i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DE COMUNIDADES E ECOLOGIA SOCIAL INDIVIDUALISMO E A CRISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UM “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR COM A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL MILTON JOSÉ M. B. DE MENEZES RIO DE JANEIRO 2001 ii INDIVIDUALISMO E A CRISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UM “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR COM A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL por MILTON JOSÉ M.B. DE MENEZES Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - EICOS/UFRJ - como requisito parcial à obtenção do grau de mestre. ORIENTADORA: Profa. Dra. MIRIAM RAJA GABAGLIA PREUSS RIO DE JANEIRO 2001 iii BANCA EXAMINADORA: Membros Titulares ___________________________________ Profa. Dra. Miriam Raja Gabaglia Preuss __________________________________________ Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto __________________________________________ Profa. Dra. Jacyara Nasciutti __________________________________________ Profa. Dra. Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro iv Ficha Catalográfica M874i Menezes, Milton José M. B. de , 1960 Individualismo e a Crise da Sociedade Contemporânea: Um “Diálogo” Transdisciplinar com a Psicologia Transpessoal /, Milton José M. B. de Menezes; Ilustrações de Jefferson Borges. – Rio de Janeiro, 2001. 268p.:; Ilust.; 29cm Bibliografia: p. 246 1. Psicologia, 2. Mudanças Sociais, I. Título CDD 303.4 CDU 303.4 vi AGRADECIMENTOS Um trabalho de pesquisa envolve grande investimento de tempo e energia. Nesse percurso, muitas pessoas passam por nosso caminho deixando dívidas de gratidão que esse espaço, embora importante para nós, não conseguirá preencher completamente. Aos professores do Programa EICOS pela oportunidade de troca e aprendizado em um ambiente interdisciplinar enriquecedor. Aos colegas de mestrado pelo compartilhar permanente de experiências e incentivos. À professora Jacyara pelos inesquecíveis momentos de jardinagem nas nossas árvores genealógicas, onde conciliamos aprendizado de conteúdo com vivência pessoal. À professora Rosa Pedro pelos horizontes, ainda a explorar, nos campos da epistemologia. A Jefferson Borges, meu editor, pelas longas horas divididas nas viagens e conversas no telefone sobre a transpessoalidade do ser. Aos meus pais pela oportunidade da vida, pelo sacrifício para o meu estudo e pelos valores diante da vida. A Stanislav Grof, por sua atenção, simplicidade e envolvimento em nosso encontro de Dezembro de 2000 no Rio de Janeiro, e pelas importantes reflexões sobre a crise da sociedade, sobre “vidas passadas”, “outras realidades”, reencarnação e consciência. E o agradecimento especial à Professora Miriam Preuss, pela coragem em aceitar a orientação do tema, pelo zelo nas precisas correções do texto e articulações de idéias, pela abertura intelectual para um trabalho transdisciplinar dessa ordem, pelas proveitosas conversas acerca dos temas “além da vida e da morte” e, principalmente, pelo exemplo de força diante das dificuldades e de sensibilidade diante do sofrimento alheio, do qual fui testemunha algumas vezes. vii “O conceito do ego, com sua capacidade de ser quebrado em muitos egos discretos, é tentador para a psicologia experimental, pois convida ao método de estudo ‘divide e impera’, que herdamos em nosso método científico dicotomizado tradicional... Se se contestar que o quadro da multidão de egos reflete a fragmentação do homem contemporâneo, eu replicaria que todo conceito de fragmentação pressupõe alguma unidade da qual ele representaria uma fragmentação... Pois nem o ego, nem o inconsciente, nem o corpo são autônomos. Por sua própria natureza, a autonomia só de localiza no eu centralizado... tanto lógica quanto psicologicamente precisamos colocar-nos atrás do sistema ego-id-superego e tentar compreender o ‘ser’ de que estes são expressões.” - ROLLO MAY(Existential Psychology, 1969, p. 33-5) “Quanto mais extensa e profundamente penetramos na matéria, com métodos cada vez mais poderosos, tanto mais nos confunde a interdependência das suas partes. Cada elemento do cosmo é positivamente tecido de todos os outros... É impossível cortar essa rede, isolar-lhe uma porção sem que ela fique puída e desfiada nas bordas. Em toda a nossa volta, até onde a vista alcança, o universo permanece uma, e só é realmente possível um modo de considerá-lo, a saber, encarando-o como um todo, numa só peça.” - TEILHARD DE CHARDIN (The Phenomenon of Man, 1965, p. 43-4) “ A metamorfose das ciências contemporâneas não é ruptura. Cremos, ao contrário, que ela nos leva a compreender a significação e inteligência dos saberes e de práticas antigas que a ciência moderna, orientada pelo modelo de uma fabricação técnica automatizada, havia acreditado poder negligenciar.” - ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS (1997, p. 224-225) “Mas a ciência de hoje não é mais a ciência ‘clássica’. Os conceitos básicos que fundamentavam a ‘concepção clássica do mundo’ encontraram hoje seus limites num progresso teórico que não hesitamos em chamar de metamorfose. A própria ambição de reduzir o conjunto de processos naturais a um pequeno número de leis foi abandonada. As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais. Descobrimos que o diálogo racional com a natureza não constitui mais o sobrevôo desencantado dum mundo lunar, mas a exploração, sempre local e eletiva, duma natureza complexa e múltipla.” - ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS (1997, p.5) “Após mais de quarenta anos de estudos intensivos de estados holotrópicos de consciência, cheguei à conclusão de que os conceitos teóricos e as abordagens práticas desenvolvidas pela psicologia transpessoal, uma disciplina que está tentando integrar a espiritualidade no novo paradigma emergente na ciência ocidental, podem ajudar a aliviar a crise que estamos enfrentando. Essas observações sugerem que uma transformação psicoespiritual da humanidade não é apenas possível, mas já está ocorrendo. A pergunta é apenas se ela pode ser rápida e extensiva o suficiente para reverter a atual tendência autodestrutiva da humanidade moderna.” - STANISLAV GROF (2000, p. 321) “Epistemologicamente, o avanço mais significativo na história recente da psicologia profunda, realmente o mais importante em todo esse campo desde os próprios Freud e Jung, foi o trabalho de Stanislav Grof, que nas três últimas décadas não apenas revolucionou a teoria psicodinâmica, mas também apresentou grandes implicações para muitos outros campos, inclusive a Filosofia.” - RICHARD TARNAS (2000, p. 451) viii SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO, 1 CAPÍTULO 2 - UMA SOCIEDADE EM CRISE, 5 2.1 - Perdas, 7 2.2 - Excessos, 13 2.3 - Crise: Apocalipse ou Transformação?, 17 CAPÍTULO 3 - A CIÊNCIA EM BUSCA DE SOLUÇÕES, 23 3.1 - A crise da Ciência, 24 3.2 - A Interdisciplinaridade como Recurso nos Meios Acadêmicos, 26 3.3 - A Abordagem Psicossociológica e a Complexidade dos Problemas Humanos e Sociais, 36 CAPÍTULO 4 - UM RECORTE DENTRO DA ABORDAGEM PSICOSSOCIOLÓGICA: O INDIVIDUALISMO, 40 4.1 - Indivíduo como Base na Ideologia Individualista, 45 4.2 - Contextualização Histórica do Individualismo, 47 4.3 - Pressupostos do Individualismo e a Crise da Sociedade Contemporânea: Contribuições e Lacunas, 53 CAPÍTULO 5 - DIÁLOGO TRANSDISCIPLINAR NA COMPREENSÃO DA CRISE SOCIAL CONTEMPORÂNEA: A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL COMO INTERLOCUTORA, 78 5.1 - A Psicologia Transpessoal, 84 5.2 - A Década de 60 e os Alucinógenos, 88 5.3 - Cartografias da Mente, 91 5.3.1 - O Espectro da Consciência de Ken Wilber, 93 5.3.2 - A Cartografia de Stanislav Grof, 105 5.3.3 - A Escolha por Grof e Wilber, 123 CAPÍTULO 6 - O OLHAR DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL, 126 6.1 - Uma outra Concepção de Indivíduo, 127 6.2 - O Indivíduo Identificado com Grupo e Humanidade: Interdependência e Interligação, 135 6.3 - A Dinâmica Horizontal e Vertical das Estruturas (Ken Wilber), 140 6.4 - Sociedade, Indivíduo e Natureza Integrados: Uma Nova Concepção, 153 6.5 - Crise: Emergência Espiritual, 165 6.6 - O Movimento de Translação e Transformação no Entendimento da Crise Social, 162 ix 6.7 - Revolução Silenciosa, 172 6.8 - A Questão de Valores e suas Mudanças, 176 CAPÍTULO 7 - O DIÁLOGO, 179 7.1 - Aproximações, 183 7.1.1 - Modelos Relacionais e as Faixas Biossociais, 183 7.1.2 - Universalidade do indivíduo, 186 7.2 - Domínio Inexplorados, 189 7.2.1 - Explorando uma Teoria de Hierarquia, 190 7.2.2 - Exploração de Novas Configurações de Valores, 194 7.2.3 - Um Sociologia Transpessoal a Explorar, 195 7.3 - Percursos Diferentes, 198 7.3.1 - Religião, Espiritualidade e Ciência, 198 7.3.2 - Uso dos Termos Tradição e Hierarquia, 204 7.3.3 - Ocidente e Oriente, 206 7.4 - Implicações, 212 7.4.1 - Implicações do “Diálogo” sobre a Crise da Sociedade Atual, 212 7.4.2 - Multidimensionalidade do Real: Equilíbrio entre Indivíduo, Sociedade e Natureza, 219 7.4.3 - Individualismo e Holismo, 212 7.4.4 - Reflexão sobre Valores: Liberdade e Igualdade, 224 7.4.5 - Superação da Crise e Mudança de Valores, 229 7.4.6 - Educação Transpessoal, 232 7.4.7 - O que Será que Falta?, 235 CAPÍTULO 8 - CONSIDERAÇÕES FINAIS, 238 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 246 ANEXO I - DEFINIÇÕES DE ALGUNS DESDOBRAMENTOS TRANSPESSOAIS, 250 ANEXO II - RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS AUTORES DA ABORDAGEM TRANSPESSOAL CONSULTADOS, 252 x ÍNDICE DE FIGURAS E TABELAS: TABELA 1 - Classificação de Grof das Experiências Transpessoais, 119 FIGURA 1 - Espectro da Consciência de Ken Wilber, 97 FIGURA 2 - Pensamento Fragmentando a Realidade Una, 98 FIGURA 3 - Integração das Dimensões Indivíduo, Sociedade e Natureza, 154 FIGURA 4 - Estrutura Hierárquica, 166 FIGURA 5 - Dinâmica Horizontal e Vertical da Estrutura, 166 FIGURA 6 - Estrutura Hierárquica em Crise, 167 FIGURA 7 - Dinâmica da Tranformação, 167 FIGURA 8 - Crise Superada, 168 FIGURA 9 – Holismo, 222 FIGURA 10 – Individualismo, 223 FIGURA 11 - Equilíbrio: Integração das Dimensões, 225 FIGURA 12 - Exemplo de Estrutura Hierárquica de Valores: Liberdade e Igualdade, 227 xi RESUMO A presente pesquisa teórica tem como ponto de partida a reflexão sobre a crise da sociedade contemporânea ocidental como um processo de transformação. Propõe um “diálogo” transdisciplinar entre a abordagem psicossociológica e a Psicologia Transpessoal sobre essa crise. Após considerar as propostas da Ciência sobre os desafios do pensamento humano na atualidade, principalmente através dos modelos relacionais, dos objetos híbridos de estudo e das posturas interdisciplinares, o trabalho reflete os desdobramentos da crise a partir da ideologia individualista que caracteriza a sociedade ocidental. Posteriormente, apresenta a Psicologia Transpessoal e sua proposta de uma nova concepção de indivíduo: interligado e interdependente. O “diálogo” desenvolve-se a partir das diferentes posições dos saberes envolvidos, visando ampliar as fronteiras de reflexão sobre a crise e seus componentes formadores. Discute-se a configuração dos valores da sociedade ocidental — o individualismo, o valor econômico, outros capitais socialmente valorizados etc. —, a crise como uma crise espiritual e os modelos transpessoais sobre os estados incomuns de consciência e suas repercussões no comportamento, no adoecimento e nas perspectivas de ampliação do sentido da existência humanos. O presente trabalho procura ampliar as possibilidades de discussão sobre alguns dos grandes desafios para o pensamento ocidental como a relação Indivíduo e Sociedade, Ciência e Espiritualidade, Consciência e Realidade. xii ABSTRACT This theoretical research starts with a reflection about contemporary Western society’s crisis as a transformational process. It proposes a trans-disciplinary “dialogue” between the psychosociological approach and Transpersonal Psychology contemplating this crisis. After considering Science’s propositions for the challenges of human thinking today, especially through the relational models, of the hybrid objects of study and interdisciplinary posture, the work reflects the unfolding of the crisis beginning with the individualistic ideology which characterizes Western society. Next, it presents Transpersonal Psychology and its proposition of a new conception of the individual: interrelated and interdependent. The “dialogue” develops from the different views of the knowledges involved, miming at amplifying the frontiers of reflection about the crisis and its components. We discuss Western society’s values — individualism, economic value, other capitals which are socially valued etc. —, the crisis as a spiritual crisis and the transpersonal models of altered states of consciousness and its effects on behavior, sickness and the perspectives of amplification of the meaning of human existence. The present work aims at broadening the discussion possibilities about some of the great challenges for the Western thought sych as the relationship Individual and Society, Science and Spirituality, Consciousness and Reality. 1 CAPÍTULO 1 APRESENTAÇÃO 2 Quando ingressamos no Mestrado do Programa EICOS — Estu dos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tínhamos em mente um tema diferente do que apresentamos no presente trabalho. Julgamos importante apresentar este percurso pessoal para situar o leitor nos desdobramentos de nossas reflexões. Motivava-nos, inicialmente, um estudo sobre um fenômeno social identificável na atualidade envolvendo profissionais da área de saúde mental e suas escolhas profissionais após concluídas suas formações acadêmicas básicas. Observávamos que muitos profissionais dessa área haviam optado por práticas que englobavam conceitos muito diferentes daqueles constantes das escolas tradicionais em que se baseavam as estruturas curriculares dos cursos de graduação pelos quais haviam passado. Muitos passaram a utilizar práticas conhecidas como alternativas que integravam conceitos de diversas fontes de saber — filosofias orientais, práticas religiosas etc. — nem sempre reconhecidos pelos meios acadêmicos ou pelos órgãos de regulamentação do exercício das profissões da área. Nosso interesse, àquela época, era o de procurar entender as razões que levavam tais profissionais a promover uma mudança radical na sua atividade prático-teórica profissional, rompendo com o paradigma tradicional na qual assentavam sua base de conhecimento. Uma proposta interdisciplinar como a Psicossociologia parecia oferecer o instrumental de análise ideal para um tema abrangente como esse, já que o estudo dos fatores puramente sociológicos ou psicológicos nos afastaria de uma coerência que o tema exigia. Em resumo, a questão era: O que leva um profissional formado em uma estrutura conceitual tradicional, aceita e valorizada socialmente, que tem respaldo da comunidade científica e com o seu exercício regulamentado formalmente, a optar 3 por uma prática dita alternativa, ou seja, a uma mudança de orientação práticoteórica? A partir daí, poderíamos ter seguido alguns caminhos bastante instigantes para nossa proposta de pesquisa. Primeiramente poderíamos buscar uma abordagem epistemoló-gica, relacionando o fenômeno estudado a uma mudança de paradigma, na visão de Khun (1987), através de uma ruptura da estrutura vigente em direção a um novo modelo. Como alternativa a esse percurso, poderíamos optar por uma