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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DE COMUNIDADES E ECOLOGIA SOCIAL
INDIVIDUALISMO E A CRISE DA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA:
UM “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR COM A
PSICOLOGIA TRANSPESSOAL
MILTON JOSÉ M. B. DE MENEZES
RIO DE JANEIRO
2001
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INDIVIDUALISMO E A CRISE DA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA: UM “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR
COM A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL
por
MILTON JOSÉ M.B. DE MENEZES
Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Interdisciplinares
de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - EICOS/UFRJ - como requisito parcial à obtenção do grau de mestre.
ORIENTADORA: Profa. Dra. MIRIAM RAJA GABAGLIA PREUSS
RIO DE JANEIRO
2001
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BANCA EXAMINADORA:
Membros Titulares
___________________________________
Profa. Dra. Miriam Raja Gabaglia Preuss
__________________________________________
Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto
__________________________________________
Profa. Dra. Jacyara Nasciutti
__________________________________________
Profa. Dra. Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro
iv
Ficha Catalográfica
M874i
Menezes, Milton José M. B. de , 1960
Individualismo e a Crise da Sociedade Contemporânea:
Um “Diálogo” Transdisciplinar com a Psicologia Transpessoal /,
Milton José M. B. de Menezes; Ilustrações de Jefferson Borges.
– Rio de Janeiro, 2001.
268p.:; Ilust.; 29cm
Bibliografia: p. 246
1. Psicologia, 2. Mudanças Sociais, I. Título
CDD 303.4
CDU 303.4
vi
AGRADECIMENTOS
Um trabalho de pesquisa envolve grande investimento de tempo e energia.
Nesse percurso, muitas pessoas passam por nosso caminho deixando dívidas de
gratidão que esse espaço, embora importante para nós, não conseguirá preencher
completamente.
Aos professores do Programa EICOS pela oportunidade de troca e aprendizado em um ambiente interdisciplinar enriquecedor.
Aos colegas de mestrado pelo compartilhar permanente de experiências e
incentivos.
À professora Jacyara pelos inesquecíveis momentos de jardinagem nas nossas árvores genealógicas, onde conciliamos aprendizado de conteúdo com vivência
pessoal.
À professora Rosa Pedro pelos horizontes, ainda a explorar, nos campos da
epistemologia.
A Jefferson Borges, meu editor, pelas longas horas divididas nas viagens e
conversas no telefone sobre a transpessoalidade do ser.
Aos meus pais pela oportunidade da vida, pelo sacrifício para o meu estudo
e pelos valores diante da vida.
A Stanislav Grof, por sua atenção, simplicidade e envolvimento em nosso
encontro de Dezembro de 2000 no Rio de Janeiro, e pelas importantes reflexões
sobre a crise da sociedade, sobre “vidas passadas”, “outras realidades”, reencarnação e consciência.
E o agradecimento especial à Professora Miriam Preuss, pela coragem em
aceitar a orientação do tema, pelo zelo nas precisas correções do texto e articulações de idéias, pela abertura intelectual para um trabalho transdisciplinar dessa
ordem, pelas proveitosas conversas acerca dos temas “além da vida e da morte” e,
principalmente, pelo exemplo de força diante das dificuldades e de sensibilidade
diante do sofrimento alheio, do qual fui testemunha algumas vezes.
vii
“O conceito do ego, com sua capacidade de ser quebrado em muitos egos
discretos, é tentador para a psicologia experimental, pois convida ao método de
estudo ‘divide e impera’, que herdamos em nosso método científico dicotomizado
tradicional...
Se se contestar que o quadro da multidão de egos reflete a fragmentação do
homem contemporâneo, eu replicaria que todo conceito de fragmentação pressupõe
alguma unidade da qual ele representaria uma fragmentação... Pois nem o ego, nem
o inconsciente, nem o corpo são autônomos. Por sua própria natureza, a autonomia
só de localiza no eu centralizado... tanto lógica quanto psicologicamente precisamos
colocar-nos atrás do sistema ego-id-superego e tentar compreender o ‘ser’ de que
estes são expressões.” - ROLLO MAY(Existential Psychology, 1969, p. 33-5)
“Quanto mais extensa e profundamente penetramos na matéria, com métodos cada vez mais poderosos, tanto mais nos confunde a interdependência das suas
partes. Cada elemento do cosmo é positivamente tecido de todos os outros... É
impossível cortar essa rede, isolar-lhe uma porção sem que ela fique puída e desfiada
nas bordas. Em toda a nossa volta, até onde a vista alcança, o universo permanece
uma, e só é realmente possível um modo de considerá-lo, a saber, encarando-o
como um todo, numa só peça.” - TEILHARD DE CHARDIN (The Phenomenon of
Man, 1965, p. 43-4)
“ A metamorfose das ciências contemporâneas não é ruptura. Cremos, ao
contrário, que ela nos leva a compreender a significação e inteligência dos saberes
e de práticas antigas que a ciência moderna, orientada pelo modelo de uma fabricação técnica automatizada, havia acreditado poder negligenciar.” - ILYA PRIGONE
& ISABELLE STENGERS (1997, p. 224-225)
“Mas a ciência de hoje não é mais a ciência ‘clássica’. Os conceitos básicos
que fundamentavam a ‘concepção clássica do mundo’ encontraram hoje seus limites num progresso teórico que não hesitamos em chamar de metamorfose. A própria ambição de reduzir o conjunto de processos naturais a um pequeno número
de leis foi abandonada. As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um
universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais.
Descobrimos que o diálogo racional com a natureza não constitui mais o sobrevôo
desencantado dum mundo lunar, mas a exploração, sempre local e eletiva, duma
natureza complexa e múltipla.” - ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS (1997, p.5)
“Após mais de quarenta anos de estudos intensivos de estados holotrópicos
de consciência, cheguei à conclusão de que os conceitos teóricos e as abordagens
práticas desenvolvidas pela psicologia transpessoal, uma disciplina que está tentando integrar a espiritualidade no novo paradigma emergente na ciência ocidental,
podem ajudar a aliviar a crise que estamos enfrentando. Essas observações sugerem que uma transformação psicoespiritual da humanidade não é apenas possível,
mas já está ocorrendo. A pergunta é apenas se ela pode ser rápida e extensiva o
suficiente para reverter a atual tendência autodestrutiva da humanidade moderna.”
- STANISLAV GROF (2000, p. 321)
“Epistemologicamente, o avanço mais significativo na história recente da
psicologia profunda, realmente o mais importante em todo esse campo desde os
próprios Freud e Jung, foi o trabalho de Stanislav Grof, que nas três últimas décadas
não apenas revolucionou a teoria psicodinâmica, mas também apresentou grandes
implicações para muitos outros campos, inclusive a Filosofia.” - RICHARD TARNAS
(2000, p. 451)
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO, 1
CAPÍTULO 2 - UMA SOCIEDADE EM CRISE, 5
2.1 - Perdas, 7
2.2 - Excessos, 13
2.3 - Crise: Apocalipse ou Transformação?, 17
CAPÍTULO 3 - A CIÊNCIA EM BUSCA DE SOLUÇÕES, 23
3.1 - A crise da Ciência, 24
3.2 - A Interdisciplinaridade como Recurso nos Meios Acadêmicos, 26
3.3 - A Abordagem Psicossociológica e a Complexidade dos Problemas
Humanos e Sociais, 36
CAPÍTULO 4 - UM RECORTE DENTRO DA ABORDAGEM
PSICOSSOCIOLÓGICA: O INDIVIDUALISMO, 40
4.1 - Indivíduo como Base na Ideologia Individualista, 45
4.2 - Contextualização Histórica do Individualismo, 47
4.3 - Pressupostos do Individualismo e a Crise da Sociedade
Contemporânea: Contribuições e Lacunas, 53
CAPÍTULO 5 - DIÁLOGO TRANSDISCIPLINAR NA COMPREENSÃO
DA CRISE SOCIAL CONTEMPORÂNEA: A PSICOLOGIA
TRANSPESSOAL COMO INTERLOCUTORA, 78
5.1 - A Psicologia Transpessoal, 84
5.2 - A Década de 60 e os Alucinógenos, 88
5.3 - Cartografias da Mente, 91
5.3.1 - O Espectro da Consciência de Ken Wilber, 93
5.3.2 - A Cartografia de Stanislav Grof, 105
5.3.3 - A Escolha por Grof e Wilber, 123
CAPÍTULO 6 - O OLHAR DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL, 126
6.1 - Uma outra Concepção de Indivíduo, 127
6.2 - O Indivíduo Identificado com Grupo e Humanidade:
Interdependência e Interligação, 135
6.3 - A Dinâmica Horizontal e Vertical das Estruturas (Ken Wilber), 140
6.4 - Sociedade, Indivíduo e Natureza Integrados: Uma Nova Concepção, 153
6.5 - Crise: Emergência Espiritual, 165
6.6 - O Movimento de Translação e Transformação no Entendimento da
Crise Social, 162
ix
6.7 - Revolução Silenciosa, 172
6.8 - A Questão de Valores e suas Mudanças, 176
CAPÍTULO 7 - O DIÁLOGO, 179
7.1 - Aproximações, 183
7.1.1 - Modelos Relacionais e as Faixas Biossociais, 183
7.1.2 - Universalidade do indivíduo, 186
7.2 - Domínio Inexplorados, 189
7.2.1 - Explorando uma Teoria de Hierarquia, 190
7.2.2 - Exploração de Novas Configurações de Valores, 194
7.2.3 - Um Sociologia Transpessoal a Explorar, 195
7.3 - Percursos Diferentes, 198
7.3.1 - Religião, Espiritualidade e Ciência, 198
7.3.2 - Uso dos Termos Tradição e Hierarquia, 204
7.3.3 - Ocidente e Oriente, 206
7.4 - Implicações, 212
7.4.1 - Implicações do “Diálogo” sobre a Crise da Sociedade Atual, 212
7.4.2 - Multidimensionalidade do Real: Equilíbrio entre Indivíduo,
Sociedade e Natureza, 219
7.4.3 - Individualismo e Holismo, 212
7.4.4 - Reflexão sobre Valores: Liberdade e Igualdade, 224
7.4.5 - Superação da Crise e Mudança de Valores, 229
7.4.6 - Educação Transpessoal, 232
7.4.7 - O que Será que Falta?, 235
CAPÍTULO 8 - CONSIDERAÇÕES FINAIS, 238
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 246
ANEXO I - DEFINIÇÕES DE ALGUNS DESDOBRAMENTOS
TRANSPESSOAIS, 250
ANEXO II - RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS AUTORES DA ABORDAGEM
TRANSPESSOAL CONSULTADOS, 252
x
ÍNDICE DE FIGURAS E TABELAS:
TABELA 1 - Classificação de Grof das Experiências Transpessoais, 119
FIGURA 1 - Espectro da Consciência de Ken Wilber, 97
FIGURA 2 - Pensamento Fragmentando a Realidade Una, 98
FIGURA 3 - Integração das Dimensões Indivíduo, Sociedade e Natureza, 154
FIGURA 4 - Estrutura Hierárquica, 166
FIGURA 5 - Dinâmica Horizontal e Vertical da Estrutura, 166
FIGURA 6 - Estrutura Hierárquica em Crise, 167
FIGURA 7 - Dinâmica da Tranformação, 167
FIGURA 8 - Crise Superada, 168
FIGURA 9 – Holismo, 222
FIGURA 10 – Individualismo, 223
FIGURA 11 - Equilíbrio: Integração das Dimensões, 225
FIGURA 12 - Exemplo de Estrutura Hierárquica de Valores: Liberdade e Igualdade, 227
xi
RESUMO
A presente pesquisa teórica tem como ponto de partida a reflexão sobre a
crise da sociedade contemporânea ocidental como um processo de transformação.
Propõe um “diálogo” transdisciplinar entre a abordagem psicossociológica e a Psicologia Transpessoal sobre essa crise. Após considerar as propostas da Ciência
sobre os desafios do pensamento humano na atualidade, principalmente através
dos modelos relacionais, dos objetos híbridos de estudo e das posturas
interdisciplinares, o trabalho reflete os desdobramentos da crise a partir da ideologia individualista que caracteriza a sociedade ocidental. Posteriormente, apresenta
a Psicologia Transpessoal e sua proposta de uma nova concepção de indivíduo:
interligado e interdependente. O “diálogo” desenvolve-se a partir das diferentes
posições dos saberes envolvidos, visando ampliar as fronteiras de reflexão sobre a
crise e seus componentes formadores. Discute-se a configuração dos valores da
sociedade ocidental — o individualismo, o valor econômico, outros capitais socialmente valorizados etc. —, a crise como uma crise espiritual e os modelos
transpessoais sobre os estados incomuns de consciência e suas repercussões no
comportamento, no adoecimento e nas perspectivas de ampliação do sentido da
existência humanos. O presente trabalho procura ampliar as possibilidades de discussão sobre alguns dos grandes desafios para o pensamento ocidental como a
relação Indivíduo e Sociedade, Ciência e Espiritualidade, Consciência e Realidade.
xii
ABSTRACT
This theoretical research starts with a reflection about contemporary Western
society’s crisis as a transformational process. It proposes a trans-disciplinary “dialogue” between the psychosociological approach and Transpersonal Psychology
contemplating this crisis. After considering Science’s propositions for the challenges
of human thinking today, especially through the relational models, of the hybrid
objects of study and interdisciplinary posture, the work reflects the unfolding of the
crisis beginning with the individualistic ideology which characterizes Western society.
Next, it presents Transpersonal Psychology and its proposition of a new conception
of the individual: interrelated and interdependent. The “dialogue” develops from
the different views of the knowledges involved, miming at amplifying the frontiers
of reflection about the crisis and its components. We discuss Western society’s values
— individualism, economic value, other capitals which are socially valued etc. —,
the crisis as a spiritual crisis and the transpersonal models of altered states of
consciousness and its effects on behavior, sickness and the perspectives of
amplification of the meaning of human existence. The present work aims at
broadening the discussion possibilities about some of the great challenges for the
Western thought sych as the relationship Individual and Society, Science and
Spirituality, Consciousness and Reality.
1
CAPÍTULO 1
APRESENTAÇÃO
2
Quando ingressamos no Mestrado do Programa EICOS — Estu
dos
Interdisciplinares
de
Comunidades
e
Ecologia
Social
do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tínhamos em
mente um tema diferente do que apresentamos no presente trabalho. Julgamos
importante apresentar este percurso pessoal para situar o leitor nos desdobramentos de nossas reflexões.
Motivava-nos, inicialmente, um estudo sobre um fenômeno social identificável
na atualidade envolvendo profissionais da área de saúde mental e suas escolhas
profissionais após concluídas suas formações acadêmicas básicas. Observávamos
que muitos profissionais dessa área haviam optado por práticas que englobavam
conceitos muito diferentes daqueles constantes das escolas tradicionais em que se
baseavam as estruturas curriculares dos cursos de graduação pelos quais haviam
passado. Muitos passaram a utilizar práticas conhecidas como alternativas que integravam conceitos de diversas fontes de saber — filosofias orientais, práticas religiosas etc. — nem sempre reconhecidos pelos meios acadêmicos ou pelos órgãos de
regulamentação do exercício das profissões da área.
Nosso interesse, àquela época, era o de procurar entender as razões que
levavam tais profissionais a promover uma mudança radical na sua atividade prático-teórica profissional, rompendo com o paradigma tradicional na qual assentavam sua base de conhecimento. Uma proposta interdisciplinar como a
Psicossociologia parecia oferecer o instrumental de análise ideal para um tema
abrangente como esse, já que o estudo dos fatores puramente sociológicos ou
psicológicos nos afastaria de uma coerência que o tema exigia.
Em resumo, a questão era: O que leva um profissional formado em uma
estrutura conceitual tradicional, aceita e valorizada socialmente, que tem respaldo
da comunidade científica e com o seu exercício regulamentado formalmente, a optar
3
por uma prática dita alternativa, ou seja, a uma mudança de orientação práticoteórica?
A partir daí, poderíamos ter seguido alguns caminhos bastante instigantes para
nossa proposta de pesquisa. Primeiramente poderíamos buscar uma abordagem
epistemoló-gica, relacionando o fenômeno estudado a uma mudança de paradigma,
na visão de Khun (1987), através de uma ruptura da estrutura vigente em direção a
um novo modelo. Como alternativa a esse percurso, poderíamos optar por uma
pesquisa que privilegiasse os fatores psicossociais envolvidos na mudança de escolha profissional, procurando enfocar o processo de escolha individual, recorrendo a
conceitos psicossociológicos para o entendimento da formação e dinâmica da
sociedade contemporânea.
No entanto, ao iniciarmos o aprofundamento de nosso estudo pudemos perceber que por trás de nossa questão revelava-se outra que, mesmo parecendo mais
ampla e abrangente, oferecia material de reflexão mais instigante e desafiador. Observamos que havia uma característica comum a esses profissionais: estavam buscando novas formas de entendimento dos conceitos de mundo, de vida, de saúde,
de homem e de mente que pudessem ampliar suas possibilidades e recursos no
trato com a dor e o sofrimento humanos. Pareceu-nos extremamente oportuno,
estudar sistematicamente, e de forma criteriosa, quais eram essas fontes de saber e
que tipo de colaboração efetiva elas poderiam oferecer às abordagens tradicionais
do conhecimento ocidental.
Nossa impressão inicial, a partir de contatos ensejados pela prática clínica e
profissional, dava conta de um ponto comum aos profissionais especificados: todos
partiam de uma espécie de insatisfação com os recursos de que dispunham em suas
formações de origem. Além disso, todos sinalizavam a crise enfrentada pela sociedade contemporânea como fator desencadeante de uma postura mais flexível em
4
relação ao paradigma científico tradicional. Nosso objetivo passou a ser, então, elaborar um estudo teórico que partisse dos principais componentes
da crise da sociedade contemporânea identificando as possibilidades de
sua compreensão dentro de uma abordagem Psicossociológica e, a partir
daí, e coerentemente com as mais recentes propostas de integração de
saberes na busca da superação de desafios do pensamento e conhecimento humanos, propor um “diálogo” transdisciplinar com a Psicologia
Transpessoal procurando identificar possíveis contribuições para a compreensão da crise da sociedade contemporânea.
Iniciaremos com uma caracterização da crise da sociedade contemporânea
ocidental no Capítulo 2. A partir daí, apresentaremos, no Capítulo 3, os mecanismos desenvolvidos pela ciência diante dos impasses metodológicos e conceituais
para lidar com a complexidade dos problemas humanos e sociais, ressaltando a
proposta interdisciplinar, em geral, e a abordagem psicossociológica, em particular.
Dentro dessa abordagem, trataremos do recorte teórico do indivíduo e do individualismo, buscando elos de ligação com a crise da sociedade contemporânea, que
será o conteúdo do Capítulo 4.
O Capítulo 5 procura refletir as questões da transdisciplinaridade envolvendo a
Psicologia Transpessoal. No próximo capítulo — Capítulo 6 — introduziremos a Psicologia Transpessoal e seus principais pressupostos visando identificar possíveis contribuições, através de uma ampliação da noção de indivíduo. No Capítulo 7 abordamos a crise da sociedade ocidental a partir do referencial da Psicologia e Movimento
Transpessoais. Finalmente, no Capítulo 8, promovemos um “diálogo” trandisciplinar
buscando discutir e refletir sobre os diversos pontos levantados ao longo do trabalho,
procurando evidenciar as contribuições que essa prática transdisciplinar pode oferecer na compreensão da crise da sociedade contemporânea ocidental.
5
CAPÍTULO 2
UMA SOCIEDADE EM CRISE
“Assim não se poderia destacar um problema número um, que
subordinaria todos os demais; não há um único problema vital, mas
vários problemas vitais, e é essa inter-solidariedade complexa dos problemas, antagonismos, crises, processo descontrolado, crise geral do planeta, que constitui o problema vital número um.”
(EDGAR MORIN)
6
Parece ser senso comum a opinião de que o homem contemporâneo passa
por uma significativa e profunda crise. Entretanto, é preciso identificar precisamente estes termos para não corrermos o risco de generalizar algo que pode ser específico. Quando utilizamos, no título dessa seção, o artigo UMA para o substantivo
SOCIEDADE queremos nos referir a uma categoria específica dentro de um amplo universo. Não podemos afirmar que em outras sociedades os fenômenos estudados sob o nosso enfoque apresentam-se de forma semelhante. Ao nos referirmos
à SOCIEDADE estamos promovendo um primeiro recorte caracterizado claramente pelos termos que a definem: SOCIEDADE complexa, urbana, ocidental,
contemporânea. Assim, por complexa estamos entendendo aquela SOCIEDADE
que está estruturada em grandes redes de relações e funções; urbana pela ênfase no
movimento habitacional na direção dos grandes centros urbanos pela população
em geral; ocidental já que todo o referencial de conhecimento, de pensamento,
cultura etc. será o desta parte do planeta; e contemporânea, na medida em que
daremos ênfase às mais recentes características e dinâmicas dessa SOCIEDADE
iniciadas com as modificações das relações de produção do século XIX identificadas
no movimento industrial e, subseqüentemente, nas mudanças pós-industriais e
tecnológicas. Com este recorte estaremos utilizando abordagens das diversas áreas
do saber envolvidas direta ou indiretamente com o nosso tema.
Como CRISE estaremos privilegiando as definições de uma “fase difícil,
grave, na evolução das coisas, dos fatos e das idéias” ou, especificamente, como
“situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões
tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade”1 .
1
O Novo Dicionário Aurélio apresenta no verbete Crise essa interessante definição sociológica que
resume bem as tendências, na Sociologia, de caracterização da crise social.
7
Quais seriam os acontecimentos que estariam caracterizando o momento atual
como de crise na visão estabelecida acima?
2.1- PERDAS
O primeiro aspecto que identificamos na composição da crise da sociedade
contemporânea refere-se às perdas percebidas pelos indivíduos integrantes dessas
sociedades, de diferentes formas. No tocante à perda de certezas os indivíduos
parecem se ressentir do estreitamento das perspectivas de futuro para suas vidas,
tanto quanto aos seus projetos familiares como aos profissionais, principalmente. A
incerteza advinda das instabilidades econômicas provoca as mais diferentes reações,
refletindo-se no comportamento individual e social, pela total impossibilidade de se
preverem os movimentos de uma complexa economia mundial globalizada e
interligada. Os recentes reflexos na economia em nível mundial, diante das oscilações
das bolsas de valores de determinados países em dificuldades locais, ratificam nosso
ponto de vista.
Mas não é só a perda das certezas que atinge tão significativamente os
indivíduos. A crescente perda de referenciais de toda ordem vem contribuindo
para essa deterioração da sociedade. Os próprios referenciais econômicos que,
durante tantos séculos, vêm norteando a condução de políticas e a estrutura de
valoração na sociedade, parecem ter encontrado uma crise sem precedentes, com
os riscos da perda de status e condição social determinados por variações externas
e independentes da vontade do indivíduo. A impossibilidade de se auto-determinar
nesses assuntos vem colaborando para um crescente adoecimento, principalmente
da classe média, como função dessa perda.
8
Uma das principais conseqüências dessas perdas parece ser uma tendência
a valorizar as conquistas mais imediatas, sejam elas financeiras, de status, de prazer etc. A essa característica chamaremos de imediatismo.
O papel tradicionalmente ocupado pelas religiões de um modo geral — como
mantenedoras de padrões de conduta e comportamento — também parece ter
sofrido um crescente desgaste, nas relações sociais contemporâneas, principalmente
aquele que acompanha o movimento materialista de nosso século2 . Por um lado, a
busca de um grande número de indivíduos por soluções milagrosas para suas dificuldades, com conseqüente frustração pessoal; por outro, a dificuldade da maioria
dessas religiões em poder explicar ou consolar em relação às grandes vicissitudes e
diferenças sociais acabou por promover o que estamos chamando de perda de
referenciais religiosos.
Entretanto, talvez o aspecto que mais se destaque nessa crise, em termos
dos efeitos sobre as relações sociais entre os indivíduos da sociedade contemporânea, seja o da perda dos referenciais de valores. De um modo geral, temos
assistido a uma desenfreada mudança dos valores da sociedade em diferentes
nuances. Os valores ético-morais vêm sofrendo alterações profundas ao longo
das décadas mais recentes chegando a apresentar padrões significativos em certas
classes ou grupos sociais, que acabaram desenvolvendo códigos próprios de regulamentação da vida social. Assim, por exemplo, podemos identificar os códigos de
leis próprias impostos por determinadas categorias marginais vinculadas ao tráfico
de drogas, sobre uma comunidade popular urbana inteira, sem que as instituições
competentes se aventurem a uma intervenção que restaure a organização original
2
A constatação, mais recente, de uma crescente e, por vezes, desordenada busca pela religiosidade sugere uma reação a essa perda de referenciais religiosos pelos indivíduos, necessitando-se de
estudo específico para investigar os componentes desse fenômeno.
9
da comunidade urbana mais ampla. A integridade da vida humana parece passar
por dias de reduzida valorização passando-se da vulgarização dos motivos de homicídio aos descasos no trato das populações que vivem no, ou além, do limite da
miséria. Essa conduta, generalizada, tende a influenciar e até determinar as orientações das políticas governamentais no campo social e de saúde pública,
desconsiderando a triste realidade de uma grande parte da população que não
possui condições básicas de manutenção da vida. Outra gama de valores que estão em pleno processo de deterioração refere-se aos casos de prostituição infantil,
tráfico humano, trabalho escravo infantil etc. que, apesar de trazerem uma longa
história de ocorrências na humanidade, parecem contrariar padrões básicos de
uma civilização que se diz moderna, tecnológica.
Após o aspecto das perdas, o segundo que pretendemos destacar dessa crise,
se confunde em dois termos que analisaremos em conjunto: o isolamento e a
fragmentação. O isolamento dos indivíduos parece decorrer em boa parte de
uma fragmentação das relações e estruturas sociais. Diante da divisão internacional do trabalho, da crescente busca de especialização para manutenção das condições
de competição econômica nos mercados globalizados, os trabalhadores se vêem
cada vez mais isolados e afastados. As jornadas de trabalho, estendidas para
complementação da mão-de-obra dispensada com vistas à recuperação (ou ampliação!) das margens de lucro obtidas nas operações produtivas ou comerciais, reduzem o tempo de lazer e de possibilidades de trocas nos campos sócio-culturais da
sociedade. Ainda com referência às relações de trabalho, podemos identificar que
esta tendência à redução dos quadros funcionais disponíveis tem promovido uma
acirrada disputa pela manutenção ou obtenção das vagas existentes, ampliando o
clima de desconfiança e distanciamento entre as pessoas, justamente no, ou em
função do local profissional onde passam mais de 2/3 de sua existência.
10
Outra forma de isolamento e fragmentação característica dessa sociedade
é o que chamaremos arquitetônica. Englobamos aqui o claro distanciamento provocado pelas formas de ocupação habitacional da população urbana. Apesar da
proximidade física, em estruturas de edifícios gigantescos que abrigam dezenas de
unidades familiares, o nível de relação interpessoal existente é completamente paradoxal. Servindo basicamente como dormitórios, essas unidades não têm favorecido o intercâmbio entre as pessoas. Em função de aspectos da violência urbana
como assaltos, seqüestros etc., maior é o número daqueles que irão se isolar atrás
das grades dos condomínios fechados, sejam os de luxo ou até nas vias públicas
que são cercadas de cancelas e seguranças, dificultando a interação e relacionamento entre os indivíduos. Mesmo nas comunidades carentes — como as favelas,
por exemplo — são freqüentes as ocorrências de “toques de recolher” impostos por
grupos ligados ao crime organizado, restringindo a possibilidade de uma maior
interação social.
Ainda com relação ao aspecto do isolamento, destacamos o do âmbito
familiar. Conforme a característica da sociedade passou, ao longo do tempo, a ser
determinada pela maior participação do indivíduo, inaugurando a distinção entre
os domínios público e privado dos grupos sociais, alteraram-se as relações familiares
na sociedade ocidental. Assunto de relevância para o tema do presente trabalho, a
deterioração das relações dentro da estrutura familiar, entre seus elementos, e entre
as unidades familiares, parece ter-se aprofundado também a partir do processo de
crescente especialização ocorrido em nossa sociedade. A dificuldade em atender às
orientações, cada vez mais complexas, principalmente da Psicologia e da Educação,
sobre o processo de formação e desenvolvimento das crianças, por exemplo,
acarretou uma maior transferência de atividades e responsabilidades — antes
atribuídas ao domínio privado — para o domínio público, como a formação
11
intelectual, atividades extras como curso de línguas, esportes, as providências básicas de saúde, atividades de lazer etc. Todas essas atribuições repassadas ao domínio público podem significar um empobrecimento dos laços afetivos e relacionais
entre familiares, com perda das transmissões de tradições culturais importantes e
singulares, tendendo a uma massificação de hábitos e costumes nem sempre condizentes com os processos de individuação daquelas camadas sociais.
Aqui o leitor poderá identificar uma outra espécie de perda, conseqüência desse
isolamento familiar e que se reflete para outras dimensões da vida do indivíduo: a
perda de vínculos afetivo-emocionais. Esta perda de vínculos acaba por resultar
em uma certa indiferença pelos fatores que não afetam o indivíduo diretamente,
muitas vezes camuflada atrás de uma noção de imparcialidade.
Outra forma de isolamento que vem causando grande interesse na atualidade
refere-se às mudanças de comportamento dos usuários da rede mundial da Internet
que parece, em alguns momentos, substituir a possibilidade de inter-relacionamentos pessoais por um contato virtual onde há, inclusive freqüentemente, omissão da
verdadeira identidade dos comunicantes, garantindo anonimato, mas reforçando o
isolamento. O próprio desenvolvimento da tecnologia de telecomunicações tem
provocado um agravamento desse isolamento. Hoje, as diferentes programações
existentes na televisão, visando atingir faixas etárias específicas, vêm determinando
a criação de uma “necessidade” de se ter diversos aparelhos de TV ligados em
cômodos diferentes, impedindo uma maior conversação e interação entre os
membros da família. Além disso, com o desenvolvimento dos sistemas de compras,
pesquisas de opinião, dentre outros serviços, diminui-se a necessidade de deslocamento de casa.
12
Acompanhando a fragmentação da sociedade contemporânea e seu conjunto de valores observa-se a exagerada competitividade existente entre os indivíduos e grupos organizados. A escassez de recursos tende a levar a um acirramento
da disputa pelas oportunidades de projeção e sucesso. Seja individualmente ou
pela força do agrupamento em categorias comuns, como as profissionais, por exemplo, a competitividade se verifica no âmbito do trabalho, dos esportes, dos quadros sociais e intelectuais e da própria família.
O significativo descrédito nas instituições parece ser outro tópico importante dessa crise que estamos caracterizando. As instituições governamentais em
todos os níveis, federal, estadual e municipal, tais como a polícia, o sistema de
saúde, educação etc. não conseguem obter graus significativos de aprovação pela
população usuária dos seus serviços favorecendo a instabilidade e o enfraquecimento dos sistemas de representação política. Os próprios casos de corrupção passiva e ativa, os diversos casos de Comissões Parlamentares de Inquérito desvendando as diversas formas de desvios de recursos e improbidades administrativas,
desestimulam a participação mais ampla da população, pelo total descrédito na
capacidade de solução ou encaminhamento dos problemas emergentes para estes
grupos sociais.
Importante fator no estudo da crise que afeta o homem contemporâneo
talvez seja a constatação de como os indivíduos vêm reagindo a estes fenômenos
apontados acima. Alastra-se de forma incontrolável a vivência de um profundo
sentimento de angústia pela perda do sentido pessoal e existencial. Esse
aspecto pode ser observado — e um estudo específico sobre isso, que escapa aos
objetivos do presente trabalho, permitiria quantificá-lo — nas ocorrências das clínicas médicas e psicológicas. Diversas patologias têm oferecido desafio im-
13
portante à ciência médica com um aumento em progressões geométricas ao longo
dos períodos de desenvolvimento e estruturação da sociedade industrial contemporânea: as cardiopatias, os diversos tipos de processos oncológicos — hoje muito
associados à ocorrência de situações estressantes na vida do indivíduo3 . No campo da psicopatologia, as ocorrências da depressão cuja psicogênese pode ser atribuída ao elevado grau de frustração ante os limites que a realidade impõe, a crescente estatística da Síndrome do Pânico, doenças psicossomáticas etc. sugerem
uma hipótese de serem provocadas, ou pelo menos potencializadas, por esse estado de angústia existencial.
Outros dois parâmetros nos apontam nessa direção: o uso de drogas e os
índices de suicídio. No campo das drogas, seu uso tem encontrado significativas
ocorrências nas camadas mais jovens que parecem se ressentir de uma perda dos
referenciais apontados anteriormente ou como fuga a situações extra e/ou
intrapsíquicas de diversas ordens. Da mesma forma, os episódios de suicídio ocorrem mesmo em áreas de alto nível de qualidade de vida, onde muitos dos parâmetros
valorizados pela sociedade como características de desenvolvimento sugeririam a
inexistência de fatores predisponentes.
2. 2 - EXCESSOS
As diversas formas de perdas experimentadas pelos indivíduos não são as
únicas responsáveis pelo sentimento de crise que se generaliza na Sociedade contemporânea. Paradoxalmente, elas vêm acompanhadas de suas antíteses: inúmeros
excessos que são relacionados aos quadros individuais de angústia existencial e
melancolia.
3
Para maiores detalhes sobre este assunto o leitor poderá recorrer à pesquisa do casal SIMMONTON
resumida na obra “Com a Vida de Novo” constante na bibliografia deste trabalho.
14
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação e, principalmente, da
tecnologia de processamento de dados, temos assistido nas últimas décadas a uma
crescente demanda por informações. Cada vez mais a qualidade das decisões de
produção, consumo e investimento passa por uma melhor apropriação das informações disponíveis. O domínio de um determinado tipo de informação ou de um
meio de informação transformou as disputas por estes controles em verdadeiras
guerras. Podemos identificar que, após o predomínio do poder da força e do poder
econômico, o poder da informação passou a ser instrumento de dominação e alvo
das principais aspirações ocidentais e, a partir de uma tendência cada vez mais
globalizada, de todo o mundo. O avanço da tecnologia de telecomunicações tem
permitido acesso on line aos principais acontecimentos em qualquer parte, mesmo
as mais longínquas, do planeta.
A busca desenfreada pela informação acarreta problemas éticos significativos já que, em nome de um melhor planejamento, estratégias de ação etc., invade-se a privacidade dos indivíduos, seus hábitos de consumo, suas preferências
alimentares, de vestuário, sexuais, dentre outras. Com isto, as estratégias de
marketing estabelecem parâmetros de produção de massa que irão determinar
padrões de consumo generalizados e impessoais, acabando por serem
internalizados como necessidades. As quebras de barreiras culturais, políticas e
econômicas entre os diversos países, tornaram os indivíduos mais acessíveis aos
modelos de consumo e de sucesso de outras realidades culturais e sociais causando verdadeiros conflitos de identidade.
Este movimento de produção de massa tem gerado um conseqüente consumo de massa que atenda à necessidade de absorção da produção e mantenha os
níveis de emprego e lucros. Com isto identificamos um outro significativo excesso
15
para os objetivos de nosso trabalho: o excesso de “necessidades” de consumo. Estas “necessidades” acabam sendo criadas como forma de elevar o nível de
conforto e satisfação dos indivíduos que podem, assim, desfrutar dos benefícios
oferecidos pelo desenvolvimento da tecnologia e do conhecimento humano. Entretanto, por outro lado, a sociedade mostrou-se incapaz de desenvolver mecanismos
de distribuição de renda e de acesso a princípios básicos de saúde, saneamento,
habitação e alimentação para uma grande camada da população. Esta situação
acaba por promover grandes paradoxos e ambigüidades na priorização dos itens
de consumo destas camadas na direção de “necessidades” não tão necessárias à
sobrevivência. O desafio está no ponto de equilíbrio entre produção, consumo,
respeito às características culturais e sociais regionais e individuais e os mecanismos
de regulamentação e proteção destes direitos.
Em outros níveis sócio-econômicos, esse excesso de necessidades de consumo tem provocado uma desenfreada busca de condições para a aquisição de
bens de consumo duráveis e não duráveis que ofereçam benefícios diretos — pelo
conforto que proporcionam — e indiretos — como sinal de status, valor e diferenciação social. Esta busca acaba levando a uma exacerbação do tempo destinado ao
trabalho com prejuízo do tempo destinado às horas livres, de lazer e de convívio
familiar. A sucessão e diversidade dos itens eleitos como possíveis geradores de
satisfação coloca o indivíduo em um impasse: a limitação de sua renda oferece a
sensação de incapacidade de alcançar níveis elevados de satisfação. A frustração
diante dessa “incapacidade” tende a provocar estados de ansiedade — na busca, a
qualquer preço, destas conquistas — ou de depressão pela impotência diante destas
limitações. Em um sistema que se baseia na igualdade de oportunidades, este impasse
tende a contribuir na compreensão distorcida de que o nível de satisfação pretendido
não foi alcançado por algum tipo de falha pessoal na avaliação ou condução das
decisões de curto e/ou de longo prazo pelo indivíduo.
16
Outro motivo de tensão está no excesso determinado pela necessidade de
atualizações tecnológicas. Cada dia novos modelos de bens são oferecidos,
com maiores recursos para a rapidez e eficiência no uso, tornando os modelos anteriores rapidamente obsoletos e descartáveis. Esta internalização da tendência
descartável, afeta o indivíduo nas suas relações pessoais ou objetais. Mesmo que
não queira optar pela atualização tecnológica, o indivíduo passa a ser pressionado
pela falta de peças de reposição, assistência técnica ou pela simples decretação de
morte de marcas e modelos que somem do mercado sem deixar notícias, deixando-nos a dúvida se são por conta do ritmo do processo de desenvolvimento
tecnológico — como os exemplos dos sistemas operacionais e acessórios de hardware
de computadores pessoais — ou apenas por estratégias comerciais — com o exemplo de lâminas de barbear, cremes dentais etc.
A limitação dos recursos que podem ser alocados ao consumo de bens que
geram bem estar para o indivíduo e/ou para seus familiares também tende a produzir um outro motivo de adoecimento crescente na sociedade contemporânea: o
excesso de opções de escolha. Multiplicam-se as opções entre bens e serviços
oferecidos, de forma cada vez mais atraente e envolvente, de tal modo que o
indivíduo se vê dividido entre opções, sem saber diferenciar a que mais se adequa
à sua situação ou a que mais o beneficiaria. São as opções de serviços bancários,
cartões de crédito, tipo e marca de telefonia celular, fidelidade a produtos de serviços trocados por milhagens, descontos, facilidades etc. Os recursos audiovisuais e
interativos de propaganda induzem, por vezes, ao estabelecimento de parâmetros
de decisão completamente distanciados da realidade biográfica, social e cultural do
indivíduo. Se é possível identificar um certo grau de bem estar imediato, a médio ou
longo prazo, esta modificação de hábitos ou dúvida entre outros hábitos pode
produzir efeitos negativos na interação do indivíduo em seu grupo social.
17
Lógico está que não estamos fazendo uma apologia ao retrocesso tecnológico
nem à contestação romântica do sistema que se estruturou no ocidente. Entretanto,
a constatação inevitável é de que este mesmo sistema em que a sociedade ocidental
está apoiada, não foi capaz de solucionar os grandes problemas sociais e econômicos,
exigindo uma reflexão mais ampla sobre os valores em que a ideologia ocidental
está baseada. Ao longo do tempo parece que há uma inversão silenciosa no sentido
das coisas: ao invés de se procurar consumir para viver bem, passa-se a procurar
viver para consumir bem. A tendência parece ser uma certa alienação sobre o sentido
real deste consumo, de uma perda de consciência da liberdade de escolha e de uma
redução da capacidade de autodeterminação e do estabelecimento tácito de valores
“normais” e “desejados” para todo o conjunto da sociedade que, na verdade,
traduzem interesses e percepções de grupos específicos com auto grau de influência
na formação de opiniões e comportamentos.
2. 3 - CRISE: APOCALIPSE OU TRANSFORMAÇÃO?
Os elementos dessa crise — de ruptura de padrões tradicionais e de desorganização do conjunto social ou seus subgrupos — têm levado muitos autores a se
preocuparem com o tema, cada um deles priorizando um enfoque capaz de contribuir para a compreensão do fenômeno no campo das ciências.
Em uma abordagem sociológica, Featherstone (1995, 1997) enfatiza os efeitos do processo de formação e deformação da cultura na sociedade contemporânea e os efeitos que a mudança para um mundo globalizado representa para os
indivíduos, a busca e manutenção de suas identidades e para sua interação em
sociedade.
18
Para Lasch (1983, 1986), a crise está relacionada ao movimento individual
do psiquismo em busca da sobrevivência. Para o autor, a vida cotidiana passou a se
pautar por estratégias de condutas que procuram assegurar a sobrevivência impostas aos que estão expostos a situações de extrema adversidade. A sobrevivência e o
equilíbrio emocional estariam garantidos quando o indivíduo conseguisse manter
um “eu” mínimo, um núcleo defensivo, em guarda contra a adversidade ameaçadora.
Ao avançarmos na argumentação de Lasch, percebemos sua visão de que a
preocupação com o indivíduo, característica de nossa época, resulta na crescente
preocupação com a sobrevivência psíquica. A partir deste estado de tensão pessoal
ou “exaltada percepção imaginativa” de uma situação crítica, o indivíduo, em sua
vida cotidiana, passaria a assumir atitudes e comportamentos indesejáveis,
antagônicos e sinistros: restrição das perspectivas às exigências imediatas de
sobrevivência; auto-observação irônica; individualidade multiforme e anestesia
emocional (Lasch, 1986, p. 84).
O pensamento de Lasch está baseado em conceitos psicanalíticos que procuram dar conta de uma maior compreensão dos fenômenos a partir de uma visão do
narcisismo. Assim, a crise individual e social estaria baseada na ameaça à perda de
individualidade, à não auto-afirmação do indivíduo e à sua desintegração, propondo inclusive que a chamada cultura do narcisismo (Lasch, 1983) deveria ser chamada
de cultura do sobrevivencialismo. Em todo o pensamento desenvolvido, Lasch parte
de um contexto social norte-americano, de fins da década de 70 e da década de 80,
onde a realidade da vida cotidiana passava por fatores coerentes com a sua postura
teórica da ameaça à vida pelo risco nuclear, ecológico, do declínio econômico, do
aumento da criminalidade e do terrorismo, dentre outros, que pareciam justificar a
crise contemporânea:
19
“O risco da guerra nuclear, a ameaça da catástrofe ecológica, a
lembrança do genocídio dos nazistas contra os judeus, o possível colapso de toda a nossa civilização geraram um amplo e extenso sentimento
de crise, e a retórica da crise penetra agora as relações raciais, (...) e a
‘sobrevivência’ pessoal cotidiana.” (Lasch, 1986, p. 54).
A propaganda alarmante sobre a crise e a tentativa de mobilização dos indivíduos para a atenção e os sacrifícios necessários para a solução, segundo Lasch,
esbarra em uma indiferença provocada pela sensação de distanciamento da participação nesse processo. Para os indivíduos, a responsabilidade remonta ao domínio público levando-os a se fecharem mais nos problemas do cotidiano.
Se o contexto norte-americano da década de 80, associado à ameaça de
destruição, poderia sustentar as argumentações de Lasch sobre os motivos do sentimento de crise da sociedade contemporânea e suas conseqüências mais danosas,
pesquisas sobre aquela mesma cultura empreendidas a respeito de outros períodos
históricos nos oferecem outros subsídios. David S. Awbrey (1999), em sua obra
Finding Hope in the Age of Melancoly, faz um interessante levantamento sobre as
origens e componentes psicológicos e sociais dos quadros depressivos e melancólicos característicos da nossa era. Quando enfoca o que chamou de Era da Melancolia, Awbrey(1999) observa que nem sempre os períodos de ameaça econômica
ou de guerra coincidem com a maior incidência da depressão e melancolia na sociedade. Suas observações sobre o final da década de 90 atestam este pensamento:
“Certamente, a geração [norte-americana] atual poderia ser vista
como um bando de ingratos birrentos. Os americanos, hoje, moram em
casas maiores, dirigem carros melhores, têm maiores expectativas de
vida, são diplomados em boas escolas, usam uma grande variedade de
objetos eletrônicos e tiram férias mais exóticas do que fizeram seus pais.
Além disso, o país não atravessa guerras nem enfrenta ameaças externas mortais, o desemprego é baixo, cai o número de necessitados soci-
20
ais. Até mesmo o déficit do orçamento federal vem caindo e é mínima a
inflação no fim dos anos 90.
Apesar disso tudo, milhões de americanos não estão se sentindo
bem quanto ao futuro e sem lugar nesse futuro e existe uma dissonância
entre o que eles lêem nos indicativos econômicos e o seu bem-estar
pessoal. Os americanos estão se saindo melhor mas sentindo-se pior.”
(Awbrey, 1999, p. 21-22).
O autor cita os trabalhos de Rollo May sobre a melancolia encontrada de
forma bastante significativa nas classes bem sucedidas — como advogados, médicos e executivos — que conquistaram status social e profissional, mas vivem intensamente tristes. Mesmo durante o século XIX, podem ser encontrados relatos sobre
essa contradição. Awbrey cita o aristocrata francês Alexis de Tocqueville que, em
1830, em estudo sobre a sociedade americana escreve: “Vi os mais livres e mais
educados homens, nas circunstâncias de serem os mais felizes do mundo; porém
eles me pareceram estar sempre sob uma densa nuvem suspensa sobre suas frontes, parecendo sempre seriamente tristes em seus prazeres. (...) [porque os americanos] nunca param de pensar nas coisas boas que eles não têm.” (Tocquevile,
apud Awbrey, 1999, p. 77).
Para Awbrey, a crise, mesmo nos períodos de abundância material, poderia
sugerir que a ênfase do fenômeno estaria em um profundo questionamento, por
vezes inconsciente, dos valores que orientam a vida cotidiana e levam os indivíduos
necessariamente a uma renovação. Dessa forma, percebe-se claramente que a posição do autor é otimista em relação aos efeitos de uma crise como a que caracterizamos. Essa visão de transformação possibilitada pela crise será enfocada a seguir.
21
Em todos estes estudos, o ponto central é o indivíduo como valor principal
da sociedade contemporânea. Esta constatação parece remeter à necessidade de
se compreender a formação e os desdobramentos da concepção individualista que
caracteriza nossa sociedade como fator determinante de fenômenos que levam ao
sentimento de crise.
A consideração unicamente dos efeitos desorganizadores observados em momentos de crise, pode conduzir a uma idéia pessimista e unilateral do fenômeno. A
visão apocalíptica pode refletir uma distorção e uma fixação de conceitos que não
são os únicos na observação mais apurada do desenvolvimento do pensamento
humano. Pelo contrário. Ao longo da história da humanidade, períodos de melancolia e de desespero têm ajudado o conjunto do pensamento ocidental de diversas
maneiras, inclusive introduzindo novas percepções sobre a vida.
Pesquisas como as coordenadas pelo Dr. Felix Post — citado por Awbrey (1999)
— psiquiatra britânico, e publicadas em artigo do “British Journal of Psychiatry” em
maio de 1996, estabelecem uma forte conexão entre os quadros depressivos e a
criatividade. Estudando escritores ingleses e americanos a pesquisa notou altas taxas
de tormentos mentais entre os membros do grupo pesquisado.
Ao longo da História, diversas são as ocorrências que parecem sugerir as
crises como momentos de transformação profunda. As significativas transformações observadas na Renascença — como um não-conformismo individual — ou
no período da Reforma Protestante — com o despedaçamento do cristianismo
ocidental — foram acompanhadas por extensas queixas de melancolia e depressão pelos intelectuais e visionários religiosos. Os poetas e pintores do Romantismo
expressaram nostalgia melancólica pelo passado e olharam com pessimismo a des-
22
truição da natureza pela Revolução Industrial. A conexão entre a melancolia e as
mudanças propulsoras na sociedade foram marcantes em dois momentos especiais do final do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Em
todos estes períodos “melancólicos” de crise, os sistemas sociais foram questionados, regras foram modificadas, a psique cultural parece ser clareada possibilitando
novas atitudes e ações, reforçando a ligação estreita entre ansiedade e criatividade.
Períodos de crise podem, então, ter um significado de aquisição de grandes
avanços na compreensão da vida, do indivíduo, da sociedade... Através da crise, os
indivíduos podem repensar o que é realmente importante nas suas vidas, reavaliando
sua estrutura de valores. Para Awbrey (1999), os anos 90 representam um tempo
de exaustão física e mental e de apatia moral da cultura Ocidental e o sentimento
melancólico de crise está sendo uma advertência de que algo está desastrosamente
errado na sociedade.
Seja pela perspectiva pessimista da crise ou pela visão transformadora em
que a crise pode se converter, o pensamento humano fica desafiado a procurar
modelos que ofereçam possibilidades de solução. Nesse momento, o conhecimento
científico, através da articulação entre as disciplinas componentes ou de outras formas
de saber, acaba sendo depositário de toda uma expectativa em torno da redução
ou eliminação dos principais problemas.
23
CAPÍTULO 3
A CIÊNCIA EM BUSCA DE SOLUÇÕES
“A história das ciências não tem a simplicidade atribuída à evolução biológica no sentido da especialização; é uma história mais sutil,
mais retorcida, mais surpreendente. É sempre suscetível de voltar atrás,
de encontrar, no seio de uma paisagem intelectual transformada, questões esquecidas, de desfazer as compartimentalizações por ela constituídas e, sobretudo, de ultrapassar os preconceitos mais profundamente
enraizados, mesmo os que parecem ser-lhes constitutivos.”
ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS
“Um dos problemas de nossa época é posto por esse conjunto de
concepções que reforçam o isolamento clerical da comunidade científica. Tornou-se urgente estudar as diversas modalidades de integração
das atividades científicas na sociedade, as quais fazem com que ela seja
pouco ou muito finalizada, que ela não fique indiferente às necessidades
e às exigências coletivas.”
ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS
24
A complexidade da crise fica evidente quando descrevemos seus principais
aspectos. Porém, toda vez que um desafio dessa ordem se apresenta ao conhecimento humano, uma mobilização de recursos e potenciais acaba sendo empreendida. As diversas esferas de interpenetração dessa crise acionam várias áreas de
saber na tentativa, primeiramente, de compreensão da questão: fatores envolvidos, estruturas, funções, dinâmicas, conseqüências, relações com outras áreas de
saber etc. Em seguida, tais áreas tendem a se movimentar na direção de uma
tarefa mais complexa que é a de encontrar soluções viáveis e exeqüíveis para o
problema. Tendo nosso trabalho um objetivo eminentemente acadêmico, recorreremos
a abordagens inseridas em áreas do campo científico, relacionadas com nossa proposta de
pesquisa, em busca de uma maior compreensão da crise por que passa nossa sociedade.
Na epistemologia da Ciência, os esforços têm se concentrado no entendimento dessa crise a partir de todo o movimento de repensar os paradigmas científicos tradicionais. Na verdade, esse movimento de questionamento do paradigma
tradicional não pode ser atribuído apenas à necessidade de enfrentamento da crise
da sociedade contemporânea.
O movimento é também resultante de uma tentativa de reação sistematizada
ao que convencionou-se chamar de Crise da Ciência. Não aprofundaremos os
aspectos envolvidos nessa crise, já que exigiria trabalho específico que abordasse o
tema. Nos ateremos a uma apresentação que contextualize o leitor em relação ao
panorama atual dessa crise da Ciência.
3. 1 - A CRISE DA CIÊNCIA
A humanidade tem passado sistematicamente por transformações radicais nas
suas estruturas de conhecimento formal. É só lembrarmos dos exemplos históricos
de Copérnico, Galileu e Pasteur, por exemplo. Entretanto, a partir das contribuições
de Isaac Newton (1642-1727) e de René Descartes (1596-1650), estruturou-se um
25
conjunto de pressupostos e conceitos que formaram o que se convencionou chamar de paradigma4 newton-cartesiano, que iria determinar a condução de todo o
pensamento científico durante um período de tempo bastante significativo.
Somente no Séc. XX é que ocorrerão as maiores transformações desse
paradigma newton-cartesiano, com repercussões desde os campos das ciências
naturais às sociais. De um dos ramos mais tradicionais das ciências naturais, a Física,
tivemos as contribuições decisivas de Max Planck com a estruturação da Física
Quântica (1900) e de Albert Einstein com a Teoria da Relatividade (1910)
modificando conceitos fundamentais como o tempo, o espaço e a realidade. As
repercussões desta renovação de conceitos acaba por determinar uma nova possibilidade de se pensar e explicar o Universo, o Homem e a Vida.
Tais questionamentos e transformações têm levado alguns pensadores de
nosso tempo — como John Horgan (1998) — a considerar as dificuldades para o
desenvolvimento do conhecimento humano, passando a discutir as fronteiras da
Ciência. Na verdade, há uma tendência a um certo pessimismo de alguns desses
pensadores no sentido de se sentirem angustiados ante a possibilidade de se chegar a um limite do conhecimento caso o sistema atual não consiga manter-se estável. John Horgan (1998) propõe, com base na opinião desses pensadores contemporâneos, que talvez tenhamos chegado ao fim da Ciência, estruturada em disciplinas com fronteiras rígidas, bem definidas e estanques. Ao final da leitura de sua
obra podemos levantar algumas possibilidades de conclusão. A primeira, de que o
autor sinaliza para uma ampliação dos limites do conhecimento humano pela in-
4
Estaremos utilizando o termo paradigma no entendimento de KHUN: “ Considero ‘paradigmas’
as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” KHUN, T. —
A Estrutura das Revoluções Científicas — São Paulo, Ed. Perspectiva, 1987, pág., 25.
26
trodução de elementos místicos, transcendentais e eminentemente subjetivos na
apreensão da realidade, da verdade. De outro modo, podemos entender que esta
sinalização nada mais é do que uma forma irônica de legitimar a supremacia da
razão como única maneira de dar conta destes questionamentos e, com isso, evidencia a onipotência da Ciência em relação à busca da verdade. Por último, fica a
dúvida se ele partilha verdadeiramente desta angústia, desse pessimismo quanto
aos destinos do conhecimento científico atual. O mais importante, nos parece, é sua
convicção de que a ciência estanque e compartimentalizada em disciplinas não será
capaz de dar conta dos desafios que se apresentam ao homem contemporâneo.
