O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA Claudia Mendes CAMPOS UFPR RESUMO Este artigo retoma as várias etapas da teoria da argumentação na língua, discutindo o percurso que leva de uma concepção de argumentação como conjunto de conclusões possíveis para um enunciado até a concepção de encadeamentos argumentativos tomados como constitutivos da significação de palavras, expressões e enunciados. ABSTRACT This paper retakes the various stages of the linguistic argumentation theory, analysing the path leading from a conception of argumentation as a set of possible conclusions for an utterance to the conception of argumentative chainings considered as shaping the meaning of words, expressions and utterances. PALAVRAS-CHAVE argumentação, expressões argumentativas, topoi, blocos semânticos. KEY WORDS argumentation, argumentative expressions, topoi, semantic blocks. 1. Entre a adoção e o abandono dos topoi argumentativos 1.1. A forma padrão da teoria da argumentação na língua Polifonia y argumentación, livro publicado por Ducrot em 1988, apresenta as duas primeiras etapas da teoria da argumentação na língua (ADL), conhecidas como forma padrão da teoria e teoria dos topoi argumentativos. O modo como a teoria concebe a argumentação vem © Revista da ABRALIN, v. 6, n. 2, p. 139-169, jul./dez. 2007. O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA sendo alterado desde então, sem que tenha sido abandonada a idéia central – expressa na própria designação da teoria – de que a argumentação está inscrita no funcionamento da língua. O ponto inicial das discussões acerca desse tema é o fato de que sua concepção de argumentação opõe-se essencialmente à concepção tradicional, segundo a qual o sujeito falante apresenta um argumento como justificativa para uma determinada conclusão. Desse ponto de vista, o argumento contém um fato e se constitui na apresentação de uma razão. O fato implica a conclusão por via lógica, psicológica, sociológica, nunca lingüística. Tal concepção, que para Ducrot é a tradicional (1988, p. 72; 1989, p. 16),1 corresponde àquela encontrada na Encyclopédie Philosophique Universelle.2 Retomemos a reflexão ali desenvolvida: o sujeito falante argumenta quando tenta impor a seu ouvinte uma conclusão por meio da apresentação de uma razão. De acordo com tal concepção, a razão se decompõe em um argumento e uma lei, sendo esta a responsável pelo “salto” do argumento para a conclusão. Vejamos o exemplo do autor (Jacob, 1990, p. 157 [tradução minha]):3 (A): Você é amigo de espiões (C): Você é um espião (L): “Diga com quem andas que direi quem és” Segundo essa perspectiva, esta seqüência argumentativa seria analisada por meio da identificação de uma lei (um princípio geral comum aos falantes – [L]), que somada a um argumento (uma informação específica sobre um estado de coisas do mundo, um fato – [A]), formaria a razão responsável pela conclusão (C). Ducrot (1988; 1989) considera como externa à linguagem a lei que na perspectiva da Encyclopédie permite o salto do argumento para a conclusão. Desse ponto de vista, o movimento argumentativo ocorreria independentemente da língua e, como foi dito, o fato implicaria a conclusão por vias outras que não a lingüística. Para o autor, no entanto, não há essa relação de implicação entre o fato e a conclusão, para ele, “a 140 CLAUDIA MENDES CAMPOS argumentação está na língua” (Ducrot, 1989, p. 16). Na teoria dos topoi argumentativos, o valor argumentativo das palavras é o responsável pela direção argumentativa do discurso. Ele sustenta essa tese afirmando que há em todas as línguas duplas de frases4 que, embora enunciem o mesmo fato do mundo, têm orientações argumentativas diferentes. Vejamos os exemplos do autor: 1) Pedro trabalhou pouco. 2) Pedro trabalhou um pouco. Segundo Ducrot (1988), ambas as frases indicam o mesmo fato: trabalho em pequena quantidade. Além disso, a verdade do enunciado de 1 implica a verdade do enunciado de 2: se Pedro “trabalhou pouco”, pelo menos “um pouco” ele trabalhou, e vice-versa. Essas frases, contudo, permitem chegar a conclusões bastante diferentes entre si. Por exemplo, em um contexto em que se admita que o trabalho leva ao êxito, pode-se concluir a partir da frase 1 que Pedro “vai fracassar” e a partir da frase 2 que ele “terá sucesso”.5 Ducrot explica esta oposição por meio da descrição de operadores como “pouco” e “um pouco”, que tanto são opostos que podem encadear-se em frases com “mas”: 3) Trabalhou pouco, mas trabalhou um pouco. Assim, as próprias frases é que seriam argumentativas – o que significa para o autor afirmar que a argumentação está na língua, uma vez que ele define língua como um conjunto de frases. Nas palavras de Ducrot: A significação de certas frases contém instruções que determinam a intenção argumentativa a ser atribuída a seus enunciados: a frase indica como se pode, e como não se pode argumentar a partir de seus enunciados. (1989, p. 18) Nesse ponto da teoria, a sua tese geral dizia que “la significación de las frases contiene en sí misma instrucciones como éstas: busque cuál es la 141 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA conclusión a la que tiende el locutor” (Ducrot, 1988, p. 82). Isto é, a significação é aberta. Seriam as instruções contidas na significação das palavras as responsáveis pela orientação argumentativa. Tais instruções estão contidas na significação do que o autor chama de expressões argumentativas – expressões tais como “pouco” e “um pouco”, que determinam o valor argumentativo dos enunciados em que aparecem (de acordo com ele, sempre que a expressão “pouco” aparecer em um enunciado, a conclusão será negativa; ao contrário, sempre que a expressão “um pouco” for usada a conclusão será positiva, desde que a situação permaneça a mesma). Ressalte-se, ainda uma vez, que, segundo Ducrot, a diferença entre essas expressões não é factual, mas argumentativa.6 A forma padrão da teoria, descrita acima, define o potencial argumentativo de um enunciado como o conjunto das conclusões às quais se pode chegar a partir dele. Esta concepção de argumentação é interessante, de acordo com Ducrot (1988), para encontrar as expressões argumentativas de uma língua: se a substituição de uma expressão por outra em um enunciado (por exemplo, “pouco” por “um pouco”; “avaro” por “econômico”), mantida a situação de enunciação, leva a conclusões diferentes, então estamos diante de expressões argumentativas. No entanto, ela dificulta a descrição do valor semântico de tais expressões, pois para tanto seria necessário encontrar o traço em comum entre todas as conclusões extraídas de uma expressão argumentativa. 1.2. A teoria dos topoi argumentativos Três fatores levaram a uma alteração na teoria: 1) a dificuldade de descrição das expressões argumentativas; 2) o fato de que há duplas de frases com o mesmo operador argumentativo que permitem chegar a conclusões diferentes; e 3) há duplas de frases com operadores opostos que levam potencialmente à mesma conclusão. A forma padrão mostrouse insuficiente. Para criticar a posição assumida até esse momento, Ducrot discute a possibilidade de duas frases que comportam o mesmo operador argumentativo permitirem conclusões diferentes sem se distinguirem no que diz respeito aos fatos enunciados por elas. Vejamos os exemplos abaixo. 