pesquisa que privilegiasse os fatores psicossociais envolvidos na mudança de escolha profissional, procurando enfocar o processo de escolha individual, recorrendo a conceitos psicossociológicos para o entendimento da formação e dinâmica da sociedade contemporânea. No entanto, ao iniciarmos o aprofundamento de nosso estudo pudemos perceber que por trás de nossa questão revelava-se outra que, mesmo parecendo mais ampla e abrangente, oferecia material de reflexão mais instigante e desafiador. Observamos que havia uma característica comum a esses profissionais: estavam buscando novas formas de entendimento dos conceitos de mundo, de vida, de saúde, de homem e de mente que pudessem ampliar suas possibilidades e recursos no trato com a dor e o sofrimento humanos. Pareceu-nos extremamente oportuno, estudar sistematicamente, e de forma criteriosa, quais eram essas fontes de saber e que tipo de colaboração efetiva elas poderiam oferecer às abordagens tradicionais do conhecimento ocidental. Nossa impressão inicial, a partir de contatos ensejados pela prática clínica e profissional, dava conta de um ponto comum aos profissionais especificados: todos partiam de uma espécie de insatisfação com os recursos de que dispunham em suas formações de origem. Além disso, todos sinalizavam a crise enfrentada pela sociedade contemporânea como fator desencadeante de uma postura mais flexível em 4 relação ao paradigma científico tradicional. Nosso objetivo passou a ser, então, elaborar um estudo teórico que partisse dos principais componentes da crise da sociedade contemporânea identificando as possibilidades de sua compreensão dentro de uma abordagem Psicossociológica e, a partir daí, e coerentemente com as mais recentes propostas de integração de saberes na busca da superação de desafios do pensamento e conhecimento humanos, propor um “diálogo” transdisciplinar com a Psicologia Transpessoal procurando identificar possíveis contribuições para a compreensão da crise da sociedade contemporânea. Iniciaremos com uma caracterização da crise da sociedade contemporânea ocidental no Capítulo 2. A partir daí, apresentaremos, no Capítulo 3, os mecanismos desenvolvidos pela ciência diante dos impasses metodológicos e conceituais para lidar com a complexidade dos problemas humanos e sociais, ressaltando a proposta interdisciplinar, em geral, e a abordagem psicossociológica, em particular. Dentro dessa abordagem, trataremos do recorte teórico do indivíduo e do individualismo, buscando elos de ligação com a crise da sociedade contemporânea, que será o conteúdo do Capítulo 4. O Capítulo 5 procura refletir as questões da transdisciplinaridade envolvendo a Psicologia Transpessoal. No próximo capítulo — Capítulo 6 — introduziremos a Psicologia Transpessoal e seus principais pressupostos visando identificar possíveis contribuições, através de uma ampliação da noção de indivíduo. No Capítulo 7 abordamos a crise da sociedade ocidental a partir do referencial da Psicologia e Movimento Transpessoais. Finalmente, no Capítulo 8, promovemos um “diálogo” trandisciplinar buscando discutir e refletir sobre os diversos pontos levantados ao longo do trabalho, procurando evidenciar as contribuições que essa prática transdisciplinar pode oferecer na compreensão da crise da sociedade contemporânea ocidental. 5 CAPÍTULO 2 UMA SOCIEDADE EM CRISE “Assim não se poderia destacar um problema número um, que subordinaria todos os demais; não há um único problema vital, mas vários problemas vitais, e é essa inter-solidariedade complexa dos problemas, antagonismos, crises, processo descontrolado, crise geral do planeta, que constitui o problema vital número um.” (EDGAR MORIN) 6 Parece ser senso comum a opinião de que o homem contemporâneo passa por uma significativa e profunda crise. Entretanto, é preciso identificar precisamente estes termos para não corrermos o risco de generalizar algo que pode ser específico. Quando utilizamos, no título dessa seção, o artigo UMA para o substantivo SOCIEDADE queremos nos referir a uma categoria específica dentro de um amplo universo. Não podemos afirmar que em outras sociedades os fenômenos estudados sob o nosso enfoque apresentam-se de forma semelhante. Ao nos referirmos à SOCIEDADE estamos promovendo um primeiro recorte caracterizado claramente pelos termos que a definem: SOCIEDADE complexa, urbana, ocidental, contemporânea. Assim, por complexa estamos entendendo aquela SOCIEDADE que está estruturada em grandes redes de relações e funções; urbana pela ênfase no movimento habitacional na direção dos grandes centros urbanos pela população em geral; ocidental já que todo o referencial de conhecimento, de pensamento, cultura etc. será o desta parte do planeta; e contemporânea, na medida em que daremos ênfase às mais recentes características e dinâmicas dessa SOCIEDADE iniciadas com as modificações das relações de produção do século XIX identificadas no movimento industrial e, subseqüentemente, nas mudanças pós-industriais e tecnológicas. Com este recorte estaremos utilizando abordagens das diversas áreas do saber envolvidas direta ou indiretamente com o nosso tema. Como CRISE estaremos privilegiando as definições de uma “fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos e das idéias” ou, especificamente, como “situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade”1 . 1 O Novo Dicionário Aurélio apresenta no verbete Crise essa interessante definição sociológica que resume bem as tendências, na Sociologia, de caracterização da crise social. 7 Quais seriam os acontecimentos que estariam caracterizando o momento atual como de crise na visão estabelecida acima? 2.1- PERDAS O primeiro aspecto que identificamos na composição da crise da sociedade contemporânea refere-se às perdas percebidas pelos indivíduos integrantes dessas sociedades, de diferentes formas. No tocante à perda de certezas os indivíduos parecem se ressentir do estreitamento das perspectivas de futuro para suas vidas, tanto quanto aos seus projetos familiares como aos profissionais, principalmente. A incerteza advinda das instabilidades econômicas provoca as mais diferentes reações, refletindo-se no comportamento individual e social, pela total impossibilidade de se preverem os movimentos de uma complexa economia mundial globalizada e interligada. Os recentes reflexos na economia em nível mundial, diante das oscilações das bolsas de valores de determinados países em dificuldades locais, ratificam nosso ponto de vista. Mas não é só a perda das certezas que atinge tão significativamente os indivíduos. A crescente perda de referenciais de toda ordem vem contribuindo para essa deterioração da sociedade. Os próprios referenciais econômicos que, durante tantos séculos, vêm norteando a condução de políticas e a estrutura de valoração na sociedade, parecem ter encontrado uma crise sem precedentes, com os riscos da perda de status e condição social determinados por variações externas e independentes da vontade do indivíduo. A impossibilidade de se auto-determinar nesses assuntos vem colaborando para um crescente adoecimento, principalmente da classe média, como função dessa perda. 8 Uma das principais conseqüências dessas perdas parece ser uma tendência a valorizar as conquistas mais imediatas, sejam elas financeiras, de status, de prazer etc. A essa característica chamaremos de imediatismo. O papel tradicionalmente ocupado pelas religiões de um modo geral — como mantenedoras de padrões de conduta e comportamento — também parece ter sofrido um crescente desgaste, nas relações sociais contemporâneas, principalmente aquele que acompanha o movimento materialista de nosso século2 . Por um lado, a busca de um grande número de indivíduos por soluções milagrosas para suas dificuldades, com conseqüente frustração pessoal; por outro, a dificuldade da maioria dessas religiões em poder explicar ou consolar em relação às grandes vicissitudes e diferenças sociais acabou por promover o que estamos chamando de perda de referenciais religiosos. Entretanto, talvez o aspecto que mais se destaque nessa crise, em termos dos efeitos sobre as relações sociais entre os indivíduos da sociedade contemporânea, seja o da perda dos referenciais de valores. De um modo geral, temos assistido a uma desenfreada mudança dos valores da sociedade em diferentes nuances. Os valores ético-morais vêm sofrendo alterações profundas ao longo das décadas mais recentes chegando a apresentar padrões significativos em certas classes ou grupos sociais, que acabaram desenvolvendo códigos próprios de regulamentação da vida social. Assim, por exemplo, podemos identificar os códigos de leis próprias impostos por determinadas categorias marginais vinculadas ao tráfico de drogas, sobre uma comunidade popular urbana inteira, sem que as instituições competentes se aventurem a uma intervenção que restaure a organização original 2 A constatação, mais recente, de uma crescente e, por vezes, desordenada busca pela religiosidade sugere uma reação a essa perda de referenciais religiosos pelos indivíduos, necessitando-se de estudo específico para investigar os componentes desse fenômeno. 9 da comunidade urbana mais ampla. A integridade da vida humana parece passar por dias de reduzida valorização passando-se da vulgarização dos motivos de homicídio aos descasos no trato das populações que vivem no, ou além, do limite da miséria. Essa conduta, generalizada, tende a influenciar e até determinar as orientações das políticas governamentais no campo social e de saúde pública, desconsiderando a triste realidade de uma grande parte da população que não possui condições básicas de manutenção da vida. Outra gama de valores que estão em pleno processo de deterioração refere-se aos casos de prostituição infantil, tráfico humano, trabalho escravo infantil etc. que, apesar de trazerem uma longa história de ocorrências na humanidade, parecem contrariar padrões básicos de uma civilização que se diz moderna, tecnológica. Após o aspecto das perdas, o segundo que pretendemos destacar dessa crise, se confunde em dois termos que analisaremos em conjunto: o isolamento e a fragmentação. O isolamento dos indivíduos parece decorrer em boa parte de uma fragmentação das relações e estruturas sociais. Diante da divisão internacional do trabalho, da crescente busca de especialização para manutenção das condições de competição econômica nos mercados globalizados, os trabalhadores se vêem cada vez mais isolados e afastados. As jornadas de trabalho, estendidas para complementação da mão-de-obra dispensada com vistas à recuperação (ou ampliação!) das margens de lucro obtidas nas operações produtivas ou comerciais, reduzem o tempo de lazer e de possibilidades de trocas nos campos sócio-culturais da sociedade. Ainda com referência às relações de trabalho, podemos identificar que esta tendência à redução dos quadros funcionais disponíveis tem promovido uma acirrada disputa pela manutenção ou obtenção das vagas existentes, ampliando o clima de desconfiança e distanciamento entre as pessoas, justamente no, ou em função do local profissional onde passam mais de 2/3 de sua existência. 10 Outra forma de isolamento e fragmentação característica dessa sociedade é o que chamaremos arquitetônica. Englobamos aqui o claro distanciamento provocado pelas formas de ocupação habitacional da população urbana. Apesar da proximidade física, em estruturas de edifícios gigantescos que abrigam dezenas de unidades familiares, o nível de relação interpessoal existente é completamente paradoxal. Servindo basicamente como dormitórios, essas unidades não têm favorecido o intercâmbio entre as pessoas. Em função de aspectos da violência urbana como assaltos, seqüestros etc., maior é o número daqueles que irão se isolar atrás das grades dos condomínios fechados, sejam os de luxo ou até nas vias públicas que são cercadas de cancelas e seguranças, dificultando a interação e relacionamento entre os indivíduos. Mesmo nas comunidades carentes — como as favelas, por exemplo — são freqüentes as ocorrências de “toques de recolher” impostos por grupos ligados ao crime organizado, restringindo a possibilidade de uma maior interação social. Ainda com relação ao aspecto do isolamento, destacamos o do âmbito familiar. Conforme a característica da sociedade passou, ao longo do tempo, a ser determinada pela maior participação do indivíduo, inaugurando a distinção entre os domínios público e privado dos grupos sociais, alteraram-se as relações familiares na sociedade ocidental. Assunto de relevância para o tema do presente trabalho, a deterioração das relações dentro da estrutura familiar, entre seus elementos, e entre as unidades familiares, parece ter-se aprofundado também a partir do processo de crescente especialização ocorrido em nossa sociedade. A dificuldade em atender às orientações, cada vez mais complexas, principalmente da Psicologia e da Educação, sobre o processo de formação e desenvolvimento das crianças, por exemplo, acarretou uma maior transferência de atividades e responsabilidades — antes atribuídas ao domínio privado — para o domínio público, como a formação 11 intelectual, atividades extras como curso de línguas, esportes, as providências básicas de saúde, atividades de lazer etc. Todas essas atribuições repassadas ao domínio público podem significar um empobrecimento dos laços afetivos e relacionais entre familiares, com perda das transmissões de tradições culturais importantes e singulares, tendendo a uma massificação de hábitos e costumes nem sempre condizentes com os processos de individuação daquelas camadas sociais. Aqui o leitor poderá identificar uma outra espécie de perda, conseqüência desse isolamento familiar e que se reflete para outras dimensões da vida do indivíduo: a perda de vínculos afetivo-emocionais. Esta perda de vínculos acaba por resultar em uma certa indiferença pelos fatores que não afetam o indivíduo diretamente, muitas vezes camuflada atrás de uma noção de imparcialidade. Outra forma de isolamento que vem causando grande interesse na atualidade refere-se às mudanças de comportamento dos usuários da rede mundial da Internet que parece, em alguns momentos, substituir a possibilidade de inter-relacionamentos pessoais por um contato virtual onde há, inclusive freqüentemente, omissão da verdadeira identidade dos comunicantes, garantindo anonimato, mas reforçando o isolamento. O próprio desenvolvimento da tecnologia de telecomunicações tem provocado um agravamento desse isolamento. Hoje, as diferentes programações existentes na televisão, visando atingir faixas etárias específicas, vêm determinando a criação de uma “necessidade” de se ter diversos aparelhos de TV ligados em cômodos diferentes, impedindo uma maior conversação e interação entre os membros da família. Além disso, com o desenvolvimento dos sistemas de compras, pesquisas de opinião, dentre outros serviços, diminui-se a necessidade de deslocamento de casa. 12 Acompanhando a fragmentação da sociedade contemporânea e seu conjunto de valores observa-se a exagerada competitividade existente entre os indivíduos e grupos organizados. A escassez de recursos tende a levar a um acirramento da disputa pelas oportunidades de projeção e sucesso. Seja individualmente ou pela força do agrupamento em categorias comuns, como as profissionais, por exemplo, a competitividade se verifica no âmbito do trabalho, dos esportes, dos quadros sociais e intelectuais e da própria família. O significativo descrédito nas instituições parece ser outro tópico