2
I Seminário Nacional LEPCON: minorias e suas representações.
Anais do I Seminário Nacional LEPCON: Minorias e suas representações. (Org. Antonio Gasparetto
Júnior, Ana Maria Dietrich, Thaís Fernanda da Silva) Juiz de Fora: Editora Literacidade, 2012. Primeira
edição.
346 p. ISSN 1982-3231
1-Anais; 2-Seminário Nacional LEPCON; 3-Comunicações; 4-Minorias
Arte: Daniela Araujo
Comissão Organizadora:
Ana Maria Dietrich – Doutora / Docente (UFABC)
Antonio Gasparetto Júnior – Mestrando (UFJF)
Anysio Henriques Neto – Mestre (UFJF)
Franklin Lopardi Franco – Graduando (UFJF)
Tarcísio Lage Louzada – Mestrando (UFJF)
Victor Hugo – Mestrando (UFJF)
Comissão Científica:
Prof. Dr. Djalma Thürler (UFBA)
Ms. Anysio Henriques Neto (UFJF)
Profa. Dra. Ana Maria Dietrich (UFABC)
Doutoranda Lúcia Helena Joviano (UFJF)
Prof. Dr. Fábio Henrique Lopes (UFRRJ)
Prof. Dr. Carlos Eduardo de Araújo (USS)
Profa. Dra. Gizele Zanotto (UPF)
Profa. Dra. Katia Peixoto (PUC-SP)
Profa. Dra. Maria Marta Camisassa (UFV)
Profa. Dra. Giselda Brito (UFRPE)
Profa. Dra. Silvia Passarelli (UFABC)
Profa. Dra. Andrea Paula dos Santos (UFABC)
Prof. Dr. Alfredo Salun (Uniabc)
Prof. Ms. Renato Dotta (Uniabc)
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Sumário
Diversidades Culturais
Uso de Fotografias Históricas em Documentários. Estudo de Caso: Documentário
Transformação Sensível – Neblina sobre Trilhos.
Fernanda Furtado ................................................................................ P. 9
As Micronarrativas dos Artistas Contra-hegemônicos na Web.
Rafaella Rabello & Christina Musse .................................................... P. 23
Patrimônio Material e Imaterial
Memórias em Disputa, Poderes em Questão.
Ana Catarina Braga ............................................................................. P. 34
O Esquecimento de uma Arte: o desinteresse da arquitetura do século XIX e seus reflexos
na preservação em Juiz de Fora.
Fabiana de Almeida ............................................................................ P. 52
A Inclusão de Minorias na Promoção do Patrimônio Cultural Imaterial.
Yussef de Campos .............................................................................. P. 61
Mestiçagens e Representações
No Reino de Ogum: uma etnografia de um Omolokô umbandista em Juiz de Fora.
Dartagnan Silva & Liliane Pires .......................................................... P. 69
4
Políticas Públicas, Polícias e Direitos
O Estupro Enquanto Genocídio: participação da sociedade civil para a produção do
conceito.
Camila Lippi ....................................................................................... P. 81
A Dramaturgia Social de Erving Goffman: influências, debates e aplicações.
Henrique Goulart ................................................................................ P. 93
Análise das Práticas de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas na Região do
Grande ABC.
Juliana Marin Marin Fabron ................................................................. P. 105
Movimentos Sociais na Contemporaneidade
O Judaísmo Internacional: a “autenticidade dos Protocollos dos Sábios de Sião”.
Luiz Mário Costa ................................................................................ P. 116
Trabalho e Transformação, Atividade Prático Sensível.
Soria O. Costa ..................................................................................... P. 126
Diversidades Sexuais e Linguagens
O Papel da Mulher no Rádio Iurdiano: narradoras eletrônicas na frequência da web.
Cláudia Modesto & Márcio Guerra ..................................................... P. 134
Educação e Minorias I
Semana de 22 – um marco brasileiro.
Cláudio Kaz ........................................................................................ P. 146
5
Educação do Campo: namoro, disciplina, liberdade e gestão escolar.
Jairo Barduni Filho & France Coelho .................................................. P. 155
Filosofia e Religião
Delio Cantimori e suas Diferentes Abordagens dos Reformadores e Hereges do
Cinquecento: de heróis nacionais à manifestação de resistência espiritual.
Felipe Xavier ...................................................................................... P. 167
Identidades, Guerra e Memória.
Religião e Identidade: as experiências de guerra de um capelão da FEB.
Anysio Henriques Neto ....................................................................... P. 178
O Processo Histórico da Formação da Associação Nacional dos Veteranos da Força
Expedicionária Brasileira: construção de um espaço de memória.
Franklin Franco & Anysio Henriques Neto ......................................... P. 195
Literatura e Representações
Resgate dos Arquétipos Indo-americanos n’O Feitiço da Amérika
Aline Pernambuco ............................................................................... P. 209
Arte, Fotografia e Cinema
Fotografia e Memória: o lugar dos escravos libertos e seus descendentes na nascente
sociedade urbana de Entre-Rios.
André Mattos ...................................................................................... P. 219
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Imprensa, Minorias e Representações
A Voz das Minorias no Telejornalismo Público: o quadro Outro Olhar enquanto uma
possibilidade educomunicativa.
Diego Rezende & Iluska Coutinho ...................................................... P. 231
Representação Feminina na Mídia Impressa
Gerlice Rosa ....................................................................................... P. 241
Lampiônicos e “Entendidos”: uma análise do jornal Lampião da Esquina durante a
formação do movimento homossexual brasileiro.
Lucas Lino & Patrícia Furnaletto ........................................................ P. 252
Afrodescendente: cultura e representação.
A Voz Silenciada de Ponciá Vivêncio de Conceição Evaristo: paradigmas de representação
da mulher negra na literatura.
Rilza Toledo ....................................................................................... P. 264
A Imprensa Negra e a Auto-Afirmação dos Afrodescendentes
Rodrigo Ferreira .................................................................................. P. 276
Minoria e Inclusão
Deficientes Visuais no Jornal Nacional: uma análise sobre a representação telejornalística
desse público minoritário.
7
Marcello Machado .............................................................................. P. 289
Formação Inicial de Professores em uma Perspectiva Inclusiva
Roselia Gonçalves ............................................................................... P. 302
Representações Historiográficas
Discussões Historiográficas e Romances Históricos: diálogos possíveis?
Rodrigo de Araújo .............................................................................. P. 314
Educação e Minorias II
Educação Sociológica para o Sujeito Surdo: um olhar acerca da cultura e inclusão.
Arthur Fontgaland, Isabelle Lima e Souza & Ana Gediel .................... P. 325
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Diversidades Culturais
Uso de Fotografias Históricas em Documentários
Estudo de Caso: Documentário Transformação Sensível – Neblina sobre Trilhos.
Fernanda Gonçalves Furtado*
Ana Maria Dietrich**
Resumo: O artigo trata do uso de fotografias como fonte histórica no documentário
Transformação Sensível – Neblina sobre Trilhos e sua importância no entendimento dele
servindo, portanto, muito mais que uma simples ilustração mas como complemento
documental às narrativas orais dos ex-ferroviários.
Palavras-Chave: ferrovia, fotografias, história regional, Paranapiacaba
Abstract: The article examines the use of photographs as historical source in the
documentary Transformação Sensível – Neblina sobre Trilhos and its importance in
serving his understanding, so much more than a simple illustration but as a complement to
document oral histories of former rail.
Key-words: railroad, photographs, local history, Paranapiacaba
Introdução
O documentário Transformação Sensível – Neblina sobre trilhos realizado pela Próreitoria de Extensão da Universidade Federal do ABC, com apoio do MEC/MINC durante
os anos de 2009-2011 mostra através de narrativas orais de
ex-ferroviários suas
perspectivas sobre a história da implantação e o desenvolvimento da primeira via férrea
em solo paulista: a Estrada de Ferro Santos Jundiaí que também recebeu o nome de São
*
Graduanda do curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia na Universidade Federal do ABC –
[email protected]
**
Pós-doutora em Sociologia pela UNICAMP, doutora em História Social pela USP, professora adjunta da
UFABC - [email protected]
9
Paulo Railway Company Limited- SPR e o desenvolvimento da Vila Paranapiacaba nesse
contexto.
A história da vila de Paranapiacaba está intimamente relacionada com a construção
e a operação da estrada de ferro, que originou-se devido à necessidade de atender a
expansão da economia cafeeira de São Paulo, conseqüentemente, a população que ali
residia tinha algum vínculo com a companhia inglesa, responsável pela ferrovia.
Trabalhar na ferrovia passou a ser uma tradição que se passava de pai para filho. Isso é
possível perceber na fala de Lavander:
Foi montado um grande acampamento de trabalhadores no Alto da Serra e outro
no litoral, na raíz da Serra, que abrigavam cerca de 5.000 operários, técnicos e
engenheiros. Quando a construção da ferrovia transpassou a barreira da Serra do
Mar e atingiu o Planalto Paulista, com esse imenso canteiro de obras e as
necessidades de tantos trabalhadores surge Paranapiacaba, que inicialmente
chama-se Alto da Serra. Em 1907 a vila passou a se chamar Paranapiacaba, que
em tupi-guarani signifca "lugar onde se avista o mar"(LAVANDER,2005)
Entretanto, mais tarde, com a diminuição da atividade cafeeira e a expansão da
malha rodoviária temos o declínio da ferrovia. A decadência trouxe consigo mudanças na
realidade dos moradores daquela região, que dependiam das atividades ferroviárias.
Demissões em massa, fizeram que antigos moradores deixassem a vila e os que persistiram
tentaram sobreviver com comércios locais, turismo ou mesmo trabalhando em cidades
vizinhas.
É notável que apesar dos esforços de entidades para garantir sua preservação,
quando visitamos a Vila de Paranapiacaba vemos descaso, declínio e degradação mesmo se
tratando de um patrimônio tombado. Segundo Aziz Ab´Saber:
A Vila de Paranapiacaba é exemplo vivo de um aglomerado urbano, palco de
acontecimentos sócio-culturais construídos pelo homem em época de um
memorável passado não muito distante (no 2º milênio,lembram-se?) e, hoje
reflexo da situação esdrúxula pela qual passa todo patrimônio histórico, enquanto
produto do homem, portanto arte, vítima do descaso, que necessita com urgência
de medidas que impeçam a deterioração de seu espaço. A gravidade da situação
exige uma postura da sociedade como um todo, pois tomando a localidade como
exemplo, o momento exige seriedade de todos os órgãos que tem o dever de
zelar pelas condições de preservação dos nossos bens culturais. Não se pode
mais adiar a implementação de propostas de revitalização que levem em conta a
destinação social. ( AB’SABER,2008)
10
Nesse contexto, o documentário tem a finalidade de divulgar o patrimônio
histórico, levar a reflexão da situação atual dos ex-ferroviários, sensibilizar e, acima de
tudo, preservar a memória social.
A fotografia auxilia nesse processo, pois confere um testemunho visual nas
narrativas dos ex-ferroviaários, proporcionando um caráter documental, e não somente
ilustrativo, auxiliando assim, na compreensão. Com elas, os cenários mencionados nas
falas dos depoentes deixam de ser “imaginados”, sendo um auxilio a mais para o
entendimento dos espectadores, no qual os temas retratados nem sempre são familiares a
todos.
Fotografia como fonte histórica
A fotografia surge com o advento da Revolução Industrial, em que, aquele
momento de transformação econômica, política, social propiciou o desenvolvimento de
muitas áreas cientificas, além de diversas invenções. Com o surgimento da fotografia nasce
também uma importante ferramenta para a pesquisa científica que não deixa de ser uma
manifestação artística. A partir disso, o registro de paisagens, obras de implantação de
estradas de ferro, costumes, guerras, fatos sociais começaram a ser documentados pela
câmera o que possibilitou conhecer de forma detalhada povos distantes e costumes
diferentes dos nossos. Pode-se observar isso nas palavras de Kossoy:
O descobrimento da fotografia propiciaria, de outra parte, a inusitada
possibilidade de autoconhecimento e recordação, de criação artística, (e portanto
da ampliação dos horizantes da arte), de documentação e denúncia graças a
natureza testemunhal (melhor dizendo, sua condição técnica de registro preciso
do aparente e das aparências). (KOSSOY, 2009, P. 27)
Apesar disso, a utilização de fotografia como documento ainda é muito recente e
restrito, muitos historiadores ainda preferem as fontes escritas.
A fotografia é uma fonte inestimável que nos permite conhecer fragmentos da
história. Com ela nos aproximamos da história no presente, tanto a história individual
quanto coletiva. Além disso, traz consigo uma diversidade de informações que nem sempre
constam na história escrita, devido a isso, é possível observar a importância da mesma
como fonte de pesquisa que permite acrescentar novas e diferentes informações aos fatos
retratados pela história.
11
Nesse contexto, ela foi utilizada no documentário com caráter documental, no qual
tem-se a fotografia como um “resíduo” do passado servindo como uma fonte a mais para a
compreensão do mesmo e fornecendo, muitas vezes, mais informações do que as narrativas
orais dos ex-ferroviários. É válido lembrar que, alguns dos temas que são retratados pelos
mesmos são desconhecidos pela maioria das pessoas que não tiveram contato com a
história ou o trabalho dos ferroviários e por se tratar de um documentário de caráter
pedagógico existiu a preocupação de deixá-lo mais didático utilizando-se, para isso, de
recursos fotográficos. Por exemplo, expressões, mencionadas no documentário, como
sistema funicular, serra velha, serra nova, máquina fixa, remetem a cenários que, muitas
vezes, são desconhecidos por leigos. Logo, para que a compreensão destas e de outras
situações fossem mais imediatas, ou seja, os cenários narrados pelos ex-ferroviários
deixassem de ser “imaginados” para serem vistos, foram feitas inserções de fotografias.
Abaixo na Figura 1, tem-se uma foto que foi inserida do Sistema Funicular, e como
pode-se observar facilita bastante a compreensão:
12
Figura 1: Trabalhadores da SPR no Sistema Funicular.
Como observado anteriormente, as fotografias contêm inúmeras informações que,
na maioria das vezes, não encontramos nos depoimentos dos ferroviários, como por
exemplo, aspectos sociais, tipos de vestimentas utilizadas na época, paisagens diferentes
das que encontramos hoje, dificuldade do trabalho exercido por aqueles ferroviários, entre
outros.
Além disso, um aspecto importante sobre as fotografias da época é que, como não
se dispunha de certas técnicas de manipulação de fotos como atualmente, estas possuem
um elevado caráter documental. É possível verificar isso nas fotos abaixo:
13
Figura 2: Trabalhadores Loco-breque da SPR ( 1930 )
Figura 3: Paranapiacaba- antigo Alto da Serra
14
Figura 4: Empregados da SPR nas maquinas.
A partir do exposto pode-se observar a importância da fotografia no documentário
tanto para a compreensão daqueles que não estavam presentes na época quanto para os que
vivenciaram aquele momento histórico, pois serve como um estímulo à lembrança
legitimando o registro fotográfico. Nas palavras de Kossoy: “As fotografias, em geral,
sobrevivem após o desaparecimento físico do referente que as originou: são elos
documentais e afetivos que perpetuam a memória”. (KOSSOY, 1998, P.45).
Além disso, outra função da fotografia é auxiliar o documentário, como
complemento documental, na busca pela preservação do patrimônio histórico e na
demonstração do descaso em que se encontra a Vila de Paranapiacaba atualmente, servindo
também, como parâmetro para a comparação do passado com o presente. O que se busca é
a sensibilização para a mudança, levando a população local e de outros lugares à exigirem
as medidas necessárias.
Paranapiacaba é uma vila de patrimônios históricos, e estes são, de certa forma,
fragmentos da memória coletiva daquilo que existiu no passado.
15
A manutenção desse patrimônio gerará um sentimento de identidade cultural que,
possivelmente, levará à uma reelaboração da memória dos ex-ferroviários, permitindo com
isso, o diálogo entre o presente e o passado.
Abaixo podemos observar a partir de fotografias o descaso com a preservação do
lugar, em que as moradias se encontram sem a manutenção necessária, além dos trens a
céu aberto já sofrerem com a ação do tempo.
Figura 5: Degradação dos trens
16
Figura 6: Moradias da vila sem manutenção adequada
17
Figura 7: Trem esquecido e exposto a ação do tempo
Enfim, nota-se que, inevitavelmente, as fotografias promovem esse diálogo entre o
passado e o presente, auxiliando no estimulo às lembranças individual e coletiva.
Inserção de fotos no documentário
A escolha e inserção das fotos no documentário foram feitas de acordo com a
descrição abaixo:
•
Pesquisa Bibliográfica e formação de um banco de fotografias que se adequassem
ao tema e que posteriormente poderiam ser utilizados no documentário. Algumas
fotografias foram disponibilizadas pelos próprios ferroviários, como as figuras
abaixo, outras digitalizadas de livros por se tratarem de fotos antigas e algumas
tiradas pelos próprios integrantes do grupo.
Algumas fotos cedidas pelos ex-ferroviários:
18
Figura 8: As. Geral dos ferroviários S. Jundiaí pela greve de 1954
19
Figura 9: Ministro Hélio de Almeida – discutindo acordo coletivo - 1963
•
Escolha das fotografias: a escolha das fotos não foi feita de forma aleatória buscouse o exame crítico das fontes utilizadas, além da interpretação das informações
contidas na imagem, para que se pudesse escolher o que melhor se adequasse à
narrativa.
•
Tratamento e inserção de imagens: O tratamento das imagens foi feito de forma a
não alterar características que fazem parte da história da mesma, como por
exemplo, marcas do tempo, amarelado, entre outros. E por último temos a inserção
das fotografias.
Considerações finais
Como demonstrado verificou-se a importância da utilização de fotografias no
presente documentário, como complemento documental às narrativas. As fotografias
documentam, em forma de testemunhos visuais, fatos do passado, por isso, sua utilização
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foi essencial no entendimento do documentário, auxiliando a compreensão da época
retratada e ajudando a elucidar partes da cronologia histórica.
Além disso, pode-se
destacar a importância no estimulo a memória coletiva e indiviual, que é muito bem
exposto nas palavras de Kossoy: “Fotografia é memória e com ela se confunde.”
(KOSSOY, 1998)
Fonte das imagens
1. http://www.cidadeshistoricas.art.br/paranapiacaba/pnp_his_p.php
2. Santo André – Cidade e Imagens, 1991, P. 27 – Acervo Município de Santo André
3. Santo André – Cidade e Imagens, 1991, P.31 – Acervo Município de Santo André
4. Imagem disponível no acervo Transformação Sensível - Neblina Sobre Trilhos
5. Imagem disponível no acervo Transformação Sensível - Neblina Sobre Trilhos
6. Imagem disponível no acervo Transformação Sesível - Neblina Sobre Trilhos
7. Imagem disponibilizada pelo ex-ferroviário Raphael Martinelli
8. Imagem disponibilizada pelo ex-ferroviário Raphael Martinelli
Bibliografia
ALBUQUERQUE, M. B M.; Klein, L. E. Pensando a fotografia como fonte histórica
(Pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz) Cad. Saúde Pública vol.3 no.3 Rio de
Janeiro July/Sept. 1987
ALAMINO, C. A. M.; - VILA DE PARANAPIACABA: Paradoxos de um patrimônio
histórico e um ponto turístico - Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH •
São Paulo, julho 2011
AB’SABER, Aziz Nacib. Geógrafo da Universidade de São Paulo, na VIII Semana do
Ferroviário,
em
setembro
de
2000.
Dísponivel
em:
http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp267.asp Acesso em 15/01/2012
CANABARRO, IVO. Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Estudos
Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 23-39, dezembro 2005
21
KOSSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica; introdução à pesquisa e interpretação
das imagens do passado. São Paulo, Museu da Ind. Com. e Tecnologia de São Paulo SICCT - 1980.
KOSSOY, Boris. Fotografia e Memória: reconstituição por meio da fotografia. In:
SAMAIN, E. (Org). O Fotográfico. 1.ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
LAVANDERJR, M.; MENDES, P. A.. SPR, Memórias de uma inglesa: a história da
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.
22
As Micronarrativas dos Artistas Contra-hegemônicos da Web
Rafaella Prata Rabello*
Christina Ferraz Musse**
Resumo: Procuramos refletir sobre os artistas virtuais da atualidade, que além de terem
uma luta política, defendem suas causas pessoais no espaço na internet. De acordo com a
produção de vídeos independentes na periferia de Juiz de Fora, a partir de 2000. Buscamos
entender esta nova visibilidade e os rumos que o ciberativismo toma no momento em que o
sujeito passa a não ter somente “15 minutos de fama”, mas também a transformar sua
realidade e de pessoas que o cercam. Na contemporaneidade, através da disponibilidade de
tecnologias, os rostos das comunidades desejam se revelar e produzir os próprios
conteúdos. A arte do espaço real mergulha na virtualidade e o espectador torna-se autor,
provocando uma contra-hegemônia. A web é a possibilidade para que novos modelos
democráticos ganhem voz.
Palavras-chave: internet; comunidade; audiovisual; narrativa; comunicação.
Abstract: We seek to reflect on the virtual artists of today, which besides having a
political fight, defend their personal causes on the Internet space. According to the
independent video production on the outskirts of Juiz de Fora, from 2000, we tried to
understand this new visibility and the direction the cyber-activism takes the time that the
subject has not only "15 minutes of fame" but also to transform their reality and people
around them. In contemporary times, through the availability of technologies, the faces of
the communities wish to disclose and produce their own content. The art of real space and
virtual goes into virtual way and the viewer becomes author, provoking a counterhegemony. The Web is the chance for new models to gain democratic voice.
Keywords: internet, community, visual, narrative, communication.
*
E-mail: [email protected] Estudante de Graduação 5º período de Letras da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF) e de Jornalismo 7º período Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF).
**
Profª. Drª. Christina Ferraz MUSSE (UFJF) - Orientadora do trabalho e coordenadora do projeto: Cidade e
memória: a construção da identidade urbana pela narrativa audiovisual.
23
Introdução
O desenvolvimento do vídeo deu boom a uma manifestação: a produção
independente. O que caracteriza e difere este movimento novo é a sua vocação política,
que transcende o estético e o comercial na busca por espaços definitivos. A Comunicação
Social usa dos veículos de mídia tradicional há tempos para mostrar a vida de diversas
aldeias sociais. Porém, a transmissão midiática traz no seu discurso cristalizações de visões
de mundo, preconceitos, concepções de classe, interesses mercadológicos e motivações
políticas. O autor na atualidade produz conteúdo de acordo com os seus gostos e vivências.
Ele edita, reproduz, comenta e é comentado.
Em projetos como o site YouTube, que surgiu em 2005 e tem o domínio do Google,
permite-se o compartilhamento de vídeos de pessoas de qualquer parte do mundo. Esta
plataforma consente que elas transmitam o vídeo, contabilizem seus acessos e aprendam a
lidar com esta nova ferramenta de interação que pode gerar uma fama instantânea dos
autores. Em maio de 2009, o YouTube já recebia 20 horas de uploads por minuto,
segundo um post publicado por Ryan Junee, gerente de produto do site, no blog oficial do
YouTube1. Os vídeos têm vários formatos e no máximo quinze minutos de duração. Este
dado, de matéria do site Mac magazine2 menciona no título que a expansão de dez para
quinze minutos de cada vídeo se deu por um desejo da empresa de permitir que todos
tenham seus “15 minutos de fama”.
Em matéria do portal laboratório3 da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) extrai o dado de que diariamente são postados vinte mil vídeos no YouTube. Os
números da pesquisa Allot MobileTrends Report, feita pela Allot Communications no
segundo semestre do ano passado com dados das principais operadoras móveis do mundo,
divulgada no site Terra4, no dia oito de junho de 2011, mostram que o YouTube é o site
que respondeu pela maior parte do tráfego de dados de banda larga móvel no mundo no
1
http://youtube-global.blogspot.com/2009/05/zoinks-20-hours-of-video-uploaded-every_20.html acesso em
30 de junho de 2011.
2
http://macmagazine.com.br/2010/07/29/youtube-expande-limite-de-tempo-para-videos-quer-que-todostenham-direito-a-15-minutos-de-fama/ Acesso em 14 de julho de 2011.
3
http://www.fafich.ufmg.br/tubo/criacao/iptv/novas-midias-e-internet/you-tube-e-a-infinitude-da-rede-virtual/
Acesso em 14 de julho de 2011.
4
http://tecnologia.terra.com.br/noticias/0,,OI4936109EI12884,00YouTube+representa+do+uso+de+dados+da
+banda+larga+movel.html acesso em 30 de junho de 2011.
24
segundo semestre de 2010, representando 17% do total. O streaming (relativo à informação
que é transmitida em tempo real pela Internet) de vídeo representa 37% dos dados
transferidos em 2010, e o YouTube foi responsável por 45% desses dados.
Comunicação alternativa na internet
A internet possibilita ao homem um espaço de navegação amplo, onde o internauta
pode aprender a criar e compartilhar conhecimento. Cecília Peruzzo entende que o meio
acaba se tornando um instrumento das classes subalternas para externar sua concepção de
mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e
socialmente justa. (PERUZZO, 2006, p.4) Na internet estas classes aparecem sem sofrerem
uma edição de suas falas e gestos, como em telejornais da grande mídia. Elas se mostram
da maneira que são ou que desejam ser no real. O meio não impede a publicação de nada,
no caso do YouTube, desde que o usuário tenha uma conta. Tudo pode ser exposto da
maneira que se desejar, mas o vídeo pode ser posteriormente retirado do ar se o conteúdo
postado for inadequado. Podemos citar, por exemplo, conteúdos pornográficos proibidos
para menores de dezoito anos.
Nas produções recentes existe uma inserção de pessoas da periferia que falam por si
próprias, para outra construção do real, que escapa ao controle dos meios hegemônicos.
Peruzzo complementa que os projetos de comunicação nos meios comunitários, geralmente
assumidos por adolescentes e jovens, ajudam na auto-estima e cidadania nas regiões
carentes de infra-estrutura (PERUZZO, 2005, p.6). Outra questão levantada por ela é de
que o modo combativo das comunicações populares abre espaço para congregação do
lúdico, da cultura e do divertimento para negociações, sem, porém, deixar o aspecto da
contestação. A comunicação popular comunitária como sendo feita pelas organizações e
movimentos populares.
O vídeo aparece como um meio de comunicação alternativo. Mesmo assim,
devemos reconhecer que “nas práticas sociais, os processos comunicacionais são
holísticos. Não se dissociam de mobilizações mais amplas e podem assumir hibridismo de
linguagem, formatos e conteúdos”. (PERUZZO, 2008, p. 11). Peruzzo estabelece que a
comunicação comunitária envolve a participação dos cidadãos na produção, emissão e
25
recepção dos conteúdos, tornando-se um canal de comunicação do movimento em questão.
A comunicação popular-alternativa envolve a participação, mas não são assumidos pela
comunidade como um todo, podem ser de iniciativa de indivíduos que não estão ligados a
instituições. As iniciativas podem ser em bairros, comunidades, movimentos sociais,
organizações civis que buscam a justiça social, ou individuais com o objetivo de expor
alguma coisa pessoal. O anônimo na busca de se tornar conhecido.
Pacheco (2002) analisa a comunicação alternativa distribuída na internet e atribui o
privilégio das comunicações transversais à rede e comenta que ela: “faz do usuário um
ator/espectador, um produtor/consumidor e um quase objeto, quase sujeito, e que tem
como modelo os sistemas abertos biológicos e é regida por uma lógica do
compartilhamento e da abundância e do espaço intermediário” (PACHECO, 2002, p. 119).
A difusão contra-hegemônica na rede
A internet permite que as vozes do discurso encontrem uma possibilidade de
difusão impressionante. Moraes explica que a malha hipertextual, em retroalimentação
contínua, impulsiona a formação de redes que englobam fluxos informativos,
manifestações culturais e interferências cognitivas. E ainda considera que as redes
distinguem-se como sistemas organizacionais com estruturas flexíveis e colaborativas
baseadas em afinidades, objetivos e temáticas comuns entre os integrantes, a partir da regra
ou modalidade de convívio compartilhado (MORAES, 2008, p.43).
A convivência virtual sociabiliza e favorece contato entre atores coletivos cujas
identidades trocam projetos culturais, éticos, morais e de resistência à globalização. Os
vínculos
entre
os
membros
podem
ser
duradouros
ou
circunstanciais.
Seus
compartilhamentos aparecem em arquivos audiovisuais de aspirações comuns, com forças
de reivindicação até internacionais. O engajamento das pessoas é comunicacional,
ideológico e político, já que as suas forças têm uma ação a favor da popularização da vida
social. Além disso, as trocas não exigem grande capacidade operacional, fazendo-se com
que as iniciativas não enfrentem burocracia, típica do sistema tradicional globalizado,
capitalista.
26
Para Moraes (2008), a web oferece várias dimensões de comunicação. Vamos
comentar aqui alguns pontos abordados. O primeiro deles seria a defesa da universalização
dos direitos democráticos. Observamos que a internet é um meio relativamente barato,
visto que além do domicílio, que é pago, a pessoa pode usufruir do serviço em locais
públicos ou em lan houses com preço acessível. A internet reúne todos os povos ao mesmo
tempo. A descentralização da informação a qualquer ponto da rede, que pode estabelecer
troca com outros pontos facilita uma intertextualidade entre os discursos e uma ampliação
de fala dos indivíduos. A informação não é mais produzida para atender ao interesse
público, ela é feita pelo mesmo.
Os dados podem ser divulgados sem burocracias midiáticas; a pauta é de
responsabilidade única do autor. A influência da indústria cultural aparece de outras
formas. Os hábitos das pessoas, o modo de vida capitalista, as novas formas de artes e
artistas. O formato da internet incentiva a hipertextualidade; (leitores podem adicionar
comentários, informações, publicar textos,) e ainda podem reproduzir informações
comerciais desde que tenham o cuidado de citar a fonte. O texto pode ser profundo ou
objetivo, subjetivo ou irreverente.
Como a comunidade se mostra na internet
Paiva (1998) discute que o surgimento de produtos de informação a partir dos
grupos comunitários tem ótica local, de tema relacionado ao particular, ao que interessa
especificamente àquele grupo, e de conscientização de sua realidade. Com o reforço de
uma das características da comunidade: “a das relações de pertencimento entre seus
membros, e consequentemente o poder reivindicatório, que se instala a partir da
informação numa ótica pragmática, não como um propósito meramente promocional, mas
de melhoria da condição de vida do indivíduo” (PAIVA, 1998, p.58).
Por mais que se trate às vezes de uma vaidade individual, quando pessoas gravam
vídeos de dança, música, ou qualquer outra arte, ali também está agregado o seu valor
comunitário. Elas demonstram como aprenderam a interpretar os signos que definem sua
condição social. A diversidade cultural é facilmente identificada se pegarmos, por
exemplo, um cidadão do norte do país e outro da região sul. Em contraponto, temos o
27
discurso hegemônico dos grandes meios que, de certa forma, pasteurizam o real. Se a cada
dia, uma pessoa da periferia resolve aparecer num ponto da rede e questionar o sistema, a
contra-hegemonia se faz presente. Paiva defende nessa direção a importância das narrativas
no interior de uma comunidade: “A seleção do que merece ser interpretado, repassado e
revivido determina o espírito da comunidade”. (PAIVA, 1998, p. 58)
Com os avanços técnicos e a estética diluída, a que as vanguardas recorreram para
instigar o espectador, o grande público passou a se familiarizar com este contexto.
As micronarrativas passam a ser consideradas também como um recurso
utilizado pelo indivíduo, em sua solidão existencial, para se conectar com o outro
e para reatar os fios partidos das narrativas identitárias, assumindo-se como
centro de definição do sentido de sua própria vida. As narrativas locais de
experiências vividas se oporiam, tanto à temporalidade associada ao progresso
pela modernidade, quanto ao esvaziamento do tempo operado pelo
cibercapitalismo e pela globalização (FIGUEIREDO, 2010, p 88).
Outra questão que conta muito e que sempre foi motivo de preocupação para a
mídia é a credibilidade. Os valores do jornalista, por mais respeitado que seja como
profissional, podem comprometer a transmissão da informação. Com a internet e as
próprias pessoas criando o conteúdo tal problema pode ser minimizado, mas também há
histórias que são inventadas para fins de entretenimento e acabam sendo creditadas como
verdade coletiva por certo tempo. A própria imprensa utiliza alguns dos materiais da
internet para complementar a cobertura de algum assunto relevante.
O indivíduo é transformado pela virtualidade. Figueiredo (2010) comenta que nas
construções contemporâneas aquele que narra passa a ser valorizado como lugar de
ancoragem, na primeira pessoa, sem que seu relato precise respeitar o pacto de relação com
o formato das mídias. O artista mantém o elo com o real em função de ser a voz que narra,
de sua auto-referência. O que passa a importar é o seu olhar perante a comunidade. A
autora também distingue as diferentes produções e estabelece uma prioridade:
Em meio à guerra de relatos, toma-se partido daquele que parte do indivíduo
comum, não porque seja mais fiel aos fatos, mas porque tem a marca pessoal,
constituindo um esforço voltado para a construção da memória, da identidade e
do sentido (FIGUEIREIDO, 2010, p.94).
A consolidação da webmídia
28
Moraes (2008) discorre sobre fatores determinantes da permanência do discurso
comunitário na internet. A consolidação para ele depende da definição de estratégias de
comunicação que valorizem as potencialidades multimídias. Para isso, é necessária
constante e criativa renovação visual das webmídias como forma de atração do internauta.
A linguagem deve ser acessível, respeitando variações de dialeto e diferenças entre norma
culta e coloquial. O importante é dar margem para interpretação. As pautas precisam de
ousadia, porque do aspecto comum a mídia tradicional já trata. Experimentar novas
linguagens enriquece a produção audiovisual. Representantes de organizações da sociedade
civil devem ser incluídos na gestão de redes públicas ou financiadas por instituições
governamentais, para que cada classe possa ser levada em consideração na definição de
estratégias comunicacionais. Neste sentido, a oferta de conteúdos e serviços deve respeitar
peculiaridades locais, regionais e nacionais.
O estímulo à formação de redes comunitárias é de suma importância, porque a
periferia é maioria num país em que as riquezas são concentradas nas mãos de muito
poucos. E para criação destas redes precisa-se de um aumento substancial do número de
usuários, o que depende da superação de entraves econômico-financeiros (custo de
computadores, linhas e tarifas telefônicas, acesso em banda larga). Para finalizar, Moraes
(2008) também defende a elaboração de projetos públicos de inclusão digital, conciliando
soluções tecnológicas com programas educativos. Porque além de produzir conteúdo
audiovisual independente, a comunidade pode aprender a prestar esses serviços com mais
qualidade técnica, potencializando sua repercussão na sociedade.
A fama da transexual juizforana Xuxú
Na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, temos o exemplo da transexual Xuxú, 22
anos, que morava no bairro carente Santa Cândida, pertencente à região Leste da cidade.
Ela saiu da sua comunidade e reside atualmente no Rio de Janeiro. A artista busca sua
realização na música hip hop. Tornou-se famosa após postar um vídeo em outubro de 2008
29
no YouTube5, que já teve mais de 504 mil e 65 acessos. Os marginalizados são temas de
suas canções.
A cantora trata de temas políticos, mas gera uma revolução individual, pois
também se preocupa com sua carreira, a ascensão particular. Depois da produção de seu
primeiro vídeo em 2008, Xuxú foi convidada em maio de 2009 a participar de um
programa eleitoral de uma candidata à prefeitura de Juiz de Fora. A voz dela saiu da rede,
da periferia e caiu na TV em horário nobre. O seu discurso teria neste momento mais uma
chance de ser respeitado e levado a sério. A repercussão de seu vídeo mais conhecido, ‘A
pantera cor de rosa’ foi tão grande, que em setembro do mesmo ano teve indicação como
web hit do ano no prêmio VMB da emissora MTV. Xuxú passa a integrar neste momento
um grupo que é eleito por um nicho seletivo, ganhando destaque pela visibilidade
internacional.
Não satisfeita, Xuxú participou em fevereiro de 2010 do programa do SBT, ‘Qual é
o seu talento?’. O vídeo de sua apresentação rendeu a ela quase 19 mil acessos no
YouTube. Segue abaixo entrevista6 em que Xuxú fala um pouco sobre sua carreira, os
vídeos e a relação com a internet: “O nome do primeiro cd é "009", e contava com a
participação do MC Aice, da PZP (Posse Zumbi Dos Palmares), minha origem musical.
Todo cantor quando lança um cd e escolhe um single como trabalho, já logo pensa no
videoclipe, que é uma forma de divulgação do trabalho” (XUXÚ, 2011).
A cantora ainda fala sobre a colaboração da Web na vida cotidiana: “Hoje em dia, a
internet te ensina até a fritar um ovo. Basta falar bem ou mal dos artistas para eles
crescerem. A divulgação é a importância da internet para o artista” (XUXÚ, 2011). Sobre a
questão da mudança social ela faz um contraponto: “Para que minha vida seja
transformada, tenho que dar uma vida boa a minha mãe, podendo viver da música sem
abusar do meu corpo para gravar um vídeo que poderá ou não me dar sucesso. Quero
ganhar dinheiro com a música do mesmo jeito que gasto pra que ela cresça em minha vida”
(XUXÚ, 2011).
5
http://www.youtube.com/watch?v=ygQ6ZnboEFU&feature=player_embedded#at=105 acesso em 01 de
julho de 2011.
6
Entrevista concedida a autora, por e-mail, no dia 29 de junho de 2011.
30
Xuxú caba por reconhecer sua condição: “Não sou nenhuma Britney, apenas o
primeiro rapper gay do Brasil!” (XUXÚ, 2011). E também se manifesta em relação à
produção audiovisual e seus desdobramentos: “A divulgação das músicas por vídeo ajuda
um pouco a combater o preconceito. No YouTube tem muitos comentários hilários em
meus vídeos. Respeito quem não gostou e não preciso que me aceitem na mídia, apenas
que me respeitem” (XUXÚ, 2011).
O novo hit da cantora chama-se Paparazzos7. Xuxú comenta o quanto à relação do
artista com a mídia é delicada. Um ponto que tem levantado discussão na sociedade é a
operação transexual. Nesse aspecto, podemos comprovar que Xuxú faz uma ponte entre o
social e o pessoal em suas canções. Fala de algo que interfere nas suas relações, na carreira
e de um tema que envolve o público homossexual e a sociedade civil em geral. Segue um
trecho da música:
Me perguntaram se sou homem ou mulher
Se sento pra fazer xixi ou se faço em pé
Me perguntaram como eu faço pra trucar
Se cortei ou se um dia vou cortar
As vezes é difícil ser Xuxú
Não posso esconder não posso nem coçar o
Cu-cu-cu-custe o que custar, deixa quem quiser falar
Bem ou mal valeu muito obrigado por lembrar.
(XUXÚ, 2011).
É válido salientarmos que não procuramos estabelecer um juízo de valor em relação
à produção e ao objetivo da obra de Xuxú. Não cabe ao estudo a análise do desejo de fama
da artista como apenas um meio de ascensão social individual ou para levar os valores de
sua comunidade.
Considerações Finais
Observamos através dos estudos uma visão mais positiva quanto às redes
comunitárias, já que a internet fomenta estruturas de rede no âmbito da vizinhança, das
cidades, fortalecendo as comunidades locais. Mas, para isto a opção comunitária tem que
estar atrelada às condições institucionais e o poder local, buscando revitalizar a democracia
7
Música enviada à autora, por e-mail, no dia 29 de junho de 2011. Novo hit de trabalho da artista Xuxú.
31
local. Assim, ainda que a comunidade se baseie em interesses consonantes, mutuamente
compartilhados, a rede comunitária tem que buscar sempre uma conexão real como estes
interesses de forma ética.
As micronarrativas da web surgem num cenário de transformações da visão do
sujeito que pode ser mais ativo nas questões de sua comunidade, colocando a sua
expressão a disposição de milhares de usuários pelo mundo, favorecendo, portanto, a
comunicação e a interação entre o produtor e o público. Entendemos que a possibilidade de
migração do artista cotidiano para virtualidade pode provocar algumas transformações
sociais que colaboram para valorização deste indivíduo, da sua arte e da sua comunidade.
Entretanto, este estudo ainda não é capaz de mensurar o quanto a internet pode interferir na
realidade e até mesmo qual é a sua abrangência em termos de receptividade.
Se a internet, hoje, é um meio de proliferação, embora não igualitário na
participação e conhecimento, contribui para que agentes sociais possam ao menos dividir e
compartilhar experiências. Se não o melhor canal, as redes são até o momento canais
complementares. Logo, é a possibilidade para que outras esferas democráticas tenham
participação, e quem sabe força para envolver o público no debate democrático.
Referências bibliográficas
FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura roteiro e
cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC – Rio: 7 Letras, 2010. p. 72-99
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contestação, pressão e resistência / Eduardo Granja Coutinho (org.). Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2008. p. 61
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In: PACHECO, Anelise e VAZ, Paulo (orgs.). Rio de Janeiro: Gryphus: Museu da
República, 2002. p. 119
PAIVA, Raquel. O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo / Raquel Paiva –
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 196
32
PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Revisitando os conceitos de comunicação popular,
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<http://tecnologia.terra.com.br/noticias/0,,OI4936109EI12884,00YouTube+representa+do
+uso+de+dados+da+banda+larga+movel.html>. Acesso em: 30 jun 2011.
Site UFMG. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/tubo/criacao/iptv/novas-midias-einternet/you-tube-e-a-infinitude-da-rede-virtual/>>. Acesso em: 14 jul 2011.
Xuxú
em
“Pantera
cor
de
rosa”.
Disponível
em:
http://www.youtube.com/watch?v=ygQ6ZnboEFU&feature=player_embedded#at=105
acesso em 01 de julho de 2011.
33
Patrimônio Material e Imaterial
Memórias em Disputa, Poderes em Questão: Sento-Sé e a Barragem do Sobradinho.
Ana Catarina L. de A. Sento-sé M. Braga8
Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre as questões de poder e memória,
referentes a população ribeirinha da barragem do Sobradinho, na década de 70, 1977. A
construção desta barragem culminou com a inundação de quatro cidades do sertão
nordestino. Dentre estas, estava Sento- Sé, ou, “terra dos carnaubais”, com
aproximadamente 7.000 habitantes. A população da cidade foi expulsa de suas casas e todo
o seu patrimônio material e cultural foi perdido. Naquele momento existia uma família
influente em Sento-Sé, cujo o nome era o mesmo da cidade. A família Sento-Sé foi um
núcleo social de importante análise deste trabalho para que se pudesse compreender a
importância do poder local sobre as reminiscências e construções simbólicas da memória
coletiva e da formação da identidade da localidade estudada, face ao fato da construção da
Barragem do Sobradinho. Através de fotos, documentos e depoimentos orais, pôde-se
resgatar a história de desta população, produzindo-se uma releitura da mesma.
Palavras-chaves: Sento-Sé, Barragem do Sobradinho, identidade, memória e poder.
Abstract: This article will reflecting about the memories and power influences to envolve
a local population of the river dam Sobradinho, in the 70's, 1977. The construction of the
dam led to the flooding of four towns in the northeastern desert. Among these, Sento-Sé,
or “terra dos carnaubais“, with about 7,000 inhabitants. The city's population was expelled
from their homes and all their material and cultural heritage was lost. In this city had a
family with the same name of Sento-Sé town. This family influenced all the people in this
city, and had a fundamental worked when we talked about your history. Sento-Sé’s family
had a important meaning of the coletive memories and people indentify, behind the fact of
8
Autora, graduanda de História Licenciatura e Bacharelado – Oitavo semestre da Universidade Católica do
Salvador. E mail: [email protected]. Orientador: Prof.ª Dr.ª Vilma Nascimento. E mail:
34
the dam Sobradinho, and generated a significant loss for the local memory. Through
photographs, documents and oral testimony, we could rescue the history of this people,
resulting
Keywords:
in
a
Sento-Sé,
Dam
rereading
of
Sobradinho,
identity,
the
memory
same.
and
power.
Introdução
Este artigo acadêmico possui como delimitação temática os impactos que a
construção da Barragem do Sobradinho na década de 70, ano de 1977 (século XX) ,
trouxeram as referências de memória e identidade dos habitantes de uma das quatro
cidades afetadas por este acontecimento: a cidade de Sento-Sé. A década de 70, no Brasil,
é marcada historicamente pelo regime militar iniciado em 1964, e a cidade estudada sofre
influência desta forma de governo. Durante a construção da Barragem ficou sobre a guarda
de uma único governo, sendo reconhecida como município de segurança nacional.
Além desta cidade outras tres, Remanso, Casa Nova e Pilão Arcado (dentre outros
povoados) também foram inundadas. A CHESF (Companhia Hidrelétrica do São
Francisco) ao anunciar o projeto dirigiu-se a cidade de Sento-Sé onde, em uma audiência
com o prefeito da época, senhor Demóstenes Sento-Sé, descreveu seu empreendimento e
anunciou as indenizações às famílias, na palavra de que seria construída uma nova cidade
para abrigá-las.
Este prefeito era oriundo de uma família que participou de outro evento histórico
da década de 60 e 70 : o coronelismo. Este regime era originalmente das cidades
sertanejas nordestinas e constituía-se em uma forma de governar autoritária que
muitas vezes utilizava-se da coação moral e econômica daqueles que eram
subordinados aos chamados “coronéis”. Estes, muitas vezes além de dirigir suas
propriedades, ainda geriam a região onde habitavam sobre a coação do
denominado: voto de cabresto. O prefeito empossado que gestava a cidade em
1977 vinha de uma família originalmente de coronéis, mas, como em setenta e
sete o coronelismo já não era mais utilizado como modo de governar ele geriu
Sento-Sé sobre o regime “democrático”, segundo relatos orais e documentais
pesquisados.
Ao longo da pesquisa, entretanto, percebe-se que por estar sobre a delegação
superior de um regime nacional ainda ditatorial, o governo de Demóstenes não atendia aos
35
princípios da democracia, como se conhece teoricamente. Além, é claro, da herança
coronelista que Demóstenes carregava em suas referências e identidade.
Assim, além dos recorte central ( os impactos da construção da Barragem do
Sobradinho), este artigo ainda pleiteia, diante de suas motivações sociais e históricas, o
regime político que imperava na cidade. E, através deste, como as relações de poder,
representado pela família Sento-Sé, influenciam e causam impactos na memória e na
identidade dos sujeitos históricos. Sujeitos estes que provém da população, que vivia sobre
“ a mão” do poder, mas que também se confundia entre os próprios representantes da
família. Isto, porque não há uma segregação tão explicita entre detentores de poder e
subordinados. Ambos podem ocupar os dois papéis e o poder, neste local, possuía uma
apropriação intima junto ao cotidiano dos habitantes (sejam eles da família ou não.).
Assim, os temas secundários, tratam de poder e memória e poder e identidade.
Além destes, permeiam as relações ambientais e de modificação do meio. Tais relações
estão diretamente atreladas a forma como as transformações do meio natural, ou não,
podem estar relacionadas com os interesses do poder. Bem como pelos laços dos sujeitos
com o espaço que é o objeto de toda História das Cidades.
A pesquisa vai tomando outros rumos quando se estuda a construção da nova sede,
denominada Nova Sento-Sé, E o objeto de estudo principal é buscado mais uma vez: As
pessoas que viveram na época da inundação e seus depoimentos orais.Assim, a História
Oral, é utilizada como técnica histórica que fundamenta toda a pesquisa: Desde o traço da
velha Sento-Sé até a nova sede , e sua ainda recentíssima história. Os depoimentos, trazem
a tona os “fantasmas da cidade”, fazendo-se parte do patrimônio da mesma, a memória e o
que estava esquecido, sobre as sombras das ruas,esquinas, paralelepípedos e vielas.
A metodologia também se fundamenta no uso da História Oral para encontrar as
fontes e desvelar a história deste município. E o passado ganha ares de “imaginário“,
perdendo o conservadorismo, tão pouco necessário, das oficialidades. A história assume,
também, o papel de contadora de ideais, idéias e realidades que
estão sentadas nas
cadeiras de balanço, construindo arte de nutrir, entoando as rezas, e as poesias escondidas
nas poeiras dos lares.
A metodologia consiste na sistematização de dados documentais e elaboração de
fichamentos sobre os mesmo, bem como, na transcrição dos depoimentos orais
36
relativamente coletados, e das fontes iconográficas analisadas e catalogadas. Além dessa
organização metodológica, procura-se utilizar abordagens que garantam a maior
compreensão dos atalhos da memória, das palavras não ditas, dos fluxos de esquecimento e
das diversas identidades que se entrelaçam entre todas as fontes primarias.
As análises embasadas nestas fontes e metodologia, são frutos de discussões entre a
autora e seu orientador, fundamentada em seus arcabouços teóricos. Outras fontes
secundárias são utilizadas para compreender os mecanismos do trabalho e para que se
possa chegar no objetivo esperado: O resgate da memória de um povo em uma cidade
conhecida como “ Cidade fim de linha”, dentro de uma história que se repete sempre. Isto,
quer seja com a transposição do Rio São Francisco,que já vem afetando milhares de
populações ribeirinhas ou com a inundação de qualquer outra cidade banhada por
importantes fontes de abastecimento de água.
Desta forma, o artigo aqui apresentado é o ponto de partida de um longo estudo que
culminará no trabalho monográfico, de conclusão de curso, da autora em destaque. Dentre
todos esses objetivos e anseios já apresentados, este, ainda compromete-se com a interação
entre antropologia e história, e os diversos domínios e dimensões historiográficas: História
Cultural e História das Mentalidades.
1977, o ano em que tudo começou.
Naquela época eu possuía entre 7 e 8 anos... Meu avô era prefeito da cidade de
Sento-Sé e neste período existiam 8 cidades no país chamadas municípios de
Segurança Nacional, que era, o prefeito indicado pelo governador. Sento-Sé era
um desses municípios de Segurança Nacional. 2
A história deste acontecimento, bem como de toda a Sento-Sé, desde a década de
40, entrelaça-se com a de uma família, que originou-se neste local. A família Sento-Sé já
possuía o nome forte,e de governança, a mais de três gerações. A senhora Vera Rita SentoSé representa, dentre essas, a sexta geração de uma família histórica, que até os dias atuais
é lembrada em festas e homenagens.
2
Depoimento concedido pela Senhora Vera-Rita Lins de A. Sento-Sé em 12 de Junho de 2008, ás 14h e 36
min.
37
Neste dia em que entrevistei a Senhora Vera Rita estávamos em sua casa no bairro
da Pituba, na cidade do Salvador, estado da Bahia. A entrevistada mostrava-se bastante
confortável e saudosa ao relembrar aqueles momentos do seu passado. Por diversas vezes,
revelou a tristeza da população ao ver suas casas inundadas, pela ocasião da construção de
uma barragem, no mesmo ano em que seu avô foi empossado prefeito.
A relação desse sujeito histórico com o lugar em que ia em sua infância demonstra
a relação estreita e devastadora que a inundação causou em suas recorrências de memória.
Sentia-se uma tensão no momento em esta disse:
(...) E, em um determinado ano, nós fomos, a cidade estava muito triste quase
ninguém estava mais lá... Porque tava todo mundo já se mudando para a cidade
nova, Sento-Sé nova. E depois da inundação, eu me lembro, nós fomos dar um
passeio de barco pela cidade inundada pelo São Francisco, pela barragem do
Sobradinho3
Esta fala é uma evidência histórica de como a construção da barragem afetou a
mentalidade,não só da entrevistada, mas, de todos aqueles que viveram o momento
histórico relatado. Assim, os mecanismos da memória revelam a necessidade de
preservação do local de origem do sujeito histórico.
Relação sujeito histórico e memória
A casa, o lar, de cada um é um lugar por excelência da memória. E de uma
memória essencialmente emocional. E viver essa memória em família significa retratar o
lugar em que essa família viveu. Assim, apesar da família Sento-Sé representar o poder
político na cidade, seus membros não deixaram de viver a dor daqueles que perderam suas
casas, inclusive a sua própria saudade daquele lugarejo. Muitos membros que moravam em
Sento-Sé deixaram seu patrimônio para trás e escreveram palavras de saudade nas paredes
de suas casas:
(...) E chamou minha atenção as casas com água pela metade ou acima da
metade, e nelas, quase em todas, as que ainda estavam de pé, possuíam lembretes
3
Idem
38
e frases saudosas: “ Sento-Sé amada fui muito feliz aqui” ou “Adeus minha
cidade querida.4
(...) A minha irmã Maria América Sento-Sé deixou nas paredes de sua casa
frases e poemas que queriam dizer a sua saudade que ela ia sentir do seu antigo
lar.5
Nestes dois depoimentos percebe-se a relação pessoal da família com a história que
norteia a inundação de Sento-Sé. Sendo assim, após a inundação, muitos mitos e histórias
foram passados dentro da família sobre este episódio. Em todos eles, entretanto, o senhor
Demóstenes, prefeito da cidade no ano da inundação e membro da família Sento-Sé, era
visto como um visionário, um líder que guiou a sua população para uma vida melhor.
Esta família acredita que, mesmo sacrificando suas casas, o que subentende-se sua
memória, e lares, isto deveria ser feito em detrimento do que o seu líder político
considerava como certo para a melhoria de “todos”. Não há nesses dois depoimentos um
sentimento de posse ou do poder de um clã sobre a cidade e sim, um mito familiar tornado
verdade dentro da memória. Isto pode ser constatado por Alistar Thompson quando este
diz que:
(...) Os mitos de minha família sobre a guerra também mostram como apenas
algumas experiências são enfocadas na lembrança, enquanto outras são
reprimidas ou silenciadas, e como algumas recordações “pessoais” alcançam
significado “coletivo” , tanto dentro da família como fora dela.(...)6
Se por um lado pode haver interesses para que a barragem fosse construída,
trazendo mais poder, através do que seus representantes chamam de “progresso”, por outro
lado, nesta cidade sente-se uma participação do poder como parte do privado e do intricado
pessoal de cada cidadão. É importante salientar aí como os alcances da memória possuem
papel fundamental no que está silenciado e no que pode tornar-se verdade neste contexto.
Isto dentro da mentalidade daqueles que constroem essa memória.
As representações do poder
4
Idem
Depoimento concedido pela Senhora Hildene Sento-Sé, no dia 25 de novembro de 2007.
6
THOMPSON, Alistair. Quando a memória é um campo de batalha:Envolvimentos pessoais e políticos com
o passado do exército nacional. Projeto de História, São Paulo, 1998
5
39
As representações do poder assim, soam como parte da memória e da cultura da
população. Mesmo sendo uma forma de dominação, esta forma de participar dos
momentos íntimos da cidade,que o prefeito possuía, revela um clientelismo na vida dos
cidadãos. Muitos fatos pessoas eram resolvidos por este prefeito, que adentrava nas casas
chamados pelos seus ocupantes. E, resolvia problemas pessoais:
(...) Era um político a moda antiga. Não era a relação de eleitor e de prefeito,
como hoje, baseado no capitalismo. Era uma confiança, uma amizade. Tipo
assim, casal brigava, meu avô é que ia fazer , reconciliar o casal. Menino caia
quebrava a perna, meu avô, o prefeito, que ia mandar comprar o remédio.
Acabava a verba da prefeitura meu avô colocava do dinheiro dele.(...)7
Pode-se perceber dessa forma, a relação estreita entre o poder e a população. Uma
intimidade que adentrava a própria casa do prefeito e suas relações familiares. Este tipo de
“líder” era visto como monumento histórico da memória coletiva. Um mito que perdura
mesmo após a sua morte ou perda do cargo público.
Demóstenes Sento-Sé foi prefeito da cidade, incluindo antes, durante e depois da
construção da barragem. Antes dele, a família Sento-Sé já governava, foram três coronéis5:
Juca Sento-Sé, Tonhá Sento-Sé e Janjão Sento-Sé, chegando,finalmente, a Demóstenes,
não mais como coronel, oficialmente, e sim, como prefeito nomeado.
A família Sento-Sé apresenta um poderio. O próprio sobrenome, possui origem na
história da formação da mesma8. Este nome surgiu de uma homenagem feita a uma
comunidade indígena que ocupava a região.
Após a posse da família Garcia D’ Ávila, estes fundaram a cidade e homenagearam
o chefe daquela comunidade, cujo nome era Centossé. Assim, surgia uma cidade com mais
de quatrocentos anos de história. Posteriormente a família que descendeu desses índios e
dos portugueses recebeu o sobrenome de Sento-Sé. E seu legado é honrado pelos
moradores até a atualidade.
7
Depoimento concedido pela Senhora Vera-Rita Lins de A. Sento-Sé em 12 de Junho de 2008, ás 14h e 36
min.
8
A cidade de Sento-Sé velha localizava-se,inicialmente, onde era uma comunidade indígena cujo nome do
líder era Centosse. A família Garcia D’ Avilla, no período de colonização do Brasil, recebeu aquelas terras de
Portugal por doação de sesmarias. Em uma batalha indígena Antonio Garcia D’ Ávila socorreu o chefe da
comunidade e ficaram amigos a partir de então. Como forma
40
O olhar das autoridades diante do patrimônio, como pode-se perceber, não fica
restrito as relações de poder e soberania. Mesmo que haja uma tradição histórica de que os
políticos em geral não se importavam com o valor da memória, ou daquilo que foi
construído pelas pessoas, não é o que se pode perceber neste município.
Aqueles que alguns considerariam como os “donos da terra”, “responsáveis” pela
inundação de toda uma região, são vistos pela memória coletiva, e por eles mesmos, como
parte do que sofreram em busca de algo maior, ou melhor. Isto, porque a população
acredita, pelo menos boa parte dela, que alguém que se envolve tão intimamente com suas
vidas não poderia exercer qualquer abuso de poder ou ato que venha trazer prejuízo para a
cidade.
Inundação da memória e da identidade de uma população
A construção de tal barragem, projetada pela CHESF em 19738, concessionária da
Empresa Brasileira de Energia (ELETROBRÁS) no Nordeste, resultaria na Hidrelétrica do
Sobradinho, que inundou além de Sento-Sé, mais três cidades do sertão nordestino. Por
nove anos o município passou a ser área de segurança Nacional, tendo como prefeito
empossado, governo Roberto Santos, Demóstenes Sento-Sé. A posse ocorreu em 13 de
Maio de 1977, ato que ficou registrado como data do aniversário da cidade.
Antes da inundação destas cidades, as mesmas eram cortadas pelo Lago do
Sobradinho, afluente do rio São Francisco. Desde a década de 70, entretanto, a CHESF
vinha desenvolvendo uma política agressiva para transformar o “Velho Chico” em gerador
de energia hidroelétrica. Para tal, construía barragens, transformando lagos em rios
artificiais, deslocando e modificando a paisagem do sertão e ainda causando grande
desequilíbrio ecológico e erosões no solo.
A construção da Barragem do Sobradinho resultou na desocupação de uma área
com cerca de 4,2 mil km . Este processo de desocupação atingiu um total de cerca de
12.000 famílias, das quais, 73% fixadas na zona rural e 27% na zona urbana das cidades9.
E a CHESF, embora tenha construído uma nova cidade para os habitantes, não pode
8
In: BARROS, Henrique. Avaliação dos impactos sócio-econômicos da implantação do projeto Sobradinho.
Recife: FUNDAJ/ IPS/Departamento de Economia, 1983.
9
Idem
41
recuperar as características da cidade antiga, bem como o real sentimento do
povo,enterrado nas águas do rio.
Foram deixados para trás, sonhos, esperanças, vidas e desejos, elementos que
fizeram e fazem parte da memória de uma população, que vivia de sua economia local,
sofrida e apegada a terra. Tanto que, muitos resistiram a efetivação do projeto. Um deles
foi um homem, na época com 92 anos, o senhor José Nunes ou como era chamado, “Seu
Zé”. Ele disse a habitantes da cidade 10que não iria deixar sua casa para trás, uma casa que
levou anos para ser construída e que fez parte de tudo aquilo que ele considerava como seu
patrimônio e identidade de vida.
Assim como seu Zé, muitos outros traziam consigo o peso da tradição de viver
naquele local. As autoridades, estaduais e da empresa hidroelétrica, entretanto, não se
sensibilizaram com esses e acabaram por destruir, não só patrimônios pessoais, e sim 400
anos de história. Sendo que, nem o monumento de fundação da cidade foi poupado.
O Rio engoliu tudo, vi minha vida sendo deixada para trás, e meus bens sendo
levados de caminhão para um lugar que mesmo que passem anos nunca será o
meu verdadeiro lar. Depois disso, minha filha, só Deus pode nos salvar . 11
Assim resumiu a antiga habitante Hildene Sento-Sé, representando o real
sentimento daquilo que a natureza transformou em seu habitat natural.
Atualmente, a cidade de Sento-Sé possui mais de 35.000 habitantes; foi relocada
em 1977, mas nunca esqueceu as marcas que a inundação deixou. Além do que, fica
provada hoje, o quão estreita são as relações de poder e memória que norteiam e são
capazes de reconstruir e desconstruir as concepções dos sujeitos da história.
O esquecimento e a memória fios condutores da história desse lugar
A partir dos documentos pesquisados, dos depoimentos dos habitantes e antigos
moradores da cidade de Sento-Sé, pôde-se perceber que a abordagem de um conceito de
memória pré-moldado de nada serve.
0
1
10 Depoimento concedido pela Senhora Hildene Sento-Sé, no dia 25 de novembro de 2007.
11 Idem.
42
A população local, através daquilo que considera como sua memória e identidade é
que constrói o significado desta memória. Uma memória povoada não só por emoções e
lembranças, mas também por momentos de esquecimento.
Jerusa Pires Ferreira, historiadora dos conceitos de memória e tradições populares,
considera que não só a memória mais também o esquecimento estão presentes na história
das pessoas. Nesta cidade, principalmente nos depoimentos coletados, os vestígios do
esquecimento se fazem recorrentes.
Eles estão no momento de pausa da senhora Vera Rita, nas palavras que a Senhora
Vera Sônia não permitiu que fossem gravadas, e nos momentos em que Hildene muda de
assunto, ou retruca que a pergunta feita não “representa algo de importante a ser
lembrado”.
A tradição é feita de esquecimento e memória, e, se a história possui bases nestes
dois elementos, a tradição também é parte importante para a construção, e rearrumação dos
caminhos da história. E para se compreender o fio condutor de toda narrativa oral é
necessário a interpretação do esquecimento, elemento essencial do que foi lembrado e
transformado pelo depoente em história.
Nesta cidade ainda há muitos esquecimentos, e muitas memórias a serem
resgatadas. A cidade de Sento-Sé é contada pela sua sociedade, que sofre pressões,
influências sociais e culturais capazes de pincelar sua memória e representação histórica.
Como Jerusa Pires afirma:
(...) A dupla esquecimento e memória, portanto, é apenas uma aparente oposição.
Numa grande medida, estas oposições são instrumentos conjuntos e
indispensáveis em projetos narrativos que dão conta de eixos do conflito. Há
também o caso de, no corpo da própria narratividade, formarem-se núcleos em
que lembrar é um fluxo, um processo, uma razão de ser e o ato de esquecer se faz
o pivô daquilo que se desenvolverá , detonando uma série de transformações ou
a transformação.(...)12
Assim, o passado faz parte do presente de cada um, enquanto produtor de sua
própria história. E a memória do município de Sento-Sé é produzida, concebida e
preservada pelos seus próprios habitantes e seus imaginários ideológicos. Bem como os
2
In:FERREIRA.Jerusa Pires. Armadilhas da Memória(conto e poesia popular).
Jorge Amado, 1991
Salvador-BA. Casa de
43
elementos que estes reproduzem em seus depoimentos e lembranças do passado. Vivo em
suas vidas no momento presente.
A construção da Barragem do Sobradinho aguçou nos moradores a necessidade de
preservação de toda uma memória perdida na inundação. Este discurso se faz presente no
depoimento da habitante Hildene Sento-Sé quando disse:
A gente se apega àquilo que é nosso, porque de alguma forma faz parte da
construção de uma vida, que queira ou não, naquele momento, estava sendo
deixada para trás. Mas que para sempre vive na minha memória....13
Conclusão
O artigo é de extrema importância para compreensão do que é a história de SentoSé.Os objetivos aqui propostos por mim, estão em andamento, bem como os seus
desdobramentos ainda estão sendo desenvolvidos. Como se propôs, as necessidades de se
desenvolver e conhecer Sento-Sé, através da oralidade é essencial e, entrelaça-se com os
fluxos e meandros de conhecimento da memória. E, dos ramos da história que a estudam.
Os objetivos mais gerais até então alcançado foram, o resgate da história destes
habitantes, de sua memória, dos mecanismos para a inserção da barragem, do poder da
família Sento-Sé e de sua influência. Influência, como se pode perceber, decisiva na
historicidade deste local e, na maneira de pensar dos sentossesenses. Inclusive,
entrelaçando-se com a memória coletiva, tendo como base suas próprias vidas e
experiências armazenadas em relatos orais.
Sobre a história oficial deste município já se sabe muito, mas, sobre a história das
vidas dos seus habitantes ainda há muito a descobrir. E, se a cidade não passa de muros e
concreto sem a vida das pessoas que a habitam, como a história desta passaria, ou
aconteceria, sem ela? Algo improvável.
Há, por minha parte uma necessidade de perceber como a memória individual é
parte da coletiva, e como estas duas são as bases da identidade e da formação, em todos os
âmbitos, cultural, social, econômica,etc. , para este ambiente urbano. E é esta hipótese que
3
Depoimento concedido pela Senhora Hildene Sento-Sé, no dia 25 de novembro de 2007.
44
justifica toda a pesquisa. Bem como algumas outras apresentadas ao longo da introdução e
do desenvolvimento.
Dentre estas, está o papel da oralidade como registro do espaço da comunidade. Isto
porque não há comunidade que se desenvolva e interaja sem a utilização da comunicação
oral. Trabalhar com História Oral, é portanto, uma forma de velar o passado desvelando
seus silêncios e esquecimentos. Baseando-se, todavia, em um intercâmbio entre os sujeitos
históricos.
Base que envolve toda uma linguagem corpórea, marcada pelas vozes, pelos
hábitos, pela rotina, pelos amores e ambições sociais. O trabalho com a oralidade permite a
interpretação que vai além do enunciado escrito. Permite o contato vivo com o sentimento
explicito, e com a história em movimento. Em cada lágrima, sorriso e palavra das fontes
vivas. Fontes estas que são o objeto de estudo principal da História: o sujeito.
A oralidade assim, esta espalhada pelo ambiente. Ela é quem organiza as relações
de trabalho, o lar, a rua, a família e toda a produção histórica oriunda dos encontros entre
os sujeitos e seus variados interesses (comuns ou não).
O depoimento em sua
originalidade revela o modo de ver especial de seu interlocutor daquele fato histórico. E
assim fundamenta as justificativas de se interagir a historia com o meio ambiente, com o
poder, com o imaginário e com a cultura de cada sociedade.
Futuramente ainda há muito a se pesquisar. Recentemente nova fontes foram
adicionadas a minha pesquisa fruto de diálogos com a CHESF e de incursões a arquivos da
cidade do Salvador (Bahia). Descobri um acervo na cidade no ano passado (2008) que
estou sistematizando devidamente e estas novas fontes, dos arquivos de Salvador, também
estão passando pelo mesmo processo.Ainda há alguns depoimentos a serem inclusos, bem
como seus devidos conteúdos. O que explica algumas perguntas que possivelmente foram
levantadas neste artigo e que não obtiveram respostas no mesmo.
Um problema enfrentado por mim e que não há como resolver a curto prazo é a
ainda recente fonte que me utilizo para a minha pesquisa. Trabalhar com fontes do século
XX requer uma cautela para não cair em erros de narrativa e jornalismo. Transformando a
pesquisa em um mero relato sem embasamento teórico e histórico (principalmente). Estou
tomando esta precaução. E para tal me remeto a outros trabalhos já realizados sobre o tema
em outros períodos históricos menos recentes (como se pode averiguar na bibliografia).
45
A Historia das Cidades é trabalhada com a utilização da História Oral para revelar o
que Ana Lúcia Duarte Lanna em Um cidade na Transição Santos: 1870-1913 cita da
seguinte forma:
Como disse Giuliu Argan, a cidade não é apenas um traçado regular de um
espaço, uma distribuição ordenada de funções públicas e privadas, um conjunto
de edifícios representativos e utilitários. Tanto quanto o espaço arquitetônico,
com o qual de resto se identifica, o espaço urbano tem seus interiores. São
espaços urbano o pórtico da basílica, o pátio e as galerias do palácio público, o
interior da Igreja. Também são espaço urbano os ambientes das casas
particulares; e o retábulo sobre o altar da igreja, a decoração do quarto de dormir
ou da sala de jantas, até o tipo de roupas e adornos que as pessoas usam.9
Sendo assim, estudar e pesquisar cidade é pesquisar e estudar a vida em movimento
puro. Observar os atalhos da memória, olhar a contrapelos o que é dito oficialmente,
interpretar os depoimentos e muitas vezes se utilizar de poesia e literatura para
compreender apaixonadamente as relações entre os sujeitos e o meio em que vivem. Estes
tipos de pesquisas permitem que uma série de preconceitos e tabus, principalmente em
relação a fontes e ao fazer historiográfico, venham sendo quebrados por mim.
Ao longo desta pesquisa descobri os laços estreitos entre o não oficial e a história, e
principalmente vi o quanto a história é uma invenção. E dizer que fazer história, ou que a
história é uma invenção, é inventar, não estou dizendo que a História é uma grande
mentira. Não ela não é, mas também não é uma verdade absoluta. Está sempre se
acrescentando novos pontos de vista, novos dados, novos números, novas estatísticas,
novos imaginários, novas dimensões e interpretações a pesquisa que algum historiador
começou e a vivência de quem permeia estas pesquisas. Estes sujeitos são o foco, e se o
próprio foco está sempre em transformação e em reinvenção, suas produções não poderiam
estar recheadas de verdades inacabadas e reorganizadas.
Assim,
O imaginário urbano, em primeiro lugar, são as coisas que o soletram. Elas se
impõem. Estão lá, fechadas em si mesmas, forças mudas. Elas têm caráter. Ou
melhor, são “caracteres” no teatro urbano. Personagens secretos. (...) Por
9
ARGAN, Jiuliu. In: LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma Cidade em transição Santos:1870-1913.SantosSP.
HUCITEC,1996.
46
subtrair-se à lei do presente, esses objetos inanimados adquirem autonomia. São
atores, heróis de legenda.Organizam em torno de si o romance da cidade. (...)10
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Sobradinho. Recife: FUNDAJ/ IPS/Departamento de Economia, 1983.
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10
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47
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Mudança Social. São Paulo -SP. SESC SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo,2006.
Arquivo pessoal Família Sento-Sé. Sento –Sé- BA. 1974 – 1979.
Diário e Anotações pessoais do Sr5. Demóstenes Sento-Sé. Salvador-BA. 1974- 1979.
Arquivo Municipal da Prefeitura de Sento-sé. Sento-sé, BA. 2007.
Fontes iconográficas: Os Narradores de Javé; Fotos do Arquivo Pessoal da Senhora Vera
Sônia Lins D’ Albuquerque Sento-Sé. Salvador - BA. 1974 – 1979.
48
Fontes Orais (Depoimentos): Senhora Vera Sônia Sento-Sé no dia 22 de novembro de
2007 ás 15h; Senhora Hildene Sento-Sé no dia 25 de novembro de 2007 ás 17h; e VeraRita Lins de Albuquerque Sento-Sé, no dia 12 de junho de 2008 ás 14horas e 36 minutos.
www.pmsentose.com.br: Consultado ás 10h do dia 10 de Outubro de 2007.
www.sentoseonline.com.br: consultado ás 9h do dia 9 de Setembro de 2007.
Anexos
1.
FOTO DA CIDADE ANTES DA INUNDAÇÃO (1976/1977) . ACERVO FAMÍLIA SENTO-SÉ.
49
2. FOTO DA CIDADE DE SENTO-SÉ DURANTE A INUNDAÇÃO (1977). ACERVO FAMÍLIA
SENTO-SÉ.
50
3. FOTO DA CIDADE DE SENTO-SÉ ATUALMENTE ( JULHO DE 2008). ACERVO PESSOAL.
51
O Esquecimento de uma Arte: o desinteresse da arquitetura do século XIX e seus
reflexos na preservação em Juiz de Fora.
Fabiana Aparecida de Almeida*
Resumo: Na década de 1930, o Brasil sofreu mudanças que repercutiriam por toda sua
história. Com o apogeu do Estado Novo, começou uma valorização do nacional e isso se
fez refletir também na preservação do patrimônio brasileiro. Com a criação do SPHAN, em
1937, apropriou-se as ideias dos intelectuais modernistas que, alguns anos antes, haviam
chamado a atenção para uma arte autêntica brasileira: a barroca. A grande valorização
desse estilo fez com que a arte e a arquitetura de outros períodos fossem esquecidas e
desvalorizadas. Esse fato fez com que vários exemplares arquitetônicos que não
pertenciam ao século XVIII não fossem “vistos” pela política de preservação nacional,
incluindo-se nesse contexto a cidade de Juiz de Fora, que, por não possuir uma arquitetura
barroca e por não fazer parte das “cidades históricas” de Minas Gerais, perdeu importantes
exemplares que ajudariam a contar a sua história. O presente artigo pretende levantar essas
questões e mostrar como se deu o processo de preservação na cidade, mesmo essa não se
encaixando nos padrões valorizados nos primeiros anos de atuação do SPHAN.
Palavras-chave: Preservação. Barroco. Juiz de Fora. Patrimônio.
Abstract: In the 1930s, Brasil has undergone changes that had repercussions throughout
its history. With the heyday of the New State, an appreciation of the national began and it
was also reflected in the preservation of Brazilian heritage.With the creation of SPHAN, in
1937 it was appropriated the ideas of modernist intellectuals who, some years before, had
called attention to an authentic Brazilian art: the baroque. The great appreciation of this
style caused the from other periods forgetfulness and devaluation of the art and
architecture. This fact was the responsible architectural for examples that did not belong to
the eighteenth century that were not “seen” by the national preservation policy, including
in this context the city of Juiz de For a, which for not having a baroque architecture and for
*
Mestranda em história pelo PPG em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
[email protected].
52
not being part of “historic towns” of Minas Gerais, lost important examples that would
help to tell its history. This article intends to raise these issues and show how the process
of preservation in the city was set even it does not fit the patterns valued in the first years
of operation of SPHAN.
Keywords: Conservation. Baroque. Juiz de For a. Heritage
A ideia de preservação está associada a conservar algo do desaparecimento. Aquilo
que preservamos é algo que julgamos importante ter ao nosso lado ou no nosso convívio
por mais tempo. Com o patrimônio histórico de uma cidade ou país, o processo existente é
o mesmo: são desenvolvidos trabalhos de resgate, restauração e preservação para
estabelecer uma continuidade com o passado e para que o que foi criado pelas antigas
gerações seja perpetuado para as futuras.
A preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro nasceu com uma
peculiaridade não observada nos países europeus: os primeiros a chamarem a atenção para
a preservação do passado foram os responsáveis por visar o futuro: os modernistas.
Na década de 1920, um grupo de intelectuais modernistas fizeram uma viagem a
Minas Gerais e percebendo o quanto de história que estava sendo perdida pelo abandono
começaram a denunciar o descaso para com essas cidades históricas mineiras, levando esse
assunto a ser debatido nas instituições culturais e também no Congresso Nacional. Na
visão modernista, a arquitetura eclética representaria o atraso e o que era digno de
perpetuar para as gerações futuras seria o barroco, um estilo brasileiro que mostraria que o
Brasil teria sim algo que o distinguiria de outros países. (RUBINO, 1992: p. 11). Com a
instauração do Estado Novo na década de 1930, os intelectuais ganharam mais espaço,
uma vez que o novo regime se propôs a organizar a vida social e política do país, apesar de
suprimir a representação política e instaurar a censura. (FONSECA, 2005: p. 85). O estilo
colonial foi então usado pelo governo como autêntico representante da nação, no campo da
arte, uma vez que demarcou a busca pelo passado verdadeiro e era contrário àquele
passado indesejável, ligado aos modelos políticos e culturais da Velha República.
Data de 1937 a implantação legal de um órgão responsável pela preservação do
patrimônio cultural brasileiro. O SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) foi criado através do Decreto-lei número 25 de 30 de novembro, elaborado
53
principalmente por Rodrigo Melo Franco de Andrade (seu primeiro diretor), mas que fora
inspirado em projetos anteriores que não tiveram respaldo legal, como o de Mário de
Andrade e o de Jair Lins11. Integrante da elite intelectual mineira, Rodrigo Melo Franco de
Andrade colocou em seu projeto, e na instituição que presidia, os ideais que defendia,
lembrando que ele também era adepto as ideias modernistas. Dessa forma, o discurso de
Rodrigo se referia justamente a um privilégio do estilo barroco, classificando
principalmente as igrejas e os casarões do século XVIII como patrimônio cultural do
Brasil. Para exemplificar esse fato, citamos a primeira medida para a preservação do
Brasil: o tombamento da cidade de Ouro Preto em 1933. Apesar de ter sido uma medida
limitada, após essa, a cidade passou a receber obras de restauro através do Museu
Nacional. Aqui, nota-se um discurso elitista, pois o que seria digno de preservação seriam
apenas os bens da elite colonial. O século do patrimônio era o XVIII. A Colônia era o
período do patrimônio, e Minas Gerais foi o estado que mais representou esse patrimônio.
Tudo que estivesse fora desse parâmetro foi deixado de lado.
