares à família. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente incorporou as conquistas determinadas pela Constituição de 1988 e em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) veio impulsionar os diferentes setores educacionais a repensarem um novo modelo de Educação Infantil (BRASIL, 1990; 1996). A LDBEN estabelece a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica tendo “como finalidade o desenvolvimento integral da criança 33 até cinco anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996, art. 29). Como dever de Estado, a Educação Infantil deverá ser ofertada em creches (de zero a três anos) e pré-escolas (de quatro a cinco anos) em jornada de horário integral ou parcial (conforme o art.54 do ECA e o art.30 da LDBEN). Para atender a esta determinação, novas concepções acerca do desenvolvimento infantil são adotadas e, consequentemente, as propostas pedagógicas existentes são modificadas. Assim, em 1998 o Ministério da Educação (MEC), no contexto da definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)18, elabora o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI), que se constitui em um conjunto de orientações e referências pedagógicas para a ação docente. De acordo com este Referencial a prática da Educação Infantil deve se organizar de modo que as crianças desenvolvam uma imagem positiva de si, descobrindo e conhecendo progressivamente seu próprio corpo, além de estabelecerem vínculos afetivos e de troca com adultos e crianças. (BRASIL, 1998). No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), que, articuladas com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, reúnem princípios, fundamentos e procedimentos para orientar as políticas públicas na área e a elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e curriculares (BRASIL, 1999). Tanto os RCNEI quanto as DCNEI têm subsidiado a elaboração de novas propostas pedagógicas nas instituições de Educação Infantil. Com a perspectiva de estabelecer diretrizes educacionais para a educação brasileira, foi instituído o Plano Nacional de Educação (PNE) através da Lei nº 10.172 de 09 de janeiro de 2001. 18 Diretrizes elaboradas pelo Governo Federal a fim de orientar a educação no Brasil. 34 Segundo consta neste Plano [...] o atendimento de qualquer criança num estabelecimento de Educação Infantil é uma das mais sábias estratégias de desenvolvimento humano, de formação da inteligência e da personalidade, com reflexos positivos sobre todo o processo de aprendizagem posterior (BRASIL, 2001, p. 42) O PNE ressalta a educação como fator de direito, de desenvolvimento pessoal, social e de inclusão social, no que compete à Educação Infantil, como primeira etapa da educação básica. Este instrumento delegou competência aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para elaborarem seus respectivos Planos Decenais de Educação. Diante disto, o MEC em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e as secretarias estaduais de educação realizou, em 2004, uma série de seminários regionais para discutir a formulação das novas políticas públicas para a Educação Infantil. Nesse contexto, foi aprovado o Plano Municipal de Educação de Natal-RN, para o período de 2005 a 2014 (Lei nº 5.650/05). Em 2006, o Ministério da Educação apresenta a Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito de crianças de até seis anos à educação, traçando diretrizes, objetivos, metas e estratégias para a área, deixando claro o seu papel educacional. Recentemente, mais precisamente em meados de 2009 aconteceu a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, tendo em vista as mudanças ocorridas nos últimos dez anos. Ainda em 2009 foi instituída a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, através do Decreto nº 6.755 de 29 de Janeiro de 2009. Em todas essas medidas evidencia-se o esforço pela melhoria da qualidade da Educação Básica e, consequentemente, da Educação Infantil. 35 Ressalte-se que tais medidas também são resultado de lutas da sociedade civil através de movimentos sociais ligados a educadores e profissionais que trabalham com crianças e adolescentes. Ainda nesta perspectiva, durante todo o ano de 2009, aconteceram debates nas escolas, nos municípios e nos estados em preparação à Conferência Nacional de Educação (CONAE), que aconteceu de 23 a 27 de abril de 2010 em Brasília, cujo tema central foi a construção de um Sistema Nacional de Educação. A CONAE teve o desafio de definir diretrizes para o novo Plano Nacional de Educação que vai vigorar de 2011 a 2020, de modo que o novo PNE seja objetivo nas metas e nas formas de implementação para que possa ser operativo. Quanto à política de ampliação das vagas, reivindicação constante dos movimentos sociais, o resultado do censo escolar de 2010, comparado ao resultado de 2009, nos mostra que o maior crescimento no número de matrículas da educação básica encontra-se na creche (zero a três anos). Em 2009 ocorreram 1.896.363 matrículas, enquanto em 2010 foram 2.064.653, ou seja, 168.290 novas matrículas, o que corresponde a um crescimento de 9%, nesta faixa etária. Comparando com o início dos anos 2000, o crescimento das matrículas na creche ultrapassa 79%. Na pré-escola, que atende crianças de quatro e cinco anos, o censo registrou 4.692.045 matrículas em 2010, apontando uma queda de 3,6% com relação a 2009, quando foram realizadas 4.866.268 matrículas. Esta aparente queda é atribuída ao ingresso da criança de seis anos – antes da Educação Infantil – no Ensino Fundamental (BRASIL, 2010). Estes dados podem ser mais bem visualizados na tabela a seguir. 36 Tabela 1: Número de matrículas da Educação Infantil Brasil 2002-2010 Ano Total Creche Pré-escola 2002 6.130.358 1.152.511 4.977.847 2003 6.393.234 1.237.558 5.155.676 2004 6.903.762 1.348.237 5.555.525 2005 7.205.013 1.414.343 5.790.670 2006 7.016.095 1.427.942 5.588.153 2007 6.509.868 1.579.581 4.930.287 2008 6.719.261 1.751.736 4.967.525 2009 6.762.631 1.896.363 4.866.268 2010 6.756.609 2.064.653 4.692.045 Δ% 2002-2010 10,2 79,1 -5,7 Fonte: MEC/Inep/DEED Em 2010, o MEC enviou o Plano Nacional de Educação ao Congresso Nacional. Nele estão as 20 metas e estratégias para melhorar a educação brasileira nos próximos dez anos. Em 2011 será lançado o novo Plano Nacional de Educação, obrigando estados e municípios a reverem seus respectivos Planos Decenais de Educação. Todos esses esforços apontam na direção de uma política de atendimento na qual os direitos das crianças à Educação Infantil têm sido colocados em pauta. Uma vez definido o novo Plano Nacional de Educação, caberá à sociedade acompanhar as metas estabelecidas e cobrar do poder público, a responsabilidade por sua implantação. 37 2.1.1 Especificidades e funções da Educação Infantil A Constituição Federal (CF) em seu artigo 205 reconhece o acesso à Educação como um dos direitos sociais. O texto constitucional afirma que esta é direito de todos e dever do Estado e da família (BRASIL, 1988). Esse mesmo direito é reafirmado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (BRASIL, 1990, art.53). No que concerne à Educação Infantil, a CF, em seu artigo 208-IV determina que "o dever do Estado com a educação às crianças de zero a seis anos será efetivado mediante garantia de atendimento em creche e préescola." Por sua vez, o ECA no artigo 54-IV, também ratifica que "é dever do Estado assegurar [...] atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (BRASIL 1988; 1990). A LDBEN, em seu artigo 4º-IV, confirmou, mais uma vez, que o atendimento gratuito em creche e pré-escola a crianças de zero a seis anos de idade, é dever do Estado. Deixou claro, também, no artigo 11-V, que o atendimento a essa faixa etária está sob a incumbência dos municípios, determinando que todas as instituições de Educação Infantil estejam inseridas no sistema de ensino. Esta Lei ainda esclarece em seu artigo 30-I e II que a Educação Infantil, como parte integrante da primeira etapa da educação básica, foi dividida em creche (zero a três anos) e pré-escola (quatro a seis anos) (BRASIL, 1996). Entretanto, o atendimento gratuito em creches e pré-escolas fica comprometido pela inexistência de recursos financeiros vinculados a este nível de educação. Sem destinação orçamentária, estados e municípios se esquivam de ofertar vagas na Educação Infantil. E, embora a LDBEN tenha sinalizado que o ensino obrigatório deveria se dá a partir dos seis anos de 38 idade, isto só aconteceu de fato pela Lei nº 10.172/2001, que instituiu o ensino fundamental de nove anos de duração com a inclusão das crianças de seis anos de idade. Apesar da importância dessa decisão política, o que aconteceu foi simplesmente a transferência da criança de seis anos para o ensino fundamental. Na prática, a Educação Infantil passou a ser um direito das crianças de zero a cinco anos, mas sem a obrigatoriedade de oferta. Somente em 2008, a Lei nº 11.700/2008 torna a educação básica obrigatória a partir dos quatro anos de idade (BRASIL, 2007). A partir deste ordenamento legal 19 e também das contribuições trazidas pelas “descobertas” a respeito da criança, estudiosos e pesquisadores debruçaram-se sobre esse tema, buscando tanto compreender esse contexto de mudança em todos os seus aspectos como também contribuir para a construção de uma política nacional de Educação Infantil realizada por profissionais com capacitação específica e acessível a todas as crianças. Contudo, esta apresentação sucinta do ordenamento legal nos permite levantar algumas questões sobre as especificidades desta etapa de ensino, visto que, ao mesmo tempo em que a Educação Infantil é colocada como parte da educação básica, é dividida em creche e pré-escola. Afinal, a Educação Infantil é uma instituição escolar ou não? De forma geral, o contexto das instituições de Educação Infantil, é diferenciado do contexto dos demais níveis do sistema regular de ensino. Ao mesmo tempo em que se constituem como instituições de caráter primordialmente educativo, no qual o projeto pedagógico é instrumento fundamental para a sua consolidação, distanciam-se da concepção de instituições escolares, no sentido tradicional do termo. Segundo Costa (2003) o que diferencia o contexto escolar do contexto da Educação Infantil é a função social que lhes é atribuída no contexto social mais amplo. De acordo com ela cada um desses níveis de ensino guarda características próprias, relacionadas à sua história, organização, 19 A LDBEN reconheceu a importância da Educação Infantil ao defini-la como a primeira etapa da educação básica e como direito de toda criança de zero a seis anos. 39 finalidade, que merecem abordagens específicas, portanto, não se trata de uma diferenciação hierárquica ou qualitativa. Na Educação Infantil a criança deve ser tomada como ponto de partida, como sujeito integral, compreendendo que "para ela, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o desprazer, a fantasia, o brincar e o movimento [...] que para ela, a brincadeira é uma forma de linguagem, assim como a linguagem é uma forma de brincadeira" (KUHLMANN, 1999, p. 65). Essa perspectiva pedagógica acentua que a educação realizada com crianças nessa faixa etária tem suas especificidades. Não se está tratando aqui de uma contraposição aos demais níveis de ensino, nem negando o significado da inclusão das creches e pré-escolas ao Sistema Regular de Ensino, mas de está tentando definir de forma clara a especificidade da Educação Infantil. Evidencia-se uma contradição entre a legislação que coloca a Educação Infantil como parte integrante do sistema escolar, e a política educacional, que a define como instituição educativa, sem caráter escolar. [...] enquanto a LDB afirma o caráter escolar da creche, os documentos produzidos em órgãos de planejamento e execução da política educacional enfatizam que é no binômio educar e cuidar que devem estar centradas as funções complementares e indissociáveis dessa instituição (NASCIMENTO, 1999, p. 102). Em instituições de Educação Infantil, que atendem a perspectiva socioeducativa, o caráter pedagógico prevalece e todas as ações são interdependentes e interligadas, tendo em vista o desenvolvimento sadio da criança em todos os aspectos. Como complementares à ação da família, atendem, em muitas situações, crianças em período integral e de certa maneira também as próprias famílias. 40 Nascimento (1999) chama a atenção para o fato de que uma estruturação escolar por si só não dá conta da operacionalização de modelos de atendimento à criança com o caráter multifacetado que pressuporia a integração de ações de Saúde, Educação, Assistência Social e Cultura. A este respeito, vale lembrar que o 'Estatuto da Criança e do Adolescente' e a 'Lei Orgânica da Assistência Social' são aportes legais a serem considerados; eles pressupõem, por exemplo, o atrelamento das creches aos Conselhos Tutelares e ao Conselho Nacional de Assistência Social (NASCIMENTO, 1999, p. 102). Neste sentido, observa-se que ao se estudar, falar ou propor medidas para Educação Infantil há que se conhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Política Nacional da Criança e do Adolescente (PNCA) assim como a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), nas suas diversas ações 20. A partir dessas considerações, observamos que a Educação Infantil, como espaço de vivência tão importante para crescimento infantil, possui uma o desenvolvimento intencionalidade educativa, e mas também uma prática educativa21. A creche e a pré-escola não têm mais como ser pensada fora de um ambiente em que sejam respeitados os direitos da criança. Mas além da questão pedagógica a Educação Infantil necessita ser compreendida na forma como tem se configurado, nesse momento, no contexto brasileiro. Sendo uma prática tradicionalmente reconhecida como de guarda e proteção à criança pequena, não tem se mostrado uma tarefa fácil romper com essa visão e metodologia de trabalho e iniciar um processo de 20 Adiante teceremos considerações sobre estas políticas que perpassam a discussão da Educação Infantil. 21 Sobre práticas concretas adotadas no trabalho direto com crianças, consultar o documento Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das Crianças, preparado por Maria Malta Campos e Fúlvia Rosemberg e publicado pelo MEC, em 1997. 41 construção de um novo contexto de Educação Infantil, marcado fundamentalmente pelo caráter pedagógico. A falta de recursos financeiros e humanos destinados a esta etapa do ensino agravam a situação. [...] apesar dos avanços obtidos, seja através do estabelecimento de um rol de regulamentações, documentos oficiais e leis, seja pela produção de conhecimentos assentados em um novo paradigma sobre desenvolvimento infantil, o que se verifica, de modo geral, na realidade brasileira, é um distanciamento abissal entre essas conquistas e as práticas efetivadas no cotidiano das instituições. Para alguns autores, esses avanços ainda representam discursos com pouco efeito na prática [...]. (COSTA, 2003, p. 35). Tanto documentos oficiais como produções acadêmicas (BRASIL, 1998,2001; COSTA, 2003; SOUZA, 2007) trazem uma descrição nacional da realidade da Educação Infantil, apontando o baixo número de crianças dessa faixa etária inseridas em creches e pré-escolas em relação à demanda apresentada e a necessidade de ampliação da rede de Educação Infantil tendo como meta o acesso universal. Por sua vez, a qualidade do atendimento nas creches e pré-escolas em funcionamento também é objeto de muitas discussões, descrevendo uma atuação cuja ênfase é assistencialista, prevalecendo as funções de guarda e cuidados de alimentação, higiene e segurança física, principalmente nas creches. Neste sentido, a creche não é associada à Educação Infantil, esquecendo-se a sua função pedagógica. Além de ter-se clareza sobre esses dois problemas que rondam a Educação Infantil – democratização do acesso e melhoria da qualidade – necessita-se ter clareza das diferentes formas sob as quais suas ações se configuraram em diferentes regiões brasileiras, marcadas não apenas pelas diversidades econômico-sociais regionais, mas também pelos indicadores e educacionais, determinantes também das condições de acesso das crianças ao ciclo básico de ensino. 42 [...] é preciso sublinhar que é uma diretriz nacional o respeito às diversidades regionais, aos valores e às expressões culturais das diferentes localidades, que formam a base sócio-histórica sobre a qual as crianças iniciam a construção de suas personalidades (BRASIL, 2001, p.12). O reconhecimento legal de que a criança é um ser integral, em condição peculiar de desenvolvimento, com direito ao acesso a instituições educativas de qualidade desde os primeiros anos de vida, foi um importante marco histórico em direção à construção de uma política de atendimento para a Educação Infantil. Mas esse reconhecimento legal não se constitui como garantia de seu cumprimento se não houver uma efetiva política de financiamento público para a Educação e, no caso, para a Educação Infantil (OLIVEIRA, 2001). A Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL, 1994), apontou duas grandes diretrizes para esse segmento. A primeira, voltada para a questão pedagógica; e a segunda, para uma política de recursos humanos. Ao tratar das diretrizes pedagógicas, ressaltou que todas as relações construídas no interior da creche e da pré-escola sejam educativas. Nesse sentido, o atendimento às necessidades imediatas de higiene, alimentação, saúde, proteção e aconchego, também são ações educativas. A criança é entendida em sua integridade humana, como sujeito do seu processo de desenvolvimento, embora necessite do adulto para o seu cumprimento (COSTA, 2003). A criança é concebida como um ser humano completo que, embora em processo de desenvolvimento e, portanto, dependente do adulto para a sua sobrevivência e crescimento, não é apenas um 'vir-a-ser' [...] como todo ser humano é um sujeito social e histórico; pertence a uma família, que está inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado momento histórico. É profundamente marcada pelo meio social em que se desenvolve, mas também o marca, o que lhe confere a 43 condição de ser humano único, de indivíduo (BRASIL, 1994, item 2.1). Nesta mesma perspectiva o Plano (BRASIL, 2001), ressalta Nacional de Educação a importância da Educação Infantil e destaca que ela ”estabelece as bases da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da socialização" (BRASIL, 2001, p.10). O PNE reconhece que as instituições de Educação Infantil vêm se tornando cada vez mais necessárias, complementando as ações da família e declara que o investimento em programas de atenção a crianças pequenas baseia-se no direito ao cuidado e à educação desde o nascimento. Na trilha das mudanças esboçadas a partir do ordenamento legal e das diretrizes assinaladas nos documentos citados, e tendo em vista a construção de uma política nacional de Educação Infantil, surgiram importantes desafios a serem enfrentados para a materialização prática de propostas educativas voltadas para a faixa etária de zero a cinco anos. Um desses desafios a serem vencidos é a superação da dicotomia entre assistência e educação, onde se acredita que o atendimento à criança de até três anos é de caráter assistencial, e de que a partir dos quatro anos é educativo. Apesar da determinação de que tanto a creche quanto a pré-escola devem estar vinculadas à Educação, unificando as funções de assistir e educar, isso tem permanecido longe da prática cotidiana na Educação Infantil. Mesmo diante desta dificuldade, a vinculação das creches e préescolas ao sistema educacional significou uma conquista sem precedentes no sentido da superação de uma situação administrativa que mantinha fora do ensino regular as instituições Significou ainda que a divisão creche e educacionais para a infância pobre. da Educação Infantil nas modalidades pré-escola nos textos da CF (BRASIL,1988) e da LDBEN (BRASIL,1996) sinaliza o início de um processo de reestruturação, embora esse processo de determinação prática do que é creche e do que é pré-escola não seja tarefa simples e automática. 44 Talvez esta dificuldade tenha relação com o fato das primeiras creches terem surgido como um serviço destinado à mulher que estava entrando no mercado de trabalho – dentro do contexto capitalista – mais especificamente, às mulheres das classes sociais trabalhadoras. Foi para atender aos filhos dessas operárias que as creches se propagaram, adquirindo um caráter assistencialista, onde a criança deveria ser cuidada e alimentada em substituição aos cuidados maternais, durante o período de trabalho da mãe. É fato que o processo de industrialização brasileiro produziu uma rápida urbanização e a crescente introdução da mulher no mundo produtivo, resultando em um grande número de crianças necessitadas de cuidados22. Como medida prática para o enfrentamento dessa situação, foi proposta a criação de creches e de uma legislação específica, já naquela época (década de 20) de proteção ao trabalho, especialmente feminino. Foram implantadas as primeiras creches para os filhos de operárias, por iniciativa não do poder público, mas de empresários paulistas, com o objetivo de garantir a estabilidade da mão-de-obra e exercer o controle sobre o movimento operário (COSTA, 2003, p. 43). Mas à medida que os anos foram passando, essas creches que atendiam às crianças das mulheres trabalhadoras foram aos poucos sendo assumidas por instituições governamentais e não governamentais ligadas ao governo federal – como a Legião Brasileira de Assistência (LBA)23 – e aos governos estaduais. Como já assinalamos tais ações tanto se devem à organização e reivindicações dos/das trabalhadores/as, como a preocupação do governo com o processo de industrialização nascente. Foi deste modo que 22 É claro que para a mentalidade da época, não se cogitava que homens/pais mesmo desempregados, podiam cuidar das crianças. Além disto, no contexto da industrialização acelerada, pais e mães, em sua maioria, estavam inseridos no mercado de trabalho. 23 Órgão ligado ao Ministério da Previdência e Assistência Social que fornecia apoio técnico e financeiro às instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais que atendiam às crianças das camadas mais pobres da população. 45 foi tratada a Educação Infantil no Brasil entre os anos 40 e 50 do século XX. Na década de 1970, já no período da ditadura militar, sob a liderança e iniciativa de organizações populares, foram criadas creches dentro das comunidades pobres. Essas novas modalidades de atendimento se configuraram em importantes experiências. Por outro lado, a crescente conscientização sobre a importância da criança começar o seu processo de socialização, fora do contexto familiar, cada vez mais cedo, e com a inserção também da mulher da classe média no mercado de trabalho, a partir dos anos 60-70 no Brasil, houve um aparecimento significativo de instituições para atenderem os filhos destas famílias, sob a denominação de “pré-escolas”, “berçários” e/ou “jardins de infância”. Nesse caso, o atendimento foi assumido por instituições particulares, com fins lucrativos, cuja ênfase inicial estava na faixa etária de quatro a seis anos. Desta forma, o que se conformou socialmente foi a ideia de “creche para os pobres” e “pré-escola para os demais”. O filho da patroa estudava no “jardim” e o da empregada, na “creche” (COSTA, 2003). Como já assinalamos tal visão de educação destinava aos filhos da elite e da classe média uma educação de cunho humanista e pragmático visando torná-los os dirigentes, enquanto destinava-se aos filhos de trabalhadores(as) uma educação que visava formá-los somente enquanto futura mão-de-obra. Neste processo histórico de surgimento das instituições de atendimento à criança pequena evidencia-se que as funções de guarda, assistência e cuidado foram assumidas principalmente pelas creches, que atendiam não apenas até aos três anos de idade, mas até aos seis. A educação da criança de quatro a seis anos inseriu-se nas ações do MEC desde 1975, quando foi criada a Coordenação de Educação Pré-Escolar. Nesse período, a maioria das pré-escolas estava vinculada às Secretarias Estaduais de Educação. A educação em creches, sobretudo das crianças de zero a três anos, continuava sendo realizada por meio de convênios com a 46 LBA (BRASIL, 2006). Porém, a partir dos anos 1990, com o processo crescente de discussão sobre os direitos sociais em todas as áreas, o significado e as funções da Educação Infantil careceram de atualização, superando-se a ideia dicotômica de que a creche tem a função primordial de "cuidar e assistir" e a pré-escola de "educar". Atualmente, "cuidar e educar" têm sido pontuados, por diversos autores como funções complementares e indissociáveis na Educação Infantil, tanto no ambiente da creche quanto da pré-escola. ( FONSECA, 1997; CAMPOS; HADDAD,1992; SOUSA, 2000; KULHMANN, 1999). Essa assistência que posição contrapõe-se àquela de guarda e prevaleceu historicamente nas creches voltadas para o atendimento aos segmentos mais pobres da população, atendendo, em muitos casos, até aos seis anos de idade. Kuhlmann (1999) explica que o papel atribuído às instituições de Educação Infantil, de "cuidar e educar", tem a sua origem na expressão educare, que no latim, tinha o sentido de criar (uma criança), nutrir, amamentar, cuidar, educar, instruir, ensinar, fazer crescer. Portanto, o autor alerta que não se pode cair no risco de que a função de "cuidar" seja considerada segmentada da de "educar". Segundo ele a tradução do termo educare deve manter o significado original, constituindo uma unidade indissociável: educar-e-cuidar, pois "se o cuidado deve ser observado nos mais diferentes fundamental na níveis educacionais, educação da trata-se de um elemento criança pequena" (KUHLMANN, 1999, p. 59). Corroborando com o mesmo pensamento, Sousa (2000) diz que o que assinala a função atual da Educação Infantil é a adequada integração entre educação e assistência, abalizadas por Fonseca (1997), como as funções atribuídas à Educação Infantil atualmente. Portanto, o ato de educar está inegavelmente conectado ao ato de cuidar. Apesar da discussão, sobre o significado e a dimensão das funções da creche e da pré-escola, já virem se configurando desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001) 47 ainda trouxe como diretriz a superação da dicotomia das funções entre a creche e pré-escola, e entre assistência e educação, deixando claro que, na prática, essa questão ainda não está superada. Estão faltando ações que efetivamente transpareçam a integração das funções de "cuidado e educação", no contexto das creches e pré-escolas, no sentido de garantir um atendimento educativo, integral e de qualidade. 