C apítulo 5
A respeito da interpretação
da Bíblia na Igreja
Um estudioso britânico chamado Philip R. Davies, professor do de­
partamento de estudos bíblicos na Sheffield University, publicou em 1995
um livro intitulado Whose Bible is It Anyway [Afinal de contas de quem é
a Bíblia?]1. Embora diga que aprecia a “erudição bíblica”2, Davies prefere
avaliar os escritos bíblicos “de uma perspectiva desinteressada”, como a que
um “observador crítico” aplica a outra literatura3. Ele pergunta: “Os escri­
tos religiosos fazem algum sentido para o leitor que não aceita a realidade
das divindades às quais eles se referem?” e “Aqueles que proclamam uma
afinidade religiosa com certo corpo de escritos têm um instinto melhor para
o significado desses escritos?4” . Davies procura distinguir rigorosamente
uma abordagem confessional da Bíblia de um a abordagem não confessional.
Para ele, as duas abordagens podem alegar ser críticas, mas são “tão funda­
mentalmente divergentes” que “subentendem disciplinas separadas”5. Como
exemplares dessa interpretação não confessional, Davies cita Dante, Blake e
1. P. R. D a v i e s , Whose Bible Is It Anyway? JSOT^up 204, Sheffield, UK, Sheffield Academic
Press, 1995.
2. Ibid., 4.
3. Ibid., 11-12.
4. Ibid., 12.
5. Ibid., 13.
91
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
Eliot. Também insiste que não existe esperança realista de impor um a inter­
pretação eclesial a leitores “fora do domínio eclesial”, porque esse domínio
“não pode reivindicar jurisdição sobre a maneira como as bíblias devem ser
definidas e lidas fora de seus limites”6.
Para Davies, não existe na realidade Bíblia alguma, somente “bíblias”,
reconhecidas por comunidades diferentes, e a frase “texto bíblico” não significa
nada mais que um texto encontrado em uma bíblia. Daí, para ele, o adjetivo
“bíblico” não transmite nenhuma essência ou característica a um dado texto,
além do fato de ser encontrado em alguma bíblia. Além disso, para Davies
não existe essa coisa de “autor bíblico” . “Nenhuma bíblia jam ais teve um
autor ou escritor.” “Não há nada no termo ‘bíblico’ que nos diga alguma coisa
proveitosa a respeito do autor, exceto que sua obra foi mais tarde colocada
no cânon de alguém.”7
Assim Davies argumenta em defesa de sua “erudição não confessional”.
Ele caracteriza sua posição com respeito à Bíblia como “humanista” e “ag­
nóstica quanto às divindades”8. Embora insista que não escreve “por causa de
algum preconceito ateísta”, ele alega que nos capítulos 4, 5 e 7 de seu livro, “a
divindade é tratada [...] como personagem de uma narrativa,porque é assim
que os autores desses textos queriam que fosse”9.
Se suas crenças particulares sobre as divindades correspondiam ou não exa­
tamente ao que eles escreveram depende de os tratarmos seriamente ou não
como autores criativos. Não vejo razão para insistir que contadores de história
bíblicos, não mais que os modernos, sentem-se obrigados a escrever somente
o que eles próprios acreditam ser verdade10.
Contudo, Davies afirm a que sua posição não “diminui o prazer de ler
uma bíblia” ".
Cito essas opiniões de Davies principalmente por causa do título de
seu livro: Whose Bible is It Anyway?, e porque elas revelam um modo de
interpretar a Bíblia que é diferente daquele que examino neste livro. Embora
diga que reconhece uma abordagem confessional, Davies está, contudo, mais
6. Ibid., 14.
7. Ibid., 15.
8. Ibid., 16.
9. Ibid., 15 (itálicos dele).
10. Ibid.
11. Ibid., 16.
92
Capítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
preocupado em promover a “erudição não confessional” e esse é o propósito
de seu livro.
Para o cristão comum, a resposta à pergunta de Davies seria: “A Bíblia
da Igreja” 12, porque a Bíblia pertence à Igreja cristã, católica, ortodoxa ou
protestante13. A razão óbvia para dizer isso é que não havia nenhuma “Bíblia”
antes de uma comunidade de fé decidir quais os escritos que transmitiam a
mensagem autêntica a seus membros e a suas sucessivas gerações. Ou, para
repetir o que um autor neotestamentário disse, não havia nenhuma Bíblia antes
de uma comunidade de fé decidir que escritos eram divinamente inspirados e
úteis “para ensinar, convencer, corrigir e educar na justiça” (2Tm 3,16).
O processo de decidir sobre escritos canônicos começou muito antes do
NT. No antigo Israel, os judeus de outrora reconheciam quais os livros que
transmitiam com autenticidade seu ponto de vista religioso a respeito da vida
e melhor refletiam suas relações com Javé ou Eloim. Muito antes do ensi­
namento neotestamentário sobre a inspiração de “toda Escritura”, os judeus
reconheciam a autoridade de “Moisés e os profetas”, isto é, do Pentateuco e
dos profetas anteriores e posteriores14. Isso é esclarecido nos Manuscritos do
M ar Morto da Palestina judaica pré-cristã. Ali Deus dá ordens à comunidade
judaica de Qumrã “por meio de Moisés e por meio de todos os seus servos, os
profetas” 15. Está igualmente claro pelo NT, que tira desse judaísmo da Palestina
a frase autêntica: “Moisés e os profetas” (Lc 16,29.31; 24,27; At 28,23).
Isso significa que antes que o Israel antigo decidisse que escritos eram
autênticos para ele, nenhum autor judaico jam ais compôs um livro a fim de
que ele se tornasse texto “bíblico” ou “canônico” . A esse respeito, concordo
com Davies. Os oráculos proféticos de Isaías, Jeremias e Ezequiel não foram
compilados a fim de fazer parte do cânon judaico da Escritura. Mesmo inspi­
rados por Deus, esses oráculos foram proferidos por porta-vozes de Deus para
dirigir e guiar Israel em sua relação com Javé em diversas circunstâncias. Foram
12. Dizendo isso, não concordo com as opiniões de P. P e r k i n s , The New Testament — the
Church’s Book??! Proceedings o f the Catholic Theological Society o f A m erica 40 (1985) 36-53.
Veja a resposta de J. A. S a n d e r s a essas opiniões (ibid., 54-63).
13. Uso “Bíblia” aqui no sentido cristão como o AT e o NT. Para um judeu, a resposta seria: as
Escrituras hebraicas pertencem ao povo judeu, ao povo escolhido de Deus no período pré-cristão
e a seus equivalentes de hoje.
14. Em outras palavras, a primeira e a segunda partes das Escrituras hebraicas, conforme a ma­
neira como o povo judeu normalmente dividiu seus escritos sagrados: Tôrãh, N èbi'im e Kêtübím,
Lei, “Profetas e Escritos”, abreviados como Tênãk.
15. Veja os livros das Regras da comunidade de Qumrã, 1QS 1,3; cf. IQS 8,15; CD 5,21-6,1,
que usam a mesma frase.
93
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
registrados somente depois a fim de preservar aquelas diretrizes para as gerações
futuras de Israel. Nessa forma escrita, gradativamente adquiriram posição de
autenticidade para gerações subsequentes de judeus, que, como comunidade
de fé, reconheceram seu valor. Esse processo de identificação e reconhecimento
continuou mais tarde entre os cristãos primitivos, que não só adotaram as Es­
crituras hebraicas dos judeus como o AT, mas também acrescentaram-lhes seus
escritos autênticos próprios, a saber, o NT. Foi a comunidade de fé cristã que
aceitou em sua coletânea alguns escritos cristãos e não outros. Por essa razão,
percebe-se por que a Bíblia é o livro da Igreja por excelência: é a coletânea
de escritos antigos autênticos que a comunidade de fé dos cristãos primitivos
transmitiu para gerações subsequentes e até os cristãos de hoje.
Entretanto, tal resposta para a pergunta feita por Davies é uma resposta
confessional. Não é a resposta que, como humanista ou agnóstico, ele gosta­
ria de ouvir; mas, se não fossem esses atos subsequentes de identificação e
reconhecimento por comunidades de fé judaicas e cristãs, não haveria Bíblia
para “estudiosos não confessionais” estudarem. Embora corretamente faça
parte da literatura universal e possa ser apreciada por humanistas e agnósticos
tanto quanto por judeus e cristãos praticantes, a Bíblia não é assim apreciada
ou classificada apenas por causa de seus méritos humanistas ou literários'6.
Recebeu essa condição porque foi reconhecida como a Palavra escrita de Deus,
que não é apenas uma “personagem” nos contos narrativos dos “contadores
de história bíblicos”. Os autores dos textos que compõem o AT não só con­
sideravam Javé ou Eloim seu Deus, mas também buscavam fazer com que
outros assim o reconhecessem. Além disso, Paulo de Tarso resumiu a atitude
cristã, quando escreveu: “Para nós há um só Deus: o Pai, do qual tudo vem
e para o qual nos dirigimos. E há um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo
existe e por quem nós somos destinados” (IC or 8,6).
Essa resposta à pergunta de Davies dá origem a outra: Como, então, se
interpreta a Bíblia na comunidade de fé cristã? Importante resposta a essa
pergunta foi dada no documento da Comissão Bíblica publicado em 1993, A
interpretação da Bíblia na Igreja. Minhas observações adicionais serão um resu­
mo desse documento, juntamente com comentários sobre alguns dos problemas
que ele levantou17. Essas observações serão feitas em quatro itens: 1) o método
16. Recorde as palavras de T. S. Eliot citadas acima na p. 79, n. 16, que Davies cita como re­
presentante de “interpretação não confessional” (W hose Bible, 13-14).
17. Veja U Interprétation de la Bible dans l'É glise [A Interpretação da Bíblia na Igreja], Os
detalhes dessa publicação já foram dados no capítulo 1, n. 23 (p. 26 acima). A s citações neste
ensaio são tiradas (da tradução para o português) do documento, e referências a meu livro serão
acrescentadas como “JAF, Texto”.