142 CLAUDIA MENDES CAMPOS 4) São quase oito horas. É tarde.7 5) São quase oito horas. Apresse-se.8 O operador em questão aqui é “quase”, que, de acordo com Ducrot, tem em geral uma orientação positiva, isto é, dizer “são quase oito horas” é dizer que já decorreu bastante tempo,9 que se está bastante próximo das oito horas. A explicação oferecida até então para esse operador dizia que a mesma conclusão possível a partir de um enunciado em que ele ocorresse seria possível a partir de um enunciado de que ele estivesse ausente. Embora em muitos casos esta explicação fosse válida, ela acabou por se mostrar infundada em outros tantos. O exemplo 4 acima a confirma: se se pode dizer que é tarde como conclusão extraída de “são quase oito horas”, mais ainda como conclusão para “são oito horas”. No entanto, o mesmo não ocorre com o exemplo 5, que apresenta uma outra conclusão, “apresse-se”, possível em uma situação em que os falantes dirigem-se a um espetáculo que se inicia às oito horas, horário após o qual não é permitida a entrada; ou seja, afirmar “são oito horas” é dizer que não adianta mais se apressar, já é tarde demais e a conclusão “apresse-se” seria equivocada. Não é possível, portanto, afirma Ducrot, encontrar uma restrição imposta por esta palavra a todo o conjunto de conclusões possíveis a partir dela. O operador “quase” permite conclusões que não têm traços em comum, dificultando assim a sua descrição semântica. Outra questão que Ducrot levanta contra a definição de potencial argumentativo como conjunto de conclusões possíveis é a de que, embora um par de expressões como “pouco” e um pouco tenha valores argumentativos opostos, elas permitem chegar à mesma conclusão, a depender do princípio argumentativo subjacente. Os exemplos usados são, mais uma vez, 1 e 2. De 1, “Pedro trabalhou pouco”, pode-se concluir “vai fracassar”, se se considera que “o trabalho conduz ao êxito”. De 2, “Pedro trabalhou um pouco”, pode-se concluir o mesmo, “vai fracassar”, se se considera que “o trabalho leva ao fracasso”. Embora tais frases permitam conclusões diferentes, elas não impedem conclusões idênticas, o que compromete a forma padrão da teoria e obriga a sua reformulação.10 143 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA Vai por terra, assim, a vertente da teoria da argumentação na língua que definia o valor argumentativo a partir do conjunto de conclusões possíveis para um enunciado. A solução encontrada na etapa seguinte da ADL – a teoria dos topoi argumentativos – é trazer os princípios para o interno do enunciado, de forma que o responsável pela possibilidade de conclusões diferentes serem extraídas de uma mesma frase seria não um princípio externo à língua, mas um princípio convocado pela própria frase: o topos. Dessa maneira, para que a conclusão fosse “Pedro vai fracassar”, o topos convocado pela frase 1 seria “Quanto mais se trabalha mais êxito se alcança”, e pela frase 2 seria “Quanto mais se trabalha mais se fracassa”.11 Outra diferença substancial com relação à forma padrão da teoria é o fato de que esta descrevia a argumentação a partir dos enunciados, procurando definir o ato de argumentação ali presente; já a teoria dos topoi o faz a partir dos enunciadores,12 procurando identificar o caráter argumentativo dos diferentes pontos de vista que se apresentam no enunciado. O valor argumentativo dos enunciados passa a depender da existência de um enunciador que argumenta, quer ele se identifique com o locutor, quer não se identifique. Duas condições são apresentadas para que o ponto de vista de um enunciador possa ser considerado argumentativo. A primeira é que ele sirva para justificar uma determinada conclusão, que pode estar explícita ou implícita no enunciado e pode ser assumida ou não pelo locutor. A segunda condição postula a noção de topos, fundamental nessa fase da teoria. O valor argumentativo passa a ser entendido como parte constitutiva do enunciado: o princípio argumentativo, designado de topos, é o responsável pela orientação do enunciado em direção à conclusão; é o intermediário entre o argumento e a conclusão. Os topoi têm três propriedades: a) são tratados como “universais”, o que não significa que de fato o sejam, mas que são apresentados no enunciado como se fossem compartilhados por uma coletividade – são comuns pelo menos ao enunciador e ao destinatário; b) são gerais, porque se aplicam a um grande número de situações, não apenas a do momento 144 CLAUDIA MENDES CAMPOS em que se fala; c) são graduais, característica que permite a passagem para a conclusão e que quer dizer que os topoi relacionam duas escalas, tal que o movimento em uma delas implica movimento também na outra, e a direção do movimento de uma condiciona a direção do movimento da outra; isto é, se o valor apresentado em uma das escalas cresce, o valor presente na outra também crescerá; se ele decresce, o outro também decrescerá. Vejamos um exemplo: 6) O tempo está bom, vamos à praia. Neste exemplo, Ducrot afirma que o topos é aquele que põe em relação a escala do “tempo bom” e a escala do “prazer”. Como se pode ver, as escalas relacionadas não correspondem aos predicados enunciados no argumento e na conclusão (respectivamente, “tempo bom” e “ir à praia”). Nesse exemplo, há coincidência entre a escala e o argumento, o que não quer dizer que se trate da mesma propriedade. Isso explica por que um predicado enunciado que nada tem de gradual, como “vamos à praia”, pode estar relacionado a uma propriedade gradual, nesse caso “prazer”, que é aquele que será posto em relação com uma outra propriedade gradual. Também a relação estabelecida pelo topos entre estas propriedades graduais é gradual. Ducrot postula a existência de um vínculo entre as duas escalas, tal que os movimentos ocorridos em uma condicionam os movimentos da outra. Assim, quanto melhor o tempo estiver, mais prazer causará “a ida à praia”; quanto pior estiver o tempo, menos prazer proporcionará “a praia”. De posse dessa noção, Ducrot afirma que um enunciador, quando argumenta, “en primer lugar escoge un topos y en segundo lugar sitúa el estado de cosas del que habla en un cierto grado de la escala antecedente del topos” (1988, p. 109). Isto é, a argumentação não é mais o conjunto das conclusões possíveis para uma frase, mas tem a ver com os topoi escolhidos. Para defender a tese da gradualidade do topos, Ducrot faz intervir uma nova noção, também fundamental para a compreensão de seu raciocínio: 145 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA a noção de forma tópica. Na medida em que ele estabeleceu para o topos uma relação gradual entre duas escalas, isso quer dizer que há reciprocidade, do ponto de vista lógico, entre duas formas do topos: se quanto mais se sobe em uma das escalas, mais se sobe também na outra, este dado terá um recíproco perfeito segundo o qual quanto menos se sobe em uma das escalas menos se sobe na outra. Cada um desses dois condicionantes constitui uma forma tópica. Para melhor compreender a amplitude dessa noção, é preciso discutir dois exemplos: 7) A propriedade P é favorável à propriedade Q. 8) A propriedade P se opõe à propriedade Q. Em 7, tem-se um topos que diz “quanto mais se sobe na escala P, mais se sobe na escala Q”, e tem-se, conseqüentemente, duas formas tópicas recíprocas que afirmam “quanto mais P, mais Q” e “quanto menos P, menos Q”. Em 8, o topos tem a forma inversa: “quanto mais se sobe na escala P, menos se sobe na escala Q”. As formas tópicas são também recíprocas e contrárias às anteriores: “quanto mais P, menos Q” e “quanto menos P, mais Q”. Resumindo, Ducrot afirma que se se tem duas escalas graduais P e Q, elas podem constituir dois topoi contrários (como em 7 e 8 acima). Além disso, cada um dos topoi constituirão reciprocamente duas formas tópicas do mesmo topos.13 Uma das justificativas para a utilização dessa noção é a possibilidade de explicar a associação que comumente se faz entre um enunciado