2.1.2 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil A LDBEN, já apontava que, “ para atuar na educação básica, a formação do professor deve ser de nível superior, admitindo-se como formação mínima para atuar na Educação Infantil aquela oferecida em nível médio, na modalidade Normal” 24 (BRASIL, 1996, art. 62). Essa ressalva quanto à formação dos profissionais para atuar na Educação Infantil sinaliza que o profissional que atua diretamente com a criança, em creches e/ou pré-escolas, ainda não teve a profissão reconhecida e regulamentada. Em sua quase totalidade, eram e ainda são mulheres que, em diferentes locais, foram denominadas de várias formas: educadoras, monitoras, pajens, recreadoras, atendentes, "tias" etc. Costa (2003) comentando Mazzilli et al. (2001) coloca que os autores, em uma síntese das mudanças conceituais ocorridas na história recente da Educação Infantil no Brasil, demonstram que o papel do profissional, nessa área, evoluiu da função de pajem/recreador para a de educador, com a chegada da CF (1988), do ECA (1990) e, finalmente, para a de professor, com a LDBEN (1996) e as DCNEI (1999). O PNE estipulou, quanto ao projeto pedagógico, como uma de suas metas "assegurar que, em três anos, todas as instituições de Educação 24 Trata-se de um curso do Ensino Médio cujo objetivo é a formação de professores com habilitação para ensinar do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. 48 Infantil tenham formulado, com a participação dos profissionais de Educação neles envolvidos, seus projetos pedagógicos" (BRASIL, 2001, p.13). Todavia, a formulação e execução do projeto pedagógico estão atreladas à necessidade prioritária do atendimento a essas crianças ocorrer em instituições conhecedores onde dos existam processos profissionais preparados e de desenvolvimento e aprendizagem na primeira etapa da vida humana. Essa questão é apontada por Rocha (1999) e pelo Plano Nacional de Educação (2001). Porém, o documento preliminar da Política Nacional de Educação Infantil já dizia, em 1994, que Particularmente grave é a desvalorização e a falta de formação específica dos profissionais que atuam na área, especialmente na creche. Um número significativo dos que trabalham na Educação Infantil sequer completou a escolaridade fundamental (BRASIL, 1994, p.10). Assim, a Política Nacional de Educação Infantil (2006) assinalou as diretrizes para uma política de recursos humanos, essenciais até mesmo para o cumprimento das diretrizes pedagógicas. Lembrou a importância do papel do educador com um intento primordialmente educativo, desempenhando a função de mediador entre as crianças e o processo de aprendizagem. [...] a atuação do adulto - incentivando, questionando, propondo e facilitando o processo de interação com os outros - é de vital importância no desenvolvimento e construção do conhecimento pela criança [...] (BRASIL, 2006, p.7) Outro desafio diz respeito ao reconhecimento trabalhador da Educação Infantil. profissional do 49 Esta concepção de Educação Infantil, que integra as funções de educar e cuidar, em instituições educativas complementares à família, exige que o adulto que atua na área seja reconhecido como um profissional. Isto implica que lhe devem ser assegurados condições de trabalho, plano de carreira, salário e formação continuada condizentes com o seu papel profissional. (BRASIL, 1994, Item 2.2.) Está posta uma preocupação com o profissional da Educação Infantil, em dois principais aspectos: o preparo profissional e a valorização desse profissional. O primeiro volta-se para a sua constante atualização, traduzida pela necessidade de formação continuada. O segundo centraliza-se na valorização desse profissional, na tentativa de assegurar-lhe condições de trabalho, plano de carreira e remuneração de acordo com a sua função. A diretriz de formação profissional específica para a Educação Infantil, explicitada na Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL, 1994) – posteriormente contemplada pela atual LDBEN, em seu artigo 62 – aponta quais condições deverão ser criadas para que os profissionais de Educação Infantil que não possuem a qualificação mínima, de nível médio, obtenham-na até dezembro de 2007, com base no artigo 87 (parágrafo 3º-III e parágrafo 4º), que instituiu a Década da Educação (20/12/1997 a 19/12/2007). Por sua vez, o Plano Nacional de Educação (2001), ao incluir em suas diretrizes, a formação dos profissionais da Educação Infantil, a declarou como merecedora de especial atenção. Destacou a relevância da atuação desses profissionais como mediadores no processo de desenvolvimento e aprendizagem. A qualificação específica para atuar na faixa de zero a seis anos inclui o conhecimento das bases científicas do desenvolvimento da criança, da produção de aprendizagens e a habilidade de reflexão sobre a prática, de sorte que esta se torne, cada vez mais, fonte de novos conhecimentos e habilidades na educação das crianças. Além da formação acadêmica prévia, requer-se a formação permanente, inserida no trabalho pedagógico, nutrindo-se dele e renovando-o 50 constantemente (BRASIL, 2001, p. 12). Para atender a essa diretriz, o mesmo documento estabeleceu quatro objetivos profissionais e metas especificamente voltados para os da Educação Infantil, com desafios que vão desde o estabelecimento de um Programa Nacional de Formação aos Professores de Educação Infantil, que em cinco anos, atingirá a formação de nível médio (modalidade Normal), de todos os dirigentes e professores de Educação Infantil, até a ampliação de oferta de cursos de formação de professores de Educação Infantil de nível superior. Prevê, também, a partir de 2001, a titulação mínima em nível médio, modalidade Normal, para os novos contratados, e a execução, em três anos, de programas de formação em serviço, para a atualização permanente e o aprofundamento dos conhecimentos dos profissionais que atuam na Educação Infantil. (BRASIL, 2001). O Plano Nacional de Educação para a próxima década foi entregue pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 15 de dezembro de 2010. O documento foi enviado ao Congresso, para apreciação dos parlamentares e, após aprovação, servirá como diretriz para todas as políticas educacionais do País. O PNE 2011-2020 é composto por 12 artigos e um anexo com 20 metas para a Educação e terá como foco a valorização do magistério. O PNE é a principal diretriz para as políticas educacionais no país e atualmente,25 encontra-se em análise na Câmara dos Deputados. Especialistas afirmam que, para que tenha suas metas atingidas, o Plano necessita contar com o suporte de normas que regulamentem as responsabilidades dos municípios, das unidades da federação e da União, estabelecendo o chamado "regime de colaboração". O próprio texto do PNE, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso, assinala que o alcance das metas e a implementação das estratégias devem ser realizados "em regime de colaboração entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios". 25 Este comentário situa-se no mês de maio de 2011. 51 Nesse contexto, a proposta do Plano Nacional de Educação apresentada pelo governo para este decênio, aparentemente é uma boa proposta. O PNE tem metas e estratégias ousadas e realizáveis, mas esperase que seja aperfeiçoado pelo Congresso. Contudo, ao mesmo tempo em que temos esperança nos planos e propostas discutidos e aprovados nos últimos anos no Brasil, sabemos que tal aprovação se dá em uma conjuntura adversa, pois desde 1990 predomina o ajuste neoliberal que tem restringido os recursos destinados às políticas sociais nas mais diversas áreas, ancorados em um discurso e prática que repassa para a sociedade, através das Organizações Não-Governamentais (ONG’s), a responsabilidade pelas ações no campo social26. Na educação observa-se tal política de ajuste neoliberal nos constantes cortes dos recursos. Apesar de no PNE ter sido aprovado que a União deveria destinar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação, passados mais de dez anos, no ano de 2011 os recursos correspondem a menos de 5% do PIB atual27. Portanto, é preciso estar atentos, pois as legislações aprovadas, apesar de significarem avanços, não são garantia de reais conquistas no campo educacional. 2.2 A Educação Infantil em Natal A Educação Infantil em Natal se insere nas discussões nacionais e nos planos e projetos nacionais. A primeira iniciativa no sentido de programar ações direcionadas à Educação Infantil no município do Natal se deu somente em 1986 com o Projeto Reis Magos, fruto de um convênio firmado entre a Prefeitura do Natal e a Fundação Bernard Van Leer, da Holanda. Foi este convênio entre a prefeitura e a fundação holandesa que – embora em conformidade com a tendência 26 A refilantropização do social tem sido crescente nos últimos anos cujos exemplos mais emblemáticos são as ações ligadas a “Criança Esperança” e “Amigos da Escola”, campanhas realizadas pelas organizações Globo que, baseadas no discurso da Solidariedade Social, convida a população a ajudar e se engajar em ações diversas ligadas a criança e a educação. 27 O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) iniciou campanha em julho/2011 para destinação de 10% do PIB para a Educação. Ver a este respeito <www.andes.gov.br>. 52 assistencialista de atendimento às crianças oriundas de famílias de baixa renda, ainda predominante naquela época – delineou alternativas para a implementação de uma prática pedagógica nessa etapa de ensino (NATAL, 2008). Em 1990 o Projeto Reis Magos foi expandido e já atendia 1.983 crianças distribuídas em 75 turmas em várias escolas, criando um novo significado pedagógico para a Educação Infantil. Para apoiar tal Projeto foi criado o Centro Municipal de Educação Infantil Emília Ramos, no bairro de Cidade Nova, na zona Oeste, pois até então não havia na rede pública municipal de ensino, escolas destinadas exclusivamente à Educação Infantil (NATAL, 2008). Finalizado o Projeto, a SME continuou apoiando a Educação Infantil sem buscar outros convênios. Nesse período, construiu mais dois centros de Educação Infantil – Professora Stella Lopes e Professora Josefa Botelho28 (NATAL, 2005). Nesse percurso a Secretaria Municipal de Educação publica a proposta curricular para a educação pré-escolar do município de Natal em 1993, também em parceria com a Fundação Bernard Van Leer. Esta proposta curricular foi reeditada em 1998. No ano de 1999 a Educação Infantil era oferecida em três Centros Infantis e 35 Escolas Municipais, totalizando 127 turmas e 3.598 crianças. Apesar desta expansão a SME não conseguiu suprir a procura por vagas e em virtude da demanda reprimida firmou convênio com uma escola da rede privada na Zona Norte da cidade, visando ao atendimento de 100 crianças naquela região (NATAL, 2008). Como o resultado desta experiência foi positivo, a SME criou em 2000 o Projeto Pré-Escola para Todos (PPEPT) com a finalidade de suprir a demanda excedente das Escolas Municipais e Centros Municipais de 28 Localizados respectivamente nos bairros de Nova Natal e Ponta Negra, nas zonas Norte e Sul, respectivamente. 53 Educação Infantil, custeando bolsas de estudos nas escolas particulares, preferencialmente aquelas de caráter filantrópico. Em 2002, com a continuidade do PPEPT, o Conselho Municipal de Educação (CME)29, no uso de suas atribuições legais, estabeleceu critérios para celebração de convênios, através da Resolução nº 001/2002, priorizando escolas filantrópicas, comunitárias ou vinculadas a Organizações NãoGovernamentais (ONGs). Desde então, a oferta da Educação Infantil foi sendo ampliada de modo que em 2005 estavam sendo atendidas 14.253 crianças distribuídas em 05 Centros Infantis, 27 Escolas Municipais e 69 Escolas Conveniadas (NATAL, 2008). Este crescimento se insere na Meta nº 01 do PNE (2001-2010) que define a ampliação da oferta de forma a atender, em cinco anos, ou seja, até 2006, a 30% da população de até três anos de idade e a 60% da população de quatro a seis anos (BRASIL, 2006). Mesmo com a ampliação de oferta de vagas, o município de Natal, só atendeu, entre 2001 e 2005, a 9,33% da população infantil de zero a três anos e 49,58% na faixa dos quatro e cinco anos de idade (NATAL, 2005). Apesar da matrícula na Educação Infantil ter atingido um crescimento – muito mais pelo acréscimo de matrículas nas escolas conveniadas – a Meta ainda estava longe de ser alcançada, evidenciando que a Rede Municipal de Ensino não comportava toda a demanda. Assim, visando ao cumprimento da Meta do PNE (2001-2010) – que define a ampliação da oferta de modo a atender até 2010, 50% das crianças de zero a três anos e 80% das de quatro e cinco anos – a Secretaria passou a investir progressivamente na ampliação da Rede, através da construção de novos CMEI30 para atender, inicialmente, as crianças com idade de quatro a 29 Assim como as demais políticas, na Educação o exercício do controle social também é realizado pelos diversos conselhos: nacional, estaduais e municipais. Deste modo, cabe aos Conselhos Municipais fiscalizar a política de educação a partir da construção do Plano Municipal de Educação. 30 Até 2007 já existiam 08 CMEI. 54 seis anos. As crianças de zero a três anos de idade só começaram a ser atendidas a partir de 2007/2008 quando teve início a primeira fase do processo de transição das 16 creches31 – da ONG Ativa – ligadas a Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS) para a SME. Este processo de transição estava previsto desde 1996 quando, na LDBEN, a Educação Infantil foi reconhecida como direito da criança, das famílias, como dever do Estado e primeira etapa da Educação Básica (BRASIL, 1996). Embora a Educação Infantil esteja inserida nas ações do MEC desde 1975 com a criação da Coordenação de Educação Pré-Escolar, o Ministério da Previdência e Assistência Social também se incumbia do atendimento ao “préescolar” através de convênios diretos – que previam auxílio financeiro e algum apoio técnico – com instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais.32 A atuação concomitante destes dois ministérios se justifica pela necessidade urgente de expansão do atendimento gerada pelo processo de urbanização do país, nas décadas de 1970 e 1980, somado a uma maior participação da mulher no mercado de trabalho e a pressão dos movimentos sociais que exigiam a ampliação da oferta de vagas para esta faixa etária. Ao mesmo tempo, as ações ligadas aos dois ministérios trazem por vezes duplicidades e dificuldades na operacionalização. Esta urgência para atender à pressão da demanda e a insuficiência de recursos financeiros, aliados à omissão da legislação educacional levaram as instituições de Educação Infantil a se expandirem para além dos sistemas de ensino, alastrando-se formas alternativas de atendimento, onde os critérios básicos relativos à infraestrutura e à escolaridade das pessoas que lidavam com as crianças eram desconsiderados. Assim, a providência primeira nesse processo de transição das creches, da assistência para a educação, foi a criação em julho de 2007, no Quadro de Pessoal do Município do Natal, de 600 cargos de provimento 31 Destas, 04 foram incorporadas à outras, sendo transferidas à SME, um total de 12 creches. O Programa foi desenvolvido pela LBA e, mesmo depois de sua extinção em 1995, a dotação orçamentária para creche no âmbito da assistência social federal continuou existindo. 32 55 efetivo, de Educador Infantil para atuar nas creches e nos CMEI, atendendo, no que lhe compete, a criança que, no início do ano letivo, possua idade variável entre quatro meses a cinco anos e 11 meses. (NATAL, 2007). A criação do cargo reflete a preocupação com a identidade e o papel dos profissionais da Educação Infantil, cuja atuação complementa o papel da família e que se insere no contexto das pesquisas sobre desenvolvimento humano, formação da personalidade, construção da inteligência e da aprendizagem nos primeiros anos de vida que apontam para a importância e a necessidade de um trabalho educacional que respeite as especificidades desta faixa etária. Esta medida foi apenas uma entre outras, visando atender às especificidades da Educação Infantil no município. A partir de 2009 esta política veio a ser fortalecida com ações que abrangem tanto investimentos na infraestrutura quanto na formação dos profissionais que atuam nessa etapa de ensino. Na perspectiva de valorização dos profissionais, em abril de 2010 foi aprovada a Lei Complementar 0114/10 que dispõe sobre o Plano de Carreira e Remuneração do Cargo de Educador Infantil (NATAL, 2010a). Este Plano prevê, entre outras coisas, a otimização da carga horária deste profissional que passa de 40h para 30h semanais. Contudo, como discutiremos mais adiante, esta “redução” na carga horária acabou por criar um problema quanto à garantia das horas previstas para o planejamento das atividades. Quanto aos investimentos na infraestrutura, do início de 2009 e até meados de 2010 foram reinaugurados ou inaugurados 30 CMEI33. Na verdade, a gestão municipal está preocupada com o cumprimento das diretrizes nacionais que, desde a CF de 1988 (Art. 208, IV) preveem assistência técnica e financeira aos municípios a fim de garantir o padrão mínimo de qualidade no atendimento às crianças de zero a seis anos34. Vale lembrar que, aliada à garantia de espaços físicos, a Política Nacional de Educação Infantil prevê 33 Referente à segunda fase de transição das creches ligadas a SEMTAS para a SME. Vale lembrar que desde 2008 há garantia de recursos para o atendimento a crianças a partir de quatro anos de idade. 34 56 também a provisão de equipamentos e materiais adequados nas instituições e, neste aspecto, ainda há muito a ser feito no município de Natal. Ainda sobre a ampliação dos espaços físicos, verifica-se que no mês de abril de 2011, a Rede contava com 61 Centros Municipais de Educação Infantil e já se encontrava em processo de licitação a construção de mais seis Centros. Além disso, a SME estará recebendo, até o final de 2011, 26 creches – da ONG MEIOS – ligadas a Secretaria Estadual de Trabalho, Habitação e Assistência Social (informação verbal)35. Contudo, pode-se afirmar que estes esforços estão atrasados em relação aos objetivos propostos pela Política Nacional de Educação Infantil que recomenda a integração efetiva de todas as instituições de Educação Infantil (públicas e privadas) aos respectivos sistemas de ensino até o final de 2007. Pode-se afirmar ainda que há um longo caminho a ser trilhado no sentido de cumprir a meta prevista no PNE (2011-2020) de universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de quatro e cinco anos, e ampliar, até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até três anos. Segundo o IBGE, apenas 35,13% das crianças natalenses foram matriculadas na Educação Infantil em 2010 (BRASIL, 2010). 2.2.1 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil no âmbito da Secretaria Municipal de Educação no município do Natal O Departamento de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação responde diretamente ao Secretário Adjunto de Gestão Pedagógica e é composto de três setores: Setor de Ações e Projetos, Setor de Planejamento e Avaliação, Setor de Acompanhamento de Projetos e Convênios. 35 Dados obtidos no Setor de Planejamento e Avaliação do Departamento de Educação Infantil em 10 de maio de 2011. 57 A rede municipal de ensino de Natal conta hoje, no âmbito da Educação Infantil, com, aproximadamente, 61 Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) e 21 Escolas de Ensino Fundamental que possuem turmas de Educação Infantil, além de 48 escolas conveniadas pelo PPEPT e 05 escolas conveniadas pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)36, atendendo, aproximadamente, 14.879 crianças na faixa etária entre quatro meses a cinco anos e 11 meses (informação verbal)37. Além da ampliação da oferta de vagas, os educadores e técnicos da SME sempre estiveram preocupados com a qualidade desta Educação Infantil. Além da criação do cargo de educador infantil e a aprovação do seu Plano de Cargos e Remuneração, o acompanhamento pedagógico, que sempre se fez presente, foi intensificado. Pensando em garantir a qualidade da ação pedagógica, cada CMEI e Escola Municipal com turmas de Educação Infantil contavam, desde o início dos anos 2000, com uma assessora que acompanhava o trabalho dos coordenadores pedagógicos, responsáveis pelo planejamento das ações em cada nível. O planejamento ocorria uma vez por semana, no horário do expediente dos educadores infantis agrupados segundo o nível de atuação. Enquanto o educador infantil planejava com o coordenador pedagógico, um educador de diversas linguagens ou professores de arte e educação física assumia a turma. O acompanhamento pedagógico dos CMEI e Escolas Municipais, com turmas de Educação Infantil, ocorriam dessa forma até meados de 2009, quando foi criado um Comitê Estratégico de Assessoramento Pedagógico, composto por doze Grupos de Trabalho (GT), cujo principal objetivo é ressignificar o monitoramento das escolas, numa perspectiva de estudos que 36 É um fundo de natureza contábil, instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006, cuja composição é oriunda de diversos impostos que abrange toda a Educação Básica Pública. Os repasses são automáticos, via Banco do Brasil, com base no número de alunos da educação básica (Matriculados nos respectivos âmbitos de atuação prioritária) e constantes do último Censo Escolar. Trata-se de um fundo independente para cada Estado e para o Distrito Federal (Disponível em www.mec.gov.br. Acessado em 21/07/2011). 37 Dados obtidos no Setor de Planejamento e Avaliação do Departamento de Educação Infantil em 10 de maio de 2011. 58 privilegie a reflexão teórica e prática. Este Projeto de Assessoramento Pedagógico para a Rede Municipal de Ensino propõe que os diferentes departamentos e setores da SME trabalhem de maneira articulada, a fim de minimizar os problemas decorrentes da fragmentação de ações desenvolvidas, evitando desperdício de tempo, de recursos financeiros e de pessoal. Nesta nova proposta os assessoramentos são agendados pelo coordenador do GT, sempre na segunda quinzena de cada mês, e além da assessoria do DEI, os CMEI e Escolas Municipais com turmas de Educação Infantil recebem uma equipe multisetorial porque se percebeu que o assessoramento pedagógico não pode acontecer desvinculado de outras questões de ordem administrativa, financeira e de gestão (NATAL, 2009). Contudo a partir do início do ano letivo de 2011, com a implantação da Lei Complementar nº 121 de 31 de dezembro de 2010 (NATAL, 2010b), a carga horária de efetivo trabalho em sala de aula passou de 40h para 30h semanais, o que na prática significa que as horas de planejamento que antes aconteciam durante o expediente não podem mais acontecer desta maneira. Há, portanto necessidade de se reorganizar o planejamento dos educadores infantis e a SME ainda está estudando quais orientações dará aos coordenadores pedagógicos no sentido de não comprometer a qualidade da Educação Infantil no município. O planejamento nas Escolas Municipais, onde as crianças da Educação Infantil são atendidas por professores38, não houve mudança no planejamento. Vale chamar a atenção para o fato de que esta organização do DEI no sentido de garantir a qualidade não contempla as escolas conveniadas. São apenas duas assessoras pedagógicas, além do chefe do Setor de Acompanhamento de Projetos e Convênios (SAPCEI), para acompanhar 53 escolas, que atendem 5.472 crianças (informação verbal)39. Vê-se aqui uma incoerência nesta política que visa garantir a qualidade, tendo em vista que o atendimento oferecido através de convênios, 38 Diferentemente dos Educadores Infantis, os professores são regidos pela Lei 058/2004 que prevê 20h semanais, garantidas as horas de planejamento com a presença dos profissionais de educação física e artes. 39 Informação dada pelo SAPCEI em 19 de maio de 2011. 59 que vem se dando sem o acompanhamento pedagógico necessário, ainda corresponde a um grande percentual das crianças atendidas na Educação Infantil no município. Percebe-se, portanto, que ainda há muito a avançar no campo da Educação Infantil no município de Natal. 60 3 COMPREENDENDO CONTRA CRIANÇAS O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência é uma forma de relação social e como tal está ligada ao modo pelo qual as pessoas produzem e reproduzem suas condições sociais de existência. Nesta perspectiva, a violência manifesta os modelos de comportamento em vigor numa dada sociedade em determinado momento histórico. Contudo a compreensão da violência não pode desprezar a alusão aos sujeitos e às estruturas sociais, pois, ao mesmo tempo em que a violência expressa relações entre classes sociais, ela também expressa relações entre pessoas. (ADORNO, 1988). Segundo Britto e Lamarão (1994), frequentemente, dois tipos de juízos estão presentes nas múltiplas tentativas de explicação sobre a violência. De um lado, os que acreditam que a violência generalizada se explicaria por condicionantes estruturais. Do lado oposto, os que defendem que a violência em geral teria sua raiz na debilidade das ações do Estado. A primeira vertente considera os agentes e pacientes como vítimas comuns das condições materiais engendrados por um modelo de organização social e econômico perverso em si mesmo. Por esse prisma, pobreza e crise econômica explicariam a produção e disseminação da violência. A segunda tendência, por sua vez, limita sua atenção à prática da violência criminosa, praticada necessariamente pelos segmentos sociais que se mantêm à margem das estruturas formais de produção. De acordo com esta visão, o criminoso assumiria total responsabilidade por seus atos perante as instituições do sistema de justiça criminal. O conceito de violência, neste caso, estaria restrito ao seu reconhecimento formal pela legislação penal. Partindo do primeiro tipo de interpretação, a melhoria dos padrões de eficiência da ação policial e do aparelho judicial do Estado, bem como o maior rigor da lei de repressão à criminalidade, não teriam nenhum efeito diante da crescente onda de violência. 