94
C apítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
histórico-crítico de interpretação da Escritura; 2) outras abordagens à Escritura;
3) os sentidos da Escritura; e 4) a atualização do sentido literal da Escritura.
1. O m étodo histórico-crítico de interpretação da Escritura
É um tanto irônico que, na ocasião em que se ouvia queixas a respeito do
método histórico-crítico de interpretação bíblica e repetidos pedidos para que
outros métodos o substituíssem, a Comissão Bíblica dedicasse parte conside­
rável de seu documento de 1993 a essa forma de interpretação, precisamente
para pô-lo na perspectiva apropriada. Embora a Comissão reconhecesse que
o método nem sempre fora usado apropriadamente e fora julgado “deficiente
do ponto de vista da fé” 18, ela ainda o considerava
o método indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos.
Como a Sagrada Escritura, enquanto “Palavra de Deus em linguagem humana”,
foi composta por autores humanos em todas as suas partes e todas as suas fon­
tes, sua justa compreensão não só admite como legítimo, mas pede a utilização
deste método19.
Ao dizer isso, a Com issão reconheceu, com efeito, que a Bíblia foi
composta no decorrer de um milênio e chega a nós hoje vinda de um pe­
ríodo antigo mais de dois mil anos atrás. Ela não foi escrita em uma língua
ocidental do século XXI, mas sim em hebraico, grego e aramaico, por seres
humanos de diversas culturas no antigo mundo m editerrâneo oriental. É por
isso que o adjetivo “histórico” é tão importante no nome desse método, que
dá atenção especial ao significado antigo do texto bíblico e suas fontes e
tradições subjacentes.
Embora às vezes se diga que o método histórico-crítico entrou em uso
na época do Iluminismo, ele é, na verdade, muito mais antigo. Com razão, a
Comissão reconheceu que “certos elementos” dele “são muito antigos” .
Eles foram usados na antiguidade por comentadores gregos da literatura clássica
e, mais tarde, durante o período patrístico, por autores como Orígenes, Jerônimo
e Agostinho. O método era, então, menos elaborado. Suas formas modernas
são o resultado de aperfeiçoamentos, trazidos sobretudo desde os humanistas
da Renascença e o recursus ad fontes deles20.
18. A
19. A
20. A
Interpretação, 11; JAF, Texto, 19.
Interpretação, 14; JAF, Texto, 26.
Interpretação, 14; JAF, Texto, 27-31. Veja também as pp. 75-77 acima.
95
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
Às vezes, católicos que estão impacientes com o método histórico-crítico
perguntam: “Por que os estudiosos bíblicos modernos não interpretam a Bíblia
como fizeram os Padres da Igreja e outros autores do período patrístico?”.
A principal razão é que muita coisa aconteceu neste mundo desde o período
patrístico. Em sua interpretação da Escritura, a Igreja católica aprendeu muito
com os estudiosos da Renascença e da Reforma. A ênfase da Renascença
no recursus ad fontes abriu o estudo da Bíblia para suas línguas originais
e algumas de suas antigas versões, que mudaram notavelmente a orienta­
ção e interpretação de toda a Igreja ocidental, que antes lia a Bíblia só na
língua latina, a Vulgata ou a Vetus Latina. Esse novo estudo no período da
Renascença abriu mais, na verdade, o caminho para as traduções da Bíblia
para várias línguas vernáculas entre os reformadores. Também rompeu com
a interpretação altamente alegórica, tipológica e homilética que caracterizara
os modos patrísticos e medievais primitivos de expor o texto bíblico que, de
muitas maneiras arbitrárias, desprezavam os contextos e o significado literal
básico dos escritos mosaicos, proféticos e sapienciais do AT.
A Igreja católica também aprendeu muito com os estudiosos no tempo
do chamado Iluminismo, embora resistisse às pressuposições racionalistas e
antidogmáticas deles. Hoje, muitas vezes esquecemos como, nas pegadas do
Iluminismo, grandes descobertas históricas e arqueológicas do século XIX
afetaram nossa leitura da Bíblia. Essas descobertas eram inesperadas, mas
impossibilitaram interpretar a Bíblia nos modos simplistas e quase sempre
alegóricos que haviam estado em voga desde o tempo dos Padres da Igreja e
dos teólogos medievais.
Por exemplo, a bem conhecida pedra de Rosetta, gravada em 196 a.C. para
exaltar o rei Ptolomeu V Epífano pelos muitos benefícios que ele concedera
aos templos egípcios, continha três inscrições: uma em egípcio hieroglífico,
outra em demótico e a terceira em grego. A pedra foi descoberta na parte
ocidental do delta do Nilo, em 1798, durante uma expedição napoleônica. Seu
texto grego foi lido com facilidade, mas seu texto hieroglífico principal e o
texto demótico permaneceram indecifrados até que o primeiro desses textos foi
decifrado em 1821 -1822 pelo francês François Champollion. A decifração dos
hieróglifos egípcios só foi aperfeiçoada com o trabalho do estudioso alemão
Karl Richard Lepsius sobre o decreto de Canopo, em 186621. Então, na última
21.
Veja E. A. Wallis B u d g e , The Rosetta Stone in the British M useum, London, Religious Tract
Society, 1929; idem, The Decrees o fM em p h is and Canopus, New York, Frowde, 1904; R. L e p s i u s ,
D er bilingüe D ekret von Kanopus in der Originalgrosse m it Ü bersetzung und E rklãrung beider
96
Capítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
terça parte do século XIX, começou-se a ler pela prim eira vez a literatura dos
antigos egípcios, isto é, a literatura dos vizinhos de Israel a oeste22. Assim,
também pela primeira vez, foi possível comparar textos bíblicos com gêne­
ros literários paralelos. Desse modo, os escritos históricos, hínicos, rituais,
míticos e sapienciais do antigo Egito proporcionaram importantes paralelos
e equivalentes para muitas passagens similares do AT.
O mesmo aconteceu com a literatura assíria e babilônia. A menos conhe­
cida pedra de Behistun23 ficou durante séculos na estrada das caravanas de
Ecbátana na Média (Irã setentrional de hoje) a Babilônia (agora no Iraque).
Ela ainda tem uma inscrição do século VI a.C., em três línguas: persa antigo,
elamita e babilônio. Essas formas cuneiformes diferentes registram a vitória
do rei Dario I sobre um rebelde, Gaumata, e outras de suas realizações régias.
Em 1835, um inglês, Henry C. Rawlinson, foi o primeiro a subir ao local e
copiar a inscrição. Finalmente, a pedra foi decifrada em 1839, como resultado
do trabalho de Rawlinson, de um estudioso alemão, G. F. Grotefend, de um
irlandês, Edward Hincks, e de um francês, Jules Oppert24. Essa decifração
revelou os segredos da literatura assíria e babilônica25. Então, pela primeira
vez, os códigos legais, os escritos históricos, a poesia e textos didáticos e
sapienciais de Israel puderam ser estudados em comparação com a literatura
de seus vizinhos a leste.
Além disso, na parte mais tardia do século XIX, milhares de papiros
gregos foram descobertos no Egito e lançaram nova luz sobre a linguagem da
Texte, Berlin, Hertz, 1 8 6 6 ; C. A n d r e w s , The British M useum B ook o f the Rosetta Stone, New York,
Dorset, 1981; C. L a g ie r , A utour de la pierre de R osette, Brussels, Fondation Egyptologique Reine
Elisabeth, 1927.
22. Veja, por exemplo, J. A s s m a n n et al., Egyptian Literature, A B D 3,378-399. Cf. J. B. P r i t c h a r d
(org.), The A ncient N ear Eastern Texts R elating to the O ld Testament, 3. ed., Princeton, NJ, Princeton
University Press, 1969; idem, The A ncient N ear East; Supplementary Texts and Pictures Relating
to the Old Testament, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1969, passim.
23. Também chamada pedra de Bisutun.
24. Veja H. C. R a w l i n s o n , The Persian Cuneiform Inscription at B ehistun, London, J. W. Parker,
1846. Cf. E. H i n c k s , On the First and Second K inds o f Persepolitan W riting, Dublin, G U I, 1846;
L. W. K in g — R . C. T h o m a s , The Sculptures and Inscriptions o f Darius the Great on the Rock o f
Behistun in Persia, London, British Museum, 1907. Uma tradução aramaica desta inscrição foi en­
contrada em Elefantina, Egito, na primeira parte do século XX; veja J. C. G r e e n f i e l d — B. P o r t e n ,
The Bisitun Inscription o f Darius the Great; Aramaic Version (Corpus inscriptionum iranicarum ser.
15), London, Lund Humphries, 1982.
25. Veja, por exemplo, A. K. G r a y s o n , Mesopotamia, History of, A BD , v. 4, 732-777. Cf.
P r it c h a r d , The A ncient N ear Eastern Texts, passim; B. R. F o s t e r , Before the M uses; An Anthology
o f Akkadian Literature, Bethesda, MD, CDL Press, 1993, 2 v.; W. W. H a l l o et al. (orgs.), The Bihle
in the Light o f Cuneiform Literature, Ancient Near Eastern Texts and Studies 8, Lewiston, NY/
Queenstown, ON/Lampeter, Wales, Edwin Mellen, 1990.
97
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
Septuaginta e do NT. Esses textos em papiro mostraram que a Bíblia grega, da
qual tão grande parte da tradição cristã dependera durante séculos, foi escrita
não na “linguagem do Espírito Santo”, como o homem tentara caracterizar
a forma peculiar de grego na qual os escritos bíblicos foram traduzidos ou
compostos, mas no grego comum helenístico ou koiné, popular nos últimos
três séculos a.C. e no século I d.C.26.