A Epistemologia da Ciência tem se proposto estas questões quando considera
e procura equacionar a crise da sociedade, sob diversas alternativas de relativização
do paradigma newton-cartesiano como forma de buscar as respostas para os problemas, em novos modelos conceituais, mais flexíveis e abrangentes.
3. 2 - A INTERDISCIPLINARIDADE COMO RECURSO NOS
MEIOS ACADÊMICOS
A crise social descrita acaba marcando a perplexidade diante do impasse dos
esquemas disciplinares que têm pautado a produção do conhecimento, levando a
Academia a pensar uma solução a partir da necessidade de superação da forma de
organização do pensamento isolado nos limites estreitos de disciplinas. Não se trata,
simplesmente, de uma questão de avaliarmos a pertinência ou não das disciplinas,
mas a constituição de uma nova forma de organização do conhecimento, através
de uma postura interdisciplinar ou de suas a
5
lternativas principais 5 .
Discutiremos, mais à frente, a questão da diferença entre as principais alternativas da postura
interdisciplinar.
27
O sistema acadêmico está construído sobre uma proposta baseada na idéia
de disciplinas. Os cursos de graduação, os programas de pesquisa e a alocação de
recursos, acabam obedecendo a estrutura disciplinar rígida. Muitas vezes, o próprio
exercício profissional será regulamentado em termos de uma defesa ferrenha de
“territórios” conquistados e legitimados socialmente, como nos casos do Direito, da
Medicina e da Psicologia, que podem fornecer atestados de conformidade apenas
dentro de seu domínio científico exclusivo. Desses fatos resulta uma certa sensação
de perda de posições para os profissionais quando estão diante de uma proposta
interdisciplinar. A tendência disciplinar prejudica, muitas vezes quase impedindo, o
surgimento de novas concepções e modelos nas ciências Humanas e Sociais,
fenômeno estreitamente relacionado aos objetivos de nosso trabalho.
Outra barreira enfrentada para um exercício interdisciplinar está na tendência
da estrutura disciplinar em valorizar a análise em detrimento das investigações sintéticas. Quando ocorrem trabalhos de orientação sintética são considerados como
contaminados filosoficamente ou eminentemente especulativos, colocando-se em
dúvida sua legitimidade. Para Faure (1992): “Enquanto síntese e análise continuarem sendo pensadas em termos de exercícios antagonistas, a interdisciplinaridade
permanecerá como um esforço de exceção” (Faure, 1992, p. 63).
Ainda uma grande dificuldade na implantação de uma abordagem
interdisciplinar reside na diferença metodológica utilizada por cada disciplina. Particularmente quando temos o homem ou as sociedades como objeto de estudo,
esbarramos em uma dificuldade de escolha por instrumentos de pesquisa que se
adeqüem às características da observação e recorte teórico, mantendo a discussão
sobre a validade dos métodos qualitativos e os quantitativos para esses estudos.
Mais uma vez, posições compartimentalizadas que, ao invés de ampliar a possibilidade de compreensão do objeto, acabam por restringí-la.
28
O problema da comunicação entre pesquisadores apresenta-se como um grande desafio ao candidato à interdisciplinaridade. Na verdade, essa dificuldade não
reflete um problema de comunicação entre os “indivíduos” pesquisadores mas entre
os sistemas conceituais das disciplinas que eles procuram representar. Na
Psicossociologia, o problema fica bem claro quando abordarmos noções como
Cultura, Sociedade, Indivíduo, Identidade, Representação, Subjetividade etc. pois,
conforme o enfoque teórico que se utilize, essas noções poderão oferecer variações,
até antagônicas. Há, então, um obstáculo a ser superado na transferência de conceitos
de um campo disciplinar para outro, para que o trabalho interdisciplinar seja viável
e produtivo.
Conforme o objeto se apresenta amplo e complexo, como por exemplo o
comportamento humano, a rede de relações sociais etc., cria-se a necessidade de
comunicação entre diferentes formas de saber. A interdisciplinaridade surge como
opção positiva na produção de novos conhecimentos, mas trazendo como conseqüência
aspectos negativos como a sensação de perda de identidade das disciplinas envolvidas.
Na interdisciplinaridade, cada disciplina parte de um conjunto de conceitos,
noções e percepções específicos e diferentes que podem oferecer múltiplas explicações paralelas. Para que cada disciplina possa realmente interagir com as outras,
faz-se necessária uma permuta de códigos. Esse o primeiro passo para que as
trocas de impressões sobre os objetos isolados possam ser relacionados ou
contextualizados. Para evitar os riscos de uma fragmentação desordenada, é fundamental mantermo-nos atentos à necessidade de uma pluralidade de perspectivas e de uma contextualização mais ampla em relação ao objeto estudado.
Aliás, nesse aspecto, o estudo interdisciplinar apresenta uma aproximação impor-
29
tante com a abordagem relacional utilizada contemporaneamente pelas ciências
humanas e sociais, uma de nossas referências para o estudo do individualismo
como veremos posteriormente. Segundo Da Matta:
“Enfim, devo dizer que, visto do coração mesmo da experiência
antropológica, a interdisciplinaridade aparece como uma maneira de
reintroduzir a totalidade em visões particulares engendradas e estimuladas pela estrutura e organização do moderno processo de pesquisa.
Nesse sentido, a perspectiva e orientação pluridisciplinar cuidadosa e
bem pensadas podem ser um recurso apropriado (senão necessário)
para controlar nossa fascinação pelo individualismo e sua conseqüência para a ciência: a especialização galopaste.” (Da Mata, 1993, p. 53).
No exercício interdisciplinar, uma disciplina, ao utilizar os métodos e teorias de uma outra disciplina que lhe faz fronteira em um determinado aspecto, acaba
por ver esclarecidos problemas de seu próprio campo que, anteriormente, estavam
obscuros. Além disso, promove um diálogo sistemático e interessante para a ampliação da compreensão dos campos que interagem.
A tensão epistemológica resultante dessa aproximação é resultante da possibilidade de uma mesma questão estudada poder apresentar múltiplas interpretações, muitas vezes situadas em pólos diferentes e distantes, como a dicotomia natureza x cultura. O desafio está em reduzir essa tensão epistemológica, em processo que Amaral (1989) chama de angústia de viver a diversidade.
A solução para o impasse disciplinar, pode estar no movimento de dimensionar
abordagens de leitura conjunta dos objetos de estudo por duas ou mais disciplinas,
com níveis diferenciados de aproximação e/ou modificação dos pressupostos teóricos e metodológicos. Assim, os movimentos interdisciplinares e
transdisciplinares estabelecem novas formas de relacionamento entre disciplinas
que pretendem estudar um mesmo objeto complexo, com evidentes ganhos, de
30
parte a parte, na produção de novos conhecimentos, novas formas de compreensão. Esse movimento está diretamente relacionado à reformulação dos modelos
paradigmáticos empreendidos pela Epistemologia.
Neste ponto, parece-nos importante apresentar algumas das principais tendências de conceituação diferencial dos termos que temos apresentado:
Multidisciplinaridade,
Pluridisciplinaridade,
Interdisciplinaridade
e
Transdisciplinaridade.
Muitos autores têm desenvolvido estudos acerca das diversas formas novas
de composição e articulação dos campos teóricos, metodológicos e práticos dos
saberes em variadas situações que exigem essa interação como forma de efetivar
maior compreensão e atuação na solução dos desafios apresentados. Com isso,
alguns desses conceitos acabam se tornando alvo de discussões e de diferentes
abordagens gerando dúvidas na sua aplicação. Um dessas propostas de delimitação dos termos encontra-se no trabalho de Vasconcelos (1997) sobre a
desinstitucionalização e interdisciplinaridade na área da saúde mental no Brasil.
Quando reflete sobre os desafios que o campo da doença mental apresenta à
ciência, Vasconcelos defende a necessidade da ampliação do foco de abordagem
e a busca do rompimento das delimitações dos saberes tradicionais envolvidos na
área da saúde mental. Essa nova recomposição, para ele, sustenta-se em um
conjunto de rupturas e novas premissas e não apenas em um novo somatório ou
rearranjo simples dos antigos saberes compartimentalizados: “Na minha opinião,
não tenho dúvidas de que neste novo paradigma teremos de necessariamente
recolocar a questão da interdisciplinaridade, ou mais radicalmente, da
transdisciplinaridade.” (Vasconcelos, 1997, p. 23).
31
Vasconcelos apresenta nesta obra uma contribuição para os conceitos e níveis da
prática interdisciplinar. Como multidisciplinaridade ele chamará a gama de disciplinas propostas simultaneamente, mas sem fazer aparecer as relações existentes entre
elas, sendo um sistema de um só nível e de objetivos únicos e não havendo nenhuma
cooperação entre as disciplinas. Já a pluridisciplinaridade será a justaposição de
diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de
modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas. Nesse sistema, de um só nível e
de objetivos múltiplos, há cooperação, mas sem coordenação específica.
Para o termo interdisciplinaridade, Vasconcelos faz um desdobramento
em dois outros. interdisciplinaridade auxiliar quando parte da utilização de
contribuições de uma ou mais disciplinas para o domínio de um disciplina específica já existente, que se posiciona como receptora e coordenadora das demais. O
sistema apresenta dois níveis e a coordenação e objetivos são hegemonizados pela
disciplina encampadora. Como interdisciplinaridade, apenas, considera a
axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas, definida no nível hierarquicamente superior, introduzindo a noção de finalidade, tendendo (mas não necessariamente) para a criação de um campo de saber autônomo, sendo o sistema de dois
níveis e de objetivos múltiplos. Aqui, a coordenação procede do nível superior, com
tendência à horizontalização das relações de poder.
E, finalmente, como transdisciplinaridade entenderá a prática onde a coordenação envolve todas as disciplinas e interdisciplinas do campo, sobre a base de
uma axiomática geral compartilhada resultando na criação de um campo com
autonomia teórica, disciplinar ou operativas próprias. Esses sistemas se caracterizam por níveis e objetivos múltiplos, coordenação com vistas a uma finalidade comum
dos sistemas e uma tendência à horizontalização das relações de poder.
32
A apresentação desses conceitos oferece uma possibilidade de apreensão
pragmática eficaz no entendimento e aplicação das práticas interdisciplinares, porém não contempla a complexidade das interações possíveis com outras formas de
saber, fora dos limites do saber científico. Diversas visões, como a de Amaral (1992)
oferecem espaço para as reflexões e desdobramentos epistemológicos envolvidos
nesses movimentos interdisciplinares oferecendo-nos novas formas de compreensão.6
Para Amaral (1992), a impossibilidade das ciências estabelecerem a palavra
definitiva sobre a verdade, em uma tendência reducionista e excludente dos demais
pontos de vista, acabou por gerar uma passagem do discurso da verdade à eficácia
transformadora da tecnologia: “A Tecnologia é a resposta que o Ocidente encontrou para seus principais impasses” (Amaral, 1992, p.97). A tentativa reducionista
da realidade do real à dimensão de objeto do conhecimento acabou por afastar a
ciência desse real — complexo e múltiplo. A partir da apresentação de um certo
percurso do pensamento ocidental que passa pelo pensamento pré-socrático, sofístico,
metafísico e, posteriormente, resultando no pensamento científico, Amaral apresenta
a possibilidade de uma evolução desse pensamento para uma Genealogia do
Múltiplo, a Estratégia Transdisciplinar por excelência, principalmente no plano do
saber. Com essa abordagem, os conceitos sobre as relações entre disciplinas
constituem um diferencial importante para os desdobramentos do presente trabalho, principalmente no tocante à Transdisciplinaridade:
6
Para uma delimitação do que diferentes autores entendem por pluridisciplinaridade,
multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, remetemos aos números 108 e
113 da Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1992 e 1993,
dedicados à questão da Interdisciplinaridade, em especial aos artigos de FAURE, Guy O., AMARAL,
Márcio T., PORTELA, Eduardo e SOMERVILLE, Margareth.
33
Multidisciplinaridade: empreendimentos científicos em que diversos especialistas, sem abrirem mão da sua especificidade, concorrem para a descrição de
um mesmo objeto sob enfoques variados. Não criam novos objetos mas agregam
novos valores, enriquecem o objeto, sem que as ciências participantes saiam alteradas na sua estrutura, métodos e limites.
Interdisciplinaridade: experiências em que a colocação do objeto na fronteira de duas ou mais ciências as obriga a somarem esforços para, redefinindo o
objeto, criarem uma nova perspectiva científica.
Transdisciplinaridade: suas direções estratégicas são, por um lado, o reconhecimento da eficácia e utilidade das ciências e a crítica ao seu objetivismo e
reducionismo, à permanente ausência do sujeito sobre a qual se constróem; e por
outro lado, a ênfase emprestada à natureza possivelmente hiper-complexa do real,
de que os métodos simplificadores da ciência não seriam capazes de dar conta.
Como resultado destes movimentos, Amaral observa a crescente semelhança
entre o núcleo da ciência e as místicas orientais, aproximando (ou reaproximando!)
Ocidente e Oriente, constatação que será utilizada por nós pela consideração da
Psicologia Transpessoal que representa uma possibilidade dessa aproximação.
A abordagem de Amaral parece mais atraente para os objetivos de nosso
trabalho pois, a partir de uma visão da ciência, permitirá a utilização de outras
formas de saber e metodologias, no “diálogo” a que nos propomos sobre um tema
tão complexo quanto o da crise da sociedade contemporânea:
“(...) a ‘epistemologia da complexidade’ seria, ou será, uma tentativa de pensar cientificamente, para além dos limites das ciências. Para
34
além significa: na direção de algo mais vital do que a ciência ela mesma. Este algo é o real hiper-complexo. Na base dessa nova epistemologia
em gestação, está, portanto, uma pré-compreensão do real como múltiplo” (Amaral, opus cit., p. 105).
Um passo importante dado pelo lado da Academia no sentido de atravessar
as fronteiras disciplinares, foi o de reconhecer justamente essa complexidade dos
seus objetos de estudo. Cada disciplina isoladamente, poderia apresentar uma leitura
específica sobre determinado fenômeno ou objeto, utilizando um rigoroso trabalho
de análise que, quanto mais especializado, empobrecia, no entanto, sua apreensão
no contexto em que se pode observá-lo. A complexidade dos objetos de estudo e a
sua rede de implicações com outros objetos foi amplamente estuda por Latour (1994).
Para ele, quando os pensadores ou analistas em geral, recortam as questões de
estudo em pequenos compartimentos, desconsideram o que pode ser constatado
no dia-a-dia: que cada questão se relaciona com diversas outras que podem ter
base em diferentes disciplinas ou saberes. A esses complexos objetos de estudo
Latour (1994) chamou de híbridos. À forma de relação entre essas dimensões e
suas repercussões chamou de rede, numa noção mais flexível que a de sistemas,
mais histórica que a de estrutura e mais empírica que a de complexidade.
A dificuldade dos estudos dos híbridos, segundo Latour (1994), está na tendência a recortá-los em categorias, como natureza ou cultura:
“No entanto, estes trabalhos continuam sendo incompreensíveis
porque são recortados em três de acordo com as categorias usuais dos
críticos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao discurso.”
(Latour, 1994, p.9).
Os problemas de comunicação entre essas categorias vêm determinando uma
série de impasses e distanciamentos da realidade das coisas e dos objetivos do
conhecimento, podendo levar a uma situação paradoxal quanto às finalidades da
35
ciência. A possibilidade de se pensarem relações entre as categorias levou Latour
(1994) a defender a necessidade de compreender as redes ou tramas:
“(...) as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre os grandes feudos da crítica — não sendo nem objetivas,
nem sociais, nem efeitos de discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e
coletivas, e discursivas.” (Latour, opus cit., p.12).
Mesmo tendo como preocupação principal a avaliação dos movimentos da
pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade, o autor introduz uma reflexão importante para o nosso estudo. Deixemos o próprio Latour (1994) apresentar
sua concepção dos dois conjuntos de práticas que caracterizam a Modernidade:
“(...) O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, misturas de gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e
cultura. O segundo cria, por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos,
de outro. (...) O primeiro conjunto corresponde àquilo que chamei de
redes, o segundo ao que chamei de crítica.” (Latour, opus cit., p.16).
Latour defende a necessidade de se dividir a atenção, simultaneamente, para
o trabalho de “purificação” e de “hibridação”, oscilando entre esses dois pólos de
forma a manter suas distinções mas não desconsiderando as suas interconexões.
Seu interesse parece residir na compreensão entre os dois processos: a hibridação
— como um misto de natureza e cultura — e a purificação — uma separação total
entre natureza e cultura.
Esses pensamentos nos servem na medida que viabilizam uma nova forma
de entendimento dos objetos de estudo e dos seres em geral, em especial nas
ciências Humanas e Sociais, onde teremos grandes contribuições de uma crescen-
36
te abordagem relacional das categorias. Aqui talvez seja oportuno introduzir um
primeiro ponto para nossas reflexões: será que poderemos pensar essas relações
entre movimentos de hibridação e purificação ampliadas para outros saberes, fora
do paradigma tradicional?
3. 3 - A ABORDAGEM PSICOSSOCIOLÓGICA E A COMPLEXIDADE DOS PROBLEMAS HUMANOS E SOCIAIS
A mudança na produção do conhecimento científico promovida (a) pela abertura, no campo da Ciência, para questionamento e relativização dos paradigmas
científicos e (b) pelas tentativas de aproximação conceitual, metodológica e do conhecimento aplicado, através das abordagens inter e transdisciplinares, tem se
refletido em todas as áreas do saber humano. O exercício inter ou transdisciplinar
de produção de conhecimento, apesar de complexo, oferece proveitoso resultado
na ampliação da compreensão dos objetos de estudo qualquer que seja a
especificidade do referencial utilizado, demonstrando maior fecundidade que os
modelos tradicionais, isolados dentro de limites exclusivos das disciplinas. É claro
que o exercício de lidar com uma outra forma de produção científica pede uma
nova postura do pesquisador e do meio acadêmico envolvidos nesse processo.
Nas Ciências Humanas e Sociais, que nos interessam particularmente para os
objetivos desse trabalho, observamos uma tendência de ampliação na utilização de
modelos multidimensionais, onde o foco da atenção do pesquisador dirige-se para
as interdependências e interrelações dos conceitos de diferentes disciplinas podendo,
ou não, virem a se transformar em novas disciplinas.
Tal situação configura um desafio para a Psicossociologia cujo desenvolvimento e atual crescimento provêm, em grande parte, de uma certa incapacidade
37
tanto da Sociologia quanto da Psicologia, de apresentarem um conjunto de
conceituações ou argumentações teóricas satisfatórias para diversos e complexos
problemas observados na prática das relações sociais e individuais, do dia-a-dia.
Não que a elas — Psicologia e Sociologia — faltasse consistência ou estrutura, quer
conceitual, metodológica ou experimental. A grande ressalva que se pode fazer,
nesse sentido, é que, sozinhas, apresentam alto nível de distanciamento dos processos
interacionais que ocorrem entre seus objetos de estudo específicos. Aí parece residir
o campo privilegiado da Psicossociologia: a interrelação dos laços interpessoais,
as relações entre indivíduos e grupos sociais.
Enquanto a Psicologia privilegia as funções mentais de modo individual ou
nas suas repercussões coletivas e a Sociologia, separadamente, se preocupa com a
dinâmica das estruturas institucionais e das regulações grupais, a Psicossociologia
tem sua preocupação voltada para a descrição e a interpretação de uma determinada conduta, individual ou coletiva, em situação, isto é, onde a interação entre
os objetos pode ser observada (Maisonneuve, 1977).7
Esta orientação será nosso ponto de partida para procurar entender a crise
da sociedade contemporânea, já que com ela encontramos vários pontos de aproximação. Quando identificamos aspectos da crise como perdas de certezas, de
referenciais, de valores ético-morais e/ou religiosos estamos nos referindo
ao tipo de fenômeno que pode ser visto pela ótica estritamente individual, pelo
estudo da participação social ou também pela interação das duas, na situação
concreta em que é vivida, num claro exemplo de objeto híbrido. Alguns dos demais
7
Existem diferentes abordagens sobre o campo de observação e objeto de estudo da Psicossociologia.
Para um aprofundamento desse aspecto o leitor poderá recorrer à obra Psicossociologia — Análise
Social e Intervenção (LÉVY, André... [et al.] org., 1994) constante na bibliografia desse trabalho.
38
aspectos levantados na crise como o isolamento e a fragmentação, sugerem
uma criteriosa investigação dos processos de escolha e decisão, pois representam
condutas que podem ser avaliadas pelos seus processos individuais geradores ou
como conseqüência dos processos sociais mais amplos. Os estudos relacionais podem ser úteis nesse ponto da reflexão. A competitividade é outro aspecto que já
sinaliza a participação de componentes econômicos, sociais e individuais na sua
descrição e entendimento, justificando, para esse fim uma abordagem interdisciplinar.
A perda de sentido existencial e a angústia que eventualmente sobrevem a
ela, pode nos levar a uma avaliação eminentemente psicológica, por estar claramente identificada com um quadro psicopatológico clássico.
Entretanto, no enfoque que procuramos abordar aqui, essa conduta seria
reducionista no sentido negativo do termo, já que acarreta um empobrecimento da
questão, se não levar em conta os possíveis efeitos de uma cultura baseada em
padrões econômicos e sociais associados a um conjunto de valores específicos.
Como podemos ver, para desenvolvermos nossa proposta teremos que estar
atentos à característica da Psicossociologia como ligação funcional entre os campos de estudo da Psicologia, da Sociologia e da Antropologia. Assim sendo,
enfatizamos um constante exercício de concretude buscando os fenômenos extraídos da observação direta de situações da realidade social e individual, além de um
exercício de exaustividade, na medida em que procuramos refletir sob vários ângulos, perspectivas e enfoques, cada questão em estudo, alternando sistematicamente, nosso referencial como observadores, entre as disciplinas que podem oferecer
contribuições para a compreensão do problema.
Compar tilhamos da posição (Maisonneuve, 1977) que defende a
Psicossociologia como uma abordagem cujo objeto é específico, mas que não é
39
autônoma, já que parte de contribuições preliminares das ciências que a compõem. Reconhecemos, com isso, a necessidade de recorrer e utilizar conceitos psicológicos, sociológicos e antropológicos — sem que haja uma preocupação ou
intenção em dar primazia a qualquer uma dessas disciplinas — e também a um
enfoque mais específico dessa nova abordagem.
Coerentemente com a postura acima defendida, optamos por adotar,
prioritariamente, a denominação Abordagem Psicossociológica, para demonstrar a
orientação que seguimos no presente trabalho. Nossa opção permite, ainda, a
liberdade de acrescentarmos contribuições de outras disciplinas — como a Economia, por exemplo — e/ou outros saberes nessa reflexão sobre a crise da sociedade
contemporânea.
40
CAPÍTULO 4
UM RECORTE DENTRO DA ABORDAGEM
PSICOSSOCIOLÓGICA: O INDIVIDUALISMO
“O indivíduo é o maior inimigo do cidadão, sugeriu ele
[Tocqueville]. O ‘cidadão’ é uma pessoa que tende a buscar seu próprio
bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à ‘causa comum’, ao
‘bem comum’, à ‘boa sociedade ou à ‘sociedade justa’. Qual é o sentido
de ‘interesses comuns’ senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus
próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se
unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles
o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que
lhes pareça adequado separadamente, e não ajudarão.”
(ZYGMUNT BAUMAN)
41
Nessa altura do trabalho é importante poder retornar ao ponto de partida de
nossa contextualização e delinear as bases de nosso recorte na abordagem
psicossociológica. Como vimos, a crise que procuramos detalhar no início do trabalho contém elementos constitutivos que podem ser observados e estudados sob
diversas perspectivas disciplinares. Assinalamos, também, nossa intenção de buscar
saídas para esses impasses em um ambiente interdisciplinar, que parece oferecer
melhor visibilidade na compreensão dos problemas surgidos. Nas disciplinas que
podem participar de uma discussão sobre o entendimento da crise da sociedade
contemporânea, destaca-se a noção de indivíduo, presente de alguma forma no
escopo conceitual de cada uma delas. Essa noção apresenta uma característica
multifacetada em relação às disciplinas que, a seu modo, privilegiam um ou mais
dos seus possíveis aspectos: filosófico, psicológico, sociológico, antropológico etc.
Em função disso, deparamo-nos com uma série de conceitos de aproximação como
Pessoa, Sujeito, entre outros, que acabam por representar especificidades de cada
abordagem, desafiando o trabalho interdisciplinar. Para superar essa dificuldade
tivemos que proceder a uma escolha que se baseasse em alguns critérios específicos. Um deles seria o de possuir uma produção teórica ampla e capaz de oferecer
subsídios para nossas reflexões. Outro critério seria o de utilizar um conceito que
apresentasse um maior potencial de comunicação entre as disciplinas que tomamos
como base — a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia — e a abordagem
Psicossociológica.
Além disso, nossa formação acadêmica, primeiramente, no campo das Ciências Sociais — especificamente nas Ciências Econômicas — e posteriormente na
área da Psicologia, também teve papel decisivo na escolha da noção de indivíduo
e particularmente no recorte da abordagem psicossociológica do individualismo,
para a nossa argumentação. Na Psicologia, mesmo quando isso não é tão explícito
42
como na Psicanálise, por exemplo, onde todo o entendimento do indivíduo parte
de uma estrutura e dinâmica de funcionamento intrapsíquico, as bases conceituais
alicerçam-se em várias noções de indivíduo. Nas Ciências Econômicas, há também uma tendência importante em compreender muitos dos fenômenos e decisões
a partir de variáveis individuais como a propensão natural do indivíduo em
consumir, o conceito de utilidade que determina o valor que o indivíduo empresta
a determinado bem para consumo, as decisões de consumo e/ou poupança
vinculados a perfis de risco diferentes etc. Ainda nas abordagens eminentemente
sociológicas, nosso levantamento prévio sobre o individualismo demonstra uma
aproximação teórica importante para as questões identificadas na crise social que
destacamos: perdas, isolamento, auto-suficiência, autonomia etc.
Julgamos que, dentre as diversas possibilidades de abordagem
psicossociológica, pensar o homem e a crise social contemporânea sob o impacto
da ideologia individualista seria a proposta mais apropriada e coerente com
todo o material de reflexão que estávamos utilizando como base para nossas leituras.
Nessa dissertação, estaremos identificando as principais questões e pressupostos do individualismo, articulando suas principais características e conseqüências, sempre procurando estabelecer uma relação com a crise da sociedade contemporânea, seja pelas possibilidades de compreensão da crise, seja pelos impasses
diante dela. Desta forma julgamos poder trazer uma colaboração importante ao
ampliar nossas reflexões sobre os aspectos determinantes e os desdobramentos da
crise, realizando uma comparação com outras formas de saber que possam “dialogar”, principalmente no exercício transdisciplinar que nos propomos realizar.
Revendo a literatura sobre a temática do individualismo (Duarte, 1986;
Velho, 1987; Renaut, 1998; Tarnas, 2000), encontramos a contribuição de Louis
43
Dumont (1985) como uma das que influenciaram significativamente as reflexões
dos estudos interdisciplinares sobre a sociedade em crise que desejamos estudar. O
interesse de Dumont pelo tema do individualismo revela-se ao identificar a preponderância desse padrão na caracterização das sociedades modernas em contraposição
ao de sociedades tradicionais 8 , particularmente como resultado de suas pesquisas
de Antropologia Comparada sobre a sociedade hindu (Dumont, 1985). Nesses
estudos, realizados na década de 60, Dumont identifica uma diferença básica e
decisiva entre a sociedade hindu e as modernas: enquanto a Índia estava pautada
em uma valorização da sociedade, nas sociedades modernas o Indivíduo constituía o valor supremo. Distingue dois termos que definem, genericamente essas características, empregando o termo holismo para designar o modelo das estruturas
sociais que privilegiam a sociedade — sociedades tradicionais — e o individualismo para as que destacam o indivíduo como valor principal — sociedades
modernas.
Para esse autor, o individualismo, como foi concebido e estruturado na sociedade moderna, deve ser entendido na perspectiva de uma ideologia individualista, designando pelo termo Ideologia “um sistema de idéias e valores que tem curso
num dado meio social” (Dumont, 1985, p.20).
Em sua obra, Dumont (1985) destaca a diferença da participação do indivíduo conforme a característica da sociedade. Na cultura hindu, por exemplo, a idéia
de indivíduo estará subordinada à idéia de todo e à de hierarquia, vinculando
vários fenômenos sociais à tradição cultural herdada, enquanto nas sociedades mo-
8
Estaremos utilizando o termo sociedade tradicional na concepção de Dumont, como a sociedade
que valoriza a totalidade social, onde a hierarquia é dada naturalmente e que negligencia ou
subordina o indivíduo humano.
44
dernas a afirmação do indivíduo como valor, passa pela conquista da liberdade
de escolha, pela busca da autonomia e igualdade.
É importante observar, conforme assinala Duarte (1986), que nem todos os
autores defendem essa mesma visão — como no pensamento de Durkheim, onde
há uma preponderância da totalidade social sobre a parte individual, posição que
evidencia e reforça o dualismo indivíduo / sociedade. Gilberto Velho (1987)
apresenta críticas a alguns pontos da formulação de Louis Dumont, considerando o
alto nível de abstração e generalidade com que ele trata da relação dicotômica
entre indivíduo e hierarquia, que tende a gerar problemas quando se pretende uma
análise mais focada no mundo concreto, como veremos mais adiante. Apesar das
críticas e ressalvas que podem ser levantadas, como as exemplificadas acima, parece
haver uma tendência a se caracterizar a sociedade moderna ocidental como marcada
pelo impacto de uma ideologia individualista.
Ao longo do presente trabalho, tomaremos a noção de individualismo para
nos referirmos a um valor fundamental da sociedade moderna, a partir de uma
afirmação do indivíduo enquanto princípio e enquanto valor, dentro de um dispositivo cultural, intelectual e filosófico específico (Renaut, 1998). Como podemos
perceber, o entendimento da crise social que delineamos anteriormente, se considerada à luz do impacto da ideologia individualista, passa por uma compreensão
de como o pensamento científico vem entendendo o indivíduo, bem como pela
contextualização histórica desse termo até resultar na concepção atual do individualismo. Desse modo, julgamos ser possível pensar as prováveis propostas de
compreensão para a crise social e os fenômenos a ela associados.
45
4. 1 - INDIVÍDUO COMO BASE NA IDEOLOGIA INDIVIDUALISTA
O conceito de indivíduo parece evoluir de uma tendência eminentemente
concreta para concepções mais elaboradas e abstratas. Além disso, como já observamos anteriormente, a pluralidade de disciplinas ou saberes diferentes sobre o
homem aumenta as dificuldades dessa compreensão. Nosso interesse recai sobre
aquelas noções que estudam a constituição da individualidade humana de forma
ampla, incluindo as tentativas de compreensão do indivíduo na relação que ele
estabelece, desde o seu nascimento, com o grupo social ao qual pertence, em
processo considerado como individuação 9 . Citando Roger Bastide, Duarte (1986)
distingue duas formas de individuação. A primeira seria a individuação pela matéria onde o corpo se apresentaria como o limitador da atuação do indivíduo (matéria
como quantidade) podendo ser identificada com a visão cristã ocidental. A outra,
ele denomina de individualização pela forma, que se caracteriza pela
individualização do homem no pensamento divino enquanto idéia. Para Bastide:
“A concepção ocidental define o indivíduo ao mesmo tempo pela
sua unidade intrínseca; ele é indivisum in se; e pela sua autonomia; ele
se dá por oposição; ele é ab alio distinctum.” (Bastide apud Duarte,
1986, p. 38).
Além das características de unidade e autonomia, destacadas na citação acima, iremos considerar no processo de individuação também o aspecto da interação
do homem com seu meio social ao longo da vida. Na relação Indivíduo / Sociedade
não podemos descartar a influência do social no processo de individuação, já que
cada criança depende do seu grupo social com toda a sua especificidade para se
tornar indivíduo. Ao nascer, ela parte de uma determinada posição na rede de
9
Esse processo, às vezes também chamado de individualização, aparece na obra de ELIAS (1994,
1998) e de forma sucinta refere-se à compreensão do perpétuo crescimento dos indivíduos dentro
da sociedade, sua historicidade e sua relação permanente com essa sociedade.
46
relações que é única percorrendo uma história singular até chegar à morte, evidenciando as diferenças individuais entre os homens. Logo, a forma individual adulta
na sociedade ocidental passa pela constituição individual da criança, somada à
natureza das relações entre a criança e as outras pessoas e ainda, será função da
estrutura da sociedade em que a criança nasce e que lhe pré-existia (Elias, 1994).
A noção de indivíduo e a necessidade de definir suas especificidades remontam à antigüidade da Filosofia, de onde podemos destacar a visão de Cícero
— onde o indivíduo (inidividuum) é considerado como o corpúsculo indivisível
que representa o homem — ou a partilhada por Demócrito e Epicuro — como
sendo o “átomo” ou princípio dos corpos visíveis (Renaut, 1998). Além dessas, o
Mito da Criação (Elias, 1994) que parte da origem da espécie humana de um único
homem, também está presente na construção rudimentar da noção de indivíduo.
Para o entendimento do contexto histórico da evolução do individualismo,
a seguir, é de fundamental importância apresentarmos outra forma de caracterização de indivíduo. Nos referimos à conceituação de Dumont que representa uma
radical e articulada noção relativizada de indivíduo (Duarte, 1986). Dumont (1985)
distingue dois sentidos que o termo indivíduo pode assumir na abordagem de
uma ideologia do individualismo:
“(...) Isso leva a distinguir dois sentidos da palavra ‘indivíduo’:
(1) o sujeito empírico da palavra, do pensamento, da vontade,
amostra indivisível da espécie humana, tal qual o observador encontra
em todas as sociedades;
(2) o ser moral, independente, autônomo e, assim, (essencialmente), não social, tal como se encontra, sobretudo, em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade;” (Dumont, 1985, p.75).
47
Identificando sua concepção de indivíduo moderno e o conseqüente movimento do individualismo com o segundo sentido dado, o autor procura definir
as etapas da constituição desse indivíduo. Segue-se um breve resumo dessa
trajetória histórica a partir dos referenciais de Dumont, mas acrescida de algumas
ressalvas e críticas, além de contribuições que se propõem a ampliar o entendimento desse percurso.
4. 2 - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO INDIVIDUALISMO
Para chegar à noção de indivíduo, Dumont (1985) parte de suas observações da sociedade hindu visando destacar o percurso de um indivíduo-fora-domundo em direção a um indivíduo-no-mundo, sendo o primeiro aquele que bastase a si mesmo, só se preocupando consigo mesmo e vivendo fora do mundo social,
enquanto o segundo é o indivíduo mundano, aquele que vive no mundo social.
A partir dessa distinção entre o indivíduo-fora-do-mundo e indivíduo-nomundo, Dumont (1985) explicita sua hipótese de que o individualismo moderno
teve a religião cristã como “fermento essencial” na sua formulação e evolução até o
modelo que nos é familiar. Nessa perspectiva, considera que o individualismo
moderno está presente entre os primeiros cristãos e na sua relação com o mundo
que os cercava. O cristão primitivo seria uma espécie de indivíduo-em-relaçãocom-Deus, em uma aproximação ao indivíduo-fora-do-mundo das sociedades tradicionais, holistas, onde a hierarquia e a totalidade é o fator preponderante. Nessa
forma de individualismo-em-relação-com-Deus, o indivíduo já alcança um aspecto de alma individual — que recebe o valor eterno de ser filho de Deus — e outro de
fraternidade humana — que se funda nessa relação com Deus, tornando os homens
“irmãos”, iguais. Naquele momento histórico, parece que a valorização infinita do
indivíduo representa uma contrapartida de desvalorização do mundo tal como
48
existe. Isso faz com que haja uma emancipação do indivíduo por uma
transcendência pessoal, mas que, enquanto indivíduo-fora-do-mundo, comunidade mundana que caminha na terra mas com seu coração no céu, se sujeite às
necessidades, deveres e obediências do mundo. Entretanto, com a maior participação da Igreja na formas de poder temporal político — reinar, direta ou
indiretamente, no mundo — cria-se um impasse que terá como resultado a inserção desse indivíduo no mundo.
Sob o ponto de vista de Tarnas (2000), podemos ressaltar que o perfil dessa
inserção do indivíduo no mundo, vai demandar um grande período histórico onde
prevalece a autoridade divina da Igreja, principalmente na Idade Média, numa
aparente regressão da condição de participação e autonomia encontrada nos cidadãos gregos da antigüidade:
“ A afirmação da individualidade humana — tão evidente, por
exemplo, na Atenas de Péricles — parecia agora amplamente negada
em benefício de uma pia aceitação da vontade de Deus e, em termos
mais práticos, submissão à autoridade moral, intelectual e espiritual da
Igreja.” (Tarnas, 2000, p. 188).
Ao longo desse período até o século XIV, a hierarquização dos pólos espiritual e político vai se relativizando a ponto de admitir-se, com Tomás de Aquino e
Guilherme de Occam, uma mudança na concepção de legislação que substitui a
Lei da Natureza por outra onde a lei torna-se uma expressão do poder e da vontade do legislador, reconhecendo, assim, socialmente o poder do indivíduo, no sentido moderno do termo. Mesmo sem tratar especificamente de política, Occam
acaba antecipando noções de soberania do povo e contrato político, marcas características do individualismo atual.
49
Ainda dentro do campo religioso, mas com repercussões decisivas para a
construção da ideologia individualista, a Reforma Protestante acaba de vez com o
que restava da supremacia da Igreja transformando a sociedade global em Estado
individual e a religião passando a “habitar” na consciência de cada cristão individual. Nas palavras de Dumont:
“Com Calvino, a dicotomia hierárquica que caracterizava o nosso
campo de estudo chega ao fim: o elemento mundano antagônico, ao
qual o individualismo devia até então reservar um lugar, desaparece
inteiramente da teocracia calvinista. O campo está completamente unificado. O indivíduo está agora no mundo, e o valor individualista reina
sem restrições nem limitações. Temos diante de nós o indivíduo-nomundo.” (Dumont, 1985, p.63).
Na verdade, a Reforma inaugura o emergente espírito autodeterminante rebelde, que busca a independência intelectual e espiritual em uma capacidade de
crítica que não se submeterá tão facilmente a qualquer forma de dominação. A
Reforma representa esse caráter “revolucionário” na cultura ocidental, não só em
termos sociais e políticos mas, principalmente, na afirmação de uma consciência
individual auto-suficiente muito próxima à de nossos dias.
Antes mesmo da Reforma, o período do Renascimento havia trazido um
caráter inovador ao pensamento humano. O desenvolvimento das artes e da ciência, com ênfase na Matemática e Astronomia, foi acompanhado por inúmeras convulsões sociais, como a peste negra, a Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e
França, ações de piratas, bandidos e mercenários. As invenções técnicas desse período
— como o relógio mecânico, a bússola magnética, a pólvora e a imprensa — tiveram
grande influência modernizadora, favorecendo também o avanço da Ciência como
50
um todo. A descoberta de novos continentes permitiu o contato com diversas formas de cultura, religiões e modos de vida, refletindo-se na consciência da população européia sob a forma de um novo espírito de relativismo que amplia os horizontes geográfico, mental, social, econômico e político ocidentais.
Paralelamente, a estrutura das cidades-estados italianas como Florença, Milão, Veneza, dentre outras, favoreceu o florescimento de uma independência da
autoridade externa, uma vigorosa estrutura comercial e cultural, formando um cenário
político propício ao desenvolvimento de um novo espírito individualista audacioso
e criativo. Como conseqüência natural, a vida do Estado vai se transformando de
uma estrutura herdada de poder e de leis impostas pela tradição para uma participação individual cada vez maior.
A visão de indivíduo considerada nesse trabalho e que vem caracterizando o
pensamento científico ocidental contemporâneo tem um marco fundamental entre
os séculos XV e XVI, culminando, como já vimos, com o surgimento de um ser
humano cujas principais características eram a autonomia e a consciência de si
mesmo. Esse período marca não só a queda da hegemonia da Igreja Medieval e
também das antigas autoridades que prevaleceram até a eclosão de um pensamento científico rudimentar — mas que determina a substituição do dogmatismo
hierárquico — revelado por uma preponderância da razão, do empirismo, da realidade concreta, palpável e mensurável, através de fatos verificáveis e formulações
de teorias comprováveis — a Revolução da Ciência.
O desenvolvimento da Ciência a partir desse período, inaugura uma cultura
moderna que modifica a visão de mundo e de homem. Em oposição à visão estática medieval, e uma vez analisada e comprovada a dinâmica dos movimentos de
51
rotação da terra sobre seu próprio eixo e translação sobre uma órbita não circular,
esta perde o status de centro do universo para se transformar em um planeta
inserido em um sistema heliocêntrico maior. Junto com a visão de Universo também a visão de Homem e Sociedade irá sofrer profundas transformações:
“Estava aberto o caminho para a visualização e o estabelecimento de uma nova sociedade, baseada em princípios claros de racionalidade
e liberdade individuais. (...) as antiquadas estruturas da sociedade também poderiam mudar — o poder monárquico absolutista, o privilégio
aristocrático, a censura do clero, leis arbitrárias e opressoras, economias
ineficazes — para serem substituídas por novas formas de governo baseados em direitos individuais racionalmente definíveis e contratos sociais mutuamente benéficos, e não em alguma suposta sanção divina
ou em pressupostos tradicionais herdados.” (Tarnas, 2000, p. 306).
A substituição das antigas formas de governo por outras baseadas na afirmação dos direitos individuais, levou à discussão do estabelecimento de tipos de contratos sociais e políticos que respaldassem estes novos modelos de organização dos
indivíduos. O estabelecimento de uma “sociedade ou Estado ideal” a partir do
isolamento do indivíduo passa a ser o problema principal da teoria do direito natural convergindo para a idéia de “contratos”:
“O primeiro, ou contrato ‘social’, introduzia a relação caracterizada pela igualdade ou compagnonnage (sociedade cooperativa). O segundo, ou contrato político, introduzia a sujeição a um governante ou
governo. (...) O contrato ‘social’ é o contrato de associação: supõe-se
que se ingressa na sociedade como numa associação voluntária qualquer.” (Dumont, 1985, p. 91).
52
Dumont, citando Rousseau, observa que o desafio passa a ser desenvolver
uma “fórmula” capaz de resolver os impasses criados com a afirmação do indivíduo como valor principal da sociedade, ou seja, encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado, “e pela qual um,
ao unir-se a todos, só obedeça, entretanto a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes” (Rousseaus, apud Dumont, 1985, p. 104).
No campo político, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
adotada pela Assembléia Constituinte francesa (1789) marca o triunfo do Indivíduo e será a base para a sociedade ocidental:
“Art. 1o. — Os Homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos. As distinções sociais somente podem fundar-se na utilidade
comum.
Art. 2o. — A finalidade de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos
são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.” (Dumont, 1985, p. 111).
O principal elemento desse movimento será o estabelecimento de um princípio de Liberdade de Consciência, em torno do qual se desenvolverão e se integrarão outras formas de Liberdade e de direitos, oferecendo uma composição de características do individualismo ocidental.
Nesse ponto, em que já temos o tema contextualizado historicamente, podemos explicitar alguns dos principais pressupostos que compõem a noção de individualismo moderno procurando identificar neles elos de ligação para a compreensão da crise social contemporânea.
53
4. 3 - PRESSUPOSTOS DO INDIVIDUALISMO E A CRISE
DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: CONTRIBUIÇÕES E
LACUNAS
A presente seção procura descrever os principais pressupostos e características
do Individualismo contemporâneo. De fato, a reflexão aprofundada sobre esses pressupostos e suas relações parece ser vital para a proposta de entendimento da crise da
sociedade contemporânea sob a ótica do impacto da ideologia individualista.
Em resumo, podemos apontar alguns dos principais desdobramentos da tendência individualista que veio se estruturando ao longo dessa série histórica de
eventos interdependentes relacionados na seção anterior:
1) Individualismo como movimento da modernidade de acordo com uma
dinâmica de emancipação do indivíduo em relação ao peso das tradições e das
hierarquias consideradas naturais;
2) Individualismo como mudança de paradigma interpretativo, substituindo a lógica de alienação pela lógica de emancipação individual; e
3) Individualismo como compreensão da modernidade que consiste em
opor às sociedades tradicionais aquelas em que o indivíduo só aceita estar
mais submetido a si próprio.
A primeira reflexão que precisamos desenvolver é sobre a relação básica
entre Indivíduo e Sociedade. Essa discussão tem ocupado, ao longo do tempo,
grande parte dos esforços do pensamento nas ciências sociais numa tentativa de se
estabelecer a origem dos processos e fenômenos sociais e individuais. Por um lado,
alguns pensadores têm se preocupado exclusivamente com o pólo indivíduo como
54
base desses fenômenos enquanto outro grupo espera encontrar na origem da formação da sociedade a base de seu entendimento. Segundo Norbert Elias (1994),
existem dois grupos de hábitos mentais arraigados ou idéias para a explicação das
estruturas e leis das relações entre indivíduos e sociedade:
1- sociedade como Organismo Coletivo, autônomo, supra-individual, que
existe antes e independente do indivíduo;
2- indivíduo cuja Natureza e Consciência explicam os fenômenos, sendo a
relação entre os indivíduos conseqüência do Indivíduo que existe antes e independente da sociedade.
O problema parece estar relacionado à dificuldade de se estudarem objetos
complexos ou híbridos, como os sociais e individuais, a partir de uma visão polarizada como se fossem substâncias isoladas, distanciando as conclusões da vivência
cotidiana em que se manifestam. As posições que consideram prioritariamente um
dos pólos acabam por utilizar uma concepção estática, estabelecendo um muro
intransponível entre um ser humano e todos os demais, entre os mundos externo e
interno. Para conseguir lidar com a complexidade desses fenômenos, uma outra
tendência de pensamento vem sendo observada e pode ser bem caracterizada a
partir de uma questão fundamental proposta por Elias (1994):
“Como é possível — essa passa a ser a pergunta — que a existência simultânea de muitas pessoas, sua vida em comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas relações mútuas dêem origem a algo que
nenhum dos indivíduos, considerados isoladamente, tencionou ou promoveu, algo de que ele faz parte, querendo ou não, uma estrutura de
indivíduos interdependentes, uma sociedade?”(Elias, 1994, p. 19).
55
Essa nova tendência vai enfatizar as relações entre os indivíduos dando
origem aos modelos que chamaremos de relacionais, tratando essas relações
como algo singular, uma visão mais dinâmica e próxima da vivência cotidiana, um
entrelaçamento incessante e irredutível de relações e funções entre indivíduos. O
rompimento da alternativa “ou indivíduo ou sociedade” para uma que considere as funções e as redes de relações existentes parece oferecer melhor compreensão da relação indivíduos / sociedade.
Um dos principais desdobramentos desses estudos é a evidência de como a
formação individual de cada pessoa depende da evolução do padrão social e da
estrutura das relações humanas em que está inserida. Em seus estudos sobre o
Processo Civilizador, Elias (1994) destaca como o processo de individualização
decorre, não de uma mudança em pessoas isoladas ou em um grupo significativo
de pessoas talentosas, mas sim de eventos sociais que desarticularam velhos grupos, ou seja, foram conseqüência de uma reestruturação específica das relações
humanas. O sociólogo francês Pierre Bourdieu também apresenta uma concepção
das práticas sociais pelos agentes sociais a partir de suas posições de classe relativas
no espaço social e do habitus de cada indivíduo, que também é influenciado pela
posição social a partir do qual se constrói (Preuss, 1995). Segundo Bourdieu, o
indivíduo constrói a sua realidade de forma dupla — objetiva e subjetivamente —
ou seja, enquanto estrutura o campo social em que está inserido, também é
estruturado por esse mesmo campo e suas características.
Partindo desse ponto de vista, podemos começar a identificar alguns problemas que a ideologia individualista oferece ao estudo e compreensão da crise da
sociedade contemporânea. Se, como vimos, a ideologia individualista tem na noção de indivíduo emancipado, livre e igual ao seu semelhante, seu valor primordial, nos deparamos com uma contradição ao considerarmos as restrições que o
56
campo social em que o indivíduo nasce impõe às possibilidades futuras de mobilidade social. É compreensível que se verifique um conflito diante da valorização
que a sociedade de um modo geral dá a Liberdade e Igualdade, por exemplo, e a
impotência da maioria dos indivíduos em obter quantidades significativas desses
“valores” face à restrição que o seu campo de possibilidades apresenta. O aspecto
de mudança social também é abordado por Bourdieu (1993) como resultado das
tensões nas relações humanas em decorrência da posse diferenciada de capitais
(econômicos, culturais etc.) que possuem valores específicos em cada cultura. O
uso desses capitais e as estratégias de manutenção e/ou ampliação por grupos de
pessoas poderá definir novas formas de hierarquia, como veremos mais à frente.
Os estudos relacionais também oferecem outro importante ponto de reflexão
quando apontam para as diferenças originadas dos campos sociais em que os
indivíduos surgem ou estão inseridos. A apropriação de um código lingüístico e
simbólico por uma determinada classe ou grupo social tende a dificultar a compreensão de experiências ou fenômenos sociais que ocorram fora desse seu universo
simbólico. Daí a grande dificuldade dos profissionais da área de saúde mental e
social em lidarem com indivíduos de classes e subculturas diferentes da sua, já que
o seu campo de conhecimento, que se pretende universal, está comprometido
culturalmente. Segundo Velho (1987):
“(...) Suas referências, seus padrões de normalidade, sua avaliação de trajetórias e bem-estar pessoal estão inseridos em uma visão de
mundo comprometida com certas idéias de eficiência, produtividade,
associadas ao que se denomina individualismo burguês, por mais problemático que possa estar este rótulo. Está ligado a um triunfalismo
cientificista com forte sabor evolucionista. (...) Mesmo quando pretendem estar fazendo uma psicologia social ou revelam preocupações com
fatores culturais, lidam quase sempre com essas dimensões como fatores residuais ou, no máximo, complementares.” (Velho, 1987, p. 30).
57
Em uma sociedade eminentemente individualista, parece que o grande desafio da ciência para uma compreensão e solução da crise contemporânea, pode ser
pensado a partir da proposta de Elias (1994), sobre a possibilidade de se criar uma
ordem social que permita o equilíbrio nas necessidades e inclinações pessoais dos
indivíduos mas que, ao mesmo tempo, leve o indivíduo a cooperar na manutenção
e eficiência do todo social. Dumont (1985) aponta para o mesmo problema ao
comentar a contribuição de Rousseau e seu Contrato Social que tentou equacionar
“ ao mesmo tempo, o problema do homem moderno, convertido em indivíduo
político mas permanecendo, como seus congêneres, um ser social. Um problema
que não nos abandonou.” ( Dumont, 1985, p.109).
Depois do aspecto Indivíduo / Sociedade, outro que deve ser analisado é o
da relação entre Individualismo e Hierarquia. A obra de Dumont (1985) parte
da caracterização da sociedade moderna com expressões como “individualismo”,
“atomismo” e “secularismo” em oposição às sociedades de tipo tradicional com
expressões como “holismo”, “hierarquizadas”, “totalidade”. Dumont (1985), como
vimos, parte de um processo histórico em que o indivíduo veio se emancipando
das diversas formas de hierarquias e tradições que impunham e restringiam suas
possibilidades de vida. Com as conquistas das liberdades políticas, do direito e da
liberdade de consciência, inaugura-se uma nova era de compreensão do indivíduo
emancipado, livre e igual. Então, um dos principais pressupostos do individualismo
ocidental está na sua oposição às estruturas hierárquicas naturais:
“ Por outras palavras, a partir do momento em que não mais o grupo mas o
indivíduo é concebido como o ser real, a hierarquia desaparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um agente de governo.” (Dumont, 1985, p. 92).
58
Para compreender o processo do individualismo moderno, Dumont (1985)
desenvolve uma teoria de hierarquia que tenta dar conta dos processos observados na sociedade contemporânea, mas que enfrenta algumas críticas (Duarte, 1986;
Velho, 1987) quando se procede à análise da configuração ou dinâmica individualista na concretude das relações sociais.
Para Dumont (1985), o aspecto principal no tocante à hierarquia está na compreensão da interação entre os seus níveis constitutivos. A teoria dumontiana de
hierarquia baseia-se em uma oposição hierárquica em que há uma relação entre
conjunto e elemento, onde o elemento faz parte do todo mas é englobado pelo seu
contrário. Outro aspecto da teoria da hierarquia de Dumont está na
bidimensionalidade mínima, ou seja, toda hierarquia supõe a distinção de dois níveis,
sendo um superior (unidade) e outro inferior (complementar). O terceiro aspecto
resulta dos dois anteriores. Dumont defende que a composição dos níveis hierárquicos
e o englobamento do contrário só tem sentido se for considerado ocorrendo dentro
de uma totalidade: “O todo se funda na coexistência hierárquica e necessária dos
dois opostos.” (Duarte, 1986, p. 41). O quarto aspecto da teoria está na possibilidade
de inversões hierárquicas entre os níveis de tal forma que o que é superior em um
nível superior pode ser inferior em um nível inferior, caracterizando uma desigualdade
entre os níveis operativos que obedecem a uma distribuição hierárquica no todo
social. O último aspecto relaciona os conceitos de situação e de valor. Por situação ele
vai entender a posição relativa em que o elemento se encontra na totalidade e que se faz
operar em função do valor que possui. Por valor:
“(...) [Valor é] num sentido mais abstrato, justamente o que faz a diferença
numa relação hierárquica, aquilo em nome de que um elemento ao mesmo tempo
engloba e se opõe a seu contrário.” Duarte, opus cit., p. 42).
59
Apesar da consistência do trabalho de Dumont, Duarte (1986) e Velho (1987)
apontam para algumas contradições que podem ser consideradas críticas ao seu
trabalho. O que pretendemos observar é a contradição que há entre as visões de
individualismo em oposição à hierarquia — em Dumont (1985) — e a visão que
considera a possibilidade de coexistirem uma ideologia individualista (consciente)
com uma hierarquizada (Duarte, 1986) ou processos de individuação concomitantes
a dimensões e instâncias desindividualizadoras (Velho, 1987).