61 Já para a outra corrente, o aumento da violência se deve justamente ao excesso de liberalidade do próprio Código Penal, ao despreparo das polícias e à deficiência do sistema judiciário. Para eles, estes fatores acabam por propiciar o desrespeito às leis e estimular a criminalidade e a violência em geral. Toda essa discussão, independente da vertente adotada, está presa a uma linha de abordagem “evolucionista” que concebe a violência como expressão de um estágio determinado da história da sociedade humana. De acordo com o primeiro tipo de interpretação, a sociedade brasileira é vista como uma espécie de sociedade de bárbaros, distanciada da sociabilidade e da convivência civilizada, segundo os padrões culturais vigentes nas sociedades consideradas desenvolvidas. A segunda corrente parte do pressuposto que a solidariedade generalizada que presidia as relações entre os homens foi corroída pelo individualismo do mundo atual. Deste modo, já que para a primeira corrente falta-nos a “civilidade” das nações desenvolvidas, conclui-se que para tal corrente a violência não faz parte (ou faz em menor escala) das sociedades mais desenvolvidas e civilizadas. Para esta corrente, a violência é uma característica das sociedades mais antigas. Em contraponto a esta posição, a segunda abordagem atribui a violência à sociedade moderna e fala das sociedades antigas como lugar de “solidariedade comunitária”. Assim conclui-se que há uma dicotomia presente nesta lógica evolucionista que demarca a oposição entre “barbárie” e “modernidade”, ancorada na teoria da modernização que tem como perspectiva a universalização das sociedades industriais. Nessas sociedades com forte tendência à urbanização, o crescimento explosivo dos índices sócio demográficos promoveria o progressivo desaparecimento dos traços tradicionais e a generalização da lógica que caracteriza a sociedade moderna (racionalidade e liberdade). 62 A partir desta análise estruturam-se dois modos de pensar e agir diante da violência. De um lado são imaginadas soluções teóricas para a problemática e por outra via são gestadas soluções práticas. As respostas esboçadas são marcadas pela polarização. Por uma trilha, um determinismo econômico produzindo um discurso unilinear e autoexplicativo que reduz o trabalho científico a mero exercício de demonstração. Por outra via, uma perspectiva funcionalista que enfoca a violência como desvio de uma suposta normalidade social, inspirando ações repressoras com o objetivo de mantê-la dentro dos limites toleráveis para permitir a reprodução da estrutura social prevalecente (BRITTO e LAMARÃO, 1994). A questão da violência vem ocupando o centro das discussões na sociedade moderna, entretanto, ela se impõe como problemática obrigatória da Sociologia e da Filosofia desde tempos remotos. Os estudos acerca da violência têm suas raízes em Thomas Hobbes no século XVII. Ele concebe a guerra como uma condição natural dos homens e afirma que para os homens obterem a paz é necessário que cada um renuncie ao direito que tem sobre as coisas, para transferi-lo a um poder soberano que governará sobre todos. Esta formulação inspira uma visão evolucionista em que de um lado visualiza-se o estado da natureza – no qual predomina a violência e o caos – e do outro o estado da sociedade- no qual se vive com base na racionalidade das leis com o governo regulando as relações. Delineia-se, assim, uma trajetória linear entre a barbárie e o mundo civilizado (HOBBES, 1992). Foi com este olhar que os colonizadores reproduziram nos povos do novo continente a imagem do selvagem e propiciaram a ideia de que o selvagem é um ser para a guerra. Essa imagem se projeta para o discurso atual sobre a violência, buscando na noção de violência natural a legitimação para a ação repressora e autoritária da sociedade moderna. Nesta interpretação, a relação entre violência e sociedades tidas como atrasadas, assume o caráter de universalidade nas sociedades ditas desenvolvidas. A figura do nativo violento invade não apenas o imaginário social, mas também o campo da ciência (HOBBES, 1992). Defendemos a posição da desmistificação 63 do pressuposto de que o homem é, em estado natural, uma “fera” e de que caberia ao Estado o papel de domador. Isto envolve um processo de desconstrução ideológica que se dá, necessariamente, no campo da luta política e, portanto, independe de redescobrir a causalidade desse fenômeno. A problemática da violência contra crianças se insere no contexto mais amplo da escalada que esse fenômeno vem assumindo nos últimos tempos, podendo se dá em diversos contextos: na escola, na rua, nas relações de trabalho, no trânsito, na vizinha da criança e até na própria casa (violência doméstica ou intrafamiliar). Na presente pesquisa, nosso enfoque será a violência praticada contra as crianças em seus próprios lares, já que dentre os diversos tipos de violência praticados contra elas a violência doméstica merece destaque tendo em vista que é responsável por 88,8% dos casos de violência contra a criança (AZEVEDO, 2005). Infelizmente as crianças não são as únicas vítimas da violência doméstica. Trata-se de um problema social de grande dimensão que afeta toda a sociedade, em especial as mulheres, as crianças, os adolescentes, os idosos e deficientes (BRASIL, 2001). De acordo com Ferrari e Vecino (2002) a violência revela uma relação assimétrica e hierárquica de poder com o fim de dominação, exploração e opressão e está relacionada aos fatores estruturais, socioeconômicos e psicoculturais, que influenciam a conduta dos indivíduos e grupos sociais. Contudo, a violência doméstica contra a criança tem uma particularidade. Sendo, dentre os grupos mais vulneráveis, aquele mais frágil, a criança é, na maioria das vezes, a última a ter acesso aos direitos básicos de cidadania. Diante da fragilidade e da dependência emocional infantil, a violência doméstica contra crianças é um fenômeno que se sustenta na relação autoritária, no abuso de poder do adulto que deveria ser referência positiva para a construção da identidade da criança. Esta dinâmica relacional 64 adultocêntrica dificulta o desenvolvimento infantil e compromete a construção de vínculos afetivos fundamentais no processo de socialização. Todavia, não se pode compreender a violência doméstica analisando apenas a dinâmica dos relacionamentos. Faz-se necessário considerar a sociedade e a cultura onde ela ocorre, pois quando alguém mergulha no íntimo de seu ser não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de determinações sociais. Daí porque a compreensão da violência doméstica contra crianças brasileiras deve, necessariamente, fazer-se à luz de uma percepção históricocrítica do Brasil em seus aspectos socioeconômicos, políticos e culturais. Não se pode esquecer que somos um país com uma desigualdade social absurda e evidente, onde, em 1990 os 20% mais ricos tinham um rendimento 26 vezes maior do que os 20% mais pobres. Somos um país com qualidade de vida deteriorada, ocupando a 72ª posição no Relatório sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) divulgado pela ONU em 2002. O IDH é um dado utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para analisar a qualidade de vida de uma determinada população. Os critérios utilizados para calcular o IDH são: Grau de escolaridade, Renda, Nível de saúde. O IDH varia de zero a um e quanto mais se aproxima de um, maior o IDH de um local. De acordo com dados divulgados em novembro de 2010 pela ONU, o Brasil apresenta IDH de 0,699, ocupando atualmente o 73° lugar no ranking mundial. Apesar do país vir conseguindo elevar o seu IDH e hoje ser classificado entre os países com IDH alto, existem grandes disparidades sociais e econômicas entre os estados brasileiros. No Nordeste, quase 75% das crianças vivem em famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (UNICEF, 2004). Deste modo, classificar o Brasil entre os países com alto IDH torna-se uma ironia. Este retrato do Brasil nos permite entender a violência doméstica contra nossas crianças, entre outras coisas, como uma manifestação da desigualdade social e da cidadania precária em um país desigual, de marcada pobreza social e política. Permite ainda conceber que este perfil se produziu 65 historicamente no bojo das transformações socioeconômicas e políticas cujas raízes remotas estão no nosso processo colonizatório, no escravismo, na família patriarcal. Diante do exposto até aqui, vê-se que a violência doméstica contra crianças é um fenômeno causado por múltiplos determinantes (socioeconômicos, culturais, psicológicos e situacionais). Por isso privilegiamos neste trabalho, como modelo explicativo, o modelo multicausal e interativo originário dos estudos de Azevedo e Guerra (2005). É multicausal por tratar-se de um modelo assentado no pressuposto de que o abuso-vitimização intrafamiliar praticado contra crianças decorre da interação entre determinantes socioculturais e determinantes que envolvem a relação familiar, na qual se fazem presentes elementos psicológicos e culturais do pai, mãe e filho(a). E é interativo por tratar-se de um modelo que traz implícita a hipótese histórico-crítica de (re)produção do padrão social e da interação pai-mãe-filho(a). O modelo interativo multicausal que privilegiamos aqui se baseia na abordagem sócio-psico-interacionista, cujo postulado básico é o de que [...] embora as condutas humanas decorram da interação indivíduo-sociedade, a direção dessa interação é clara: o psicológico (individual) é condicionado pelo social e esse condicionamento se produz historicamente. (AZEVEDO; GUERRA, 2006, p. 23) A violência doméstica, embora seja um fenômeno associado à pobreza, ocorre invariavelmente em todas as classes sociais. Contudo, nos segmentos mais pobres, o ambiente físico (casas construídas muito próximas, inexistência de muros, etc) facilita a exposição dos casos à vizinhança, enquanto nas classes sociais mais elevadas, onde as “mansões” são protegidas por altos muros, torna-se mais difícil que a vizinhança perceba tais casos. 66 Embora a violência doméstica seja de difícil diagnóstico, devido à cumplicidade da família em proteger o agressor, seus desdobramentos podem ser observados em ambientes extrafamiliares, como a escola, tendo em vista que as crianças dão várias pistas, na maioria das vezes não verbais, sobre as situações de violência doméstica das quais são vítimas. A fim de identificar o fenômeno, deve-se conhecer o perfil do agressor. Este, geralmente, vê a criança como um objeto, raramente comparece nas reuniões escolares, descreve a criança como preguiçosa, de má índole e causadora de problemas, culpa a criança pelos problemas no lar, defende a aplicação de disciplina severa, demonstra irritação e pouca paciência com o comportamento próprio das crianças, cobra da criança desempenho físico e/ou intelectual acima de sua capacidade, tem um histórico de violência em sua própria infância, faz uso de álcool e outras drogas e mente sobre a causa das lesões da criança quando é questionado a respeito (SANTOS, 2004). O perfil da vítima também precisa ser observado. Geralmente ela teme exageradamente os pais, tem baixa autoestima, está sempre em estado de alerta e falta constantemente à escola. Evidentemente, os sinais de alerta vão variar conforme o tipo de violência (CUNHA, 2004). É bom lembrar ainda que, em 70% dos casos, o agressor é o pai biológico. Porém, se for levada em consideração a frequência das agressões, a mãe agride mais, porém o pai causa lesões mais graves. A maioria dos agressores leva uma vida normal, em apenas 10% dos casos o agressor sofre de transtornos psiquiátricos (FELIZARDO; ZURCHER; MELO, 2004). O tema abordado nesta pesquisa – violência doméstica contra crianças – apresenta uma relação com a violência entre as classes sociais, característica do modo de produção das sociedades capitalistas. Contudo, existem outros determinantes além dos estruturais, pois esta “é um tipo de violência que permeia todas as classes sociais como violência de natureza interpessoal” (GUERRA, 2008, p.31). Isso significa reconhecer que se é verdade que o abuso-vitimização doméstica de crianças depende, por hipótese, sobretudo de um padrão abusivo 67 de interação pai-mãe-filho(a) enquanto padrão de relacionamento interpessoal familiar, contudo, esse padrão foi construído historicamente por indivíduos que revelam as marcas de sua história pessoal no contexto da história socioeconômica, política e cultural de uma dada sociedade. (AZEVEDO; GUERRA, 2006). A violência doméstica contra a criança é uma forma de violação dos seus direitos, uma negação dos valores humanos fundamentais. Consiste no abuso do poder disciplinador do adulto. Trata-se de um processo de vitimização, onde a criança é coagida a satisfazer os desejos do adulto, sendo vista por este como um objeto que lhe pertence, uma “coisa”. O conceito de violência doméstica utilizado nesta pesquisa diz respeito aquela praticada contra crianças e/ou adolescentes no âmbito familiar, pelos pais, parentes ou responsáveis, sob a forma de ação ou omissão, pautada no abuso de poder, que reduz a vitima à condição de objeto. Horkheimer (1985) consideram a família como uma agência socializadora e formadora da personalidade dos indivíduos que exerce um papel conservador e onde está sempre presente o elemento de dominação, cujo elemento central esmagador da liberdade é a autoridade dos pais sobre os filhos. Na família, lugar de adestramento para a adequação social, a criança aprende a relação burguesa com a autoridade; o filho aprende a desenvolver o respeito pela autoridade, através da idealização da figura paterna. A família é a matriz dos mecanismos da internalização da submissão [...] (AZEVEDO; GUERRA, 2005, p.59). Além de ser um lugar onde se forma a estrutura psíquica, a família é um espaço social onde as gerações se defrontam mútua e diretamente, é onde são definidas as relações de poder. Porém, como a família pertence à esfera privada, a violência doméstica, geralmente, é “protegida” por um pacto de silêncio firmado entre seus membros. 68 3.1 Modelos explicativos da violência doméstica contra a criança A escolha de um modelo explicativo na área da violência doméstica contra crianças requer do pesquisador um compromisso científico no sentido de compreender o fenômeno a fim de impedir sua (re)produção social, no sentido de comprometer-se, sempre, com a proteção da criança. (LACRI, 2006). Segundo Azevedo e Guerra (2005), os modelos explicativos da violência doméstica contra crianças têm sido de dois tipos: os unidimensionais e os multidimensionais. As pesquisas realizadas nos modelos unidimensionais baseiam-se no pressuposto determinista da causalidade linear e defendem a tese de que o componente responsável pela perpetração da violência contra a infância seria o desvio (ou doença) de natureza individual (modelo psicopatológico) ou o desvio social (modelo social), incidente nos ou sobre os agressores. Já as pesquisas realizadas utilizando o modelo multidimensional assentam-se no pressuposto de que a violência doméstica contra crianças decorre da interação entre vários grupos de fatores (psicológicos, socioeconômicos, culturais). Os modelos unidimensionais foram alvo de algumas críticas. Gomes e Fonseca (2005) ressaltam que para explicar e compreender a violência familiar dirigida à criança é necessário admitir a interação entre fatores socioculturais, psicossociais, psicológicos e, inclusive, biológicos. De acordo com Azevedo e Guerra (2005), estudos baseados na Teoria Sistêmica e nos trabalhos de Bronfenbrenner (1979), Belsky (1980) e Ochotorena (1988) propõem um modelo interativo ou multicausal para explicação da violência doméstica contra a criança, visando à superação dos modelos unidimensionais. Conforme as autoras os principais pressupostos do modelo interativo são os seguintes: 69 As forças ambientais, as características do agressor e as características da criança ou adolescente vítima atuam de maneira dinâmica e recíproca neste processo [...] a realidade familiar, a realidade social e econômica e a cultura estão organizadas como um todo articulado e como um sistema, composto por diferentes subsistemas que se articulam entre si de maneira dinâmica [...] os maus-tratos infantis resultam da determinação de maneira múltipla de forças que atuam na família, no indivíduo, na comunidade e na cultura em que este indivíduo e a família estão implicados (AZEVEDO; GUERRA, 2005, p. 43). No entanto, as autoras ressaltam que o modelo interativo não é satisfatório para o entendimento do fenômeno, já que se apoia no mesmo marco referencial empírico-analítico dos modelos unidimensionais e incorpora uma postura positivista que resulta na fragmentação da realidade em fatores e variáveis (LIMA, 2008). Nesse contexto, Azevedo e Guerra (2005) propõem que a violência doméstica contra a criança seja compreendida a partir de uma Teoria Crítica, que embase os estudos acerca da infância, da sexualidade, da criminalidade, da família e da violência, já que esses vários domínios do conhecimento mantêm interface com o fenômeno. As autoras afirmam que essa Teoria propõe que se compreenda a violência à luz de determinantes materiais e políticos de uma sociedade. Assim, entendemos que a díade infância e violência doméstica só poderá ser compreendida a partir das determinações estruturantes do desenvolvimento histórico objetivo. Uma dessas determinações decorre das condições materiais de existência e outra das relações de poder decorrentes da conversão de diferenças de gênero, geração, etnia etc. em desigualdades e, portanto, em pretexto de dominação, opressão, exploração dos fracos pelos fortes (GUERRA, 2008). Observando os modelos multidimensionais, nota-se que tanto aspectos individuais como sociais e culturais são evocados para o entendimento da violência doméstica dirigida à infância. No que tange aos aspectos sociais, a violência doméstica pode estar ligada ao estresse 70 resultante da miséria, desemprego, falta de perspectiva. No entanto, a relação entre condições sociais e a violência familiar dirigida à criança deve ser alvo de ponderações, pois esta associação indiscriminada do aumento da miséria como fator de possível crescimento da violência em diferentes níveis, pode gerar uma criminalização da pobreza, deixando segmentos sociais inteiros vulneráveis a julgamentos prévios e preconceitos. Assis (1994) considera que as condições socioeconômicas não são determinantes para a ocorrência da violência doméstica contra a infância. A pesquisadora, a partir da realização de uma pesquisa epidemiológica com adolescentes estudantes das escolas públicas estaduais e particulares do município de Duque de Caxias/Rio de Janeiro, constatou que as diferentes condições de vida nos dois grupos sociais estudados não refletiram na frequência e forma pela qual a violência doméstica se expressou. Assim, faz-se necessário enfatizar que a violência doméstica não está ligada exclusivamente às famílias de camadas populares, às condições socioeconômicas. A violência doméstica contra a criança está presente em todas as classes sociais indistintamente. Contudo, este tipo de violência se torna explícita nas famílias pobres em função da maior notificação de casos aos órgãos públicos. Isso ocorre, como já assinalamos, devido as suas condições materiais de existência: casas com grande proximidade, sem muros, com muitas pessoas dividindo o mesmo espaço etc. As famílias de classe média e alta, por contar com mecanismos que lhes garantem o sigilo, são menos vulneráveis às notificações. Diante do exposto está evidenciado que a compreensão da violência doméstica contra a criança requer um modelo explicativo multidimensional, dada a complexidade e abrangência do fenômeno, ao mesmo tempo em que tal modelo deve estar ancorado numa perspectiva crítica. 71 3.2 Que terminologia empregar? Que conceituação escolher? O discurso sobre a questão da violência doméstica contra crianças revela uma utilização indiscriminada de termos, tais como: abuso, castigo, disciplina, maus-tratos, violência, violência doméstica, vitimização. Qual deles usar de forma adequada no tocante à temática em questão? A díade disciplina-castigo é a mais antiga e de maior tradição em termos de Educação Infantil. Porém, contam apenas parte da verdade dos fatos, já que deixam de fora as violências sexuais e não explicitam a gravidade das formas de disciplinamento e castigo. O termo maus-tratos também se mostra inadequado na medida em que coloca a problemática em termos meramente morais, como se fosse uma questão de bondade ou maldade individual. Agressão é um termo psicológico limitado, já que não é uma característica especificamente humana. Já os termos abuso-vitimização doméstica parecem mais adequados que os anteriores na medida em que designam os dois polos de uma relação interpessoal de poder: o polo adulto, mais forte (abuso) e o polo infantil, mais fraco (vitimização). Os dois termos indicam as duas faces de uma mesma moeda. Diante destas variações de terminologias, consideramos que o termo violência doméstica é o que melhor define a temática abordada nesta pesquisa, pois baseia-se também nos mesmos pressupostos do abuso-vitimização. Assim como ocorre com a terminologia, a conceituação da violência doméstica está longe de ser tranquila: os termos não são uniformes, o conteúdo não é homogêneo, a dimensão ativa/passiva, bem como a questão da gravidade das consequências nem sempre estão presentes, o limite etário varia. As tentativas de conceituação não permitem identificá-la de forma inequívoca porque estão ancoradas em termos que dependem de definições 72 legais, ou variam com a sensibilidade de cada cultura ou ainda podem ser mistificados ideologicamente. Além disso, algumas definições dissolvem a especificidade do fenômeno. Dadas às dificuldades conceituais, vamos optar nesta pesquisa pela seguinte definição de violência doméstica contra a criança: [...]todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças [...] que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças [...] têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (GUERRA, 2008, p. 32). A literatura especializada apresenta reconhecidamente como violência doméstica, a violência física, a violência sexual, a violência psicológica, a negligência e o abandono, embora o conceito de cada modalidade sofra pequenas alterações dependendo do olhar dos sujeitos sociais envolvidos, como poderemos verificar a seguir, quando os conceitos serão apresentados conforme o olhar da área de saúde e da educação. De acordo com as orientações para Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes publicadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), negligência e abandono são definidos conjuntamente como sendo as omissões dos pais ou de outros responsáveis (inclusive institucionais) pela criança e pelo adolescente, quando deixam de prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento físico, emocional e social. Nestas orientações o abandono é considerado uma forma extrema de violência e a negligência significa a omissão de cuidados básicos. Já no Guia Escolar publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Ministério da Educação (SANTOS, 2004) os conceitos aparecem separadamente, onde negligência é uma forma de violência caracterizada por ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento 73 sadio e abandono é uma forma de violência muito semelhante à negligência que se caracteriza pela ausência do responsável na educação e cuidados da criança. Violência psicológica, segundo o Guia Escolar (SANTOS, 2004) é um conjunto de atitudes, palavras e ações para envergonhar, censurar e pressionar a criança de modo permanente. As orientações para Notificação de Maus-Tratos (BRASIL, 2002) utiliza a terminologia abuso psicológico e o define como toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos. O conceito de violência física é praticamente o mesmo em ambos os documentos. São atos violentos com uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, familiares ou pessoas próximas da criança ou do adolescente, com o objetivo de ferir, lesar ou destruir a vítima deixando ou não marcas evidentes em seu corpo. A única distinção é que o Ministério da Saúde utiliza a terminologia abusos físicos/ sevícias físicas (BRASIL, 2002; SANTOS, 2004). A respeito da violência sexual, o Guia Escolar (SANTOS, 2004) diz que consiste não só numa violação à liberdade sexual do outro, mas também numa violação dos direitos humanos da criança e do adolescente. As orientações para Notificação do Ministério da Saúde conceituam a violência sexual como sendo todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, cujo agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente, tendo por intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual (BRASIL, 2002). Diante das conceituações apresentadas, podemos constatar que não existe uma unanimidade na utilização dos termos, por isso, a partir de agora faremos uma tentativa de elucidar algumas questões. 74 3.3 Modalidades de violência doméstica contra crianças Como vimos, a violência doméstica é um fenômeno complexo, suas causas são múltiplas e de difícil definição. No entanto suas consequências são devastadoras para as crianças. Para enfrentá-la de maneira eficaz há necessidade de uma compreensão ampla e profunda da temática e de uma sistematização de passos para identificar a ocorrência do fenômeno. “Essa identificação é sempre problemática porque se trata de uma problemática cercada por um amplo complô de silêncio de que participa agressor, vítima, parentes, comunidade e profissionais” (AZEVEDO; GUERRA, 2006, p.5). Buscando esclarecer algumas questões é que nos propomos a apresentar neste tópico a violência doméstica contra crianças em suas diferentes modalidades: física, psicológica, sexual e negligência e abandono. 