Do mesmo modo, é preciso recordar duas descobertas do século XX que
também influenciaram a interpretação bíblica: a primeira foi a descoberta
em 1929 na antiga Ugarit (a Ra Shamra moderna, na Síria) de centenas de
tabuinhas de argila escritas em um alfabeto cuneiforme em uma língua semita
do noroeste relacionada com o hebraico. A língua ugarítica foi decifrada por
H. Bauer da Alemanha e E. Dhorme e C. Virolleaud da França e revelou im­
portantes paralelos cananeus com a poesia hebraica, em especial os Salmos27.
A segunda foi a descoberta em 1947-1956 dos Manuscritos do M ar Morto
perto de Qumrã no Mandato Britânico da Palestina e na encosta ocidental
controlada pelos jordanianos, que agora faz parte de Israel. Eles contribuíram
bastante para a interpretação do AT e para o entendimento da matriz judaica
da Palestina, na qual se originaram muitos dos escritos do NT28.
Essas descobertas de literaturas antigas egípcias, assírio-babilônicas e
ugaríticas, de documentos gregos helenísticos e dos M anuscritos do Mar
Morto revelaram áreas de informações e literatura religiosa comparada que
eram desconhecidas dos intérpretes da Bíblia nos períodos patrístico, m e­
dieval, da Renascença e mesmo da Reforma. Como resultado, ficou claro
como era importante entender a Bíblia segundo seus gêneros literários ou
suas formas literárias antigos. Assim, essas descobertas explicam por que os
intérpretes bíblicos modernos precisam empregar o método histórico-crítico
de interpretação e por que eles não podem se restringir à exposição alegórica
26. Veja A. D e i s s m a n n , Light fro m theA ncient East; The New Testament Illustrated by Recently
Discovered Texts o f the Graeco-Roman World, 2. ed., London, Hodder & Stoughton, New York,
Doran, 1927.
27. Veja D. P a r d e e — P. B o r d r e u i l , Ugarit Texts and Literature, A B D v. 6, 706-721; N.
W y a t t , R eligious Texts from Ugarit, The Words o f Ilimilku and His Colleagues, Sheffield, UK,
Sheffield Academic Press, 1998; W. van der M e e r e J. C. de M o o r , The Structural A nalysis o f
B iblical and Canaanite Poetry, JSO TSup 74, Sheffield, UK, Sheffield Academic Press, 1988; M.
S. S m it h , U ntold Stories; The Bible and Ugaritic Studies in the Twentieth Century, Peabody, MA,
Hendrickson, 2001.
28. Veja F. Garcia M a r t ín e z — W. G. E. W a t s o n , The D ead Sea Scrolls Translated; The Qumran
Texts in English, 2. ed. Leiden, Brill; Grand Rapids, MI, Eerdmans, 1996; Cf. J. A. F i t z m y e r ,
Responses to 101 Questions on the D ead Sea Scrolls, New York, Paulist Press, 1992, 104-141; G.
V e r m e s , The D ead Sea Scrolls; Qumran in Perspective, ed. rev., Philadelphia, PA, Fortress, 1977.
Capítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
e fantasiosa que caracterizou uma parte tão grande do entendimento patrístico
e medieval da Bíblia.
Infelizmente, algumas dessas descobçrtas acrescentaram e favoreceram
também a interpretação racionalista da Bíblia, herdada do chamado Iluminismo. Deram origem à notória controvérsia Babel-Bibel nas terras de língua
alemã, na qual se afirmava que os códigos legais da Assíria e da Babilônia
eram a fonte de grande parte da legislação mosaica, ao passo que gerações
anteriores de cristãos e judeus consideravam-nos, simplesmente, divinamente
inspirados. Essas descobertas e o emprego delas foram parte da razão pela
qual o papa Leão XIII publicou sua encíclica Providentissimus Deus (1893)
para dar orientação aos intérpretes bíblicos católicos29.
Embora o papa Bento XV, na encíclica Spiritus Paraclitus (1920), não
visse nenhum bem no estudo dos gêneros literários da Bíblia30, na encíclica
Divino afflante Spiritu (1943) o papa Pio XII corrigiu esses conselhos mal
orientados31. Ele insistiu não só no uso dos resultados das descobertas históricas
e arqueológicas dos séculos XIX e XX, mas também na tradução da Bíblia
a partir de suas línguas originais e em sua interpretação de acordo com os
gêneros literários antigos ou formas literárias nos quais ela fora composta.
Embora Pio XII jam ais usasse o nome do método histórico-crítico, seus con­
selhos defendiam claramente o uso desse método para expor o sentido literal
da Bíblia.
2. Outras abordagens à Escritura
Se considerou o método histórico-crítico não só “indispensável”, mas
tam bém “realm ente im prescindível” para a interpretação apropriada da
Escritura, a Comissão Bíblica também reconheceu que esse método básico
podia ser aperfeiçoado e até, em alguns aspectos, corrigido, por outras abor­
dagens que foram defendidas mais recentemente. Entre os novos métodos
de análise literária, a Comissão escolheu para com entar a análise retórica,
a análise narrativa e a análise semiótica32. As duas prim eiras dessas abor­
29. zISS 26 (1893-1894) 269-292; (DH 3280-3294; E B §§ 81-134; B é c h a r d , SD, 37-61).
30. A S S 12 (1920) 385-422; (DH 3650-3654; EB §§ 440-495; B é c h a r d , SD, 81-111 [90, §
7], onde genera [...] literarum está mal traduzido como “tipos de literatura”, em vez de “gêneros
literários”).
31. Veja B é c h a r d , SD, 115-139 (128-129, § 20).
32. Essas abordagens são estudadas na seção 1, B do documento da Comissão, A Interpretação,
19-25; cf. JAF, Texto, 50-67.
99
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
dagens são aperfeiçoamentos da crítica literária da Bíblia que já fazia parte
do método histórico-crítico básico. Sua novidade encontra-se na aplicação
sistemática dessas abordagens à Escritura. Grande parte da Bíblia foi escrita
para persuadir os leitores a adotarem certo modo de vida religiosa e espi­
ritualidade, por isso não é surpreendente que elementos de retórica grega e
romana clássica encontrem-se na Bíblia, ao lado de seu modo semítico de
argumentação. Além disso, grande parte da Bíblia conta histórias e relata
acontecimentos a fim de apresentar a história do plano salvífico de Deus
e um a vigorosa descrição de sua liturgia e catequese, por isso não é sur­
preendente que novas formas de análise narrativa ajudem o entendimento
apropriado da mensagem bíblica. O estudo da trama, das personagens e do
sistema de valores de relatos bíblicos diferentes às vezes revela aspectos de
algumas passagens que foram negligenciadas no passado. A distinção entre o
“autor real” e o “leitor implícito” foi proveitosamente introduzida no estudo
de algumas passagens bíblicas.
Além desses métodos de análise, a Comissão também analisou algumas
abordagens da Bíblia baseadas na tradição. Entre elas estão as seguintes:
1) Abordagem canônica, que enfatiza a relação de cada texto bíblico com a
Bíblia como um todo, como norma para as crenças adotadas por uma comu­
nidade de fé. Dessa maneira, é possível perceber que o livro de Isaías seria
interpretado com algumas diferenças para judeus e cristãos que têm cânones
diferentes. 2) A abordagem por meio do recurso a tradições judaicas de inter­
pretação. Esta abordagem tem pertinência especial para o estudo do NT, pois
procura aplicar a escritos neotestamentários o que se aprende com o modo
judaico de interpretação agora encontrado nos escritos dos Manuscritos do
Mar Morto, nos targumin (traduções interpretativas do AT para o aramaico)
e em muitos escritos parabíblicos judaicos. 3) A abordagem orientada pela
história da recepção do texto, isto é, a forma como determinada passagem
foi usada em séculos subsequentes na teologia, na literatura, no asceticismo e
no misticismo. Na Alemanha esta abordagem chama-se Wirkungsgeschichte,
a “história dos efeitos” que determinado texto produz. É importante porque é
uma forma de estudar o texto à luz da tradição que ele criou.
Há também abordagens da Bíblia que se utilizam das ciências humanas:
4) abordagem sociológica; 5) abordagem por meio da antropologia cultural;
6) abordagem psicológica. Finalmente, há também abordagens contextuais
ou de defesa: a da 7) teologia da libertação; e a do 8) feminismo. A respeito
dessas abordagens mais novas é preciso notar que nenhuma delas é válida
como substituto do método histórico-crítico em si. Entretanto, elas foram e
100
Capítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
continuam a ser aperfeiçoamentos valiosos desse método básico e, às vezes,
até oferecem correções proveitosas. Em cada um dos casos, a Comissão ava­
liou as vantagens da abordagem.
Antes de abandonar a questão de outras abordagens, preciso mencionar
a leitura fundamentalista da Bíblia. A Comissão critica bastante o fundamentalismo. Primeiro, a Comissão separou essa leitura literalista da Bíblia dos
métodos e abordagens nos quais ela encontrou valor33. Segundo, o problema
básico com esse modo de ler a Bíblia é um a ideologia que não é, em si, bí­
blica, e não se origina da Bíblia. Não raro, ela traz à leitura da Bíblia uma
pressuposição de ditado bíblico e um modo de entender que prescinde, ou
deixa de lidar com os gêneros ou formas literárias nas quais a Palavra de Deus
foi formulada por seres humanos há muito tempo. Como cristãos, precisamos
nos interessar pelo sentido literal da Palavra divina escrita, mas isso é uma
coisa bem diferente de sua leitura literalista, como se ela fosse ditada pelo
Espírito Santo34.
3. Os sentidos da Escritura
Já mencionei que o objetivo do método histórico-crítico apropriadamen­
te orientado de interpretar a Bíblia é sempre verificar seu significado literal
antigo: o que autor humano procurou expressar quando transmitiu à comuni­
dade de fé a mensagem inspirada por Deus. Isso levanta a questão quanto ao
significado real da Escritura, ou seus sentidos, e a Comissão também queria
proporcionar alguma diretriz nesse assunto, tomando sucessivamente o sentido
literal, o sentido espiritual e o sentido pleno da Escritura. Todos esses sentidos
serão examinados no capítulo 6.