O contexto de Juiz de Fora
Juiz de Fora surgiu em um contexto diferente daqueles das ditas “cidades
históricas” de Minas Gerais. Nascida às margens do Caminho Novo, uma “picada” feita
por Garcia Rodrigues Pais, por volta de 1701 para ligar a Borda do Campo (atual região de
Barbacena) ao Rio de Janeiro, o lugarejo passou de ponto de hospedagem dos viajantes que
iam para as minas a uma das mais desenvolvidas cidades de Minas, sendo apelidada
inclusive de “Manchester Mineira”, pelo seu desenvolvimento industrial.
Com essa característica, a arquitetura de Juiz de Fora acabou se caracterizando por
um estilo eclético, com exemplares de arquitetura industrial (com tijolos vermelhos
aparentes) ao art nouveau ,12 e por causa disso não foi alvo da política de preservação que
o SPHAN começava a impor no país. Mesmo assim, a cidade passou pelos ouvidos de
11
Sobre os projetos para preservação anteriores ao decreto-lei 25, ver Rubino.
O art nouveau foi um estilo estético relacionadocom o movimento arts & crafts, com grande destaque
durante a belle époque, no fin do século XIX e início do XX. É caracterizado pela exploração de novos
materiais, como o vidro e o ferro, que seriam os principais elementos dos edifícios que passaram a ser
construídos segundo a nova estética. Em Juiz de Fora, percebemos claramente esse estilo em algumas
construções da rua Halfeld, por exemplo.
12
54
Rodrigo Mello Franco de Andrade. Em 1939, o professor Lindolfo Gomes enviou um
pedido ao órgão nacional para o tombamento da Fazenda do Juiz de Fora, ou Fazenda
Velha, residência do juiz que teria “emprestado” seu título para nomear a cidade, além de,
segundo Lindolfo, ser um dos imóveis mais antigos da cidade.
O diretor do SPHAN incubiu o professor de escrever um memorial sobre o imóvel,
onde incluiria fotos, esboço do local, levantamento histórico e outros documentos
importantes para o tombamento da antiga fazenda. Fora elaborado assim, um inventário de
77 páginas destacando a importância de se preservar a fazenda. Entre os motivos
apresentados por Lindolfo estavam o fato do casarão existir desde 1719 (segundo Albino
Esteves em seu “Álbum do Município de Juiz de Fora”), sendo assim, para o professor, o
imóvel mais antigo da cidade; o fato de ter sido a possível residência, ou local de pouso de
um juiz de fora que dera nome a cidade; ter hospedado ilustres viajantes estrangeiros com
o exemplo-mor de Saint-Hillare; e ter sido residência de importantes nomes para a história
local e nacional, como Antonio e Manuel Dias Tostes e Guilherme Henrique Fernando
Halfeld (genro do primeiro), fundamentais para a fundação de Juiz de Fora. O imóvel teria
hospedado também os inconfidentes Domingos Vidal de Barbosa e Padre Francisco Vidal
de Barbosa, fato narrado no livro “História da Conjuração Mineira” de Joaquim Norberto
e confirmado também em depoimento do primeiro, prestado ao processo de Devassa da
Inconfidência Mineira, uma vez que se declarou médico e “morador da fazenda do juiz de
fora”, no Caminho Novo do Rio de Janeiro. Albino Esteves, importante historiador da
cidade, disse também possuir cópias de documentos assinados por Tiradentes e datados de
1754, declarando serem os irmãos proprietários da fazenda do juiz de fora.
(GOMES:1942). Esse dois moradores em especial foram importantes, pois foi esse fato
que fez Lindolfo recorrer ao SPHAN para a preservação do imóvel e fez com que a
instituição se interessasse pelo assunto. Ao hospedar dois importantes nomes da
Inconfidência Mineira, o sobrado adquiriu também uma importância para a nação.
Foi enviado a Juiz de Fora um técnico do SPHAN a fim de avaliar o imóvel em
questão. No entanto, o que se constatou não foi algo agradável: o antigo sobrado estava em
um estado lastimável de deterioração sendo que “nada ou quase nada se poderia
aproveitar e, para uma nova construção não havia verba disponível, o que só poderia
talvez obter-se com algum tempo mais de espera”. (PASSAGLIA:1982, p. 178). Além
55
desse entrave, outro fator também dificultava o tombamento do imóvel: esse era uma
propriedade particular. A Prefeitura de Juiz de Fora, segundo Lindolfo Gomes, se dispôs a
adquirir o imóvel e em seguida doá-lo ao patrimônio nacional para que pudesse ser
preservado. (PASSAGLIA:1982, p. 178). Com a demora nas negociações e decisões, o
“Diário Mercantil” de 1º de setembro de 1943, noticiara que, em visita ao local, a
reportagem recolhera de parentes dos proprietários, a informação que os mesmos
pretendiam demolir o sobrado “afim de que o terreno seja aproveitado, em coisa mais
rendosa”. O periódico ainda se propôs a “chamar a atenção dos poderes públicos no
sentido de que sejam tomadas providências imediatas”, se não “desaparecerá pela gula
utilitarista o mais belo, o mais expressivo e o mais notável documento vivo da história
local”. (PASSAGLIA:1982, p. 176). No entanto, os apelos de intelectuais e também da
imprensa, de nada adiantaram, antes de ser adquirido pelo patrimônio nacional, o imóvel
fora destruído e o terreno usado pelo proprietário simplesmente para nada, permanecendo
apenas um terreno baldio.
Mudanças de perspectivas
A partir da década de 1960 várias mudanças atingiram os assuntos referentes ao
patrimônio histórico e sua preservação. O próprio conceito de patrimônio foi expandido
com a criação da Carta de Veneza, documento redigido no II Congresso Internacional de
Arquitetura e Técnicos dos Monumentos Históricos, realizado em Veneza entre 25 e 31 de
maio de 1964. Nesse mesmo período no Brasil, a preservação patrimonial ainda estava
associada aos bens materiais e antigos (da fase colonial da história do país), e o único
órgão de preservação era o de nível nacional: o IPHAN. Para Passaglia, um dos fatores que
limitou a atuação abrangente na área cultural foi o conceito de valor defendido até então.
Esse valor associava toda obra, local ou documento “à sua antiguidade, a um fato histórico
relevante ou, a um preconceito estilístico”. Se um município, cidade ou comunidade “não
tivessem sido premiados pelas suas origens de terem sido sede ou passagem de algum
evento ou ciclo consagrado pela historiografia oficial, ele estaria irredutivelmente
renegado”. (PASSAGLIA: 1982, p. 10). Ainda não haviam sido criados os órgãos de
preservação a nível estadual e municipal e esse fato fazia com que os bens preservados
56
fossem apenas aqueles de importância para a história do Brasil ou os que possuíssem um
inestimável valor arquitetônico, como estava implícito no 1º parágrafo da lei número 25 de
1937. (IPHAN: 1937). Em Juiz de Fora, muitos imóveis foram demolidos por não se
encaixarem nesse perfil de construção: caráter monumental, datado do período colonial e
de importância para a história do Brasil.
Já na década de 1970, a questão patrimonial começou a mudar sua fisionomia no
cenário nacional. Em 1979 Aloísio Magalhães assumiu a direção do IPHAN, substituindo
Rodrigo, e fez nascer uma nova era dentro da instituição. Os bens de caráter popular,
imaterial e de estilos arquitetônicos posteriores ao século XVIII passaram a ser também
valorizados e foram alvos de medidas preservacionistas. Essa década marcou também a
dinâmica da preservação, pois a responsabilidade de classificar, perpetuar e conservar um
patrimônio deixou de ser assunto exclusivo do IPHAN para fazer parte de leis de estados e
municípios. Os Compromissos de Brasília e Salvador, em abril de 1970 e outubro de 1971,
respectivamente, apoiados na criação do Programa Cidades Históricas (PCH) de 1973,
recomendava que “estados e municípios exercessem uma atuação supletiva à federal na
proteção dos bens culturais de valor nacional, e assumissem, sob a orientação técnica do
então DPHAN, a proteção dos bens de valor regional”. (FONSECA: 2005, p. 142-3). A
partir de então, os estados e cidades passaram a criar suas próprias narrativas patrimoniais.
Em Juiz de Fora, a primeira lei para proteger o patrimônio da cidade é datada de
1983. Trata-se da lei número 6108, de 13 de janeiro que foi pioneira no estado, com
exceção das chamadas cidades históricas mineiras e que fez com que a cidade não perdesse
um rico acervo que ajuda a contar a sua história.
Essa lei acabou sendo consequência de uma série de atitudes tomada pelo poder
municipal, com alguma pressão popular, para que uma onda de destruições imobiliárias no
centro da cidade pudessem ser freadas. O “stopim” para essas atitudes foi a demolição do
ex-colégio Stella Matutina, destruído no fim da década de 1970 e que fez a população
perceber que se nada fosse feito, Juiz de Fora perderia toda sua história edificada. Com a
destruição do antigo prédio do colégio, percebeu-se a necessidade de se criar um setor
dentro da administração municipal que cuidasse das questões culturais de Juiz de Fora e
dessa forma, através do decreto n. 2176, de 14 de dezembro de 1978, surgiu a Fundação
57
Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA).13 Um pouco antes da FUNALFA, outro
órgão foi criado para pensar e planejar o município, que passava por uma série de
transformações nesse período: trata-se do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Juiz de
Fora (IPPLAN-JF), criado em 1977 através do decreto n. 1969, de 29 de dezembro.
No entanto, a criação da FUNALFA não satisfazia a necessidade de se preservar a
memória da cidade. Em 1980, os arquitetos Luiz Passaglia e Maria Inês Giffoni Passaglia
foram agregados ao IPPLAN-JF, e, em 1981, juntamente com José Carlos Coutinho, Jorge
Arbach (arquitetos do IPPLAN-JF), Carlos Henrique Saldanha Lopes (coordenador do
Patrimônio Histórico e Artístico da FUNALFA) e Nívea Bracher (artista plástica),
elaboraram o Pré-inventário Arquitetônico de Juiz de Fora. Esse Pré-inventário14 teve o
objetivo de cadastrar a produção arquitetônica de Juiz de Fora e restringiu-se ao setor
urbano delimitado pelos bairros São Mateus e Alto dos Passos, ao sul, pelo bairro Fábrica
ao norte, pelo Morro do Imperador a oeste e pela Avenida Sete de Setembro a leste. Foram
cadastrados aproximadamente 550 imóveis. (PASSAGLIA: 1982, p. 20). Apesar de uma
medida que a primeira vista pode parecer superficial, o pré-inventário foi importantíssimo
para mostrar como Juiz de Fora possuía um rico e importante patrimônio que estava
ameaçado e precisava de uma proteção urgente.
Outro ganho significativo para a proteção do patrimônio histórico de Juiz de Fora
foi a criação da Divisão de Patrimônio Cultural (DIPAC), em 1989. Inicialmente ligada ao
IPPLAN/JF, e posteriormente a FUNALFA, a divisão surgiu como órgão “responsável
pela
execução
da
política
de
patrimônio
cultural
definida
pela
CPTC”
(GAWRYSZEWSKI: 2008, p. 62) e hoje, já consolidada, a DIPAC é a responsável por
inúmeros trabalhos, como publicação de livros e organização de eventos que ajudam a
proteger e difundir a importância da preservação do município.
Como foi dito anteriormente, Juiz de Fora foi uma cidade pioneira quanto a
preservação em Minas Gerais, porém, esse pioneirismo não foi o suficiente para impedir
que parte significativa de sua história se perdesse aos longos dos anos.
13
A FUNALFA foi a primeira fundação municipal no setor cultural em Minas Gerais e foi criada para a
“inovação e resgate do patrimônio e revitalização do pioneirismo de Juiz de Fora como centro cultural”.
14
Antônio Nogueira, destacando a diferença entre tombamento e inventário, percebe o primeiro como
possuidor de um valor dado a um bem cultural escolhido para perpetuar a memória, enquanto que o segundo
seria uma proteção suplementar. (NOGUEIRA: 2000, p. 297).
58
Com um certo “preconceito” estilístico nos primeiros anos da atuação do IPHAN e
a falta de um patrimônio barroco, fizeram que Juiz de Fora e tantas outras cidades do
Brasil perdessem muitos imóveis que, apesar de não terem hospedado reis e imperadores,
não terem sido a residência de poetas, escritores e políticos importantes, foram essenciais
para contar a história daquele local em que estavam edificados. De acordo com suas
características arquitetônicas é possível perceber de que época é a cidade, quem foram seus
primeiros habitantes, qual seu ramo de desenvolvimento, entre outras tantas coisas. No
entanto, as mudanças nem sempre são prejudiciais, com as adaptações na política de
preservação, muitos imóveis ligados a cultura popular foram preservados, e hoje, toda
cidade que visitamos no Brasil possui seu patrimônio preservado. Talvez em uma
quantidade e em um estado aquém do que deveriam ser, mas só o fato de terem persistido à
ação do tempo e do homem já a fazem ser históricas.
Referências bibliográficas
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ/MIC-IPHAN, 2005.
GAWRYSZEWSKI, Paulo. Cultura e educação: uma aliança para a preservação do
patrimônio cultural em Juiz de Fora. 2008. Monografia do curso de especialização em
Gestão do Patrimônio Cultural, Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008.
GOMES, Lindolfo. Nótulas. Diário Mercantil. Juiz de Fora: 12/maio/1942.
IPHAN. Lei n. 25, de 30 de novembro de
<http//www.iphan.gov.br>. Acesso em 26 de junho de 2010.
1937.
Disponível
em:
PASSAGLIA, Luiz Alberto do Prado. A preservação do patrimônio histórico de Juiz de
Fora. Juiz de Fora: Instituto de Pesquisa e Planejamento/ Prefeitura de Juiz de Fora, 1982.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. O patrimônio em questão. In: Projeto História.
São Paulo: PUC-SP, 2000, abril.
59
RUBINO, Silvana. As fachadas da história: as origens, os antecedentes e os trabalhos
do SPHAN: 1936-1967. Dissertação de Mestrado. 1992. Campinas: UNICAMP/Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas.
Fontes on line
<http//www.funalfa.pjf.mg.gov.br>. Acesso em 14 de abril de 2009.
60
A Inclusão de Minorias na Promoção do Patrimônio Cultural Imaterial
Yussef Daibert Salomão de Campos*
Resumo: A inserção de conceitos como cultura popular e tradicional e diversidade
cultural se mostra cada vez mais frequente na produção científica que se propõe a tratar o
patrimônio cultural. O uso desses conceitos se mostra ligado à necessidade de se
demonstrar a busca pela afirmação de identidades culturais e sociais das minorias,
colocadas à margem dos processos políticos, até o advento da categoria imaterial do
patrimônio cultural. Através da interdependência entre as noções de identidade e diferença,
o breve trabalho que ora se apresenta tentará problematizar a inserção de tais conceitos na
categoria Patrimônio Cultural Imaterial, visto comumente como expressão popular da
cultura. A seara patrimonial é verdadeiramente um campo minado por disputas identitárias.
As seleções de bens culturais como alvos de preservação impõe a exclusão de outros: é a
velha dicotomia memória e esquecimento. O patrimônio cultural é a expressão política da
memória, na qual grupos com representação política alcançam reconhecimento através da
preservação, salvaguarda e promoção de seus símbolos culturais apresentados em cada um
de seus bens patrimonializados. O viés imaterial é o reconhecimento das minorias nas
políticas públicas de salvaguarda do patrimônio.
Palavras-Chave: Patrimônio cultural imaterial, Diversidade cultural, Identidade social,
Minorias.
Abstract: The inclusion of concepts such as traditional and popular culture and cultural
diversity proves increasingly the common theme in the scientific literature that purports to
treat the cultural heritage. The use of these concepts is shown on the need to demonstrate
the search for the assertion of cultural identity and social minorities, placed outside the
political process, until the advent of the category of intangible cultural heritage. Through
the interdependence between the concepts of identity and difference, the short work
*
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas. Formou-se em
Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e especializou-se em Gestão do Patrimônio Cultural
pelo Instituto Metodista Granbery/PERMEAR também em Juiz de Fora. Cursou, no ano de 2011, o seminário
Tópico Especial em Narrativas, Imagens e Sociabilidades II, temática: Patrimônio, Arte, Arquitetura e
Memória, do PPG História da UFJF, como aluno especial.
61
presented here will attempt to discuss the inclusion of such concepts in the category
Intangible Cultural Heritage, commonly seen as an expression of popular culture. Cultural
heritage is truly a minefield for disputes over identity. The selections of cultural
preservation as targets requires the exclusion of others: it's the old dichotomy between
memory and forgetting. Cultural heritage is the political expression of memory, in which
groups with political achieve recognition through the preservation, safeguarding and
promotion of their cultural symbols presented in each of its cultural properties. The
immaterial is the recognition of minorities in public policy to safeguard the heritage.
Keywords: Intangible cultural heritage, Cultural Diversity, Social identity, Minorities.
Introdução
O patrimônio cultural é um campo de estudos sem fronteiras definidas, com
disciplinas diversas que se debruçam sobre seu estudo e com pontos de vistas os mais
cambiantes possíveis. Isso pode ser demonstrado a partir de sua categoria imaterial: é um
campo mais recente da seara patrimonial, frente à categoria material e o instrumento
jurídico específico para sua salvaguarda – o registro – é alvo de estudos e debates acerca de
seus efeitos e de sua validade, já que foi instituído, no Brasil, somente há pouco mais de
uma década. A própria divisão em categorias não é um ponto pacífico no debate
patrimonial, mas esse não é o objeto desse estudo, como não o é a ideia de “tradição
inventada” que “inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e
formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de se
localizar num período limitado e determinado no tempo” (HOBSBAWM e RANGER,
2006: p. 09), mas simplesmente o uso, em Cartas Patrimoniais, da tradição e da cultura
popular na conceituação do patrimônio imaterial e na definição de marcos legais de
proteção, assim como demonstrar a busca da afirmação de identidades sociais através da
promoção da diversidade.
A UNESCO15, ao determinar que o patrimônio imaterial é “o conjunto das
manifestações populares, tradicionais e populares, ou seja, as criações coletivas, emanadas
de uma comunidade, fundadas sobre uma tradição” (ABREU, 2003: ps. 81-82) e que se
15
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
62
manifesta, entre outros, nas tradições orais e técnicas artesanais tradicionais, em sua
Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, de 2003 (CURY, 2004),
apresenta, nitidamente, a presença da tradição e da cultura popular como elementos
formadores do patrimônio imaterial, seja em celebrações, ofícios, lugares ou formas de
expressão.
O desenvolvimento de uma genealogia das principais Cartas Patrimoniais que
tratam do patrimônio imaterial permitirá a visualização do uso da tradição como ancestral
da salvaguarda de tal categoria; possibilitará, ainda, compreender, ainda que
superficialmente, a interdependência entre os conceitos “identidade” e “diferença”.
Formulando a categoria “patrimônio cultural”
A necessidade da proteção da cultura tradicional e popular influenciou na
determinação e conceituação do patrimônio imaterial e de sua salvaguarda. Cartas
patrimoniais, como a Convenção da UNESCO sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural, em 1972 e a Recomendação sobre a salvaguarda da Cultura Tradicional
e Popular, de 1989, balizaram a discussão que dariam ensejo às cartas patrimoniais
destinadas ao patrimônio imaterial. Enquanto a primeira, em seu primeiro artigo, destacou
a importância de se reconhecer como patrimônio cultural bens de valor etnológico e
antropológico, a segunda considerou a tradição e a cultura popular patrimônio universal da
humanidade, como “poderoso meio de aproximação entre os povos e grupos sociais
existentes e de afirmação de sua identidade cultural” (CURY, 2004: p. 293).
A conferência mundial sobre as políticas culturais, de 1985, conhecida como
Declaração do México, na mesma esteira, determinou, entre outras afirmativas, que “cada
cultura representa um conjunto de valores único e insubstituível já que as tradições e as
formas de expressão de cada povo constituem sua maneira mais acabada de estar presente
no mundo” e que
Todas as culturas fazem parte do patrimônio comum da humanidade; a
identidade cultural de um povo se renova e enriquece em contato com as
tradições e valores dos demais; a cultura é um diálogo, intercâmbio de ideias e
experiências, apreciação de outros valores e tradições; no isolamento, esgota-se e
morre. (CURY, 2004: p. 273).
63
Já em 1994, no Japão, foi realizada a conferência de Nara, que, ao tratar da
diversidade cultural e o patrimônio, apontou-se que todas as culturas e todas as sociedades
estão enraizadas em formas e em meios particulares de expressão tangível e intangível que
constituem o seu patrimônio, e que devem ser respeitados. Quanto à diversidade das
tradições culturais afirmou-se que
É uma realidade no tempo e no espaço, e exige o respeito pelas outras culturas e
por todos os aspectos dos seus sistemas de pensamentos. Nos casos em que os
valores culturais parecem estar em conflito, o respeito pela diversidade cultural
impõe o reconhecimento da legitimidade dos valores culturais de todas as partes.
(CURY, 2004: p. 320).
Dando continuidade ao processo de discussão acerca do patrimônio imaterial,
surgem, em 1997, dois importantes documentos: em junho, o MERCOSUL publicou a
Carta de Mar Del Plata sobre o patrimônio intangível e, em novembro, o IPHAN promoveu
um encontro que gerou a Carta de Fortaleza. A primeira dita algumas recomendações, tais
como a catalogação das expressões do patrimônio cultural intangível comuns da região e o
apoio de pesquisas sobre o patrimônio intangível das culturas indígenas da região; já a
Carta de Fortaleza buscou tratar de estratégias e formas de proteção do patrimônio
imaterial, propondo e recomendando que se estabeleça as necessárias interfaces para que
sejam estudadas medidas voltadas para a promoção e o fomento das diversas manifestações
culturais. Vale ressaltar que é nesse momento que surge o registro como instrumento para a
salvaguarda do patrimônio imaterial, conforme sugerido, dentre outros instrumentos, na
Constituição Federal de 1988.
Essa breve apresentação de determinações em Cartas Patrimoniais de diferentes
épocas e lugares proporciona a visualização de uma inserção determinante na cultura
popular e da tradição dentro do campo patrimonial institucionalizado, assim como
apresenta o patrimônio imaterial como instrumento de inclusão de manifestações culturais
até então marginalizadas das políticas e públicas de preservação do patrimônio,
promovendo, assim, a diversidade cultural. Tais afirmativas e diretivas de ações resultaram
não só na Convenção da UNESCO de 2003, apresentada ao final da introdução desse
artigo, como também na Declaração universal sobre a diversidade cultural, em 2001 e na
64
Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, em 2005.
Enquanto a primeira dispõe que a “diversidade se manifesta na originalidade e na
pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a
humanidade”, a segunda propõe que “a proteção e a promoção da diversidade das
expressões culturais pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por
todas as culturas, incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos
indígenas” (UNESCO, 2001; 2005).
Diversidade Cultural e Identidade Social
A genealogia de Cartas apresentada anteriormente possibilita não só uma leitura da
tradição e da cultura popular como elementos do patrimônio cultural como também abrem
espaço para um apontamento: a busca pela identidade social mostra-se acompanhada pela
promoção da diversidade cultural.
A seara patrimonial é verdadeiramente um campo minado por disputas identitárias.
As seleções de bens culturais como alvos de preservação impõe, necessariamente, a
exclusão de outros: é a velha dicotomia memória e esquecimento. O patrimônio cultural é a
expressão política da memória, na qual grupos com representação política alcançam
reconhecimento através da preservação, salvaguarda e promoção de seus símbolos
culturais apresentados em cada um de seus bens patrimonializados.
É assim se deu com o reconhecimento da tradição e da cultura popular como bens
patrimonializáveis. Após décadas de valoração de bens arquitetônicos representantes das
classes sociais das classes mais abastadas e detentoras de poder político, como casarões,
igrejas e fortificações militares, a cultura popular e tradicional passou a elencar o rol de
bens culturais do Brasil. São exemplos: o Círio de Nazaré, o frevo, o tambor de crioula, o
ofício dos mestres de capoeira, o toque dos sinos em Minas Gerais, a feira de Caruaru, a
arte Kusiwa, entre outros.
Tal tratamento nasceu do reconhecimento da diversidade cultural como promotora
da dignidade da pessoa humana, através da valoração das diferentes identidades presentes
em uma miríade de manifestações culturais. Daí pergunta-se: qual a relação entre a
identidade e a diversidade?
65
Responde-se: a mais íntima possível. Aparentemente conceitos diametralmente
opostos, diferença e identidade possuem uma interdependência indissolúvel. Só há
identidade onde possa ser notada a diferença. Sei que sou mineiro porque o carioca e o
gaúcho de mim diferem; sei de minha condição de brasileiro ao notar as diferenças
apresentadas pelo argentino ou pelo uruguaio. Sem tratar aqui da noção de comunidades
imaginadas (ANDERSON, 2008), as diferentes identidades, sejam marcadas pela
nacionalidade, pela regionalidade ou por manifestações culturais outras, a diferença e a
identidade caminham, inevitavelmente, uma ao lado da outra.
Como demonstrou Kathryn Woodward, a identidade é relacional:
A identidade sérvia depende, para existir, de algo fora dela: a saber, de outra
identidade (Croácia), de uma identidade que ela não é que difere da identidade
sérvia, mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista. A
identidade sérvia se distingue por aquilo que ela não é. Ser um sérvio é ser um
‘não croata’. A identidade é, assim, marcada pela diferença. (WOOODWARD,
2009: p. 09).
A procura pela valoração e promoção da diversidade reafirma identidades sociais
que formam esse campo de diferenças. Ao se mostrar aqui a correlação entre identidade e
diversidade se quis mostrar não só sua interdependência, mas que o reconhecimento da
diversidade é o reconhecimento de diversas identidades que se formam através de várias
diferenças. Voltando ao exemplo anterior: sou brasileiro porque não sou argentino; mas a
minha condição de ser brasileiro não se esgota em si. Sou mineiro (logo não sou gaúcho),
da Zona da mana mineira (logo, ao sou do Triângulo), e assim por diante, nas inúmeras
áreas que identificam um sujeito ou uma sociedade.
E, como foi dito anteriormente, a identidade é um campo de conflitos, assim como
a memória, sendo ambos representados politicamente na figura patrimonial. Tomaz Tadeu
da Silva apresenta explicita o poder das identidades da seguinte forma:
A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos
diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita
conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a
diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade
e a diferença não são, nunca, inocentes. (SILVA, 2009: p. 81).
66
As afirmativas suscitadas acima partem da conceituação de Stuart Hall de que “as
identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela” (HALL, 2009: p. 110).
O autor afirma ainda que pode ser perturbadora a ideia de que só se pode criar um perfil
identitário a partir do reconhecimento do outro, a partir daquilo que não o é, sendo que a
constituição da identidade social, para Hall, é um ato de poder.
Considerações finais
Essas reflexões trazem ã tona o cerne do debate patrimonial: o conflito de poder, a
disputa entre identidades. Através da promoção e da valoração da diversidade cultural, ao
se reconhecer a tradição e a cultural popular como bens patrimoniais, permite-se aplacar as
disputas e amenizar os conflitos.
O patrimônio cultural é formado tanto por bens materiais e imateriais, tanto por
casarões e igrejas quanto por terreiros e celebrações pagãs. O patrimônio, através de sua
preservação, salvaguarda e promoção se apresenta como um campo de afirmações de
identidades sociais e de reconstruções de memórias compartilhadas. É, portanto, uma zona
conflituosa, na qual perpassam conceitos que se complementam reciprocamente:
identidade e diferença; memória e esquecimento; passado, presente e futuro; tangibilidade
e imaterialidade.
Referências bibliográficas
ABREU, Regina. “Tesouros humanos vivos” ou quando as pessoas transformam-se em
patrimônio cultural. In: ABREU, Regina & CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e
patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A/ FAPERJ/ UNIRIO, 2003, p.
81-94.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo. Tradução: Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CURY, Isabelle (Org. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2004.
67
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, T. T. (Org.), WOODWARD, K. e
HALL, S. Identidade e diferença: a perspectiva dos assuntos culturais, 9 ed., Petrópolis:
Vozes, 2009.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Tradução: Celina
Cavalcante. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T.
T. (Org.), WOODWARD, K. e HALL, S. Identidade e diferença: a perspectiva dos
assuntos culturais, 9 ed., Petrópolis: Vozes, 2009.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, T. T. (Org.), WOODWARD, K. e HALL, S. Identidade e diferença: a perspectiva
dos assuntos culturais, 9 ed., Petrópolis: Vozes, 2009.
http://www.unesco.org/pt/brasilia/culture/cultural-diversity
68
Mestiçagens e Representações
No Reino de Ogum: uma etnografia de um Omolokô16 Umbandista em Juiz de Fora.
Dartagnan Abdias Silva*
Liliane Ribeiro Pires**
Resumo: Este trabalho busca descrever a vivência campo-metodológica em um Omolokô
situado no Bairro Progresso da cidade de Juiz de Fora / MG; o qual foi analisado com
auxílio de recursos áudios-visuais, recentemente introduzidos na análise antropológica,
entre outros métodos pertinentes à Antropologia. Desse modo, reconhecemos na Umbanda
um campo vasto para o estudo antropológico, no qual se pode observar a manifestação do
sagrado, de práticas de sacralização e comunicação entre o mundano e o divino, e a
presença de uma fé tipicamente sincrética e brasileira – relativamente recente no campo
religioso –, bem como um vasto número de símbolos, signos e significados.
Palavras-chave: Umbanda. Estudo de Caso. Mediunidade. Religião. Etnografia.
Abstract: This article aims at investigating an Umbanda ritual that takes place in an
Omolokô’s centre situated in the city of Juiz de Fora, Brazil with the use of audiovisual
resources, recently introduced in Anthropological researches. The Umbanda religion is a
rich field of anthropological studies in which we can observe sacred manifestations,
practice of sacralization and connections between mundane and divine, and the presence of
a kind of faith that is a typical syncretism and Brazilian faith – relativity recent in the
religion area – as well as a huge number of symbols, signs e meanings.
Keywords: Umbanda. Case Study. Mediumship. Religion. Ethnography.
Introdução
16
Omolokô: um espaço ritualístico ou templo onde se tem a mistura da Umbanda com o Candomblé.
Graduando em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
[email protected]
**
Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]
*
69
A Umbanda se caracteriza por uma religião tipicamente brasileira, criada em 1908,
em Niterói por Zélio Fernandino de Moraes, ainda com 17 anos, sob a influência do
espírito de Gabriel Malagrida, um padre morto pela inquisição em 1761, em Portugal, e
que se autonomeava como Caboclo das Sete Encruzilhadas.
A primeira manifestação desse Caboclo se deu em meio a um centro espírita
kardecista em Niterói, mas desafiado e sendo vítima de preconceito por parte dos médiuns,
o Caboclo das Sete Encruzilhadas prometeu instituir um culto gratuito em que todos seriam
bem-vindos, para além do credo, da cor, da classe social e do nível cultural; o mesmo se
valeria aos espíritos que serviriam e ajudariam a população, considerados pelos kardecistas
como espíritos de baixo nível, na Umbanda eles teriam seu espaço para poder praticar a
bondade, ensinar sua sabedoria e realizar seus trabalhos.
No dia seguinte, em 16 de novembro de 1908, cumprindo sua promessa, às 20
horas, o espírito do Caboclo incorporou Zélio e instituiu o novo culto. Segundo a história
umbandista, nessa noite foram realizadas várias curas e milagres mesmo aos olhos dos
médicos e médiuns do kardecismo.
A entidade em questão, definiu que o culto seria realizado em tendas de forma
humilde e gratuita, realizado de segunda a sexta-feira, no horário de 20 às 22 horas. E,
nesse momento inicial não houve abertura de novas tendas, mas uma enorme procura à
tenda de Zélio por pessoas de todos os cantos do país. Apenas quando o médium já estava
bem mais velho, o Caboclo solicitou a outros espíritos que abrissem outras tendas em
outros lugares do país e, pouco a pouco, esse novo culto foi ganhando espaço, trazendo
admiração, medo e, muitas vezes, preconceito.
Nesse primeiro momento, a Umbanda não incorporava nenhum traço direto das
tradições afro-descendentes, apenas mais recentemente que, de uma forma sincrética,
começou-se a incorporar aos ritos e cânticos o uso do atabaque seguido pela introdução de
algumas entidades e expressões advindas do Candomblé, sincretismo refletido na imagem
da Umbanda nos dias de hoje. Assim sendo, a Umbanda mistura em si traços do
cristianismo (em especial do catolicismo), do espiritismo kardecista – apesar de que para
os umbandistas não houve essa influência, uma vez que o espírito do Caboclo das Sete
Encruzilhadas foi discriminado em uma mesa branca –, e atualmente do candomblecismo,
de onde, hoje, tira grande parte de sua influência e regência.
70
Desse modo, podemos dizer que a Umbanda não só é uma religião criada no Brasil
como também é fruto de um sincretismo religioso presente em longo prazo na história de
nosso país e intensificado no século passado.
Hoje se tem muita diferença entre as tendas umbandistas, das mais conservadoras
às mais sincréticas, bem como hoje, no dito popular também já se começa a fundir o termo
“Tendas”, usado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas para definir o espaço religioso onde
seu culto aconteceria, com o termo “Terreiro”, mais comumente utilizado no Candomblé,
criando a noção de um “Centro” (termo usado no kardecismo) onde tudo se concentra.
Segundo Rivas Neto, a Umbanda possui sua Epistemologia, Metodologia e Ética
independente de um livro ou conjunto de livros únicos como referência. Dito de
outra forma, a Umbanda não possui uma codificação. Cada templo, conhecido
pelo nome de terreiro, possui total liberdade de expressar e vivenciar o Sagrado
de acordo com suas características éticas, culturais e sociais, sem
condicionamentos impostos por um livro ou código em particular. (CARNEIRO,
2009: p. 10)
É nessa imagem que encontramos a Associação Religiosa Reino de Ogum17 (um
Omolokô: um terreiro umbandista com misturas candomblecistas), um espaço simples
dirigido pelo Pai Eduardo T’Ogum, que possui iniciações na Umbanda e no Candomblé,
comportando mais de 50 Filhos de Santo, apesar de nem todos participarem sempre do
terreiro.
Funcionando em uma zona urbana periférica da cidade de Juiz de Fora, no bairro
Progresso, o Centro Umbandista Reino de Ogum atende a toda a comunidade publicamente
nas terças-feiras, das 19 às 22 horas, quando, por rodízio ou por ordem do Boiadeiro,
entidade regente do Pai Eduardo, as entidades se manifestam nos Filhos de Santo
realizando o atendimento conforme estabelecido pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Desses atendimentos, alguns são redirecionados para o sábado de manhã, quando, depois
de sancionado pelo Pai Eduardo os trabalhos mágicos são realizados (exceto àqueles que
requerem dias, horários e locais específicos). Além disso, é visível a presença de aspectos
candomblecistas dentro do Centro, como os cânticos, as imagens e quadros referentes às
entidades da Umbanda, apesar de essa não ter o uso de imagens; as Casinhas (ou Templos)
17
Associação Religiosa Reino de Ogum: situada na rua Humberto Valério, número 21 – bairro Progresso –
Juiz de Fora/Minas Gerais.
71
espalhadas pelo perímetro do espaço alugado no bairro Progresso. Há também, os
atendimentos pagos e secretos realizados muitas vezes, sob agendamento diretamente com
o Pai Eduardo.
Entretanto, indo além, é possível perceber claramente a direção dada pelo Pai, no
momento em que alguns trabalhos não podem ser realizados pelo Centro, assim como
algumas Entidades não podem participar ou realizarem trabalhos até serem “disciplinadas”,
como usam falar os Filhos de Santo. Acrescentamos aqui que a Umbanda trabalha com as
seguintes entidades: 1) Preto-Velhos, que são espíritos de ancestrais escravos; 2) Caboclos,
que são espíritos em geral indígenas, ligados à mata, à justiça e à magia; 3) Exus, os mais
“mal falados” e, com certeza, mal interpretados, são na verdade os “soldados” das Trevas,
no sentido de que são os responsáveis por abrir caminhos e harmonizar os astrais, nesse
grupo participam as famosas Pombo-Giras, como sendo, na verdade, Exus fêmeas; 4) Êres,
são na verdade os espíritos de crianças e a alegria da Umbanda; 5) Boiadeiros, são espíritos
de pessoas que trabalharam com o gado no passado; 6) Ciganos, muito confundidos com os
Exus, mas são, na verdade espíritos do povo cigano; 7) Malandros, também confundidos
com Exus, têm como principal característica de identificação, a malandragem, o amor pela
noite, pela música, pelo jogo, pela boemia e pelas mulheres; 8) Marinheiros, são espíritos
de pessoas que trabalhavam no mar ou ligados ao mar de alguma forma; e 9) Baianos, são
espíritos das pessoas que, na busca de uma vida melhor, fizeram ou morreram fazendo, a
migração da Bahia (do Nordeste em geral) para São Paulo.
Contudo, a pesquisa não se baseou apenas em um olhar etnográfico convencional e
na análise bibliográfica sobre o tema, ao ir a campo, optamos por adotar como metodologia
base o uso da Antropologia Fílmica que, infelizmente, se mostra ainda como uma
estratégia pouco convencional no campo antropológico. Reconhecendo assim a
importância do uso do filme etnográfico como uma ferramenta que não só pode registrar a
imagem para além de descrições – que podem, muitas vezes, serem subjetivadas –, esse
tipo de metodologia nos permite não só poder investigar repetidas vezes a mesma cena,
como, e principalmente, atua como um catalizador do olhar etnográfico nos possibilitando
ver (ao assistir e ao rever às filmagens) detalhes que fora desse método certamente
passariam por despercebidos. Foi deste modo que conseguimos em um mês de estudo de
campo um panorama, ainda simples, mas bem aprofundado sobre a rotina do Ritual
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Umbandista adotado na Associação Religiosa Reino de Ogum, e a partir disso,
conseguimos esclarecer melhores detalhes com o Pai Eduardo T’Ogum e os outros Filhos
de Santo do Omolokô que, tão humildemente, abriram suas portas e conhecimentos a nossa
pesquisa.
Assim, o presente artigo é na verdade um pequeno relato, uma etnografia resumida
do que presenciamos em campo. Reconhecendo, entretanto, que esse campo abre muito
mais espaço para novas pesquisas, e que essa etnografia, principalmente a registrada em
áudio-visual, nos permite ainda mais estudos e melhores aprofundamentos.
Primeira análise
No que concerne ao espaço físico, o omolokô conta com um grande barracão, em
que no seu espaço mais amplo acontecem os cultos, em outro fica uma espécie de
“camarim” para os fiéis se trocarem e se prepararem, e uma pequena cozinha. O barracão é
enfeitado com quadros, ervas, velas. A frente da porta de entrada fica o Congá (o altar da
Umbanda), com imagens e velas de algumas entidades. Próximos da porta ficam as
cadeiras e bancos para a assistência (as pessoas que vão prestigiar ou mesmo pedir algo
durante o culto). Mais próximo ao Congá, ao lado esquerdo, encontra-se o atabaque,
instrumento ritualístico utilizado para ditar o ritmo de suas danças, cantos e para auxiliar o
transe mediúnico.
Do lado de fora do barracão encontram-se as pequenas “casinhas” ou Templos de
algumas entidades. Ao lado direito do portão de entrada, encontra-se uma carranca de Exu,
onde são deixadas as oferendas no início do culto. Do lado esquerdo da porta do barracão,
e fora dele, encontra-se a Casinha dos Caminhos, onde são depositadas preces.
Encontramos a Cruz das Almas, onde se acendem velas pedindo luz para os espíritos
desencarnados. Há ainda a Casa, de Omulu, o orixá doente que ensina a aceitação, a
fertilidade e prosperidade. Logo ao lado temos uma casinha de Exu, decorada em vermelho
e preto (cores dessa entidade), onde se depositam oferendas e trabalhos (geralmente
mágicos) para serem realizados e abençoados por essa entidade.
Preparação ritual - proteção e purificação.
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Outro conceito importante em Eliade é o de “Corpo-Casa-Cosmos”;
apresentando o homem religioso como habitante de um Cosmos “aberto” e que
está “aberto” ao Mundo podendo se comunicar com os Deuses, sacralizando a si
e a tudo que existe no espaço em que se insere. Ato contínuo, “o Cosmo é ao
mesmo tempo um organismo real, vivo e sagrado: revela as modalidades do Ser
e da sacralidade. Ontofania e Hierofania se unem” (ELIADE in CARNEIRO,
2009). Por extensão de sentido, o sacerdote e a mediunidade compõem, por
excelência o Axis Mundi umbandista e os “órgãos” essenciais do “corpo”
templário. (CARNEIRO, 2009: p. 09)
Para alcançar uma perfeita sacralização do corpo, como apontado por João Luiz de
Almeida Carneiro em seu trabalho “O Sacerdócio Umbandista: entre a tradição e a
massificação”, os umbandistas passam por todo um ritual de purificação e limpeza de seus
corpos (de preparação ao ritual em si), na tentativa de aperfeiçoarem seus corpos como
aparelhos de condução, trabalho e incorporação do sagrado.
Desse modo, foi possível observar que, rotineiramente, os integrantes da Roda
Branca18 protagonizam um ritual de limpeza e purificação dos corpos através do uso de
Banhos de Abô (banhos de ervas), incensos, defumações e bênçãos de sacerdotes
hierarquicamente superiores. Juntamente com todo esse processo, é comum que se
reconheçam no traje ritualístico a presença forte da cor branca – que simboliza os ideais da
Umbanda, de humildade e igualdade – roupas de aparência baianas ou de visível cultura
afro-descendente, assim como a presença dos pés descalços e dos fios de contas (cordões
meticulosamente elaborados para simbolizar proteção, regência, aportes do sagrado e
hierarquia interna e externa ao Centro).
Entretanto, foi presenciado também no terreiro indumentárias de outros tons e
cores, quase sempre lembrando as roupas afro-descendentes, e indicando possível
sincretismo interno advindo do Candomblé. Mas, além desse simbolismo, o branco,
segundo o Pai Eduardo, facilita a melhor comunicação “Corpo-Casa-Cosmos” e um
possível “desligamento” do mundo externo ao ritual.
Por outro lado, a presença dos pés descalços se justifica, juntamente com a cor
branca, na questão da igualdade, aumentando, também, a comunicação com o mundo
sagrado. Sendo assim, era visível que o Pai Ogã e a Mãe Equéde (sacerdotes que não
18
Roda Branca: modelo de culto utilizado pela Umbanda, em que os participantes (Filhos e Pais de Santo),
tradicionalmente trajando branco, fazem uma roda de cantos e danças, movimentando-se no sentido antihorário.
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incorporam, se tornando responsáveis pela condução do ritual: o Pai Ogã pelo cântico e
pela condução do atabaque e a Mãe Equéde pela condução e auxílio dos Filhos de Santo),
assim como as crianças, que também não incorporam, trajavam chinelos ou sapatos em
todas as sessões.
Uma vez todos prontos, é tocado o atabaque pelo Pai Ogã, chamando os
participantes e mesmo a assistência (público presente para assistir, conversar e/ou pedir
bênçãos e trabalhos para as entidades que estarão presentes durante o ritual) para o início
do ritual em si; juntamente o Pai ou a Mãe de Santo começa a tocar o Badalo (uma espécie
de sineta tripla) para chamar Exu. Quando todos estão reunidos, já em roda, tendo ao
centro uma oferenda – constituída pelo Padê (farinha com dendê), água e uma vela branca
–, direcionada a Exu, que lhe é entregue mediante uma invocação cantada seguida de um
despacho, quando essa oferenda é levada aos quatro cantos do terreiro, enquanto o Pai
participa do pequeno rito, ainda tocando Badalo e que permanece tocado até o final da
oferenda. Essa oferenda é posteriormente jogada um pouco para o lado de fora da porta da
rua e colocada aos pés de uma carranca de Exu localizada ao lado da porta de entrada. Essa
oferenda tem como objetivo pedir proteção para que negatividades e mesmo espíritos ruins
não adentrem ao ritual ou ao terreiro.
Posterior é puxado um ou mais cantos para Ogum, o Orixá regente da casa e guia
do Pai Eduardo, também sendo, no Candomblé, o terceiro Orixá a ser tradicionalmente
chamado. E, por fim, é cantado um canto para Oxossi, o quarto Orixá da linha, seguindo
(Oxalá, Exu, Ogum, Oxossi, - apesar do terreiro não fazer invocações a Oxalá, os três
seguintes são costumeiramente chamados). Sob os cânticos e a “presença” de Oxossi
inicia-se a defumação conduzida pela Mãe Equéde (Mãe de Santo), ou às vezes por um
garoto que já possuía honras de Pai de Santo; a defumação percorre, também, os quatro
cantos da casa, passando pelos participantes da Roda Branca, os quais costumam puxar
para si a fumaça com a mão, dando um rodopio em sentido anti-horário; posteriormente,
ela é passada pela assistência, que costuma repetir o mesmo movimento dos Filhos de
Santo presentes na roda.
O processo de incorporação
75
Após a purificação, consagração e limpeza iniciais, os participantes se voltam de
frente ao Congá, ajoelhados, com a cabeça apoiada pelas mãos no chão enquanto, puxados
pelo Pai de Santo realizam orações tipicamente católicas como o Salve Rainha, o Pai
Nosso e o Credo.
Cerca de dez minutos depois, a Roda é novamente convocada pelo Pai Ogã ao tocar
novamente o atabaque e se inicia o processo de incorporação, protagonizado, a princípio,
pelo Pai de Santo que incorpora seu Boiadeiro (entidade que, de fato, preside o Centro) ao
som de cânticos próprios dessa entidade.
Assim que o Boiadeiro se manifesta no corpo do Pai Eduardo, e tem seu traje típico
colocado (uma faixa azul amarrada no peito, um colete de couro, um chapéu de boiadeiro
dependurado no pescoço, permanecendo com a calça branca antes já vestida pelo Pai e
levemente dobrada após a incorporação) é iniciada uma sessão de cumprimentos típicos e
saudações a ele.
Dentre as quatro terças-feiras analisadas, foram presenciadas a incorporação de
pelo menos seis tipos de entidades: Pretos-Velhos, Êres, Boiadeiros, Caboclos, Exus e
Malandros. Para cada entidade presenciada, foi constatada uma mudança no timbre de voz,
postura, fisionomia facial, expressões faciais, modos de dança e cânticos que eram
puxados, diferentes a cada entidade e levemente diferentes entre elas.
Seguido de sua incorporação, as entidades se saúdam, conversam com os Filhos de
Santo não incorporados, cumprimentam a entidade do Pai de Santo e, enfim, iniciam o
atendimento à assistência que lhes recorre para conversas, pedidos de Passe (Bênçãos), ou
Axé (os Exus não dão Passe, mas Axé – força), conselhos mundanos e espirituais, e
pedidos de trabalhos mais elaborados, alguns efetivados apenas no sábado pela manhã sob
autorização consciente do Pai Eduardo. E assim se dá até que sejam dispensados através de
cânticos.
A dispensa das entidades, em geral se dá da mesma forma de seu ingresso,
entretanto, após seu cumprimento e saudação inicial, a entidade desincorpora voltada para
porta de entrada. Após o processo de desincorporação os médiuns ficam um tempo
desnorteados, tontos e alguns até enjoados. Após todos desincorporados, é puxado um
canto de agradecimento e despedida que, novamente, mostra mais uma vez o sincretismo
com o cristianismo:
76
Graças a Deus, adeus!
Graças a Deus, adeus!
Pela Gira de hoje
Louvado seja Deus! (2x)
Aos Pais Ogã
Meu muito Obrigado (2x)
Pela Gira de hoje
Louvado seja Deus! (2x)
À Mãe Equéde
Meu muito Obrigado (2x)
Pela Gira de hoje
Louvado seja Deus! (2x)
Aos Filhos de Santo
Meu muito Obrigado (2x)
Pela Gira de hoje
Louvado seja Deus! (2x)
Aos Pais de Santo
Meu muito obrigado (2x)
Pela Gira de hoje
Louvado seja Deus! (2x)
(Refrão)
Nesse momento, o Pai de Santo dá recados, recomendações e convites para os
Filhos de Santo e para a assistência. É cantada então uma música em homenagem às almas
e é finalizado o ritual com a limpeza e reorganização da casa.
Conclusão
Após as quatro terças-feiras de pesquisa, finalizamos o trabalho com a edição de
um vídeo de quase quarenta minutos editado a partir dos pontos considerados mais
importantes dentro das filmagens realizadas, por sistematizarem e/ou resumirem grande
parte do que foi observado e filmado.
Claramente visto nas filmagens está o detalhado cumprimento que é feito pelos
Filhos de Santo e demais ao Pai de Santo, cumprimento simbólico demarcado por um
ajoelhar com a cabeça ancorada no chão e reclinar o quadril de um lado para o outro, por
três vezes, marcado pelas pessoas cuja regência se dá por entidades femininas; e um deitarse no chão com o corpo reto para as pessoas cuja regência se dá por entidades masculinas.
O mesmo cumprimento é repetido ao Boiadeiro do Pai Eduardo, que, em suma, é quem de
fato preside o Centro. Entre as entidades em si, também se vê claro respeito à entidade do
77
Pai, à Mãe Equéde e ao Pai Ogã, além de respeito claro às orientações dos Filhos de Santo,
também demonstrando forte respeito umas com as outras.
A hierarquia clara e funcional, não necessariamente polariza entidades mais ou
menos fortes, mas àquelas que incorporam pessoas de determinada posição dentro do
Terreiro, o mesmo se dando entre os participantes e, de forma mais discreta, também
apresentado pela assistência.
É o pai ou mãe-de-santo que os fieis vêem como a “âncora” ou o “porto seguro”
contra os perigos do universo das aflições. Os seus sucessos e fracassos vão lhes
conferindo uma identidade, atribuindo uma identidade aos terreiros que
administram, enquanto uma entidade reconhecida no campo religioso, que revela
o resultado de suas decisões e ações, mediatizados pela rede de relações e
circunstâncias que poucas vezes chegarão a controlar completamente. Desta
maneira, o sacerdote e o terreiro se identificam, pois os destinos de ambos estão
interligados. (BRUMAN & MARTINEZ; 1991: p. 150 in LIMA, p. 03)
O grande ponto desse trabalho é o encantamento com a riqueza de simbolismos,
detalhes e alvos de estudo por conta da Antropologia e mesmo Ciência da Religião, é
impossível finalizar de fato um trabalho com objetos tão ricos, mas em tentativa o fazemos
como um trabalho meramente descritivo dessa experiência acadêmica, na finalidade de
sugerir novos olhares e maiores estudos sobre o tema.
A religião funciona como um princípio de estruturação que constrói a
experiência, ao mesmo tempo em que a expressa, pelo efeito da consagração ou
legitimação. A religião submete o sistema de disposições em relação ao mundo
natural e ao mundo social a uma mudança na natureza “em especial convertendo
o ethos enquanto sistema de esquemas implícitos de ação e de apreciação em
ética enquanto um conjunto sistematizado e racionalizado de normas explícitas.
(LIMA, p. 02)
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78
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Universidade de São Paulo, 2007.
Entrevistas e Consultas
T’OGUM, Pai Eduardo. Pai de Santo da Associação Religiosa Reino de Ogum – em Juiz
de Fora / MG.
80
Políticas Públicas, Políticas e Direitos.
O Estupro Enquanto Genocídio: participação da sociedade civil para a
produção do conceito.
Camila Soares Lippi*
Resumo: Em 1998, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda proferiu a decisão que
considerou Jean-Paul Akayesu como culpado por genocídio e crimes contra a humanidade.
Trata-se da primeira condenação por genocídio já proferida. Esse caso também foi
precursor ao afirmar que o estupro pode constituir genocídio, embora essa hipótese não
esteja prevista na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, o
tratado internacional que regula a matéria. Pretende-se avaliar de que forma a sociedade
civil global colaborou para que fosse produzida essa decisão de considerar que o estupro
pode constituir genocídio, e quais foram as estratégias por ela utilizadas nesse caso.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional para Ruanda, estupro, genocídio, sociedade
civil global.
Abstract: In 1998, the International Criminal Tribunal for Rwanda uttered its decision
which considered Jean-Paul Akayesu as guilty for genocide and crimes against humanity.
It was the first condemnationfor genocide ever uttered. This case was also pioneer for
being the first time it was affirmed that rape can constitute genocide, although this
hypothesis is not mentioned on the Convention on Genocide. The aim of this article is to
evaluate how global civil society collaborated to the production of this decision, and the
strategies it used for this purpose.
Keywords: International Criminal Tribunal for Rwanda, rape, genocide, global civil
society.
*
Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Metodista Bennett. Mestre e Bacharel em
Direito pela UFRJ. E-mail: [email protected]
81
O objetivo deste trabalho é verificar como a Human Rights Watch, através de seu
relatório Shattered Lives, influenciou tanto o Procurador quanto os juízes do Tribunal
Penal Internacional para Ruanda (TPIR) na decisão pioneira de que o estupro pode
constituir genocídio, no caso Akayesu. Além da pesquisa em fontes primárias,
empreendeu-se revisão bibliográfica não somente sobre o caso em tela, mas também sobre
o crime de genocídio, sobre normas internacionais relativas a direitos das mulheres,
particularmente nos anos 1990, e sobre os acontecimentos que levaram ao genocídio em
Ruanda em 1994, e o genocídio em si, prestando especial atenção à violência sexual
sofrida por mulheres durante esse genocídio.
Nesse sentido, são tecidos breves comentários sobre o que é genocídio No Direito
Internacional. Posteriormente, tratamos do caso Akayesu, com foco na questão do estupro.
Depois, versamos sobre o relatório Shattered Lives, da ONG Human Rights Watch, para,
finalmente, verificarmos o impacto no Procurador e na Câmara de Julgamentos do TPIR.
Torna-se necessário fazer uma importante ressalva no tratamento dessas fontes,
mais especialmente em relação à análise dos papéis dos atores no caso Akayesu: pela
grande distância geográfica entre a pesquisadora e o campo, não se pôde ter acesso aos
autos do processo no TPIR contra Jean-Paul Akayesu; em função dessa mesma distância,
não foi possível entrevistar membros da sociedade civil global, ou que tenham ocupado
cargos no Escritório do Procurador ou na Câmara de Julgamentos naquele período. Dessa
forma, as fontes primárias consultadas tiveram que ser tratadas através do método
indiciário, do qual trata Carlo Ginzburg, ou seja, de forma a fornecer indícios que, juntos,
dão certa idéia do que pode ter ocorrido (GINZBURG, 1989: p. 143-179).
Genocídio
Em 1948, a ONU aprovou a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime
de Genocídio, primeiro tratado internacional sobre a matéria. Nesse documento, definiu-se
como genocídio os atos descritos abaixo, cometidos com a intenção de exterminar, total ou
parcialmente, um grupo étnico, racional, nacional ou religioso:
1. assassinato de membros do grupo; 2. dano grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; 3. submissão intencional do grupo a condições de
82
existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; 4. medidas
destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; 5. transferência forçada
de menores do grupo para outro (BRASIL, 1952).
Além dessas condutas, o art. III da Convenção e o art. 2º, parágrafo 3º do Estatuto
afirmam que são puníveis não só o cometimento do crime, mas também a tentativa e a
conspiração para cometê-lo, além de incitação e cumplicidade ao genocídio.
A Convenção define como grupos protegidos, no caput de seu art. II, grupos
nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. Mas a Convenção não definiu cada um desses
grupos (JONES, 2010). Grupos são sempre socialmente construídos. Para Mettraux, o
grupo protegido não deve ser imaginado pelo perpetrador; sua existência deve ser objetiva.
Porém, ela não precisa ser comprovada científica ou factualmente. O que importa é que
haja uma percepção compartilhada socialmente de que o grupo exista (METTRAUX,
2005: p. 224).
O julgamento de Jean-Paul Akayesu
O julgamento de Akayesu começou em 1997, diante da Câmara de Julgamentos
do TPIR, composta pelo juiz Laïty Kama, que presidia a Câmara, o juiz Lennart Aspegren
e a juíza Navanethem Pillay.
Jean Paul Akayesu foi bourgmestre de Taba commune de abril de 1993 até junho
de 1994. Como bourgmestre, ele era responsável por exercer funções executivas e manter
a ordem pública em Taba commune, sujeito à autoridade do prefeito. Ele tinha controle
exclusivo da polícia da commune, assim como os gendarmes19 postos à disposição da
commune. Ele também era responsável por executar as leis e regulamentos, assim como
administrar a justiça, também sujeito somente à autoridade do prefeito20.
19
A gendarmerie é a polícia militar das regiões rurais ruandesas. Trata-se do maior componente de forças
militares em Ruanda. Os gendarmes são os policiais membros dessa corporação.
20
Quando ocorreu o genocídio em Ruanda, em 1994, o país era dividido em 11 municipalidades, cada uma
governada por um prefeito. Essas municipalidades eram divididas em varias communes, que estavam sob a
autoridade do bourgmestre. O bourgmestre de cada commune era indicado pelo Presidente da República,
depois de recomendação do Ministro do Interior.
83
Inicialmente, o Indictment21 não continha qualquer acusação relativa a crimes
sexuais. Entretanto, em uma sessão do julgamento, uma testemunha (chamada no julgado
de “testemunha J”) falou do estupro de sua filha cometido membros da Interahamwe.
A acusação negou qualquer influência da sociedade civil global na decisão de
pedir à Corte licença para emendar o Indictment. Ela pediu aos juízes permissão para
emendar a peça para acusar Akayesu dos crimes contra a humanidade de estupro e de
outros atos desumanos, e o crime de guerra de “atentados à dignidade da pessoa,
nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes, a violação, a coação à
prostituição e todo o atentado ao pudor”, constante no artigo 3º comum às quatro
Convenções de Genebra e o no art. 4º, parágrafo 2º, alínea “e” do Protocolo Adicional II à
Convenção de Genebra sobre a Proteção dos Civis em Tempo de Guerra. A defensa de
Akayesu se opôs a esse pedido feito pela acusação. Depois de deliberar por dez minutos, a
Câmara de Julgamentos concedeu à acusação licença para emendar o Indictment, e o
julgamento foi adiado para outubro de 1997.
O Escritório do Procurador também adicionou três acusações, cujos fatos aos
quais se referem estão nos parágrafos 12A y 12B da nova versão do Indictment.
As acusações incluídas nessa nova versão, relativas aos atos narrados acima,
foram as de estupro enquanto crimes contra a humanidade, e o crime de guerra “de
atentados à dignidade da pessoa, nomeadamente os tratamentos humilhantes e degradantes,
a violação, a coação à prostituição e todo o atentado ao pudor”. Ainda que não se tenham
modificado as acusações relativas a genocídio, a violência sexual foi incluída na nova
versão, porque o Escritório do Procurador, no Indictment tanto na versão original quanto a
modificada, pediu que Akayesu fosse condenado por genocídio pelos atos descritos nos
parágrafos 12 a 23, nos quais foram incluídos os parágrafos 12A e 12B, depois das
modificações.
Ao valorar as provas submetidas em relação a violência sexual, a Câmara de
Julgamento considerou que Akayesu sabia, ou ao menos deveria saber, das violações
sexuais cometidas no bureau commune, e que as mulheres tutsis que lá procuravam refúgio
estavam sendo retiradas do bureau commune para sofrerem violência sexual. Além disso,
considerou que não foi apresentada nenhuma prova de que Akayesu não tinha como
21
O Indictment é a peça inicial acusatória nas cortes penais internacionais.
84
prevenir os atos de violência sexual, ou punir seus perpetradores. Muito pelo contrário,
haviam sido submetidas provas de que Akayesu ordenou, instigou, ajudou e incentivou a
prática da violência sexual em Taba. Dessa forma, o Tribunal apresentou a primeira
definição de estupro do Direito Internacional:
[…] uma invasão física de natureza sexual, cometidas sobre uma pessoa sob
circunstâncias coercitivas. O Tribunal considera violência sexual, que inclui
estupro, como qualquer ato de natureza sexual que é cometido sobre uma pessoa,
sob circunstâncias que são coercitivas. A violência sexual não é limitada apenas
a uma invasão física do corpo humano, e pode incluir atos que não envolvem
penetração, e sequer contato físico (INTERNATIONAL CRIMINAL
TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998, p. 275. Tradução da autora).
Quanto à acusação de genocídio por estupros e violências sexuais cometidas por
seus subordinados, pelos quais seria responsável internacionalmente por ser o superior
hierárquico, como dispõe o artigo 6º, parágrafo 3º de seu Estatuto, o Tribunal Penal
Internacional para Ruanda decidiu que eles constituem genocídio quando cometidos com a
intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo em particular. Conforme a sentença:
Em relação, particularmente, a […] estupro e violência sexual, a Câmara deseja
sublinhar o fato de que, em sua opinião, esses atos constituem genocídio da
mesma forma que qualquer outro ato, desde que sejam cometidos com a intenção
de destruir, no todo ou em parte, um grupo em particular, alvejado enquanto tal.
De fato, o estupro e a violência sexual certamente constituem danos corporais e
mentais graves às vítimas e são, ainda, segundo a Câmara, uma das piores
formas de infligir danos à vítima [...]. À luz de todas as evidências submetidas
diante de si, a Câmara está convencida de que os atos de estupro e violência
sexual descritos acima foram cometidos somente contra as mulheres tutsis,
muitas das quais foram submetidas à pior humilhação pública, mutiladas, e
estupradas várias vezes, freqüentemente em público, nas instalações do Bureau
Communal ou em outros locais públicos, e muitas vezes por mais de um
estuprador. Esses estupros resultaram na destruição física e psicológica das
mulheres tutsi, de suas famílias e de suas comunidades. A violência sexual era
parte integrante do processo de destruição, especificamente dirigido às mulheres
tutsis e, especificamente, contribuindo para a sua destruição e à destruição do
grupo tutsi como um todo (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR
RWANDA, 1998, p. 288. Tradução da autora).
O relatório Shattered Lives da Human Rights Watch
Em 1996, a Human Rights Watch publica seu relatório Shattered lives: Sexual
Violence during the Rwandan Genocide and its Aftermath, denunciando, entre outras
85
coisas, descaso de alguns funcionários do TPIR em relação às vítimas de estupro durante o
genocídio em Ruanda. Trata-se do primeiro documento que considera que estupro pode
constituir genocídio:
O Tribunal Internacional deve investigar e levar a juízo de forma plena a
violência sexual. Estupro, escravidão sexual e mutilação sexual devem ser
reconhecidos e levados a julgamento, quando apropriado, como crimes contra a
humanidade, genocídio, ou crimes de guerra (HUMAN RIGHTS WATCH,
1996. Grifo nosso. Tradução da autora).
Argumenta-se nesse relatório que o principal elemento no caso do genocídio não é
objetivo, ou seja, as condutas cometidas, mas o elemento subjetivo (a intenção de destruir
um determinado grupo). Por isso, é afirmado nesse relatório que estupro e outras formas de
violência sexual podem constituir atos proibidos pela Convenção de 1948 sobre Genocídio,
desde que reste comprovado que houve esse elemento subjetivo, podendo constituir
ofensas alíneas do art. 2º, § 1º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda,
que é o dispositivo desse Estatuto que trata sobre genocídio.
A participação do Procurador
Richard J. Goldstone, o primeiro Procurador-Geral em exercício do TPIR,
nomeou, pouco tempo depois de assumir o cargo, a jurista norte-americana Patricia Viseur
Sellers para exercer um cargo que ele passou a conceder de grande importância no
Escritório do Procurador, o de Assessora para Persecução de Crimes Relacionados a
Gênero do Escritório do Procurador (GOLDSTONE, 2002: p. 280).
Patricia Viseur Sellers, em artigo publicado no American University Journal of
Gender, Social Policy & the Law, afirma que, em outubro de 1994, quando foi nomeada,
Goldstone lhe deu a tarefa de desenvolver uma estratégia investigativa e persecutória para
que pudessem ser feitas acusações bem sucedidas em relação aos crimes sexuais dispostos
no Estatuto do Tribunal. Porém, só havia um artigo enumerado nesse sentido no Estatuto,
que era o estupro como crime contra a humanidade, disposto no art. 5º do Estatuto do TPII,
e que na época, considerava-se que estupro somente recairia sobre crimes contra a
humanidade. De 1995 a 1999, Viseur Sellers atuou na mesma função no TPIR (VISEUR
86
SELLERS, 2007: p. 304), atuando, portanto à frente do caso Akayesu. É interessante notar
que, numa palestra sua proferida em 30 de março de 1996 (portanto, anteriormente, mas
não tanto assim, à publicação do relatório Shattered Lives da Human Rights Watch) sobre
persecução a violência sexual no Tribunal Penal Internacional para Ruanda, Viseur Sellers
fala que o estupro pode constituir, perante o estatuto do Tribunal, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra, mas em momento algum fala da possibilidade de que ele
possa constituir genocídio (VISEUR SELLERS, 1996: p. 105-110). Portanto, dado o
intervalo de tempo entre a publicação do relatório Shattered Lives e a supracitada palestra
proferida por Viseur Sellers, parece haver indícios de que, embora a decisão de processar
Akayesu por delitos sexuais tenha sido tomada por causa das testemunhas que relataram ter
sofrido ou testemunhado violência sexual, a interpretação de que a violência sexual pode
constituir genocídio só ingressou na estratégia persecutória do Escritório do Procurador do
TPIR devido ao impacto do relatório Shattered Lives, e, portanto, devido à sociedade civil
global.
Apesar da nomeação de Viseur Sellers para o cargo de Assessora para Persecução
de Crimes Relacionados a Gênero do Escritório do Procurador, há relatos de certa
negligência da gestão Goldstone à frente do Escritório do Procurador em relação à
persecução de crimes relacionados a gênero, conjugada com falta de experiência em lidar
com crimes sexuais na magnitude com que foram realizados em Ruanda. Alex OboteOdora, que foi assistente especial para o Procurador no Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, relata problemas de treinamento para os funcionários em relação a crimes sexuais:
Durante os primeiros anos do TPIR, os investigadores receberam pouco ou
nenhum treinamento no que diz respeito à metodologia de investigação de crimes
cometidos de forma generalizada e sistemática, genocídio e crimes sexuais.
Muitos investigadores não tinham estudado direito internacional humanitário e
não investigaram os crimes cometidos no contexto do estupro e violência sexual
cometidos de forma generalizada e sistemática (OBOTE-ODORA Apud
NELAEVA, 2010: p. 8. Tradução da autora).
Em 1996, Louise Arbour sucede Goldstone no Escritório do Procurador. Quando
as testemunhas que motivaram a emenda do Indictment prestaram seus depoimentos,
Arbour já era a responsável pelo Escritório do Procurador. Ela sublinha que sua trajetória
não era de uma jurista internacionalista, e sim de penalista, em seu país de origem, o
87
Canadá. E ela relata que foi justamente essa sua experiência enquanto penalista no Canadá
que a fez lidar com questões de gênero anteriormente a assumir o cargo de Procuradora do
TPII e do TPIR. A experiência chave, nesse sentido, teria sido quando ela trabalhou numa
missão, no seu país, para investigar brutalidades perpetradas por uma espécie de guarda
policial correcional para situações de emergência (ARBOUR, 2003: p. 198-200).
Essas experiências em relação à investigação de crimes relacionados a gênero
podem ter tido impacto na criação da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas em
junho de 1996. Em março de 1997, a Unidade foi reformada com o intuito de desenvolver
melhor relação com as testemunhas, resultando numa unidade separada, dentro da
Secretaria do TPIR, da Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas: a Unidade de
Assuntos de Gênero de Assistência às Vítimas. Assim, alguns problemas relativos à
investigação de assuntos ligados a gênero presentes na gestão Goldstone foram superados
(NELAEVA, 2010: p. 8).
Porém, outros problemas subsistiam no Escritório do Procurador, mas em relação
às estratégias persecutórias de crimes relacionados a gênero. Segundo Arbour, parte do
debate, dentro do Escritório do Procurador, em relação aos crimes de violência sexual,
referia-se a se à persecução dos perpetradores diretos desse tipo de violência consistia
numa estratégia persecutória apropriada. Havia ainda a discussão se haveria mais ganhos
perseguindo o perpetrador de fato dos abusos sexuais (nas palavras de Arbour, o “Mr.
Nobody”), ou se o objetivo da persecução deveria ser atingir o alto da cadeia de comando.
A punição, no caso da violência sexual, seria particularmente difícil, na visão que se tinha
na época, de ser aplicada aos superiores hierárquicos sob a doutrina da responsabilidade do
superior hierárquico. Requerer-se-ia provar que esses superiores tanto participaram da
violência sexual, ou que eles sabiam que essa violência estava sendo cometida por seus
subordinados, mas falharam em impedir ou em punir os que estavam participando dela
(ARBOUR, 2003: p. 203). O que fica patente nesse relato de Arbour é que na época do
caso Akayesu, a persecução de crimes relacionados a gênero no Direito Internacional ainda
estava em caráter experimental, sendo justificável certa cautela por parte do Escritório do
Procurador.
A participação dos juízes
88
Como dito anteriormente, muito embora boa parte da bibliografia sobre o caso
Akayesu atribua à juíza Navanethem Pillay papel primordial ao interrogar as a primeiras
testemunhas que relataram ter sofrido violência sexual, antes mesmo que o Indictment
fosse emendado, as transcrições, analisadas por Beth Van Shaack, e um artigo publicado
pela própria juíza indicam o contrário, conforme se verifica nos trechos a seguir:
[…] no caso Akayesu todos os três juízes fizeram perguntas sobre esses estupros
[…] (PILLAY, 2008 a: p. 666. Tradução da autora).
Em interrogatório, a defesa não levantou a questão dos estupros, mas a juíza
Pillay, e depois o juiz Aspergan, o fizeram, pedindo à testemunha H para
desenvolver melhor sua resposta sobre onde Akayesu estava e o que ele estava
fazendo enquanto as mulheres eram estupradas dentro, ou perto do bureau
comunal. Relatos deste julgamento dão à juíza Pillay crédito por trazer à atenção
da acusação a questão da violência sexual em Taba. A transcrição revela, no
entanto, que todos os juízes da Câmara seguiram essa linha de questionamento
em face do silêncio virtual a partir das partes (SHAACK, 2008: p. 7-8. Tradução
da autora).
Além disso, o trecho acima, escrito por Beth Van Shaack, revela a grande
importância do papel das testemunhas na decisão dos juízes. Isso também transparece no
seguinte trecho do julgado de primeira instância do caso Akayesu:
A Câmara entende que a emenda do Indictement resultou de testemunho
espontâneo sobre violência sexual pelas Testemunhas J e H durante o curso deste
julgamento e subsequente investigação pelo Procurador, mais do que da pressão
pública (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1998:
p. 170-171. Tradução da autora).
Esse papel é confirmado pelas palavras da juíza Pillay:
Devo dizer que o depoimento de uma das testemunhas me motivou a reexaminar
as definições tradicionais de estupro. A testemunha ‘JJ’ estava sendo indagada
pelo Procurador, em relação a cada uma das violações múltiplas que ela sofreu,
se houve penetração: ‘Lamento ter de continuar a perguntar-lhe toda hora- seu
agressor a penetrou com seu pênis?’ Sua resposta foi: ‘Essa não foi a única coisa
que eles fizeram comigo, pois eles eram meninos e eu sou uma mãe e ainda
assim eles fizeram isso comigo. É o que eles me disseram que eu não posso
esquecer’. Suas palavras me levaram a investigar a percepção do Direito sobre a
experiência das mulheres relativa a violência sexual e suas conseqüências
durante os conflitos armados. Neste caso, os alegados atos de estupro ocorreram
como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil
(PILLAY, 2008 a: p. 667. Tradução da autora).
89
Porém, apesar das negativas dos juízes da Câmara de Julgamento do TPIR quanto
ao impacto da sociedade civil na construção do estupro enquanto genocídio na sentença do
caso Akayesu, esse mesmo órgão do TPIR parece confirmar o raciocínio apresentado pela
Human Rights Watch no relatório Shattered Lives22, pois faz uma analogia entre o crime
de estupro e o crime de tortura nesse julgado, ao afirmar que:
A Câmara considera que o estupro é uma forma de agressão, e que os elementos
centrais desse crime não podem ser capturados numa mecânica de objetos e
partes do corpo. A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes não cataloga atos específicos na definição de
tortura, focando, ao invés disso, no conceito de violência sancionada pelo
Estado. Essa abordagem é mais útil ao Direito Internacional. Da mesma forma
que a tortura, o estupro é usado para propósitos tais como intimidação,
degradação, humilhação, discriminação, punição, controle ou destruição de uma
pessoa. Como a tortura, o estupro é uma violação da dignidade pessoal, e o
estupro de fato constitui tortura quando é infligido por instigação ou com o
consentimento ou aquiescência da autoridade pública ou outra pessoa agindo
numa função (INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA,
1998: p. 241. Tradução da autora).
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International Law. Berkley Journal of International Law, vol. 21, 2003, p. 196-212.
BRASIL. Decreto Nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a
prevenção e a repressão do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de
1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Disponível em:
http://www2.mre.gov.br/dai/genocidio.htm, acessado em 5 setembro de 2010. Paginação
não numerada.
22
O trecho em que a Human Rights Watch faz essa analogia é o seguinte: “A intenção genocida também fica
evidenciada na natureza da violência sexual em questão. Violência sexual, como outras formas de tortura,
pode preceder ou ser um meio de execução extrajudicial. Em Ruanda, atos de mutilação sexual e outras
formas de violência que ameaçam a vida humana foram infligidos com o intuito de causar a eventual morte
de suas vítimas. Mulheres sofreram estupros por gangues, estupradas com objetos, e foram sujeitas a uma
brutalidade ultrajante, que envolvia mutilar os órgãos sexuais das mulheres. Alguns desses ataques deixaram
mulheres feridas fisicamente de forma que podem nunca mais serem capazes de ter filhos. Muitas vítimas de
agressão sexual morreram no curso dos ataques, ou por conseqüência deles. Violência sexual em tais casos
era uma parte direta das mortes. Em outros casos documentados pela Human Rights Watch/FIDH, as
mulheres sobreviveram à violência sexual porque seus agressores a deixaram para morrer, acreditando que
elas tinham sido mortalmente feridas” (HUMAN RIGHTS WATCH, 1996. Tradução da autora).
90
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GOLDSTONE, Richard J. Prosecuting Rape as a War Crime. Case Western Reserve
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91
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American University Journal of Gender, Social Policy & Law, Vol. 17, nº 2, 2007, p. 301306.
92
A Dramaturgia Social de Erving Goffman: influências, debates e aplicações.
Henrique Rodrigues de Andrade Goulart*
Resumo: Esta pesquisa tem como intenção analisar alguns aspectos da teoria de Erving
Goffman, primeiro em relação à corrente de pensamento chamada Interacionismo
Simbólico e posteriormente à análise das relações entre indivíduos e instituições. Para
realizar o que se propõe no primeiro item, apresentaremos a corrente da teoria social
chamada Interacionismo Simbólico, com alguns de seus pressupostos e principais
articuladores. Posteriormente, vamos trabalhar com alguns pontos presentes na obra de
Goffman, comparando sua posição a alguns conceitos clássicos do Interacionismo,
analisando também como o autor trabalha a relação entre indivíduo e sociedade presente
em perspectivas consideradas algumas vezes dicotômicas, com ênfase no nível individual
(caso do próprio Interacionismo) e ênfases no nível estrutural (casos do funcionalismo e do
marxismo). Para responder ao que se pede no segundo item, iremos pensar como os
conceitos do autor canadense, em especial o de dramaturgia social, podem ser utilizados
em estudos sobre instituições, com ênfase especial para como analisar a Polícia sob este
viés de pensamento.
Palavras-chave: Interacionismo, Goffman, dramaturgia social, Polícia.
Abstract: This research aims to analyze some aspects of the theory of Erving Goffman,
first in relation to the school of thought called Symbolic Interactionism and thereafter to
the analysis of relations between individuals and institutions. To accomplish what is
proposed in the first item, we
Symbolic Interactionism, with some of its
will present the school of social theory called
assumptions and main articulators. Later,
we will work with some points present in the works of Goffman, comparing his
propositions to some classic concepts of Interactionism, also analyzing how the author
works with the relationship between individual and society perspectives considered in this
*
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista FAPEMIG. E-mail:
[email protected]. Orientador: Professor Dr. André Moyses Gaio (UFJF).
93
sometimes dichotomous, with emphasis on the individual level (case of the Interactionism)
and with emphasis on the structural level (instances of Functionalism and Marxism). To
answer what is asked in the second item, we will consider how the concepts of the
Canadian author, especially of Social Dramaturgy, can be used in studies of institutions,
with particular emphasis on how to analyze the Police under this bias of thought.
Keywords: Interactionism, Goffman, Social Dramaturgy, Police.
O Interacionismo Simbólico é uma corrente de pensamento criada no início do
século XX e com vasta influência na teoria social. Suas fontes teóricas são igualmente
vastas e vão desde a Filosofia até a Psicologia. A criação do termo Interacionismo
Simbólico é creditada a Herbert Blumer, um dos principais autores da escola
(JUNQUEIRA, 2008: p. 16). A corrente de pensamento ficou mais conhecida pelos seus
representantes na chamada Escola de Chicago, em que seu maior símbolo é o professor de
Blumer, George Herbert Mead (CHARON, 1995: p. 24). Mead desenvolveu uma série de
conceitos que se tornaram bases para a constituição de um arcabouço teórico mais definido
para os interacionistas. Outros autores posteriormente contribuíram também com suas
perspectivas, trazendo novas abordagens e algumas vezes suplantando as supostas
limitações dos conceitos iniciais de Mead.