3.3.1 Violência física O primeiro relato científico sobre espancamento de crianças se deu na França, em 1860, com a publicação de um artigo do professor Ambroise Tardieu, onde comentava 32 casos de espancamento dos quais 18 vítimas haviam morrido. Antes deste trabalho os relatos eram oriundos da literatura, de fontes históricas e de narrativas orais. (BUENO, 2007). Na mesma época do trabalho de Tardieu surgiram várias denúncias de intelectuais – principalmente escritores – nas quais eram descritas as violências cometidas contra crianças e adolescentes em escolas e fábricas. Porém, a comunidade científica não deu a mesma importância que havia dado ao trabalho de Tardieu e até meados do século XX existiram apenas trabalhos esporádicos sobre a temática. Em 1946, o pediatra e radiologista americano John Caffey relatou seis casos de fraturas de ossos longos que ele relacionou com espancamentos 75 infligidos às crianças. Em 1953, o também radiologista F. N. Silverman, fazendo um estudo retrospectivo de crianças com quadro clínico semelhante, associou-os definitivamente a violência física (AZEVEDO; GUERRA, 2007). Desde esta época foram inúmeras as comunicações de casos de espancamento contra crianças de tal maneira que em 1961 a Academia Americana de Pediatria promoveu um simpósio sobre o assunto, presidido por Henry Kempe que, no ano seguinte, juntamente com Silverman introduziu a expressão “síndrome da criança espancada” para denominar este quadro. Esta síndrome apresenta certas particularidades clínicas como: relato dos pais ou dos responsáveis, não compatível com a apresentação clínica da criança, idade dos pais entre a segunda e terceira década de vida, fraturas múltiplas, evidências de traumas múltiplos em estágios evolutivos distintos das variadas lesões. Mesmo sendo discutível e não aplicável a todos os casos, esta expressão ainda é amplamente utilizada no mundo inteiro, inclusive, como sinônimo para violência física em crianças. O problema do uso da expressão “síndrome da criança espancada” é que implica na necessidade de um conjunto de sinais e sintomas para identificar o quadro, limitando assim o ângulo de visão da problemática, deixando de lado muitos casos aparentemente mais simples, que podem ser o início de um problema cujas consequências possibilitariam, inclusive, a morte da criança. (CUNHA, 2004). Em 1964 Vicent Fontana propõe o termo “síndrome dos maus-tratos” que, mesmo generalizando o tipo de ação ocorrida e incluindo a negligência no âmbito global do problema, tem as mesmas limitações do termo citado anteriormente, pelo fato de manter a palavra “síndrome”. No ano de 1975, D. G. Gil estabeleceu o conceito de violência contra a criança como sendo o emprego de qualquer tipo de coerção que comprometa a capacidade da criança em termos de aquisição do seu pleno desenvolvimento físico e intelectual (HEBERT, 1995). A conceituação de violência física é difícil e complexa, principalmente considerando-se que vivemos em uma sociedade, na qual os castigos são relativamente comuns e considerados necessários ao processo educativo da 76 criança, sendo utilizado, frequentemente, como forma de ensinar-lhe a obedecer às normas. Apesar dos castigos corporais serem considerados como violência, a literatura só é unânime em considerar como violência física duas modalidades de castigos corporais: os castigos cruéis e poucos usuais e os castigos que resultem em ferimentos. No primeiro caso estão os castigos extremos e inapropriados à idade e compreensão da criança, tais como castigar a criança por não saber usar o banheiro, antes que a criança tenha idade suficiente para compreender esta necessidade. No segundo caso, estão o bater de forma descontrolada e com instrumentos que produzem contusão, independente do motivo (AZEVEDO; GUERRA, 2007). Uma série de definições acerca da violência física tem sido enumerada pela literatura, porém, nenhuma é precisa. Talvez o problema fundamental em termos de definição esteja no fato de que o significado de muitas ações é determinado pelo ambiente onde elas ocorrem, o que inclui: a intenção do agressor, o efeito do ato sobre a criança, o julgamento de valor de quem observa o ato e a fonte do critério para o julgamento do ato. Estes são aspectos importantes quando se discute a conceituação da violência física doméstica (AZEVEDO; GUERRA, 2010). 3.3.2 Violência psicológica A violência psicológica é uma das formas mais graves de violência doméstica contra crianças e adolescentes, pois deixa sequelas emocionais de difícil cicatrização. O que a torna tão grave é principalmente o fato de que geralmente é ignorada por não deixar marcas físicas. Ocorre quando o adulto constantemente “deprecia a criança, bloqueia seus esforços de auto aceitação, causando-lhe grande sofrimento mental”. Pode inclusive ser designado como ‘tortura psicológica’ (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 41). Embora a maioria dos pais ame seus filhos e queiram que eles se desenvolvam de forma sadia e feliz, muitos não sabem como fazê-lo. Infelizmente, muitos pais não sabem equilibrar suas emoções e expõem os 77 filhos a experiências que suscitam sentimentos de rejeição, isolamento, medo, humilhação etc. Ameaças de abandono, por exemplo, podem tornar uma criança medrosa e ansiosa, representando formas de sofrimento psicológico. A violência psicológica pode assumir a forma de negligência afetiva, quando se evidencia a falta de interesse pelas necessidades da criança ou rejeição afetiva, caracterizada por manifestações de agressividade e depreciação para com a criança. Ambas as formas são difíceis de detectar e por isso acabam sendo categorizadas como violência psicológica apenas as situações extremas e continuadas de rejeição ou negligência afetiva (LACRI, 2006). Para se desenvolver de forma sadia a criança necessita experimentar a sensação de ser acolhida e aprovada pelas pessoas que a cercam. Aliás, existe uma necessidade universal inerente a todos os seres humanos que é o desejo de ser amado e valorizado pelos que o cercam. Pela sua condição peculiar de desenvolvimento a criança é muito frágil e acaba arcando com as consequências do desequilíbrio emocional dos pais. Ao nascer, é na família que a criança terá seus primeiros referenciais e poderá ter seu anseio por aceitação suprido. Os pais ou responsáveis pela criança funcionam como uma espécie de espelho, onde ela vê refletida a primeira impressão sobre si mesma e sobre o tipo de pessoa que pensa que é. A criança para se desenvolver plenamente precisa sentir o amor dos pais e perceber que é valorizada e importante. Quando uma criança sente que não é importante, amada e valorizada ou quando é depreciada e humilhada, podemos dizer que está sendo vítima de violência psicológica o que certamente trará consequências na autoestima da criança que poderá inclusive, tornar-se um adulto com sérios problemas psicológicos de aceitação, bem como desenvolver comportamentos violentos. O ambiente emocional do lar é percebido pela criança de tal maneira que logo identifica se existe à sua volta uma atmosfera de harmonia e amor ou de ódio, violência e confusão. Assim, a convivência familiar saudável, principalmente nos primeiros anos de vida, contribui para a formação de uma boa imagem de si mesma, tornando-a apta para enfrentar o mundo lá fora. 78 Muitos pais, desejosos em ver seus filhos bem encaminhados na vida, acabam por sobrecarregá-los com cobranças intermináveis. Críticas permanentes são uma forma de violência psicológica. A criança que é muito criticada pelos pais, sendo raramente valorizada pelos seus acertos, desenvolve dentro de si a ideia de que não é aprovada por aqueles a quem mais ama, se tornando insegura, com medo de encarar desafios e enfrentar a vida (CUNHA, 2004). O amor incondicional é um pré-requisito para que o ser humano ame a si mesmo. Mas o que é o amor incondicional? É amar sem impor condições. É gostar de alguém pelo que é e não pelo que faz. Amar incondicionalmente é amar apesar das falhas do outro. Apesar de amarem muito os filhos, alguns pais somente demonstram este amor quando os mesmos conseguem se sobressair em alguma tarefa. A demonstração do amor fica condicionada ao que a criança é capaz de realizar. Essa forma de agir é muito comum em nossa sociedade apesar de ser profundamente nociva para a criança que passa a acreditar que seus pais só a amarão se conseguirem bons resultados em suas atividades. Uma criança que só recebe amor de forma condicional terá muita dificuldade de amar e apoiar a si mesma quando cometer algum erro. Além disso, ela desenvolverá sentimentos de inferioridade que sufocarão seu amor próprio e autoestima (AZEVEDO; GUERRA, 2007). Outro “sintoma” de violência psicológica é evidenciado pela falta de prioridade que os pais dão aos filhos. As crianças medem a importância que têm para seus pais através do grau de atenção que recebem deles. A sobrecarga de compromissos assumidos pelos pais os transforma em figuras inatingíveis para seus filhos, que se sentem rejeitados e com um profundo sentimento de desamparo. Tão importante quanto dedicar tempo para os filhos é observar a qualidade desse tempo. De nada adianta o pai passar o final de semana em casa distraído diante da televisão ou lendo um livro o dia inteiro. Às vezes é mais produtivo disponibilizar meia hora de atenção concentrada para o filho do que passar o dia inteiro dentro de casa absorvido com atividades domésticas. 79 Outra modalidade de violência psicológica (e talvez a mais perniciosa) é a cobrança exagerada de alguns pais, na tentativa de forjar “filhos modelos”. Assim, acabam sendo extremamente exigentes e levando a criança e/ou o adolescente a abandonar seus sonhos para vivenciar as expectativas dos pais. Sem perceber, alguns pais acabam projetando para os filhos coisas que eles próprios não conseguiram realizar em suas vidas. A comparação de desempenho entre os filhos também se caracteriza como uma forma de violência psicológica, que causa constrangimento e insegurança nos filhos. Além disso, cria a cultura de competitividade dentro do lar. Conforme explicitado, a violência psicológica está, via de regra, presente nas relações pai-mãe-filho-filha, seja através de chantagem emocional, da coerção psicológica, da imposição da vontade adulta contra os desejos da criança. 3.3.3 Violência sexual Conceituar a violência sexual não é uma tarefa fácil. O conceito está longe de ser preciso. Mas é possível considerar violência sexual como [...] todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa. (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 42). Esta conceituação genérica permite abranger dois tipos de violência: o incesto e a exploração sexual. De acordo com Azevedo e Guerra (2006) e Cohen (2005), a violência sexual incestuosa acontece quando um ou mais adultos com grau de parentesco e consanguinidade, responsável legal ou 80 apenas mero responsável exerce um ato ou jogo sexual de natureza heterossexual ou homossexual com uma criança ou adolescente, entre zero a dezoito anos para obtenção ou estimulação de prazer. Ainda segundo estes autores o incesto pode ser caracterizado como a união sexual entre parentes, ascendentes, descendentes e colaterais, podendo ser consanguíneos ou adotivos. Já a exploração sexual implica na participação de criança menor de 18 anos em atividades de prostituição e pornografia com fins comerciais (FALEIROS, 2002). A violência sexual contra crianças pode ocorrer com contato físico (coito ou apenas carícias) ou sem contato físico (exibicionismo, voyerismo), com força física (agressões, assassinatos) ou sem uso da força física, com o uso da força psicológica, através de ameaças (VITIELLO, 2007). As experiências sexuais ocorridas entre crianças imaturas e adolescentes ou crianças muito mais velhas – quando a diferença entre as idades é de no mínimo cinco anos – também são consideradas abusivas. A violência também se caracteriza quando adolescentes jovens têm experiências com adultos muito mais velhos, com pelo menos dez anos ou mais que os adolescentes. Todas as modalidades de violência sexual, além da própria natureza do processo, têm em comum as seguintes características básicas: trata-se de um fenômeno que abrange todas as classes sociais, todas as etnias e todos os credos religiosos; trata-se de um fenômeno que tem sua origem no lar, embora não se restrinja a ele; trata-se de um fenômeno cuja vítima mais frequente é a mulher-criança, embora vitimize meninos. (SAFFIOTI, 2007). De acordo com dados apresentados por Cunha (2004), no Brasil, 20% das meninas e 10% dos meninos são vítimas de violência sexual antes dos 18 anos. Ainda segundo os mesmos dados, 9% de todas as mulheres foram sexualmente vitimizadas por parentes e 5% estiveram envolvidas em incesto pai-filha. 81 3.3.4. Negligência e Abandono A negligência se evidencia através da omissão dos pais ou responsáveis em atender as necessidades básicas de suas crianças, podendo resultar em danos físicos, emocionais, psicológicos ou até mesmo na morte da criança. Existem dois tipos de negligência: a emocional e a física. A negligência emocional ocorre quando a criança não recebe atenção, carinho, proteção ou outros estímulos necessários ao seu desenvolvimento. A negligência de natureza física ocorre quando falta cuidado com a criança no que diz respeito a seu vestuário, alimentação, cuidados higiênicos mínimos, prevenção a acidentes domésticos, etc. (AZEVEDO; GUERRA, 2007). Apesar de ser a modalidade de violência doméstica na qual ocorre o maior número de denúncias, a negligência é de difícil diagnóstico. Isso ocorre porque é difícil separar o que decorre da falta de cuidado dos pais e o que é consequência do perverso sistema econômico, no qual muitas famílias são obrigadas a conviver com a ausência de recursos para moradia, alimentação adequada e saneamento básico. Contudo, faz-se necessário destacar que apesar da negligência apresentar-se predominantemente na população de baixa renda, ela também se encontra, a despeito das condições sociais satisfatórias, em algumas famílias das classes média e alta. São indicadores da presença de negligência no ambiente familiar: família que não participa da vida em comunidade, dependência química dos pais ou responsáveis, presença de graves problemas de saúde física e mental dos pais ou responsáveis, pais ou responsáveis que não conseguem manter uma relação afetiva estável com um(a) parceiro(a), desconhecimento dos pais ou responsáveis quanto às necessidades básicas de suas crianças e de seus estágios de desenvolvimento, miserabilidade da família (LACRI, 2006). 82 A negligência no ambiente familiar ocorre em dois níveis: severa e menos severa. Nas famílias onde ocorre a negligência severa existe o caos em todos os setores. Geralmente ocorre o uso indevido de álcool e outras drogas ou podem existir quadros psiquiátricos complicados e/ou retardo mental dos pais. Não há preparo das refeições, não há roupas limpas, o lixo se espalha pelo chão, há fezes e urina pela casa. As crianças ficam abandonadas à própria sorte, são deixadas sozinhas por muitos dias e podem apresentar desnutrição grave. Nestas famílias, geralmente, muito numerosas não existe uma rotina para as crianças e não há planejamento para o futuro. As crianças vítimas de negligência podem ser vítimas de queimaduras, fraturas etc., fruto da indiferença e omissão dos seus pais. As famílias onde a negligência ocorre na modalidade menos severa partilham das mesmas características das famílias severamente negligentes, mas num grau menor. Em alguns aspectos, podem apresentar maior organização: as crianças frequentam a escola regularmente, as refeições são preparadas, há algumas roupas limpas. (CUNHA, 2004). Nas famílias negligentes o relacionamento entre pais e filhos é muito precário. O diálogo, quando tem, é truncado, sendo comum o uso de palavrões e gritaria. O convívio familiar é destituído de afeto, inexistindo conversas amigáveis e brincadeiras entre seus membros. Nessas famílias existe um conformismo muito grande, sendo comum a tentativa de esquivar-se de enfrentar os problemas. O fracasso, a baixa autoestima e o desânimo sempre se encontram presentes. Apesar do Ministério da Educação conceituar negligência e abandono separadamente, optamos por considera-los conjuntamente, considerando o abandono uma forma extrema de negligência (BRASIL, 2002). Sabe-se que a negligência e o abandono também pode ser consequência de problemas estruturais. Num país onde não há creches suficientes para atender à demanda, onde as famílias não têm dinheiro para pagar babás e as mães precisam trabalhar, é comum que as crianças mais velhas assumam os cuidados dos irmãos ou, em situações extremas, as crianças sejam deixadas trancadas em casa, sozinhas. Em ambos os casos, as famílias poderão ser 83 acusadas de negligência e abandono, mesmo que suas ações sejam consequência da falta de políticas públicas adequadas. 3.4 A Política Nacional de Assistência Social e o Sistema de Garantia de Direitos: dois instrumentos na luta contra a violência doméstica infantil Como sustenta Faleiros (2006), as diferentes formas de se ver a criança no decorrer da história contextualizam uma trajetória que, embora tenha acumulado conquistas significativas, ainda tem limites que precisam ser superados. O contexto da análise das políticas sociais, da assistência e das legislações à infância no Brasil, no período histórico entre 1870 e 1930, mostra a criança enquanto cidadã de segunda categoria, vista apenas como complemento de um quadro social, desprovida de direitos, rejeitada, ignorada e abandonada (LIMA, 2003). A partir da década de 1920, no âmbito internacional, articulava-se uma nova forma de cuidados às crianças carentes, abandonadas, infratores e inadaptadas de modo que, em 1924, a Assembleia da Liga das Nações40 adotou a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança. Essa Declaração previa princípios básicos de proteção à infância, contudo, não teve o impulso necessário ao completo reconhecimento internacional dos direitos da criança. Não integrando os países membros da Liga das Nações e assim excluído dos tratados internacionais, o Brasil decreta, em 1927, o Código de Menores. O pressuposto básico é o de que se tratava de um projeto essencialmente político. Era preciso proteger a infância como forma de defesa da própria sociedade. Assim, o Código de Menores, também chamado de Código Mello Mattos, define o segmento infanto-juvenil através da categoria “menor”, o que denota a construção histórica do termo. As representações da infância à época estavam totalmente atreladas a determinadas classes sociais, 40 Foi um órgão criado após a Primeira Guerra Mundial com o objetivo de evitar conflitos mundiais. Foi dissolvida, pois não conseguiu evitar a Segunda Guerra Mundial (Disponível em http//www.onu-brasil.org.br, acesso em 27/06/2011). 84 sendo a periculosidade constantemente atrelada à infância das classes populares (RIZZINI, 2008). Acreditava-se que combater a criminalidade precoce era preservar a pureza da infância, e assim o Código de Menores previa a proteção à infância de forma repressiva e coercitiva, protegendo, mas também contendo as crianças para que estas não causassem danos à sociedade. Grosso modo, não havia resquício algum de proteção ou assistência social, mas uma técnica de atuação desenvolvida no sentido de controle popular. O Código de Menores vigorou com base na suposição de que crianças e adolescentes despossuídos de bens materiais eram uma ameaça à ordem vigente, valendo-se de arcaicos modelos correcionais como forma de extinguir a violência infanto-juvenil. Assim, foram criados reformatórios e casas de detenção com vistas a punir o menor para que este fosse resgatado de sua vida pregressa. Em 1941 foi criado o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), que podendo resguardar os direitos das crianças e adolescentes em conflito com a lei, visava defender a sociedade capitalista de meninos “perigosos e suspeitos”. Os internatos do SAM tiveram enorme repercussão em virtude das denúncias dos maus-tratos sofridos pelos internos. A Igreja Católica foi uma das grandes emissoras de crítica ao SAM, pois o que deveria ser um órgão de proteção, voltado para uma ação educativa, era na verdade um órgão de repressão que deixava as crianças à míngua, com instalações em péssimas condições. (FALEIROS, 2006). Um ano após a fundação do SAM, surge a Legião Brasileira de Assistência (LBA), instituição criada em meio ao cenário da Segunda Guerra Mundial e que tinha por objetivo “prover as necessidades das famílias cujos chefes haviam sido mobilizados, e, ainda prestar decidido concurso ao governo em tudo que se relaciona ao esforço de guerra” (IAMAMOTTO, 2008, p. 250251). Inicialmente voltada para nutrir serviços assistenciais aos soldados mobilizados pela guerra, a LBA começa a desenvolver também um trabalho de assistência às famílias dos convocados, sugerindo uma rápida progressão 85 enquanto assistência social e transformando-se em um programa de ação permanente. Assim, nasce outra forma de assistência à criança. A assistência infantil preconizada pela LBA vem através do projeto Casulo, que traz um discurso de prevenção junto à infância pobre, cuidando das mães e das crianças e posteriormente, evitando o ócio e a mendicância enquanto consequência do abandono infantil. Esses modelos de assistência sofreram grandes transformações no decorrer da Ditadura Militar. Com a mudança das relações de poder no Brasil, a política de assistência para o segmento infanto-juvenil é retocada sob uma ótica autoritária. O discurso oficial no campo da questão do “menor” é a extinção do SAM e a implantação de uma política que assegure o bem estar ao menor, que vem a ser consolidada sob a Lei 4.513 de 1964, referente à Política Nacional para o Bem Estar do Menor (PNBEM). Por sua vez, a PNBEM tinha como objetivo coordenar entidades de proteção a crianças e adolescentes. Daí a implantação da Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor (FUNABEM), que contempla a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). A FEBEM foi criada no intuito de atender menores carentes e infratores sob a perspectiva da FUNABEM, que previa um atendimento mais moderno, mas ainda baseado nos moldes assistencialistas. Com o objetivo de conter a marginalidade, a FUNABEM percebia a pobreza enquanto doença social e trabalhava sob uma concepção individualista: o indivíduo era o próprio responsável por seu sucesso ou fracasso social, sua aptidão para viver em sociedade viria de uma auto regulação. A política da FUNABEM não reduziu o processo de marginalização. Durante a ditadura, acentuou-se a exclusão social, ou seja, a marginalização do menor pela pobreza da família, pela exclusão da escola, pela necessidade do trabalho e pela situação de rua que, não raramente, desemboca no extermínio (FALEIROS, 2006) 86 Em meados dos anos 1970, a Ditadura Militar, frente a uma inflação crescente, profundo arrocho salarial e repressão dos direitos políticos entra em crise. Esse cenário de crise do Estado militar traz ainda mais problemas para consolidar os projetos da FUNABEM. Em meio a esse contexto é aprovado, em 1979, o Novo Código de Menores sob a Doutrina da Situação Irregular 41, através da Lei 6.697/79. Em meados da década de 1980, surge uma oposição à Doutrina da Situação Irregular, destacando a criança como um sujeito de direito. Esta mobilização envolvendo juristas, movimentos sociais e alguns setores do Estado, além da sociedade civil elaborou uma proposta enviada à Assembleia Constituinte de 1986 que culminou com o reconhecimento dos diretos da criança na Constituição Federal (CF) de 1988. Nessa perspectiva, posteriormente, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no dia 13 de julho de 1990 regulamentado pela Lei nº 8.069/90. O ECA baseia-se na Doutrina da Proteção Integral que defende os direitos da infância através da família, da sociedade e do Estado, garantindo medidas de proteção e medidas socioeducativas que assegurem tais direitos, rompendo com os traços punitivos e repressores alinhados sob a Doutrina da Situação Irregular. A passagem da situação irregular preconizada pelo Código de Menores para a proteção integral adotada pelo ECA, evidencia mudanças e transformações no âmbito do segmento infanto-juvenil a partir da transição do assistencialismo e da filantropia à política social. Nesse momento a criança passa de objeto de caridade para objeto de políticas públicas. Assim, é definida como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. A partir dessa 41 A situação irregular era definida pelo Código de Menores, que dispunha sobre a assistência, proteção e vigilância dos menores. O art.2º definia a situação irregular como: I – privados mesmo eventualmente das condições essenciais à sua subsistência, à saúde e ao ensino obrigatório, em razão de: falta ou omissão dos pais ou responsáveis; impossibilidade notória dos pais ou responsáveis de lhes sustentar. II – vítimas de maus tratos ou punições desmedidas impostas pelos pais ou responsáveis. III – em perigo moral em razão de: se encontrar habitualmente em um ambiente contrário aos costumes; ser explorados em atividades contrárias aos costumes. IV – privados de representação ou assistência legal, pela ausência eventual dos pais ou responsáveis. V – desvio de conduta devido a uma inadaptação familiar ou comunitária grave. VI – autor de infração penal. 