que faz uma proposição e um enunciado que nega a mesma proposição (como em “Se A então B”, logo “Se não A, então não B”,14 associação que não se explica pela lógica): com a noção de formas tópicas, esta explicação pode se fazer a partir da própria língua, sem recurso a leis de discurso ou máximas conversacionais. Algumas das conclusões que Ducrot extrai dessa discussão são: 1) o valor argumentativo dos enunciados, assim como os pontos de vista neles expressados estão inscritos na língua, ou seja, são determinados pela frase; 2) a determinação argumentativa é possibilitada principalmente pelas expressões argumentativas; 3) o valor argumentativo dos pontos de vista 146 CLAUDIA MENDES CAMPOS dos enunciadores corresponde à convocação por parte deles de topoi graduais; 4) cada topos contém duas formas tópicas recíprocas; 5) os operadores argumentativos são os responsáveis pela natureza das formas tópicas utilizadas. Outras conclusões mais gerais: a) a utilização de uma língua pressupõe que a coletividade possui topoi; b) não é da competência da língua quais sejam os topoi, mas apenas o fato de que eles existem; c) algumas palavras não só indicam como utilizar os topoi, como os contêm nelas mesmas (por exemplo, “avaro” e “econômico”). 1.3. O estatuto dos topoi na teoria da argumentação na língua Entretanto, já no início da década de 1990, os rumos da ADL começam a se alterar. O artigo “Os topoi na teoria da argumentação na língua” (Ducrot, 1999)15 recusa a concepção própria da teoria dos topoi de argumentação, como uma realização discursiva constituída por argumentos e conclusões, em favor da noção de encadeamento discursivo, que teria a vantagem de assumir uma dependência entre argumento e conclusão, que se constituiriam mutuamente. Ducrot declara que “é impossível argumentar com as palavras, que nossos discursos, mesmo que sejam comumente qualificados de ‘argumentativos’, não correspondem a nada do que se entende por argumentação, ou ainda que a argumentação é uma miragem” (1999, p. 1). Trata-se do reconhecimento de que seus trabalhos desenvolvidos na perspectiva da teoria dos topoi argumentativos não escaparam de uma abordagem retórica, ou pelo menos de uma abordagem afetada pela retórica, no sentido de que a teoria dos topoi colocava na argumentação um terceiro termo, externo à linguagem, ou seja, tratava a argumentação como se houvesse argumentos que conduzissem a conclusões determinadas, e principalmente argumentos independentes das conclusões. Como se a argumentação fosse assemelhada à demonstração lógica, como se ela fosse uma espécie de “arremedo” de demonstração. Ele diz: 147 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA No começo pensávamos nos situar numa tal tradição [de Aristóteles a Perelman, Grize e Eggs], tendo por simples originalidade relacionar à natureza da linguagem essa necessidade de substituir a argumentação à demonstração: pensávamos encontrar nas palavras da língua a causa ou o sinal do caráter fundamentalmente retórico [grifo meu], ou, como dizíamos, “argumentativo” do discurso. Mas agora somos levados a dizer muito mais. Não somente as palavras não permitem a demonstração, como tampouco permitem essa forma degradada da demonstração que seria a argumentação. Esta também é tão somente um sonho do discurso, e nossa teoria deveria antes se chamar “teoria da não-argumentação”. (Ducrot, 1999, p. 1) Trabalhando dentro do estruturalismo saussureano, a teoria lidava com uma concepção saussureana de signo como elemento para o qual se pode atribuir um valor semântico; porém, o elemento que se tratava como signo era a frase, era para a frase que se procurava atribuir um significado, chamado à época de “significação”. A enunciação estava em jogo, na medida em que a significação da frase era entendida como “um conjunto de ‘instruções’ para a interpretação das ocorrências dessa frase nas diversas situações de discurso que podem ser descortinadas” (Ducrot, 1999, p. 2). Outra conseqüência dessa opção teórica (isto é, da adesão ao estruturalismo saussureano) é a “recusa em caracterizar as entidades da língua a partir de entidades estranhas à língua” (Ducrot, 1999, p. 2). Isso quer dizer não levar em conta o mundo sobre o qual a linguagem fala, não considerá-lo nas descrições lingüísticas. É justamente isso que a concepção de argumentação vigente até a teoria dos topoi, segundo o próprio Ducrot, não consegue fazer. A entrada desse terceiro termo (o topos) e o lapso entre o argumento e a conclusão são opções teóricas que não escapam de uma perspectiva retórica do discurso, que releva justamente as ações que se fazem com a linguagem. Isto é, descreve os atos de argumentação que se fazem com a linguagem. Toma a linguagem como instrumento apenas, não como entidade em que a argumentação 148 CLAUDIA MENDES CAMPOS está inscrita, entidade que interessa descrever em si e não por suas conseqüências ou por sua utilidade. Ainda dentro do quadro do estruturalismo saussureano, Ducrot afirma que a única coisa que se pode dizer sobre o valor semântico da frase é o que Saussure dizia sobre o signo propriamente dito, ou seja, que seu valor só se constitui na relação com os outros signos do sistema. Assim, “o significado de uma frase seria igualmente constituído pelas relações que ela entretém com outras frases da mesma língua” (Ducrot, 1999, p. 2). Não se trata, porém, de dizer que isso se dá na relação entre quaisquer frases, sem qualquer critério. Trata-se de escolher as relações que serão levadas em consideração: as sintagmáticas. Em seu discurso, Ducrot recusa as relações paradigmáticas, alegando que, embora se dêem entre elementos da língua, elas não seriam de “tipo lingüístico” (1999, p. 3): o problema é [...] que essas relações [paradigmáticas], se têm por termos elementos da língua, as frases, não são elas próprias de tipo lingüístico. Para estabelecê-las, é preciso que sejam dadas as condições de verdade das frases, e que sejam essas condições de verdade comparadas em seguida por uma reflexão de tipo lógico, buscando aquelas entre as quais há implicação, contrariedade ou equivalência. Uma tal maneira de proceder vai certamente de encontro ao postulado estruturalista que eu gostaria de respeitar na minha pesquisa semântica: para dizer que há inferência da frase A à frase B, é preciso saber que a realização das condições de verdade de A implica a das condições de verdade de B, e não é nosso conhecimento da língua que pode nos ensinar isto. Para ser coerente com o projeto que esbocei, é forçoso, pois, considerar somente as relações sintagmáticas. Ao menos em sua teorização, portanto, Ducrot exclui o eixo paradigmático e concebe o sentido como uma construção sintagmática. Esta opção entraria em choque com sua inserção no quadro teórico do 149 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA estruturalismo saussureano, que atribui propriedades intrinsecamente lingüísticas às relações paradigmáticas.16 Dentro do quadro estruturalista, tais relações são consideradas como um dos modos de funcionamento da linguagem descritos por Jakobson (1988), para quem a linguagem tem um “duplo caráter” expresso em dois modos de arranjo: a combinação (relações sintagmáticas) e a seleção (relações associativas ou paradigmáticas). Fundamentando-se nas noções de “sintagma” e “paradigma” propostas por Saussure, Jakobson formula a tese de que a linguagem é constituída por estes dois eixos, isto é, funciona a partir do encontro, na cadeia lingüística, entre o eixo das relações sintagmáticas (as combinações) e o das relações associativas (a seleção). São as relações sintagmáticas, contudo, que Ducrot elege