Joel Charon (1995: p. 25) aponta outras três como sendo influências centrais para
os interacionistas simbólicos: a filosofia do pragmatismo, o trabalho de Charles Darwin e o
Behaviorismo. Charon analisa estes três aspectos em relação à obra de Mead, por apontá-lo
como o indivíduo central na fundação da corrente de pensamento.
O pragmatismo tem um papel destacado na fundação teórica do Interacionismo
principalmente na afirmação de que o que é real para nós no meio em que vivemos sempre
depende de nossa própria intervenção, o que significa que o conhecimento do mundo não é
imposto aos indivíduos, como o Funcionalismo pregava. Em relação a essa influência do
pragmatismo em Mead, Donald Levine afirma que a influência do pragmatismo foi
negativa, visto que ocorreu uma “[...] biologização [d]a subjetividade”, chegando a afirmar
que o que Mead formulou foi um “Postulado de Evolução de Eus Sociais Mentais
Naturais” (1997: p. 233).
94
A perspectiva de Levine nos leva à segunda influência central para o
Interacionismo: a teoria da evolução de Darwin. Dois pontos são importantes nesta
influência intelectual: o naturalismo e a teoria da evolução. Para Mead, as qualidades
desenvolvidas pelos seres humanos tais quais a mente, os símbolos e o self, são heranças
naturais da parte animal do ser humano. Em relação à teoria da evolução, a percepção da
singularidade humana como sendo desenvolvida nesta evolução é que permite a
comunicação simbólica e a razão inerentes à existência humana e essenciais para a
percepção da interação como fator fundamental na vida em sociedade (CHARON, 1995: p.
27).
O Behaviorismo influenciou o pensamento de Mead e consequentemente o
Interacionismo de duas maneiras. O ser humano deveria ser compreendido em relação ao
seu comportamento, não em termos de alguma essência intrínseca a ele. Segundo o próprio
Mead “Behaviorism in this wider sense is simply an approach to the study of the
experience of the individual from the point of view of his conduct, particularly, but not
exclusively, the conduct as it is observable by others” (MEAD, 2011 [1934]: p. 02). Esta
afirmação pode ser analisada em relação à preocupação interacionista com a formação do
“me”, ou seja, do “eu social” que veremos adiante, na medida em que se inclui na análise a
percepção dos outros em relação à conduta do indivíduo.
Enquanto Blumer é conhecido por ter sido o primeiro a cunhar a expressão
Interacionismo Simbólico, Mead é conhecido por ter desenvolvido seu arcabouço teórico.
Contudo, antes desta confecção deste arcabouço, houveram outros mais diretamente
ligados às influências que viriam a determinar o quadro teórico interacionista. Dentre os
antecessores de Mead, que tiveram papel importante na construção de seu quadro
conceitual, podemos destacar William James como tendo um papel fundamental na criação
do conceito de self, de grande importância para todos os estudos interacionistas posteriores
a ele. Segundo o pensamento de James, o self poderia ser encarado como tudo o que o
individuo trás como característica pessoal e é construído na interação humana em que o
indivíduo se define (JUNQUEIRA, 2008: p. 20). James faz a primeira distinção entre o
“eu” (I) e o “mim” (me) caracterizado por ser uma espécie de “eu social”, sendo construído
em relação aos outros que cercam o indivíduo (LEVINE, 1997: p. 228). Mead,
posteriormente, retomará esta distinção e se aprofundará em suas características. O “eu” é
95
o elemento individual, é a espontaneidade que reage às conexões com os outros. O “mim”
é a presença do outro na consciência do indivíduo. Sendo assim, o “mim” poderia ser
interpretado como sendo o outro incorporado, já que para que o indivíduo se conheça, é
necessária a presença do outro. Portanto, não seria errado apontar que a tensão existente
entre o “eu” e o “mim”, que atua na criação do self, é uma experiência ao mesmo tempo
individual e coletiva.
Estas definições supracitadas podem ser melhor entendidas quando analisamos os
pressupostos básicos do Interacionismo definidos por Blumer. Para ele, três são estes
pressupostos que guiam as pesquisas na corrente de pensamento. Em primeiro lugar, os
seres humanos agem em relação às coisas com base no significado que elas tem para ele;
em segundo lugar, estes significados são construídos na interação entre os indivíduos; por
fim, tais significados são modificados no processo de interpretação situacional (MELTZER
et al., 1977: p. 01 apud JUNQUEIRA, 2008: p. 18).
Um problema recorrente na teoria social é a dicotomia entre indivíduo e
sociedade. No caso do Interacionismo, a emergência do indivíduo enquanto um ser ativo
veio a se contrapor à noção clara no pensamento funcionalista, especialmente de seu
mentor Émile Durkheim, de que o poder de ação do indivíduo dentro do âmbito social é
praticamente nulo. Durkheim afirma que a vida social não emerge das associações
individuais, ressaltando que pelo contrário, as associações individuais nem existiriam se
não fosse a vida em sociedade (DURKHEIM, 1999: p. 286).
Para o Interacionismo, ao contrário do que pregava o funcionalismo de Durkheim,
as regras não definem e guiam as interações sociais, desta forma definindo como falsa a
noção de estabilidade dos fatos sociais. Esses são definidos na ação individual em relação à
sociedade, como um processo contínuo de interferências. Portanto, sob esta perspectiva, a
sociedade pode ser vista como uma teia de interações em que o indivíduo tanto é criatura
como criador. A realidade só pode ser compreendida como uma produção social na
medida em que o processo de significação do mundo é uma construção da interação entre
os indivíduos que expressam sua visão e se apropriam de outras (SOTTANI, 2008).
Outro ponto que claramente diferencia o Interacionismo em relação a outras
teorias como o funcionalismo e o marxismo é a negação em criar uma teoria geral que
possa explicar a sociedade. Denzin (1992: p. 22) chega a afirmar que para o Interacionismo
96
o conceito de sociedade seria obsoleto, um termo abstrato, algo que também é forte em
teorias antropológicas modernas.
Alguns pontos são importantes para se notar como o Interacionismo tradicional
falhou e o que novas perspectivas trouxeram para “refrescar” sua produção intelectual.
Apesar de não haver forma de fazer uma hierarquização das teorias de modo objetivo, é
possível notar falhas conceituais ou lacunas quanto a certos aspectos nelas. Assim como
surgiram teóricos modernos que propuseram uma revisão da teoria de Durkheim ou novos
adeptos de um marxismo mais críticos em relação a uma teoria global, no Interacionismo a
autocrítica foi parte de sua evolução. Um ponto central nesta crítica à teoria interacionista
clássica se dá em relação a como é tratado o papel da comunicação.
A preocupação com o estudo da comunicação humana nos estudos interacionistas
sempre esteve presente nos autores mais clássicos, mas de forma tímida e incompleta. Os
problemas apontados pelas novas perspectivas da corrente teórica dão conta que os estudos
tradicionais do Interacionismo vem se furtando em aprofundar o estudo da comunicação
em mais do que um termo simplesmente não teorizado. Norman Denzin se propõe a
conceituar comunicação em uma perspectiva que a torna essencial para quem se dispõe a
analisar uma realidade através da abordagem interacionista. Denzin afirma que a
comunicação constrói definições de realidade, com uma lente com a qual o indivíduo vê o
mundo, então deve-se percebê-la como sendo uma espécie de “ferramenta da interação”.
Poderíamos afirmar que sem comunicação não há interação e assim, nos moldes da teoria
interacionista, nem haveria sociedade.
Outro ponto citado por Denzin como uma lacuna nos estudos clássicos do
Interacionismo é a posição radical em relação a análises estruturais. O Interacionismo
pecou em se basear somente em estudos microssociológicos e sem conexão direta com
uma realidade maior. Assim, a solução de problemas sociais passa a ser simplesmente
situacional, nunca uma perspectiva mais ampla de mudança social estrutural (DENZIN,
1992: p. 156). Para Oliveira Junior, o Interacionismo e o funcionalismo marcaram posições
opostas em relação a estes níveis de análise. A escolha de um dos lados não seria possível,
pois não permitiria uma visão completa da realidade social.
Os radicalismos não partem somente da posição dos funcionalistas ou dos
marxistas. Tanto Denzin (1992: p. 164) quanto Oliveira Junior (2007: p. 34) apontam para
97
alguns exageros teóricos na ênfase nos estudos ao nível individual. Blumer chega a dizer
que sua abordagem teórica é preferível por ser mais fiel à natureza humana (Ibid., 2007: p.
34), o que nos remete às abordagens mais radicais do marxismo utilizado politicamente
como cartilha definitiva da história da humanidade por parte de Stalin na União Soviética.
Devido a estas posições fortes em relação à ênfase teórica podemos nos perguntar:
como se daria a escolha de uma forma intermediária em que tanto a abordagem macro e
micro fossem observadas? O que defendemos é que a teoria de Erving Goffman possa ser a
resposta.
Erving Goffman representa novas abordagens no Interacionismo Simbólico,
trazendo à tona a discussão do papel das instituições na formação e manipulação do self.
Um dos principais pontos da teoria de Erving Goffman é sua abordagem do “eu”
socialmente construído, sendo que ela está baseada em alguns preceitos fundamentais. Em
relação ao que ficou conhecido como abordagem dramatúrgica do Interacionismo, Sottani
(2008: p. 206) aponta que, em primeiro lugar, existe uma característica performática que os
atores sociais utilizam na interação; em segundo lugar, existe uma necessidade de acesso às
regras dominantes por parte do indivíduo; um terceiro ponto seria o caráter performático da
própria vida social, em uma analogia ao teatro como um jogo de representações que
funcionam em conjunto; por fim, as experiências sociais são dependentes das equipes, das
quais são retiradas as caracterizações das ações da vida social.
Um grande avanço de Goffman em relação aos interacionistas mais tradicionais, é
a percepção que há um arcabouço moral que está subjacente nas interações. Para Denzin,
ao contrário do que afirmavam Blumer e Mead, a consciência não determina a existência,
tampouco a existência determina a consciência, já que ambas residem na comunicação e na
cultura (1992: p. 164). Sem a percepção do arcabouço moral de uma sociedade, desta
“cultura”, termo amplo mas que deve ser incluído na discussão e não excluído, qualquer
percepção do mundo ficaria incompleta ou falsa. Podemos notar na obra de Goffman que
ele se aproxima mais de uma perspectiva defendida por Denzin do que da defendida por
Blumer.
A dramaturgia social é um conceito fundamental em Goffman. Esta dramaturgia
está muito mais próxima de uma rotinização dos indivíduos na busca de uma estabilidade e
confortável previsibilidade dos eventos do que uma perspectiva de interações que
98
constroem e desconstroem a realidade a cada momento que se dão. Para Goffman, a
sociedade é produzida a partir de ações e práticas diárias e habituais (JUNQUEIRA, 2008:
p. 64). Segundo Oliveira Junior “[...] ao contrário de muito do que é produzido na literatura
interacionista, Goffman não apresenta uma realidade social que é precária e frágil. Antes, é
a segurança e o senso de realidade do indivíduo que devem ser abundantemente explorados
na análise sociológica” (2007: p. 38).
Segundo esta abordagem da dramaturgia, os indivíduos podem ser considerados
atores que representam personagens em um “teatro da vida real”. Cada um desempenha seu
papel perante os outros, que são, ao mesmo tempo, atores também e audiência. A
performance do indivíduo perante os outros é uma tentativa de controlar a impressão que
possam construir sobre dele. Dito isso, pode-se notar a razão da utilização da metáfora do
teatro, no qual o ator representa um papel em que ele tenta manipular a impressão externa
do personagem para a plateia. A reciprocidade é essencial para a compreensão dessa
abordagem, visto que o ator tenta manter sua identidade tanto na percepção que ele tem de
si mesmo naquele papel quanto na percepção que ele tem em relação ao que os outros
esperam que ele seja (JUNQUEIRA, 2008), sendo este último papel uma versão do “outro
generalizado” de Mead.
Goffman pensa o indivíduo enquanto representante de dois papéis. Enquanto ator,
ele fabrica as expressões que terão vida no personagem, que deve ser uma figura a ser
admirada (GOFFMAN, 2002: p. 230). O personagem é fruto da situação na qual o
indivíduo é obrigado a desempenhar um papel, enquanto o ator tem suas atribuições
emergidas da própria estrutura psicológica do indivíduo (GOFFMAN, 2002: p. 25).
A representação para o autor seria “[...] toda atividade de um indivíduo que se
passa em um período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo
particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência” (2002: p. 29). Esta
representação dependeria de dois elementos, sendo um a fachada e o outro o cenário. A
fachada seria todo aparato instrumental que o indivíduo utiliza na representação e o cenário
o ambiente físico onde ela ocorre. Como o ator representa papéis para públicos diferentes,
dependendo do que se espera dele e do que ele percebe ser o necessário para a situação.
Em lugares diferentes os personagens podem variar. Goffman ressalta a existência de duas
regiões nas quais ocorrem as representações, sendo uma conceituada por ele como “de
99
fachada” (GOFFMAN, 2002: p. 102), na qual a há a tentativa de controlar a situação
através de uma expressão mais padronizada frente a uma audiência de diferentes, e uma
“região de fundo” (GOFFMAN, 2002: p. 106) na qual a tensão é menor e o trabalho no
aperfeiçoamento da representação pode ser racionalizado em relação às situações
experimentadas em contato com a audiência.
Outro conceito que é de imensa importância para analisarmos a aplicação da
teoria de Goffman a estudos sobre a polícia é o de equipe. Para o autor, equipe de
representação ou, como o próprio abrevia, equipe é “[...] qualquer grupo de pessoas que
cooperem para na encenação de uma rotina particular” (2002: p. 78). Esta rotinização está
na base da manutenção de certa representação coletiva que é testada na região de fachada e
repensada nos bastidores da região de fundo.
Como podemos pensar estas categorias quando estudamos objetos como a cultura
policial ou a instituição em si? Vamos tentar elaborar algumas hipóteses e perceber como
outros trabalharam estas categorias em relação a estudos sobre a Polícia.
Nas instituições, as fronteiras e a distribuição de papéis são mais bem definidas do
que na sociedade fora delas (GOFFMAN, 1974: p. 11). Neste ponto, Goffman faz a divisão
entre os papéis realizados perante a audiência (o que no nosso caso podemos interpretar
como a atuação policial nas ruas, perante a população) e a atuação nos bastidores da
audiência (o que pode ser interpretado como o comportamento dos policias em seu meio,
seja no quartel em caso da Polícia Militar ou uma delegacia no caso da Polícia Civil). O
comportamento do indivíduo perante sua audiência, que é chamado por Goffman de
“região de fachada”, representa a intenção do indivíduo em externar que as suas ações
dentro da instituição obedecem certos padrões de conduta. Neste ponto, alguns aspectos de
sua encenação podem ser suprimidos ou aflorados, dependendo da situação real. Neste
cenário, o indivíduo esta exposto à avaliação do público em relação ao papel que esperam
que ele desempenhe. Por exemplo, se esperam certas características de um policial tanto no
trato com o público em geral, em que conceitos do senso comum como “trabalhador” e
“homem de família” estão presentes, quanto com a categoria chamada “marginal”.
Na região de fundo, não existe a preocupação do julgamento público em relação à
sua atuação no papel a que é determinado. No caso de policias, podem aflorar elementos
que na região de fachada são suprimidos como o conceito que eles têm de “marginal”
100
sendo declarado abertamente, assim como o surgimento de gírias relativas aos que estão
fora da polícia. Estando entre iguais, que representam o mesmo papel social, eles podem
aprimorar sua representação através da interação com outros policiais.
Outro ponto importante a ser notado é em relação à expressão corporal nestas
duas regiões de encenação, que detém um papel fundamental na interação face-a-face.
Nessa situação o indivíduo testa seu poder de atuação em relação a seu papel, e ao mesmo
tempo se aprimora em relação à reação do outro (JUNQUEIRA, 2008: p. 68). A
complexidade desta relação pessoal exige um grande controle, especialmente para
policiais, que podem estar imersos em situações de grande carga emocional na qual eles
estão sujeitos a todos os tipos de ações, cada uma correspondendo a expectativas definidas
em relação às suas reações. Em algumas pesquisas os conceitos de Goffman ficam mais
claros ao serem aplicados em situações concretas.
No trabalho de Agnado José da Silva com policiais militares de Goiás, ele
percebeu a referência que estes faziam aos civis comuns como “paisanos folgados”
(SILVA, 2002: p. 5) em uma clara criação de um estereótipo que provavelmente só poderia
ser externado em uma “região de fundo”, claro, dependendo da situação. Esta
nomenclatura pejorativa é reafirmada toda vez que o estereótipo implícito na figura do
paisano folgado é confirmado com a prisão de um criminoso com suas características. Na
análise de Silva a formação dos policias militares de Goiás é analisada sob a ótica do
conceito de mortificação do self presente na obra Manicômios, prisões e conventos de
Goffman. Para Silva (2002: p. 7), o cerne da questão está na substituição dos valores
antigos da policial por novos valores compartilhados dentro da instituição. Como a
pesquisa foi feita com PMs, os próprios muros do quartel já são uma fronteira mais do que
visível entre os de dentro e o resto da sociedade, os paisanos. Isto para não falar dos muros
invisíveis. Esta característica de Instituição Total dos quartéis é marcante para a proposta
de Silva no estudo da Polícia Militar.
Almir de Oliveira Junior, ao analisar a cultura da Polícia Militar de Minas Gerais,
percebeu a aplicação de vários conceitos de Goffman em sua pesquisa. Em uma percepção
da existência da “região de fachada”. A fachada para o autor, o equipamento expressivo
usado na interação no caso da Polícia Militar, pode ser representada pela farda, a
linguagem característica, presenças constantes da identidade profissional do policial.
101
Oliveira Junior utiliza amplamente o conceito de frame, presente na obra de Goffman
Frame Analysis: an essay on the organization of experience (1986). O frame poderia ser
considerado como um quadro ou uma moldura nas quais estão dispostas as experiências de
um indivíduo ou grupo. No caso da Polícia, alguns fatores como a mídia, atuariam na
confecção deste molde em que a dramatização da atuação policial poderá ocorrer em toda
sua expressividade (OLIVEIRA JUNIOR, 2007: p. 64 – p. 105).
O que ficou claro no conceito já citado neste texto, é que o grupo ou equipe
coopera para uma encenação em particular. Esta encenação não só reforça internamente o
grupo mas também faz com que ele seja percebido externamente e, possivelmente, a
resposta que retorna do exterior para o grupo faz com que ele “apare as arestas” de sua
atuação enquanto um coletivo. O que pensamos para uma pesquisa é na relação entre duas
equipes que compartilhem uma percepção externa a elas similar, talvez devido à falta de
informação em relação às suas funções, mas que são obrigadas a atuarem em cooperação.
Estamos falando das polícias militar e civil.
A relação entre equipes realça a identidade da corporação a que elas pertencem. A
sustentação de uma atuação bem rígida em relação ao papel que se espera de cada equipe
pode ser visualizada. O tratamento entre elas deve ao mesmo tempo respeitar certa
formalidade e criar canais de comunicação mais ou menos pacíficos para que
posteriormente esta interação possa ser mantida. Este caso pode ser imaginado neste caso
da interação entre as polícias civil e militar, em que a cooperação é necessária e definida
legalmente, ao mesmo tempo em que as visões distorcidas de uma para com a outra são
presentes em situações longe da região de fachada. Esta interação entre equipes pode
ajudá-las a se aperfeiçoarem em relação ao papel definido a elas na interação. Ao mesmo
tempo, longe uma da outra, a hostilidade e a estigmatização podem ocorrer. Beatriz Graeff
aponta para este tipo de hostilidade ocorrendo na região de fundo. Ao entrevistar policiais
militares, ela notou que existiam muitas referências ao modo como os policiais civis se
vestiam e como eles tratavam as pessoas que buscavam seu auxílio. Na perspectiva da
autora, o principal ponto de discordância se dava nas características mais notáveis da
disciplina militar, ou no militarismo como ela afirma, tais como a apresentação impecável
e a padronização das falas (GRAEFF, 2006: p. 159). A identidade profissional de cada
grupo é modificada ou reafirmada nos encontros. É importante notar, no entanto, que a
102
intenção dos grupos é a manutenção de certa rotina com o cálculo de possibilidades bem
restrito. É uma possibilidade de pesquisa ao mesmo tempo importante para a percepção de
como a “ponta” do judiciário trabalha em conjunto assim como válida pela possibilidade
de visualização do modo como eles se percebem nesta cooperação muitas vezes forçada
pelas circunstâncias de seu trabalho.
O que propusemos neste artigo foi demonstrar os avanços na criação da corrente
denominada Interacionismo Simbólico em relação às correntes da teoria social que
privilegiavam teorias gerais da sociedade tais como o funcionalismo e o marxismo. Da
mesma forma, demonstramos como as novas interpretações do Interacionismo vieram para
demostrar suas limitações e propor mudanças que atendessem às expectativas dos teóricos
da época. Dentre estas mudanças, a perspectiva de integração entre uma ênfase analítica na
sociedade, estrutural, com uma ênfase de análise individual, pôde ser colocada em prática
nos conceitos de Erving Goffman.
O que mostramos por fim, é que os conceitos são ferramentas a serem utilizadas
proporcionando uma gama imensa de possibilidades quanto ao estudo da Polícia, com
resultados que podem responder às expectativas de pesquisas que não privilegiem uma
ênfase no aspecto estrutural nem no individual isoladamente. A perspectiva de Goffman
permite que a criação de identidades seja contextualizada com o âmbito moral maior na
sociedade, assim como a identidade profissional nas instituições respondem a várias
interferências na esfera micro e macro. No nosso caso específico, a dramaturgia nos
serviria para realçar o aspecto teatral da atividade policial, muito forte na formação de uma
identidade de equipe.
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integration. 5th ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1995.
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103
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GRAEFF, Beatriz Porfírio. O policial militar em tempos de mudança: ethos, conflitos e
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(Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de
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http://www.4shared.com/get/SEjKduF-/Mead_George_Herbert_-_Mind_Sel.html>. Acesso
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entre policiais militares em Belo Horizonte. 2007. 212 f. Tese (Doutorado em Ciências
Humanas: Sociologia e Política) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
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SOTTANNI, Silvânia M. R. O Interacionismo: gênese, afinidades eletivas e
desdobramentos recentes. 2008. 314 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
104
Análise das Práticas de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas na região do
Grande ABC
Juliana Fabbron Marin Marin*
Marcos Vinicius Pó**
Resumo: Os objetivos principais desse projeto foram encontrar respostas sobre a
existência da avaliação de políticas públicas nos municípios de São Bernardo Campo e
Diadema, bem como entender os processos que permitem a sua concretização e sua
eficácia. Tendo como foco a análise da avaliação das políticas públicas nesses municípios,
foi realizado, inicialmente, o levantamento bibliográfico com o intuito de encontrar
informações já existentes, discussões e avaliações já realizadas. Após analisar os dados
encontrados no site do IBGE, Ministério da Saúde e DATASUS, promovemos entrevistas
com funcionários das Secretarias de Saúde de ambos os municípios com o intuito de
encontrar explicações sobre o funcionamento desse sistema de avaliação e monitoramento,
bem como a burocracia e as dificuldades encontradas em sua realização.
Palavras-chave: Políticas públicas; avaliação; monitoramento; indicadores; Grande ABC.
Abstract: The prime objectives of this Project were to find answers about the existence of
the evaluation of Public Policies in the towns of São Bernardo do Campo and Diadema, as
well as understanding
the processes which allowed its implementation and efficacy.
Focusing on the analysis of Public Policies in these towns, the bibliographical research was
initially conducted with the intention of finding already existing information, discussions
and evaluations already carried out. After analyzing the data found on IBGE’s website,
Ministry of Health and DATASUS, we interviewed the Department of Health of both
towns aiming at finding explanations about the functioning of this system of evaluation
and monitoring, as well as the bureaucracy and difficulties found in its implementation.
Keywords: Public Policies; evaluation; monitoring; indicator; Grande ABC.
*
Graduanda em Bacharelado em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Professor Orientador - Universidade Federal do ABC (UFABC).
**
105
Introdução
A proposta do projeto tem como foco a análise das práticas de avaliação e
monitoramento de Políticas Públicas no setor da saúde na região do Grande ABC, com
ênfase nos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema.
Primeiramente, para entender se há avaliação das políticas relacionadas à área de
saúde nessas regiões, foi necessário buscar informações já existentes, discussões e
avaliações já realizadas. Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico de artigos,
de informações contidas nos sites das prefeituras, do DATASUS, do IBGE e do Ministério
da Saúde.
A partir da pesquisa bibliográfica foram encontradas algumas informações sobre os
serviços de saúde e sobre morbidades hospitalares no site do IBGE, bem como
informações sobre Cadernos do Pacto pela Saúde no site do DATASUS.
A análise dos dados obtidos leva o pesquisador a questionar se de fato existe a
avaliação e o monitoramento nessas regiões, já que as informações encontradas são
demasiadamente vagas. Entretanto, esse cenário, inicialmente vago, sofre uma mudança
após a realização das entrevistas. Por meio delas, o Diretor de Gestão da Secretaria
Municipal de Saúde de São Bernardo do Campo e a Representante da Secretaria Municipal
da Saúde de Diadema explicam sobre o funcionamento desse sistema de avaliação e
monitoramento, bem como a burocracia e as dificuldades encontradas em sua realização.
Destarte, tendo como base todos os artigos pesquisados sobre a parte teórica da
avaliação, focamos na análise das práticas de avaliação e monitoramento na área da saúde
nos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema, visando encontrar respostas sobre a
existência da avaliação de políticas públicas nesses municípios, bem como os processos
que permitem a sua concretização e a sua eficácia.
Avaliação de políticas públicas: breve análise teórica.
Ala-Harja e Helgason (2000) definem avaliação como “como uma análise
sistemática de aspectos importantes de um programa e seu valor, visando fornecer
resultados confiáveis e utilizáveis”. Dessa forma, a avaliação das políticas públicas permite
106
que os gestores obtenham informações sobre os resultados das ações adotadas pelo
governo. E, com o acesso aos resultados, os governantes podem promover um
aperfeiçoamento das políticas públicas, a partir da análise da sua eficiência, eficácia e
efetividade.
A avaliação pode ocorrer em três momentos: antes, durante ou depois da
implementação do programa. Segundo Lobo (1988), citado por Trevisan (2008), a
avaliação antes (ex ante) consiste em “análises de custo-benefício, de custo-efetividade,
das taxas de retorno econômico dos investimentos previstos”. A avaliação intermediária,
segundo Ala-Harja e Helgason, ocorre durante a implementação de um programa “como
meio de se adquirir mais conhecimento quanto a um processo de aprendizagem para o qual
se deseja contribuir”. O último momento da avaliação ocorre “quando o programa já está
implementado há algum tempo (avaliação ex post) para o estudo de sua eficácia e o
julgamento de seu valor geral” (Ala-Harja Helgason, 2000).
Avaliar as políticas públicas é de extrema importância para que haja o
aperfeiçoamento das decisões tomadas pelos gestores públicos, bem como a eficiência na
alocação de recursos e democratização das informações para o público, para que este
acompanhe se as decisões dos governantes estão, de fato, sendo eficazes.
Análise das práticas de avaliação e monitoramento de políticas públicas na região do
grande ABC
Visando encontrar informações sobre a existência de avaliação das políticas
relacionadas à área de saúde na região do ABC, foi realizado um levantamento
bibliográfico de artigos, de informações contidas nos sites das prefeituras, do DATASUS,
do IBGE e do Ministério da Saúde.
Nesse levantamento, foram encontrados diversos dados e indicadores que
possibilitariam a existência da avaliação: indicadores dos serviços de saúde, de morbidades
hospitalares e do Pacto pela Saúde. Dados estes existentes nos dois municípios pesquisados
– São Bernardo do Campo e Diadema.
No que tange às informações encontradas sobre os serviços de saúde, a análise dos
indicadores quantitativos não indica a existência da avaliação de políticas públicas que
107
tenha como objetivo a melhoria no sistema de saúde oferecido nos municípios. O mesmo
fato ocorre quando analisadas as informações referentes às morbidades hospitalares, pois
não são encontradas evidências de que as informações sejam utilizadas como base para um
planejamento ou para avaliação das políticas em processo.
Quando analisados os Cadernos do Pacto pela Saúde dos municípios de São
Bernardo do Campo e Diadema, vê-se que são estabelecidos objetivos referentes às
responsabilidades gerais da gestão do SUS, e dentre elas estão responsabilidade no
planejamento e programação e responsabilidades na regulação, controle, avaliação e
auditoria, cujo propósito é promover um índice de alimentação regular da base de dados do
cadastro nacional de estabelecimentos de saúde (CNES). Entretanto, não são encontrados
dados que discutam a avaliação em si, como ela ocorreu, quais foram seus resultados, ou
quais serão os próximos passos adotados pelos gestores.
Entrevistas
São Bernardo do Campo
Na entrevista semi-estruturada realizada com o Diretor de Gestão da Secretaria
Municipal de Saúde de São Bernardo do Campo, explicitamos o nosso objetivo, o de obter
informações sobre o sistema de avaliação e monitoramento existente nessa região. Pedimos
que ele fizesse uma explicação sobre o funcionamento do sistema.
Segundo o Diretor de Gestão, a Secretaria de saúde tem como uma de suas metas
reorganizar e implementar essa área de informação; uma reorganização do processo de
gestão do sistema Único de Saúde em nível local.
Para isso, foi criado um departamento de apoio a gestão do SUS, no qual existem
quatro divisões: planejamento, regulação, assistência farmacêutica e divisão de educação
permanente e gestão participativa.
.A Secretaria desenvolveu três linhas de cuidado prioritárias, com base em questões
que atingem mais a população: hipertensão, diabetes e questão materna e infantil.
No que tange ao planejamento da saúde, há diversos instrumentos que devem ser
respeitados e seguidos pela Secretaria de Saúde: Plano Municipal de Saúde, programa
108
anual, relatório anual, prestação de contas para o Conselho Municipal de Saúde e audiência
pública na Câmara dos Vereadores.
Quando se inicia uma gestão, o novo gestor tem a responsabilidade de elaborar o
Plano Municipal de Saúde, que é válido por quatro anos. Esse plano foi elaborado baseado
no PPA Participativo (Plano Plurianual Participativo), na realização da 6ª Conferência
Municipal de Saúde e através da aprovação do Conselho Municipal de Saúde.
Para que haja um controle das ações adotadas pela Secretaria, deve haver uma
programação anual, na qual anualmente são definidas as prioridades de investimentos,
como, por exemplo, reforma de algumas unidades; obrigação de fazerem relatório anual de
gestão, constando o que está previsto em termos de orçamento, o que foi executado
efetivamente e, com o recurso financeiro, quais foram as ações desenvolvidas e os
indicadores atingidos; e trimestralmente deve haver prestação de contas para o Conselho
Municipal de Saúde e audiência pública na Câmara dos Vereadores.
Para a realização da avaliação e do monitoramento das políticas, as Secretarias se
baseiam em indicadores que são estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Segundo o
Diretor de Gestão da Secretaria de Saúde de São Bernardo do Campo, são muitos os
indicadores estabelecidos, não havendo, portanto, a necessidade de criação de novos
indicadores. E, dentre esses, são selecionados aqueles aos quais devem ser traçadas
prioridades, estabelecendo-se não apenas uma análise quantitativa, mas também
qualitativa.
Visando a discussão das decisões que devem ser tomadas pela Secretaria e dos
resultados obtidos, ocorre, uma vez ao mês, a gestão participativa, com participação efetiva
dos gerentes da unidade de saúde reunidos em colegiado. Além disso, em todas as
segundas-feiras os diretores de departamento se reúnem junto com o gabinete para que
possam, efetivamente, fazer o planejamento, ter uma pauta do que irão fazer – em curto,
médio ou longo prazo - e dos fatos que têm ocorrido.
Todas as informações obtidas devem ser incorporadas ao sistema de informações. O
sistema de informação de atenção básica era feito de forma centralizada e, atualmente, tem
ocorrido uma descentralização da competência para as unidades básicas de saúde. Para que
essas unidades possam alimentar o sistema de informações, elas têm sofrido um processo
109
de informatização da rede, pois muitas unidades não tinham computadores suficientes ou
rede constituída.
Está sendo implantada a Infovia, que informatizará o sistema utilizado pela
Secretaria, facilitando o armazenamento e a troca de dados. E para que essa informatização
plenamente ocorra, é necessário investimento e capacitação dos funcionários.
Diadema
Na entrevista semi-estruturada realizada em Diadema, seguimos a mesma linha
utilizada na entrevista de São Bernardo do Campo, deixando explícito o nosso objetivo.
No que tange aos aspectos burocráticos, a entrevistada, Representante da Secretaria
Municipal da Saúde de Diadema, explicou sobre o funcionamento da prestação de contas
por parte da Secretaria.
Segundo ela, no Sistema Único de Saúde estão definidos os instrumentos utilizados
de planejamento e avaliação.
O SUS é um sistema cujas prioridades são pactuadas pelas três esferas de governo.
Os municípios e os Estados, por meio de representações fazem discussões sobre quais
devem ser as prioridades, definindo metas que acabarão por ser pactuadas. Esse processo é
acompanhado e referendado nos Conselhos de Saúde. O Plano Municipal de Saúde, por
exemplo, passa pelo Conselho Municipal de Saúde, bem como o relatório de gestão, antes
de ser enviado para a Secretaria de Saúde do estado.
O SUS preconiza que o município tenha um Plano Municipal de Saúde, plano este
que deve vigorar nos quatro anos de governo. Além do plano, os municípios devem fazer
anualmente a sua programação, alinhado-a com prioridades pactuadas nacionalmente, e
acompanhando a sua execução. No fim do ano, devem ser entregues relatórios que tratem
da execução da programação, constando a sua intensidade, ou seja, se a execução foi
integral ou parcialmente realizada.
Além da construção da programação e dos relatórios, é uma exigência legal que as
Secretarias Municipais trimestralmente apresentem seu trabalho na Câmara dos
Vereadores, em audiência pública. Nesta audiência são apresentados resultados do que foi
produzido e do quanto foi gasto.
110
Existe uma recomendação para que todas as unidades básicas de saúde possuam
Conselhos, visando um controle social desde a unidade básica até o município e o estado.
Entretanto, não são todas as unidades que possuem.
Uma das prioridades nacionais é a capacitação de conselheiros. Além do diálogo
promovido entre gestor e conselheiro, para que este possa se adaptar, há, também, o
processo de capacitação. Essa capacitação também está em processo com técnicos,
gestores e gerentes das Secretarias.
No que concerne a avaliação, estes conselheiros apresentam um questionamento
quotidiano, pois eles freqüentam os serviços de saúde, então eles fazem as suas próprias
avaliações e questionam as bases. Questionam, por exemplo, o modo como se dá o
atendimento em determinado serviço ou a falta de algum profissional. O Conselho de
Diadema - segundo a funcionária da Secretaria – é bastante ativo, pois eles pressionam e
cobram os técnicos e a Secretaria sobre os resultados obtidos.
Para que a Secretaria pudesse adequar as decisões tomadas à realidade de Diadema,
além dos indicadores nacionais, fora criados os seus próprios indicadores. No começo de
2009 foi elaborado o Plano Municipal da Saúde e as prioridades estabelecidas foram
levadas à Conferência Municipal de Saúde, que ocorre de quatro em quatro anos.
As propostas foram colocadas para a Conferência ratificar. O plano de Diadema foi
feito em concordância com o que hoje é colocado nacionalmente em termo de diretrizes,
somando-se, também, prioridades locais.
No final de 2009, foi feito o primeiro relatório de gestão desse mandato da
secretaria. Ao analisarem as prioridades, objetivos das prioridades e metas, apesar do
número de indicadores não ser pequeno, eles não eram satisfatórios.
Tornou-se uma das prioridades a construção de Colegiados, composto pela
Secretaria, assistente da secretaria e coordenadores de área. Dentre os membros desse
Colegiado, alguns foram escolhidos para fazer uma análise e revisão dos indicadores que
eram trabalhados e pensar não apenas em painel de indicadores, mas também pensar em
como fazer o acompanhamento desse painel.
Após meses de discussão foi elaborado um painel. Fazem parte deste os indicadores
pactuados, e procurou-se trazer, também, as áreas consideradas mais frágeis no quadro de
indicadores já existentes.
111
O grupo fez uma proposta de indicadores, submetendo-a a decisão do Colegiado.
Foram realizadas várias discussões para avaliar se estes indicadores atendiam as
necessidades.
Quanto maior é a quantidade de indicadores, maior o risco de haver dificuldade em
monitorá-los. O painel criado possui 66 indicadores, e para cada indicador definiu-se: para
que ele serve, como deve ser calculado, qual é a área responsável pela apresentação do
indicador e com que periodicidade deve ser apresentado. A idéia é que haja
monitoramento, portanto, definiu-se qual a periodicidade de cada indicador. Este painel já
foi utilizado para avaliação do ano de 2010.
A avaliação nem sempre é positiva, o que faz com que nem sempre os sujeitos a
recebam bem. Mas o necessário é que, ao mesmo tempo em que eles sentem-se
incomodados, sintam-se motivados a tentar melhorar aquele resultado.
Hoje o SUS possui muita informação que já está no sistema, suficientes para fazer
bons monitoramentos e boas análises. Mas as informações sobre avaliação e
monitoramento ainda não são disponibilizadas para o público via internet, pois a Secretaria
ainda não possui ferramentas para isso.
Embora o Conselho possua computadores com acesso à internet, há necessidade de
maiores investimentos neste setor, para que o controle social se torne mais fácil.
A Secretaria colocou como um de seus objetivos lançar, na Conferência Nacional
de Saúde, uma proposta que visa um maior investimento na área de informatização para
capacitação.
A Secretaria de Saúde de Diadema iniciou um curso de especialização para
gestores, pela fundação ABC, pois não é só a discussão cotidiana que forma esses gestores.
E o gestor local precisa se motivar, precisa de contato com metodologias que têm
aproximação com a realidade local, para que ele possa utilizar seu conhecimento para
mudar a própria realidade.
Considerações finais
112
Na primeira parte da pesquisa, destinada ao levantamento bibliográfico, foram
poucas as informações encontradas referentes à avaliação e monitoramento das políticas
públicas das regiões estudadas.
Após o levantamento bibliográfico e discussão das informações encontradas, o
próximo passo foi a realização das entrevistas com funcionários da Secretaria de Saúde de
São Bernardo do Campo e Diadema.
As entrevistas realizadas foram essenciais para o desenvolvimento deste projeto.
Uma primeira análise, utilizando como base apenas o levantamento bibliográfico,
gera dúvidas ao pesquisador quanto ao tema em questão, pois existem apenas referências
ao fato da importância da avaliação de políticas públicas. Entretanto, não há nenhum
exemplo de avaliação, nenhum dado que leve o pesquisador a encontrar a aplicação da
mesma. São encontradas apenas referências teóricas, sem nenhuma avaliação prática na
área de saúde dos municípios pesquisados.
Após a realização das entrevistas foi possível perceber que existe a avaliação das
políticas adotadas pelos municípios.
O planejamento das ações nas Secretarias de Saúde ocorre logo no início do
mandato do novo gestor e esse plano vigora por quatro anos. Além do Plano Municipal de
saúde há programação anual e relatório anual, bem como prestação de contas na Câmara
dos Vereadores, que ocorre trimestralmente. Toda essa burocracia leva à concretização da
avaliação por parte dos gestores públicos, pois em seus relatórios eles devem indicar se as
políticas estão sendo efetivas e se correspondem ao que foi proposto na programação.
As reuniões que ocorrem semanalmente ou aquelas que ocorrem mensalmente
levam ao monitoramento das ações, dos indicadores, discutindo-se a eficiência, eficácia e
efetividade das políticas ao analisar os resultados obtidos.
Embora haja a avaliação e monitoramento, não há uma ampla divulgação dos
resultados por parte dos dois municípios, e esse fato foi evidenciado na pesquisa realizada
nos sites das prefeituras. A pesquisa mostrou que a disponibilidade de informações sobre o
tema é quase nula. Os sites de São Bernardo do Campo e de Diadema se restringem a
mostrar que as Secretarias de Saúde desses municípios têm como uma de suas
competências a avaliação. Contudo, não há um aprofundamento por parte das prefeituras
sobre o assunto em questão. São encontrados indicadores que poderiam ser utilizados para
113
o processo avaliativo ou dados sobre a avaliação de políticas públicas com uma abordagem
um pouco mais ampla nos sites federais, como, por exemplo, IBGE, Ministério da Saúde,
DATASUS.
Os gestores das Secretarias de Saúde entrevistados disseram que a democratização
das informações via internet não ocorre devido a necessidade de maiores investimentos em
informatização das Secretarias e da capacitação dos funcionários.
Promovendo uma análise geral da pesquisa realizada, fica evidente que o tema em
questão – avaliação e monitoramento – ainda não é amplamente pesquisado na prática e, as
poucas informações existentes não são disponibilizadas para o público devido a algumas
deficiências das Secretarias no que tange ao setor da informatização - que permitiria a
disseminação dos resultados obtidos via internet para os pesquisadores ou qualquer
cidadão interessado.
Existem planos, de ambos os municípios, no que concerne à ampliação e difusão
das práticas de avaliação e monitoramento. Percebemos, no decorrer das entrevistas, que
existe a preocupação por parte dos gestores públicos quanto a análise da eficácia, eficiência
e efetividade das políticas públicas adotadas. O que esses gestores necessitam é um pouco
mais de tempo e de investimentos para aprimorar as práticas de avaliação e monitoramento
nos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema. Além disso, as discussões na área
acadêmica sobre a avaliação prática devem ganhar mais força, permitindo aos
pesquisadores um estudo mais aprofundado sobre o tema, com maior acesso às
informações concernente à práxis.
Referências bibliográficas
ALA-HARJA, Marjukka; HELGASON, Sigurdur. Em direção às melhores práticas de
avaliação. Rev. Servidor Público, Brasília, v.1, n.1, nov. 2000.
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115
Movimentos Sociais na Contemporaneidade
O Judaísmo Internacional: a “autenticidade dos Protocollos dos Sábios de Sião”.
Luiz Mário Ferreira Costa*
Resumo: O objetivo desta comunicação é contribuir com a discussão historiográfica que
analisa a “questão judaica” sob o prisma do antissemitismo moderno ou político. No Brasil
a singularidade do discurso anti-semita deve-se, sobretudo, ao intelectual integralista
Gustavo Barroso, que insistia na tese da grande “conspiração judaica”. Em sua opinião
uma das estratégias utilizadas pelos judeus era a apropriação dos meios de comunicação,
sendo assim, era preciso denunciar os efeitos maléficos da propaganda judaica
“recomendada” pelos agentes de Moscou. Para legitimar aquilo que dizia, Gustavo Barroso
apropriou-se de diversas informações contidas no best-seller antissemita, Os Protocolos
dos sábios de Sião.
Palavras-chave: antissemitismo, imprensa, preconceito racial.
Abstract: The purpose of this communication is to contribute to the discussion of
historiography that examines the "Jewish question" through the prism of modern antiSemitism or
political. In
Brazil,
the uniqueness
of anti-Semitic
discourse is
due primarily to the intellectual integralist Gustavo Barroso, urging that the major thesis
of "Jewish conspiracy". In his opinion one of the strategies used by the Jews was the
appropriation of the media, so it was necessary to denounce the evil effects of the Jewish
propaganda "recommended" by the agents of Moscow. To legitimize what he says,
Gustavo Barroso has
taken
on
the information
contained
in
the various anti-
Semitic bestseller, The Protocols of the Zion
Keywords: anti-Semitism, the media, racial prejudice.
*
Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora.
116
Apresentação
No capítulo, “Aspectos do antissemitismo no discurso integralista de Gustavo
Barroso”, que compõe a coletânea Ditadura, Repressão e Conservadorismo, já abordamos
algumas características marcantes do antissemitismo no Brasil, sobretudo, no decorrer da
década de 1930 (SOUSA; SILVA, 2011). Em virtude disso, o presente artigo é, por um
lado, a continuação duma pesquisa em andamento e, por outro, um incremento naquilo que
diz respeito às fontes utilizadas. Ao invés de focalizar a análise somente nos livros de
Gustavo Barroso, desta vez, procurei resgatar o discurso antissemita disseminado também
na imprensa integralista.
A temática do antissemitismo pode ser dividida de acordo com suas características,
na opinião de Marco Chor Maio (2003), o antissemitismo “moderno”, no qual Barroso é
exemplar, sofreu transformações radicais, pois seu conteúdo, essencialmente político,
destoava das notas religiosas e econômicas comuns ao antissemitismo “tradicional”.
Seguindo de perto o modelo da “ruptura”, criado pela filosofa alemã Hannah
Arendt, Maio propõe que: 1) O padrão tradicional seria marcado pela existência de
conteúdos religiosos e econômicos, indicando as formas de inserção dos judeus na
sociedade, até o início da modernidade. A inclusão do povo judaico se deu inicialmente no
terreno religioso, pois os judeus são as provas vivas do cristianismo. E, também, através da
economia, pois são vistos como o embrião monetário do modelo econômico pré-capitalista
(MAIO, 2003: p.231). Em suma: os judeus viviam “marginalizados, mantendo-se num
equilíbrio precário com certa autonomia”, deste modo, o “povo de Israel”, vistos como
“mal necessário”, dentro de uma sociedade não-judaica, oscilava entre a exclusão e a
tolerância (MAIO, 2003: p.232); 2) O padrão moderno é, essencialmente, político, mas de
certa forma ainda guardava antigos preconceitos antijudaicos. A persistência em se manter
como grupo identificável revelava nos judeus, por um lado o “caráter indissolúvel” da sua
identidade cultural e, por outro, a vontade intrínseca deste povo em buscar constantemente
o “jogo da manipulação”.
Nesta perspectiva, Os Protocolos dos Sábios de Sião foi a obra que melhor ilustrou
a versão moderna do antissemitismo,
117
A liberdade é uma idéia e não uma realidade. É preciso saber aplicar esta idéia,
quando for necessário atrair as massas populares ao seu partido com a isca duma
idéia, se esse partido formou o desígnio de esmagar o partido que se acha no
poder (nota: Ex. Revolução Francesa). Esse problema torna-se fácil, se o
adversário recebeu esse poder da idéia de liberdade, do se chama liberalismo, e
sacrifica um pouco de sua força a essa idéia. E eis onde aparecerá o triunfo de
nossa teoria: as rédeas frouxas do poder serão logo tomadas, em virtude da lei da
natureza, por outras mãos porque a força cega do povo não pode ficar um só dia
sem guia, e o novo poder não faz mais do que tomar o lugar do antigo
enfraquecido pelo liberalismo.23
A longa viagem de Os Protocolos dos sábios do Sião
A luta ardente pela supremacia, os choques da vida econômica criarão e já
criaram sociedades desencantadas, frias e sem coração. Essas sociedades terão
uma profunda repugnância pela política superior e pela religião. Seu único
calculo, isto é o ouro, pelo qual terão o verdadeiro culto .24
A profecia do livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, foi revista e criticada
inúmeras vezes por pesquisadores de todos os lugares do mundo que, de modo geral,
acreditam na falsidade histórica do conteúdo do livro. Na opinião do historiador Carlo
Ginzburg (2007), o clássico foi inspirado num texto de 1864, intitulado de o Dialogue aux
Enfers entre Maquiavel e Motesquieu, de autoria do jornalista francês Maurice Joly. Em
1870, Joly informa a seus leitores a fonte de inspiração daquele diálogo histórico:
Uma noite, quando passeava à beira do rio, perto do Pont Royal (ainda me
lembro que fazia um tempo pavoroso), de repente me veio ao espírito o nome de
Montesquieu, como alguém que poderia encerrar todo um lado das idéias que eu
queria exprimir. Mas quem seria o interlocutor de Montesquieu: ora bolas,
Maquiavel! Maquiavel representa a política da força, ao lado de Montesquieu,
que representará a política do direito; e Maquiavel será Napoleão III, que
retratará por si mesmo sua abominável política. (GINZBURG, 2007: p190)
Para Ginzburg, Os Protocolos..., publicado pela primeira vez na Rússia em 1903,
foi uma obra inspirada na fortuna póstuma dos Diálogos nos Infernos... e o seu autor seria
um membro da polícia secreta do Czar Nicolau II. O texto apresentado em forma de ata foi,
supostamente, redigido num congresso, realizado em Basiléia no ano de 1807
(GINZBURG, 2007: p.190). Sábios maçons, judeus, bolcheviques, rosacruzes, enfim,
23
24
BARROSO, Gustavo. Os Protocolos dos Sábios de Sião. São Paulo: Minerva, 1936. p.1
Idem (id.)
118
todas as elites das sociedades secretas, estavam reunidas em torno de um único ideal – a
destruição do cristianismo.
É interessante observar, que desde a publicação do Manifesto Comunista, em 1848,
o “espectro revolucionário” ameaçava a monarquia e o papado na Europa. Em 1917, com a
Revolução Bolchevique, ocorreu definitivamente a materialização deste mal, o que para as
forças reacionárias já havia sido revelado pelos Protocolos..., alguns anos antes. Desde
então, em curto espaço de tempo, o livro transformou-se num verdadeiro clássico da
literatura ocidental, incorporando uma espécie de profecia moderna, principalmente após a
Revolução Russa. Por volta de 1919, apareceu na Alemanha a primeira tradução da obra,
vários comentários e notas foram anexados ao documento, dando ênfase especial à
“Conspiração Sionista” que ameaçava as monarquias e as Igrejas cristãs. Foi a partir desta
versão, nitidamente direcionada, que Os Protocolos... chegaram à Inglaterra, Espanha,
França, Portugal, entre outros, espalhando-se incrivelmente pelo globo (GINZBURG,
2007: p 202).
No Brasil, ao que tudo indica, Gustavo Barroso foi o primeiro autor a publicar e
comentar a obra antissemita, em 1936. O livro traduzido duma versão francesa foi lançado
pela Editora Minerva, e obteve considerável aceitação, prova disso é que naquele mesmo
ano, mais uma edição foi lançada e, em 1937, Os Protocolos... estavam em sua terceira
edição. É interessante ressaltar que argumentos como, “O direito reside na força”, “a
liberdade é uma idéia”, “o poder judaico-maçônico é invencível”, “removabilidade dos
representantes do povo”, e muito outros, se faziam presentes nos artigos do periódico A
Offensiva, pelo menos desde 1935. Um bom exemplo, foi o texto escrito pelo autor,
tentando comprovar a autenticidade do livreto, frente às notícias que circulavam nos
grandes jornais da época.
O público em geral e os integralistas em particular ficaram admirados dessa
noticia. Em primeiro logar, que processo é esse sobre os Protocollos em Berna?
Em segundo, a authenticidade dos mesmos “Protocollos” pode ser impugnada.
Respondendo logo á segunda pergunta. A authenticidade dos Protocollos não
pode ser impugnada por perícia alguma, salvo se feita por judeu ou pessoa de má
fé. A exegése e documentação dos Protocollos foi completa e definitivamente
realizada nas obras de L. Fry, W. Creuz e Gotfried zur Beck. No seu livro “Le
rayon de lumiére”. Winberg acaba com todas as duvidas que, por ventura,
possam existir ainda sobre a authenticidade. Uma grande quantidade de livros
judaicos e de declarações de Sião são absolutamente authenticos por prégarem as
mesmas idéas. Alem disso, é innegavel que um exemplar dos Protocollos foi
119
depositado em 1901 no British Museum sob o n. 3.926 – D – 17. Ora, basta lêr
os Protocollos e passar em revista os acontecimentos mundiaes daquella época
ate hoje para se vêr que todos coincidem com o que está escripto. Como os
Protocollos não podiam advinhar o que se ia passar, sobretudo a guerra e o
desemprego, é lógico que tudo isso foi preparado pelos judeus. 25
Para o intelectual integralista, a menor dúvida a respeito da ligação entre os planos
judaicos e o comunismo se desvanecia face à carta escrita pelo judeu Baruch Levy ao
também judeu Karl Marx. A veracidade desta carta era indiscutível, pois para Barroso, a
correspondência não passava de um resumo do plano exposto mais largamente nos
Protocolos...
Carta que resume o plano de domínio mundial dos Protocollos: “O povo judeu
conta tornar-se collectivamente seu próprio Messias? Elle attingirá o domínio
universal pela unificação das outras raças e desaparecimento de suas fronteiras.
Estabelecerá uma Repubica Universal e, nessa nova organização, os Filhos de
Israel serão o elemento reinante. Elles sabem como influenciar e dominar as
massas! O governo de todas nações escorregará imperceptivelmente para as
mãos judaicas, graças á vitória do proletariado. Toda propriedade individual será
posta á disposição dos Chefes de Israel, que possuirão as riquezas de todos os
povos. Isso será o cumprimento da prophecia talmúdica: - Quando vier o
Messias, os judeus terão nas mãos as chaves de todos os thesouros do mundo”26
O judaísmo e a guerra de raças no Brasil
Brasileiros negros, brancos e pardos, uni-vos, como nos dias das Tabocas e dos
Guararaper, para expulsar da nossa querida terra os invasores deste seculo: o
banqueiro-judeu e o agente communista. A côr verde de camisa integralista unirvos-á no mesmo ideal para a mesma retumbante victoria. 27
Em um polêmico texto publicado no jornal A Offensiva, no dia 25 de maio de 1935,
Barroso delatava que os judeus objetivavam instaurar no Brasil o preconceito racial:
A guerra de raças só poderia ser criada artificialmente por meio de uma
propaganda systematica e mentirosa. Porque os homens de cor, felizmente,
nunca encontraram no nosso paiz a separal-os da comunhão nacional aquelle
preconceito. Negros, mulatos, caboclos, e mestiços são aqui considerados do
mesmo modo que os brancos. Têm attingido e attigem as mais altas posições. O
25
Ver: Jornal A Offensiva – Anno II; Rio de Janeiro: Sabbado, 25 de Maio de 1935 - Número 54. p.3
Idem (id.)
27
Ver: Jornal A Offensiva – Anno II; Rio de Janeiro: Sabbado, 25 de Maio de 1935 - Número 54. p. 1
26
120
brasileiro não chega a pensar em differenças de pigmento. A sociedade não se
fecha para ninguém por causa de coloração de sua pelle. 28
Na história narrada por Barroso, os efeitos da propaganda, recomendada pelos
judeus de Moscou, fizeram-se sentir imediatamente nos Estados Unidos, despertando lá um
dos maiores problemas sociais, a guerra de raças.
Em letras garrafaes, a Noite de 9 de abril ultimo, estampou a circumstanciada
noticia de espantoso conflicto entre negros e brancos, na cidade de Nova York,
motivado por um incidente sem importancia, o que demonstra a acção das forças
occultas. Tendo um pretinho portoriquense de dose annos furtado um objeto num
armazem da rua 125, na parte Oeste da cidade, foi levado naturalmente a
presença do gerente da casa, que lhe tomou o furto, o admoestou e fez sahir pela
porta de serviço. Quando o menino era conduzido à gerencia uma mulher
desconhecida poz-se a gritar na rua que o estavam matando a machadadas.
Juntou gente. Escadanlo enorme. A scena fora bem preparada.29
Após o episódio, a população negra do bairro atacou o armazém com violência e
saques de mercadorias, os policiais de ronda intervieram e o conflito acabou tomando
contornos gigantescos. Para Barroso, estava criado o terreno propício para a instalação do
poder judaico, que desestabilizando a ordem da sociedade apresentava-se como “guias”
doutrinários.
No domingo 5 de maio, o “Diário Carioca” estampou uma reportagem sobre o
referido bairro de Harlem, descrevendo a reportagem dum aventureiro que ali
está agindo a quem denomina o Hitler Negro. É um tal Sufl Abdul Hamid, nome
de pura fantasia, que se intitula Divino Padre duma nova religião capaz de crear,
com o seu fanatismo um novo Canudos dentro de NY. Esse aventureiro diz-se
sudanez e prega uma espécie de sella em que misturam idêas christãs e
mohometanas. Tem capitaneado procissões de quinze mil negros que vão
cantando em torno de andores com o seu retrato. Ignora-se quem o sustenta e
como conseguiu um aeroplano de auto-giro para suas excursões. Ha dois annos
ninguem falava delle. Hoje domina as massas dos homens de côr e preocupa os
publicistas. Não se sabe o fim secreto de sua actividade mais do que suspeita...30
Nas palavras impressas da AIB, o “impulso” para os conflitos raciais no Brasil
surgiu com as ações da Aliança Nacional Libertadora, sobretudo a partir de artigos
jornalísticos, que incitavam negros contra brancos, relembrando o período da escravidão.
28
Idem (id.)
Idem (id.)
30
Idem (id.)
29
121
Barroso alegava que a escravidão foi um fenômeno social próprio da época, e teve “sempre
caracter benévolo”. A ideia de que a nação brasileira surgiu do “amplexo” de três raças,
povoava a narrativa de intelectuais naquele tempo, e com Barroso não seria diferente.
O escravo negro na nossa patria viveu domesticamente com o branco, mestiçouse ao branco. As mães-pretas ammamentaram varias gerações que lhe deram
consideração e carinho. Todos os nossos escriptores renderam justiça aos
serviços do preto na constituição da nacionalidade...31
Diante das investidas do judaísmo internacional, o ideólogo integralista defendia a
necessidade de mobilizar os cidadãos para enfrentar o inimigo que “rondava” o Brasil. Esta
ameaça começou com o “banqueirismo”, escravizando economicamente o país, desde os
tempos imperiais, já na década de 1930, o perigo estava no marxismo, que para o autor
seria a outra face da ideologia judaica. Na lógica de Barroso, todas “as intrigas syndicaes
eram assopradas pelos esquerdistas da ANL”, seguindo às diretrizes de Moscou, que por
sua vez, eram ditadas pelo governo “Oculto de Israel”. E para efetivar o projeto de
dominação, os judeus investiam massiçamente na “velha artimanha” dos conflitos internos.
Em outro texto, no dia 15 de junho de 1935, Barroso demonstrava que a atuação
dos judeus era muito mais antiga do que se podia imaginar, remontava o tempo em que à
civilização cristã lutava contra a concepção de mundo judaica. O resultado deste conflito
nunca foi totalmente favorável aos judeus, porém este povo possuía uma grande
inteligência, e sempre estava tramando algo novo para submeter e escravizar a cristandade.
Há muito tempo viemos denunciando pela Offensiva as manobras judaicas
contra a civilização christã no sentido de minal-a e envilecel-a, escravizando-a
definitivamente através da subversão communista. Muita gente que não reflecte,
não observa e não estuda esquecendo que o maior e mais intratável racista de
todos os tempos é o próprio judeu, pensa que exaggeramos e diz que queremos
crear uma questão de raças. Por isso, é necessário estar sempre alerta e não
perder occasião de provar documentadamente a acçao judaica, de qualquer modo
que êxerça, no sentido a que sempre temos alludido.32
Se num primeiro momento a ação judaica foi mais discreta, na década de 1930 ela
se tornaria pública, a partir da violência praticada pelo “terrorismo comunista”.
31
32
Idem (id.)
Ver: Jornal A Offensiva – Anno II; Rio de Janeiro: Sabbado, 15 de Junho de 1935 - Número 58. p.1
122
É fácil ir aos poucos verificando como o judeu age por trás desse biombo
transparente. Em Bello Horizonte, por exemplo, quem apparece em primeiro
plano, fingindo-se chefe alliancista, é o professor David Rabello, mas quem
inspira e paga é o israelita Mellinger, vendedor de trastes velhos.Em Petrópolis
recentemente, quando foi repelido o assalto alliancista á sede Integralista. Sahiu
ferida a jovem Yvone Scoralick, filha do inspirador e “pagador” da Alliança
naquella cidade o judeu Jacob Scorallick.33
Barroso esforçava-se para comprovar esta tese com “estudos de genealogia” e para
chamar a atenção dos “Camisas Verdes” sobre o ódio dos “aliancistas”, foi buscar nas
origens de nomes, supostamente, judaicos a ligação de pontos fundamentais de sua
narrativa histórica. Um exemplo foi o texto que escreveu sobre as origens do nome
Rabello:
Os mais famosos no momento são tres: o general Manuel Rabello, positivista de
quatro costados, que ainda crê na Philosophia Positiva de Augusto Comte; o
professor Castro Rabello, que age subterraneamente na Faculdade de Direito do
Rio; e o professor David Rabello, que tomou attitude em Minas pró Alliança,
esquecido da Camisa-Kaki que vestiu quando formou nas fileiras outubristas do
fallecido Sr. Chico de Campos.34
Mas, por que essas três criaturas tão afastadas no tempo e no espaço, tão diferentes
apareciam unidas entre si? A resposta, na fala de Barroso, estaria no sangue judaico, que
por menor que fosse nunca deixou de falar mais alto, impondo-se a todo e qualquer
sentimento de nacionalismo e patriotismo. A voz do “sangue ancestral” os obrigava a agir
assim, dizia Barroso, a sua raça judaica, “ainda percebida nas feições destas pessoas”, não
poderia permitir que ficassem indiferentes diante do movimento integralista, que além de
pregar os preceitos cristãos também propunha uma revolução espiritual e nacionalista.
Considerações finais
A década de 1930 ficou marcada pela instabilidade política e econômica e,
consequentemente, pelo aumento da repressão policial. Neste ambiente delicado, os
intelectuais brasileiros viam-se como “condutores” da nação, e como foi demonstrado,
Barroso foi um caso típico deste comportamento. Além disso, para esta pesquisa,
33
34
Idem (id.)
Idem (id.)
123
focalizamos exclusivamente o ano de 1935, por guardar uma serie de acontecimentos, que
contribuíram de maneira decisiva na construção daquele ambiente político de intolerância.
Exemplar deste ano crucial foi o “movimento subversivo”, ocorrido em quartéis do
nordeste, que mais tarde seria chamado de “Intentona Comunista. Como sabemos o levante
comunista falhou, Luiz Carlos Prestes não obteve a adesão esperada das forças armadas, os
conflitos se resumiram ao baixo escalão do exército, e foram rapidamente controlados
pelas tropas governistas. Entretanto, parecia não haver mais volta, o Brasil,
terminantemente, entrava num processo de perda gradual das liberdades individuais.
De modo paradoxal, o país se transformava num dos principais pólos de atração dos
judeus, que Barroso enxergava como uma onda de “imigrantes indesejáveis”, pois
ameaçavam a idéia integralista de fundar uma “nação unificadora”. Por isso, era necessário
empreender um esforço permanente e persistente, no sentido de elevar o nível intelectual
do brasileiro. Somente assim, com uma revolução política e espiritual, seria possível retirar
o país do atraso, e apagar definitivamente a memória do “Brasil colônia de banqueiros”.
O primeiro passo foi tentar “desmascarar” os oponentes deste projeto, por meio da
divulgação de diversos textos anti-semitas, entre eles, Os Protocolos... Uma vez
reconhecido o lado do bem e do mal, era preciso transmitir aos mais jovens o “superior
idealismo integral, a mística dos deveres, o amor ao estudo e o conhecimento das
realidades nacionais”, esta seria a fórmula apresentada para a realização do desejo de
“engrandecimento da personalidade do homem integral”. Como asseverava Barroso, a
“judiaria”, por sua própria natureza, era o antagonismo do ideal integralista, pois
representava o povo apátrida, o cosmopolitismo, o moderno, o capitalista e, finalmente, o
comunista. O Chefe das Milícias e também Secretario Nacional de Educação Integralista,
encerrava seu raciocínio ao demonstrar a incompatibilidade de um verdadeiro projeto
nacional com a presença judaica.
Finalmente, o “judaísmo internacional” deveria ser eliminado devido à sua
“incapacidade assimilacionista”, portanto, não se combatia o judeu porque este era da raça
semita, mas sim porque este representava um perigoso agente político, dotado de um
“temeroso plano secular”, conforme foi revelado pelos Protocolos...
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SODRÉ, Nelson Werneck. A Intentona Comunista de 1935. Porto Alegre: Mercado aberto,
1986.
125
Trabalho e Transformação, Atividade Prático Sensível.
Soraia Costa
Resumo: Participo da produção audiovisual do documentário Transformação sensível,
neblina sobre trilhos que busca estabelecer um diálogo entre passado e presente da vila
ferroviária, a Vila de Paranapiacaba, narrados, principalmente, pelos protagonistas, os
ferroviários. Nesta publicação, gostaria de expor o objetivo crucial que provocou a ideia do
documentário: o de retratar a capacidade do gênero humano que em função de sua
atividade prática transforma a sociedade em que vive.
Palavras-chave: Trabalho, cultura e história.
Abstract: I share the audiovisual production of the documentary "Transformationsensitive, fog on rails" that seeks to establish a dialogue between past and present railway
village, the Vila de Paranapiacaba, the Village of Paranapiacaba, narrated mainly by the
protagonists, the railway. This publication would like to state the crucial goal that sparked
the idea of the documentary: the ability to portray the human race that because of his
practical activity transforms society in which they live.
Keywords: Work, culture and history.
Introdução
Gostaria de explicar um pouco do objetivo crucial que provocou a ideia do
documentário didático-pedagógico “Transformação sensível, neblina sobre trilhos”, este
que busca estabelecer um diálogo entre passado e presente da vila ferroviária, a Vila de
Paranapiacaba, narrados, principalmente, pelos protagonistas, os ferroviários.
A ideia
nasceu com a vontade de retratar a capacidade do gênero humano de transformar a
natureza, em função de sua atividade prática transforma a sociedade em que vive. No caso,
os ferroviários que são os protagonistas da historia narrada e documentada com textos e
fotografias no vídeo.
126
Em relação ao título Transformação sensível, foi escolhido metaforicamente com
anseio de esclarecer que o dinamismo das relações sociais, devido à ação humana em
conjunto, determina as mutações ocorridas em todo contexto histórico. Também se torna
necessário mostrar que infelizmente na sociedade atual esta capacidade estrita do ser
humano se encontra submissa ao julgo do capital. Por isso, no cotidiano nos deparamos
com uma sociedade em que os valores e tradições são inseridos como perenes, o que nos
remete a concluir que definitivamente nos relacionamos num mundo estático, em que as
mudanças se encontram na jurisdição de algo maior e, principalmente, externo ao conjunto
dos homens.
Por meio do contraste de cenário entre passado e presente que o progresso levado
pelas asas da história tem sido ambivalente e contraditório. Elementos ontológicos de uma
sociedade eminentemente dinâmica, na qual o ser humano, a todo o momento, se
transforma e transforma tudo ao seu redor. Antes de adaptar-se, o humano promove
mudanças que no cotidiano parecem lentas ou até mesmo inexistentes, que parecem muitas
vezes só destruir, mas, estão a arar o solo de novas semeaduras históricas cuja natureza não
se pode prever.
A base fundamental da forma de organização em questão, o capitalismo, consiste na
separação do trabalhador de seus meios de produção, um fator que é determinante para
incompreensão da capacidade humana de buscar e, desta maneira, transformar a natureza
para sanar as suas necessidades básicas. Numa sociedade em que os objetivos estão
voltados intrinsecamente ao acúmulo do capital, a capacidade humana se restringe a
produzir e reproduzir esta meta, diferente de todas as formas anteriores de organização em
que era possível encontrar os meios de subsistência (matéria-prima e instrumentos de
trabalho), de forma livre pelo homem, visto que o mesmo é capaz de produzir além do
necessário para sua sobrevivência e ao mesmo tempo, incapaz de produzir a totalidade de
suas necessidades de forma isolada.
No sistema vigente em questão a troca que anteriormente era realizada como mero
intercambio passa a ser a força motriz de toda a relação social e assim o excedente de toda
produção humana se amplia apenas e sobre posse dos detentores dos meios de trabalho. O
que anteriormente era produzido para usufruto imediato, entendido como valor de uso,
127
através do capital se torna valor de troca e esta passa a ter como objetivo o acúmulo e a
ampliação de riqueza.
Portanto, podemos afirmar que no sistema capitalista a relação de troca é a base de
toda a relação humana e por isso temos acesso a todas as potencialidades humanas apenas
por meio da mesma. A capacidade do gênero humano se encontra, desta maneira, submissa
a lei da oferta e da procura, as propriedades estão livres para compra e a venda e não para o
usufruto coletivo de toda a humanidade. Por isso a ação consciente do homem se torna de
forma dissimulada fadada a atender aos interesses de poucos em detrimento ao
desenvolvimento da capacidade de produção do restante em todos os âmbitos.
Objetivos
•
Mostrar que, apesar de deturpado (ou nebuloso) e controlado, a transformação é
sensível;
•
Promover o conhecimento sobre o processo histórico e o homem como sujeito;
•
Remeter o espectador a entender o momento atual de sua sociedade.
Justificativa
Nosso trabalho procura através da história referente ao impacto que ferrovia, os
ferroviários, os ingleses e os cafeicultores trouxeram ao implantar os caminhos dos trilhos
que liga o porto de Santos, a capital e o oeste do interior paulista, ou melhor, a ferrovia que
transporta as mercadorias de Santos a Jundiaí, inicialmente operado pela empresa São
Paulo Railway. Mostrar que, apesar de deturpado e controlado a transformação é sensível,
por isso a sociedade sempre produz e reproduz o resultado da ação dos homens em
conjunto. Por meio desta produção audiovisual surtir no espectador a retomada do ser
humano como sujeito do processo histórico, comprovar que tudo que é feito, desde as
coisas mais plausíveis até as mais repugnantes, são frutos da ação humana consciente
submissa ao sistema de organização atual.
Neblina sobre trilhos não é somente pelo charme poético do clima no Alto da Serra,
mas, também por apesar de existir o conhecimento sobre o processo histórico e o homem
128
como sujeito é escasso e pouco difundido e por isto o conhecimento está nebuloso, perdido
na égide da efemeridade do cotidiano, da aparência imediata, no senso comum.
Contudo, em um primeiro momento, apesar de audacioso este objetivo, julgamos
ser necessário a descoberta do mundo para que se torne possível o entendimento da ação
consciente do ser humano e desta maneira remeter o espectador a entender o momento
atual de sua sociedade.
Análise
A partir da colaboração dos protagonistas sociais da Vila de Paranapiacaba, foram
registradas entrevistas, o que construiu uma narrativa documentária para expressar
percepções e memórias, os sentimentos, as vivências, o trabalho, daqueles que possuem
alguma ligação direta ou indireta com a Vila de Paranapiacaba, com a antiga inglesa ou
com a Rede Ferroviária Federal.
Esta proposta de registro se vincula ao campo da história oral. O encontro das
oralidades em um documentário – com seus métodos e mecanismos particulares, já
consagrados como ferramentas que contextualizam e aproximam as pessoas do objeto
retratado, do qual permite a seleção e o tratamento do material colhido da realidade que
capacita a construção de uma perspectiva investigativa e reflexiva sobre a história do
passado e do presente.
A empresa de construção da Vila de Paranapiacaba ocorreu na segunda metade do
século XIX, como um posto operário para apoio à linha férrea da SPR, em virtude da
necessidade da proximidade de trabalhadores para manutenção do sistema funicular sistema técnico ferroviário montado para transposição da Serra do Mar – para o fluxo do
escoamento do café do Oeste paulista ao Porto de Santos pelos trilhos da Cia. São Paulo
Railway.
Paranapiacaba é distrito do município brasileiro de Santo André (estado de São
Paulo). Inicialmente denominada Vila Martim Smith, voltada para a residência para os
funcionários da companhia inglesa de trens São Paulo Railway Co. - estrada de ferro que
possibilitava o transporte de cargas e pessoas do interior paulista para o porto de Santos, e
vice-versa. A Vila de Paranapiacaba é, no Brasil, a única vila ferroviária conservada desde
129
sua fundação em 1874, que reúne um dos mais expressivos patrimônios culturais e naturais
do território brasileiro, por sua singularidade ecológica como uma das últimas reservas da
Mata Atlântica do Brasil, além de ser também um precioso patrimônio histórico pelo
sistema aglomerado de trabalho e tecnologia usados na construção e operação da linha
férrea no desnível da Serra do Mar, substituído pelo sistema de cremalheira na década de
1970. Abaixo alguns mapas para entenderem um pouco sobre o crescimento da vila
ferroviária.
Vila Martin Smith, em 1900. Alto da Serra, SP.
Vila Martin Smith, em 1915. Alto da Serra, SP.
130
Vila Martin Smith, em 1933-1945. Alto da Serra, SP.
Vila Martin Smith, em 1955. Alto da Serra, SP
O dinamismo da Vila de Paranapiacaba, intimamente ligado a vida da estrada de
ferro, sofre uma interrupção com a valorização do uso do automóvel. A partir
dos anos 1950 o governo brasileiro investe em recursos na abertura da estradas e
incentiva a produção de caminhões, veículos particulares e ônibus que começam
a competir com o trem. Este passa a ser mais utilizado no transporte de
passageiros apenas entre cidades próximas – o trem de subúrbio que aproxima as
periferias onde moram os trabalhadores, do centro de comércio e da indústria.
(PASSARELLI, 2003: p. 51)
O final do século XX foi período em que a Vila de Paranapiacaba esteve em
decadência absoluta e é quando entra em cena a atuação da Prefeitura Municipal de Santo
André, no último governo do prefeito Celso Daniel (1982). No dia 18 de janeiro de 2002
foi concretizada a compra da vila, quando a prefeitura de Santo André fechou negócio com
a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A) por R$ 2,1 milhões, que foram pagos em 18
131
parcelas. Como a prefeitura também adquiriu a parte da Mata Atlântica que circunda a vila,
o polo ficou com uma área de 4,26 milhões de metros quadrados.
Foto: Soraia Oliveira Costa, 2010.
Conclusão
A construção da narrativa documental que, por meio do estímulo criativo e do
desenvolvimento de um espírito crítico que provoca olhares e a reflexão para a preservação
da memória social dos que movimentaram e movimentam o país pelos trilhos ferroviários.
As dificuldades concretas não podem impossibilitar a necessária recuperação do fio
da meada interrompida, do saber acumulado e muito menos impedir o diálogo entre o
passado e o presente que certamente existe sinteticamente em cada um que participou e
participa da Vila de Paranapiacaba e da construção ferroviária nacional.
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SCIFONI, S. O verde do ABC. Jornal Diário do Grande ABC, Santo André, SP - 02.nov.
1998.
133
Diversidades Sexuais e Linguagens
O Papel da Mulher no Rádio Iurdiano: narradoras eletrônicas na frequência da web.
Cláudia Figueiredo-Modesto*
Márcio de Oliveira Guerra**
Resumo: Este artigo integra uma pesquisa, em fase de conclusão, que investiga a
identidade feminina na mídia neopentecostal da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Partimos dos conceitos de identidade dos Estudos Culturais e da interface entre
mídia e religião para investigar qual o modelo de mulher fornecido ou incentivado pelas
narrativas de conversão exibidas através da Rede Aleluia de Rádio, que cobre 75 por cento
do território nacional. Para qual mulher é dirigido o discurso? Como a mulher é
representada na mídia iurdiana? Como metodologia, adotamos a Análise da Narrativa
baseada nos pensamentos de Gancho (2006). Foram comparadas as narrativas femininas ao
vivo e gravadas durante os dias 06 e 10 de junho, de 9h às 12h, quando o programa
Mensagem do Bispo Edir Macedo estava sendo transmitido em rede para todas as 63
emissoras da IURD e também pela internet através da TV IURD.
Palavras-chave: rádio – identidade – mulher - narrativas de conversão.
Abstract: This article is part of a research, at the stage of completion, which investigates
the female identity in the media neopentecostal of Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). We are working on the concepts of identity of Cultural Studies and of the
interface between the media and religion to investigate which model of woman supplied or
encouraged by narratives of conversion displayed through the Network Alleluia of Radio,
which covers 75 per cent of the national territory. Which woman is directed the discourse?
How the woman is represented in this media? As a methodology, we adopted the Analysis
of Narrative based on thoughts of Gancho (2006). They were compared between the
*
Mestranda em Comunicação e Sociedade, UFJF. E-mail: [email protected].
Professor Doutor na FACOM, UFJF. E-mail: [email protected].
**
134
women narratives by live broadcast and recorded during the days 06 and 10 June, from
9am to 12pm, when the program Message from Bishop Edir Macedo was being transmitted
on the network for all the 71 stations of the IURD and also through the internet via the
IURD TV.
Keywords: Radio - identity - women - narratives of conversion.
Introdução
Fundada em 09 de julho de 1977, por Edir Macedo, na cidade do Rio de Janeiro,
em pouco tempo, ramificações da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) se instalaram
em todos os estados do país, inclusive no exterior. Atualmente são mais de 4.750 templos
em 180 países35 e, segundo a IURD, mais de 13 milhões de fiéis em todo Brasil. O
crescimento da IURD também se dá no campo da comunicação, com grande impacto no
mercado de comunicação de massa. Para Penha Rocha (2006, p. 8), “a extensão dos
negócios de Edir Macedo talvez faça dele o mais poderoso empresário de comunicação no
Brasil, já que seu holding36 tem mais emissoras de TVs próprias que afiliadas – a Rede
Globo conta com o maior número de afiliadas no território nacional”.
Nossa pesquisa apurou que a IURD possui hoje 71 emissoras de rádio (AM e FM),
23 emissoras de TV, entre elas a TV Record, o jornal mineiro Hoje em Dia, a Editora
Gráfica Universal (responsável pela edição e publicação em nível nacional da Revista
Plenitude, com tiragem nacional de 322.865 exemplares), a Revista Obreiro de Fé (tiragem
de 300 mil exemplares, dirigida a obreiros e obreiras de igrejas em geral), Revista Mão
Amiga (destinada a divulgar o trabalho de assistência social da Igreja realizado pela
Associação Beneficente Cristã – ABC), o jornal Folha Universal (com tiragem semanal
acima de 1,5 milhão de exemplares); a Uni Line (empresa de processamento de dados), a
Frame (produtora de vídeo), a maior gravadora gospel do país, a Line Records, e o portal
na internet Arca Universal.