87 concepção a filosofia “menorista” dá lugar a Doutrina da Proteção Integral, compreendendo uma nova forma de se considerar a infância e a juventude. Enfatiza-se, nesse contexto, o dever da família, do Estado e da sociedade em prol da promoção e da defesa dos direitos da criança e do adolescente. É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar a criança e o adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a consciência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão (BRASIL,1998, art. 227) Esta concepção implica mudanças no que concerne aos métodos de intervenção, anulando o caráter coercitivo e punitivo do Código de Menores e respeitando as fases de desenvolvimento pertinentes à infância e adolescência. O fato do Código de Menores de 1979 vigorar em face da situação irregular – imposta sob condições de pobreza e sob as quais as famílias não tinham responsabilidade – e de considerar preconceituosamente crianças e adolescentes como “menores”, bem como submeter o adolescente autor de ato infracional a privação de liberdade (sem que a materialidade dessa prática fosse comprovada) chamou atenção para o desenvolvimento de uma legislação que promovesse um sistema de garantia e defesa de direitos voltados à criança, introduzindo, a partir de então, o paradigma da proteção integral preconizada pelo ECA. O ECA surge em um período de efervescência social dentro do processo de transição político-democrática. Sob essa conjuntura reivindicavase os direitos sociais, políticos, civis e trabalhistas, objetivando a regulamentação do Estado de direito, através do exercício da cidadania 42. 42 “[...] o conceito de cidadania compreende três elementos inter-relacionados, cujo desenvolvimento, porém, não coincide no tempo: o elemento civil, composto dos direitos necessários à liberdade individual (de ir e vir, de imprensa, de pensamento e o direito à propriedade e de concluir contratos válidos), e o direito de justiça; o elemento político compreende o direito de participar do poder político, seja como participante de um organismo investido de autoridade política, seja como eleitor; e, finalmente, o elemento social, ‘que se 88 Como reflexo desse cenário, verifica-se no âmbito infanto-juvenil uma mobilização em torno das práticas judiciais e sociais destinadas a crianças, visando à defesa dos direitos das crianças e adolescentes e mudanças pertinentes ao Código de Menores. Dessa forma, o ECA configura-se como exigência da promoção da cidadania de crianças e adolescentes, visto tratar-se de uma legislação que busca assegurar o sistema de garantia de seus direitos e deveres, conforme preconiza o art. 3º43 do Título I e o art. 1544 do Capítulo II do próprio Estatuto. Atualmente, discute-se as condições reais de efetivação do ECA, considerando a conjuntura nacional. Em meio ao antagonismo capital-trabalho e sem um projeto revolucionário da sociedade, cria-se um impasse quanto a “cidadania da criança”: conquista-se direitos formalmente, mas esses mesmos direitos são ameaçados, precarizados e reduzidos em função da formatação de um Estado Mínimo, consubstanciado pelo capital. Embora com dificuldades estruturais de efetivação, o ECA configura-se como importante conquista, pois trouxe à infância brasileira a universalização dos direitos. Enquanto o Código de Menores destinava-se apenas aquelas crianças que estavam em “situação irregular”, o Estatuto estabelece em seu art. 5º do Título I que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não há, portanto, distinção de etnia, raça, cor, gênero ou classe social. Crianças e adolescentes são detentores de direitos inalienáveis à sua condição de desenvolvimento, tal quais os adultos. refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar uma vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais’”. (MARSHALL apud IAMAMOTO, 2008, p.89). 43 Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 44 Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. 89 O sistema de justiça juvenil ao sofrer as modificações provocadas pela implantação do ECA, atribui às crianças e aos adolescentes seus direitos e responsabilidades, deveres e garantias processuais, formas de punição 45 e limites, respondendo, de tal forma, as necessidades e interesses desse segmento. Ao aderir a Doutrina da Proteção Integral, o Brasil rompe com os traços conservadores da justiça “menorista”, eliminando a perversidade do paradigma da “situação irregular” e propondo um sistema de garantias constitucionais, destinadas a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais como institui a Constituição Federal de 1988. A promulgação da Constituição de 1988 foi, portanto um divisor de águas, tanto no que se refere aos direitos das crianças e adolescentes quanto ao surgimento de leis essenciais para efetivação dos direitos humanos e do cidadão. Nela, pela primeira vez no Brasil, instituiu-se a política de Seguridade Social formada pelo tripé da saúde, previdência e assistência social. A primeira é instituída como direito de todos e dever do Estado, a segunda como política contributiva, portanto destinada a quem pode pagar, e a terceira destinada a quem dela necessitar. Assim afirma a Constituição Federal: A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (BRASIL, 1988, Art. 194). Para regulamentar a política de assistência social surge a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), regulamentada pela lei nº 8742/93, dispõe sobre a organização da Assistência Social. Segundo Sposati (2008) ela é proteção básica e especial, ato de direito e não de vontade, operando por direitos coletivos e não só pelo alcance de individualidades. Mesmo com a promulgação da LOAS, ainda houve inúmeras lutas no que concerne a sua implementação, culminando em vários mecanismos para consolidar-se, entre eles, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), 45 Aos adolescentes com práticas de atos infracionais. 90 através da Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004, a qual representa a materialidade das diretrizes da LOAS (LIMA, 2003). A PNAS traz como princípios os itens dispostos na LOAS em seu capítulo II, seção I, art. 4º, os quais são: I – Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II – Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas publicas; III – Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas, e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. (BRASIL, 2005, p.32) Deste modo, conforme cita Simões (2008) a PNAS - aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) - promove a defesa e atenção dos interesses e necessidades sociais, particularmente das famílias, com seus membros e indivíduos mais empobrecidos, com ações de prevenção, proteção, promoção e inserção que reduzam ou previnam a vulnerabilidade e risco social decorrentes de problemas pessoais ou sociais de seus usuários e beneficiários. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) representa outro avanço para a política de Assistência, bem como a Norma Operacional Básica NOB/SUAS, aprovada através da Resolução nº 130, de 15 de junho de 2005 do CNAS, o qual consolida a PNAS e tem por função a proteção social, a vigilância social e a defesa dos direitos. 91 O SUAS complementa esse panorama a partir de um quadro de ações voltadas para assistência social (nas modalidades básica e especial) e sob a oferta de benefícios assistenciais, prestados a públicos específicos, de acordo com a situação de vulnerabilidade social. Observam-se, nesse sentido, as novas diretrizes e parâmetros de atuação no qual a criança é reconhecida em sua cidadania, conforme preceitua a Constituição Federal de 1988. As articulações e programas que remetem ao segmento infanto-juvenil não são excludentes nem competitivas, mas colaboram mutuamente com alicerces mais sólidos e resistentes na efetivação dos princípios e diretrizes preconizados pelo ECA. No caso específico desta pesquisa, as crianças de zero a cinco anos vítimas de violência em seus próprios lares, devem ser alvo da PNAS. Sendo a violência doméstica contra crianças um fenômeno social de expressiva dimensão, exige que o governo mobilize e fortaleça ações e serviços para combater, prevenir e oferecer atendimento especializado às vítimas. Dessa forma, pretende-se discutir sucintamente os serviços públicos de enfrentamento da violência contra crianças no Brasil, previsto na Política Nacional de Assistência Social. É inegável a necessidade da construção de uma rede de apoio e proteção a fim de romper com a continuidade da violência doméstica e para tanto é imprescindível a criação de um trabalho interdisciplinar que crie e fortaleça um espaço de acolhimento às vítimas. Para atender a esta necessidade, a PNAS buscou organizar medidas de proteção e prevenção em diferentes níveis de complexidade no que se refere à vulnerabilidade pessoal e social para que crianças vítimas de violência doméstica pudessem ser acolhidas. Nesse aspecto precisou reorganizar estratégias de intervenção a partir da constatação da fragilidade do sistema. Assim, a redefinição estabeleceu um conjunto de ações integradas de intervenção e assistência social com a finalidade de aumentar a intersetorialidade das ações governamentais voltadas para a inclusão social, como também elaborar um trabalho de erradicação da fragilidade e 92 fragmentação das políticas públicas. Esse reordenamento da política de Assistência Social culminou na implantação do SUAS em 2005 (PAIVA, 2006). Dessa forma, entende-se que o SUAS é um articulador de preceitos, ações e procedimentos previstos na LOAS e na PNAS. Um dos objetivos do SUAS é a garantia da operacionalização em caráter sistêmico tanto da implementação quanto da gestão política. Afinal, é por meio desse sistema que será definido como os programas, projetos, serviços e benefícios serão estabelecidos, onde podem ser encontrados, quais pessoas ou grupos sociais terão acesso e, principalmente, quais critérios de atendimento serão aplicados. Quanto às situações de violência, o SUAS tem como desafio primeiro desvencilhar-se da concepção histórica do assistencialismo. Para tanto, a PNAS definiu a proteção social básica como tendo um caráter mais preventivo do que do modelo de assistência especial. O modelo de atenção básica resultou na criação do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) instalado em áreas territoriais com vulnerabilidades sociais homogêneas ou similares, tendo sob sua responsabilidade até mil famílias por ano em cada território de cinco mil famílias. Além dos serviços dos atendimentos em grupo, individual, psicológico e da assistência social, visitas domiciliares, o CRAS também é responsável por mapear, organizar e coordenar a rede de serviços sócios assistenciais, devendo contar para tanto com um coordenador e pelo menos um assistente social, um psicólogo, um auxiliar administrativo, quatro estagiários da psicologia e do serviço social, num regime de trabalho sugerido de 40 horas semanais (PEREIRA, 2007). Deste modo, o trabalho dos CRAS deve ter um caráter preventivo. Quanto ao atendimento, orientação e apoio especializado a indivíduos e famílias que enfrentam situações de vulnerabilidade46 os serviços de 46 De acordo com a PNAS constituem situações de vulnerabilidade: crianças, adolescentes, idosos, jovens, adultos, pessoas com deficiência, migrantes atingidos por processo de abandono, violência física, psicológica, sexual, negligência, pessoas que estão cumprindo medidas socioeducativas, moradores de rua, situação de trabalho infantil. 93 proteção especial podem ser de média e alta complexidade. Os serviços de média complexidade atendem àqueles que tiveram seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos. Já os serviços de alta complexidade têm como alvo as pessoas que perderam o vínculo familiar e comunitário, necessitando de apoio institucional integral para suprir as suas necessidades de moradia, alimentação, etc. (BRASIL, 2005). A instituição de referência para o enfrentamento da violência no que tange à média e alta complexidade é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Diante do exposto parece pertinente considerar a repercussão do SUAS no que se refere à violência doméstica contra a criança, visto que esta temática adquiriu visibilidade nas últimas décadas com programas e ações que foram construídos com o objetivo de encontrar formas de enfrentamento deste tipo de violência. Deve ser ressaltado que a proposta de trabalho articulado pelo sistema CRAS/CREAS não é um novo serviço, mas uma nova forma de operacionalização que visa enfatizar a atuação integrada e intersetorial, incluindo todas as instituições que possam contribuir para a prevenção e assistência aos grupos sociais mais vulneráveis, bem como para a restauração dos vínculos familiares rompidos em decorrência de uma situação de violência doméstica (DESLANDES, 2010). Outros programas que compõem também a rede de proteção especial, são os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSI), as escolas da rede municipal e estadual, abrigos e centros profissionalizantes que podem receber o encaminhamento gerido pelos CREAS. Destaca-se que a rede mediada pelo CREAS não deve funcionar como algo desconectado da política de assistência social, mas como um de seus instrumentos, como um modelo de gestão integrada da política. Azevedo e Guerra (2005) definem o trabalho em rede como a interligação de núcleos multidisciplinares voltados para os direitos da criança, viabilizando um trabalho articulado quanto ao atendimento, capacitação e prevenção dos casos de violência doméstica. 94 Conforme o Guia de Orientação do CREAS (BRASIL, 2005) o trabalho em rede deve funcionar com a finalidade de articular os serviços da proteção social básica e especial, mas também com as demais políticas públicas e instituições que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos (SGD). O SGD é estruturado em três grandes eixos: promoção de direitos, defesa de direitos e controle social. O funcionamento desses três eixos deve se dá de forma interligada e sistêmica, sendo essa dinâmica explicitada nos artigos 86, 87 e 88 do ECA que, em linhas gerais, esboçam a forma como a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente é efetivada através de uma articulação do poder público e da sociedade civil. Diante de tudo que apresentamos até aqui é evidente a relevância tanto da Política Nacional da Assistência Social quanto da Política da Criança e do Adolescente na luta contra a violência doméstica infantil, cujas ações devem se dá de forma articulada e em rede. Contudo, há inúmeros empecilhos para que tais políticas funcionem desta forma, desde as condições de trabalho não adequadas, salários indignos, desarticulação do trabalho entre as instituições que compõem a rede de proteção, demanda superior aos serviços disponíveis, cortes nos recursos destinados as políticas sociais, além da cultura brasileira clientelista que utiliza a assistência social como um favor e não um direito. Frente a isto, ainda há um longo caminho a percorrer na luta por políticas efetivas de proteção aos direitos das crianças e no enfrentamento à violência doméstica que atinge este segmento. 95 4 OS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS Compreender o fenômeno da violência que tem como alvo a criança no ambiente familiar, assim como planejar e executar ações visando ao seu enfrentamento é, sem dúvida alguma, uma tarefa bem difícil. Entretanto, em função de sua complexidade e das implicações que o fenômeno impõe às vítimas, evidencia-se a necessidade de promovermos reflexões e atuarmos de modo que favoreça a quebra do ciclo da violência que vem invadindo a sociedade. Desta forma, a partir da CF (BRASIL, 1988) e do ECA (BRASIL, 1990) o enfrentamento da violência contra crianças coloca-se como um grande desafio à todos os segmentos da sociedade, visto que ambos os documentos apontam como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança seus direitos, bem como colocá-la a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Assim, enfrentar a violência deixa de ser uma prerrogativa da segurança pública e da justiça para se disseminar entre os diferentes segmentos da sociedade e demais setores governamentais. Portanto a responsabilidade pelo combate à violência doméstica contra a criança deve ser partilhada por todas as instituições da sociedade entre elas, as educacionais. Nesse contexto, as instituições educativas infantis (creches e préescolas) têm uma grande importância, visto que se constituem como um dos principais espaços que trabalham diretamente com a criança tendo, portanto, no sistema educacional, uma enorme responsabilidade na promoção do desenvolvimento infantil, considerando-se as muitas horas de permanência diárias da criança neste ambiente. As 47 funções assistencialistas47 e compensatórias48, constituídas Assistencialismo é o oposto da política pública de Assistência Social. A política de Assistência Social é um DIREITO, isto é, todos que um dia dela necessitarem, poderão dela usufruir. Já as ações assistencialistas se configuram como “doações”, que, não raro, exigem algo em troca (SPOSATI, 1985). 96 historicamente em relação a essas instituições foram sendo paulatinamente modificadas, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, afinada aos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de entender as instituições de Educação Infantil como espaços de promoção do desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (BRASIL, 1996, art. 29). Desse modo, era de se esperar que creches e pré-escolas passassem a ter como objetivo a educação, o cuidado e a proteção à infância, desenvolvendo no dia-a-dia uma prática coerente com a defesa dos direitos da criança. Entretanto, a realidade evidencia que nem todas as instituições conseguiram superar o modelo assistencialista. Afinal, modificar esta concepção envolve, entre outras coisas, assumir as especificidades da educação infantil e rever concepções sobre a infância, ou seja, significa atentar para várias questões que vão muito além dos aspectos legais. Como já assinalamos, o Ministério da Educação (MEC) elabora, em 1998, o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI), concebido para servir como um guia para a reflexão docente sobre objetivos, conteúdos e orientações didáticas, visando contribuir para o desenvolvimento integral e o reconhecimento dos direitos das crianças (BRASIL, 1998). Segundo este documento, as instituições de Educação Infantil deverão dar toda a ajuda possível “as famílias que porventura tiverem dificuldades em cumprir qualquer uma de suas funções para com as crianças” (BRASIL, 1998, p. 84). Sabendo-se que a violência doméstica contra este segmento é um dos graves problemas enfrentados por algumas famílias, o seu enfrentamento deve, portanto, ser um objetivo institucional a ser observado pelas creches e pré-escolas. Diante desta recomendação do RCNEI, considera-se necessário que pesquisas sejam realizadas a fim de estudar a Educação Infantil como espaço de proteção à criança no que se refere à violência doméstica. 48 Por muito tempo, a Educação Infantil se propunha a “cuidar” das crianças, filhas da classe trabalhadora, oferecendo-lhes alimentação, cuidados com a higiene e alguns conhecimentos, objetivando compensar as carências sócio culturais resultantes do meio em que viviam. 97 Contudo pouquíssimas são as pesquisas que procuram discutir sobre a responsabilidade e o papel das creches e pré-escolas na defesa dos direitos das crianças, sua articulação e relação com a família, com a comunidade e com os órgãos encaminhamento governamentais dos casos de responsáveis pelo recebimento e violência contra criança, bem como a inserção desta etapa da educação no sistema de proteção à infância. De acordo com Lima (2008) a importância da Educação Infantil em ações de enfrentamento à violência doméstica contra a criança, é enfatizada por três importantes conjuntos de pesquisas. O primeiro conjunto explica a necessidade de uma atuação mais consistente em função da vulnerabilidade na faixa etária atendida nas creches e pré-escolas para a ocorrência das violências. O segundo afirma que as crianças de zero a cinco anos têm pouca capacidade de expressão verbal para reclamar dos atos violentos, favorecendo o adiamento da identificação dos casos. Já o terceiro conjunto de pesquisas aponta os professores como tendo uma posição privilegiada na sociedade no que diz respeito à identificação das violências dirigidas à infância em razão do contato cotidiano com as crianças na sala de aula, no pátio e nas cantinas e, com seus familiares (LIMA, 2008, p. 45). Apesar dessa importância da Educação Infantil na defesa concreta das crianças contra a violência doméstica, estudos apontam que estas instituições enfrentam muitos obstáculos, entre os quais a existência de alguns limites na capacidade de identificação das violências pelos professores e, consequentemente, na falta de encaminhamentos dos casos identificados aos órgãos de proteção (ANSER; JOLY; VENDRAMINI, 2003). Acredita-se que para a efetivação de ações que visem o enfrentamento da violência doméstica contra a criança faz-se necessário pensar estratégias para enfrentar os limites e contradições encontrados no campo pela Educação Infantil. É nesse cenário que se insere o objeto de estudo da presente pesquisa. 98 4.1 O referencial teórico-metodológico da pesquisa Em virtude do propósito dessa pesquisa convém traçar algumas considerações acerca das concepções teóricas que a embasam no que se refere ao fazer pesquisa e ao lugar do pesquisador. O desenho metodológico adotado é de natureza qualitativa. A opção por essa abordagem baseia-se no interesse em compreender a complexidade de um fenômeno que decididamente não se limita a dados estatísticos. Entende-se também que, para apreender as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica contra a criança, faz-se necessário tal abordagem, compreendendo a pesquisa qualitativa como sendo aquela capaz de "incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, estas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação como construção humana significativa” (MINAYO, 1999, p.42). A presente pesquisa foi desenvolvida numa perspectiva de totalidade, com vistas a apreender as contradições inerentes à realidade social. Em virtude disso, nos apoiamos no método materialista histórico-dialético que, a nosso ver, possibilita clarificar, iluminar e fundamentar a realidade a ser investigada numa dimensão de concreticidade. Nesse sentido compreende-se a totalidade como: [...] realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimentos da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo. [...] Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta – que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou a coisa incognoscível em si (KOSIK, 1976, p. 44). 