A principal crítica de Duarte (1986) à teoria da hierarquia de Dumont, está na
dificuldade encontrada na ambigüidade em relação às oposições binárias cujo encadeamento não parece poder ser linear. A tentativa de linearização desses níveis
acaba por afastar o modelo da vivência cotidiana. Outra dificuldade apontada por
Duarte (1986) está na contradição entre ideologia e hierarquia, pois Dumont (1985)
considera que as sociedades modernas associam ideologia ao individualismo, como
idéia básica, principal, predominante e consciente enquanto a hierarquia seria um
resíduo, o lado não consciente da ideologia. Porém, ao longo da sua obra, Dumont
(1985) vai considerar os elementos básicos da ideologia como implícitos, talvez nãoconscientes, estabelecendo uma contradição decisiva de conceitos.
A crítica de Velho (1987) repousa na observação de que o processo de
individualização que irá resultar na ideologia individualista também contém algumas características das sociedades totalizadas ou hierarquizadas. Para ele, mesmo
nas culturas mais totalizadas ou hierarquizadas há a possibilidade de individualização,
assim como pode ser identificado o contrário:
“Por outro lado, também nas modernas sociedades industriais
individualistas encontram-se dimensões e instâncias desindividualizadoras. Sem contar a religião que permanece como possibilidade
para amplas camadas sociais, embora tenha perdido sua dominância
60
em relação à Idade Média, há outras alternativas de desindividualização
através da carreira, da participação em certas instituições, da própria
família.” (Velho, 1987, p. 25).
Podemos relacionar essas críticas à compreensão da crise da sociedade contemporânea. Se o individualismo, enquanto ideologia, está pautado nos ideais de
liberdade e de igualdade dos agentes sociais, resultando em um crescente processo
de emancipação do indivíduo, esse processo não se dá fora de normas e padrões,
que acabam por influir decisivamente na liberdade individual. O conflito está estabelecido e pode ser gerador de alguns dos aspectos da crise, como a angústia existencial, pois os indivíduos são motivados a uma expectativa ilusória de liberdade e
igualdade que não poderá ser encontrada em função dos limites impostos pelas
condições sociais. Essa passa a ser uma questão fundamental na sociedade moderna: o conflito entre o processo de individualização, que pressupõe a capacidade de
escolher e o processo de desindividualização verificado na sociedade através de
uma rigidez social, do processo de violência simbólica etc. Para se romperem as
barreiras das fronteiras simbólicas de um determinado universo cultural será preciso
o enfrentamento, a tensão entre os grupos que conquistaram um monopólio
hereditário de bens e valores sociais, seja para sobreviverem seja para protegerem
ou efetivarem seus projetos sociais. Bourdieu (1993) estudou o fenômeno denominando-o de Violência Simbólica.
Como podemos observar, a monopolização de qualquer bem valorizado socialmente determina uma estrutura hierárquica que tende a contrariar alguns dos
pressupostos do individualismo. Na nossa sociedade, buscamos uma liberdade de
escolha e um sentido de igualdade que está comprometido pela diferença de oportunidades e de posses de capitais, que procuram preservar um certo tipo de hierarquia. Segundo Velho (1987) esse impasse é estabelecido na medida em que o próprio
indivíduo procura fazer parte de certos grupos ou se apropriar de códigos que o
61
diferenciem na estrutura social, privilegiando a hierarquia por um lado e por outro
as conquistas individuais. Nos parece que Dumont (1985) fala da transição da
hierarquia para o individualismo privilegiando o aspecto da liberdade de escolha
política em oposição à sujeição a uma hierarquia naturalmente dada pelo nascimento. Nesse sentido, realmente a sociedade ocidental parece ter caminhado para
uma maior democratização da autonomia política. Entretanto, em outros aspectos,
a sociedade contemporânea acabou por promover uma divisão de trabalho que
diferencia, como diz Lash (1986) por exemplo, o indivíduo que planeja o trabalho
(trabalho cerebral) e os que executam (trabalho manual), gerando uma elite gerencial
que detém o poder sobre comunidades inteiras sem a participação dos trabalhadores
que só executam. O próprio sistema escolar acaba sendo direcionado para
intermediar e preparar para a inclusão no sistema, socializando a população para as
exigências da vida pautada no modo de produção industrial. Parece, então, que a
estrutura hierárquica mudou de característica estando agora vinculada à posse de
bens econômicos, culturais, da inteligência pessoal, dentre outros que serão
abordados posteriormente. É possível que esse impasse esteja sendo vivenciado
pelo indivíduo em geral e seja um dos responsáveis por um estado de angústia
existencial que pressiona para uma reestruturação dos valores que orientam
indiretamente a sociedade contemporânea.
Vamos procurar estudar, neste ponto, a configuração de valores do Individualismo, como Duarte (1986) resume bem, apoiada numa noção de indivíduo
autônomo e independente, com um compromisso genético com os valores da liberdade (opostos a todos os determinismos universalmente definidos pela cultura) e
da igualdade (oposta a todas as demarcações diferenciais de ‘valor’ intrínsecas à
hierarquia). Duarte aborda quatro noções recorrentes nas obras que tratam do individualismo: autonomia, independência, liberdade e igualdade.
62
As noções de autonomia, independência e liberdade do indivíduo estão associadas à ideologia individualista e se confundem sendo muitas vezes utilizadas como sinônimos 10 . Segundo Renaut (1998), na era democrática do mundo
atual, o indivíduo se afirma enquanto princípio “na medida em que, na lógica da
liberdade, apenas o homem pode ser por si mesmo a fonte de suas normas e leis,
fazendo com que, contra a heteronomia da tradição (...) se filie ao regime da
autonomia.”(Renaut, 1998, p. 30). Esse componente do individualismo leva a um
traço importante nas sociedades modernas: contínua dissolução das referências
oriundas do passado e ‘transmitidas’ de geração em geração em função do projeto
que anima o indivíduo moderno a apropriar-se das normas em vez de recebê-las.
Foi a partir do humanismo que esse pressuposto do individualismo se consolidou, pois o homem passa a não aceitar mais receber normas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, pretendendo fundá-las a partir da sua razão e de sua
vontade. Essa tendência do pensamento humano irá resultar em uma evolução dos
modelos de contratos sociais em que a questão central vai ser sempre a tentativa
de solução entre a associação e a subordinação dos indivíduos.
Para Dumont (1985), a afirmação do direito de escolha e a liberdade de consciência são decisivos para as características da sociedade contemporânea:
“A partir do direito de resistir à perseguição de um tirano, o qual
se fundamentava na idéia de um contrato entre governante e governados, o desenvolvimento levaria à afirmação do direito do indivíduo à
10
Liberdade: Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação; poder de
agir no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites
impostos por normas definidas.
Autonomia: Faculdade de se governar por si mesmo; liberdade ou independência moral ou intelectual; propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta.
Independência: caráter de quem rejeita qualquer sujeição; estado ou condição de quem ou do
que tem liberdade ou autonomia. Novo Dicionário Aurélio.
63
liberdade de consciência. Assim, a liberdade de consciência constitui o
primeiro, cronologicamente, de todos os aspectos da liberdade política
e a raiz de todos os demais.” (Dumont, 1985, p. 86).
É possível que a busca de uma autonomia, independência e liberdade,
absolutas, não existentes na realidade da vida social contemporânea, leve os indivíduos aos processos de isolamento e fragmentação, além do descrédito nas
instituições sociais, componentes da crise descrita em nosso trabalho. O
distanciamento da capacidade de determinar-se faz com que o indivíduo viva de
atos e eventos isolados onde o tempo e o espaço estão cada vez mais restritos ao
tempo imediato e ao meio circundante do lar ou do ambiente de trabalho. Além
disso, podemos identificar, nesse movimento, uma tendência à artificialidade e a
uma falta de autenticidade conforme descrita por Lasch:
“Os sobreviventes devem aprender o truque de observar-se como
se os acontecimentos de suas vidas estivessem ocorrendo com os outros. Uma das razões pelas quais as pessoas não mais se vêem como
sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se vêem como sujeitos,
de modo algum, mas como vítimas das circunstâncias; e essa sensação
de deixar-se guiar por forças externas incontroláveis inspira um outro
modo de armamento moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um observador irônico, separado e confuso.” (Lasch, 1986,
p. 85).
A liberdade e a igualdade talvez sejam as características de maior importância na ideologia individualista. Dumont (1985) enfatiza a eclosão dessas características a partir do desenvolvimento dos contratos sociais e políticos modernos que garantiam a afirmação do direito do indivíduo à liberdade de consciência, como vimos.
O sentido de igualdade absoluta na nossa sociedade provém, segundo
Dumont (1985), da tendência do cristianismo em considerar o cristão como um
indivíduo-em-relação-com-Deus, inaugurando a fraternidade universal já que a alma
64
individual recebe valor eterno de ser filho de Deus e, em conseqüência, todos os
indivíduos são irmãos. Essa tendência irá se transformar e reforçar o individualismo ao se afirmar o indivíduo como valor na sociedade atual — pois um homem
vale outro homem — e a universalização do direito de voto — a tradução mais
completa de tal valor.
Com o isolamento do indivíduo “natural”, Dumont (1985) identifica uma
transição para se estabelecer a sociedade ou o Estado ideal através da idéia de dois
contratos sucessivos: o contrato social — que introduz o princípio da igualdade —
e o contrato político — que rege a forma de sujeição dos indivíduos a um governo
representativo.
Entretanto, nessa formulação da emergência da igualdade, a sociedade, no
sentido de um todo no interior do qual o homem nasce, está ausente, sociologicamente falando. Ela passa a se “transformar” nas sociedades civis do economista e
do filósofo. Ainda segundo Dumont, “(...) Com o predomínio do individualismo
contra o holismo, o social nesse sentido foi substituído pelo jurídico, o político e,
mais tarde, o econômico.”( Dumont, 1985, p. 91).
Uma conseqüência desse movimento é a preponderância que o aspecto
econômico tem, a partir do Renascimento italiano já apontado anteriormente, e
reforçado pelo individualismo. Na Economia, temos o desenvolvimento de conceitos como a propensão a consumir, onde a liberdade individual de escolha sobre
o quê consumir é valorizada. A noção de igualdade, nessa perspectiva parece sofrer
forte abalo. Se utilizarmos, ainda como exemplo, a propensão a consumir, veremos
que o consumo não depende somente das necessidades subjetivas, inclinações psi-
65
cológicas e hábitos dos indivíduos, mas também “1- do montante de sua renda; 2de várias circunstâncias objetivas, como as variações nas unidades de salários, o
nível e a distribuição da tributação e os controles governamentais.”11
Como podemos perceber, as condições de consumo não podem ser integralmente determinadas autonomamente pelos indivíduos, já que interferem decisões
do nível governamental em que grupos que possuem mais capital — na visão
simbólica de Bourdieu (1993) — exercem uma maior influência buscando manter
ou ampliar suas posições relativas e valorizadas socialmente. Além disso, ainda
segundo Bourdieu, o indivíduo que nasce em uma determinada classe social é
socializado a partir de um universo simbólico que restringe seu campo de possibilidades de posições sociais, sendo os processos de mobilidade mais difíceis de serem
empreendidos.
Parece-nos que os efeitos do individualismo no desenvolvimento da Economia e, em conseqüência, nas políticas econômicas, são decisivos para a compreensão da crise da sociedade que delineamos no início do presente trabalho. A ação
livre do indivíduo como base do individualismo resulta no liberalismo clássico
que adotou a livre concorrência como princípio máximo. Da mesma forma que os
movimentos revolucionários de cunho político, a tendência liberal expressa a luta
da burguesia contra as restrições econômicas impostas pelos Estados absolutistasmercantilistas.
11
Dicionário de Economia — Editora Abril Cultural, 1985, pág. 357.
66
Na análise desse movimento na Economia, encontramos Dudley North (16411691) — citado no verbete Individualismo do Dicionário de Economia (1985) —
como o primeiro ideólogo a expressar a ética individualista:
“Dizia [North] que os homens são por natureza egoístas, motivados apenas por interesses próprios. Deveriam, contudo, ser deixados
livres, sem leis restritivas nem favorecimentos, pois assim se desenvolveriam as potencialidades naturais de cada indivíduo e, pela soma dessas potencialidades — expressa no livre jogo das forças do mercado —
, se atingiria o bem comum. (...) Na atualidade [1985], o individualismo
econômico integra de forma atenuada a doutrina do neoliberalismo,
que admite a ação do Estado não apenas como guardião da propriedade privada e da livre iniciativa, mas também como regulador da estabilidade monetária e das finanças nacionais.” 12
Parece-nos que o ideal do bem comum a partir da livre iniciativa e manifestação das potencialidades não foi capaz de ser alcançado pela maior parte do “comum” da população. Algumas das características da crise podem estar associadas a
uma frustração pela impossibilidade de se consumir no nível oferecido pela Economia e a tecnologia, necessidades criadas pelas disputas de mercado e pelas estratégias
de marketing de vendas.
Dumont (1985) destaca outra importante característica básica do individualismo na evolução do Direito Natural Moderno: a exigência de auto-suficiência do
indivíduo. Essa noção vem da auto-suficiência da polis em Platão e Aristóteles,
mas será marcada pelo individualismo cristão-estóico:
“Para os modernos, sob a influência do individualismo cristãoestóico, aquilo a que se chama direito natural (em oposição ao direito
positivo) não trata de seres sociais mas de indivíduos, ou seja, de homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem de Deus e
enquanto depositários da razão.” (Dumont, 1985, p. 87).
12
Dicionário de Economia — Editora Abril Cultural, 1985 — verbete Individualismo pág. 206.
67
A exigência pela auto-suficiência será reforçada pelo desenvolvimento do
Estado, que não derivará mais do conjunto da humanidade ou da dimensão divina,
mas na união de homens individuais e, por isso, torna-se um Estado soberano
individual e auto-suficiente. Só que essa exigência de auto-suficiência acaba
assumindo características específicas na sociedade contemporânea que podem ser
relacionadas a alguns dos aspectos da crise que apontamos nesse trabalho. Diante
da complexa divisão do trabalho na sociedade, o indivíduo vem sendo compelido
a uma crescente especialização nas suas atividades, principalmente profissionais.
Com esse movimento de especialização estabelece-se o que Duarte(1986) chama
de fragmentação dos domínios. Como a ideologia atual privilegia uma racionalidade
formal, a visão de mundo passa a se tornar desmembrada em domínios e esferas
autônomas de práticas e saber. A ampliação da necessidade de especialistas acaba
por distanciar os indivíduos das decisões que passam a exigir, pela sua “complexidade”, tratamento especializado. Alie-se a isso, a característica dos mercados de
massa atuais que tendem a desencorajar a iniciativa e a auto-confiança, desencorajam
a produção doméstica, fazem as pessoas não acreditarem no seu próprio julgamento
do que querem ou do que é melhor consumir, e teremos um quadro de conflito
estabelecido: por um lado, toda uma “pressão” implícita no sentido de uma busca
pela auto-suficiência e, por outro, uma fragmentação da capacidade de decisão
e de uma constatação da dependência dos saberes que não dominamos. Podemos
identificar aqui, claramente, uma contradição entre uma busca à auto-suficiência, à liberdade ou autonomia e a dependência e fragmentação da decisão
vivenciada pelos indivíduos da sociedade ocidental atual.
A questão parece centrar-se na dificuldade que temos em conciliar o desenvolvimento industrial e as bases de uma ideologia individualista que não gere
contradições estruturais que possam provocar conflito e adoecimento. Uma aná-
68
lise que não considere apenas os fatores econômicos deverá levar em conta que
o progresso industrial pode estar conduzindo a efeitos no campo social e político
como a “perda da autonomia, do controle popular, a tendência à confusão entre
autodeterminação e o exercício das opções do consumidor, a crescente ascendência das elites, a substituição das habilidades práticas pela especialidade
organizada.”(Lasch, 1986, p.32).
Essa contradição básica entre a auto-suficiência, a liberdade e autonomia e a dependência e fragmentação da capacidade de decisão já é apontada
no trabalho de Dumont (1985) quando ele trata da questão do valor da sociedade
ocidental americana:
“(...) O valor americano central (core value), sugeriu ele [Francis
Hsu], era a confiança em si mesmo (self-reliance), ou seja, uma modificação ou intensificação do individualismo europeu ou inglês. Ora, esse
valor implicará em sua aplicação, uma contradição, uma vez que, de
fato, os homens são seres sociais que dependem, em alto grau, uns dos
outros. Uma série de contradições se desenvolverá, assim, entre o nível
da concepção e o nível da aplicação desse valor principal e dos valores
secundários dele derivados.” (Dumont, 1985, p. 242).
A vivência constante dessa contradição — uma exigência paradoxal implícita
— entre a busca da auto-suficiência, liberdade e autonomia diante da
constatação da dependência dos outros indivíduos ou das instituições e de um
certo distanciamento e isolamento das decisões que interferem diretamente na
qualidade e manutenção de sua vida, pode contribuir para o adoecimento dos
indivíduos, a sua insatisfação com a situação atual e sua angústia existencial
diante da impotência de fazer o que queriam e uma concomitante pressão a realizar
o que se espera deles.
69
A busca pela auto-suficiência, pela liberdade, autonomia e independência parece relacionar-se diretamente com a utilização da capacidade individual enquanto valor e meio de ascensão social. A partir do Renascimento até os
dias de hoje, o reconhecimento da inteligência como valor social garante ao indivíduo aspirar à conquista de bens e condições que lhe propiciem maior prazer e/
ou felicidade, independentemente das condições do grupo social ao quais pertence:
“Esse novo valor, colocado no individualismo e na genialidade
pessoal, reforçava uma característica semelhante dos humanistas italianos, cujo senso de mérito pessoal também se baseava na capacidade
individual e cujo ideal era igualmente o do Homem emancipado, com
múltiplos talentos.” (Tarnas, 2000, p. 249).
Movido pela necessidade de conquistas que o mantenham seguro quanto à
sua sobrevivência, utilizando os recursos de capacidade individual que possui e que
é levado a desenvolver, o indivíduo da sociedade contemporânea individualista
acaba desenvolvendo uma significativa competitividade. Vários fatores podem
ser identificados nesse movimento de competição: a exposição a situações extremas
de sobrevivência, o desejo de levar vantagem em tudo e, principalmente, a luta
para evitar uma “derrota” arrasadora na vida. Essa tendência acaba por levar a
uma outra que também caracteriza a crise da sociedade ocidental que é o
imediatismo. O distanciamento das decisões complexas — delegadas aos especialistas ou às instituições a que o indivíduos está associado — e a necessidade de
conquistas pela competição, leva-o a preocupar-se com os obstáculos pequenos
e imediatos do seu cotidiano. Quanto mais se concentra no presente, mais garante
um “funcionamento” eficiente e evita a derrota e o fracasso.
Outro impasse verificado na crise da sociedade contemporânea individualista está na contradição entre liberdade de escolha e de consciência e a hierar-
70
quia e a cultura de consumo de massa. A origem de todas as liberdades e
direitos está na conquista da liberdade de consciência, principalmente, a partir da
liberdade religiosa da Reforma, segundo Dumont (1985). Essa liberdade deve
hoje ser questionada em função de vários aspectos da sociedade atual como, por
exemplo, a cultura de consumo de massa que determina uma abundância de opções à qual os indivíduos estão expostos. Para Lasch (1986), essa necessidade de
fazer escolhas diante de uma gama crescente de alternativas dá origem a sentimentos persistentes de descontentamento, que passa a ser o preço a ser pago pela
liberdade de escolha. Mesmo a capacidade de escolher entre essas opções passa a
ser discutível já que, cada opção assumida pode enfrentar toda uma propaganda
pelos meios de comunicação de massa no sentido de outros valores e prazeres,
conduzindo a vontade, tornando, portanto, a liberdade relativa.
Os modelos relacionais, já citados, apontam para a dependência da liberdade de escolha de profissões, hábitos de consumo, comportamentos etc, da posição
em que nasce e que se individualiza o indivíduo, da situação de seus pais e da
escolarização que recebe. A especialização do saber gera uma concentração de
poder de decisões em uma elite que “orienta” o curso dos eventos com base em
suas próprias aspirações e valores, podendo, com isso, gerar uma crescente insatisfação ou conflito naqueles que não conseguem romper a rede de dependência em que se situam. A crise de referenciais atual pode estar relacionada a uma
aproximação do limite de tolerância a essa insatisfação de origem não-consciente
para os indivíduos.
71
Renaut (1998) citando Tocqueville ainda destaca dois aspectos importantes
do individualismo moderno. Dizem respeito à oposição existente entre os termos
igualdade X hierarquia e liberdade X tradição.
No primeiro, igualdade X hierarquia, o individualismo traduz-se em primeiro lugar pela revolta dos indivíduos contra a hierarquia em nome da igualdade.
Na atualidade, o individualismo não está visando a hierarquia dos privilégios inerentes a certos grupos por natureza, mas a reivindicação individualista anti-hierárquica concentra-se nas novas hierarquias que instauram as desigualdades sociais e
econômicas. O impasse encontra-se exatamente na constatação de que estas novas
hierarquias assentam-se em valores e posses de bens (culturais, econômicos, sociais
etc.) que determinam uma disputa pela manutenção e ampliação da condição
conquistada. Como temos destacado, a posição em que o indivíduo nasce e se
socializa determina um campo de possibilidades específico, restringindo a mobilidade social e a gama de oportunidades para cada classe social e econômica. A diferença
de força simbólica que cada grupo possui irá determinar a sua capacidade de impor
seus projetos, como nos diz Velho (1987): “Em toda sociedade complexa podem
ser identificados grupos que, através de suas trajetórias e posição em relação ao resto da
sociedade, têm mais possibilidades de divulgar seus projetos.” (Velho, 1987, p. 34).
Com isso podemos identificar que a igualdade fica no campo do “formal” e
não no do “real” já que não há oportunidades verdadeiramente iguais para os
indivíduos. Parece-nos que a igualdade real realmente seria uma utopia já que as
diferenças de aptidões, de habilidades, de posição social, dentre outras, impossibilitariam uma igualdade absoluta, mas a manutenção de um movimento individualista nos termos que temos observado na sociedade atual — em função de alguns
dos aspectos que levantamos nesse trabalho — parece ter exacerbado as diferenças
72
sociais e econômicas em um nível inaceitável para a manutenção do equilíbrio e
estabilidade social. Em resumo, uma contradição entre uma ideologia igualitária em
uma sociedade altamente desigual parece colaborar no desdobramento da crise atual.
Quanto ao conflito liberdade X tradição, reflete-se na sociedade contemporânea pela deterioração da tradição como forma de legislação, passando para a
lei fundada na vontade do homem. Podemos, entretanto, identificar outras formas
de manifestação desse conflito na sociedade atual. O individualismo moderno
caracteriza-se também pela liberdade como oposição dos indivíduos a toda a forma
de tradição imposta. Dumont (1985) descreve assim as sociedades tradicionais
como a hindu, onde a tradição se impõe ao indivíduo sem ter sido por ele escolhida, nem passando pela sua vontade, fazendo com que sua existência esteja vinculada ou dependente dessa tradição. Em oposição, considera a sociedade moderna
como aquela em que prevalece a idéia de auto-instituição fundando a lei sobre a
vontade dos homens. A própria constatação da existência de diferentes tradições e
códigos culturais na sociedade já sinaliza a contradição existente com uma premissa
de liberdade da vontade do indivíduo moderno. É claro que a sociedade
contemporânea ampliou a possibilidade de acesso a novos códigos culturais e,
principalmente, a extensão da capacidade de expressão da vontade na democracia
atual. Por outro lado, a transmissão dessas tradições entre os membros de um
determinado grupo tende a perpetuar uma certa condição social e econômica.
Como nos diz Velho (1987):
“Tomando-se como referência qualquer sociedade, poder-se-ia
dizer que ela vive permanentemente a contradição entre as particularizações de experiências restritas a certos segmentos, categorias, grupos e
até indivíduos e a universalização de outras experiências que se expressam culturalmente através de conjuntos de símbolos homogeneizadores
— paradigmas, temas etc.” (Velho, opus cit., p.18).
73
Parece que a rejeição sistemática à tradição como forma de garantir a liberdade acabou levando a extremos que não conseguiram resolver alguns dos principais problemas da sociedade organizada. Um desses extremos foi a abolição do
conceito de comunidade por um de sociedade onde o aspecto individual se sobrepôs completamente ao bem-comum, ao coletivo, à totalidade.
Parece que nosso desafio está em encontrar um novo modelo de entendimento e de estruturação da sociedade na qual estes antagonismos possam ser
minimizados e contemplem uma maior gama de indivíduos. As discussões polarizadas entre uma sociedade tradicional em comparação a uma sociedade individualista parecem não ter conseguido preencher lacunas que acabaram por resultar em
uma crise sem precedentes da sociedade contemporânea. Um dos pontos a serem
revistos é essa dualidade entre opostos individualismo X holismo feita por Dumont
(1985), que já tem sido alvo de críticas (Duarte, 1986, p. 46) quando submetida a
uma análise da configuração e dinâmica individualista. Velho (1987, p.79) chega a
identificar a coexistência, nem sempre pacífica e, necessariamente, contraditória,
de situações onde o indivíduo enquanto sujeito moral se destaque mesmo estando
subordinado a uma ordem holista dominante.
Porém, um exame apurado da obra de Dumont (1985) pode identificar como
o autor já identificava esta combinação e mistura, na ideologia contemporânea, de
individualismo e holismo. Vai identificar nos movimentos socialistas uma forma
nova e original que redescobre a preocupação com o todo social, mas sem ser
tradicionalmente holista já que rejeita a hierarquia e também não é individualista
porque o individualismo já foi fragmentado:
“Quanto à sociedade socialista, ela mantém a negação da hierarquia — pelo menos em princípio e inicialmente — mas reintroduz uma
certa preocupação do todo social. Combina, assim, um elemento do
individualismo e um elemento do holismo; é uma nova forma híbrida.
74
No conjunto de doutrinas e movimentos socialistas e comunistas, a igualdade tem, em suma, um lugar secundário, deixando de ser um atributo
do indivíduo para passar a ser da justiça social.” (Dumont, 1985, p. 92).
Entretanto, poderíamos nessa altura do trabalho indagar, por que motivos os
movimentos socialistas e, principalmente, comunistas não foram capazes de dar
conta dessas questões. Pelo contrário, também neles as diferenças sociais e
econômicas inviabilizaram a manutenção dos sistemas políticos que os adotaram.
A questão parece residir em um ponto que se destacou ao longo de nossa pesquisa: a noção de valor no indivíduo e na sociedade. Pela abrangência e complexidade, o tema exigiria trabalho específico, o que escapa aos objetivos desse trabalho,
mas não podemos deixar de sinalizar um caminho interessante para a compreensão da crise da sociedade contemporânea ocidental. Traçaremos breves comentários do que foi possível identificar das obras que tratam do individualismo ocidental em função da questão do valor.
O principal pressuposto da ideologia individualista é a noção de indivíduo
livre, igual, autônomo, independente e que busca a auto-suficiência, como
valor fundamental. Porém, o próprio Dumont (1985) irá constatar que, nesse movimento do individualismo, o valor se deslocou totalmente da sociedade ou comunidade, ou ainda do todo, para o indivíduo: “Pode-se considerar a configuração
moderna como resultante da quebra da relação de valor entre elemento e todo. O
todo converteu-se num amontoado.” (Dumont, opus cit., p. 272).
Essa ênfase no indivíduo acabou por reforçar toda a tendência da ideologia
individualista como a temos discutido nesse trabalho, com todas as suas distorções
e lacunas que podem ser associadas ao surgimento da crise atual. Podemos argu-
75
mentar que, se o indivíduo é o valor principal da ideologia individualista, existem
outras formas de manifestação desse valor que vêm se configurando na sociedade.
Como vimos anteriormente, a noção de valor em Duarte (1986), assume um
sentido do que faz a diferença em uma relação hierárquica. Ora, além dos valores
secundários do individualismo — como a auto-suficiência, a liberdade, a igualdade, dentre outros — encontramos uma ênfase significativa no valor econômico
norteando os principais fenômenos sociais seja de forma direta ou indireta, consciente ou não-consciente. A ruptura com os esquemas conceituais tradicionais e
religiosos, principalmente a partir da Reforma Protestante, passou a distanciar o
homem dos valores religiosos ou transcendentes direcionando-o para valores materiais, econômicos e imediatistas. O próprio Dumont (1985) reconhece essa ênfase
na configuração moderna e na definição de valor:
“A cena moderna é familiar. Em primeiro lugar, a consciência
moderna liga o valor, de maneira predominante, ao indivíduo, e a filosofia trata, em todo o caso principalmente, de valores individuais, ao
passo que a antropologia considera os valores essencialmente sociais.
Em seguida, na linguagem corrente, a palavra que significava, em latim,
vigor saudável, força eficaz, e designava na Idade Média a bravura do
guerreiro, simboliza hoje, a maior parte das vezes, o poder do dinheiro
para medir todas as coisas. Esse aspecto importante só estará aqui presente por implicação.” (Dumont, opus cit., p. 240).
A ênfase no valor econômico concomitante ao individualismo fez com que os
parâmetros de avaliação dos fatos, das atitudes, políticas etc, sejam quase sempre
monetários ou econômicos. Até mesmo projetos de cunho assistencial ou filantrópicos tendem a ser chamados de “sociais” numa clara alusão à não ocorrência de
lucro e são avaliados economicamente pelo custo-benefício para os indivíduos
envolvidos. Esse predomínio na sociedade ocidental das representações econômicas
76
resultou na emancipação do econômico em relação ao político adquirindo status
de valor principal na sociedade.
Muitos dos recursos oriundos do desenvolvimento tecnológico passaram a
servir e a reforçar o valor econômico como principal na dinâmica social. Ao analisar
os efeitos dessa ênfase do econômico e seus instrumentos de atuação na sociedade
americana, Lasch (1986) discute como a Cultura de Massa a que estamos sujeitos,
estabelece instrumentos de controle social poderosos. Cita a comunicação que
acaba sendo colocada a serviço de uma concentração de poder, através da posse
do capital “informação”, estabelecendo um sistema unilateral de gestão e comunicação, concentração de poder político, econômico e cultural nas mãos de elites
planificadoras. As tensões existentes entre os grupos que possuem e não possuem
este capital acabam por gerar inúmeras formas de adoecimento da sociedade e dos
indivíduos. A própria liberdade de escolha do indivíduo comum fica orientada para
uma abstenção de escolha, pois não se trata mais de escolher se queremos ou não
consumir, mas se vamos escolher entre “a” ou “b”, muitas das vezes necessidades
criadas pela cultura de massa.
A posse crescente dos bens econômicos faz surgir uma situação de monopólio
“econômico” que, segundo Elias (1994) se liga direta ou indiretamente ao monopólio da força física para se perpetuar. A esfera econômica passa a ser considerada
como única força propulsora das outras esferas e depende também do monopólio
da violência.
Porém, o impasse aparece, mais uma vez, pois a sociedade baseada nessa
dinâmica vai encontrar uma contradição complexa a resolver: ao mesmo tempo
que ela precisa de indivíduos que se dediquem exclusiva e dedicadamente ao tra-
77
balho para garantir margens de lucro, renda, participação em mercado, também
precisa de um contingente cada vez maior de indivíduos que estejam dispostos a
consumir e desfrutar dos benefícios crescentes da tecnologia.
Outro aspecto importante que se apresenta como um impasse e decorre da
discussão de valor econômico é a constatação de que muitos processos de crise
representam uma transformação e ocorrem exatamente em períodos de estabilidade e prosperidade econômica como o vivido atualmente pela sociedade norteamericana. Indivíduos que passam por uma crise de valores morais e se perguntam qual o real sentido da existência. Para autores como Awbrey (1999) as principais figuras da história ocidental não são os príncipes, presidentes ou generais,
mas o desejo espiritual, indivíduos ansiosos em buscar o sentido da vida. Em resumo, ele aponta que a crise atual, onde a depressão e a melancolia são suas principais demonstrações, é um período de transformação porque muitas pessoas estão
rejeitando o materialismo, a negação da alma, a cultura moralmente indiferente da
sociedade ocidental para uma relação mais íntima com a natureza, a comunidade e
a divindade.
78
CAPÍTULO 5
O “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR NA
COMPREENSÃO DA CRISE SOCIAL
CONTEMPORÂNEA:
A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL COMO
INTERLOCUTORA
“A nossa consciência normal em estado de vigília é apenas um
tipo especial de consciência, ao passo que em toda a sua volta, separadas dela pela mais fina das telas, jazem formas potenciais de consciência
inteiramente diversas. Podemos passar a vida inteira sem suspeitar-lhes
sequer da existência; aplique-se-lhes, porém, o estímulo necessário e,
ao primeiro toque, por mais leve que seja, hei-las ali em toda a sua
completitude...
Não pode ser definitiva nenhuma explicação do universo em sua
totalidade que não dê tento dessas outras formas de consciência...”
(WILLIAM JAMES)
79
Diante das observações preliminares que fizemos sobre as tentativas de compreender a crise social contemporânea, podemos perceber a existência de lacunas
que não garantem uma compreensão satisfatória. A complexidade das relações entre
os diversos conceitos envolvidos no fenômeno oferece a característica ideal para
uma proposta interdisciplinar como a que pretendemos nesse trabalho. Dentre as
diversas modalidades desse exercício interdisciplinar que se apresentam na
atualidade, julgamos que a proposta transdisciplinar é a que permite um “diálogo” mais proveitoso com outros saberes, ainda que estejam comprometidos com
estruturas de conhecimento diferentes das do paradigma científico tradicional —
newton-cartesiano. Assim, nossa proposta será a de buscar um nível de aproximação com os principais conceitos e pressupostos da Psicologia Transpessoal, bem
como refletir sobre alguns de seus desdobramentos acerca da sociedade contemporânea, privilegiando o contexto e recorte que fizemos para compreender a crise atual.
Como todo trabalho transdisciplinar, nosso objetivo não é o de promover
mudanças de fundo nas concepções existentes, mas sim ampliar percepções sobre
conceitos como indivíduo, sociedade, liberdade, autonomia, igualdade, valores, hierarquia etc. As mudanças de percepção promovidas gerarão mudanças de fundo?
Essa é uma questão que só será respondida em função do tempo e da postura que
venha a ser assumida diante da continuidade desse movimento transdisciplinar.
O enriquecimento do produto de conhecimento e a ampliação das questões
e perspectivas que podem ser tratadas e levantadas para os problemas complexos
são vantagens que o exercício transdisciplinar permanente pode oferecer. Entretanto, é preciso ficar atento aos cuidados especiais que esse trabalho requer, sem os
quais podem-se gerar grandes inconvenientes. Alguns deles são os riscos da perda
de integridade de algumas disciplinas participantes, comprometimento do nível de
80
qualidade do trabalho de pesquisa, a perda dos objetivos da pesquisa, além daqueles referentes aos conflitos de interesses de toda ordem que podem influir no
desenvolvimento de um trabalho transdisciplinar: interesses comerciais e/ou
financeiros com os resultados da pesquisa ou os de status social e/ou profissional
em função desses resultados.
Aliás, esse parece ser um ponto preocupante para os pesquisadores envolvidos em uma proposta transdisciplinar. Falamos de uma certa sensação de “ameaça” ao objetivo do saber puro nas universidades que uma aproximação com outras
formas de saber poderia acarretar. Na verdade, o impasse fica caracterizado pelos
riscos dessa aproximação confrontados com os riscos que a universidade corre, de
perder a importância para o grupo social, caso se afaste sobremaneira da realidade
dos problemas da comunidade.
A necessidade de se considerar a existência de outras formas de saber passa a
ser condição básica para uma visão transdisciplinar mais atual. Como Somerville
(1993) destaca:
“Devemos aceitar o fato de que há outras ‘fontes de saber’ além
dos processos cognitivos mentais. É o que nós, sem dúvida, aceitamos
implicitamente quando temos o sentimento de não saber tudo, mas a
segunda era do nosso saber teve tendência a nos fazer crer que os dados científicos puros eram os únicos válidos e que nós possuíamos todos, ou quase todos, esses dados no que dizia respeito a qualquer questão. Uma parte de nossa nova realidade consistirá em restabelecer virtudes antigas como a ‘sabedoria’, e em reconhecer a importância de
faculdades ‘antigas’ como a intuição, que foram negligenciadas ou mesmo negadas na ‘segunda era’ do nosso saber.” (Somerville, 1993, p. 90).
Por “segunda era” Somerville entende o período do desenvolvimento do
saber que se caracterizou pelas especialidades e especialistas cujos reflexos sentimos até hoje, enquanto o terceiro período de conhecimento é o da integração de
81
correntes especializadas e paralelas do saber. Para essa nova etapa do conhecimento é fundamental ser receptivo a propostas alternativas aos saberes instituídos,
o que exige, segundo a autora, a manifestação de uma sinergia disciplinar entre as
pessoas envolvidas no exercício transdisciplinar — onde o todo da produção de
conhecimento será maior que a soma das partes constitutivas. O produto de conhecimento a que nos referimos não será homogeneizado. Ao contrário, apresentará “incompletudes” com as quais os pesquisadores deverão se acostumar a conviver, mesmo que isso gere uma angústia ante a incerteza da constatação de que
“não conseguimos saber de tudo!”.
Todavia, o maior cuidado que se deve ter ao lidar com uma proposta
transdisciplinar que envolva, como no nosso caso, outras formas de saber, é o de
evitar atitudes preconceituosas em relação a elas. Muitas vezes podemos incorrer no
erro, para uma proposta desse tipo, de considerar ingenuidade a consideração de
outros modelos conceituais que não estejam inseridos no quadro do pensamento
científico tradicionalmente aceito como válido. Ou, em outros momentos, considerar que aqueles que assim procedem — coerentemente com a transdisciplinaridade
atual — demonstrem falta de preparo acadêmico ou científico, numa repetição de
uma postura reducionista empobrecedora, do passado.
Como podemos perceber, o trabalho em uma proposta transdisciplinar não é
fácil e não ocorre por si só. É preciso que se facilite a sua ocorrência superando
alguns problemas. A dificuldade de se obter um consenso sobre os valores envolvidos nas questões que desafiam o conhecimento humano, exige um fórum de debates e pesquisas em que o espírito aberto e uma tolerância ativa, garantam a
fecundidade das discussões para a solução que se almeja. Julgamos que a Academia ainda é o lugar privilegiado para se obter um ambiente favorável à reflexão.
82
No presente trabalho, a proposta transdisciplinar nos parece estar favorecida
pois alguns desses impasses estão relativamente equacionados dada a condição
especial em que nos encontramos. Por um lado, temos uma formação no campo
das Ciências Sociais, mais especificamente nas Ciências Econômicas; por outro, a
formação em Psicologia, o que nos parece favorecer a postura psicossociológica
que buscamos como base. Além disso, temos convivido, nos últimos anos com a
Psicologia Transpessoal com a qual desejamos “dialogar” nessa proposta
transdisciplinar.
Nesse ponto do trabalho, julgamos necessário abordar sua tendência sintética. Dada a abrangência do tema e a forma com que nos propomos estudá-lo, nossa
dissertação tenderá a estabelecer relações e reflexões de caráter de síntese ao invés
de análise. Alguns conceitos ou relações entre eles serão apenas sinalizados, apontando para possíveis propostas de estudos mais aprofundados, de aspectos cuja
relevância justifique um programa de Doutorado.
A opção por uma proposta transdisciplinar que procuramos explicitar na presente seção, não pode descuidar dos parâmetros do “fazer acadêmico”. Dessa forma, estaremos utilizando critérios que possam garantir a consistência de nossa proposta, com atenção especial para o rigor na escolha dos conteúdos teóricos utilizados,
os cuidados para uma permuta de códigos adequada e uma escolha criteriosa dos
textos e autores da Psicologia e Movimento Transpessoais. Privilegiaremos aquelas
obras cujos autores tenham legitimação científica pelas suas formações acadêmicas
básicas e de especializações. Para identificação desses pesquisadores transpessoais,
utilizaremos como principal, mesmo que não exclusivamente, as publicações de
artigos e resultado de pesquisas em The Journal of Transpersonal Psychology,
publicação norte-americana que reúne os principais nomes do movimento
transpessoal da atualidade.
83
Finalmente, resta uma pergunta pertinente a essa seção do presente trabalho:
Por que a escolha da Psicologia Transpessoal como interlocutora nesse “diálogo”?
Alguns argumentos me parecem decisivos nessa escolha. O critério de apresentação seguinte não representa uma ordem de importância, mas apenas de uma dimensão mais particular para uma mais geral. O primeiro deles refere-se a um interesse pessoal em aprofundar de forma sistemática e criteriosa um estudo sobre esse novo
ramo de saber psicológico: Psicologia Transpessoal. Em segundo lugar, está a
proposta de um desafio a esse saber e suas contribuições para questões com as quais
temos nos deparado e interessado na abordagem psicossociológica, particularmente
na compreensão da crise da sociedade contemporânea.
Um último argumento, mais complexo e abrangente, deve ser apresentado
mais detalhadamente. Em um interessante artigo, com o qual tivemos contato há
alguns anos atrás, Amaral (1989) apresenta uma compreensão para a crise da Ciência
no Ocidente partindo do princípio que ele designa como amnésia paradigmática
por substituição, onde o Ocidente se confunde com a Verdade, a partir da negação
do Oriente. Paradoxalmente, a crise da Ciência faz com que esse Outro (Oriente)
torne-se mais próximo de nossa visão ocidental, resgatando uma possível identificação original negada em alguns séculos de primazia da razão sobre a intuição, do
fato sobre o mito. A Psicologia Transpessoal como se verá a seguir, propõe uma
integração de alguns conceitos da Filosofia Perene oriental com as principais conquistas da ciência como a entendemos no lado ocidental, principalmente em uma
nova possibilidade de entendimento do indivíduo. É possível, e isso parece tornarse nosso ponto principal, que uma nova visão de indivíduo — interligado e
interdependente com o grupo social e com o Universo — em uma abordagem
transpessoal — que introduz a dimensão espiritual no entendimento do ser humano
84
— contribua para uma maior compreensão dos desdobramentos do individualismo na crise da sociedade contemporânea.
5.1- A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL
Desde o seu desmembramento da Filosofia, a Psicologia vem dedicando-se
ao estudo das diferentes formas de processos mentais e fenômenos comportamentais.
Várias escolas ou abordagens privilegiam aspectos desse complexo objeto de estudo que é o psiquismo humano. Linhas teóricas com suas respectivas aplicações
práticas têm determinado a base de entendimento e concepção de indivíduo psicológico em toda a nossa ciência ocidental.
Durante a década de 60 porém, houve um questionamento sobre as limitações que as linhas teóricas até então desenvolvidas vinham trazendo. Apesar das
inúmeras e inquestionáveis contribuições oferecidas, essas linhas de pensamento
eram incapazes de oferecer explicações completas para a totalidade das experiências humanas.
O movimento humanista e a abordagem existencialista, surgiram da tentativa
de oposição às escolas anteriores. Buscavam a possibilidade de estudar a experiência humana e tudo que pudesse levar ao bem-estar. A preocupação passou a situarse no aqui e agora como principais pontos de observação da experiência humana.
A consideração dos sentimentos e relações sociais na determinação de condutas e
comportamentos, alterou e ampliou o eixo de reflexão sobre o homem. A meta do
homem deixou de ser apenas a redução do sintoma para ser substituída pela busca
da auto-realização.
85
Com a ampliação do campo de observação das experiências humanas, os pesquisadores começaram a descobrir fenômenos que acabaram resultando no aparecimento da Psicologia Transpessoal. Tratavam-se das chamadas experiências de pico:
“As pessoas que gozam de excepcional saúde psicológica, tendem a viver aquilo que chamamos de ‘experiências de pico’: experiências de expansão da identidade e de união com o universo, breves porém
extremamente intensas, cheias de sentido e júbilo, além de
benéficas.”(Walsh & Vaughan, 1997, p. 16).
Os pesquisadores concluíram que muitas dessas experiências podiam ser encontradas nas práticas de diversas tradições orientais que, aparentemente, possuíam métodos próprios para levar os indivíduos a induzi-las deliberadamente. As
experiências eram identificadas como expansões da personalidade, com mudanças
nas percepções da realidade objetiva que pautava o paradigma newton-cartesiano
contemporâneo. A esse movimento, chamado por seus fundadores de “4a. força em
Psicologia” (Tabone, 1992), chamou-se Psicologia Transpessoal.13
Autores humanistas como Abraham Maslow, passaram a ampliar o entendimento do conjunto de necessidades próprias à sobrevivência do homem. Além da
necessidade do alimento, do abrigo, de vestuário, de relacionamentos etc., outras
necessidades deveriam ser supridas para que o homem atingisse um nível considerado satisfatório de saúde psicológica. O atendimento à necessidade dita espiritual
parecia ser o elemento comum naquelas práticas orientais e das experiências de pico.
13
GROF está na origem do movimento transpessoal (SUTICH, 1978, P. 27). O próprio GROF
relata em uma de suas obras o surgimento do termo Psicologia Transpessoal: “Conheci um
pequeno grupo de profissionais, nos últimos anos da década de 60, que incluía Abraham Maslow,
Anthony Sutich e James Fadiman, que compartilhavam minha crença de que o tempo estava
maduro para lançar um movimento de psicologia, que enfocasse o estudo da consciência e o
reconhecimento do significado das dimensões espirituais da psique. Após vários encontros para
determinar a clarificação desses novos conceitos, decidimos chamar essa nova orientação de ‘psicologia transpessoal’. Logo em seguida foi lançado o Journal of Transpersonal Psychology e a
Associação de Psicologia Transpessoal.” (GROF, 1987, p. XII-XIII).
86
A Psicologia Transpessoal objetiva estudar os vários estados de consciência14 por que passa o homem, assim como as suas relações com a realidade,
com o comportamento e valores humanos (Weil, 1982). É considerada como uma
expansão do movimento humanista ampliando-o pela inclusão e valorização da
dimensão espiritual do ser humano. Daí resulta que o objetivo não seja mais, apenas, a auto-realização, mas a auto-transcendência do ser humano.
Não se trata, como pode parecer a princípio, de uma negação da Psicologia
ocidental. A Psicologia Transpessoal caracteriza-se por um ajuste da Psicologia ocidental ao paradigma emergente, encontrado nas principais escolas filosóficas orientais:
“Com o objetivo de preencher as lacunas deixadas por funções
não desenvolvidas por nosso sistema educacional/cultural, a abordagem transpessoal da Psicologia combina, sem preconceitos científicos
ou culturais, as várias tendências do pensamento psicológico ocidental
com as metodologias desenvolvidas por sistemas esotéricos como o
Budismo, o Yoga, o Tibetanismo, o Sufismo e outros.”(Tabone, 1992, p. 19).
Esse movimento permite uma abertura conceitual para a valorização de assuntos que, por conflitarem com o paradigma tradicional dominante, foram
desconsiderados nos períodos que antecederam a década de 60. A Psicologia
Transpessoal propõe-se a ser a interseção entre o cientificismo e o misticismo —
aqui entendido como o conjunto das tradições orientais milenares — duas formas
até então autônomas de apreensão da realidade que possuem metodologias e bases
conceituais diferentes mas que juntas oferecem maior capacidade de entendimento
de diversas experiências por que passa o homem. Segundo Fritjof Capra “A ciência
14
O uso do termo Consciência remete a uma diversidade de conceituações. Na Psicologia
Transpessoal o termo Consciência designará a capacidade humana de mobilizar a atenção/percepção do meio ambiente, a auto-percepção e a estrutura que atua sobre as informações e estímulos captados pelos sentidos básicos. Os estados alterados de consciência serão as variações do
estado dito “normal” ou de “vigília”.
87
não necessita do misticismo e este não precisa da ciência; entretanto o homem
necessita de ambos.” (Capra, 1996, p. 69).
No presente trabalho estaremos enfatizando a Psicologia Transpessoal tendo em vista nosso objetivo de refletir sobre as conseqüências de uma nova concepção
de indivíduo para a compreensão da crise da sociedade contemporânea. Para
atingirmos esse objetivo, não podemos desconsiderar os desdobramentos que a Psicologia Transpessoal tem oferecido no desenvolvimento de novas disciplinas nos
demais campos do conhecimento humano. Particularmente nos interessam os movimentos em áreas como a Sociologia, a Antropologia e a Ecologia, por exemplo, para
a compreensão da crise contemporânea sob uma nova perspectiva.
Tendo em vista o desenvolvimento atual dessas outras disciplinas no movimento
transpessoal, julgamos necessário introduzir algumas definições básicas para o entendimento do assunto, o que está resumido no ANEXO 1, ao final desse trabalho.15
Apesar da ênfase no transpessoal, as disciplinas transpessoais não invalidam,
não excluem e não limitam o campo do pessoal. Pelo contrário, elas situam os
interesses pessoais dentro de um contexto mais amplo que inclui as principais contribuições da ciência sobre a dimensão pessoal. Para Walsh (1997), inclusive, “ (...)
uma das interpretações do termo ‘transpessoal’ é que o transcendente se expressa
através (trans) do pessoal.” (Walsh & Vaughan, 1997, p.18).
A Visão Transpessoal, apesar de incluir áreas que estão situadas além dos
limites das escolas ocidentais, não pretende substituí-las, mas integrar suas contribuições a uma compreensão mais ampla do ser humano.
15
O resumo da definições é apresentado por Walsh e Vaughan (1993) no The Journal of Transpersonal
Psychology, vol 25, no. 2.
88
5.2- A DÉCADA DE 60 E OS ALUCINÓGENOS
Os estudos humanistas e transpessoais não ocorreram isolados de um contexto socio-cultural. Ambos foram influenciados e, ao mesmo tempo influenciaram,
um período de grandes transformações na cultura ocidental de modo geral. Algumas
dessas mudanças diziam respeito ao nascimento de um movimento de defesa do
potencial humano e ao questionamento do sonho materialista, já que não tinha
sido possível, até então, promover níveis de satisfação que as metas de sucesso
exterior e posses de bens materiais tinham “prometido”. São dessa época movimentos de contra-cultura, como o movimento hippie, e os de caráter questionador
dos comportamentos sexuais, que tiveram participação importante na evolução
dessas novas disciplinas transpessoais. A busca por modos de vida alternativos fizeram
com que o ocidente experimentasse a disseminação de diversas práticas asiáticas.
Muitas dessas práticas, que tinham sido consideradas patológicas ou destituídas de
sentido, agora eram consideradas meios para vivenciar estados ampliados de
consciência e geradores de profundas mudanças de valores e condutas. Práticas de
meditação, respiração, Yoga etc. passaram a ser utilizadas por uma minoria
significativa da população oferecendo material para os pesquisadores que se
interessaram pelos estados alterados de consciência atingidos durante essas
práticas, como objeto de estudo das novas disciplinas transpessoais.
Entretanto, foram as drogas psicodélicas que exerceram o maior impacto nas
pesquisas transpessoais, pois provocaram experiências de estados alterados de
consciência que ampliaram a concepção sobre a plasticidade e potencialidade do
psiquismo além do nosso estado habitual de vigília.
Seja como resultado dos movimentos de contra-cultura, já citados, seja pelos
efeitos observados, nos EUA, nos soldados que retornaram da guerra do Vietnã, o
89
uso indiscriminado dos alucinógenos possibilitou aos pesquisadores vasto material de observação de estados incomuns de consciência. Os hospitais e a própria
sociedade passaram a se preocupar com as conseqüências desse uso indiscriminado
no comportamento do indivíduo em sociedade. As drogas ditas psicodélicas — do
grego, “que alteram a mente” — promovem alterações psíquicas nos indivíduos
afetando, principalmente, as percepções visuais. Daí serem chamadas de “alucinógenos” numa alusão aos sintomas alucinatórios descritos dela Psiquiatria.
Com a aproximação entre as culturas ocidental e oriental, algumas práticas místico-religiosas passaram a ser empregadas e estudadas pelos pesquisadores das universidades norte-americanas. Alguns deles transformaram-se em verdadeiros gurus
— como Timothy Leary, Richard Alpert e Ralph Metzner — para parte significativa da
juventude norte-americana, associando práticas místicas ao uso de drogas. Na verdade,
o uso de substâncias naturais como estimuladoras de potencialidades criativas parece
ser comum em inúmeras culturas, desde os tempos mais remotos (Tabone, 1992).
Diversas culturas pelo mundo, utilizaram plantas capazes de provocar alterações nos
estados mentais habituais, buscando experiências transcendentais (místico-religiosas)
e/ou para despertar potencialidades criadoras.
Entre as principais substâncias alucinógenas usadas podemos citar a mescalina
que tem como fonte natural o cactus peyote, a psilocibina, um alcalóide derivado
dos chamados cogumelos sagrados mexicanos e, principalmente, o LSD (Dietilamida
do ácido lisérgico) droga semi-sintética, derivada da cravagem do centeio. Destas
drogas, o LSD foi o mais utilizado pelo seu alto poder alucinógeno e pela maior
facilidade de controle, em laboratório, das dosagens utilizadas nas pesquisas.
Nas pesquisas com os alucinógenos, temos que destacar dois nomes como
dos mais importantes: Aldous Huxley e Stanislav Grof. Já em 1954, Aldous Huxley
90
era considerado um dos maiores nomes da fenomenologia psicológica induzida
por alucinógenos. Em sua obra “As Portas da Percepção” (Huxley, 1984) começou a despertar o interesse da comunidade científica pelas drogas alucinógenas
como instrumento de pesquisa profunda sobre o psiquismo humano.
Entretanto, é Stanislav Grof — tcheco naturalizado americano — que se tornará um dos mais respeitáveis pesquisadores do LSD e outros alucinógenos. Doutor
em Medicina e Filosofia, Grof realizou, a partir de 1956, mais de duas mil sessões
psicoterápicas sob efeito do uso controlado do LSD, conduzidas por ele próprio e
mais mil e setecentas conduzidas por seus colaboradores espalhados por vários
pontos do mundo. Grof (1987) afirma que o resultado de suas experiências sugerem a existência de dimensões da mente humana que a pesquisa psicológica não
explorou satisfatoriamente.