importante dessa crise que estamos caracterizando. As instituições governamentais em todos os níveis, federal, estadual e municipal, tais como a polícia, o sistema de saúde, educação etc. não conseguem obter graus significativos de aprovação pela população usuária dos seus serviços favorecendo a instabilidade e o enfraquecimento dos sistemas de representação política. Os próprios casos de corrupção passiva e ativa, os diversos casos de Comissões Parlamentares de Inquérito desvendando as diversas formas de desvios de recursos e improbidades administrativas, desestimulam a participação mais ampla da população, pelo total descrédito na capacidade de solução ou encaminhamento dos problemas emergentes para estes grupos sociais. Importante fator no estudo da crise que afeta o homem contemporâneo talvez seja a constatação de como os indivíduos vêm reagindo a estes fenômenos apontados acima. Alastra-se de forma incontrolável a vivência de um profundo sentimento de angústia pela perda do sentido pessoal e existencial. Esse aspecto pode ser observado — e um estudo específico sobre isso, que escapa aos objetivos do presente trabalho, permitiria quantificá-lo — nas ocorrências das clínicas médicas e psicológicas. Diversas patologias têm oferecido desafio im- 13 portante à ciência médica com um aumento em progressões geométricas ao longo dos períodos de desenvolvimento e estruturação da sociedade industrial contemporânea: as cardiopatias, os diversos tipos de processos oncológicos — hoje muito associados à ocorrência de situações estressantes na vida do indivíduo3 . No campo da psicopatologia, as ocorrências da depressão cuja psicogênese pode ser atribuída ao elevado grau de frustração ante os limites que a realidade impõe, a crescente estatística da Síndrome do Pânico, doenças psicossomáticas etc. sugerem uma hipótese de serem provocadas, ou pelo menos potencializadas, por esse estado de angústia existencial. Outros dois parâmetros nos apontam nessa direção: o uso de drogas e os índices de suicídio. No campo das drogas, seu uso tem encontrado significativas ocorrências nas camadas mais jovens que parecem se ressentir de uma perda dos referenciais apontados anteriormente ou como fuga a situações extra e/ou intrapsíquicas de diversas ordens. Da mesma forma, os episódios de suicídio ocorrem mesmo em áreas de alto nível de qualidade de vida, onde muitos dos parâmetros valorizados pela sociedade como características de desenvolvimento sugeririam a inexistência de fatores predisponentes. 2. 2 - EXCESSOS As diversas formas de perdas experimentadas pelos indivíduos não são as únicas responsáveis pelo sentimento de crise que se generaliza na Sociedade contemporânea. Paradoxalmente, elas vêm acompanhadas de suas antíteses: inúmeros excessos que são relacionados aos quadros individuais de angústia existencial e melancolia. 3 Para maiores detalhes sobre este assunto o leitor poderá recorrer à pesquisa do casal SIMMONTON resumida na obra “Com a Vida de Novo” constante na bibliografia deste trabalho. 14 Com o desenvolvimento dos meios de comunicação e, principalmente, da tecnologia de processamento de dados, temos assistido nas últimas décadas a uma crescente demanda por informações. Cada vez mais a qualidade das decisões de produção, consumo e investimento passa por uma melhor apropriação das informações disponíveis. O domínio de um determinado tipo de informação ou de um meio de informação transformou as disputas por estes controles em verdadeiras guerras. Podemos identificar que, após o predomínio do poder da força e do poder econômico, o poder da informação passou a ser instrumento de dominação e alvo das principais aspirações ocidentais e, a partir de uma tendência cada vez mais globalizada, de todo o mundo. O avanço da tecnologia de telecomunicações tem permitido acesso on line aos principais acontecimentos em qualquer parte, mesmo as mais longínquas, do planeta. A busca desenfreada pela informação acarreta problemas éticos significativos já que, em nome de um melhor planejamento, estratégias de ação etc., invade-se a privacidade dos indivíduos, seus hábitos de consumo, suas preferências alimentares, de vestuário, sexuais, dentre outras. Com isto, as estratégias de marketing estabelecem parâmetros de produção de massa que irão determinar padrões de consumo generalizados e impessoais, acabando por serem internalizados como necessidades. As quebras de barreiras culturais, políticas e econômicas entre os diversos países, tornaram os indivíduos mais acessíveis aos modelos de consumo e de sucesso de outras realidades culturais e sociais causando verdadeiros conflitos de identidade. Este movimento de produção de massa tem gerado um conseqüente consumo de massa que atenda à necessidade de absorção da produção e mantenha os níveis de emprego e lucros. Com isto identificamos um outro significativo excesso 15 para os objetivos de nosso trabalho: o excesso de “necessidades” de consumo. Estas “necessidades” acabam sendo criadas como forma de elevar o nível de conforto e satisfação dos indivíduos que podem, assim, desfrutar dos benefícios oferecidos pelo desenvolvimento da tecnologia e do conhecimento humano. Entretanto, por outro lado, a sociedade mostrou-se incapaz de desenvolver mecanismos de distribuição de renda e de acesso a princípios básicos de saúde, saneamento, habitação e alimentação para uma grande camada da população. Esta situação acaba por promover grandes paradoxos e ambigüidades na priorização dos itens de consumo destas camadas na direção de “necessidades” não tão necessárias à sobrevivência. O desafio está no ponto de equilíbrio entre produção, consumo, respeito às características culturais e sociais regionais e individuais e os mecanismos de regulamentação e proteção destes direitos. Em outros níveis sócio-econômicos, esse excesso de necessidades de consumo tem provocado uma desenfreada busca de condições para a aquisição de bens de consumo duráveis e não duráveis que ofereçam benefícios diretos — pelo conforto que proporcionam — e indiretos — como sinal de status, valor e diferenciação social. Esta busca acaba levando a uma exacerbação do tempo destinado ao trabalho com prejuízo do tempo destinado às horas livres, de lazer e de convívio familiar. A sucessão e diversidade dos itens eleitos como possíveis geradores de satisfação coloca o indivíduo em um impasse: a limitação de sua renda oferece a sensação de incapacidade de alcançar níveis elevados de satisfação. A frustração diante dessa “incapacidade” tende a provocar estados de ansiedade — na busca, a qualquer preço, destas conquistas — ou de depressão pela impotência diante destas limitações. Em um sistema que se baseia na igualdade de oportunidades, este impasse tende a contribuir na compreensão distorcida de que o nível de satisfação pretendido não foi alcançado por algum tipo de falha pessoal na avaliação ou condução das decisões de curto e/ou de longo prazo pelo indivíduo. 16 Outro motivo de tensão está no excesso determinado pela necessidade de atualizações tecnológicas. Cada dia novos modelos de bens são oferecidos, com maiores recursos para a rapidez e eficiência no uso, tornando os modelos anteriores rapidamente obsoletos e descartáveis. Esta internalização da tendência descartável, afeta o indivíduo nas suas relações pessoais ou objetais. Mesmo que não queira optar pela atualização tecnológica, o indivíduo passa a ser pressionado pela falta de peças de reposição, assistência técnica ou pela simples decretação de morte de marcas e modelos que somem do mercado sem deixar notícias, deixando-nos a dúvida se são por conta do ritmo do processo de desenvolvimento tecnológico — como os exemplos dos sistemas operacionais e acessórios de hardware de computadores pessoais — ou apenas por estratégias comerciais — com o exemplo de lâminas de barbear, cremes dentais etc. A limitação dos recursos que podem ser alocados ao consumo de bens que geram bem estar para o indivíduo e/ou para seus familiares também tende a produzir um outro motivo de adoecimento crescente na sociedade contemporânea: o excesso de opções de escolha. Multiplicam-se as opções entre bens e serviços oferecidos, de forma cada vez mais atraente e envolvente, de tal modo que o indivíduo se vê dividido entre opções, sem saber diferenciar a que mais se adequa à sua situação ou a que mais o beneficiaria. São as opções de serviços bancários, cartões de crédito, tipo e marca de telefonia celular, fidelidade a produtos de serviços trocados por milhagens, descontos, facilidades etc. Os recursos audiovisuais e interativos de propaganda induzem, por vezes, ao estabelecimento de parâmetros de decisão completamente distanciados da realidade biográfica, social e cultural do indivíduo. Se é possível identificar um certo grau de bem estar imediato, a médio ou longo prazo, esta modificação de hábitos ou dúvida entre outros hábitos pode produzir efeitos negativos na interação do indivíduo em seu grupo social. 17 Lógico está que não estamos fazendo uma apologia ao retrocesso tecnológico nem à contestação romântica do sistema que se estruturou no ocidente. Entretanto, a constatação inevitável é de que este mesmo sistema em que a sociedade ocidental está apoiada, não foi capaz de solucionar os grandes problemas sociais e econômicos, exigindo uma reflexão mais ampla sobre os valores em que a ideologia ocidental está baseada. Ao longo do tempo parece que há uma inversão silenciosa no sentido das coisas: ao invés de se procurar consumir para viver bem, passa-se a procurar viver para consumir bem. A tendência parece ser uma certa alienação sobre o sentido real deste consumo, de uma perda de consciência da liberdade de escolha e de uma redução da capacidade de autodeterminação e do estabelecimento tácito de valores “normais” e “desejados” para todo o conjunto da sociedade que, na verdade, traduzem interesses e percepções de grupos específicos com auto grau de influência na formação de opiniões e comportamentos. 2. 3 - CRISE: APOCALIPSE OU TRANSFORMAÇÃO? Os elementos dessa crise — de ruptura de padrões tradicionais e de desorganização do conjunto social ou seus subgrupos — têm levado muitos autores a se preocuparem com o tema, cada um deles priorizando um enfoque capaz de contribuir para a compreensão do fenômeno no campo das ciências. Em uma abordagem sociológica, Featherstone (1995, 1997) enfatiza os efeitos do processo de formação e deformação da cultura na sociedade contemporânea e os efeitos que a mudança para um mundo globalizado representa para os indivíduos, a busca e manutenção de suas identidades e para sua interação em sociedade. 18 Para Lasch (1983, 1986), a crise está relacionada ao movimento individual do psiquismo em busca da sobrevivência. Para o autor, a vida cotidiana passou a se pautar por estratégias de condutas que procuram assegurar a sobrevivência impostas aos que estão expostos a situações de extrema adversidade. A sobrevivência e o equilíbrio emocional estariam garantidos quando o indivíduo conseguisse manter um “eu” mínimo, um núcleo defensivo, em guarda contra a adversidade ameaçadora. Ao avançarmos na argumentação de Lasch, percebemos sua visão de que a preocupação com o indivíduo, característica de nossa época, resulta na crescente preocupação com a sobrevivência psíquica. A partir deste estado de tensão pessoal ou “exaltada percepção imaginativa” de uma situação crítica, o indivíduo, em sua vida cotidiana, passaria a assumir atitudes e comportamentos indesejáveis, antagônicos e sinistros: restrição das perspectivas às exigências imediatas de sobrevivência; auto-observação irônica; individualidade multiforme e anestesia emocional (Lasch, 1986, p. 84). O pensamento de Lasch está baseado em conceitos psicanalíticos que procuram dar conta de uma maior compreensão dos fenômenos a partir de uma visão do narcisismo. Assim, a crise individual e social estaria baseada na ameaça à perda de individualidade, à não auto-afirmação do indivíduo e à sua desintegração, propondo inclusive que a chamada cultura do narcisismo (Lasch, 1983) deveria ser chamada de cultura do sobrevivencialismo. Em todo o pensamento desenvolvido, Lasch parte de um contexto social norte-americano, de fins da década de 70 e da década de 80, onde a realidade da vida cotidiana passava por fatores coerentes com a sua postura teórica da ameaça à vida pelo risco nuclear, ecológico, do declínio econômico, do aumento da criminalidade e do terrorismo, dentre outros, que pareciam justificar a crise contemporânea: 19 “O risco da guerra nuclear, a ameaça da catástrofe ecológica, a lembrança do genocídio dos nazistas contra os judeus, o possível colapso de toda a nossa civilização geraram um amplo e extenso sentimento de crise, e a retórica da crise penetra agora as relações raciais, (...) e a ‘sobrevivência’ pessoal cotidiana.” (Lasch, 1986, p. 54). A propaganda alarmante sobre a crise e a tentativa de mobilização dos indivíduos para a atenção e os sacrifícios necessários para a solução, segundo Lasch, esbarra em uma indiferença provocada pela sensação de distanciamento da participação nesse processo. Para os indivíduos, a responsabilidade remonta ao domínio público levando-os a se fecharem mais nos problemas do cotidiano. Se o contexto norte-americano da década de 80, associado à ameaça de destruição, poderia sustentar as argumentações de Lasch sobre os motivos do sentimento de crise da sociedade contemporânea e suas conseqüências mais danosas, pesquisas sobre aquela mesma cultura empreendidas a respeito de outros períodos históricos nos oferecem outros subsídios. David S. Awbrey (1999), em sua obra Finding Hope in the Age of Melancoly, faz um interessante levantamento sobre as origens e componentes psicológicos e sociais dos quadros depressivos e melancólicos característicos da nossa era. Quando enfoca o que chamou de Era da Melancolia, Awbrey(1999) observa que nem sempre os períodos de ameaça econômica ou de guerra coincidem com a maior incidência da depressão e melancolia na sociedade. Suas observações sobre o final da década de 90 atestam este pensamento: “Certamente, a geração [norte-americana] atual poderia ser vista como um bando de ingratos birrentos. Os americanos, hoje, moram em casas maiores, dirigem carros melhores, têm maiores expectativas de vida, são diplomados em boas escolas, usam uma grande variedade de objetos eletrônicos e tiram férias mais exóticas do que fizeram seus pais. Além disso, o país não atravessa guerras nem enfrenta ameaças externas mortais, o desemprego é baixo, cai o número de necessitados soci- 20 ais. Até mesmo o déficit do orçamento federal vem caindo e é mínima a inflação no fim dos anos 90. Apesar disso tudo, milhões de americanos não estão se sentindo bem quanto ao futuro e sem lugar nesse futuro e existe uma dissonância entre o que eles lêem nos indicativos econômicos e o seu bem-estar pessoal. Os americanos estão se saindo melhor mas sentindo-se pior.” (Awbrey, 1999, p. 21-22). O autor cita os trabalhos de Rollo May sobre a melancolia encontrada de forma bastante significativa nas classes bem sucedidas — como advogados, médicos e executivos — que conquistaram status social e profissional, mas vivem intensamente tristes. Mesmo durante o século XIX, podem ser encontrados relatos sobre essa contradição. Awbrey cita o aristocrata francês Alexis de Tocqueville que, em 1830, em estudo sobre a sociedade americana escreve: “Vi os mais livres e mais educados homens, nas circunstâncias de serem os mais felizes do mundo; porém eles me pareceram estar sempre sob uma densa nuvem suspensa sobre suas frontes, parecendo sempre seriamente tristes em seus prazeres. (...) [porque os americanos] nunca param de pensar nas coisas boas que eles não têm.” (Tocquevile, apud Awbrey, 1999, p. 77). Para Awbrey, a crise, mesmo nos períodos de abundância material, poderia sugerir que a ênfase do fenômeno estaria em um profundo questionamento, por vezes inconsciente, dos valores que orientam a vida cotidiana e levam os indivíduos necessariamente a uma renovação. Dessa forma, percebe-se claramente que a posição do autor é otimista em relação aos efeitos de uma crise como a que caracterizamos. Essa visão de transformação possibilitada pela crise será enfocada a seguir. 