99 Nesta perspectiva, o processo de pesquisa necessita essencialmente que o pesquisador, a partir da sua investigação científica construa a capacidade de decifrar a realidade, a partir da leitura de situações “comuns” numa dimensão histórica e coletiva e de totalidade. A busca da apreensão da totalidade tenta compreender as contradições existentes na sociedade, vendo-as articuladas e movendo o mundo. O mundo é um processo permanente de mudança, contradições, lutas, vir-a-ser permanente. Neste sentido, tais contradições trazem rebatimentos também no processo de construção do conhecimento, especificamente, no objeto investigado. Desse modo Pesquisar é procurar, indagar, questionar o mundo, principalmente aquele que está ao nosso redor. Assim, o primeiro passo da atividade do cientista social, enquanto tal consiste em dirigir à realidade um olhar crítico, inquisidor, de modo a “desnaturalizar” os fatos sociais. (GONDIM, 1999, p. 27). É certo que a escolha de um referencial teórico e metodológico parte do pressuposto de que as nossas escolhas teóricas não se justificam nelas mesmas. Antes, por trás dos embates teóricos que se travam na academia, existe uma disputa mais fundamental que diz respeito ao papel da teoria no modo como os seres humanos produzem sua existência (FRIGOTTO, 1989). Assim sendo, qualquer que seja a metodologia escolhida para fins investigativos, esta partirá necessariamente de uma postura epistemológica, que possui uma concepção de ciência e de mundo. A dialética materialista é, portanto, além de uma concepção ontológica de mundo, também um método, cuja característica central é a apreensão radical da realidade. Contudo, para além dessas duas instâncias, é também práxis, ou seja, síntese teórico-prática na busca da transformação, também radical, da estrutura social historicamente construída. Assim, a escolha por tal método exige do pesquisador compromisso com a transformação do mundo, 100 inquietação diante do instituído e do status quo. Deste modo, nossa escolha por este método se deu porque, do nosso ponto de vista, o mundo está em constante transformação e os homens são os sujeitos desta história, pois “os homens fazem história, mesmo se sob determinadas circunstâncias” (MARX, 2006, p.12) Neste sentido, reconhecendo a importância da Educação Infantil no enfrentamento à violência doméstica contra a criança, optamos por desenvolver uma pesquisa-ação, onde pesquisador e participantes interagem buscando a transformação da realidade. A transformação da realidade não é tarefa fácil. As condições objetivas acabam envolvendo os profissionais de tal maneira que lhes sobra pouco tempo para refletir sobre seu papel de agente transformador. Não se trata de pesquisa-a-ser-seguida-por-ação, ou pesquisaem-ação, mas pesquisa-como-ação. Trata-se de uma pesquisa-ação, que difere da pesquisa sobre a ação ou para a ação (BARBIER, 2004). A pesquisa-ação é definida como uma pesquisa com base empírica, “realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo” (THIOLLENT, 1985, p.14). Essa escolha aproxima-se da metodologia da investigação-ação na qual o pesquisador intervém de forma intencional e “os participantes não se situam como pessoas a serem pesquisadas, mas colaboradores em ação que desempenham um papel ativo no processo e na ação investigativa” (TRIPP, 2005, p.443). Pretende-se, dessa forma, operar com a lógica da intervenção numa dada realidade, em seu cotidiano, visto que esta pesquisa é ao mesmo tempo um processo de investigação e de atuação profissional. Diante disto, cabe esclarecer que se entende a pesquisa-ação como [...] uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para melhorar a prática [...] embora a pesquisa-ação tenda a ser pragmática, ela se distingue claramente da prática e, embora seja pesquisa, também se distingue claramente da pesquisa científica tradicional, principalmente porque a 101 pesquisa-ação ao mesmo tempo altera o que está sendo pesquisado e é limitada pelo contexto e pela ética da prática. A questão é que a pesquisa-ação requer ação tanto nas áreas da prática quanto da pesquisa, de modo que, em maior ou menor medida, terá características tanto da prática rotineira quanto da pesquisa científica (TRIPP, 2005, p.447). Merece ser feita aqui uma consideração em relação ao processo dessa pesquisa, especificamente em relação aos instrumentos e técnicas escolhidas para a coleta dos dados, a saber, o grupo focal e o diário de campo. O grupo focal é uma técnica de pesquisa que coleta os dados utilizando-se das interações grupais. Objetiva discutir um tópico especial proposto pelo pesquisador. Como técnica, ocupa uma posição intermediária entre a observação participante e a entrevista (MORGAN, 1997). O grupo focal pode ser considerado uma espécie de entrevista de grupo, embora não no sentido de ser um processo onde se alternem perguntas do pesquisador e respostas dos participantes (LERVOLINO; PERSIONI, 2001). A essência do grupo focal consiste na interação entre os participantes e o pesquisador. Como subsídio ao debate o pesquisador deverá munir-se de questõeschave que o ajudem no direcionamento dos debates, permitindo aprofundar as discussões no caso dos participantes desviarem o foco (GOMES; BARBOSA, 2000). De acordo com Neto, Moreira e Sucena (2002) grupo focal é uma técnica de pesquisa na qual o pesquisador reúne, em um mesmo local e durante certo período, uma determinada quantidade de pessoas que fazem parte do público-alvo de suas investigações, tendo como objetivo coletar, a partir do diálogo e do debate com e entre eles, informações acerca de um tema específico. No contexto desta pesquisa, configura-se num recurso para apreender as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica sofrida pelas crianças que se encontram sob seus cuidados nos CMEI. A escolha da técnica do grupo focal deu-se por entendermos que, para atingir os objetivos desta pesquisa, o levantamento dos dados através de debates nos traria mais elementos. Por tratar-se de tema complexo e pouco 102 discutido no âmbito escolar, a participação em pequenos grupos permitiria confrontar e complementar opiniões, enriquecendo a discussão. Estando-se diante de uma investigação-ação, os participantes tornamse parceiros no estabelecimento do diálogo, na troca, na construção de sentidos e significados. No decorrer da pesquisa, vão além de apenas dar informações ou conceder o seu espaço de trabalho. Neste caso, a pesquisadora atuou como moderadora do grupo focal, assumindo a posição de facilitadora, mas também de instigadora do processo. Necessário se faz esclarecer que o pesquisador ao exercer a função de moderador do grupo focal não deverá comportar-se como um mero condutor e animador dos debates. Mesmo que precise desempenhar bem esses papéis, precisará conjugar tais características ao conhecimento dos temas a serem debatidos, dos conceitos e dos objetivos trabalhados na investigação, sob o risco de não conseguir informações mais aprofundadas e pormenorizadas. Suas tarefas básicas serão as de garantir a participação de todos, assegurarlhes o direito ao sigilo do nome, motivar os debates de forma a fazer com que todos os temas propostos sejam debatidos, evitar que determinado participante constranja os outros e que os ânimos exaltem-se ou esfriem (GOMES; BARBOSA, 2000). Frente a estas considerações, o grupo focal nos pareceu a técnica mais adequada para interagirmos com os profissionais/participantes. O instrumento escolhido para registrarmos o processo da pesquisaação foi o diário de campo. Ele é um instrumento de coleta de dados utilizado para relacionar os eventos observados ou compartilhados e acumular assim os materiais para analisar as práticas, os discursos e as posições dos participantes da pesquisa. O diário permite não somente descrever e analisar os fenômenos estudados, mas também compreender os lugares que serão relacionados pelos observados ao observador e esclarecer a atitude deste nas interações com aqueles (WEBER, 2009). A partir destas colocações, é preciso tecer alguns esclarecimentos acerca daquilo que um diário normalmente realiza. O diário traz em si a ideia de registro, de apreensão do momento, como se fosse possível capturar o presente. Escreve-se como uma tentativa de preservar as diversas situações, mesmo sabendo que a escrita que preserva os fatos é uma ilusão, pois escrita 103 alguma é capaz de captar a totalidade, preservar o momento como uma suposta verdade (BLANCHOT, 2005). Apesar de concordarmos com Blanchot, consideramos também que o diário possibilita colocar em dia as relações que foram nutridas entre o pesquisador e os pesquisados e para objetivar a posição de pesquisador, assim como dúvidas, inquietações, reflexões. Assim, optamos por usar o diário como uma estratégia e um dos instrumentos dessa pesquisa, ciente de seus limites e riscos. Ele deve servir como um instrumento e não como um fim. Esse diário não deve ter a pretensão ilusória de apreender o real em toda sua complexidade e sim registrar memórias, sensações, afetações. O objetivo não é a escrita do diário em si e sim o que se pode produzir a partir dele refletindo acerca do que foi escrito a luz do referencial teórico adotado. Assim, o objetivo é refletir sobre nosso objeto e construir reflexões acerca dele, partindo do conhecimento produzido, que será sempre inacabado, parcial, incompleto, com vistas à objetividade, mesmo sabendo que tal objetividade será crivada de subjetividade. Nesta pesquisa as diversas fontes de informação, principalmente as falas dos profissionais que atuam na Educação Infantil (expressas durante a realização do grupo focal) e os registros no diário de campo, permitiram uma análise acerca tanto das concepções desses profissionais sobre a violência doméstica contra a criança quanto das suas práticas diante do fenômeno. Diante do exposto até aqui, no que se refere aos objetivos dessa pesquisa e à discussão metodológica acerca do fazer pesquisa e do lugar do pesquisador, fica claro que se pretende, como estratégia, apreender quais as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica contra a criança de zero a cinco anos. O processo desta pesquisa ocorreu em paralelo ao processo de trabalho da pesquisadora e aconteceu por meio de algumas estratégias que serão descritas a seguir. 104 4.2 (Re)conhecimento do campo e definições iniciais Por (re)conhecimento do campo assinala-se a fase inicial da investigação que ocorreu entre julho/2009 e agosto/2010, quando identificou-se a problemática e definiu-se os objetivos da pesquisa. Ao assumir a função de assessora pedagógica do DEI em julho de 2009, constatei que a temática da violência doméstica contra crianças não se fazia presente nas discussões, nem tampouco no cronograma de formações daquele Departamento. Este silêncio me intrigava. Sendo a Educação Infantil um espaço privilegiado para a identificação de eventuais casos de violência doméstica contra crianças, porque esta temática não fazia parte do cotidiano do DEI? Numa primeira aproximação do objeto de estudo, decidimos abordar a questão nas reuniões semanais do DEI, espaço onde as demandas provenientes dos assessoramentos são compartilhadas. Esta abordagem se deu em duas oportunidades, entre os meses de setembro a dezembro de 2009, onde foram apresentados dados, exemplos de situações, etc. A partir do momento que “lançamos tais provocações” começaram a surgir nas falas das assessoras pedagógicas, relatos de casos envolvendo suspeitas de violência doméstica contra crianças. Como supúnhamos e os dados estatísticos apontam, a violência doméstica contra a criança é uma realidade presente nos CMEI. Provavelmente a natureza do trabalho das assessoras, essencialmente pedagógico, não permitia que a temática viesse à tona, visto que há uma compreensão, a nosso ver equivocada, de que a violência é um tema da assistência social e não da educação. À educação cabe preocupar-se com o aprendizado das crianças. Utilizamos ainda como estratégia de aproximação do objeto, sugerir à Secretária Adjunta de Gestão Pedagógica a realização de uma palestra aos gestores dos CMEI na qual o tema seria abordado de modo que eles pudessem refletir sobre a possibilidade de haver crianças vítimas de violência doméstica entre aquelas atendidas nas creches e pré-escolas dirigidas por eles. Tal proposta não foi aceita de imediato e precisamos de dois encontros 105 com a Secretária Adjunta, entre os meses de março a junho de 2010 para acertar o detalhamento da palestra, que aconteceu somente em agosto. Nos relatos dos gestores, durante e logo após a palestra, evidenciou-se que a temática estava latente, não aparecia nas falas cotidianas, mas era uma realidade presente no dia-a-dia. Muitos nos procuraram relatando suspeitas de abuso sexual contra as crianças atendidas nos CMEI ou mesmo com situações concretas. Estas aproximações com o objeto permitiram delinear melhor a problemática em questão. Perguntávamo-nos: os profissionais que atuam na Educação Infantil são capazes de reconhecer os sinais de violência doméstica contra as crianças que estão sob a sua responsabilidade nos CMEI? Em caso de suspeita ou confirmação desse tipo de violência, sabem quais encaminhamentos tomar? Essas duas abordagens iniciais sobre o tema, (com as assessoras pedagógicas e os gestores) no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, mais especificamente no Departamento de Educação Infantil, ajudou-nos na definição dos critérios para a escolha dos participantes da pesquisa. Decidimos que a pesquisa seria realizada nos CMEI onde houvesse relato de casos. Que sentido haveria pesquisar em um local onde não houvesse menção a nenhum caso? Como a pesquisa objetiva analisar concepções e práticas, faz-se necessários que existam situações concretas para que os profissionais possam colocar suas posições diante delas. Tratando-se de uma pesquisa-ação não faria sentido realizar a abordagem em um espaço onde não houvesse interesse pela temática, desejo de conhecer, vontade de modificar a realidade. Na pesquisa-ação os participantes necessitam estar envolvidos no processo, pensando e refletindo sobre o que estão fazendo (NOVAES, 2009). Assim, estabelecemos como critério importante de envolvimento com o tema e participação na pesquisa que a própria equipe do CMEI nos fizesse um convite para discussão do tema. Consideramos que seria mais fácil pesquisar um grupo que solicitasse nossa presença no CMEI para ajudá-los a lidar com suas dúvidas e angústias envolvendo a temática. 106 Entre agosto e dezembro de 2010 recebemos três convites: dois CMEI localizados na zona Oeste e um na zona Norte. A partir destes, optamos por realizar a pesquisa de campo em apenas dois CMEI. Um deles, localizado na zona Oeste, já havia realizado uma ação na perspectiva do enfrentamento ao abuso49 e exploração sexual. O outro, localizado na zona Norte, jamais havia realizado uma ação abordando a temática da violência contra a criança. A escolha deste critério para seleção das instituições não se deu a 50 priori , mas a partir dos convites efetuados por três CMEI, achamos necessário adotar outro critério para a escolha de somente dois. Deste modo, a escolha por um CMEI que já havia realizado uma ação na perspectiva do enfrentamento à violência doméstica justificou-se como uma tentativa de compreender como profissionais de instituições que possuem experiências diferentes frente ao fenômeno, lidam com esta problemática. Além disso, a escolha de um CMEI que já havia tido contato com a temática51, provavelmente, evitaria a negação do fenômeno pelos participantes da pesquisa, viabilizando tanto a coleta de dados quanto a realização de reflexões alicerçadas na experiência sobre as possibilidades das instituições de Educação Infantil se constituírem enquanto espaços de defesa e proteção da criança. Objetivando contemplar duas zonas distintas da cidade, o outro CMEI foi selecionado pelo fato de localizar-se na zona Norte. Vale lembrar que, para a escolha destas duas instituições-alvo da pesquisa de campo levamos em conta o convite que nos foi feito, demonstrando o desejo dos participantes de que a temática fosse abordada nos respectivos CMEI. Em ambos, a concordância foi unânime. No campo de investigação trabalhamos com um grupo de 31 participantes, no período compreendido entre setembro/2010 e fevereiro/2011, referendados pelos seguintes critérios: 1º) fazer parte da equipe dos Centros 49 O abuso sexual ou violência sexual é uma modalidade de violência doméstica contra a criança. 50 O primeiro critério para a seleção das instituições, como já assinalamos, foi o convite feito pela gestão à pesquisadora. 51 Neste caso, violência doméstica na modalidade abuso sexual. 107 Municipais de Educação Infantil que nos fizeram convite para discutir sobre as situações de violência doméstica envolvendo crianças atendidas nos CMEI. 2º) manifestar o desejo de participar do processo desta pesquisa. Definidos os critérios de participação, o grupo ficou assim constituído: Quadro 1: participantes, função, quantidade, local de trabalho Função Nº de Local de Trabalho Participantes CMEI Oeste CMEI Norte Diretora 02 01 01 Coordenadora 02 01 01 Auxiliar de secretaria 01 - 01 Educador(a) infantil 15 10 05 Auxiliar de sala 04 02 02 Merendeira 03 01 02 Serviços gerais 04 02 02 TOTAL GERAL 31 17 14 Fonte: pesquisadora Decidimos por preservar a identidade do grupo, fazendo uso de nomes fictícios ao designar seus relatos no corpo da pesquisa, bem como optamos por não usar os nomes das unidades. Os nomes escolhidos foram CMEI Oeste e CMEI Norte. A escolha pela utilização do grupo focal na coleta dos dados se deu porque neste procedimento as pessoas se sentem mais à vontade, colocando seus pontos de vista com maior naturalidade, uma vez que uns podem escutar os outros, estabelecendo assim um diálogo entre participantes, em 108 que o facilitador/pesquisador se envolve intensamente, colocando-se como mais uma pessoa no grupo, sem, contudo, sair do seu lugar de pesquisador/observador atento e instigador. Para contornar possíveis dificuldades no que diz respeito a pouca participação ou mesmo “fuga” do tema proposto no levantamento das informações necessárias e manter as discussões em patamares interessantes para todos, munimo-nos de um sucinto roteiro de debate, a fim de nos auxiliar e nortear-nos durante o desenvolvimento do grupo focal. Ao todo foram realizados cinco encontros com duração média de duas horas cada: três encontros no CMEI Oeste e dois no CMEI Norte, entre os meses de setembro de 2010 a fevereiro de 2011. Os encontros aconteceram nas reuniões de planejamento coletivo, que ocorrem mensalmente, quando as crianças são liberadas das aulas. Esperávamos encontrar dificuldade quanto ao número de participantes, visto que alguns profissionais utilizam-se do dia do planejamento coletivo para faltar ao trabalho, mas isto não ocorreu. Todos os sujeitos “previstos” estavam presentes. A única dificuldade se deu com relação ao equipamento de projeção no CMEI Norte que não foi providenciado pela direção, conforme havíamos acertado previamente. Todo o procedimento de pesquisa, além das apreensões feitas por nós ao longo do processo, foi registrado no diário de campo e este registro foi norteado por alguns eixos: Como os profissionais que atuam na Educação Infantil conceituam a violência doméstica? (Como percebem/compreendem esse fenômeno?). Essa demanda chega ao CMEI? Que tipo de demanda é essa? Já se deparam com ela? (Conseguem identificar sinais de violência doméstica nas crianças?) Como lidam com o fato? (dificuldades, estratégias que utilizam etc.) Qual é o papel do profissional que atua na Educação Infantil frente à violência? (possibilidades e limites). 109 As notas de campo são relevantes, pois permitem que o pesquisador tenha uma melhor compreensão do contexto investigado e dos dados coletados através de outras técnicas, além de ser útil para a promoção de reflexões que podem auxiliar no delineamento da pesquisa (MAYAN, 2001). Os relatos destes encontros serão detalhados no item 4.3, tendo em vista que na pesquisa qualitativa há um nítido interesse pelo conhecimento do processo e não somente dos resultados e produtos de uma ação (BOGDAN e BIKLEN,1997). a) Contextualização das instituições-alvo da pesquisa. Tendo em vista conhecermos a realidade dos CMEI, não houve necessidade de visitas para conhecimento do campo e, devido à existência de um vínculo de confiança entre os gestores e coordenadores pedagógicos conosco, foi possível ter acesso aos dados que contextualizam as instituições pesquisadas. Nos CMEI consultamos o levantamento de dados realizado pelos profissionais52 sobre as respectivas comunidades, o que nos permitiu conhecermos mais de perto a realidade dos bairros onde os mesmos se encontram. A presente pesquisa se deu na cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, composta por 36 bairros que estão dispostos em quatro regiões administrativas: leste, oeste, norte e sul. As instituições pesquisadas se encontram nas zonas oeste e norte, nos bairros Nordeste e Lagoa Azul, respectivamente. A Zona Oeste abriga, desde a sua criação, uma população mais pobre que as demais regiões de Natal e sua renda média é inferior à renda do município. Seu contingente populacional, de aproximadamente 124 mil habitantes, apresentou uma pequena redução populacional na última década. São bairros da Zona Oeste: Felipe Camarão, Planalto, Cidade da Esperança, Nova Cidade, Quintas, Cidade Nova, Bom Pastor e Bairro Nordeste. 52 Para a construção do Projeto Político-Pedagógico do CMEI, os profissionais visitaram a comunidade para fazer um levantamento socioeconômico. 110 O CMEI Oeste formou-se pela união de duas creches municipais, que até dezembro de 2008 eram administradas pela Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS). Originou-se a partir do decreto nº 8.655, de 09 de fevereiro de 2009 quando passa a ser administrado pela Secretaria Municipal de Educação, conforme preconiza a Política Nacional de Educação (2006). Está localizado no bairro Nordeste numa área da periferia urbana, com mangue, cuja população se divide em dois grupos sociais distintos. Na parte alta – onde existe água encanada, eletricidade, esgoto, calçamento, iluminação pública, praças, etc. – estão pessoas que moram no Conjunto da Marinha53, descendentes de militares que adquiriram os imóveis pela Marinha do Brasil na década de 1960 e, portanto, com uma melhor situação econômica. Na parte baixa, a população oriunda de pescadores do mangue e trabalhadores braçais que residem às margens do rio Potengi, sem água encanada nem eletricidade com ligação adequada, vivendo em habitações, por vezes precárias, geralmente inacabadas, de alvenaria, ou em barracos de madeira e restos de construção e até embaixo de uma ponte inutilizada. O Bairro Nordeste teve início no final da década de 1940 quando os herdeiros de Alfredo Getúlio Cavalcante de Souza dividiram as terras em lotes, vendendo-os a baixos preços. O primeiro desses lotes foi adquirido pela Rádio Nordeste AM, que instalou ali seus transmissores em 1952, dando nome ao local e originando o bairro (NATAL, 2010). O bairro convive com a violência doméstica, o crime, a marginalidade, o tráfico de drogas, geralmente saindo da parte baixa para a parte alta do bairro ou dos bairros adjacentes. O atendimento médico à região é precário, havendo um Pronto Socorro da Prefeitura, que geralmente, não atende à contento às necessidades mais primárias de saúde da população. Não há agências bancárias, apenas um pequeno comércio, feito de algumas padarias, botequins, quitandas, lojinhas e pequenos mercados, dentro do perfil do poder aquisitivo da população local. O CMEI Oeste encontra-se na parte alta do bairro, embora seja 53 Nome mais conhecido para o Conjunto Bela Vista. 111 distante do Conjunto da Marinha. Sua clientela é formada basicamente pela população economicamente mais pobre, nas quais muitas famílias necessitam da unidade de ensino não apenas pelo objetivo pedagógico ou por ter um local confiável para deixar as suas crianças, mas por necessidade de ter uma alimentação diária para o seu filho. Em 2010, o CMEI Oeste atendeu 75 crianças de dois a três anos em tempo integral (creche) e 36 crianças de quatro a cinco anos em tempo parcial (pré-escola). Porém, há uma lista de espera de pelo menos 50 crianças, segundo a direção. Para atender às 111 crianças, o CMEI conta com uma diretora, uma coordenadora pedagógica, dez educadores infantis, três auxiliares de sala, uma cozinheira, dois serviços gerais, dois porteiros e dois vigias54. A Região Norte foi criada por meio da Lei Ordinária nº 03878/89, seguindo tendências descentralizadoras e político/gerenciais, que levaram em consideração as características geométricas de ordem física dos espaços naturais, como também as demandas administrativas. Limita-se ao Norte e a Oeste com o município de Extremoz, ao Sul com o Rio Potengi, e a Leste com o Rio Potengi e o Oceano Atlântico. É a maior zona da cidade, concentrando uma população de, aproximadamente, 300 mil habitantes, embora haja estimativas não oficiais de que o número chegue a 440.000 habitantes. Atualmente, a zona Norte vivencia um momento de alto crescimento econômico e imobiliário. A Região possui 07 bairros: Igapó, Salinas, Potengi, Nossa Senhora da Apresentação, Pajuçara, Redinha e Lagoa Azul (NATAL, 2010). O CMEI Norte originou-se como uma entidade filantrópica, criada por iniciativa do proprietário de uma granja em Gramorezinho, com a finalidade de atender às crianças dessa comunidade. Fundada em 26 de agosto de 1992, em parceria com a Prefeitura Municipal do Natal, funcionava a princípio em uma pequena casa, situada no terreno da granja, com capacidade máxima de atendimento para 35 crianças. 54 Informações contidas em documento consultado no CMEI (mimeo). 112 Em setembro de 1994, a creche se torna de responsabilidade exclusiva da Prefeitura do Natal, através da SEMTAS e no ano de 2002 transfere-se para instalações mais amplas onde permanece até 2005 quando retorna para a Comunidade do Gramorezinho, local onde funciona até os dias atuais. No dia 09/02/2009, através do decreto 8.655, é criado o CMEI Norte, agora sob a gestão da Secretaria Municipal de Educação, propondo-se a oferecer a modalidade Educação Infantil em seus três primeiros níveis, ou seja, atendendo a crianças de dois a cinco anos. O CMEI está localizado no bairro Lagoa Azul, que nasceu devido ao movimento expansionista em direção à periferia natalense. O bairro possui topografia acidentada, e é o maior em área no município. Com o incremento da política habitacional, foram construídos no local os conjuntos residenciais: Nova Natal e Gramoré em 1983 e Eldorado em 1991, financiados pela - Companhia de Habitação Popular do Rio Grande do Norte - COHAB-RN. O CMEI Norte situa-se na localidade denominada Gramorezinho, na divisa com o município de Extremoz. No Gramorezinho, encontram-se as lagoas de Gramoré e Azul Dendê que, juntamente com o Rio Doce, dão suporte ao plantio de hortaliças, fonte do sustento financeiro para cerca de 200 famílias, para as quais a preservação dos mananciais, das áreas verdes e das dunas da região tem sido objeto de reivindicações. As crianças matriculadas no CMEI Norte são oriundas do bairro de Lagoa Azul, cujas famílias, em sua grande maioria, obtêm seus rendimentos através de atividades informais e autônomas, sendo a principal, a agricultura. O CMEI Norte oferece atendimento parcial a 61 crianças, segundo dados do Censo Escolar 2009, dispondo para tanto de uma equipe compostas por uma diretora, uma coordenadora pedagógica, seis educadores infantis, dois auxiliares de sala, dois auxiliares de secretaria, três merendeiras, três auxiliares de serviços gerais, um porteiro e dois vigias. b) Esclarecimentos sobre a análise dos dados 113 Os dados obtidos nos encontros com os profissionais que atuam nos CMEI foram analisados qualitativamente na perspectiva de desvendamento da realidade através de aproximações sucessivas. Para tal análise as notas registradas no diário de campo foram lidas exaustivamente, destacando-se os aspectos expressos pelos participantes, no que se refere à temática estudada, durante os grupos focais. Esclarecemos que no diário não houve uma transcrição literal das falas, mas estas foram registradas, associando-as, à medida do possível, aos motivos que as instigaram e ressaltando as ideias nelas contidas. Além disso, procuramos registrar também a linguagem não verbal dos participantes, como, por exemplo, tons de voz, expressões faciais e gesticulação. Enfim, no diário de campo foram registradas as posturas, ideias e pontos de vistas dos participantes, capazes de subsidiar análises posteriores. Os registros do diário de campo foram analisados em dois momentos. Em todos eles, analisamos as concepções e práticas do grupo sobre: o que é violência doméstica contra a criança, os sinais indicadores desta violência, os encaminhamentos dados (ou não) quando há suspeita de caso envolvendo uma criança atendida pelo CMEI. Além destes aspectos, procuramos identificar o grau de conhecimento do grupo com relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e aos órgãos de proteção à criança, pois acreditamos que conhecê-los é determinante para fundamentar as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil em relação ao enfrentamento da violência doméstica contra as crianças que estão sob seus cuidados. No primeiro momento da análise, partindo das diversas leituras do material, realizamos os seguintes procedimentos: 1) análise das “falas”55 expressas através da escrita no papel madeira e das complementações durante o compartilhar das “respostas” escritas; 2) análise das concepções e práticas presentes nas discussões ocorridas após a apresentação das lâminas com o suporte teórico sobre a temática. No segundo, analisamos os relatos dos casos concretos de violência 55 Aqui “falas” compreendem tanto a linguagem verbal quanto a não verbal (manifestada na postura, tons de voz, expressões faciais e gesticulação). 