Seus trabalhos (GROF, 1987, 1994, 1997) consistiam na aplicação controlada
de dosagens mínimas de LSD nos sujeitos de pesquisa que eram, imediatamente
após, submetidos a uma sessão psicoterápica de base analítica. Pelas alterações de
percepção e de relatos dos sujeitos e pela semelhança de relatos entre os inúmeros
sujeitos, Grof identificou padrões de modificação na percepção da realidade objetiva,
que se repetiam de forma consistente. Suas conclusões davam conta de níveis
diferentes da consciência que sugeriam uma mente estratificada, onde cada nível
apresentaria sua especificidade.
Como Grof, inúmeros pesquisadores (Ring, 1978; Assagioli, 1982; Lilly, 1983;
Wilber, 1996) passaram a dedicar-se ao estudo de uma nova Cartografia da Mente.
91
5.3- CARTOGRAFIAS DA MENTE
O estudo criterioso e sistemático de experiências que, até então, não tinham
sido consideradas pela Psicologia, contribuiu para o aparecimento da Psicologia
Transpessoal. Nesse novo campo de estudo, tornou-se necessário o estabelecimento de um mapeamento da psiqué mais abrangente que os existentes. Com a
ampliação dessas pesquisas constatou-se que muitos dos estados alterados de
consciência experimentados pelos indivíduos assemelhavam-se a alguns estados
descritos por práticas milenares da filosofia oriental — Vedanta, Yoga e religiões
orientais — que também indicavam ser a consciência multidimensional e estratificada
em níveis distintos. A tradição hindu, por exemplo, considera que a totalidade da
vida psíquica atua como uma estrutura dinâmica composta de níveis diferentes mas
que se manifestam de um único centro de irradiação, o self. Cada um desses níveis
representa uma capacidade de percepção diferenciada de aspectos da realidade
correspondentes ao estado de consciência (Ramacharaca, 1983 apud Tabone, 1992).
Essa comparação com a tradição hindu parece-nos especialmente importante para
o presente trabalho já que foi a Índia uma das bases da pesquisa de Antropologia
Comparada de Dumont, quando analisa o individualismo ocidental. Conforme nos
aprofundemos na reflexão transpessoal em uma nova noção de indivíduo, que se
aproxime de uma visão tradicionalmente oriental, podemos estabelecer relações
entre as conseqüências nos processos de socialização das diferentes culturas e sobre
os efeitos na crise contemporânea que se pretende considerar.
Os estudos das alterações da consciência não poderiam basear-se exclusivamente em relatos de ocorrências de estados subjetivos. A identificação de estados
de expansão ou extensão da consciência passou, então, a ser correlacionada a evidências concretas de modificações psicofisiológicas. Os diversos estados altera-
92
dos de consciência — meditação, hipnose, sonhos, técnicas psicoterápicas etc.
— podem ser estudados através de seus vários indicadores como as ondas alpha,
theta e delta, movimento rápido dos olhos, EEG (Eletroencefalograma), atividade
dos hemisférios cerebrais, dentre outros.16 Algumas dessas pesquisas (Walsh &
Vaughan, 1997) compararam os parâmetros psicofisiológicos dos estados de consciência obtidos por práticas da meditação, do xamanismo e da Yoga com os experimentados pelos quadros esquizofrênicos, demonstrando que os perfis são completamente diferentes, excluindo a possibilidade de que os estados alterados, obtidos por aquelas práticas, fossem considerados patológicos.
Ao invés de patológicos, estes estados parecem representar uma expansão
ou extensão da consciência onde os referenciais tradicionais da realidade objetiva
(newton-cartesiana) são ampliados ou modificados. Dentro desse enfoque, a consciência do Eu pode mudar de estado, seja através de auto ou hetero-indução, a
partir de um deslocamento da atenção para um outro nível de consciência que não
o habitual, chamado de “estado de consciência ordinário” ou “de vigília”. Esse
nível é utilizado como referencial para se determinar os demais níveis de consciência, por isso chamados de alterados 17 .
Todas as experiências que envolvem algum tipo de expansão ou extensão da
consciência são chamadas de experiências transpessoais:
“... a experiência transpessoal envolve uma expansão ou extensão da consciência além das limitações usuais do ego e das limitações
de tempo e espaço, como são percebidas no mundo tridimensional.”
(Grof, 1987, p. 129).
16
Para maiores detalhes sobre essas pesquisas, o leitor poderá recorrer às obras de WALSH &
VAUGHAN, 1997; GOLEMAN, 1988; ORNSTEIN, 1972.
17
A nomenclatura de “alterados” tende a causar uma impressão de desequilíbrio, desajuste ou patologia, sendo muitas vezes substituída por termos sinônimos como incomuns, alternativos, “outros”.
93
As cartografias da mente que se desenvolveram partem da constatação da
graduação dos níveis de consciência, baseada na percepção dualista eu/mundo dos
níveis pessoais — biográficos ou do “ego” — tendo como ponto máximo de expansão da consciência uma percepção una e plena da realidade, descrita em muitas
tradições espiritualistas de várias denominações como: nirvana, êxtase, estado de
iluminação, consciência cósmica
18
etc. (Tabone, 1992). Entre estas duas dimen-
sões de consciência, cada autor descreve outros níveis conforme o critério de observação do qual se utilizou. Destacaremos, aqui, apenas as obras básicas de Grof
(1987) e de Ken Wilber (1996).
A escolha por esses dois teóricos procurou atender a alguns critérios importantes para a elaboração de nosso trabalho. O primeiro refere-se ao fato de terem
suas produções reconhecidas no movimento transpessoal como contribuições expressivas. O segundo por apresentarem características complementares em relação
à proposta de cartografia do psiquismo: Wilber enfatiza a hierarquia de níveis da
consciência destacando os biográficos e pós-natais enquanto Grof destaca os níveis
perinatais e os transpessoais, como veremos a seguir.
5.3.1- O Espectro da Consciência de Ken Wilber
Ken Wilber é um dos principais teóricos do campo da Psicologia
Transpessoal atual. Seu trabalho resulta de uma síntese teórica das principais
contribuições da Psicologia ocidental com as dos princípios oriundos da chamada
Filosofia e Psicologia Perenes: “doutrina universal sobre a natureza da humanidade
e da realidade existente no âmago de todas as principais tradições metafísicas. (...)
uma Psicologia perene ou visão universal da natureza da consciência humana.”
(Wilber, 1997, p. 35).
18
O termo Consciência Cósmica foi escolhido pelo psiquiatra canadense Richard Maurice Bucke
em 1901, para designar um estado de consciência que se situa acima da simples consciência
comum do homem ou mesmo da consciência de si mesmo. (Weil, 1989, p. 19).
94
Wilber parte de uma analogia com o espectro eletromagnético da Física,
onde os diversos tipos de radiação — como os raios X, a luz visível, as ondas de
rádio, infravermelhas e ultravioletas — são considerados faixas desiguais de um
mesmo espectro de energia, isto é, manifestações diferentes em comprimento de
onda, velocidade de propagação, freqüência etc. de uma onda eletromagnética
essencialmente característica, pois contêm um sem número de propriedades semelhantes. Com essa base, Wilber batizou seu modelo de Espectro da Consciência.
Por Espectro da Consciência Wilber considera que a personalidade humana se expressa em diversos níveis de uma única consciência individual, um mesmo
continnum, variando na forma como apreende seu sentido de identidade de acordo com o nível de consciência em que se situe. Para Wilber:
“ (...) o Espectro da Consciência é uma visão pluridimensional da
identidade humana, ou seja, cada nível do Espectro é marcado por
sensos de identidade individual diferentes e facilmente reconhecíveis,
que vão desde a Identidade Suprema da consciência cósmica até o
estreito senso de identidade que se associa à consciência egóica, passando por diversas gradações ou faixas.” (Wilber, opus cit., p. 35).
A possibilidade de se pensar a consciência humana como composta de diversos
níveis “vibratórios” diferentes, levou Wilber a considerar que as diferenças verificadas
entre os pesquisadores da consciência, principalmente entre os grupos comumente
chamados de ocidental e oriental, estava no fato de privilegiarem um determinado nível
ou grupo de níveis desse espectro, em função dos instrumentos, lógica e metodologia
de que dispunham. Mesmo no recorte ocidental, ficariam esclarecidas as eternas
discussões entre correntes e abordagens nas áreas da Psicologia:
“Afirmo, com efeito, que a principal razão da existência, no Ocidente, de
quatro ou cinco escolas principais, porém diferentes de psicologia e psicoterapia é
95
que cada uma delas focalizou sua atenção numa faixa ou nível principal do Espectro.” (Wilber, 1996, p. 18).
Portanto, em sua opinião, essas escolas têm abordagens complementares e
não exclusivas, do entendimento da consciência pois se dirigem a diferentes níveis,
sendo mais ou menos “corretas” dentro do nível em que representam seu objeto de
estudo e intervenção.
Em resumo são os seguintes os níveis do Espectro de Wilber, assim como as
principais faixas que compõem e caracterizam o psiquismo:
O NIVEL DA MENTE: Para a Psicologia Perene esse seria o nível onde estamos
identificados com o universo, o Todo, não devendo ser considerado um estado anormal ou alterado de consciência, mas antes o único estado real de consciência, sendo
os demais considerados ilusórios. No nível dessa consciência real, os limites do dualismo
eu/não-eu desaparecem e alcançamos a Consciência Cósmica.
No Nível da Mente, existem as Faixas Transpessoais onde já há uma consciência do dualismo eu/não-eu, mas ainda relativizado em relação aos níveis posteriores
onde esse dualismo é determinante.
FAIXAS TRANSPESSOAIS: Representam as faixas de consciência onde o
indivíduo é capaz de tornar conscientes aspectos de sua ligação com dimensões
além dos limites usuais do ego e do corpo e da interdependência e interligação
desses aspectos com a sua individualidade.
O NÍVEL EXISTENCIAL: os seres se identificam unicamente com a totalidade de seu organismo psicofísico, tanto soma quanto a psique, como existe na
96
realidade objetiva, no tempo e espaço, compreendendo nosso sentido básico de
existência, de ser. É nesse nível que os processos de pensamento racional começam
a se desenvolver e também as relações entre organismo e meio ambiente são nítidas.
Para Wilber, é nesse nível que são internalizadas as premissas culturais, relações
familiares e hábitos sociais, influenciando o senso elementar de existência do organismo.
FAIXAS BIOSSOCIAIS: De forma muito geral, podem ser entendidas como
a soma total de toda a informação sociológica básica que o organismo acumulou.
O NÍVEL DO EGO: Aqui o indivíduo se identifica, não com seu organismo,
mas com um quadro ou representação mental mais ou menos preciso da totalidade
do organismo: o Ego ou auto-imagem. O indivíduo se identifica plenamente com a
psique, a mente e o ego, fazendo com que predominem os processos simbólicos e
intelectuais. É a faixa da consciência que compreende o nosso papel, a imagem que
temos de nós mesmos, com os seus aspectos conscientes e inconscientes.
FAIXAS FILOSÓFICAS: representam uma espécie de filtro pessoal refletindo as suposições metafísicas, paradigmas pessoais, premissas intelectuais e conjuntos simbólicos não conscientes ao indivíduo.
O NÍVEL DA SOMBRA: Quando, por alguma distorção, o indivíduo se
identifica com partes de sua psiqué, alienando outras partes. A identificação aqui é
com uma auto-imagem imprecisa e empobrecida do seu eu.
Na verdade, Wilber admite que um espectro da consciência humana seria
complexo, composto de inúmeros níveis e faixas oferecendo extremas dificuldades
97
para sua análise. Optou por um conjunto resumido que pudesse apresentar os
principais aspectos e características da consciência. A divisão em níveis estabelecida
por Wilber é esquemática, pois, na verdade, os níveis do Espectro se interpenetram
e se transfundem uns nos outros não podendo ser separados.
Espectro da Consciência de Ken Wilber
Para entendermos o Espectro de Wilber, precisamos partir de sua premissa
básica: só há uma única realidade, onde não há distinção ou dualismo entre sujeito
e objeto e sim uma percepção não-dual, em que o observador é o observado. Para
ele, “quando descemos à própria base da nossa consciência encontramos o universo” (Wilber, 1996, p. 83). Este nível básico, não-dual é o chamado Nível da Mente,
onde o homem se identifica com o Todo e está em união com a Energia básica do
universo. A partir desse nível, onde o espaço e o tempo não têm sentido, estabelecese um dualismo entre sujeito e objeto pelo processo de objetivação do pensamento
humano — o que tenta conhecer a Realidade como objeto através de um sujeito.
Para Wilber, esta divisão não é real mas o homem a toma com tal e se prende a esse
dualismo que pode ser descrito como sujeito / objeto, eu / não-eu ou organismo /
meio ambiente, gerando o segundo nível do Espectro ou o Nível Existencial, onde
se passa de uma identidade cósmica com o Todo para uma identidade pessoal com
o seu organismo, separado desse Todo.
98
Esse primeiro processo do dualismo primário é estabelecido pelo pensamento — chamado de auto-reflexão — e vai gerar o universo convencional e simbólico
de coisas separadas, possibilitando a “criação” do espaço e do tempo. Wilber apresenta um exemplo para esclarecer esse processo a partir de uma folha em branco
tomada como se fosse a Mente, não-dual. Se sobrepusermos uma grade sobre o
espaço em branco teremos uma figura como a seguir.
Pensamento Fragmentando a Realidade Una
As linhas da grade são distinções que representam o próprio pensamento,
elaboração simbólica, dualismo, mensuração, conceituação etc. Portanto, a Unidade (Mente) que jaz debaixo da grade já não é diretamente visível, foi obscurecida,
ficou implícita ou reprimida. A Unidade agora se manifesta ou se projeta como um
mundo de objetos “separados” no espaço e tempo, uma multiplicidade de coisas
separadas. Wilber postula que esse processo — que ele chama de Dualismo-repressão-projeção — se repete inúmeras vezes em todos os níveis subseqüentes de
consciência gerando uma nova faixa do espectro.
No diagrama proposto por Wilber, o traço diagonal que cruza todo o Espectro
representa a sucessão de dualismos que a consciência irá realizar entre os objetos
específicos da percepção de cada nível. Ou seja, em cada nível o indivíduo se
identifica com uma parte — que se torna mais consciente — e se opõe a outra —
que se torna inconsciente. Para Wilber, cada nível do Espectro representa um diferente nível de identificação da consciência:
99
“Metaforicamente, cada nível do espectro representa a aparente
identificação da Subjetividade Absoluta [Mente] com um grupo de objetos
como se estivesse contra todos os outros, e a cada novo nível do espectro,
a identificação se torna mais estreita e exclusiva.”(Wilber, 1996, p. 88).
No diagrama, observamos que a linha do dualismo não existe no Nível da
Mente, pois ali não há distinções entre sujeito e objeto, ali a consciência é da realidade
do Todo, o indivíduo mantém a noção de sua individualidade mas integrada e
interligada com o universo, com o cosmos.
Como vimos, o resultado do dualismo primário é a geração do Nível Existencial,
onde o indivíduo acredita e se sente como um organismo distintamente separado do
meio ambiente. As faixas existentes entre a Mente e o Nível Existencial são as chamadas
Faixas Transpessoais. A linha tracejada representa que o limite entre o eu e o não-eu
não se cristalizou por completo. Nas Faixas Transpessoais se identificaria o Inconsciente
Coletivo de Jung, a percepção extra-sensorial, as experiências transpessoais, projeção
astral e todos os fenômenos ditos paranormais, pois representam uma expansão além
dos limites do nível pessoal da percepção dos sentidos básicos.
No Nível Existencial, o homem centraliza a própria identidade no seu organismo e, como está ilusoriamente separado do objeto — seu meio ambiente —, cria a
dimensão do espaço que os separa e também o tempo. Identificado com o organismo, surge o medo da morte como um dilema entre o existir e o não-existir. O
resultado desse processo é o dualismo secundário entre vida / morte pois o homem
não suporta a possibilidade de seu aniquilamento, desencadeando a luta para a
superação da morte. Toda essa dinâmica reforça a “criação” do tempo inaugurando o passado e o futuro. A ansiedade gerada pela fuga da morte vai desencadear
um novo processo de Dualismo-repressão-projeção que irá resultar em um novo
nível: Nível do Ego. Nas palavras do próprio Wilber:
100
“(...) — o homem, não aceitando a morte, abandona o seu organismo mortal e escapa para alguma coisa muito mais ‘sólida’ e impérvia
do que a ‘simples’ carne — vale dizer, as idéias. Fugindo da morte, o
homem foge do corpo mutável e identifica-se com a idéia de si mesmo,
aparentemente imortal. Corrompido pela lisonja, chama a essa idéia o
seu ‘ego’, o seu ‘eu’.” (Wilber, opus cit., p. 102).
A consciência de organismo do Nível Existencial é agora desmembrada em
um dualismo entre psique / soma característico do Nível do Ego. Aqui, a mente se
separa do corpo e o homem se identifica com a representação puramente mental
ou psíquica de seu ser psicossomático total, isto é, se identifica com seu Ego. Esse
mecanismo de identificação afasta o indivíduo de sua percepção organísmica — a
percepção dos cinco sentidos básicos de forma integrada.
Do limite do Nível Existencial até o Nível do Ego a consciência se caracteriza,
para Wilber, por uma seqüência de faixas — chamadas Faixas Biossociais — onde
são absorvidas as premissas culturais do organismo que vão pautar todas as
transações entre o organismo e o seu meio ambiente. Esse fundo comum de fatores
sociológicos e culturais, que funciona como um polimento social, determina o modo
como o organismo percebe o meio ambiente e também o modo como age em
relação a ele. Segundo Wilber:
“Cada indivíduo, nesse nível, carrega consigo vasta rede de relações representando a sociedade ‘interiorizada’. É de uma natureza extraordinariamente complexa, pouco percebida, que compreende uma
matriz de linguagem e de sintaxe, a estrutura introjetada da família do
indivíduo, crenças e mitos culturais, regras e meta-regras.”(Wilber, opus
cit., p. 108).
O fenômeno da linguagem é, talvez, o mais básico dos vários conjuntos de
relações que constituem as Faixas Biossociais. Com os processos linguísticos, estabelecemos escolhas simbólicas determinantes de muitas das características das rela-
101
ções entre indivíduos. Não nos damos conta da internalização inconsciente da
linguagem que será de grande influência na experiência do indivíduo. As Faixas
Biossociais não são responsáveis por nenhum dualismo mas operam no sentido de
reforçar os existentes:
“A linguagem — o constituinte mais fundamental da Faixa
Biossocial — é um reforçador prototípico de dualismos, pois opera dividindo e classificando o ‘fluxo caleidoscópico’ da natureza, reprimindolhe a qualidade não-dual ou inconsútil e projetando-a como objetos
aparentemente discretos e separados.”(Wilber, opus cit., p. 110).
Wilber destaca outras três importantes funções exercidas pelas Faixas Biossociais:
a) Reforça o sentimento central do indivíduo como ser separado e distinto do
seu meio ambiente;
b) Reservatório de símbolos, sintaxe e da lógica para a atividade do pensamento, da intelecção abstrata;
c) Age como reservatório para a formação do ego, seus papéis, valores, status,
conteúdo etc. (Wilber, opus cit., p. 111).
O estudo dessas faixas é de muita importância para o nosso trabalho tendo
em vista a possibilidade de ampliação do entendimento dos fatores sociais e individuais, bem como as características do processo de socialização e individuação do
indivíduo a partir dessa abordagem no “diálogo” a que nos propomos.
Como podemos observar, essas características são decisivas para o próximo
nível de consciência do Espectro: o Nível do Ego.
Uma das características interessantes apontadas por Wilber sobre o Nível do
Ego está na consideração da identificação do ego tanto com o passado quanto com
102
o futuro. Para Wilber, o ego, como está desidentificado com o organismo total e
identificado com a representação simbólica e mental do organismo, acaba se caracterizando por um conjunto de lembranças organizadas do passado que dão coerência
para o indivíduo no presente. Como a identificação com o passado tende a ser
frustrante pois não realiza o presente, o ego tende a buscar a satisfação no futuro
onde, espera, possa alcançar a felicidade. A fixação dessa “estratégia” mental —
inconsciente — torna-se um paradoxo pois o futuro que se persegue nunca será
presente resultando numa crescente frustração. O risco, segundo Wilber — o que se
torna particularmente relevante para a nossa tentativa de ampliar a compreensão
da crise social —, é passarmos a identificar a felicidade com o próprio processo de
correr atrás dela e acabar “confundindo a felicidade com a sua busca” (Wilber, opus
cit., p. 112). A ilusão de poder alcançá-la pode me fazer correr mais depressa, como
se estivesse faltando fazer algo para alcançá-la, em um círculo vicioso de investimento
permanente na frustração.
A passagem para um novo nível de consciência se dá quando o indivíduo
enfrenta as dificuldades de internalizar mensagens e metamensagens trocadas sobre si e sobre o seu meio. Muitas vezes, as mensagens e metamensagens trocadas
fazem com que ele enfrente uma situação de impasse (Gestalt) ou de duplo-vínculo,
pois são contraditórias. O resultado do emaranhamento e distorção dos processos
metacomunicativos do indivíduo é um novo dualismo onde ele separa facetas da
própria psique, renegando e alienando aspectos de si mesmo, projetando-os ou
percebendo-os como sendo do meio ambiente, gerando uma imagem distorcida e
fragmentada de si mesmo. Esse processo gera o Nível da Sombra onde a Persona
será a auto-imagem distorcida e inexata, composta de fragmentos do ego verdadeiro e a Sombra corresponde às partes renegadas e projetadas do ego no meio
ambiente. Em resumo, nesse nível, o indivíduo promove uma cisão do próprio ego,
103
reprimindo e projetando uma parte fragmentada dele com a qual não se identifica,
gerando um novo dualismo entre Persona versus sombra.
Para Wilber, um dos grandes aspectos geradores desse nível — o Nível da Sombra — é o chamado por ele de “inconsciente filosófico” do indivíduo, que atua como
um filtro pessoal: as Faixas Filosóficas. Essas faixas englobam todas as suposições
metafísicas não examinadas, paradigmas pessoais não expostos, premissas intelectuais
básicas e os conjuntos simbólicos em que o indivíduo se insere. Portanto, esse processo
irá determinar a forma como o dualismo Persona / sombra se desenvolverá.
Esse é um pequeno resumo da interessante abordagem de Wilber sobre o Espectro
da Consciência. Algumas conseqüências desse modelo devem ainda ser destacadas.
A primeira delas diz respeito às características do conteúdo que, a cada nível,
passa pelo processo de Dualismo-repressão-projeção. Para Wilber, esse material se
torna inconsciente para o nível seguinte, ou seja, por exemplo, todo o material
reprimido e projetado “para fora” do Nível do Ego para a Sombra, é inconsciente
para a Persona. Por inconsciente, Wilber irá se referir aos aspectos de consciência
que por algum motivo não são totalmente apreendidos como objetos de percepção
passando então a poder caracterizar o inconsciente no espectro:
“Cada nível do espectro, por ser gerado por um dualismo-repressão-projeção particular, é sempre acompanhado de aspectos inconscientes particulares e específicos. Em outras palavras. Cada nível tem seu
próprio inconsciente, gerado pela superposição de um dos quatro principais dualismos-repressões-projeções.”(Wilber, opus cit., p. 118).
Como podemos observar, Wilber não desconsidera as contribuições de Freud
e seus seguidores na caracterização de uma instância inconsciente, mas amplia-o de
104
forma a abranger os demais fenômenos humanos. Para Wilber, portanto, seria
razoável se pretender um inconsciente total do indivíduo que resulta do somatório
de todos os aspectos que não são percebidos por um determinado nível de consciência e, como o indivíduo tem como base fundamental uma consciência não-dual
do universo, “o inconsciente ‘total’ consiste na soma de todas as características e
aspectos do universo com os quais — nesse nível [qualquer um deles] — já não no
identificamos, (...)” (Wilber, opus cit., p. 122).
O segundo aspecto diz respeito à ocorrência das patologias, principalmente as
psicopatologias. Tomando como base o Nível da Sombra, podemos identificar as
conseqüências do movimento de fragmentação e repressão de partes de si mesmo
para o “inconsciente da sombra” que, de forma paradoxal, continuam sendo do
indivíduo e acabam sendo ressaltadas ou destacadas na consciência, através de
desequilíbrios ou disfunções ou, ainda, “sintomas neuróticos”. Sem querermos
aprofundar essa análise das psicopatologias — que Wilber aborda em outra obra
(Wilber, 1999) — julgamos importante destacar a compreensão desse autor de que,
cada nível de consciência poderá gerar tipos diferenciados de psicopatologias, das
neuroses às psicoses. Com isso, os sintomas, de modo geral, representariam uma
forma de manifestação do conteúdo mantido em nível inconsciente em qualquer
dos níveis de consciência.
O último aspecto que gostaríamos de destacar da obra de Wilber, nessa sessão, diz respeito à tendência de movimento do espectro. Como o Nível da Mente
seria o nível de consciência cósmica por excelência e, assim, todos os demais representam algum tipo de “inconsciência”, o nosso psiquismo se “movimentaria” no
sentido de uma crescente e progressiva tentativa de integração dos conteúdos inconscientes de cada nível na direção da consciência cósmica. Esse aspecto nos
105
parece relevante pois remete a um movimento que, independente de, ou coerentemente com, aspectos individuais, culturais, sociais etc. levaria os indivíduos a uma
busca por uma integração dos seus aspectos fragmentados. Esse aspecto nos parece importante quando refletirmos, mais à frente, sobre o entendimento da crise
como transformação de valores, sentidos etc.
5.3.2- A Cartografia de Stanislav Grof
Stanislav Grof é hoje considerado um dos maiores estudiosos dos estados não
comuns de consciência (Walsh & Vaughan, 1997;Tarnas, 2000).
Ao longo de quarenta anos de pesquisas com estados não comuns de consciência, Grof desenvolveu um dos mais conceituados modelos de cartografia do
psiquismo humano. A partir de uma experiência pessoal em um programa de pesquisa psiquiátrica sobre o uso do LSD, Grof passou a se interessar pelos diversos
tipos de estados não comuns de consciência que o ser humano poderia experimentar. No início, suas pesquisas se concentravam em sessões de psicoterapia após a
utilização de micro-dosagens de LSD, controladas laboratorialmente em um grupo
experimental de indivíduos considerados psicologicamente saudáveis. Durante alguns anos também participou de um grande projeto de pesquisa para avaliação do
efeito da terapia psicodélica19 em pacientes terminais de câncer. Posteriormente,
Grof desenvolveu uma técnica própria chamada Respiração Holotrópica que associa
o emprego de respiração acelerada, música evocativa e trabalho corporal induzindo
o indivíduo a experienciar estados não comuns de consciência.
19
O termo terapia psicodélica é empregado para designar as práticas psicoterápicas que utilizam
algum tipo de recurso para levar o indivíduo a experimentar estados alterados e que baseiam sua
clínica na consideração dos conteúdos vivenciados por ele.
106
Superando todas as dúvidas pessoais que sua formação em psiquiatria e
psicanálise colocaram diante das observações iniciais, mas diante da consistência
de tais fenômenos, Grof entendeu que estava diante de um novo campo que exigia um ampliação ou revisão dos conceitos de psiquismo humano:
“Nesse momento, não tenho dúvidas de que os dados das pesquisas de estados não-comuns de consciência representam um desafio
conceitual crítico para o paradigma científico que atualmente domina a
psicologia, a psiquiatria, a psicoterapia e muitas outras disciplinas.” (Grof,
2000, p. 11).
Talvez a principal contribuição nessa revisão dirija-se ao conceito de consciência utilizado pela psiquiatria como sendo um epifenômeno da matéria, um produto
de processos neurofisiológicos do cérebro. Dentro da Psicologia Transpessoal, segundo Grof:
“Elas [pesquisas com estados não-comuns] mostram que a consciência é um atributo primário da existência e é capaz de muitas atividades
impossíveis de serem desempenhadas pelo cérebro. Segundo as novas
descobertas, a consciência humana é fragmento participante de um campo universal vasto de consciência cósmica que permeia toda a
existência.”(Grof, opus cit., p. 11).
Grof identificou que estes estados, que ele passou a chamar de Holotrópicos20
— onde a consciência humana poderia transcender as fronteiras restritas do ego
corporal e reivindicar uma identidade total — eram verificados em diversas culturas
antigas e pré-industriais como instrumentos de rituais e relações espirituais bem
como em diversos processos sociais como os ritos de passagem. Grof estudou inúmeros grupos e tradições culturais — como o xamanismo, tribos aborígenes da
África e América Central, culturas da Polinésia etc. — que utilizavam recursos diversos como plantas, danças, rituais, trabalhos respiratórios etc. para atingir estados
20
Por Holotrópico, Grof (1992) entende como o estado de consciência orientado para a totalidade /
inteireza, termo originado do grego (holos = totalidade / inteireza; trepein = indo em direção a algo).
107
não-comuns de consciência, observando que todos eles respaldavam suas pesquisas de laboratório e consultório.
Todo o trabalho de observação de Grof é resultado de milhares de sessões
com estados não-comuns de consciência durante mais de quarenta anos de pesquisas. Inicialmente foram mais de três mil sessões com LSD, bem como o acesso a
mais de dois mil relatórios de sessões conduzidas por colegas na Checoslováquia e
nos Estados Unidos (Grof, 1987, p. 20-21). Após o desenvolvimento da técnica da
Respiração Holotrópica, menciona em A Mente Holotrópica (Grof, 1994) o registro
de mais de vinte mil sessões com pessoas de países e estilos de vida diferentes. Esse
é outro dado relevante da pesquisa de Grof: o uso de estados não-comuns de
consciência revela semelhanças estreitas entre indivíduos de diferentes culturas e
condições socio-econômicas:
“Durante os últimos dez anos, nós temos usado a respiração
holotrópica com muitos milhares de participantes em nossos workshops
na América do Norte, América do Sul, diversos países europeus, Austrália e Ásia, e descobrimos que ela é igualmente efetiva em todas estas
áreas do mundo, apesar das grandes diferenças culturais envolvidas.”
(Grof, 1997, p. 18).
A reunião das observações de todo esse acervo proporcionou a Grof uma
visão ampliada sobre diversos fenômenos anteriormente classificados como patológicos pela ciência tradicional 21 por escaparem dos modelos explicativos psiquiátricos. Segundo Grof, o advento das terapias psicodélicas e as técnicas de indução
a estados não-comuns de consciência representa um desafio conceitual para a
Psicologia e Psiquiatria ocidentais que ainda resistem em considerar os estudos
realizados nessa área:
21
Consideraremos pelo termo Ciência Tradicional os modelos científicos — teóricos e práticos —
que se baseiam nas premissas do paradigma newton-cartesiano, em oposição aos modelos que
estão enquadrados no chamado Paradigma Emergente. (Grof, 2000).
108
“A rigidez com a qual os cientistas da corrente dominante têm
lidado com as informações acumuladas por todas essas disciplinas [estudos históricos, religião comparada, antropologia, pesquisas da consciência, parapsicologia, terapia psicodélica, psicoterapias experienciais,
hipnose, tanatologia] é algo que se esperaria de fundamentalistas religiosos. É muito surpreendente quando tal atitude ocorre no mundo da
ciência, já que isto é contrário ao próprio espírito do questionamento
científico. Mais de quatro décadas de pesquisa da consciência me convenceram de que um exame sério dos dados sobre estados holotrópicos
teria conseqüências de grande alcance não apenas para a teoria e prática psiquiátrica, mas também para a científica visão de mundo ocidental. A única forma pela qual a ciência moderna pode preservar sua
monística filosofia materialista é a exclusão e a censura sistemática dos
dados relativos aos estados holotrópicos.” (Grof, 2000, p. 31).
Na verdade, Grof precisou romper com alguns dos principais postulados do
modelo newton-cartesiano, característico da ciência ocidental dos últimos 3 séculos, para poder avaliar as experiências observadas em suas pesquisas. É exatamente
isso que ele apresenta em uma de suas principais e primeiras obras Além do Cérebro (Grof, 1987) em que descreve sua postura crítica diante do paradigma newtoncartesiano e sua proposta de estabelecer pontes, um “diálogo”, entre o modelo
científico tradicional e o modelo emergente:
“(...) a mensagem principal deste livro é que a ciência ocidental se
aproxima de uma mudança paradigmática de proporções inusitadas
que modificará nossos conceitos de realidade e da natureza humana,
fazendo uma ponte entre conhecimentos antigos e a ciência moderna,
reconciliando dessa forma a espiritualidade oriental e o pragmatismo
ocidental.” (Grof, 1987, p. 11).
Com os resultados mais recentes de seus estudos, Grof propõe uma revisão
radical de nossas idéias sobre a consciência e a psique humana. Para ele, essa
revisão deveria passar por algumas grandes categorias (Grof, 2000, p. 32):
•
A Natureza da Psique Humana e as Dimensões da Consciência;
•
A Natureza e a Arquitetura de Desordens Emocionais e Psicossomáticas;
109
• Mecanismos Terapêuticos Eficazes;
• Estratégia da Psicoterapia e da Auto-exploração;
• Papel da Espiritualidade na Vida Humana;
• A Natureza da Realidade: Psique, Cosmo e Consciência.
Uma das principais conseqüências desses estudos refere-se, certamente, à
questão das diferentes Dimensões da Consciência humana. Grof questiona a relação entre consciência e cérebro utilizada pela ciência tradicional, ou seja, de que a
consciência é um produto direto do cérebro, resultado de funções neurofisiológicas
básicas da existência do indivíduo. Grof, obviamente, não nega a relação estreita
entre certos aspectos da consciência com a estrutura física cerebral, exemplificada
nos efeitos na consciência provenientes de lesões, infecções, tumores ou derrames
nessa área do organismo. Entretanto, para Grof, isso não representa necessariamente que a consciência é um subproduto do cérebro. Grof apresenta, para ratificar
seu ponto de vista, uma interessante analogia com um aparelho de televisão (Grof,
1987, p.15; Grof, 1994, p.17).
“(...) um especialista em consertar aparelhos de televisão, ao perceber uma distorção de imagem ou som sabe, exatamente, o que há de
errado e quais são as partes que devem ser trocadas ou reparadas para
que o aparelho funcione bem novamente. Entretanto, ninguém encararia esse fato como prova de que é o aparelho que gera, dentro de si
mesmo, os programas a que assistimos quando o ligamos. Isso é, porém, o tipo de argumento que a ciência mecanicista apresenta como
prova de que a consciência é produzida pelo cérebro. (Grof, 1994, p.17).
Como foi visto, em todo o seu trabalho, tanto no período em que utilizou o
LSD quanto a partir do momento em que utilizou a Respiração Holotrópica, Grof
sempre teve como objeto de estudo os estados não-comuns de consciência, ou
seja, suas observações privilegiaram os fenômenos ocorridos em estados de ampliação da consciência para além das fronteiras usuais do tempo linear e espaço objetivo
110
considerados pela ciência tradicional. Portanto, pode sistematizar suas observações em uma nova Cartografia do psiquismo que levava em conta uma série de
fenômenos desconsiderados pela ciência tradicional. Como já dito, isso exigiu um
modelo mais abrangente de psiquismo que não desconsiderava as contribuições
da ciência tradicional, mas tornava essa compreensão da consciência mais
abrangente. Em especial, Grof identificou uma série de fenômenos com características semelhantes e agrupou-os em função dessas características diferenciais. Apesar de identificar os níveis mais associados aos sentidos humanos básicos e o nível
onde se observa a psicodinâmica psicanalítica, Grof vai oferecer uma significativa
contribuição na descrição dos chamados Domínios Transbiográficos: o domínio
perinatal (ou início das experiências transpessoais) e o domínio transpessoal:
“Conforme mencionado anteriormente, esse mapa contém, além
do usual nível biográfico, dois domínios transbiográficos: o domínio
perinatal, relacionado ao trauma do parto biológico; e o domínio
transpessoal, que explica fenômenos tais como a experiência de identificação com outras pessoas, animais, plantas e outros aspectos da natureza. Este último domínio também é a fonte de memórias ancestrais,
raciais, filogenéticas e cármicas, assim como de visões de seres
arquetípicos e de regiões mitológicas. As experiências extremas nessa
categoria são a identificação com a Mente Universal e com o Vazio
Supracósmico e Metacósmico. Os fenômenos perinatais e transpessoais
têm sido descritos através dos tempos na literatura religiosa, mística e
oculta de vários países do mundo.” (Grof, 2000, p.35).
Podemos identificar, aqui, uma aproximação importante entre os trabalhos
de Wilber e Grof. Ambos consideram o nível extremo da consciência como sendo
de uma unidade, uma espécie de consciência una, não dual, onde o indivíduo
experimentaria um profundo grau de interligação e interdependência com as dimensões do universo, normalmente chamadas por esses autores, e diversos outros
— Weil, Tabone, Tart etc — como cósmica. Embora Grof não se detenha em
descrever essa consciência como um nível, poderemos observar, mais adiante, que
111
algumas de suas experiências transpessoais aproximam-se da descrição feita por
Wilber sobre essa Consciência Cósmica.
Grof resume sua cartografia em quatro níveis principais:
O NÍVEL ABSTRATO E ESTÉTICO: são experiências mais superficiais,
onde não se verificam conteúdos simbólicos relacionados com a personalidade do
indivíduo e podem ser explicadas pela anatomia e fisiologia dos órgãos sensoriais,
enquadrando-se nos conceitos newton-cartesianos desses campos de saber.
O NÍVEL PSICODINÂMICO, BIOGRÁFICO OU REMEMORATIVO:
as experiências desse tipo envolvem lembranças de memórias emocionalmente intensas e relevantes de qualquer período da vida do indivíduo. Podem ter conteúdo
eminentemente simbólico. Os fenômenos ocorridos nessas experiências podem ser
trabalhados através da estrutura teórica psicanalítica com sucesso. Aliás, Grof chega
a afirmar que esse nível “é a prova laboratorial das premissas básicas da psicanálise.” (Grof apud Tabone,1992, p. 47). Porém, há uma diferença importante entre a
psicoterapia experiencial profunda de Grof e a psicanálise. Na experiencial, o
conteúdo do material biográfico não é apenas relembrado ou reconstruído mas
plenamente vivido envolvendo as emoções, sensações físicas, percepções visuais e
outros dados percebidos pelos sentidos na situação original.
O NÍVEL PERINATAL E INÍCIO DAS EXPERIÊNCIAS
TRANSPESSOAIS: Grof utiliza o termo perinatal (palavra composta greco-latina
no qual o prefixo peri significa ao redor ou perto e a raiz natalis a relação de
proximidade com o nascimento). Grof identificou que, apesar das alegações de que
o feto não tem suficiente maturidade do córtex cerebral para registro de memórias,
112
era freqüente a ocorrência de experiências rememorativas desse período pelos
indivíduos em uma sessão experiencial. Grof (1987) relata a confirmação de casos
pesquisados onde o indivíduo não possuía conhecimento de detalhes do seu
nascimento que, depois de vivenciados em uma sessão psicoterápica, são confirmados. Grof (1987, 1997) estabelece, ainda, uma conexão entre o nascimento
biológico e as experiências perinatais, associando estágios clínicos da gestação e do
parto às experiências no nível perinatal. Com isso, ele identifica quatro conjuntos de
experiências conforme o período perinatal em que são vividos, ao que chamou de
Matrizes Perinatais Básicas I, II, III e IV.
O NÍVEL TRANSPESSOAL: Nesse nível ocorrem as experiências
transpessoais propriamente ditas, ou seja, o indivíduo experimenta fenômenos que
têm como denominador comum a expansão ou extensão da consciência “normal”,
percebendo uma ampliação do senso de identidade além da imagem corporal e/ou
da percepção espaço-temporal do estado de vigília.
O primeiro nível descrito por Grof — abstrato e estético — representa, basicamente, os efeitos iniciais das experiências em estados não-comuns de consciência
onde o indivíduo percebe uma certa ativação de seus órgãos sensoriais. Grof vai
considerá-los, inclusive, como uma espécie de barreira que deve ser ultrapassada
para dar acesso aos níveis posteriores da consciência. Normalmente, as experiências nesse nível não apresentam significado simbólico pessoal não levando a um
processo de auto-entendimento e auto-exploração. Grof relata que “Alguns aspectos dessas experiências podem ser explicados a partir de certas caraterísticas
anatômicas e fisiológicas dos órgãos sensoriais”(Grof, 1987, p.69) enquadrando-se
nos modelos newton-cartesianos vigentes.
113
O próximo nível — o biográfico-rememorativo ou inconsciente individual —
consistiria de nossas memórias de infância, adolescência e vida adulta, bem como
todo o material espontaneamente esquecido ou ativamente reprimido conforme a
descrição feita por Freud. Grof observa ser este material biográfico pós-natal o campo
de atuação das escolas de Psicologia e Psiquiatria ocidentais tradicionais, mas destaca
algumas diferenças na condução destas abordagens verbais em relação aos trabalhos
vivenciais das terapias experienciais. Nessas últimas, o indivíduo não apenas relembra
os eventos emocionais significativos ou os reconstrói através dos sonhos, atos falhos,
parapraxias ou processos transferenciais mas revive-os como emoções, sensações
físicas e demais impressões originais do evento, em uma espécie de regressão total
(Grof, 2000, p.36). Ao acessarmos esse material podemos revivê-lo literalmente, isto
é, com o mesmo nível de emoções, sensações físicas, percepção corporal da época
em que ocorreu o episódio traumático possibilitando a liberação dos efeitos
remanescentes desse trauma a partir de uma integração mais equilibrada do episódio
no psiquismo. O trabalho em estados não-comuns de consciência parece acelerar
grandemente esse processo. As observações dessas experiências no nível biográfico,
sob esse novo enfoque, permitiu a Grof elaborar um novo insight sobre a estrutura de
registro desse material traumático no psiquismo: Sistemas COEX (Sistemas de
Experiência Condensada). Faremos uma breve descrição pela relevância,
principalmente terapêutica, que esse sistema representa na obra de Grof.
O conceito de Sistema COEX surgiu para Grof a partir do seu trabalho
psicoterápico com clientes que sofriam diversas modalidades de psicopatologias
severas. Ao estimular o trabalho com estados não-comuns de consciência com esses
indivíduos eles começavam a reviver situações de diversos períodos de sua biografia
pós-natal com significativa carga emocional e sensorial. Apesar da ênfase nos aspectos
negativos, em função dos objetivos terapêuticos, os sistemas COEX também podem
registrar núcleos de experiências prazeirosas. Para Grof, então:
114
“Um sistema COEX consiste de memórias com carga emocional,
de diferentes períodos de nossas vidas, que se assemelham pela qualidade da emoção ou sensação física que compartilham. Cada COEX
tem um tema básico que permeia todas as suas camadas e que representa seu denominador comum. As camadas individuais contêm variações desse tema básico que ocorreram em diferentes períodos da vida
da pessoa. O inconsciente de um determinado indivíduo pode conter
várias constelações COEX. Sua quantidade e a natureza dos temas centrais varia consideravelmente de pessoa para pessoa.” (Grof, 2000, p.37).
Na verdade, ao longo de suas pesquisas, Grof observa que o sistema COEX
não governa apenas o material inconsciente do nível biográfico mas pode ser considerado um princípio geral de funcionamento do psiquismo, com raízes profundas na
experiência do nascimento biológico do indivíduo — que veremos em detalhes no
nível perinatal — e também nos domínios mais profundos da consciência humana:
“Além desses componentes perinatais, os típicos sistemas COEX
têm raízes ainda mais profundas. Podem alcançar a vida pré-natal e o
campo dos fenômenos transpessoais, como experiências de vida passada, arquétipo do ‘inconsciente coletivo’, e identificação com outras formas de vida e com processos universais. Minhas experiências de pesquisa com os sistemas COEX convenceram-me que não apenas servem
para organizar o inconsciente individual, como eu antes imaginara, mas
organizam toda a psique.” (Grof, 1994, p.42).
O papel atribuído ao sistema COEX por Grof, como princípios gerais de funcionamento e organização da psique humana, revela-se de uma importância significativa nos processos psicológicos:
“Os sistemas COEX desempenham um importante papel em nossa vida psicológica. Eles podem influenciar a forma pela qual percebemos a nós mesmos, a outras pessoas e ao mundo, e como nos sentimos
e agimos. Eles são as forças dinâmicas por trás dos nossos sintomas
emocionais e psicossomáticos, dificuldades em relacionamentos com
outras pessoas e comportamentos irracionais.” (Grof, 2000, p.38).
Após o nível biográfico-rememorativo ou inconsciente individual, Grof identificou o nível perinatal ou início das experiências transpessoais. Grof também se
115
refere a esse nível como nascimento e morte pois envolve experiências não necessariamente ocorridas no nascimento do indivíduo mas onde experenciou “lutas”
internas ou externas, simbólicas ou reais para a manutenção da vida diante de uma
ameaça. Em um certo sentido, as experiências perinatais representam verdadeiras
lutas para a efetivação pela vida tendo o indivíduo que enfrentar diversas dificuldades
até orgânicas do meio materno em que se encontra para alcançar, finalmente, no
momento crítico do parto, sua condição externa da existência.
A possibilidade de uma lembrança de episódios ocorridos durante a gestação
e parto do indivíduo encontra séria restrição por parte da ciência tradicional, tendo
em vista que essa considera como condição básica para os processos de memorização
a completa mielização do córtex cerebral (Grof., opus cit., p.45). A despeito desse
entendimento, os indivíduos revivem esse período com intensidade emocional e
sensorio-motora compatíveis com os acontecimentos reais vividos, trazendo inclusive
detalhes desse período que desconheciam em seus registros biográficos de memória.
Tais pesquisas, dentre outras (Verny & Kelly, 1991), têm demonstrado que o parto
pode ser considerado um dos traumas mais profundos da experiência humana com
grandes repercussões psicológicas, comportamentais e de grande importância
psicoespiritual.
Além dessa observação importante sobre a capacidade de registro de memória independente do aparelho físico do indivíduo, Grof observou que as experiências comuns revividas pelos indivíduos no nível perinatal podiam ser
divididas em quatro grandes grupos e que correspondiam a fases fisiológicas
específicas da gestação e parto:
“Apresentam-se em quatro típicos padrões experienciais ou constelações. Há uma profunda correspondência entre esses grupos temáticos
116
e os estágios clínicos do processo biológico do nascimento. Essa correspondência provou ser bastante útil para a teoria e a prática de um profundo trabalho experiencial visando postular a existência de matrizes
dinâmicas hipotéticas, orientadoras do processo relacionado com o nível perinatal do inconsciente e denominadas Matrizes Perinatais Básicas
(MPB).” (Grof, 1987, p.73).
O estudo das Matrizes Perinatais Básicas é utilizado por Grof para identificar
psicopatologias decorrentes da forma e intensidade com que o indivíduo passa por
esses períodos traumáticos da sua existência. Grof vai, portanto, relacionar dimensões
tanto biológicas quanto psicológicas, arquetípicas e espirituais às Matrizes Perinatais.
O resumo a seguir apresenta essa correlação das Matrizes Perinatais Básicas I,
II, III e IV.
Primeira Matriz Perinatal Básica (MPB I): chamada também de União
Primordial com a Mãe, está associada ao período que vai da concepção ao início
do trabalho de parto. Nessas experiências o feto não tem percepção de fronteiras e
da noção de externo e interno, sendo experienciada como flutuar num oceano ou
experiências tipicamente aquáticas.
Segunda Matriz Perinatal Básica (MPB II): também chamada de
Engolfamento Cósmico, Sem saída ou Inferno, está associada ao início do parto
biológico com as primeiras contrações mas ainda sem a abertura do colo do útero.
O indivíduo tende a reviver como um sugamento para um gigantesco redemoinho,
podendo também vivenciar como se todo o universo estivesse sendo engolfado.
Pode ocorrer uma sensação de uma esmagadora ameaça vital, nos sentirmos presos dentro de um monstruoso pesadelo, sujeitos a enormes dores físicas e emocionais agonizantes com a sensação de desespero e desamparo totais. Uma impressão
de que esta situação não terminará nunca e de que não há saída para ela.
117
Terceira Matriz Perinatal Básica (MPB III): ou a Luta de MorteRenascimento. Está associada ao início da propulsão do feto pelo canal de parto
após a abertura do colo do útero. As pressões mecânicas esmagadoras vividas nesse
momento parecem desencadear todo o sentido de luta pelo renascimento diante da
morte iminente. Normalmente é vivida com alto nível de ansiedade e a luta ‘feroz’
que se trava parece oferecer um sentido, uma direção definida.
Quarta matriz Perinatal Básica (MPB IV): ou a Experiência de MorteRenascimento. Está associada ao momento de expulsão final do canal de parto e o
corte do cordão umbilical. Essa matriz se caracteriza por uma vivência que pode ser
acompanhada de memórias concretas e realistas do parto biológico e todos os
procedimentos usados. Atingimos uma liberação explosiva de emoções e sensações
com significativo conteúdo para o indivíduo: “Reviver o parto biológico não é uma
experiência da repetição simples e mecânica do evento biológico original: é também
uma experiência de morte e renascimento psicoespiritual” (Grof, 2000, p.65). A
sensação de morrer e a agonia durante a luta para nascer refletem a dor e a ameaça
à vida presentes paradoxalmente no processo do parto biológico.
O nível perinatal — descrito acima em suas matrizes básicas — representa
uma interface entre o domínio biográfico inicial e o próximo domínio da consciência denominado de transpessoal. As experiências do nível perinatal parecem abrir
novas perspectivas sobre os domínios e fronteiras da consciência humana para um
novo patamar de fenômenos que não podem ser entendidos pelos modelos tradicionais. Quando estudadas pelo modelo tradicional newton-cartesiano essa categoria de experiências vividas pelos indivíduos tendem a ser consideradas estranhas —
pois abalam suas suposições mais fundamentais — ou, na maioria das vezes, como
resultados de ações patológicas. Ao considerar que a consciência não é um
118
epifenômeno da matéria não estando vinculada exclusivamente aos processos
neurofisiológicos do cérebro, Grof estabelece uma nova possibilidade de explicação para esses fenômenos.
Através de suas observações, Grof afirma que os fenômenos transpessoais
revelam conexões entre os indivíduos e o cosmo muito mais significativas do que se
podia imaginar, rompendo os limites do espaço e tempo. Para Grof:
“O denominador comum do rico e ramificado grupo dos fenômenos transpessoais é a sensação que a pessoa tem de que sua consciência se expandiu além dos limites usuais do ego e transcendeu as limitações de tempo e espaço.” (Grof, 1997, p.54).
Esse, aliás, o principal sentido para a utilização da expressão trans-pessoal, ou
seja experiências em que se observa subjetivamente uma expansão ou extensão da
consciência além dos limites do corpo e do ego, tanto na dimensão espacial como
na temporal da existência. Em várias de suas obras (Grof, 1987, 1994, 1997, 2000)
Grof ressalta esse aspecto das experiências transpessoais das quais destacaremos
uma das principais citações do autor:
“No estado ‘normal’ ou usual da consciência nós nos sentimos
vivendo entre os limites do corpo físico (imagem do corpo) e nossa
percepção do meio ambiente é restringida por uma cadeia, fisicamente
determinada, de exteroceptores, isto é, órgãos do sentido excitados por
estímulos que se originam fora do corpo. Tanto a interocepção (percepção interna) quanto a exterocepção (percepção do mundo externo) são
confinadas pelos limites usuais de espaço e tempo. Em situações normais, vivenciamos fortemente apenas o momento presente e o meio
ambiente que nos cerca; relembramos o passado e antecipamos o futuro ou o idealizamos.
Nas experiências transpessoais, uma ou muitas das limitações acima mencionadas parecem ser transcendidas. Muitas experiências dessa categoria são interpretadas pelos sujeitos como regressão no
tempo histórico e exploração de seu passado biológico ou espiritual.
(...) Alguns outros fenômenos transpessoais envolvem transcendência
119
de barreiras espaciais em vez de barreiras temporais. (...) Em grande
parte de experiências transpessoais a extensão da consciência parece
sobrepujar o mundo fenomenal e o continuum tempo-espaço como
percebemos em nossa vida diária.” (Grof, 1987, p.99).
É a partir dessa reflexão que Grof passa a sistematizar as experiências
transpessoais em função do conteúdo que apresentam. A preocupação de Grof não
é hierárquica mas fenomenológica das experiências. Portanto, ele divide as
experiências transpessoais em três grandes grupos: experiências que envolvem
expansão ou extensão da consciência dentro do conceito comum de tempo e espaço;
experiências que envolvem expansão ou extensão da consciência além do conceito
comum de espaço e tempo; e as experiências “psicóides” (Grof, 1994) ou de Natureza Paranormal (Grof, 1997). A tabela abaixo (Grof, 2000, p.71) apresenta a descrição detalhada de todas as experiências catalogadas por Grof.
“EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAIS
Extensão Experiencial dentro do Espaço-Tempo e da Realidade Consensual:
Transcendência de Barreiras Espaciais:
•
Experiência de união dual;
•
Identificação com outras pessoas;
•
Identificação grupal e consciência grupal;
•
Identificação com animais;
•
Identificação com plantas e processos botânicos;
•
União com a vida e toda a criação;
•
Consciência planetária;
•
Experiências com seres e mundos extraterrestres;
•
Identificação com todo o universo físico;
•
Fenômenos psíquicos envolvendo a transcendência do espaço;
120
Transcendência de Barreiras Temporais
•
Experiências embrionárias e fetais;
•
Experiências ancestrais;
•
Experiências raciais e coletivas;
•
Experiências de encarnações anteriores;
•
Experiências filogenéticas;
•
Experiências de evolução planetária;
•
Experiências cosmogenéticas;
•
Fenômenos psíquicos envolvendo a transcendência do tempo;
Explorações Experienciais do Micromundo
•
Consciência orgânica e tissular;
•
Consciência celular;
•
Experiência do DNA;
•
Experiência do mundo dos átomos e das partículas subatômicas.