35
Disponível em http://www.arcauniversal.com/iurd/historia/mundo.html. Acesso em 30 de junho de 2011.
Empresa que possui a maioria das ações de outras empresas e que detém o controle de sua administração e
políticas empresariais.
36
135
E, de acordo com Mariano (2005), a IURD ainda é proprietária dos jornais Tribuna
Universal (Portugal) e Stop Suffering: a new life awaits you!37 (África do Sul), além do
Banco de Crédito Metropolitano, Unimetro Empreendimentos, Cremo Empreendimentos,
New Tour (agência de viagens), Unitec (construtora), Uni Corretora (seguradora),
Investholding Limited (com sede nas Ilhas Cayman), Editora Gráfica Universal Ltda,
Ediminas S/A (BH), uma fábrica de móveis (que faz os bancos da igreja), e ainda seis
emissoras de rádio em Portugal, duas na França, onde ainda possui uma construtora e duas
agências de viagens.
Podemos ainda incluir nesta listagem o portal “R7” ou “R7.com”, cujo conteúdo
varia entre notícias e entretenimento, e a IURD TV (TV na internet).
Rádio e IURD
Há um consenso que, ainda, é através do rádio que os evangélicos se inserem na
comunicação de massa do Brasil38. Para inúmeros ouvintes, analfabetos ou não, o rádio se
constitui, muitas vezes, no único canal de informação, de conhecimento e de ligação mais
ampla com universos distanciados de sua realidade social. “Desde o seu início, o veículo
serviu de expressão às diferentes manifestações culturais, principalmente através da
música, do esporte e da informação. Mas, possibilitou também outros usos, como o
político, e mais recentemente, o religioso” (HAUSSEN, 2004, p. 27). O rádio foi o
primeiro meio de comunicação usado pela Igreja Universal do Reino de Deus, quando Edir
Macedo alugava e depois comprava espaços nas programações radiofônicas no final da
década de 70. Hoje, como já foi dito, a Rede Aleluia cobre 75 por cento do território
nacional com 71 afiliadas.
Acompanhando a programação da rede é possível perceber que existe uma
preocupação com o público feminino quando o apresentador (geralmente um pastor ou
bispo da igreja) se refere em especial à mulher, com expressões como “minha amiga”. E
37
38
Pare de sofrer: uma nova vida espera por você! (tradução livre da autora)
Ver Fonseca (1990), Vattimo (1996), Budke (2005), Santana (2005), Revista Veja (2002).
136
não é por acaso: pesquisa39 aponta que, no Brasil, 53 por cento da audiência radiofônica
são femininas.
Um dos principais fatores de atração das igrejas que se multiplicam por todo o
continente seria a ênfase concedida às questões domésticas e de interesse imediato das
mulheres pobres que, constituem a maioria dos seus adeptos (MACHADO, 1998, p. 2).
Machado (2005) aponta que a migração de fieis para o segmento pentecostal seria
resultante de uma tendência a “flexibilização da moral e dos costumes e em uma incessante
revisão das estratégias de recrutamento dos fieis e das formas de atuação das lideranças
religiosas” (Ibid., p.388). O líder iurdiano fala abertamente sobre sua posição favorável ao
aborto e ao uso de métodos contraceptivos (enaltecendo, inclusive, a vasectomia),
rechaçando, com veemência, a violência de gênero.
O discurso propagado por esta mídia estabelece uma relação direta com a
programação diária da igreja, na seguinte ordem:
Segunda-feira: reunião dos empresários;
Terça-feira: corrente da cura divina;
Quarta-feira: reunião para homens e mulheres de Deus;
Quinta-feira: terapia do perdão;
Sexta-feira: reunião da libertação “para pessoas que têm problemas espirituais,
por obra de bruxaria, feitiçaria, macumba, inveja, olho-grande, aqueles que
tiveram contato com entidade, ouvem vozes e vêem vultos” (FOLHA
UNIVERSAL, 2000, p.11a);
Sábado: terapia do amor;
Domingo: reunião do Encontro com Deus.
Os temas das dramatizações são levados ao ar de acordo com o que será tratado na
igreja naquele dia ou no dia seguinte, como forma de levar o/a ouvinte à igreja.
O discurso massivo revela-se ambíguo para as mulheres: ora as aproxima ao espaço
doméstico, ora as incentiva a participarem do setor econômico. Portanto, as investigações
deste artigo giram em torno da análise de narrativa e produção de significados que resultam
na construção da identidade feminina da mulher evangélica, com o desafio de identificar
qual identidade feminina é construída ou reforçada por esta mídia neopentecostal: a restrita
ao ambiente doméstico ou a de prosperidade financeira.
39
Fontes: Elvio Mencarini - Diretor Geral da Rádio2. Roberto Mencarini - Profissional de Marketing da
Rádio 2. Alfredo Nastari - Publicitário do Escritório de Comunicação. Instituto de Pesquisas Mídia Dados.
Instituto de Pesquisas Ibope.
137
Papel da Mulher na IURD
A presença feminina nos cultos é bastante significativa, chegando mesmo a
representar dois terços do total de fiéis, segundo Campos (1997, p. 439). Questionamentos
a cerca dessa expressiva presença feminina dentro de um espaço onde as mulheres não têm
poder e nem referência, onde a submissão à vontade masculina é a regra geral e onde a
mulher é vista como "porta de entrada" do Mal nortearam a curiosidade da pesquisadora.
Na realidade, a figura da mulher dentro da IURD é cheia de nuances e
particularidades. O Bispo Edir Macedo faz constantes adaptações em sua
doutrina e tem adotado uma postura menos radical em muitas de suas premissas.
Mesmo assim, no tocante à mulher, a ênfase ainda recai sobre a importância de
manter a obediência ao marido e no vínculo do feminino com o Mal.
(PIMENTEL, 2005, p. 23)
Embora reconheça a importância da mulher na vida da comunidade e coloque à sua
disposição uma série de publicações, os artigos e reportagens trazem diversas dicas de
cuidados com a casa, com os filhos e trazem também matérias sobre profissão, saúde e
beleza, sempre valorizando a atitude da “mulher de Deus”.
Dentro da IURD a mulher exerce, no máximo, a função de “obreira”, uma espécie
de auxiliar nos cultos. O líder da igreja escreveu o livro “O Perfil da Mulher de Deus”
(MACEDO, 2002, p. 67-71), onde traça os dez mandamentos a serem seguidos pela
"mulher de Deus":
Primeiro: Ela teme ao Senhor, e esse temor faz com que veja o marido como se
fosse o Senhor Jesus, mesmo que ele seja incrédulo;
Segundo: Ela é sábia; por isso fala pouco ou só mesmo quando necessário. Quando
a pessoa fala muito é porque é egoísta, e sempre quer impor aos outros as suas idéias e
pensamentos;
Terceiro: Ela é discreta. Nunca procura chamar a atenção dos outros para si. O seu
comportamento é contrário ao das mulheres do mundo. A sua fala é suave, os seus vestidos
são discretos. O seu rosto pode ser maquiado, mas não mascarado; o seu cabelo é penteado,
mas não de forma exótica;
138
Quarto: Ela é virtuosa. A mulher virtuosa é aquela que procura cuidar muito mais
do seu coração do que do seu corpo. Tem como fragrância no seu corpo, a plenitude da
presença do Espírito Santo;
Quinto: Ela é forte. Não se abate diante das dificuldades. Pelo contrário, quando os
momentos difíceis acontecem, surge com a determinação de Deus;
Sexto: Ela é de fé. A mulher de fé é aquela que vê nas dificuldades apenas novas
oportunidades. Como a dona-de-casa, sabe fazer do limão uma boa limonada! Estimula a
fé do seu marido com palavras de ânimo e coragem;
Sétimo: Ela é trabalhadeira. A mulher de Deus nunca é preguiçosa, porque tem
prazer em cuidar dos afazeres de casa de tal forma que, quando seu marido chega a casa,
tudo está em ordem. Ela não espera que os outros façam aquilo que é de sua competência.
Oitavo: Ela é fiel. A mulher de Deus não é fiel apenas ao seu marido, mas também
à sua igreja. Sua fidelidade se faz transparecer no serviço da obra de Deus;
Nono: Ela é sensata. A mulher de Deus sabe ser cuidadosa com suas palavras,
especialmente quando seu marido é incrédulo. Os lamentos e as reclamações nunca surtem
bom efeito nos ouvidos de quem os ouve. Se for sensata, sabe como contornar uma
situação desagradável, em vez de ficar reclamando todo o tempo;
Décimo: Ela tem bons olhos. A mulher de Deus procura ver as demais pessoas
como Deus as vê. É verdade que há pessoas más e que é difícil vê-las com bons olhos, mas
porque ela é de Deus os seus olhos sempre procuram ver o lado bom daquelas pessoas. É
melhor ser prejudicado com bons olhos do que alcançar vantagens com maus olhos.
Nesta publicação, Macedo coloca que a mulher tem que ser forte e passiva ao
mesmo tempo, que é responsável pelo bem-estar da família, mas que, em última instância,
obedece ao marido. Na contramão do feminismo, o autor afirma que mulheres que
vivenciam plenamente sua sexualidade e que deixam extravasar sua sensualidade por seus
atos ou postura "o fazem porque têm um espírito demoníaco, chamado pomba-gira" (Ibid.,
p. 38). Para o líder iurdiano, a mulher que segue fielmente os passos da mulher de Deus
trilha o caminho das pessoas virtuosas, como algumas mulheres citadas na Bíblia.
Este perfil modela uma mulher que fala pouco, tem firmeza para manter a família
na fé, e é submissa ao marido.
139
Edir Macedo explica que a palavra "submissão" não deve ser entendida em seu
sentido usual, em que um ser mais forte que exerce poder sobre outro mais fraco.
Para a IURD, submeter-se significa ter prazer em servir pelo amor. Em outras
palavras, a mulher de Deus se submete ao marido movida pelo Espírito do amor
que há dentro dela. (PIMENTEL, 2005, p. 27)
Para Macedo qualquer ideia que possa ter um cunho feminista é rejeitada, sendo
considerada como uma proposta antinatural, que vai contra a vontade de Deus. Para
fortalecer suas convicções, Macedo faz uso de passagens bíblicas que endossam suas
palavras.
A mulher no rádio
Ressalta-se ainda a importância dos meios de comunicação de massa como espaços
nos quais a representação da identidade feminina é construída por meio de programas de
entretenimento, informativos, debates, etc.
No contexto da discussão acerca das identidades, o campo comunicacional emerge
como um espaço de luta decisivo. Ainda que entendido como espaço de poder, também
veicula, por outro lado, uma linguagem aparentemente transparente, considerada como
neutra e universal, mas que, no entanto, reflete uma ideologia. Para Douglas Kellner, em
seu livro A cultura da mídia (2001), é preciso lançar um olhar agudo para a luta existente
entre homens e mulheres, feministas e antifeministas, gays e anti-gays, racistas e antiracistas, partindo do pressuposto que a mídia é um campo de batalhas onde as lutas
perpassam por textos e cenários.
Sabe-se, através dos autores que trabalham com o conceito de identidade, como
Canclini (1995), Kellner (2001), Castells (2000), Silva (2000), Bauman (2005) e Hall
(2006), que as identidades são construídas a partir de algo que se narra. Esses sentidos
estão contidos em histórias, memórias e imagens que servem de referências, de nexos para
a constituição de uma identidade. Por isso, a discussão em torno da identidade acaba
influenciada por questões sobre: lugar, gênero, raça, história, nacionalidade, orientação
sexual, crença religiosa e etnia.
Narradoras eletrônicas
140
No rádio iurdiano, o discurso em torno do papel feminino é construído
simbolicamente a partir de sua força evangelizadora, presente em depoimentos femininos
como “fui levada à igreja por uma vizinha”, “uma amiga me disse para escutar os
programas de rádio da Rede Aleluia”, “eu estava ouvindo rádio e parecia que o pastor
falava para mim e daí eu resolvi ir à igreja naquele mesmo dia”; ou através de depoimentos
masculinos, entre outros, que afirmam: “quem primeiro chegou à Igreja Universal foi
minha mulher e, eu vendo a mudança dela, resolvi frequentar também”, “minha namorada
me levou ao culto”.
Para este artigo, o corpus desta pesquisa ficou delimitado nas “narrativas de
conversão” durante a semana de 06 a 10 de Junho, de segunda a sexta-feira - período que
antecedeu o Dia dos Namorados (12 de Junho) -, das 9h às 12h, horário considerado nobre
para o rádio. Como metodologia, adotamos a Análise da Narrativa baseada nos
pensamentos de Gancho (2006). Naquela data, havia apenas três semanas que o programa
tinha estreado na Rede Aleluia, com transmissão direta da Rádio 99,3 FM, em São Paulo
(SP) para todas as afiliadas e também com transmissão ao vivo e on line para a TV IURD
(TV na internet). Trata-se de uma reconfiguração do modelo de rádio da forma que o
conhecemos no século 20. “A estrutura das rádios interliga-se ao ciberespaço. A web
deixou de ser apenas sinônimo de navegação em sites e, hoje, reconfigura vários meios de
comunicação e o cinema. Ela ajuda a divulgar as emissoras de rádio e televisão, jornais e
revistas” (ABDALLA, 2006, p. 38)
Como o programa não tinha nome, conforme o próprio Macedo respondeu à
pesquisadora, adaptou-se um quadro que se chama Mensagem de Fé com o Bispo Macedo
(que originalmente ia ao ar às 12h e 18h, com cinco minutos de duração), para nomear o
programa. Macedo é acompanhado pelo Bispo Clodomir, considerado seu braço direito,
tendo como convidados um casal a cada dia de programa.
Numa referência ao Dia dos Namorados, Macedo enfatizou seu discurso durante
toda a semana na benção especial que seria dada aos casais no domingo, dia 13 de junho
(para os Católicos, Dia de Santo Antônio, Santo Casamenteiro) e, de segunda a sexta-feira,
recebeu casais no programa que relatavam suas histórias de conversão à Igreja Universal e
consequente sucesso na vida amorosa, familiar e financeira.
141
Dentro da programação, eram exibidas dramatizações que reconstituíam as histórias
das pessoas que se converteram e também obtiveram sucesso em suas vidas. Na semana
analisada, todas as dramatizações tinham como personagem principal mulheres que
assumiam o papel de “narradoras eletrônicas” de suas histórias de conversão.
Para identificar qual o papel por elas protagonizado, optou-se pela classificação dos
perfis femininos sugeridos nos discursos, enquadrados nos seguintes papeis: “a
sacrificadora”, “a evangelizadora”, “a redentora”, “a submissa”, “a auxiliadora”, “a
empreendedora”, “a bem sucedida”, “a afetuosa”, “a educadora”, “a provedora”, “a
executiva”, “a profissional competente”; além dos sugeridos por Edir Macedo no livro O
Perfil da Mulher de Deus (2002): “a temerosa”, “a sábia”, “a discreta”, “a virtuosa”, “a
forte”, “a de fé”, “a trabalhadeira”, “a fiel”, “a sensata”, e “a de bons olhos”.
As narrativas de conversão começam contando como estas mulheres estavam
infelizes e enfrentando dificuldades. Os termos mais utilizados são: “humilhada”,
“derrotada”, “miséria”, “casamento destruído” e “vida financeira fracassada”. Depois, elas
narram uma nova fase de “luta”, “perseverança”, “superação”, “força” e “fé” para
finalmente concluir seus depoimentos utilizando palavras como: “venci”, “derrotei o
inimigo”, “bem-sucedida”, “casamento restaurado”, “não me falta nada”.
Para
confrontar
os
modelos
identitários
dessas
narradoras
eletrônicas,
estabelecemos uma comparação entre os testemunhos ao vivo e as dramatizações gravadas
e editadas exibidas durante a programação, conforme quadro abaixo:
Testemunhos ao vivo
Sandra
Thaís
Mulher de atitude
Gravações editadas
Sheila
Corajosa
Empresária bem
Empresária bem
sucedida
sucedida
Auxiliadora
Lucinéia
Evangelizadora
Redentora
Valéria
De fé
Fabiana
Empresária
Marisa
Sábia
Cláudia
Sacrificadora
Graça
Sacrificadora
Rosa
Afetuosa
142
É possível perceber que há uma congruência entre os depoimentos e os temas a
serem enfocados nos cultos religiosos, de modo que a programação radiofônica convida e
convence a audiência a conhecer o trabalho da Igreja Universal do Reino de Deus.
Fundamentada na Teologia da Prosperidade, há um cuidado especial em mostrar
depoimentos de sucesso financeiro ligados à conversão religiosa, como quem oferece um
passaporte para a felicidade.
Considerações Finais
Este estudo contribuiu para revelar que o discurso iurdiano é ambíguo para as
mulheres: ora as aproxima ao espaço doméstico, ora as incentiva a participarem do setor
econômico. No espaço doméstico fica claro que o modelo construído ou reforçado é da
mulher disposta a fazer qualquer tipo de sacrifício para manter a união e a felicidade
familiar, através de sua sabedoria e da fé em Deus. No campo profissional, a análise
esclarece
que
o
discurso
reforça
uma
independência
financeira
baseada
no
empreendedorismo, desde que não “abandone” sua família. Portanto, são múltiplas essas
identidades, num constante processo de negociação simbólica que as fieis-ouvintes
estabelecem com as mensagens disponíveis, dependendo da forma que se apropriam delas.
Embora seja possível perceber uma flexibilização nas questões de gênero em
relação a outras denominações evangélicas, o modelo de mulher presente nas narrativas
não revela uma autonomia feminina. Além disso, o discurso reforça a conservação de
valores ligados à família tradicional. Ou seja, o homem continua sendo o “cabeça da
família”. À mulher cabe o papel de administrar a casa, cuidar do marido e dos filhos,
evangelizar os familiares e contribuir para a prosperidade financeira da família. Portanto,
às mulheres ainda são atribuídas as duplas ou triplas jornadas de trabalho.
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145
Educação e Minorias I
Semana de 22: um marco brasileiro.
Por Cláudio Kaz*
Resumo: A semana de arte moderna mudou o rumo das artes e do pensamento brasileiro.
Apesar de não ter tido um grande sucesso na época, influenciou uma geração futura.
O Brasil já era independente há 100 anos e ainda não conseguia criar raízes profundas a
respeito de sua identidade. Além de cópia dos modelos europeus de arte, os artistas se viam
atrasados. Muitos ainda se expressavam com linguagens do passado. E a semana foi
justamente para juntar grandes nomes das artes com novas idéias. Personalidades da
pintura, escultura, poesia e música buscavam um caminho de livre expressão. Porém não
foi fácil. Duras críticas foram feitas ao movimento e nos dias das apresentações os ânimos
se exaltaram um pouco. Vaias, xingamentos, deboches. Tudo muito novo gera medo.
Principalmente o autoconhecimento. Nessa década de 20 vem a público o movimento
antropofágico. Carregado de idéias e pregando uma literatura livre, sem métodos. Era o
amadurecimento de uma nação muito jovem que necessitava de uma certidão de maior
idade.
Palavras-chave: antropofagia; modernismo; arte.
Abstract: The week of modern art changed the direction of arts and Brazilian thought.
Despite not having had great success at the time, influenced a generation to come.
The independent Brazil was already 100 years independent and still could not put down
roots deep about his identity. In addition to copying of European models of art, the artists
saw themselves out of time. Many still expressed in languages of the past. And the week
happened to gather big names in art with new ideas. Personalities of painting, sculpture,
poetry and music were seeking a way to free expression. But it was not easy. Harsh
*
Cláudio Kaz: Formado em História pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Há 8 anos é músico
profissional e hoje leciona inglês na Bit Company. Estudou inglês em Dublin, República da Irlanda.
146
criticism was made to the move and in the days of the presentations the moods exalted a
little. Jeers, insults, slurs. Everything new breeds fear. Mainly self-knowledge. In this
decade of 20 comes out the movement of anthropophagy. Loaded with ideas preaching a
free literature, no methods. It was the maturing of a nation so young that he needed a
certificate of adulthood.
Keywords: Anthropophagy; modern; art.
O século XX começa. Todos os olhos se voltam para o futuro. Para o moderno.
Para o novo. O mundo passa por uma crise de identidade. Tudo era velho, antigo e
ultrapassado. O novo século viria para dar luz à humanidade. Tecnologias estavam
surgindo e se popularizando. Muitos queriam ser novos humanos. Queriam o futuro e para
isso precisavam apagar o passado. Ao mesmo tempo em que surge o Futurismo, surge
também o Primitivismo. O futuro era mostrar que o não mostrado tinha algo de bom. O
antes tachado como feio ou de mau gosto (leia-se “não-europeu”) agora era valorizado e
difundido.
O mundo em crise afetava a todos. Essa crise culminou em guerra alterando
profundamente o panorama social, político, econômico e artístico do mundo. Movimentos
radicais surgem pelo mundo como: Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo, e o
Surrealismo. Todos eles com o propósito de mudar os rumos da arte optando pelo novo e
renegando o antigo. Quebrando paradigmas e mostrando que a arte estava “envelhecida”.
Todos queriam renegar o modelo conservador e acadêmico.
No Brasil não foi diferente. Além de ter sido afetado como todos os outros países,
nossa nação passava por uma crise de identidade. Não sabíamos o que éramos. Que cara
tínhamos. Como eram os Estados brasileiros. Só se via o litoral atlântico que mirava a
Europa. Todos queriam ser Europeus. Todos agiam como tal. Especialmente imitando a
França. Considerada a Meca cultural do mundo.
Com a primeira Grande Guerra, surge uma tendência ao nacionalismo. E com todas
essas novas correntes recém nascidas no mundo o Brasil inicia a vanguarda. Mario de
Andrade já dizia que todos têm direito a pesquisa estética. Segundo a autora Lucia Helena,
“(...) tanto a valorização da linguagem enquanto tema e objeto da própria arte, quanto à
147
insatisfação do criador em face dos procedimentos já sedimentados, e a busca de penetrar
nos domínios do inconsciente.” (HELENA, 1989: p. 06).
Os debates em torno desse tema foram intensos. Muitas críticas duríssimas foram
jogadas contra as pessoas que levantavam a bandeira da livre expressão. Nos anos surge o
Modernismo, conhecida como fase “heróica”, pois suportou todo um conservadorismo
vigente. Em meio a todos esses fatos acontece A Semana de Arte Moderna em 1922.
A semana acontece em fevereiro de 1922 na cidade São Paulo. Conhecido como
umas das maiores produtoras de café do mundo na época chegou a ter mais de 70% de todo
o produto consumido no mundo feito lá. Os moradores de São Paulo viam a prosperidade
econômica surgir em formas de mansões. Grandes avenidas e ruas largas eram feitas para
receberem carros importados. Estrangeiros invadiam o país. Porém, toda essa riqueza
contrastava com o estilo colonial e rural que ainda se imperava. As mudanças eram pouco
absorvidas. Os próprios modernistas diziam que o Brasil era um país “jeca”. O isolamento
cultural também era aparente. São Paulo e Rio de Janeiro foram os grandes centros
nacionais que promoviam intercâmbio com a Europa e assim eram mais visíveis no mundo
das artes. Nesse contraste, o embate se acirra. O Rio de Janeiro era mais pólo artístico que
São Paulo, porém era mais seguidor do sistema acadêmico. São Paulo, por esse motivo era
uma cidade onde era mais fácil se implantar algo novo.
Antes da semana, porém, um longo caminho já tinha sido percorrido pelos
estudantes brasileiros. Muitos deles após voltarem de viagens à Europa traziam novas
tendências e queriam implantá-las aqui. Queriam colocar a arte brasileira em sincronia com
a arte mundial. Colocá-la em patamar de igualdade. Isso não era novo. Juntou-se uma idéia
já em moda para se alinhar a uma nova que todos queriam fazer. Na França se colocava o
homem selvagem como um novo homem a ser seguido. Antes tachado como “sem alma” e
bizarro, os índios e africanos eram tidos como originais. Tinham raiz cultural. Um grande
dilema que se instalava entre os artistas eram a de que se era ou não original. Essa angústia
era recorrente nas correntes artísticas. Tudo se imitava. Nada era novo. O homem selvagem
era visto como um ser sem influências, puro e sem transgressões. O canibal era o cúmulo
do selvagem. Um ser humano que absorvia toda coragem e magia do seu oponente através
de sua carne. A partir dessa tese surgiu-se o Manifesto Antropofágico, onde Oswald de
148
Andrade afirma que temos que “comer” a raiz nacional e “temperá-la” com toques de
cultura dos nossos colonizadores fazendo assim uma cultura nova e original.
Muitos simpatizantes do Modernismo ajudaram financeiramente. Sem o dinheiro
para alugar o Teatro e a divulgação dificilmente eles conseguiriam coroar o evento no
Teatro Municipal.
Foram escolhidos os nomes para as apresentações. As artes plásticas estavam muito
bem representadas. Todos paulistas. Porém, o mesmo não se pode dizer das outras áreas.
O Rio de Janeiro imperava nos famosos nomes. Somente Graça Aranha, carioca, que
incorporou o movimento. Oswald de Andrade, numa roda de chá no meio aristocrático
paulista proferiu discurso e convenceu todos mudarem o rumo da arte no Brasil a partir das
comemorações do Centenário de Independência. A muito se queria fazer um mostra para
trazer as novas idéias que vigoravam na Europa. Porém era preciso de suporte e união entre
classe artística e burguesia. Queriam chocar a sociedade mostrando seus trabalhos
baseados nessas novas tendências. Barões do café dividiram as despesas para com o
movimento e assim dar início aos preparativos.
A semana, então, foi inserida no meio das comemorações do Centenário de
independência do Brasil. Era a “independência artística”. E pretendia estimular os ânimos e
alvoroçar a classe artística brasileira. O lindo e famoso Teatro Municipal foi palco para o
prometido “show de horrores” como dizia Graça Aranha. Na verdade, o choque já tinha
começado logo na entrada quando as pessoas já podiam ver as pinturas. E essas ficaram de
segunda dia 13 até sábado dia 18 de fevereiro de 1922. Nomes como Anita Malfatti faziam
brilhar e surpreender o hall de entrada. O mesmo aconteceu com Di Cavalcanti.
Graça Aranha era ligada a Academia Brasileira de Letras. Muitos se perguntaram
por que ele estava lá fazendo a conferência de abertura. E foi o nome dele que legitimou e
valorizou a semana. Foi uma jogada de mestre colocá-lo lá. E ele, além de simpatizante,
era bem relacionado com as altas esferas sociais. Porém, para Oswald, Paulo Prado foi o
grande nome por trás da Semana de 22. Rico, político, bem relacionado e escritor,
comandava almoços com grandes nomes das artes. Além de se comer bem as reuniões é
que se destacavam. Os debates giravam em torno de qual rumo o Brasil deveria tomar em
relação às artes. Outro que não podemos deixar de citar: Monteiro Lobato. Crítico ferrenho
do modernismo, seus “tiros” em direção ao movimento saiu pela culatra. Somente levou o
149
nome dos modernistas mais longe. Apesar das críticas, Monteiro Lobato foi convidado
para apadrinhar o evento. Porém, recusou e Graça Aranha tomou seu lugar. Muitos dizem
que Lobato não deu o braço a torcer, pois poderia se converter ao modernismo se aceitasse
o convite. Quem sabe. O que se sabe é que Lobato já começara um rompimento na estética
artística brasileira. Produziu textos com mais oralidade brasileira e introduziu figuras do
folclore na literatura. Talvez por ter sido ranzinza, continuou um cavaleiro solitário.
Entretanto, os grandes nomes do movimento foram, sem sombra de dúvida, Mário
de Andrade e Oswald de Andrade. Eles “teriam funcionado como catalisadores de uma
tendência esboçada no cenário pós-guerra. Dotados de personalidades, extração social,
atitude e estilos inversos (...) juntos, dinamizaram e deram vida à constelação que se
formou ao redor deles, e a qual souberam inspirar e fecundar. (CAMARGOS, 2007: p.27).
Mário era pensador. Raciocinava várias vezes sobre o mesmo tema. Não deixava escapar
qualquer detalhe. Inclusive seus próprios pensamentos. Era homem mais sério e centrado.
Oswald, pelo contrário, era o estopim de idéias. Se levava pelas primeiras impressões que
lhe vinham à cabeça. Tinha uma inteligência rápida e um humor ácido. Conseguia
sintetizar tudo. Desses dois opostos criou-se uma amizade conflitante, mas muito saudável
para o movimento.
A aristocracia paulistana toda assistia ao espetáculo. Inclusive Washington Luiz,
que na época era Presidente do Estado (o equivalente a Governador hoje). Empresários
riquíssimos também se encontravam no teatro tentando digerir todas aquelas apresentações
estapafúrdias. Num dos cartazes da Semana se via estampado “Nós temos talento.” Além
das bem humoradas críticas a grandes nomes do mundo das artes com caricaturas e frases
satíricas como: Carlos Gomes é burro! Ou Chopim era tocador de berimbau!
No primeiro dia, Graça Aranha proferiu uma longa introdução. Apesar de o dia ter
sido tranqüilo todos saíram meio confusos. Seu discurso pregava totalidade cósmica,
objetividade dinâmica, o surto do gênio avesso a disciplina no momento da inspiração
tornando livre a criação. Sendo assim, a arte moderna veio como uma aurora que tem no
regionalismo um material vasto, aspirando assim o universal. Por mais estranho que isso
parecesse. Com um texto difícil de entender e indefinido os espectadores se entreolhavam.
No segundo dia, quarta-feira dia 15 de fevereiro, foi o dia da literatura. Menotti Del
Picchia abriu os trabalhos. Ainda tivemos Guilherme de Almeida, Mário de Andrade,
150
Ronald de Carvalho e Oswald de Andrade. Numa tremenda jogada de marketing, apesar de
parecer o contrário, Oswald, conhecido como o mais debochado da turma, incitou
estudantes de Direito a vaiarem e gargalharem. Além de gozações ao imitar animais e
onomatopéias. Sem esquecer também da chuva de hortifrutigranjeiros que voavam no
palco. Ovos, tomates, alfaces etc. além, claro, de palavrões impublicáveis. O motivo era
escandalizar a burguesia paulistana. Super provinciana e chique que só aceitava padrões
estéticos conservadores e etiqueta. Etiqueta e boa educação acima de tudo. Como nos
moldes ainda da realeza. O mais importante era que o festival não passasse em branco. Era
melhor ter um uma gama de pessoas contra do que o marasmo da indiferença. As críticas
geravam discussões. E isso era fundamental.
No terceiro dia, relativa tranqüilidade. Porém, Villa-Lobos se apresenta de maneira,
digamos, um pouco diferente. Num pé sapato e no outro chinelo! Isso foi tido, para muitos
como uma afronta. Eletrizando mais ainda os nervos da platéia. Mais tarde o maestro se
justifica que não se tratava de nenhum ato rebelde. Apenas usara chinelo, pois estava
passando mal devido a uma crise de gota. Já não bastasse o susto na entrada com os
quadros, os presentes “arregalaram os olhos” (e os ouvidos também) quando o maestro
mostrou suas músicas misturadas a instrumentos nordestinos!
Na verdade, a Semana deixou a desejar em alguns aspectos. Deixou de fora nomes
de outros Estados brasileiros. O velho eixo Rio-São Paulo vigorou. Apesar de Mário e
Oswald terem redescoberto o Brasil com suas viagens, muitos artistas brasileiros não
participaram simplesmente porque desconheciam o evento. E até mesmo dos nomes
conhecidos da época, muitos ficaram de fora. Na música, por exemplo, Ernesto Nazareth.
Monteiro Lobato não participou por motivos já explicados. Manuel Bandeira estava
enfermo. Fotografia e Cinema também não tiveram vez. Isso sem falar do teatro e dança. A
impressão que se tem é a de que se fez com o que se tinha em mãos. Ou se tratava de um
grupo fechado e corporativista. Também se tem a teoria do esquecimento. Estavam tão
empolgados com seus próprios trabalhos que se esqueceram de outros nomes.
A Semana foi ignorada pelo grande público, e foi extremamente criticada pelos
jornais e revistas. Além de ter sido alvo de chacota pelos seus próprios organizadores.
Mesmo assim, mudou o rumo das artes no Brasil. Porém não deve ser tratada com um
marco zero das artes no Brasil. Muito de produziu antes e com excelente qualidade. O
151
Modernismo veio para mudar, logicamente a partir do já feito. O multiculturalismo
brasileiro não era conhecido, pois sempre empregava modelos europeus aos seus feitos.
Dificultando assim a expressão de toda sua diversidade.
O movimento também serviu de alerta e denúncia. Era o Brasil mostrando o Brasil
para os brasileiros. Muitos foram os nomes que retratavam o verdadeiro dilema. Fome,
miséria, doenças. Esse era o quadro. Muitas sementes surgiram desses fatos. Inclusive o
nascimento do Partido Comunista. Apesar disso tudo, o povo não participou muito
ativamente, pois achava o movimento “coisa de grã-fino”. Somente com o passar do tempo
é que se popularizou. Muitos artistas queriam que as artes alcançassem as grandes massas.
Com fácil compreensão e que tivesse uma finalidade social. Entretanto isso era um conflito
interno. Ser popular ou experimentar novas receitas estéticas onde os mais instruídos é que
teriam maior compreensão?
Mesmo assim, nas letras, a coragem de fazer com que os intelectuais aceitassem
poemas como “Os Sapos” de Manuel Bandeira era de grande valia. Falava-se de coisas
comuns ao dia a dia. Coisas modernas e usuais. Era possível o quanto tropical o país é.
Aceitava-se a cultura tida como bárbara pelos colonizadores e que continuavam sendo
pelos europeus. Mas, por um lado, ninguém também sabia ao certo se era moderno. Era
também uma fase de experimentação. Não se sentiam uma corrente forte. Era como se cada
participante tende-se para um lado. A base era a mesmo, mas alguns ainda puxavam mais
para o lado futurista, outros dadaísta, etc. Outros continuavam nas altas rodas da sociedade.
Talvez possamos dizer que os jovens sabiam o que não queriam, mas não o que queriam.
Queriam abraçar o mundo e acabavam entrando em contradições ao abraçar bandeiras que
no fundo eram conservadores e elitistas. Formando, assim, blocos dentro do movimento.
Logo após a Semana de Arte Moderna, seus membros saíram do anonimato.
Tiveram mais responsabilidade. A fase de negação do passado já não bastava. Agora o
próximo passo era erguer um estandarte com a cultura brasileira. Várias revistas foram
criadas para que isso se tornasse possível. Os modernistas começaram viagens pelo Brasil
para “redescobri-lo”.
Apesar da ambigüidade, o movimento alcançou lucidez com a antropofagia. Além
do Movimento Antropofágico, surgiram também Movimento Pau-Brasil, que apresentava
uma posição primitivista, buscando uma poesia ingênua, de redescoberta do mundo e do
152
Brasil e que foi inspirada nos movimentos de vanguarda europeus, devido às viagens que
Oswald fazia à Europa e Movimento Verde e Amarelo e o Grupo do Anta. Nesse último
destacavam-se os textos patrióticos e ufanistas com uma idealização do país.
O movimento encontrou muita força nas revistas Klaxon e Revista de Antropofagia.
A primeira circulou por quase 1 ano. Interessante destacar que a palavra Klaxon é usada
para designar a buzina externa dos automóveis. Já na segunda revista destacam a frase
irônica de Oswald de Andrade sob o pseudônimo de Freuderico: “Não fazemos crítica
literária. Intriga, sim!”. Outra interessante frase feita pelos organizadores foi: “A revista de
antropofagia não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago.”
Com essas demonstração de bom humor que podemos ter uma boa idéia do que eram esses
periódicos.
O Modernismo assimilava e não copiava modelos estrangeiros. O mais importante
era olhar para dentro e ser capaz de se conhecer. Inclusive fazer paródias, tirar sarro e
poder rir de si mesmo. Mas, nunca se anular.
São inúmeros os nomes de hoje que se basearam no movimento. O próprio
Tropicalismo fundado por Caetano Veloso e Gilberto Gil era bem fundamentado no
movimento antropofágico. Como dizia Gilberto Gil queríamos juntar Orquestra de Pífanos
de Caruaru com Jefferson Airplane. Tom Jobim já dizia que seu mestre maior era VillaLobos. Paulo Leminski tem “pedaços” de modernistas em sua obra. O próprio Chacrinha
tinha o colorido e a esculhambação características dos que vieram para confundir e não
para explicar. Reparem na música de Tom Zé que se chama Tô:
Tô
(Tom Zé)
Tô bem de baixo prá poder subir
Tô bem de cima prá poder cair
Tô dividindo prá poder sobrar
Desperdiçando prá poder faltar
Devagarinho prá poder caber
Bem de leve prá não perdoar
Tô estudando prá saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar
Eu tô te explicando
Prá te confundir
Eu tô te confundindo
Prá te esclarecer
Tô iluminado
153
Prá poder cegar
Tô ficando cego
Prá poder guiar
Suavemente prá poder rasgar
Olho fechado prá te ver melhor
Com alegria prá poder chorar
Desesperado prá ter paciência
Carinhoso prá poder ferir
Lentamente prá não atrasar
Atrás da vida prá poder morrer
Eu tô me despedindo prá poder voltar
Temos inúmeros trabalhos que podemos citar aqui. Todos visivelmente absorvidos
do modernismo.
A verdadeira questão era como dizia Oswald de Andrade: Tupi or not Tupi.
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154
Educação do Campo: namoro, disciplina, liberdade e gestão escolar.
Jairo Barduni Filho∗
France Maria Contijo Coelho∗∗
Resumo: Por meio de uma pesquisa de mestrado realizada em uma Escola Família
Agrícola (EFA-PURIS) localizada na Zona da Mata de Minas Gerais, problematizou-se os
temas afetividade e sexualidade. Para tanto foram realizados levantamentos de dados junto
a estudantes, pais, monitores e direção da EFA. Aqui se pretende apresentar os significados
de tais temas identificados junto aos pais. O trabalho parte da premissa de que, os
conteúdos educativos a serem trabalhados pelos monitores na Escola extrapolam a
formalidade programática. Ao receber jovens em moradia intensiva durante quinze dias, os
monitores tornam-se responsáveis pelos educandos. Mesmo que nos outros quinze dias
esses estudantes retornem para suas casas, para o convívio com sua família, nessa
mudança, tempo casa e tempo escola, dinâmicas da vida são alternadas, valores distintos
podem ser vivenciados e a tão esperada complementaridade casa-escola pode ser rompida
ou alicerçada. Neste artigo serão apresentados os significados e valores tangentes à
percepção dos pais dos educandos(as) a respeito dos relacionamentos nos quais seus filhos
se vêem envolvidos, durante a permanência quinzenal na EFA-Puris ou fora desse período
e suas implicações para a gestão escolar.
Palavras-Chave: Pedagogia da alternância; Liberdade; Afetividades; Sexualidades.
Abstract: Through a marketing research conducted in a Rural Agricultural Family School
(RAFS-PURIS) located in Zona da Mata, Minas Gerais State, it was problematized issues
regarding affectivity and sexuality. Surveys were conducted with students, parents,
monitors and directors of RAFS. The purpose of this study was to present the meanings of
such issues, as identified with parents. A general accepted premise in this study is that
educative contents used by the monitors extrapolate the programmatic formality.
∗
Mestrando em Extensão Rural - Universidade Federal de Viçosa: UFV/MG. E-mail:
[email protected]
∗∗
Professora Associada do Departamento de Extensão Rural – Universidade Federal de Viçosa: UFV/MG. Email: [email protected]
155
Considering that young people are kept in intensive housing during 15 days, monitors
became responsible for the students. Even though the next 15 days these students returned
to their homes to be in touch with their families, in this change, time household and time
school, life dynamics were altered, distinct values could be experienced and the soexpected complementarity household-school might be disrupted or built on.This paper
deals with the meanings and tangent values to the perception of parents of students
regarding the relationships in which their children find themselves involved during their
stay in the EFA-PURIS or out of this period as well as their implications for school
management.
Keywords: Pedagogy of the crop rotation; Freedom; Affections; Sexualidades.
Introdução
O presente artigo surgiu como resultados de pesquisa de mestrado intitulada
Namoro, disciplina e liberdade: problematizando afetividades e sexualidades em uma
escola família agrícola. A escola na qual o estudo foi realizado é a Escola Família
Agrícola Puris (EFA-Puris) localizada no município de Araponga-MG e funciona sob
regime de alternância (tempo casa e tempo escola). Ela foi criada em 2008 e surgiu da
articulação dos pais desejosos de uma educação diferenciada para seus filhos. Ao valorizar
a vida na “roça” e a Agroecologia como seu fundamento científico, como um modo de
produção que respeita a vida e a natureza, os pais esperam que nessa escola seus filhos
desenvolvam uma perspectiva de vida digna no campo.40
Neste artigo serão apresentados os significados e valores tangentes à percepção dos
pais dos educandos(as) a respeito dos relacionamentos nos quais seus filhos se vêem
envolvidos, durante a permanência quinzenal na EFA-Puris ou fora desse período.
Na proposta pedagógica desta Escola, o conhecimento válido é aquele que liga
escola e família. Assim, o educando(a) busca na família os problemas a serem discutidos
na Escola, da mesma forma que o conhecimento obtido na escola deve ser, assim, aplicado
na propriedade familiar. Nesse processo são incorporadas noções de Agroecologia,
40
Sobre a história da constituição da EFA-PURIS ver FERRARI Clara (Territórios e Educação do Campo
nas Serras do Brigadeiro. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Viçosa.
Viçosa – MG: UFV, 2010. 132f.
156
Homeopatia, Zootecnia, Mecânica, Turismo Rural, Administração Rural entre outras
disciplinas, que completam o currículo formal de um ensino médio e do técnico em
agropecuária. Na época da pesquisa, a escola contava com uma diretora, uma coordenação
pedagógica, uma secretária administrativa e 12 monitores (docentes) e 56 estudantes.
Como a Pedagogia da Alternância prevê um período quinzenal no qual os
adolescentes permanecem na escola, morando em alojamentos anexos (femininos e
masculinos), nesse tempo escola eles tornam-se colaboradores da gestão escolar desde a
manutenção até nas tomadas de decisão sobre condutas e processos de aprendizagens. Essa
condição de funcionamento compartilhado implica em responsabilidades, que inclusive é
um dos pontos destacados na Pedagogia da Alternância.
Porém, o fato de receber um público cuja faixa etária é entre 14 aos 24 anos, a
Escola lida com um momento da vida desses indivíduos no qual são muito significativas
para sua identidade as mudanças na estrutura corporal e afetiva e a formação que recebem
tanto de valores quanto de conhecimentos.
Nesses contatos intensos, fica evidente a importância das temáticas sexualidades e
afetividades. Contudo, na pesquisa de campo na Escola, os temas foram associados
diretamente com as expressões disciplina, namoro e liberdade. A análise dos termos
disciplina, liberdade e namoro na formação dos estudantes requereu uma revisão teórica na
medida em que essas são, naquele contexto, expressões nativas de compreensão e
problematização dos temas sexualidades e afetividades.
A escola possui regras e normas que visam garantir, concomitantemente aos
processos educativos, um controle das condutas dos estudantes. Na EFA-Puris algumas
regras buscam evitar namoros dentro de seu espaço. Tais regras e normas foram
construídas no início da escola – em 2008 - em parceria com os pais. Na ocasião, houve,
também, participação dos educandos(as). Essa versão democrática de constituição das
normas, contudo, não garantiu a superação dos desafios de como lidar com os limites, no
cotidiano, junto a novos estudantes que chegam. Além disso, são intensas as mudanças
pelas quais eles passam e sempre surgem novas influências, novos contextos familiares,
novas formas de resistências e de transgressões. Daí porque a todo ano essas regras são
revistas para adequações que se fizerem necessárias.
157
Como se sabe, a chamada fase da adolescência é uma fase do desenvolvimento
humano marcada por intensas alterações fisiológicas. Num regime de moradia comunitária
(internato) por quinze dias, esses processos de mudança deixam evidente como as
transformações biológicas (ou de natureza fisiológica) se dão em meio às resignificações
de valores e de referências morais.
A sexualidade e a afetividade revelam uma dimensão humana que funde aspectos
bio-psíquicos e sócio-culturais das condutas humanas. Por isso, mesmo que, de início, os
temas possam ser considerados dimensões do indizível diante dos temas (discursos) mais
comuns que tratam das interações e relações sociais no campo, eles devem ser
considerados legítimos problemas de indagação sobre o mundo rural. Isso porque, no caso
desta pesquisa, a dinâmica escolar e a educação que ela pretende para o campo têm exigido
um esforço interpretativo dos problemas enfrentados no cotidiano dos indivíduos que
compõem uma escola cuja proposta pedagógica é não convencional.
Disciplina e liberdade
No século XVIII, ao discutir sobre pedagogia, Kant destaca o conceito de
“autonomia moral”, posto quando ele tratava do tema iluminista da dignidade humana. Em
sua obra já era possível ler sobre a importância da disciplina e da ética. Para ele, a
educação abrange cuidados e formação e ela é negativa, ou seja, disciplinar, pois “impede
defeitos”, e é positiva, quando promove “instrução e direcionamento” e por isso pertence à
cultura. (KANT, 1996). Fala ainda que direcionamento é “a condução na prática daquilo
que foi ensinado”. Ele já admitia que a educação se fizesse por fases e analisando
constrangimentos e liberdades, diz:
O primeiro período para o educando é aquele em que deve mostrar sujeição e
obediência passivamente; o segundo é aquele em que lhe é permitido usar a sua
reflexão e a sua liberdade, desde de que submeta uma a outra a certas regras. No
primeiro período, o constrangimento é mecânico; no segundo, é moral. (p.31)
Assim, a sujeição (constrangimento) do educando, para Kant, é considerada positiva
quando ele “deve fazer aquilo que lhe é mandado” por não poder “julgar por si mesmo” e
por isso é capaz apenas de “imitar. Já a sujeição negativa se dá quando o educando “deve
158
fazer quilo que os outros desejam, se quer que eles, por sua vez, façam algo que lhe seja
agradável.” Mas maior diferença dessas duas sujeições é posta em seus resultados, ou seja,
é uma séria questão ética. Na primeira, o “sujeito pode ser punido”, na segunda “não
conseguir o que deseja”, mesmo que já possa refletir, não fica menos dependente que o
primeiro. Por isso, o problema maior da educação para Kant, é o de “poder conciliar a
submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade”. Para ele “o
constrangimento é necessário!”. Contudo, ele questionava “de que modo cultivar a
liberdade?” Para isso a educação deveria pautar-se na reflexão e habilidade de ver o outro
na definição do uso da própria liberdade, que seria a condição não mecânica da autonomia
moral:
É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao
constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua
liberdade. Sem essa condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem,
terminada sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele sinta
logo a inevitável resistência da sociedade para que aprenda a conhecer o quanto é
difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário
para tornar-se independente. (p.34)
Assim, a disciplina aparece como sustentáculo fundamental no processo de
humanização do homem, tanto que, para ele: “A falta de disciplina é um mal pior que a
falta de cultura” (Kant, 1996:16). Essa importância dada à disciplina pode ser notada em
seu discurso, bem como sua visão “aristocrática” iluminista, de que haveria uma cultura a
ser almejada por todos da sociedade.
Já Grunspun (1983), no século XX, ao discutir disciplina traz outros elementos para
análise da disciplina. Ele diz, também, que a ética faz parte da vida de adolescentes. As
preocupações sobre o que é correto são próprias dessa fase. A compreensão de conceitos
éticos é constituinte da disciplina nesta fase e facilita a relação geracional. Contudo, de
acordo com o autor, muitas vezes, quando os jovens se sentem sem argumentos, o uso da
razão do outro pode desencadear respostas agressivas. Para pais e educadores esse
processo pode parecer algo incompreensível, contudo, se bem conduzido, acaba sendo
benéfico aos adolescentes, pois, ajuda-o a se impor melhor em seu grupo social.
Se bem aplicada a razão, o adolescente tenderá a aceitar melhor a disciplina,
mas sempre com características diferentes da criança, com a filosofia de vida
159
própria de sua idade. O importante é que a disciplina adquirida na infância é a
autodisciplina da adolescência (GRUNSPUN, 1983: p.61)
A disciplina na sua forma coercitiva (de expiação, de vigiar e punir) é posta em
razão da necessidade de controle. Historicamente tem-se que a arquitetônica panóptica,
desde nível micro quanto do macro, como diria Foucault (1979), marca as heranças
culturais (valores) no ocidente. Nos discursos incorporados pelas práticas educacionais
diárias, muitas vezes impera mais a coerção que a construção intersubjetiva de regras e
acordos de responsabilidades voltadas para autonomia.
No que diz respeito à disciplina escolar, enquanto prática educativa, Freire
(2009) aponta a necessidade de se lidar com a autoridade-liberdade de uma forma
educativa-crítica. De acordo com o autor: “Somente nas práticas em que autoridade e
liberdade se afirmam e se preservam enquanto elas mesmas, portanto no respeito mútuo, é
que se pode falar de práticas disciplinares como também em práticas favoráveis à vocação
para o ser mais” (p.89) autônomo. Nesse processo cria-se o espaço de vigilância, que quer
dizer um espaço analítico que tem por função:
(...) estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os
indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada
instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as
qualidades ou os méritos. Procedimentos, portanto, para conhecer, dominar e
utilizar (FOUCAULT, 2007: 123).
A questão do controle coloca-se, assim, como ponto chave dentro de espaços
disciplinares de formação, como seriam as escolas, hospícios e prisões, pois:
Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas
individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as
especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras.
Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema
de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele
introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação
das diferenças individuais. (FOUCAULT, 2007: 154).
Assim, percebe-se que a discussão sobre disciplina implica, necessariamente, falar
da liberdade. Como disse Grunspun (1983), a liberdade se define como a “faculdade ou a
capacidade que o indivíduo tem de fazer ou não algo” (p.21). Ainda de acordo com
160
Grunspun (1983) existem dois tipos de liberdade: liberdade como sentimento, o que
corresponde à satisfação das necessidades profundas do sujeito, e liberdades como
satisfação dos desejos momentâneos que, muitas vezes, não são sequer necessários.
Assim, o autor destaca, ao final, que: “A compreensão dos pais, no que se refere à
liberdade do filho, seu apoio no isolamento através da autoridade e a aceitação dos atos de
liberdade facilitarão o crescimento do EU e permitirão o desenvolvimento da real
liberdade, com suas conseqüências: iniciativa e responsabilidade” (p.26).
A fala dos pais
O jovem, nas EFAs é imbuído de responsabilidades. Isso porque, como explicou
Canales (apud MARIRRODRIGA e CALVÓ, 2010), dele se espera o retorno no cuidado
com a propriedade dos pais. Entretanto, para que não se massifique a formação de um
sujeito alienado, a proposta de uma pedagogia de alternância entende que é preciso que ele
seja criativo e autônomo. Assim:
(...) realmente a EFA não é uma Escola, senão uma mini sociedade escolar de um
grupo de alunos em convivência didática com uma equipe de animação (...) E,
como em toda sociedade livre, se aprende a ser responsável através do exercício
autônomo da própria criatividade (...). Uma estrutura deste tipo requer uma
forma própria de personalização do aluno para evitar o possível perigo de
massificações, e o fantasma da passividade social, produto da ignorância. (p. 91)
Nesse contraponto, responsabilidade /imitação e criação/algo novo, poder-se-ia
indagar que tipo de disciplina é possível nesse espaço escolar e de que forma ela se reflete
em casa. Ou o inverso, que tipo é a disciplina é praticada em casa e como ela se reflete na
escola. Por isso, até que ponto a alternância influi nas estratégias disciplinares, em casa e
na escola. O impasse entre liberdade e limitações das regras acaba se tornando tênue ou é
reafirmado, mas sempre é um aspecto de grande importância.
Além de observar e registrar a dinâmica escolar, durante a pesquisa que deu origem
a esse artigo, foram realizadas dezenove entrevistas semi-estruturadas com pais ou
responsáveis pelos alunos da escola (de um total de 51 famílias). Por meio de visitas as
suas residências e utilizando um pequeno roteiro de seis questões, buscou-se evidenciar
quais seriam as concepções dos pais acerca dos temas namoro, disciplina e liberdade.
161
Nos discursos dos pais, assim coletados, ficaram evidentes valores que eles têm a
pretensão de marcar a formação dos filhos e o tipo de relacionamento ou interação com
eles. Essa presença dos pais na formação dos valores nos filhos revelou forte interligação
entre disciplina e responsabilidade, como se poderá ver na análise que segue.
As primeiras questões do roteiro foram “O filho(a) já namora?”, Se sim, “o que o(a)
senhor(a) acha do namoro dele(a)?”. Assim, 47,36 % dos pais confirmaram os namoros dos
filhos. Contudo, chamou atenção falas do tipo “que eu saiba não” (pai), que revelam certa
consciência de que nesse assunto é comum haver desinformação por parte dos pais ou até
transgressões. De maneira geral ficou claro que esses namoros provocam certo “incômodo”
entre os pais, tanto entre aqueles que, com segurança, afirmaram que os filhos já
namoravam, quanto entre os que pais negaram os namoros. Todos sabiam, contudo, que
seus filhos estavam numa fase “natural” de começar seus namoros, mesmo entre os pais
que manifestaram certo desconforto em falar do assunto.
Nas falas dos pais, aspectos de gênero ficaram evidentes também. Tudo indica que,
para o grupo haveria certa “natureza” mais dócil entre as meninas, pois elas seriam mais
“responsáveis” e uma natureza mais indomável/viril por parte dos garotos por eles serem
mais irresponsáveis. Essa dicotomia de gênero associa menina como um tipo diferente de
racionalidade, pois elas seriam mais “cabeças” que os meninos, como se pode ler nos
depoimentos que seguem:
-Pra te ser sincero as meninas são bem cabeças e não namoram! (Mãe)
-O único que me deu dor de cabeça foi o menino. (Mãe)
Se para os meninos o “ficar ciscando” é o mais comum, para as garotas “ficar
“ciscando” é uma postura rejeitada pela família. Tanto assim que, num dos depoimentos,
foi manifestado um “Graças a Deus” quando as chamadas garotas “fáceis” se afastaram de
um determinado jovem, pois esse tipo garotas “fáceis não prestavam para namorar”.
-Ele fica lá “ciscando”, mais namorada firme não tem não. (Avó)
-Ahh sempre ele tá namorando. As meninas não dão sossego, graças a Deus, ele
largou uma menina que não largava do pé dele, agora ele fica com uma ou outra.
(Tia)
162
A questão do namoro para esses pais foi correlacionada com o “estudo”. Tudo
indica que eles preocupam-se com os namoros em suas conseqüências, pois eles podem
trazer limitações para sua continuidade:
-Tem de terminar o estudo para namorar. (Avó)
-Estudo e namoro nem para moço nem para moça dão certo.
(Avó)
-Eu infelizmente, de namorar eu não acho ruim. Primeiro tem de estudar e depois
namorar. Por que atrapalha os estudos mesmo. Não tenho nada contra, mas tem
de ter tempo.(Mãe)
-Porque ela tá estudando, ela é nova tem quatorze anos, ela está tendo muita
oportunidade que a gente não teve. Eu falo de vez em quando: estudar primeiro e
depois pensar em namoro.
Nesse último depoimento é interessante observar fato dos jovens estarem tendo
oportunidades que os pais não tiveram. Ou seja, pode ser que o acesso a uma escola, nos
moldes da EFA, coloca os pais diante de situações nas quais eles nunca viveram e daí o
desconforto ou a insegurança na orientação das condutas dos filhos. Assim, pode ser que
seus discursos, nos filhos, venham a cair no vazio por não corresponderem às vivências
escolares.
Assim, novas condutas e novos espaços de interação estão sendo postos para pais e
filhos e é comum o estranhamento, principalmente em se tratando de uma escola não
convencional. Mesmo que eles demonstrem interesse no acompanhamento do
funcionamento da Escola, em razão da distância de sua moradia, alguns se vêem limitados
nesta participação. Por isso, tudo indica que, o que lhes resta é depositar nos agentes da
Escola a confiança na boa condução da educação dos filhos que lá acontece.
-Tudo de mais já vai gerar alguma coisa, se os monitores observam algo a mais
irão nos contar, então neste sentido fica a cargo dos funcionários. É claro abraço
e beijo não tem problema.(...) Na brincadeira e cumprimento! (Pai)
-Eu acho que não é certo não de namorar dentro da escola. (Mãe)
-(...) é igual ao caso dela, aconteceu na escola, eu achei certo... eles avisaram.
Nós conversamos bastante e ela refletiu de não continuar a namorar. Ela tinha
quebrado a regra e nós compareceu lá na escola. É igual lá, tá sendo bom. Se
fosse na escola daqui (perto da casa da família), que não tem regra, no próprio
ônibus [leva os estudantes para a escola] e mesmo que tivesse regras, eles não
iriam cumprir.
-Um dos primeiros passos, a partir do momento que ver, ou desconfiar, é chamar
os jovens para conversar e resolver. Caso não resolva é conversar com os pais de
ambos os lados. Uma vez que na assembléia já foi acordado, então para uma
escola que tá começando e busca uma formação diferente, não pode correr o
163
risco que ocorra algo mais grave. Como a própria escola diz: é família agrícola,
você tem liberdade até certo ponto, para que tenha o diálogo. Esse é o acordo
para que você tenha essa formação para a vida né! (Pai e Tio)
Assim, mais que conteúdo dos currículos programáticos, esta escola da vida
permite vivências políticas de como acordar regras e efetivá-las. Um exemplo disciplinar
ligado à questão do namoro e da liberdade pode ser citado como emblemático. Um dos
estudantes veio transferido de outra EFA em razão de um relacionamento com uma jovem
nas dependências da escola.
-Você sabe da história que aconteceu com ele, não sabe?(...) ele teve problema
na outra Efa que ele estudou, justamente por causa de namoro.(...)por isso ele foi
para Araponga. Na época ele sabia da norma da escola. Ele extrapolou, e
estávamos de acordo com a escola. Numa escola com internato tem de ter regras
e disciplina. Ele fez o oitavo ano em Sem Peixe e depois foi para Acaiaca e só
depois para Araponga. (...) Ela [a moça] era de família pobre, e tinha vários
problemas na família. Daí sabe como é que é, primeiro rapaz inocente .... Pra te
ser sincero, eu acho isso um beco sem saída. O papel é coordenar e não fazer
aquilo sério [expulsar o aluno] porque, como é que eu falo ..... Não há respeito.
Então, eu acho que tem de chamar os pais, porque no caso do FULANO, a escola
estava certa. Tem de achar argumentos para mostrar para os dois que não é
à hora. (Mãe)
Por isso, quando se indagou “O que a senhor(a)acha do namoro deles?” foi possível
perceber grande preocupação em relação aos filhos(as). É idéia geral que o namoro tem
“seu tempo certo” e que o ideal é encontrar um parceiro responsável.
-Eu acho de acordo, o rapaz é bom e responsável. (Mãe)
-Ah! A gente acha hoje meio escandaloso, não é dos pior, mas o namoro de hoje
... Eu, assim, com a minha ... Eu não gostaria que fosse de qualquer maneira.
Mas...os mais novos não pensam assim. (Avó)
-Se tiver namorando na boa? (Pai) - A gente não apóia escândalo de moça nem
rapaz! Mas.. Hoje tá difícil né? Muita liberdade. (Mãe)
Muitos pais, contudo postaram-se contra namorar e estudar, ao mesmo tempo,
tendo em vista que o estudo para eles se torna fundamental como projeto de vida para seus
filhos (as). As transgressões são confirmadas e condenadas:
-Os alunos estão indo para lá não é para namorar Se for para namorar tem de ser
na minha presença e consentimento. Já é muita responsabilidade monitorar o
aprendizado deles lá, eu não quero que monitor fique monitorando namoro da
minha filha lá! (Mãe)
164
De maneira geral, mesmo podendo observar maior ou menos abertura dos pais para
com os namoros dos filhos todos concordam que os comportamentos afetivos, socialmente
sancionados são uma garantia de futuro para seus filhos(as).
Aos monitores é também atribuída muita responsabilidade e deles esperam ações
enérgicas na formação de seus filhos, principalmente porque eles ficam longe de casa:
-Vocês sendo professores deveriam corrigir, nem que seja tirando uma hora para
isso. Vocês mesmo têm de conversar com eles, eles conversarem tem nada haver,
mas com falta de respeito não!(Mãe)
-Eu acho que os monitores tem de agir certo, e agir na hora certa!
-Eu acho que quanto mais bravo o monitor é melhor mesmo. E eu até apoio o
coro! (Mãe)
A preocupação diferencial entre filhos e filhas, esta última sendo mais visada por ser
mulher e por isso requer um maior cuidado por parte dos pais. Como Nolasco (1993)
também viu em sua pesquisa, o recato das filhas é um divisor de águas e uma forma
estruturante da dinâmica social que se vê reproduzida nas famílias pesquisadas e nos
desafios postos à educação que acontece na Escola.
-O que a gente sempre fala, não é preocupar com o filho, mais com a filha o
“ouro da vista da gente”. A gente, como homem, tem esse pensamento machista,
não é fulano [monitor] você tem a Fulaninha [filha] lá, que já é uma mocinha.
Você sabe como é que é. A gente sempre fala de ter de respeitar a filha dos
outros. (Pai)
-Se acontecer alguma coisa, não vai ser por falta de diálogo. (Mãe)
Considerações finais
Neste artigo ficam evidentes não penas valores, mas condutas e sanções. Entre o
diálogo e o castigo (coro), entre o machismo e a solidariedade, a submissão e o respeito à
dignidade humana, a confiança e a responsabilidade são delimitadas as possibilidades de
uma formação não convencional. Contudo, os temas afetividade e sexualidade só
adquiriram sentido nos discursos dos pais quando traduzidos como problemas de namoro,
disciplina e controle das liberdades.
165
Também foi possível perceber que os temas não são tratados de forma diferente
pelos pais dos estudantes da EFA, se comparados a outros estudos sobre sexualidade e
afetividade em famílias de jovens urbanos. Tanto no espaço rural, quanto no urbano, para
os pais, os temas não estão isentos de conflitos, de angústias e de dúvidas, pois eles
implicam e definem os projetos de vida futura de seus filhos, mais que o estudo em si.
No caso estudado, percebe-se, contudo, diferenças na formação e nas vivências
viabilizadas pela EFA, pois as ações educativas também têm seu sentido estratégico e
instrumental, pois são voltadas para valores de uma vida digna no campo. Essa pretensão
de uma nova educação conectada a esses objetivos exige constante reflexão crítica sobre as
convenções e as alternativas possíveis. Assim, sempre se questionam sobre as regras que
educam e libertam e as que impedem a formação de indivíduos autônomos e felizes.
Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autônomia: saberes necessários a prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2009.
FOUCAULT Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007.
288p.
__________ Michel. Microfísica do Poder. Tradução e organização: Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GARCIA, Marirrodriga Roberto, CALVÓ Puig Pedro. Formação em alternância e
desenvolvimento local: o movimento educativo dos CEFFA no mundo. Belo Horizonte: O
lutador, 2010 (AIDEFA).
GRUNSPUN Haim. Autoridade dos pais e educação da liberdade. São Paulo:
Almed,1983.
KANT, Imannuel. Sobre a pedagogia. Tradução: Francisco Cock Fontanella. Piracicaba.
Editora Unimep, 1996.
NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
166
Filosofia e Religião
Delio Cantimori e suas Diferentes Abordagens dos Reformadores e Hereges do
Cinquecento: de heróis nacionais à manifestação de resistência espiritual.
Felipe Araújo Xavier•
Resumo: Neste texto, procuro trabalhar a trajetória de Delio Cantimori e suas abordagens
sobre os intelectuais reformadores e os hereges italianos do Cinquecento, levantando suas
primeiras interpretações filosófico-idealistas, que faziam dos intelectuais renascentistas e
reformadores representantes do surgimento da consciência nacional, à sua guinada para as
abordagens da História da Cultura, onde trabalhou uma análise microscópica do universo
de indivíduos e grupos heréticos do século XVI, nas suas condições de perseguidos e
marginalizados.
Palavras-chave: Delio Cantimori; Idealismo; História da Cultura; análise microscópica.
Abstract: In this text, I seek to work the trajectory of Delio Cantimori and his approches
about the reformers intelectuais and italian heretics of Cinquecento, raising his frist
filosofical-idealist interpretations, that made the intelectual renaissants and reformers
representatives of arising of the national conscience, antil his change to the approaches of
History of Culture, where he worked a microscopic analyses of the universe of heretic
individuals and grups of the Sixtheenth Century, in their condition of persecuted e
excluded.
Keywords: Delio Cantimori; Idealism; History of Culture; microscopic analysis.
Para um pesquisador brasileiro que principia nos estudos sobre a trajetória de Delio
Cantimori, apresentá-lo à historiografia tem seu grau de dificuldade. Apesar do impacto de
suas obras nas cátedras européias, dentro da historiografia brasileira, seus trabalhos sofrem
•
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora na linha
das “Narrativas, Imagens e Sociabilidades”.
167
com as barreiras idiomáticas que ajudam a mantê-las ocultas, já que nenhuma delas
traduzidas para o português.
Tudo indica que este célebre estudioso desconhecido para a historiografia da língua
portuguesa se apresentou aos historiadores brasileiros nas palavras de Carlo Ginzburg, que,
em entrevista ao jornal A Folha, o elegeu como o professor que o influenciou na escolha
pela sua formação como historiador ao participar de um “seminário Slow Reading” regido
por Cantimori em Pisa, onde trabalhou a obra Considerações sobre a História de Jacob
Burckhardt em diversas traduções, tendo lido 12 linhas meticulosamente em uma semana.
Em parte da caminhada profissional desses estudiosos, os temas de interesse se
convergiram. Ambos deram atenção à cultura dos grupos subalternos que eram alvos de
perseguições inquisitoriais, devido suas práticas espirituais heréticas radicais no período da
formação da Europa Moderna.
Em seus trabalhos sobre os hereges, Cantimori se preocupou em abordar a
formação da Europa Moderna subterrânea, onde se encontrava o povo: sapateiros, tecelões,
artesãos, mercadores, apostatas, mulheres com suas crenças radicais em contato com o
pensamento da alta cultura dos intelectuais. (PROSPERI pág. XIII) Assim como seu
professor, Ginzburg (1987. p: 12-22) se debruçou sobre os estudos das trajetórias de
grupos ou atores marginais, levando em concepção a leitura “circular” dos seus contatos
culturais, para constituir um método de entendimento das interações entre as culturas do
povo e erudita em constantes e recíprocas interferências.
Sobre esta temática, Delio Cantimori escreveu artigos como Il caso del Boscoli e la
vita del Rinascimento, Bernardino Ochino, uomo del Rinascimento e reformatore,
publicado em 1929, sua Tesi de Láurea Ulrico von Hutten e i Ripporti tra Rinascimento e
Riforma, redigida, em 1928, e publicada em 1930, e seu trabalho de maior fôlego Eretici
italiani del Cinquecento, lançado em 1939. Seus curso do ano de 1959, foram editados
dando configuração ao livro Prospettive di storia ereticale italiana del cinquecento e,
através da compilação de artigos, surgiu sua obra póstuma Umanesimo e religione nel
Rinascimento.
Dialogando com os temas trabalhados por Cantimori, em 1966, ano da morte de seu
professor, Carlo Ginzburg veio a publicar, I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra
Cinquecento e Seicento, quatro anos depois, Il nicodemismo. Simulazione e dissimulazione
168
religiosa nell’Europa del ‘500 (1970), em 1976, Il formaggoi e i vermi. Il cosmo di um
mugnaio de’500 e, em 1989, Storia Notturna.una decifrazione del sabba.
Portanto, vemos que ambos têm temas e abordagens muito próximas. O que chama
atenção desses estudiosos é o universo paralelo, obscuro e oculto dos hereges, que em suas
práticas espirituais, na maioria das vezes, deixavam apenas traços a serem decifrados em
seus textos.
Nem sempre produtores das suas próprias pistas históricas, os códigos culturais
desses hereges chegaram até estes historiadores através dos documentos embotados com os
olhares dos inquisidores. Textos estes que deveriam ser lidos e analisados na profundeza de
sua complexidade para poderem ser decodificados.
Por este motivo Cantimori (1992: p. XIV) já afirmava:
O mundo subterrâneo dos anabalistas, dos espiritualistas, das seitas religiosas,
dos grupos que no meio do Renascimento renovavam o primitivo comunismo
cristão... A vida deste mundo subterrâneo não pode de maneira geral vir a ser
estudada que por indícios.
Portanto, sumariamente apresentado através do diálogo e similaridades constituídas
com seu aluno Carlo Ginzburg, parto para um aprofundamento em relação à trajetória de
Cantimori e suas abordagens sobre os atores e grupos heréticos do Cinquecento. Desta
maneira, busco levantar suas primeiras interpretações filosófico-idealistas que faziam dos
intelectuais renascentistas e reformadoras representantes do surgimento da consciência
nacional à sua guinada para as abordagens da História da Cultura, onde trabalhou uma
análise microscópica do universo de indivíduos e grupos heréticos do século XVI, nas suas
condições de perseguidos e marginalizados.
Cantimori e a Europa Subterrânea: do idealismo à concretude histórica.
As abordagens de Delio Cantimori sobre o universo humanista e herético na
formação da Europa Moderna têm uma vital ligação com a sua trajetória de vida. Nascido
num ambiente familiar político, o italiano cresceu em constantes contatos com reflexões
sobre o Risorgimento e os ideais políticos mazzinianos de construção de uma nação
italiana “una, independente, libera e repubbliacana”.
169
Seu pai Carlo Cantimori se graduou na Facoltà di Lettere e Filosofia da Università
di Pisa, foi dirigente local do Partido Republicano Italiano, estudioso do Risorgimento,
defensor dos ideais mazzinianos e um dos principais críticos da monarquia
italiana.(PERTICI 1997) Delio ainda jovem acompanhou os ideais políticos paternos, mas
sem tardar, em 1926, se inscreveu no Partido Fascista Nacional, aderindo ao discurso do
projeto fascista como a única via para a verdadeira consolidação do Risorgimento Italiano.
Mas antes disto, seguindo os passos de seu pai, Cantimori se enveredou pelos
estudos clássicos iniciados no Liceu de Ravena e concluídos em Furlì, em 1924, ano que o
jovem conseguiu ingressar na Scoula Normale Superiore di Pisa, local em que, através de
processo seletivo, obteve uma pensão interna e gratuita para estudar História da Filosofia e,
desfrutando da oportunidade, inscreveu-se respectivamente na Facoltà di Lettere e
Filosofia da Università di Pisa.
Nestes ambientes universitários, Delio Cantimori construiu uma relação amigável
com alguns docentes como o professor de Literatura Alemã Giovan Vittorio Amoretti, mas
dois se destacaram pela aproximação profissional e intelectual, Giovanni Gentile, que neste
período lecionou História da Filosofia na Scuola Normale, e Guiseppe Saitta, professor de
filosofia na Universitá di Pisa.
Cada qual com sua estima dentro do Estado Italiano, ambos compartilhavam das
idéias gerais do pensamento político fascista, eram pesquisadores da formação da Europa
Moderna dentro de uma perspectiva do idealismo filosófico, trabalharam a temática através
de personagens renascentistas como Giordano Bruno e Marsílio Ficino e vieram a
influenciar as primeiras abordagens de Cantimori.
Entre as obras de Gentile que influenciaram Cantimori, destacou-se Giordano
Bruno e il pensiero del Rinascimento. Neste livro, o autor fez uma análise da trajetória de
Giordano Bruno numa perspectiva que o dava a glória de herói nacional, retomando o
estudo do Renascimento como período em que o espírito italiano se aflorou. (CASSIO
2009)
Esta influência nos primórdios das suas pesquisas é detectada nas palavras de
Cantimori que compuseram o prefácio de seu livro Eretici italiani del Cinquencento,
publicado em 1939. (CANTIMORI 1992. p: 5) Fato que, na edição basileense de 1949,
170
ganhou um sentimento de combate ao modelo interpretativo do idealismo, agora visto com
ar de ingenuidade, que permeava suas leituras das fontes. Em suas palavras:
Estas pesquisas nasceram de problemas juvenis de um estudante de liceu,
amadurecido em uma cidade de província, em ambiente de gente de escola, das
tradições mazzinianas e republicanas (isto é de oposição), movido porém pelos
fermentos idealíticos crocianos e sobretudo do idealismo gentiliano (...).
(CANTIMORI 1992. p: 11)
Paralelamente, no decorrer de sua formação, Cantimori começou a construir uma
afeição pela visão política de G. Saitta, fascista defensor de uma revolução social e
nacional germinada pela consciência popular. No ano de 1927, galgou para uma
aproximação interpretativa e profissional, colaborando com publicações de artigos, ensaios
e notas para a Vita Nova, um órgão da Federação Fascista Bolonhesa dirigido por Saitta.
Neste contexto, Cantimori entrou em contato com a obra de seu professor Marsílio
Ficino e a filosofia do humanismo, que trouxe uma interferência vital nas interpretações do
estudante ao apresentar uma leitura histórico-filosófica da trajetória intelectual dos hereges
como exemplos de resistência às perseguições da Igreja e germe da conscientização do
povo italiano para a formação do Estado, fazendo de Marsílio Ficino a figura heróica
representante dessa consciência nacional italiana. (CASSIO 2009)
Assim, Giuseppe Saitta e Giovanni Gentile vieram a participar e influenciar a
continuação dos estudos de Cantimori sobre os humanistas, reformadores e hereges
italianos renascentistas, iniciados desde seus artigos Il caso del Boscoli e la vita del
Rinascimento, publicado em 1926 no Giornale Critico della Filosofia Italiana e
continuados em Bernardino Ochino, uomo del Rinascimento e riformatore, lançado nos
anais da Scuola Normale Superiore di Pisa e na sua Tesi di Laurea Ulrico von Hutten e i
Rapporti tra Rinascimento e Riforma, publicada em 1930.
Naqueles últimos anos da década de 1920 e início dos anos 30, Cantimori começou
a ensaiar uma mudança de perspectiva de análise histórica. Suas abordagens próximas dos
ideais nacionalistas e imersas nas abstratas perspectivas do idealismo começaram a
apresentar uma inflexão através de leituras, cursos e pesquisas pela Europa.
Isto é visível em seu trabalho de aperfeiçoamento defendido na Scuola Normale
Superiore di Pisa, em 1929, intitulado Sulla Storia del concetto di Rinascimento. Neste
171
trabalho, Cantimori ainda apresentou afeição aos preceitos teóricos do idealismo
gentiliano, ao defender que o conhecimento histórico crítico somente abarcaria a realidade
dos acontecimentos se refletido através de um sistema fechado de normas do nosso pensar,
ou seja, um conceito. (CANTIMORI 1971. p: 413 – 462)
Mas em contraposição, ao tecer essa história conceitual aos moldes de um resgate
historiográfico das leituras apresentadas pelos pensadores que trabalharam e ajudaram a
cunhar do termo Renascimento, Cantimori já constituía uma pesquisa mais concreta e
particularizada, captando o debate sobre as periodizações históricas, suas generalizações,
classificações e sistematizações dos eventos como temporais, intimamente ligadas aos
pontos de vista e preocupações extra-históricas, políticas e propagandistas das várias
tendências éticas e religiosas. (Cantimori 1992 p. 413)
Próximo deste contexto, no ano de 1930, o universo historiográfico italiano que se
debruçava sobre temáticas relacionadas à formação da Europa Moderna obteve os
primeiros contatos com os historiadores franceses dos Annales, em específico Lucien
Febvre. Este evento teve vital importância para a carreira do estudioso italiano.
Segundo Cantimori, em um momento oportuno nos debates italianos sobre a
maneira de tratar a história religiosa, com seus esquemas e divisões de zonas mais ou
menos importantes no transcorrer da Reforma, Carlo Morandi captou a importância do
artigo de Lucien Febvre As origens da Reforma francesa e o problema das causas da
Reforma. (CANTIMORI, 1971. p: 233-234)
Através de sua publicação em uma revista historicista denominada Civiltà
Moderna, Cantimori entrou em contato com os escritos do francês, que geraram uma
reflexão profunda sobre sua leitura do mundo religioso no período da formação da Europa
Moderna.
Segundo Cantimori, o texto As origens da Reforma francesa e o problema das
causas da Reforma desvendou uma história da vida religiosa naturalmente popular que
desrespeitava as fronteiras dos Estados Nacionais como marcos limítrofes. Em desacordo
com as perspectivas filosófico-nacionalistas, Febvre apresentou um movimento reformador
europeu com especificidades localizadas que chamou a atenção do italiano para indagações
sobre as particularidades dos objetos e não para a coerência inserida nos movimentos
humanistas, reformadores e heréticos. (CANTIMORI, 1992. p: 430)
172
Inspirado pelo debate da participação do povo nos processos históricos, Cantimori
voltava sua atenção para as especificidades dos grupos heréticos italianos marginalizados e
perseguidos pela Igreja em meio ao ambiente reformador da espiritualidade européia do
século XVI.
Neste contexto, em 1931, Cantimori conseguiu uma bolsa de estudos no exterior e,
movido por uma problemática de interpretação historiográfica, se dirige à Basiléia, onde se
manteve de dezembro à julho de 1932. Nesta cidade, o italiano entrou em contato com os
cosmos religiosos heterodoxos gerados pela imigração dos hereges italianos resistentes à
perseguição religiosa.