114 doméstica envolvendo as crianças atendidas nos CMEI. Esta estratégia justifica-se por se reconhecer que nos relatos dos casos estão implícitas concepções e práticas referentes à forma de enfrentamento da violência doméstica contra a criança no âmbito da instituição, que não foram reveladas quando a discussão se deu no campo conceitual/teórico (nas duas situações analisadas no 1º momento). Os relatos dos casos evidenciam concepções, conflitos, práticas e dificuldades dos profissionais diante da temática. A análise do material registrado no diário de campo apontou as principais concepções e práticas dos profissionais que atuam nos CMEI em relação ao enfrentamento da violência doméstica contra as crianças atendidas. Os questionamentos apresentados por nós durante a realização dos grupos focais sobre as ações que os profissionais utilizariam diante de um caso concreto, as formas de enfrentamento da violência familiar dirigida à criança, o papel do CMEI, da família e dos órgãos de proteção diante da violência doméstica contra a criança, possibilitaram o desvendamento do objeto de estudo. As diversas leituras do material indicaram ainda que as práticas dos profissionais não se dão aleatoriamente, antes, são ancoradas em diversas concepções. Diante disso, construímos quadros-resumo, com o objetivo de dar visibilidade às práticas dos profissionais (em relação às crianças, as famílias e aos órgãos de proteção) e às concepções que embasam tais práticas. Nos quadros é possível identificar/conhecer as práticas dos profissionais nas situações de violência doméstica contra a criança, bem como as concepções relacionadas com tais práticas, permitindo que se veja como concepções específicas podem estar relacionadas com uma ou mais práticas desses profissionais que atuam nos CMEI. Dessa forma, na presente pesquisa, apresentamos a discussão sobre concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil no enfrentamento da violência doméstica contra crianças de zero a cinco anos. 115 4.3 Concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica contra a criança Os critérios de escolha dos CMEI que fariam parte da pesquisa já foram explicitados anteriormente. De agora em diante teceremos algumas considerações sobre a investigação, lembrando tratar-se de uma pesquisa no próprio campo de trabalho da pesquisadora – Secretaria Municipal de Educação de Natal/RN, especificamente no Departamento de Educação Infantil – com 31 participantes que atuam nos Centros Municipais de Educação Infantil, considerados colaboradores do processo, na perspectiva da pesquisa-ação. Deste total de participantes, apenas um, pertencente ao CMEI Norte, é do gênero masculino, o que reforça a predominância feminina na Educação Infantil. Durante o primeiro encontro em cada CMEI estabelecemos contato com todos os profissionais, constituindo boa interação com os participantes, explicando detalhadamente, os objetivos da pesquisa. Nesses momentos, ressaltamos a importância da participação não apenas dos educadores, mas também das merendeiras, auxiliares de sala, etc. e enfatizamos que os encontros seriam realizados no próprio CMEI em dias e horários préestabelecidos com a direção, sem a presença das crianças. No CMEI Oeste foram realizados três encontros mensais de setembro a novembro de 2010. Em todos os encontros participaram 17 profissionais, conforme o quadro a seguir: 116 Quadro 2: participantes da pesquisa – função e quantidade – CMEI Oeste Função Nº de Participantes Diretora 01 Coordenadora 01 Auxiliar de secretaria - Educador(a) infantil 10 Auxiliar de sala 02 Merendeira 01 Serviços gerais 02 Fonte: Pesquisadora No primeiro encontro os profissionais nos aguardavam com certa ansiedade. Explicaram que haviam solicitado este encontro porque estavam angustiados com algumas situações, que suspeitavam ser de violência doméstica contra as crianças que estudavam ali. Esta angústia justifica-se pelo fato deste CMEI ter participado de algumas ações envolvendo a temática no ano anterior, quando a coordenadora56 havia participado de um Curso do Programa “Escola que Protege” oferecido pelo MEC em parceria com a UFRN, compartilhando com a comunidade escolar o que havia estudado neste Curso. Não ficou claro para nós como foi feita esta abordagem, a única certeza que temos é que houve uma mobilização no dia 18 de maio de 2009, envolvendo todo o bairro Nordeste em uma caminhada contra a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Com base nos estudos de Azevedo e Guerra (1994) acreditamos que ao estudarem o tema, os profissionais tornaram-se mais atentos aos sinais de violência, daí a inquietação do grupo diante das situações concretas com as quais se deparam diariamente em suas salas de aula. 56 O curso foi realizado em 2008 e as ações aconteceram em 2009. No momento da coleta de dados para esta pesquisa a referida coordenadora havia pedido transferência para outro CMEI, por este motivo não conseguimos maiores detalhes sobre a ação realizada. 117 Chegamos ao CMEI Oeste às 14 horas. As crianças haviam sido liberadas naquela tarde, pois o calendário escolar previa uma parada para planejamento. Sentadas, com as cadeiras dispostas em círculo, explicamos os objetivos do estudo e do grupo focal, destacando a importância da participação de todas nos debates. Também esclarecemos o que seria feito dos dados após o fechamento de todos os grupos e convidei as participantes a se apresentarem rapidamente. Tal procedimento tinha como objetivo fazer com que elas se sentissem confiantes e satisfeitas por estarem tomando parte do processo de pesquisa, esperando que, com isso, se engajassem com afinco nas discussões. Concluída essa etapa introdutória, apresentamos ao grupo três questões: 1) O que é violência doméstica contra a criança? 2) Como identificar se uma criança está sendo vítima de violência doméstica? 3) Quando você constata que uma criança está sendo vítima de violência doméstica, o que você faz? Optamos por escrever as perguntas em três folhas de papel madeira. Visto que as discussões não seriam filmadas, consideramos que este tipo de abordagem facilitaria a recolha dos dados, neste momento inicial. Apesar da técnica do grupo focal prever gravação das discussões em vídeo, optamos por não fazê-lo por dois motivos: 1) poderia inibir as participantes; 2) precisaria de outra para nos ajudar com a câmera e não dispúnhamos dessa pessoa. Dispomos as folhas no chão e pedimos que cada participante escolhesse a pergunta que gostaria de responder. Observamos que quase todas se agruparam em torno da 2ª questão e que a 3ª questão ficou sem ninguém para respondê-la. Chamamos a atenção para se distribuírem de modo que as três perguntas fossem respondidas. A partir desta intervenção elas se reorganizaram. A atitude dos profissionais ao evitarem a 3ª questão nos mostrou que tinham dificuldade em saber esboçar suas concepções sobre violência doméstica contra crianças e em saber como agir nestes casos, demonstrando 118 pouca familiaridade com o tema, desconhecimento sobre a atuação/papel dos órgãos de proteção à infância e, de certa forma, um sentimento de “desresponsabilização”, no qual acreditam que este tipo de encaminhamento é papel de outro profissional e de outra política. O fato de nenhum dos participantes ter se dirigido para responder à pergunta sobre quais encaminhamentos dar em casos concretos ou suspeitos de violência doméstica contra a criança corrobora com os estudos que vêm apontando uma baixa notificação e encaminhamento dos casos identificados pelas instituições educativas aos órgãos de proteção. Uma pesquisa realizada por Cavalcanti (1999) mostra que somente 5,5% das notificações de violência doméstica registradas no Conselho Tutelar de Niterói entre 1993 e 1995 foram efetivadas por escolas. Outra pesquisa, realizada por Deslandes (1994), durante o período de 1988 a 1992, revela que as escolas são responsáveis apenas por 4% das notificações aos Centros Regionais de Atenção aos Maus-Tratos na Infância (CRAMIS) dos municípios paulistas. Após a discussão em pequenos grupos, com as colocações devidamente registradas no papel madeira, retornamos ao grande grupo para que as respostas fossem compartilhadas e complementadas, caso os participantes dos outros grupos considerassem necessário. Os resultados estão registrados no quadro a seguir: 119 Quadro 3: síntese das discussões do 1º encontro – CMEI Oeste (set/2010) PERGUNTAS RESPOSTA DO GRUPO CONTRIBUIÇÕES DOS OUTROS GRUPOS O que é violência doméstica É toda forma de agressão contra a criança? física, psicológica e verbal em seu ambiente familiar. Negligência. Falta de cuidados. Olhar repressivo. Como identificar se uma Hematomas. Não houve. criança está sendo vítima de violência doméstica? Isolamento. Agressividade. Medo do toque. Falta de apetite. Quando você constata que Conversa com a criança. Não houve. uma criança está sendo vítima de violência doméstica, o que você faz? Comunica à direção. Procura os pais. Pede ajuda ao Conselho Tutelar. Fonte: Pesquisadora Conforme já foi explicitado, a partir da leitura do material registrado no diário de campo, foram analisadas inicialmente as “falas” dos profissionais durante a realização do primeiro grupo focal, quando as concepções e práticas a respeito da violência doméstica contra a criança foram expressas através da escrita no papel madeira e das complementações durante o compartilhar das “respostas” escritas. De acordo com o grupo, violência doméstica é toda forma de ameaças e agressões (física, psicológica e verbal) no ambiente familiar da criança. Questionadas se a violência é caracterizada apenas pelo que é feito contra a criança, uma das participantes diz que não: 120 “O que a família deixa de fazer também é violência.” Outras contribuições foram dadas de modo que a negligência, a falta de cuidado também foi considerada pelo grupo como violência doméstica. Questionado sobre o que seria a violência psicológica mencionada, o grupo mostrou não saber exatamente o que isto significava. Ou, pelo menos, não demonstrou compreender os sinais deste tipo de violência, conforme demonstra o questionamento realizado por uma das participantes. “Olhar repressivo, é violência psicológica?” Outra participante relatou que o seu cunhado era muito autoritário e que todos em casa tinham medo dele. Disse que um simples olhar seuera suficiente para deixar o filho dele “todo se tremendo”. Contudo ela ainda estava em dúvida se esta atitude podia ser considerada violência: “Não sei se o que ele faz é violência. Eu acho que é, pelo que a senhora tá dizendo [...] mas fico na dúvida.” O grupo mostrou ter mais familiaridade com a 2ª questão e apresentou como marcas identificadoras da violência doméstica: hematomas, isolamento, agressividade, medo do toque, falta de apetite. As respostas fluíram mais facilmente, não houve demora em apresentar os sinais que, segundo o grupo, evidenciam o fenômeno. Contudo, as marcas da violência psicológica, mencionada nas falas referentes à 1ª questão, não apareceram explicitamente aqui. Aparentemente, o grupo percebe melhor as marcas físicas, demonstrando pouca clareza dos sinais apresentados pela criança quando esta 121 sofre violência psicológica. No que se refere aos encaminhamentos diante de casos evidentes de violência doméstica, o grupo assinalou fortemente que primeiro conversa com a criança, mas não deixou claro o tipo de conversa, a forma como o assunto seria abordado, etc. O grupo também mencionou que os pais seriam procurados, sem, contudo esclarecer como se daria esta conversa. Sobre isto anotamos em nosso diário de campo: Parece que na dúvida sobre o que fazer diante de uma situação de violência doméstica, conversar com a criança ou chamar os pais para uma conversa, aparece como uma alternativa de conciliação. É como se a conversa tivesse o poder de solucionar o problema, fazendo cessar a violência (Diário de campo, 22/10/2010). Os profissionais também mencionaram que, quando surge alguma suspeita de violência, comunicam à direção. Pareceu-me que, para os profissionais, tal ação os desobrigaria de tomar outras providências, conforme falas a seguir: “É ela (a diretora) quem decide o que fazer: se chama a mãe [...] se vai na delegacia [...] a gente não dá [...] (para tomar as providências) tem de ser ela” “A gente tem medo, né? Aí é melhor deixar a direção fazer o que tem que ser feito.” O medo de represálias foi mencionado por uma das participantes e todas as demais, unanimemente, confessaram que se sentem inseguras para fazerem alguma coisa. O grupo alegou que a maioria dos pais das crianças 122 desse CMEI são usuários de drogas, envolvidos com crimes e que levar algum deles às autoridades é um risco de morte. Segundo Santos (2004) as notificações podem ser encaminhadas de quatro maneiras aos órgãos competentes: por telefone, por escrito, visita ao órgão ou solicitação de atendimento na própria escola. O autor lembra ainda que a denúncia pode ser feita de forma pública ou sigilosa, mas os profissionais também não mencionaram conhecer esta possibilidade. Na fala do grupo não apareceu nenhuma dessas alternativas, antes, pareceu-nos que havia um cuidado exagerado em justificar a omissão. Talvez o fato de sermos assessora pedagógica da SME tenha implicação neste processo. A alternativa de encaminhamento ao Conselho Tutelar foi apresentada pelo grupo, mas muito timidamente. Os profissionais não acreditam na eficiência e eficácia57 deste órgão de proteção: “Os conselheiros só sabem mandar criança para se matricular. Não querem nem saber se as salas estão cheias.” “A estrutura do Conselho Tutelar é precária demais.” “Eles não dão conta, não [...] ” “... eu não conheço muita coisa (sobre o Conselho Tutelar) não.” Levar o caso à delegacia também foi mencionado por uma das participantes, entretanto não ficou claro se o grupo sabia da existência de uma delegacia especializada. Contudo, os demais órgãos competentes que 57 Eficiência é o meio para se atingir um resultado; é a atividade, ou, aquilo que se faz. Eficácia é o resultado; o objetivo: aquilo para que se faz, isto é, a sua Missão (Disponível em http://www.administradores.com.br. Acesso em 24/07/2011). 123 recebem e apuram notificações de suspeita ou ocorrência de violência doméstica contra a criança58 não foram contemplados nas falas dos profissionais. Apesar das orientações de que os colegas dos outros grupos poderiam complementar as respostas, houve pouca participação, só advindo contribuições à 1ª questão. Pareceu-nos que haviam esgotado o que sabiam sobre a temática. Sentimos como se considerassem não haver mais nada a acrescentar. Não conseguimos identificar se este “silêncio” derivava de falta do conhecimento sobre o assunto, ou se o grupo ainda não se sentia à vontade para falar mais sobre o assunto uma vez que o pesquisador não pode esquecer que estará lidando com um grupo que possui certa estrutura e dinâmica próprias do qual ele, pesquisador, de início não faz parte (FRANCO, 2005). Após percebermos que as falas estavam se esvaziando, encerramos o debate agradecendo a participação de todas e enfatizando a importância de cada opinião. O segundo encontro ficou agendado para a reunião mensal de planejamento coletivo, marcada para a última sexta-feira de outubro de 2010. Tendo em vista que “a apreensão da realidade [...] se faz por aproximações a partir da convergência de vários pontos de vista” (MINAYO, 1999, p.37), no segundo encontro optou-se por apresentar algumas transparências em um retroprojetor a fim de elucidar alguns aspectos sobre a temática que não ficaram claros no encontro anterior. No início da pesquisa não havíamos previsto este momento, contudo, ao nos depararmos com tantas angústias, dúvidas, medos, decidimos que se fazia necessário esclarecer alguns conceitos. Esta seria uma das nossas contribuições ao grupo. Afinal, a pesquisa-ação justifica-se, neste caso, porque pretendemos interagir com os participantes de modo que a realidade possa ser também modificada, e para tanto, julgamos ser imprescindível contribuir para ampliar os conhecimentos dos profissionais sobre o tema em questão. 58 Além do Conselho Tutelar e da delegacia especializada (DCA), as notificações podem ser encaminhadas ao Ministério Público, a Defensoria Pública, a Justiça da Infância e da Juventude, ao SOS criança (CUNHA, 2004). 124 Os assuntos apresentados neste segundo encontro foram: 1) O conceito de violência doméstica; 2) As modalidades de violência doméstica contra a criança; 3) Os sinais que evidenciam se uma criança é vítima de violência doméstica; 4) Os artigos 13 e 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente que tratam da responsabilização dos profissionais; 5) As instituições de proteção à infância (Sistema de Garantia de Direitos). À medida que as transparências eram apresentadas, dúvidas emergiram no grupo quanto ao que seria violência ou não. Evidenciou-se que o grupo não tinha clareza do conceito de violência doméstica contra a criança e estava confuso quanto às modalidades. As brigas dos pais na presença das crianças foram mencionadas como uma forma de violência, sem, contudo ser “classificada” numa das modalidades (física, sexual, psicológica, negligência e abandono). Além dos profissionais não conseguirem estabelecer a relação entre o fato (briga dos pais na presença das crianças) e as modalidades de violência doméstica, há ainda outro elemento que merece ser destacado/analisado que, parece-nos, tem relação com a formação cristã-católica do povo brasileiro. A formação cristã tradicional remete a valores de paz, conciliação e harmonia, levando-nos a considerar qualquer tipo de conflito ou desavença como negativo. Neste sentido, somos levados a crer que todos os desentendimentos, discussões e conflitos entre os casais não podem, nem devem se dar diante dos filhos e parece-nos que foi esta a postura dos profissionais do CMEI. Evidentemente, quando questionamos tal postura, estamos nos referindo a conflitos e brigas entre casais que se veem como parceiros e iguais59. Neste sentido, em tal situação, não há opressão/dominação de um sobre o outro ou violência física, mas somente pessoas em uma relação que discordam e discutem saudavelmente suas posições. 59 Sabemos que estamos em uma sociedade patriarcal e como tal, as relações entre homens e mulheres não são igualitárias. Contudo há também homens e mulheres que buscam, no dia-adia, construir relações igualitárias entre os gêneros. 125 Parece-nos que a postura de esconder dos filhos as brigas, criam nas crianças situações ilusórias de uma harmonia baseada somente na completa concordância entre as partes. Deste modo, as crianças crescem sem saber conviver com conflitos e, por vezes, são surpreendidas por processos de separação entre os pais, que julgavam viver muito bem juntos, uma vez que nunca presenciaram brigas. Parece-nos, portanto, que precisamos rever nossos valores e entender que os conflitos/discordâncias fazem parte da vida humana e servem para nos fazer entender os pontos de vista dos outros e enriquecer-nos mutuamente, desde que tais conflitos/divergências se deem em um clima de respeito mútuo. Os profissionais relataram, ainda, casos de falta de cuidado das mães em relação às crianças, entre os quais: presença de piolhos, bichos de pés e roupas sujas. Apesar de nosso estudo não se deter nas discussões de gênero, nestas falas aparece explicitamente uma concepção de família, na qual a mãe/mulher é o elemento responsável pelo cuidado dos filhos. Em nenhum momento, os profissionais referiram-se aos pais como negligentes ou responsáveis pelo cuidado com piolhos, bichos de pé etc. Ou seja, o modelo familiar adotado pelos profissionais é do pai provedor e da mãe cuidadora/dona de casa, levando-os a culpabilizarem as mulheres pela falta de cuidado com a família. Não há, por parte dos profissionais do CMEI, nenhum questionamento ao modelo familiar dominante (pai/homem/provedor; mãe/mulher/cuidadora; filhos/protegidos), o que nos leva a supor que é este o modelo defendido/apresentado como ideal nas salas de aula, deixando de fora, portanto, todas as outras possibilidades de famílias existentes (casais homossexuais com ou sem filhos, casais heterossexuais com ou sem filhos, mulheres com seus filhos, homens com seus filhos, padrastos e madrastas com enteados etc). O fato de algumas famílias demorarem a vir buscar a criança após a aula, foi mencionado como sendo violência. Conforme as colocações do grupo, estas atitudes lembradas foram classificadas por eles como negligência. Neste aspecto, observamos nos participantes do grupo, um tom acusatório em 126 relação às famílias, sem que suas situações socioeconômicas sejam levadas em conta. Ou seja, observou-se que o grupo tendia a responsabilizar/culpabilizar às famílias pelas situações de negligência ou abandono, desconsiderando suas condições de vida. Esta discussão nos remete ao conceito de negligência que é apresentado nos materiais elaborados pelo MEC e pelo Ministério da Saúde, dos quais tratamos no capítulo anterior, destinado aos profissionais de suas respectivas áreas. Nestes documentos, a negligência é considerada como um ato de omissão do responsável pela criança em prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento (BRASIL, 2002; SANTOS, 2004). Em nenhum momento aparece nesta conceituação, uma proposta para que se discuta as condições objetivas nas quais vivem grande parte da população brasileira. É difícil arbitrar sobre esta modalidade de violência quando se sabe que estas famílias não têm emprego e renda, moram em condições precárias e não têm acesso a atendimento médico adequado. Quando foi colocada em pauta a discussão sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como sobre o Sistema de Garantia de Direitos, observamos que algumas das participantes tentavam disfarçar a falta de conhecimento sobre o ECA, o papel dos conselheiros tutelares e os órgãos que fazem parte da rede de proteção à criança. Com isso, verifica-se que na formação destes profissionais estes “conteúdos” não foram trabalhados, mas também que eles têm consciência sobre o dever de conhecer o assunto. Uma das participantes mostrou-se perplexa diante das informações sobre a política de proteção à infância, demonstrando tratar-se de uma “novidade” para o grupo: “Nem sabia dessas coisas [...] é muito legal saber. É muita coisa. A gente precisa conhecer mesmo”. Acreditamos que ainda ficaram questões em aberto, mas devido à necessidade de cumprimento do horário previamente acordado, foi solicitado 127 aos participantes que fizessem breves comentários sobre o que acharam da dinâmica. A avaliação foi positiva. Assim, encerramos o segundo encontro. A questão-chave para iniciar o terceiro encontro, realizado em novembro de 2010 foi: observa-se que vocês têm conhecimento sobre o que fazer diante da violência doméstica da qual as crianças atendidas neste CMEI são vítimas. O que falta para que os encaminhamentos adequados se efetivem? A partir daí a discussão fluiu rapidamente, surgindo vários relatos sobre suspeitas e ocorrências de casos, como também de possíveis razões para a falta de notificações. Pareceu-nos que falar das situações concretas, trazia à tona todas as angústias vivenciadas pelos profissionais no dia-a-dia do CMEI. Estava clara a necessidade de relatar/discutir as ocorrências. Em dado momento, percebemos que “apostavam” na nossa intervenção para ajudá-los a resolver algumas situações consideradas mais graves. Optamos por analisar as concepções e práticas implícitas nestes relatos de casos. Um dos relatos apresentou uma situação ocorrida no primeiro semestre, na hora do banho, entre duas crianças do Nível III (3-4 anos). Uma delas pediu à outra para colocar a boca em seu órgão genital. Ao deparar-se com a situação a educadora conversou com as crianças, explicando que este tipo de atitude não era aceitável. Mas a situação se repetiu alguns dias depois e novamente a providência tomada foi ter uma conversa com a criança. “Eu chamei [...] em um canto e perguntei por que ele só brinca disso. Você já viu alguém fazendo?” Vários outros relatos apontam para esta atitude – a nosso ver equivocada – dos educadores de tentarem resolver os conflitos no espaço escolar, sem encaminhar os casos aos Conselhos Tutelares, como orienta o ECA. 128 “Já falei muito com a mãe de [...] porque ela vive chamando ele de (vários palavrões). O coitadinho tem uma tremedeira no corpo [...] é horrível. Mas ela só diz que é besteira. Mas eu tenho certeza que ele sofre alguma violência em casa”. “Quando eu fui pegar ele embaixo da mesa aí ele falou que sabia que eu queria pegar no [...] conversei foi muito com a avó dele, mas coitada, já pensou até em tocar fogo nela e neles. Lá todo mundo é traficante, o avô tá preso [...]”. Segundo Azevedo e Guerra (2005) esta forma de agir acaba por colocar em risco a integridade física das crianças, tendo em vista que encaminhamentos inadequados podem agravar o problema ao invés de solucioná-lo. As falas dos profissionais, ao mesmo tempo em que evidenciam o desejo de contribuir para que a violência doméstica contra as crianças atendidas no CMEI cesse, estão impregnadas de dúvidas, por falta de conhecimento das instâncias de proteção, mas também por medo de represálias, como mostram as falas a seguir: “A lei me protege?” “Vai ser fácil ele descobrir que a denúncia foi feita pela gente [...] e daqui até o ponto do ônibus eu tenho medo dele me pegar.” “Aí se a gente denunciar é capaz de morrer.” 