como relevantes para a descrição lingüística do valor semântico de uma frase. Não quaisquer relações sintagmáticas, mas aquelas que se dão no encadeamento argumentativo. Ele propõe caracterizar uma frase “por suas possibilidades de combinação com outras frases no encadeamento do discurso, por exemplo, o que pode seguir ou preceder um enunciado dessa frase” (Ducrot, 1999, p. 3; grifo meu), limitando tais possibilidades àquelas que possam ser consideradas encadeamentos argumentativos. Ocorre que, ao caracterizar as frases da língua através dos encadeamentos possíveis a partir delas, não apenas as relações sintagmáticas são tomadas em consideração, como quer Ducrot, mas também as relações associativas. É no cruzamento entre os dois eixos da linguagem que os encadeamentos se constituem, uma vez que a formação do sintagma se dá a partir de uma série de possibilidades disponibilizadas pela língua entre as quais se faz uma escolha. Embora nesse artigo ele recuse um lugar para as relações paradigmáticas na discussão sobre o sentido dos enunciados da língua, seu trabalho lida diretamente com essa questão desde as primeiras versões da ADL, por exemplo quando opõe frases que se diferenciam apenas pela substituição de uma expressão argumentativa por outra (pouco por um pouco, econômico por avaro, como nos exemplos discutidos acima) ocasionando alteração nos encadeamentos possíveis a partir delas. Ou ainda quando, na teoria dos blocos semânticos, 150 CLAUDIA MENDES CAMPOS considera o sentido das entidades lingüísticas a partir dos encadeamentos argumentativos por elas evocados, cujos segmentos podem ser relacionados por conectivos do paradigma de portanto ou de no entanto.17 Sem dúvida, ele foca seu trabalho nos aspectos relacionados ao eixo sintagmático – não se pode negar, no entanto, que as relações associativas estão em jogo, atuando na constituição do sintagma, mesmo quando Ducrot afirma excluí-las. Ao longo do artigo, Ducrot destaca a diferença entre a argumentação dos retóricos, que postula a existência de três elementos (o argumento, a conclusão e o topos), e o encadeamento argumentativo, entidade semântica única18 que constitui em si a significação das palavras, apontando o caráter extrínseco dos topoi e apresentando uma série de razões que levariam a abandonar este conceito. Após discutir as hipóteses que teriam levado a teoria a assumir os topoi como instrumental teórico, Ducrot pergunta qual papel eles ainda poderiam representar na ADL. Em sua resposta, vislumbra-se sua relutância em abandonar os topoi: ele advoga pela manutenção na teoria de “objetos análogos aos topoi da retórica”, porque “essa construção obedece a certas restrições impostas pelas próprias palavras de que o discurso é feito, e que constituem a significação dessas palavras” (1999, p. 9). Ou seja, embora já admita a teoria dos blocos semânticos, Ducrot pretende manter objetos análogos aos topoi. Ele não considera este conceito desnecessário para as descrições porque isso equivaleria a “renunciar ao próprio objetivo da ADL, isto é, à descrição das palavras por meio dos encadeamentos que elas permitem” (1999, p. 10). Segundo ele, sua opção por não abandonar os topoi deve-se ao fato de que a significação não se constrói por uma “amálgama automática dos elementos concatenados” (1999, p. 10), mas obedece a restrições impostas pela semântica interna das palavras, restrições estas que, ao que parece, seriam impostas pelos topoi. Tais restrições parecem corresponder ao papel desempenhado pelos topoi que constituem o sentido das palavras. Tratase dos topoi intrínsecos, descritos em etapa um pouco anterior da teoria, em que se observa o caráter exterior à língua exercido por estes princípios 151 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA argumentativos, ao contrário do que propugnava a teoria: Ducrot e Anscombre passam então a distinguir entre topoi intrínsecos e extrínsecos, de modo que os intrínsecos seriam aqueles inscritos na própria significação das palavras, enquanto os extrínsecos seriam aqueles utilizados na argumentação em geral, constituídos muitas vezes de uma cadeia de topoi dos quais apenas o primeiro seria intrínseco (Cf. Negroni, 1998). Esta distinção se veria, por exemplo, em uma palavra como fortuné no encadeamento “Jean est peu fortuné, il ne doit guère avoir d’amis”, cujo topos seria “Quanto menos dinheiro se tem, menos amigos se tem” (cf. Ducrot,19 apud Negroni, 1998, p. 36). Este topos, no entanto, não é considerado intrínseco, ou seja, não é considerado parte do sentido da palavra, porque caso o fosse impediria uma conclusão como deve ter amigos, perfeitamente possível a partir do mesmo argumento. Por outro lado, ele também impediria um encadeamento como “Tem pouco dinheiro, no entanto não tem amigos”. Este topos é considerado extrínseco, sendo um dos componentes da seguinte cadeia de topoi: “Quanto mais dinheiro se tem, mais poder se tem”, “Quanto mais poder se tem, mais útil se é” e “Quanto mais útil se é, mais procurado se é”. Apenas o primeiro elo dessa cadeia, aquele que liga o dinheiro ao poder, é considerado intrínseco, ou seja, constitutivo do sentido da palavra “fortuné”. Os topoi intrínsecos, então, corresponderiam às restrições atuantes na significação das palavras, tal como evocado acima. Contudo, a opção de não abandonar por completo os topoi, mas ao contrário manter objetos análogos a eles, apresenta alguns problemas. Por um lado, não está claro o que seriam os objetos análogos aos topoi, em que se diferenciariam dos topoi propriamente ditos e como fariam parte da teoria e das descrições semânticas. Por outro lado, a discussão ao longo do texto faz entrever que não são os topoi que permitem os encadeamentos argumentativos, mas os encadeamentos é que seriam constitutivos da própria significação das palavras.20 Entretanto, mantémse a tentativa de unir a concepção de encadeamento argumentativo por oposição à argumentação retórica, à concepção de topoi argumentativos, 152 CLAUDIA MENDES CAMPOS como conjunto de restrições intrínsecas à significação. Ducrot parece estar se referindo a algo semelhante às restrições impostas pelos topoi intrínsecos e, embora ele não o explicite, parece que ele considera que seriam objetos análogos aos topoi que poderiam fazer tais restrições. Isso, no entanto, está apenas sugerido no artigo – o que parece ter a ver com o fato de que nessa etapa da teoria a noção de topos tornou-se quase insustentável, na medida da sua crescente incompatibilidade com o modelo,21 o que no entanto não conduzirá ainda ao seu abandono. Nesse trabalho, Ducrot tenta conciliar duas teses (1999, p. 10): A primeira, segundo a qual os encadeamentos argumentativos constroem, por sua própria existência, representações do mundo de que se fala (o que exclui descrevê-las como manifestações de argumentações, no sentido retórico deste termo). A outra, segundo a qual estes encadeamentos são todavia restritos pela semântica intrínseca das palavras utilizadas [...], o que satisfaz o objetivo estruturalista da ADL, e leva a descrever as palavras, não a partir de um conhecimento prévio da realidade (o que implicaria sua descrição “informativa”), mas a partir de suas potencialidades discursivas. Para explicar as relações existentes entre, por um lado, o que chama de “aparentes ‘topoi’ da aparente ‘argumentação’” (1999, p. 11) e, por outro, as restrições sobre o encadeamento argumentativo constitutivas da significação das palavras, Ducrot constrói apenas uma hipótese, sem, no entanto, discuti-la. Na tentativa de compreender essas relações, o autor afirma que os topoi seriam uma espécie de “reificação” das restrições intrínsecas à significação; em outras palavras, tais restrições22 seriam “análogas aos topoi”. Ao levantar a necessidade de manter objetos análogos aos topoi e finalizar sugerindo que eles seriam apenas uma espécie de reificação das restrições, Ducrot tenta escapar da armadilha de se manter dentro de uma perspectiva retórica, o que pareceria muito fácil dado o caráter exterior à linguagem dos topoi. Entretanto, o que se verifica nos 153 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA seus trabalhos seguintes e que já se insinua neste é que essa noção não é necessária para tratar as restrições atuantes na significação das palavras, estas sim necessárias à coerência do seu modelo. 