Basiléia que foi um dos principais refúgios dos homens que desejavam maior
liberdade para suas reflexões místicas complexas e individualizadas, local onde Erasmo de
Roterdã escolheu para viver e atuar na Universidade e dali difundir suas idéias
reformadoras contrárias à ruptura drástica com a Igreja Católica e defensoras da concórdia
entre as diferentes manifestações religiosas.
Neste ambiente de Basiléia, Cantimori iniciou suas pesquisas na Biblioteca da
Universidade, onde se encontravam epístolas e coleções de manuscritos, e no Arquivo do
Estado de Basiléia.( PROSPERI. 1992. p: XXIV)
Consciente sobre a importância da teologia que impregnava a vida e a mentalidade
do Cinquecento, Cantimori freqüentou os cursos de História da Igreja, na Faculdade de
Teologia da Universidade de Basiléia, regidos pelos professores Stähelin, estudioso da
Reforma e Contra-Reforma suíça e basileense, e Johannes Wendland, especialista em
Teologia Sistemática. (MICOLLI 1970 p: 55)
Neste ambiente também entrou em contato com Karl Barth, pastor da Igreja
Reformada presbiteriana e teólogo defensor da Teologia Dialética ou Teologia da Crise,
onde saiu em defesa ao retrocesso aos preceitos básicos da Reforma do século XVI,
enxergando nesse processo uma manifestação pura e franca de uma revolução espiritual
protestante, para combater as religiões evangélicas do século XIX.
Na Universidade de Basiléia constituiu laços de amizade com Werner Keagi,
pesquisador do humanismo, com obras sobre Erasmo de Roterdã e Ulrico von Hutten,
responsável pela publicação de Eretici italiani del Cinquecento em Basiléia, no ano de
1949, e possivelmente por apresentar um Jacob Burckhardt diferente das interpretações
173
idealistas de Gentile e típica daqueles estudiosos formados no ambiente humanista
basileense.
Aquele J. Burckhardt iniciado na Teologia, guinado para a história, interessado pela
história da arte renascentista, que ao se aprofundar em seu objeto, a formação do mundo
moderno europeu, também tratou de se distanciar de seus projetos historicistas de cunho
nacionalistas.
De volta para a Itália em julho de 1932, no ano seguinte Cantimori consegue uma
nova e mais abastada bolsa de estudos que lhe rendeu a oportunidade de pesquisar pela
Europa, passando por bibliotecas e arquivos de diferentes cidades como Zurique, Cracóvia,
Berna, Paris, Dublin, Roma, Florença, Alexandria, Londres e Vaticano, em busca de
desvendar o universo subterrâneo dos hereges italianos fugitivos das perseguições
religiosas.
Dessas pesquisas surgiram sua obra de maior fôlego Eretici italiani del
cinquecento, publicada na Itália em 1939. Pelo que tudo indica, apesar de seu interesse
pela análise concreta da temática nesse projeto de dar voz aos hereges italianos
marginalizados, sua posição de escritor ligado à História da Cultura ainda não tinha
presença amadurecida, tendo diálogos mais próximos com a perspectiva hegeliana e
marxista. Questão esta que ainda sofro com a carência de leituras e informações para
constituir uma posição sólida.
Seja como for, em andamento à sua transposição da filosofia para a história,
Cantimori ressaltou como ponto crucial a leitura de Movimenti religiosi e sètte ereticali
nella società medievale italiana do historiador Gioacchino Volpi. Segundo Prosperi,
Cantimori enfatiza que esta obra foi responsável por apresentar o modelo de escrita
historiográfica baseada na concretude das relações humanas, bem distinta das especulações
das correntes idealistas. (PROSPERI.1992. P: XVIII)
Sendo assim, paulatinamente os personagens estudados por Cantimori distanciavam
do status de pioneiros na formação da consciência nacional, para aproximarem da imagem
de atores difusores das suas práticas espiritualizadas, muitas vezes em desarmonia com o
ideal defendido pela Igreja, que levavam consigo suas crenças e interpretações místicas
pela Europa, ao fugir das perseguições.
174
Os hereges passaram a ser interpretados na concretude das suas relações, no
emaranhado mundo de movimentos religiosos. O exame tornou-se um trabalho de erudição
e filologia na tentativa de abarcar a instabilidades e a complexidade da vida desses
homens, apagando o sentido dos hereges como um movimento unitário homogêneo.
Aquela Europa Subterrânea, sob uma perspectiva de discussão metodológica,
tomou os cursos ministrados na Scola Normale Superiore di Pisa, durante o ano de 1959,
que editados, deram origem ao seu livro Prospettive di storia ereticale italiana del
Cinquecento. Aulas que deixaram patente o seu alinhamento com a perspectiva da História
da Cultura e sua aderência à leitura da história religiosa italiana e dos hereges em contextos
mais precisos, bem distinta das suas primordiais abordagens filosófico-idealistas.
(CANTIMORI. 1992. p: 424)
Nesta obra, Cantimori apresentou o amadurecimento da suas primeiras propostas de
análise microscópica dos objetos de estudos com intenção de abarcar a complexidade dos
homens nos seus ciclos de convívio, levantando seu combate às interpretações históricas
cientificistas embasadas em conceitos, categorias homogêneas e análises globais.
Dialogando com a Sociologia do Conhecimento alemã, o italiano buscou defender o
exercício da leitura histórica como uma prática que trabalha as particularidade e
especificidades das relações dos indivíduos ou grupos singulares como forma de
vislumbrar o universo maior que tece os códigos que permeiam esses contatos, sem
incorrer à abordagens arriscadamente generalizantes e fantasiosas . (CANTIMORI. 1992.
p: 426)
Esta linha de entendimento esteve presente em seus textos sobre historiografia, que
abordaram as trajetórias e os diálogos dos historiadores e em seus diversos artigos sobre os
ciclos dos hereges e o universo heterodoxo das diferentes religiões, que deram origem á
obra póstuma Umanesimo e religione nel rinascimento.
Assim, dentro dos limites, apresento uma analise sumária da trajetória deste ilustre
desconhecido da historiografia brasileira. Personagem complexo, de uma riqueza
inestimável para o campo historiográfico, que, em suas experiências políticas e
intelectuais, fez jus à heterodoxia dos homens inseridos na concretude da existência
mundana.
175
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SAITTA, Giuseppe. Marsílio Ficino e la filosofia dell’umanesimo. 3° edizione. Editoriale
Fiammenghi & Nanni. Bologna, 1954.
177
Identidades, Guerra e Memória.
Religião e Identidade: as experiências de guerra de um capelão da FEB.*
Anysio Henriques Neto**
Resumo: No presente artigo, interessa investigar especificamente os relatos de um dos
capelães do SAR/FEB, Frei Jacob Schneider, que atuou como mediador entre os soldados e
o sagrado durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito os capelães foram
responsáveis pelo apoio espiritual das tropas e demais atividades de cunho religioso, dentre
elas batizados, enterros, comemorações de datas religiosas, cívicas, etc. Cabe compreender
também de que forma essas experiências de guerra, muitas vezes significadas
religiosamente, compõem simbolicamente a identidade dos soldados que pertenceram à
FEB. Destacamos ainda, que atribuir uma identidade homogênea à FEB seria incorreto,
pois esse processo ocorre de maneira plural e, em parte, o que diferencia esses grupos
identitários são os significados dados às suas experiências em relação ao conflito.
Palavras-Chave: Capelão Militar, Sagrado, FEB, Identidade, Memória
Abstract: In this paper, specifically interested in investigating reports of one of the
chaplains of the SAR / FEB, Brother Jacob Schneider, who served as mediator between the
sacred and the soldiers during the Second World War. During the war the chaplains were
responsible for the spiritual support of the troops and other activities of a religious nature,
among them baptisms, funerals, celebrations of dates religious, civic, etc.. It should also
understand how these experiences of war, often religious significance, symbolically, make
*
O trabalho apresentado como artigo compreende à dissertação de mestrado: A RELIGIÃO NO EXÉRCITO
BRASILEIRO: MEMÓRIA E PLAUSIBILIDADE NA IDENTIDADE DOS SOLDADOS DA FEB A
PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE GUERRA, defendida e aprovada em março de 2011, no Programa de PósGraduação em Ciências da Religião – UFJF. A discussão aqui proposta encontra-se no Capítulo 2 da
dissertação. A proposta também foi apresentada no I Seminário Nacional LEPCON, com o mesmo título, na
mesa temática “Identidades, Guerra e Memória”.
**
Graduado em História pelo CES/JF e em Filosofia pela UFJF, especialista e mestre em Sociologia da
Religião pelo PPCIR-UFJF. Pesquisador do LEPCON, linha de pesquisa: Identidade, narrativa, memória e
contemporaneidade. Membro do LEPCON. E-mail: [email protected].
178
up the identity of the soldiers who belonged to the FEB. We also point out that assigning
an homogeneous identity to the FEB would be incorrect, as this process occurs in a plural,
in part, what differentiates these identity groups are the meanings given to their
experiences in relation to the conflict.
Keywords: Military chaplain, Sacred, BEF, Identity, Memory
No presente artigo, interessa investigar especificamente os relatos de um dos
capelães do SAR/FEB, Frei Jacob Schneider, que atuou como mediador entre os soldados e
o sagrado. Durante o conflito os capelães foram responsáveis pelo apoio espiritual das
tropas e demais atividades de cunho religioso, dentre elas batizados, enterros,
comemorações de datas religiosas, cívicas, etc.
Cabe compreender também de que forma essas experiências de guerra, muitas
vezes significadas religiosamente, compõem simbolicamente a identidade dos soldados que
pertenceram à FEB. Destacamos que atribuir uma identidade homogênea à FEB seria
incorreto, pois esse processo ocorre de maneira plural e, em parte, o que diferencia esses
grupos identitários são os significados dados às suas experiências em relação ao conflito.
O cotidiano dos capelães no front: significando as experiências de guerra
Encarregados de auxiliar espiritualmente os soldados enviados ao front, os capelães
foram fundamentais no apoio espiritual prestado aos militares brasileiros. As crônicas de
guerra escritas por um capelão da FEB, Padre Jacob Emílio Schneider, descrevem suas
vivências de guerra. A atuação desses capelães como mediadores das experiências limite
entre os soldados e o caos do contexto ganhou destaque em momentos de anomia coletiva,
como, por exemplo, nos seguidos ataques ao Monte Castello.
Jacob Emílio Schneider nasceu na cidade de Montenegro no Rio Grande do Sul,
filho de pais agricultores. Sua educação foi iniciada na escola paroquial de Piedade e, em
1923, seguiu para o seminário de São Leopoldo para completar sua formação tornando-se
sacerdote em 1942. Como relata o autor “estava eu no terceiro ano de Provação em Pareci,
quando nos alcançou o pedido de capelães, para seguir com a FEB. Um axioma de Santo
Inácio é de que o jesuíta deve como que ser uma tropa de choque e socorrer lá, onde mais
179
urgente fosse. No caso seria a guerra” (SCHNEIDER, 1983, p. 2). Na FEB, o padre foi
designado para servir junto ao 1º RI chamado Regimento Sampaio, no Rio de Janeiro.
Após a guerra, o capelão trabalhou nos Círculos Operários no Rio Grande do Sul,
até que no natal de 1967 foi hospitalizado por 4 anos devido a um acidente de carro. Na
década de 1970, volta ao estado de origem, vinculado à Universidade do Trabalho, onde já
atuava antes do acidente. Em 1976, segue para Belém Velho para uma nova obra, a
reconstrução da Casa de Retiro Vila Meridianeira. Por sugestão de Padre Walter Hofer, seu
superior provincial, Pe. Jacob Emílio decidiu escrever suas vivências 37 anos após o fim
do conflito. Apesar dos anos passados, o esboço de um diário de guerra foi usado para
relembrar os momentos narrados.
De acordo com seu relato, apresentou-se como voluntário para o serviço em 22 de
junho de 1944 atendendo ao convite assinado por Dom Jayme, uma convocação para a
apresentação de candidatos ao cargo de capelão no Exército da FEB. Além de optar pela
capelania, o padre de formação jesuítica indicou outros companheiros, também jesuítas, a
saber, Padre Vendelino Junges e Padre Urbano Rausch.
Juntos, os padres voluntários viajaram até o Rio de Janeiro onde deveriam passar
pelo treinamento e pelos testes de avaliação, antes da incorporação definitiva. Foram
recebidos no colégio Santo Inácio, em Botafogo no Rio de Janeiro, até o embarque em 20
de setembro de 1944. A presença dos capelães gaúchos foi recebida com homenagens por
Carmela Dutra, também conhecida como Dona “Santinha”, esposa do então Ministro da
Guerra Eurico Gaspar Dutra.
No encontro com a família Dutra, os quatro capelães gaúchos foram apadrinhados
pela esposa do ministro. Considerando a importância e o prestígio que Eurico Gaspar Dutra
gozava entre os militares e o governo, coube a ele a efetivação definitiva do SAR/FEB
reorganizado para atender às necessidade do Exército em tempo de paz e em caráter
permanente no pós-guerra. A religiosidade desses militares e de suas famílias colabora
fundamentalmente para que a prática religiosa do catolicismo seja reconhecida
oficialmente após o conflito, dentro dos quartéis. Essa mudança ocorrida no pós-guerra
permite, de uma maneira geral, que a prática religiosa volte a integrar o cotidiano e a
formação dos militares brasileiros.
180
Durante sua permanência no Rio de Janeiro, Pe. Jacob Emílio ministra a catequese
em colégios e grupos católicos da cidade, além de missas campais, celebradas aos
domingos, com a presença de todo o efetivo do Regimento presente no quartel (cerca de
3700 homens). E de fato, as celebrações campais com a presença de tantos soldados
ocorrem durante o período de treinamento no Brasil e em alguns momentos da campanha
da Itália, como, por exemplo, ao final da guerra em maio de 1945. Durante o conflito, os
capelães mantêm um calendário de atividades religiosas regulares, com a celebração de
missas, batizados, orientações espirituais. Mas, em função dos acontecimentos da guerra,
essas cerimônias coletivas foram, em sua maioria, realizadas na retaguarda.
Entre os soldados, a distinção religiosa também deu lugar ao diálogo ecumênico
conforme relata Padre Jacob Emilio Schneider no trecho a baixo.
O reverendo Soren, por diversos meses, foi meu companheiro de barraca e
sempre admirei seu senso de ordem, asseio e gentileza. [...] Quando eu celebrava
missa, ele cuidava espontaneamente da disciplina e silêncio nas imediações.
Após a guerra ele foi eleito para presidente da Aliança Batista Mundial. O
reverendo Juvenal aglutinava desde logo as simpatias de todos pela sua alegria e
singeleza no trato. Reinava já então entre todos os capelães um sadio
ecumenismo (SCHNEIDER, 1983, p. 72).
Houve também demonstrações de fé católica, como a construção de uma gruta em
homenagem a Nossa Senhora de Lourdes. A iniciativa do tenente Thaedo Sobocinski e de
outros companheiros foi aproveitada pelo Padre Jacob Emílio, realizando regularmente
suas celebrações nessa gruta às 19h30 durante a guerra. Segundo o Padre, “após nossa
retirada de Stáffoli, esta gruta foi entregue oficialmente ao governo italiano como
lembrança do Brasil e devoção mariana do seu povo” (SCHNEIDER, 1983, p. 72). Cabe
ressaltar que esse altar foi construído com sucatas dos bombardeios inimigos.41
Durante a campanha na Itália, o catolicismo tornou-se, também, um elo de
identificação entre a população civil e os soldados brasileiros, entretanto, a pluralidade
étnica e religiosa presente nos efetivos do front italiano permite a vivência de experiências
ecumênicas, uma vez que existiam tropas de outras nacionalidades na frente de combate na
Itália e mesmo entre os brasileiros, já que nem todos eram católicos. Nas palavras do
veterano José Maria Nicodemos da Silva, no “pós-guerra, na Catedral da cidade de
41
Não foi possível identificar o motivo da escolha da Santa Lourdes para a construção do altar.
181
Allêssandria, também foi celebrado um culto ecumênico, com a participação de todos os
capelães. Com introdução do hino nacional brasileiro” (SILVA, 2010, s/p.). Essa
celebração foi assistida também por soldados de outras nacionalidades e civis italianos, em
comemoração ao fim da guerra na Itália.
Essas celebrações atuam simbolicamente de maneira a criar um sentido ordenador
que marca um processo de reorganização da sociedade, para os civis italianos. Já para os
soldados brasileiros, esse culto permite a reafirmação da fé e das práticas religiosas e
marca, também, o fim do processo caótico e traumático vivido durante a guerra.
Durante a campanha, os capelães promoveram encontros entre os clérigos, com o
objetivo de fomentar a convivência entre eles já que atuavam em posições distantes uns
dos outros. Assim, ficou decidido que mensalmente haveria uma reunião dos capelães
militares, realizada em casas canônicas disponíveis. De acordo com o relato do Padre
Jacob Emílio, essas reuniões eram divididas em três momentos: adoração, debates e
almoço; e por vezes tomaram parte da reunião, oficiais de comando do Exército norteamericano e brasileiros e também com a presença dos capelães evangélicos.
Sobre o convívio entre as tropas aliadas e os civis italianos, o capelão aponta as
vantagens dos brasileiros em relação aos demais exércitos, dentre eles merece destaque a
questão do catolicismo. “Vantagem tínhamos, sobre as outras tropas aliadas: éramos de
ascendência latina e com isso gozávamos de acesso mais fácil aos italianos, cuja língua já
entendíamos, mormente os gaúchos. [...] Outra vantagem que nos aproximava da
população italiana, era a religião católica” (SCHNEIDER, 1983, pp. 84-85). Esses dois
aspectos destacados, a religião e a latinidade, tornaram-se fatores de aproximação entre os
soldados brasileiros e civis italianos em diversas situações da guerra.
No período de inverno, as condições climáticas dificultaram a reunião de grandes
montantes de fiéis, militares ou civis, o que não impediu a prestação da assistência
religiosa. De maneira improvisada, o padre serviu-se de um paiol para realizar suas
celebrações, improvisando com seu altar portátil na residência de civis italianos.
Segundo relata o autor, “rezei a missa num paiol, onde as espigas de milho estavam
penduradas por cima da cabeça, presas, pela palha aberta, em estacas. Os mais corajosos,
brasileiros e civis italianos, assistiram com comovente devoção. Era a festa dos Santos
Reis, ou, como diziam os locais, ‘La Pifania’, isto é, a Epifania” (SCHNEIDER, 1983, pp.
182
90-91). Nesse paiol foram celebradas diversas missas durante o inverno, momento
indispensável pelos soldados e pelos moradores. Apesar de não revelar a localidade do
episódio, a primeira celebração ocorreu em 06 de janeiro de 1945, já nos meses finais da
resistência nazista.
Em sua visita à cidade de Roma, Pe. Jacob Emílio realizou sua audiência com o
papa, recebendo sua bênção antes de voltar ao cotidiano da guerra. O episódio ganhou
destaque nos relatos do autor, principalmente os momentos relacionados ao encontro com
o líder da Igreja Católica. Destacado como o momento mais marcante da visita, o Padre
narra a benção concedida a ele e seus companheiros pelo pontífice. “ ‘Abençôo a vós,
vossas famílias e todo Brasil. E tudo o que quereis que benza, seja bento, ainda que esteja
nos vossos bolsos’. Via nossos bolsos estufados de terços, medalhas e análogos. Pedi uma
bênção especial para uma lata de AYMORÉ, cheia de terços. [...] Alegres, confortados pela
maior benção da terra, regressamos ao front.” (SCHNEIDER, 1983, p. 87). Essa visita ao
papa foi realizada antes dos preparativos para o último ataque ao Monte Castello, último de
uma série de quatro ataques fracassados.
No início de 1945, o avanço das tropas aliadas sobre os territórios ocupados
indicava que o destino da guerra já estava decidido, apesar da forte resistência ainda
mantida pelos alemães. No front italiano, restava ainda uma posição de significativo valor
estratégico, ainda em poder dos nazistas, o Monte Castello. A conquista dessa localidade
decretou o desfecho da guerra na Itália e com isso gerando um clima de apreensão entre as
tropas brasileiras.
A necessidade de controlar o Monte Castello impôs aos aliados a difícil tarefa de
desalojar os inimigos numa posição considerada extremamente bem guarnecida. Os quatro
primeiros ataques realizados pelos brasileiros não foram suficientes para a vitória, pelo
contrário, resultou em severas baixas nos seus efetivos. E, por isso, vários oficiais, em sua
maioria capitães, pediram auxílio aos capelães para levantar o moral de seus homens.
O apoio solicitado pelos oficiais de comando foi atendido pelos capelães, dentre
eles Padre Jacob Emílio. Nas suas palavras, “com grande satisfação atendia o capelão do 1º
Batalhão os convites dos capitães para celebrar missas em suas unidades. Nestas ocasiões
era sempre mútuo e recíproco o conforto e estímulo, que se dava e recebia. Inesquecíveis
me ficaram os nomes Arnóbio, Paulo Ramos, Vilaboim, Everaldo, Yedo, Varejão,
183
Mandim, Andersen, Hildebrando, Saraiva, Edson e alguns outros, capitães em funções de
comando na época da frente” (SCHNEIDER, 1983, p. 92). Dentre os oficiais citados, o
padre destaca aqueles que marcaram suas lembranças por estarem preocupados com a
prestação do apoio espiritual aos seus comandados e por sua própria religiosidade.
Com o fim do inverno próximo, as tropas aliadas iniciaram os preparativos para o
último assalto ao Monte Castello e com isso destaca o padre, que as atividades militares e
religiosas cresceram significativamente em função da proporção e importância da
operação. O trecho abaixo relata os preparativos do último ataque ao Monte Castello.
Finalmente, dia 21 de fevereiro, ás cinco horas da manhã, a tropa brasileira
desembocou para o assalto final ao famoso baluarte. Toda a frente do Quarto
Corpo estava em ação nos respectivos setores. Dois regimentos nossos de
infantaria, quase toda a artilharia, o batalhão de engenharia, todos os
comandantes e o último pracinha, com o coração na mão e o pensamento voltado
para Deus e o Brasil [...] Sabíamos pelas cartas, que lá longe, no outro lado do
Atlântico, as famílias estavam unidas a nós pela prece” (SCHNEIDER, 1983, p.
95).
Com a conquista da posição, em 21 de fevereiro de 1945, estava definitivamente
decidida a guerra na Itália e com isso as rendições alemãs tornaram-se constantes. Se os
brasileiros já se preocupavam com o fim da guerra em meados de fevereiro, o mesmo
ocorreu com soldados alemães e poloneses. Dentre os pertences dos prisioneiros muitos
guardavam consigo fotografias de seus filhos e esposas, assim como os soldados
brasileiros.
A conquista do Monte Castello foi definitiva para a rendição alemã no front
italiano, mas a guerra na Europa terminaria oficialmente em 8 de maio de 1945. O fim do
conflito não encerra a participação brasileira na guerra, visto que os efetivos permanecem
no país como tropa de ocupação, até outubro do mesmo ano. Dentre as comemorações
realizadas no dia da “Vitória” da guerra na Itália, foram celebradas missas por capelães
militares e padres italianos.
As experiências vividas em decorrência da participação na guerra, tanto pelos capelães
como pelos soldados, foram fundamentais para a formação de uma identidade dos
veteranos da FEB, cuja religiosidade pode ser considerada como um elemento identitário.
A construção da identidade cultural dos veteranos da FEB
184
A participação brasileira na guerra permite que os veteranos da FEB construam
uma identidade cultural baseada em experiências significativas, nas características culturais
relevantes do grupo e também em resposta ao jogo político entre o Exército e o Estado
Novo. Cabe destacar que a análise dessa pesquisa também se concentra em identificar os
elementos religiosos presentes nesse complexo simbólico, bem como sua importância na
definição da auto-imagem construída pelo grupo dos veteranos da FEB.
O termo identidade divide opiniões entre os teóricos da sociologia e de outras
disciplinas. Por isso adotamos a análise de Stuart Hall, por apresentar as principais
correntes metodológicas que tratam do assunto com ênfase na hipótese de uma crise de
identidade na modernidade tardia e também a proposta de Manuel Castells, cuja obra
discute o processo de formação e origem de identidades nas sociedades em redes, isto é, os
processos de fragmentação das identidades nas sociedades transformadas a partir do
desenvolvimento do capitalismo e de seu oposto, o estatismo industrial.
Stuart Hall considera a proposta de que
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de
identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está
deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social” (HALL, 1999, p. 7).
Essa crise traduz a fragmentação dessas velhas identidades na modernidade tardia,
isto é, existe uma descentralização na concepção dos papéis sociais na sua forma
tradicional. Essa perda de sentido provoca transformações nas identidades pessoais dos
indivíduos, chamada de deslocamento ou descentralização do sujeito. Ocorre que essa crise
de sentido produz um duplo deslocamento, a saber, uma descentração dos indivíduos no
mundo social, cultural e também em relação a si mesmos (HALL, 1999, pp. 8-9).
Para isso Stuart Hall apresenta três concepções de identidade, o sujeito do
Iluminismo, o sujeito sociológico e por fim o sujeito pós-moderno. Desta forma temos as
seguintes definições, a primeira do sujeito do Iluminismo:
185
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana
como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de
razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que
emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia,
ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele
– ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade
de uma pessoa” (HALL, 1999, p. 10).
A segunda, do sujeito sociológico, ainda considera um centro simbólico de
referência, assim, “a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O
sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que esses mundos oferecem” (HALL, 1999, p. 10). A internalização de significados e
valores dessas identidades tornam-se partes constituintes dos indivíduos e esse processo
auxilia na compreensão que eles têm de sua posição no mundo social e cultural.
A crise de identidade apontada pela terceira concepção, o sujeito pós-moderno,
considera que essas identidades unificadas e estáveis estão sendo fragmentadas, isto é, o
sujeito é formado por várias identidades. A diferença entre a definição anterior resume-se
na idéia de que o sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa, essencial ou
permanente. “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar –
ao menos temporariamente” (HALL, 1999, p. 13). Essas identidades são definidas
historicamente e ainda, esses sujeitos assumem identidades diferentes ao longo do tempo e
esses complexos simbólicos não estão atrelados à existência de um “eu” coerente.
Considerando os processos do deslocamento iniciados com a Modernidade, o autor
destaca três pontos de mudança na compreensão do sujeito. Essa perspectiva toma como
base as transformações sociais e culturais ocorridas com o fim do período medieval, dentre
elas a centralização do Homem no universo e o surgimento do Protestantismo.
No contexto do século XVII, o filósofo Rene Descartes desenvolve a compreensão
do sujeito situado no centro do conhecimento. O chamado sujeito cartesiano permite a
criação de uma identidade centralizada no indivíduo. Entretanto, as sociedades modernas
186
tornaram-se mais complexas e com isso o aspecto individual assume formas coletivas e
sociais.
Contribuem significativamente para essa mudança a biologia darwiniana (indivíduo
biológico) e também o surgimento das novas ciências sociais (interação social do
indivíduo). A sociologia faz a crítica ao sujeito cartesiano, destacando o indivíduo em meio
a processos e normas de abrangência coletiva. O dualismo entre mente e matéria do sujeito
cartesiano foi criticado pela sociologia, que
Desenvolveu uma explicação alternativa do modo como os indivíduos são
formados subjetivamente através de sua participação em relações sociais mais
amplas; e, inversalmente, do modo como os processos e as estruturas são
sustentados pelos papéis que os indivíduos neles desempenham. Essa
“internalização” do exterior no sujeito, e essa “externalização” do interior,
através da ação no mundo social [...], constituem a descrição sociológica
primária do sujeito moderno e estão compreendidas na teoria da socialização
(HALL, 1999, p. 31).
Na segunda metade do século XX, ocorre uma ruptura no discurso moderno, o que
gera uma crise na compreensão do sujeito sociológico. Essas mudanças decorrem de
descentramentos desse sujeito. Stuart Hall argumenta que esse processo foi marcado pelo
estruturalismo de Marx, a descoberta do inconsciente por Freud, a lingüística de Saussure
e, por fim, o surgimento do feminismo que politizou a subjetividade e a identidade baseado
na idéia de grupo social.
As análises apresentadas na referida obra concentram-se, sobretudo na investigação
da formação de comunidades imaginadas, formalizadas segundo o projeto de Identidade
Nacional. “Essas comunidades imaginadas caracterizam-se basicamente pelas memórias do
passado, pelo desejo de viver em conjunto e pela perpetuação da herança” (HALL, 1999, p.
58). Entretanto, esse processo de formação de identidades vem sendo afetado pela
globalização, capaz de fragmentar essas identidades num segmento definitivamente plural
e constantemente inacabado.
Segundo as proposições até aqui apresentadas, pode-se concluir que a construção da
identidade cultural dos veteranos da FEB não está centralizada no projeto de Identidade
Nacional desenvolvido durante o Estado Novo, mas compartilha elementos comuns, como,
por exemplo, o patriotismo e o nacionalismo. Entretanto, a presente pesquisa defende a
187
idéia de que os veteranos da FEB tomam as “experiências de guerra” como ponto
fundamental para a construção da identidade cultural do grupo no pós-guerra.
Para a análise da formação da identidade cultural dos veteranos da FEB, optou-se
pela proposta apresentada por Manuel Castells. Seu objetivo é entender o funcionamento
das identidades culturais na sociedade em rede, o mesmo fenômeno chamado por Stuart
Hall de globalização.
Ele considera que as identidades são construídas socialmente e por isso deve-se
levar em consideração o contexto e suas relações de poder. O autor propõe ainda uma
distinção de três formas e origens de identidades. São elas: a Identidade legitimadora,
introduzida por instituições dominantes que objetivam expandir sua dominação na
sociedade e se aplica às teorias relacionadas ao nacionalismo; a Identidade de resistência,
criada pelos atores sociais desvalorizados ou estigmatizados e atua em caráter de
resistência ou oposição à ordem dominante e a Identidade de projeto, quando os atores
sociais constroem uma nova identidade que permite a redefinição de sua posição na
sociedade e, com isso, a transformação de toda e estrutura social (CASTELLS, 2006, p.
24).
Essa proposta assemelha-se a análise anterior no tocante à abordagem sociológica
do termo, com ênfase na constituição de identidades na chamada modernidade tardia e sua
conseqüente fragmentação no mundo globalizado. Sua diferença consiste na análise de
identidades que representam atores sociais e não sujeitos.
Segundo Manuel Castells,
No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de
construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m)
sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um
ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa pluralidade é
fonte de tensão e contradição tanto na auto-representação quanto na ação social
(CASTELLS, 2006, p. 22).
O autor esclarece a existência de uma diferença entre identidade e o conjunto de
papéis sociais (mãe/pai, trabalhador, etc) assumidos pelos indivíduos, pois identidades
organizam significados, já os papéis sociais organizam funções.
188
Desta forma temos a definição do termo identidade como “fontes de significado
para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de
individuação. [...] as identidades também possam ser formadas a partir de instituições
dominantes, somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam,
construindo seu significado com base nessa internalização” (CASTELLS, 2006, p. 23).
Assim, pode-se afirmar que a formação de identidades envolve um processo de
autoconstrução e individuação no qual os indivíduos ou grupos sociais organizam
simbolicamente suas experiências, suas fantasias pessoais, revelações religiosas, dentre
outras.
O caráter coletivo na formação dessas identidades foi destacado como proposta de
análise desses complexos simbólicos e por isso optou-se por essa proposta. Com isso
destacamos que a formação da identidade febiana utiliza-se de elementos culturais
significativos presentes na sociedade brasileira, e já internalizados antes da guerra (o
nacionalismo e a religiosidade, por exemplo) e também as experiências de guerra
significadas a partir das narrativas dos veteranos. Destaca-se, nessa narrativa, os efeitos do
nacionalismo desenvolvido durante o Estado Novo, o patriotismo que foi estimulado com a
entrada do Brasil na guerra, e por fim, a resignificação da família e o medo da morte.
Optou-se por analisar a contribuição da religião na formação simbólica dessa
identidade, sobretudo a partir de sua capacidade de significar as experiências relacionadas
à família e à morte e, por fim, a formação de uma memória coletiva fragmentada, que cria
divisões e diferenciações entre os integrantes da FEB.
A natureza das experiências de combate e o processo de desmobilização da FEB no
pós-guerra são dois fatores decisivos para a construção de uma identidade fragmentada.
Para Michel Pollak, identidade “é a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida
referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para
acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como
quer ser percebida pelos outros” (POLLAK, 1992, p. 5). Essa imagem construída, de si
próprio, baseia-se nas experiências vividas pelos sujeitos, nesse caso os veteranos da FEB.
Pode-se concluir que durante o processo de formação identitária dos veteranos há
uma presença marcante de significados religiosos nas experiências vividas, nas quais suas
crenças particulares foram compartilhadas com outros indivíduos, desde familiares,
189
companheiros de batalha e até mesmo com civis italianos. Essas experiências narradas
pelos ex-combatentes e capelães indicam as características da Identidade cultural dos
Veteranos da FEB, isto é, os elementos simbólicos que atribuem valor a essas experiências.
Têm-se então dois períodos fundamentais para compreender o processo de
formação dessas identidades. O primeiro momento representado pelas experiências vividas
durante a guerra, isto é, efetivamente entre os anos de 1943 e 1945, por concentrar o
intervalo temporal e espacial da vivência das experiências limite. O segundo período
compreende o pós-guerra com destaque para a criação das Associações de Veteranos e Excombatentes, termos que caracterizam tipos de identidades cuja diferença se encontra na
natureza das experiências de guerra vividas pelos indivíduos.
Assim, optou-se por analisar os relatos dos soldados que participaram efetivamente
dos combates em território italiano, identificados como veteranos da FEB, destacando as
passagens mais significativas desses depoimentos relacionadas à religiosidade, à família e
ao medo da morte. Como, por exemplo, nas palavras de Raimundo de Castro Sobrinho, que
recordou a função do serviço de assistência religiosa e sua importância para os soldados.
[...] a assistência religiosa normalmente era praticada antes que o homem
seguisse para realizar alguma ação. Especialmente, porque ele considerava que,
destacado para realizar alguma missão, bem apoiado religiosamente, teria mais
possibilidades de sobrevivência e, se morresse, estaria assistido após a morte
(SOBRINHO, 2001, p.83).
O veterano da FEB, Silas de Aguiar Munguba, também destacou o serviço de
assistência religiosa. Em suas palavras, “essas reuniões eram muito úteis. Para mim, foram
de vital importância. Costumo dizer que, quando estava naquela confusão toda de matar, só
me ocorria um recurso: orar muito a Deus. Orei tanto que penso ter abusado da paciência
do Senhor” (MUNGUNBA, 2001, p. 99) e destaca ainda que além de evangélico era muito
religioso e por isso levava consigo o Novo Testamento no bolso.
A prestação da assistência religiosa durante o conflito foi adaptada e adequada ao
contexto da guerra, ou seja, as adversidades do conflito impuseram dificuldades à
prestação de um serviço regular. As mudanças constantes de posição, bombardeios
inimigos, dentre outras atividades de guerra levaram os capelães realizar suas atividades de
acordo com as circunstâncias vividas no momento, isto é, muitas vezes não foi possível
190
cumprir as atividades previstas em função de acontecimentos resultantes do conflito.
Dentre elas, as missas semanais e o atendimento aos soldados em postos avançados foram
os casos mais relatados entre os veteranos, por vezes interrompidos pelo ritmo do conflito.
Essa limitação no acesso ao apoio espiritual mereceu destaque nos relatos dos
veteranos da FEB, como, por exemplo, no trecho a seguir, “quanto à assistência religiosa,
tínhamos de, quando em vez, a visita do capelão. Porém, o que mais nos impressionava e
nos comovia era a atitude do nosso soldado. Todas as noites eles se reuniam no fox hole,
ou numa parte qualquer, para fazer as suas orações, e me chamavam para rezarmos juntos.”
(VIEIRA, 2001, p. 228).
A questão da família e do medo da morte também ocupa lugar de destaque nas
narrativas encontradas e por vezes relacionadas à religiosidade. Dentre as crônicas do
padre Cássio Abranches Viotti, um capelão da FEB, encontramos uma expressão da
importância que a família ganha, simbolicamente, para esses soldados. Comentando sobre
a censura das cartas enviadas e recebidas pelos pracinhas ele destaca que
As letras às vezes são firmes e ágeis, outras, lerdas e broncas. Mas todas contam
as mesmas saudades – saudades de Itapecerica, Minas, de Rosário do Catete,
Sergipe, de Birigui, Noroeste do Brasil, São Paulo. Os homens estão à distância
de poucos metros um do outro, atrás de suas metralhadoras. Mas cada um tem a
sua mira. Este pensa na ‘Gentil senhorita Anita Carvalho, Rua Francisco
Sardinha, 749, aos cuidados do Armazém Sardinha, Engenhoca, Niterói’, aquele
se dirige ao Sr. Firmino Isaías de Mendonça, Rua Duque de Caxias, 74, aos
cuidados do Sr. Eugênio Francisco de Araújo, Nova Friburgo (VIOTTI, 1998,
pp. 174-175).
Os relatos que envolvem a família demonstram a necessidade dos soldados em
projetar um futuro estável e idealizado a partir de suas experiências anteriores à guerra
como mostra o correspondente de guerra Joaquim Xavier Silveira. “Separados pelo
Atlântico, das terras do Brasil e no meio das lides do combate, em plena guerra, sentíamos
as saudades infindas de nossos entes queridos, de nossa Pátria, de nossos hábitos e
costumes. Voávamos, em pensamento, ao encontro desses seres distantes, mas tudo ficava
na imaginação.” Ele conclui dizendo que apenas as correspondências eram capazes de
amenizar esse sentimento gerado pela guerra (SOBRINHO, 2001, p. 84).
Em seu diário, o correspondente de guerra demonstra ainda o quão delicado se
tornou a palavra morte durante o período de guerra, pois “o verbo, aliás, era ‘sobrar’, pois
191
não se falava em morte. Nunca tocávamos em morte nas nossas conversas e quase nunca
mencionávamos o nome dos que tinham sobrado” (SILVEIRA, 2001, p. 57).
O medo de morrer ou da morte de companheiros também foi destacado pelos
veteranos da FEB como uma das experiências mais significativas. Segundo narrou o
veterano Enéas de Sá, “não vou dizer que não tive medo. Quando começam a cair as
granadas de artilharia e o combatente é iniciante, ele fica meio nervoso e irrompe um
pouquinho de ‘paura’ (medo); isto não deixa de correr; mas há homens em que o medo é
maior; a minha “paura” era tolerável, dava para suportar; Deus me ajudou, até que, no fim,
saí são e salvo. Graças a Deus, estou aqui contando estas histórias [sic]” (SOBRINHO,
2001, p. 86). A questão do medo aparece com freqüência nos depoimentos dos soldados
que tiveram a experiência de combate e representa um momento no qual os indivíduos se
reconhecem como pertencentes ao conflito e suas imprevisíveis conseqüências.
Após recolher dois companheiros mortos pela artilharia alemã, um comandante de
grupo de combate, o veterano Enéas de Sá revela que sentiu medo em função das
circunstâncias do ataque. Segundo seu relato
Ambos tinham sido vitimados por uma granada de morteiro que caiu dentro do
buraco, uma toca mais ou menos grande, que servia para dois homens. Eu até
gostava de dormir sozinho naquele lugar. Foi a primeira vez eu tive medo, pela
manhã sempre encontrava covas conseqüência de arrebentamentos da Artilharia,
de morteiros; toda a noite cavava mais um pouco o abrigo para me proteger. Eu
tinha medo e acho que todos eles, também (ARAÚJO, 2001, p. 106).
A análise dessas entrevistas revelou que as experiências de guerra foram
fundamentais para que a religiosidade dos indivíduos pudesse organizar o caos da natureza
dessas experiências. Assim, a família e o medo da morte tornaram-se pontos de referência
numa dialética, constantemente equilibrada através da espiritualidade, o que garante
destaque a esses elementos na formação da identidade dos soldados que participaram da
guerra na Itália, chamados de veteranos da FEB.
Com o fim da guerra, esse conjunto de vivências passa por um processo de seleção,
ou seja, os atores sociais que constituem esse grupo de veteranos iniciam a sua mobilização
política e social a partir da eleição de símbolos e valores resignificados pela experiência de
guerra. Esses símbolos e valores, o nacionalismo, o patriotismo, a família, o medo da
192
morte e a religiosidade, foram relacionados no processo de formação de suas identidades
devido a sua abrangência coletiva em relação ao grupo.
No segundo momento de formação dessas identidades no pós-guerra, a construção
de memórias coletivas baseadas nas experiências dos soldados institui uma divisão entre
eles. A principal diferença que impõe essa divisão encontra-se na natureza da
autoconstrução de uma memória coletiva que sustente a identidade do grupo. Nesse caso,
tem-se a formação da memória dos veteranos FEB e a memória dos ex-combatentes,
militares que incorporaram à FEB, mas não tiveram a experiência de guerra na Itália. Essa
diferenciação é reforçada pelo significado atribuído pelos veteranos de guerra à sua
participação em operações de combate no front italiano em relação aos ex-combatentes,
que atuaram no litoral do Brasil ou não foram enviados para a campanha na Europa.
Por fim, no pós-guerra, percebe-se um processo de construção das memórias
coletivas dos veteranos da FEB e dos ex-combatentes, o que delimita os contornos dessas
identidades assumidas pelos grupos. Nosso foco de análise se restringe ao processo de
formatação da memória coletiva dos veteranos da FEB e dos ex-combatentes, organizados
em duas associações distintas.
Desta forma, foi possível perceber que as experiências de guerra foram
significativas para a construção identitária desses soldados. Através de vestígios de suas
memórias individuais, relatos, diários e correspondências, foi possível perceber que muitas
dessas experiências foram significadas religiosamente. Destacamos trechos representativos
dessas experiências, além de analisar o papel dos capelães no apoio espiritual às tropas. A
presença desses capelães foi de fundamental importância na mediação entre os soldados e
o sagrado no processo de significação de suas experiências de guerra. Alguns deles,
mesmo sem o contato direto com os capelães, relataram também que sua religiosidade foi
reforçada durante o conflito.
No pós-guerra, essas identidades entram em conflito com os interesses do Estado
Novo, seguido de um afastamento por parte do Exército. Assim, a ressocialização dos
soldados da FEB depende de sua organização e da luta por seus direitos políticos. A busca
por reconhecimento leva à criação de uma memória que legitime as experiências vividas
durante o conflito. A partir desse momento, surgem classificações para os febianos,
identificados pela natureza de suas experiências de guerra.
193
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VIEIRA, Joel Lopes. In: MOTTA, General Aricildes de Moraes. História Oral do
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VIOTTI, Cássio Abranches. Crônicas de Guerra: a força expedicionária brasileira na
Itália. s/ed, 1998.
194
O Processo Histórico da Formação da Associação Nacional dos Veteranos da Força
Expedicionária Brasileira: construção de um Espaço de Memória.
Franklin Lopardi Franco*
Orientador: Anysio Henriques Neto**
Resumo: O presente trabalho tem por proposta entender a criação da ANVFEB/JF, a partir
da análise de quatro etapas, a mobilização da FEB, a atuação desta em combate, a
dissolução da tropa e a criação das associações. Pois considerando estes fatores
entendemos a criação de uma associação de representação dos veteranos, criada em 1945
como Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - AECB a fim de entender a emergência
do grupo dos veteranos da FEB em detrimento dos Ex-Combatentes.
Palavras-Chave: Veterano, FEB, ANVFEB/JF, Ex-Combatente, Segunda Guerra Mundial
Abstract: The present work is to understand the proposed creation of ANVFEB / JF from
the analysis of four steps, the mobilization of the FEB, the performance in this combat, the
dissolution of the army and the creation of associations of representation. For considering
these factors mean the creation of an association representing the veterans, founded in
1945 as the Association of Ex-Combatants in Brazil - AECB in order to understand the
emergence of the group of veterans of the FEB to the detriment of Ex-Combatants.
Keywords: Veteran, BEF, NAVBEF / JF, ex-combatants, World War II
Introdução
A pesquisa realizou a análise do processo de criação da Associação Nacional dos
Veteranos da FEB - seção Juiz de Fora ANVFEB/JF a partir de quatro etapas de seu
contexto histórico. Consideramos que seu contexto histórico se iniciou com a formação de
seu contingente (1943), a segunda etapa do processo foi sua atuação no teatro de guerra
europeu (1944-19945), posteriormente a desmobilização dos efetivos da FEB (1945-1950)
*
Graduado do Curso de História – UFJF Editor-assistente da Contemporâneos – Revista de Artes e
Humanidades e Membro do LEPCON [email protected].
**
Mestre em Ciências da Religião/UFJF [email protected].
195
e consequentemente a análise do processo de re-socialização dos veteranos da FEB. Pois
considerando estes fatores entendemos a criação de uma associação de representação dos
veteranos, criada em 1945 como Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - AECB,
devida a necessidade de garantia dos direitos de guerra do grupo. Entretanto, dentro da
AECB surgiu uma divisão entre os membros da extinta FEB, sendo estes os ExCombatentes e os Veteranos da FEB. A partir da emergência de um subgrupo autointitulado Veteranos da Campanha da Itália temos a criação de uma nova associação, que
representa apenas aqueles que participaram na campanha da Itália (1944-1945). O processo
de emergência do subgrupo dos Veteranos da FEB ocorre inicialmente em nível nacional e
posteriormente dá origem à subdivisões nas seções regionais da AECB, neste caso
analisaremos a criação da ANVFEB/JF.
A mobilização da FEB
A entrada do Brasil na guerra aconteceu durante o Estado Novo, momento em que
o país estava dividido entre duas matrizes político-ideológicas. O eixo ao qual o Brasil
tinha algumas semelhanças ideológicas com o regime Totalitário Nazi-fascista. E a matriz
de influência Norte-americana, Considerado pela maioria do governo brasileiro como
opção mais lógica para a guerra (MCCANN, 1995. p. 17).
Francisco Cezar Ferraz analisou, a partir da declaração de guerra do Brasil ao Eixo,
a criação de um disciplinado front interno, muito influenciado pelo Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP). O sentimento de revanchismo causado pelo torpedeamento
dos navios brasileiros foi considerado como um dos elementos de sustentação para o envio
de tropas brasileiras para a Europa (FERRAZ, 2003, p. 68). Outro fator analisado pelo
autor sobre a mobilização da FEB, é que pela primeira vez na história do Brasil, brasileiros
iriam experimentar a experiência integral de cidadania, tornando-se cidadão-soldado, para
tanto era necessário ser um cidadão comum, tendo o direito de votar, ser votado e
expressar-se livremente, associado ao serviço militar fora do território nacional e exercer
“Tributo de sangue”
42
. As formas de exercício de sua cidadania no pós-guerra estão
42
“Tributo de sangue é quando um cidadão põe a sua vida a completo serviço da nação, correndo o risco de
perdê-la”. Cf. FERRAZ, Francisco Cesar. A guerra que não acabou: veteranos da Força Expedicionária
196
intimamente ligadas ao modo como este grupo social a exerceu durante a guerra, ou seja, o
discurso do cumprimento do dever patriótico se torna uma ferramenta de luta pelos seus
direitos (FERRAZ, 2003, p. 65).
João Baptista Mascarenhas Morais, comandante da FEB, ressalta que no momento
em que o Brasil declara estado de beligerância contra a Alemanha, existe uma deficiência
na infra-estrutura do país dificultando a elaboração de um plano de mobilização de tropas a
fim de defender o Nordeste. O comandante da FEB enfrentou sérias dificuldades como por
exemplo a falta de ligação rodoviária entre a capital (Rio de Janeiro) e o Nordeste
(MORAES, 1984, p. 130).
A análise do Marechal de Lima Brayner, chefe do Estado Maior da 1ª Divisão de
Infantaria Expedicionária é a de que o governo brasileiro não havia se atentado para as
proporções do conflito, assim como a complexidade da empreitada que a FEB deveria
empreender. A isso ele atribui a surpresa com que o governo foi pego com os
torpedeamentos, um estado que não entendia direito o que era a guerra e que não se
preparou para ela em nenhum momento, estava declarando estado de beligerância contra
uma potência européia (BRAYNER, 1968, p. 24). Brayner discorre que este despreparo
também resultou num atraso imenso da formação do primeiro escalão da FEB. É
importante ressaltar que apesar de todos esses problemas o comandante do Estado Maior
atribui ao esforço do comando da FEB uma análise positiva (BRAYNER, 1968, p. 31).
Boris Schnaiderman, ao tratar da mobilização, expõe duas dialéticas percebidas
durante este processo. A primeira foi o choque entre as realidades dos praças brasileiros e
dos soldados Norte-americanos, já que mesmo aqui no Brasil os estrangeiros dispunham de
um pouco mais de conforto do que os recrutas brasileiros, como por exemplo camas
macias com mosquiteiros. A outra dialética é a da sua realidade, de um universitário
voluntário, em relação a dos outros soldados, que foram convocados. O autor afirma que os
convocados se sentiam obrigados a aquele dever de proteger a pátria enquanto ele, que foi
militante da entrada do Brasil na guerra, percebeu que isso era uma necessidade da
soberania nacional (SCHNAIDERMAN, 1964, p. 8).
Brasileira. 2003. 395 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal de São Paulo, São
Paulo, 2003, p. 64.
197
A FEB em combate
A FEB foi criada oficialmente em 09 de agosto de 1943, através de uma portaria
ministerial, mantendo um padrão de organização inspirado nos EUA. Com um
compromisso de enviar três divisões para o teatro de guerra (SILVEIRA (a), 2001, p. 51).
A atuação da FEB nos campos da Itália consistiu no envio de três escalões, apesar
de ter mobilizado 25.334 homens divididos em cinco escalões. O 1º escalão desembarcou
no porto de Nápoles e foi incorporada ao V Exército Americano sob o comando do
General Mark Clark. Participou de quatro grandes batalhas como a de Monte Castelo,
Castelnuovo, San Quirino, Montese, dentre outras; libertaram cidades julgo nazista como
Montese, San Quirino e Fornovo. Dentre todas as batalhas, a FEB perdeu 471 soldados,
tendo 2722 feridos e ainda 35 de seus soldados foram feitos prisioneiros pelos alemães
(SILVEIRA (b), 1976, p. 8).
198
Foto 1: Tropas da FEB na conquista de Montese (1945). Fotografia disponível em:
http://www.portalfeb.com.br/serie-herois-esquecidos-6/
Ao chegar em solo italiano os praças tiveram um grande choque de realidade ao
serem postos sob o comando do V Exército Americano, Ferraz observa que no exército
americano:
Estas práticas desenvolvidas no contato com o Exército americano e com a
própria realidade de combate, porém, não implicavam desrespeito à hierarquia
ou faziam o Exército menos marcial. Mostravam, porém, um modelo de Exército
mais democrático, composto de cidadãos-soldados que tinham a consciência de
que a posição hierárquica superior era conseqüência de méritos individuais e
somente poderia ser exercitada em serviço, o oposto ao modelo brasileiro, em
que muitos oficiais entendiam a superioridade hierárquica como algo imanente, e
que deveria permear todas as relações sociais, dentro e fora dos quartéis
(FERRAZ, 2003, p. 92).
Esta discussão ainda é trabalhada por Schnaiderman, ao relatar sua chegada no
quartel, também expõe esta superioridade hierárquica imanente do Exército brasileiro.
Neste momento Boris Schnaiderman vai demonstrar o choque de realidades com o que o
convocado se deparou dentro do Exército brasileiro ele apresenta dois mundos distintos, o
dos que mandam e dos que obedecem, pois são mundos que não dialogam
(SCHNAIDERMAN, 1964, p. 8).
Acerca da campanha na Itália, o comandante da FEB, Mascarenhas de Moraes, fez
uma análise cercada de críticas, na qual aponta a falta de apoio logístico dado a FEB pelo
governo brasileiro.
Lamentavelmente, apesar de meus reclamos não tivemos no Brasil a logística
adequada à relevante missão que iríamos desempenhar no exterior. Os
uniformes, calçados e agasalhos, mal talhados e arrematados, eram inapropriados
ao clima frígido que enfrentamos. Felizmente em tempo fomos socorridos – esse
o termo técnico – pelos órgão logísticos americanos que nos supriram de todo
material que éramos deficiente na quantidade ou qualidade (MORAES, 1984, p.
359).
O Marechal Mascarenhas recebeu a promessa dos Norte-americanos que o material
bélico comprado pelo Brasil chegaria a tempo dos 2º e 3º escalões da FEB, se equiparem e
se adaptarem a eles na Itália (MORAES, 1984, p. 206), mas isto não ocorreu na prática, o
199
que resultou na utilização destas tropas no front ainda em estado de adaptação ao
equipamento Norte-americano. O uso destas tropas despreparadas se deu em conseqüência
de falhas na organização do front aliado na Itália (MORAES, 1984, p. 225).
Em relação ao combates da FEB, um dos pontos cruciais pensados por
Mascarenhas de Moraes sobre a campanha da Itália foi a conquista de Monte Castelo, o
Marechal atribui importância da conquista não somente devido aos fatores estratégicos,
mas também porque serviu para levantar o moral das tropas. Neste momento a frente
brasileira na Itália se encontrava estagnada assim como todo o front Aliado, logo essa
vitória representou um prosseguimento importante para as operações da FEB, que mesmo
providas das dificuldades citadas acima conseguiu elevar o seu prestígio perante os Aliados
(MORAES, 1984, p. 360). Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pela FEB, após a
vitória Aliada a tropa recebeu o reconhecimento de seus feitos, tanto dos Aliados quanto
do Exército alemão.
Foto 2 do segundo ataque a monte castelo. Fotografia disponível em:
http://www.externatotiradentes.com.br/Mes%20Fevereiro/BATALHA%20DE%20MONTE%20CASTELO.h
tm
Desmobilização da FEB
200
Assim como a FEB foi crida em 1943, no dia 6 de Julho de 1945, através de um
aviso ministerial o contingente foi oficialmente dissolvido enquanto ainda estava em solo
italiano atuando como tropa de ocupação nas regiões liberadas. Consequentemente
comando de Mascarenhas de Moraes também foi dissolvido no momento do aviso
ministerial. O grande dano desta decisão exposto por Joaquim Xavier da Silveira foi que
um dos propósitos da formação da FEB foi o de transmitir as experiências adquiridas na
Europa para o resto do Exército brasileiro após a sua atuação no teatro de guerra europeu.
[...] as unidades do 1º escalão – cuja a denominação passa a ser somente FEB – a
medida que chegarem a esta capital, como norma, serão considerada excluídas da
referida força, ficando, em consequência, até que lhes seja dado destino
definitivo automaticamente subordinados ao comando da 1ª Região Militar, para
fins administrativos e disciplinares, ressalvados aqueles que, por sua natureza,
incumbam ao comando da FEB por se relacionarem com regularização de
medidas e encargos anteriores de sua competência. [...] (SILVEIRA (a), 2001, p.
337)
Desta forma esta força expedicionária funcionaria como uma unidade de
modernização do Exército brasileiro, entretanto a desmobilização feita por Getúlio tirou
este potencial do contingente. E como consequência disto os membros da já dissolvida
FEB enfrentaram diversas dificuldades durante o pós-guerra.
Segundo Joaquim Xavier da Silveira:
Toda a tropa que se desmobiliza após uma guerra tem dois problemas
fundamentais: a readaptação e o amparo psicossocial e material. Nada disso foi
feito a tempo da desmobilização da FEB. O povo brasileiro não foi preparado
adequadamente; o soldado não foi esclarecido de como deveria proceder para se
readaptar ao dia-a-dia e o povo não foi informado como deveria recebê-lo
(SILVEIRA (a), 2001, p. 235).
A diáspora da FEB atingiu tanto oficiais quanto aos soldados. Logo no momento da
reapresentação todos os oficiais foram designados a se apresentar em locais distantes do
seu local de origem, enfrentando preconceito dos demais oficias. Acerca dos praças, a
situação foi ainda mais grave, pois os soldados não tinham mais o seu emprego a sua
espera e para achar um novo trabalho sua situação era dificultada pelo o preconceito da
201
neurose da guerra43. A solução para garantir seus direitos de guerra culminou na tentativa
de organização de associações de veteranos de guerra, isto é, instituições representativas
deste grupo social (SILVEIRA (a), 2001, p. 237).
O comandante do Estado Maior da FEB Floriano de Lima Brayner entende que o
início do processo desmembramento da FEB se deu pela decisão do retorno antecipado das
tropas ao Brasil, o que resultou na divisão da Força em escalões. Ele afirma também que
era interesse Norte-americano que a FEB desocupasse rapidamente a Itália. Pois assim
como não fizeram força para o Brasil chegar no Teatro de Operações europeu, queriam que
o Brasil fosse logo dispensado de seus serviços. Do apoio dado pelos Norte-americanos foi
cobrado cada centavo ao governo brasileiro, segundo o autor “os americanos não só nos
cobraram pelo ar que se respira porque nenhum banco era capaz de medi-lo” (BRAYNER,
1968, p. 510).
Ao chegar no Brasil, de todas as promessas feitas aos soldados, poucas foram
cumpridas, ou seja, o que o pracinha enfrentou foi um total descaso por parte do governo
na sua re-socialização. Assim como afirma Lima Brayner sobre a mobilização desordenada
durante a criação da FEB, o que gerou atrasos na formação dos escalões, Ferraz aponta
para uma desmobilização feita sem nenhum projeto calculado que proporcionou danos até
maiores do que a mobilização (FERRAZ, 2003, p. 183). Por parte do governo foi iniciado
um programa de re-socialização, com a promulgação de algumas leis como, por exemplo, o
Decreto-Lei 7270, de 25 de janeiro de 1945, assinado enquanto a FEB ainda estava na
Itália combatendo. Este decreto lei regularizou o atendimento aos inválidos das Forças
Armadas, estabelecia também a criação da comissão de Readaptação de Incapazes
(SILVEIRA (a), 2001, p. 242).
Ainda tratando de movimentos de reconhecimento da memória da FEB por parte do
Estado, o repatriamento dos corpos, fez parte deste processo. O qual começou com a
criação da Comissão de Repatriamento, chefiada pelo próprio comandante da já extinta
FEB, em 1952 durante segundo governo de Vargas, a comissão decidiu que o processo
seria concluído com a criação de monumento nacional dedicado ao esforço de guerra
brasileiro, no qual seriam abrigados os restos mortais dos brasileiros, até então, enterrados
43
Havia um mito de que todo pracinha estava propício ao trauma da guerra e que isto o colocaria
desqualificado para diversos tipos de trabalho. Cf. SILVEIRA, Joaquim Xavier. A FEB por um Soldado. Rio
de Janeiro, Biblioteca do exército Ed., Editora Expressão e Cultura – Exped LTDA, 2001, p. 237.
202
no Cemitério Militar de Pistóia (MORAES, 1984, p. 584). A obra de construção do
monumento para receber os corpos só foi iniciada em 1957, sendo o monumento
inaugurado em 1960, em uma importante solenidade carregada de uma áurea simbólica. A
cerimônia também contou com uma forte participação popular e serviu para voltar um
pouco à atenção aos veteranos da FEB, desta forma o local pode ser entendido como um
lugar de memória da FEB (FERRAZ, 2003, p. 344).
Foto 3: Monumento as três armas que combateram na Itália e Mausoléu dos brasileiros mortos em
combate ( o nome desse monumento é “Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial”),
nele está contido também um mausoléu, onde foram abrigados os restos mortais dos soldados sepultados no
Cemitério Militar de Pistóia e mais o tumulo de destaque ao soldado desconhecido. Fotografia disponível em:
http://www.portalfeb.com.br/convite-troca-da-guarda-no-mnmsgm/
Mas esse sentimento de prestígio não foi uma constante no cotidiano dos veteranos
da FEB, pois seus problemas não restringiam somente ao reconhecimento do seu esforço
de guerra pelo Estado, mas também pela sociedade como um todo. Um episódio que
marcou essa luta do febiano foi a copa de 1950, na qual os pracinhas declaram que mesmo
tendo perdido a Copa, os jogadores brasileiros gozavam de uma consideração muito maior
por parte da memória popular (FERRAZ, 2003, p. 211).
A criação da associação da AECB e emergência da ANVFEB
203
Em resposta ao esquecimento dos veteranos e os problemas de re-socialização
enfrentados pelo grupo, este começa a se organizar em associações. A primeira associação
foi criada em outubro de 1945 com nome de Associação dos Ex-Combatentes do Brasil
(AECB), que já havia sido pensada ainda em solo italiano. Seus ideais seriam lutar pelos
direitos dos Ex-combatentes e manter vivo o que eles chamam de espírito febiano. Com a
desmobilização antecipada esse pensamento ficou desarticulado, mas Ferraz atribui a
criação da associação com a articulação dos membros que defendiam o ideal comunista.
Algo que serviu para o afastamento de outros veteranos (FERRAZ, 2003, p. 266)
Outro fator para o afastamento entre os veteranos da FEB e a AECB se deu ao
caráter abrangente da filiação de seus membros, pois consideravam todos que foram
mobilizados para o esforço de guerra como Ex-Combatentes, até mesmo a marinha
mercante. Este fato gerou muitas disputas, pois os Veteranos da FEB entendiam que a sua
experiência de guerra era diferente da experiência dos demais membros mobilizados pelo
esforço de guerra brasileiro (FERRAZ, 2003, pp. 245-246). Essa situação persistiu ao
longo de duas décadas, aliado as disputas por uma associação apartidária e acabou por
resultar na divisão da AECB. Consequetemente foi criado o Clube dos Veteranos da
Campanha da Itália (CVCI), em 16 de julho de 1963. Esta nova associação tinha o caráter
apolítico e se propunha a focar sua atuação nos problemas dos Veteranos da FEB, ou seja,
aqueles que tiveram experiência de guerra na Europa, e diferentemente da AECB, para sua
admissão no CVCI era preciso ter a medalha de campanha da FEB (SILVEIRA (a), 2001,
p. 250).
No capítulo cinco de sua tese, Ferraz trata a formação das associações de veteranos
de guerra brasileiros como um elemento catalisador para o estabelecimento do veterano
como agente pleno da memória febiana:
[...] neste capítulo será analisada a forma como os grupos organizados dos exexpedicionários, reunidos nas associações de ex-combatentes e de veteranos,
tornaram-se agentes de memória, no sentido mais completo do termo, ou seja,
um conjunto de cidadãos que desempenham os esforços de rememoração e
valorização permanente de suas ações do passado não apenas com os objetivos
de comemoração dos feitos, mas como condição de sobrevivência concreta e
identidade social (FERRAZ, 2003, p. 240).
204
O autor argumenta que este esforço de organização do grupo foi um processo
construído, porém, não de maneira homogênea nos aspectos sociais e culturais, já que
houve que houve conflitos, disputas e divisões entre as associações ao longo deste
processo.
Inicialmente estas agremiações surgem para atender a uma necessidade mais
imediata, dentre elas a criação de espaço para convivência dos associados. Segundo Ferraz
“em seus primórdios, as seções eram percebidas pelos ex-combatentes mais como um local
de atendimento de necessidades imediatas do que de formulação de posicionamentos
públicos para as questões nacionais” (FERRAZ, 2003, p. 260).
Devido a falta de apoio governamental, aliado ao não reconhecimento da sociedade,
estas atuações em plano nacional se tornam iminentes. A mais importante destas ações no
âmbito nacional foi o “Desfile do Silêncio”44, organizado em 23 de junho de 1947, com a
finalidade de entregar a câmara e ao poder executivo alguns memoriais contendo as
reivindicações dos pracinhas (FERRAZ, 2003, p. 268).
A fim de entender os conflitos internos ocorridos na AECB, que dão origem a
ANVFEB, analisamos as principais características da formação dos grupos. Inicialmente a
partir da diferença entre Ex-Combatente e Veterano da FEB. Ex-Combatente foi um termo
genérico cunhado para definir todos os que foram mobilizados pelo esforço de guerra, ou
seja FEB, FAB, praiano45, Marinha de guerra e Marinha mercante. O termo Veterano da
FEB foi utilizado para identificar os cidadãos-soldados que compuseram a FEB e tiveram a
experiência de guerra na Itália (SILVEIRA (a), 2003, p. 249).
Outro elemento de diferenciação entre os grupos foi gerado pela politização da
AECB e suas regionais. Como já foi dito, os comunistas tiveram uma ação importante nos
primórdios da associação levando a uma tendência de politização dos associados. Ferraz
atribui forte atuação das esquerdas comunistas dentro a AECB, apenas no início de sua
organização. Sua forma atuar foi também diferenciada, pois eles não buscaram uma
44
Foi uma passeata que contou com a participação de veteranos, familiares e simpatizantes. Cf. FERRAZ,
Francisco Cesar. A guerra que não acabou: veteranos da Força Expedicionária Brasileira. 2003. 395 f. Tese
(Doutorado em História Social) – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2003, p. 328.
45
O termo praiano, que também pode ser entendido por praieiro, posteriormente, foi utilizado para designar
os soldados que foram mobilizados para defender o litoral, mas não chegaram a entrar em combate direto
com inimigo. Cf. FERRAZ, Francisco Cesar. A guerra que não acabou: veteranos da Força Expedicionária
Brasileira. 2003. 395 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal de São Paulo, São
Paulo, 2003, p. 176.
205
estratégia conciliadora com as autoridades, já que entendem que os benefícios são direitos
legítimos a serem exigidos e partem do pressuposto que o Ex-Combatente é consciente
deste fato (FERRAZ, 2003, p. 266).
Resultado do processo de divisão dos grupos, em 3 de Julho de 1969 o CVCI
ganhou o nome de Associação dos veteranos da FEB (AVEFEB) e em 1972 passou para
Associação Nacional dos Veteranos da FEB, já com uma diretoria nacional, vinculada as
associações regionais (SILVEIRA (a), 2001, p. 250).
Em Juiz de Fora o projeto de organização de uma regional da AECB foi idealizado
pelos veteranos Adson Marques e Adailton Garcia, com o auxílio do civil Joaquim
Henrique Vianna Júnior, advogado, os quais criaram a AECB/JF em 20 de abril de 1947.
Joaquim Henrique Vianna Júnior ocupou o cargo de presidente da associação na primeira
gestão da diretoria (AECB/JF, 1947-1955, p. 3).
Dentro da AECB/JF e posteriormente na ANVFEB/JF, em âmbito regional, sempre
se configurou uma vontade de apolitização de ambas as instituições. Percebemos esta
necessidade de uma negação da ação política, por exemplo, nos estatutos do CVCI e da
ANVFEB. Assim como na ata de criação da AECB/JF:
[...] a seguir foi dada a palavra ao senhor presidente que de novo fez o aviso do
Presidente de Honra, de que na Associação não era e não é permitida a discussão
de espécie alguma na pessoa de que se chama política (AECB/JF, 1947-1955, p.
4).
Em Juiz de Fora esta discussão também se prolongou, pois houve Ex-Combatentes
que se candidataram a cargos públicos políticos e em outros casos se filiaram a partidos
políticos. Como por exemplo, o caso de Adalberto José de Oliveira, presidente da
AECB/JF durante gestão 1962-1964, filiado ao PTB, Adalberto acabou preso durante o
golpe militar de 1964 e por isso as reuniões foram interrompidas de maio até agosto do
mesmo ano, quando temos a formação de uma nova diretoria, agora com proposta apolítica
(AECB/JF, 1962-1969, pp. 38-40).
Este processo de disputa identitária regional resultou em Juiz de Fora, na criação de
uma AVEFEB/JF, em 29 de agosto de 1971 (AVEFEB/JF, 1971-1981, p. 2). O processo de
nacionalização das associações de veteranos culminou em 1972, transformando a
206
AVEFEB em ANVFEB acompanhado agora por suas regionais (SILVEIRA (a), 2001, p.
250).
Conclusão
Como podemos perceber nos capítulos 1 e 2, a mobilização planejada pelo Brasil a
fim de mandar tropas para Itália, não foi um esforço organizado, não se preparou para
ataques das nações as quais declarava guerra, não possuía infra-estrutura para o
deslocamento de tropas e nem para produzir itens necessários a guerra. Estes fatores
resultaram no atraso do envio das tropas para o front italiano, ao chegar na Europa a tropa
teve de completar o treinamento, pois não estava adaptada ao armamento comprado dos
Estados Unidos, além de enfrentar dificuldades com relação ao clima, não tinham roupas
adaptadas ao frio.
A dissolução da FEB feita ainda em solo europeu foi outro fator problemático, o
governo brasileiro não tinha um plano definido de re-socialização dos Ex-Combatentes.
Quando a tropa volta de sua atuação no Teatro de Guerra europeu, além da lei de
assistência médica, os veteranos não tinham outros direitos adquiridos. Este quadro será
um dos principais motivos para a organização em associações.
A ANVFEB/JF foi parte integrante deste processo nacional, em Juiz de Fora
coexistem as duas associações, AECB/JF e ANVFEB/JF. As quatro etapas por que passou
os Veteranos da FEB é no entendimento da pesquisa, crucial para entender a composição
do museu da FEB, assim como sua criação. Podemos perceber, que na constituição do
museu a exposição de peça que representam sua luta por direitos e a sua definição como
veterano de guerra, como será explicado no capítulo seguinte.
Referências bibliográficas
BRAYNER, Floriano de Lima. A Verdade Sobre a FEB, Memórias de Um Chefe de
Estado – Maior na Itália. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A. 1968.
207
FERRAZ, Francisco Cesar. A guerra que não acabou: veteranos da Força Expedicionária
Brasileira. 2003. 395 f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal de
São Paulo, São Paulo, 2003.
MCCANN, Frank D. Aliança Brasil Estados Unidos. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1995.
MORAES, João Batista Mascarenhas. Memórias. 2 Ed. – Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1984.
SILVEIRA (a), Joaquim Xavier. A FEB por um Soldado. Rio de Janeiro, Biblioteca do
Exército Ed., Editora Expressão e Cultura – Exped LTDA, 2001.
SILVEIRA (b), Joel. O Brasil na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora
Tecnoprint. 1976.
SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1964.
Fontes primárias
Acervo histórico da ANVFEB/JF, coleção atas de reuniões.
AECB, Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. 03/01 Livro ata de Reunião Diretoria
1947 a 1955 Cx07 AECB/JF.
AECB, Associação dos Ex-Combatentes do Brasil. 03/07. Livro ata de Reunião
Extraordinária 1962 a 1969 Cx07 AECB/JF.
ANVFEB, Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. 03/09
Livro ata de Assembléia 1971 a 1981 Cx08 ANVFEB/JF.
208
Literatura e Representações II
Resgate dos Arquétipos Indo-americanos n’O Feitiço da Amérika.
Aline de Moraes Pernambuco*
Resumo: O livro “O Feitiço da Amérika – Jamo Panka Pixipre Jamo”, de Jacob Goldberg
e Oscar D’Ambrósio, publicado em 1992, promove um mergulho nas origens do continente
americano, resgatando culturas e línguas extintas através de poemas, que dialogam com
estudos acerca do tema versado. Da Graelândia à Terra do Fogo, palavras, povos, culturas
e episódios históricos são revelados sob uma perspectiva poética e histórica. A obra
informa, entre outras coisas, que, em 1492, haviam na América entre 2.000 a 2.200 línguas
faladas entre os povos que habitaram o território, antes da chegadas dos espanhóis e dos
portugueses. O livro possibilita o reencontro com arquétipos e símbolos americanos,
propiciando ao leitor um encontro com as próprias raízes. Dessa forma, O Feitiço da
Amérika é um instrumento de representação dos povos indo-americanos que, quando não
totalmente extintos, sobrevivem à margem do sistema dominante ou integrados
forçosamente a ele, perdendo suas raízes e com pouca representatividade, num mundo que
contraditoriamente se vangloria do avanço nos meios de comunicação.
Palavras-chave: Arquétipos; América; Línguas.
Abstract: The book "The Craft of Amerika - Jamo Panka Pixipre Jamo," Jacob Goldberg
and Oscar D'Ambrosio, published in 1992, promotes a dip in the origins of the American
continent, rescuing extinct languages and cultures through poems, that dialogue with
studies on knowledgeable of the subject. Graelândia of Tierra del Fuego, words, people,
cultures and historical events are revealed in a poetic and historical perspective. The book
tells, among other things, that in 1492, America had 2,000 to 2,200 languages spoken
among peoples who inhabited the territory before the arrival of the Spanish and
Portuguese. The book allows the rediscovery of American archetypes and symbols, giving
*
Mestranda em Estudos Literários e Culturais / UFJF
209
the reader an encounter with one's roots. So, The Spell of Amerika is an instrument of
representation of Indo-Americans who, if not totally extinct, surviving on the margins of
the dominant system or integrated with it forcefully, losing their roots and with little
representation in a world that boasts a contradictory advance in the media.
Keywords: Archetypes - America - Languages
“Um dia seremos o que somos” - Jacob Goldberg
Entre os mais de vinte títulos publicados por Jacob Pinheiro Goldberg, “O Feitiço
da Amérika” (1991), ocupa um espaço determinante. Em formato enciclopédico, foi escrito
em parceria com o jornalista, pesquisador e crítico de literatura argentino, Oscar
D’Ambrósio, trazendo mais de 450 páginas de poemas inspirados no continente americano
- da Groelândia à Terra do Fogo - seguidos por estudos a cerca do tema versado. Apresenta
geografias, tradições, culturas, mitos e línguas, em grande parte extintos após a chegada
dos espanhóis e portugueses, que, justificados pela Igreja Católica, mataram e eliminaram
milhares de centenas de povos da humanidade, entre eles, os ameríndios, que constituíam
povos antigos, de riqueza e beleza inomináveis.
A obra promove uma viagem étnica e literária pelas veias mais profundas da
América, resgatando e (re) criando histórias, estórias, símbolos e arquétipos. O próprio
título é uma ruptura com o etnocentrismo europeu, que além de impor à força sua cultura,
impôs, ainda, sua versão sobre o “descobrimento” e suas línguas. O subtítulo, JAMO
PANKA PIXIPRE JAMO significa “aquele que está preso nas garras do jaguar tem que ser
jaguar”, expressão originária da língua dos índios axé, situados na região que hoje
conhecemos como Paraguai. Presente em diversos povos, de norte a sul, o jaguar é figura
mítica que tem diferentes significados entre os povos indo-americanos, vinculado a um
inconsciente coletivo que busca o equilíbrio cosmológico, o elo entre sagrado e profano,
caos e cosmo, terra e céu. O poema “Amérika”, traduzido para o polonês por Henryk
Siewierski, promove um encontro de diferentes tempos e espaços. O eu lírico presencia
instantes históricos e cotidianos, e leva o leitor para um mergulho imaginário no
continente, em suas variadas formas de vida.
210
Sempre desconfiei que você é a casa que cada um carrega
nas costas,
cabeça, sol, som e vento,
como que carrega o filho querido,
por entre a tempestade.
Uma lembrança que alguém perdeu,
de um martírio visionário,
longas terras, de liberdade,
cavaleiros cavalgando,
sem Juiz e sem Rei.
Jovens e crianças delirando um delírio grandioso,
festa de amor, dança, febre, sexo,
velhos rindo de costas ao sol,
em paz com o que foi,
com o que acontecerá.
Um pandeiro,
aromas de comida proibida,
pernas compridas, desfilando anseios prolongados,
por festivais de anedotas e trégua.
Martí, Bolívar, Colombo,
um desafio seco à maldição,
Tiradentes, um dentista enlouquecido pela festa da cor,
vida, emancipação.
Um cholo deitado,
nas cordilheiras,
um índio navajo espelhando na água
sua crença num amanhã
de paz.
Uma garota saborosa
de tranças, trançando uma transa de bilhetes
no recreio da escolinha mexicana,
lendo, às escondidas,
ouvindo um apelo de amor
do moleque francês do Canadá.
Uhm, uhm, uhm.
Que sons terríveis se ouvem no chão da Amérika,
gente.
Peladas e miseráveis, populações sugadas pelos donos da banana,
do ouro, do açúcar,
a indústria de querer vestir à européia.
Mas não são sinos de finados,
são sinos de alerta que eu ouço
no assobio da invocação
(existe outra palavra mais brava, mas não cabe no jeito mineiro)
que percorre,
como calafrios de esperança,
as minas de estanho,
os gemidos da gravidez desta terra curtida
por homens que caminham descalços,
com cargas de burros.
211
Paraguai de Élvio Romero,
Assunção,
pátria idolatrada,
onde se cambia dinheiro e alma pela praça,
mas se fala um troco guarani,
por trás dos móveis quebrados.
No sul, norte, leste,
sei lá os pontos cardeais,
o coração tem pontos cardeais?
Reside um filho de asteca, maia,
num Peru ou Uruguai,
de estradas atômicas, num mundo de arrebóis.
Vou lamber suas feridas, Amérika,
desastradas, infelizes, empobrecidas,
de gente sofrendo, doente, morrendo,
numa guerra por engano,
como um cão leal e raivoso.
Os leões virão com os negros
pelos mares para esta terra,
com o desejo do sexo do branco pelo negro,
o erotismo desperdiçado de corpos enganados,
na prosa de Faulkner,
numa fazenda do Sul.
Jerônimo,
Ave Pelada,
Touro Sentado,
Nego Pai João!
Palma, Pau, Terra, Cacique, Mulher Antônia.
Zero à esquerda no balanço,
uma palavra pela outra,
um horizonte por uma raiva,
eh, beliscão no opressor,
eh, beliscão no guardião,
um cavalo, um avestruz, um garanhão, uma águia,
um canal de frustrações,
Amérika nos nossos pés; nas nossas mãos.
Michabo, Jockeke e Manabocho.