Extensão Experiencial Além do Espaço-Tempo e Realidade Consensual:
•
Experiências espíritas e mediúnicas;
•
Fenômenos energéticos do corpo sutil;
•
Experiências de espíritos de animais (animais de poder);
•
Encontros com guias espirituais e seres supra-humanos;
•
Visitas a universos paralelos e encontros com seus habitantes;
•
Experiências de seqüências mitológicas e de contos de fada;
•
Experiências de divindades específicas extasiadas e coléricas;
•
Experiências de arquétipos universais;
•
Compreensão intuitiva de símbolos universais;
•
Inspiração criativa e o impulso de prometeu;
121
•
Experiências do demiurgo e insights da criação cósmica;
•
Experiências de consciência cósmica;
•
O vazio Supracósmico e Metacósmico;
Experiências Transpessoais de Natureza Psicóide:
Sincronicidades (interação entre experiências intrapsíquicas e a realidade
consensual)
Eventos psicóides Espontâneos
•
Façanhas físicas sobrenaturais;
•
Fenômenos espíritas e mediunidade física;
•
Psicocinese espontânea recorrente (Poltergeist);
•
Ovnis e experiências de abdução por alienígenas;
Psicocinese Intencional
•
Magia cerimonial;
•
Curas e feitiços;
•
Siddhis da ioga;
•
Psicocinese laboratorial.”
É importante destacar que a classificação feita por Grof baseia-se, em sua
maior parte, em experiências transpessoais vividas ou testemunhadas por ele próprio na pesquisa psicodélica, nas sessões de respiração holotrópica e no trabalho
com pessoas que passavam por episódios espontâneos de estados não-comuns de
consciência, acrescidos de alguns poucos fenômenos parapsicológicos não observados por ele nesses trabalhos mas descritos pela literatura mística ou pesquisadores modernos dessa área. Para os objetivos de nosso trabalho algumas dessas experiências são de maior relevância e serão detalhadas no próximo capítulo por envolTabela 1 - Classificação de Grof das Experiências Transpessoais
122
verem aspectos que podem ampliar a compreensão da crise ocidental bem como
dos impasses decorrentes da ideologia individualista em nossa sociedade.
Em todas essas experiências, um dos aspectos mais marcantes para Grof é a
importância do potencial de cura e transformação nos domínios transpessoais para
diversos tipos de psicopatologias consideradas severas para os moldes da ciência tradicional. Grof destaca um importante aspecto dos estados holotrópicos que desempenham fundamental importância no entendimento do potencial terapêutico das experiências transpessoais: o funcionamento de um “radar interno”. Segundo o próprio Grof:
“Os estados holotrópicos tendem a empregar algo semelhante a
um ‘radar interno’, que traz à consciência, automaticamente, os conteúdos do inconsciente que têm a maior carga emocional, que são
psicodinamicamente mais relevantes na ocasião e que estão mais disponíveis para o processamento consciente.” (Grof, 2000, p.42).
Este mesmo princípio é utilizado em diversas outras abordagens mais atuais —
como a Orientação Naturalista da hipnose ericksoniana (Dr. Milton Erickson) — que
consideram que cada indivíduo possui internamente todos os recursos para superar as
dificuldades e reencontrar o equilíbrio psíquico (O’Hanlon, 1994, p.19; Rossi, 1997).
É preciso deixar claro que o presente trabalho apresenta um pequeno resumo da
obra e das contribuições de Grof sobre as novas perspectivas da consciência e psiquismo
humanos, não pretendendo ser uma síntese completa dessas idéias. Os leitores poderão
se utilizar das referências bibliográficas para aprofundar suas informações e reflexões
dobre a pesquisa de Grof, já que seria inviável, pelos nossos objetivos, reproduzir em
detalhes todas as propostas e reflexões desse autor. Destaco, principalmente as obras
Além do Cérebro, Aventura da Autodescoberta e Mente Holotrópica. Para os que
desejarem ter uma visão geral sobre o pensamento e conteúdos das pesquisas de Grof,
remeto à sua mais recente obra A Psicologia do Futuro.
123
5.3.3- A Escolha por Grof e Wilber
Mesmo não sendo nosso objetivo refletir sobre as pesquisas da Psicologia
Transpessoal, foi necessário estendermo-nos na apresentação dessa proposta já que
os seus elementos serão necessários para a discussão que se seguirá.
Uma das grandes diferenças que já podemos identificar entre os trabalhos de
Ken Wilber e Stanislav Grof está no referencial de que se utilizaram para desenvolver suas teorias e propostas. Apesar de se aproximarem de forma significativa no
estabelecimento dos principais níveis da consciência, Grof parte de uma extensa
investigação prática — a partir de suas pesquisas, inicialmente com o LSD e posteriormente com a Respiração Holotrópica — para, em seguida, sistematizar suas
observações em uma teoria. Já Wilber parte de uma reflexão intelectual, filosófica e
religiosa comparativa entre as tradições orientais e as principais escolas do ocidente. Uma outra diferença que pode ser destacada é a de que a classificação proposta
por Grof é fenomenológica e não hierárquica, como a de Wilber.
A escolha por esses teóricos da Psicologia Transpessoal considerou uma certa
complementaridade entre as duas propostas. Wilber tem o estudo especulativo
intelectual abrangente que enfatiza os níveis biográficos e pós-natais que podem ser
comparados com as principais escolas psicológicas e sociológicas da ciência
tradicional, mas não destaca as faixas transpessoais apesar de introduzi-las. Já Grof,
enfoca principalmente essas faixas transpessoais pois seu método de trabalho
objetivava exatamente os estados não-comuns de consciência. Poderíamos dizer
que a associação dos dois nos oferece uma dimensão ampliada das novas tendências
de compreensão do indivíduo, sua psique e sua consciência ratificando o interesse
por essa escolha para os objetivos desse trabalho.
124
Outra colocação que se faz importante está relacionada à dificuldade que
tivemos de estabelecer um critério de escolha dos autores do Movimento Transpessoal
que pudessem ser representantes desse pensamento. Diante da diversidade de obras
encontradas, tivemos que proceder a uma escolha que considerasse a estruturação
do pensamento, sua aproximação com o tema da dissertação, seu reconhecimento
no próprio Movimento Transpessoal, consistência, coerência etc.. É importante frisar
que existem diversas outras contribuições dentro dessa nova abordagem que
poderiam ser utilizadas, cada uma com sua especificidade. A escolha por esses
teóricos também não representa nossa concordância irrestrita com seus pensamentos. O que pretendemos é, exatamente, poder fazer uma discussão crítica entre as
posturas que foram apresentadas que se relacionem, de alguma forma, com a crise
da sociedade ocidental.
A partir da escolha e recorte que fizemos, nosso desafio é investigar os desdobramentos teóricos que a Psicologia e o Movimento Transpessoais vêm produzindo, buscando maiores e melhores elementos para o “Diálogo” a que nos propomos. Talvez a dicotomia Indivíduo / Sociedade que vem dividindo, em alguns
momentos, o pensamento ocidental, possa encontrar uma nova forma de leitura
onde o Indivíduo é a base mas com a consciência de integração com os outros seres
que coabitam seu mundo e o meio em que vive — Sociedade — modelo que não
admite o sucesso e felicidade de um ser em detrimento da felicidade de outro ser.
Algumas perguntas sobre a liberdade e a igualdade absolutas, sobre a exigência de auto-suficiência e competitividade deverão ser refeitas no nosso “diálogo”.
Também os valores que são encontrados nos indivíduos que passaram por experiências transpessoais poderão oferecer material de reflexão para a compreensão de
nossa crise da sociedade contemporânea. Para Grof (1997-a, p. 237):
125
“Em última análise, os problemas que enfrentamos não são, em
sua natureza, meramente econômicos, políticos ou tecnológicos. Todos
eles são reflexos do estado emocional, moral e espiritual da humanidade contemporânea. (...) Os valores das pessoas que viveram fortes experiências transformadoras e tiveram êxito em aplicá-las à vida cotidiana demonstram mudanças bastante significativas. Esse progresso revela-se muito promissor em termos do futuro do mundo, já que representa
um abandono das características destrutivas e autodestrutivas da personalidade e uma emergência daquelas que promovem a sobrevivência
individual e coletiva.”
O presente trabalho não pretende uma compreensão romântica ou moralizadora da crise da sociedade contemporânea, mas uma reflexão com base na contribuição de autores com significativo percurso acadêmico e com trajetória expressiva
em termos de publicações na área da transpessoalidade, como pode ser verificado
no ANEXO II ao final desse trabalho.
126
CAPÍTULO 6
O OLHAR DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL
“A ciência moderna desenvolveu eficazes meios que poderiam
resolver a maior parte dos problemas urgentes no mundo atual — combater a maior parte das doenças, eliminar a fome e a pobreza, reduzir a
quantidade de lixo industrial e substituir os combustíveis fósseis destrutivos
por fontes de energia limpas e renováveis. Os problemas que se interpõem não são de natureza econômica ou tecnológica: suas fontes mais
profundas encontram-se dentro da personalidade humana. Por causa
disso, recursos inimagináveis têm sido desperdiçados no absurdo da
corrida armamentista, nas lutas por poder e na busca de ‘crescimento
ilimitado’. Esse motivo também impede uma mais apropriada distribuição de riqueza entre indivíduos e nações, assim como uma reorientação
de preocupações puramente econômicas e políticas para prioridades
ecológicas que são críticas para a continuidade da vida no planeta.
(...) As estratégias usadas para aliviar essa crise estão desde o
início enraizadas na mesma ideologia que a criou. Em última análise, a
atua crise global é basicamente de natureza psicoespiritual: ela reflete o
nível de evolução de consciência da espécie humana. É, portanto, difícil
imaginar que ela possa ser resolvida sem uma radical transformação
interna da humanidade, em larga escala, e sua elevação a um nível mais
alto de maturidade emocional e consciência espiritual.”
(STANISLAV GROF)
127
Como pudemos perceber, a Psicologia Transpessoal oferece uma nova
perspectiva no entendimento da noção de indivíduo. Ampliando a compreensão
dos níveis de expressão do ser humano, esse novo saber possibilita considerar o
indivíduo como um ser integrado — interrelacionado e interdependente — dos
demais níveis da experiência humana e das formas de vida com as quais convive —
humanas e não-humanas. A descrição das mudanças de comportamento e de valores
promovidas por aqueles que passam por experiências transpessoais, espontâneas
ou provocadas, não só no sentido da cura de psicopatologias mas, também, com
um nível de maior qualidade na integração e interrelação na vida familiar e social,
nos levam a cogitar sobre os seus possíveis desdobramentos sociais.
Para os objetivos de nosso trabalho, oferece material de reflexão sobre os fatores
que vêm determinando os aspectos da crise da sociedade contemporânea em suas
características mais importantes. A tendência da ciência tem sido a de trabalhar com
uma prevalência da noção de indivíduo influenciada pelas escolas psicológicas que
priorizam a atuação do ego, seja freudiano ou de outras denominações que representam
essa instância do psiquismo, na determinação dos comportamentos e condutas
pessoais, evidenciando o individualismo, o desejo de consumo atendendo às
necessidades externas, a realização pessoal, a auto-suficiência e o isolamento. A
Psicologia Transpessoal permite que a consciência desloque-se para outros níveis
onde há uma maior integração com as demais dimensões da existência — biológico
humano e não-humano, social, cultural, existencial, espiritual — rompendo com a
prevalência do indivíduo isolado do seu contexto existencial mais amplo.
6.1- UMA OUTRA CONCEPÇÃO DE INDIVÍDUO
Como podemos depreender da apresentação dos dois exemplos de cartografia da consciência utilizados pelos autores transpessoais mencionados, existe uma
128
série de características comuns a essas abordagens sobre a “composição” da consciência humana. Essas características acabam por oferecer uma nova concepção de
indivíduo e, para os objetivos do nosso trabalho, são de fundamental importância
no diálogo que visa a compreensão da crise da sociedade ocidental atual. Esboçaremos, então, um resumo das principais características da nova concepção de indivíduo para podermos refletir sobre as dimensões sociais do “novo indivíduo” e as
possibilidades de entendimento da crise.
Um ponto que deve, primeiramente, ser abordado diz respeito à dificuldade
que experimentam os indivíduos inseridos em uma cultura específica, em um código lingüístico e simbólico específico, em lidar com uma gama de experiências que
parecem fora da realidade considerada “normal”. Portanto, é preciso levar em
consideração nossa dificuldade de apreensão de termos e experiências em estados
não-comuns de consciência já que estamos inseridos em um sistema de pensamento e conhecimento que valoriza apenas as experiências da chamada consciência de
vigília. Sobre isso Daniel Goleman diz que:
“Nossa realidade cultural normativa é sujeita a especificidade de
estado. Na medida em que a “realidade” é uma convenção validada
por consenso, apesar de arbitrária, um estado alterado de consciência
pode representar um modo anti-social, rebelde, de ser. (...) Embora o
sistema de valores culturais que levou à preeminência do estado de
vigília em detrimento dos estados alterados (exceto a intoxicação alcoólica) tenha se demonstrado funcional em termos de crescimento
econômico — por exemplo —, ele também condenou a nossa cultura a
uma relativa falta de sofisticação em termos de estados alterados de
consciência (EAC).” (Goleman, in Walsh & Vaughan, 1997, p.33).
Portanto, parece-nos importante lançar mão da tolerância ativa exigida nos
trabalhos transdisciplinares para interagir com um novo conjunto de termos e conceitos estabelecido por essas pesquisas.
129
Uma das características comuns aos modelos de consciência do indivíduo
na Psicologia Transpessoal é a visão pluridimensional da consciência em
diversos níveis diferenciados e interligados. Todos os autores consideram a
consciência estratificada em níveis diferenciados e que possuem características
próprias, apesar de todos enfatizarem que as fronteiras entre os níveis não são
precisamente definidas. Como vimos, mesmo com abordagens diferentes, Grof e
Wilber partem do mesmo princípio de consciência pluridimensional. Para Charles
Tart (1997) a consciência pode ser decomposta em muitas partes que funcionam
conjuntamente, formando um sistema composto de estruturas, funções e
subsistemas relativamente permanentes do psiquismo. A possibilidade de percepção
desses componentes da consciência depende do direcionamento do que,
normalmente, chamamos de atenção/percepção.
Um dos desdobramentos dos aspectos da visão pluridimensional refere-se
à interligação entre os níveis de consciência. Tendo em vista que todos os níveis são
expressão de uma mesma origem ou fonte básica (Consciência Cósmica), a
diferença existente entre eles é de certa forma ilusória. A Psicologia Transpessoal
considera, então, a consciência como um continuum. Para Wilber: “Os níveis
do Espectro da Consciência não são de modo algum descontínuos — como qualquer espectro, eles se fundem infinitamente entre si.” (Wilber, 1997, p.39).
Já Grof, utilizando sua própria nomenclatura para a diferença de estados de
consciência, considera o indivíduo como um campo de consciência de amplas proporções: o campo de consciência hilotrópica e o campo de consciência holotrópica.
Segundo o próprio Grof:
130
“A pesquisa moderna indica claramente que os seres humanos
têm uma estranha natureza paradoxal. Parece apropriado pensar nas
pessoas como objetos newtonianos separados, nos contextos tradicionalmente explorados pela ciência mecanicista — como máquinas biológicas feitas de células, tecidos e órgãos. Contudo, as descobertas recentes confirmam as afirmações da filosofia perene e das grandes tradições
místicas de que os humanos podem também funcionar como campos
infinitos de consciência, transcendendo as limitações de tempo, espaço
e causalidade linear. Esta imagem tem seu paralelo subatômico no famoso paradoxo partícula-onda em relação à matéria e à luz descrito por
Niels Bohr no princípio da complementaridade.
Estes dois aspectos complementares da natureza humana estão
conectados experiencialmente com os dois modos de consciência diversos que foram
mencionados brevemente (pp. 52,53). O primeiro aspecto pode ser denominado
como consciência hilotrópica, que é traduzido como consciência orientada pela
matéria. O nome deriva do grego hylé = matéria e trepein = mover-se na direção
a. É o estado mental que experienciamos na vida cotidiana, e que a psiquiatria
ocidental considera como o único normal e legítimo — aquele que reflete
corretamente a realidade objetiva do mundo.
No modo de consciência hilotrópico, um indivíduo se experiência como uma entidade física sólida, com limites definidos e
com uma amplitude sensorial limitada. O mundo parece formado por
objetos materiais separados e tem características claramente
newtonianas: o tempo é linear, o espaço é tridimensional, e todos os
eventos parecem ser governados por cadeias de causa e efeito. (...)
Contrastando com o modo hilotrópico, estreito e restrito,
a variedade holotrópica envolve a experiência de si mesmo como um
campo de consciência potencialmente ilimitado, que tem acesso a todos os aspectos da realidade sem a intermediação dos sentidos.
Holotrópico é traduzido literalmente como a busca da totalidade ou
como movimento para a totalidade (de grego holos = todo e trepein
= em direção a). (...)
Estes dois modos parecem um jogo dinâmico na psique
humana. A consciência hilotrópica parece ser atraída por elementos
do modo holotrópico e, vice-versa, as formas holotrópicas mostram
uma tendência a se manifestar na consciência cotidiana.” (Grof, 1997,
p.223-225).
131
As inúmeras experiências transpessoais estudadas pela Psicologia Transpessoal
levam também a uma nova concepção de consciência do indivíduo, a de que a
consciência humana não se reduz aos mecanismo neurofisiológicos do
organismo biológico:
“Mais de três décadas de estudo sistemático da consciência humana levaram-me a conclusões que muitos psiquiatras e psicólogos tradicionais poderiam julgar implausíveis ou totalmente incríveis. Hoje,
acredito firmemente que a consciência é mais que um subproduto dos
processos neurofisiológicos e bioquímicos do cérebro humano. Vejo a
consciência e a psique humanas como expressões e reflexos de uma
inteligência cósmica que permeia todo o universo e toda a existência.
Somos também campos ilimitados de consciência transcendendo tempo, espaço, matéria e causalidade linear.”(Grof, 1994, p.33-34).
A possibilidade de se ampliar a concepção da consciência humana para além
dos mecanismos neurofisiológicos do cérebro, sustenta a hipótese da Psicologia
Transpessoal de que as experiências transpessoais — onde há uma transcendência
das dimensões de tempo, espaço e realidade objetiva (associada aos sentidos básicos) — podem referir-se a eventos ocorridos fora do contexto biográfico do indivíduo, ou seja, experiências arquetípicas, raciais, de outras espécies da natureza,
experiências ancestrais ou até de supostas vidas passadas do indivíduo.
Em todas as propostas de formulação de cartografias do psiquismo constatamos, basicamente, que os autores consideram a visão pluridimensional a partir
de dois extremos distintos: em um extremo uma consciência una, não dual do universo e, no outro, uma consciência de partes específicas da personalidade pessoal.
Lançaremos mão da posição, representativa dessa opinião, de Wilber:
“(...) o Espectro da Consciência é uma visão pluridimensional da
identidade humana, ou seja, cada nível do Espectro é marcado por
sensos de identidade individual diferentes e facilmente reconhecí-
132
veis, que vão desde a Identidade Suprema da consciência cósmica
até o estreito senso de identidade que se associa à consciência egóica,
passando por diversas gradações ou faixas.”(Wilber, in Walsh & Vaughan,
1997, p. 35). (grifos nossos).
Esses são, então, outros aspectos comuns nas propostas de cartografia
transpessoal que abordaremos a seguir: consciência cósmica e senso de identidade de cada nível de consciência.
Os níveis associados à dinâmica pessoal do indivíduo — como os níveis Persona,
Ego e Existenciais de Wilber ou os Níveis Estéticos e Psicodinâmicos de Grof — podem
ser mais facilmente apreendidos pois representam o objeto de estudo das abordagens
psicológicas ocidentais tradicionais, apesar de aqui serem tratados de forma
diferenciada. As maiores dificuldades parecem estar na identificação e compreensão
do conceito de Consciência Cósmica — referido por Grof e por Wilber (Nível da
Mente) —, bem como na definição operacional de aspectos objetivos de avaliação da
experiência de um estado de consciência cósmica. Para Weil (1989):
“Entre as características isoladas por diversos autores, podemos
citar:
Unidade: é o desaparecimento da percepção dual Eu-Mundo.
Inefabilidade: a experiência não pode ser descrita com a semântica usual.
Caráter noético: um senso absoluto de que o que é vivido é real,
às vezes muito mais real do que a vivência quotidiana comum.
Transcendência do tempo-espaço: as pessoas entram numa outra
dimensão; o tempo não existe mais e o espaço tridimensional desaparece.
Sentido de sagrado: o senso de que algo grande, respeitável e
sagrado está acontecendo.
Desaparecimento do medo da morte: a vida é percebida como
eterna, mesmo se a existência física é transitória.
Mudança de sentido do sistema de valores e de comportamento:
muitas pessoas mudam os seus valores no sentido dos valores B de
Maslow (Beleza, Verdade, Bondade etc.) Há uma subestimação pro-
133
gressiva dos valores ditos materiais e do apego ao dinheiro. O ‘Ser’
substitui o ‘Ter’.” (Weil, 1989, p.10).
Como primeiro e mais básico nível de consciência, a consciência cósmica
se caracteriza por um senso de identidade característico onde o indivíduo percebe sua identificação com o universo:
“Neste nível, estamos identificados com o universo, o Todo — ou
melhor, nós somos o Todo. Segundo a psicologia perene, este nível não
é um estado anormal de consciência, mas antes o único estado real de
consciência, todos os demais constituindo essencialmente ilusões.”
(Wilber, 1997, p.37).
Descrevendo as características da experiência de consciência cósmica, Weil
(1989) traz nova contribuição para o entendimento do conceito:
“O termo traduz uma experiência em que determinadas pessoas
percebem a unidade do Cosmos, se percebem dentro dela (e não fora,
como muitos poderiam imaginar); a experiência é acompanhada de
sentimentos de profunda paz, plenitude, amor a todos os seres. Compreende-se de um relance o funcionamento e a razão de ser dos universos, a relatividade das três dimensões do tempo e do espaço, a insignificância e ilusão do mundo em que vivemos, os erros monumentais
cometidos por muitos seres humanos; uma iluminação acompanha
muitas destas percepções. A morte é vista apenas como uma passagem
para outra espécie de existência e o medo dela desaparece totalmente.
Ela pode ser e é, em geral, o resultado de uma longa e lenta evolução;
às vezes, no entanto, ela constitui o início de uma profunda transformação no sentido dos valores mais elevados da humanidade; neste último
caso ela acontece em momento inesperado.”(Weil, 1989, p.19).
A partir desse nível básico de consciência, cada autor irá privilegiar um determinado critério para relacionar os níveis componentes da consciência. Em cada um
deles, se manifestará um determinado senso de identidade, ou seja, o indivíduo
estará identificado com diferentes dimensões da realidade. De todos os níveis já
apresentados anteriormente das cartografias de Grof e Wilber, os de maior impor-
134
tância nesse ponto de nosso trabalho são os chamados Níveis ou Faixas
Transpessoais.
A importância desses níveis está na possibilidade de ampliação do senso de
identificação além dos critérios associados exclusivamente ao organismo físico,
como o próprio nome sugere “além do pessoal”, transcendendo as fronteiras usuais
do corpo e do ego. Wilber afirma que: “Nela [Faixa Transpessoal], embora não se
tenha consciência da própria identidade com o Todo, a identidade não está confinada aos limites do organismo individual.”(Wilber, 1997, p.37).
Para Grof, nossa consciência comum está marcada pelo estado hilotrópico
(material, pessoal e individual) e a ampliação dos níveis de consciência, pelos estados holotrópicos (espiritual, transpessoal e cósmico). Portanto, as experiências
transpessoais representam a superação das barreiras sensoriais ou da nossa percepção diária do mundo, onde vivemos uma condição de relativa separatividade
da natureza, dos objetos, dos animais e dos outros indivíduos:
“A natureza extraordinária dos fenômenos transpessoais torna-se
óbvia quando os comparamos com a nossa percepção diária do mundo
e das limitações que consideramos obrigatórias e inevitáveis. No estado
comum ou normal da consciência, percebemos a nós mesmos como
corpos materiais sólidos e a nossa pele como a fronteira e a interface
com o mundo exterior. Nas palavras do famoso escritor e filósofo Allan
Watts, um intérprete e divulgador dos ensinamentos orientais no Ocidente, isto leva-nos a acreditar em ‘egos encapsulados pela pele’. (...)
Nos estados transpessoais da mente, todas essas limitações
parecem ser transcendidas. Podemos nos sentir como uma atividade
energética ou um campo de consciência que não está confinado a um
recipiente físico. Isso pode se desenvolver mais para a identificação com
a consciência de outras pessoas, grupos de indivíduos ou até mesmo
com toda a humanidade. O processo pode se estender além dos limites
humanos e incluir vários animais, plantas e até materiais inorgânicos e
acontecimentos.” (Grof & Grof, 1995, p.149-150).
135
Em resumo, podemos afirmar que os principais aspectos comuns nas pesquisas com estados não-comuns de consciência e que geraram diversos modelos de
cartografia do psiquismo são:
•
Visão pluridimensional da consciência;
•
Consciência como um continuum;
•
Consciência não é um epifenômeno da matéria;
•
Consciência Cósmica como base da estrutura;
•
Senso de identidade diferenciado em cada nível de consciência;
•
Níveis, Faixas e Experiências Transpessoais.
A partir desse resumo, iremos destacar algumas características específicas de
diferentes cartografias na tentativa de introduzir uma visão transpessoal dos fenômenos sociais e, posteriormente, podermos estabelecer um entendimento para a
crise da sociedade ocidental atual com base nessa concepção de indivíduo.
6.2- O INDIVÍDUO IDENTIFICADO COM O GRUPO E A HUMANIDADE: INTERDEPENDÊNCIA E INTERLIGAÇÃO
A citação anterior de Grof, sobre a expansão dos limites usuais da realidade
objetiva ocorrida nas experiências transpessoais, traz à tona uma possibilidade de
reflexão para a questão da crise social. Em Aventura da Autodescoberta (1997),
Grof faz uma detalhada descrição das principais experiências transpessoais observadas ao longo de suas pesquisas, apresentadas acima. Como pode ser visto, as
experiências transpessoais se dividem em três grandes categorias:
136
a) Expansão Experiencial Dentro da Realidade e do Espaço-Tempo
Consensuais;
b) Extensão Experiencial Além da Realidade e do Espaço-Tempo Consensuais;
c) Experiências Transpessoais de Natureza Paranormal (ou Psicóide).
Nossa atenção se prenderá, nesse momento, à categoria onde há uma
transcendência das barreiras consensuais de espaço e tempo.
A principal característica dessa categoria de experiências transpessoais está,
como o próprio nome diz, no rompimento das barreiras usuais da realidade e do
tempo-espaço percebidos pela consciência de vigília. Dentre essas, nos interessam
as experiências de Transcendência dos Limites Espaciais. Segundo Grof:
“As experiências transpessoais que envolvem transcendência de
barreiras espaciais sugerem que os limites entre o indivíduo e o resto do
universo não são fixos e absolutos. Sob circunstâncias especiais é possível identificar-se vivencialmente com qualquer coisa no universo, incluindo o próprio cosmo.” (Grof, 1997, p.60).
Grof começa por relatar experiências onde o indivíduo é capaz de perceber-se
em união dual com outra pessoa — Experiência da Unidade Dual. Nessa experiência, o indivíduo percebe uma dissolução e fusão dos limites do ego corporal
com outra pessoa em um estado de unidade e totalidade, mas mantendo a
consciência de sua própria identidade. Grof identifica muitas dessas experiências
nos relatos de vivências de memórias perinatais, principalmente as de fusão simbiótica
com o organismo materno (amamentação, p.ex.).
Outra experiência relatada é a Identificação com Outras Pessoas. Muito
próxima da anteriormente descrita, essa envolve a imagem corporal, as sensações
137
físicas, as reações emocionais e atitudes, os processos de pensamento, as lembranças etc., em diferentes formas, graus e níveis de identificação. Esta identificação
pode estar associada a figuras parentais na história biográfica de experiências importantes do indivíduo, além de figuras famosas históricas e públicas.
Uma das experiências que mais nos interessa desse quadro é a da Identificação Grupal e Consciência Grupal. Neste subgrupo Grof identifica uma experiência característica de identificação onde os limites de consciência se dissolvem de tal forma que o indivíduo passa a ter a sensação de fazer parte de todo um
grupo de pessoas com características comuns: raciais, culturais, nacionais, ideológicas, políticas, profissionais, qualidade da experiência física e emocional ou a
situação e o destino que uniram essas pessoas:
“A fusão progressiva de limites pode resultar em experiências de
identificação com um grupo social ou político, ou com a população de
todo um país ou continente, ou com todas as pessoas que pertencem a
uma raça específica, ou com os crentes de uma grande religião. No
extremo, é possível identificar-se com a experiência de toda a humanidade e toda a condição humana — com sua alegria, raiva, paixão,
tristeza, glória e tragédia.”(Grof, 1997, p.65).
Esse nível de identificação pode, em alguns raros casos, chegar aos limites da
totalidade da vida no planeta, incluindo toda a humanidade, a flora, a fauna etc. A
experiência pode levar o indivíduo a uma percepção ampla dos complexos processos da vida ou a manifestar a impressionante inteligência cósmica criativa que rege
o universo. Para Grof:
“Algumas vezes, a experiência de identificação com toda a vida é
apenas horizontal, envolvendo todas as interações e interdependências
complexas das diversas formas de vida, em todas as trocas de seus
sinergismos e antagonismos que constituem a ecologia planetária.(...)
Este tipo de experiência pode resultar numa profunda compreensão das
leis cósmicas e naturais, numa percepção ecológica ampliada, e numa
grande sensibilidade aos problemas criados pelo desenvolvimento
tecnológico e pela industrialização acelerados.”(Grof, opus cit., p.74).
138
Para dar maior clareza à abrangência e repercussão de um desses tipos de
experiência para o indivíduo, reproduziremos um dos relatos de caso de um psiquiatra que passou por uma sessão com LSD, tendo essa sessão ocorrido pouco tempo
após uma visita de cinco semanas à Índia:
“Neste ponto, eu fui inundado pelas lembranças de minha recente viagem à Índia, vivenciando novamente o quanto fui profundamente
tocado pela amplitude de existência incrivelmente vasta que pode ser
encontrada naquele país — desde a miséria profunda até a beleza
atemporal da arquitetura e escultura sublimes dos templos e as mais
elevadas realizações do espírito humano. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, a ênfase da minha experiência mudou.
Em vez de ser um visitante e um observador, eu me tornei realmente
identificado com aquilo que eu estava percebendo. E, então, o espectro
da minha experiência foi além da extensão de minhas lembranças reais
da Índia.
Eu percebi que eu havia me tornado O POVO DA ÍNDIA! Por
mais difícil que possa ser imaginá-lo no estado de consciência cotidiano, eu sentia que era um imenso organismo cujas ramificações e elementos constituintes eram os incontáveis milhões de pessoas que habitam o subcontinente da Índia. A melhor comparação que posso encontrar é com o corpo humano. Cada célula é, de alguma maneira, uma
entidade separada, mas é também uma parte infinitesimal do organismo total. E a consciência e a autopercepção refletem o todo, não as
partes individuais. De uma forma semelhante, eu era uma única e imensa entidade consciente — a população da Índia.
Contudo, ao mesmo tempo, eu estava me identificando também
com indivíduos leprosos e mendigos aleijados nas ruas de Bombaim e
Calcutá, mascates vendendo cigarros bidi ou nozes, criancinhas famintas com câncer na boca, ou morrendo nas sarjetas, multidões piedosas
realizando suas cerimônias de purificação no Ganges ou cremando seus
parentes nos ghâts de cremação em Benares, os sadhus despidos repousando em samadhi no gelo e na neve do Himalaia, confusas noivas
adolescentes unindo-se a estranhos em cerimônias de casamento combinados por suas famílias, e os marajás poderosos e fabulosamente ricos.
Toda a glória e a miséria da Índia apareceram em minha experiência como os diversos elementos de um organismo cósmico, uma divindade de proporções imensas cujos milhares de braços estavam tocando e tornando-se todos os aspectos possíveis de minha existência.
Uma profundidade e amplitude de sensações inimagináveis preencheu
todo o meu ser; eu senti uma conexão indescritível com a Índia e seu
povo.” (Grof, 1997, p.66).
139
A última experiência que gostaríamos de destacar do conjunto apresentado
por Grof em Aventura da Autodescoberta, é a chamada Consciência Planetária.
Nessa classe de experiências os indivíduos vivenciam uma consciência que abrange
todos os aspectos do planeta Terra incluindo aspectos geológicos, a biosfera com
todas as formas de vida, inclusive os humanos:
“Deste ponto de vista, toda a Terra parece ser um organismo complexo, uma entidade cósmica cujos diversos aspectos — geológico, biológico, psicológico, cultural e tecnológico — podem ser vistos como
manifestações de um esforço constante para alcançar um nível de evolução, integração e auto-realização mais elevado.”(Grof, 1997, p.78).
Afirmações desse tipo, vindas de pessoas das mais diferentes formações culturais e sociais, convergem para estudos que sugerem, a partir de diversas evidências,
a possibilidade de se considerar a Terra como um organismo vivo e inteligente
(Roszak, 1978; Bateson, 1979; Lovelock, 1979; Russel apud Grof, 1997, p. 79;
Lovelock apud Thompson, 1990).
Quais seriam as contribuições que essa forma de experiência transpessoal
poderia oferecer ao nosso estudo? Ao observarmos o conteúdo dos relatos dessas
experiências e partindo da hipótese de que a estrutura da consciência se dê,
efetivamente, em níveis estruturados, como afirmam esses autores respaldados por
suas pesquisas, podemos supor que esses relatos refletem a existência de um
determinado nível de consciência em que o indivíduo se identifica com outras
pessoas, grupos com características afins, com a humanidade, com os diversos
processos planetários e com a própria vida. Podemos, então, inferir que, em um
nível de consciência diferente do comumente vivenciado pelo indivíduo, podemos
estar em contato com a situação ou condição de grupos sociais maiores como a
nação, a raça, classe econômica etc. ou, de uma forma mais geral, com a sociedade. Essa afirmação pode oferecer importante subsídio para uma compreensão de
140
processos psicossociais onde há engajamento e participação de indivíduos em “causas” específicas, mobilizados por sentimentos e atitudes aflorados de forma repentina. Podemos supor que, nesses casos, houve um acesso a um nível de consciência
de grupo que resulta em uma mobilização de valores e comportamentos compatíveis com essa nova atitude. É comum a referência à descoberta ou eclosão de uma
consciência ecológica ou movimentos de consciência negra, por exemplo, talvez
refletindo o acesso natural de pessoas — nem sempre ligadas aos grupos específicos — às necessidades, sofrimentos, discriminações etc. percebidos pelos seus componentes ou pelo grupo como um todo (na caso da consciência ecológica, a própria necessidade da humanidade de sobrevivência, bem como da Terra enquanto
supostamente “organismo” vivo).
Como desenvolveremos mais à frente, é possível que aspectos da crise como
a perda de referenciais de vários tipos e a angústia existencial — que levaram muitos
indivíduos bem situados, materialmente falando, às chamadas “revoluções silenciosas” — possam expressar conflitos íntimos comuns a indivíduos que já pressentem
um nível de consciência social mais ampla — ainda inconsciente — sem ainda se
darem conta disso conscientemente.
6. 3 - A DINÂMICA HORIZONTAL E VERTICAL DAS
ESTRUTURAS (KEN WILBER)
Julgamos importante, nesse ponto de nosso trabalho, apresentar algumas reflexões sobre os desdobramentos sociológicos dessa nova concepção de indivíduo. Iremos
nos basear no trabalho de Ken Wilber que, principalmente na obra Um Deus Social
(Wilber, 1987), apresenta a possibilidade de análise sociológica a partir dos estudos
transpessoais. Wilber parte de seu modelo do Espectro da Consciência aplicando-o
141
como uma estrutura de desenvolvimento para poder avaliar os diversos níveis de
interação social. Parte da análise das diferentes formas de conhecimento, associando-as
aos níveis da estrutura de desenvolvimento do indivíduo passando a compará-las com
a evolução das religiões. Sua opção é por uma análise das respostas psicológicas e
sociológicas ao movimento religioso buscando um entendimento das interações sociais.
Primeiramente, Wilber analisa as principais respostas sociológicas que, segundo ele, têm sido oferecidas ao movimento religioso. A religião pode ser vista a
partir de uma Teoria de Primitivização, onde é considerada como um estágio
primitivo ou inferior do desenvolvimento humano — deslocando-se, na evolução
histórica, da religião mítica para a metafísica e, posteriormente, para a ciência
racional. O Funcionalismo que tende a considerar a religião como parte da sociedade, sendo analisada pela função útil ou necessária na construção da sociedade. A Hermenêutica Fenomenológica trata o símbolo religioso exatamente pelo
o que ele diz ser e só pode ser compreendido a partir de uma interpretação empática.
O Estruturalismo de Desenvolvimento defende que as estruturas psicológicas
desenvolvem-se de forma hierárquica, semelhante ao desenvolvimento histórico
do pensamento religioso.
A partir dessas abordagens, Wilber propõe uma Abordagem Geral onde
existe uma hierarquia não somente de desenvolvimento psicossocial mas também
de desenvolvimento religioso autêntico, uma incorrendo precisamente na outra,
como extremidades de um único espectro. Wilber acaba considerando que determinada experiência religiosa pode ser hierarquizada em função do nível do espectro de consciência que representa. Portanto, para Wilber, o racionalismo científico
— característico da sociedade ocidental atual — não seria o último estágio da estrutura
de desenvolvimento humano, mas sua base necessária para estágios hierarquicamente mais elevados ou, por ele chamados transracionais.
142
Diante da comparação da evolução filogenética com a ontogenética, Wilber
descarta a conclusão de alguns autores de que o pensamento religioso seria expressão das fases imaturas / infantis, pré-pessoais ou pré-racionais do indivíduo. Esses
autores tratam a religião como uma estrutura entre outras e não algo potencialmente partilhado por todas as outras estruturas, daí suas conclusões de que “o crescente desenvolvimento histórico mostrará claramente uma eventual religiosidade
decrescente.”(Wilber, 1987, 42) já que a ciência racional juntamente com o raciocínio operacional formal e hipotético-dedutivo está no topo da hierarquia. A premissa implícita é de que não há uma estrutura de consciência religiosa altamente
desenvolvida ou pelo menos não tanto quanto é a racional-científica.
Wilber (Wilber, 1987, p.45) vai defender a existência de estágios de
estruturalização superiores ao pensamento operacional formal:
a) Ontogeneticamente: o indivíduo pode evoluir para estágios superiores de
consciência ainda não especificados no pensamento operacional formal do ocidente;
b) Filogeneticamente: evolução da cultura humana contínua enfrentando níveis adicionais e superiores de estruturalização (r)evolucionária. São as estruturas
transracionais.
Na sua pesquisa, Wilber passa a buscar relações com as tradições orientais
onde pudesse encontrar descrições do que poderiam ser os níveis transracionais.
Utiliza primeiramente os sistemas psicológicos do budismo e do hinduísmo, explorando depois as repercussões destes no sufismo, na cabala, no neoconfucionismo,
no cristianismo místico e outras tradições esotéricas. Ficou surpreso ao verificar que
estas tradições descreviam, sem tantos detalhes, as características gerais da estrutu-
143
ra de desenvolvimento ocidentais em níveis (chamada por ele de base ortodoxa)
acrescentando outros níveis ‘superiores’ em termos de organização e de integração
estrutural da consciência “e que esses estágios manifestam de maneira crescente o
que só pode ser chamado de tom espiritual ou transcendental.” (Wilber, 1987, p.47).
Acrescenta, então, aos níveis da psicologia do desenvolvimento ortodoxa,
novos níveis compatíveis com os níveis transpessoais de seu Espectro. Sua nova
proposta de estrutura do desenvolvimento humano seria, então, formado pelos 6
(seis) primeiros níveis da base ortodoxa acrescido de mais 3 (três) níveis
transpessoais:
1 - Físico: o simples substrato físico do organismo;
2 - Sensório-perceptivo: áreas de sensação e percepção; (conhecimento sensório-motor simples de Piaget);
3 - Emotivo-sexual: invólucro da bioenergia, libido;
4 - Mágico: início das esferas mentais; símbolos simples e primeiros conceitos rudimentares; (processo primário de Freud, pensamento
pré-operacional de Piaget, necessidades de segurança de Maslow);
5 - Mítico: apresenta um princípio de pensamento operacional
concreto (Piaget) e de perspectivismo, mas ainda incapaz do raciocínio
hipotético-dedutivo; ( necessidade de pertinência de Maslow);
6 - Racional: o pensamento operacional formal de Piaget; primeira estrutura capaz de pensar sobre o pensar, auto-reflexiva e introspectiva;
primeira estrutura capaz de pensar hipotetico-dedutivamente ou
proposicional; (necessidades de auto-estima de Maslow);
7 - Nível Psíquico: trabalha com os resultados do nível operacional
formal estabelecendo um entrelaçamento das relações obtidas naquele
nível; lógica panorâmica ou visionária (operações cognitivas de nível
superior onde é possível sintetizar, integrar conceitos, relacionar ‘verdades’ etc.) Seu “movimento mais característico é uma ideação maciça,
um sistema ou totalidade de ver a verdade num único exame; (...) autoobservadas no todo integral.”(Wilber, opus cit., p.50). Ainda é uma estrutura pessoal altamente integrada que se avizinha das conjunturas
transcendentais. (Necessidades de auto-realização de Maslow);
8 - Nível Sutil: sede dos arquétipos, do insight transcendental;
uma estrutura verdadeiramente transracional (não pré ou anti-racional)
a intuição no sentido mais elevado; (necessidades de auto-transcendência
de Maslow)
9 - Nível Causal: base transcendental de todas as estruturas inferiores; a própria consciência radical e trancendental; (nirvikalpa samadhi
144
do hinduísmo, jnana samadhi no Vedanta) É o nível onde o dualismo
sujeito-objeto é transcendido e a realidade passa a ser una com a divindade. A pessoa se torna desprovida do ego, “assumindo uma identidade absoluta com toda a manifestação, superior ou inferior, sagrada ou
profana.”(Wilber, opus cit., p.54).
Dessa nova estrutura de desenvolvimento humano, Wilber apresenta uma definição do que ele chama Indivíduo Composto:
“(...) dizemos que o ser humano é um indivíduo composto —
composto de todos os níveis anteriores de desenvolvimento e completo
pelo atual. Potencialmente, então, o ser humano compõe-se de matéria,
prana, mente, alma e espírito.”(Wilber, opus cit., p.60).
Para uma simplificação, Wilber resume os níveis da organização estrutural
para 5 (cinco) com seus termos mais usualmente empregados: Matéria (1), corpo
(2-3), mente (4-6), alma (7-8) e espírito (9-10) 22 .
A partir dessas premissas, Wilber começa a estabelecer seu entendimento para
a dinâmica em operação dentro e entre níveis da estrutura do indivíduo composto,
bem como entre os diversos indivíduos compostos. Wilber afirma que cada nível
representa um processo de troca — troca relacional — com outros níveis correspondentes da organização mais ampla do processo planetário em geral. Em resumo, as
principais características da troca relacional seriam:
• cada nível transcende mas inclui os seus predecessores;
• cada nível do indivíduo composto age em um sistema complexo de relacionamentos com os níveis correspondentes de organização estrutural no processo
mundial de modo genérico;
• a humanidade se reproduz em cada nível através de um intercâmbio dos
elementos desse nível com os níveis correspondentes do mundo de um modo geral;
22
O nível número 10 seria a própria Mente, não sendo considerado um nível em si, mas a própria
consciência absoluta na qual todos os outros níveis estariam “imersos”.
145
• cada nível está inserido em uma sociedade de trocas ou de relacionamento
social específico:
“Torna-se, então, evidente que cada nível constitui parte intrínseca de uma corrente deslizante de trocas relacionais, conseqüentemente
representando ele próprio, em seu cerne, uma sociedade de trocas ou
de relacionamento social.” (Wilber, opus cit., p.61);
• Os indivíduos compostos estão interligados entre si, em sociedade, pelos
níveis de troca:
“Cada nível forma uma sociedade de relacionamentos ou de oportunidades de troca, em que o indivíduo composto consiste numa sociedade dessas sociedades, irremediavelmente interligado com outros seres humanos nas sociedades deles.” (Wilber, opus cit., p.61);
• A noção de troca relacional expressa-se em necessidade e impulsos, correspondentes às características de cada nível, como se existissem alimentos para
cada nível.
• Sendo um processo de troca relacional, cada nível se liga necessariamente
aos objetos que satisfazem suas necessidades. Então, os três principais aspectos do
processo de troca relacional seriam: ‘estrutura’, ‘necessidade’ e ‘relações entre objetos’.
• Apesar de apoiar-se no nível inferior, o superior não é por ele causado nem
constituído: “O crescimento do nível superior representa em parte o processo da
transcendência vertical ou diferenciação (e depois integração) do nível inferior através
do qual passou ao surgir.”(Wilber, 1987, p.63). O nível superior só surge, de fato,
quando se diferencia totalmente do inferior, transcendendo-o. Wilber utiliza a analogia
com os estágios de diferenciação da infância: separação eu/meio, diferenciação mente
e corpo etc.
Como podemos observar, é dessa forma que os indivíduos se interligam na
sociedade, percebendo-se componentes de uma totalidade da qual fazem parte,
146
buscando intercâmbio de elementos de cada nível de sua estrutura. Quanto mais
adequado é este intercâmbio, mais as relações existentes na humanidade se efetivam.
Quando esse intercâmbio não satisfaz às necessidades ou impulsos do indivíduo do
nível preponderante pode se estabelecer uma crise, pois os elementos do nível atual
não são suficientes para essa satisfação e os elementos de outro nível — superior —
ainda podem não estar totalmente conscientes. Abordaremos esse processo em
maiores detalhes quando apresentarmos as diversas visões da crise ocidental a
partir da abordagem transpessoal.
Wilber exemplifica essa dinâmica a partir dos exemplos de contribuições de
pensadores como Marx e Freud, apesar de destacar seu caráter reducionista. Com
base na observação dos níveis da organização estrutural e da troca relacional do
indivíduo composto, muitos desses teóricos tomaram um dos níveis, estudaram suas
dinâmicas mas tentaram convertê-lo em paradigma. No exemplo citado, Marx se
fixou no nível material e Freud no afetivo-sexual procurando explicar (reduzir) todos
os demais fenômenos — cultura, ego, mente, religião etc. — como decorrentes
exclusivamente deles.
A abordagem estruturada em níveis que se relacionam pode ampliar as reflexões para uma abordagem em Sociologia — uma Teoria Crítica em Sociologia:
“Minha opinião é que uma teoria sociológica completa, unificada
e crítica seria mais bem elaborada em torno de uma análise
multidisciplinar detalhada da lógica de desenvolvimento e dos níveis
hierárquicos das trocas (psicossociais) relacionais que constituem o indivíduo composto. A teoria seria crítica sob dois importantes aspectos:
(1) adjudicativa com relação a cada nível superior da organização estrutural e crítica com relação à parcialidade comparativa do nível inferior, (2) crítica com relação às distorções no intercâmbio, quando e se
ocorrerem em qualquer nível específico.” (Wilber, opus cit., p.70).
147
O primeiro dos aspectos da teoria crítica representaria uma crítica entre níveis
enquanto que o segundo aspecto uma crítica dentro de um nível. Essa formulação passa
a ser de fundamental importância no pensamento de Wilber, com veremos a seguir.
Wilber faz uma consideração sobre como deveria ser uma análise mais coerente da Sociologia a partir dos novos modelos de consciência, como vimos acima.
Ele vai identificar como sendo essencial um entendimento das relações existentes
entre as estruturas que representam cada nível e entre os níveis: Ele faz uma analogia
da organização estrutural dos níveis como um edifício de andares, onde (1) cada
andar representa uma estrutura profunda; (2) a mobília de cada andar, constitui estruturas superficiais; (3) o movimento das estruturas superficiais chama translação; (4) o
movimento das estruturas profundas, transformação; e (5) a relação entre uma estrutura
profunda e suas estruturas superficiais, transcrição.(Wilber, opus cit., p.74).
Outra característica importante da abordagem de Wilber está na consideração
de que as estruturas profundas são a-históricas enquanto as estruturas superficiais
são históricas:
“Trata-se de um pequeno exemplo de um postulado global referente aos níveis básicos da organização estrutural: até onde surgiram, as
estruturas profundas da consciência (...) são relativamente a-históricas,
coletivas, invariáveis e acumuladas, enquanto suas estruturas superficiais são sempre variáveis, historicamente condicionadas e culturalmente
moldadas. Assim, por exemplo, a estrutura profunda da mente
operacional formal é, até onde sabemos, idêntica onde quer que se
manifeste, porém as formas superficiais em si dessa mente — seus sistemas particulares de crença, ideologias, linguagens, costumes e assim
por diante — são diferentes em toda a parte amplamente moldadas
pela cultura na qual essa própria mente desenvolve-se.” (Wilber, opus
cit., p.76).
148
Para Wilber, o desenvolvimento ou crescimento se dará em duas dimensões
primárias:
a) horizontal-evolucionária-histórica: translação = integrar, estabilizar e
equilibrar um dado nível;
b) vertical-revolucionária-transcendental: transformação = reorganização
revolucionária de elementos anteriores e o surgimento de novos; transcender um
dado nível.
Ou seja, podemos inferir que, a cada movimento de transformação para
estruturas superiores, o movimento de translação poderá ganhar novas possibilidades dentro do próprio nível inferior, ampliando sua capacidade de integrar, estabilizar e equilibrar as trocas relacionais com os seus objetos. A transcendência não
exige que o nível inferior seja descartado, mas sim contextualizado, relativizado na
sua importância (antes tida como vital ao indivíduo e que, agora, representa o
alimento do novo nível, até a próxima transformação etc.). Isso ocorre a partir de
uma reorganização dos elementos existentes e com o surgimento de novos:
“Ao atentarmos para o desenvolvimento vertical ou transformativo,
torna-se um pouco mais evidente o que está em questão: para um indivíduo passar para o nível superior seguinte, ele deve, na verdade, aceitar a morte do atual nível de adaptação, ou seja, cessar uma identidade
exclusiva com esse nível.(...) Em cada caso, somente quando suficientemente forte para morrer em determinado nível é que o eu pode transcender esse nível, ou seja, passar para o nível superior seguinte de maneira específica de fase, de alimento, de mana. À medida que o eu
identifica-se com o novo nível e começa a adaptar-se aos seu alimentomana, então enfrenta o medo de morrer nesse e para esse nível, e os
seus movimentos translativos entram em ação para proteger a nova
versão da mortalidade perpétua que de outro modo paralisaria o movimento do eu.” (Wilber, opus cit., p.84).
149
A percepção desses novos níveis (superiores) não se dá de forma automática.
O indivíduo pode começar a perceber elementos parciais e fragmentados do nível
superior que, de alguma forma, já estimulam ou atendem a uma demanda de suas
necessidade ou impulsos, mesmo que esses não sejam plenamente conscientes para
o indivíduo no nível de consciência que predomina. É daí que Wilber define a
ocorrência das experiências culminantes relatadas pelos indivíduos: “como um insight
temporário de (e influxo de) um dos níveis autênticos da organização estrutural
religiosa (psíquico, sutil, causal).” (Wilber, opus cit., p.101).Ou ainda:
“As experiências culminantes autênticas (em oposição aos curtoscircuitos estáticos-emocionais) normalmente ocorrem com aqueles que
evoluíram ao nível racional da adaptação estrutural, embora ocasionalmente aconteçam com aqueles ainda em um nível mítico ou mágico. A
fé verdadeira parece conduzir à experiência; os sistemas de crença parecem inibi-la.” (Wilber, opus cit., p.102).
Aqui os pontos importantes parecem ser a importância que ele dá ao nível
racional como predispondo à ocorrência da experiência que ‘transforma’, experiências culminantes e o fato de que o insight é temporário, isto é, não permanece, porque
pertence a outro nível, mas opera uma grande transformação na troca relacional
daquele nível. Nas palavras de Wilber: são uma olhadela nos níveis de organização
estrutural superior. Muitos pesquisadores, na opinião de Wilber, acabaram considerando as experiências culminantes apenas como eventos isolados e não como
representantes de níveis superiores que poderiam ser vividos de forma estável quando fosse feita a transformação (diferenciação) definitiva. Os relatos e comprovações
das tradições orientais poderiam representar a possibilidade de efetivação desses
estágios como etapas posteriores do pensamento e consciência humanos.
Com base nos relatos das tradições orientais, Wilber considera que o pensamento humano vem evoluindo do arcaico, ao mágico, ao mítico, ao racional, tendo
150
a estrutura de filiação mítica já atingido o limite das suas capacidades integrativas.
Considera então o desenvolvimento moderno caracterizado por uma crescente
racionalização que ainda não esgotou todo o seu potencial, e caminha para o nível
psíquico, ao sutil e ao causal, ao final. Wilber, ao contrário de muitos pensadores e
teóricos que consideram as contribuições orientais, julga ser:
“a tendência à racionalização em si necessária, desejável, adequada, específica de fase e evolucionária. (...) uma expressão cada vez
mais avançada da consciência e da percepção clara que tem por meta
final, e contribui para, a ressurreição do Espírito-Geist.
Também julgo a adaptação racional perfeitamente religiosa (...):
capaz de fornecer uma visão de mundo legítima, convincente, integradora
e significativa, (...). Contudo não nos pode proporcionar uma Visão
Total do Mundo”(Wilber, opus cit., p.111).
Para o nosso estudo, Wilber faz importantes reflexões sobre os efeitos da
elevação do nível racional para outros níveis de consciência. Para ele, o indivíduo
passa para uma posição mais reflexiva sobre a relação eu/não-eu, distancia-se de
modo crítico das normas da sociedade, pode regulá-las, rejeitá-las ou adotá-las,
enfim, age em considerações mais razoáveis e perspectivistas e não mais cegamente conformistas.
Wilber defende a posição de que antes de chegar a uma transformação que
ele chama iogue (nível superior ao racional atual):
“a sociedade individual-racional deverá primeiro atingir o seu
potencial máximo e fornecer as verdades, os valores e as subestruturas
específicas de fase para os quais se destina e dos quais dependerão as
futuras transformações, tais como a tecnologia adequada, estrutura
médica sofisticada, telecomunicações como vinculação global através
do perspectivismo global, interfaces de processamento de dados como
extensão da mente e, em especial, desmitificação da realidade, da divindade e da consciência.