2. A teoria dos blocos semânticos Nas diferentes versões que a Teoria da Argumentação na Língua assumiu ao longo de sua existência, as restrições semânticas que atuam na significação são tratadas a partir da relação entre as entidades lingüísticas e os encadeamentos argumentativos do discurso. Se, em uma etapa anterior, essa relação era atualizada por meio da noção de orientação argumentativa, na teoria dos blocos semânticos, isto significa que o sentido de uma entidade lingüística é dado pelos encadeamentos argumentativos que ela evoca. Assim, como vimos, a forma padrão da ADL descrevia o sentido de uma entidade lingüística como o conjunto das conclusões possíveis a partir dela. Desse modo, para descrever a diferença entre pouco e um pouco, fazia-se referência às conclusões autorizadas pelos enunciados construídos com cada um desses operadores. Para dar conta da objeção segundo a qual a mesma conclusão seria possível para frases construídas com operadores opostos tal como pouco e um pouco, foi introduzida na teoria a noção de topos. Desse modo, foi possível explicar o efeito de oposição criado por substituições como a de pouco por um pouco através da relação entre, por um lado, os encadeamentos resultantes da substituição e, por outro, os topoi convocados por cada um dos encadeamentos. A introdução da noção de topoi intrínsecos, que eram considerados constitutivos da significação das palavras, ocorre na tentativa de eliminar da noção de topos qualquer teor relacionado à retórica ou à exterioridade da língua. No entanto, nessa etapa da teoria, ainda são “crenças” que fazem parte da significação das palavras, como, por exemplo, quando se define a palavra trabalho por meio dos topoi O trabalho cansa ou O trabalho leva ao sucesso. Procurando discutir o problema do paradoxo, definido inicialmente como expressões que contradizem a opinião comum 154 CLAUDIA MENDES CAMPOS tal como O trabalho descansa e que, portanto, se oporiam à definição de significação como conjunto de topoi intrínsecos, Carel & Ducrot (1999) retomam o percurso da ADL resumido acima e se perguntam como explicar, dentro da teoria, o fato de que construções como O trabalho descansa são possíveis na língua. Do ponto de vista defendido no artigo citado, tampouco a introdução da teoria da polifonia resolveria satisfatoriamente o problema posto pela existência de “enunciados paradoxais” na língua. A teoria da polifonia põe em jogo enunciadores que tomam posições diferentes frente à significação do enunciado. Quando um locutor emprega a palavra trabalho, ele convoca um enunciador que afirma o cansaço provocado pelo trabalho, de acordo com a opinião comum e com o que é designado pelos topoi que descrevem a palavra em questão; porém, um outro enunciador é acionado quando o locutor afirma que o trabalho descansa. Este enunciador, ao qual o locutor se identifica, predica o trabalho com a propriedade descanso. Assim, a atribuição da propriedade descanso à palavra trabalho se faz por meio do jogo polifônico da enunciação; não é à significação da palavra que se atribui tal propriedade. Esta solução é recusada por ser referencialista, uma vez que trata a predicação como uma propriedade que se atribui a um objeto. Segundo os autores, a propriedade do descanso é atribuída às atividades relacionadas ao trabalho, ao seu referente na realidade. Carel & Ducrot afastam essa possibilidade explicativa, visto que a teoria se quer “purement discursive, et ne peut pas faire intervenir, dans ses description, des objets extra-linguistiques, notamment la réalité dont le discours est supposé parler” (1999, p. 8). Ao contrário de refutar a teoria com base na existência de tais paradoxos na língua, e na impossibilidade de suas versões anteriores explicaremnos, Carel & Ducrot propõem-se nesse artigo a explicá-los no interior da ADL. Os autores afirmam que os paradoxos não constituem contraexemplos à semântica argumentativa, que são até mesmo previsíveis a partir dela e que têm propriedades lingüísticas específicas (ibidem, p. 9). Para proceder a esta explicação, eles introduzem a teoria dos blocos 155 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA semânticos (ou argumentativos), que “constitue une sorte de nouvelle version de l’ADL, qui évite la notion de topos – contrarie aux intentions de la théorie, même si elle en exprime des aspects importants” (idem). Nesse contexto, a argumentação é entendida como um encadeamento argumentativo, em que dois segmentos de discurso estão unidos por um conectivo que pode ser normativo (do tipo portanto – abreviado como PT) ou transgressor (do tipo no entanto – abreviado como NE), sem que haja qualquer relação de derivação entre tais tipos de encadeamento – ambos pertencem ao mesmo plano hierárquico. O encadeamento argumentativo é então tomado como uma estrutura do tipo X CON Y, formada pela conexão entre dois segmentos que pode ser de apenas dois tipos, normativo ou transgressor, a depender do conectivo que ocupe o lugar de CON na estrutura. Acrescente-se a isso a interdependência dos segmentos do encadeamento, o que quer dizer que argumento e conclusão não têm sentido independente um do outro e que a argumentação só se constitui na relação entre eles, o sentido de cada um dos segmentos é constitutivo do sentido do outro. Essa definição nega qualquer caráter informativo e logicista ao discurso argumentativo e recusa considerá-lo nos termos de uma justificação, como uma seqüência em que um argumento é posto com o objetivo de justificar uma conclusão que vem a posteriori e independente. Uma das conseqüências dessa posição é o fato de que uma mesma relação de sentido pode ser atualizada por meio de diferentes encadeamentos.23 Assim, os exemplos 9, 10 e 11 abaixo são algumas das diferentes formas que pode assumir a relação normativa “problema PT adiamento”24 (adaptado de Carel & Ducrot, 1999, p. 10-11). Todos eles são chamados de discursos em PT, independentemente da formulação específica de cada um deles. Vários podem ser os conectivos efetivamente utilizados no enunciado (portanto, se, porque, etc.). 9) A questão das promoções é problemática: eu proponho, portanto, adiar sua discussão. 156 CLAUDIA MENDES CAMPOS 10) Se a questão das promoções causa problema, eu proponho adiar sua discussão. 11) Eu proponho adiar a discussão da questão das promoções porque ela é problemática. As relações de tipo transgressivo têm o mesmo funcionamento que aquelas de tipo normativo, como se pode ver nos exemplos 12, 13 e 14 abaixo, em que opera a relação transgressiva “problema NE nãoadiamento”.25 Nesse caso, fala-se em discursos em NE, qualquer que seja a formulação específica que eles tomem. Do mesmo modo que os discursos em PT, vários são os conectivos que podem atualizar a relação transgressiva (no entanto, ainda que, apesar de, etc.). 12) A questão das promoções era problemática, no entanto, Paul propôs resolvê-la imediatamente. 