A imaginação poética, segundo o filósofo francês Gaston Bachelard, não é um
resultado único e imediato da experiência, da psicologia pessoal do artista. A arte em sua
essência original traz reflexos de um inconsciente coletivo, presente nos arquétipos. A
História dos povos ameríndios extintos e a criação poética de Goldberg originária daquilo
que existiu mas não existe mais, provém de uma memória profunda presente na América.
Segundo Carl Jung, a noção de imagem está vinculada à memória indireta e à fantasia. Em
1905, em sua publicação sobre os “Estudos Diagnósticos de Associações” encontramos o
212
estudos dos complexos, entre eles o complexo de imagens. Há uma imagem primordial,
vinculada ao psiquismo coletivo, que ele chamará, em 1919, de arquétipo.
O inconsciente coletivo seria, então, a junção entre instinto e arquétipo,
universalmente herdado e sentidos como uma necessidade interior. Os instintos levam à
ação e os arquétipos à apreensão do sentido. Logo, tanto para Bachelard como para Jung, a
arte não é apenas um efeito da experiência individual e imediata do artista, mas de uma
sensação humana que o faz expressar signos que não teriam espaço fora da expressão
artística. A arte é o canal por excelência onde ecoa os arquétipos mais profundos do
inconsciente coletivo. Assim, “O Feitiço da Amérika” tem a força de fazer reviver os mitos
ocultos e a saga guerreira dos povos indo-americanos, tocando “(...) as regiões profundas
da alma, salutares e libertadoras, onde o indivíduo não se segregou ainda na solidão da
consciência, seguindo um caminho falso e doloroso. Tocou as regiões profundas, onde
todos os seres vibram em uníssono e onde, portanto, a sensibilidade e a ação do indivíduo
abarcam toda a humanidade” (Jung: 1995, p. 161)
Nos mitos presentes na América do Sul, o Jaguar é uma figura de quatro olhos que
representa a clarividência dos espíritos noturnos. Em certas tribos brasileiras, ele é o herói
da civilização, que entrega o fogo ao Homem e lhe permite a ascese à consciência. O
domínio do fogo é, então, a passagem das trevas primordiais à iluminação. Este Jaguar
semelhante ao herói grego Prometeu representa um fenômeno arquetípico que demonstra a
necessidade do ser humano de encontrar o equilíbrio cosmológico.
Na cultura asteca, o imperador recebe as homenagens dos guerreiros num trono
revestido com pele de Jaguar. Os Tupynambás presenteiam o recém-nascido com patas de
Jaguar. O felino é representado com duas cabeças que engoliram o sol e a lua, trazendo em
si, portanto, a luz e as trevas. No fim do mundo, ele desceria para devorar os humanos. Na
3ª Idade Maia-Quiché, que corresponde a um período agrícola, o Jaguar é reverenciado
como entidade lunar, simbolizando fertilidade. Aparece também em outros mitos como o
coração das montanhas.
Uma conhecida representação dessa figura está presente na Pedra do Sol, que nos
revela a cosmogonia asteca. Com 24 toneladas e 3.5 metros de diâmetro, o monumento nos
mostra quatro idades ou os quatro sóis do universo: do Jaguar, do Vento, da Chuva de
Fogo e da Água. O quinto sol é o centro, que traz o rosto de Tonatiuh, deus do Sol,
213
circundado, de cada lado, por garras de Jaguar que seguram corações humanos. O sol
central incorpora todo o espaço e o tempo do Universo e representa o umbigo do mundo.
Na língua Náuatle, México significa “umbigo da lua”.
O umbigo, como sabemos,
representa o fim da conexão entre dois corpos, dois seres: mãe e filho - e o começo de uma
vida independente, de um ser que começa a se formar, que deve estar pronto a enfrentar os
monstros do mundo, exteriores e interiores. O que está no centro é o perigo maior, o centro
de nós mesmos, onde somos submetidos a labirintos, cerebrais e míticos. A Pedra do Sol é
o símbolo da busca pelo auto-conhecimento humano. Será que essa busca foi cumprida ao
longo dos cinco séculos que nos separam de nossas raízes? O primeiro passo é voltar-se
para o seu próprio umbigo, e dessa forma, orgulhar-se da História pouco conhecida de
nosso continente, mas valente e gloriosa. Ainda que tenham tentado calar a sabedoria maia,
asteca, inca, siox, tupi, entre outros, processo de dissolução que continua em atividade, é
possível mergulhar no continente e reconhecer-se, para que seja cumprido o rito de autoconhecimento e independência.
O Jaguar é a figura arquetípica que conduz o poeta ao ritual de iniciação para
mergulhar numa realidade profunda que se ancora no inconsciente da América. Ele é o
símbolo primordial, a ponte entre a escuridão e a iluminação, da inconsciência e caos à
consciência e cosmo. O poeta é como a figura do Xamã, profundo conhecedor da cultura
de seu povo, invoca poderes divinos para a cura e advinha o futuro, ponte de contato entre
sagrado e profano. Como um Xamã invertido, ele invoca um mergulho profundo no
passado mais longínquo da América, advinhando um tempo que não viu, entregue ao
inconsciente coletivo que o levará aos arquétipos mais profundos de suas raízes telúricas,
“mergulhando nos fantasmas da América, advinhando suas palavras mortas e reencontrando o Desencanto”. Citado pelo autor,o poeta chileno Vicente Huydoro, no seu
poema Arte Poética, nos fala do poder do verso, de abrir mil portas, fazer reviver, criar e
inventar, dar vida ou matar. É dessa forma que se inscreve os poemas de “O Feitiço da
América”.
Difícil resgatar o que já não existe mais. Mas pela entrega e mergulho dos autores é
possível tomarmos conhecimento do que está, inclusive, excluído do conhecimento oficial.
Uma das informações que a obra nos fornece é de que, em 1492, haviam na América entre
214
2.000 a 2.200 línguas faladas entre os povos que habitaram o território, mas que estão
mortas e são intraduzíveis para nossas palavras e mentes.
No poema “Em Hokan-Coahuiltecan”, podemos vislumbrar , entre diversas
informações históricas ausentes dos nossos livros didáticos, algumas das mais de duas mil
línguas indígenas que desapareceram, como a que dá título ao poema:
Ou em asteca-tanoan, otomangean, chibcha, iroques, cadoan,
jicaque
ou cada susto, osso ou marfim, pedra,
as casas portáteis para viajar,
se pode contar tua saga guerreira,
na voz do xamã.
vamos seguir o caribu
na rota selvagem,
com tobogãs, arcos e flechas, pinhões,
cactos, raízes e salmões.
No Chile de então,
comer mariscos e mais embaixo,
caçar guanaco e a ema,
mandioca na floresta tropical,
nos Andes meridionais,
com os atacamenos e diaguitas no norte, e os araucanos no sul,
uma corrida para as canos
em troncos, com figuras verticais.
No útero de Tamaulipas e Tehuacan,
moram ossos de veado, antílope e uma
raça extinta de cavalos por quem choram
malhos, cachimbos tubulares, gorjeiras, socadores e pilões
dos Salishan.
8.000 anos antes de Cristo,
nos Andes havia pontas lascadas, reaspadeiras e
um garoto travesso brincando com o osso de uma lama selvagem.
Nas savanas de São Paulo e Paraná,
pedra e osso, cerâmica tupi, manchados de pedra lascada
são os embriões de um
salto na escuridão.
Em Wari, milhares de casas
encheram os horizontes
como o Império Inca podia calcular
pelo quipu os horizontes de cada um,
nas ordens do
Sepa Inca.
E para concluir uma garganta
gemendo sem norte, com cogumelo,
215
as gentes e suas falas
(porque, um homem sem fala, morreu).
Os atacamenos, os diaguitas,
o temível Topa Inca Yupanqui,
o atlato dos Anasazi, os ornamentos de
conchas, por que acabaram,
Senhor?
Por que o braço teve ódio,
os dados foram mortalha do povo, Senhor?
A água, proibida,
o sangue escorrendo, o orgulho escarmento,
uma dor lancinante, um enterro sem glória,
um desterro maldito, uma virada felina,
a brasa purificadora, em nome de quê?
Do dono da terra que veio de longe,
aqui massacrar,
rezando e matando,
levando a prata, o sonho, a quimera, sem nada deixar.
Deixando ataúde, jejum e jejum.
Em nome de quem, Viracocha, em nome de quê, meu Senhor?
A relação entre esses povos e a natureza, de uma intimidade desconhecida entre
nós, é evocada, num tempo poético presente, que nos transfere para tempos e espaços
perdidos. Além da integração entre os povos autóctones extintos, as crenças dos povos
atacamenos (Equador), diaguitas (Argentina) e araucanos (Andes) são (re) vivenciadas em
versos que tomam o olhar de dentro. A tensão e o conflito estão presentes em todo o
poema, como a relação entre a cultura mexicana e o invasor espanhol ou o útero destruído
em nome do metal, revividos novamente. Mais do que aculturação, são submetidos à
destruição.
O dialeto salishan, que representa um grupo de línguas indígenas conhecido na
Columbia Britânica e no norte dos EUA é invocado no poema
representando a
multiplicidade lingüística do continente. Em seguida, somos levados para oito mil anos
AC, como espectadores de um momento infantil: um garoto que brinca com um osso de
lhama, dois seres praticamente extintos em sua forma original. Os objetos, as artes, os
216
instrumentos, as brincadeiras das crianças, lembram-nos a vida cotidiana de um povo que
já não existe.
Os poemas de “O Feitiço da Amérika” dão saltos no Tempo e no Espaço, evocam
imagens singulares para fazer reviver em nós um eco, uma centelha que não deve ser
extinta, mas revivida como luta e resistência. Numa sociedade que se diz democrática, o
que se vê e sente, de fato, é o silêncio. A ausência. A esquiva e o ataque, que são a mesma
face de uma moeda, em torno dessas pessoas que se foram e que construíram uma trajetória
que está, a cada dia sendo apagada, dizimada. Os poucos povos originais que ainda restam
estão a chorar a morte da Terra, a compra da Terra, a destruição que continua sendo oficial,
permitida e promovida pelas instituições religiosas, acadêmicas, cientificas, culturais e
políticas. A América continua sendo destruída, mas um silêncio impera de forma brutal. Na
mídia, onde teoricamente todos democrática e civilizadamente tem seu espaço de
representatividade, não se fala sobre os povos que estão sendo obrigados a esquecerem-se
de si mesmos para sobreviver ao domínio europeu e , agora também, americano, que nada
tem a ver com as raízes humanas da América que ainda, bravamente, resistem, em minoria
minguada e cada vez mais minguada, nesta terra que se não é de todos, só pode ser terra de
ninguém. Portanto, é preciso ser jaguar nas garras dos jaguares, que também são minoria em número de privilégios - mas que estão a solta, dando continuidade ao processo de
destruição do nosso continente.
Referências bibliográficas
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
DURANT, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo, Martins
Fontes, 1997.
GOLDBERG, Jacob Pinheiro. D’AMBRÓSIO, Oscar. O Feitiço da Amérika. São Paulo,
Grupo ATB, 1991.
JUNG, C.G. Tipos psicológicos. Petrópolis, Vozes, 1991. (Obras selecionadas v.VI).
217
__________ Psicologia e poesia. In: O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, Vozes,
1985. (Obras selecionadas v. XV)
218
Arte, Fotografia e Cinema.
Fotografia e Memória: O lugar dos escravos libertos e seus descendentes na nascente
sociedade urbana de Entre-Rios.
André Luiz Reis Mattos*
Orientadora: Ana Maria Dietrich**
Resumo: A cidade de Três Rios (no principio Vila de Entre-Rios) tem sua formação
urbana vinculada aos espaços físicos relacionados às fazendas de café pertencentes à
Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a Condessa do Rio Novo e seus pais, o Barão e a
Baronesa de Entre-Rios. Os escravos, personagens com pouca acuidade para a história
vista de cima, mas importantes no contexto historiográfico da Nova História Cultural,
foram libertos por desejo expresso no testamento da Condessa que deliberou a utilização
das terras de uma das suas fazendas para o assentamento destes e criação da Colônia
Agrícola de Nossa Senhora da Piedade composta no ano de 1882 e extinta em 1932
motivada por uma combinação de fatores. No presente artigo objetivo analisar qual o lugar
dos escravos libertos e seus descendentes na nascente sociedade urbana da Vila de EntreRios através dos registros fotográficos, considerando-os em sua dupla dimensão de fonte e
testemunho de memória, privilegiando-a como um lugar de lembrança relacionada a todas
as representações a ela associadas, entendendo memória como o conjunto de lembranças
preservadas e esquecidas de um indivíduo ou de uma coletividade, estando em um
processo contínuo de construção e reconstrução.
Palavras-chave: Fotografia; Memória; Escravos; Sociedade Urbana.
Abstract: The city of Three Rivers (the principle town of Entre Rios) is linked to their
formation urban physical spaces related to coffee farms belonging to the Mariana Claudina
Pereira de Carvalho, the Countess of New River and their parents, Baron and Baroness of
*
Mestrando em História Cultural pela Universidade Severino Sombra, Vassouras/RJ. E-mail:
[email protected].
**
Professora adjunta / UFABC, doutora em História Social/ USP. E-mail: [email protected].
219
Entre -Rios. Slaves, characters with little accuracy to the story seen from above, but
important in the context of the historiographical New Cultural History, were released by
the desire expressed in the will of the Countess who ruled the land use of one of their farms
to the settlement and creation of the Agricultural Colony of Our Lady of Mercy made in
1882 and disbanded in 1932 driven by a combination of factors. In this article which
analyzes the place of the freed slaves and their descendants in the nascent urban society of
the town of Entre Rios through photographic records, considering them in its double
dimension of source memory and testimony, emphasizing it as a place of memory related
to all representations associated with it, understanding memory as the set of preserved and
forgotten memories of an individual or a community, being in a continuous process of
construction and reconstruction.
Keywords: Photography; Memory; Slaves; Urban Society.
Introdução
No processo de formação de memórias, imagens depoimentos de eventos e
instantes do passado não vivido pelos que observam no presente são testemunhos de
memórias individuais e coletivas, como as fotografias apresentadas neste trabalho e todas
as lembranças reavivadas e recordadas percebidas através da análise destes fragmentos de
fatos e sujeitos históricos, ajustando e rearmando a nossa própria lembrança e ao mesmo
tempo se incorporando à memória; é a imagem testemunho ou documentos testemunhos, se
transformando em lembranças, compartilhando memórias.
Neste diálogo aproprio-me da fotografia enquanto lugar de lembranças 46 e ponto de
referência à memória substanciada nas relações sociais que ocorrem nos espaços urbanos,
detendo-me ao período de formação da nascente sociedade da Vila de Entre-Rios e o lugar
dos escravos libertos, das fazendas da Condessa do Rio Novo e seus descendentes,
observando-se ausências e presenças.
46 Utilizo neste trabalho os termos “lugar de lembrança e de esquecimento” em vez de “lugar de memória”
do Pierre Nora, por entender que a memória tem seu lugar nos registros mentais do sujeito histórico, podendo
ser parcialmente recuperada e ressignificada através da análise de determinados objetos, lugares e
monumentos. “A memória é a conservação que o [indivíduo] faz de si mesmo.” (BOSI, 2004: p. 45)
220
A História Cultural no trato com a diversidade das fontes historiográficas, é a que
mais avança em direção ao campo da memória (principalmente com relação ao que Ecléa
Bosi define como “substância social da memória” (BOSI, 2004: p. 16)), por entender que
não se pode mais identificar a memória como um método parcial e limitado de recordar
fatos passados, servindo como simples auxiliar para as ciências humanas. O aporte da
História Cultural é fundamental nos estudos e interpretações da memória construída nas
representações e nas relações de poder alistadas às batalhas de memória realizadas nos
espaços de afinidade e que se sedimentam nas práticas sociais.
História que é capaz de dialogar com a Memória e que se apresenta na conceituação
de Walter Benjamin (BENJAMIN, 2008: p. 223) quando afirma que esta transforma a
imagem do passado em coisa sua; deste...
... passado que traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois
não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas
vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que
cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um
encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na
terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida
uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo
não pode ser rejeitado impunemente.
No entrecruzamento teórico objeto deste artigo, entendo que a fotografia, enquanto
testemunho de memória, é a fonte/objeto capaz de exercitar ou executar este “encontro
secreto”, aproximando os tempos históricos do passado com a contemporaneidade.
História que também não se constrói através da narração tradicional, mas de “uma
outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de
uma tradição em migalhas,” (GAGNEBIN: 2004, p. 89 e 90) que não tem preocupação somente com
os grandes feitos e fatos, mas que é capaz de não permitir que a parcela do passado
silenciada nos embates de memória, encontre pousada nos lugares de esquecimento,
apropriando-se do que foi relegado, do que não se permitiu significar na história,
transparecendo o sujeito histórico, sua memória e seus espaços de relação social, que
estavam na sombra.
O historiador que escolhe caminhar por este campo historiográfico entende a pouca
probabilidade do passado apresentar-se no presente como ele realmente objetivou-se,
compreendendo que a pertinência de sentidos que esta ciência imputa ao passado realizar221
se à luz do presente. “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como
ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo”. (BENJAMIN, 2008: p. 224)
Assim,
a
problemática
comum
à
memória
e
a
história
é
a
representação/reconstrução do passado e a relação com o tempo e as fontes/objetos
históricos. A fotografia insere-se neste contexto por perpetuar um momento de um tempo
existido, experimentado com objetivos, propostas, desejos, ideologias; testemunha das
memórias das ações e dos empreendimentos dos homens no seu tempo histórico.
A fotografia é antes de tudo imagem-presença de uma coisa ausente e como afirma
Barthes (BARTHES: 2008, p.13), o que está apontado na imagem capturada no ato
fotográfico não se repetirá jamais em todo o seu contexto social, econômico e cultural,
permanecendo o testemunho da memória fragmentada de indivíduos e comunidades. O
registro imagético vence o tempo e a distância espacial apresentando-se como objeto capaz
de responder algumas indagações das pesquisas historiográficas.
O lugar dos escravos libertos e seus descendentes na nascente sociedade urbana de
Entre-Rios visto através do “olhar” dos registros fotográficos.
Deixo livres todos os escravos que eu possuir ao tempo da minha morte, e
desobrigados da prestação de serviços até aos vinte e um anos, os ingênuos filhos
de minhas escravas nascidas depois da Lei de vinte e oito de dezembro de mil
oitocentos e setenta e um. Esses libertos e ingênuos, e seus descendentes
formarão em minha fazenda denominada de Cantagalo – uma colônia agrícola –
com a denominação de “Nossa Senhora da Piedade”, que será a protetora do
estabelecimento. Na mesma fazenda e a expensas do rendimento dela serão
estabelecidas duas escolas para educação dos menores da colônia, de ambos os
sexos, que serão franqueadas também aos menores da circunvizinhança, se não
houver inconveniente. Aos adultos serão distribuídos lotes de terras a fim de
cultivarem cereais para a sua subsistência e lotes de cafezais para beneficiá-los e
colher os frutos: destes, depois de convenientemente preparados e vendidos, lhes
pertencerá à metade do produto liquido, e a outra metade à casa de caridade, que
se fundar na cidade da Paraíba do Sul... 47
A cidade de Três Rios tem sua formação urbana vinculada aos espaços físicos
relacionados às fazendas de café pertencentes à Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a
47 Testamento da Condessa do Rio Novo de 18 de novembro de 1882 translado do original em 1993 pela
historiadora trirriense Irene Lopes Guimarães.
222
Condessa do Rio Novo e seus pais os Barões de Entre Rios, Antônio Barroso Pereira e
Claudia Venâncio de Jesus. Pelas terras da Fazenda Cantagalo e Boa União foram
construídos um trecho da Estrada União e Indústria e neste, a Ponte das Garças sobre o rio
Paraíba do Sul e a Estação Rodoviária de Entre-Rios, núcleo urbano inicial da vila que
receberia o mesmo nome.
Herdeira das propriedades de seus pais a Condessa do Rio Novo, sem descendentes
diretos do seu casamento com seu primo José Antônio Barroso de Carvalho (Major
Carvalhinho), concedeu por desejo expresso no seu testamento liberdade aos seus escravos
deliberando também a utilização das terras da Fazenda de Cantagalo para o assentamento
destes.
A Profª Isabela Torres de Castro Innocêncio em sua dissertação de mestrado pela
Universidade Severino Sombra de Vassouras/RJ pesquisou e analisou a constituição da
Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade composta no ano de 1882 e extinta em
1932 devido...
A uma combinação de fatores. Dentre eles estavam: o desgaste do solo, o fato da
colônia encontrar-se em região de fronteira fechada, a falta de investimento e de
interesse público no desenvolvimento social, e, finalmente, a ausência de uma
política de reforma agrária no Brasil. 48
O período que ocorreu à libertação dos escravos da Fazenda Cantagalo encontra
uma Vila em crescente formação urbana social, com a presença importante de
trabalhadores funcionários da Estrada
União e Indústria e da Estrada de Ferro
D. Pedro II. A principal expectativa de
vida
por
parte
dos
emancipados
encontrava-se na Colônia e o término
da escravidão apresentou-se como uma
das etapas de um longo processo para
48 INNOCÊNCIO, Isabela Torres de Castro, professora e escritora, desenvolve atualmente projeto de
doutorado pela UNIRIO no campo da memória social. Sua belíssima dissertação de mestrado está disponível
na biblioteca da USS em Vassouras, bem como seu livro “Liberdade e Acesso a terra”. Disponível no site:
<http://www.uss.br/hotsites/revistaeletronica/arquivos/liberdade.swf>. Acesso em 5/9/2011.
223
obter o tratamento e direitos igualitários de cidadão.
Fotografia 1: Vendedor de água que durante muitos anos serviu o centro do distrito de Entre-Rios
que não possuía serviço oficial de distribuição. Imagem do homem simples, pobre e trabalhador,
representação da condição social dos negros pós-abolição. Fotografia da década de 20 do acervo do Sr.
Altair. 49
Em 1935, quando do encerramento das atividades da Colônia Nossa Senhora da
Piedade, Entre-Rios achava-se num crescente processo político visando à emancipação da
cidade de Paraíba do Sul, principalmente por superar-la economicamente. Nesta região do
Vale do Paraíba esta minoria de negros se confronta com os interesses dos descendentes
daqueles que aportaram nestas terras, atraídos pelas possibilidades de trabalho e renda
junto às estações rodoviária e ferroviária, ao comércio e a indústria, vindos do interior de
Minas Gerais, bem como, imigrantes portugueses, sírios e libaneses, e uma pequena
parcela de alemães que vieram para a construção da cidade de Petrópolis e Juiz de Fora.
As fotografias da coleção acumulada nas pesquisas para a construção da dissertação
de mestrado permitem-me vislumbrar os caminhos trilhados para a inserção da população
pobre e negra no espaço urbano de relação daquela sociedade num período iniciado com o
declínio das atividades da colônia dos libertos até a emancipação do distrito de Entre-Rios
ocorrida no final da década de 40.
Fotografia 2: Descendentes dos
escravos libertos pela Condessa
do Rio Novo poucos anos após o
finalizar das atividades da
Colônia Agrícola de Nossa
Senhora da Piedade, assistidos
pelo Grupo Espírita Fé e
Esperança na cidade Três Rios,
fotografia do acervo do Sr.
49Sr. Altair Tavares da Silva, nascido na cidade de Três Rios em 1927, trabalhou no Banco Fluminense da
Produção, no INPS, nas Casas Pernambucanas, no Banco Predial, no Banco da Lavoura de Minas Gerais,
vindo a administrar a fábrica do pai por volta de 1957/1958. Casado com a Srª Leniset Peyroton Tavares da
Silva, tem 3 filhos e 4 netas, atualmente aposentado, sua paixão pela fotografia surge com a primeira que
recebeu de amigos ferroviários. Indagado afirmou: “Essas fotografias são a história de Três Rios, meu filho, a
memória da nossa cidade.” Srº Altair é também um registro vivo das histórias do município, sempre pronto a
dividir suas informações. Devo a ele muito do que escrevo nas análises fotográficas.
224
Altair, tomada externa da sede desta instituição realizada no ultimo quarto da década de 30 do século XX.
Apesar de experimentarem inicialmente uma proposta inédita de assentamento
agrário, diferentemente da maioria dos ex-escravos que ao serem libertos não tinham
muitas opções de trabalho e nem terra para produzir e morar, os negros da Fazenda
Cantagalo não conseguiram se livrar dos estigmas da cor e da escravidão, bem como dos
interesses diversos daqueles que deveriam prover a realização dos desejos testamentários
da Condessa do Rio Novo. A utilização da mão-de-obra escrava durante um longo
fundamental período de formação da sociedade brasileira determina no presente as
delimitações de classes e papéis entre grupos étnicos distintos e o lugar que ocupam nos
espaços urbanos de relação.
Na fotografia 2 é interessante observar as vestimentas (roupas brancas, lenços na
cabeça das mulheres e das meninas), as sacolas e cestas com os mantimentos doados, os
brinquedos de algumas crianças, à falta de calçados, que demonstram a condição social e
econômica deste grupo de pessoas; não existe um rosto sorrindo, por quê? Em sua
totalidade os assistidos são negros, na sua maioria mulheres e crianças (possíveis de serem
percebidos temos sete homens)? O que esta realidade apresenta para análise de alguma
informação histórica no trato das questões da etnia, econômicas, culturais e sociais
relacionadas às condições dos negros escravos após a libertação?
A imagem do negro ainda é diretamente relacionada às representações do trabalho,
do proletariado, do homem humilde e religioso, simboliza o popular estando presente
principalmente nas manifestações de cultura, música e esporte. Estes os espaços
conquistados ou concedidos aos negros nos embates sociais de memória e que a série de
fotografias que apresento neste define muito bem.
A necessidade de sobrevivência conduziu a população negra oriunda do trabalho
nas fazendas, a atividades outras nas cidades, mas sempre em posições onde havia a
necessidade de uma mão-de-obra menos qualificada e conduzida para os setores residuais,
limitados às atividades ou ocupações inadequadamente retribuídas e degradadas.
225
Fotografia 3 e 4: Trabalhadores do Armazém de Café construído pelo presidente de Minas Gerais em EntreRios. Nota-se que são todos negros os que estão descarregando o vagão (“assistidos” por senhores brancos
bem trajados) e os que estão amontoando o café para a queima durante o governo do presidente Getúlio
Vargas. Fotografias do início da década de 30 da coleção de André Mattos.
Além de presentes nas atividades econômicas informais e autônomas outras
fotografias permitem observar que em alguns espaços as inserções dos negros ocorreram
pelas expressões artísticas e esportivas, mas que também a época, não possibilitou uma
ascensão social e financeira.
Fotografias 5 e 6: Nestas imagens temos os componentes da Banda 1º de Maio que foi fundada em 1910 em
sua maioria pelos funcionários da EFC do Brasil, entre os músicos alguns negros, mas nenhum entre os
diretores destacados na posição ao fundo e no alto, fotografia da década de 20; e os jogadores do América
Futebol Clube neste registro antes do jogo contra o Riachuelo Esporte Clube de Paraíba do Sul, realizado
em 17 de novembro de 1929, vencido pelos rubros por 2 x 1. Outras fotografias como esta apresentam
jogadores negros em times da cidade e região.
226
Fotografias 7 e 8: Integrantes da Banda Henrique Dias nesta fotografia do final da década de 10, que como
a Banda 1º de Maio possuía a época negros integrando seu elenco e em um registro do inicio do último
quarto da década de 30 da “procissão das telhas” atividade organizada para arrecadar as telhas utilizadas
na construção da Igreja Matriz de São Sebastião, observando-se entre os populares, crianças, jovens e
adultos negros.
Muito pouco se tem escrito sobre a inserção dos negros após o 13 de maio de 1888
numa sociedade que se adaptava aos modos de produção capitalista. Ana Dietrich
discorrendo sobre a memória dos traumas experimentados na II Guerra Mundial afirma:
Refletir o trauma social relativo aos acontecimentos relativos a II Guerra
Mundial significa pensar tal memória dentro das redes de poder que as definem,
recortam, delimitam elegendo critérios do que lembrar e por sua vez narrar e do
que esquecer e silenciar, definindo assim linhas de interpretações da História que
se deseja elaborar. 50
É evidente que a memória do período de escravidão e pós também esta “carregada”
de traumas e dores definindo-se os estudos e reflexões sobre esta temática nas bases
propostas acima. Constatam-se os espaços de relação social onde o negro não foi inserido
pelas ausências que algumas fotografias registram, memória construída dentro das redes de
poder presentes na sociedade brasileira daquele tempo. Atividades com maior destaque
social e econômico não tiveram representatividade significativa dos libertos e seus
descendentes.
Uma análise da população da cidade de Três Rios na atualidade pela inserção nos
espaços urbanos de relação organizados em atividades econômicas e sociais, distribuídos
por bairros residenciais populares, distritos industriais e o centro dividido principalmente
entre os prédios mais luxuosos, casas e lojas comerciais – incluindo-se clubes, escolas
particulares e universidades; permite constatar que os indivíduos negros e mulatos em sua
50DIETRICH, Ana Maria. “Percursos de memória(s) traumática(s) da II Guerra Mundial”. Disponível no
site: <http://pt.scribd.com/doc/63676819/PERCURSOS-DE-MEMORIA>. Acesso em 10 de outubro de
2011.
227
grande maioria estão vivendo nos bairros em moradas mais simples e trabalhando em
atividades profissionais que exigem mais esforço físico e um nível escolar menor,
demonstrando que... “muitos descendentes de ex-cativos, ainda trazem a marca da
escravidão velada: a falta de acesso a um bom emprego e, conseqüentemente, o não acesso
a uma habitação adequada, relembrando que a senzala só mudou de lugar.” (BARRETO:
2010, p. 188 – 215).
Fotografias 9 e 10: Tomadas externas registrando a presença do ex-presidente Nilo Peçanha na Estação
Ferroviária da EFC do Brasil em Entre-Rios quando da campanha para a eleição do presidente do Estado
do Rio de Janeiro de 1914. Diferença marcante entre as duas está que na fotografia 9 temos a presença de
populares e de crianças em número significativo – e entre estes uma maioria de negros -, agrupadas e
localizadas abaixo da posição do ex-presidente mas em condições de serem “captadas” com destaque pela
objetiva, valorizando intencionalmente a presença destas pessoas junto ao Nilo Peçanha; na fotografia 10
destacam-se os políticos, comerciantes e outros representantes das elites do município de Paraíba do Sul e
do distrito de Entre-Rios (reconhecidos principalmente pelas suas vestimentas e por se encontrarem entorno
do presidente), e membros de sua comitiva. O local deste registro próximo à estação delimita o ambiente
evitando-se a presença dos populares, que foram captados em espaço mais amplo junto aos apoios da
cobertura da plataforma em frente à estação que ficavam fora da área da mesma, apoiadas na calçada.
Fotografias do primeiro quarto da década de 10 do século XX do acervo do Srº Altair.
228
Fotografias 11 e 12: Estas fotografias evidenciam com clareza as ausências impostas aos negros libertos e
seus descendentes na nascente sociedade de Entre-Rios: no registro 11 o Grupo Dramático Dias Braga,
registro de 21/08/1914, formado principalmente por comerciantes e seus filhos foi o primeiro grupo de
teatro amador da cidade; na fotografia 12 representantes dos municípios de Três Rios e Bom Jesus do
Itabapoana/RJ, após aprovação no Rio de Janeiro da emancipação destas cidades. Autoridades políticas,
eclesiásticas e militares sem a presença de negros e mulatos.
Fotografias 13: Um dos trabalhadores
autônomos “catadores de papel”
atravessando a Rua Gomes Porto no centro
da cidade de Três Rios com material para
venda junto ao comércio de ferros-velho.
Nas atividades onde se exige maior esforço
físico, pouca capacitação profissional e
conseqüente menor ganho econômico
evidencia-se a presença em número
superior de negros e mulatos, descendentes
daqueles que aportaram no Brasil para o
trabalho escravo nas Fazendas de Café do
Vale do Paraíba.
O negro experimentou nos anos iniciais da formação da sociedade trirriense um
nítido processo de interdição a condições mais favoráveis nas relações nos espaços de
memória que ainda refletem nas presentes diferenças sociais da contemporaneidade.
Parafraseando Michelle Perrot: No teatro da memória, os negros são uma leve sombra.
Referências bibliográficas
BARRETO, Ana Claúdia de Jesus. “O lugar dos negros pobres na cidade: estudo na área
de risco do Bairro Dom Bosco.”. Revista Libertas – OnLine, Juiz de Fora, V. 10, nº 2, p
188
–
215,
jul-dez
de
2010.
Disponível
no
site:
<http://www.ufjf.br/revistalibertas/files/2011/02/artigo10_13.pdf>. Acesso em 11 de
novembro de 2011.
229
BARTHES, Roland. “A Câmara Clara”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 2008.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o Conceito da História”, in “Walter Benjamin – Obras
Escolhidas Vol. I – Magia e Técnica, Arte e Política.” São Paulo. Editora Brasiliense. 11ª
Reimpressão. 2008.
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São Paulo/SP, 2ª Edição, 2004.
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(Res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível”. Organização de Bresciani e
Naxara, Stella e Marcia. Editora Unicamp. Campinas/SP, 2004.
230
Imprensa, Minorias e Representações.
A Voz das Minorias no Telejornalismo Público: o quadro Outro Olhar enquanto uma
possibilidade educomunicativa.
Diego Rezende*
Iluska Coutinho**
Resumo: A elaboração do presente estudo tem o intuito de apreender de que modo são
mostradas e representadas as minorias no quadro Outro Olhar do telejornal noturno
Repórter Brasil, da emissora pública TV Brasil, elucidados pelo diálogo entre a
educomunicação e as singularidades da linguagem telejornalística. Dessa forma,
observaremos como as minorias se apresentam diante da construção discursiva e estética
do quadro durante os meses de agosto e setembro de 2011. De maneira análoga,
analisaremos o espaço contextual dado às vozes das minorias no discurso do telejornal
noturno durante uma “semana composta” de seis dias aleatórios – englobando todos os dias
da semana, exceto domingo – nos referentes dois meses, para que possamos compreender
de maneira mais ampla o papel que as minorias e que o quadro Outro Olhar exercem sobre
esse discurso.
Palavras-chave: minorias; educomunicação; telejornalismo; Outro Olhar; TV Brasil.
Abstract: The elaboration of the study have the intention of apprehending how minorities
are shown and represented in “Outro Olhar” of the evening news Repórter Brasil, of the
public TV station TV Brasil, elucidated by dialogue between educomunication and
singularities of the language in television news. So we will observe how minorities are
shown on the discursive and aesthetic construction of the “Outro Olhar” during August and
*
Graduando do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Grupo de
Pesquisa em Telejornalismo sob orientação da Professora Iluska Coutinho. Bolsista do projeto
“Telejornalismo e Fotografia: Novos Olhares”. Email: [email protected].
**
Jornalista, doutora em Comunicação (Umesp), com estágio doutoral na Columbia University. Professora
do departamento de Jornalismo e do PPGCOM da UFJF, desenvolve pesquisa sobre Telejornalismo e
Público, com financiamento do CNPq. Email: [email protected].
231
September 2011. Analogously we will analyze the contextual space given to minority
voices in the discourse of the evening news during a "week made" with six random days –
encompassing all the days of the week except Sunday – referring to two months, so we
can understand in a broader sense the role that minorities and “Outro Olhar” have on that
discourse.
Keywords: minorities; educomunication; television news; Outro Olhar; TV Brasil.
Criada em 2007, pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a emissora pública
TV Brasil se compromete, em sua Carta de Princípios, com a realização de um “novo
modelo de telejornalismo”: plural, independente e democrático. Partem do pressuposto de
que, sendo financiadas por interesses econômicos e políticos, os canais privados e estatais
não possuem autonomia para o desenvolvimento do seu conteúdo.
A TV Brasil possui três telejornais em sua programação: Jornal Visual e Repórter
Brasil (Manhã e Noite). Nossa análise se debruçará na edição noturna do Repórter Brasil,
na qual o quadro Outro Olhar é apresentado. Para fins de estudo, concentraremos nossa
observação nos meses de agosto e setembro de 2011.
O quadro Outro Olhar
Apresentado apenas no Repórter Brasil (Noite), o quadro não possui um espaço
diário e não há um padrão para sua entrada na estrutura do telejornal. Ou seja, pode
aparecer tanto no primeiro bloco junto com matérias de política e economia, como no
último juntamente com cultura e cotidiano.
Como afirma Valéria Maria Araújo (ARAÚJO, 2011: p. 199), o quadro é o espaço
de maior experimentação dentro do telejornal, seja na linguagem do telejornalismo, no uso
de recursos tecnológicos ou na construção estética.
Composto por vídeos – de no máximo dois minutos de duração – postados no site
da TV Brasil, o quadro possui âmbitos diversos, variando de questões cotidianas a
considerações políticas internacionais.
232
Essa idéia de colaboração que almeja “descentralizar a emissão, oportunizando que
mais vozes tenham vez no espaço público” (FONSECA e LINDEMANN, 2007: p. 91),
fundamenta-se no jornalismo participativo – ou jornalismo cidadão.
Educomunicação e telejornalismo
Quando tratamos, no título do artigo, de uma “possibilidade” no campo da
educomunicação, é necessário compreendermos a abrangência dialética da utilização do
termo. Ao observarmos o quadro Outro Olhar, trazemos à tona uma perspectiva em
construção, em busca de sua própria condição como possibilidade e potencialidade
transformadora.
Para isso, propomos o diálogo entre o telejornalismo e o potencial inventivo de
mídias que tem surgido e que vem formando seu próprio espaço.
Quando há inserção de uma mídia em outra, a intermitência que limita a
compreensão de ambas as linguagens se torna cada vez mais fluida. Assim, tanto a
emancipação de novos meios de se comunicar, como a inclusão desses meios na televisão,
fazem com que a maneira de se fazer tevê seja repensado.
Ao comparar a mídia televisiva com o vídeo – que possui variados papéis mesmo
entre as demais mídias –, Omar Rincón (RINCÓN, 2011: p. 2) afirma que o ator da tevê
seria um artesão enquanto o do vídeo seria um experimentador; enquanto a produção da
televisão seria rápida e a imagem (de preferência) em primeiro plano, a do vídeo seria,
respectivamente, pessoal e móvel.
Desse modo, o diálogo discursivo e a introdução do vídeo independente no
telejornalismo – como é o caso do Outro Olhar – torna a linguagem televisiva mais
experimental, dinâmica e múltipla. Segundo Rincón (RINCÓN, 2011: p. 3), “la noticia es
que hay que experimentar otros modelos de narración periodística y otros análisis de la
información; que hay que perder la supuesta objetividad (que es siempre un engaño) y
ganar la diversidad de subjetividades y de los puntos de vista”.
A busca de uma comunicação horizontal, na qual os emissores e receptores estão
em um mesmo patamar simbólico de construção de conhecimento, é a essência motivadora
da educomunicação – método de leitura crítica dos meios, proposta por Mário Kaplún.
233
Para a emancipação de uma comunicação crítica, Kaplún (KAPLÚN, 1998: p. 28)
descreve que não basta que os setores populares tenham acesso aos meios de comunicação
para que a participação se torne uma realidade, é preciso que estes se tornem protagonistas
do processo e não somente espectadores.
Como diria Paulo Freire (FREIRE, 1973: p. 15), é preciso que haja a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar, promovendo assim a construção mútua do
discurso. Por meio do diálogo entre múltiplos sujeitos históricos, identidades,
sensibilidades e entre as especificidades das diversas mídias, pode-se se desenvolver de
forma coletiva “medios que se hacen para romper con la homogeneidad temática y
política de la máquina mediática” (RINCÓN, 2011: p. 3).
Sob essa perspectiva, Araújo (ARAÚJO, 2011: p. 201) descreve a potencialidade
do espaço ocupado pelo Outro Olhar como “um primeiro indicativo de que as linguagens
experimentadas pelas produções da população podem dar origem a novas formas de fazer
jornalismo na TV Brasil”. Segundo ela, o Repórter Brasil constrói o seu modo de
endereçamento e estilo convocando um público que quer se ver na tevê, mas que está ainda
acostumado aos modos tradicionais de fazer jornalismo no país.
A televisão como especo de disputa hegemônica
Em um estudo sobre o telejornalismo da Rede Globo, Iluska Coutinho
(COUTINHO, 2002: p. 2) descreve que o papel de muitas emissoras vai além da
representação e do funcionamento de um “fórum de debate de idéias”, convertendo-se
também em espaço do jogo político efetivo, de disputa pela hegemonia, em uma
“democracia eletrônica”.
Segundo ela, a televisão brasileira ocupa o espaço de uma “esfera pública
mediatizada” – tal como formulou Dominique Wolton –, como importante ator social,
proporcionando o debate de diferentes vozes e ideologias.
Através das falas, texto de um programa jornalístico veiculado em rede nacional,
as diversas vozes que compõem seu discurso, os “falantes” estariam também em
busca de obtenção de uma visibilidade e/ou legitimidade públicas, ou ainda da
capacidade de direção intelectual e moral que conferem à classe dominante, ou
aspirante ao poder, o papel de guia, de detentora do consenso em determinada
234
cultura ou sociedade, característica da hegemonia em termos gramscianos
(COUTINHO, 2002, p.2).
Os telejornais tornam-se, dessa forma, ambiente de embate por hegemonia política
e cultural. Sendo assim, o nível da diversidade de vozes que embasa o seu discurso
condiciona, de maneira direta, sua política editorial.
Portanto, a análise que pretendemos em nosso estudo se debruça sobre a verificação
das vozes referente às minorias no telejornal noturno Repórter Brasil como instrumento de
poder hegemônico e contra-hegemônico. Ou seja, se, de fato, o telejornal atua no sentido
de constituir uma “democracia eletrônica” ou se, a partir das falas de determinados atores
privilegiados, implantaria um consenso narrativo. Como descreve Eagleton,
Na sociedade moderna, (...) não é suficiente ocupar fábricas ou entrar em
confronto com o Estado. O que também deve ser contestado é toda a área da
‘cultura’, definida em seu sentido mais amplo, mais corriqueiro. O poder da
classe dominante é espiritual assim como material, e qualquer ‘contrahegemonia’ deve levar sua campanha política até esse domínio, até agora
negligenciado, de valores e costumes, hábitos discursivos e práticas rituais
(EAGLETON, 1997, p. 106).
Tendo em vista a impossibilidade de se ouvir toda a população, diante às limitações
de linguagem e estruturais do meio, a televisão dá voz a um grupo de pessoas (que
“represente” essa população, seja por meios sociais, culturais, políticos, profissionais etc.)
no intuito de abranger um máximo número de telespectadores. Entretanto, perante o
desenvolvimento histórico dos meios de comunicação brasileiros, tal abrangência carrega
um caráter tácito ditado por interesses estatais e privados.
Nas considerações quanto ao Jornal Nacional, Coutinho (COUTINHO, 2002: p. 11)
afirma que o telejornal da emissora Globo se constitui em uma arena audiovisual para
confirmação do poder de um grupo social – e de sua ideologia – para a “reafirmação da
hegemonia dos empresários, da propriedade e da iniciativa privada no Brasil”. Tendo
assim, ainda segundo Coutinho, uma “mobilização pelo dinheiro, pela aquisição e
acumulação de propriedade, sinônimo na telinha de obtenção também de autoridade de
fala”.
235
Nesse sentido, uma televisão pública que almeja a pluralidade do seu conteúdo
através da difusão cultural atrelada à formação cidadã deve se atentar para tais querelas,
visando, assim, uma apreensão dialética da realidade social brasileira.
Vozes presentes no Repórter Brasil (Noite)
Com a finalidade de se apreender a elaboração discursiva da edição noturna do
Repórter Brasil, analisamos as vozes presentes no telejornal em uma “semana composta”
de seis dias aleatórios – englobando todos os dias da semana, exceto domingo – durante os
meses de agosto e setembro.
Consideramos em nossa observação os seguintes aspectos: o número de entrevistas;
o tempo das entrevistas; o questionamento ou fala do repórter; o conteúdo e a expressão da
fala do entrevistado; o papel do entrevistado na construção da reportagem (se
“protagonista”, “coadjuvante” ou apenas um dado "estatístico" – quando o espaço de fala é
meramente quantitativo com respostas rápidas e objetivas); a identificação do entrevistado
(grupo social que o entrevistado representa) e a proporcionalidade e pluralidade de fontes
(visando a distribuição democrática de cada reportagem e do discurso do telejornal como
um todo).
Com duração de uma hora, o telejornal noturno é apresentado de três cidades
distintas: São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Atrelando reportagens de “filiais” do norte,
do nordeste e do sul do país, como a Ulbra TV (RS), a TV Aldeia (AC), Aperipê TV (SE) e
a Amazon Sat (AM) – além da Rede Minas (MG) –, o telejornal tem assim uma maior
abrangência do espaço social e discursivo. Parece pretender atuar em diálogo com o
sotaque e os vocábulos regionalizados dos repórteres, produzindo assim uma “linguagem
local” – comparado ao Jornal Nacional, por exemplo, que possui um sistema no qual um
mesmo repórter cobre uma ampla rede de localidades.
Entretanto, as notícias produzidas fora do âmbito sudeste e do Distrito Federal são
de editoria cultural e cotidiana, a apresentação da esfera política (não restrita ao seu
aspecto eleitoral, ou seja, ligada a representantes políticos), por exemplo, é centralizada em
São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
236
Para uma consideração da totalidade do caráter discursivo do Repórter Brasil, as
editorias foram divididas entre: cultura/comportamento; economia; cotidiano; política;
internacional; justiça; segurança; esporte e saúde. Os grupos de fontes foram classificados
seguindo as determinadas categorias: iniciativa privada; órgãos públicos; judiciário;
organizações sociais; show-business e/ou atletas; internacionais; governo; autoridades
políticas; populares e experts.
Uma questão relevante ocorre quando o repórter usa a fonte com o intuito de
afirmar, dando credibilidade, a um determinado argumento. Tal comportamento tácito,
podendo ser produzido de forma até mesmo ingênua (ou seja, sem a consciência do ato de
fazê-lo), vai de encontro à preocupação que ronda a manipulação ideológica da matéria.
Pode-se perceber no telejornal um maior número de entrevistas com fontes
populares. Entretanto, a constatação desse fato não significa que esse grupo de fontes
esteja mais representado. Pois, além da condição quantitativa, é necessário haver uma
procedência do conteúdo da fala. Ou seja, usar fontes populares para meramente “ilustrar”
uma ideia é uma forma de manipular a representação popular.
Nesse sentido, apresentar muitas vozes se distingue de representar uma pluralidade
sincrética de discursos. Os experts, por exemplo, possuem um maior tempo e uma maior
expressividade do conteúdo de suas falas, contribuindo para o embasamento do discurso e
para a construção de um tom didático no telejornal analisado.
Como descreve Araújo (ARAÚJO, 2011: p. 206), “na tentativa de construir uma
suposta imparcialidade, o Repórter Brasil recorre quase sempre às fontes institucionais ou
especializadas”. Desse modo, a fala dos populares fica restrita a espaços bem demarcados
dentro do noticiário, como no “Repórter Brasil Pergunta”, presente no final de cada bloco,
no qual se ouve pessoas de diversas localidades do país a partir de uma questão central
discutida em uma das matérias do telejornal.
Considerações finais
No período analisado – completando 53 edições ao todo – o quadro Outro Olhar
apareceu 14 vezes (seis vezes em agosto e oito em setembro) ao decorrer do telejornal
noturno da TV Brasil.
237
Para efeito de comparação, no mês de junho foram mostrados oito vídeos e em
julho foram mostrados dois. Não há, dessa forma, um padrão quanto ao número de vídeos
oferecidos por mês, ou por semana, ou referente a um dia específico da semana.
Tendo em vista o tempo do telejornal – cada edição tem uma hora de duração –, os
vídeos, com duração de um a dois minutos cada, preenchem um tempo mínimo quando
pensamos que foram mostrados em menos de 30% das edições que foram ao ar.
Contudo, a análise do “tempo de duração” no meio televisivo tem que estar
intrínseca ao conteúdo construído nesse tempo – como descrevemos, anteriormente, na
observação referente às fontes populares e experts. Ou seja, apesar de fazer parte de um
tempo mínimo do telejornal, a influência em seu conteúdo é significativa pelo fato de
mostrar um contraposto argumentativo às linhas gerais que embasam o discurso do
telejornal. Tendo, portanto, influência também no próprio discurso mesmo com tão pouco
espaço de expressão.
Nas matérias da editoria política no período analisado, observou-se que o tom
institucional traz consigo uma abordagem personalista – centrada na figura da presidente
Dilma Rousseff e de autoridades públicas –, o que traz uma limitação do debate político
para um viés eleitoral.
Em outras palavras, as nuances da amplitude que engloba a perspectiva política
contemporânea, como políticas alternativas, culturais e sociais possuem espaço restrito nas
matérias do telejornal. Contrapondo-se a esse fato, o quadro Outro Olhar propõe uma
maior abrangência da discussão política, como, por exemplo, nos vídeos referentes à
Marcha das Margaridas (16 de agosto), ao desalojamento de moradores de rua (29 de
agosto) e à Lei Maria da Penha (22 de setembro).
Esse aspecto é representativo ao considerarmos a relação entre o quadro e o
discurso do telejornal. Quando tratamos de um contraposto entre os mesmos, partimos do
fato de que o quadro se apresenta enquanto um “outro olhar” sobre o próprio telejornal.
Nesse sentido, a influência do quadro no discurso do telejornal ocorre por meio
desse “choque”, dessa contraposição de conteúdos. Em outras palavras, apesar de possuir
um espaço mínimo considerando a totalidade narrativa do telejornal, o quadro faz a
diferença por meio da potencialidade transformadora (ou seja, de mudança estrutural) do
238
seu discurso – abrangendo temáticas como a violência doméstica, o folclore nordestino, a
arte alternativa, dando voz à grevistas, assentados, catadores de lixo e artistas.
Sendo assim, mesmo preenchendo um espaço “à deriva” no discurso do telejornal
noturno Repórter Brasil, o quadro Outro Olhar contribui para a pluralidade de vozes
(expressão de diferentes pontos de vista) e para a diversidade estética do mesmo.
Partindo desse pressuposto, propomos a ampliação do espaço dado atualmente ao
quadro no telejornal. Pois, além de dialogar com as tecnologias digitais que estão cada vez
mais presentes no cotidiano jornalístico, desconstrói e reinventa a busca pela objetividade,
como descrito por Rincón (2011), sugerindo a multiplicidade de subjetividades.
A “possibilidade” que apreendemos na construção desse artigo está exatamente
nesse espaço autoral, independente e experimental que dialoga com as vicissitudes das
novas narrativas presentes na linguagem telejornalística. Podemos considerar, portanto, o
quadro Outro Olhar como um ponto de partida para o debate sobre a inserção
educomunicativa no discurso do telejornalismo da TV Brasil.
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240
Representação Feminina na Mídia Impressa
Gerlice Teixeira Rosa*
Resumo: A história das mulheres é considerada, por muitos estudiosos, como esquecida,
ou mesmo silenciada, em função dos registros reduzidos que mostram a atuação feminina
no âmbito sociopolítico. Porém, a imprensa foi, e ainda é usada como instrumento de fala
e de representação. Refere-se neste estudo a essa proposição da imprensa de tornar
conhecidos fatos, ideias, pensamentos e manifestações socioculturais. Neste sentido, os
jornais O Sexo Feminino e A Fêmea são os objetos de análise deste estudo que pretende
verificar as variadas formas de representação desse grupo por vezes distanciado do poder
de decisão na vivência social: as mulheres. O jornal O Sexo Feminino data de 1873 e foi
produzido na cidade de Campanha, sul de Minas Gerais. O jornal A Fêmea é a produção
oficial do CFEMEA, Centro Feminista de Estudos e Assessoria, datado de 1989.
Reconhecem-se, neste estudo, as diferenças situacionais e tecnológicas existentes entre
esses dois veículos de comunicação. Apesar de se tratar da mesma temática tratada nos
dois instrumentos impressos: direitos da mulher; são épocas diferentes, com sujeitos e
linguagens diferentes. Nas evidências e nas temáticas propostas em cada realidade
encontra-se o desafio deste estudo sobre a representação da mulher na imprensa.
Palavras-chave: O Sexo Feminino, A Fêmea, representação, imprensa.
Abstract: Women’s history is considered by many studies such as forgotten or silenced,
according to the reduced reporters about the womem in social-political context. However,
the press was, and still is used as na instrument of speech and representation. This study
refers to this proposition of the press to make known facts, ideas, thougths and sóciocultural manifestations. Inthis sense, the newspapers O Sexo Feminino and A Fêmea are
the objects of analysis of this study that wants to check the various forms of representation
of that group often distancied from decision-making Power in social life: women. The
newspaper O Sexo Feminino is from 1873 and was produced in Campanha, suoth of Minas
Gerais. The Newspaper A Fêma is the official production of CFEMEA, Centro de
*
Doutoranda UFMG.
241
Feminista de Estudos e Assessoria, from 1989. I recognize in this study, the situational and
technological differences between these two media. Despite being treated the smen subject
printed in the two instruments: women1s rights, they were produced in different time, with
different subjects and languages. In each thematic is the challenge of this study about on
women’s representation in the press.
Keywords: O Sexo Feminino, A Fêmea, representation, press.
Jornalismo e a função social
O jornalismo surgiu no Brasil no início do século XIX, com uma missão clara:
divulgar as ações da corte e ser o meio de representação no país. Por isso, a dita imprensa
régia já começou orientada pela censura. Livro e publicações periódicas tinham que passar
pelo crivo dos censores régios, que definiam que tipo de leitura era propícia ao povo
brasileiro.
Como explicam Morel e Barros (2006: p.51), “... os periódicos que circularam no
Brasil no início do século XIX ainda não apresentavam uma linguagem própria ao
jornalismo. [...] fazia-se naquela época 'literatura pública'”.
Somente a partir de 13 de maio de 1808 a imprensa foi instituída oficialmente no
território brasileiro, com o decreto assinado pelo príncipe regente, d. João VI (BRASIL,
1836: p.16):
Tendo-Me constado, que os Prelos, que se achão nesta Capital, erão os
destinados para a Secretaria de estado dos Negocios Estrangeiros, e da Guerra; e
Attendendo á necessidade, que ha da Officina de Impressão nestes Meus
Estados: Sou servido, que a Caza, onde elles se estabelecêrão, sirva
interinamente da Impressão Regia, onde se imprimão exclusivamente toda a
Legislação, e Papeis Diplomaticos, que emanem de qualquer Repartição do Meu
Real Serviço; e se possão imprimir todas, e quaesquer outras Obras; ficando
interinamente pertencendo o seu governo, e administração á mesma Secretaria
[...]51
51
Optamos por conservar a grafia original nos textos utilizados nessa pesquisa, inclusive os de Senhorinha
Diniz, tal como eles foram escritos no século XIX.
242
Desse modo, devido à necessidade de oficializar e divulgar os decretos e “papéis
diplomáticos”, a corte instituiu a imprensa brasileira, com o maquinário português que foi
trazido para o Brasil.
Para Morel (2008), o momento crucial de formação da opinião pública no Brasil
situa-se entre os anos 1820 e 1821, período que antecede a independência e traz mudanças
na estrutura política de Portugal e de seus domínios na América. Como pontua Meirelles
(2008: p.187), “... devido à Revolução do Porto52 e sua repercussão dos dois lados do
Atlântico, impunha-se uma nova cultura política que se delinearia ao longo de 1821 e
1822, também no nascimento de um novo vocabulário político dos homens ilustrados”. A
Revolução do Porto trouxe ao Brasil o benefício do decreto de 2 de março de 1821, que
suspendia a censura prévia para a imprensa em geral.
A partir da liberação das atividades impressas, a publicação de livros, jornais e
folhetos teve um aumento significativo. Segundo Meirelles (2008), nos anos de 1821 e
1822 surgiram panfletos e jornais que traziam questões de caráter político sobretudo.
Novas tipografias foram fundadas, com o objetivo de dinamizar as impressões no país.
Morel e Barros (2006a: p.25) falam do surgimento de uma opinião pública no momento
que antecede a independência do Brasil e dá espaço para questionamentos e discussões de
caráter público:
O que se vê no Rio de Janeiro mais do que o surgimento de uma imprensa
periódica e regular, é uma considerável proliferação de outros tipos de
impressos, não-periódicos, como brochuras, manifestos, proclamações,
denúncias, etc.
A partir da segunda metade do século XIX, o Brasil viveu a grande expansão dos
periódicos. De acordo com Romancini e Lago (2007: p.53), o Segundo Reinado marca o
aprimoramento da imprensa em uma primeira modernização no maquinário. Surgem as
campanhas relacionadas à abolição da escravatura e à proclamação da república. Outro
destaque dado pelos pesquisadores é o surgimento do periodismo satírico e das ilustrações.
Os periódicos, em sua maioria, eram panfletários de ideais, propostas e convicções sociais.
52
A Revolução Constitucionalista do Porto (1820), movimento liberal que, entre outros pontos, exigiu a volta
de d. João VI a Portugal, teve grande influência no processo que conduziria à independência do Brasil, cf
Romancini & Lago, 2007, p.29.
243
Eles se caracterizavam pelo aspecto doutrinário e pela redação quase individual atribuída
ao redator, geralmente dono do periódico. Sobre os redatores desse período, Morel e
Barros (2006a: p.29) afirmam:
Os construtores dessa opinião pública são, em outras palavras, os membros da
chamada República das Letras, os letrados, os esclarecidos, ou seja, a opinião
apontava como fruto da reflexão dos indivíduos ilustrados e se tornava pública
na medida em que visava à propagação das Luzes do progresso e da civilização –
e, por isso, apresentava-se como defensora da ordem e da moderação.
Com a chegada da corte, o Brasil experimentou um desenvolvimento cultural e
intelectual que deu espaço para a formação de um público consumidor. O jornal era
considerado um veículo de expressão moderna, espaço para instrução, formação, debate
político e publicização de ideias.
A imprensa brasileira e os vestígios da fala(escrita) feminina
Conforme afirma Andrade (2006: p.4):
No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, surgiu a formação de um
público feminino leitor e escritor de romance. Junto às transformações que
ocorriam no Rio de Janeiro, estava o projeto de transformação de uma sociedade
letrada. A elite urbana brasileira valorizava a leitura como símbolo de instrução e
como forma de sociabilização, sendo a prática da leitura entendida como uma
chave de acesso ao saber erudito, ao brilho que a cultura letrada propiciava.
O século XIX é marcado pela pequena atuação feminina no universo das letras. Nos
anos oitocentos, a presença da mulher não era muito comum no ambiente escolar:
apenas na segunda metade do século XIX um número razoável de mulheres são
tidas como alfabetizadas, que se interessavam pela poesia e os romancesfolhetins, muitas vezes saboreados em conjunto, lidos pelas pessoas de maior
talento teatral e voz mais harmoniosa, enquanto a família, ao redor, escutava
avidamente... (MOREL & BARROS, 2006b: p.60)
A participação restrita da mulher no ambiente escolar não impedia totalmente o
envolvimento dela com a leitura e a escrita, que aos poucos começava a fazer parte de sua
realidade, mesmo que de maneira indireta como as leituras coletivas. Em sua pesquisa
244
sobre imagens de mulheres públicas, Perrot ressalta as palavras e os lugares que eram
comuns às mulheres no século XIX, especialmente no contexto da imprensa européia.
Inicialmente a imprensa é um mundo masculino, de que as mulheres vão
lentamente se apropriando. Não sem dificuldade. Os cafés, círculos e clubes, as
salas de leitura, onde se lêem principalmente os jornais, são reservados aos
homens, Todavia, as mulheres insinuavam-se no jornal pelos rodapés – a parte
de baixo das páginas dos jornais- que lhes era progressivamente reservados, sob
forma de crônicas de viagens ou mundanas e sobretudo de romances-folhetins,
cada vez mais femininos por suas intrigas, suas heroínas e até por sua moral.
Mesmo assim, esse prazer da leitura continuava sendo um prazer escondido...
(PERROT, 1998: p.77)
Como nos mostra Perrot, por terem tido espaço restrito na participação da
sociedade, as mulheres se integraram lentamente à vida intelectual brasileira. O fato de
poucas delas terem acesso aos estudos e à leitura dificultava (mas não impedia) sua
inserção no ambiente jornalístico. Algumas dessas mulheres alfabetizadas arriscavam e
expunham seus trabalhos literários e suas reflexões no novo meio de comunicação que se
firmava no Império. Para Martins (2008: p.67) “... coube às mulheres produzir
significativos títulos daquela imprensa periódica, dando visibilidade para o universo
feminino enquanto se colocavam num mercado predominantemente masculino”.
Esse resgate histórico tem a função de situar, (ainda que brevemente, como é a
função cabível neste artigo), a caminhada das mulheres no universo das letras,
especialmente nas publicações jornalísticas. A partir das primeiras publicações femininas
no século XIX, as mulheres foram conquistando mais espaço na imprensa. Resultado é o
jornal A Fêmea, lançado em maio de 1992 pelo CFEMEA, Centro Feminista de Estudos e
Assessoria, para colocar em evidência as ações femininas em prol da participação política.
Neste artigo está a análise do editorial do trimestre (julho/agosto/setembro) do
jornal A Fêmea, de 2011 e do editorial de 6 de julho de 1889 do jornal O Sexo Feminino. A
seguir, apresento brevemente a análise temática e comparativa dos editoriais.
Temáticas femininas nos entre séculos
Os dois jornais apresentados nesta análise assemelham-se logo pelos títulos, O Sexo
Feminino e A Fêmea. Apesar de serem periódicos veiculados em tempos distintos, os
245
nomes escolhidos já definem a condição, ou a percepção do ser feminino. Ao refletir sobre
a significação dos nomes empregados, tem-se que o sexo feminino delimita com precisão o
gênero a que se refere o jornal. Ao se falar a fêmea, há também a identificação feminina,
porém, neste periódico, o uso do substantivo traz consigo uma percepção específica do que
é a mulher. A aproximação com a representação animal (macho x fêmea) já induz certas
percepções a respeito do jornal, como por exemplo, a recuperação do universo
“animalesco”, talvez mais rude. O nome pode parecer ousado para a identificação
feminina. Porém, ousadia encontra-se também em definir, ainda no século XIX, como O
Sexo Feminino o nome de um periódico. Refiro-me aqui à especificação do público, da
temática e do conteúdo direcionado às mulheres no jornal, que já pode ser percebido a
partir da delimitação do gênero feminino. O uso do artigo definido (o/a) especifica e dá
precisão ao grupo retratado.
Com relação à estrutura, há especificações que inserem os jornais em campos
temporais distintos, especialmente no que diz respeito ao uso da tecnologia. A publicação
do século XXI desfruta de recursos de fotografia, cor, imagem, diagramação e infografia
que não existiam no século XIX.
As temáticas abordadas nos jornais contribuem para delinear não apenas a linha
editorial, mas também o tipo de publicação e o público-alvo. O jornal O Sexo Feminino
assume seu caráter mais instrutivo, educativo, talvez audacioso para a época, mas, ao
mesmo tempo, conservador por manter a visão da sociedade oitocentista de que a mulher
era a responsável (e somente ela) pela educação e salvação dos filhos. O jornal A Fêmea
traz uma visão mais pragmática, mais “jornalística”, com fatos, acontecimentos e
reflexões sobre a inserção e participação da mulher na luta pela emancipação.
Definir o gênero é tarefa essencial na estruturação discursiva e linguística de
qualquer tipo de texto. Bakthin define gênero como
Unidades que podemos descrever sob dois pontos de vista diferentes, o da
observação empírica e o da análise abstrata. Numa sociedade, institucionaliza-se
a recorrência de certas propriedades discursivas, e os textos individuais são
produzidos e percebidos em relação à norma que esta codificação constitui.
(BAKHTIN, 1999: p.48).
246
Nesta perspectiva, compreende-se que cada período é responsável por criar ou
modificar gêneros específicos. No âmbito jornalístico, vários gêneros se formam e se
transformam a depender dos recursos tecnológicos, das necessidades comunicativas e da
intenção discursiva de cada um dos seres comunicantes. Neste estudo, a opção pelo gênero
editorial justifica-se pela predisposição do gênero em apresentar opiniões, discursos,
pontos de vista e maneiras de ver o mundo e de tratar determinado assunto. Com a análise,
pretendo verificar em que medida os discursos sobre a representação feminina aparecem
nos editoriais e quais as maneiras de se compreender a mulher estão retratadas nos dois
jornais. A análise temática já coloca em cena certas observações a respeito da
representação feminina que nos ajudam a compreender qual a imagem que se publica (ou
se publicou) da mulher nos entre séculos.
O discurso veiculado em A Fêmea está escrito na primeira pessoa do plural, o que
inscreve as demais mulheres nesta fala. Ao afirmar: “nós mulheres somos políticas,
queremos fazer política”, o editorial não só reflete a presença feminina no texto, como
também assume essa característica para todas as mulheres.
O uso de frases assertivas é um recurso empregado para dar segurança,
confiabilidade e certeza ao conteúdo veiculado. A adjetivação também está presente no
editorial, acompanhada da exaltação da figura feminina. Adjetivos positivos são
empregados para compor a imagem da mulher, como “garra, a pluralidade, a organização
coletiva, a autogestão, e a disposição política”.
Há no editorial certa dose de poesia e eufemismo. Ao se referir à ação das mulheres
na Marcha das Margaridas, a redatora caracteriza a atitude como a ação de dar cor ao “solo
seco do cerrado brasiliense”. Essa caracterização mais suave não deixa de exaltar as
características femininas e, ao mesmo tempo, funciona como uma indicação aos homens,
exatamente por estar implícito que o solo do cerrado brasiliense ganha cor ao ser envolvido
com a presença das mulheres em marcha.
O editorial tem a intenção de dar visibilidade às ações femininas. A cada parágrafo
da edição do penúltimo trimestre de 2011, uma ação das mulheres listada e colocada em
evidência nas páginas seguintes de A Fêmea.
Percebe-se no editorial o incentivo à inserção política das mulheres: “neste mandato
da presidenta Dilma, os movimentos de mulheres têm estado presentes e atuantes no
247
diálogo com os Poderes Públicos, apresentando propostas concretas para que as políticas
públicas não sejam reprodutoras de desigualdades entre mulheres e homens”. Esse trecho
coloca em evidência a participação das mulheres em questões políticas e pode funcionar
ainda como um incentivo para que outras mulheres sejam motivadas à inserção política.
Além das especificidades do gênero editorial, com apresentação das temáticas
abordadas no periódico e comentários motivadores das matérias, a redatora apresenta ainda
um desfecho incentivador para a luta feminina: “Vamos seguir atuando em todos esses
espaços pela ampliação de direitos, pela democratização, pela participação das mulheres
em todas as esferas de poder e decisão!”.
Ao se tratar do periódico O Sexo Feminino, observa-se que o texto tem função mais
instrutiva. O tom de disputa de espaço entre homens e mulheres fica mais evidente, uma
vez que a redatora Francisca Senhorinha Diniz, em seu editorial de 6 de julho de 1889,
coloca em cena a luta pela igualdade:
Sabemo-lo, confessamol-o que o ideal adoravel, a harmonica igualdade de
direitos e autonomia social não attingiremos, em nossos dias ao menos, todavia,
de essencia divina crendo sermos modeladas, ousamos esperar que breve, muito
breve, veremos alguma modificação n’este sentido, isto é, em favor de nossos
direitos. (DINIZ, F. 1889, p.1)
Com a intenção de apresentar essa discrepância de espaços públicos existente entre
homens e mulheres, a jornalista faz do editorial um momento de provocação e apresenta
argumentos que responsabilizam os homens pelo estado de descaso e inferioridade em que
se encontra a mulher, segundo a percepção de Senhorinha Diniz.
A voz apresentada no discurso é alternada em primeira e terceira pessoa. Há a
tentativa de um distanciamento ao se referir às condições femininas, mas, em outro
momento, quando se fala no editorial da missão da mulher – especialmente a missão de ser
mãe – o discurso retorna para a primeira pessoa do plural. Essa mudança traz pistas da
tentativa de distanciamento da redatora e, ao mesmo tempo, da necessidade de inserção na
luta pela emancipação.
O tom de denúncia aparece com frequência no editorial: “Pelo rigor de injustos
artigos do nosso codigo civil, a mulher morre continua e moralmente, apezar de incansavel
nos sacrificios que faz pelo homem, morre sim, e na mais rigorosa escravidão”. Aliado à
248
denúncia está o desejo de aproximar a luta pela emancipação ao modelo europeu.
Senhorinha Diniz motiva, em seu editorial, a tomada de atitude com relação à educação das
mulheres. O incentivo à ação é feito também no editorial, com a intenção de unir esforços
em prol da construção e manutenção de uma escola para meninas.
A jornalista oitocentista destaca, em uma das edições do periódico, que não tem a
intenção de ser política. Porém, a própria apresentação da luta pela emancipação da mulher
já tem seu cunho político e articulador.
As temáticas de A Fêmea são mais diversificadas. Fala-se no editorial da marcha
das margaridas, do desprendimento político da mulher, da luta por políticas públicas e pela
democratização do poder, da divisão do trabalho, da economia do cuidado e do movimento
das mulheres trabalhadoras domésticas e sindicalistas. Já o editorial de O Sexo Feminino
assume a missão de lutar pela emancipação feminina e todo o discurso apresentado no
periódico tem essa intenção. Sendo assim, as temáticas giram em torno do incentivo à
emancipação da mulher.
Considerações parciais
Percebe-se que apesar da distância temporal, os dois editoriais reafirmam a missão
de trazer à tona as lutas, as condições sócio-históricas e as manifestações da mulher no
âmbito social. Há proximidades na discussão da presença feminina na sociedade, sendo
que cada periódico assume uma forma e uma visão a respeito dessa participação.
Observa-se que há um aprimoramento e uma flexibilização dos temas propostos no
jornal do século XXI. A visibilidade das ações das mulheres é resgatada no editorial de A
Fêmea com mais precisão do que se observa no jornal oitocentista.
Os dois periódicos apresentam propostas concretas de luta em favor das mulheres: a
criação e a manutenção do colégio Nossa Senhora da Penha, no século XIX e o incentivo
aos movimentos e passeatas feministas, no século XXI.
Referências bibliográficas
249
ANDRADE, F. Estratégias e escritos: Francisca Diniz e o movimento feminista no século
XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
BRASIL. Legislação Brasileira, ou Coleção Cronológica das Leis, Decretos, Resoluções
de Consulta, Provisões, etc., etc., do Império do Brazil desde 1808 até 1831 inclusive
contendo além do que se acha publicado nas melhores coleções, para mais de duas mil
peças inéditas, coligidas pelo Conselheiro José Paulo de Figueirôa Nabuco Araújo. Rio de
Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., Tomo IV, 1838. p.165.
DINIZ, F. S. M. O Sexo Feminino. Rio de Janeiro: Lombaertes & Filho, 1889. (6 de julho
de 1889).
MARTINS, A. Imprensa em tempos de Império. In: LUCA, T. & MARTINS, A. (Orgs.)
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Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
MOREL, M. Os primeiros passos da palavra impressa. In: MARTINS, A. L.; LUCA, T.
(orgs). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p.23-43.
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MOREL, M. & BARROS, M. Literatura cotidiana e imagens impressas. In: Palavra,
imagem e poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006b. p.51-75
NEVES, L. M. B & FERREIRA, T. M. D. O medo dos abomináveis princípios franceses: a
censura dos livros no início do século XIX no Brasil. In: Acervo, v. 4, jan-jun. 1989. p.113119.
PERROT, M. Mulheres públicas. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
ROMANCINI, R. & LAGO, C. História do jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular,
2007.
A Fêmea. Disponível em: http://www.cfemea.org.br
250
TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: História das mulheres no Brasil. Priori, M.
(org). São Paulo: Contexto, 2004. p.401-431.
Capa do Jornal O Sexo Feminino
Editorial do jornal A Fêmea
251
Lampiônicos e “Entendidos”: uma análise do jornal Lampião da Esquina durante a
formação do movimento homossexual brasileiro.
Lucas Aparecido Lino*
Patrícia Gomes Furlanetto**
Resumo: Este trabalho procura relacionar a transformação das identidades homossexuais
masculinas ao longo do século XX, passando de um modelo hierárquico e binário expresso
nas relações entre “bichas” e “bofes” para um modelo auto-afirmativo e mais igualitário
presente nas relações entre “entendidos”, às novas formas de organização desse grupo
social, como o surgimento do jornal Lampião da Esquina e de grupos homossexuais
politizados, evidenciando a formação de um movimento homossexual brasileiro no final da
década de 1970. Em suas reivindicações, tal movimento se empenhava pelo
reconhecimento social do direito ao prazer. Para tanto, Lampião articulava em suas páginas
uma proposta para o nascente movimento homossexual, em que afirmava a necessidade de
garantir visibilidade, legitimidade e autonomia às reivindicações homossexuais através da
mobilização dos “entendidos”, considerados conscientes de sua condição social.
Palavras-chave: homossexualidade; identidade; imprensa alternativa; movimentos sociais
Abstract: This paper seeks to relate the transformation of gay male identities throughout
the twentieth century, from a hierarchical and binary model expressed in relationship
between “bichas” and “bofes” for a self-assertive and more equal relations between
“entendidos” to the new forms of organization of this social group, as the rise of journal
Lampião da Esquina and politicized gay groups, showing the formation of a Brazilian
homosexual movement in the late 1970s. In their claims, such movement strove for social
recognition of their right to pleasure. To this end, Lampião articulated in its pages a
proposal for the nascent gay movement, which stated the need to ensure visibility,
legitimacy and autonomy to homosexual demands by mobilizing the
“entendidos”,
deemed to be aware of their social condition.
*
Graduado em História / Centro Universitário da Fundação de Ensino Octávio Bastos. E-mail:
[email protected].
**
Doutora em História Social / USP e docente / UNIFEOB. E-mail: [email protected].
252
Keywords: homosexuality; identity; alternative press; social movements
Ao longo do século XX, a sociedade brasileira experimentou profundas
transformações em vários campos da vida social. Imbricadas nas grandes transformações
políticas, econômicas e sociais, houve mudanças nos hábitos culturais e no modo como os
diversos grupos sociais enxergavam e se posicionavam no mundo. Aqui encontramos os
personagens privilegiados neste trabalho – os homens com comportamento homossexual,
capazes de estabelecer espaços de resistência aos padrões sexuais hegemônicos e de
engendrar formas de identificação social auto-afirmativas, como o jornal Lampião da
Esquina, que teve suas proposições destacadas neste texto, e grupos de homossexuais
organizados que buscavam discutir as relações políticas em torno das sexualidades e
formas originais e positivas de encará-las e vivenciá-las.
Bichas, “entendidos” e um lampião na esquina.
A construção dos papéis de gênero tradicionais no Brasil seguiu, segundo FRY
(1982), um modelo binário e hierárquico que dividia os papéis sociais e sexuais em termos
de “atividade” e “passividade” conforme as características de cada papel: autoritário e
dominador ou inferiorizado e dominado, respectivamente. Tal noção caracterizou as
relações sociais e sexuais entre homens e mulheres com orientação heterossexual ou
homossexual.
Especificamente entre os homens homossexuais, GREEN (2000), ao estudar esse
grupo social ao longo do século XX nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, classificouos em homens “de verdade” ou “bofes”, quando esses assumiam um papel “ativo”; e em
“bichas” ou “bonecas”, quando assumiam um papel “passivo” nas relações sociais e
sexuais. Nesse modelo, tradicionalmente aceito pela sociedade, o sujeito “passivo” era a
figura homossexual por excelência, uma vez que correspondia ao papel de gênero
feminino, dominado e inferiorizado.
A intensificação da industrialização nas primeiras décadas do século XX e o
crescimento urbano sem precedentes passaram a estimular a migração de indivíduos
253
homossexuais para as grandes cidades, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. O
crescimento dessas cidades e a relativa manutenção do anonimato diante da multidão
urbana acabaram por reforçar e ampliar a utilização de diversos espaços de sociabilidade
por homossexuais, voltados para encontros furtivos desde o século XIX, como praças
públicas, parques, jardins e estabelecer novos espaços de convivência, como bares e
cinemas. Essas áreas apropriadas pelos homossexuais eram genericamente chamadas de
gueto e constituíam, segundo MACRAE (1983), um importante espaço de resistência aos
padrões heterossexuais hegemônicos, além de propiciarem a formação e consolidação de
uma cultura homossexual específica, partilhada entre seus membros
SILVA (2005), pesquisando a cultura homossexual de classe média da cidade de
São Paulo na década de 1960, encontrou, além de “ativos” e “passivos”, indivíduos de
comportamento sexual “duplo”, isto é, que assumiam tanto o papel “ativo” quanto o papel
“passivo” nas relações sexuais, revelando uma maior complexidade nas relações sexuais
entre homens e certa dissonância entre as imagens populares e as práticas reais.
Nesse contexto, tanto FRY (1982) quanto MACRAE (1990) observaram o
surgimento, durante a década de 1960, de uma nova identidade homossexual de classe
média, a partir da ressignificação do termo “entendido”. Nessa nova forma de identificação
social, a ênfase sai do papel hierárquico estabelecido durante a relação sexual, onde o
“bofe” era necessariamente “ativo” e a “bicha” necessariamente “passiva” para o modo
como o indivíduo se orientava sexualmente, independente de quem assumia
temporariamente os papéis de “ativo” ou “passivo”, sugerindo, assim, relações menos
rígidas e mais igualitárias, dada a reciprocidade de condições para o estabelecimento de
uma relação: bastava ser “entendido”.