33. V eja/l interpretação, 40-42; cf. JAF, Texto, 101-108. A tradução inglesa intitula a seção 1-F
“Fundamentalist Interpretation”, [a brasileira, “Leitura fundamentalista”] e a versão francesa original
tem o título “Lecture fondamentaliste”, título que foi escolhido expressamente pela Comissão, a fim
de não favorecer esse modo de “leitura” com a posição de método ou abordagem.
34. Veja D. B e r g a n t , Fundamentalism and the Biblical Commission, Chicago Studies 34 (1995)
209-221; E. D i s c h e r l , Pluralitãt ja — Fundamentalismus nein! Vom Umgang mit der Bibel
in “postmodernen” Zeiten, B ibel und Liturgie 70 (1997) 208-212; W. G r o s s , Rom gegen den
Fundamentalismus, Theologische Q uartalschrift 174 (1994) 232-234; S. B. M a r r o w , The Words
o f Jesus; A Catholic Response to Fundamentalism, N ew York, Paulist, 1979; A. S c h e n k e r , Der
biblische Fundamentalismus und die katolische Kirche, Internationale K atholische Zeitschrift/
Com m unio 30 (2001) 507-512; J. C. de S m i d t , Fundamentalism — Historical Survey, Scriptura
64 (1998) 37-49.
101
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
4. A atualização do sentido literal da Escritura
O que é novo no documento de 1993 da Comissão Bíblica é a ênfase dada
à “atualização” do sentido literal da Escritura. Como eu já disse, o sentido
literal é o objetivo de uma interpretação histórico-crítica da Bíblia orientada
apropriadamente. Por “orientada apropriadamente” quero dizer o uso desse
método com a pressuposição da fé cristã que se está interpretando a Palavra
de Deus escrita, expressa em linguagem humana antiga, com mensagem não
só para o povo antigo, mas também para os cristãos de hoje. Como os Padres
do Vaticano II analisaram bem detalhadamente35, essa Palavra de Deus “não
é palavra morta, presa ao passado, mas palavra viva, dirigida diretamente ao
homem de hoje”36.
Embora a atualização seja apenas um aspecto do sentido literal, a Co­
missão não a tratou sob o sentido da Escritura (é analisada na parte IV, “A
interpretação da Bíblia na vida da Igreja”)37. Diz respeito a como aplicar o
sentido literal à vida dos cristãos de hoje. Envolve a releitura da Escritura
“à luz de circunstâncias novas” e a aplicação dela “à situação presente do
Povo de Deus”38. Entretanto, seria um erro pensar que a Comissão fala da
“prioridade da atualização”39. A Comissão não destacou a atualização nem
lhe deu prioridade, porque a atualização é apenas uma construção sobre o
sentido literal apropriadamente determinado. Expande-o homogeneamente
para mostrar como o que se quis dizer ainda tem sentido para hoje. Qualquer
sentido atualizado que não preserve essa ligação homogênea com o que se
quis dizer torna-se, com efeito, um sentido irrelevante impingido à Palavra
de Deus. Torna-se, assim, eisegese, o contrário de exegese, ou um sentido
acomodado (veja o cap. 6).
Quando o sentido literal dos escritos antigos inspirados da Bíblia é atuali­
zado apropriadamente, a Palavra de Deus fala ao cristão de hoje. Produz não
apenas um renovado interesse na Bíblia, mas uma espécie de espiritualidade
35. Vaticano II, D ei Verbum (Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina) 12; Anexo a A
interpretação da Bíblia na Igreja, São Paulo, Loyola, 1994 ( B é c h a r d , SD, 28, § 21).
36. Essas palavras não foram tiradas de D ei Verbum, mas são minha tradução do que L. B o u y e r
escreveu em Liturgie et exégèse spirituelle, La M aison-D ieu 7 (1946) 27-50 (30). Ele as usou a
respeito do que queria chamar (erroneamente) de sentido “espiritual”; expressam antes o próprio
sentido literal e sua atualização.
37. A Interpretação, 74-77; cf. JAF, Texto, 170-176.
3 8 . A Interpretação, 7 4 ; cf. JAF, Texto, 1 7 1 . Veja também M . D u m a i s , L’ Actualisation de 1’Ecriture;
Fondements et procédures, Science et E sprit 5 1 (1999) 2 7 - 4 7 .
39. Como P. W il l i a m s o n afirmou (erroneamente) em um artigo, Actualization; A N ew Emphasis
in Catholic Scripture Study, A m erica 172, 20 May 1995, 17-19 (19).
102
Capítulo 5 - A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja
que é fundamental para a vida cristã. Toda espiritualidade cristã deve ter base
bíblica, fundamentada na Palavra de Deus escrita, não importa que forma
secundária ela também assuma40. A razão básica para essa espiritualidade é
ser a Bíblia o livro da Igreja.
Conclusão
Ao concluir, retorno à pergunta com a qual comecei: Whose Bible is It
A nyw ayl [Afinal de contas de quem é a Bíblia?]. O agnóstico Davies acha
que tem o mesmo direito de interpretar a Bíblia que qualquer outra pessoa,
direito que, a princípio, estamos dispostos a conceder. Contudo, até o intérprete
não confessional agnóstico precisa perceber que não haveria nenhuma Bíblia
para ele interpretar, se não fosse pelas comunidades de fé, o povo de Israel
de antigamente e os cristãos primitivos. Não haveria nenhuma “Bíblia” para
essa “erudição não confessional” .
Além disso, quando tenta nos dizer que os autores dos escritos que se
encontram em nossas várias “bíblias” não buscavam nos fazer reverenciar
Javé ou Eloim como o Deus do Universo, Davies compreende inteiramente
mal a Bíblia. Ele protesta que tem tanto instinto para o sentido desses escritos
quanto os que alegam afinidade religiosa com eles, mas ao fazer esse protesto
não percebe a pertinência desses escritos para sua vida. E essa, no final, a
razão de ter a Comissão Bíblica, no documento de 1993, insistido tanto na
“Interpretação da Bíblia” na Igreja.
40. Como exemplo de como a Epístola aos Romanos pode ser usada com o fonte de espirituali­
dade cristã genuina, veja J. A. F i t z m y e r , Spirilual Exercises B ased on Paul s Epistle to the Romans,
Grand Rapids, MI, Eerdmans, 2004.
103
C ap ítu lo 6
Os sentidos da Escritura
O significado de um a passagem da Escritura é assunto de discussão
desde o surgimento do NT. Os autores dos livros desse Testamento muitas
vezes citavam passagens do AT, utilizando-as de diversas m aneiras1. Essa
interpretação da Escritura tornou-se problemática e tem sido muitas vezes
discutida e debatida. Na verdade, algumas das maneiras nas quais os autores
neotestam entários usaram os textos veterotestam entários deram origem a
interpretação semelhante por autores cristãos mais tardios que os imitaram.
Lucas, por exemplo, registra no final do evangelho Cristo ressuscitado di­
zendo: “Tudo isso foi escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e
nos Salmos” (Lc 24,44). Desse modo de pensar surgiu a leitura global cristã
do AT como praeparatio evangelica2. Um autor mais tardio, que foi influen­
ciado pelos evangelhos canônicos, o autor do Evangelho segundo Tomè, fez
eco a esse modo de pensar, quando escreveu: “ Seus discípulos lhe disseram:
‘Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos eles falaram a teu respeito’”
1. Veja J. A. F it z m y e r , The Use o f Explicit Old Testament Quotations in Qumran Literature and
in the New Testament, E SB N T ou SB N T 3-58, onde se encontra a análise de diversas maneiras de
interpretar o AT.
2. Veja também Lc 24,25-27; At 13,29; Jo 12,16; 20,9.
105
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
(§ 52)3. Entretanto, o problema é: Em que sentido o AT, ou mesmo partes
dele, falou sobre Jesus, o Messias ou Cristo?4 Propunham-se essas declarações
neotestamentárias e mais tardias entender, em seu sentido literal, passagens
veterotestamentárias como referentes a Cristo? Onde encontramos essas pas­
sagens veterotestamentárias? Essas perguntas deram origem à possibilidade
de algum outro sentido do AT.
Na história da teologia cristã surgiram, consequentemente, diferentes
sentidos da Escritura, dois dos quais eram os mais proeminentes: o sentido
literal e o sentido espiritual5. Com o tempo, também apareceram outros, como
o sentido pleno e o sentido acomodado. Entretanto, cada um dos sentidos
desenvolveu problemas para seu entendimento e é a esses que vou dedicar o
resto de minhas observações em quatro itens: 1) o sentido literal da Escritura;
2) o sentido espiritual da Escritura; 3) o sentido pleno da Escritura; e 4) o
sentido acomodado da Escritura.
1. O sentido literal da Escritura
Uma definição moderna comum do sentido literal da Escritura diz assim:
“O sentido que o autor humano pretendia diretamente e que as palavras escri­
tas transmitiram”6. Três palavras são importantes nessa definição: o advérbio
“diretamente”, a frase “o autor humano” e a oração “que as palavras escritas
transmitiram” . “Diretamente” é usado para impedir que o sentido se estenda
ao emprego mais tardio das palavras, em uma citação por algum outro autor,
ou em sentido pleno, ou em sentido canônico. “O autor hum ano” tem de
ser entendido como o último responsável pela forma final das palavras em
determinada declaração ou narrativa, quer ele mesmo a tenha escrito (como
fez Lucas), quer a tenha ditado (como Paulo fez com frequência), ou possi­
velmente usado um secretário ou ghost writer (escritor cujos trabalhos são
assinados por outrem, como em 1 Pedro), ou em nome de quem um discípulo
compôs alguma coisa (como nas Epístolas Pastorais). Na antiguidade também
3. Veja J. K. E l l io t , The A pocryphal New Testament; A Collection o f Apocryphal Christian
Literature in an English Translation, Oxford, Clarendon, 1993, 142.