13) Ainda que a questão das promoções seja problemática, Paul proporá resolvê-la imediatamente. 14) Apesar dos problemas difíceis que ela causa, eu proponho começar imediatamente a discutir a questão das promoções. Assim, o conjunto de encadeamentos que realizam uma mesma relação corresponde ao que a teoria chama de aspecto. Os exemplos 9 a 11 acima pertencem ao aspecto normativo de um determinado bloco argumentativo, e os exemplos 12 a 14 pertencem ao aspecto transgressivo do mesmo bloco. Para formar o bloco, entra em jogo a negação, de tal forma que o aspecto normativo se realiza por meio da estrutura P PT Q, enquanto o aspecto transgressivo do mesmo bloco estrutura-se com a negação em P NE nãoQ, como vimos nos exemplos acima. A negação de que se trata aqui não equivale necessariamente à negação sintática, mas corresponde aos “modificadores desrealizantes inversores” descritos em Ducrot (1998),26 “por ejemplo el morfema poco, y todos los giros sintácticos de función negativizante como la interrogación, los prefijos de tipo dudo de que, la posición del comparante en las construcciones comparativas de superioridad o igualdad” (Ducrot, 2000, p. 24-25). 157 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A teoria dos blocos semânticos distingue “argumentação interna” (AI) e “argumentação externa” (AE), noções que correspondem aos diferentes modos pelos quais um aspecto pode ser evocado por uma entidade lingüística27 e que permitem descrever as palavras e enunciados da língua por meio dos encadeamentos evocados. A argumentação externa ocorre quando a entidade lingüística estudada faz parte de um dos encadeamentos que compõem seu aspecto argumentativo. Assim, o enunciado 15 evoca os encadeamentos 16 e 17, de tal forma que 16 pertence ao aspecto normativo “prudente PT confiança”, e 17 pertence ao aspecto transgressivo “prudente NE não-confiança”, todos eles correspondendo à argumentação externa do enunciado 15, uma vez que ele faz parte de ambos os encadeamentos. 15) Paulo é prudente. 16) Paulo é prudente, portanto Maria confia nele. 17) Paulo é prudente, no entanto Maria não confia nele. Segundo Carel & Ducrot (1999), as versões anteriores da ADL tratavam apenas desse tipo de argumentação, particularmente aquela que forma encadeamentos em “portanto”, na medida em que procuravam as conclusões possíveis a partir de um argumento, dado um determinado topos ou conjunto de topoi. Na teoria dos blocos semânticos, esse tipo de encadeamento continua a ser tratado, porém sob nova forma. De acordo com eles, “[la] notion d’argumentation externe généralise la notion de potenciel conclusif utilisée par Anscombre et Ducrot puisque nous associons à certains énoncés, non seulement leurs suites possibles en DC,28 mais aussi des enchaînements en PT29 et également des enchaînements dont ils sont le second terme” (Carel & Ducrot, 1999, p. 14). Já a argumentação interna funciona como uma espécie de paráfrase da entidade lingüística estudada (Ducrot, 2000, p. 25), uma vez que ela não faz parte de nenhum dos encadeamentos evocados. Assim, o enunciado 18 (tratado como paradoxal em Carel & Ducrot, 1999) evoca os encadeamentos 19 e 20 e não corresponde a nenhum dos segmentos 158 CLAUDIA MENDES CAMPOS que os compõem. Como se vê nos exemplos, isto não significa que o enunciado estudado deva estar completamente ausente das argumentações evocadas, mas tão somente que a estrutura de cada um dos segmentos dos encadeamentos difere da estrutura do enunciado que os evoca. O exemplo 19 corresponde ao aspecto transgressivo “bom estudante NE sucesso”, e o exemplo 20 corresponde ao aspecto normativo “bom estudante PT não-sucesso”. 18) Este bom estudante teve sucesso apesar de tudo. 19) Ele é um bom estudante, no entanto teve sucesso. 20) Ele é um bom estudante, portanto não teve sucesso. A escolha de um enunciado paradoxal para explicar o conceito de argumentação interna explicita uma característica da teoria dos blocos semânticos importante para os autores: a teoria daria conta de explicar qualquer sentido possível na língua, por mais que ele possa ser tachado de absurdo, curioso ou, para usar um termo pertencente à própria teoria, paradoxal. Não apenas os enunciados são argumentativos, mas também os sintagmas nominais e as palavras (Carel & Ducrot, 1999, p. 14). Assim, uma palavra como “prudente” tem argumentação externa e interna. Ela evoca os encadeamentos presentes nos exemplos 21 e 22. 21) Paulo é prudente, portanto ele não sofrerá acidente. 22) Se há perigo, Paulo tomará precauções. O exemplo 21 corresponde à argumentação externa da palavra em questão, uma vez que ela aparece no encadeamento pertencente ao aspecto normativo “prudente PT segurança”. Já o exemplo 22 corresponde à argumentação interna da palavra, porque esta não está presente no encadeamento pertencente ao aspecto normativo “perigo PT precaução”. Tanto um quanto outro destes aspectos normativos descrevem o sentido da palavra “prudente”, sendo que um deles o faz por meio da argumentação externa da palavra (exemplo 21) e o outro por meio da argumentação interna (exemplo 22). 159 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A argumentação externa de uma entidade lingüística contém o aspecto X CON Y e também o seu converso X CON’ não-Y, sendo que se o conectivo de um dos aspectos é PT o outro será NE e vice-versa. Assim, no caso da argumentação externa e apenas nesse caso, o sentido da palavra “prudente” pode ser descrito por meio do aspecto transgressivo converso ao aspecto normativo. Em outras palavras, a argumentação externa desta palavra contém o aspecto normativo e seu converso transgressivo. Isto é, “prudente” evoca encadeamentos que realizam o aspecto “prudente NE não-segurança” (converso de “prudente PT segurança”), contudo não evoca encadeamentos que realizam o aspecto transgressivo “perigo NE nãoprecaução”. Desse modo, se Paulo é prudente pode ser que ainda assim ele não esteja em segurança; porém, Paulo não será considerado prudente se há perigo e ele não toma as devidas precauções. O aspecto “perigo NE não-precaução” (converso de “perigo PT precaução”) descreve o sentido de “imprudente”, antônimo de “prudente”. Ou seja, a argumentação interna de “imprudente” (“perigo NE não-precaução”) contém o aspecto converso da argumentação interna de “prudente” (“perigo PT precaução”). Carel & Ducrot (1999) distinguem ainda argumentação intrínseca e extrínseca. Ducrot (2000) retoma estes conceitos e altera sua denominação para, respectivamente, argumentação estrutural e contextual, no intuito de evitar confusão com os conceitos de argumentação interna e externa. Assumirei a designação mais recente. Os aspectos argumentativos de uma expressão que são realizados pela língua propriamente dita são considerados estruturais. Aqueles realizados pelo discurso são considerados contextuais. Assim, quando um aspecto argumentativo de uma entidade lingüística é “estrutural”, isto quer dizer que ele pertence à significação lingüística da palavra e, portanto, aparece em todos os empregos possíveis para a palavra. Por exemplo, o aspecto “perigo PT precaução” é estrutural relativamente à palavra “prudente”. Note-se, porém, que tanto a AI quanto a AE de uma expressão podem ser estruturais. Desse modo, os aspectos “prudente PT segurança” e “prudente NE não segurança” pertencem à argumentação estrutural e externa da palavra “prudente”, como se pode ver nos exemplos 23 e 24, cujos discursos são associados a “prudente” 160 CLAUDIA MENDES CAMPOS pela própria língua e não por algum elemento contextual. Como também se pode ver nos exemplos abaixo, a argumentação estrutural externa de uma entidade lingüística contém ambos os aspectos constitutivos do bloco em questão (P PT Q e P NE não-Q) 23) Paulo foi prudente, portanto ele chegou ileso. 