21 Em todos estes estudos, o ponto central é o indivíduo como valor principal da sociedade contemporânea. Esta constatação parece remeter à necessidade de se compreender a formação e os desdobramentos da concepção individualista que caracteriza nossa sociedade como fator determinante de fenômenos que levam ao sentimento de crise. A consideração unicamente dos efeitos desorganizadores observados em momentos de crise, pode conduzir a uma idéia pessimista e unilateral do fenômeno. A visão apocalíptica pode refletir uma distorção e uma fixação de conceitos que não são os únicos na observação mais apurada do desenvolvimento do pensamento humano. Pelo contrário. Ao longo da história da humanidade, períodos de melancolia e de desespero têm ajudado o conjunto do pensamento ocidental de diversas maneiras, inclusive introduzindo novas percepções sobre a vida. Pesquisas como as coordenadas pelo Dr. Felix Post — citado por Awbrey (1999) — psiquiatra britânico, e publicadas em artigo do “British Journal of Psychiatry” em maio de 1996, estabelecem uma forte conexão entre os quadros depressivos e a criatividade. Estudando escritores ingleses e americanos a pesquisa notou altas taxas de tormentos mentais entre os membros do grupo pesquisado. Ao longo da História, diversas são as ocorrências que parecem sugerir as crises como momentos de transformação profunda. As significativas transformações observadas na Renascença — como um não-conformismo individual — ou no período da Reforma Protestante — com o despedaçamento do cristianismo ocidental — foram acompanhadas por extensas queixas de melancolia e depressão pelos intelectuais e visionários religiosos. Os poetas e pintores do Romantismo expressaram nostalgia melancólica pelo passado e olharam com pessimismo a des- 22 truição da natureza pela Revolução Industrial. A conexão entre a melancolia e as mudanças propulsoras na sociedade foram marcantes em dois momentos especiais do final do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Em todos estes períodos “melancólicos” de crise, os sistemas sociais foram questionados, regras foram modificadas, a psique cultural parece ser clareada possibilitando novas atitudes e ações, reforçando a ligação estreita entre ansiedade e criatividade. Períodos de crise podem, então, ter um significado de aquisição de grandes avanços na compreensão da vida, do indivíduo, da sociedade... Através da crise, os indivíduos podem repensar o que é realmente importante nas suas vidas, reavaliando sua estrutura de valores. Para Awbrey (1999), os anos 90 representam um tempo de exaustão física e mental e de apatia moral da cultura Ocidental e o sentimento melancólico de crise está sendo uma advertência de que algo está desastrosamente errado na sociedade. Seja pela perspectiva pessimista da crise ou pela visão transformadora em que a crise pode se converter, o pensamento humano fica desafiado a procurar modelos que ofereçam possibilidades de solução. Nesse momento, o conhecimento científico, através da articulação entre as disciplinas componentes ou de outras formas de saber, acaba sendo depositário de toda uma expectativa em torno da redução ou eliminação dos principais problemas. 23 CAPÍTULO 3 A CIÊNCIA EM BUSCA DE SOLUÇÕES “A história das ciências não tem a simplicidade atribuída à evolução biológica no sentido da especialização; é uma história mais sutil, mais retorcida, mais surpreendente. É sempre suscetível de voltar atrás, de encontrar, no seio de uma paisagem intelectual transformada, questões esquecidas, de desfazer as compartimentalizações por ela constituídas e, sobretudo, de ultrapassar os preconceitos mais profundamente enraizados, mesmo os que parecem ser-lhes constitutivos.” ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS “Um dos problemas de nossa época é posto por esse conjunto de concepções que reforçam o isolamento clerical da comunidade científica. Tornou-se urgente estudar as diversas modalidades de integração das atividades científicas na sociedade, as quais fazem com que ela seja pouco ou muito finalizada, que ela não fique indiferente às necessidades e às exigências coletivas.” ILYA PRIGONE & ISABELLE STENGERS 24 A complexidade da crise fica evidente quando descrevemos seus principais aspectos. Porém, toda vez que um desafio dessa ordem se apresenta ao conhecimento humano, uma mobilização de recursos e potenciais acaba sendo empreendida. As diversas esferas de interpenetração dessa crise acionam várias áreas de saber na tentativa, primeiramente, de compreensão da questão: fatores envolvidos, estruturas, funções, dinâmicas, conseqüências, relações com outras áreas de saber etc. Em seguida, tais áreas tendem a se movimentar na direção de uma tarefa mais complexa que é a de encontrar soluções viáveis e exeqüíveis para o problema. Tendo nosso trabalho um objetivo eminentemente acadêmico, recorreremos a abordagens inseridas em áreas do campo científico, relacionadas com nossa proposta de pesquisa, em busca de uma maior compreensão da crise por que passa nossa sociedade. Na epistemologia da Ciência, os esforços têm se concentrado no entendimento dessa crise a partir de todo o movimento de repensar os paradigmas científicos tradicionais. Na verdade, esse movimento de questionamento do paradigma tradicional não pode ser atribuído apenas à necessidade de enfrentamento da crise da sociedade contemporânea. O movimento é também resultante de uma tentativa de reação sistematizada ao que convencionou-se chamar de Crise da Ciência. Não aprofundaremos os aspectos envolvidos nessa crise, já que exigiria trabalho específico que abordasse o tema. Nos ateremos a uma apresentação que contextualize o leitor em relação ao panorama atual dessa crise da Ciência. 3. 1 - A CRISE DA CIÊNCIA A humanidade tem passado sistematicamente por transformações radicais nas suas estruturas de conhecimento formal. É só lembrarmos dos exemplos históricos de Copérnico, Galileu e Pasteur, por exemplo. Entretanto, a partir das contribuições de Isaac Newton (1642-1727) e de René Descartes (1596-1650), estruturou-se um 25 conjunto de pressupostos e conceitos que formaram o que se convencionou chamar de paradigma4 newton-cartesiano, que iria determinar a condução de todo o pensamento científico durante um período de tempo bastante significativo. Somente no Séc. XX é que ocorrerão as maiores transformações desse paradigma newton-cartesiano, com repercussões desde os campos das ciências naturais às sociais. De um dos ramos mais tradicionais das ciências naturais, a Física, tivemos as contribuições decisivas de Max Planck com a estruturação da Física Quântica (1900) e de Albert Einstein com a Teoria da Relatividade (1910) modificando conceitos fundamentais como o tempo, o espaço e a realidade. As repercussões desta renovação de conceitos acaba por determinar uma nova possibilidade de se pensar e explicar o Universo, o Homem e a Vida. Tais questionamentos e transformações têm levado alguns pensadores de nosso tempo — como John Horgan (1998) — a considerar as dificuldades para o desenvolvimento do conhecimento humano, passando a discutir as fronteiras da Ciência. Na verdade, há uma tendência a um certo pessimismo de alguns desses pensadores no sentido de se sentirem angustiados ante a possibilidade de se chegar a um limite do conhecimento caso o sistema atual não consiga manter-se estável. John Horgan (1998) propõe, com base na opinião desses pensadores contemporâneos, que talvez tenhamos chegado ao fim da Ciência, estruturada em disciplinas com fronteiras rígidas, bem definidas e estanques. Ao final da leitura de sua obra podemos levantar algumas possibilidades de conclusão. A primeira, de que o autor sinaliza para uma ampliação dos limites do conhecimento humano pela in- 4 Estaremos utilizando o termo paradigma no entendimento de KHUN: “ Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” KHUN, T. — A Estrutura das Revoluções Científicas — São Paulo, Ed. Perspectiva, 1987, pág., 25. 26 trodução de elementos místicos, transcendentais e eminentemente subjetivos na apreensão da realidade, da verdade. De outro modo, podemos entender que esta sinalização nada mais é do que uma forma irônica de legitimar a supremacia da razão como única maneira de dar conta destes questionamentos e, com isso, evidencia a onipotência da Ciência em relação à busca da verdade. Por último, fica a dúvida se ele partilha verdadeiramente desta angústia, desse pessimismo quanto aos destinos do conhecimento científico atual. O mais importante, nos parece, é sua convicção de que a ciência estanque e compartimentalizada em disciplinas não será capaz de dar conta dos desafios que se apresentam ao homem contemporâneo. A Epistemologia da Ciência tem se proposto estas questões quando considera e procura equacionar a crise da sociedade, sob diversas alternativas de relativização do paradigma newton-cartesiano como forma de buscar as respostas para os problemas, em novos modelos conceituais, mais flexíveis e abrangentes. 3. 2 - A INTERDISCIPLINARIDADE COMO RECURSO NOS MEIOS ACADÊMICOS A crise social descrita acaba marcando a perplexidade diante do impasse dos esquemas disciplinares que têm pautado a produção do conhecimento, levando a Academia a pensar uma solução a partir da necessidade de superação da forma de organização do pensamento isolado nos limites estreitos de disciplinas. Não se trata, simplesmente, de uma questão de avaliarmos a pertinência ou não das disciplinas, mas a constituição de uma nova forma de organização do conhecimento, através de uma postura interdisciplinar ou de suas a 5 lternativas principais 5 . Discutiremos, mais à frente, a questão da diferença entre as principais alternativas da postura interdisciplinar. 27 O sistema acadêmico está construído sobre uma proposta baseada na idéia de disciplinas. Os cursos de graduação, os programas de pesquisa e a alocação de recursos, acabam obedecendo a estrutura disciplinar rígida. Muitas vezes, o próprio exercício profissional será regulamentado em termos de uma defesa ferrenha de “territórios” conquistados e legitimados socialmente, como nos casos do Direito, da Medicina e da Psicologia, que podem fornecer atestados de conformidade apenas dentro de seu domínio científico exclusivo. Desses fatos resulta uma certa sensação de perda de posições para os profissionais quando estão diante de uma proposta interdisciplinar. A tendência disciplinar prejudica, muitas vezes quase impedindo, o surgimento de novas concepções e modelos nas ciências Humanas e Sociais, fenômeno estreitamente relacionado aos objetivos de nosso trabalho. Outra barreira enfrentada para um exercício interdisciplinar está na tendência da estrutura disciplinar em valorizar a análise em detrimento das investigações sintéticas. Quando ocorrem trabalhos de orientação sintética são considerados como contaminados filosoficamente ou eminentemente especulativos, colocando-se em dúvida sua legitimidade. Para Faure (1992): “Enquanto síntese e análise continuarem sendo pensadas em termos de exercícios antagonistas, a interdisciplinaridade permanecerá como um esforço de exceção” (Faure, 1992, p. 63). Ainda uma grande dificuldade na implantação de uma abordagem interdisciplinar reside na diferença metodológica utilizada por cada disciplina. Particularmente quando temos o homem ou as sociedades como objeto de estudo, esbarramos em uma dificuldade de escolha por instrumentos de pesquisa que se adeqüem às características da observação e recorte teórico, mantendo a discussão sobre a validade dos métodos qualitativos e os quantitativos para esses estudos. Mais uma vez, posições compartimentalizadas que, ao invés de ampliar a possibilidade de compreensão do objeto, acabam por restringí-la. 28 O problema da comunicação entre pesquisadores apresenta-se como um grande desafio ao candidato à interdisciplinaridade. Na verdade, essa dificuldade não reflete um problema de comunicação entre os “indivíduos” pesquisadores mas entre os sistemas conceituais das disciplinas que eles procuram representar. Na Psicossociologia, o problema fica bem claro quando abordarmos noções como Cultura, Sociedade, Indivíduo, Identidade, Representação, Subjetividade etc. pois, conforme o enfoque teórico que se utilize, essas noções poderão oferecer variações, até antagônicas. Há, então, um obstáculo a ser superado na transferência de conceitos de um campo disciplinar para outro, para que o trabalho interdisciplinar seja viável e produtivo. Conforme o objeto se apresenta amplo e complexo, como por exemplo o comportamento humano, a rede de relações sociais etc., cria-se a necessidade de comunicação entre diferentes formas de saber. A interdisciplinaridade surge como opção positiva na produção de novos conhecimentos, mas trazendo como conseqüência aspectos negativos como a sensação de perda de identidade das disciplinas envolvidas. Na interdisciplinaridade, cada disciplina parte de um conjunto de conceitos, noções e percepções específicos e diferentes que podem oferecer múltiplas explicações paralelas. Para que cada disciplina possa realmente interagir com as outras, faz-se necessária uma permuta de códigos. Esse o primeiro passo para que as trocas de impressões sobre os objetos isolados possam ser relacionados ou contextualizados. Para evitar os riscos de uma fragmentação desordenada, é fundamental mantermo-nos atentos à necessidade de uma pluralidade de perspectivas e de uma contextualização mais ampla em relação ao objeto estudado. Aliás, nesse aspecto, o estudo interdisciplinar apresenta uma aproximação impor- 29 tante com a abordagem relacional utilizada contemporaneamente pelas ciências humanas e sociais, uma de nossas referências para o estudo do individualismo como veremos posteriormente. Segundo Da Matta: “Enfim, devo dizer que, visto do coração mesmo da experiência antropológica, a interdisciplinaridade aparece como uma maneira de reintroduzir a totalidade em visões particulares engendradas e estimuladas pela estrutura e organização do moderno processo de pesquisa. Nesse sentido, a perspectiva e orientação pluridisciplinar cuidadosa e bem pensadas podem ser um recurso apropriado (senão necessário) para controlar nossa fascinação pelo individualismo e sua conseqüência para a ciência: a especialização galopaste.” (Da Mata, 1993, p. 53). No exercício interdisciplinar, uma disciplina, ao utilizar os métodos e teorias de uma outra disciplina que lhe faz fronteira em um determinado aspecto, acaba por ver esclarecidos problemas de seu próprio campo que, anteriormente, estavam obscuros. Além disso, promove um diálogo sistemático e interessante para a ampliação da compreensão dos campos que interagem. A tensão epistemológica resultante dessa aproximação é resultante da possibilidade de uma mesma questão estudada poder apresentar