4. Veja A. T. Hanson, Jesus Christ in the O ld Testament, London, SPCK, 1965; R. H. J u d d , Jesus
Christ in the O ld Testament, Oregon, IL, National Bible Institution, 1928.
5. Veja também M. H a s i t s c h k a , Wõrtlicher und geistlicher Sinn ser Schrift, B ibel und Liturgie
70, 1997, 152-155.
6. R. E . B r o w n , Hermeneutics, NJBC, 1148, § 9; também seu livro A n Introduction to the New
Testament, ABRL, New York, Doubleday, 1997, 35-36 [Introdução ao Novo Testamento, São Paulo,
Paulinas],
106
Capítulo 6 - O s sentidos da Escritura
se entendia “autor” como aquele a quem era atribuída uma tradição literária,
como no caso do Pentateuco, muitas vezes chamado de a Lei de Moisés. Fi­
nalmente, “que as palavras escritas transmitiram” designa a mensagem que as
palavras usadas transmitiram aos primeiros destinatários; assim, dá prioridade
ao que realmente foi escrito.
Esse entendimento do sentido literal da Escritura encontra-se na encíclica
Divino afflante Spiritu, de Pio XII: “Tenham os intérpretes bem presente que
o seu maior cuidado deve ser distinguir claramente e precisar qual seja o
sentido literal das palavras bíblicas [...] para tirar a limpo o pensamento do
autor”7. A mesma ideia encontra-se antes na clássica discussão de Tomás de
Aquino de que “o sentido literal é aquele que o autor pretendia”8. Tomás
também o chamou de sensus historicus e subdividiu-o em “história, etiologia,
analogia” (historia, aetiologia, analogia), distinção que não cria problemas,
embora hoje se hesite em concordar com alguns dos exemplos da Escritura
que ele citou9. Ele também reconheceu corretamente que “o sentido alegórico
está contido no literal; pois alguma coisa é descrita apropriadamente por
palavras e alguma coisa figurativamente, e o sentido literal é (então) não a
figura, mas o que é figurado” 10. Isso significa que, se Cristo é chamado
“o Leão de Judá” ou “o Cordeiro de Deus” (Jo 1,36), ele não é um animal,
um leão ou um cordeiro, mas aquilo que “Leão de Judá” ou “Cordeiro de
Deus” representavam ou simbolizavam. Do mesmo modo, o sentido literal
inclui o imperativo: “Tende os rins cingidos” (Lc 12,35), expressão metafórica
para a necessidade do discípulo de presteza para ação. Tomás dedicou todo
um capítulo ao uso de metáforas na Escritura". Entretanto, esse entendimento
do sentido literal encontra muitos problemas, que é preciso analisar.
O primeiro problema surge quando se examina a definição do sentido
literal dada no documento de 1993 da Comissão Bíblica, A interpretação da
Bíblia na Igreja, em que se encontra um a ligeira diferença: “O sentido literal
da Escritura é aquele que foi expresso diretamente pelos autores humanos
inspirados” 12. A Comissão tomou o cuidado de não confundir o sentido literal
7. D aS 15, São Paulo, Paulus, 1999, 226, Documentos da Igreja, 5, Documentos de Pio XII;
A A S 35 (1943) 310 (EB § 550; B é c h a r d , SD, 125, § 15).
8. Sum m a Theologiae I q. 1, a. 10 (“Sensus literalis est, quem auctor intendit”); cf. Quaestiones
Quodlibetales VII q. 16, a. 14-16.
9. S. T. Iq . 1. a. 1 0 a d 2 .
10. A. L Iq . 1. a. 10 ad 3.
U .S . 7'. I q. 1. a. 9.
12. A Interpretação, 48; cf. JAF, Texto, 120-121.
107
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
com um sentido “literalista” , entendido de qualquer maneira fundamentalista,
e insistiu no significado literal como aquele transmitido pela forma literária
usada pelos autores “segundo as convenções literárias da época” e até admitiu
que um “relato pode não pertencer ao gênero histórico, mas ser uma obra
de imaginação” 13. Esses esclarecimentos são importantes hoje, mas o que é
notável é a ausência nessa identificação de qualquer referência à intenção
ou ao pensamento do autor humano. A ênfase está antes naquilo que “foi
expresso diretamente” 14.
Por trás dessa diferença na definição está a convicção muitas vezes expressa
na crítica literária de que a intenção do autor é imaterial ou irrelevante para o
significado de uma composição literária. Isso foi chamado de a “falácia inten­
cional” ou a “falácia de intenção autoral”, porque afirma que uma composição
pode assumir um significado muito diferente daquele que o autor pretendia.
Ele pode tirar um significado do contexto no qual é usado ou da perspectiva
do leitor15. Na verdade, a Comissão não elaborou esse aspecto, nem mesmo
se manifestou sobre o assunto, mas simplesmente restringiu sua definição ao
que “foi expresso diretamente”, que parecia transmitir de forma suficiente o
que sempre se quis dizer com a definição do sentido literal.
Entretanto, essa diferença na definição exige pelo menos três comentários.
Primeiro, já que estamos falando a respeito da Bíblia, e portanto da literatura
que foi composta por diferentes autores ou editores durante um longo período,
pelo menos mil anos para o período entre o AT e o NT, e que adquiriu forma
definitiva há pelo menos mil e novecentos anos, não é fácil determinar “o
pensamento do autor” . Em muitos casos, “o autor” não é conhecido e até o
tempo da composição está fora de nosso alcance.
Segundo, uma análise correta daquilo que “foi expresso diretamente pelos
autores humanos inspirados”, como a Comissão exprimiu, em muitos casos
realmente produz alguma coisa da intenção do autor. Pode-se avaliar parte do
que o autor pretendia pelo que ele escreveu, mesmo que isso não corresponda
13. Ibid.
14. “Diretamente” tem de ser entendido como está explicado no primeiro parágrafo desta seção.
O cardeal Avery Dulles sugere que “diretamente” significa “intencionalmente” ou “conscientemente”
(The Interpretation o f the Bible in the Church; A Theolgical Appraisal, in Kirche sein; Nachkonziliare
Theologie im Dienst der Kirchenreform; Für Hermann Josef Pottmeyer, Freiburg im B., Herder,
1994, 29-37 (31). Esse significado de “diretamente” não estava no pensamento dos membros da
Comissão, dos quais eu era um; de fato, foi excluído.
15. Veja, por exemplo, N. W a t s o n , Authorial Intention; Suspect Concept for Bible Scholarship,
Australian Biblical R eview 15, 1987, 6-13.
108
Capítulo 6 - Os sentidos da Escritura
inteiramente a sua intenção. É o que acho ser o significado do que Tomás
de Aquino e Pio XII deram a entender. É o objeto apropriado da exegese e
a meta de uma interpretação histórico-crítica apropriadamente orientada da
Escritura.
Terceiro, embora tenhamos de lidar com a posição dos novos críticos lite­
rários, que insistem que um poema ou outra composição literária adquire exis­
tência autônoma e adquire um significado que o poeta ou autor não imaginou,
se aplicada à Bíblia sem nenhuma restrição, essa visão da literatura cria um
grande problema teológico. É possível concordar que algumas das passagens
poéticas do AT — por exemplo, alguns dos Salmos — adquiriram esse sentido
independente, por exemplo depois de serem associadas com outras ao se torna­
rem parte do Saltério. Entretanto, seria difícil sustentar essa opinião para todas
as passagens da Bíblia. Se um texto bíblico pode assumir um sentido diferente
do expresso originalmente — e, acrescento, pretendido originalmente — , então
como podemos dizer que a Bíblia ainda é a fonte por excelência da revelação
divina, o meio que Deus escolheu para transmitir a gerações após gerações
de seu povo o que seus planos, suas instruções e sua vontade a respeito deles
realmente são? Essa característica da Palavra de Deus escrita exige que haja
uma homogeneidade básica entre o que ela significava e o que ela significa,
entre o que o autor humano inspirado procurou expressar e o que ele realmen­
te expressou e o que dizem as palavras assim lidas na Igreja de hoje. Esse,
então, é o grande problema que o sentido literal da Escritura formula hoje e
um problema com o qual os teólogos e exegetas têm de lidar.
Outro problema relacionado com o sentido literal é o que a Comissão
Bíblica chama de “o aspecto dinâm ico” da m ensagem bíblica, pois essa
mensagem não deve limitar-se sempre “às circunstâncias históricas” de sua
composição. Por exemplo, em um salmo real, o salmista refere-se à entronização de determinado rei, mas o que ele expressa considera a instituição
régia como um todo, como ela realmente era, ou como era intenção de Deus
que ela fosse em Israel. Dessa maneira, o “texto ultrapassava a instituição real
tal como se manifestara na história” 16. Esse aspecto dinâmico podia levar a
um sentido espiritual (quando os Salmos podiam ser aplicados a Cristo [veja
abaixo], mas mesmo fora dessa sua dimensão esse aspecto é uma qualidade
do sentido literal, porque expressa a abertura do texto a uma extensão mais
ampla de seu significado. Esse, então, é um aspecto do sentido literal, do qual
o intérprete tem de estar consciente.
16. A Interpretação, 48; cf. JAF, Texto, 122-123.
109
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
O texto bíblico tem apenas um único sentido literal? A Comissão respon­
de: “Geralmente sim; mas não se trata aqui de um princípio absoluto” 17. Uma
exceção óbvia são passagens poéticas da Bíblia, em que o autor usa palavras
que têm uma referência polivalente; ou algumas passagens do quarto evan­
gelho em que certas declarações têm essa ambivalência. Entretanto, não se
encontra em toda parte da Bíblia uma “pluralidade de significados” e assim é
preciso ser cauteloso a esse respeito. A Comissão cita um exemplo de duplo
significado no evangelho joanino que exige algum comentário. A passagem
joanina à qual ela se refere é João 11,47-52 que diz o que segue:
#
47Então os sacerdotes-chefes e os fariseus reuniram o sinédrio e disseram: “0
que vamos fazer? Este homem está fazendo muitos milagres. 48Se o deixarmos
em paz todos acreditarão nele e os romanos virão e tomarão nossa terra e nossa
nação”. 49Caifás, que era sumo sacerdote aquele ano, lhes disse: “Vós não sabeis nada; soe não percebeis que é melhor para vós que um só homem morra
em vez do povo, para que a nação toda não pereça”. 51Ele não disse isso por
si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus ia
morrer pela nação 52e não só pela nação, mas também para reunir os filhos de
Deus dispersos.