O regime militar instaurado em 1964 não alterou a expansão de uma cultura
homossexual de classe média. Aproveitando-se do “milagre econômico”, surgiam, nas
grandes cidades, bares e boates voltadas ao público homossexual masculino. Nossos
personagens, apesar de representarem, em sua conduta individual, uma violação à moral e
aos bons costumes, não estavam organizados contra a ditadura e, dessa forma, a identidade
homossexual masculina de classe média “entendida” foi se consolidando ao longo dos anos
1960 e 1970.
254
Em 1978, aproveitando-se do clima de liberalização política característico da última
fase do regime militar, alguns intelectuais e artistas lançaram, no Rio de Janeiro, o jornal
Lampião da Esquina, voltado para a discussão da homossexualidade e de questões
convergentes envolvendo outras minorias sociais. Homens como João Silvério Trevisan,
ensaísta e cineasta; Aguinaldo Silva, jornalista e escritor; Darcy Penteado, artista plástico e
escritor e Peter Fry, antropólogo, resolveram fundar uma cooperativa editorial e publicar o
jornal alternativo. Contando com capital próprio oriundo da ajuda de amigos, nascia
Lampião da Esquina, cujo nome aludia à vida homossexual do gueto, mas também à figura
do rei do cangaço. Um importante espaço para a discussão da homossexualidade estava
aberto.
Nesse mesmo contexto, surgiam, em algumas cidades brasileiras, vários grupos de
homossexuais organizados, evidenciando a formação de um movimento homossexual
brasileiro53, mesmo que ainda incipiente e indefinido.
Essa forma de mobilização, longe de ser exclusiva às organizações homossexuais,
também caracteriza uma série de outros movimentos sociais, como os grupos negros e
feministas. Tal modo de mobilização é oriundo do próprio desenvolvimento social do
capitalismo em sua fase atual, que congrega um alargamento da esfera do político
garantindo espaço a novas formas de reivindicação política baseadas na construção de
identidades sociais conscientes e autodeterminadas (EVERS, 1984). Essas organizações
operam em um espaço próprio, diferente daquele ocupado por sindicatos ou partidos
políticos e surgem como exigência ao atendimento de novas necessidades, articulando-se,
segundo DURHAM (1984, p.27), “em função de uma ou várias reivindicações coletivas
que são definidas a partir da percepção de carências comuns” (grifos da autora).
É a carência ou um conjunto delas face ao restante da sociedade, portanto, que
define a existência desses movimentos sociais que se apresentam tão heterogêneos quanto
às suas necessidades.
Remetendo-nos ao movimento homossexual, a principal carência deste grupo
estava no reconhecimento, pela sociedade, de seu direito ao prazer. Discriminados por uma
sociedade machista e heteronormativa, que enxergava na relação sexual apenas a
53
Conjunto de organizações que visam defender e garantir direitos relacionados à livre orientação sexual
e/ou reunir indivíduos que se reconheçam a partir de qualquer uma das identidades sexuais tomadas como
sujeito desse movimento (FACCHINNI, 2003).
255
reprodução do sistema capitalista através da perpetuação da espécie, homens e mulheres
que estabeleciam relações sexuais não-reprodutivas eram taxados de desviantes e
anormais, beirando a margem social e indignos, portanto, de qualquer reconhecimento pela
sociedade. Assim, combater essa discriminação e engendrar novas formas de relações
sociais que considerassem legítimo o direito ao prazer constituíam a principal tônica deste
nascente movimento homossexual. Aqui estaria, conforme EVERS (1984, p.15), o grande
potencial destes movimentos sociais: “a capacidade inovadora desses movimentos parece
basear-se menos em seu potencial político e mais em seu potencial para criar e
experimentar formas diferentes de relações sociais quotidianas”. Não representavam, dessa
forma, uma ameaça revolucionária ao sistema social dominante, mas teriam força para
criação de novos padrões sócio-culturais e o alargamento dos limites sociais através de
novos modelos normativos. Nesse sentido, conforme aponta DURHAM (1984), os
movimentos sociais, ao confrontarem o Estado com suas reivindicações, estariam o
reconhecendo como agente legítimo para o atendimento de suas necessidades ao mesmo
tempo em que avaliariam essa legitimidade medindo sua capacidade de promover e
respeitar os direitos requeridos por essa população.
Lampiônicos e “entendidos”
As páginas de Lampião da Esquina reuniam reportagens sobre o gueto, entrevistas,
contos, ensaios, dicas de lazer e críticas de arte. Apesar da proposta em ser um “jornal das
minorias” e seus esforços em sempre veicular notícias sobre as mulheres, os negros, os
índios e a ecologia, movimentos que também se organizavam naquele momento e se
assemelhavam em alguns aspectos ao movimento homossexual, Lampião concentrou suas
atenções na população e no movimento homossexual, tornando-se conhecido nos círculos
da imprensa alternativa por representar essa minoria social. Geralmente, as questões
levantadas pelos outros movimentos sociais apareciam no jornal quando estas convergiam
com questões enfrentadas pelos homossexuais. De qualquer forma, os lampiônicos, nome
que recebiam os membros do conselho editorial e também os colaboradores de Lampião da
Esquina, eram homens homossexuais brancos de classe média e escreviam, sobretudo, para
seus pares.
256
Lampião estava inserido no período de surgimento do movimento homossexual
brasileiro e, dessa forma, constituiu-se como um ator importante nessa mobilização, uma
vez que, mais do que noticiar experiências sociais envolvendo a (homo)sexualidade e ser
porta-voz de um movimento social nascente interligando os diferentes grupos
homossexuais pelo país através de sua circulação nacional, Lampião também propunha
formas de organização entre seus pares homossexuais, originadas do discurso de seus
lampiônicos colaboradores. Lampião não transmitia informações e opiniões simplesmente,
mas constituía-se como a voz própria e autônoma de seus idealizadores, indivíduos
influentes nos círculos culturais e intelectuais das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Do discurso lampiônico emerge, muitas vezes explicitamente, uma proposta de
mobilização para o nascente movimento homossexual brasileiro.
Basicamente, a proposta lampiônica partia da necessidade em se proporcionar
visibilidade e legitimidade à questão homossexual, para então empreender um movimento
autônomo, sem atrelar-se a lutas partidárias, que seria necessariamente desenvolvido por
indivíduos “entendidos”, ou seja, homossexuais considerados conscientes de sua condição
social e, dessa forma, aptos a lutar pelo direito ao prazer.
No entender de Lampião, era preciso dar visibilidade à homossexualidade. Esse era
o primeiro e imprescindível passo para a formação de um movimento homossexual e
justificava até mesmo a existência do jornal. Era preciso “sair dos guetos” e “assumir”
publicamente uma identidade homossexual. Os espaços apropriados pelos homossexuais
durante tanto tempo na semi-clandestinidade e que possibilitaram, além de relações sexuais
ou amistosas, uma identificação social, deveriam ser abandonados para a inserção do
homossexual na sociedade através da postura política do “assumir-se”, ou seja, do anúncio
perante a sociedade de uma identidade específica e uma série de reivindicações a partir
dela. O editorial da primeira edição do jornal chamava-se, não à toa, “Saindo do Gueto” e é
bastante revelador das intenções postuladas pelos lampiônicos.
É preciso dizer não ao gueto e, em conseqüência, sair dele. O que nos interessa é
destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um
ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência
sexual como uma espécie de maldição, que é dado aos ademanes e que sempre
257
esbarra, em qualquer tentativa de se realizar mais amplamente enquanto ser
humano, neste fator capital: seu sexo não é aquele que ele desejaria ter.54
Entretanto, apenas anunciar um interdito não bastava. Era preciso legitimá-lo,
convencer o público de sua relevância e da importância em se reivindicar por causas tão
específicas. Uma mobilização em torno do problema anunciado só existiria se ele fosse
considerado realmente significativo pela sociedade. Sabendo disso, Lampião lançava mão
de um sem-número de formas de corroborar a importância em se discutir questões que
orbitavam em torno da sexualidade de modo geral e da homossexualidade masculina em
particular. Para tanto, o jornal dirigia críticas a ordem instituída, enxergando em
instituições como o capitalismo, o machismo, o Estado, a religião judaico-cristã, a cultura
de massas e tudo mais que fosse possível, as origens da discriminação, da opressão e de
todos os malefícios causados à livre expressão da (homo)sexualidade.
Além desse recurso, o periódico tinha outras formas de legitimar a questão das
sexualidades: as entrevistas com personalidades famosas ou polêmicas, geralmente
favoráveis à liberação da homossexualidade, era um dos pontos altos do jornal.
Apresentavam um tom descontraído e centravam nas opiniões do entrevistado acerca de
questões sobre sexualidade. Do político Fernando Gabeira à cantora Lecy Brandão,
passando pelo estilista Clodovil Hernandez ao filósofo Jean-Paul Sartre, as personagens
entrevistadas
por
Lampião
garantiam
respostas
geralmente
afirmativas
à
homossexualidade, confirmando o propósito do jornal em legitimar a questão. Outro
recurso utilizado por Lampião para justificar a importância do tema por ele levantado, este
bastante curioso, consistia em apresentar “minorias liberadas”, ou seja, grupos
considerados minoritários, assim como os homossexuais, mas que, ao contrário destes, já
possuíam o reconhecimento pelo Estado e pela sociedade de sua existência específica.
Nessa categoria, foram apresentados os canhotos como minoria liberada e os animais,
dignos de uma legislação específica a eles – a Declaração Universal dos Direitos dos
Animais. Sobre essa minoria, o autor do texto (não-identificado), declarava: “A simples
declaração dos Direitos do Animal já é um ponto de partida. Graças a ele, eles se tornam a
54
Saindo do gueto. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, n°0, abr 1978, p. 2. Disponível em: <
http://www.grupodignidade.org.br/cedoc/lampiao/01%20-%20LAMPIAO%20EDICAO%2000%20%20ABRIL%201978.pdf>. Acesso em 17 out 2010
258
mais exótica de todas as minorias a ver levantada a bandeira da luta por seus direitos”55.
Brincando com as palavras, o título do artigo não poderia ser mais criativo: “Lontras,
piranhas, ratos, veados e gorilas, atenção: vocês também têm direitos (a ONU decidiu)”.56
Lampião também postulava a autonomia do movimento homossexual frente a
outros grupos de luta social ou organizações partidárias. Sobre esse tema, João Silvério
Trevisan era um dos mais críticos à aproximação do movimento homossexual tanto à
direita quanto à esquerda político-partidárias, consideradas repressivas e incapazes de
compreender a especificidade das necessidades homossexuais. Suas críticas ganhavam tom
áspero quando se tratava da esquerda brasileira:
Nossas esquerdas não conseguiram se aparelhar ideologicamente para
acompanhar uma realidade brasileira eixada de novas contradições. [...] E o
direito ao orgasmo, quando será reivindicado pela classe operária? Não é a
energia sexual, conforme canalizada pelos padrões repressores da sociedade um
dos pilares do poder instituído? [...] Convergir, só mesmo em igualdade de
condições, meus amigos!”57
Finalmente, o sujeito escolhido por Lampião para empreender o movimento
homossexual era a figura do “entendido”. Diferentemente da “bicha” ou do “bofe”,
considerados alienados e meramente reprodutores da ordem vigente, já que baseavam suas
relações nos papéis de gênero tradicionais, o “entendido” era o homossexual consciente de
sua condição social e, por isso mesmo, o único capaz de erigir um movimento a favor da
liberação desta minoria. A auto-afirmação de uma identidade homossexual e a natureza
mais igualitária de suas relações seriam a força motriz para a construção de novas formas
de relações sociais, reivindicadas necessariamente pelos “entendidos” mobilizados. Em
várias passagens, Lampião confirmava essa posição privilegiada dos “entendidos”,
destituindo de importância “bichas”, “bofes” e travestis na formação de um movimento
homossexual. Assim, escreveu o lampiônico Frederico Jorge Dantas na primeira edição:
55
Lontras, piranhas, ratos, veados e gorilas, atenção: vocês também têm direitos (a ONU decidiu). Lampião
da
Esquina,
Rio
de
Janeiro,
n°0,
abr
1978,
p.11.
Disponível
em:
<
http://www.grupodignidade.org.br/cedoc/lampiao/01%20-%20LAMPIAO%20EDICAO%2000%20%20ABRIL%201978.pdf>. Acesso em 17 out 2010
56
id. ibid.
57
TREVISAN, J. S. Estão querendo convergir. Para onde? Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, n°2, jun/jul
1978,
p.9.
Disponível
em:
<http://www.grupodignidade.org.br/cedoc/lampiao/06%20%20LAMPIAO%20DA%20ESQUINA%20EDICAO%2002%20-%20JUNHO%20JULHO%201978.PDF>.
Acesso em 16 jan 2011
259
“Reconheço ser a bicha atual um estágio necessário para se atingir um tipo de homossexual
conscientizado de sua verdadeira realidade sexual.”58. Na segunda edição, Darcy Penteado,
ao apresentar uma organização católica norte-americana formada por homossexuais, não
deixou de comentar uma opinião desfavorável aos homossexuais “não-entendidos”:
Como se pode ver, a homossexualidade não se mostra somente através de
plumas, paetês, frescuras, hábitos ou atos que – como a maioria pensa – atentem
contra a moral. [...] Enquanto isso, vamos ficando com as sobras homossexuais
do nosso subdesenvolvimento: os travestis, prostitutos de rua, as “bichas loucas”,
os “sapatões”, os corruptores de menores, os maníacos sexuais dos mictórios,
etc.59
Ao mesmo tempo em que visava a construção de uma sociedade mais igualitária,
através da inserção dos homossexuais nos padrões da “normalidade” social, Lampião não
hesitava em anunciar um preconceito latente às “bichas”, travestis e todos os homossexuais
“não-entendidos”. Somente os “entendidos” poderiam se empenhar em uma luta afirmativa
da homossexualidade, já que seriam conscientes de si, enquanto “bichas”, “bofes”,
travestis e michês, vistos como indivíduos alienados, não representariam satisfatoriamente
os homossexuais como requerido pelos lampiônicos.
Lampião sem luz
As múltiplas e rápidas transformações experimentadas pelo nascente movimento
homossexual no início da década de 1980 também foram sentidas e refletidas por Lampião,
desgastando sua proposta editorial e levando à publicação de sua última edição em julho de
1981.
Em sua fase final, Lampião alterou seu discurso inicial, envolvendo-se em
polêmicas com alguns grupos homossexuais. Enquanto alguns grupos se aproximavam de
partidos ou organizações de esquerda, formando, por exemplo, a Fração Gay da
58
DANTAS, F. J. Qual é a da nossa imprensa? Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, n°0, abr 1978, p.5.
Disponível
em:
<
http://www.grupodignidade.org.br/cedoc/lampiao/01%20%20LAMPIAO%20EDICAO%2000%20-%20ABRIL%201978.pdf>. Acesso em 17 out 2010
59
PENTEADO, D. Confissões de um carmelita descalço. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, n°1,
maio/jun 1978, p.7. Disponível em: <http://www.grupodignidade.org.br/cedoc/lampiao/05%20%20LAMPIAO%20DA%20ESQUINA%20EDICAO%2001%20-%20MAIO%20JUNHO%201978.PDF>.
Acesso em 16 jan 2011
260
Convergência Socialista, o jornal defendia ainda com mais veemência a autonomia
requerida por uma luta favorável à homossexualidade.
A normatização do comportamento homossexual e a interação cada vez mais
constante desse grupo social com o mercado de consumo, atraindo um público ainda pouco
explorado e formando um mercado consumidor específico, o que se verificava em outros
países e começava a dar seus primeiros passos no Brasil, consistiam outras fortes
preocupações de Lampião.
O mesmo Lampião que defendera a inserção do homossexual na sociedade através
da conquista do “direito ao prazer”, se via agora preocupado com a institucionalização da
homossexualidade como padrão “normal” de conduta e a perda de seu caráter contestatório
e transgressor ao sistema, ao mesmo tempo em que, esse grupo social, “assumindo-se”
“saindo dos guetos”, mostrava-se como um potencial público consumidor para o mercado
capitalista. O projeto lampiônico era derrotado pelo desenvolvimento de novas formas
sociais de controle e interação com os grupos homossexuais e seus colaboradores
percebiam isso, alterando a estrutura do jornal: em suas últimas edições, o periódico
começou a publicar ensaios fotográficos de nus masculinos, dar ênfase em reportagens
sobre comportamento e, ainda assim, não obteve bons resultados.
Para aumentar as dificuldades, o preço do papel aumentava muito ao mesmo tempo
em que as vendas declinavam, encarecendo a produção e ameaçando tornar o jornal
inviável. Outras formas de contornar a crise financeira do jornal, como a venda de espaços
publicitários, se viam frustradas, uma vez que a identificação homossexual do periódico
afastava anunciantes. Logo, surgiriam publicações mais amenas, como a efêmera HomoPleiguei (editada por Aguinaldo Silva, colaborador de Lampião), e revistas homo-eróticas
e pornográficas. O projeto editorial de Lampião não atendia mais as necessidades do
mercado consumidor “entendido”.
FACCHINNI (2003) apontou o fim da censura e a redemocratização do país como
fatores decisivos à compreensão do fim de Lampião. Na passagem de uma situação à outra,
o jornal, com sua proposta antiautoritária de contracultura, encontrou-se num vácuo para a
continuidade de sua ação, ao mesmo tempo em que via seus temas passarem para as
páginas de jornais e revistas de grande circulação. “o Lampião abandona o teor
261
contestatório e não consegue assumir as características de uma publicação voltada ao
consumo” (FACCHINNI, 2003, p.95).
O surgimento da epidemia de HIV-Aids nos anos 1980, por sua vez, desmobilizaria
as propostas de liberação sexual e alteraria as formas de mobilização dos grupos
homossexuais, onde estes buscaram formatos mais institucionais (como o formato de
organizações não-governamentais), voltando-se na luta contra o HIV-Aids, gerando as
primeiras respostas da sociedade civil à epidemia. Dessa forma, encerrava-se
definitivamente a primeira fase da mobilização política em torno da homossexualidade no
Brasil.
Buscamos evidenciar ao longo dessas páginas, a partir do embate entre os
lampiônicos e os grupos politizados, em que destacamos a proposta defendida por
Lampião, uma compreensão da pluralidade de propostas para a construção de um
movimento homossexual brasileiro e da heterogeneidade de posições que o formam.
Pluralidade esta que também marca o movimento homossexual dos nossos dias, revelando
uma história em construção.
Referências bibliográfica
DURHAM, Eunice Ribeiro. Movimentos sociais: a construção da cidadania. Novos
Estudos Cebrap. São Paulo, n.10, out. 1984, pp.24-30
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v.10,
n.18/19,
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FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
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GREEN, James N. Além do carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século
XX. São Paulo: Editora da Unesp, 2000
262
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“abertura”. Campinas: Editora da Unicamp, 1990
________, Edward. Em defesa do gueto. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v.2, n.1, abr.
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SILVA, José Fábio Barbosa da. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo
minoritário. In: GREEN, James N.; TRINDADE, Ronaldo (org.). Homossexualismo em
São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 2005
263
Afrodescentes: cultura e representação.
A Voz Silenciada de Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo: paradigmas de
representação da mulher negra na literatura.
Rilza Rodrigues Toledo*
Resumo: Neste trabalho apresenta-se uma análise de Ponciá Vicêncio de Conceição
Evaristo, evidenciando a imagem feminina negra na obra, refletindo sobre a questão da
memória num ambiente marcado pelas diferenças de gênero, raça e identidade, sendo esta
centrada na herança identitária do avô em diálogo com o passado e o presente, entre a
lembrança e vivência, entre o real e o imaginado. Nota-se, pelo viés literário, que a autora
traça a trajetória da personagem desde a fase da infância à fase adulta, abordando afetos,
desafetos, envolvimento com a família e amigos. Observa-se que a voz silenciada ao longo
dos séculos, a condição de ser mulher e negra, sob uma perspectiva de quem conhece sua
dupla condição de autorrepresentação através da protagonista, a autora demonstra
caminhos diferenciados, percorridos por mulheres das ditas minorias raciais contemplando
novos paradigmas de representação da mulher negra na literatura brasileira.
Palavras-chave: Ponciá Vicêncio . Conceição Evaristo. Memória. Gênero. Raça.
Identidade.
Abstract: This paper presents an analysis of Conceição Evaristo Poncia Vicencio, showing
the black female image in the work, reflecting on the question of memory in an
environment marked by Difference of gender, race and identity, Which is centered on his
grandfather's legacy identity in dialogue with past and present, Between memory and
experience, Between the real and Imagined. Note, the bias literature, the author traces the
trajectory of the character from the stage from childhood to adulthood, dealing with
emotions, dislikes, Involvement with family and friends. It Is Observed That silenced the
*
Mestre em Letras pelo CES/JF-Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Professora de Língua Portuguesa
da FUPAC VRB/UBÁ-Fundação Presidente Antônio Carlos-Visconde do Rio Branco e Ubá,MG
[email protected].
264
voice over the Centuries, the condition of Being female and black, from the perspective of
someone who Knows his double condition of self-representation through the protagonist,
the author demonstrates Different Ways, said the women traveled by racial minorities
contemplating new paradigms of representation of black women in Brazilian literature.
Keywords: Ponciá Vicencio. Conceição Evaristo. Memory. Genre. Race. Identity.
Introdução
A voz da mulher negra sofreu um processo de silenciamento de forma contínua
e profunda caracterizado por uma dualidade que permeia sua construção histórico-cultural:
um mecanismo de omissão e opressão fundamentado em preconceitos relativos a gênero,
raça, identidade, justificando-se a invisibilidade de tal sujeito por sua definição como
mulher e negra. As representações da mulher negra, nos estudos literários evidenciam a
personagem como um sujeito de forma negativa, vinculada a estereótipos que retomam
imagens ligadas ao período do escravagismo, apresentando-a como eterna submissa que
deveria servir e suprir os desejos, mandos e desmandos dos seus senhores. Essas
representações estereotipadas, historicamente presentes na música e na literatura
brasileiras, acabaram determinando um apagamento de aspectos ligados às experiências da
mulher negra em sua diversidade e riqueza, ressaltando situações de limitações, que
sintetizam a figura feminina afro-brasileira, reduzindo a importância que estas mulheres
exerceram na formação da identidade cultural brasileira.
A presença da figura feminina negra na obra Ponciá Vicêncio apresenta uma
reflexão sobre gênero, raça e identidade, demarcando a construção da autora em suas
experiências e investigações identitárias. Evidencia-se o resgate da voz da escritora negra e de outras - silenciada ao longo dos séculos, além da condição de ser mulher e negra, sob
uma perspectiva de quem conhece sua dupla condição de autorrepresentação através da
protagonista, demonstrando caminhos diferenciados, percorridos por mulheres das ditas
minorias raciais contemplando novos paradigmas de representação da mulher negra,
abordando a trajetória, a fragmentação cultural e econômica, considerável característica
dos povos da diáspora africana e uma valiosa contribuição para o desenvolvimento e a
265
consolidação dos estudos acadêmicos voltados às representações do sujeito feminino negro
na literatura.
A identidade
A identidade destaca-se “devido à pluralidade de culturas que a cada dia ganha
força e acaba por se estabelecer negando a soberania de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade” (SILVA 2009). Jurandir Malerba afirma: “Cada homem singular,
embora diferente de todos os demais, apresenta um caráter específico que partilha com os
outros membros da sociedade (2000, p. 214). Existem certos aspectos que surgem a partir
de uma forma de pertencer a culturas étnicas, linguísticas, religiosas, raciais e nacionais.
Segundo Stuart Hall, “o próprio conceito de ‘identidade’ é demasiadamente complexo,
muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea
para ser definitivamente posto à prova” (2006, p. 8). Assim, o mito da identidade nacional
é constituído por uma vontade social de se fazer do espaço brasileiro um espaço onde se
pode inventar a utopia de uma terra e de uma gente rica, próspera e feliz. Ele se faz
também pelo confronto com a ironia da situação real, desperta a utopia e provoca uma
certa transformação. Sobre a construção da identidade, Araújo assim se manifesta “as
identidades estariam marcadas também por polarizações e seriam construídas a partir de
processos de inclusões e exclusões, através de chaves binárias de opostos, como as que
contrapõem negros e brancos, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, o
normal do anormal”(2007, p.55).
Muitas transformações que ocorreram no mundo em vários setores como: classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade “estão mudando as identidades pessoais,
abalando as pessoas, pois há a perda de um sentido de si,constituindo uma crise de
identidade” (TOLEDO,2008,p.21). Kobena Mercer apud Hall (2006, p. 9) “a identidade
somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo,
coerente, estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”. A identidade pode
ser descrita em várias concepções, dentre elas a do sujeito do Iluminismo, em que ele é o
centro de referência, a própria identidade, ao passo que, enquanto sujeito sociológico
prioriza a relação social, evidenciando o eu interior e o exterior, entre o mundo pessoal e o
266
público, e o sujeito pós-moderno tem um caráter específico, de mudanças rápidas,
constantes e permanentes. A identidade nacional é alguma coisa construída e distribuída no
sentido de produzir uma sensação de pertencimento. Caso essa sensação seja possível, é
preciso que as identidades ou as imagens identitárias comportem a diversidade da
população. Para Eneida Leal Cunha (2002): “a identidade nacional é produzida exatamente
para cimentar alguma coisa que em si é dispersa, tensa, conflitante”.
Segundo Stuart Hall, ao falar de identidade, é preciso citar o aspecto étnicocultural, já que “a questão da cultura popular negra tem sua especificidade histórica; e
embora esses momentos sempre exibam semelhanças e continuidades com outros
momentos, eles nunca são o mesmo momento” (2003, p. 335). Logo, para identificar uma
cultura, é preciso localizá-la num determinado tempo e espaço e no interior de um grupo
étnico, o que também se verifica na sensibilidade de Conceição Evaristo e essa identidade
estaria articulada a uma identidade nacional, determinada, também, historicamente.
Ao abordar a presença africana, pode-se dizer que os contingentes de africanos
escravizados trouxeram uma infraestrutura rítmica ligada a gestos dançantes e vocais que
passaram por séculos de sincretismo, que, ligado às estratégias ambivalentes de adaptação
e de resistência do escravo, bem como a certa porosidade cultural do escravismo brasileiro,
prolongou-se até o fim do século XIX, para dar o tom à formação da arte e da cultura
brasileira.
Evaristo x Ponciá
Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa favela no alto da
Avenida Afonso Pena, onde passou sua infância, por isso ela carrega na memória
acontecimentos e pessoas que se tornaram elementos essenciais em suas narrativas. A mãe
era doméstica, lavava roupas para fora e ainda encontrava tempo para contar histórias aos
filhos, cujas palavras foram tão marcantes, que se consolidaram no “acervo” de Evaristo,
que afirma ter nascido rodeada delas. Estudou em Belo Horizonte, onde se formou
professora. Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi aprovada em um concurso municipal para
magistério e, posteriormente, no curso de Letras na Universidade Federal Fluminense.
Movida pela sede do saber, ingressou no Mestrado PUC/RJ, onde defendeu, em 1996, a
267
dissertação Literatura negra: uma poética da afrobrasilidade. Na mesma universidade fez
Doutorado em Literatura Comparada. A autora publicou e ainda publica poemas e contos
na coletânea Cadernos Negros desde 1990, Quilombhoje, da Editora Mazza de Belo
Horizonte. Conceição Evaristo é palestrante e aborda a temática gênero e etnia na literatura
brasileira.
Certamente, a publicação dos Cadernos Negros tem importância inegável na
divulgação e circulação da literatura afro-brasileira, além de ser uma fonte crucial para
pesquisas afins, uma vez que representa o único veículo de publicação periódica no país
que antologia a produção literária afro-brasileira. Esmeralda Ribeiro, no texto de
apresentação dos Cadernos Negros volume 25, apresenta uma breve história dos processos
de transformação das edições das antologias, as quais têm resistido às dificuldades
impostas por um sistema que privilegia a literatura canônica reconhecida que promove o
lucro presumido a produção de uma literatura afro-descendente não se encaixaria em tal
categoria de imediato:
Quando foi lançado, em 1978, o primeiro volume da série Cadernos Negros,que
também era de poemas, trazia o projeto de uma nova identidade nacional a partir
da literatura. A identidade, no entanto, é um processo, e seu projeto vai se
modificando ao longo do tempo. Os escritos deste volume 25, de certa forma,
atualizam aquele projeto inicial. Aqui está em foco não só a experiência
individual, mas também a coletiva, o fato de a maioria dos afrodescendentes
estarem sujeitos a viver certas situações em virtude de sua origem. (RIBEIRO,
2002, p.13)
Nos Cadernos Negros encontram-se nomes de relevância, dentre eles Conceição
Evaristo – o fio condutor da nossa história literária nos aspectos de gênero raça e
identidade na literatura afro-brasileira.A expressão narrativa de Evaristo solidifica-se
conforme afirma “como um dos veios mais significativos da expressão da mulher negra
na historiografia afro-brasileira” (2010, p.2). Evaristo demonstra habilidade artística para
retratar teoricamente muitos paradigmas que caracterizam a produção literária. Nota-se que
a autora alcança a crítica social e desenvolve o plano ideológico das questões de gênero, a
partir de sua autorrepresentação no seu processo de formação tanto como mulher quanto
escritora, que segundo Campello, sua preocupação com as questões de gênero “tornam-se
aparentes no desvelamento da mulher ─ sua voz e sexualidade ─ da etnia, da classe social,
da memória e da diáspora africana” (Idem, 2010, p.2).
268
Em entrevista para a Revista RAÇA BRASIL em postura de enfrentamento aos
desafios, Evaristo assim se manifesta:
Mandei o romance Ponciá Vicêncio para uma editora e não tive resposta. Depois
disso, não tentei mais nenhuma. Após algum tempo, resolvi tentar a Mazza por
uma questão ideológica, pelo fato de ser uma editora de uma mulher negra. Mas
o problema não termina com a publicação de um livro. Ponciá Vicêncio já esteve
em uma livraria grande aqui do Rio, e eu o levei pessoalmente. Só que o livro
não foi colocado no sistema de informática da loja e, portanto, era como se ele
não estivesse lá. (...) Quer dizer, um livro de Conceição Evaristo numa grande
livraria é colocado lá no fundo, escondido, em último lugar, enquanto o de um
autor conhecido já é posto logo na entrada. (...) Além disso, tem a questão da
temática do meu trabalho, que é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela não
interessa, mas com a lei 10.63960 (...) esse tema vai atender a uma demanda - só
que sempre por uma questão mercadológica, nunca ideológica. (EVARISTO
apud RAÇA BRASIL, 2006)
Na contemporaneidade, encontra-se a figura da mulher negra, em linhas que
conduzem à afirmação de mulher e de artista, que pode escolher o que e como quer ser. Na
passagem de “escre(vivência)”, em que Conceição analisa a representação da mulher negra
na literatura brasileira ela salienta que essa ainda vem “ancorada nas imagens de seu
passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor”,
diferentemente da “imagem de mulher-mãe, perfil desenhado para as mulheres brancas em
geral” (2005, p. 202).
Ponciá Vicêncio: a imagem feminina.
A obra Ponciá Vicêncio tem servido de temas e artigos em que questões de raça e
gênero se entrelaçam, marcando a construção da protagonista em suas experiências e
investigações identitárias. A protagonista percorre caminhos diversos, entrecortados pela
fragmentação cultural e econômica que caracteriza os povos da diáspora africana. A obra
narra situações do cotidiano das mulheres afro-descendentes sob uma ótica essencialmente
feminina e negra, em contexto atual abordando vida de Ponciá desde a infância até a vida
60
Nota-se que a partir da aprovação da lei federal 10.639, em 2003, tornando obrigatório o ensino da História
e Cultura Afro-brasileiras, com destaque para o ensino da Literatura Afro-brasileira, percebe-se o
florescimento de discussões e projetos de pesquisa sobre o tema em diversas instituições de ensino,
evidenciando, dessa forma o apoio e a ampliação de horizontes para o movimento de lutas e de experiências
africanas, ratificando a transposição e a continuidade das culturas africanas em solo brasileiro.
269
adulta. A protagonista mora com a mãe, Maria, na Vila Vicêncio, que concentra, no
interior do Brasil, uma população de descendentes de escravos, cuja família –pai e irmãotrabalharam na lavoura para a família Vicêncio, proprietários daquelas terras e também do
sobrenome.
A trama de desenvolve em flashback, narrando a infância da menina na vila junto
da mãe e do artesanato com o barro que as duas fabricam. Embora a história seja
fragmentada, nota-se a presença de um narrador observador que conduz o leitor ao âmago
das personagens e à introspecção das mesmas, permeando a narrativa com o discurso
indireto livre, para demonstrar a alegria da menina Ponciá que, acreditando de forma
veemente nos rituais do folclore, brincava de passar por debaixo do arco-íris com medo de
mudar de sexo, conforme se verifica na passagem: “Quando Ponciá Vicêncio viu o arcoíris no céu, sentiu um calafrio. Diziam que menina que passasse debaixo do arco-íris virava
menino ”(2003,p.13). Ela se mostrava diferente desde criança, principalmente por sua
semelhança física com o avô Vicêncio, um escravo que, num momento de alucinação e
indignação diante da escravidão, matou a esposa, mutilando o próprio braço. Esse braço
cotó é uma referência para Ponciá que o imita desde pequena. E embora ela fosse criança
de colo quando o avô paterno morreu, apresenta tais semelhanças e modela um boneco de
barro idêntico a ele o que leva o povo a dizer que a menina carrega consigo a herança do
avô. Nêngua Kainda, uma velha sábia da região, é quem mais enfatiza isso à menina e aos
seus familiares, acrescentando que Ponciá precisava cumprir uma missão- a semelhança
entre Ponciá e o avô tornou-se uma marca da herança que este lhe havia deixado.
Ponciá decide ir embora para a cidade grande em busca de uma vida melhor, depois
de perder o pai. Chegando a um lugar sem referências, dorme uma noite na porta da igreja.
Consegue um emprego como doméstica, planejando juntar dinheiro para comprar um
barraco e trazer a mãe e o irmão para morar com ela.
Na vila Vicêncio, Luandi- o irmão- também decide migrar, o que acentua a dor e a
tristeza de sua mãe. O rapaz deixa a cidade, também de trem e na cidade, arruma emprego
de faxineiro numa delegacia, através da indicação do soldado Nestor, negro que ele
conhece na estação de trem. Luandi fica feliz, já que seu sonho era ser soldado.
Com a casa e a alma vazias, a mãe, Maria, decide viajar sem rumo até que chegue a
hora de ir ao encontro dos filhos. Algum tempo depois, Ponciá retorna à vila em busca dos
270
seus,porém uma viagem em vão, não os encontra. Conversando com Nêngua Kainda, esta
lhe afirma que ela deve cumprir sua herança e que reencontrará a mãe e o irmão.
De volta à cidade, Ponciá se junta a um homem que conhece na favela. Inicialmente
se vê apaixonada, depois sofre agressões físicas, causadas, principalmente, pela apatia em
que ela se encontra. Meditando sobre a ausência dos familiares e os sete abortos que
sofreu, muitas foram as perdas de Ponciá.
Nota-se que a memória individual da protagonista está diretamente ligada à
memória de seus ascendentes africanos. Segundo Maria José Barbosa (2003), “se a
memória é a via de acesso de Ponciá ao seu autoconhecimento, é também através dela, do
que a voz narrativa constrói, que nós leitores penetramos em suas emoções e conhecemos a
história pessoal de cada um” (2003,p. 6). Durante toda a narrativa, percebemos o
atrelamento entre as experiências passadas da protagonista e a experiência coletiva
representada, principalmente, pela figura de seu avô, Vicêncio, escravo que fica louco após
matar a esposa, se mutilar e tentar matar os filhos diante da ameaça de vê-los escravizados
para o resto da vida.
Há na obra uma continuidade temporal do avô garantida pela neta que carrega
certas marcas, especialmente o modo de andar, com um dos braços escondidos às costas e
a mão fechada como se fosse cotó. Embora o avô tivesse morrido quando Ponciá era ainda
muito pequena, os primeiros passos da neta, na infância, já lembravam o seu antepassado.
Além disso, a menina, artesã do barro, fez um boneco igualzinho ao avô, o que deixou sua
mãe preocupada: “ela era tão pequena, tão de colo ainda quando o homem fez a passagem.
Como, então, Ponciá Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na memória?” (2003,p. 19).
Ao olhar para o boneco, o pai de Ponciá reconhece seu próprio pai, inclusive na expressão
de dor. O boneco e as marcas físicas em Ponciá demonstram o poder da memória de chegar
aos acontecimentos mais distantes da infância do indivíduo e ter ainda a capacidade de
remontar o tempo. A trajetória da família Vicêncio remete o leitor a um sentido de
orientação no passo do tempo, já que a ordem atemporal dos acontecimentos do romance
nos lembra, essa característica da memória que marca principalmente sua volta à infância
na vila, rememorando momentos felizes e trágicos. Momentos esses que evocam a fase
mulher de Ponciá, quando seu olhar distante e sua letargia diante do mundo real
acontecem, as recordações afloram. De um lado, delimitam as lembranças agradáveis “nos
271
tempos de roça de Ponciá, nos tempos de casa de pau-a- pique, de chão de barro batido, de
bonecas de espigas de milho, de arco-íris feito cobra coral bebendo água no rio, a menina
gostava de ser mulher, era feliz”( 2003.p.27).
Há, em contraponto, as recordações doloridas da menina, marcadas, principalmente,
pela sua mudança para a cidade grande. Aos 19 anos, Ponciá mudou-se para a cidade.
Além da viagem sofrida passada no “trem negreiro”, a menina se recorda dos momentos
iniciais da nova vida: quando chegou à estação e não havia ninguém esperando por ela, de
ter ido para a igreja depois de sua chegada, das pessoas e dos santos que viu por lá, da
primeira noite passada na rua, ao relento, e de quando conseguiu seu primeiro emprego na
casa de uma senhora.
Embora a esperança e os sonhos fossem perseguidos pela protagonista, a dureza, as
pedras foram maiores em seu caminhar. Os sonhos de Ponciá vão se dissipando à medida
que a vida vai martelando com os obstáculos. Dessa forma, a memória da infância, da
menina negra, tão repleta de boas recordações, vai sendo substituída pela memória da
adolescente negra, empregada doméstica e da mulher que apanha do marido, que sofre sete
abortos e se perde dos seus. Embora as recordações da menina Ponciá nos venham
narradas como boas e felizes, algumas vezes tomamos conhecimento também de tristes
lembranças da infância. Ela não reconhece seu próprio nome e se manifesta já na infância
vislumbrando um caminho à procura de si mesma:
Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que
lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas,
gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio!Sentia-se como se
estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si.
Inventava outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela,
inominada, tremendo de medo, temia abrincadeira, mas insistia. A cabeça rodava
no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém (2003, p.16).
O vazio de Ponciá toma configurações diversas no decorrer da narrativa. O “sentirse ninguém”, neste contexto, é o sentimento daquela que foi desprovida de uma história e
de uma subjetivação próprias, como afirma Memmi, ao discutir o processo de
desumanização a que é submetido o colonizado (Cf. MEMMI, 1977,p. 80). Ponciá revela
seu desejo de romper com um paradigma: a opressão que lhe imprime uma marca até
mesmo no nome: ela deseja um nome que traduza quem ela é, pois pronunciar o que lhe foi
272
dado “Era como se estivesse lançando sobre si uma lâmina afiada a torturar-lhe o
corpo”(EVARISTO, 2003,p.27). Assim, a personagem questiona sua própria história, ao
mesmo tempo em que segue com sua trajetória de reconstruir, ou desconstruir a própria
identidade:
O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e
dos homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória
do tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para
ela um nome que não tinha dono. (Ibid., p.27)
A protagonista, então, ingressa em um curso de alfabetização, promovido por
missionários em visita ao povoado onde mora, interrompido, porém, quando a menina já
dominava a formação das sílabas. Mas a determinação de Ponciá faz com que a leitura
torne-se um desejo realizado, através de um esforço autodidata e do apoio de sua mãe que,
desde muito cedo, anuncia o destino da filha: “Era melhor deixar a menina aprender a ler.
Quem sabe, a estrada da menina seria outra.” (p.25). A leitura é, para Ponciá, um símbolo
de conquista da liberdade, uma chave com a qual ela poderia acessar outros mundos para
além do seu povoado, um saber necessário para a realização de um outro sonho: o de ir
para a cidade.Neste pequeno trecho, evidencia-se não apenas o desejo da protagonista de
transformar sua realidade, mas também a ousadia de uma mulher negra que rompe com os
parâmetros racistas e patriarcais embutidos naquela sociedade.
Considerações finais
As representações marcam o sujeito de forma negativa ancoradas em estereótipos
que retomam imagens ligadas ao período do escravagismo, apresentando-a como objeto de
procriação, aquela que deveria servir e suprir os desejos de seus donos e senhores.
Estereotipadas, identificáveis historicamente tanto na literatura quanto na música e na
mídia brasileiras, essas representações acabaram determinando um apagamento de aspectos
ligados às experiências da mulher negra em sua diversidade e riqueza, salientando apenas
construções limitadoras, supostamente sintetizadoras da figura feminina afro-brasileira,
que tendem a reduzir a importância que tais mulheres exerceram na formação da
identidade cultural brasileira.
273
A identidade diaspórica construída e vivenciada por Conceição Evaristo remete à
sua descedência afro-brasileira, em consonância com as relações sociais e raciais
características do Brasil, ao mesmo tempo resgatada como símbolo de resistência,uma vez
que a poeta formula um conceito de terra de origem recuperada através de sua
africanidade.
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275
A Imprensa Negra e a Auto-afirmação dos Afrodescendentes
Rodrigo Galdino Ferreira*
Resumo: Os negros tiveram uma importante participação no processo de formação cultural
do Brasil. No entanto, essa importância é minimizada quando da sua representação nos
meios de comunicação de massa. O presente artigo analisa os mecanismos que levaram à
perpetuação de uma imagem negativa do negro brasileiro, denunciando a participação da
mídia na disseminação (ou na perpetuação) da discriminação racial e da “ideologia do
branqueamento”. Além disso, destaca a importância da imprensa negra na formação de
uma nova imagem dos afrodescendentes, citando veículos de comunicação do passado,
como os jornais “A Voz da Raça” e “A Liberdade”, e do presente, como as revistas “Raça”
e “Afirmativa Plural”.
Palavras-chave: Imprensa negra; racismo; ideologia do branqueamento.
Abstract: Blacks had an important participation in the process of cultural formation of
Brazil. However, this importance is minimized when their representation in mass media.
This article examines the mechanisms that led to the perpetuation of a negative image of
black Brazilian, denouncing the participation of the media in the dissemination (or
perpetuation) of racial discrimination and the "ideology of whitening." It also highlights
the importance of the black press in the formation of a new image of African descent,
citing the media of the past, such as newspapers "Voice of the Race" and "Freedom" and
the present, as the magazines "Raça" and "Afirmativa Plural".
Keywords: Black press, racism, ideology of whitening.
Introdução
Em todo o processo de formação cultural do Brasil, os afro-descendentes tiveram
uma importante participação: ajudaram a forjar a principiante economia, no século XVI,
*
Jornalista; integrante do grupo de pesquisa “Processos Comunicacionais, Educação e Recepção”, vinculado
à linha de pesquisa “Comunicação e Identidades” do mestrado em Comunicação da UFJF. E-mail:
[email protected].
276
através do trabalho escravo, e a partir daí inseriram elementos de sua cultura às culturas
européia e indígena, gerando assim a miscigenação de raças e a pluralidade de costumes
existente por aqui. No entanto, essa importância do negro é minimizada quando da sua
representação no imaginário coletivo: seja antes da criação dos meios de comunicação de
massa, ou mesmo depois do surgimento da mídia contemporânea, globalizada e autodenominada “democrática”, negros foram (e são) (re)tratados como seres inferiores,
menores.
Essa representação negativa deve-se ao passado de escravidão e dor a que os negros
foram submetidos: durante mais de três séculos, os cidadãos afro-descendentes foram
considerados como seres sem alma pela igreja católica, o que justificaria a sua posição de
escravizado. No entanto, passados mais de 100 anos da Abolição da Escravatura, a situação
de desigualdade do negro perante o não-negro permanece. Somos campeões no
analfabetismo, na marginalidade, na mortalidade infantil; e perdedores clássicos nos
índices de empregabilidade, acesso à educação superior e ao saneamento básico.
Neste contexto, esse trabalho pretende analisar a importância de uma mídia
consciente, a chamada imprensa negra, na formação de uma nova imagem e identidade dos
afro-descendentes no Brasil, denunciando a participação dos meios de comunicação de
massa na disseminação de preconceitos, discriminação e da ideologia do branqueamento.
Um passado “negro”
O histórico de dominação vivido pelo negro, no Brasil, data de muitos anos. Desde
1532, quando começou o tráfico de escravos trazidos da África, principalmente das regiões
de Nigéria, Angola e Moçambique, essa população teve a sua história cultural minimizada
pelo poder massacrante e desumano do colonizador europeu, branco. Assim, desde esse
período, o negro foi tratado como um animal, que não teria sequer condições de efetuar a
própria escolha de seu destino. Trazidos para cá, forçosamente, cidadãos de diferentes
tribos africanas foram entulhados em navios negreiros, cujas péssimas condições de
higiene e salubridade já demonstravam o descaso inicial com essa “mercadoria”.
Depois da viagem, que geralmente durava meses e resultava em milhares de
“baixas”, os que aqui chegavam se deparavam com uma realidade quiçá pior do que a
277
morte: a escravidão, a senzala, os castigos físicos e morais. O trabalho, inicialmente feito
no cultivo de cana-de-açúcar e café, era embalado ao som da chibata. Embasados na idéia
de superioridade, muitas vezes legitimada por organismos oficiais como ciência e religião,
os europeus utilizavam-se de todos os artifícios de crueldade para sugar dos escravos
negros não apenas a sua força de trabalho, mas também a sua auto-estima e os seus valores
culturais. Dessa forma, castigos físicos se somavam aos maus tratos psicológicos, ajudando
a forjar a suposta inferioridade do negro.
Conforme afirma Glaucy Meire de Oliveira Ribeiro,
A discriminação chegava a tal ponto que, para não desrespeitar leis do
cristianismo, que pregam que todas as pessoas são iguais e que para Deus não há
diferença entre elas, a Igreja Católica, na época do “descobrimento” do Brasil,
chegou a pronunciar que os negros não tinham alma e, por isso, os trabalhos
forçados a que eram submetidos não iam contra a doutrina do catolicismo.
(RIBEIRO, 2005: p. 16)
Assim, toda a formação cultural do negro, no Brasil, foi mantida sob a égide do
poder do dominador, que impunha suas vontades e determinava a forma de vida desses
indivíduos. As tradições da África, com certeza presentes nas mentes dos escravizados,
foram pouco a pouco sendo substituídas (ou forçosamente tiradas de suas memórias) pelo
colonizador, o que favoreceria o processo de dominação. As técnicas utilizadas para tal
feito eram bastante sofisticadas para a época: tribos com uma mesmo identidade cultural
eram separadas, indivíduos eram proibidos de expressar seus hábitos e toda e qualquer
manifestação artística e cultural era reprimida à base da chibata. Pouco a pouco, os negros,
separados de seus irmãos tribais, foram tornando-se totalmente submissos à vontade do
dominador.
No entanto, focos de resistência também existiram nesse período. O mais evidente,
e de visibilidade até os dias atuais, é o caso de Zumbi dos Palmares, o afro-descendente
que liderou o maior quilombo do Brasil. Em 1650, cerca de 30 mil escravos foragidos de
engenhos já habitavam a “cidade” construída por Zumbi, no estado de Pernambuco, atual
Alagoas. A sua história, de grande valia na época da escravidão, por incutir nos negros o
ideal de luta e resistência, aparece como destaque também contemporaneidade: atualmente,
no dia de sua morte, 20 de novembro, é comemorado o Dia da Consciência Negra, data na
278
qual os movimentos negros de todo o Brasil reafirmam o ideal de liberdade, encabeçado
por Zumbi, no século XVII.
Abolição sem liberdade
Concretizado o processo de abolição da escravatura, em 1888, os negros de todo o
país se viram na seguinte situação: obtiveram a liberdade, mas continuaram (sobre)vivendo
em uma situação de exclusão social, visto que os ex-senhores de escravos e a coroa
portuguesa não garantiram a eles uma inserção no convívio “humano”. Até 1888, os negros
eram tidos como animais, seres sem alma, o que era, inclusive, legitimado pela própria
Igreja. Nesse contexto, questiona RIBEIRO (2005: p. 16): “A abolição, portanto, não
representou uma mudança quanto a este conceito, afinal, como coisas ou animais, com a
simples assinatura de um papel, poderiam alcançar o status de ser humano?”.
Assim, a assinatura da Lei Áurea não representou, definitivamente, a libertação dos
escravos. Pelo contrário, ela originou a marginalização desses indivíduos, que de um dia
para outro se viram tão “livres”, que sequer tinham onde morar. Sem o abrigo da senzala, e
a costumeira tutela do seu senhor, os negros foram se marginalizando na sociedade
colonial, já que não conseguiam nem emprego, nem moradia. Apesar de seu histórico de
trabalho e luta, na sociedade brasileira, o negro livre não interessava à coroa portuguesa,
que preferiu inserir no mercado os imigrantes, principalmente italianos e espanhóis, que
começaram a desembarcar no Brasil no final do século XIX.
Essa desvalorização, que culminou com a manutenção dos status de dominado - do
negro – e de dominador - do colonizador europeu, branco - se mantém até os dias de hoje,
pois a formalização da Lei Áurea (no século XIX) e as políticas públicas da atualidade não
foram capazes de incluir, verdadeiramente, o cidadão que foi anulado socialmente durante
três séculos. Dessa forma, as estatísticas sociais do século XXI refletem a já mencionada
situação do negro, no pós abolição da escravatura, demonstrando que, em sua maior parte,
os cidadãos afro-descendentes apresentam uma posição inferior na hierarquia social.
Portanto, constata-se que a abolição da escravatura foi um mecanismo que serviu a
interesses econômicos, e não a princípios humanitários.
279
As marcas do passado
O histórico de dominação vivido pelo negro brasileiro, desde 1532, deixou em sua
pele marcas que se perpetuam até a história contemporânea do país. Seja no âmbito
econômico, político ou social, os afro-descendentes ocupam posição de desvantagem
perante o não-negro, desvantagem essa que foi corroborada por fatores como o racismo, a
discriminação e a ideologia do embranquecimento. Tendo sido considerados por mais de
300 anos como seres inferiores, menores, os negros brasileiros, no pós abolição, se viram
em uma situação talvez semelhante, já que as estratégias da classe privilegiada procuravam
manter esta posição. Assim, por exemplo, criaram-se formas de legitimar a discriminação
racial no país. Sobre isso, afirma Antônio Carlos Da Hora:
Não é à toa que vários autores definem o final do século XIX como o período do
surgimento do racismo no Brasil. Autores como Thomas Skidmore e outros
revelam que antes do clímax da abolição da escravidão no Brasil, a maior parte
da elite pouca atenção dava ao problema da raça em si. Para ele, o pensamento
racial teve seu auge entre 1890 e 1920, quando as idéias de hierarquização das
raças e da superioridade da raça branca adquirem foros de legitimidade
científica. (HORA, 2000: p. 27)
Portanto, a abolição da escravatura acabou gerando sintomas da eugenia, já que,
para manter o seu status de superioridade, o europeu branco passou a embasar-se em
explicações científicas. Esses conceitos, atualmente fora da vigência, serviram para
legitimar a idéia de superioridade entre as raças. Além disso, outros fatores colaboraram
para a manutenção da inferioridade do negro até os dia de hoje. O pior deles refere-se à
destruição (ou desconstrução) de sua identidade cultural, ou melhor, à criação de uma falsa
identidade, que serviu para legitimar sua posição de desprivilegiado. Dessa forma, os
próprios meios de comunicação de massa serviram para manter o preconceito racial,
enraizado no país desde o século XVI.
Nos meios de comunicação de massa, dispositivos centrais de produção das
aparências da modernidade contemporânea, os cidadãos “discrimináveis” são geralmente
apresentados em filmes, programas de entretenimento ou de informação como vilões ou
cidadãos de segunda classe (em papéis que representam atividades socialmente
inferiorizadas) ou são pura e simplesmente excluídos. Em outras palavras, numa cultura
280
que vive cada vez mais de narrativas e representações tornadas visíveis num espaço
publicitário e tecnológico, a visibilidade do negro e do migrante é essencialmente negativa.
(SODRÉ, 1992: p. 144)
Assim, a mídia brasileira ajudou a incutir no subconsciente do negro a suposta idéia
de inferioridade, já que em seus discursos, majoritariamente, ela utiliza-se de estereótipos
para retratar os cidadãos com alta concentração de melanina na pele. Em conseqüência
disso, os negros passaram a ter, em seu consciente, uma noção equivocada do quais seriam
os seus papéis sociais. Neste contexto, James M. Jones define o racismo como sendo um
“processo natural pelo qual as características físicas e culturais de um grupo de pessoas
adquirem significação social negativa numa sociedade socialmente heterogênea” (JONES,
1973: p. 04). Sendo assim, as formas de representação do negro na mídia atual são
oriundas de práticas racistas, já que legitimam a superioridade do branco sobre o nãobranco.
Esse fato é comprovado pelos estudos de Joel Zito Araújo, em seu livro A Negação
do Brasil (2000). Na obra, resultado de pesquisa realizada para sua tese de doutoramento
na USP, o cineasta traça o perfil da representação do negro na história da teledramaturgia
brasileira, entre 1963 e 1997. Segundo Joel Zito Araújo,
O negro, a negra e a criança negra apareceram nas novelas em papéis de pessoas
subalternas. Os papéis mais oferecidos foram os de empregadas e empregados
domésticos, copeiros, motoristas e semelhantes. Também foram oferecidos
alguns papéis de marginais, bandidos e malandros. [...] Mas a nossa principal
crítica não é oferecimento de papéis de pessoas subalternas para os atores negros.
O que caracteriza sempre o papel dado ao negro é que ele deve ser secundário.
(RAMOS, 2002: p. 64).
Portanto, os mecanismos midiáticos, tão importantes na sociedade atual,
globalizada e moderna, serviram para reafirmar a posição de inferioridade do negro,
atuando assim como um instrumento de disseminação do preconceito racial. Este, mesmo
que inconsciente ou quase imperceptível, está presente em grande parte da sociedade
brasileira.
Nossos mitos
281
A cultura européia está tão arraigada na realidade subdesenvolvida do Brasil, que
existe por aqui uma ideologia do branqueamento, segundo a qual os valores estéticos
brancos são tidos como superiores aos demais. Dessa forma, todo o repertório histórico dos
negros escravizados é minimizado pela forte tendência a uma maior valorização dos
aspectos europeus, brancos. É neste contexto que se desenvolve o racismo brasileiro, uma
doença social cuja existência em solo tupiniquim é fortemente negada pelas elites
nacionais. Sobre isto, afirma Muniz Sodré:
Quando a questão racial é levantada, imediatamente se forma uma reação, em
jornais, que não é aberta, mas consiste em dizer “Meu Deus, que conversa é essa,
é um papo racista dizer que tem separação entre negros e brancos no Brasil”.
Tem separação. Não tem segregação. Não tem, como tinha o apartheid africano,
ou a segregação como houve nos Estados Unidos, mas existe uma separação
dominadora em que aquele que tem o patrimônio da pele clara considera a pele
clara como se fosse o paradigma por excelência do ser humano. (SODRÉ, 2006:
p. 1)
Toda essa negação da existência do racismo, aqui no Brasil, gera o mito da
democracia racial, que contribui significativamente para a manutenção do status dominante
da elite branca brasileira. Por isso, as estratégias de minimização do racismo, do
preconceito e da desigualdade entre raças servem para ocultar a real situação, na qual os
cidadãos negros estão, historicamente, em situação desfavorável. Nesse contexto, a mídia
brasileira pratica um racismo que está, segundo Muniz Sodré (1999), ressaltado por fatores
como o recalcamento, a estigmatização, a indiferença profissional e a negação. Esta
última, afirma Muniz Sodré, está comprovada, pois “a mídia tende a negar a existência do
racismo, a não ser quando este aparece como objeto noticioso, devido a violação deste ou
daquele dispositivo anti-racista” (SODRÉ, 1999: p. 245).
A imprensa negra consciente
A Abolição da Escravatura e a posterior marginalização social dos escravos recémlibertados também proporcionou uma maior conscientização por parte de algumas elites
brasileiras. Ainda no século XX, em 1915, profissionais de comunicação se reuniram em
São Paulo para fundar aquilo que se denominaria, posteriormente, Imprensa Negra. Essa
imprensa, segundo José Antônio dos Santos (2006: p. 3), pode ser definida como o
282
“conjunto de jornais que foram publicados com a intenção de criar meios de comunicação,
educação e protesto para os leitores aos quais se dirigia”, e procuravam combater o
preconceito racial através do enaltecimento das qualidades do negro.
O primeiro jornal da imprensa negra de São Paulo foi O Menelick, fundado em
1915, e que foi seguido por uma série de outras publicações, como O Clarim da Alvorada,
A Voz da Raça, o Alfinete, A Liberdade e O Getulino. Todos eles, destaca-se, enfatizavam
a importância da alfabetização para a inclusão do negro na sociedade. No entanto, os
jornais da imprensa negra paulista apresentavam também um alto teor de integracionismo;
ou seja, eles pretendiam inserir o negro na sociedade a partir da erradicação daquilo que
consideravam imoral para a raça: a preguiça, o alcoolismo, as práticas boêmias. Esta
preocupação, segundo Pedro de Souza Santos, não deve ser entendida como uma visão
negativa em relação à população negra:
Considerando que esta população estava inserida em uma sociedade
preconceituosa que, a todo momento associava ao negro características
negativas, é possível pensar que tais mensagens se constituíam, antes, numa
forma de combate ao preconceito e de integração social, tomando para si valores
socialmente valorizados. (SANTOS, 2007: p. 02)
Dessa forma, a preocupação da imprensa negra com a moral puritana deve ser
analisada no contexto do século XX, quando era importante para os negros a “obtenção de
respeitabilidade e equiparação aos padrões brancos” (SODRÉ, 1999: p. 239), considerados
os únicos aceitos pela sociedade. Além disso, essa preocupação refletia o ideal dos exescravos, que pretendiam passar da situação de animal, como eram tidos até 1888, à
situação de pessoa humana. Com esse mesmo teor, outros estados do Brasil também
tiveram experiências de jornais que lançavam mensagens positivas em relação à raça
negra. Segundo José Antônio dos Santos (2006), dentre eles destaca-se: Jornal União,
fundado em 1948, em Curitiba, Paraná; Jornal A Raça, de Uberlândia, Minas Gerais,
lançado em 1935; e Jornal A navalha, criado em 1931, em Santana do Livramento, Rio
Grande do Sul.
A imprensa negra, nesses moldes iniciados em 1915, durou até meados de 1963,
quando a Ditadura Militar silenciou o movimento. Até lá, seus jornais eram distribuídos
gratuitamente, e noticiavam temas relacionados à formação de uma “consciência
283
diferenciante, atenta aos problemas de socialização específicos do negro brasileiro”.
(SODRÉ, 1999: p. 241-242). E nos anos 80, o processo de redemocratização do país trouxe
consigo o surgimento de jornais que refletiam a ideologia dos movimentos negros: nascia
assim a chamada nova imprensa negra do Brasil. Segundo Muniz Sodré:
Os pequenos jornais que começaram a aparecer um pouco por toda parte
refletiam em geral as linhas ideológicas e emocionais do “Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial (MNU), que pretendia desmontar o
mito da democracia racial brasileira e montar estratégias anti-racistas.
Esvanecem-se os discursos reivindicaticos e pedagógicos, as preocupações com
o ordenamento familiar e formação profissional, dando lugar a enunciados de
denúncia do preconceito de cor, a análises da consciência discriminatória.
(SODRÉ, 1999: p. 242)
Neste contexto, a nova imprensa negra brasileira utilizava-se de argumentos de luta,
que, mais do que tentar adequar o negro aos padrões da elite branca, procurava expor (e/ou
impor) aos brancos a cultura negra, valorizando assim a auto-estima dos afro-descendentes.
Portanto, essa nova fase parece ser resultado de maior reflexão, visto que as disparidades
da representação do negro na grande mídia tornavam-se evidentes. Como reação, os novos
jornais procuravam abranger os cultos e costumes da comunidade afro-descendente, como
forma de (re)construir a sua identidade.
Na década de 90, ainda nesse contexto, surge a Revista Raça Brasil, uma
publicação que visava um novo filão do mercado editorial – a classe média negra. Assim,
Raça veio para servir de espelho para uma nova classe de negros, cujo poder de consumo
era bastante alto. Segundo Antônio Carlos Da Hora,
A “inclusão” de negros [...] no mundo globalizado dá-se, então por questões de
fundo econômico, não representando uma mudança de postura da sociedade em
relação ao olhar que destina [ao grupo]. De certa forma, negros [...] continuam à
margem, o que mudou é que seu espaço de representação na mídia e,
conseqüentemente, social, passa a ser maior e mais significativo à medida que
cresce sua participação na vida econômica. (HORA, 2000: p. 07)
284
Fig. 1 e 2. As revistas “Afirmativa Plural” e “Raça Brasil” - exemplos de destaque na imprensa negra
contemporânea.
Fig. 3, 4 e 5. Os jornais “O menelick”, “O Clarim” e “A voz da Raça”, exemplos da imprensa negra dos
primeiros anos do século XX .
No meio televisivo, também como um novo produto de consumo direcionado aos
afro-descendentes, foi criada em 2004 a TV da Gente, uma emissora que buscava mostrar a
diversidade racial no país. O projeto, do apresentador, cantor e empresário Netinho de
Paula, tinha como objetivo valorizar a inserção social do negro na sociedade. Na internet, o
site de notícias afro-étnicas Afropress é outra iniciativa da chamada nova imprensa negra
brasileira, que procura levar mensagens de auto-estima e denunciar as desigualdades
sociais sofridas pelos afro-descendentes. A página web, primeira agência de notícias
especializadas no público negro do país, está no ar desde maio de 2004.
Também em 2004, no mês de junho, foi criada em São Paulo a Revista Afirmativa
Plural, uma publicação da ONG Afrobras – Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento
285
Sócio Cultural e da Universidade Zumbi dos Palmares, que circula até os dias de hoje. Os
objetivos da Afirmativa se assemelham aos da antiga imprensa negra paulistana: elevar a
auto-estima do negro, através da divulgação de exemplos de sucesso, força e determinação.
Além disso, a revista procura priorizar pautas sobre educação, mercado de trabalho e
cultura, o que a torna ainda mais semelhante aos jornais do século XX.
Conclusão
Mais de quatro séculos de escravização do negro brasileiro: é essa a realidade que
se observa analisando a situação dos afro-descendentes no nosso país. Migramos da
senzala para as favelas, da chibata ao desemprego, da dominação à exclusão. E pouca coisa
mudou... No entanto, uma imprensa negra louvável também foi criada nesse período, no
intuito de auto-afirmar o negro na nossa preconceituosa sociedade. Portanto, passamos da
senzala à auto-afirmação, tendo em vista que a visibilidade do povo negro tem melhorado a
cada dia. Pena que essa auto-afirmação é feita por uma pequena parcela dos meios de
comunicação do país (a imprensa negra), já que grande parte dos veículos de comunicação
comerciais sequer fala da realidade do negro, reforçando assim o mito da democracia
racial.
Na contemporaneidade, importantes passos estão sendo dados rumo ao fim do
preconceito racial e da desigualdade entre raças no país. As políticas de cotas para negros
(em universidades ou mesmo nos veículos de comunicação) e as demais políticas
afirmativas, como Bolsa Família, estão proporcionando aos negros - que são maioria dentre
os excluídos - uma melhor inserção na sociedade. E a função dos meios de comunicação e,
principalmente, da imprensa negra é imensa: ao dar visibilidade a tais programas, abrindo
espaço para que a realidade do negro seja mostrada, eles estão ajudando na formação de
uma consciência negra em todos os brasileiros. Além, é claro, de melhorar nossa
visibilidade, criando uma nova imagem e identidade dos afro-descendentes no país. Essa
nova imagem/identidade, positiva, será de fundamental importância para o futuro do
Brasil.
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288
Minorias e Inclusão
Deficientes Visuais no Jornal Nacional: uma análise sobre a representação
telejornalística desse público minoritário.
Marcello Pereira Machado*
Resumo: Este artigo aproxima os estudos de comunicação e identidades ao analisar a
representação midiática de pessoas com deficiência visual no principal noticiário televisivo
brasileiro. Foram avaliadas três matérias exibidas pelo Jornal Nacional (TV Globo) entre
fevereiro e abril de 2011, contendo referência à cegueira e/ou a cegos. O estudo perpassa
assuntos como deficiência visual, identidades, representação, estigma, marginalização,
telejornalismo, integração, inclusão e cidadania. Notou-se que o telejornal avaliado trouxe
contribuições e que os cegos mencionados não foram representados como sendo coitados.
O tato e a audição prevaleceram como outros sentidos que compensariam a falta da visão.
Os deficientes apresentados estavam já incluídos ou em fase de inclusão em determinado
contexto. Além disso, ficou implícita a dependência de cegos para com videntes em alguns
momentos. Por fim, a pesquisa ressalta a importância da audiodescrição em telejornais, em
prol da cidadania e do direito à informação por parte dessa minoria social — pelo recurso,
as principais imagens são “traduzidas” em palavras, narradas por locutores por meio do
sistema SAP, beneficiando, além de deficientes visuais, analfabetos e pessoas com
dislexia, por exemplo.
Palavras-chave: deficiência, identidade, inclusão, representação, telejornalismo.
Abstract: This article approaches the study of communication and identities to analyze the
media representation of people with visual impairments in the main Brazilian TV news.
We evaluated three news displayed by Jornal Nacional (TV Globo) between February and
April 2011, containing references to blindness and / or blind. The study runs through issues
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Faculdade de Comunicação da
UFJF-MG. Email: [email protected].
289
such as impaired vision, identity, representation, stigma, marginalization, TV journalism,
integration, inclusion and citizenship. It was noted that the program brought contributions
and that the blind mentioned were not represented as being “poor” (totally dependent). The
touch and hearing prevailed like other senses to compensate for lack of vision. The
disabled presented were already included or in the process of inclusion in a particular
context. At times, it was also implicit dependence of blind to people with vision. Finally,
the study highlights the importance of audio description in television news in favor of
citizenship and the right to information by this social minority — with the resource, the
main images are “translated” into words, narrated by speakers through the SAP system,
benefit, as well as visually impaired, illiterate and people with dyslexia, for example.
Keywords: disabilities, identity, inclusion, representation, TV journalism.
Introdução
Numa sociedade que por vezes (super)valoriza o visual e a absolutização da
normalidade, a deficiência visual é frequentemente mal compreendida, apesar de atingir
parcela expressiva da população mundial: aproximadamente 37 milhões de pessoas. Um
dado preocupante observado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é o de que entre 1
e 2 milhões de novos casos de cegueira surgem anualmente no planeta, havendo uma
inquietante projeção de que o número de cegos aumente para em torno de 75 milhões até
2020 (PASCARETTA JÚNIOR, 2008). No Brasil, o Censo de 2000 do IBGE apontou que
existiam em torno de 24,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência (14,5% da
população nacional) — cerca de 48% desse universo (16,6 milhões de pessoas
aproximadamente) com deficiência visual, sendo que em torno de 150 mil eram totalmente
cegas.
Ao longo da história, preconceitos com relação aos deficientes visuais vêm gerando
a injusta limitação de oportunidades. Em muitas ocasiões, a comiseração com relação ao
cego e a pessoas com outras deficiências consiste mais numa desculpa para que a
sociedade possa livrar-se da diferença, às vezes incômoda, e das demandas requeridas pela
diversidade. Enquanto isso, persistem inúmeras formas de exclusão por violência física e
simbólica.
290
Nesse sentido, o artigo avalia trechos textuais e imagens de três matérias veiculadas
pelo Jornal Nacional (TV Globo) entre fevereiro e abril de 2011, fazendo alusão à
deficiência visual. O objetivo é identificar como se dá, em tais reportagens, a representação
dessa minoria social. Este estudo perpassa por assuntos como identidade, estigma,
marginalização, telejornalismo, representação, cidadania, direito à informação e
audiodescrição.
Deficiência, identidades e estigma: uma perspectiva social.
Num percurso histórico do deficiente visual na sociedade, percebe-se que, somente
ao fim do século XX, a partir da década de 1980, ocorre um movimento mais intenso que
tende a valorizar pessoas com deficiência e a integrá-las no meio social. Os professores
João Franco e Tárcia Dias distinguem (2005) integração e inclusão. Eles mencionam
(2005, p. 5) que o princípio filosófico/ideológico que norteou a definição e as práticas de
integração foi o da normalização, objetivando a adaptação do deficiente às exigências ou
necessidades da sociedade como um todo. Já a partir da década de 1990, passou a vigorar a
chamada era da inclusão, “em que as exigências não se referem apenas ao direito da pessoa
com deficiência à integração social, mas sim, ao dever da sociedade, como um todo, de se
adaptar às diferenças individuais” (idem). Assim, a inclusão vai além, por exemplo, da
inserção dos alunos na escola, “exigindo uma mudança na estrutura social vigente, no
sentido de se organizar uma sociedade que atenda aos interesses de todas as pessoas,
indiscriminadamente.” Esse processo inclusivo denuncia as desigualdades e o desrespeito a
minorias.
Abordando a questão identitária na pós-modernidade, o teórico Stuart Hall
considera (2000, p. 8) que as identidades modernas estão sendo descentradas, deslocadas e
fragmentadas. Afinal, a identidade muda conforme o modo “como o sujeito é interpelado
ou representado” (ibidem, p. 21). Realmente, a identidade é algo formado ao longo do
tempo, “e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento” (ibidem, p.
38). Diante disso, defende (ibidem, p. 39) que, em vez de se falar da identidade como coisa
acabada, o preferível seria falar de identificação, como processo em andamento. “Eu sei
291
quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro’ (por exemplo, minha mãe) que eu não posso ser”
(ibidem, p. 40-41).
Para distinguir identidade e diferença, a jornalista Kelly Scoralick exemplifica: “a
identidade é simplesmente aquilo que se é: sou brasileiro (não sou japonês, não sou
americano), sou negro (não sou branco) etc. Já a diferença é aquilo que o outro é: ela é
italiana, ela é branca etc.” (2009, p. 194, grifos da autora). Ela acentua (idem) que ambas
são criações sociais e culturais. “Quando dividimos o mundo entre nós e eles, passamos a
classificar. Onde existe a diferenciação estabelecida pela identidade e diferença, está
presente o poder de incluir ou excluir, de determinar quem está dentro e quem está fora”
(idem) — o binômio maioria/minoria não se refere, pois, a conceitos necessariamente
quantitativos, já que pode haver numericamente mais pobres, por exemplo, embora
continuem compondo minorias, conforme ressalva Kelly.
Nesse sentido, corpos deficientes são, com frequência, “marcados”, identificáveis e
estigmatizados. O sociólogo Erving Goffman pondera (1982, p. 5) que a sociedade define
os meios de categorizar pessoas e atributos. “Utilizamos termos específicos de estigma
como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e
representação” (ibidem, p. 8). Goffman distingue normalização e “normificação” — “o
esforço, por parte de um indivíduo estigmatizado, em se apresentar como uma pessoa
comum, ainda que não esconda necessariamente o seu defeito” (ibidem, p. 29). O “bom
ajustamento” requer que o estigmatizado se aceite, alegre e inconscientemente, como igual
aos normais. Também se exige que ele se comporte de modo tal que não signifique que sua
carga é pesada, “nem que carregá-la tornou-o diferente de nós” (ibidem, p. 105).
Comunicação, telejornalismo, marginalização e representação: pressupostos.
Numa antologia (2004) do pesquisador Luiz Beltrão, percebe-se que, “por si só, a
parcela marginalizada da população brasileira não tem condições de emergir do submundo
em que vegeta” (2004, p. 61). Porém, meios de comunicação massivos, especialmente na
TV aberta, desconhecem, esquecem ou ignoram a existência de pessoas com deficiência
visual do outro lado da tela, também interessadas em obter informações e entretenimento
com o máximo nível possível de clareza, compreensão e precisão. No entendimento do
292
comunicador Juan Bordenave (1992, p. 18), o conceito de marginalidade significa
justamente “ficar de fora de alguma coisa, às margens de um processo sem nele intervir.”
Erro pior ainda é, para ele, culpar os marginalizados por sua condição de excluídos, por
estarem “naquela situação de déficit” (ibidem, p. 19). Realmente, sem comunicação não
pode existir a participação.
Avaliando se existe vida fora da televisão, o jornalista Ciro Marcondes Filho
pontua (2002, p. 79) que o gênero telejornalístico é o mais importante em termos de
noticiário de TV e a melhor síntese do formato televisivo. Segundo a jornalista Olga
Curado (2002, p. 15), o telejornal integra a programação televisiva brasileira atendendo a
uma determinação legal e oferecendo ao público informações a respeito de fatos semanais,
diários ou mesmo instantâneos. Na concepção de Vera Íris Paternostro (1991, p. 35), o que
se considera a desvantagem da televisão (a superficialidade), aliado a uma qualidade (a
presença da imagem), pode ocasionar um novo momento no processo global da
informação, na medida em que a TV pode “abrir o apetite” dos telespectadores para a
investigação por outros dados do fato. De acordo com o editor-chefe do Jornal Nacional
(JN, da TV Globo), William Bonner (2009, p. 243), a função do JN é oferecer informação
objetiva, a fim de que o cidadão construa, de posse dela, sua própria opinião acerca da
realidade e exercite a cidadania.
Outro conceito de Goffman é o de representação, como sendo toda atividade
individual que se passa na presença contínua de um grupo particular de observadores e que
tem alguma influência sobre eles (1985, p. 29). Nessa perspectiva, grupos marginalizados
são frequentemente tratados de forma estereotipada na mídia, reproduzindo-se
representações com as quais a sociedade esteja familiarizada, sem mudanças no status quo,
segundo Kelly Scoralick (2009, p. 196). Ela defende que políticas de identidade devem
ganhar destaque no telejornalismo, pois “é por meio dos significados produzidos pelas
representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos” (idem).
Análise empírica: deficientes visuais no Jornal Nacional.
O noticiário aplicado neste estudo é o Jornal Nacional, lançado em 1º de setembro
de 1969 como o primeiro telejornal brasileiro de exibição simultânea, em rede e ao vivo. A
293
TV Globo continua sendo a maior rede de televisão do Brasil, estando entre as quatro
maiores redes televisivas do mundo, e o JN, o telejornal de maior audiência do País. Numa
análise empírica, pesquisaram-se, no arquivo de vídeos online do JN (www.globo.com/jn),
matérias jornalísticas que fizessem referência à deficiência visual e/ou aos cegos. Por meio
de palavras-chave como “cego”, “cegueira”, “deficiência visual” e “deficiente visual”, foi
possível rastrear o acervo virtual, sendo que, para o presente trabalho, foram selecionadas
três matérias situadas no período entre fevereiro e abril deste ano.
Na edição de 3 de fevereiro do JN, foi publicada uma matéria com duração de 2
minutos e 28 segundos (incluindo a ‘cabeça’, texto de abertura dito pelos âncoras em
estúdio), sobre o projeto “Carnaval paulistano — só não vê quem não quer”, criado pela
Prefeitura de São Paulo para incluir cegos no Carnaval. Precedendo o VT (videotape, a
reportagem editada e pronta para exibição), a apresentadora Fátima Bernardes anuncia: “A
pouco mais de um mês do Carnaval, um projeto inovador está abrindo as quadras das
escolas de samba de São Paulo para grupos de deficientes visuais.” Em seguida, William
Bonner completa: “A repórter Neide Duarte acompanhou uma dessas visitas ontem à
noite.” Ela começa com a frase: “Eles estão se preparando para o Carnaval como todo
sambista” (grifos meus). Iniciar com o pronome “eles” demonstra logo que se está falando
de “outros” — a ideia de alteridade fica subentendida. Já a expressão “como todo
sambista” aponta para uma noção de igualdade.
Em seguida, a repórter apresenta, em seu off, quem são “eles”: “Ensaiam as batidas
dos instrumentos. Eles não são da escola, mas vieram descobrir as belezas do Carnaval:
são 45 cegos que participam de um projeto de inclusão no Carnaval de São Paulo” (grifos
meus). Novamente, percebe-se um contraste: “eles não são da escola”, ou seja, não
pertencem diretamente àquele universo, estão ali como visitantes; “mas vieram descobrir
as belezas”, chegaram, foram incluídos no contexto mencionado.
Em outro momento, Neide Duarte diz: “Na quadra da escola, uma aula para
identificar o som de cada instrumento” (grifo meu). A noção de aula comporta a existência
de professores e aprendizes, reforçada pela expressão “identificar o som” — os cegos estão
ali para aprender a perceber algo, nesse caso pelo sentido da audição. Com relação às
sonoras (entrevistas), há uma com o diretor da SPTurismo, Luis Sales, representando uma
fonte oficial: “Participam do ensaio, eles [cegos] vão ao Sambódromo, eles vão assistir o
294
desfile, e, por fim, nas campeãs, todo o grupo vai desfilar.” A ideia de alteridade também
está presente na fala, pelo uso sucessivo do pronome “eles”. Já uma das deficientes, ao
experimentar a fantasia, declara: “O tecido parece um tecido brilhante” — sobressai a
impressão visual que ela tem, advinda do sentido tátil e logo confirmada pela imagem
telejornalística, revelando ao telespectador vidente (não cego) que, de fato, o tecido é
brilhante, em cor dourada.