múltiplas interpretações, muitas vezes situadas em pólos diferentes e distantes, como a dicotomia natureza x cultura. O desafio está em reduzir essa tensão epistemológica, em processo que Amaral (1989) chama de angústia de viver a diversidade. A solução para o impasse disciplinar, pode estar no movimento de dimensionar abordagens de leitura conjunta dos objetos de estudo por duas ou mais disciplinas, com níveis diferenciados de aproximação e/ou modificação dos pressupostos teóricos e metodológicos. Assim, os movimentos interdisciplinares e transdisciplinares estabelecem novas formas de relacionamento entre disciplinas que pretendem estudar um mesmo objeto complexo, com evidentes ganhos, de 30 parte a parte, na produção de novos conhecimentos, novas formas de compreensão. Esse movimento está diretamente relacionado à reformulação dos modelos paradigmáticos empreendidos pela Epistemologia. Neste ponto, parece-nos importante apresentar algumas das principais tendências de conceituação diferencial dos termos que temos apresentado: Multidisciplinaridade, Pluridisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade. Muitos autores têm desenvolvido estudos acerca das diversas formas novas de composição e articulação dos campos teóricos, metodológicos e práticos dos saberes em variadas situações que exigem essa interação como forma de efetivar maior compreensão e atuação na solução dos desafios apresentados. Com isso, alguns desses conceitos acabam se tornando alvo de discussões e de diferentes abordagens gerando dúvidas na sua aplicação. Um dessas propostas de delimitação dos termos encontra-se no trabalho de Vasconcelos (1997) sobre a desinstitucionalização e interdisciplinaridade na área da saúde mental no Brasil. Quando reflete sobre os desafios que o campo da doença mental apresenta à ciência, Vasconcelos defende a necessidade da ampliação do foco de abordagem e a busca do rompimento das delimitações dos saberes tradicionais envolvidos na área da saúde mental. Essa nova recomposição, para ele, sustenta-se em um conjunto de rupturas e novas premissas e não apenas em um novo somatório ou rearranjo simples dos antigos saberes compartimentalizados: “Na minha opinião, não tenho dúvidas de que neste novo paradigma teremos de necessariamente recolocar a questão da interdisciplinaridade, ou mais radicalmente, da transdisciplinaridade.” (Vasconcelos, 1997, p. 23). 31 Vasconcelos apresenta nesta obra uma contribuição para os conceitos e níveis da prática interdisciplinar. Como multidisciplinaridade ele chamará a gama de disciplinas propostas simultaneamente, mas sem fazer aparecer as relações existentes entre elas, sendo um sistema de um só nível e de objetivos únicos e não havendo nenhuma cooperação entre as disciplinas. Já a pluridisciplinaridade será a justaposição de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas. Nesse sistema, de um só nível e de objetivos múltiplos, há cooperação, mas sem coordenação específica. Para o termo interdisciplinaridade, Vasconcelos faz um desdobramento em dois outros. interdisciplinaridade auxiliar quando parte da utilização de contribuições de uma ou mais disciplinas para o domínio de um disciplina específica já existente, que se posiciona como receptora e coordenadora das demais. O sistema apresenta dois níveis e a coordenação e objetivos são hegemonizados pela disciplina encampadora. Como interdisciplinaridade, apenas, considera a axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas, definida no nível hierarquicamente superior, introduzindo a noção de finalidade, tendendo (mas não necessariamente) para a criação de um campo de saber autônomo, sendo o sistema de dois níveis e de objetivos múltiplos. Aqui, a coordenação procede do nível superior, com tendência à horizontalização das relações de poder. E, finalmente, como transdisciplinaridade entenderá a prática onde a coordenação envolve todas as disciplinas e interdisciplinas do campo, sobre a base de uma axiomática geral compartilhada resultando na criação de um campo com autonomia teórica, disciplinar ou operativas próprias. Esses sistemas se caracterizam por níveis e objetivos múltiplos, coordenação com vistas a uma finalidade comum dos sistemas e uma tendência à horizontalização das relações de poder. 32 A apresentação desses conceitos oferece uma possibilidade de apreensão pragmática eficaz no entendimento e aplicação das práticas interdisciplinares, porém não contempla a complexidade das interações possíveis com outras formas de saber, fora dos limites do saber científico. Diversas visões, como a de Amaral (1992) oferecem espaço para as reflexões e desdobramentos epistemológicos envolvidos nesses movimentos interdisciplinares oferecendo-nos novas formas de compreensão.6 Para Amaral (1992), a impossibilidade das ciências estabelecerem a palavra definitiva sobre a verdade, em uma tendência reducionista e excludente dos demais pontos de vista, acabou por gerar uma passagem do discurso da verdade à eficácia transformadora da tecnologia: “A Tecnologia é a resposta que o Ocidente encontrou para seus principais impasses” (Amaral, 1992, p.97). A tentativa reducionista da realidade do real à dimensão de objeto do conhecimento acabou por afastar a ciência desse real — complexo e múltiplo. A partir da apresentação de um certo percurso do pensamento ocidental que passa pelo pensamento pré-socrático, sofístico, metafísico e, posteriormente, resultando no pensamento científico, Amaral apresenta a possibilidade de uma evolução desse pensamento para uma Genealogia do Múltiplo, a Estratégia Transdisciplinar por excelência, principalmente no plano do saber. Com essa abordagem, os conceitos sobre as relações entre disciplinas constituem um diferencial importante para os desdobramentos do presente trabalho, principalmente no tocante à Transdisciplinaridade: 6 Para uma delimitação do que diferentes autores entendem por pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, remetemos aos números 108 e 113 da Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1992 e 1993, dedicados à questão da Interdisciplinaridade, em especial aos artigos de FAURE, Guy O., AMARAL, Márcio T., PORTELA, Eduardo e SOMERVILLE, Margareth. 33 Multidisciplinaridade: empreendimentos científicos em que diversos especialistas, sem abrirem mão da sua especificidade, concorrem para a descrição de um mesmo objeto sob enfoques variados. Não criam novos objetos mas agregam novos valores, enriquecem o objeto, sem que as ciências participantes saiam alteradas na sua estrutura, métodos e limites. Interdisciplinaridade: experiências em que a colocação do objeto na fronteira de duas ou mais ciências as obriga a somarem esforços para, redefinindo o objeto, criarem uma nova perspectiva científica. Transdisciplinaridade: suas direções estratégicas são, por um lado, o reconhecimento da eficácia e utilidade das ciências e a crítica ao seu objetivismo e reducionismo, à permanente ausência do sujeito sobre a qual se constróem; e por outro lado, a ênfase emprestada à natureza possivelmente hiper-complexa do real, de que os métodos simplificadores da ciência não seriam capazes de dar conta. Como resultado destes movimentos, Amaral observa a crescente semelhança entre o núcleo da ciência e as místicas orientais, aproximando (ou reaproximando!) Ocidente e Oriente, constatação que será utilizada por nós pela consideração da Psicologia Transpessoal que representa uma possibilidade dessa aproximação. A abordagem de Amaral parece mais atraente para os objetivos de nosso trabalho pois, a partir de uma visão da ciência, permitirá a utilização de outras formas de saber e metodologias, no “diálogo” a que nos propomos sobre um tema tão complexo quanto o da crise da sociedade contemporânea: “(...) a ‘epistemologia da complexidade’ seria, ou será, uma tentativa de pensar cientificamente, para além dos limites das ciências. Para 34 além significa: na direção de algo mais vital do que a ciência ela mesma. Este algo é o real hiper-complexo. Na base dessa nova epistemologia em gestação, está, portanto, uma pré-compreensão do real como múltiplo” (Amaral, opus cit., p. 105). Um passo importante dado pelo lado da Academia no sentido de atravessar as fronteiras disciplinares, foi o de reconhecer justamente essa complexidade dos seus objetos de estudo. Cada disciplina isoladamente, poderia apresentar uma leitura específica sobre determinado fenômeno ou objeto, utilizando um rigoroso trabalho de análise que, quanto mais especializado, empobrecia, no entanto, sua apreensão no contexto em que se pode observá-lo. A complexidade dos objetos de estudo e a sua rede de implicações com outros objetos foi amplamente estuda por Latour (1994). Para ele, quando os pensadores ou analistas em geral, recortam as questões de estudo em pequenos compartimentos, desconsideram o que pode ser constatado no dia-a-dia: que cada questão se relaciona com diversas outras que podem ter base em diferentes disciplinas ou saberes. A esses complexos objetos de estudo Latour (1994) chamou de híbridos. À forma de relação entre essas dimensões e suas repercussões chamou de rede, numa noção mais flexível que a de sistemas, mais histórica que a de estrutura e mais empírica que a de complexidade. A dificuldade dos estudos dos híbridos, segundo Latour (1994), está na tendência a recortá-los em categorias, como natureza ou cultura: “No entanto, estes trabalhos continuam sendo incompreensíveis porque são recortados em três de acordo com as categorias usuais dos críticos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao discurso.” (Latour, 1994, p.9). Os problemas de comunicação entre essas categorias vêm determinando uma série de impasses e distanciamentos da realidade das coisas e dos objetivos do conhecimento, podendo levar a uma situação paradoxal quanto às finalidades da 35 ciência. A possibilidade de se pensarem relações entre as categorias levou Latour (1994) a defender a necessidade de compreender as redes ou tramas: “(...) as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre os grandes feudos da crítica — não sendo nem objetivas, nem sociais, nem efeitos de discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas.” (Latour, opus cit., p.12). Mesmo tendo como preocupação principal a avaliação dos movimentos da pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade, o autor introduz uma reflexão importante para o nosso estudo. Deixemos o próprio Latour (1994) apresentar sua concepção dos dois conjuntos de práticas que caracterizam a Modernidade: “(...) O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, misturas de gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro. (...) O primeiro conjunto corresponde àquilo que chamei de redes, o segundo ao que chamei de crítica.” (Latour, opus cit., p.16). Latour defende a necessidade de se dividir a atenção, simultaneamente, para o trabalho de “purificação” e de “hibridação”, oscilando entre esses dois pólos de forma a manter suas distinções mas não desconsiderando as suas interconexões. Seu interesse parece residir na compreensão entre os dois processos: a hibridação — como um misto de natureza e cultura — e a purificação — uma separação total entre natureza e cultura. Esses pensamentos nos servem na medida que viabilizam uma nova forma de entendimento dos objetos de estudo e dos seres em geral, em especial nas ciências Humanas e Sociais, onde teremos grandes contribuições de uma crescen- 36 te abordagem relacional das categorias. Aqui talvez seja oportuno introduzir um primeiro ponto para nossas reflexões: será que poderemos pensar essas relações entre movimentos de hibridação e purificação ampliadas para outros saberes, fora do paradigma tradicional? 3. 3 - A ABORDAGEM PSICOSSOCIOLÓGICA E A COMPLEXIDADE DOS PROBLEMAS HUMANOS E SOCIAIS A mudança na produção do conhecimento científico promovida (a) pela abertura, no campo da Ciência, para questionamento e relativização dos paradigmas científicos e (b) pelas tentativas de aproximação conceitual, metodológica e do conhecimento aplicado, através das abordagens inter e transdisciplinares, tem se refletido em todas as áreas do saber humano. O exercício inter ou transdisciplinar de produção de conhecimento, apesar de complexo, oferece proveitoso resultado na ampliação da compreensão dos objetos de estudo qualquer que seja a especificidade do referencial utilizado, demonstrando maior fecundidade que os modelos tradicionais, isolados dentro de limites exclusivos das disciplinas. É claro que o exercício de lidar com uma outra forma de produção científica pede uma nova postura do pesquisador e do meio acadêmico envolvidos nesse processo. Nas Ciências Humanas e Sociais, que nos interessam particularmente para os objetivos desse trabalho, observamos uma tendência de ampliação na utilização de modelos multidimensionais, onde o foco da atenção do pesquisador dirige-se para as interdependências e interrelações dos conceitos de diferentes disciplinas podendo, ou não, virem a se transformar em novas disciplinas. Tal situação configura um desafio para a Psicossociologia cujo desenvolvimento e atual crescimento provêm, em grande parte, de uma certa incapacidade 37 tanto da Sociologia quanto da Psicologia, de apresentarem um conjunto de conceituações ou argumentações teóricas satisfatórias para diversos e complexos problemas observados na prática das relações sociais e individuais, do dia-a-dia. Não que a elas — Psicologia e Sociologia — faltasse consistência ou estrutura, quer conceitual, metodológica ou experimental. A grande ressalva que se pode fazer, nesse sentido, é que, sozinhas, apresentam alto nível de distanciamento dos processos interacionais que ocorrem entre seus objetos de estudo específicos. Aí parece residir o campo privilegiado da Psicossociologia: a interrelação dos laços interpessoais, as relações entre indivíduos e grupos sociais. Enquanto a Psicologia privilegia as funções mentais de modo individual ou nas suas repercussões coletivas e a Sociologia, separadamente, se preocupa com a dinâmica das estruturas institucionais e das regulações grupais, a Psicossociologia tem sua preocupação voltada para a descrição e a interpretação de uma determinada conduta, individual ou coletiva, em situação, isto é, onde a interação entre os objetos pode ser observada (Maisonneuve, 1977).7 Esta orientação será nosso ponto de partida para procurar entender a crise da sociedade contemporânea, já que com ela encontramos vários pontos de aproximação. Quando identificamos aspectos da crise como perdas de certezas, de referenciais, de valores ético-morais e/ou religiosos estamos nos referindo ao tipo de fenômeno que pode ser visto pela ótica estritamente individual, pelo estudo da participação social ou também pela interação das duas, na situação concreta em que é vivida, num claro exemplo de objeto híbrido. Alguns dos demais 7 Existem diferentes abordagens sobre o campo de observação e objeto de estudo da Psicossociologia. Para um aprofundamento desse aspecto o leitor poderá recorrer à obra Psicossociologia — Análise Social e Intervenção (LÉVY, André... [et al.] org., 1994) constante na bibliografia desse trabalho. 