Assim a Comissão comenta essa passagem:
Mesmo quando uma expressão humana parece ter um único significado, a ins­
piração divina pode guiar a expressão de maneira a produzir uma ambivalência.
Este é o caso da palavra de Caifás em João 11,50. Ela exprime ao mesmo tempo
um cálculo político imoral e uma revelação divina. Estes dois aspectos pertencem
um e outro ao sentido literal, pois são os dois evidenciados pelo contexto18.
Entretanto, o que a Comissão não deixa claro é que o segundo significado
das palavras de Caifás, isto é, sua profecia, não está evidente somente pelo
registro inspirado de suas palavras pelo evangelista no v. 50. O caráter pro­
fético da expressão de Caifás origina-se, mais exatamente, da explicação do
evangelista apresentada nos vv. 51-52: “Ele não disse isso por si mesmo, mas,
sendo o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus ia m orrer pela nação
e não só pela nação, mas também para reunir os filhos de Deus dispersos” .
Teria o leitor chegado a esse entendimento das palavras de Caifás no v. 50, se
não fosse a explicação acrescentada pelo evangelista? De qualquer maneira, a
17. Ibid.; cf. JAF, Texto, 122.
18. Ibid.
110
Capítulo 6 - O s sentidos da Escritura
Comissão reconheceu que esse caso era “extremo” e não dava nenhuma ga­
rantia de que outros textos bíblicos tenham mais de um sentido literal. Não
é nenhuma garantia de que todos — ou mesmo outros — os textos bíblicos
tenham mais de um significado literal. É preciso insistir nisso, embora ainda
seja possível contar com o aspecto dinâmico de alguns textos, em especial
textos veterotestamentários, quando eles são submetidos à releitura no NT.
O sentido literal é a meta de uma interpretação histórico-crítica apropria­
damente orientada da Escritura. Por “apropriadamente orientada” quero dizer
o uso desse método com a pressuposição da fé cristã de que estamos interpre­
tando a Palavra de Deus escrita, expressa em linguagem humana antiga, com
mensagem não só para o povo antigo, mas também para os cristãos de hoje.
2. O sentido espiritual da Escritura
Os problemas que o sentido espiritual da Escritura levanta hoje são di­
versos e múltiplos, mas originam-se quase todos do fato de, quando usado a
respeito do significado de uma passagem bíblica, o termo “espiritual” ter se
tom ado palavra ambígua. Sua conotação sempre depende de quem a usa e é
preciso separar seus matizes.
Primeiro, empregado por Pio XII na encíclica de 1943, Divino afflante
Spiritu, e pela Comissão Bíblica no documento de 1993, “sentido espiritual”
tem seu significado tradicional, que é o sentido cristológico de passagens veterotestamentárias19. O sentido espiritual é “o sentido expresso pelos textos
bíblicos, logo que são lidos sob influência do Espírito Santo, no contexto do
mistério pascal do Cristo e da vida nova que dele resulta. [...] O Novo Tes­
tamento reconhece nele a realização das Escrituras”20. Assim, este sentido da
Escritura reconhece um significado do AT ao qual autores neotestamentários
muitas vezes aludiram21. Por exemplo, quando Paulo escreve que o que foi
dito a respeito da fé de Abraão em Gênesis 15,6 (LXX) foi-lhe creditado
como justificação: “As palavras ‘foi-lhe creditado’ foram escritas não só por
causa de Abraão, mas também por nossa causa” (Rm 4,23-24), ele pensava no
19. Veja D aS 25-26, São Paulo, Paulus, 1999, 226-228, Documentos da Igreja, 5, Documentos
de Pio XII (EB § 552; B é c h a r d , SD, 125-126, §16).
20. A Interpretação, 50; cf. JAF, Texto, 127-128.
21. Veja também P. G r e l o t , Sens chrétien de VAncien Testament, Tournai, Desclée, 1962, 442499; P. B e a u c h a m p , Lecture christique de 1’AncienTestament, Bib 81 (2000) 105-115; V B a l a g u e r ,
El sentido literal y el sentido espiritual de la Sagrada Escritura, Scripta theologica, Pamplona, 36
(2004) 509-563.
111
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
significado espiritual dessa passagem veterotestamentária. Ou quando Lucas
descreve as palavras do Cristo ressuscitado: “Era preciso que se cumprisse tudo
o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”
(Lc 24,44), ele interpreta o AT em um sentido espiritual global. Do mesmo
modo, a epístola aos Hebreus dá um sentido espiritual, quando entende que
o Salmo 2,7 é a respeito de Jesus como Filho de Deus (Hb 1,5) e o Salmo
8,5-7 é a respeito de “Jesus ‘coroado de glória e de honra’ [...] por um pouco
de tempo inferior aos anjos” (Hb 2,5-9).
Esse sentido espiritual reconhece assim uma unidade na Palavra de Deus
escrita, isto é, no AT e no NT juntos, que o intérprete cristão tem de respeitar.
Reconhece isso como unidade teológica que a Igreja mantém viva pela tradi­
ção viva, unidade que respeita os dois Testamentos e não tenta confundi-los.
Busca, antes, conceder-lhes sua função histórica apropriada e sua pertinência
para o povo de Deus22. Reconhece também que temas veterotestamentários são
enriquecidos por seus complementos neotestamentários e são transformados
progressivamente pelo impulso neotestamentário.
Esse “sentido espiritual” é chamado tradicional porque remonta a Orígenes
que certamente o popularizou, mesmo sem ter sido o primeiro a classificá-lo
assim. Com efeito, ele afirmava que toda a Escritura (referindo-se ao AT) tinha
um sentido espiritual (pneumatikon), mas nem toda ela tinha um sentido mate­
rial (sõmatikon)2i. Orígenes insistiu nesse sentido da Escritura, especialmente
em seu debate com intérpretes judeus do AT. Esse significado tradicional é
também a motivação para o uso do AT em grande parte da liturgia cristã. Esse
significado cristológico do AT não é propriamente problemático, embora seja
preciso reconhecer que é um sentido adicional isto é, acrescentado ao sentido
literal do AT. E, portanto, um sentido mais que literal do AT.
Esse entendimento do sentido espiritual do AT não significa que o intér­
prete cristão moderno aceite como válido todos os significados fantasiosos,
figurativos, alegóricos e tipológicos atribuídos ao AT por autores patrísticos
(como Orígenes e a escola alexandrina ou Ambrósio e Agostinho). O que é
válido na interpretação patrística é a continuação do significado cristológico
do AT dada por autores neotestamentários inspirados, já que seu objetivo era
22. Veja também L . Bouyer, The M eaning o f Sacred Scripture, Notre Dame, IN, University o f
Notre Dame, 1958, 227-228; A . D u l l e s , The Craft o fT heology; From Symbol to System, N e w
York, Crossroad, 1992, 69-85 (73-76).
23. PeriArchòn 4,3,5 (C C S 22,331; S C 268,362). Cf. H. de L u b a c\H istoireetE sprit; Ulntelligence
de FEcriture d ’après Origène, Paris Aubier, 1950, 92-194; H. C r o u z e l , Origen, San Francisco, CA,
Harper & Row, 1989, 61-84.
112
Capítulo 6 - O s sentidos da Escritura
unir os dois Testamentos e estender o significado profundo e real do texto
bíblico à luz de toda a economia da salvação24. Como disse a Comissão
Bíblica: “Os Padres [nos] ensinam a ler teologicamente a Bíblia no seio de
uma Tradição viva com um autêntico espírito cristão”25. A liberdade patrística
para tirar uma frase de seu contexto e produzir os multifários significados
simbólicos e alegóricos, que os Padres lhe dão às vezes, é outro assunto. Eles
não são da essência do sentido espiritual e correm “o risco de desorientar o
homem moderno”26.
A esse entendimento tradicional do sentido espiritual parece que se teria
de relegar uma declaração enigmática da Comissão, que escreveu: “Já no
Antigo Testamento, os textos têm em vários casos como sentido literal um
sentido religioso e espiritual. A fé cristã reconhece aqui uma relação antecipada
com a vida nova trazida pelo Cristo”27. O que não está claro nessa declaração
é, antes de mais nada, como essa “relação antecipada” difere do sentido cristológico tradicional do AT. A meu ver, isso é simplesmente dizer a mesma
coisa de um modo diferente, pois a “relação antecipada” é realmente algu­
ma coisa acrescentada ao sentido literal do texto veterotestamentário, por
causa da “vida nova trazida pelo Cristo”.
Além do mais, esse entendimento do sentido espiritual nada diz sobre o
que pode ser um sentido “espiritual” das passagens neotestamentárias.
A Comissão também declarou que, “contrariamente a uma opinião corrente,
não há necessariamente distinção entre esses dois sentidos [literal e espiritual],
Quando um texto bíblico se refere diretamente ao mistério pascal de Cristo
ou à vida nova que resulta dele, seu sentido literal é um sentido espiritual.
Esse é o caso habitual no Novo Testamento”28. Quer dizer, então, que todo
versículo do NT tem não só um sentido literal, mas também um sentido es­
piritual, ou que o sentido literal de cada versículo já é seu sentido espiritual,
tendo significado cristológico? Por que, então, distingui-los? Admitindo por
enquanto que isso é verdade, ainda há outra maneira na qual o sentido espi­
ritual pode ser entendido.
O próprio AT, além de sua conotação cristológica adicional e daquela
“relação antecipada”, não tem um sentido espiritual? Outra maneira de fazer
24.