129 No que tange aos órgãos de proteção à criança, os relatos dos casos revelaram que os profissionais sabem da existência do Conselho Tutelar, mas só recorreram ao órgão numa situação em que a educadora percebeu hematomas no corpo da criança e ao chamar a mãe para conversar, ela acusou os profissionais do CMEI de terem machucado a criança. Neste caso, a diretora procurou o Conselho Tutelar, não para proteger a criança, mas para protegerem-se, enquanto profissionais, das acusações da mãe. Os demais órgãos, não são mencionados em nenhuma fala, a não ser a delegacia, mas sem especificar tratar-se da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). Acreditamos que o fato dos profissionais do CMEI Oeste terem discutido sobre a violência sexual em 2009 – embora, ao que tudo indica, de modo um tanto superficial – contribuiu para que passarem a perceber com mais facilidade a violência da qual as crianças atendidas ali são submetidas em seus lares. Contudo, mesmo “sensíveis” à questão, permanecem sem fazer os encaminhamentos necessários à proteção das crianças, quer seja por falta de conhecimento sobre o ECA e o Sistema de Garantia de Direitos, descrédito nas ações do Conselho Tutelar, medo de represálias por parte dos agressores das crianças ou por acreditar que uma conversa com os responsáveis será suficiente para resolver a situação de violência doméstica – comprovada ou não – na qual está envolvida a criança. No CMEI Norte foram realizados dois encontros nos meses de novembro/2010 e fevereiro/2011. Em todos os encontros participaram 14 profissionais, conforme o quadro a seguir: 130 Quadro 4: participantes da pesquisa – função e quantidade – CMEI Norte Função Nº de Participantes Diretora 01 Coordenadora 01 Auxiliar de secretaria 01 Educador(a) infantil 05 Auxiliar de sala 02 Merendeira 02 Serviços gerais 02 Fonte: Pesquisadora O convite foi feito pela diretora a partir de algumas dúvidas relatadas pelos profissionais sobre a temática em questão. Seguindo a mesma metodologia apresentada no CMEI Oeste, no primeiro encontro, em novembro/2010 explicitamos sobre o objeto da nossa pesquisa e explicamos que se tratava de uma pesquisa-ação onde buscaríamos respostas para alguns questionamentos que levantamos na nossa pesquisa bibliográfica, mas também contribuiríamos para que o grupo encontrasse respostas às suas questões. Para início de conversa, as três perguntas escritas em papel madeira foram colocadas sobre as mesas, solicitando-se que se dividissem em pequenos grupos para responder. Os resultados estão registrados no quadro a seguir: 131 Quadro 5: síntese das discussões do 1º Encontro – CMEI Norte (nov/2010) PERGUNTAS RESPOSTA DO GRUPO CONTRIBUIÇÕES DOS OUTROS GRUPOS O que é violência São agressões (físicas e/ou doméstica contra a verbais), ameaças cometidas criança? contra as crianças dentro de Não houve. sua própria casa. Como identificar se uma Comportamento agressivo. Choro insistente. Carência afetiva. Medo. Hematomas no corpo. Isolamento. criança está sendo vítima de violência doméstica? Desatento. Quando você constata que Denunciar ao Conselho Tutelar. Não houve. uma criança está sendo Conversar com a família. vítima de violência doméstica, o que você faz? Avisaria a polícia. Comunicar a escola. Fonte: Pesquisadora Dado certo tempo, solicitamos o retorno ao círculo para compartilhamento das respostas. O primeiro grupo disse que procurou sintetizar o que seria a violência doméstica e os demais participantes não fizeram nenhuma complementação ao conceito apresentado. Percebeu-se uma limitação quanto ao conhecimento conceitual sobre a violência doméstica contra a criança. Os profissionais, ao afirmarem que fizeram uma síntese, na verdade tentaram encontrar uma forma para despistar o pouco conhecimento sobre o tema. Percebendo o grupo um pouco fechado, optamos por não intervir no sentido de incentivar novas contribuições. 132 Quando o segundo grupo apresentou suas respostas houve maior participação de todos e alguns colegas, acrescentaram outros sinais característicos da violência doméstica tais como: choro insistente sem motivação aparente, demonstração de medo quando da aproximação dos adultos, isolamento em relação às demais crianças. Mesmo com as complementações, a abordagem sobre as marcas características da violência doméstica contra a criança foi superficial, demonstrando tão somente o conhecimento do senso comum. Questionamos se apenas uma ação caracterizaria a violência, imaginando que mencionariam algo sobre a negligência, mas o grupo não se manifestou. Nas respostas do terceiro grupo percebemos que não há clareza das instâncias de denúncias, havendo confusão quanto a quem se deve recorrer em casos concretos de violência doméstica. Questionados sobre a relação do CMEI com o Conselho Tutelar, disseram que sequer conheciam os conselheiros, que jamais fizeram uma visita ao órgão e alguns participantes sequer sabiam o endereço do Conselho. Acreditamos que isto se deva, principalmente, ao fato dos profissionais não morarem no bairro e o CMEI localizar-se num lugar muito distante, quase em Extremoz. Chegando ao local de ônibus e com pressa em voltar para casa ao final do expediente, acabam só conhecendo o local de trabalho. Esta atitude também pode ter relação com uma ideia muito presente no ambiente escolar de que cabe ao professor atuar apenas nas questões pedagógicas, de ensino-aprendizagem, ficando o papel de defesa da criança sob a responsabilidade de outro profissional. No segundo encontro, não pudemos apresentar os slides, conforme havíamos acertado com a diretora previamente, porque o data show não havia sido providenciado. A diretora justificou que a funcionária que havia se comprometido em conseguir o equipamento tinha falhado. De improviso, mostramos os slides (que havíamos levado impressos em papel), mas esta forma de apresentação nos deixou pouco à vontade, prejudicando a dinâmica da discussão. O maior “prejuízo” foi quanto à apresentação do Sistema de Garantia de Direitos que, devido à complexidade do assunto e o pouco conhecimento dos profissionais a respeito, deixou a desejar. Mesmo assim, à 133 medida que os assuntos foram apresentados, as dúvidas começaram a emergir. Uma das participantes manifestou dúvidas sobre a legitimidade da interferência de terceiros na dinâmica familiar, conforme aponta o relato a seguir: “É certo me intrometer na vida alheia? Sabendo que uma criança tá sofrendo violência em casa [...] que que eu posso fazer? Acho que é feio se meter nas vidas das pessoas.” No entanto, os outros participantes manifestaram a concepção de que a família não tem poderes absolutos sobre a criança e que qualquer pessoa pode interferir, no âmbito familiar, nos casos de violência contra a criança. “Se você vê alguma coisa que prejudique a criança, eu acho que pode sim denunciar”. Um dos indicadores apresentados e que chamou a nossa atenção foi o ato da criança imitar, durante as brincadeiras, a forma como é tratada em casa. Os participantes disseram que é um fato comum de ser observado: “A gente vê durante as brincadeiras... tá com um coleguinha, aí a criança fala: ‘eu vou te matar!’ É fácil de ver isso” “Tem criança que bate nos bonecos e quando a gente vai dizer que não pode ela diz que a mãe faz assim com ela” 134 Alguns teóricos do desenvolvimento infantil realizaram estudos sobre a tendência que crianças pequenas têm para imitar os adultos (VIGOTSKY, 1987; PIAGET, 1978). A fase da imitação aparece a partir dos dois anos de idade e até os cinco anos este processo é muito forte e constante, ocorrendo tanto na maneira de agir (nível físico) como a nível psicológico e intelectual. A criança costuma imitar as pessoas com as quais mais se identificam por isso, os adultos com os quais convive devem ter uma conduta correta, a partir de valores comuns na sociedade, visto que a criança não tem noção do que está certo ou errado, limitando-se a seguir moldes comportamentais com os quais se relaciona no dia-a-dia (FONTANA; CRUZ, 1997). Compreendendo que na pesquisa-ação a metodologia não se faz por meio das etapas de um método, mas se organiza pelas situações relevantes que emergem do processo e ainda que o número de grupos focais a ser realizado não é rigidamente determinado por fórmulas matemáticas, mas pelo esgotamento dos temas, decidimos antecipar, neste encontro, o questionamento reservado para o 3º encontro (FRANCO, 2005). Ao fazermos o questionamento sobre o que falta para que encaminhem os casos concretos ou as ocorrências de violência doméstica contra a criança para os órgãos de proteção, as respostas foram evasivas: “Faz uns três anos a gente foi na casa da criança por que ela tava cheia de bicho na mão. As crianças tavam brincando nuas no quintal, no meio dum monte de porco [...] e tinha fezes ali e ela brincando”. “Nem sei se fiz errado, mas eu disse prá mãe que ela só podia trazer o menino se tirasse os piolhos dele. Fiquei com medo de ser denunciada, mas eu fiz”. Toda a discussão girou em volta de situações concretas sem, contudo apontar nenhuma ação com o objetivo de proteger as crianças dos casos 135 explícitos de violência. Chamou nossa atenção o caso das crianças brincando nuas, misturadas às fezes de animais. Nenhuma providência foi tomada nestes três anos. Os profissionais constataram e não tomaram nenhuma providência ou fizeram qualquer encaminhamento. Ao analisarmos os dados coletados no CMEI Norte – as falas (expressas ou não) dos profissionais, as tentativas de “disfarçar” o desconhecimento sobre os temas discutidos, a “tímida” participação de alguns, a superficialidade em determinadas respostas – questionamos sobre o real desejo desses profissionais em se envolverem na defesa das crianças. Afinal, foram eles quem nos fizeram o convite que, segundo a diretora, refletia a vontade do grupo em conhecer a temática. Mas apesar dos grupos focais realizados no CMEI Norte não terem fluido como esperávamos, inferimos que a falta de clareza sobre as instâncias de denúncia, bem como a limitação dos profissionais em reconhecer os sinais indicativos de violência doméstica contra a criança são os principais responsáveis pelos não encaminhamentos dos casos. As concepções e práticas manifestas implícitas ou explicitamente nos cinco grupos focais realizados apresentam uma realidade cruel. Os profissionais se deparam com os casos de violência, comentam, se angustiam, mas um sentimento de impotência os impede de fazer os encaminhamentos adequados, nos levando a acreditar que o problema do não envolvimento e da consequente não notificação aos órgãos competentes não está somente na falta de conhecimento sobre a temática. Claro que os profissionais precisam receber uma formação mais adequada e contínua que os subsidie na identificação dos casos, bem como os capacite para saberem como agir. Porém o mais importante é que se impliquem na questão, se reconheçam como agentes de proteção à infância, bem como cobrem do Estado o funcionamento adequado das instituições de proteção à criança. Ao mesmo tempo, também não nos cabe somente responsabilizar e cobrar dos profissionais que atuam na Educação Infantil compromisso com a proteção à criança. É necessário analisar as condições de vida e trabalho destes 136 profissionais (salários, muitas horas de permanência no CMEI, distância percorrida/horas gastas no trajeto casa-trabalho etc). Os profissionais que atuam nos CMEI não devem ser desresponsabilizados de agir como agentes de proteção da infância, mas também não podem ser culpabilizados por uma situação mais ampla. A análise dos dados nos permitiu inferir que as práticas dos profissionais quanto a conversar com a família quando percebem que a criança está sendo vítima de violência, podem colocar a criança em risco, além de acomodar a instituição educacional no sentido de não realizar a notificação dos casos aos órgãos de proteção. Segundo estudo realizado por Lima (2008) a ação junto às famílias não se constitui como uma ação eficaz para o enfrentamento da violência doméstica contra a criança. Antes, estas práticas podem se constituir como uma forma de manutenção da vitimização da criança na família. É preciso, pois refletir sobre nosso papel como profissionais e sujeitos sociais que se preocupam com a situação de violência contra a criança no âmbito familiar. Contudo, tal preocupação não pode nos levar a responsabilizar a família ou os profissionais por tal situação ou omissão. Ao mesmo tempo em que devemos encontrar saídas, pensar providências para proteger as crianças, é necessário também cobrar do Estado um efetivo sistema de proteção à criança, políticas sociais adequadas que assegurem direitos às famílias, salários dignos que possibilitem uma vida honrada e neste sentido, um sistema educacional, com profissionais comprometidos e conscientes de seu papel, em processo contínuo de capacitação, mas também trabalhando em condições adequadas e recebendo um salário digno pelo trabalho desempenhado. 137 CONCLUSÕES APROXIMATIVAS A violência doméstica contra a criança de zero a cinco anos é uma temática complexa que exigiu neste estudo um olhar multifacetado, perpassando as dimensões histórico-culturais, socioeconômicas e legislativas. Por tratar-se de uma pesquisa-ação, que se propôs a contribuir para a modificação na realidade, fizemos um esforço para que a temática fosse colocada em pauta no Departamento de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação de Natal-RN, pois acreditamos que os profissionais que atuam na Educação Infantil podem e devem ser agentes de proteção às crianças contra a violência doméstica. Diante da natureza do trabalho pedagógico, cuja principal tarefa diz respeito ao ensino-aprendizagem das crianças, a questão da violência doméstica da qual são vítimas pode parecer secundária no ambiente escolar. Talvez por isso poucas pesquisas discutam a responsabilidade das creches e pré-escolas na defesa dos direitos das crianças. Assim, na tentativa de elucidar porque as estatísticas apresentam um baixo índice de notificações quanto à violência doméstica contra crianças advindos do ambiente escolar, a presente pesquisa buscou esclarecer se os profissionais que atuam nos CMEI são capazes de identificar, no seu dia-a-dia de trabalho, os sinais característicos da violência doméstica contra a criança e quais encaminhamentos dão quando identificam uma situação concreta. Para tanto, optamos por uma abordagem metodológica de natureza qualitativa, numa perspectiva de totalidade e elegemos a pesquisa-ação como norteadora de nossa pesquisa. Os dados foram coletados através da técnica do grupo focal e as observações apreendidas, anotadas em diário de campo. Assim, entre os meses de setembro/2010 e fevereiro/2011 realizamos a coleta de dados, através do grupo focal, em dois CMEI localizados nas zonas Oeste e Norte, com um grupo de 31 participantes (educadores infantis, merendeiras, auxiliares coordenadoras). de sala, pessoal da limpeza, diretoras e 138 Desse modo, esta pesquisa nos possibilitou apreendermos as dificuldades dos profissionais na identificação dos casos e, consequentemente, a falta de encaminhamentos aos órgãos competentes. Nos CMEI pesquisados, mesmo quando os profissionais suspeitam ou identificam um caso de violência doméstica contra a criança, permanecem sem saber o que fazer quanto ao encaminhamento aos órgãos de proteção. Todavia, observamos que no CMEI Oeste, no qual foi feita uma mobilização para o enfrentamento do abuso e exploração sexual em 2009, as falas dos profissionais manifestaram o quanto são sensíveis e atentos aos casos que poderiam sugerir abuso sexual. Durante os momentos de encontro dos grupos focais eles se mostraram questionadores e curiosos, enquanto os profissionais do CMEI Norte, que não haviam entrado em contato com a temática previamente, praticamente não relataram esta modalidade de violência doméstica contra as crianças atendidas naquele local. Contudo, em ambos os CMEI estão presentes as dúvidas quanto aos encaminhamentos a serem dados. Nossa pesquisa aponta que, sem dúvida, a violência doméstica é uma realidade presente na vida de crianças atendidas pelos CMEI. Entretanto, os profissionais que ali atuam ainda não se deram conta do seu papel na rede de proteção dessas crianças. Ao analisarmos as concepções e práticas desses profissionais que atuam nos CMEI diante da temática em questão, verificamos que, para além da falta de conhecimento teórico, está o entendimento de que não cabe aos profissionais da educação proteger a criança quanto à violação de seus direitos. É como se o espaço escolar recebesse uma demanda que vai além de suas responsabilidades, ou seja, os profissionais acham que a função deles diz respeito apenas às questões pedagógicas e o que extrapola tal função, caberia a outros profissionais ou a outra área de atuação. Tal postura mostra uma visão que fragmenta a realidade excessivamente e dificulta o trabalho para enfrentar a violência doméstica contra as crianças, que deveria ser multidisciplinar e transversal. Talvez esta concepção tenha suas raízes nos primórdios da Educação Infantil quando as funções de educar e cuidar eram concebidos 139 separadamente, ficando o cuidado das crianças sob a responsabilidade da assistência social. Outro aspecto a ser considerado é a ideia de que o educar é mais importante e “nobre” que o cuidar. Por considerar que o enfrentamento à violência doméstica encontra-se na esfera do cuidado e não da educação, os profissionais que atuam nos CMEI acabam por não se perceberem como agentes de proteção das crianças. Compreendemos que dadas as condições objetivas de trabalho desses profissionais, não é tarefa fácil comprometer-se com ações de enfrentamento à violência doméstica. Faz-se necessário, portanto, uma rede de apoio a esses profissionais no âmbito da própria Secretaria Municipal de Educação. Neste sentido, como resultado de nossas reflexões e como assessora pedagógica da SME, estamos propondo a criação de um Núcleo de Prevenção à Violência e Promoção dos Direitos da Criança vinculado ao Departamento de Educação Infantil (em anexo), por acreditarmos que se faz necessário criar condições objetivas a fim de apoiar os profissionais que atuam na Educação Infantil, dando-lhes condições de atuar no enfrentamento da violência doméstica contra a criança. Tal Núcleo deverá trabalhar articuladamente com o SUAS, através dos CRAS e CREAS. Neste sentido, não objetiva duplicar as ações, mas estabelecer uma ponte com a Política da Assistência Social. Outro aspecto apresentado na pesquisa que deve ser considerado é que, por tratar-se de um problema de âmbito privado (que ocorre no interior dos lares), alguns profissionais consideram que a violência doméstica sofrida pelas crianças não lhes diz respeito. Têm medo de “intrometerem-se” em situações que só pertencem ao âmbito familiar. Contudo, uma das atribuições da Educação Infantil, de acordo com o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (BRASIL, 1998), é complementar a função da família. Não seria então o caso de abordar esta temática de maneira mais efetiva? Afinal, orientar a família sobre as especificidades e características da infância, mostrando-lhe a maneira adequada de tratar a criança no âmbito familiar, também é responsabilidade das instituições de educação infantil. Uma questão importante que emerge da pesquisa é a situação de isolamento dos profissionais em relação aos órgãos de proteção à infância e as 140 Secretaria de Saúde e Assistência Social, indiscutivelmente, parceiros imprescindíveis para o enfrentamento da violência doméstica contra a criança. Constatamos que os profissionais desconhecem os serviços oferecidos nas Unidades de Saúde, mesmo sendo localizadas geograficamente próximas dos respectivos CMEI. Quanto ao Conselho Tutelar, os profissionais não sabem os nomes dos conselheiros, tampouco os endereços deste órgão. A maioria dos profissionais não sabe o que é CRAS ou CREAS e muito menos as suas atribuições. Esta constatação nos remete as inúmeras dificuldades para a efetivação das ações de proteção à infância, tais como: desarticulação do trabalho entre as instituições que compõem a rede de proteção, condições de trabalho inadequadas, baixos salários, demanda superior aos serviços oferecidos etc. Diante disso, verificamos que as condições objetivas de trabalho dos profissionais que atuam nos Centros Municipais de Educação Infantil colaboram para o desconhecimento sobre os órgãos de proteção à infância e a consequente falta de notificação dos casos de violência doméstica contra a criança. Além disso, a pouca informação teórica sobre o tema, a concepção de que à educação cabe ensinar e não denunciar casos de violência e a compreensão de que a violência doméstica é de âmbito privado da família, são fatores que dificultam a identificação dos casos de violência doméstica praticados contra as crianças atendidas nos CMEI. Desta forma, para a efetivação de ações que visem o enfrentamento da violência doméstica contra as crianças atendidas na Educação Infantil no município de Natal-RN, não basta aos profissionais terem conhecimento da temática, ou seja, apesar de necessários, os cursos de capacitação e sensibilização, não são suficientes. É necessário que a Secretaria Municipal de Educação se implique nesta causa, melhorando as condições de trabalho dos profissionais, promovendo espaços de diálogo entre os profissionais que atuam na Educação Infantil e os que trabalham nas Secretarias Municipais de Saúde e Assistência Social etc. 141 Porém, não podemos nos esquecer de que todas estas ações têm limites, visto que a problemática da violência doméstica contra a criança está também relacionada a questões estruturais da própria sociabilidade capitalista. 142 REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Violência e Educação. São Paulo. 1988 (mimeo) ALMEIDA, Edson Pacheco; PEREIRA, Rosângela Saldanha. 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NATAL/RN 2011 157 MICARLA DE SOUZA PREFEITA WALTER FONSECA SECRETÁRIO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO ELIANA TORRES SECRETÁRIA ADJUNTA DE GESTÃO ESCOLAR MARCOS CLEBER SECRETÁRIO ADJUNTO DE GESTÃO PEDAGÓGICA KÁTIA LANZILLO DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL 158 PROPOSTA ELABORADA POR: Luisa de Marilac de Castro Silva [email protected] 159 Apresentação Lidar com a prevenção da violência bem como com a promoção dos direitos da criança é uma tarefa muito complexa que exige uma conscientização da sociedade, a cooperação e especialização de grupos multi-profissionais e uma boa articulação entre as instituições que atendem essas crianças. As estatísticas apontam que a violência impetrada contra crianças poderia diminuir e ter suas conseqüências minimizadas se o muro de silêncio erguido pela maioria dos profissionais fosse derrubado (Azevedo, 2000). Para que isso ocorra fazem-se necessárias ações urgentes no sentido de capacitar estes profissionais, pois a falta de conhecimento sobre os direitos da criança é apontada como a causa primeira desta imobilidade. Além disso, é preciso também articular ações com as famílias e com as próprias crianças. Nesta perspectiva, a escola é considerada locus privilegiado já que tem acesso tanto às crianças diariamente quanto às suas famílias. Assim, tendo em vista o papel relevante das escolas e a necessidade de se criar condições para a capacitação de seus atores na luta pela promoção dos direitos da criança é que elaboramos esta proposta. 160 NÚCLEO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA 161 Justificativa O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA estabelece os direitos desses sujeitos, bem como a indicação dos mecanismos de garantia dos cuidados e proteção a eles vinculados. Em seu Artigo 4º considera os Direitos Fundamentais – à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária – como necessidades para que essa parcela da população possa viver satisfatoriamente segundo as peculiaridades dessa fase do desenvolvimento humano. No entanto, sabemos que as determinações postas na Lei estão longe de serem efetivadas, principalmente, devido ao olhar passivo da sociedade. Assim, apesar das pessoas se sentirem impactadas diante das situações de vitimização das crianças, continuamos convivendo com índices alarmantes de atos violentos praticados contra esta população. Segundo dados do UNICEF, de hora em hora morre uma criança espancada, queimada ou torturada pelos próprios pais. No Brasil, de acordo com dados da ABRAPIA, temos 500 mil casos de crianças que sofrem maus-tratos, sendo que, de cada três dessas crianças, uma delas tem de zero a cinco anos. Estes números, embora surpreendentes, representam apenas a ponta de um grande iceberg, visto que a grande maioria dos casos de violência contra crianças, não chegam a ser notificados. O atendimento dispensado à criança vítima de violência em nosso país é muito precário, faltando nos profissionais da saúde, da justiça, do serviço social, da psicologia, da comunicação e da educação um preparo adequado para lidar com o fenômeno. Além da violência, outros direitos são negados às crianças diariamente tanto pela família quanto pela sociedade de modo geral e por isso o desafio de fazer valer o sistema de garantia de direitos requer a união de esforços das instituições que militam na área. A escola, lugar por excelência dedicado à educação e à socialização, reúne condições para atuar na defesa dos direitos da criança. Por isso, no caso específico dos Centros Municipais de Educação Infantil – CMEI’s acredita-se no papel do 162 educador infantil e também dos demais servidores como agentes de proteção da criança. Partindo deste pressuposto sugerimos a criação do Núcleo de Prevenção à Violência e Promoção dos Direitos da Criança, subordinado ao Departamento de Educação Infantil como um espaço de reflexão, ação e interação com outras instituições no sentido de diminuir as violações dos direitos de nossas crianças. 163 Objetivo geral Promover ações de prevenção à violência e promoção dos direitos das crianças atendidas pelos Centros Municipais de Educação Infantil – CMEI’s. Objetivos específicos Articular ações com os profissionais que fazem parte do SGD, Educação, Saúde e Assistência. Promover momentos de estudo com toda a equipe do Departamento de Educação Infantil. Organizar seminários e mesas-redondas abertas a todos os sujeitos envolvidos na rede de proteção à criança. Disponibilizar aos gestores dos CMEI’s a legislação e documentos pertinentes à temática. Capacitar os educadores infantis e demais servidores dos CMEI’s. Realizar encontros de sensibilização com as famílias das crianças atendidas pelos CMEI’s. Ministrar oficinas com as crianças dos CMEI’s de modo que possam ser fortalecidas como sujeitos de direito.