Ocorre, a meu ver, que as primeiras tendências transformativas
em larga escala virão através daqueles que já dominaram adequada-
151
mente a base operante-individual-racional. Pois o insight iogue surge
através e, em seguida, a partir da esfera da razão, não em volta ou
distante dela nem contra ela.” (Wilber, opus cit., p.139).
Como vimos, Wilber não desconsidera qualquer contribuição dos modelos
científicos racionais ocidentais. Pelo contrário, estimula sua potencialização para o
alcance de novos níveis de consciência e pensamento. Acredita, porém, que a transformação exige uma compatibilização entre as estruturas antigas e as novas, de tal
forma que sejam diferentes, para representar uma transformação de fato e, parecidas, para favorecer o salto dos indivíduos a adotá-las.
Wilber postula que, quando introduz os diversos modelos e interesses do conhecimento humano nos vários níveis da organização estrutural e do intercâmbio
relacional do indivíduo composto, com todos os corolários e desdobramentos
psicossociais que ele apresenta, temos o esboço de uma teoria sociológica
completa pois passa-se a considerar não só as estruturas pré-pessoais e
pessoais mas também as transpessoais da existência, sem comprometer
as dinâmicas dos três sentidos ou dimensões — os níveis, seu desenvolvimento, a natureza de seu intercâmbio social, suas possíveis distorções
repressivas (psicológicas) e opressivas (sociais), seus modelos de conhecimento e de interesse, sua organização estrutural, suas relações funcionais — “Trata-se, também, de uma teoria sociológica verdadeiramente crítica e
normativa, em virtude dos dois interesses emancipatórios que se eriçam sempre que
surgem a falta de liberdade e a falta de clareza estrutural.” (Wilber, opus cit., p.163).
Quando aborda a questão da metodologia para esse tipo de sociologia das
religiões, Wilber aponta para um interessante aspecto que, além de resumir o movimento de transformação de um nível para outro e suas motivações, introduz o
152
entendimento da crise que pode ser percebida pelo indivíduo quando a estrutura
de níveis não funciona de forma harmônica:
“Sem me alongar sobre o assunto, considerarei evidente que a
terapia global envolve uma auto-reflexão crítica sobre translações passadas e possíveis translações incorretas (textos ocultos). Acredito que
isso seja verdadeiro tanto para indivíduos como para sociedades como
um todo (embora, naturalmente, os aspectos específicos variem). Tal
reflexão é impulsionada pelo interesse emancipatório horizontal — um
desejo de ‘liquidar’ translações passadas incorretas (subtextos ocultos,
repressões, opressões, dissociações). Essas distorções, secretamente
encerradas na hierarquia do indivíduo composto, geram tensões estruturais e irritações que acionam o interesse emancipatório. Quando tais
fixações/repressões são re-lembradas, re-criadas e re-integradas, os aspectos da consciência individual (ou de grupos de pessoas) anteriormente presos num nível inferior de estruturalização libertam-se, ou se
tornam capazes de uma transformação ascendente, renunciando às suas
lamentações sintomáticas e reingressando no modelo médio de
estruturalização superior agora característico do eu central (ou da sociedade como um todo). Tal avanço transformador é impulsionado pelo
interesse emancipatório vertical inerente ao desenvolvimento e à evolução em si.” (Wilber, opus cit., p.179).
Como veremos posteriormente, a crise poderá ser percebida quando o interesse emancipatório vertical esbarra nas limitações do indivíduo ou da sociedade
em “liquidar” as translações do nível horizontal, esgotando suas possibilidades naquele nível e, ao mesmo tempo, experimentando uma ansiedade por uma troca
mais satisfatória para o indivíduo composto ou a (s) sociedade (s) em que ele atua.
Quanto mais o indivíduo ou sociedade avançam para a consciência de níveis
mais elevados, as diferenças entre o Eu e o Não-eu são relativizadas. O indivíduo
passa a perceber-se pertencendo a uma sociedade mais ampla, onde a consciência
153
de Não-eu exige a participação no grupo social, participação política, ecológica
etc. e, como Eu, exige identidade pois não se perde em um oceano da divindade.
Para Wilber essa pode ser uma nova percepção de Deus:
“Nesse ponto, Deus deixa de ser um mero símbolo em sua consciência para transformar-se no nível máximo da sua própria individualidade composta e adaptação estrutural, a sociedade de todas as sociedades possíveis, que agora reconhece como o seu verdadeiro eu. Além
disso, quando vemos Deus como a sociedade de todas as sociedades
possíveis, o estudo da sociologia adquire um novo e inesperado significado, e nós todos encontramo-nos imersos num Deus social, criado e
criador, liberado e liberador — um Deus que, como Outro, exige participação, e que, como Eu, exige identidade.” (Wilber, opus cit., p.182).
6. 4 - SOCIEDADE, INDIVÍDUO E NATUREZA INTEGRADOS:
UMA NOVA CONCEPÇÃO
Uma das principais conseqüências que podemos observar da concepção de
indivíduo proposta pela Psicologia Transpessoal é uma nova concepção de sociedade e de universo. Entretanto, nos parece que a tarefa de poder apresentar uma
nova concepção de sociedade escapa aos objetivos de nosso trabalho. O que fica
claro, até esse ponto de nossas reflexões, é que são identificadas algumas características peculiares da sociedade e das relações entre os indivíduos e entre os indivíduos e a natureza, em relação aos postulados normalmente utilizados pela ciência
tradicional ocidental.
A análise dos relatos das experiências transpessoais demonstra que o indivíduo que as vivencia é capaz de obter uma consciência diferenciada da sua inserção
no todo social. A percepção desse indivíduo é de que a sociedade é muito mais que
uma reunião ou conjunto de indivíduos. Principalmente nos trabalhos de Grof, os
154
indivíduos experienciam de forma significativa a sua interligação com algumas
pessoas, especificamente, ou com as demais pessoas do seu grupo social, racial,
familiar, ancestral etc. Esse nível de consciência da interligação e interdependência
pode chegar a uma dimensão mais abrangente: do planeta ou do próprio cosmos.
A fundamentação dessa interligação e interdependência parte da premissa
consensual dos autores transpessoais — e coerentes com a tradição oriental — de
que há um espaço infinito e primordial de onde emana a energia que compõe tudo
que existe no universo. Desse espaço consciencial emana uma mesma energia que
se manifestará de diferentes formas não só nos seres humanos, animais, vegetais,
seres inanimados etc. mas também nas relações entre esses seres.
A física quântica moderna apresenta exatamente esse princípio em que a
energia se manifesta em faixas — ou quanta — que poderão ser percebidas ou
155
identificadas num espectro. A Psicologia Transpessoal defende que as experiências
transpessoais ocorrem por uma ampliação da consciência — estados alterados de
consciência — possibilitando ao indivíduo perceber suas interrelações com os demais níveis de manifestação dessa energia.
A base do pensamento que propõe a interligação e interdependência de todas
as “partes” constitutivas do universo, poderia ser simplificada por nós, através de
um gráfico que pudesse traduzir a idéia principal:
Figura 3: Ligação Indivíduo — Sociedade — Natureza
Para efeitos de simplificação, fizemos um recorte que considera apenas a
dimensão individual, a da sociedade e a da natureza, representando, essa última,
os recursos do meio ambiente em suas diferentes formas. Por esse gráfico
esquemático, poderíamos entender que há uma estreita ligação e dependência
entre as três dimensões consideradas, que funcionam de forma integrada. Portanto, as relações entre elas também fazem parte da dinâmica que as sustenta, não
havendo qualquer parte ou relação entre partes que se sobressaia ou se destaque
em importância sobre as outras.
Segundo o que foi apresentado anteriormente, o pensamento humano inaugura uma ilusão de separatividade entre o indivíduo e o ambiente — chamado por
Wilber de Dualismo primário. A partir dessa primeira fragmentação, o indivíduo se
“esquece” da sua interligação original. Se esquece que Indivíduo, Sociedade e
Natureza são indissociáveis, interligados e interdependentes. Processo que vai se
156
estender também dentro do próprio indivíduo, acarretando uma fragmentação
entre suas partes constitutivas, tais como mente, corpo e emoções. A prevalência
da mente sobre as demais dimensões faz com que se torne “ignorante” daquela
integração e interdependência. A conseqüência pode ser o desenvolvimento de
emoções destrutivas, um apego e possessividade sobre as coisas que dão prazer a
si mesmo e evitar as que dão desprazer. A ocorrência das emoções destrutivas e a
convicção da separatividade promovem um círculo vicioso e autoreforçador que
acaba resultando no desequilíbrio da organização física, no estresse e na doença.
A ação individual fragmentada — por estar interligada a todos os outros níveis
do universo e a despeito da consciência ou não do indivíduo — afeta as relações e
dinâmicas sociais ocasionando uma cultura fragmentada, uma vida social e política
competitiva e violenta, além de condições econômicas de consumismo exploração
e miséria. Como resultado, podemos ter um maior sofrimento individual que tende
a reforçar o processo de fragmentação. O processo se completa através de uma
ação da Sociedade possessiva, competitiva e exploradora do homem pelo homem,
da natureza pelo homem.
A resultante desse processo converge para um quadro individual e social compatível com a descrição da crise da sociedade ocidental atual feita durante nosso
trabalho, podendo ser considerada a sua concepção transpessoal. A crise poderia
ser considerada uma crise da transformação da consciência do indivíduo que procura,
mesmo sem saber como, uma maior harmonização do desequilíbrio entre as partes.
A busca — mesmo que não consciente — dessa integração com a totalidade,
uma certa consciência de unidade e interdependência, parece conflitar com os níveis
atuais de consciência do Indivíduo. Esse “conflito” pode nos dar o início da reflexão
157
transpessoal sobre a crise atual da sociedade ocidental. Passaremos, então, a apresentar um resumo apontando as principais argumentações dos autores transpessoais
estudados sobre a concepção de crise.
6.5- CRISE: EMERGÊNCIA ESPIRITUAL
A primeira, e talvez a principal afirmação que podemos fazer sobre uma concepção transpessoal de crise é que ela é encarada, sempre, na sua acepção de
processo de transformação na estrutura de valores, no sentido e funcionamento
da vida bem como na compreensão do Indivíduo, da Sociedade e do Mundo. Como
destacamos no início de nosso trabalho:
“Períodos de crise podem, então, ter um significado de aquisição
de grandes avanços na compreensão da vida, do indivíduo, da sociedade... Através da crise, os indivíduos podem repensar o que é realmente
importante nas suas vidas, reavaliando sua estrutura de valores.”
Em todos os autores estudados, verificamos uma tendência a estabelecer uma
noção de crise atual da sociedade ocidental como resultado de uma fixação em
valores, aspectos e prioridades relativas às dimensões mais voltadas para os domínios pessoais do indivíduo. Apesar de considerarem a crise no sentido de transformação, todos eles alertam para uma certa urgência nas providências individuais e
coletivas visando a superação desse quadro, sob o risco de se comprometer a
sobrevivência do planeta. Iremos apresentar alguns dos argumentos dos principais
autores transpessoais estudados, sobre a concepção da crise.
Talvez seja importante retomar a argumentação sobre as concepções do termo crise, ampliando-a. O que poderíamos acrescentar à reflexão anterior sobre o
que é crise?
158
Grof, em Emergência Espiritual (Grof, 1992, p. 27), aborda a questão do
termo crise baseando-se no pictograma chinês que compõe-se de dois signos básicos ou radicais, significando um deles “perigo” e o outro “oportunidade”. Com isso,
a passagem por uma situação desse tipo — crise ou emergência espiritual — costuma ser difícil e até dolorosa mas, paradoxalmente, possui enorme potencial de cura
e evolução.
Santos Neto (1998), apresenta novos dados sobre uma concepção semelhante de crise, citando Leonardo Boff:
“E o que significa crise? Segundo BOFF (1983, p.3) a palavra
crise tem raiz no sânscrito KRI que significa limpar, separar, purificar,
depurar. A crise seria portanto um momento de depuração, de separação daquilo que ainda é válido daquilo que não vale mais. Crise implica
portanto em ruptura. Com essa compreensão de crise podemos ver a
vida como uma sucessão de crises que podem, no seu conjunto, gerar
um processo evolutivo. Com isso quero dizer que as respostas que temos jamais são definitivas mas sempre próprias para um determinado
tempo histórico, findo o qual elas entram em crise, por não responder às
questões agora atuais. Claro está que as respostas anteriormente dadas, muitas vezes, comportam elementos que deverão ser mantidos ao
lado de outros já superados e com os quais dever-se-á romper. Enquanto não se encontram novas respostas, enquanto não se faz o
discernimento do que vale do que já não vale mais, permanece-se numa
situação de crise.” (Santos Neto, 1998, p.35).
No trabalho de pesquisa de Grof, observamos que sua ênfase está na abordagem clínica individual, principalmente no entendimento dos quadros psicopatológicos
que considera como crise. Considera os casos que a Psiquiatria diagnostica como
psicose, quadros que representam, no seu modo de ver, “estágios difíceis de radical
transformação de personalidade e de abertura espiritual” (Grof, 2000, p.141).
Em diversos momentos de suas obras, Grof aborda a questão da crise atual
da sociedade ocidental. Sua proposta básica é de que a crise atual da sociedade
está associada a um afastamento da realidade espiritual do indivíduo ao longo dos
159
tempos. Ele vai argumentar que esse afastamento provoca efeitos negativos no
indivíduo, na sociedade e nas condições de vida do planeta:
“Mais e mais pessoas parecem se conscientizar de que a genuína
espiritualidade baseada em profunda experiência pessoal é uma dimensão da vida de essencial importância. Em vista da crescente crise global
ocasionada pela orientação materialista da civilização tecnológica ocidental, fica óbvio que estamos pagando um preço altíssimo por termos
negado e rejeitado a espiritualidade. Banimos de nossas vidas uma força que nutre, potencializa e confere significado à existência humana.
Em nível individual, o tributo pela perda da espiritualidade
é um empobrecido, alienado e insatisfatório modo de vida e uma aumento de desordens emocionais e psicossomáticas. Em nível coletivo, a
ausência de valores espirituais leva a estratégias de vida que ameaçam
a continuidade da vida em nosso planeta, tais como a espoliação de
fontes não-renováveis, poluição do ambiente natural, perturbação do
equilíbrio ecológico e uso da violência como principal meio de resolução de problemas.” (Grof, opus cit., p.143).
Um dos principais argumentos de Grof é o de que o indivíduo utiliza um
padrão muito abaixo do seu potencial real, em virtude de estar identificado com
uma pequena fração do seu ser — o corpo físico e o ego — o que resulta em um
estilo de vida sem autenticidade, saúde e realização, contribuindo para um
desequilíbrio geral que pode se refletir em desordens emocionais e psicossomáticas.
A vivência de desordens emocionais desse tipo — que também podem ser associadas a alguns aspectos levantados por nossa avaliação da crise, tais como a angústia
existencial, isolamento etc. — pode representar que o indivíduo chegou ao ponto
em que sua antiga forma de ser no mundo não funciona mais e tornou-se insustentável. O indivíduo experiencia essa separação e alienação da Consciência Cósmica
de forma dolorosa pelos problemas de integração do sofrimento emocional e físico,
limitações espaciais e temporais, transitoriedade e morte. Intimamente, o indivíduo
“sente” uma forte necessidade de voltar à fonte e reunir-se a ela.
160
A dificuldade experimentada pelos indivíduos está, conforme Grof, na
integração dos campos de consciência hilo e holotrópicos, sejam por motivos da
história biográfica do indivíduo ou até por motivos culturais, tornando-os apegados
às dimensões pessoais — ego e corpo físico — não se religando às dimensões
perinatais e transpessoais, experiências de totalidade. Às crises de transformação
que esse processo de busca da religação provoca, Grof e Cristina — sua esposa —
deram o nome de Emergência Espiritual:
“Esse potencial positivo é expresso pelo termo ‘emergência espiritual’, que é um jogo de palavras, sugerindo tanto uma crise [emergência no sentido de ‘urgência’], como uma oportunidade de ascensão a
um novo nível de consciência [emergência como ‘elevação’].”(Grof,
1995, p. 11).
Como fica claro, Grof considera a questão da crise associada a uma dificuldade do indivíduo em conciliar e integrar os aspectos materiais e os espirituais, ou
seja, sua visão é de que a crise é uma crise psicoespiritual. É importante que se
antecipe aqui um aspecto que será abordado posteriormente nesse trabalho e que
trata da diferença que esses autores enfatizam entre Espiritualidade e Religião. Essa
diferença será importante quando se pensar sobre as possíveis saídas para uma
crise que se designe psicoespiritual através de alternativas às religiões instituídas na
cultura ocidental.
Quando Grof aborda a natureza da crise psicoespiritual da humanidade e das
transformações necessárias para a sua superação, utiliza alguns elementos retirados
da tradição tibetana, uma figura chamada thangka que representa o ciclo de vida,
morte e reencarnação, onde existem três figuras consideradas os venenos da
humanidade, responsáveis por todo o sofrimento humano:
161
“Os animais no centro da roda representam os ‘três venenos’ ou
forças que, segundo os ensinamentos budistas, perpetuam os ciclos de
nascimento e morte e são responsáveis por todo o sofrimento em nossas vidas. O porco simboliza a ignorância relativa à natureza da realidade e de nossa própria natureza, a cobra representa raiva e agressão e o
galo retrata desejo e luxúria que levam ao apego. A qualidade de nossa
vida e nossa habilidade para lidar com os desafios da existência dependem crucialmente do quanto somos capazes de eliminar ou transformar
estas forças que regem o mundo dos seres animados.” (Grof, 2000, p.322).
A reflexão de Grof concentra-se, então, na avaliação da ignorância, na violência e na ganância dos seres humanos. Nos preocuparemos apenas com uma pequena
indicação do pensamento de Grof, somente pelas ligações importantes com alguns
dos temas apontados por nós, da crise atual, sugerindo aos leitores mais interessados no assunto a leitura das obras O Jogo Cósmico e A Psicologia do Futuro.
Uma contribuição importante do trabalho holotrópico de Grof é a associação
das raízes da violência e da ganância aos níveis ou domínios perinatais e
transpessoais. A violência tem, segundo Grof, normalmente, raízes no trauma do
nascimento biológico que gera elevadas quantidades de ansiedade e de
agressividade alojadas no corpo e no psiquismo. Nos domínios puramente
transpessoais, Grof compara o inconsciente individual ao coletivo de Jung, associando as raízes da violência à ativação de memórias violentas da humanidade.
Como resultado de uma terapia holotrópica em que a violência no nível individual
seja adequadamente integrada e harmonizada, estaríamos processando uma terapia na consciência da espécie humana.
Sobre a ganância, Grof identifica sua influência na vida individual e social do
ser humano em diversos pontos de sua obra. Destacaremos duas citações que expressam bem sua opinião e que convergem, de certa forma, para alguns dos aspectos
que ressaltamos como componentes da crise da sociedade ocidental, como a ênfase nos valores econômicos, no consumismo desenfreado e na competitividade:
162
“A ganância humana também encontrou novas formas de expressão, menos violentas, na filosofia e estratégia da economia capitalista,
que enfatiza o aumento do produto interno bruto, no ‘crescimento ilimitado’, na espoliação temerária dos recursos naturais não-renováveis, no
consumo conspícuo e na ‘obsolência (sic) planejada’. Além disso, grande
parte dessa política econômica de consumo, que tem conseqüências ecológicas desastrosas, tem sido orientada para a produção de armas com
poderes destrutivos cada vez maiores.” (Grof, opus cit., p.318).
“(...) A ganância insaciável está levando as pessoas à perseguição frenética de
lucros e aquisições de propriedades pessoais além de qualquer limite razoável. (...)”
(Grof, opus cit., p.319).
A concisão das citações do presente trabalho pode oferecer, a princípio, uma
visão simplista da abordagem de Grof para os complexos temas da crise da sociedade. Entretanto, sua visão considera essa complexidade e abrangência:
“Naturalmente, as guerras e revoluções são fenômenos extremamente complexos com dimensões históricas, econômicas, políticas, religiosas e outras. A intenção aqui não é a de oferecer uma explicação
reducionista substituindo todas as outras, mas sim adicionar alguns novos insights relativos às dimensões psicológicas e espirituais dessas formas de psicopatologia social que têm sido negligenciadas ou que só
receberam um tratamento superficial pelas teorias anteriores.” (Grof,
opus cit., p.326).
Como já dissemos, a principal conclusão de Grof é de que a crise e os problemas da humanidade são reflexo do precário estado emocional, moral e espiritual da
humanidade contemporânea:
“Se temos os meios e o conhecimento tecnológico para alimentar
a população do planeta, garantir a todos um padrão de vida razoável,
combater a maioria das enfermidades, reorientar as indústrias para fontes de energia inesgotáveis e evitar a poluição, o que nos impede de dar
esses passos positivos?
A resposta está no fato de todas as situações difíceis acima mencionadas serem sintomas de uma única crise fundamental: os problemas que enfrentamos não são, em última análise, apenas econômicos,
políticos e tecnológicos. Eles são reflexos do estado emocional, moral e
espiritual da humanidade contemporânea. Dentre os aspectos mais des-
163
truidores da psique humana, estão a agressão mal-intencionada e o
consumismo insaciável. Trata-se de forças responsáveis pelo desperdício inimaginável da beligerância moderna. Elas também impedem uma
divisão mais adequada dos recursos entre pessoas, classes e nações,
bem como a reorientação para prioridades ecológicas essenciais à continuidade da vida neste planeta.
Esses elementos destruidores e auto-destrutivos na atual condição humana são uma conseqüência direta da alienação da humanidade moderna tanto de si mesma como da vida e dos valores espirituais.”
(Grof, 1995, p.240-250).
6. 6 - O MOVIMENTO DE TRANSLAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
NO ENTENDIMENTO DA CRISE SOCIAL
Como vimos, o trabalho de Wilber considera que uma análise mais coerente
da Sociologia passe pelos novos modelos da consciência. Identifica como sendo de
fundamental importância um entendimento das relações existentes entre as estruturas que representam cada nível e entre os níveis.
Vimos que o desenvolvimento ou crescimento das relações dessas estruturas
se dá em duas dimensões primárias: translação ( horizontal-evolucionária-histórica) que visa integrar, estabilizar e equilibrar um dado nível; e transformação (vertical-revolucionária-transcendental) que pretende a reorganização revolucionária de
elementos anteriores e o surgimento de novos; transcender um dado nível.
Entretanto, Wilber destaca que essa tendência a um movimento horizontal e
vertical no desenvolvimento das relações estruturais é composta por forças antagônicas,
cuja resultante oferece uma indicação do movimento do indivíduo e sua contribuição
para o movimento do conjunto social como um todo. Segundo esse autor, em qualquer
escala intermediária do desenvolvimento da estrutura, o indivíduo se depara com
“trações direcionais”(Wilber, 1999, p.30-31). Horizontalmente, isto é, dentro do seu
nível de desenvolvimento atual, ele se depara com a alternativa de integrar, consolidar
e preservar o nível ou, por outro lado, diferenciar, separar e negar esse nível. No
164
movimento vertical, o indivíduo se depara com as oposições entre subir e evoluir,
“subindo” para outros níveis do desenvolvimento ou descer e regredir para níveis
menos organizados, menos diferenciados e menos integrados.
Partindo dessas premissas, a crise poderia ser identificada quando o processo
de translação (superficial dentro do próprio nível) não consegue realizar seus objetivos
integrativos, os símbolos que estruturam esse nível são seriamente abalados e a
tensão estrutural começa a afrouxar a coesão. Como conseqüência, o sistema pode
se desintegrar, se fixar de forma cristalizada em um nível inferior ou buscará elementos para permitir uma transformação para novos níveis superiores com
translações novas, renovadas. Uma crise seria, então, entendida como uma
reação desse processo de adaptação a um novo nível estrutural de desenvolvimento do indivíduo. Como o momento de crise é de transição, ou um
processo de transição, o indivíduo já “perceberia” as necessidades inerentes ao
nível superior (mais no nível psíquico de Wilber), mas como ainda está “ligado” aos
objetos próprios do nível atual — no nosso caso da crise atual da sociedade ocidental egóico, individualista —, tenta manter um intercâmbio desses elementos
para atender às necessidades, não conseguindo satisfazê-las, gerando uma espécie
de angústia existencial, que Wilber designa como “medo de morrer naquele nível”.
Estabelece-se uma certa confusão pois os elementos disponíveis não atendem às
necessidades do indivíduo. Pelo contrário, tendem a gerar uma expectativa de
“morte” iminente ou aniquilamento no nível atual, de falta de perspectivas, pois os
meios de conhecimento não conseguem “enxergar” possibilidades de superação
das dificuldades. Tudo porque os níveis não estão plenamente diferenciados.
Quando, isoladamente, um indivíduo consegue perceber e transcender este impasse, caracterizando o surgimento do nível superior,
tende a garantir harmonia para os dois níveis, pois vislumbra e diferen-
165
cia as estruturas, as necessidades e os objetos de troca relacional que
os complementam. Com isso, o indivíduo é capaz de atender suas necessidades com trocas relacionais no nível superior sem impedir as buscas de objetos
relacionais adequados para as necessidades dos níveis inferiores que, pelo contrário, podem adquirir relevância e importância ampliada, no sentido do indivíduo composto atual. Podemos dizer que, conforme esse indivíduo composto se
apropria de experiências que representam o alimento mais adequado para o
nível imediatamente superior, melhor percebe suas necessidades sendo atendidas, torna-se mais tranqüilo, seguro etc.
A crise, nessa perspectiva, é um típico movimento de transformação e adaptação. Para Wilber, a necessidade e o impulso atuam como defesa da
estrutura para não perecer, buscando relações entre objetos que atendam a essas
necessidades. O crescimento e desenvolvimento representam um processo de adaptação a níveis cada vez mais sutis de alimento, onde se aprende a digeri-los e
integrá-los no “novo” indivíduo composto, em novas sociedades.
Para melhor entendimento, procuramos desenvolver um modelo gráfico
esquemático que nos facilitasse a compreensão — através de uma analogia — do
funcionamento desse processo. Digamos que os níveis da estrutura de consciência
estabelecidos por Wilber pudessem ser expressos graficamente como uma sucessão
de camadas cujas fronteiras representariam uma mudança nas principais características em relação aos níveis inferiores. Esse é um modelo esquemático, pois Wilber
deixa claro, ao longo de sua obra, que o estabelecimento de fronteiras atende à
nossa necessidade linear de pensamento, não podendo refletir o processo da
consciência. Não houve uma preocupação nossa em identificar os níveis mas apenas
demonstrar o possível movimento da estrutura na ocorrência de uma “crise”. Para
166
acompanhar a coerência dos termos empregados
até aqui, também utilizaremos a noção de transformação, no entendimento de Wilber, como um movimento de “baixo” — níveis inferiores — para
“cima” — níveis superiores.
Vamos partir do entendimento inicial de que
existem esses níveis de consciência, estabelecidos,
originariamente, na individualidade, conforme a figura a seguir:
Potencialmente, cada um de nós possuiria toda a estrutura de níveis. Entretanto, a partir dos processos descritos por Wilber como dualismo primário, secundário etc.
nos “esqueceríamos” dessa nossa interligação com a totalidade de nossa consciência e do universo. Esse “esquecimento” poderia ser graficamente expresso como uma nuvem que se sobrepõe aos demais níveis superiores, obscurecendo-os para o indivíduo diante das dimensões em que
ele tem mais “consciência”. Segundo Wilber, a situação desse indivíduo faz com
Figuara 4 (a direita) – Estrutura Hierárquica
Figura 5 (a esquerda) – Estrutura em crise
167
que ele se utilize dos objetos relacionais ou alimentos característicos do nível em
que se encontra, onde tem maior visibilidade e possibilidade de trocas relacionais
próprias para as necessidades daquele nível. As necessidades experimentadas por
esse indivíduo no nível N podem ser atendidas por trocas relacionais de objetos do
nível N, satisfatoriamente. O maior equilíbrio nas trocas do nível N, pressupõe uma
estabilidade no nível de trocas de N-1 e, até mesmo, um redimensionamento dos
valores envolvidos nesse nível a partir do equilíbrio em N.
A busca incessante da estrutura de consciência pela
integração com a totalidade impulsiona o indivíduo para
“cima”. As trocas relacionais
passam a não atender necessidades surgidas, pois referem-se
a necessidades de um nível superior (N+1). Pelo processo de
transformação em curso, o indivíduo ainda não tem plena lucidez desse movimento: já percebe, de alguma maneira, mudanças de valores, de sentido existencial, de comportamentos,
propósitos, motivos etc, mas não
enxerga de forma transparente
os objetos ou alimentos adequados. Busca atender a essas necessidades (N+1)
Figura 6 e 7- Estrutura hierarquica em crise. (Direita) – Dinâmica da transformação. (Esquerda)
168
com os objetos com os quais está acostumado (N). Graficamente poderia ser expresso, conforme a figura abaixo, por uma gradativa clarificação do nível superior
(N+1) mas sem a noção de que precisa transcender uma barreira ou uma fronteira, que pode significar uma resignificação de valores, sentidos, motivos etc. Portanto, o indivíduo já “enxerga” alguns pontos do nível superior, busca-os, mas não percebeu a linha divisória que altera sua visão, sua perspectiva de valores, de vida ou de mundo pois representa uma
nova dimensão consciencial, muito mais complexa e próxima à totalidade.
A crise poderia ser entendida, dessa forma, como
a transição no processo de transformação vertical de
Wilber, de um nível para outro superior. A superação
dessa crise poderia possibilitar a estabilização do processo interno, normalmente vivido como certo caos,
resignificando o nível anterior e seus principais objetos e
trocas relacionais, bem como retira o indivíduo de todas
as pressões internas e externas que o período de crise
ofereceu. O gráfico a seguir procura expressar a dinâmica da crise superada. Essa experiência poderia ser exemplificada pelos indivíduos
que passaram por experiências transpessoais, experiências culminantes ou pelas
chamadas Revoluções Silenciosas.
A crise atual da sociedade ocidental poderia, nesse sentido, ser transpessoalmente
entendida como uma crise espiritual pois, em diversos casos, pessoas que passam
por esse tipo de dilema e integram mudanças nos tipos de alimento que estabelecem
Figura 8: Crise superada
169
na troca relacional de um nível superior, alcançam significativos quadros de estabilidade emocional e mental, como veremos mais adiante.
Em sua obra, Wilber refere-se à possibilidade de um período de crise poder
representar uma crise de autenticidade de uma certa ideologia ou visão de mundo. A
busca de uma nova ideologia “mais autêntica” viabiliza o movimento de transformação para um nível de dimensão específico considerado mais legítimo em relação ao
novo conjunto de valores. O fenômeno da crise de autenticidade nos permite uma
comparação com o sentido de crise da sociedade ocidental que abordamos nesse
trabalho:
“Uma crise na autenticidade ocorre sempre que uma visão de
mundo (ou religião) predominante defronta-se com desafios de uma
outra de nível superior. Isso pode acontecer em qualquer plano, sempre
que um nível novo e mais elevado (ou sênior) começa a surgir e ganhar
legitimidade. A nova perspectiva de mundo encarna um poder
transformativo novo e mais elevado, assim desafiando a antiga, não
apenas com relação à legitimidade mas também quanto à própria
autenticidade.”(Wilber, 1987, p.92).
Wilber exemplifica sua posição citando os efeitos da chamada Religião Civil
da América e o conseqüente surgimento de novas religiões, no final da década de
60. Afirma que a Religião Civil Americana conseguiu, durante algum tempo, filiação
mítica (ética protestante mítica) e proporcionou símbolos de imortalidade (nacionalismo), significado integrativo, freio moral e coesão social. O antigo acordo civilreligioso de filiação tradicional seria abalado pelo crescente racionalismo que
desmistificava sua estruturas. Mas ele será definitivamente rompido com uma ação
combinada do movimento dos estudantes radicais, os efeitos da guerra do Vietnã,
epifanias espirituais orientais, incertezas econômicas e desmascaramento geral do
nacionalismo americano, ocorridos na década de 60. O resultado teria sido a for-
170
mação de um campo propício ao surgimento de diversas novas religiões que pudessem atender às necessidades individuais.
O movimento de transformação vertical nem sempre é natural e harmônico.
Pode ter, como conseqüência, dois tipos de desdobramento. O primeiro seria produto do fracasso do processo de individuação-racional resultando numa fixação/
regressão aos aspectos dos níveis anteriores. Um exemplo no campo da religião
seria o movimento atual de religiões fundamentalistas. O segundo desdobramento,
representa uma tentativa efetiva de transformação vertical e estruturalização superior, exemplificado nos grupos que partem do secularismo racional, adaptados a ele,
mas que buscam meios de alcançar níveis de estruturação mais elevados.
A busca de elementos que possam viabilizar o processo de transformação vertical pelos grupos caracterizados acima, torna-os fora-da-lei, aqueles que estão fora
do modelo explicativo do nível anterior. Citando Tiryakian, Wilber complementa que:
“(...) importantes componentes ideacionais de mudança (por
exemplo, mudanças na consciência social da realidade) podem com
freqüência originar-se em grupos ou setores não-institucionalizados [forada-lei] da sociedade, cujos modelos de realidade poderão, em determinados momentos históricos, transformar-se naqueles que substituirão
os padrões institucionalizados e tornar-se, por sua vez, novos projetos
sociais.” (Wilber, opus cit., p.134).
Porém, Wilber adverte para o risco de se considerar todo movimento advindo
dos fora-da-lei como legítimo. Ele julga que não se pode julgar todos os movimentos originados da crise do pensamento da década de 60, por exemplo, como legítimos. Vai fazer uma distinção dos fora-da-lei em pré-leis, contra-leis e trans-leis. Os
pré-leis seriam os que não preparados para a transformação de nível se prendem
em formas míticas ou mágicas (cita a astrologia, vudu, tarô etc). Os contra-lei representam os movimentos de contracultura em geral que apesar de externamente
171
conterem elementos que supõem estruturalização superior representam uma repetição caricatural-oposta do modelo anterior (Wilber chama de movimento adolescente rebelde). Os trans-leis seriam os que verdadeiramente são capazes de desenvolver uma transformação de nível.
Concluindo a abordagem de uma visão transpessoal da crise atual da sociedade, podemos identificar que há um consenso entre os autores com essa orientação de que o grande problema da humanidade é o seu anseio de retornar à experiência de nossa divindade, já que essa é a força motivadora mais profunda na psique
humana, em qualquer nível de consciência considerado. A busca dessa
transcendência requer a “morte” do ser separado, exclusivo, identificado parcialmente com seu ego. Porém, o apego ao ego e o medo da “morte” faz com que o
indivíduo busque elementos substitutos à unidade da divindade, específicos em
cada nível da estrutura de consciência. Portanto, o sentimento de plenitude para o
feto será o êxtase experienciado no útero e no seio bom, para uma criança será a
satisfação dos impulsos fisiológicos básicos da idade, para um adulto se desdobra
em uma diversidade de substitutos eleitos entre comida e sexo e também dinheiro,
fama, poder, aparência, conhecimento etc.
A contradição dessa busca diante dos elementos substitutos — insuficientes
para a plenitude do indivíduo — acarretaria o processo descrito por Wilber, quando
analisa as religiões: ou os indivíduos regridem e fixam-se de forma exacerbada nos
elementos do nível anterior ou buscam novos elementos capazes de transcender a
um nível mais adequado. Portanto, a crise social passa por um processo de mudança na estrutura de valores e princípios:
“(...) Parece que estamos todos coletivamente envolvidos em um
processo semelhante à morte e renascimento psicológico que muitas
172
pessoas experienciaram individualmente em estados holotrópicos de
consciência. Se continuarmos a exteriorizar (act out) as problemáticas
tendências destrutivas e auto-destrutivas que têm origem nas profundezas
do inconsciente, sem dúvida destruiremos a nós mesmos e à vida no
planeta. Porém, se conseguirmos internalizar esse processo em uma escala suficientemente grande, isso poderá resultar em um progresso
evolutivo que poderá nos levar muito além da nossa atual condição de
primatas. Por mais utópica que pareça, a possibilidade de tal desenvolvimento pode ser a nossa única chance real.(...) Mas, mesmo uma radical mudança intelectual para um novo paradigma, em grande escala
não seria suficiente para aliviar a crise global e reverter o curso destrutivo
em que nos encontramos. Para isso, é necessária uma profunda transformação emocional e espiritual da humanidade.” (Grof, 2000, p.351).
O que podemos entender por transformação emocional e espiritual da
humanidade?
A questão acima nos remete à necessidade de refletir tanto sobre os mecanismos que podem levar a essa transformação como sobre os aspectos individuais e
sociais que precisam ser transformados. É o que abordaremos no próximo tópico.
6. 7 - REVOLUÇÃO SILENCIOSA
As experiências de alterações radicais no sistema de crenças e valores e,
consequentemente, nos comportamentos dos indivíduos, nem sempre são experiências transpessoais provocadas. Muitos indivíduos têm relatado a vivência de
momentos ou períodos de crise existencial pessoal, que resultaram em uma expressiva mudança de valores, com alteração na forma de integração e interação na
sociedade e na vida. Pierre Weil (1982) chama essas experiências de Revoluções
Silenciosas. Parece que o potencial de “cura” — tratada aqui como melhora das
condições de vida — e transformação é semelhante ao obtido nas experiências
transpessoais provocadas.
173
Em sua obra A Revolução Silenciosa — Autobiografia Pessoal e Transpessoal,
Pierre Weil (1982) descreve o seu próprio processo de transformação a partir de um
estado identificado por ele como de crise existencial provocado pelo “tédio e vazio do
homem realizado”. Com essa expressão Weil descreve como, tendo obtido todos os
itens normalmente associados ao sucesso em nossa sociedade ocidental — sucesso e
reconhecimento profissional, conforto material, extrema tranqüilidade financeira, lazer
etc. — não se sentia satisfeito. As explicações obtidas em seu processo terapêutico
tradicional não atendiam na procura de alívio para sua angústia existencial:
“Foi então que entrei na grande crise existencial. Ela se caracterizou antes de tudo pelo tédio, seja sozinho ou, o que é muito pior, a dois.
O tédio e o vazio provocado paradoxalmente pela satisfação de todos
os meus desejos. Hoje eu posso dizer que isso foi o resultado de uma
vida baseada predominantemente no TER em vez de no SER. Eu não
tinha consciência nenhuma de que o problema estava dentro de mim, e
a solução também.”(Weil, 1982, p.53).
A partir de diversos caminhos, como terapias experienciais, ioga, psicodrama,
práticas artísticas e musicais etc., seus valores começaram a se transformar. Mas o
grande desafio foi, sem dúvida, um período onde teve que conviver com um tratamento de um câncer. Durante sete anos não teve certeza se iria sobreviver,
vivenciando momentos de profunda angústia. Em contrapartida, ainda no leito do
hospital, percebeu-se mais aberto e sensível à dor humana: “O medo da morte me
levou a começar a pesquisar sobre o após a morte, e também a procurar sistemas
de vida mais sadios.”(Weil, opus cit., p.55). Todos os caminhos levaram a uma
transformação radical na sua perspectiva e interação na vida.
O fato de se identificar uma crise em indivíduos que alcançaram fases de
significativo sucesso material, já foi apontado no início de nosso presente trabalho,
174
quando destacamos a visão do autor de Encontrando a Esperança na Era da Melancolia, David Awbrey (1999), que relata as altas estatísticas de crise de melancolia
nesses indivíduos.
Um grupo de experiências que costumam levar a grandes transformações na
estrutura de valores, são as Experiências de Quase Morte — EQM. Normalmente,
as EQM são vividas pelos indivíduos com uma grande manifestação de fenômenos
que escapam à possibilidade dos modelos tradicionais da ciência, sendo portanto,
objetos de estudo pelas diversas áreas transpessoais. Muitas pesquisas tem sido
desenvolvidas na área da tanatologia (Ariés, 1990; Kübler-Ross, 1992, 1996) oferecendo inúmeros subsídios para os trabalhos e reflexões transpessoais.
Parece que o fato do indivíduo deparar-se com a possibilidade de aniquilamento da vida física de forma radical provoca a entrada em experiências
transpessoais ou emergências espirituais, conforme Grof, tendo também como
conseqüência grandes transformações para os que sobrevivem. Quando nos referimos a EQM, queremos designar um grande grupo de experiências, não somente
aquelas associadas ao coma profundo e prolongado, mas também os acidentes de
trânsito, ataques cardíacos, tentativas de suicídio frustradas etc., que podem, em
alguns segundos, provocar uma significativa transformação posterior.
As implicações na qualidade de vida do indivíduo, sua hierarquia de valores e
estratégias de vida parecem ser expressivas nas experiências de confronto com a
morte, seja simbólica — em meditações, sessões de terapia experiencial, emergências espirituais ou terapia holotrópica (Grof) — seja real — acidentes, guerras, campos
de concentração, ataque cardíaco.
175
Fernandes (1995), em estudo específico sobre a EQM, resume diversas pesquisas sobre os padrões de mudança nos indivíduos que passam por essas experiências: redução do medo da morte, senso de onipotência (senso de maior controle
sobre a vida), sentimento de importância especial ou destino a cumprir, sensação
de preciosidade (valor) da vida, sentido de urgência e reavaliação de prioridades
(hierarquia de valores) e redução da cautela.
Daremos um destaque ao item sobre a hierarquia de valores pela aproximação
com a nossa reflexão:
“Um sentido de urgência e reavaliação de prioridades (hierarquia
de valores): O sentido de urgência refere-se a uma necessidade que o
indivíduo apresenta de realizar algo de significativo em sua vida e na
coletividade, tendo em vista que passa a se orientar de modo mais
dinâmico. Uma reavaliação em sua própria hierarquia de valores sucede muitas vezes, porquanto sua percepção dos acontecimentos da vida
se altera significativamente. Nessa situação, são comuns os relatos de
comportamentos altruísticos e solidários.” (Fernandes, 1995, p. 11).
Em seu estudo, Fernandes (1995) destaca que o plano principal, onde se
realizam as mudanças, verifica-se no âmbito da axiologia, já que os indivíduos passam
a orientar suas vidas pelos valores do modo ser de existência, e não pelo modo ter.
Além disso, afirma:
“É possível ainda que as conseqüências pragmáticas da EQM resultem de uma mudança ainda maior, ou seja, do grau de conscientização
que o indivíduo alcançou quando de sua relação direta com a morte.
Este confronto com a morte leva o indivíduo, em muitos casos, a uma
verdadeira mudança de consciência (expansão de consciência), a partir
da qual a realidade adquire para ele um significado mui diverso. Este
fato é semelhante aos relatos dos que passaram por experiências místicas ou religiosas ou transpessoais (cf. Weil, 1993).” (Fernandes, opus
cit., p.4).
176
Outro aspecto que aproxima de forma determinante nosso estudo das pesquisas sobre EQM diz respeito à profunda mudança na concepção e vivência de
espiritualidade pelos indivíduos. Segundo Ring (1997, p.190) as transformações se
dão em um despertar geral para os mais elevados potenciais humanos, maior
apreciação da vida, redobrado interesse pelo bem-estar do próximo, aumento da
auto-estima, maior apreciação do ser humano em geral, busca de auto-conhecimento, crença em uma unidade que interliga as religiões, despertar espiritual e de
crescimento do indivíduo, convicção de que existe vida após a morte independente
da crença religiosa e transformação espiritual radical (principalmente seu conceito
de si mesmo, abertura para a Doutrina da Reencarnação etc.).
6. 8 - A QUESTÃO DE VALORES E SUAS MUDANÇAS:
Ao pensarmos, então, nos valores humanos e na necessidade de mudança do
quadro destes valores como possibilidade de superação da crise da sociedade,
podemos nos questionar sobre quais valores devem ser modificados.
Essa questão apresenta uma grande dificuldade: a da classificação dos valores.
O desafio é significativo pois poderíamos encarar o tema sob diversos pontos de
vista e sistemas de classificação. Principalmente, se tivermos que nos concentrar nos
valores que convergem para a questão ética do indivíduo.
Ao pensarmos em uma perspectiva transpessoal — que estabelece um elo de
vinculação entre indivíduo, sociedade e natureza — os valores éticos passam a ter
um fator complicador de relevância: os padrões éticos para o indivíduo devem
contemplar também o princípio da vida social e da natureza. Encontrar um nível
mínimo necessário e suficiente passa a ser o grande desafio. Weil (2000) designa
177
esse processo de encontrar o Conforto ou Condição Essencial, onde os elementos
constitutivos do universo teriam preservadas suas condições básicas para manter o
princípio da vida. Ele define três valores fundamentais para o Conforto Essencial:
• Segurança (conservação do indivíduo): alimentação sadia na medida saudável, um habitat que assegure proteção contra as intempéries, condições de higiene
e limpeza em prol da saúde;
• Sensualidade (conservação da espécie): liberdade de expressão do prazer
sexual e da função procriativa;
• Poder (conservação da sociedade): liberdade de assumir funções na sociedade de acordo com as capacidades individuais e as necessidades essenciais da
organização social.
Esses seriam aspectos já discutidos pela ciência tradicional sobre uma possível
hierarquia de valores. Quem muito insistiu sobre a existência de uma hierarquia de
valores foi Abraham Maslow, defendendo a tese de que tais valores — ou
metamotivos — correspondem a uma necessidade cuja satisfação e carência é tão
ou mais significativa que as necessidades orgânicas.
Uma conseqüência direta da reflexão sobre a mudança de valores recai na
questão do sentido que esta mudança pode ter na vida dos indivíduos e da sociedade.
Parece lógico que os esforços devem se concentrar na transformação dos comportamentos destrutivos — em uma visão mais ampla que a exclusivamente individual
— em outros mais construtivos, conservadores e promotores da vida. Uma das
aplicações que podemos identificar, na prática, seria a ética na utilização das
178
tecnologias que possam representar ou um decréscimo ou uma elevação dos níveis
de Conforto Essencial, tanto do indivíduo quanto da sociedade e natureza. Um
exemplo de como essa utilização pode ser negativa são os meios empregados para
a elevação do consumismo em detrimento de um equilíbrio ecológico correspondente, ameaçando a vida no planeta.
A capacidade de lidar com os aspectos de uma hierarquia de valores de
forma harmônica parece exigir a consideração dos outros aspectos explicitados
anteriormente que complementam a escala da hierarquia. O equilíbrio no trato
com esses aspectos exige o que Grof chama de Inteligência Espiritual — fazendo
uma analogia ao termo Inteligência Emocional de Daniel Goleman (Goleman,
1995) — : “A inteligência espiritual é a capacidade de conduzir nossa vida de tal
forma que ela reflita uma profunda compreensão filosófica e metafísica da realidade e de nós mesmos.” (Grof, 2000, p.322).
Em todas as abordagens transpessoais, a mudança de valores é uma conseqüência imediata e uma necessidade premente da transformação espiritual do indivíduo e da sociedade:
“Mestres espirituais de todos os tempos parecem concordar que a
busca de objetivos materiais, em si e por si, não pode trazer-nos satisfação, felicidade e paz interior. O vertiginoso crescimento da crise global, da
deterioração moral e de descontentamento crescente, acompanhando o
aumento da afluência material nas sociedades industriais, dão testemunhos desta antiga verdade. Parece haver concordância geral na literatura
mística de que o remédio para o mal-estar existencial que assedia a humanidade é entrar para seu interior, buscar as respostas em sua própria
psique e passar por uma profunda transformação psicoespiritual. Isto, é
claro, levanta a questão sobre a natureza e a direção das mudanças pelas
quais temos que passar para melhorar nossa qualidade de vida.” (Grof,
1998, p. 216).
Entretanto, a modificação de valores individuais não resulta apenas em benefício pessoal do indivíduo. Quanto mais ele se aprofunda no processo de autoexploração e se descobre elemento integrado e interdependente das diversas formas de vida do universo, identificando-se com vários aspectos e processos da cri-
179
CAPÍTULO 7
O “DIÁLOGO”
“Para sair do século XX, [deveríamos chegar a uma] certa convivência com nossos mitos, e que nossa Razão dialogue com nossa paixão; que aceitemos a incerteza, convivamos com a angústia, em vez de
repetí-la. Todo crente tem uma parte de si que duvida; todo não crente,
uma parte de si que crê: uma diferença infinita os separa, mas também
uma diferença ínfima, se eles emergem à consciência do diálogo inevitável entre a fé e dúvida, que se agita em cada um.”
(Edgar Morin)
180
Uma conversa pode encerrar diversos tipos de comunicação e, dependendo
dos interlocutores, desencadear vários tipos de resultados. Em alguns casos, um dos
interlocutores se julga único conhecedor do assunto da comunicação e participa
como aquele que vai falar ao outro que não sabe. Em outros, os dois interlocutores
acham que sabem tudo sobre o assunto da comunicação, e passam a querer convencer um ao outro das suas “verdades”. O resultado dessa conversa normalmente
é a desavença, o distanciamento ou uma postura de considerar o outro como
ingênuo, imaturo ou despreparado, em uma atitude pseudo-adulta que esconde a
presunção da exclusividade do conhecimento. Uma outra possibilidade, envolve
dois interlocutores que sabem da consistência de seus pensamentos e conhecimentos, reconhecem de forma autêntica seus impasses e lacunas, dispõem-se a ouvir e
a considerar o que o outro tem a dizer, sem compromissos ou imposições com
mudanças de pontos de vista, entretanto com grande oportunidade de crescimento
para ambos. Nesse caso, tem-se o que se pode considerar um diálogo.
Nossa tarefa chega, talvez no seu ponto culminante: procurar promover um
“diálogo” entre saberes distintos, sem pretender convencer ou impor pontos de vista,
mas visando compartilhar visões, opiniões, abordagens...
Partimos de um quadro de crise da sociedade ocidental atual, procurando
apresentar as principais características que o pensamento e o conhecimento ocidental vêm trazendo para a compreensão dessa crise. Utilizamos o referencial da
Psicossociologia, enfatizando o conceito de indivíduo utilizado pela ciência tradicional e, principalmente, a ideologia individualista que tem o indivíduo como principal valor intrínseco da sociedade ocidental. Apontamos as origens e as conseqüências desse processo na sociedade, bem como as lacunas e os impasses. Consideramos, também, a partir da Psicologia Transpessoal, uma concepção de indivíduo —
181
o indivíduo composto — compatível com as principais e milenares tradições orientais, e apoiada em extensas pesquisas com os estados alterados de consciência,
remetendo a uma outra compreensão de indivíduo, sua relação com a sociedade e
com o universo. Uma abordagem que vê a crise como a transformação de valores,
como uma crise espiritual. Nosso objetivo é promover um diálogo entre essas duas
perspectivas que poderá oferecer maiores possibilidades de solução para alguns
dos impasses do conhecimento humano.
Algumas dificuldades de se manter um “diálogo”, como o que pretendemos,
devem ser consideradas. Uma das principais foi a da utilização da terminologia. Ao
longo de todo o trabalho, o leitor pode observar a utilização de expressões e termos
— como moderno, explicação, universal, estrutura, hierarquia, natural, essência,
cultura etc. — quando apresentamos as abordagens transpessoais das cartografias
do psiquismo, da estrutura dos níveis de consciência e dos aspectos relacionados à
crise. O uso deliberado dessas expressões resultou de uma escolha de nossa parte,
que procurou preservar a originalidade das posturas dos autores encontrados na
Psicologia Transpessoal. Estamos cientes da impossibilidade de explorar as
repercussões e abrangência que a utilização de cada termo ou conceito expressam,
principalmente diante das diversas contribuições já realizadas pela Ciência. É claro
que cada expressão poderia remeter a uma reflexão complexa sobre a
contextualização e coerência de seu emprego, mas diante da proposta de nosso
trabalho, não caberia esse aprofundamento, pelo menos neste momento. Portanto,
a escolha por esse recorte não desconsiderou a importância e complexidade dos
termos, podendo estar sujeita à crítica do leitor quanto aos critérios — a nossa conta
e risco —, nunca por ser irresponsável ou irrefletida. Apenas traduziu uma tentativa
de priorizar os debates que podem decorrer de nossa reflexão.
182
As discussões sobre a nova concepção de indivíduo apresentada, as noções
de integração e interdependência das dimensões individuais, sociais e ambientais,
as possibilidades de se pensar a crise da sociedade ocidental como uma crise de
valores éticos, as questões relativas a uma certa universalidade de modelo de consciência que subjaza aos aspectos culturais, são exemplos dos temas que parecem
emergir de nossa reflexão, até aqui, e que poderiam resultar na produção de novos
trabalhos em programas de mestrado e doutorado. Se assim for, um dos objetivos
da proposta de um “diálogo” transdisciplinar com a Psicologia Transpessoal terá
sido alcançado, na medida em que amplia as discussões e perspectivas de alguns
impasses do conhecimento humano atual sobre o homem, a sociedade e o sentido
da existência.
A promoção de um “diálogo” transdisciplinar dessa ordem passa também pela
superação de outra grande dificuldade inicial. Cada um dos interlocutores desse
“diálogo” possui um conjunto de premissas filosóficas implícitas bem definidas e
com características bem diversas. Portanto, enquanto a ciência clássica trabalhou
em uma abordagem e perspectiva materialista, mecanicista e atomista, as tradições
orientais, de modo geral, sempre trabalharam com uma premissa espiritualista,
sistêmica e universalista. A possibilidade de uma reflexão comparativa ou que procure considerar as possíveis contribuições de um saber para outro deve levar em
conta essa diferença básica. Exige uma atitude empática — no sentido das abordagens humanistas da psicoterapia — onde se procura colocar no lugar do outro
como se fosse o outro, mas apenas como se fosse, permitindo uma ampliação na
compreensão dos valores e perspectivas daquilo que é diferente.
183
7.1 — APROXIMAÇÕES
7.1.1 — Modelos relacionais e as faixas biossociais
Inicialmente, iremos abordar algumas das principais aproximações
identificadas ao longo de nosso trabalho.
Um dos pontos de vista mais importantes da contribuição da Psicologia
Transpessoal, trazido das tradições orientais, é a interdependência e interrelação
entre todas as partes constitutivas do universo. Mesmo reconhecendo os dualismos
verificados a partir do pensamento, o olhar transpessoal está apoiado na hipótese
de que existe uma rede de interrelacionamentos entre os níveis de consciência do
homem e, em determinados destes níveis, a consciência de sua interrelação com
outros indivíduos, grupos sociais, natureza etc..