38 aspectos levantados na crise como o isolamento e a fragmentação, sugerem uma criteriosa investigação dos processos de escolha e decisão, pois representam condutas que podem ser avaliadas pelos seus processos individuais geradores ou como conseqüência dos processos sociais mais amplos. Os estudos relacionais podem ser úteis nesse ponto da reflexão. A competitividade é outro aspecto que já sinaliza a participação de componentes econômicos, sociais e individuais na sua descrição e entendimento, justificando, para esse fim uma abordagem interdisciplinar. A perda de sentido existencial e a angústia que eventualmente sobrevem a ela, pode nos levar a uma avaliação eminentemente psicológica, por estar claramente identificada com um quadro psicopatológico clássico. Entretanto, no enfoque que procuramos abordar aqui, essa conduta seria reducionista no sentido negativo do termo, já que acarreta um empobrecimento da questão, se não levar em conta os possíveis efeitos de uma cultura baseada em padrões econômicos e sociais associados a um conjunto de valores específicos. Como podemos ver, para desenvolvermos nossa proposta teremos que estar atentos à característica da Psicossociologia como ligação funcional entre os campos de estudo da Psicologia, da Sociologia e da Antropologia. Assim sendo, enfatizamos um constante exercício de concretude buscando os fenômenos extraídos da observação direta de situações da realidade social e individual, além de um exercício de exaustividade, na medida em que procuramos refletir sob vários ângulos, perspectivas e enfoques, cada questão em estudo, alternando sistematicamente, nosso referencial como observadores, entre as disciplinas que podem oferecer contribuições para a compreensão do problema. Compar tilhamos da posição (Maisonneuve, 1977) que defende a Psicossociologia como uma abordagem cujo objeto é específico, mas que não é 39 autônoma, já que parte de contribuições preliminares das ciências que a compõem. Reconhecemos, com isso, a necessidade de recorrer e utilizar conceitos psicológicos, sociológicos e antropológicos — sem que haja uma preocupação ou intenção em dar primazia a qualquer uma dessas disciplinas — e também a um enfoque mais específico dessa nova abordagem. Coerentemente com a postura acima defendida, optamos por adotar, prioritariamente, a denominação Abordagem Psicossociológica, para demonstrar a orientação que seguimos no presente trabalho. Nossa opção permite, ainda, a liberdade de acrescentarmos contribuições de outras disciplinas — como a Economia, por exemplo — e/ou outros saberes nessa reflexão sobre a crise da sociedade contemporânea. 40 CAPÍTULO 4 UM RECORTE DENTRO DA ABORDAGEM PSICOSSOCIOLÓGICA: O INDIVIDUALISMO “O indivíduo é o maior inimigo do cidadão, sugeriu ele [Tocqueville]. O ‘cidadão’ é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à ‘causa comum’, ao ‘bem comum’, à ‘boa sociedade ou à ‘sociedade justa’. Qual é o sentido de ‘interesses comuns’ senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não ajudarão.” (ZYGMUNT BAUMAN) 41 Nessa altura do trabalho é importante poder retornar ao ponto de partida de nossa contextualização e delinear as bases de nosso recorte na abordagem psicossociológica. Como vimos, a crise que procuramos detalhar no início do trabalho contém elementos constitutivos que podem ser observados e estudados sob diversas perspectivas disciplinares. Assinalamos, também, nossa intenção de buscar saídas para esses impasses em um ambiente interdisciplinar, que parece oferecer melhor visibilidade na compreensão dos problemas surgidos. Nas disciplinas que podem participar de uma discussão sobre o entendimento da crise da sociedade contemporânea, destaca-se a noção de indivíduo, presente de alguma forma no escopo conceitual de cada uma delas. Essa noção apresenta uma característica multifacetada em relação às disciplinas que, a seu modo, privilegiam um ou mais dos seus possíveis aspectos: filosófico, psicológico, sociológico, antropológico etc. Em função disso, deparamo-nos com uma série de conceitos de aproximação como Pessoa, Sujeito, entre outros, que acabam por representar especificidades de cada abordagem, desafiando o trabalho interdisciplinar. Para superar essa dificuldade tivemos que proceder a uma escolha que se baseasse em alguns critérios específicos. Um deles seria o de possuir uma produção teórica ampla e capaz de oferecer subsídios para nossas reflexões. Outro critério seria o de utilizar um conceito que apresentasse um maior potencial de comunicação entre as disciplinas que tomamos como base — a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia — e a abordagem Psicossociológica. Além disso, nossa formação acadêmica, primeiramente, no campo das Ciências Sociais — especificamente nas Ciências Econômicas — e posteriormente na área da Psicologia, também teve papel decisivo na escolha da noção de indivíduo e particularmente no recorte da abordagem psicossociológica do individualismo, para a nossa argumentação. Na Psicologia, mesmo quando isso não é tão explícito 42 como na Psicanálise, por exemplo, onde todo o entendimento do indivíduo parte de uma estrutura e dinâmica de funcionamento intrapsíquico, as bases conceituais alicerçam-se em várias noções de indivíduo. Nas Ciências Econômicas, há também uma tendência importante em compreender muitos dos fenômenos e decisões a partir de variáveis individuais como a propensão natural do indivíduo em consumir, o conceito de utilidade que determina o valor que o indivíduo empresta a determinado bem para consumo, as decisões de consumo e/ou poupança vinculados a perfis de risco diferentes etc. Ainda nas abordagens eminentemente sociológicas, nosso levantamento prévio sobre o individualismo demonstra uma aproximação teórica importante para as questões identificadas na crise social que destacamos: perdas, isolamento, auto-suficiência, autonomia etc. Julgamos que, dentre as diversas possibilidades de abordagem psicossociológica, pensar o homem e a crise social contemporânea sob o impacto da ideologia individualista seria a proposta mais apropriada e coerente com todo o material de reflexão que estávamos utilizando como base para nossas leituras. Nessa dissertação, estaremos identificando as principais questões e pressupostos do individualismo, articulando suas principais características e conseqüências, sempre procurando estabelecer uma relação com a crise da sociedade contemporânea, seja pelas possibilidades de compreensão da crise, seja pelos impasses diante dela. Desta forma julgamos poder trazer uma colaboração importante ao ampliar nossas reflexões sobre os aspectos determinantes e os desdobramentos da crise, realizando uma comparação com outras formas de saber que possam “dialogar”, principalmente no exercício transdisciplinar que nos propomos realizar. Revendo a literatura sobre a temática do individualismo (Duarte, 1986; Velho, 1987; Renaut, 1998; Tarnas, 2000), encontramos a contribuição de Louis 43 Dumont (1985) como uma das que influenciaram significativamente as reflexões dos estudos interdisciplinares sobre a sociedade em crise que desejamos estudar. O interesse de Dumont pelo tema do individualismo revela-se ao identificar a preponderância desse padrão na caracterização das sociedades modernas em contraposição ao de sociedades tradicionais 8 , particularmente como resultado de suas pesquisas de Antropologia Comparada sobre a sociedade hindu (Dumont, 1985). Nesses estudos, realizados na década de 60, Dumont identifica uma diferença básica e decisiva entre a sociedade hindu e as modernas: enquanto a Índia estava pautada em uma valorização da sociedade, nas sociedades modernas o Indivíduo constituía o valor supremo. Distingue dois termos que definem, genericamente essas características, empregando o termo holismo para designar o modelo das estruturas sociais que privilegiam a sociedade — sociedades tradicionais — e o individualismo para as que destacam o indivíduo como valor principal — sociedades modernas. Para esse autor, o individualismo, como foi concebido e estruturado na sociedade moderna, deve ser entendido na perspectiva de uma ideologia individualista, designando pelo termo Ideologia “um sistema de idéias e valores que tem curso num dado meio social” (Dumont, 1985, p.20). Em sua obra, Dumont (1985) destaca a diferença da participação do indivíduo conforme a característica da sociedade. Na cultura hindu, por exemplo, a idéia de indivíduo estará subordinada à idéia de todo e à de hierarquia, vinculando vários fenômenos sociais à tradição cultural herdada, enquanto nas sociedades mo- 8 Estaremos utilizando o termo sociedade tradicional na concepção de Dumont, como a sociedade que valoriza a totalidade social, onde a hierarquia é dada naturalmente e que negligencia ou subordina o indivíduo humano. 44 dernas a afirmação do indivíduo como valor, passa pela conquista da liberdade de escolha, pela busca da autonomia e igualdade. É importante observar, conforme assinala Duarte (1986), que nem todos os autores defendem essa mesma visão — como no pensamento de Durkheim, onde há uma preponderância da totalidade social sobre a parte individual, posição que evidencia e reforça o dualismo indivíduo / sociedade. Gilberto Velho (1987) apresenta críticas a alguns pontos da formulação de Louis Dumont, considerando o alto nível de abstração e generalidade com que ele trata da relação dicotômica entre indivíduo e hierarquia, que tende a gerar problemas quando se pretende uma análise mais focada no mundo concreto, como veremos mais adiante. Apesar das críticas e ressalvas que podem ser levantadas, como as exemplificadas acima, parece haver uma tendência a se caracterizar a sociedade moderna ocidental como marcada pelo impacto de uma ideologia individualista. Ao longo do presente trabalho, tomaremos a noção de individualismo para nos referirmos a um valor fundamental da sociedade moderna, a partir de uma afirmação do indivíduo enquanto princípio e enquanto valor, dentro de um dispositivo cultural, intelectual e filosófico específico (Renaut, 1998). Como podemos perceber, o entendimento da crise social que delineamos anteriormente, se considerada à luz do impacto da ideologia individualista, passa por uma compreensão de como o pensamento científico vem entendendo o indivíduo, bem como pela contextualização histórica desse termo até resultar na concepção atual do individualismo. Desse modo, julgamos ser possível pensar as prováveis propostas de compreensão para a crise social e os fenômenos a ela associados. 45 4. 1 - INDIVÍDUO COMO BASE NA IDEOLOGIA INDIVIDUALISTA O conceito de indivíduo parece evoluir de uma tendência eminentemente concreta para concepções mais elaboradas e abstratas. Além disso, como já observamos anteriormente, a pluralidade de disciplinas ou saberes diferentes sobre o homem aumenta as dificuldades dessa compreensão. Nosso interesse recai sobre aquelas noções que estudam a constituição da individualidade humana de forma ampla, incluindo as tentativas de compreensão do indivíduo na relação que ele estabelece, desde o seu nascimento, com o grupo social ao qual pertence, em processo considerado como individuação 9 . Citando Roger Bastide, Duarte (1986) distingue duas formas de individuação. A primeira seria a individuação pela matéria onde o corpo se apresentaria como o limitador da atuação do indivíduo (matéria como quantidade) podendo ser identificada com a visão cristã ocidental. A outra, ele denomina de individualização pela forma, que se caracteriza pela individualização do homem no pensamento divino enquanto idéia. Para Bastide: “A concepção ocidental define o indivíduo ao mesmo tempo pela sua unidade intrínseca; ele é indivisum in se; e pela sua autonomia; ele se dá por oposição; ele é ab alio distinctum.” (Bastide apud Duarte, 1986, p. 38). Além das características de unidade e autonomia, destacadas na citação acima, iremos considerar no processo de individuação também o aspecto da interação do homem com seu meio social ao longo da vida. Na relação Indivíduo / Sociedade não podemos descartar a influência do social no processo de individuação, já que cada criança depende do seu grupo social com toda a sua especificidade para se tornar indivíduo. Ao nascer, ela parte de uma determinada posição na rede de 9 Esse processo, às vezes também chamado de individualização, aparece na obra de ELIAS (1994, 1998) e de forma sucinta refere-se à compreensão do perpétuo crescimento dos indivíduos dentro da sociedade, sua historicidade e sua relação permanente com essa sociedade. 46 relações que é única percorrendo uma história singular até chegar à morte, evidenciando as diferenças individuais entre os homens. Logo, a forma individual adulta na sociedade ocidental passa pela constituição individual da criança, somada à natureza das relações entre a criança e as outras pessoas e ainda, será função da estrutura da sociedade em que a criança nasce e que lhe pré-existia (Elias, 1994). A noção de indivíduo e a necessidade de definir suas especificidades remontam à antigüidade da Filosofia, de onde podemos destacar a visão de Cícero — onde o indivíduo (inidividuum) é considerado como o corpúsculo indivisível que representa o homem — ou a partilhada por Demócrito e Epicuro — como sendo o “átomo” ou princípio dos corpos visíveis (Renaut, 1998). Além dessas, o Mito da Criação (Elias, 1994) que parte da origem da espécie humana de um único homem, também está presente na construção rudimentar da noção de indivíduo. Para o entendimento do contexto histórico da evolução do individualismo, a seguir, é de fundamental importância apresentarmos outra forma de caracterização de indivíduo. Nos referimos à conceituação de Dumont que representa uma radical e articulada noção relativizada de indivíduo (Duarte, 1986). Dumont (1985) distingue dois sentidos que o termo indivíduo pode assumir na abordagem de uma ideologia do individualismo: “(...) Isso leva a distinguir dois sentidos da palavra ‘indivíduo’: (1) o sujeito empírico da palavra, do pensamento, da vontade, amostra indivisível da espécie humana, tal qual o observador encontra em todas as sociedades; (2) o ser moral, independente, autônomo e, assim, (essencialmente), não social, tal como se encontra, sobretudo, em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade;” (Dumont, 1985, p.75). 47 Identificando sua concepção de indivíduo moderno e o conseqüente movimento do individualismo com o segundo sentido dado, o autor procura definir as etapas da constituição desse indivíduo. Segue-se um breve resumo dessa trajetória histórica a partir dos referenciais de Dumont, mas acrescida de algumas ressalvas e críticas, além de contribuições que se propõem a ampliar o entendimento desse percurso. 4. 