24) Paulo foi prudente, no entanto ele não chegou ileso. Já um encadeamento como “João é virtuoso, no entanto tem alguns amigos” é evocado apenas contextualmente pela palavra “virtuoso”, uma vez que nada há na língua que permita associar esta palavra ao aspecto “virtuoso NE amado” e tampouco este aspecto está em jogo em todos os empregos dessa palavra na língua. Somente o contexto pode permitir a associação entre “virtuoso” e o citado aspecto (exemplo extraído de Ducrot, 2000). Assim, também, o aspecto “prudente PT não-segurança” é contextual em relação a “prudente”, uma vez que os responsáveis pela associação entre esta palavra e este aspecto seriam discursos como “Os jovens prudentes sempre sofrem acidentes” e não a língua propriamente dita. Embora o “aspecto prudente PT segurança” pertença à argumentação estrutural da palavra “prudente” e o aspecto “prudente PT não-segurança” pertença à argumentação contextual da mesma palavra, não há nenhuma regra que determine que, se um aspecto “P PT Q é estrutural”, o aspecto “P PT não-Q” será contextual. Por exemplo, o enunciado “A questão das promoções é problemática” tem estes dois aspectos na sua argumentação estrutural. Assim, tanto o exemplo 9 quanto o exemplo 25 a seguitr correspondem aos encadeamentos que realizam aspectos pertencentes à argumentação estrutural do enunciado. 9) A questão das promoções é problemática: eu proponho, portanto adiar sua discussão. (problema PT adiamento) 25) A questão das promoções é problemática: eu proponho, portanto resolvê-la imediatamente. (problema PT não-adiamento) 161 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA Carel & Ducrot (1999, p. 16) demonstram que isso não torna o enunciado nem uma contradição nem uma tautologia, uma vez que o sentido de cada um dos segmentos dos encadeamentos só se constitui na relação entre eles. Não se trata em 9 de um adiamento em absoluto, nem em 25 de uma negação lógica. A relação entre os segmentos do encadeamento no exemplo 9 faz com que a questão das promoções seja vista como um obstáculo – e é justamente porque se trata de um obstáculo que se propõe o adiamento. Já a relação entre os segmentos do encadeamento no exemplo 25 constitui a questão das promoções como uma urgência – que, portanto, recusa adiamento. Note-se também que um aspecto não é, em si, nem estrutural nem contextual. Ele o é apenas em relação a uma dada entidade lingüística, podendo ter estatuto oposto em relação a outra entidade. Tal como descrita acima, a teoria dos blocos semânticos permite a Ducrot em conjunto com Carel explicar a ocorrência de paradoxos na língua sem recorrer a sua exterioridade.30 A definição técnica do paradoxo lingüístico não corresponde ao sentido que ele tem no senso comum; isto é, um paradoxo não é simplesmente uma expressão que contradiz o senso comum. Em sua definição, Carel & Ducrot (1999) não recorrem às crenças do senso comum ou a conhecimentos sociológicos prévios. Apenas a estruturação da língua em termos de blocos semânticos é acionada – tal como se pode ver sinteticamente em Ducrot (2000, p. 26), para quem “decir que un aspecto A de tipo X CON Y es paradójico, equivale a decir que la entidad X o la entidad Y poseen en su argumentación externa estructural un aspecto ‘antitético’ respecto de A, por ejemplo X CON’ Y, X CON NEG-Y o NEG-X CON Y”. Assim, o aspecto dever fazer PT não-fazer é paradoxal porque a AE estrutural da expressão dever fazer contém o aspecto dever fazer PT fazer, contrário ao aspecto considerado paradoxal. Segundo Carel & Ducrot (1999, p.39), En fait le « paradoxe » dont nous parlons ne contredit pas la langue, mais lui est intérieur. Le montrent l’existence de mots paradoxaux et les propriétés spécifiques de la négation des paradoxaux. Ce 162 CLAUDIA MENDES CAMPOS « paradoxe » constitue, pour nous, une des formes de la transgression (au sens ordinaire de ce terme, et non en notre sens technique) inscrites dans la langue elle-même. Une autre serait, nous l’avons signalé, le juron. Une autre encore, ce « transgressif » (au sens technique, cette fois) que nous considérons comme un des deux modes fondamentaux de l’enchaînement argumentatif. E eles continuam: Refuser de nous appuyer sur une sociologie préexistante, ce n’est pas refuser que le linguistique soit mis en rapport avec le social. C’est demander que les faits de langue aient été d’abord étudiés en eux-mêmes. Ensuite on pourra se demander selon quelles modalités ils expriment la réalité sociale. Ce qu’on pourrait faire, par exemple, en cherchant les rapports, complexes et indirects, entre le « paradoxe » ici défini et les «croyances communes ». Ao longo das etapas pelas quais passou a teoria da argumentação na língua, Ducrot vem se preocupando com a descrição tanto de enunciados quanto de palavras, incluindo-se aí os operadores e também as palavras plenas. Durante o período em que vigorou a forma padrão da ADL, a teoria lidava essencialmente com enunciados, ainda que para isso fosse preciso descrever certas palavras da língua, usadas na descrição dos enunciados argumentativos. Assim, os operadores ou expressões argumentativas (por exemplo pouco, um pouco, quase, econômico, avaro) eram operacionalizados como elementos que permitiam chegar a conclusões diferentes, a partir de dois enunciados que se diferenciassem apenas pela substituição de um operador por outro.31 Na teoria dos topoi argumentativos, a atenção volta-se mais especificamente para os enunciados propriamente ditos, sendo os topoi entendidos como o elemento que permite que se extraiam diferentes conclusões de uma mesma frase. Com a teoria dos blocos semânticos, procura-se dar conta da descrição de diferentes entidades lingüísticas, partindo-se do princípio 163 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA de que há argumentação não apenas nos enunciados e nos operadores, mas também nas palavras plenas. Desse modo, Ducrot publica em 2000 um artigo intitulado “La elección de las descripciones en semántica argumentativa léxica”, em que, como indica o próprio título, cresce o espaço no interior da teoria para uma discussão sobre o funcionamento lingüístico do léxico. Nesse contexto, a proposta é construir uma descrição semântica do léxico da língua, atribuindo-se o sentido das palavras aos encadeamentos argumentativos por elas evocados, nos moldes dos blocos semânticos acima discutidos, evitando-se, dessa forma, qualquer perspectiva referencialista ou cognitiva. Ducrot sustenta nesse artigo que a teoria dos blocos semânticos oferece as condições apropriadas para a construção e justificação das descrições lexicais, embora pondere que o objetivo final de descrever todo o léxico da língua ainda esteja por ser alcançado. Assim, o papel desempenhado pelo léxico na ADL é grande e vem crescendo. Ducrot (2000) sustenta que a teoria tem potencial para descrever todo o léxico da língua, objetivo que vem sendo perseguido. Embora a palavra não constitua o foco único da teoria, tal entidade lingüística tem assumido um papel central no seu interior. Na teoria dos blocos semânticos, aprofunda-se a decisão de aumentar o espaço do léxico na ADL e mesmo de estabelecer a descrição de palavras como um objetivo em si mesmo, ainda que um entre outros. A concepção de argumentação altera-se substancialmente, na medida em que é substituída pelo conceito de encadeamento argumentativo. São tomados como argumentativos não apenas os encadeamentos propriamente ditos, mas diferentes entidades