Como vimos, quando tratamos da base psicossociológica da crise, verificamos que essa abordagem já é desenvolvida pela ciência tradicional através dos
modelos relacionais. A aceitação e verificação da complexidade dos objetos de
estudo — os objetos híbridos — e a forma de relacionamento entre eles — as redes
— acabam por resultar em uma aproximação dos conceitos de interdependência,
interrelação e integração também defendidos pela Psicologia Transpessoal. A verificação, principalmente por Latour (1994), da importância dos estudos da hibridação
e purificação demonstraram a necessidade de relativização do movimento de fragmentação e reducionismo pela ciência tradicional, ampliando os limites das disciplinas estanques para grandes movimentos inter ou transdisciplinares como já considerado anteriormente.
184
Nesse ponto de nosso trabalho, julgamos importante estabelecer um “diálogo” entre os modelos relacionais e a Psicologia Transpessoal.
Como mencionado, os trabalhos de Norbert Elias e Pierre Bourdieu já sinalizam para uma tendência de se privilegiar modelos que considerem o entrelaçamento incessante e irredutível de relações e funções entre indivíduos, ou seja, o rompimento da alternativa ou INDIVÍDUO ou SOCIEDADE, para uma outra que, além
dessas dimensões (ou pólos) considere também a função e relação existente entre
os seus diversos componentes. As questões apresentadas por Elias (1994) sobre
quais os fatores que levam ao fenômeno social — a partir de indivíduos isolados e
não intencionados, na maioria das vezes, a atuar na estrutura social — levam-nos a
dialogar com a noção da Psicologia Transpessoal de uma interdependência dos
níveis de consciência dos indivíduos entre si através de um nível onde essa separação Eu x Mundo são transcendidas. Por outro lado, Pierre Bourdieu (1990) aborda
a influência das posições de classe relativas no espaço social e do habitus que cada
indivíduo possui, e que também é influenciado pela posição social a partir do qual
se constrói, chegando a afirmar que o indivíduo constrói a sua realidade de forma
dupla — objetiva e subjetivamente — ou seja, enquanto estrutura o campo social
em que está inserido, também é estruturado por esse campo e suas características.
Esse último ponto de vista converge para a proposta de Wilber no seu Espectro da
Consciência no que chamou de Faixas Biossociais.
Para Wilber, as Faixas Biossociais determinam, diretamente, a existência
da civilização, da cultura, sociedade e do indivíduo (Wilber, 1996, p.181). As percepções dos dualismos associados a esse nível do Espectro de Consciência, resultam em um homem que se sente um organismo fundamentalmente separado de
tudo, que existe no espaço e perdura no tempo, sendo essa a percepção básica da
185
existência. Portanto, o sentido da existência será marcado pelos fatores biológicos
(transmitidos geneticamente) e pelos fatores sociológicos — como a estrutura de
linguagem, sistemas de valores sociais, as regras implícitas e inconscientes da comunicação. Os mapas simbólicos internalizados no processo de individuação serão
representados pela linguagem, perspectiva religiosa básica, estrutura familiar, tabus,
regras de comunicação etc. Para Wilber, os mapas simbólicos têm como finalidade
garantir uma percepção anterior do indivíduo em formas convencionais aceitáveis
e significativas para a sua sociedade. Quanto mais o indivíduo interioriza com sucesso
os mapas ou conjuntos de relações simbólicas que constituem a sua sociedade,
maior será o seu sentido de pertencimento e, com isso, passa a ser socialmente
integrado. Podemos inferir que, quando o processo de internalização de mapas
simbólicos é manipulado visando determinados objetivos estabelecidos por um
indivíduo ou grupos de indivíduos, estaremos nos aproximando do sistema de
violência simbólica tão bem descrito por Bourdieu.
Segundo a descrição de Wilber, o mecanismo do dualismo faz com que estabeleçamos descrições parciais da realidade que são aceitas como a própria realidade. A partir da atuação de um Filtro da Faixa Biossocial, acabamos por nos “esquecer” de que era apenas uma descrição parcial e todos os aspectos que não se enquadram nessa descrição acabam permanecendo no inconsciente biossocial.
A prevalência das interpretações perceptivas que visam garantir o sentido de
pertencimento do indivíduo “escondem”, no inconsciente biossocial, todos os aspectos relacionados à percepção do Nível Existencial de Wilber, onde o indivíduo
se integra com as demais dimensões do universo. Apesar de estarem em um nível
inconsciente, atuam indiretamente. Podemos avaliar que, na Sociedade Ocidental
contemporânea, os filtros biossociais determinarão uma maior importância e
186
internalizarão valores, tabus, regras, linguagem etc. relacionadas aos valores do
individualismo, valores econômicos, modelos de sucesso, competitividade e inúmeros outros aspectos relacionados ao longo desse trabalho. O indivíduo busca, por
um lado, o sentido de pertencimento a essa sociedade, através de sua cultura, posição
socio-econômica etc..
Entretanto, podemos supor — segundo o modelo de Wilber — que no inconsciente biossocial, existe todo o sentido de pertencimento à totalidade, à realidade una,
não dual, integrada, interdependente e interrelacionada do universo, característico do
Nível Existencial. Há um movimento automático na direção da solução desse conflito
que é ao mesmo tempo individual e expressão de um coletivo semelhante. Essa posição
é reforçada pelas pesquisas de Grof ao identificar um grupo de experiências transpessoais,
verificadas em indivíduos de diversas culturas e sociedades, onde há uma significativa
identificação do indivíduo com outros indivíduos, com segmentos sociais, raciais, com
aspectos ecológicos e até com a humanidade como um todo.
A crise da Sociedade Ocidental, nesse sentido, poderia expressar (a) o conflito
interno e geral entre os mapas simbólicos insuficientes na solução dos principais
problemas do indivíduo e da sociedade, (b) a verificação dos efeitos individuais e
sociais negativos da internalização desse conflito e (c) a busca, ainda não consciente,
de valores e níveis de consciência compatíveis com as estruturas mais transcendentes
do indivíduo.
7.1.2 — Universalidade do Indivíduo
A outra reflexão que pode representar uma aproximação importante no
“diálogo” refere-se ao conceito de indivíduo em Dumont (1985) — nos seus dois
187
sentidos — comparado a um certo universalismo dos modelos de cartografia do
psiquismo estabelecido pela Psicologia Transpessoal.
Ao avaliarmos a base psicossociológica de nossa discussão sobre o individualismo, em que privilegiamos o trabalho de Dumont (1985), destacamos o conceito
utilizado por esse autor para indivíduo. Vimos, naquela oportunidade, como as
sociedades modernas estão marcadas pelo segundo sentido dado por Dumont ao
termo como “ser moral, independente e autônomo e, assim, (essencialmente) não
social (...)” (Dumont, 1985, p. 75). Esse sentido do termo justifica-se pelo percurso
histórico do individualismo ocidental, principalmente diante das influências dos
movimentos religiosos e políticos encetados pela sociedade ocidental. Entretanto, o
primeiro sentido do termo nos leva a uma discussão importante no “diálogo” com a
Psicologia e movimento Transpessoal.
No primeiro sentido do termo indivíduo dado por Dumont, destaca-se o caráter
de ser uma amostra indivisível da espécie humana, “tal qual o observador encontra
em todas as sociedades” (grifo nosso). Essa abordagem aproxima-se significativamente da base tomada pela Psicologia Transpessoal, que busca demonstrar uma
certa universalidade ou essência comum de consciência do ser humano, independente da diversidade dos fatores como cultura, sociedade, raça etc. A busca de
confirmação de conceitos como Mente, Consciência Cósmica etc, também referese a essa tendência de encontrar ou sistematizar, conceitos universais que possam
dar conta de uma gama maior de fenômenos e experiências humanas e sociais.
Wilber chega a fazer uma inferência sobre a possibilidade dessa universalidade a
partir do dado concreto da composição do corpo humano: todos temos dois rins,
dois braços etc, sugerindo que a natureza da consciência humana e sua dinâmica
seriam semelhantemente universais.
188
Vale ressaltar que todo o modelo de desenvolvimento das estruturas em níveis de consciência e o crescimento dentro da estrutura de níveis de Wilber — que
vai delinear uma possibilidade de reflexão sobre os movimentos sociais mais amplos — parte do entendimento de um movimento individual, ou seja, o indivíduo
começa a percorrer um caminho em que dinamiza as etapas do desenvolvimento
mais abrangente. Podemos observar, aqui, a ênfase que a Psicologia Transpessoal
dá a uma nova concepção de indivíduo, mais ampla e abrangente.
Esperamos ter ficado claro que a Psicologia Transpessoal não desconsidera a
influência dos aspectos culturais e/ou sociais no processo de individuação humanos
e que os autores abordados destacam a importância desses aspectos — propondo
uma tentativa de integração da dinâmica de participação dessas dimensões no
indivíduo e na sociedade.
Identificamos no “diálogo” outras importantes aproximações, sugerindo um
movimento espontâneo de convergência em direção a algumas questões. Um exemplo é a dos conceitos de Wilber e Dumont sobre uma hierarquia de valores com
características universais e que fundamenta todo o processo de desenvolvimento
humano. Pelas características dos trabalhos, Dumont tende a ser mais concentrado
na sua discussão, enquanto Wilber amplia sua abordagem. Dumont, sobre o tema,
chega a afirmar que:
“Cada configuração particular de idéias e de valores está contida
com todas as outras numa figura universal de que ela é uma expressão
parcial. Contudo, essa figura universal é tão complexa que não pode ser
descrita mas apenas vagamente imaginada, como uma espécie de integral de todas as configurações.
Assim, é impossível apreendermos diretamente a matriz universal
em que está enraizada a coerência de cada sistema particular de valores, mas a qual será perceptível de uma outra maneira: cada sociedade
189
ou cultura possui o cunho distintivo de sua ideologia no interior da
condição humana. (...) Assim, em toda a sociedade concreta existe o
cunho desse modelo universal, o qual se torna perceptível, em algum
grau, logo que a comparação começa.” (Dumont, 1985, p.275).
Podemos assinalar que Dumont, apesar de tratar de uma certa universalização
da estrutura de valores, não considera a possibilidade de desenvolvimento dessa
estrutura. Essa será uma das críticas feitas ao seu trabalho e que retomaremos mais
adiante, quando discutirmos a chamada bidimensionalidade mínima do modelo.
O que podemos observar — quando avaliamos as aproximações — é que
alguns desses pontos demonstram uma possibilidade de aprofundamento de aspectos levantados pelo “diálogo”. Sugerimos que tais pontos possam ser “ouvidos”
pela ciência tradicional como importantes aspectos de reflexão ou de re-avaliação
em cada disciplina e, principalmente, nas propostas transdisciplinares. Vamos abordar esses Domínios Inexplorados no próximo item.
7. 2 - DOMÍNIOS INEXPLORADOS
Por Domínios Inexplorados estamos entendendo os aspectos levantados pelo
nosso trabalho que demonstram claramente a necessidade de uma maior exploração por parte de todos os saberes envolvidos no nosso “diálogo” transdisciplinar.
Não queremos dizer com isso que haja uma obrigatoriedade dessa exploração por
parte de qualquer disciplina, mas parece emergir um interesse imediato a partir das
reflexões estabelecidas. Nosso objetivo será o de apontar os aspectos que nos pareceram mais imediatos e claros: a ampliação da discussão sobre hierarquia, a
sociologia transpessoal e a estrutura de valores que podem estar envolvidas
na discussão da crise.
190
7.2.1 — Explorando uma Teoria de Hierarquia
O primeiro domínio que nos parece ainda inexplorado é o que trata da questão da hierarquia. Duarte (1986) analisa as principais características e os desdobramentos sobre o que Dumont chamou de Teoria da Hierarquia.
Segundo Duarte (1986), Dumont substitui a lógica aristotélica de hierarquia
por uma “lógica hierárquica” onde o elemento faz parte do todo, sendo idêntico
mas ao mesmo tempo distinto — englobamento do contrário. Outra característica
da teoria de Dumont é a chamada bidimensionalidade mínima do modelo em que
a hierarquia supõe a distinção de níveis: um nível superior (unidade) e outro inferior (distinção por complementaridade ou reciprocidade). Como conseqüência, os
dois primeiros aspectos só terão sentidos se forem considerados ocorrendo dentro
de uma totalidade. As dificuldades de comparação entre os diferentes aspectos da
realidade humana, exigiram o desenvolvimento do conceito de inversões hierárquicas: o que é superior em um nível superior pode ser inferior em um nível inferior.
Por último, a Teoria da Hierarquia considera a questão da situação de cada aspecto
ser distinta e diferenciada pelo valor que a ela é atribuído.
Se observarmos as descrições de Dumont veremos a utilização de uma série
de conceitos e definições que se aproximam dos princípios transpessoais estudados. Dumont entende que a hierarquia é um fenômeno universal; que o indivíduo
enquanto valor só aparece na ideologia individualista das sociedades modernas; e
que o valor é o que faz a diferença em uma relação hierárquica. Entretanto, suas
premissas não são capazes de dar conta da diversidade das experiências e fenômenos humanos. Duarte (1986) apresenta algumas críticas a Dumont tendo por base
estas lacunas. A primeira delas refere-se a uma dificuldade de Dumont em conciliar
191
sua visão de sociedade (unidades/totalidades sociais) e a arquitetura interior das
sociedades a partir do conceito de ideologia (Duarte, 1986, p. 49). Há uma importante contradição aqui, pois Dumont vai tratar os elementos básicos da ideologia
como implícitos ou não conscientes e a hierarquia seria um resíduo, o lado não
consciente da ideologia. Porém, considera que as sociedades modernas tratam
individualismo como ideologia básica, principal, predominante e consciente, resultando em uma contradição conceitual. Outra crítica refere-se a uma ambigüidade
das referências do autor ao tratar das oposições binárias entre os níveis hierárquicos
cujo encadeamento, para Duarte, quando aplicamos o modelo na realidade da
vida social, não parece poder ser linear como trata Dumont.
Ao considerarmos as contribuições da Psicologia Transpessoal através do “diálogo” proposto, podemos refletir sobre as lacunas do pensamento de Dumont.
Parece-nos que a grande dificuldade de Dumont está exatamente em não considerar as estruturas hierárquicas como sendo multidimensionais. Quando apresentamos, anteriormente, o resumo do desenvolvimento das estruturas dos níveis, como
conseqüência da Psicologia Transpessoal, estabelecemos pelo menos três dimensões equivalentes: Indivíduo, Sociedade e Natureza. Daí pode resultar uma alternativa para os impasses de Dumont quando procura comparar diversos aspectos pela
sua Teoria da Hierarquia, já que poderemos identificar valores relacionados às três
dimensões mas com formas de expressão diferentes, dificultando uma comparação
linear simples. Quando compara, por exemplo, o individualismo em uma hierarquia de valores e níveis superiores ou inferiores, com Holismo, está utilizando
parâmetros de duas dimensões diferentes que, na abordagem transpessoal, são
integradas e interdependentes, não podendo ser comparadas hierarquicamente.
192
Quando Dumont fala do englobamento do contrário, isto é, um nível superior — como unidade — sempre engloba o contrário — como distinção —, recai no
mesmo problema, dificultando uma análise completa dos fenômenos sociais sem
gerar conflito nas conclusões sobre a comparação dos valores.
Portanto, quando Duarte (1986) avalia a configuração de valores do individualismo, descreve-a como apoiada na idéia de indivíduo autônomo e independente, com um compromisso com os valores da liberdade e da igualdade. A possibilidade de se desenvolver uma diferença entre idéias e valores pode representar,
segundo Duarte, uma saída para o impasse conceitual criado. Duarte chega a admitir
que o grande núcleo polêmico do modelo dumontiano é o da oposição entre holismo
(hierarquia) / individualismo.
Duarte também aponta algumas implicações fundamentais da configuração
de valores atribuída ao individualismo da sociedade ocidental. Essas implicações
nos remetem à alguns aspectos da crise que temos delineado em nosso trabalho. A
primeira implicação é a fragmentação dos domínios. Para Duarte, a ideologia acaba por privilegiar uma racionalidade formal e sustenta uma visão de mundo laicizada,
desmembrada em domínios, disciplinas, setores etc. estanques e autônomos. Os
efeitos dessa implicação na ciência já foram mencionados nesse trabalho, bem como
os desdobramentos na crise pelo isolamento, fragmentação e a perda de referenciais
em geral dos indivíduos. A segunda implicação está no achatamento do mundo, ou
seja, a ideologia individualista acaba por provocar um achatamento da percepção
da vida social e, principalmente, pela recusa de qualquer forma de transcendência,
com a perda da poliformia “natural”, “sobrenatural”. Esse achatamento da visão de
mundo pode estar apontando para o caráter espiritual da crise, conforme defendem
os autores transpessoais. A ênfase no individualismo ocasionou o achatamento
193
reduzindo a percepção das dimensões espirituais que, apesar disso, emergem como
parte das necessidades humanas não atendidas e ainda não conhecidas
conscientemente.
A última implicação que pode ser relacionada à crise ocidental trata-se de
uma contradição que pode gerar, intimamente nos indivíduos, um grande conflito:
se a hierarquia é universal, uma ideologia como o individualismo que a nega acaba
por se apresentar como “artificial”, “paradoxal” ou “anti-sociológica”. Essa contradição poderia gerar nos indivíduos alguns efeitos negativos da crise, relacionados
às perdas de referenciais.
A necessidade de apreensão de uma nova estrutura ou configuração de
valores parece ser uma alternativa para a crise ocidental. O próprio Dumont já
apontava para esse aspecto em sua obra:
“É muito possível que exista, na verdade existe, uma necessidade
de reintroduzir um certo grau de holismo em nossas sociedades individualistas, mas isso só pode ser feito a níveis subordinados e claramente
articulados, de modo a impedir todo e qualquer conflito de vulto com o
valor predominante ou primário.” (Dumont, 1985, p. 251).
Fica claro que a posição de Dumont parte de uma prevalência de uma dimensão individual. Tanto é que só considera a introdução de valores holistas em níveis
subordinados, de modo a evitar um possível retrocesso nas conquistas individuais
atribuídas ao individualismo. A questão que resulta desse ponto de reflexão está
relacionada a uma aparente contradição entre os valores positivos identificados na
ideologia individualista e no holismo (hierarquia) de Dumont: Como conciliar essas
duas tendências?
194
Parece-nos que a possibilidade de um “diálogo” transdisciplinar aponta para
uma gama de oportunidades de ampliação das abordagens que podem ser empreendidas por todos os saberes envolvidos.
7. 2. 2 — Exploração de Novas Configurações de Valores
Ao introduzirmos o pensamento de Wilber sobre o possível desenvolvimento
da estrutura de níveis hierárquicos e sua conseqüência na estrutura de valores, podemos estabelecer alguns pontos de ligação com a crise da sociedade ocidental que também merecem maior aprofundamento posterior.
O primeiro aspecto parece referir-se, na estrutura de valores, ao individualismo como valor predominante da sociedade ocidental. Para Dumont, a discussão
ficaria entre uma análise comparativa entre individualismo e holismo, de forma
linear e simples, fato que limita, no nosso entender, a possibilidade de entendimento da crise. Já Wilber propõe, na sua abordagem de estrutura hierárquica em níveis,
a possibilidade — ou até mesmo a necessidade — de se relativizarem as comparações entre alguns aspectos verificados no indivíduo e na sociedade, conforme o
nível da estrutura hierárquica a que estariam associados. Portanto, não se poderia
comparar simplesmente individualismo com o que Dumont denominou holismo,
sem considerar suas estruturas parciais também em níveis. O individualismo seria,
nessa abordagem, uma etapa onde o valor Indivíduo se sobrepõe, acentuada e
desproporcionalmente, ao valor Sociedade, impossibilitando afirmar se seriam um
superior ao outro. Entretanto, a crise da sociedade ocidental poderia representar
uma ruptura no processo.
195
Como vimos, para Wilber, a crise poderia expressar uma transição de um
nível inferior para níveis superiores de desenvolvimento. Nessa transição, o indivíduo estaria incorporando valores diferentes ou ampliados em relação àqueles que
caracterizam a ideologia individualista. Esse movimento de crise pode ser entendido como um processo que ocorre simultaneamente com milhares de indivíduos da
sociedade ocidental, que compartilham de algumas características básicas, apesar
das diferenças culturais e sociais pertinentes a cada subgrupo. Se o nível em que
nos situamos correntemente, orienta-se, eminentemente, por uma estrutura de valores
e por objetos de troca relacional de uma dimensão material, sensorial ou egóica, a
crise poderia ser a transição para um apreensão dessa dimensão da totalidade da
sociedade a que estamos interligados e interdependentes “naturalmente”, em uma
transcendência para uma consciência cósmica — totalidade. O advento da crise
como transformação (no sentido de Wilber, como a transcendência de níveis de
desenvolvimento na estrutura) é feito a partir de uma reorganização dos elementos
constitutivos do nível anterior — individualismo, indivíduo como ser moral, valor
econômico, materialismo etc. — e o surgimento de uma nova estrutura de valores.
7. 2. 3 — Uma Sociologia Transpessoal a Explorar
Nesse ponto, entretanto, acreditamos oportuno destacar que a Psicologia
Transpessoal ressente-se, no nosso modo de ver, da ausência de uma abordagem
sociológica mais consistente. Apesar de desenvolver um conceito ousado e ampliado de indivíduo, o movimento transpessoal ainda não conseguiu formular uma
Sociologia Transpessoal da envergadura da Psicologia Transpessoal, trabalho
necessário para os teóricos dessa área. Embora a visão transpessoal não desconsidere
as influências culturais e/ou sociais no processo de individuação humanos, não
identificamos, até esse momento de nosso trabalho, uma produção teórica que
196
tratasse dos fenômenos sociológicos com a mesma desenvoltura e abrangência da
Psicologia Transpessoal.
Quando acompanhamos o desenvolvimento do pensamento de Wilber, principalmente em Um Deus Social, observamos que o autor propõe um modelo sociológico com base no processo da dinâmica da estrutura de consciência individual
comparando-o à da própria sociedade. Sua proposta está baseada na necessidade
de maior entendimento das relações existentes entre as estruturas que representam
cada nível e também entre os níveis. Para Wilber, portanto, a sociedade é entendida
como um sistema complexo de trocas ou relacionamento social com os níveis
correspondentes da organização estrutural do indivíduo e entre os indivíduos no
processo mundial em geral.
É possível, em conseqüência desse ponto, se pensar no desenvolvimento de
uma Psicossociologia Transpessoal, já que o modelo que propomos de integração e
interdependência entre as dimensões da realidade — como Indivíduo, Sociedade e
Natureza — reflete a necessidade de se pensar os objetos de estudo, em situação.
Talvez, o nosso trabalho seja uma possibilidade de sinalizar lacunas e necessidade
de desenvolvimento teórico nessa área.
A principal contribuição do pensamento de Wilber, para uma visão sociológica mais completa, parece-nos ser a consideração não só das estruturas pré-pessoais
e pessoais, mas também das transpessoais da existência humana. Entretanto, não
chega a explorar ou avançar significativamente na compreensão dos fenômenos
sociais mais amplos.
As cartografias do psiquismo apresentadas demonstram a presença de níveis
de consciência em que o indivíduo se identifica com os grupos sociais, raciais etc.;
197
pode, com isso, como fizemos, esboçar o entendimento de um certo movimento
social mais amplo, entretanto ainda insuficiente para refletir fenômenos mais complexos da dinâmica social. Com certeza, nosso trabalho apresenta bases e premissas
importantes de serem aprofundadas como: a interligação e interdependência de
todas as partes, a mutidimensionalidade da consciência humana, a integração com
uma consciência cósmica, a estrutura de hierarquia dos níveis, a dinâmica da estrutura
de valores que envolve o desenvolvimento da consciência, dentre outras.
O principal comentário que se pode fazer nessa reflexão, aponta a insuficiência de fundamentação que o movimento transpessoal ainda oferece para o entendimento mais amplo dos fenômenos sociais. Um exemplo de nossa posição pode ser
destacado quando analisamos o trabalho de Grof. Em suas pesquisas, fica clara a
existência de uma dimensão importante da consciência humana que compreende
um sentido de identidade com o campo social mais amplo, com outros campos da
realidade humana — como os da espécie humana, outras espécies biológicas, raciais,
ancestrais etc — além das realidades, digamos, não-humanas — como as
arquetípicas, espirituais, extraterrestres etc. — e das realidades a-temporais — como
as memórias de supostas vidas passadas. Todos esses aspectos poderiam ser associados e identificados no processo de individuação e socialização humanas, podendo
oferecer parâmetros para compreensão de diversas características e fenômenos na
formação da personalidade e do comportamento. Entretanto, não fica explícita a
hipótese sobre o funcionamento dessa interdependência e interligação dos “campos”
descritos. Seriam campos — como os magnéticos — de características próprias que
se interpenetram e, nos quais, os seres humanos teriam a capacidade de absorver e
transformar suas experiências no transcurso de sua existência? Questões como essa,
podem ser retiradas da reflexão de nosso trabalho como possibilidades de novas
pesquisas futuras, fugindo ao objetivo e limites de nossa proposta.
198
No prefácio de Um Deus Social, Roger Walsh afirma que a proposta de Wilber
oferece extenso material para que psicólogos e sociólogos ampliem suas pesquisas
com as contribuições provenientes dos seus saberes, sob essa nova perspectiva. Um
dos desafios que se pode identificar seria o estabelecimento de uma metodologia
de pesquisa que favorecesse a reflexão sobre os fatores psicossociais mais amplos
observados no complexo sistema de relações humanas.
Parece-nos importante que a Psicologia Transpessoal não incorra no erro, verificado em muitas disciplinas científicas, de fechamento em si mesma. Coerentemente
com a proposta da abordagem transpessoal, a ampliação das observações devem
caminhar no sentido de buscar as interligações e interdependências entre as dimensões que a existência oferece à observação e experimentação.
7. 3 — PERCURSOS DIFERENTES
Como resultado de nosso “diálogo”, também pudemos identificar uma série
de aspectos que demonstram um percurso — histórico e estrutural — diferente
entre os interlocutores. A discussão dessas características deve ser observada para
que não se perca de vista a lógica interna de cada saber antes de se estabelecerem
críticas ou divergências conceituais. A diversidade demonstrada na comparação
desses percursos pode enriquecer as propostas de exploração anteriores.
7. 3. 1 — Religião, Espiritualidade e Ciência
A ênfase dada pela Psicologia Transpessoal à espiritualidade, como base de
explicação para a crise da sociedade ocidental, coloca-nos diante de um aspecto
importante no nosso “diálogo”: a diferença entre Religião e Espiritualidade.
199
Através da história, a religião vem desempenhando um significativo papel na
vida humana, desde os estabelecimentos de códigos de conduta e organização social,
passando pelo papel de agente do desenvolvimento intelectual e de educação, aos
significativos envolvimentos com o poder político e econômico ao longo dos séculos. Como vimos em Dumont, a base do entendimento do movimento ideológico
que será conhecido como Individualismo, parte de um processo de dissociação das
“amarras” estabelecidas por uma estrutura hierárquica forte, que desconsiderava
as necessidades individuais em detrimento de valores totalizantes da sociedade. A
evolução de uma visão de totalidade onde o indivíduo era uma dimensão
indiferenciada, para uma outra onde o Indivíduo é o valor preponderante, passa
por uma transformação nas relações entre o poder religioso estabelecido e os grupos sociais, através das conquistas políticas e econômicas, principalmente nos campos da liberdade e da igualdade. Estamos privilegiando o desenvolvimento do
pensamento ocidental. Poderíamos identificar, inclusive, que a tentativa de
envolvimento e influência da Religião nos processos políticos e econômicos a partir
de uma base dogmática específica, não consegue suportar a revolução gradativa do
pensamento científico. Com isso, podemos identificar um claro afastamento ocorrido
entre a Ciência e a Religião.
A capacidade da Ciência em oferecer informações e explicações para os
fenômenos antes atribuídos a manifestações do poder da divindade, em suas diversas denominações, acabou por inferiorizar, infantilizar ou até ridicularizar o
envolvimento dos indivíduos com as religiões. A conseqüência natural foi uma
supremacia do valor do pensamento racional sobre o místico. Por uma outra perspectiva, uma supremacia da visão materialista sobre uma visão mais espiritualista.
Entretanto, esta associação entre Religião e Espiritualidade pode levar-nos a
um equívoco importante.
200
Em diversos momentos, os autores transpessoais enfatizam a necessidade de
se estabelecer uma distinção entre o que chamamos Espiritualidade e Religião
(Grof, 2000; Wilber 1987, 1996). A Espiritualidade se baseia em experiências diretas
do indivíduo com aspectos e dimensões não-comuns da realidade. Envolve uma
forma de relação, pessoal e particular, entre o indivíduo e o cosmos. Os místicos
não necessitam de templos ou de igrejas já que experienciam as dimensões sagradas da realidade, incluindo sua própria divindade, nos seus corpos e na natureza
(Grof, 2000, p. 204). Já a Religião organizada representa uma atividade de um
grupo institucionalizado, reunido por uma determinada afinidade; envolve, na
maioria das vezes, um sistema hierárquico e uma estrutura de funcionamento;
necessita de um local como referência para a prática religiosa, como um templo ou
igreja. As religiões organizadas tendem a estabelecer sistemas hierárquicos que
objetivam poder, controle, política, dinheiro, posses ou outras preocupações seculares, não favorecendo, necessariamente, a vivência de experiências autenticamente espirituais — no sentido estabelecido acima — pelos seus seguidores.
A maioria das grandes religiões do mundo foram iniciadas por significativas
experiências espirituais — ou holotrópicas nos termos de Grof — que “revelavam”
a existência de dimensões sagradas ou divinas da realidade, tornando-se base da
orientação religiosa que se seguia: um código ou caminho para alcançar aquelas
dimensões. Entretanto, a religião organizada tende a perder a conexão com sua
origem espiritual, degenerando doutrinas em dogmatismos, rituais em ritualismos e
ética cósmica em moralismo (Grof, opus cit., p. 207). A conseqüência pode ser a
exploração das necessidades espirituais dos indivíduos sem atendê-las plenamente.
Esse raciocínio converge para a posição de Wilber quando trata das religiões
ou ideologias autênticas, ou seja, aquelas que seriam capazes de promover e alcançar os objetivos e necessidades espirituais do indivíduo, diferentemente daquelas
201
que os atendem superficialmente ou incompletamente através da utilização de
uma fixação em aspectos pertencentes a um nível inferior de consciência.
Parece existir um certo consenso entre os autores transpessoais em relação à
capacidade da experiência espiritual de integrar o indivíduo com os outros indivíduos, a natureza, o universo, diferentemente do que se verifica como resultado da
maioria das práticas religiosas, exclusivistas e fragmentadoras:
“(...) Uma experiência mística profunda tende a dissolver barreiras entre religiões, enquanto o dogmatismo das religiões tende a enfatizar
as diferenças e gerar antagonismos e hostilidade.” (Grof, opus cit., p.
207).
A partir dessa reflexão podemos supor que parte do distanciamento da Ciência deveu-se muito mais às características do movimento institucionalizado das
religiões do que propriamente das experiências espirituais. Outro componente desse distanciamento pode ser identificado como uma tendência da Psicologia e Psiquiatria tradicionais em patologizar as experiências espirituais. Talvez por estar pautada em uma filosofia materialista ou por não considerar essas experiências como
objetos de estudo científico, a psiquiatria ocidental tende a classificar as experiências místicas como experiências psicóticas, considerando ambas manifestações de
doença mental.
Em sua obra, Grof julga que há uma posição radical e preconceituosa da
ciência tradicional em relação ao estudos das experiências espirituais ou estados
holotrópicos, que agora começa a ser modificada pela crescente pesquisa nos campos dos estados não-comuns de consciência por pesquisadores com sólida formação científica. Para ele, demonstrar interesse sério por esses objetos de estudo, pode
ser considerado, pela comunidade científica, um sinal de julgamento deficiente,
202
ingênuo, despreparo ou mistificação do pesquisador. A posição de Grof talvez reflita suas dificuldades ao longo de quarenta anos de pesquisas com experiências
holotrópicas, fato que deve ter gerado, principalmente no início de seu percurso,
grandes dificuldades de aceitação. Entretanto, parece-nos que a necessidade de
revisão dos principais conceitos da ciência tradicional, a abertura — diante da
necessidade dos desafios sobreviventes — para as práticas interdisciplinares e, principalmente, transdisciplinares, e a própria crise de transformação do pensamento
ocidental, vêm permitindo uma modificação dessa postura. O estágio atual do
pensamento não permite uma posição exclusivista, onde apenas uma elite
intelectualizada da civilização tem uma correta, confiável e definitiva compreensão
da existência. A consideração de saberes das tradições de sociedades pré-industriais milenares, nesse caso, em relação à vida espiritual, estados não-comuns de
consciência e suas conseqüências na vida dos indivíduos, sem desconsiderar o rigor
e os critérios de um pensamento científico, é fundamental para o avanço do
pensamento e conhecimento humano como um todo.
Importante ressaltar que a própria realização do presente trabalho possa representar um exemplo desse movimento na medida em que elege como objeto de
estudo científico, híbridos — talvez numa concepção diferenciada e ampliada de
Latour — envolvendo conhecimento científico e outras possibilidades de compreensão humanas, em um programa acadêmico interdisciplinar. A receptividade e
acolhimento do tema de nosso trabalho, mesmo diante dos desafios de sistematização e metodologia para abordar o tema, podem ser considerados exemplos da
maior abertura existente na academia para essa discussão.
Nossa escolha pela Psicologia Transpessoal considerou, inclusive, o aspecto
de ela estudar e respeitar com seriedade todo o espectro da experiência humana,
203
principalmente os estados holotrópicos e os domínios biográficos e transpessoais
do indivíduo. A forma de abordagem torna-a mais sensível culturalmente para
uma compreensão mais abrangente, pois pretende um entendimento universal da
psique humana, aplicável a qualquer grupo humano e período histórico, sem que
elimine ou desvalorize os aspectos culturais e sociais diferenciados. A Psicologia
Transpessoal considera, também, as dimensões espirituais da existência como legítimas e reconhece a necessidade intrínseca do indivíduo em ter experiências
transcendentais.
As necessidades espirituais do indivíduo não são totalmente desconsideradas
pela ciência tradicional. Os trabalhos de Maslow (1978), Jung (1963, 1990) e James
(1991) dentre inúmeros outros já apontam para uma reflexão do papel e importância da espiritualidade para o indivíduo. Jung definiu como numinosa a experiência
originária dos níveis mais profundos do psiquismo, onde há uma apreensão direta
dos domínios de uma ordem superior da realidade, completamente diferente do
mundo material observável. As metanecessidades de Maslow são outro exemplo da
importância dessa dimensão no processo de equilíbrio e saúde do indivíduo. Ainda
segundo Grof, o maior problema na incompatibilidade da ciência com a
espiritualidade está no nosso desconhecimento sobre os estados holotrópicos de
consciência.
A diferença entre a Ciência e a Espiritualidade pode ser encarada como
uma complementaridade, pois representam aspectos importantes da vida humana, cada uma a sua maneira: enquanto a ciência é o melhor instrumento para se
obterem informações sobre o mundo em que vivemos, a espiritualidade é indis-
204
pensável, na visão transpessoal, como fonte de significado da vida. Encerrando
esse tópico com Grof:
“Contudo, a diferença mais marcante entre as duas visões de
mundo não está na quantidade nem na exatidão dos dados sobre a
realidade material — esse é o resultado esperado e natural do progresso científico. A discordância mais profunda se dá em torno da questão
de a existência ter ou não uma dimensão sagrada ou espiritual. Obviamente, esse é um assunto muito significativo, com implicações de longo
alcance para a existência humana. A forma como respondemos a essa
questão influencia profundamente nossa hierarquia de valores, nossa
estratégia de vida e nosso comportamento diário em relação às pessoas
e à natureza. E as respostas dadas por estes dois grupos humanos são
diametralmente opostas.” (Grof, 2000, p. 201).
7. 3. 2 — Uso dos termos Tradição e Hierarquia
Um dos pontos que evidencia uma diferença de percurso, quando pensamos
no “diálogo” trandisciplinar em questão, é o receio e cuidado no uso, pela
Ciência, dos termos tradição e hierarquia. Como vimos no resumo da obra
de Dumont (1985), esses termos estão associados às sociedades primitivas, préindustriais e totalizantes onde a sociedade se sobrepõe ao indivíduo. Além disso,
está invariavelmente associado a uma forte influência do pensamento religioso e à
estrutura social resultante dessa visão de mundo.
Parece-nos importante ressaltar alguns aspectos relacionados a esse fenômeno. Podemos constatar que, geralmente, a utilização desses termos está associada a
uma caracterização de grupo social específico. Quando Dumont apresenta seu indivíduo-fora-do-mundo está associando-o claramente ao indivíduo das sociedades
tradicionais, holistas, onde a hierarquia e a totalidade são os fatores preponderantes. Toda a evolução que Dumont fará da sociedade ocidental a partir dos primeiros
cristãos, será um percurso de negação e superação das principais características
daquelas sociedades: imobilidade social, indiferenciação dos indivíduos, restrição
da representação política, estrutura social, econômica e política transmitida por
205
tradição e dentro da estrutura hierárquica e restrição da vontade e pensamento
individuais em função dos grupos dominantes.
O movimento da ideologia individualista, no sentido de Dumont, representa
o estabelecimento do indivíduo como valor principal da sociedade ocidental, e
toda a série de conquistas — no campo da liberdade e da igualdade do ideário
francês — representa a superação daquele modelo de organização social, chamado por ele de tradicional.
Falar em Tradição ou Hierarquia pode, então, representar, de alguma forma,
um receio de retrocesso em relação às conquistas da atualidade, principalmente
no campo da cidadania, da democracia da representação, nos princípios de igualdade e da liberdade para uma mobilidade social, que se contrapõem às características das sociedades tradicionais. Nessas últimas, um rigoroso sistema de castas
e de estratificação social impede o acesso da grande maioria da população aos
recursos mínimos de sobrevivência humana, até hoje. Nesse sentido, a hierarquia
do poder transmitido por tradição, a impossibilidade de ascensão social, o uso de
todos os atributos que o poder tradicional confere apenas a alguns grupos
dominantes, são questionáveis e até mesmo condenáveis diante de uma visão
mais igualitária e livre de indivíduo.
A posição acima parece confirmar a lógica dos princípios da ideologia individualista. Entretanto, corremos o risco de reduzir, como temos feito inúmeras vezes
ao longo da história do pensamento humano, toda uma gama de possibilidades de
complexos fenômenos sociais e individuais, a uma avaliação tão restrita. Mesmo
porque, em última análise, a visão mais democrática, autônoma e igualitária do
ocidente não foi capaz de eliminar o mal do qual procura se defender, já que, como
vimos, mantém significativos níveis de rigidez social, busca de preservação de
206
privilégios, uso dos instrumentos de poder para manutenção de níveis sócioeconômicos etc.. Somente modificou os instrumentos e as vias de legitimação do
poder de uns (os que detêm as diversas formas de capital) sobre os outros, como já
evidenciamos nesse trabalho.
Tradição e hierarquia estão, portanto, costumeiramente vinculadas, no Ocidente, a instituições — como o cristianismo, protestantismo, estados absolutistas
monárquicos, impérios de dominação econômica, religiosa, política ou intelectual
etc. — que podem apresentar distorções nas estruturas dogmáticas, hereditárias,
fechadas, alienantes, na transmissão de privilégios etc. Pode-se considerar coerente
um receio em relação ao retrocesso das conquistas atuais. Entretanto, a constatação
das distorções históricas desses movimentos não pode acarretar em nós o temor
paralizante que impede a separação do que deve ser evitado ou modificado daquilo
que pode representar legítimo objeto de consideração e reflexão. A Psicologia
Transpessoal vai considerar a tradição como um conjunto de conhecimentos —
acumulados ao longo de séculos de observação e reflexão das culturas orientais,
caracterizadas como tradicionais e de totalidade — sobre a consciência humana, a
vida e o mundo. A própria palavra tradição (em latim traditio, ato de transmitir) vem
do verbo tradere, fazer passar a um outro, entregar, remeter. A esse sentido de transmissão
soma-se um outro — de mediação e integração — onde cada sociedade recria-se ao
adaptar o que pretende conservar com o novo saber que resulta da sua atuação.
7.3.3- Oriente e Ocidente
Ao longo do que vimos chamando de “diálogo”, pudemos constatar que a
Psicologia Transpessoal, como uma das interlocutoras, tem grande parte de sua
fundamentação nas experiências com estados não-comuns de consciência mas refere-
207
se, constantemente, às tradições das filosofias orientais. Os autores transpessoais
indicam a convergência de suas observações e reflexões para conceitos milenarmente
estabelecidos pelas grandes tradições orientais, sugerindo que, por outras vias de
conhecimento, essas tradições foram capazes de perceber determinadas características e aspectos da realidade que escapavam, até então, à ciência tradicional.
Como pudemos destacar do trabalho teórico de Wilber, essa diferença está na
forma de conhecimento utilizada pelas duas linhas de pensamento. Enquanto as tradições
orientais alcançaram o conhecimento de alguns desses aspectos através de práticas
meditativas, disciplinas de pensamento e funções fisiológicas, elementos alucinógenos
(sociedades primitivas ou indígenas) etc., a sociedade ocidental pautou sua trajetória do
conhecimento sobre o pensamento racional, resultando em uma prevalência do método
científico, experiência controlada, possibilidade de repetição e previsão dos eventos
etc., ou seja, mais na razão do que na experiência pessoal, subjetiva.
Utilizando a nomenclatura de Wilber, podemos dizer que as tradições orientais buscam diretamente, através das experiências chamadas aqui de transpessoais,
aspectos da realidade, acessando níveis superiores de consciência e procurando
relativizar ou retirar a importância dos níveis “inferiores”. Já o pensamento Ocidental procura explorar pela racionalidade, o máximo da potencialidade do nível em
que se encontra — pensamento formal e racional — como forma de ampliar o
entendimento da vida e a melhor compreensão e descrição da vida e da existência
do homem. Enquanto o Ocidente estaria orientado por uma filosofia implícita
materialista e atomista, as tradições orientais se orientam por uma filosofia
espiritualista e universalista. As crises seriam momentos de transformação de níveis,
onde os indivíduos procuram ascender, nem sempre conscientemente, para níveis
de compreensão e consciência da existência mais elevados. Como estamos
208
trabalhando a partir da perspectiva ocidental, como observadores, estivemos sempre procurando entender a “nossa” crise, a partir das propostas transpessoais, como
uma transformação no sentido de aquisição de valores espirituais. Certamente, do
lado oriental, a crise, ou necessidade de transformação, terá outra conformação.
Mesmo sem subsídios para tal afirmação, podemos pensar nas diversas conquistas
necessárias para as sociedades orientais em relação às diferenças sociais, oportunidades de trabalho e renda, liberdades democráticas, igualdades de direitos em termos
de raça, credo, condição socio-econômica etc., típicas da valorização da dimensão
Indivíduo, não tão valorizada quanto no lado ocidental. Poderíamos levantar uma
hipótese de que o recente, e crescente, movimento de globalização favorece uma
interpenetração e confrontação dos valores típicos de cada categoria de sociedade
— oriental e ocidental — possibilitando a emergência de “crises de transformação”
de parte a parte.
É preciso deixar claro que nossa posição, e parece ser a posição também dos
autores transpessoais, não é a de estabelecer uma supremacia das características
orientais sobre as ocidentais como superiores, preferíveis ou ideais. As práticas
orientais foram capazes de antecipar, por outras vias de conhecimento, alguns
aspectos que agora se avizinham do pensamento ocidental como uma necessidade
de entendimento. Entretanto, há de se evitar que essa generalização ingênua se
constitua em uma prevalência do oriental sobre o ocidental, na medida em que o
pensamento racional, característico da sociedade ocidental, seja considerado inferior ao pensamento transracional (Wilber) oriental. Os resultados expressivos da
tecnologia e da ciência na qualidade de vida dos indivíduos, na preservação da
vida em todas as suas formas, no estabelecimento de oportunidades de conforto e
desenvolvimento pessoal etc. são exemplos do potencial positivo que o pensamento ocidental tem sido capaz de produzir.
209
A síntese talvez seja a de encontrar pontos de convergência entre as duas
tendências e formas de conhecimento visando uma ampliação na capacidade de
conscientização do indivíduo e dos seus potenciais de crescimento, não só no nível
material das diferenças sociais e econômicas, mas em todos os níveis de consciência que as novas abordagens propõem.
Há de se fazer uma distinção importante nesse ponto. Referimo-nos ao que
poderia ser considerado uma essência do pensamento dessas tradições orientais
com suas possibilidades de ampliar a reflexão do indivíduo ocidental e as suas formas
manifestas de expressão, normalmente associadas a sistemas filosóficos ou religiosos instituídos. Roger Walsh, no prefácio de Um Deus Social (Wilber, 1987) afirma:
“Naturalmente, isso não quer dizer que todas as coisas orientais
ou religiosas sejam desse teor. Existem claras distorções, dogma, patologia, má interpretação e má utilização em torno de todas as religiões.
Na verdade, a essência pragmática do treinamento mental rigoroso é
freqüentemente encoberta por pompa e dogma exotéricos, ou reservada como um núcleo esotérico para os poucos considerados capazes de
atender as suas severas exigências. Porém, onde encontrada, essa essência esotérica de treinamento mental tende a revelar semelhanças
acentuadas entre sistemas aparentemente diferentes e indicar princípios
psicológicos, cosmovisões e estados transcendentais comuns: as chamadas ‘unidade transcendente das religiões’, ‘filosofia perene’ e ‘psicologia perene’.”(Walsh, in Wilber, 1987, p.11).
Isso nos leva a considerar que não tem sentido a simples “importação” de
práticas orientais, na medida em que, como já foi considerado pelo próprio modelo
transpessoal, a consciência do indivíduo é decisivamente influenciada pelos filtros
sociais a que está submetido desde o seu nascimento (ontogênese), bem como na
sua inserção em uma determinada raça (racial), família (ancestral) ou até mesmo da
espécie humana (filogenético). Além disso, convergem as opiniões sobre a influência de todo o contexto cultural da posição em que o indivíduo nasce no seu processo
210
de individuação e seu conseqüente convívio social. O objetivo poderia, então, ser
o de encontrar formas próprias — conforme as principais características de pensamento —de desenvolvimento da consciência do indivíduo para campos de valores, idéias, percepções etc. considerados superiores em relação aos níveis atuais
experienciados. Sobre isso, o próprio Wilber fala que:
“Devido a essa necessidade geral pela compatibilidade da estrutura superficial, não creio que as religiões orientais servirão como modelos em grande escala para a transformação ocidental, não importa
quão significativas possam ter-se mostrado enquanto provocadoras. Sua
influência será, com certeza, considerável, mas de maneira a ser finalmente transformada e assimilada pela nova perspectiva de mundo ocidental iogue, e não meramente transplantada de uma só vez.
Consequentemente, se a transformação iogue não é esotericamente cristã, não me surpreenderia se surgisse um novo misticismo especificamente ocidental, embora compatível em termos superficiais com a
simbologia cristã e a tecnologia racional.” (Wilber, 1987, p.140).
Um dos aspectos que se enquadram nessa situação de deverem ser estudados
e discutidos e não simplesmente “importados” das tradições orientais, está nas premissas filosóficas implícitas de cada corrente de pensamento. Dentre essas premissas, julgamos a Hipótese da Reencarnação como uma das mais significativas. Sua
importância está ressaltada pelo relato dos indivíduos que passaram por experiências transpessoais — espontâneas ou provocadas — que tiveram expressivos insights
sobre esse fenômeno, tendo alguns, até mesmo relatado, experiências de
rememorização de possíveis “vidas passadas”:
“Provavelmente este é o grupo de experiências transpessoais mais
fascinante e controvertido. Como sugeri anteriormente, as memórias de
vidas passadas assemelham-se de diversas maneiras a experiências ancestrais, raciais e coletivas. Entretanto, usualmente elas são dramáticas
e se associam a uma intensa carga emocional, negativa ou positiva. Sua
característica vivencial essencial é uma sensação convincente de estar
lembrando algo que aconteceu à mesma entidade, à mesma unidade
de consciência. As pessoas, ao participarem dessas experiências dramáticas, mantém um sentido de individualidade e de identidade pessoal,
211
mas experienciam a si mesmas em outra forma, em outro tempo e lugar
e em outro contexto.” (Grof, 1997, p. 93).
Em outra de suas obras, Grof aborda a questão da Reencarnação como
conseqüência direta das suas observações das experiências transpessoais de vidas passadas:
“Essas experiências [de vidas passadas] têm importantes implicações para a compreensão da natureza da consciência e para a teoria e
prática de psiquiatria, psicologia e psicoterapia. Não há dúvida de que
experiências desse tipo constituem a base empírica para a difundida
crença da reencarnação. A universalidade histórica e geográfica dessa
crença demonstra que ela é um fenômeno cultural muito importante.”
(Grof, 2000, p. 227).
Observamos que o pensamento ocidental já vem, mesmo que modestamente, se preocupando com a hipótese da reencarnação, através do desenvolvimento
de diversas pesquisas científicas (Stevenson, 1970, 1997; Banerjee 1979; Andrade,
1988) que procuram identificar pessoas, normalmente crianças, que façam relatos
espontâneos de suas supostas vidas passadas associados à identificação de marcas
de nascença que possam ser relacionadas à acidentes, doenças ou à causa mortis
da “última” vida. No mais importante — e impressionante — estudo sobre o tema,
Stevenson (1997) relacionou mais de três mil e quinhentos casos sugestivos de
reencarnação, seguindo rigoroso critério de observação e análise de evidências.
Contrariando as afirmações de que pesquisas desse tipo representam imaturidade,
despreparo acadêmico ou ingenuidade intelectual, Stevenson é reconhecido como
um dos maiores pesquisadores ocidentais sobre o tema (Prophet, 1997).
Independentemente de se fazer meditação ou passar por uma experiência
transpessoal, espontânea ou provocada — que parece realmente desencadear esse
processo de mudança de valores —, a própria crise ocidental leva a uma mudança
de atitudes, de posições e de comportamentos, na busca de soluções — nem sem-
212
pre conscientes mas igualmente eficientes, na direção de uma reformulação
da configuração de valores — para os efeitos negativos experienciados pelos
indivíduos.
7. 4 - IMPLICAÇÕES
7. 4 .1 - Implicações do “Diálogo” sobre a Crise da Sociedade Atual
Como conseqüência de nosso “diálogo”, podemos abordar as lacunas
identificadas na crise da sociedade ocidental sob uma ideologia individualista através de uma outra perspectiva. A possibilidade de se pensar essas questões considerando um “diálogo” com o modelo transpessoal apresentado nos oferece maiores
oportunidades de exploração do tema. Nosso objetivo nesse ponto, é apresentar
algumas dessas possibilidades sinalizando enfoques e desdobramentos que exigem
maior aprofundamento, dada a significativa contribuição que podem oferecer no
entendimento da crise e de diversos fenômenos relacionados à existência humana.
Primeiramente, vamos enfocar um aspecto importante retirado de nossas
reflexões: o valor atribuído ao Indivíduo pelas sociedades ocidentais. Como vimos,
a ênfase no Indivíduo como valor primordial da sociedade — aliada a uma filosofia implícita de caráter materialista — acarretou uma exacerbação de outros valores como o econômico, o status e a posse de diversos capitais sociais. A posse
diferenciada determinou o estabelecimento de estratégia de manutenção e/ou
ampliação desses capitais como forma de alcançar modelos de sucesso coerentes
com as bases da configuração de valores da ideologia individualista. Entretanto,
esse processo acabou por criar aquilo que a sociedade se propunha a combater:
213
uma nova hierarquia implícita, baseada em critérios de avaliação e estratificação a
partir da posse desses capitais.
O distanciamento da consciência da totalidade radicalizou esse movimento,
transformando o valor econômico em, talvez, o principal valor da sociedade ocidental. As experiências transpessoais permitem uma ampliação, primeiramente da
filosofia materialista implícita, possibilitando uma transformação na configuração
de valores individuais. Como conseqüência direta desse ponto, relativiza, sem negar, a importância do valor econômico como instrumento das realizações mais elevadas — redução das diferenças socio-econômicas, por exemplo — e não como
finalidade em si mesmo.
Outra ampliação obtida a partir das experiências transpessoais é a dos padrões de liberdade e de igualdade para o indivíduo e para o grupo social, já que,
em determinados níveis de consciência, o indivíduo identifica a sua estreita ligação
e identificação com o grupo social maior. A percepção, pelo indivíduo, dessa identificação, torna completamente incoerente as atitudes e comportamentos de exploração ou desigualdade pois representariam uma auto-exploração, em última análise.
As conquistas obtidas no campo das liberdades políticas foram de fundamental importância para todo o movimento verificado na atualidade. A partir do
humanismo, o homem não aceita mais receber normas ou leis por outras vias que
não a sua razão e sua vontade. A consistência dessas conquistas possibilita o homem ocidental pensar na transformação vertical para um nível mais transcendente,
segundo Wilber, no âmbito do valor Liberdade.
214
Outro aspecto que levantamos na análise da crise foi a constatação da pouca
capacidade de autodeterminar-se, levando os indivíduos ao imediatismo e ao isolamento. A reflexão transpessoal remete à possibilidade do indivíduo identificar, pela
vivência de estados holotrópicos, sua real capacidade de promover mudanças nos
rumos de sua existência, porém, percebe que essa capacidade está associada a
uma responsabilidade com os desdobramentos de sua atuação no conjunto social
e de recursos da natureza. Sua capacidade de autodeterminar-se está limitada pela
sua interdependência no universo. Entretanto, ao tomar consciência disso, não se
verifica uma imposição vivida como negativa, mas muito coerente com a visão da
totalidade que passa a compartilhar.