2 - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO INDIVIDUALISMO Para chegar à noção de indivíduo, Dumont (1985) parte de suas observações da sociedade hindu visando destacar o percurso de um indivíduo-fora-domundo em direção a um indivíduo-no-mundo, sendo o primeiro aquele que bastase a si mesmo, só se preocupando consigo mesmo e vivendo fora do mundo social, enquanto o segundo é o indivíduo mundano, aquele que vive no mundo social. A partir dessa distinção entre o indivíduo-fora-do-mundo e indivíduo-nomundo, Dumont (1985) explicita sua hipótese de que o individualismo moderno teve a religião cristã como “fermento essencial” na sua formulação e evolução até o modelo que nos é familiar. Nessa perspectiva, considera que o individualismo moderno está presente entre os primeiros cristãos e na sua relação com o mundo que os cercava. O cristão primitivo seria uma espécie de indivíduo-em-relaçãocom-Deus, em uma aproximação ao indivíduo-fora-do-mundo das sociedades tradicionais, holistas, onde a hierarquia e a totalidade é o fator preponderante. Nessa forma de individualismo-em-relação-com-Deus, o indivíduo já alcança um aspecto de alma individual — que recebe o valor eterno de ser filho de Deus — e outro de fraternidade humana — que se funda nessa relação com Deus, tornando os homens “irmãos”, iguais. Naquele momento histórico, parece que a valorização infinita do indivíduo representa uma contrapartida de desvalorização do mundo tal como 48 existe. Isso faz com que haja uma emancipação do indivíduo por uma transcendência pessoal, mas que, enquanto indivíduo-fora-do-mundo, comunidade mundana que caminha na terra mas com seu coração no céu, se sujeite às necessidades, deveres e obediências do mundo. Entretanto, com a maior participação da Igreja na formas de poder temporal político — reinar, direta ou indiretamente, no mundo — cria-se um impasse que terá como resultado a inserção desse indivíduo no mundo. Sob o ponto de vista de Tarnas (2000), podemos ressaltar que o perfil dessa inserção do indivíduo no mundo, vai demandar um grande período histórico onde prevalece a autoridade divina da Igreja, principalmente na Idade Média, numa aparente regressão da condição de participação e autonomia encontrada nos cidadãos gregos da antigüidade: “ A afirmação da individualidade humana — tão evidente, por exemplo, na Atenas de Péricles — parecia agora amplamente negada em benefício de uma pia aceitação da vontade de Deus e, em termos mais práticos, submissão à autoridade moral, intelectual e espiritual da Igreja.” (Tarnas, 2000, p. 188). Ao longo desse período até o século XIV, a hierarquização dos pólos espiritual e político vai se relativizando a ponto de admitir-se, com Tomás de Aquino e Guilherme de Occam, uma mudança na concepção de legislação que substitui a Lei da Natureza por outra onde a lei torna-se uma expressão do poder e da vontade do legislador, reconhecendo, assim, socialmente o poder do indivíduo, no sentido moderno do termo. Mesmo sem tratar especificamente de política, Occam acaba antecipando noções de soberania do povo e contrato político, marcas características do individualismo atual. 49 Ainda dentro do campo religioso, mas com repercussões decisivas para a construção da ideologia individualista, a Reforma Protestante acaba de vez com o que restava da supremacia da Igreja transformando a sociedade global em Estado individual e a religião passando a “habitar” na consciência de cada cristão individual. Nas palavras de Dumont: “Com Calvino, a dicotomia hierárquica que caracterizava o nosso campo de estudo chega ao fim: o elemento mundano antagônico, ao qual o individualismo devia até então reservar um lugar, desaparece inteiramente da teocracia calvinista. O campo está completamente unificado. O indivíduo está agora no mundo, e o valor individualista reina sem restrições nem limitações. Temos diante de nós o indivíduo-nomundo.” (Dumont, 1985, p.63). Na verdade, a Reforma inaugura o emergente espírito autodeterminante rebelde, que busca a independência intelectual e espiritual em uma capacidade de crítica que não se submeterá tão facilmente a qualquer forma de dominação. A Reforma representa esse caráter “revolucionário” na cultura ocidental, não só em termos sociais e políticos mas, principalmente, na afirmação de uma consciência individual auto-suficiente muito próxima à de nossos dias. Antes mesmo da Reforma, o período do Renascimento havia trazido um caráter inovador ao pensamento humano. O desenvolvimento das artes e da ciência, com ênfase na Matemática e Astronomia, foi acompanhado por inúmeras convulsões sociais, como a peste negra, a Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França, ações de piratas, bandidos e mercenários. As invenções técnicas desse período — como o relógio mecânico, a bússola magnética, a pólvora e a imprensa — tiveram grande influência modernizadora, favorecendo também o avanço da Ciência como 50 um todo. A descoberta de novos continentes permitiu o contato com diversas formas de cultura, religiões e modos de vida, refletindo-se na consciência da população européia sob a forma de um novo espírito de relativismo que amplia os horizontes geográfico, mental, social, econômico e político ocidentais. Paralelamente, a estrutura das cidades-estados italianas como Florença, Milão, Veneza, dentre outras, favoreceu o florescimento de uma independência da autoridade externa, uma vigorosa estrutura comercial e cultural, formando um cenário político propício ao desenvolvimento de um novo espírito individualista audacioso e criativo. Como conseqüência natural, a vida do Estado vai se transformando de uma estrutura herdada de poder e de leis impostas pela tradição para uma participação individual cada vez maior. A visão de indivíduo considerada nesse trabalho e que vem caracterizando o pensamento científico ocidental contemporâneo tem um marco fundamental entre os séculos XV e XVI, culminando, como já vimos, com o surgimento de um ser humano cujas principais características eram a autonomia e a consciência de si mesmo. Esse período marca não só a queda da hegemonia da Igreja Medieval e também das antigas autoridades que prevaleceram até a eclosão de um pensamento científico rudimentar — mas que determina a substituição do dogmatismo hierárquico — revelado por uma preponderância da razão, do empirismo, da realidade concreta, palpável e mensurável, através de fatos verificáveis e formulações de teorias comprováveis — a Revolução da Ciência. O desenvolvimento da Ciência a partir desse período, inaugura uma cultura moderna que modifica a visão de mundo e de homem. Em oposição à visão estática medieval, e uma vez analisada e comprovada a dinâmica dos movimentos de 51 rotação da terra sobre seu próprio eixo e translação sobre uma órbita não circular, esta perde o status de centro do universo para se transformar em um planeta inserido em um sistema heliocêntrico maior. Junto com a visão de Universo também a visão de Homem e Sociedade irá sofrer profundas transformações: “Estava aberto o caminho para a visualização e o estabelecimento de uma nova sociedade, baseada em princípios claros de racionalidade e liberdade individuais. (...) as antiquadas estruturas da sociedade também poderiam mudar — o poder monárquico absolutista, o privilégio aristocrático, a censura do clero, leis arbitrárias e opressoras, economias ineficazes — para serem substituídas por novas formas de governo baseados em direitos individuais racionalmente definíveis e contratos sociais mutuamente benéficos, e não em alguma suposta sanção divina ou em pressupostos tradicionais herdados.” (Tarnas, 2000, p. 306). A substituição das antigas formas de governo por outras baseadas na afirmação dos direitos individuais, levou à discussão do estabelecimento de tipos de contratos sociais e políticos que respaldassem estes novos modelos de organização dos indivíduos. O estabelecimento de uma “sociedade ou Estado ideal” a partir do isolamento do indivíduo passa a ser o problema principal da teoria do direito natural convergindo para a idéia de “contratos”: “O primeiro, ou contrato ‘social’, introduzia a relação caracterizada pela igualdade ou compagnonnage (sociedade cooperativa). O segundo, ou contrato político, introduzia a sujeição a um governante ou governo. (...) O contrato ‘social’ é o contrato de associação: supõe-se que se ingressa na sociedade como numa associação voluntária qualquer.” (Dumont, 1985, p. 91). 52 Dumont, citando Rousseau, observa que o desafio passa a ser desenvolver uma “fórmula” capaz de resolver os impasses criados com a afirmação do indivíduo como valor principal da sociedade, ou seja, encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado, “e pela qual um, ao unir-se a todos, só obedeça, entretanto a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes” (Rousseaus, apud Dumont, 1985, p. 104). No campo político, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão adotada pela Assembléia Constituinte francesa (1789) marca o triunfo do Indivíduo e será a base para a sociedade ocidental: “Art. 1o. — Os Homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais somente podem fundar-se na utilidade comum. Art. 2o. — A finalidade de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.” (Dumont, 1985, p. 111). O principal elemento desse movimento será o estabelecimento de um princípio de Liberdade de Consciência, em torno do qual se desenvolverão e se integrarão outras formas de Liberdade e de direitos, oferecendo uma composição de características do individualismo ocidental. Nesse ponto, em que já temos o tema contextualizado historicamente, podemos explicitar alguns dos principais pressupostos que compõem a noção de individualismo moderno procurando identificar neles elos de ligação para a compreensão da crise social contemporânea. 53 4. 3 - PRESSUPOSTOS DO INDIVIDUALISMO E A CRISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: CONTRIBUIÇÕES E LACUNAS A presente seção procura descrever os principais pressupostos e características do Individualismo contemporâneo. De fato, a reflexão aprofundada sobre esses pressupostos e suas relações parece ser vital para a proposta de entendimento da crise da sociedade contemporânea sob a ótica do impacto da ideologia individualista. Em resumo, podemos apontar alguns dos principais desdobramentos da tendência individualista que veio se estruturando ao longo dessa série histórica de eventos interdependentes relacionados na seção anterior: 1) Individualismo como movimento da modernidade de acordo com uma dinâmica de emancipação do indivíduo em relação ao peso das tradições e das hierarquias consideradas naturais; 2) Individualismo como mudança de paradigma interpretativo, substituindo a lógica de alienação pela lógica de emancipação individual; e 3) Individualismo como compreensão da modernidade que consiste em opor às sociedades tradicionais aquelas em que o indivíduo só aceita estar mais submetido a si próprio. A primeira reflexão que precisamos desenvolver é sobre a relação básica entre Indivíduo e Sociedade. Essa discussão tem ocupado, ao longo do tempo, grande parte dos esforços do pensamento nas ciências sociais numa tentativa de se estabelecer a origem dos processos e fenômenos sociais e individuais. Por um lado, alguns pensadores têm se preocupado exclusivamente com o pólo indivíduo como 54 base desses fenômenos enquanto outro grupo espera encontrar na origem da formação da sociedade a base de seu entendimento. Segundo Norbert Elias (1994), existem dois grupos de hábitos mentais arraigados ou idéias para a explicação das estruturas e leis das relações entre indivíduos e sociedade: 1- sociedade como Organismo Coletivo, autônomo, supra-individual, que existe antes e independente do indivíduo; 2- indivíduo cuja Natureza e Consciência explicam os fenômenos, sendo a relação entre os indivíduos conseqüência do Indivíduo que existe antes e independente da sociedade. O problema parece estar relacionado à dificuldade de se estudarem objetos complexos ou híbridos, como os sociais e individuais, a partir de uma visão polarizada como se fossem substâncias isoladas, distanciando as conclusões da vivência cotidiana em que se manifestam. As posições que consideram prioritariamente um dos pólos acabam por utilizar uma concepção estática, estabelecendo um muro intransponível entre um ser humano e todos os demais, entre os mundos externo e interno. Para conseguir lidar com a complexidade desses fenômenos, uma outra tendência de pensamento vem sendo observada e pode ser bem caracterizada a partir de uma questão fundamental proposta por Elias (1994): “Como é possível — essa passa a ser a pergunta — que a existência simultânea de muitas pessoas, sua vida em comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas relações mútuas dêem origem a algo que nenhum dos indivíduos, considerados isoladamente, tencionou ou promoveu, algo de que ele faz parte, querendo ou não, uma estrutura de indivíduos interdependentes, uma sociedade?”(Elias, 1994, p. 19). 55 Essa nova tendência vai enfatizar as relações entre os indivíduos dando origem aos modelos que chamaremos de relacionais, tratando essas relações como algo singular, uma visão mais dinâmica e próxima da vivência cotidiana, um entrelaçamento incessante e irredutível de relações e funções entre indivíduos. O rompimento da alternativa “ou indivíduo ou sociedade” para uma que considere as funções e as redes de relações existentes parece oferecer melhor compreensão da relação indivíduos / sociedade. Um dos principais desdobramentos desses estudos é a evidência de como a formação individual de cada pessoa depende da evolução do padrão social e da estrutura das relações humanas em que está inserida. Em seus estudos sobre o Processo Civilizador, Elias (1994) destaca como o processo de individualização decorre, não de uma mudança em pessoas isoladas ou em um grupo significativo de pessoas talentosas, mas sim de eventos sociais que desarticularam velhos grupos, ou seja, foram conseqüência de uma reestruturação específica das relações humanas. O sociólogo francês Pierre Bourdieu também apresenta uma concepção das práticas sociais pelos agentes sociais a partir de suas posições de classe relativas no espaço social e do habitus de cada indivíduo, que também é influenciado pela posição social a partir do qual se constrói (Preuss, 1995). Segundo Bourdieu, o indivíduo constrói a sua realidade de forma dupla — objetiva e subjetivamente — ou seja, enquanto estrutura o campo social em que está inserido, também é estruturado por esse mesmo campo e suas características. Partindo desse ponto de vista, podemos começar a identificar alguns problemas que a ideologia individualista oferece ao estudo e compreensão da crise da sociedade contemporânea. Se, como vimos, a ideologia individualista tem na noção de indivíduo emancipado, livre e igual ao seu semelhante, seu valor primordial, nos deparamos com uma contradição ao considerarmos as restrições que o 56 campo social em que o indivíduo nasce impõe às possibilidades futuras de mobilidade social. É compreensível que se verifique um conflito diante da valorização que a sociedade de um modo geral dá a Liberdade e Igualdade, por exemplo, e a impotência da maioria dos indivíduos em obter quantidades significativas desses “valores” face à restrição que o seu campo de possibilidades apresenta. O aspecto de mudança social também é abordado por Bourdieu (1993) como resultado das tensões nas relações humanas em decorrência da posse diferenciada de capitais (econômicos, culturais etc.) que possuem valores específicos em cada cultura. O uso desses capitais e as estratégias de manutenção e/ou ampliação por grupos de pessoas poderá definir novas formas de hierarquia, como veremos mais à frente. Os estudos relacionais também oferecem outro importante ponto de reflexão quando apontam para as diferenças originadas dos campos sociais em que os indivíduos surgem ou estão inseridos. A apropriação de um código lingüístico e simbólico por uma determinada classe ou grupo social tende a dificultar a compreensão de experiências ou fenômenos sociais que ocorram fora desse seu universo simbólico. Daí a grande dificuldade dos profissionais da área de saúde mental e social em lidarem com indivíduos de classes e subculturas diferentes da sua, já que o seu campo de conhecimento, que se pretende universal, está comprometido culturalmente. Segundo Velho (1987): “(...) Suas referências, seus padrões de normalidade, sua avaliação de trajetórias e bem-estar pessoal estão inseridos em uma visão de mundo comprometida com certas idéias de eficiência, produtividade, associadas ao que se denomina individualismo burguês, por mais problemático que possa estar este rótulo. Está ligado a um triunfalismo cientificista com forte sabor evolucionista. (...) Mesmo quando pretendem estar fazendo uma psicologia social ou revelam preocupações com fatores culturais, lidam quase sempre com essas dimensões como fatores residuais ou, no máximo, complementares.” (Velho, 1987, p. 30). 