“Dona Arlene conseguiu um professor especial: aprende a tocar caixa com [o
ritmista] Tubarão. Ele perdeu a visão há seis anos, mas não o lugar na bateria. Antes
tocava surdo [instrumento musical de grandes dimensões]”, destaca a jornalista — aqui,
desponta a percepção de que a perda da visão não implica, necessariamente, uma “dessocialização” ou a perda de certas funções e identidades (no caso, de músico). Logo em
seguida, Tubarão complementa: “Agora, estou tocando caixa, porque a caixa é um
instrumento mais fácil pra mim me locomover na avenida” — por outro lado, a deficiência
visual trouxe mudanças na vida do ritmista; uma delas foi essa readaptação, em que ele
trocou o antigo instrumento.
Neide diz que “[o auxiliar administrativo] Fabiano quer saber como se comportar
no desfile e quis vestir a fantasia”. Ela lhe pergunta em seguida: “O que é que tem na sua
cabeça?” Ele responde, enquanto a câmera faz um leve movimento de tilt (subida,
panorâmica vertical) e zoom in (aproximação) na cabeça do personagem: “Tem uns
prédios, um helicóptero”. Nesse caso, a imagem da fantasia confirma que a resposta de
Fabiano estava correta — implicitamente, aproxima-se a figura do cego com a do não
cego, já que ambos são capazes de perceber aqueles mesmos objetos.
A repórter prossegue em seu off (narração coberta por imagens): “A fantasia de
Diego foi outra: dançar com a princesa da bateria. Airton aproveitou a brecha e também se
enturmou, mas quem ganhou um abraço foi Diego” (grifos meus). Outra vez, deficientes e
videntes (no caso, a princesa da bateria Joice) são aliados — “dançar com” e “ganhou um
abraço” revelam esse contato de aparente igualdade. Por sua vez, “também se enturmou”
reforça a noção de inclusão, de entrada em algo, por assim dizer. Sobre a beleza da
sambista, o auxiliar de produtos Diego de Castro comenta: “A beleza dela depois que eu
descobri, maravilhoso”. A repórter interroga: “Como é que você descobriu?” Diego
responde: “Na hora que eu peguei nas mãos dela, deu pra sentir a delicadeza das mãos, o
295
gingado.” Novamente, reforça-se outro sentido — nesse caso, o do tato, compensando a
falta do visual.
“Giovana é cantora lírica e se sentiu à vontade junto com a bateria da escola. Os
outros cegos, inspirados pelo ritmo, entraram no clima e fizeram da quadra o espaço da
Apoteose”, salienta a jornalista — com mais expressões para reforçar a semântica da
inclusão. Por fim, o tecnólogo Airton Rio Branco acentua: “No meu imaginário, eu estou
vendo tudo, sentindo tudo, e com um detalhe: dessa vez, interagindo” — a fala de Airton
confirma, primeiramente, a possibilidade de deficientes visuais “verem” com outros
sentidos que não o da visão, podendo “sentir tudo”. “Dessa vez, interagindo” parece
mostrar que a proposta de inclusão dos cegos àquele contexto foi alcançada.
Já no JN de 10 de março, a matéria de fechamento do noticiário é antecedida com a
fala de Bonner: “Antes de encerrar esta edição, o Jornal Nacional tem que apresentar para
você um lugar que permite a pessoas com deficiência física entrar em contato direto com a
arte. É a repórter Neide Duarte quem mostra”. O VT trata do Memorial da Inclusão, um
museu criado para preservar a memória da luta dos deficientes por seus direitos, desde
1981, Ano Internacional da Pessoa com Deficiência, instituído pela ONU.
A matéria, com 2 minutos e 32 segundos de duração, começa com dois deficientes
visuais apalpando objetos e tentando identificá-los. Observa-se que ambos aparecem “sem
rosto” (apenas as mãos são mostradas no vídeo), como que sem identidade, ou melhor, a
identidade sugerida pelo conjunto audiovisual é justamente a de cego, reconhecível por
mãos tateando e pela fala dos personagens, “traduzindo” em palavras aquilo que não veem,
mas sentem pelo tato. O texto em off da repórter apresenta, inicialmente, o local: “O Museu
da Pessoa com Deficiência é pequeno, ocupa pouco espaço. Este memorial foi criado para
que a história não se perca. Uma luta que começou em 1981, Ano Internacional da Pessoa
com Deficiência. Tempo de passeata pelo centro de São Paulo: cadeirantes e até uma
mulher numa maca. Os cartazes eram tão simples quanto os desejos.” Imagens de arquivo
da época mencionada são expostas enquanto Neide faz seu relato. Quando diz que “os
cartazes eram tão simples quanto os desejos”, o sentido dessa frase só se completa com a
imagem mostrada — um cartaz colado atrás de uma cadeira de rodas, no qual se lê:
“Temos direito a: trabalho! Transporte! Estudo! Reabilitação! Lazer!” Pontua-se, aqui,
uma crítica à matéria: apesar de abordar temas como deficiência e inclusão, essa parte da
296
reportagem acaba excluindo deficientes visuais que eventualmente estejam acompanhando
o JN, uma vez que a imagem, muito significativa naquele contexto e crucial para a
compreensão do que a jornalista queria dizer, não foi descrita verbalmente — o que exclui,
também, analfabetos e telespectadores com dificuldade de leitura, até porque a cena teve
duração de apenas dois segundos.
Entre outros momentos da reportagem, destacam-se a seguir os mais relacionados à
deficiência visual. “Caminhos sinalizados, informações em Braille, áudio para substituir a
leitura: essas são algumas conquistas reunidas no Memorial da Inclusão”, salienta Neide
Duarte em off. Ao dizer “caminhos sinalizados”, mostra-se um deficiente visual andando
sobre o tal caminho, utilizando uma bengala — novamente, trata-se de um “cego sem
rosto”, pois a imagem é enfocada nas pernas do personagem.
O off continua: “Uma oportunidade rara. [O radialista] Beto pode dizer que viu uma
obra de Portinari” — à semelhança da reportagem anterior, está presente a ideia de que é
possível “ver” sem os olhos. O personagem reforça: “Uma réplica perfeita. Consigo sentir
os tecidos, o crucifixo. Eu já li muito sobre Cândido Portinari, mas ter contato com a obra
em si, esse contato tátil é algo que emociona”. O VT termina com o depoimento da
curadora, Elza Ambrósio: “Ao construir esse espaço acessível, um dos objetivos foi que as
pessoas, principalmente as pessoas com deficiência, participem desse espaço, que foi feito
para elas” — os termos grifados contribuem para reforçar o tema da inclusão.
No JN de 11 de abril, o programa exibiu uma matéria com duração de 2 minutos e
45 segundos, sobre os 65 anos de atuação da Fundação Dorina Nowill em prol dos cegos.
Na “cabeça” da matéria, Bonner enaltece: “Em 2011, a iniciativa de uma mulher que
mudou a vida dos deficientes visuais no Brasil está completando 65 anos. A gente vê na
reportagem de Alan Severiano.” A matéria começa abordando a história de vida de um
personagem. “Foi de repente. Aos 33 anos, a vida deu uma reviravolta. As veias da retina
se romperam, e [o advogado] Marcelo perdeu quase toda a visão.” A narrativa parece
querer fazer com que qualquer telespectador vidente se identifique com a história, porque,
se “foi de repente” que a vida do entrevistado deu uma reviravolta, esse acidente pode
acontecer com qualquer pessoa. “Foi um luto de se fechar em casa no meu quarto. Eu
pensei que a vida tinha realmente acabado”, declarou. Novamente, um caso de superação
da deficiência é atrelado à ajuda alheia: “isso faz oito anos. Hoje, com a ajuda de um cão
297
guia e de um programa de computador, ele faz parte da equipe de advogados de uma
multinacional.” Nessa situação, o auxílio continua vindo de um ser vidente (o cão guia),
além de um respaldo eletrônico, vindo de um software. “Eu reaprendi a fazer o que sabia
de outra forma e hoje convivo bem com esse aparato tecnológico”, afirmou. A fala de
Marcelo demonstra que ele teve de se (re)adaptar à sociedade, e não o contrário — em vez
de inclusão, sobressai a integração.
“O recomeço não foi fácil, como acontece com todos que passam pela Fundação
Dorina Nowill, em São Paulo. A instituição leva o nome da pedagoga que ficou cega aos
17 anos e foi a primeira deficiente visual a estudar em uma escola regular”, realça Alan.
Dizer que “o recomeço não foi fácil” sugere a existência de dificuldades na tal
readaptação, mas estas não foram explicitadas claramente pela reportagem. Já quando se
informa que Dorina foi a primeira deficiente visual em escola regular, percebem-se o
pioneirismo da profissional e a ideia de integração (‘em uma escola regular’).
O repórter destaca que, “por ano, 64 mil livros são distribuídos gratuitamente para
bibliotecas e deficientes visuais em todo o País. Além de publicações em Braille, tem
também livros digitais e os livros falados. Assim, muitos reaprendem a ler, a entender
formas, a se localizar.” A deficiência visual é entendida como um problema que, de certa
forma, exige reaprendizagem e readequação. “Outros dão os primeiros passos. Os bebês
são estimulados para evitar atraso no desenvolvimento” — aqui, a cegueira infantil
desponta como causa de atraso, conforme a fisioterapeuta Márcia Silva reforça em seguida.
“Geralmente, eles [bebês com deficiência visual] demoram mais para engatinhar, eles
demoram mais apara andar. Quando a gente estimula, eles aprendem naturalmente. Isso
vai ajudá-lo na sua expressão corporal” — a fala associa deficiência a atraso no
desenvolvimento, o que pode ser combatido quando “a gente” (fica implícita a referência
aos videntes) estimula esses bebês.
Em sua fala, o presidente da Fundação, Adermir Ramos da Silva, acentua que ali
“não é lugar de coitadinho, ninguém tem pena. Ele [o cego] tem a deficiência. Ele precisa
superar uma barreira, mas fora isso é uma pessoa capaz de realizar seus desejos, e é isso
que Dorina nos ensinou.” A ideia de alteridade reaparece, pelo uso do pronome “ele”, bem
como a de que a cegueira é um obstáculo superável, pois os deficientes são capazes de
realizar seus desejos. De novo, a possibilidade de vencer na deficiência é atrelada mais ao
298
indivíduo cego do que a uma conscientização vinda da sociedade como um todo em prol da
inclusão de fato.
“Bruno segue esse caminho. Nasceu cego, passou a frequentar a Fundação e, aos 11
anos, tira de letra o convívio na escola com crianças que enxergam” — o off corrobora a
habilidade do deficiente em se integrar e conviver com quem vê. A matéria é finalizada
com o depoimento de Bruno: “Não adianta você viver em um ambiente que só tem pessoa
que tem o seu problema, senão você não vai se acostumar com o mundo.” Fica a
mensagem final de que a integração é importante, mas não tão enfaticamente a de que cabe
à sociedade participar ativamente no rompimento de barreiras discriminatórias,
promovendo a inclusão. Em outras palavras, o cego pode “acostumar-se com o mundo”,
mas o contrário nem sempre ocorre.
Conclusão
Certamente, é importante que telejornais abordem a questão da deficiência. Nesse
sentido, o JN trouxe contribuições, na medida em que apresentou iniciativas de integração
ou inclusão social e cultural de deficientes. O noticiário alternou entre os termos “cego(a)”
e “deficiente visual” para referir-se às personagens mencionadas, os quais são mesmo os
mais comuns e aceitáveis, em detrimento de denominações pejorativas como “aleijado” ou
inadequadas como “portador de necessidades especiais”. Os cegos mencionados não foram
representados como sendo coitados, o que é positivo.
O tato e a audição prevaleceram como outros sentidos que compensariam a falta da
visão. Notou-se, também, que, nas três referências a cegos analisadas, os deficientes
estavam já incluídos ou em fase de inclusão em determinado contexto. Aliás, eles foram
entrevistados na condição de cegos, por serem deficientes visuais, e não como radialista,
advogado ou tecnólogo, por exemplo, o que parece indicar que o telejornalismo, muitas
vezes, só recorre a pessoas deficientes para serem fontes de informação em matérias sobre
deficiência. Além disso, ficou implícita a dependência de cegos para com videntes em
alguns momentos.
Finalmente, pontua-se que praticamente não é oferecida, na TV brasileira, a opção
da audiodescrição — narrativa oral, sucinta e objetiva com as informações relevantes de
299
cenas, cenários e imagens, que pode ser transmitida, no caso de atrações televisivas, pelo
programa secundário de áudio (SAP), beneficiando, além de deficientes visuais, os
analfabetos, pessoas com dislexia ou dificuldades cognitivas que as impedem de ler o texto
escrito no vídeo. Apesar de o Governo Federal ter anunciado a implementação gradual da
audiodescrição na televisão aberta brasileira desde o dia 1º de julho deste ano, os
telejornais em geral ainda não aplicam o recurso no Brasil, o que acentua a exclusão
midiática de pessoas com deficiência visual. Afinal, conforme observado em outro trabalho
do autor, sobre recepção telejornalística por cegos (MACHADO, 2009), muitas
informações relevantes são transmitidas apenas pela imagem, impedindo que
telespectadores cegos usufruam mais plenamente do direito à informação e compreendam
melhor o conteúdo. Logo, é possível e necessário ir além da integração, para que o
processo de inclusão seja cada vez mais promovido e consolidado, inclusive pela mídia,
fortalecendo-se a cidadania e a democracia.
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301
Formação Inicial de Professores em uma Perspectiva Inclusiva
Roselia Aparecida Gonçalves*
Resumo: Este trabalho é o resultado da pesquisa acerca das reflexões de acadêmicos dos
cursos de licenciatura no grupo de estudos “Formação inicial de Professores: Repensando
Novas Metodologias de Ensino-aprendizagem para Surdos”. Esse espaço tem como
objetivos: disponibilizar aos futuros professores teorias pedagógicas que contemplem a
inclusão, focando os fundamentos teóricos e práticos a respeito da Língua Brasileira de
Sinais - LIBRAS; levar os acadêmicos a pensarem em estratégias de ensino voltadas para a
inclusão do aluno surdo em instituições de ensino. A metodologia é de ordem qualitativa.
Os dados foram coletados a partir da observação-participante e questionário. Como
resultados, averiguou-se, que os acadêmicos tecem reflexões sobre suas práticas em
projetos nos quais atuam como docentes e usam das teorias estudadas no grupo de estudos
para elaborarem suas aulas. Essa iniciativa demonstra que, aos acadêmicos dos cursos de
licenciatura, é preciso promover mais espaços que os incentive, desde os anos inicias de
sua formação, a começarem a desenvolver uma identidade de professor inclusivo. Assim quando em serviço -, sejam críticos e tenham consciência da função social de educadores.
Palavras-chaves: Professores em formação, Educação inclusiva, Reflexão crítica.
Abstract: This paper is the result of research on the reflections of academics of degree
courses studies in
the
group
of "Initial
Training of
Teachers: Rethinking New
Methodologies of Teaching and Learning for the Deaf". This space aims to: provide future
teachers pedagogical theories that address the inclusion, focusing on the theoretical
and practical about the Brazilian Sign Language - LIBRAS; bring academics to think
of teaching strategies aimed at the inclusion of deaf students in education institutions. The
methodology used in this research was in a qualitative perspective. Data were
collected from
participant
observation and
questionnaire. As
a
result, it
was
found that academics weave reflections on their practices in projects in which they act as
*
Graduação em Letras Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Orientadora: Ana Luisa Borba
Gediel – Professora Adjunta / Departamento Letras / Universidade Federal de Viçosa – UFV.
302
teachers
and use
of
the
theories studied
in
the study
group
to prepare their
lessons. This initiative shows that the academic degree courses, we need to promote more
spaces that encourage them, since the initial years of its formation, to begin developing a
comprehensive teacher identity. So - while on their jobs - are critical and aware of the
social role of educators.
Keywords: Teacher training, inclusive education, critical reflection.
Introdução
O Brasil vive em um momento significativo em relação a políticas públicas
direcionadas às pessoas surdas que, durante muito tempo, foram colocadas à margem da
sociedade. Esse descaso em relação a elas prejudicou o seu desenvolvimento cognitivo,
pois muitas saiam da escola sem saber ler ou escrever, ocasionando exclusão social.
Sabe-se que esses sujeitos, embora desde a existência de comunicação entre pares,
constituíram sua própria língua, mas somente no início dos anos 2002, foi reconhecida a
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS como a primeira língua deles. Diante de tal política
linguística educacional, está a relevância social deste artigo.
A partir disso, surgiu na UFV, departamento de Letras, o grupo de estudos
“Formação inicial de Professores: Repensando Novas Metodologias de Ensinoaprendizagem para Surdos”, mediado pela autora do Artigo. Esse tem como objetivos:
disponibilizar aos futuros professores teorias pedagógicas que contemplem a inclusão,
focando os fundamentos teóricos e práticos a respeito da Língua Brasileira de Sinais LIBRAS; levar os acadêmicos a pensarem em estratégias de ensino voltadas para a
inclusão do aluno surdo em instituições de ensino. A partir dessa perspectiva, este trabalho
tem como objetivo trazer algumas reflexões dos acadêmicos dos cursos de licenciatura de
Biologia, Química, Letras, Geografia e Ciências Sociais acerca da importância desse grupo
de estudos. Para tanto, procurou-se averiguar como os acadêmicos veem esse espaço e qual
a importância que dão a ele; e se aplicam, nas suas aulas, a teoria abordada em textos
estudados no grupo de estudos; além de investigar o que os acadêmicos aprendem a partir
303
desse espaço. Diante disso, este artigo está estruturado da seguinte forma: introdução,
referencial teórico, metodologia adotada, discussões e algumas conclusões.
Educação inclusiva
Esses sujeitos foram tratados de maneira desigual, devido a sua surdez, colocandoos em uma situação de desvantagem quando equiparados aos ouvintes. Registros acerca do
processo educacional das pessoas surdas no Brasil, no final do século XVIII e XIX,
demonstram que eles circulavam na sociedade sem haver uma preocupação de ensino
voltada para suas especificidades, tornando-os invisíveis perante as práticas pedagógicas
(SKLIAR, 1998a).
Pode-se dizer que a escola procurava os “educar” por meio do “adestramento”
(FOUCAULT, 1997, p.164); de concepções e conhecimentos que eram considerados pelas
instituições e profissionais como a melhor forma de aproximação educacional e cognitiva
dos surdos em relação aos ouvintes. Sendo assim, a forma de comunicação adotada e os
conteúdos eram passados a partir do método da oralização61, tendo o português como sua
primeira língua, que na maioria das vezes, levou-os ao fracasso escolar. Após esse método,
foi implantado o de comunicação total – junção da oralidade com gestos, mas não houve
progresso.
A partir da década de 90, surge uma preocupação efetiva em relação às políticas
públicas relacionadas às pessoas surdas. Foram elaborados documentos como: a
Declaração de Salamanca (1994), que é considerado como marco em relação à educação
para todos; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN, a qual destina um
capítulo às pessoas com necessidades especiais (PNE); Na LDBEN – que é considerado o
guia para todas as reformas educacionais –, está posto como prioridade o acesso dos surdos
às escolas regulares; não mais às especiais. Assinala-se nesse documento a necessidade de
haver uma preparação dos profissionais da educação e da estrutura física do ambiente
escolar receber esses sujeitos (BRASIL, 1996). Também, em 2002 a Lei Nº 10.436
61
Entende-se por oralização a realização da leitura labial e ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa oral
para pessoas surdas (SKLIAR, 1998).
304
oficializou a LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais como a Língua Oficial das pessoas
surdas, que foi regulamentada pelo Decreto Nº 5.626 de 2005.
Esse último decreto traz contribuições importantes aos surdos, colocando que
pessoa surda é aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por
meio de experiências visuais, manifestando sua cultura, principalmente, pelo uso da
LIBRAS; também, diz que é preciso a inclusão da LIBRAS como disciplina curricular nos
cursos de licenciatura; formação do professor e do instrutor de LIBRAS; o uso e da
difusão da libras e da língua portuguesa escrita para o acesso das pessoas surdas à
educação (BRASIL, 2005).
Constatou-se, nesse momento histórico, uma mudança de olhar em relação aos
surdos; ao mesmo tempo, começa-se a valorização efetiva de um grupo minoritário que
vem lutando há mais de um século, no Brasil, por uma escola onde ele pudesse usar a
primeira língua no processo de ensino-aprendizagem (QUADROS, 2002). Mas, para que
isso aconteça de modo promissor é imprescindível um novo modelo de escola o qual
promova uma aprendizagem de qualidade e eficaz para esses sujeitos já tão sofridos.
Assim, surge o Bilinguismo o qual reconhece o uso da Língua de Sinais como
primeira língua e a Língua Portuguesa – no formato escrito –, como segunda (QUADROS,
2002). Essa proposta veio na tentativa de incluir verdadeiramente esses sujeitos. Mas, há
ainda poucos educadores bilíngües. Esse paradigma, segundo Goldfeld (2002, p; 42) apud
Lima & Carnielli (2011), tem como pressuposto básico que o surdo deve ser bilíngüe, ou
seja, deve adquirir como língua materna a Língua de Sinais, que é considerada a língua
natural dos surdos e, como segunda língua, a oficial de seu país.
Na escola, faz-se imprescindível, com essa abordagem, que pensemos na formação
de professores - tanto inicial, como continuada. Hoje, na maioria das escolas, não há
professores preparados para suprir essa demanda. Assim, é primordial proporcionar aos
professores em formação inicial, espaços a fim de que se discutam a respeito dessa
especificidade educacional, uma vez que uma escola inclusiva e bilíngüe é de extrema
importância para uma educação de qualidade para os alunos surdos. Sabemos que o
modelo de escola atual – o que privilegia oralismo – não consegue fazer com que o
estudante surdo progrida na escola. Há dados estatísticos os quais mostram 90% dos surdos
305
complementam a educação básica formal sem se apropriarem da leitura e escrita do
português escrito (LEBEDEFF, sd).
Metodologia
Os acadêmicos participantes do projeto Ensino-aprendizagem e Metodologias de
Ensino para Surdos – EAMES do Departamento de Letras da UFV se encontravam
quinzenalmente. Os encontros aconteceram de 13 de setembro a 22 de novembro na
Universidade Federal de Viçosa. Tal espaço de formação envolveu 10 integrantes de
diversos cursos de licenciatura, tais como: Biologia, Química, Letras, Geografia e Ciências
Sociais.
Esses graduandos trazem relatos de suas experiências docentes obtidas em sala de
aula, ao mesmo tempo em que tecem suas reflexões acerca de suas práticas, adquirem mais
conhecimento a respeito da educação surda e inclusiva.
Desse modo, este artigo traz reflexões acerca do grupo de acadêmicos a partir da
leitura de textos (artigos, relatos de experiência ou capítulo de livros), os quais foram
selecionados previamente pelo mediador/ministrante, levando em consideração as
necessidades relacionadas à preparação de aulas pelo grupo de acadêmicos. Conforme
tabela abaixo, faz-se possível acompanhar os textos discutidos pelo grupo:
Texto
Autoria
“Ensino de história
para alunos surdos de
ensino médio: desafios
e possibilidades”
Gabriele Vieira Neves –
UCS
13/09/2011
Esse texto mostra a importância do
uso da imagem como metodologia de
ensino-aprendizagem, tendo como
foco os alunos surdos
“Surdez e criatividade
em uma perspectiva
bilíngüe / deafness
and
creativity
approach
on
bilingual”
“A Relevância da
Linguística Aplicada
na Formação de uma
Política Educacional
Brasileira”
Maria do Carmo de
Silva Lima (UCB) e
Beatrice Laura Carnieli
(UFRJ)
27/09/2011
Discutir a respeito do bilinguismo.
Maria Antonieta Alba
Celani – Pesquisadora
do CNPq
18/10/2011
Perceber o que os acadêmicos sabiam
a respeito da temática e proporcionalhes mais informações a esse
respeito.
Maria Antonieta Alba
08/11/2011
Relacionar os dois textos – um
“A
Relevância
da
Data
Objetivo
306
Linguística Aplicada
na Formação de uma
Política Educacional
Brasileira” &
Celani – Pesquisadora
do CNPq (p. 17/32)
“Políticas lingüísticas
e educação de surdos
“Em santa Catarina:
espaço
de
negociações”
Ronice
Quadros
Müller
de
teórico e um exemplo prático de
política pública em prol da educação
surda.
22/11/2011
Exercício
e
questionário.
aplicação
Para a análise dos dados, utilizou-se da abordagem qualitativa. Como coleta de
dados utilizou-se um questionário o qual foi aplicado a todos os integrantes do grupo de
estudos que são 10, mas somente 4 responderam-no; 1 de Ciências Sociais, 3 de Biologia.
Na pesquisa, eles serão identificados como: A1 (acadêmico de Ciências Sociais), A2
(acadêmico de Biologia), A3 (acadêmico de Biologia), A4 (acadêmico de Biologia).
Também, necessitou-se da observação participante para se ter um olhar minucioso para o
objeto de estudo (MINAYO, 2000).
A fim de aplicar o questionário e fazer uso da observação participante, os
participantes foram informados acerca da investigação, o objetivo da técnica empregada;
sendo assim, eles assinaram o termo de consentimento, concordando com a participação
voluntária e possível publicação dos dados obtidos.
Discussões
Nesta seção realizar-se-á a análise dos dados, a partir das respostas dos acadêmicos
ao questionário aplicado; as falas deles observadas durante as discussões do grupo de
estudos, confrontando essas ideias aos teóricos estudados. Com isso, as reflexões foram
agrupadas em três diferentes categorias, as quais seguem abaixo: Novas metodologias de
ensino-aprendizagem que contemplem a educação surda; A importância de uma educação
bilíngüe eficaz ao aluno surdo; Políticas públicas educacionais inclusivas.
Novas metodologias de ensino-aprendizagem que contemplem a educação surda
A proposta para possibilitar que o sujeito surdo tenha posse do mundo letrado é o
incentivo ao letramento visual; é educar os alunos surdos para se utilizarem do mundo
307
de
imagístico a fim de que ressignifiquem seus saberes (GESUELI & MOURA, sd). Fazendo
uso da imagem, é provável que se concretize um ensino verdadeiramente inclusivo e
efetivo.
As grades curriculares dos cursos de licenciatura ainda estão em processo de
adequação para atentar a importância do uso da imagem para fazer os surdos terem posse
do conhecimento científico. Logo, a rede regular de ensino está em fase de preparação
para atender esse público, respeitando a sua especificidade linguística. A esse respeito,
Quadros (2006, p.157) diz que “a escola que os surdos querem e a escola que o sistema
“permite” ainda não são convergentes”. Desse modo, é primordial que, haja o uso de
metodologias de ensino aprendizagem que considerem os recursos visuais, pois esse é
forma mais eficaz de se estabelecer uma ligação entre o mundo dos surdos e o dos
ouvintes. Logo, os futuros educadores devem se preparar a fim de, quando estiverem em
sala de aula regular e tiverem um aluno surdo saibam como proporcionar a melhor
aprendizagem ao surdo.
Os acadêmicos investigados, quando leram o texto que trata dessa temática,
perceberam a importância de se priorizar verdadeiramente a imagem para planejarem suas
aulas. Um exemplo que se pode citar é que acadêmicos de ciências sociais elaboraram duas
atividades, considerando as especificidades dos sujeitos surdos. A primeira foi a do Mapa
da Diversidade Brasileira, tendo como objetivo proporcionar aos surdos o entendimento a
respeito das culturas diferenciadas presentes no Brasil por meio do uso das imagens. A
outra atividade, denominada teia social, trouxe imagens que representam instituições e
pessoas. Na última atividade, os estudantes surdos tinham que compreender como tudo está
interrelacionado na sociedade, ou seja, eles ressignificaram / construíram seu entendimento
acerca de como funciona a sociedade, tendo como apoio recursos visuais.
Em relação ao uso da imagem, quando os graduandos A1 e A2 foram questionados
a respeito da interrelação entre as teorias discutidas e a construção de material pedagógico,
isso pode ser conferido por meio da fala do acadêmico A1 que disse: “utilizei como base
teórica para pensar novas metodologias de ensino em Sociologia”. Já acerca dos espaços
de formação inicial, os graduandos trouxeram as seguintes considerações: “(...) Nos
espaços de formação que temos o primeiro contato com as metodologias de ensino e
podemos criar e pesquisar novas” (A1); enquanto A2 afirma: “o grupo auxilia muito
308
nesses aspectos. São discutidas diferentes metodologias para serem trabalhadas, de forma
a achar a melhor elaborada para a aprendizagem do surdo”.
Siqueira & Messias (2008) consideram que não basta o interesse do docente em
pré-serviço ou serviço refletir a respeito de sua prática e de sua profissão; é necessário que
esse refletir circule, interaja com a reflexão de seus colegas de profissão e esteja embasado
teoricamente. Assim, conclui-se que o grupo de estudos possibilitou um ambiente muito
rico, no qual os graduandos socializaram suas experiências docentes, oportunizando
múltiplas aprendizagens.
A importância de uma educação bilíngüe eficaz ao aluno surdo
A escola precisa adotar verdadeiramente a educação bilíngüe, pois só assim a
criança surda será alfabetizada e letrada em LIBRAS, primeiramente, pois esta é a sua
primeira língua; português lhe será ensinado como segunda língua e na modalidade escrita
(PEREIRA, 2000). Indo nessa direção bilíngüe, a criança surda terá acesso ao
conhecimento cientifico nas duas línguas.
Os acadêmicos, ao discutirem o texto a respeito do bilinguismo, perceberam que
eles não tinham claro o que era uma escola bilíngüe e a importância da mesma para uma
educação de qualidade para os alunos surdos. Os acadêmicos perceberam ao fim da
discussão que a escola não está cumprindo com seu papel, pois – após a escolarização
básica -, essas pessoas não conseguem ler e escrever com proficiência em português e nem
tem acesso a LIBRAS. Diante dessa observação, pode-se dizer que é necessária a
efetivação da escola bilíngüe.
Os sistemas regulares de ensino precisam estar preparados para incluir
verdadeiramente os alunos surdos. Não somente ter um intérprete, mas sim professores
bilíngues e inclusivos preparados, tendo metodologias de ensino voltadas para atender a
esse grupo minoritário.
Ao intérprete cabe a tarefa de ser o elo entre os conteúdos
ministrados pelo professor e o aluno surdo. Portanto, a interação entre aluno surdo e
professor é tarefa do professor, uma vez que é a partir dele que a aprendizagem de ambos
os agentes sociais acontece.
Políticas públicas educacionais inclusivas
309
O fato de a LIBRAS ser reconhecida oficialmente com primeira língua das pessoas
surdas é uma conquista importante para que esse grupo minoritário comece a consolidar a
sua cultura, uma vez que a língua é de caráter identitário para qualquer comunidade. Isso
também influencia nas reformas educacionais. Segundo Shon (1992. P. 79, apud Siqueira
& Messias, 2008, p. 02) “estamos sempre em processo cíclicos de reforma educacional”.
Pode-se inferir a partir desse excerto que um professor educador precisa levar em conta
que uma proposta educacional não chega até ele pronta, há a necessidade de adequá-la ao
seu contexto para que o processo de ensino-aprendizagem se realize de modo promissor.
Para isso, os professores precisam refletir a respeito de como está acontecendo a sua
prática pedagógica e, após essa reflexão, há a necessidade de uma ação por parte desse
profissional (SIQUEIRA & MESSIAS, 2008).
Embora, a LDB, a lei da LIBRAS e o Decreto de 2005 já estejam em discussão há
muitos anos, ainda há poucas pesquisas que preocupam com a formação de professores,
priorizando a educação inclusiva para atender à demanda. Desse modo, as escolas ainda
têm muita dificuldade para receber e incluir verdadeiramente os alunos surdos,
promovendo-lhes uma boa escolarização na educação básica (BRASIL, 2005).
Aos acadêmicos foram proporcionadas discussões por meio de textos que
contemplem políticas públicas educacionais. Tal iniciativa ambicionava trazer a eles
conhecimento teórico a respeito do modo como funciona uma política pública, ou seja,
como ela é construída. Desse modo, eles trouxeram posicionamentos curiosos, como:
pouco conhecimento a esse respeito. Isso pode ser evidenciado nas seguintes falas: “(...) os
textos lidos e discutidos no grupo de estudos serviram de embasamento teórico, mas ainda
não são o suficiente para avaliar uma política pública, segundo A1; Já A2 enfatiza que
“Claro, na verdade foi através desse espaço que obtive mais informações sobre esse
assunto, e hoje eu vejo o quanto devemos dar mais importância”.
Investir na discussão acerca da constituição e ação de políticas públicas na
formação inicial de professores faz-se primordial para a conscientização dos futuros
professores, para que quando estiverem em sala de aula e tiverem um aluno surdo saibam
com proceder também no âmbito político; não somente desenvolvendo atividades de
ensino–aprendizagem, mas buscando recursos e atitudes de eficácia para a real inclusão
dos sujeitos. Diante disso, acredita-se que é de fundamental importância trazer espaços,
310
como este grupo de estudos, que contemplem a educação surda, tanto no aspecto
pedagógico, quanto no político, para dar suporte aos estudantes.
Quadros (2011) diz que a complexidade para incluir verdadeiramente o aluno surdo
é grande e as dificuldades são muitas, mas a questão deve ser enfrentada. Diante dessa
colocação da autora, os acadêmicos participantes da pesquisa defendem a ideia que
precisam estar preparados para incluir os alunos surdos, mas não se consideram ainda.
Afirmam que é uma tarefa difícil e não sabem como proceder a esse respeito, no entanto,
têm consciência dos problemas que enfrentarão tanto em relação ao aspecto físico quanto
ao humano.
Observa-se que os professores/acadêmicos pesquisados estão desenvolvendo uma
consciência reflexiva a respeito da sua função social como educadores ao procurarem
espaços de formação inicial, além da Disciplina de Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS
(LET 290).
Considerações finais
Após esse período de aprendizagem coletiva, chega-se à conclusão que grupos de
estudos bem organizados e planejados contribuem de maneira significativa para a
aprendizagem de todos os envolvidos. Além disso, percebe-se que é papel das
universidades, concomitante às disciplinas oferecidas na grade curricular, proporcionar e
incentivar espaços de formação aos licenciandos, para que esses, além de apreender a
respeito de um determinado assunto, também estar em contato com seus pares indenitários
a fim de refletir sobre suas aprendizagens – como mostrou o estudo em pauta.
Assim, percebe-se a importância de a universidade proporcionar aos acadêmicos
dos cursos de licenciatura, desde o início de sua formação, maior interação entre teoria e
prática e não somente no final do curso como vem acontecendo; também, é primordial que
haja na própria instituição de ensino espaços de discussões, tendo com base a teoria a fim
de proporcionar reflexões aos acadêmicos acerca de suas práticas e suporte pedagógico
para prepararem materiais didáticos que contemplem a educação surda. Acredita-se, ainda,
que essa iniciativa poderá proporcionar ao futuro professor reflexão a respeito de seu fazer
pedagógico e da escola como um todo, pois não há como separar o fazer do professor, do
311
escolar, das concepções teóricas que norteiam a educação. A partir de esse refletir, é
possível, sim, o professor modificar a sua prática, caso à que está usando não funcionar
mais.
A formação inicial contribui para incluir os alunos surdos, pois todas as ações
metodológicas e políticas tomadas tiveram como finalidade desenvolver uma reflexão
crítica ao graduando, contemplando o ensino aprendizagem dos alunos surdos em todas as
suas facetas, principalmente, como processo de construir nos futuros educadores uma
consciência de professor inclusivo. Logo, a partir disso, o educador não ficará sendo
copista de metodologias de ensino-aprendizagem elaboradas para alunos ouvintes; ele terá
motivação para o desenvolvimento de novas estratégias de ensino e contribuirá de forma
efetiva para uma educação surda e inclusiva.
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313
Representações Historiográficas
Discussões Historiográficas e Romances Históricos: diálogos possíveis?
Rodrigo Gomes de Araujo*
Resumo: Neste texto abordo uma série de romances históricos produzidos no Brasil, entre
as décadas de 1980 e 2000. São obras que não buscam simplesmente construir uma
representação do passado, mas discutem a possibilidade dessa representação ocorrer de
maneira objetiva. Esses romances problematizam os limites da escrita literária e
historiográfica através de metanarrativas, e ressignificações do passado, muitas vezes se
valendo dos mesmos recursos que a historiografia. Pesquisas apontam que esse tipo de
ficção autorreflexiva sobre o passado vem sendo produzido em diferentes contextos desde
a década de 1970, entretanto ainda não despertou a atenção dos historiadores. Discuto até
que ponto esses romances podem estabelecer conexões com o debate contemporâneo
referente à epistemologia historiográfica que vem se desdobrando desde a década de 1970,
sobretudo a partir dos argumentos de teóricos como Hayden White, Paul Veyne e Michel
de Certeau.
Palavras-chave: historiografia, romance histórico, literatura contemporânea.
Abstract: In this paper I discuss a series of historical novels produced in Brazil, between
the 1980s and 2000s. These works do not simply seek to build a representation of the past,
but they discusses the possibility of this representation occur in an objective manner. These
novels discusses the limits of written by literary and historiographical through the
metanarratives, and re-meanings of the past, often taking advantage of the same features
that historiography. Researches shows that this kind of fiction self-reflective about the past
has been produced in different contexts since the 1970s, but that's not caught the attention
of historians. I discuss the extent to which these novels can establish connections with the
contemporary debate concerning the epistemology of historiography that has unfolded
*
Mestrando em História pela UFPR.
314
since the 1970s, especially since the arguments of theorists such as Hayden White, Paul
Veyne and Michel de Certeau.
Keywords: historiography, historical novel, contemporary literature.
O atual interesse dos leitores por livros de temática histórica foi observado por uma
série de pesquisadores da literatura (ALVES, 2011; ESTEVES, 2008, p. 58; ANDERSON,
2007, p. 216; GARTNER, 2006, p. 20-1; SINDER, 2000, p. 259-60). Nas últimas décadas,
a ficção tem se apropriado cada vez mais dos objetos da historiografia. Conforme indicou
Flora Süssekind, no contexto brasileiro, observou-se o sucesso dos ditos romances de
fundação, marcados pela ideia de construção de uma identidade e cultura populares, como
as obras de João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado. Mas, de acordo com Süssekind, com o
fim do regime militar, começaram a surgir novas formas de narrativa literária, desligadas
do ideal identitário e nacionalista (SÜSSEKIND, 1993, p. 239-40). Entretanto, nem o
interesse do público, nem as recentes formas de apresentação do romance histórico
parecem ter chamado a atenção dos historiadores. Por isso, neste texto proponho uma
discussão sobre a recente apropriação dos recursos narrativos da historiografia por parte da
literatura contemporânea.
Segundo Perry Anderson, “Hoje o romance histórico se difundiu como nunca nos
âmbitos superiores da ficção, mais mesmo do que no auge do período clássico nos inícios
do século XIX. Essa ressurreição foi também, é claro, uma mutação” (ANDERSON, 2007,
p. 216). Para o pesquisador, o romance histórico contemporâneo apresenta uma
reorganização em relação à sua forma clássica, invertendo os parâmetros propostos por
György Lukács em seu livro O romance histórico. Nessa nova forma de apresentação, a
ficção não se volta somente à reconstituição de contextos “como realmente foram”, mas
busca discutir a própria narrativa, evidenciando que o passado não pode ser plenamente
representado.
Conforme o estudo de György Lukács, o que caracterizava um romance como
histórico era a presença de personagens ficcionais inseridos num pano de fundo histórico,
no qual os personagens reais figuram como coadjuvantes (LUKÁCS, 2011). Fredric
Jameson, reinterpretando a teoria de Lukács, defendeu que o romance histórico “não deve
mostrar nem existências individuais nem acontecimentos históricos, mas a interseção de
315
ambos: o evento precisa trespassar e transfixar de um só golpe o tempo existencial dos
indivíduos e seus destinos” (JAMESON, 2007, p. 192). Para ele, o romance histórico
conforme teorizado por Lukács não é compatível com a estética que caracteriza a literatura
contemporânea. Assim, Jameson defende que o romance histórico ainda é possível nos dias
de hoje graças às atualizações de sua forma de apresentação.
Perry Anderson e Fredric Jameson, se voltaram à análise do contexto europeu,
sobretudo para obras clássicas do século XIX, como as de Walter Scott e Leon Tolstoi. E
ao abordar a conjuntura contemporânea, Anderson situou a literatura latino-americana
produzida a partir da década de 1970 como uma ressignificação da forma romanesca.
Segundo ele, as releituras propositalmente distorcidas do passado, realizadas pelos atuais
romances históricos, podem estar associadas ao trauma antidemocrático das ditaduras
militares, como uma busca de redenção para uma “história que não deu certo”
(ANDERSON, 2007, p. 218). Também Jameson interpretou que a releitura da “verdade
historiográfica” por parte dos romances apresenta suas bases na ficção latino-americana.
Basta pensarmos nas genealogias fantásticas do realismo mágico latino-americano
para começarmos a compreender como os poderes do falso, das mais exageradas invenções
de um passado (e um futuro) fabuloso e irreal, sacodem o nosso extinto senso de história,
perturbam a inanidade de nossa historicidade temporal e tentam convulsivamente reanimar
o adormecido senso existencial do tempo com o potente remédio da mentira e das fábulas
impossíveis, com o entrechoque de repetidas doses do irreal e do inacreditável
(JAMESON, 2007, p. 202).
Segundo o pesquisador essa ressignificação do passado através da ficção realizada
pelo novo romance histórico corresponde a uma tentativa de nos despertar para a
necessidade da história.
Um dos pesquisadores que primeiro se dedicou à temática do novo romance
histórico foi Seymor Menton, com a publicação de um livro seminal sobre o tema: La
nueva novela histórica de la América Latina: 1979-1992 (MENTON, 1993). Também em
sua obra, o autor aborda o surgimento de romances que buscaram problematizar a
representação do passado. Menton situou a origem dessa estética no livro de 1949, El reino
de este mundo do cubano Alejo Carpentier, mas destacou que os novos romances históricos
só começaram a se difundir mais efetivamente a partir da década de 1970. O pesquisador
316
realizou um levantamento de romances com temática histórica produzidos na América
Latina desde o ano de 1949 até 1992, ano em que encerrou sua pesquisa. E observou que
entre estes havia uma série de obras que além de buscar representar o passado, visavam
discutir essa representação, assumindo “la impossibildad de conocer da verdad histórica o
la realidad” (MENTON apud WEINHARDT, 2006, p. 189).
Seymor Menton estabeleceu alguns critérios para classificar as obras como nuevas
novelas históricas, entre eles estão a autorreflexão da representação mimética, pautada na
impossibilidade de se representar a realidade; a distorção consciente da história através
anacronismos, reinvenções ficcionais e fantásticas do passado; a ficcionalização de
personagens históricos; a metaficção, na qual o autor insere seus comentários sobre o
processo de escrita; e a intertextualidade (MENTON apud WEINHARDT, 2006, p. 189).
Não é difícil perceber que se tratam de critérios diretamente relacionados à
problematização da representação do passado.
Numa conjuntura diferente, Linda Hutcheon se voltou à análise dos diálogos entre o
romance contemporâneo e a historiografia. A teórica e crítica literária pesquisou obras
ficcionais produzidas na década de 1980 nos contextos norte-americano e europeu, e
destacou que a partir deste período alguns romances históricos passaram a levantar as
mesmas questões que as teorias atuais a respeito da narrativa historiográfica. Sobretudo as
ideias de Michel de Certeau, Paul Veyne e Hayden White. Segundo ela, tanto romances
como a recente teoria da história levantam
Questões como as da forma narrativa, da intertextualidade, das estratégias de
representação, da função da linguagem, da relação entre fato histórico e o
acontecimento empírico, e, em geral, das conseqüências epistemológicas e
ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes era aceito pela
historiografia – e pela literatura – como uma certeza (HUTCHEON, 1991, p. 14).
De acordo com Roger Chartier, foi a partir de década de 1970, que historiadores
passaram a olhar mais reflexivamente para a epistemologia e narrativa historiográfica. Para
ele, Michel de Certeau, Paul Veyne e Hayden White – os mesmos teóricos apontados por
Hutcheon – foram os principais responsáveis por uma tomada de consciência da
subjetividade do conhecimento histórico. Três livros foram fundamentais para repensar a
objetividade historiográfica: Como se escreve a história (1971 [1998]) de Veyne, Meta317
história (1973 [2008]) de White e A escrita da história (1975 [2010]) de Certeau. As
questões levantadas suscitaram grande debate, que tinha por um lado a defesa da disciplina
da história enquanto uma ciência produtora de verdade, e por outro como uma narrativa
embasada em recursos subjetivos e ficcionais.
O debate sobre o estatuto da narrativa historiográfica inclui o historiador italiano
Carlo Ginzburg, para quem retórica e prova são indissociáveis, e a historiografia possui
uma verdade específica pautada nos vestígios do passado (GINZBURG, 2002). Sua
postura é similar a de Michel de Certeau, para quem o discurso histórico possui
credibilidade devido às referências ao passado, como a citação das fontes (CERTEAU,
2010, p. 101-2).
“Vestígios do passado, referências, citação de fontes”, estes procedimentos que
conferem legitimidade parecem específicos do discurso historiográfico, mas também estão
presentes no novo romance histórico (BARTHES, 1988, p. 146). Segundo Hutcheon, os
livros caracterizados por ela como metaficções historiográficas utilizam a citação de fontes
e as referências ao passado com o intuito de evidenciar que o conhecimento histórico é
lacunar, ideológico e está sujeito aos vestígios do passado, já que sem estes a escrita da
história não seria possível. De acordo com ela, tais romances não têm por objetivo negar o
passado, e evidenciam que ele “realmente existiu, mas hoje só podemos “conhecer” esse
passado por meio de seus textos” (HUTCHEON, 1991, p. 168). Sendo que ao recorrer a
formas de apresentação similares à da historiografia, os novos romances históricos
levantam questões a respeito da ideia dicotômica entre a literatura e a história.
Seja por parte das atuais discussões historiográficas, seja pelos novos romances, a
historiografia não pode ser entendida como a única relação com o passado. Roger Chartier
destaca que além da historiografia há pelo menos duas outras formas de se relacionar com
passado: a memória e a ficção (CHARTIER, 2009, p. 21).
Pesquisas apontam que as concepções historiográficas vêm passando por profundas
alterações desde a década de 1970 (CHARTIER, 2009, p. 21; HUTCHEON, 1991, p. 257).
Mais interessante que analisar como os próprios historiadores percebem e se posicionam
diante dessas mudanças, é abordar como se manifestam estas outras formas de relação com
o passado. Assim, neste texto procuro destacar de que maneira o romance brasileiro
contemporâneo estabelece diálogos com as atuais discussões a respeito da epistemologia
318
historiográfica. Uma vez que também na conjuntura nacional observam-se expressões
desta estética de ressignificação do passado por parte do romance histórico, a partir da
década de 1980.
Por isso, proponho um olhar sobre a recente apropriação e questionamento dos
recursos narrativos historiográficos por parte da literatura contemporânea. Trata-se de um
tema pouco conhecido, para não dizer desconhecido, entre os historiadores e mesmo entre
os pesquisadores de ficção. Durante minhas pesquisas não encontrei nenhuma análise sob
o ponto de vista historiográfico referente a atual forma de apresentação do romance
histórico no Brasil. E mesmo as pesquisas sob o viés literário costumam abordar obras
específicas ou enfatizam toda a produção de romances históricos produzidos no país nas
últimas décadas (cf. ESTEVES, 2010). Oferecendo por um lado uma visão panorâmica e
superficial, dada a quantidade de obras analisadas, pouco contribuindo para a questão da
relação entre a ficção e o debate historiográfico. E por outro, interpretações extremamente
pontuais, em que as conclusões também trazem pouca contribuição para além da estética
do objeto específico da pesquisa. O viés assumido pelos historiadores costuma enfocar a
narrativa historiográfica, enquanto os pesquisadores de literatura observam a própria
ficção.
Num levantamento que realizei previamente encontrei vários romances que se
voltaram para a representação do passado ao mesmo tempo em que discutiram a
possibilidade de se conhecer tal passado, apresentando ressignificações alternativas para as
versões historiográficas. Mas para este texto optei por selecionar apenas seis romances que
julguei serem mais significativos. As obras são:
1. O mez da grippe (1981) de Valêncio Xavier. Vencedor do Prêmio Jabuti na
categoria Produção Editorial, em 1998, com sua segunda edição, é uma narrativa
realizada a partir de recortes de registros históricos – sobretudo fac-símiles de
notícias de jornal – a respeito da epidemia de gripe espanhola que assolou o país
em 1918. Mais do que representar o passado, Xavier demonstrou, em seu livro, que
mesmo os registros oficiais não são objetivos nem capazes de representar o passado
de maneira plena. Seu livro
319
Problematiza o próprio conceito de registro factual. Isso se dá pela aproximação
de elementos diferenciados que buscam descrever, analisar ou explicar um
determinado acontecimento, como textos jornalísticos, a literatura, a estatística e
a memória. Essas quatro formas de preservação histórica são colocadas lado a
lado e constantemente confrontadas como forma de avaliar o grau de precisão e
subjetivação a que cada uma delas está sujeita (PAVLOSKI, 2005, p. 54).
2. Em liberdade (1981) de Silviano Santiago. Também vencedor do Jabuti como
melhor romance em 1981, o livro assume a forma de um diário pessoal do escritor
Graciliano Ramos. Silviano Santiago produziu seu livro como se o próprio
Graciliano Ramos o tivesse escrito, inclusive com notas de pé de página que
conferem uma falsa autenticidade à narrativa. A obra foi escrita em diálogo com
Memórias do cárcere, livro em que Ramos narrou sua experiência de um ano como
prisioneiro político. Graciliano Ramos desejava escrever uma sequência para suas
memórias, relatando os primeiros dias após receber a liberdade, mas nunca
concluiu seu desejo. Em liberdade é uma narrativa de Santiago, disfarçada como se
fosse o livro que Ramos não escreveu.
A falsa veracidade, que por sinal é extremamente convincente, é desmistificada
dentro da própria obra, numa discussão metanarrativa: Graciliano Ramos,
personagem situado no contexto da década de 1930, encontra com o poeta do
século XVIII Cláudio Manuel da Costa, com o jornalista Wladmir Herzog nos
anos 1970, e com o próprio Silviano Santiago. Assim, a obra primeiramente
convence o leitor de que se trata de uma narrativa verídica, para depois através
de anacronismos voluntários desconstruir a possibilidade de representação
realista. “Nesse livro tudo é verídico e tudo é ficção e, portanto, as relações entre
literatura, história e biografia são objeto constante de questionamento”
(SINDER, 2000, p. 257).
3. A casca da serpente (1989) de José J. Veiga, romance sobre os desdobramentos da
guerra de Canudos. Nesta narrativa, Antonio Conselheiro em vez de ter morrido
como na versão historiográfica, apenas apresentou o cadáver de um sósia para
enganar seus inimigos e continuou com seu projeto em Canudos. Veiga constrói um
contexto verossimilhante como em Os sertões de Euclides da Cunha, para
posteriormente realizar uma subversão da história, “proporcionando uma releitura
crítica desse passado histórico oficial, ao mesmo tempo em que desafia o leitor a
repensar o presente à luz desse redimensionamento do passado” (ALVES, 2010).
320
4. A imperatriz do fim do mundo (1992), romance de Ivanir Calado que tem como
narradora a segunda esposa de D. Pedro I, Amélia de Leuchtemberg. A narrativa é
realizada por Amélia após sua morte, e se passa no início do século XIX. Além de
reconstituir o contexto sócio-político, o livro discute a possibilidade de
representação do passado. A própria narradora, ao se voltar para seu passado,
questiona se aquilo que é narrado é algo verídico, ou apenas uma construção.
Desse modo, relativiza o conceito de escrita da história como produtora de verdade.
Assim, a própria personagem conclui: “E mais uma vez percebo como a história é
frágil; como opiniões pessoais, métodos de pesquisa e até mesmo desejos ocultos
podem retroceder acontecimentos” (CALADO, 1992, p. 224).
5. Ana em Veneza (1994), de João Silvério Trevisan. Também vencedor do Prêmio
Jabuti na categoria Romance, a obra aborda contextos distintos, com saltos
temporais entre os anos de 1888 e 1991. O livro possui três protagonistas que
cruzam suas trajetórias: Júlia da Silva Bruhns, a brasileira mãe do escritor Thomas
Mann; Ana, a escrava que a acompanhou a família de Júlia quando se mudaram à
Europa; e o músico brasileiro Alberto Nepomuceno. No romance ocorre
Uma releitura da história hegemônica, que aparece, em geral, parodiada ou
carnavalizada, numa verdadeira sinfonia em que se podem vislumbrar diversas
vozes concomitantes. São vozes tidas durante muito tempo como dissonantes
que, agora juntas tentam oferecer uma imagem mais ampla dessa múltipla
realidade (ESTEVES, 2007, p. 121).
6. Nove noites (2002), romance de Bernardo Carvalho vencedor do Prêmio Portugal
Telecom de Literatura em 2003, e publicado em vários países. O livro é pautado no
suicídio do antropólogo francês Buell Quain, ocorrido em Tocantins no ano de
1939. Carvalho compõe a narrativa com personagens históricos, como os
antropólogos Claude Levi-Strauss e Franz Boas. O romance apresenta dois
narradores: um amigo de Quain e um jornalista que decide realizar uma pesquisa
para desvendar o motivo do suicídio. A autorreflexão aparece, sobretudo, com o
pesquisador, pois o personagem descobre diversas versões contraditórias da
história, percebendo que é impossível reconstituir o passado e, principalmente,
321
explicar o suicídio de Quain. O próprio Bernardo Carvalho afirmou que “A
indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo
sentido em dizer o que é real e o que não é” (CARVALHO apud MOURA, 2011).
Uma discussão mais detalhada das obras não caberia neste texto, por isso são apenas
brevemente apresentadas. Tratam-se de livros sobre contextos históricos distintos, mas que
aparecem reunidos no texto devido a possuírem características em comum: abordam temas
históricos, buscam formas alternativas de representar o passado, e desvendam a
impossibilidade deste passado ser reconstituído de maneira plena. Ou seja, os romances
históricos em questão foram selecionados devido a apresentarem as mesmas discussões
que o debate atual a respeito da epistemologia da história.
A problematização da representação do passado nas obras em questão, mais do que
atacar a historiografia, permite que esta seja reavaliada e reinterpretada enquanto um
discurso. Ao se valer dos mesmos recursos narrativos que a historiografia, ao mesmo
tempo em que os questiona, o novo romance histórico
Não [...] fez com que a história ficasse obsoleta; no entanto, ela está sendo
repensada – como uma criação humana. E ao afirmar que a história não existe a
não ser como texto, [...] não nega, estúpida e “euforicamente”, que o passado
existiu, mas apenas afirma que agora, para nós, seu acesso está totalmente
condicionado pela textualidade (HUTCHEON, 1991, p. 34).
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324
Educação e Minorias II
Educação Sociológica para o Sujeito Surdo: um olhar acerca da cultura e inclusão.
Arthur Fontgaland*
Isabelle de Araujo Lima e Souza**
Orientadora: Ana Luisa Borba Gediel***
Resumo: Este trabalho tem como objetivo dimensionar o ensino de Sociologia em nível
médio, apontando algumas perspectivas em relação a educação surda a qual lida com
inúmeros desafios, dada a recente obrigatoriedade da disciplina na educação básica.
Porém, o ensino de Sociologia para jovens em fase escolar, abre diversas possibilidades
para os estudos e pesquisas sociológicas. Uma dessas preocupações é o tema diversidade
cultural e educação inclusiva, discussões que permeiam todas as áreas do conhecimento,
envolvidas na educação. Dessa forma, esse trabalho busca relatar as experiências no ensino
de Sociologia para jovens surdos e o desenvolvimento de estratégias alternativas de ensino
e aprendizagem adequadas à cultura e às especificidades deste grupo minoritário. Para
tanto foi utilizado uma pesquisa qualitativa, embasada em: levantamentos bibliográficos,
pesquisa-ação e discussões em grupo de estudos. No momento em que os recursos
metodológicos foram utilizados nas aulas de Sociologia percebemos a sua eficácia para
incluir os estudantes surdos, de forma que eles conseguissem aprender os conceitos e
teorias sociológicas, relacionando-os com o seu cotidiano.
Palavras-chaves: Sociologia – Educação Básica – Inclusão – Diversidade cultural Cultura Surda
Abstract: This study aims to measure the teaching of sociology in high school, pointing
some the perspective that work with many challenges, given the recent change in basic
education. One of these concerns is the issue of cultural diversity and inclusive education;
*
Graduando em Ciências Sociais / Universidade Federal de Viçosa – UFV.
Graduando em Ciências Sociais / Universidade Federal de Viçosa – UFV.
***
Professora Adjunta / Departamento Letras / Universidade Federal de Viçosa – UFV.
**
325
these discussions that permeate all areas, knowledge involved in education. Thus,
this paper seeks to report the experience in teaching Sociology for young deaf people and
the development of alternative strategies for teaching and learning appropriate to the
culture and specificities of this minority group. For this purpose we used a qualitative
research, based on literature surveys, action research and group discussions of study. At
the moment the methodological resourceswere used in Sociology classes perceive their
effectiveness to include deaf students so thatthey could learn the concepts and sociological
theories, relating them to their daily lives.
Keywords: Sociology - Basic Education - Inclusion - Cultural Diversity - Deaf Culture
Introdução
As Ciências Sociais, nos últimos tempos, tem ampliado a discussão acerca da
difusão e do ensino dessa ciência e sua responsabilidade com a vida pública. A
promulgação resolução nº 4/2006, da Câmara de Educação Básica que altera o artigo 36 da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394, tornando obrigatória a
sociologia no ensino médio evidencia tal tendência. Contudo, a expansão das Ciências
Sociais para todos os níveis de ensino traz consigo inúmeros desafios metodológicos,
epistemológicos e políticos.
Historicamente, as Ciências Sociais pouco se debruçaram na produção de um
conhecimento científico capaz de se estender para além das universidades. Salvaguardando
raras exceções, é possível citar o discurso de Florestan Fernandes em defesa da Sociologia
no Ensino Médio na primeira reunião da Sociedade Brasileira de Sociologia em 1962, bem
como os esforços políticos de Darcy Ribeiro.
Assim, a consolidação das Ciências Sociais no Brasil, iniciando-se nas
universidades e se expandido para a educação básica, seguiu um caminho inverso do
ocorrido em outros países, que primeiro consolidaram a Sociologia no ensino básico. Esse
percurso contribuiu para dificultar a reflexão acerca da Sociologia para a além da academia
e as consequências desse trajeto são visíveis nos dias atuais. Deparamos então com
pesquisas recentes acerca do ensino de Sociologia no ensino médio que tem como desafios
emergenciais a transposição da linguagem de uma ciência historicamente acadêmica, para
326
um universo que compreende jovens em idade escolar. Outra dificuldade perceptível é a
carência em materiais e recursos didáticos voltados para a Sociologia na educação básica
associada à falta de profissionais licenciados em Ciências Sociais para assumirem a
disciplina.
Além da necessidade de suprir a carência desse profissional, encontra-se ainda
outro desafio: a formação de docentes aptos a pensar a educação a partir da inclusão dos
vários sujeitos que compõe o ambiente escolar. Tendo em vista esse contexto em que se
enquadra a Sociologia na educação básica brasileira, o presente artigo tem como objetivo
discutir o ensino de sociologia numa perspectiva inclusiva, a partir das experiências
vivenciadas com estudantes membros da comunidade surda.
A preocupação com a inclusão do sujeito surdo torna-se efetiva a partir da Lei Nº
10.436, de 24 de Abril de 2002, que institui a Língua Brasileira de Sinais como a segunda
língua oficial brasileira. Essa discussão se estendeu ainda para a formação inicial de
professores com a lei Nº 5.626, de 22 de Dezembro de 2005 que inclui no currículo das
licenciaturas a LIBRAS como disciplina obrigatória. Essas conquistas institucionais foram
um marco para o reconhecimento da comunidade surda no que se refere aos direitos
sociais. Primeiramente com, a afirmação identitária dos surdos a partir da Língua de sinais
e, em segundo lugar, o avanço dessas leis no que se refere ao acesso à educação. Desse
modo, o surdo passou a ter direito a frequentar a escola regular, mas com a possibilidade
de assistir as aulas em sua primeira língua. Ressalta-se então, a importância da LIBRAS na
formação de docente de diferentes áreas, uma vez que os conteúdos específicos das áreas
do conhecimento possuem representações específicas na língua de sinais.
Frente às especificidades das diferentes áreas do conhecimento, e, dada a
emergência da Sociologia no ensino médio e sua discussão contemporânea ao
reconhecimento do surdo, faz-se necessária a problematização dos conteúdos sociológicos
da educação básica para esses sujeitos.
Acredita-se, desse modo, que a inserção dessa disciplina no espaço escolar seja
capaz de redimensionar a discussão da pluralidade cultural, incluindo aí a comunidade
surda e o entendimento desse grupo. Cabe-se então, pensar o ensino de Sociologia para os
diferentes sujeitos tendo como foco o surdo. Para tanto, é necessário entender as diferentes
visões de mundo desses sujeitos, bem como a sua forma específica de experiênciá-lo,
327
tornando-se possível o desenvolvimento de metodologias que potencializem e valorizem os
diferentes processos de ensino e aprendizagem. No caso dos surdos ocorre através das
experiências corporais e visuais.
Cabe então pensar: qual a relação existente entre cultura surda e espaço escolar62?
Como os temas, conceitos e teorias sociológicos devem se adequar à educação surda? E,
quais as metodologias eficazes para o processo de ensino-aprendizagem satisfatório desses
sujeitos? Para tanto o presente trabalho foi estruturado em duas partes, uma que levantará a
discussão teórica, mobilizando os conceitos que serão utilizados no decorrer do artigo e o
outro onde será desenvolvido o relato de experiência e uma análise deste.
A corporeidade e os argumentos do corpo surdo
Primeiramente, é necessário perceber o surdo, em contraposição à idéia patológica
acerca desse sujeito, enquanto portador de uma identidade cultural específica,
principalmente, alicerçada pelo uso da Língua de Sinais.
Os argumentos dos intelectuais da língua de sinais estão estruturados em um
registro no qual a surdez está vinculada a uma particularidade lingüística, com
pretensões igualitárias. Nesta concepção, o surdo é um outro que
fundamentalmente utiliza uma língua específica e que somente pode se tornar um
igual no interior do Estado-nação por meio do reconhecimento de sua
particularidade, já que é membro de uma comunidade lingüística minoritária, a
denominada comunidade surda brasileira. (ASSIS, 2010, p.15).
Essa reflexão acerca desse sujeito enquanto membro de uma comunidade é também
sistematizada por meio dos avanços no campo da antropologia lingüística, que os define
como indivíduos que compartilham de linguagem e comunicação própria. A interação
social dos surdos ocorrida nos espaços em que esses frequentam, afirma a construção de
uma identidade e aponta para uma especificidade de percepção e resignificação de mundo.
Isso foi evidenciado em diversos estudos tais como Assis (2010), Magnani (2009) Heredia
(2009), é importante ressaltar uma passagem do texto de Heredia, no qual ela menciona a
62
Admite-se que espaço escolar não é apenas a territorialidade física da escola e as relações ali presentes,
mas compreende todas as práticas que envolvem a educação básica, inclusive as políticas públicas
educacionais e as leis oficiais da educação (OCNs, PCNEM, LDB, CBC/MG).
328
importância do estar em comunidade e dos locais de encontro para a formação e afirmação
identitária.
Lo que para las personas sordas se conoce como la cultura sorda, puede
entenderse como una categoría derivada de los sentidos construidos a partir de la
noción de comunidad sorda y está relacionada principalmente con la posibilidad
de participación en los espacios de encuentro, las relaciones resultantes con otros
sordos, modos particulares de uso de la corporalidad e incluso da explicación a
cualquier tipo de aparente diferencia con el mundo oyente. Comprender estos
sentidos permite reflexionar acerca de la “necesaria” movilidad de los cuerpos y
la resignificación de lugares y relaciones que ello trae aparejado. (HEREDIA,
p.5, 2009)
A cultura surda seria uma derivação da noção de comunidade surda, pois no
momento em que os surdos se encontram eles podem utilizar da linguagem que lhes é
própria e os diferenciam da cultura ouvinte. Os espaços são um fator significativo para a
movimentação dos corpos surdos e o seu redimensionamento torna possível a
(re)afirmação indentitária. Tendo isso em vista é possível dizer que o espaço escolar
também se configura não apenas como o local onde é realizado o desenvolvimento e a
aprendizagem do aluno, mas esse espaço também pode ser resignificado com um
importante local para o encontro dos surdos. Entendendo ainda que o espaço pode ser
utilizado de maneira diversas e possuir um significado diferenciados para os grupos que o
utilizam. A comunidade escolar é desse modo formado por uma complexidade de culturas,
por isso cabe entender cada uma delas para proporcionar uma educação inclusiva, e um
ensino que abarque as especificidades dos diferentes sujeito.
A partir do conhecimento filosófico acerca da constituição do sujeito, Merleau
Ponty (2006) introduzirá a discussão sobre a estrutura do comportamento e a femenologia
da percepção, abarcando em sua teoria a não separação entre a mente e o corpo. Desse
modo, a compreensão está para além das barreiras fisiológicas, ou melhor, o corpo torna-se
essencial para a representação do mundo experienciado pelo corpo, pois são as
experiências vivenciadas pelo corpo que constituem a formação do sujeito e o
entendimento desse acerca dos objetos. Nesse sentido, Ponty preconiza no trecho que:
Um ferimento nos olhos basta para suprir a visão, isso significa que vemos
através do corpo já que uma doença basta para modificar o mundo fenomênico,
isso significa que o corpo põe um filtro entre nós e as coisas. Para entender esse
329
estranho poder que ele tem de conturbar todo o espetáculo do mundo, somos
obrigados a renunciar à imagem que a experiência direta nos dá dele (PONTY,
ano 2006, p. 293).
Desse modo, o corpo não deve ser encarado como empecilho, uma vez que a perda
de um sentido não significa uma disfunção, o corpo, por ser orgânico é frágil, pode estar
submetido às perdas, que por sua vez são reparáveis graças às funções exercidas por outros
sentidos. Há, assim, a representação mental do mundo a partir de outros sentidos outras
formas.
Apesar de seguir uma linha teórica que difere da trabalhada por Ponty (2006), esse
argumento do corpo pode ser corroborado no pelo trecho do trabalho de conclusão de curso
da antropóloga Anahí Guedes de Mello, quando relata sua própria vivência explicando que
o mundo para ela não tem som, então, quando as pessoas falam ,ela percebe as palavras e
as frases tais como imagens proliferadas pela boca dos outros.
Silvia Citro (2011), avança no entendimento do sujeito iniciado por Ponty. Segundo
a autora há um contexto maior que influencia na constituição do próprio sujeito, uma vez
que os corpos, a todo o momento, significam e ressignificam o mundo através das
experiências. Essas, por sua vez, são compartilhadas com os outros corpos no mundo.
Dessa forma, o sujeito surdo tem maneira específicas de significação que variam conforme
seu próprio corpo em constante contato com os demais corpos. É possível tomar o corpo
então enquanto “locus cultural” (CSORDAS, 2008), ou seja, o corpo seria a própria
cultura. Tendo em vista a habilidade dos surdos de compreender o mundo através de um
raciocínio visual e corporal, vale relatar nossas experiências enquanto licenciandos em
Ciências Sociais e atuantes na educação inclusiva.
A experiência docente e as relações entre culturas
Alocando essas análises para o âmbito educacional, percebe-se uma inadequação
das metodologias tradicionais de ensino para surdos, já que o sistema de ensino submete
esses sujeitos à oralização, que não se mostra eficaz para a construção da aprendizagem e a
afirmação da cultura surda. Vale dizer que o ensino hegemônico, como o presente na
maioria das escolas brasileiras, faz com que a formação obtida pelo surdo chegue de forma
330
fragmentada, propiciando uma precariedade linguística e um desenvolvimento cognitivo
insatisfatório. Essa preocupação com a educação de surdos se iniciou com a disciplina de
LET 290 (LIBRAS) obrigatória para a licenciatura em Ciências Sociais da Universidade
federal de Viçosa. A sensibilização com a educação inclusiva e o contato com os aspectos
linguísticos da cultura surda, fez com que nos envolvêssemos no projeto EAMES - Ensinoaprendizagem e Metodologias de Ensino para Surdos. É um projeto do Departamento de
Letras que tem como um dos objetivos pesquisar diferentes estratégias de ensino que
priorizem um aprendizado significativo do sujeito surdo visando à inclusão e inserção
deste no ensino superior. Tal projeto possui dois eixos metodológicos. O primeiro envolve
uma prática interdisciplinar entre os acadêmicos das licenciaturas da Universidade Federal
de Viçosa, o que se configura como um laboratório de pesquisa qualitativa para a
fomentação e o aperfeiçoamento das práticas pedagógicas, e a capacitação voltada ao
ensino-aprendizagem de pessoas surdas. Este espaço conta com a realização de grupos de
discussões entre as diferentes áreas, a fim de contribuir para a construção de estratégias de
ensino e suas aplicações. Esse laboratório desenvolve, ainda, como parte da pesquisa
bibliográfica, a leitura de textos a fim de entender o mundo surdo, bem como seu processo
de aprendizagem. O segundo eixo se dá a partir das metodologias específicas utilizadas em
cada disciplina, as quais são construídas levando em consideração as especificidades dos
sujeitos surdos.
As estratégias metodológicas para o processo de ensino e o desenvolvimento de
recursos didáticos utilizadas pelos professores-pesquisadores da disciplina de Ciências
Sociais e interpretação tiveram inicio com observação não participante nas aulas de outras
disciplinas do EAMES, para dessa maneira se entender o sujeito e posteriormente formular
as aulas. Além disso, ocorreu uma busca teórica e conceitual, bem como levantamento de
dados e de pesquisa exploratória dos diversos materiais visuais e iconográficos já
existentes para, se criar formas de abordagens que mobilizassem as habilidades específicas
das Ciências Sociais. Nesse sentido, o trabalho em sala de aula configurou-se não apenas
como uma experiência docente, mas também como uma pesquisa-ação, pois, na medida em
que as metodologias eram simultaneamente construídas elas se eram aplicadas aos alunos
surdos proporcionando a reflexão dos pesquisadores e dos sujeitos a respeito da eficácia
dessas práticas. Essa metodologia não se fez apenas por meio das etapas de um método,
331
mas se organizou conforme as situações relevantes que emergiram durante o processo de
sua aplicação.
Com as experiências de campo, auxiliados pela pesquisa-ação, foi possível produzir
materiais concretos e visuais para se explicar conceitos abstratos dessa ciência. Importa
ressaltar três experiências promovidas por meio do trabalho iconográfico e imagético: o
Mapa da Diversidade Brasileira, a Teia Social e o uso de ilustrações para explicar o
desenvolvimento socioambiental.
O primeiro teve a finalidade de explicar as diferentes manifestações culturais no
país. Foi confeccionado em isopor e divido em regiões, em que o estudante deveria alocar
imagens, levadas em separado, para serem afixadas no mapa. As imagens retratavam
diversos aspectos culturais, atentando para a miscigenação, movimentos migratórios e
regionalismos, percebendo, assim, a fluidez característica do conceito de cultura.
No outro recurso visual, realizou-se uma representação do tecido social e sua
complexidade a partir de um jogo cooperativo, intitulado Teia Social. Nessa atividade
lúdica, os estudantes deveriam identificar as diferentes instituições e atores sociais que
compõem a sociedade complexa, se perguntando: “Com o que as figuras se
relacionavam?”, “O que elas representavam?”, “Por que a imagem integrava a sociedade?”.
Essa atividade objetivou introduzir o conceito de sociedade, além de demonstrar as
interações sociais existentes e como estas se configuram enquanto objeto das Ciências
Sociais.
Por último tem-se o uso de imagens para demonstrar aos estudantes como que as
questões ambientes interferem na sociedade e na vida cotidiana das pessoas. Fazendo com
que eles pudessem perceber o meio ambiente não apenas como uma característica presente
no mundo físico, mas também a relação que este possui com o meio humano. Desse modo
foram apresentados aos estudantes diferentes paisagens da sociedade, em que os alunos
deveriam identificar o que os atores sociais fazem em cada situação e quais os papéis que
eles desempenham num contexto social, espacial e temporal específico. Assim os
estudantes identificaram como as transformações no meio ambiente se relacionam
diretamente com as modificações nas relações sociais.
Através dessa experiência em sala de aula foi possível perceber a relevância da
linguagem visual para o processo de aquisição dos conceitos sociológicos, pois partimos da
332
premissa que os estudantes surdos vivenciam o mundo de uma maneira diferenciada a
partir das suas especificidades corpóreas. A utilização desses recursos didáticos não foi
construída pela intuição docente, mas utilizamos o aporte teórico os autores que tratavam
dos argumentos do corpo tais como Csordas (2008), Ponty (2006), Foucault (1975), Citro
(2011). Por mais que esses autores não tenham discorrido propriamente sobre a educação
sociológica, torna-se necessário entender os diferentes sujeitos constituídos em suas obras,
para se pensar o ensino de sociologia e o ambiente escolar que consiga compreender um
espaço multicultural e inclusivo. Ou seja, o espaço escolar se configura como um
importante ambiente de sociabilidade que compreende múltiplas vozes (DAYRELL,1996).
Assim, há o favorecimento da formação e a afirmação de identidades.
Foi compreendendo as diferenças dos surdos para qual lecionávamos que criamos
essas alternativas de abordagens e estratégias de ensino, que conseguiam abarcar as
especificidades dos sujeitos surdos e ao mesmo tempo era possível a interação deste com a
comunidade ouvinte. Acreditamos, como já citado na primeira parte do artigo, que essa
metodologia se trata de uma educação inclusiva que consegue compreender os sujeitos
culturalmente diferentes e ao mesmo tempo possibilitar a aprendizagem plena de ambos os
estudantes.
Nossa intenção ao levar a teia social, o mapa da diversidade cultural e o uso de
ilustração foi desconstruir a idéia da surdez enquanto uma disfunção ou descapacidade.
Assim como trazer a diferença entre surdo/surdez deficiente/deficiência. Os recursos
utilizados em sala de aula demonstram que a deficiência depende do contexto e das
condições estruturais, como em um trabalho de campo realizado por Magnani (2008), onde
o pesquisador foi etnografar festas juninas da comunidade surda de São Paulo e naquele
contexto ele era o deficiente, pois todos se comunicavam em LIBRAS e ele não conseguia
perguntar onde era o banheiro.
A deficiência não surge a partir de uma diferença
biológica, mas de uma incapacidade estrutural que consiga contemplar as diferenças entre
os sujeitos. Tendo essa concepção de deficiência em mente é possível compreender como
as abordagens em sala de aula são essenciais para diagnosticar as deficiências. Quando
percebemos o surdo enquanto um sujeito portador de uma cultura própria podemos pensar
e criar estratégias de ensino que inclua as múltiplas vozes que existem no espaço escolar.
333
Considerações finais
Todas as atividades realizadas em sala de aula se mostraram como um exercício de
interpretação da vida cotidiana, considerando sempre a realidade do estudante surdo. Dessa
forma, foi possível perceber que o ensino através do uso de imagens, ícones e artes visuais
facilitaram a assimilação de conceitos sociológicos sem a necessidade de uma linguagem
infantilizada e/ou facilitada. Desse modo, a metodologia escolhida demonstrou eficácia em
sua aplicação, ao passo que foi possível identificar, durante a ação pedagógica, a troca de
experiências entre professor e aluno surdo e as dificuldades enfrentadas por ambos nesse
processo.
A aplicação dessas estratégias de ensino para comunidade surda corrobora com os
estudos linguísticos, antropológicos e pedagógicos acerca da educação de surdos de
maneira diferenciada. Tal constatação foi possível, uma vez que os estudantes percebiam e
construíam os conceitos em uma aula a partir do uso desse material e, na outra, traziam e
debatiam de forma segura os mesmos conceitos apreendidos.
Apenas através da informação não fragmentada, contemplada pelos recursos visuais
utilizados, o estudante surdo conseguiu transpor as barreiras impostas pela linguagem oral
e, assim, compreender os conceitos caros às Ciências Sociais. Essas estratégias se
configuram como um interessante elo entre a cultura surda e ouvinte, ainda que a academia
não forme licenciados bilíngues, a formação continuada e a procura de recursos
metodológicos possibilitam a inclusão surdos não apenas através da língua de sinais, mas
através de outros aspectos da linguagem que são fundamentais para o processo de
aprendizagem. Ressaltamos assim, a fundamental importância da formação continuada e
do papel do professor enquanto pesquisador, que são de extrema importância para a
inclusão dos diferentes sujeitos no ensino regular. Quando mencionamos a importância
desses atores não excluímos o cenário maior, o espaço escolar, pois também é necessária
uma transformação na postura macro para compreender as múltiplas vozes formadas e
afirmadas nesse ambiente. Esses resultados e conclusões aqui apontados não demarcam o
fim de uma pesquisa, mas demonstra o quanto se faz necessário pensar na emergência da
Sociologia na Educação Básica juntamente com o contexto maior, abrangendo a
diversidade cultural e a inclusão dos sujeitos.
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Anais do I Seminário Nacional LEPCON