Quando abordamos o contexto histórico do Individualismo, deparamo-nos com
afirmações de Dumont (1985) sobre a origem cristã da ideologia individualista, como
baseada em uma fraternidade universal, onde todos são filhos de Deus e, como
conseqüência da mesma paternidade, “irmãos”. Curiosamente, através de outros
caminhos completamente diversos, as tradições orientais defendem a interligação de
todos os seres do universo. A Psicologia Transpessoal — ao identificar uma estrutura
de níveis de consciência do ser humano com características universais e observar que
dentro desses níveis existe a percepção do sentido de pertencimento e identificação
com o grupo social mais amplo — converge para uma certa fraternidade universal,
onde o princípio da igualdade ideal poderia ser percebido.
O “diálogo” com a Psicologia Transpessoal provocou um questionamento
sobre uma das conseqüências da ideologia individualista da sociedade ocidental: a
auto-suficiência. A auto-suficiência é um dos aspectos implícitos na configuração
de valores do individualismo que, como já mencionado, apresenta uma contradição já que a complexidade das relações individuais e sociais, a divisão social do
trabalho e a crescente tendência à especialização nos torna cada vez mais depen-
215
dentes uns dos outros. A Psicologia Transpessoal apresenta como base de seu modelo
exatamente as características da interdependência e interrelação entre as partes,
sejam indivíduos entre si ou entre dimensões da existência humana. Por outro
lado, podemos identificar a auto-suficiência do indivíduo em relação à sua capacidade de promover o desenvolvimento dos níveis de consciência por si mesmo, de
forma suficiente.
A competitividade talvez seja uma das características marcantes da crise da
sociedade ocidental que temos tratado no decorrer deste trabalho. A disputa pelos
recursos e oportunidades escassos, levam necessariamente a um clima de competição acirrada pela posse dos capitais socialmente valorizados que representem um
aumento nos níveis de felicidade. O medo do fracasso estabelece uma forma de
atuação na vida caracterizada pela ansiedade de buscar — a felicidade — a qualquer preço. A distorção pode chegar a um ponto tal que passamos a confundir a
felicidade com a busca por ela, isto é, passamos a encontrar satisfação na busca de
mais satisfação. A conseqüência natural desse processo é o desenvolvimento de
quadros associados à frustração ou ao estresse, que não são solucionados facilmente. Daí os quadros de melancolia e depressão verificados na sociedade ocidental
mesmo nos indivíduos ou grupos de indivíduos que alcançaram significativos
resultados na posse e benefício dos capitais acumulados. A Psicologia Transpessoal
sugere que esse processo se dá pela falta de uma transcendência de valores em
direção à espiritualidade. Enquanto se sente isolado do meio ambiente e do universo em geral, o indivíduo atua de forma auto-contraditória, pois ignorar o meio ou o
outro indivíduo em nome da felicidade própria é comprometer a si mesmo, uma
parte de sua própria felicidade.
As experiências transpessoais parecem demonstrar a capacidade de modificação de valores a partir da conscientização, pelo indivíduo, do seu pertencimento
216
ao todo universal. Essa mudança proporciona uma redução da angústia e da
competitividade, pois muda-se automaticamente o sentido da existência. Além disso, a mudança de sentido, como a apresentada, tende a relativizar a ênfase na
cultura de consumo de massa, outra característica da crise atual.
Como vimos anteriormente, a dicotomia entre igualdade X hierarquia representa uma das bases da ideologia individualista que pretende lutar contra os efeitos
negativos da hierarquia das sociedades primitivas, no sentido de Dumont, em que
o indivíduo estava subordinado ao todo social, aos privilégios do poder aristocrático transmitido por tradição e impossibilitado de qualquer mobilidade na estrutura
social em função da rigidez da hierarquia. O individualismo atual, com um discurso
igualitário, acabou por substituir uma hierarquia por outra, mais sutil, mas mantendo distorções sociais e econômicas compatíveis com as anteriores. O modelo
hierárquico em que se baseia a abordagem transpessoal não comporta as distorções
historicamente associadas às sociedades primitivas e às atuais, pois refere-se à
hierarquia dos níveis de consciência. O modelo de estrutura da consciência em
níveis irá permitir parâmetros de avaliação como superiores ou inferiores, mas não
se referem aos mecanismos de poder, seja ele político, econômico ou intelectual, e
sim ligados à uma maior compreensão da realidade e da existência humana.
As diferenças verificadas estão na conceituação de Hierarquia e Tradição. A
oposição entre Liberdade e Tradição exemplifica bem essa questão. A aparente
oposição se sustenta enquanto entendemos a Liberdade como liberdade de escolha e a Tradição como uma tendência à imposição de valores, idéias, posições,
oportunidades etc. Se considerarmos a Tradição como uma transmissão de conhecimentos que devem ser considerados mas, atualizados pelas mudanças de compreensão da realidade a cada momento, verificamos que pode preservar o conceito
da liberdade de escolha dos indivíduos para os caminhos dessa atualização. Com a
217
maior compreensão da realidade e da existência, aumenta-se a responsabilidade
por essas escolhas entre o que se mantém e o que se atualiza da Tradição. Portanto,
a Tradição compreendida e buscada pela vontade, não aceita a submissão por outros, mas entende a interdependência e integração com a totalidade.
Uma questão importante relacionada à mudança de valores da configuração
individualista, pode ser levantada nesse ponto do trabalho. Dumont afirma que o
movimento do Individualismo acabou por resultar, principalmente a partir da Reforma, em um distanciamento do homem dos valores religiosos ou transcendentes
direcionando-os para valores materiais, econômicos e imediatistas. A questão que
se coloca é: será que estamos buscando um retorno a esses valores? Será que eles,
de alguma forma, já existiram?
A reflexão, com base no trabalho de Wilber, sugere que não. Quando discutimos a diferença entre Espiritualidade e Religião destacamos a diferença entre
as formas instituídas de expressão da espiritualidade através das religiões e os
valores essencialmente espirituais necessários ao indivíduo. A aparente retração
dos valores espirituais com a ênfase do Individualismo, refere-se a um movimento
em espiral dos principais aspectos da existência no qual, após um determinado
ciclo, torna a passar pelo mesmo setor mas sempre em um ponto mais elevado
(superior) da estrutura.
Segundo a proposta de Wilber apresentada, as lacunas do individualismo
poderiam representar um processo de fixação dos indivíduos no Nível do Ego do
seu Espectro da Consciência. Esse processo teria determinado a ênfase na dimensão individual em detrimento da noção de totalidade e integração com o meio e
com o outro, típicos do Nível Existencial imediatamente superior. A crise significaria um movimento de tentativa de ruptura com a fixação no Nível do Ego a partir
218
da apreensão desse sentido de pertencimento do Nível Existencial que, como ainda não está plenamente consciente, é vivido como conflitante.
Essa abordagem permite uma nova compreensão da crise da sociedade ocidental. Com base em toda a proposta de Wilber, a crise pode, então, ser entendida
como efeito do processo de dualismo-repressão-projeção verificados pelos indivíduos
nos Níveis do Ego e Existencial. A partir de uma ameaça da Sociedade ao Indivíduo nas sociedades primitivas, a reação natural seria uma identificação do Indivíduo com o Nível do Ego associado a uma alienação da interrelação e integração
com ao totalidade (Nível Existencial), resultando em uma forma distorcida e exacerbada de individualismo. Como Wilber considera, no exemplo das religiões
fundamentalistas da atualidade, o movimento do individualismo poderia ter representado uma regressão e cristalização no Nível do Ego, fixando nos seus aspectos
mais negativos, que poderiam ser associados ao egoísmo, competitividade exacerbada, isolamento, fragmentação, indiferença.
Como podemos verificar, os aspectos da crise relacionados anteriormente em
nosso trabalho, aparecem claramente nessa reflexão. As perdas de certezas e de
referenciais, sejam econômicos, religiosos ou dos valores éticos, que resultam em
um imediatismo, podem ser entendidos no processo de fixação dos caracteres negativos da configuração de valores do individualismo. O isolamento e a fragmentação podem ser associadas a esse distanciamento da consciência de integração com
o todo que, alimentada pela ilusão de auto-suficiência do nível atual no encontro
da felicidade, geram conseqüências que vão da indiferença ao adoecimento dos
indivíduos e das relações sociais.
219
A angústia e a perda do sentido existencial resume o quadro da crise da
sociedade ocidental atual: um momento de transição e de transformação de valores
e de questionamento e adequação das filosofias implícitas que tem orientado o
pensamento e a vida no ocidente.
Para chegar a superar a crise “transformadora” que a sociedade ocidental
passa, parece-nos ser de fundamental importância a atualização e o equilíbrio da
sua configuração de valores. É preciso relativizar o Individualismo — como valor
prioritário da sociedade ocidental — introduzindo novos valores e preocupações
relacionados à totalidade do grupo social e do contexto dos recursos naturais. Na
verdade, já observamos uma tendência de significativa capacidade de superação
do pensamento ocidental, mesmo que ainda insuficiente para a transformação
necessária. Os grandes movimentos de consciência ecológica, de preservação de
espécies em extinção, as pesquisas por redução da utilização de elementos químicos prejudicais na produção de alimentos e outros gêneros de consumo, as pesquisas de fontes alternativas e menos poluentes de energia, dentre outras, são exemplos de caminhos que devem ser percorridos na superação da crise.
7.4.2- Multidimensionalidade do Real: Equilíbrio entre
Indivíduo, Sociedade e Natureza
Outro ponto que apresenta uma significativa implicação com nosso estudo, e
que gostaríamos de abordar, é a relação indivíduo / sociedade. A tendência da
ciência tradicional em se desenvolver de forma compartimentalizada como disciplinas, acabou por polarizar a discussão entre Indivíduo e Sociedade. Dependendo da
disciplina envolvida ou, mesmo dentro de uma mesma disciplina, dependendo da
220
escolha de recorte do autor, temos uma oposição entre os dois termos. Cada autor
irá privilegiar um deles como base de explicação dos fenômenos sociais e individuais. O debate tende a permanecer insolúvel já que cada autor consegue fundamentar seu ponto de vista de forma coerente dentro do seu escopo teórico ou experimental, considerando-o, por isso, verdadeiro. A definição de objetos híbridos complexos abre a discussão para uma relativização definitiva da polarização e disputa
pela forma “correta” de descrever determinado fenômeno ou objeto, conciliando
as reflexões exclusivas de cada disciplina relacionada a eles e as relações entre
essas diferentes formas de “olhar” para o objeto.
A abordagem transpessoal, ao postular a integração, a interrelação e a
interdependência entre todas as partes, afina-se com essa proposta. Faz parte das
tradições milenares orientais a noção de integração de todos os aspectos do universo. Diz a tradição hindu: “Quando se arranca uma folha de grama, está se alterando
o universo”. Em particular na discussão entre indivíduo / sociedade, a abordagem
transpessoal traz uma possibilidade de interação entre as dimensões da existência,
em que não há super ou sobreposição de nenhuma delas, apenas uma relação de
equanimidade. Conforme essa relação de equilíbrio foi, em diversos momentos
históricos, distorcida ou negligenciada, geraram-se desequilíbrios que se refletem
em todos os níveis, em um processo de adoecimento. O desequilíbrio e a crise,
então, parecem sempre poder refletir um movimento de re-equilíbrio do sistema. As
experiências transpessoais demonstram a possibilidade do indivíduo, em um estado
não-comum de consciência, perceber o fato de que participa, simultaneamente, de
todas as dimensões do universo. A hierarquia de níveis de consciência e a sua posição
em níveis ainda intermediários dessa hierarquia impedem sua percepção plena desse
processo. Ao participar também da dimensão Sociedade, perde o sentido determinarse qual dimensão prevalece nos fenômenos da existência humana, mas continua
tendo sentido a descrição de como cada dimensão participa nesses fenômenos.
221
O desafio será encontrar uma formulação capaz de dar conta da atuação simultânea e integrada entre dimensões como indivíduo, sociedade e natureza. Talvez
as recentes descobertas da Física Moderna sobre as características das unidades
subatômicas de atuação simultânea como partícula e como onda possam representar uma analogia que oriente nossas reflexões para modelos que envolvam essas
dimensões Indivíduo e Sociedade.
7.4.3 — Individualismo e Holismo
A questão proposta anteriormente — de como conciliar tendências antagônicas
— parece não ter solução em um modelo que considere apenas uma única dimensão da existência humana. Se privilegiarmos a dimensão individual como mais importante, o individualismo aparece como tendência natural e coerente não admitindo a introdução ou relativização de valores associados ao holismo, nos termos de
Dumont, sem que se considere retrocesso ou choque com o valor primordial. Se
considerarmos, primordialmente, a dimensão social, nos remetemos a uma ideologia, anteriormente verificada nas sociedades ditas primitivas, onde a tradição determinava a estrutura de poder e representação e a hierarquia enrijecia a estrutura
social e econômica, contra a qual o individualismo lutou e se sobrepôs, conquistando níveis de liberdade e igualdade inquestionáveis.
No “diálogo” com a Psicologia Transpessoal, verificamos a possibilidade de
se pensar na realidade como multidimensional e da qual destacamos três dimensões principais para os objetivos de nosso trabalho: indivíduo, sociedade e natureza. Esse modelo considera essas dimensões como equivalentes, e por isso mesmo
impossíveis de serem analisadas como superior ou inferior uma à outra. Não há
222
superioridade pois há uma integração, interdependência e interrelação estreita entre
as dimensões. Partindo dessa premissa não poderíamos mesmo comparar Individualismo com Holismo, não porque representem valores antagônicos, mas porque
são idéias ou ideologias associadas a diferentes dimensões complementares da existência e não hierarquicamente superpostas.
O que seria, então, o Holismo — hierarquia e totalidade — de Dumont?
Como vimos, o termo Holismo em Dumont representa o valor primordial
concentrado na sociedade, onde o indivíduo só tem valor como indivíduo-fora-domundo, ou seja, indiferenciado, dependente da hierarquia, submetido à tradição
do poder político e econômico. Em uma análise desse fenômeno, pela abordagem
transpessoal, poderíamos expressar o Holismo de Dumont através do seguinte gráfico:
Figura 9 - Holismo
223
Apesar da interdependência das dimensões indivíduo, sociedade e natureza,
o aspecto sociedade se sobrepõe por uma grande área das demais. Essa ocupação,
estabelece um empobrecimento do nível de expressão do indivíduo, uma
indiferenciação dos indivíduos diluídos no todo social, ficando apenas uma pequena porção de privilegiados a intervir ou interagir na relação com a sociedade e
natureza. Também a Natureza fica submetida ao domínio da exploração dos grupos
dominantes, sem representar uma distribuição mais eqüitativa para todos os
indivíduos. Segundo Dumont, a tendência do Holismo seria uma transição para o
Individualismo, substituindo a lógica da indiferenciação por uma priorização do
indivíduo como valor principal da sociedade.
A partir dessas conquistas, como também vimos no percurso histórico do
Individualismo, o indivíduo vai alcançando maiores níveis de autonomia, liberdade e singularidade, nas relações com as demais dimensões. A igualdade entre os
224
indivíduos passa a ser buscada como princípio geral. O individualismo, como movimento ideológico, se exacerbaria nas suas características principais resultando no
quadro que descrevemos e analisamos no início de nosso trabalho. Na sua concepção mais extrema, o Individualismo poderia ser representado pela seguinte figura:
Como podemos observar, o Individualismo, na sua forma mais ampla, ocasionaria uma deterioração dos valores da totalidade social em prol dos valores individuais. Essa superposição determinaria — pela exacerbação dos aspectos individuais,
sem a neutralização a partir da consciência grupal ou social — a ênfase dos aspectos
negativos vivenciados como crise pela sociedade ocidental — diferenças sociais,
diferença de oportunidades, diferença de posse de capital social, competitividade,
isolamento e fragmentação, perda dos referenciais em geral, cultura do consumismo e
Figura 10 - Individualismo
225
exploração do homem pelo homem etc. O que se deteriora nessa configuração individualista, é a consciência de pertencimento à totalidade, de integração ao todo da
humanidade. Em relação à dimensão natureza, essa configuração determina um
comportamento de exploração desenfreada dos recursos naturais pelo homem, do
uso indiscriminado das fontes de energia, do prejuízo ecológico em geral etc..
7.4.4 - Reflexão sobre Valores: Liberdade, Igualdade
A crise ocidental poderia ser caracterizada, portanto, como uma crise de valores, oriunda de uma ênfase do valor individual em detrimento das demais dimensões componentes da existência humana. O desequilíbrio na interrelação das
dimensões provoca um conflito no indivíduo, nas suas relações sociais e nas suas
relações com os recursos da natureza. O Individualismo e o Holismo passam a ser
considerados não como valores em si mesmos, mas como resultados da prevalência
de idéias ou ideologias que podem e devem ser revistas e ampliadas a partir dos
valores que as compõem. A solução para a crise poderia ser representada por uma
Figura 11 – Equilíbrio: Integração das dimensões
226
redução dos excessos do individualismo, sem a perda das conquistas verificadas
no desenvolvimento histórico da sociedade ocidental, mas que também pudesse
ampliá-las a um grande setor da população que vive à margem dos benefícios
mínimos desse progresso. O equilíbrio passaria, então, por uma transcendência da
configuração de valores que caracterizam a sociedade individualista ocidental para
uma outra de valores espirituais, entendidos aqui como aqueles que refletem uma
visão de vida e de mundo de maior integração e interdependência entre os componentes, conforme a figura abaixo busca representar:
Essa mudança na configuração de valores foi significativamente observada nos
indivíduos que passaram por experiências transpessoais provocadas ou espontâneas.
Claro está que não consideramos a perda das conquistas encetadas pelo movimento individualista. Pelo contrário. Valores como a Liberdade, a Igualdade, a
Auto-suficiência etc. são legítimas conquistas do indivíduo. Entretanto, no estágio
atual da sociedade, podem ser considerados apenas como ideais buscados mas
difíceis de serem alcançados pela maioria da população mundial: no lado oriental,
pela fixação em padrões primitivos de organização social, com pouca ou nenhuma
mobilidade social, diferenças econômicas cristalizadas nas estruturas sociais etc. e,
no lado ocidental, na necessidade de ampliação e extensão dessas conquistas a
uma grande camada alienada e marginalizada que delas não desfruta de fato,
conforme já apontamos no nosso trabalho.
Utilizando as premissas transpessoais em uma tentativa de entendimento da
crise, poderíamos afirmar que um dos aspectos da crise está relacionado à dificuldade dos indivíduos vivenciarem as conquistas da Liberdade, Igualdade, etc. de
modo pleno, pois esses princípios ideais só estariam disponíveis em níveis superiores da estrutura de desenvolvimento da hierarquia. Como, em níveis diferenciados
227
e amplos de consciência, o indivíduo percebe a sua existência e começa a eleger
esses princípios ideais como necessidade, almeja essas conquistas. Entretanto, como
ainda estaria experienciando um nível inferior da estrutura, tem uma percepção
parcial e distorcida desses valores, além de dispor de um determinado tipo de
objetos relacionais (Wilber) insuficientes para atingir o nível superior. É necessário
que se faça uma transformação (vertical) para se apropriar de trocas relacionais de
níveis mais elevados, que envolvam esses valores ideais.
Para uma mais fácil compreensão podemos utilizar a Figura 7 utilizado anteriormente, onde apresentamos uma proposta de entendimento da transformação ou mudança na estrutura para um nível
superior. Usaremos também, os principais valores
obtidos pelo movimento individualista na sua
trajetória histórica, independente das distorções observadas: a Liberdade e a Igualdade.
Vamos supor que os gráficos com divisões
estratificadas, representem níveis diferenciados de
cada valor. Portanto, o valor Liberdade e Igualdade
possuem uma estratificação de diferentes formas de
expressão ao longo de um movimento ascendente
no gráfico. Como exemplificamos anteriormente, os
níveis superiores desses valores existentes, são encobertos pelo esquecimento da totalidade, mas são percebidos de alguma forma — indiretamente ou não-
Figura 12 – Estrutura Hierarquica de valores; Liberdade e Igualdade
228
conscientemente. Conforme vamos desenvolvendo o processo de transição (horizontal) dentro de um mesmo nível, vamos tornando parcialmente visíveis as necessidades do nível superior. A pouca “visibilidade” e mobilidade nesse nível superior,
nos impossibilita de utilizar os recursos e objetos relacionais próprios que atenderiam àquelas necessidades. A utilização dos objetos conhecidos no nível inferior que
nos é mais característico não atende às necessidades criando uma situação de
crise. Podemos ilustrar com os gráficos abaixo para a Liberdade e a Igualdade:
Vamos agora supor que o desenvolvimento para cima ao longo da estrutura
de níveis desses dois valores — Liberdade e Igualdade — pudesse ser comparada
com algumas conquistas historicamente observadas no percurso da ideologia individualista. Poderíamos, então, estabelecer uma certa evolução na forma de
experienciar cada um desses valores:
LIBERDADE:
a) Nível 1: Sociedades primitivas de Dumont. Característica de indiferenciação
dos indivíduos que são submetidos a uma rígida estrutura tradicional e hierárquica; não há possibilidade de mobilidade social e econômica; os indivíduos dependem da totalidade e não se fazem representar.
b) Nível 2: Conquistas de Liberdades políticas; representação pelo voto; Liberdade de consciência pelo menos como princípio; Liberdade para utilização da
capacidade intelectual para aquisição de capital social; Exacerbação da
competitividade com predomínio dos que detêm outros instrumentos de poder
(mais sutis).
c)
Nível 3: Conquistas de Liberdade social; busca de maior mobilidade
social de fato; liberdade na divisão social do trabalho ainda como princípio; exacerbação do conflito entre auto-suficiência e especialização; Liberdade de escolha no
229
consumo, na escolha dos representantes (ainda relativa e manipulada pelos grupos
dominantes); Nível atual da crise da sociedade ocidental.
d) Nível 4: Liberdade transcendente de caráter espiritual; conquista de valores para um equilíbrio espontâneo na divisão social do trabalho, liberdade real de
escolha; liberdade de pensamento, do conhecimento e da interação entre as dimensões da existência; Consciência Cósmica: nível que começa a ser percebido
mas sem a apropriação plena dos objetos relacionais desse nível.
IGUALDADE:
a) Nível 1: Valores individuais diferenciados por raças, castas, credos, condição socio-econômica etc.; Sociedades primitivas de Dumont.
b) Nível 2: Igualdade nos valores individuais na esfera política: poder igual de
voto, representação e de ser representado; igualdade de oportunidades políticas
(ainda como princípio ideal); utilização dos capitais sociais como forma de violência simbólica para supremacia de uns sobre outros.
c) Nível 3: Igualdade de oportunidades de mobilidade social (ainda como princípio); busca da igualdade social, ou seja, de um mínimo para se garantir vida digna;
Discurso de igualdade de oportunidades de ascensão social sem respectivo respaldo
de oferta na infra-estrutura disponível; Exacerbação da competitividade como forma
de diferenciação e projeção na estrutura social; Desequilíbrios sócio-econômicos
(concentração de renda, escolaridade etc.); Estágio atual da sociedade ocidental.
d) Nível 4: Espiritual; identificação da igualdade entre os seres na essência
espiritual independente das diferenças culturais, econômicas, intelectuais etc.; re-
230
torno à fraternidade universal; garantia do mínimo essencial para assegurar a dignidade da vida; diferenças intelectuais como instrumentos de redução das diferenças sociais; Consciência Cósmica.
Nosso objetivo ao apresentar algumas características associadas aos níveis
não foi de esgotar o assunto ou fazê-lo de modo preciso, o que demandaria outro
tipo de análise e formulação específica, fugindo completamente do objetivo de nosso
trabalho. Nossa intenção foi alinhavar uma possibilidade de integração dos conhecimentos tradicionais com as contribuições das abordagens transpessoais que pudesse sinalizar para futuras reflexões ou questionamentos sobre esses aspectos relacionados à crise da sociedade ocidental vistos sob uma perspectiva transdisciplinar.
7. 4. 5- Superação da Crise e Mudança de Valores
Ao longo da exposição dos modelos de compreensão da Psicologia
Transpessoal sobre as estruturas de consciência do ser humano, pudemos observar
que nos deparamos com um dilema. Por um lado, a busca por uma unidade
indiferenciada “esquecida” e, por outro, a matéria, absolutamente necessária como
referência na vida do indivíduo. Duas forças aparentemente antagônicas que tendem a desorientar o indivíduo quanto ao sentido da sua existência. Entretanto, há
uma constatação — e a crise pode ser encarada como reflexo disso — buscar a
satisfação e a paz de espírito apenas em objetos e objetivos materiais leva a uma
sensação de fracasso por sua incompletude. Qual a alternativa? Parece que qualquer solução, para ser considerada satisfatória deverá abranger as dimensões materiais e a transcendentais:
“Para encontrar a solução desse dilema, temos que nos interiorizar
e conduzir uma busca interna sistemática. Com a contínua descoberta e
exploração de várias dimensões escondidas, de nós mesmos e da realidade, nossa identificação com o ego corpóreo torna-se progressivamente
mais fraca e menos compulsória. Continuamos a nos identificar com o
231
‘ego encapsulado na pele’ por propósitos pragmáticos, mas esta identificação torna-se mais experimental e lúdica. Se tivermos suficiente conhecimento experiencial dos aspectos transpessoais da existência, inclusive o de nossa própria identidade verdadeira e de nosso status cósmico, a vida cotidiana torna-se muito mais fácil e mais
compensadora.(Grof, 2000, p.278).
Aqui, fica marcada uma distinção entre os trabalhos de Wilber — mais teóricos
e abrangentes — e os de Grof — mais práticos e experienciais. As experiências de
Grof com estados e experiências holotrópicos em diversos indivíduos apresentam um
arsenal de relatos onde se pode constatar a vivência de aspectos dessa transformação
de valores, sistemas de crença, comportamentos e sentido para a vida.
O principal meio de promover essas mudanças seria complementar às
atividades do dia-a-dia com alguma forma de prática espiritual sistemática que
permitisse o acesso aos níveis transpessoais da existência. Grof refere-se à estratégia
de vida, proposta por C.G.Jung, que contemplasse tanto a dimensão secular quanto
a cósmica, de nós mesmos e da existência. Na sua proposta, Jung defende um
trabalho de auto-exploração sistemática, através de uma busca interna que permita
uma conexão com um aspecto mais elevado de nosso ser — dentro da abordagem
de Jung, o self.
Os indivíduos que passam por essas experiências, vivenciam uma nova perspectiva sobre sua realidade diária, tão convincente e propulsora que a incorporam
automaticamente à sua visão de mundo. Para Grof, esse impacto diante de uma
experiência transpessoal não depende do nível de inteligência, tipo de grau de
educação ou das crenças profissionais dos indivíduos.
Um dos principais efeitos do impacto provocado no indivíduo dá-se quando
vivencia uma experiência transpessoal de identificação com a Unidade (Cosmos,
232
Bhrama, Absoluto etc.). Nesse tipo de experiência, o indivíduo percebe que é
coextensivo a toda a rede cósmica do universo e a toda a forma de existência. A
percepção desse sentido de pertencimento altera radicalmente sua perspectiva
existencial.
Os efeitos das experiências holotrópicas, tanto espontâneas como as
provocadas, são enfatizados por Grof como significativos no processo de transformação do sistema de valores e crenças do indivíduo. O acesso aos níveis e conteúdos inconscientes — individual, coletivo e/ou transpessoal — promove uma espécie de liberação e alteração na organização desses sistemas:
“Nesses anos, testemunhei profundas curas emocionais e
psicossomáticas, assim como transformações radicais de personalidade, em muitas pessoas que se envolveram na busca interior séria e
sistemática. (...)
Quando o conteúdo do nível perinatal do inconsciente emergia à consciência e era integrado, esses indivíduos passavam por radicais mudanças de personalidade. O nível de agressão tipicamente diminuía consideravelmente e elas ficavam mais pacíficas, à vontade consigo mesmas e tolerantes com os outros. A experiência de morte
psicoespiritual e renascimento e de conexão consciente com memórias
pós-natais e pré-natais positivas reduzia impulsos irracionais e ambições. Ocasionava uma mudança de foco do passado e do futuro para o
momento presente e aumentava a habilidade de desfrutar das coisas
simples da vida, tais como atividades diárias, comida, amor erótico,
natureza e música. Um outro importante resultado desse processo era a
emergência de uma espiritualidade de natureza universal e mística que
era autêntica e convincente porque baseava-se na experiência pessoal
profunda.
O processo de abertura e transformação espiritual tipicamente aprofunda-se ainda mais como resultado de experiências
transpessoais, tais como identificação com outras pessoas, grupos humanos inteiros, animais, plantas e até mesmo materiais inorgânicos e
processos da natureza.” (Grof, 2000, p.349).
233
7. 4. 6- Educação Transpessoal
As reflexões sobre o entendimento da crise da sociedade atual, acabam por
revelar nossa característica de pensamento racional ocidental: somos arrastados a
pensar em soluções.
Ao estabelecermos um “diálogo” com a Psicologia Transpessoal acabamos
por depararmo-nos com uma possibilidade de ampliação da noção de indivíduo
para além das dimensões biográficas-rememorativas-pessoais, entrando nas suas
dimensões transpessoais. Esse movimento nos permite pensar no resgate da totalidade do indivíduo. Quanto mais o indivíduo se aprofunda no seu processo de
autoconhecimento mais percebe que não se reduz ao seu pensamento, ao seu
intelecto. Pelo contrário, a pesquisa de Grof, principalmente, demonstra que é na
consciência da transpessoalidade que o indivíduo se percebe integrado à sua totalidade e sua ligação com os outros indivíduos, a natureza, o universo. Ao transcender
seus limites individuais, confere diferente sentido à sua existência. Para uma cultura
como a nossa, acostumada com os limites do mundo observável, material, é difícil
buscar a experiência transpessoal atingindo a compreensão dos desdobramentos
da sua existência.
Se, comumente, já identificamos a necessidade da Educação como instrumento de inserção dos indivíduos em uma gama maior de possibilidades de realização e sobrevivência, a consideração de uma necessidade de transcendência da
configuração de valores e de sentido da vida na direção de uma maior integração
com a totalidade, passa pelo estabelecimento de uma Educação Transpessoal.
Em importante trabalho, Elydio dos Santos Netto (1998), baseado nas pesquisas de Grof, desenvolve uma proposta para uma Educação Transpessoal:
234
“Então, a Educação Transpessoal é aquela que empenha-se, direta
e intencionalmente, para formar o homem para a inteireza hiloholotrópica mediante a transmissão — crítica e transdisciplinar — dos
conteúdos culturais necessários à manutenção e desenvolvimento da
vida, e, também, mediante o trabalho de auto-conhecimento que possibilita religar as dimensões da pessoa humana: o biográfico, o perinatal e
o transpessoal; o hilotrópico e o holotrópico; a interioridade e a
exterioridade.” (Santos Neto, 1998, p. 267).
Ao considerar a realidade biográfica, perinatal e transpessoal do indivíduo a
partir do extenso trabalho de Grof, Santos Neto estabelece toda uma compreensão
do processo educativo e da formação de educadores para que desperte no educando suas potencialidades a partir de seu auto-conhecimento. O sentido de
pertencimento à totalidade garante uma significativa tolerância e compreensão
quanto às diferenças de qualquer ordem: sexuais, raciais, econômicas etc., além de
uma grande preocupação com as diversas formas de vida:
“As pessoas envolvidas no processo de emergência espiritual tendem a desenvolver uma nova apreciação de todas as formas de vida,
bem como reverência por elas, ao lado de uma nova compreensão da
unidade de todas as coisas, o que costuma a levar a intensas preocupações ecológicas e a uma maior tolerância diante de outros seres humanos.” (Grof, 1989, p 250).
O trabalho de Santos Neto oferece uma significativa exemplificação das possibilidades de se pensar uma ampliação dos objetivos da Educação com vistas à
superação da crise da sociedade atual bem como na melhoria da qualidade de vida
dos indivíduos. Destacamos os objetivos da Educação Transpessoal proposta pelo
autor, que oferecem elementos para nossa reflexão:
“São, portanto, objetivos da Educação Transpessoal:
· Auxiliar a pessoa a caminhar rumo à totalidade de si mesmo,
totalidade que compreende os níveis biográficos, perinatal e transpessoal
da consciência, níveis estes que passam pelo corporal, pelo emocional,
pelo racional e pelo espiritual da pessoa.
235
· Auxiliar a pessoa a caminhar na direção para a totalidade da
realidade (a matéria, o outro, o coletivo, a natureza, o cosmos, a Divindade) e compreender a ligação que existe entre todas as coisas bem
como a dinâmica de interconexão entre as várias esferas do real.
· Transmitir os conteúdos culturais necessários à sobrevivência,
manutenção e desenvolvimento da pessoa individual e do homem enquanto coletividade, sem contudo desconectar a transmissão de tais
conteúdos da formação hilo-holotrópica, condição para que o educando venha a desenvolver o sentido de responsabilidade e cuidado para
consigo mesmo, com o outro, com o coletivo, com a natureza, com o
planeta e com o cosmos.
· Auxiliar a formar pessoas que, tendo trabalhado no desenvolvimento integrado dos estados hilotrópico e holotrópico, e também por
terem desenvolvido o cuidado consigo próprias e com a alteridade,
participem do processo de superação da crise global que enfrentamos
— que tem extensões políticas, econômicas, sociais, éticas, ecológicas,
científicas e religiosas — e que ameaça a sobrevivência da vida no planeta.” (Santos Neto, 1998, p. 268).
Como podemos observar do trecho acima, o trabalho de uma proposta de
Educação Transpessoal, não se restringe a uma busca individual, do recolhimento
íntimo e silencioso como pode parecer a princípio. Envolve sim, uma ampliação da
consciência ecológica e uma solicitação espontânea por uma transformação da sociedade através de um trabalho sócio-político simultâneo e concomitante com o
trabalho interior.
O trabalho de Educação Transpessoal, despertando as potencialidades do indivíduo, tenderá a desenvolver uma nova consciência de cidadania, onde a autonomia — considerada em nosso trabalho como característica da configuração de
valores da sociedade ocidental — poderá ser atingida na sua acepção mais plena:
“autonomia da pessoa frente à vida e às possibilidades; da capacidade da pessoa escolher, livre e criativamente, os próprios caminhos
dentro das condições concretas nas quais está vivendo. (...) [A religação
dos níveis de consciência proporciona] 1. Compreender os vínculos entre
o mundo hilotrópico e o holotrópico, ou como é que as experiências
biográficas, perinatais e transpessoais interferem nas decisões que as
pessoas tomam; 2. Compreender a própria história biográfico-perinatal-
236
transpessoal e consequentemente situar-se de maneira mais adequada
na realidade; 3.Compreender as diferenças entre as maneiras de ver o
mundo de pessoa para pessoa; 4. Perceber que a esfera da decisão
política tem vínculos profundos com a interioridade conectada ou
desconectada; 5. Finalmente, perceber a ligação que existe entre todas
as coisas: do pessoal ao cósmico e divino.” (Santos Neto, opus cit., p.
251).
Parece claro, que uma proposta de Educação Transpessoal estimula também
o estabelecimento de diálogos — como o que desenvolvemos nesse trabalho —
envolvendo o saber científico, o saber filosófico, as tradições espirituais e as formas
artísticas de expressão e conhecimento, como forma de ampliar os limites e a consciência da interligação do indivíduo com a totalidade mais ampla
7.4.7- O que será que falta?
Durante todo o percurso desse trabalho identificamos, na grande maioria dos
autores, a tentativa de entendimento — pela Psicossociologia — do movimento do
pensamento e comportamento humano, a partir da configuração de valores individualistas que caracterizam nossa sociedade ocidental. Identificamos propostas
transpessoais que apontam para um resgate da totalidade do próprio indivíduo e
com os demais “outros” da existência. Verificamos — e procuramos explorar nesse
trabalho — as principais repercussões dos valores básicos da Liberdade, da Igualdade e da autonomia do indivíduo ao longo da história contemporânea, a partir do
ideário da revolução francesa. Entretanto, fica a sensação de que falta algo!
Quando pensamos na base do ideário da revolução francesa, podemos verificar que raramente os autores abordam a questão da fraternidade no desenvolvimento do entendimento da crise da sociedade atual. Talvez seja a falta da discussão sobre o papel da fraternidade na vida cotidiana humana que tenha distanci-
237
ado o indivíduo dos seus semelhantes, tenha tornado-o indiferente ao sofrimento e
às diferenças sociais e econômicas, mesmo quando faltem as condições mínimas
de sobrevivência aos outros indivíduos.
A exacerbação dos objetivos individuais de igualdade — como na revolta
contra a dominação hierárquica e na busca de condições semelhantes —
desacompanhada da fraternidade, pode ter isolado os homens na sua
competitividade e exigência de auto-suficiência, desenvolvido sistemas políticos
igualmente totalitários, segregado os indivíduos em suas famílias, enfraquecendo os
laços afetivos fora do núcleo familiar. A independência e liberdade, vividas de forma
absoluta sem a fraternidade, podem levar à dedicação exclusiva aos projetos
individuais de realização, que não considerem os projetos sociais coletivos, quando
não fecham esses indivíduos em um quadro de indiferença, de competição
desmedida pela conquista de valores financeiros e outros capitais socialmente
valorizados. A manutenção do sistema de valores das sociedades como estão, tende
a reforçar o estado atual das relações entre indivíduos e seus grupos.
Um estado de questionamento profundo de valores éticos e morais que é
gerado pela crise atual, inicia, certamente, um novo período de transformação. Os
atuais movimentos mundiais de solidariedade e de fraternidade já têm demonstrado
o início do processo de reformulação. Entretanto, há de se cuidar para que o movimento em direção ao resgate — ou conquista — da fraternidade nas relações
humanas, seja o mais autêntico possível. Alguns estudos (Iamamoto, 2000) alertam
para uma estratégia atual de re-filantropização social, onde a ausência do Estado
no papel de responsável no estabelecimento de uma política social, cede lugar à
participação da iniciativa privada, através de uma intervenção social dentro de uma
perspectiva de filantropia empresarial. A ação, ao invés de demonstrar um aumento
da conscientização da responsabilidade social ou do sentido de pertencimento tratado
em nosso trabalho, pode representar, única e exclusivamente, uma estratégia co-
238
CAPÍTULO 8
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Certa vez, à noite, ergui os olhos e vi como se no céu se tivesse
aberto uma enorme cortina, durante meio minuto. Experimentei uma
sensação de profundo êxtase: Está Tudo Bem. Tudo É Correto. Logo o
véu voltou a fechar-se e restaram as estrelas. As mesmas de sempre, e
eu, na escuridão. Essa sensação não me abandonou nunca.”
(RICHARD BACH)
239
A proposta inicial de manter um “diálogo” transdisciplinar não seria coerente
com uma conclusão ao final de nosso trabalho. Em nosso entender, uma conclusão
nos remete à etiologia da palavra latina “concluere”: fechar, encerrar. E um tema
como esse, que envolve a dimensão individual e social da humanidade, não pode
ser encerrado ou esgotado. Nos preocuparemos aqui em tecer algumas considerações importantes na finalização desse trabalho de pesquisa.
Nossa proposta foi de ampliar a discussão e a reflexão transdisciplinar sobre o
entendimento da crise da sociedade ocidental atual. Para isso, estabelecemos alguns recortes. Na abordagem psicossociológica, privilegiamos a ideologia individualista sob diferentes perspectivas disciplinares e interdisciplinares. Como outra
interlocutora, elegemos a Psicologia Transpessoal em função de ousada e inovadora concepção de indivíduo que propõe.
Como já esperávamos, encontramos várias dificuldades ao longo de nosso
“diálogo” transdisciplinar. Muitas dessas dificuldades puderam ser relatadas em
diversos momentos da articulação dos pensamentos, representando uma grande
experiência para nós, no âmbito de um trabalho transdisciplinar.
Entretanto, as vantagens também são significativas. A maioria delas, talvez, só
nos seja possível apreciar no momento em que encerramos nosso trabalho, quando
nos deparamos com a ampliação de horizontes que o exercício transdisciplinar
promoveu. Tanto nos âmbitos do crescimento intelectual, social e, principalmente,
pessoal. No âmbito intelectual, é como se os interlocutores voltassem de seu “diálogo” com a cabeça fervilhando de novas possibilidades e fronteiras a desbravar nos
seus campos de conhecimento próprios. No âmbito pessoal, a vivência do trabalho
transdisciplinar nos faz mais tolerantes, ponderados, flexíveis sem perder a
determinação, a firmeza e a coerência da postura crítica equilibrada.
240
Também no âmbito pessoal, a execução do presente trabalho teve a importância de nos fazer constatar a gama de possibilidades que a Psicologia
Transpessoal oferece. Ao longo de nossa vida profissional tivemos a oportunidade
de entrar em contato com alguns desdobramentos clínicos da Psicologia
Transpessoal, buscando formas alternativas e mais eficazes no entendimento e
superação de diversas psicopatologias que acometem os indivíduos em nossa
sociedade ocidental. Entretanto, somente agora podemos avaliar a extensão e
profundidade do trabalho de Grof ou de Wilber. As contribuições dessa
oportunidade de reflexão sistemática e aprofundada das propostas transpessoais
ampliam as perspectivas tanto profissionais de nosso trabalho teórico e prático
clínico, quanto sociais e pessoais na relação com a vida.
Nos parece ter ficado claro, também, que o presente trabalho oferece uma
gama de novas frentes; novos desafios. Alguns pontos levantados pelo trabalho
merecem um aprofundamento mais criterioso e focal, como a questão da Sociologia Transpessoal, das relações entre Indivíduo e Sociedade e, principalmente, a
questão da configuração de valores, dentre outros.
Ao final de nossa reflexão, pudemos perceber a importância do tema da configuração de valores para a compreensão da crise da sociedade ocidental atual.
Diríamos até que nos parece — e agora, talvez, seja o momento adequado para
fazê-lo — não ser apenas em relação aos valores ocidentais. O processo de
globalização crescente vem possibilitando uma reordenação dos valores individuais
e sociais em todas as culturas ao redor do mundo. Tal fenômeno nos coloca diante
de um novo desafio: qual o papel de uma configuração de valores do indivíduo e
de uma sociedade no desenvolvimento humano?
241
No campo da Psicossociologia, que nos interessa em particular para os
objetivos desse trabalho, podemos identificar algumas tentativas, ainda acanhadas, de transformação da configuração dos valores individualistas através dos
movimentos de incentivo ao Trabalho Voluntário que ocorre atualmente em nível
mundial, o Amigos da Escola e o Faça a sua Parte, no Brasil, a crescente participação dos movimentos de cooperativas de trabalhadores, os inúmeros movimentos
de solidariedade verificados em todo o mundo no combate à violência, na defesa
de minorias, no auxílio em catástrofes ou locais que representam focos de miséria
absoluta, os movimentos pela paz etc.. Todas essas iniciativas parecem representar
uma mudança de sentido na configuração dos valores do Individualismo, sem a
perda das conquistas alcançadas, mas ampliando a inteligência espiritual, segundo
Grof, que permita uma visão metafísica da realidade e da vida, uma transcendência
do sentido da existência humana.
Certamente, o espaço criado para nossa discussão não se adequava a uma
reflexão tão específica e importante, representando uma necessidade de desenvolver, em uma proposta de doutorado, por exemplo, e em uma abordagem
transdisciplinar, com certeza, um estudo mais profundo sobre o tema.
Outro resultado significativo que julgamos ter obtido com a conclusão de
nosso trabalho está na constatação de que a Abordagem Transpessoal não invalida o percurso do conhecimento atual pela Ciência Ocidental. Pelo contrário.
Verificamos que o que parecia antagônico, pode ser dinamizador, ou seja, ao
invés de contrapor ao conhecimento científico, amplia-o, desafia-o com novos
horizontes, pressiona-o no sentido de flexibilizar cristalizações de posturas sem
perder o caráter e rigor científico.
242
Essa aproximação entre os saberes que o exercício transdisciplinar possibilita,
nos remete ao nosso interesse inicial apresentado no primeiro capítulo desse trabalho: o movimento dos profissionais da área de saúde mental que buscavam percursos alternativos aos da sua formação acadêmica tradicional.
Verificamos, agora, o quanto estávamos implicados com essa questão, em
função da situação pessoal diante desse movimento profissional. Verificamos, também, a coerência e vantagens de termos empreendido um caminho diferente do
inicialmente proposto. Com toda a reflexão sobre a crise, pudemos entender o fenômeno de uma maneira mais ampliada, não nos restringindo — apesar de sua
importância — aos componentes individuais.
Com os estudos sobre Wilber verificamos que esse fenômeno parece representar um movimento autêntico do pensamento racional, que diante dos desafios e
pressões para um processo de transformação de valores para níveis mais elevados
na hierarquia da consciência, busca explorar ao máximo o potencial dos objetos
relacionais disponíveis. Wilber chamou os indivíduos que operam nessa transformação de trans-leis. Esses indivíduos, enquanto não conseguem estabelecer bases
totalmente coerentes e sólidas dos novos conhecimentos e perspectivas que desenvolvem, encontram-se, até mesmo, em uma situação de marginalidade diante do
sistema predominante.
Entretanto, a própria vivência da crise, entendida no seu sentido de transformação, pode representar a vivência, pelos indivíduos como um todo, ainda que de
forma não consciente, da necessidade de transcendência dos valores que compartilham naquele momento histórico. Wilber faz uma analogia ao pensamento précopernicano, sobre a não esfericidade da terra, referindo-se a essa sensação como a
243
de um indivíduo que se aproxima da borda aniquiladora do mundo, a partir do
qual despenca para o nada. Até que o indivíduo descobre que sua premissa estava
equivocada e que a terra era redonda.
A discussão sobre o fim da ciência, no início desse trabalho, pode representar
a sensação de se aproximar de uma borda aniquiladora, pelo pensamento humano.
A postura transdisciplinar vem mostrando que a “terra deve ser redonda”...
Algumas dificuldades que nos deparamos ao longo da elaboração desse trabalho, estiveram relacionadas ao pouco conhecimento que a produção teórica e
empírica do movimento transpessoal tem no meio acadêmico. Como vimos, parece
ser esse um meio legítimo — a discussão transdisciplinar com outros saberes — do
ocidente poder discutir e encontrar sua forma própria de religação com seus níveis
de consciência, inclusive com a dimensão da consciência cósmica.
A abordagem da crise da sociedade ocidental revelou também que o processo
de “diálogo” transdisciplinar não ocorre indiscriminadamente. Existem diversos aspectos epistemológicos, antropológicos, filosóficos importantes envolvidos na
discussão de uma nova concepção de indivíduo como propõe a psicologia
Transpessoal.
No Epílogo de A Epopéia do Pensamento Ocidental, Richard Tarnas (2000)
ressalta o avanço epistemológico que pode representar o extenso e consistente
trabalho de Grof no estabelecimento de uma nova cartografia do psiquismo humano. As possibilidades de se pensar o indivíduo sob essa nova perspectiva abre uma
infinidade de questionamentos decisivos para o conhecimento humano atual.
244
Em nossa opinião, uma das principais questões propostas está no entendimento da crise da sociedade atual — e aqui nos permitimos a não recortar apenas
a ocidental — como uma crise espiritual. Essa fronteira que se abre, apresenta desafios novos para a Ciência no estabelecimento de metodologias e critérios específicos para colocar o fenômeno espiritual — não necessariamente religioso — como
objeto de estudo. O trabalho de Grof talvez represente um dos mais significativos
exemplos de possibilidade de se combinar observação sistemática com novas premissas paradigmáticas, observação empírica com experiência subjetiva etc., com
expressivos resultados para o conhecimento humano.
Muitos questionamentos podem surgir como conseqüência de nosso trabalho. Se assim for, atingiu um de seus objetivos. Se desses questionamentos, resultarem discussões pertinentes, nossa satisfação será significativa. As grandes transformações necessárias para o avanço de nossa sociedade se darão, na maioria das
vezes de modo lento e gradual.
Conta-se que um brilhante escritor, reconhecido mundialmente e admirado
por milhares de pessoas pela profundidade e lógica com que tratava as grandes
questões filosóficas do ser humano, tinha o hábito de sair pela manhã, passeando
pela bela praia existente perto de sua residência. Nesse momento, refletia sobre as
questões da vida e do homem, para posteriormente, durante a tarde, sentar-se ao
seu computador e procurar passar aos seus leitores o resultado de suas reflexões.
Uma manhã, o escritor vê na praia um menino, que se preocupava em colher
as estrelas do mar que as ondas arremessavam para a praia, retornando-as ao oceano. “O que você está fazendo aí, menino?” O menino sem se desviar do seu afazer
respondeu: “Estou devolvendo ao mar as estrelas, para que não morram.” Diante
245
da resposta ingênua do menino, o escritor começou a tecer comentários sobre a
inutilidade da sua ação, de quantas milhares de estrelas existiam, apenas naquela
praia, e que ele não conseguiria salvar, que se projetasse isso para o mundo, talvez
estivessem falando de milhões de estrelas e de como sua ação não fazia diferença.
O menino ouvia sem interromper sua tarefa. Pegou mais uma estrela e, antes de
arremessá-la ao mar retrucou: “Para essa aí, fez diferença”. No dia seguinte, o escritor
passou a acompanhar o menino coletando estrelas...
A possibilidade de pensar as questões que envolvem a crise da sociedade, a
dimensão espiritual do ser humano, de se pensar uma Sociologia e Educação
Transpessoais, a ampliação dos horizontes da Ciência em todas as suas disciplinas,
bem como a necessidade premente de uma modificação da configuração de valores que garanta, não só a sobrevivência mas, principalmente, a “vivência” do ser
humano, remete-nos à discussão de algumas das grandes questões filosóficas da
humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido de nossa existência?
246
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250
ANEXO 1
DEFINIÇÕES DE ALGUNS DESDOBRAMENTOS TRANSPESSOAIS
Experiências Transpessoais: aquelas em que o senso de identidade ou de
eu ultrapassa (trans + passar = ir além) o individual e o pessoal a fim de abarcar
aspectos mais amplos da humanidade, da vida, da psique e do cosmo.
Disciplinas Transpessoais: dedicam-se ao estudo das experiências
transpessoais e fenômenos correlatos. Seus adeptos buscam a expansão do âmbito
dessas disciplinas através da inclusão do estudo de fenômenos transpessoais e da
aplicação de sua perícia nesse estudo.
Psicologia Transpessoal: estudo psicológico das experiências transpessoais
e seus correlatos. Estes incluem a natureza e as variedades, causas e efeitos das
experiências e do desenvolvimento transpessoal, como também as Psicologias, filosofias, disciplinas, artes, culturas, estilos de vida, reações e religiões por eles inspirados ou voltados à sua indução, expressão, aplicação ou compreensão.
Psiquiatria Transpessoal: área da psiquiatria que se concentra no estudo
das experiências e fenômenos transpessoais. Sua perspectiva é semelhante à da
Sociologia Transpessoal, enfocando particularmente os aspectos clínicos e
biomédicos desses fenômenos.
251
Antropologia Transpessoal: estudo transcultural dos fenômenos
transpessoais e da relação entre a consciência e a cultura.
Sociologia Transpessoal: estuda as dimensões, repercussões e expressões
sociais dos fenômenos transpessoais.
Ecologia Transpessoal: estuda as dimensões, repercussões e aplicações ecológicas dos fenômenos transpessoais.
Movimento Transpessoal: movimento interdisciplinar que inclui e integra
as diversas disciplinas transpessoais.
252
ANEXO 2
RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS AUTORES DA
ABORDAGEM TRANSPESSOAL CONSULTADOS
Stanislav Grof — Doutor em Medicina e Filosofia, psiquiatra e ex-presidente da International Transpersonal Association, foi chefe de pesquisa psiquiátrica do
Centro de Pesquisa Psiquiátrica de Maryland e do Johns Hopkins Hospital. Autor
de diversos livros, inclusive Além do Cérebro e Aventura da Autodescoberta, além
de mais de uma centena de artigos e ensaios publicados.
Ken Wilber — é um dos principais teóricos do transpersonalismo. Sua síntese transdisciplinar abrange as Psicologias, as filosofias e religiões do Oriente e do
Ocidente, além da Psicologia, Antropologia e pós-modernismo.
Roger Walsh, Ph.D. — Médico e professor de Psiquiatria, Filosofia e Antropologia da University of California, Irvine. Autor de 12 livros e de mais de uma
centena de artigos sobre ciência, filosofia, religião e ecologia.
Frances Vaughan, Ph.D. — Psicóloga, membro da equipe clínica da
University of California Medical School, Irvine e ex-presidente da Association for
Transpersonal Psychology.
253
Abraham Maslow, Ph. D. — foi um dos mais importantes psicólogos deste
século, sendo visto como pai da Psicologia humanística e da Psicologia Transpessoal.
Entre seus livros encontram-se Toward a Psychology of Being e The Farther Reaches
of Human Nature.
Charles Tart, Ph.D. — é professor de Psicologia da University of California,
Davis. Tart é um dos mais renomados pesquisadores dos estados de consciência e da
teoria transpessoal, autor de Walking Up e Transpersonal Psychologies, entre outros.
Kenneth Ring, Ph.D. — é professor de Psicologia da University of Connecticut
e ex-presidente da International Association for Near Death Studies. Ring é também
o autor de Life at Death e The Omega Project.
William James — foi um dos mais importantes filósofos e psicólogos americanos. Autor de inúmeros livros, são seus o Varieties of Religious Experience e
Principles of Psychology.
Daniel Goleman, Ph.D. — é editor de Psicologia do The New York Times.
Entre suas diversas publicações, incluem-se Mind/Body Medicine e Mind Science.
Charles Laughlin, Ph.D. — é professor de Antropologia da Carleton
University, Ottawa, Canadá. Autor de uma pesquisa etnográfica com os lamas
tibetanos no Nepal, é editor de Anthropology of Consciousness e co-autor de Brain,
Simbol and Experience.
Warwick Fox, Ph.D. — eminente ecologista, é autor de Toward a
Transpersonal Ecology, além de pesquisador do Center for Environmental Studies,
da Universidade da Tasmânia.
254
Bill Deval, Ph. D. — é um dos importantes autores da ecologia profunda e
co-autor do clássico Deep Ecology: Living as if Nature Mattered.
John Engler, Ph.D. — psicólogo e mestre de meditação budista, além de um
dos pioneiros da integração entre as idéias budistas e o pensamento psicanalítico.
John Shearer, Ph.D. — um dos pioneiros na colaboração para a implantação da Antropologia Transpessoal.
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