25.
26.
27.
28.
Veja também H. de L u b a c , The Sources o f Revelation, New York, Herder and Herder, 1968, 13.
A Interpretação, 62; cf. JAF, Texto, 150.
Ibid.
A Interpretação, 50; cf. JAF, Texto, 128-129.
Ibid.; cf. JAF, Texto, 127.
113
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
esta pergunta pode ser formulada em termos dos quatro sentidos medievais
da Escritura. O dístico do dominicano Agostinho da Dácia do século XIII é
citado pela Comissão Bíblica:
Littera gesta docet, quid credas allegoria,
moralis quid agas, quid speres anagogia19.
Segundo essa opinião medieval, littera gesta docet (a letra ensina fatos),
quid credas allegoria (o [sentido] alegórico, o que se deve crer), moralis quid
agas (o [sentido] moral, o que se deve fazer), quid speres anagogia (o [sentido]
anagógico, o que se deve esperar). Ao interpretar o dístico, Tomás de Aquino
disse que o primeiro significado, pelo qual palavras significam coisas, per­
tence ao primeiro sentido, que é o significado histórico ou literal30. A littera
expressava o significado histórico que o autor humano queria transmitir. Os
outros três eram considerados subdivisões do sentido espiritual.
Esse dístico medieval, que muitos citam com aprovação, é problemático
porque afirma que a littera ou o “sentido literal” nada tem a ver com fé ou
com o que se deve crer. Surpreendentemente, diz, mais exatamente, que a fé
cristã deve ser governada pelo significado alegórico da Escritura: quid credas
allegoria!
Além do mais, parece que esse entendimento de “sentido literal” signifi­
ca que, nos muitos séculos antes da vinda de Jesus de Nazaré, as Escrituras
hebraicas não tinham nenhum significado espiritual. E que a Palavra de Deus
escrita na Lei, nos Profetas e nos Escritos tinha apenas um sentido “histórico” ,
como os medievais entendiam a palavra. Paulo prontamente admitiu que “aos
judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3,2). Mas será que faltava
a esses oráculos, em seu significado literal, o alimento para a vida espiritual
do Povo Escolhido de antigamente?
Quando refletimos nesse aspecto das Escrituras hebraicas, percebemos
como “não há necessariamente distinção entre esses dois sentidos [literal e
espiritual]”31. Na verdade, nesse caso o sentido literal pode bem ser o espiritual.
Por exemplo, na Shema‘ “Escuta, Israel! O S e n h o r é nosso Deus, o S e n h o r
29. Como citado em Nicolau de Lira, Postilla in Gal. 4.3, a última sentença diz, mais exata­
mente, quo tendas anagogia. O dístico costuma ser atribuído a Agostinho da Dácia, OP, que era de
origem escandinava (+ 1282), mas apenas formulou o que foi discernido no tempo de Agostinho
de Hipona.
30. S. T. I q. 1. a. 10: “Illa ergo prima significatio , qua voces significant res, pertinent ad primum
sensum, qui est sensus historicaus vel literalis”.
31. A Interpretação, 50; JAF, Texto, 127.
114
Capítulo 6 - Os sentidos da Escritura
somente!” (Dt 6,4), o sentido literal dessa proposição tem imediatamente di­
mensão espiritual. Além disso, não é um sentido espiritual apenas para o povo
judeu que com ele alimentou sua vida religiosa nos séculos antes de Cristo,
mas ainda é verdade para os judeus de hoje que procuram viver sua fé ances­
tral. E, de mais a mais, uma verdade espiritual também para os cristãos, para
quem o AT faz parte da Palavra de Deus escrita. Também para os cristãos, o
sentido literal da Shema ‘ é, ele mesmo, o sentido espiritual daquelas palavras,
mesmo à parte de qualquer referência a Cristo32.
O mesmo tem de ser dito da dimensão “espiritual” do significado literal
do Decálogo (Ex 20,1-17; Dt 5,6-21), e dos num erosos pronunciamentos
proféticos a respeito dos cuidados das viúvas e dos órfãos, dos estrangeiros e
dos pobres (Is 1,17; 10,2; Jr 22,3; Zc 7,10; Ml 3,5). Essas e outras diretrizes
semelhantes no AT ainda se destinam a guiar os cristãos em sua vida religiosa,
em sua relação com o Senhor do universo. O impacto desse ensinamento veterotestamentário não é governado unicamente por littera gesta docet, mas antes
por moralis quid agas, pelo sentido “moral”, como os medievais entendiam a
palavra. Quando um cristão se volta hoje para o Saltério e reza: “ O S e n h o r
é meu pastor” (SI 23,1) isso tem significado cristológico se entendermos
“Senhor” no sentido neotestamentário de Kyrios usado a respeito de Cristo
ressuscitado. Mas o cristão poderia também dirigir essa oração ao “ S e n h o r ”
no sentido do Deus do AT, ou Deus Pai, e o sentido literal da metáfora usada
naquele salmo alimentaria a vida religiosa e espiritual desse cristão, tanto
quanto alimentaria a de um judeu moderno devoto que assim rezasse.
Essa maneira na qual acabei de usar a expressão “sentido espiritual” tal­
vez não deva ser assim classificada. Tentei apresentar as razões pelas quais
a empreguei, o que justifica seu uso. Entretanto, talvez alguém discorde e
diga que o que descrevi nada mais é que o “sentido literal” dessas passagens
veterotestamentárias e que alguma outra expressão deve ser empregada para
ressaltar sua importância, alguma coisa como a importância “religiosa” da­
quilo que foi expresso literalmente. Pode ser verdade, mas na realidade são
as conotações dos sentidos medievais que criam o problema, quando littera é
colocado contra allegoria e moralis. Essa maneira de usar “sentido espiritual”
não recebe muita atenção no documento de 1993 da Comissão Bíblica, além
32.
Paulo escreveu certa vez que a inteligência do povo judeu se “obscureceu, até o dia de hoje,
quando leem a antiga aliança, o véu não é retirado; só em Cristo ele é abolido” (2Cor 3,14). Esse,
já se vê, é um modo cristológico de ler Moisés. “Só em Cristo” é o significado espiritual (cristão)
que Paulo deu às palavras de Moisés.
115
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
da declaração não muito clara sobre não haver “necessariamente distinção
entre esses dois sentidos”.
Finalmente, o cardeal Dulles admitiu que
esse esforço [da Comissão] para apresentar os sentidos da Escritura evocará mais
discussão. As distinções não são tão claras quanto seria de se esperar. Os três
significados [literal, espiritual e pleno] realmente dividem-se em dois, já que
o sentido espiritual é ou o mesmo que o literal, no caso de pretender o autor
inspirado referir-se a Cristo e à vida cristã, ou então é o mesmo que o sentido
“pleno”, no caso de não ter sido pretendida essa referência. Entre os dois sen­
tidos restantes, a distinção entre o sentido literal e o sentido pleno não chega a
ser compreensível. Em sua explicação do sentido literal a Pontifícia Comissão
Bíblica chama a atenção para o “aspecto dinâmico” de muitos textos bíblicos,
que estão “desde o início abertos a desenvolvimentos ulteriores [...] mais ou
menos previsíveis” (80).... Em vista desse entendimento dinâmico do sentido
literal, não é fácil distinguir entre o sentido literal e o sentido pleno33.
É fácil concordar com a avaliação de Dulles a esse respeito, m as o
problema pode não ser unicamente com o documento de 1993 da Comissão
Bíblica, mas com a maneira na qual a questão dos sentidos da Escritura foi
discutida até agora. Foi por isso que falei do sentido “espiritual” como palavra
ambígua. Tenho esperança de que o que expus acima não ofusque ainda mais
o assunto. A análise de Dulles criou a ideia do sentido pleno da Escritura ao
qual me volto agora.
33.
D u l l e s , The Interpretation (n. 14 acima), 31-32. Dulles também acha difícil aceitar a visão
que a Comissão tem da interpretação tridentina de Romanos 5,12 no sentido de o pecado original
como exemplo adequado do sensus plenior. Para ele, “a linguagem do Concilio parece indicar a
intenção de interpretar o significado literal paulino” (p. 32). E, contudo, Dulles admite que “Trento
trata reconhecidamente de um ponto um pouco diferente daquilo que Paulo tinha em mente e confia,
em parte na tradução da Vulgata de Romanos 5,12, que dizia: ‘... em quem [Adão] todos pecaram’
(in quo omnes peccaveruni). Mas parece claro que o Concilio pretendia interpretar o pensamento do
próprio Paulo”. Mas se o “ponto” é “um pouco diferente daquilo que Paulo tinha em mente”, não
há lugar para um sensus plenior, que a tradição oficialmente cultuada por Trento deu a conhecer?
Afinal de contas, no século XVI ninguém jamais falou de um “sentido pleno”, noção que só entrou
na discussão católica dos sentidos da Escritura no século X X e se mostrou uma noção que nos per­
mite hoje entender mais apropriadamente o tipo de definição na qual o Concilio de Trento estava
empenhado. Acho difícil pensar que o Concilio definiu que peccatum originale, conceito teológico
latino ocidental ausente da tradição patrística grega oriental, é o “sentido literal” de Romanos 5,12.
Cf. minha discussão desse ponto em Scripture, the Soul ofTheology (New York/Mahwah, NJ, Paulist,
1999) 94, esp. n. 21 [Escritura, a alma da teologia, São Paulo, Loyola, 1997, 69-70 (n. 21)] e em
Romans, New York, Doubleday, 1993, 409-410 (AB 33).
116
Capítulo 6 - O s sentidos da Escritura
3. O sentido pleno da Escritura
O sensus plenior da Escritura é noção relativamente nova. Recebeu séria
consideração somente na primeira metade do século XX e, assim, não tem a
posição venerável dos dois sentidos já examinados. A expressão foi inventada
por A. Fernández em 192534.