lingüísticas que evocam encadeamentos argumentativos (palavras, expressões e enunciados). Em uma eventual objeção à ADL, poderíamos alegar que a incorporação da descrição semântica de palavras, expressões e sintagmas da língua, redundaria em um distanciamento do objetivo precípuo da teoria, a descrição da argumentação em si. No entanto, a própria idéia central da ADL, segundo a qual a argumentação está na língua, traz na sua formulação o objetivo de explicar a argumentação 164 CLAUDIA MENDES CAMPOS com base no funcionamento lingüístico. É exatamente esta idéia que a teoria dos blocos semânticos sustenta, inclusive com mais acuidade do que as versões anteriores da ADL, na medida em que consegue se afastar de uma concepção retórica da argumentação. Ao situar o sentido das entidades lingüísticas nos encadeamentos argumentativos por elas evocados, o que se realiza é a incorporação decisiva da argumentação ao funcionamento da língua. Não apenas os encadeamentos argumentativos são argumentativos, mas também outros tipos de enunciados, expressões e inclusive as palavras da língua (tanto as palavras gramaticais quanto as plenas). Notas 1 Segundo Ducrot (1988), tal concepção é “tradicional” pois é pressuposta pela maior parte das pesquisas sobre argumentação, mesmo que não explicitamente formulada. 2 Jacob (1990). 3 No original: “(A): Vous fréquentez des espions; (C): Vous êtes un espion; (L): Qui s’assemble se ressemble.” 4 Nessa etapa, Ducrot (1987; 1988; 1989) define frase por oposição a enunciado. O enunciado é um segmento do discurso, é um fenômeno empírico, que depende de um lugar, uma data, um produtor e um ouvinte(s). Ele não se repete. Cada nova enunciação, mesmo que da mesma seqüência, produz um novo enunciado. Já a frase é uma estrutura abstrata, não se trata de uma seqüência de palavras escritas. O enunciado é a realização concreta de uma frase. O valor semântico da frase é denominado por Ducrot de significação, ela “é, no essencial pelo menos, constituída de diretivas, ou ainda de instruções, de senhas, para decodificar o sentido de seus enunciados” (Ducrot, 1989, p. 14). O valor semântico do enunciado é o sentido, que remete à especificidade semântica daquela seqüência enunciativa em particular. 5 Em um contexto em que se considere que o trabalho leva ao fracasso, de 1 se concluiria que Pedro vai ter êxito e de 2 que vai fracassar. Ou seja, mantido o contexto, as conclusões serão opostas. 165 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA 6 Um outro par de expressões que recebe a mesma análise é econômico e avaro. Ambas expressam o mesmo fato: quer se diga Pedro é econômico, quer se diga Pedro é avaro, em ambos os enunciados afirma-se que Pedro controla seus gastos. No entanto, a orientação argumentativa possível a partir de cada um deles é diferente: enquanto se pode dizer Pedro me agrada muito, é econômico, o mesmo encadeamento utilizando-se a expressão avaro no lugar de econômico soaria no mínimo estranho (Pedro me agrada muito, é avaro). 7 Esta é uma conclusão possível, por exemplo, em situação em que os falantes dirigem-se a um estabelecimento comercial que fecha às sete horas. 8 Esta conclusão é possível, por exemplo, em situação em que os falantes dirigemse a um estabelecimento comercial que fecha às oito horas. 9 Ao contrário de são apenas oito horas, que indica que pouco tempo se passou. 10 Embora não seja esse o ponto que provoca alterações na teoria, posso destacar outra inconsistência na análise: a frase Pedro trabalhou um pouco pode levar à conclusão vai fracassar ainda que não se considere que “o trabalho leva ao êxito”; isto é, pode-se dizer Pedro trabalhou um pouco, mas não o suficiente para ter êxito na tarefa, de tal forma que independentemente do “princípio argumentativo subjacente” é possível chegar à mesma conclusão a partir de ambas as frases do par pouco / um pouco, por meio da substituição do conectivo “portanto” por “no entanto” (mas). Essa possibilidade assim como esse tipo de encadeamento (X conectivo Y) vêm sendo tratados na versão mais recente da ADL, a teoria dos blocos semânticos. 11 Nessa etapa da teoria, o conectivo que liga os dois segmentos da argumentação é sempre “portanto”, daí a ligação entre este topos e a frase 2 (Pedro trabalhou um pouco, vai fracassar). 12 Para Ducrot (1988), o “enunciador” é o ponto de vista a partir do qual se fala. Pode haver mais de um enunciador em um mesmo enunciado. O locutor é aquele a quem se atribui a responsabilidade pelo enunciado e o autor efetivo do enunciado, sua fonte psico-fisiológica, é denominado sujeito empírico. Em uma analogia com a literatura, Ducrot (idem) aproxima o locutor ao narrador, o enunciador ao personagem e o sujeito empírico ao autor. 13 Segundo Ducrot (idem), não se trata aqui de relações lógicas. 14 Tais proposições corresponderiam a duas formas tópicas de um mesmo topos (“quanto mais se sobe na escala P, mais se sobe na escala Q”). 166 CLAUDIA MENDES CAMPOS 15 A publicação original desse artigo é de 1993. As citações foram extraídas da tradução, publicada em 1999, à qual remetem todas as referências feitas a seguir. 16 “Elas fazem parte desse tesouro interior que constitui a língua de cada indivíduo.” (Saussure, 1989, p. 143; grifo meu) 17 Ver discussão detalhada sobre essa etapa da teoria a seguir, no item 2. 18 De acordo com Ducrot (1999), a argumentação é constituída por um único elemento, o encadeamento propriamente dito, ainda que se possa identificar nele dois segmentos “materiais” usualmente chamados de argumento e conclusão. Tomar o encadeamento argumentativo como uma unidade semântica única significa que argumento e conclusão só têm seu sentido definido um em relação ao outro. Desse modo, o argumento só se constitui como tal em relação a determinada conclusão e vice-versa. 19 DUCROT, O. Topoi et sens. In: 9e Colloque d’Albi – Langage et signification, 1989, p. 1-22. 20 Esta idéia é desenvolvida na teoria dos blocos semânticos, que será discutida em detalhes adiante. Ver Carel & Ducrot (1999) e Ducrot (2000). 21 Crescente incompatibilidade que não se deve propriamente às mudanças do modelo, mas significa percepção da incompatibilidade entre características dos topoi e os objetivos da teoria. 22 Conforme discutido acima, estas restrições são consideradas responsáveis pela significação dos enunciados. 23 Ao considerar que enunciados diferentes entre si podem realizar uma relação do mesmo tipo, Carel & Ducrot (1999) desconsideram as diferenças temporais ou graduais que pode haver entre eles, sem no entanto negarem sua existência. Eles não consideram tais diferenças relevantes para a questão que discutem nesse momento. 24 Problema PORTANTO adiamento. 25 Problema NO ENTANTO não-adiamento. 26 Publicação original em francês de 1995. 27 Para compreendê-las, convém lembrar que, segundo a tese geral da ADL, o sentido de uma entidade lingüística corresponde aos encadeamentos argumentativos que ela evoca. 167 O PERCURSO DE DUCROT NA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA 28 DC (donc) corresponde a portanto. 29 PT (pourtant) corresponde a no entanto. 30 Não interessam a esta pesquisa as especificidades envolvidas na noção de paradoxo, mas apenas o fato de que sua descrição constitui um dos desenvolvimentos permitidos pela teoria dos blocos semânticos. Para mais detalhes sobre tal conceito, ver Carel & Ducrot (1999) e Ducrot & Carel (1999). 31 Ver discussão sobre a forma padrão da ADL no início deste artigo. Referências bibliográficas CAREL, Marion; DUCROT, Oswald. Le problème du paradoxe dans une sémantique argumentative. 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