A Comissão adotou essa ideia e definiu sensus plenior como “um sentido
mais profundo do texto, desejado por Deus, mas não claramente expresso pelo
autor humano”35. Dessa maneira, baseia-se no entendimento católico normal
de inspiração bíblica, segundo o qual se considera Deus o autor primordial
da Escritura e o autor humano inspirado seu autor secundário. Com essa
distinção, é possível que Deus movesse um autor humano a formular alguma
coisa da qual o sensus plenior só se tornaria evidente à luz da referência sub­
sequente a essa formulação ou de seu uso, e da qual o autor humano assim
movido originalmente não teria nem uma vaga ideia. A Comissão também
expressou uma restrição admoestatória quanto ao entendimento deste senti­
do: “Descobre-se sua existência em um texto bíblico quando se estuda esse
texto à luz de outros textos bíblicos que o utilizam ou em sua relação com o
desenvolvimento interno da revelação”36. Em outras palavras, tem de haver
outra passagem na Escritura que releia a passagem original e assim revele
outro sentido daquele texto. Por exemplo, as palavras de Mateus: “Eis que
a Virgem conceberá e dará à luz um filho” (Mt 1,23), dão esse sentido à
profecia de Isaías (Is 7,14), quando emprega o grego parthenos (adotado da
LXX) para significar “virgem”, dando assim um sensus plenior a ’almãh5
que no hebraico original de Isaías significava “jovem casadoura” . Ou tem
de haver um desenvolvimento genuíno na tradição dogmática da Igreja que
torna conhecido o sensus plenior de um texto bíblico. A esse respeito, a Co­
missão cita o ensinamento patrístico e conciliar a respeito das três pessoas
da Trindade como o sentido atribuído aos dados neotestamentários sobre o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ou ainda, o Concilio de Trento deu o sensus
34. Veja seu Institutiones Biblicae, Roma, Instituto Bíblico, 1925; 2. ed., 1927, 305-307. Também
seus artigos, Sensus typicus, sensus plenior, B ib 33 (1952) 526-528; Sentido plenior, literal, típico,
espiritual, Bib 34 (1953) 299-326. Cf. R. E. B r o w n , The Sensus plenior o f Sacred Scripture, Baltimore, MD, St. Mary’s University, 1955; The Sensus plen io r in the Last Ten Years, CBQ 25 (1963)
262-285; The Problems o f the Sensus plenior, E TL 43 (1967) 460-469; Hermeneutics, N JBC art.
79, §§ 49-51. Também J. C o p p e n s , Le problème du sens plénier, E TL 34 (1958) 5-20; repr. como
Le problème du sens plénier des Saintes Écritures, ALBO 3/9, Louvain, Publications Universitaires
de Louvain, 1958; P. B e n o it , La plénitude de sens des Livres Saints, RB 67 (1960) 161-196.
35. A Interpretação, 51; JAF, Texto, 130-131.
36. Ibid.
117
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
plenior do ensinamento paulino em Romanos 5,12, quando definiu o pecado
original como envolvido naquela passagem37. Já mencionei a dificuldade que
A. Dulles tem com esse exemplo do sensus plenior3l
O importante quanto ao “sentido pleno” da Escritura é perceber que a
Comissão não autoriza, de modo algum, que um intérprete o invoque na ex­
plicação de nenhum texto bíblico, seja ele qual for. Há sempre necessidade
do controle de outro uso do texto, ou na própria Escritura ou na tradição
dogmática da Igreja.
Por fim, o sensus plenior é um caso no qual se vê que o aspecto dinâmico
do AT resulta em um significado pleno, quando um uso mais tardio aproveita
seu caráter “aberto” .
4. O sentido acom odado da Escritura
Há ocasiões em que os autores modernos usam a expressão “sentido espi­
ritual” para exprimir um “sentido acomodado” da Escritura. Encontra-se um
“sentido acomodado” quando o intérprete usa um significado que não está
comprovado pelas palavras, pela frase ou pelo contexto de uma passagem.
E realmente o resultado de eisegese, o contrário de exegese — a leitura de
algum sentido no texto.
Em 1987, o papa João Paulo II publicou a encíclica Redemptoris Mater
para anunciar o próximo Ano Mariano de 198839. Nela ele citou Colossenses
3,3, que exorta os cristãos de Colossas a pensar nas coisas do alto, “porque
estais mortos e vossa vida está escondida com Cristo em Deus”, expressando a
participação na vida gloriosa de Cristo que é seu destino como cristãos justos.
Entretanto, João Paulo II usou o versículo a respeito do fato de Maria viver
com Jesus na chamada vida oculta: “Durante os anos da vida oculta de Jesus
na casa de Nazaré, também a vida de Maria ‘está escondida com Cristo em
Deus’ (Cl 3,3) mediante a fé”. Esse emprego de Colossenses 3,3 é apropriado
para uma “meditação bíblica” papal, como o cardeal Joseph Ratzinger chamou
a encíclica40, mas não é nada mais que uma “acomodação” do texto bíblico,
37. Veja Decretum de Peccato Originali de 17 de junho de 1546, cap. 2 (DH 1512).
38. Veja n. 33 acima.
39. João Paulo II, Redemptoris M ater, 25 mar. 1987, São Paulo, Paulus, 1999, 381-465 (D o­
cumentos da Igreja, 4, Documentos de Veja A A S 79 (1987) 380 (§ 17); Origins 16 (1986-1987)
752; The Pope Speaks 32 (1987) 169.
40. Veja M aria — Gottes Ja zum M enschen; Papst Johannes Paul II Enzyklika “Mutter der
Erlõsers”; Hinfuhrung von Joseph Kardinal Ratzinger; Kommentar von Hans-Urs von Balthasar, 2.
ed., Freiburg im B., Herder, 1987, 107.
118
Capítulo 6 - Os sentidos da Escritura
que nele introduz um significado que nem o autor primordial nem o autor se­
cundário daquele versículo de Colossenses jamais pretendiam ou expressaram.
Esse e outros sentidos acomodados de textos bíblicos não devem ser chamados
“sentido espiritual” como fizeram alguns. Nesse caso, seria outro exemplo de
como sentido “espiritual” se transformou em uma palavra ambígua.
Conclusão
Termino esta análise dos sentidos da Escritura citando algumas linhas
escritas certa vez pelo teólogo cardeal Dulles:
Minha inclinação atual seria em direção a um método [de interpretação bíblica]
que faz uso de estudos histórico-críticos para assegurar uma base sólida nas
próprias fontes bíblicas, mas o faz sob a orientação contínua da tradição e do
ensinamento do Magistério. Um uso teológico adequado da Escritura, creio
eu, também se basearia nas realizações da teologia bíblica e no tipo de exegese
espiritual descrita acima [relativa à sua descrição da interpretação bíblica esta­
belecida por L. Bouyer, H. de Lubac, H. U. von Balthasar], Uma interpretação
que se limitasse à fase histórico-crítica fecharia os olhos aos significados tácitos
transmitidos pelas narrativas, símbolos e metáforas bíblicas. Uma abordagem
abrangente, combinando exegese científica e espiritual, faz mais justiça à tra­
dição católica e às diretrizes do Vaticano II, e serve melhor às necessidades da
teologia sistemática41.
Não tenho dificuldade com o que Dulles diz sobre o uso do método
histórico-crítico, juntamente com a orientação contínua da tradição e do M a­
gistério; isso estaria incluído no que quero dizer com o uso apropriadamente
orientado do método. Nem acho nada problemático em suas referências suben­
tendidas a aperfeiçoamentos literários, retóricos e narrativos desse método. A
interpretação histórico-crítica apropriadamente orientada da Bíblia inclui o que
ele chama de teologia bíblica e os significados tácitos de histórias, símbolos
e metáforas bíblicas. Entretanto, hesito em incluir o que ele chama de “exe­
gese espiritual”, por algumas das razões já apresentadas acima nesta análise,
mas principalmente porque acho isso um emprego incorreto de terminologia.
O que Dulles defende, ao lado de teólogos como L. Bouyer, H. de Lubac,
H. U. von Balthasar e outros, é a percepção de que a Palavra de Deus escrita
não é só dirigida ao povo de antigamente, ao povo da primeira aliança ou ao
41.
D u lle s ,
Craft ofT heology (n. 22 acima), 85.
119
A interpretação da Escritura - Em defesa do m étodo histórico-crítico
novo povo de Deus nos primeiros séculos cristãos, mas é também dirigida aos
cristãos de hoje. É, com efeito, a Palavra de Deus para nós aqui e agora. O
que Dulles quer dizer com “exegese espiritual” não é nada mais que o sentido
literal atualizado da Escritura como determinado pelo método histórico-crítico
apropriadamente orientado, como tentei apresentar no capítulo 4. Deus fala a
seu povo hoje por intermédio da Palavra escrita inspirada quando seu sentido
literal assim determinado é devidamente atualizado.
Esses, então, são vários problemas a respeito do sentido da Escritura en­
volvidos na interpretação da Bíblia hoje. Eles nos dão a conhecer as muitas
maneiras pelas quais temos de lidar com a “verdade” da Bíblia. Essa verdade
bíblica não é unívoca, mas sim análoga. Como verdade para os cristãos, tem
de ser normalizada pelos sentidos literal e espiritual da Palavra escrita inspi­
rada e às vezes até por seu sentido pleno. Com efeito, esses sentidos nos dão
a conhecer o que a Palavra de Deus escrita significa e revela e o que essa
Palavra representa para nós como norma normans non normata, “a norma
que normaliza” nossa vida cristã, que é ela própria “não normalizada” . Jun­
tamente com a Palavra escrita da Escritura, a tradição dogmática da Igreja
também desempenha um papel nesse processo normativo e revelador, mas é
norma normata, “a norma que é normalizada”, isto é, pela Escritura, da qual
ela se origina42.
42. Veja também Escritura, a alma da teologia (n. 33 acima), 79-81, 91, 93.
120
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A respeito da interpretação da Bíblia na Igreja