57 Em uma sociedade eminentemente individualista, parece que o grande desafio da ciência para uma compreensão e solução da crise contemporânea, pode ser pensado a partir da proposta de Elias (1994), sobre a possibilidade de se criar uma ordem social que permita o equilíbrio nas necessidades e inclinações pessoais dos indivíduos mas que, ao mesmo tempo, leve o indivíduo a cooperar na manutenção e eficiência do todo social. Dumont (1985) aponta para o mesmo problema ao comentar a contribuição de Rousseau e seu Contrato Social que tentou equacionar “ ao mesmo tempo, o problema do homem moderno, convertido em indivíduo político mas permanecendo, como seus congêneres, um ser social. Um problema que não nos abandonou.” ( Dumont, 1985, p.109). Depois do aspecto Indivíduo / Sociedade, outro que deve ser analisado é o da relação entre Individualismo e Hierarquia. A obra de Dumont (1985) parte da caracterização da sociedade moderna com expressões como “individualismo”, “atomismo” e “secularismo” em oposição às sociedades de tipo tradicional com expressões como “holismo”, “hierarquizadas”, “totalidade”. Dumont (1985), como vimos, parte de um processo histórico em que o indivíduo veio se emancipando das diversas formas de hierarquias e tradições que impunham e restringiam suas possibilidades de vida. Com as conquistas das liberdades políticas, do direito e da liberdade de consciência, inaugura-se uma nova era de compreensão do indivíduo emancipado, livre e igual. Então, um dos principais pressupostos do individualismo ocidental está na sua oposição às estruturas hierárquicas naturais: “ Por outras palavras, a partir do momento em que não mais o grupo mas o indivíduo é concebido como o ser real, a hierarquia desaparece e, com ela, a atribuição imediata da autoridade a um agente de governo.” (Dumont, 1985, p. 92). 58 Para compreender o processo do individualismo moderno, Dumont (1985) desenvolve uma teoria de hierarquia que tenta dar conta dos processos observados na sociedade contemporânea, mas que enfrenta algumas críticas (Duarte, 1986; Velho, 1987) quando se procede à análise da configuração ou dinâmica individualista na concretude das relações sociais. Para Dumont (1985), o aspecto principal no tocante à hierarquia está na compreensão da interação entre os seus níveis constitutivos. A teoria dumontiana de hierarquia baseia-se em uma oposição hierárquica em que há uma relação entre conjunto e elemento, onde o elemento faz parte do todo mas é englobado pelo seu contrário. Outro aspecto da teoria da hierarquia de Dumont está na bidimensionalidade mínima, ou seja, toda hierarquia supõe a distinção de dois níveis, sendo um superior (unidade) e outro inferior (complementar). O terceiro aspecto resulta dos dois anteriores. Dumont defende que a composição dos níveis hierárquicos e o englobamento do contrário só tem sentido se for considerado ocorrendo dentro de uma totalidade: “O todo se funda na coexistência hierárquica e necessária dos dois opostos.” (Duarte, 1986, p. 41). O quarto aspecto da teoria está na possibilidade de inversões hierárquicas entre os níveis de tal forma que o que é superior em um nível superior pode ser inferior em um nível inferior, caracterizando uma desigualdade entre os níveis operativos que obedecem a uma distribuição hierárquica no todo social. O último aspecto relaciona os conceitos de situação e de valor. Por situação ele vai entender a posição relativa em que o elemento se encontra na totalidade e que se faz operar em função do valor que possui. Por valor: “(...) [Valor é] num sentido mais abstrato, justamente o que faz a diferença numa relação hierárquica, aquilo em nome de que um elemento ao mesmo tempo engloba e se opõe a seu contrário.” Duarte, opus cit., p. 42). 59 Apesar da consistência do trabalho de Dumont, Duarte (1986) e Velho (1987) apontam para algumas contradições que podem ser consideradas críticas ao seu trabalho. O que pretendemos observar é a contradição que há entre as visões de individualismo em oposição à hierarquia — em Dumont (1985) — e a visão que considera a possibilidade de coexistirem uma ideologia individualista (consciente) com uma hierarquizada (Duarte, 1986) ou processos de individuação concomitantes a dimensões e instâncias desindividualizadoras (Velho, 1987). A principal crítica de Duarte (1986) à teoria da hierarquia de Dumont, está na dificuldade encontrada na ambigüidade em relação às oposições binárias cujo encadeamento não parece poder ser linear. A tentativa de linearização desses níveis acaba por afastar o modelo da vivência cotidiana. Outra dificuldade apontada por Duarte (1986) está na contradição entre ideologia e hierarquia, pois Dumont (1985) considera que as sociedades modernas associam ideologia ao individualismo, como idéia básica, principal, predominante e consciente enquanto a hierarquia seria um resíduo, o lado não consciente da ideologia. Porém, ao longo da sua obra, Dumont (1985) vai considerar os elementos básicos da ideologia como implícitos, talvez nãoconscientes, estabelecendo uma contradição decisiva de conceitos. A crítica de Velho (1987) repousa na observação de que o processo de individualização que irá resultar na ideologia individualista também contém algumas características das sociedades totalizadas ou hierarquizadas. Para ele, mesmo nas culturas mais totalizadas ou hierarquizadas há a possibilidade de individualização, assim como pode ser identificado o contrário: “Por outro lado, também nas modernas sociedades industriais individualistas encontram-se dimensões e instâncias desindividualizadoras. Sem contar a religião que permanece como possibilidade para amplas camadas sociais, embora tenha perdido sua dominância 60 em relação à Idade Média, há outras alternativas de desindividualização através da carreira, da participação em certas instituições, da própria família.” (Velho, 1987, p. 25). Podemos relacionar essas críticas à compreensão da crise da sociedade contemporânea. Se o individualismo, enquanto ideologia, está pautado nos ideais de liberdade e de igualdade dos agentes sociais, resultando em um crescente processo de emancipação do indivíduo, esse processo não se dá fora de normas e padrões, que acabam por influir decisivamente na liberdade individual. O conflito está estabelecido e pode ser gerador de alguns dos aspectos da crise, como a angústia existencial, pois os indivíduos são motivados a uma expectativa ilusória de liberdade e igualdade que não poderá ser encontrada em função dos limites impostos pelas condições sociais. Essa passa a ser uma questão fundamental na sociedade moderna: o conflito entre o processo de individualização, que pressupõe a capacidade de escolher e o processo de desindividualização verificado na sociedade através de uma rigidez social, do processo de violência simbólica etc. Para se romperem as barreiras das fronteiras simbólicas de um determinado universo cultural será preciso o enfrentamento, a tensão entre os grupos que conquistaram um monopólio hereditário de bens e valores sociais, seja para sobreviverem seja para protegerem ou efetivarem seus projetos sociais. Bourdieu (1993) estudou o fenômeno denominando-o de Violência Simbólica. Como podemos observar, a monopolização de qualquer bem valorizado socialmente determina uma estrutura hierárquica que tende a contrariar alguns dos pressupostos do individualismo. Na nossa sociedade, buscamos uma liberdade de escolha e um sentido de igualdade que está comprometido pela diferença de oportunidades e de posses de capitais, que procuram preservar um certo tipo de hierarquia. Segundo Velho (1987) esse impasse é estabelecido na medida em que o próprio indivíduo procura fazer parte de certos grupos ou se apropriar de códigos que o 61 diferenciem na estrutura social, privilegiando a hierarquia por um lado e por outro as conquistas individuais. Nos parece que Dumont (1985) fala da transição da hierarquia para o individualismo privilegiando o aspecto da liberdade de escolha política em oposição à sujeição a uma hierarquia naturalmente dada pelo nascimento. Nesse sentido, realmente a sociedade ocidental parece ter caminhado para uma maior democratização da autonomia política. Entretanto, em outros aspectos, a sociedade contemporânea acabou por promover uma divisão de trabalho que diferencia, como diz Lash (1986) por exemplo, o indivíduo que planeja o trabalho (trabalho cerebral) e os que executam (trabalho manual), gerando uma elite gerencial que detém o poder sobre comunidades inteiras sem a participação dos trabalhadores que só executam. O próprio sistema escolar acaba sendo direcionado para intermediar e preparar para a inclusão no sistema, socializando a população para as exigências da vida pautada no modo de produção industrial. Parece, então, que a estrutura hierárquica mudou de característica estando agora vinculada à posse de bens econômicos, culturais, da inteligência pessoal, dentre outros que serão abordados posteriormente. É possível que esse impasse esteja sendo vivenciado pelo indivíduo em geral e seja um dos responsáveis por um estado de angústia existencial que pressiona para uma reestruturação dos valores que orientam indiretamente a sociedade contemporânea. Vamos procurar estudar, neste ponto, a configuração de valores do Individualismo, como Duarte (1986) resume bem, apoiada numa noção de indivíduo autônomo e independente, com um compromisso genético com os valores da liberdade (opostos a todos os determinismos universalmente definidos pela cultura) e da igualdade (oposta a todas as demarcações diferenciais de ‘valor’ intrínsecas à hierarquia). Duarte aborda quatro noções recorrentes nas obras que tratam do individualismo: autonomia, independência, liberdade e igualdade. 62 As noções de autonomia, independência e liberdade do indivíduo estão associadas à ideologia individualista e se confundem sendo muitas vezes utilizadas como sinônimos 10 . Segundo Renaut (1998), na era democrática do mundo atual, o indivíduo se afirma enquanto princípio “na medida em que, na lógica da liberdade, apenas o homem pode ser por si mesmo a fonte de suas normas e leis, fazendo com que, contra a heteronomia da tradição (...) se filie ao regime da autonomia.”(Renaut, 1998, p. 30). Esse componente do individualismo leva a um traço importante nas sociedades modernas: contínua dissolução das referências oriundas do passado e ‘transmitidas’ de geração em geração em função do projeto que anima o indivíduo moderno a apropriar-se das normas em vez de recebê-las. Foi a partir do humanismo que esse pressuposto do individualismo se consolidou, pois o homem passa a não aceitar mais receber normas e leis nem da natureza das coisas, nem de Deus, pretendendo fundá-las a partir da sua razão e de sua vontade. Essa tendência do pensamento humano irá resultar em uma evolução dos modelos de contratos sociais em que a questão central vai ser sempre a tentativa de solução entre a associação e a subordinação dos indivíduos. Para Dumont (1985), a afirmação do direito de escolha e a liberdade de consciência são decisivos para as características da sociedade contemporânea: “A partir do direito de resistir à perseguição de um tirano, o qual se fundamentava na idéia de um contrato entre governante e governados, o desenvolvimento levaria à afirmação do direito do indivíduo à 10 Liberdade: Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação; poder de agir no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas. Autonomia: Faculdade de se governar por si mesmo; liberdade ou independência moral ou intelectual; propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta. Independência: caráter de quem rejeita qualquer sujeição; estado ou condição de quem ou do que tem liberdade ou autonomia. Novo Dicionário Aurélio. 63 liberdade de consciência. Assim, a liberdade de consciência constitui o primeiro, cronologicamente, de todos os aspectos da liberdade política e a raiz de todos os demais.” (Dumont, 1985, p. 86). É possível que a busca de uma autonomia, independência e liberdade, absolutas, não existentes na realidade da vida social contemporânea, leve os indivíduos aos processos de isolamento e fragmentação, além do descrédito nas instituições sociais, componentes da crise descrita em nosso trabalho. O distanciamento da capacidade de determinar-se faz com que o indivíduo viva de atos e eventos isolados onde o tempo e o espaço estão cada vez mais restritos ao tempo imediato e ao meio circundante do lar ou do ambiente de trabalho. Além disso, podemos identificar, nesse movimento, uma tendência à artificialidade e a uma falta de autenticidade conforme descrita por Lasch: “Os sobreviventes devem aprender o truque de observar-se como se os acontecimentos de suas vidas estivessem ocorrendo com os outros. Uma das razões pelas quais as pessoas não mais se vêem como sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se vêem como sujeitos, de modo algum, mas como vítimas das circunstâncias; e essa sensação de deixar-se guiar por forças externas incontroláveis inspira um outro modo de armamento moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um observador irônico, separado e confuso.” (Lasch, 1986, p. 85). A liberdade e a igualdade talvez sejam as características de maior importância na ideologia individualista. Dumont (1985) enfatiza a eclosão dessas características a partir do desenvolvimento dos contratos sociais e políticos modernos que garantiam a afirmação do direito do indivíduo à liberdade de consciência, como vimos. O sentido de igualdade absoluta na nossa sociedade provém, segundo Dumont (1985), da tendência do cristianismo em considerar o cristão como um indivíduo-em-relação-com-Deus, inaugurando a fraternidade universal já que a alma 64 individual recebe valor eterno de ser filho de Deus e, em conseqüência, todos os indivíduos são irmãos. Essa tendência irá se transformar e reforçar o individualismo ao se afirmar o indivíduo como valor na sociedade atual — pois um homem vale outro homem — e a universalização do direito de voto — a tradução mais completa de tal valor. Com o isolamento do indivíduo “natural”, Dumont (1985) identifica uma transição para se estabelecer a sociedade ou o Estado ideal através da idéia de dois contratos sucessivos: o contrato social — que introduz o princípio da igualdade — e o contrato político — que rege a forma de sujeição dos indivíduos a um governo representativo. Entretanto, nessa formulação da emergência da igualdade, a sociedade, no sentido de um todo no interior do qual o homem nasce, está ausente, sociologicamente falando. Ela passa a se “transformar” nas sociedades civis do economista e do filósofo. Ainda segundo Dumont, “(...) Com o predomínio do individualismo contra o holismo, o social nesse sentido foi substituído pelo jurídico, o político e, mais tarde, o econômico.”( Dumont, 1985, p. 91). Uma conseqüência desse movimento é a preponderância que o aspecto econômico tem, a partir do Renascimento italiano já apontado anteriormente, e reforçado pelo individualismo. Na Economia, temos o desenvolvimento de conceitos como a propensão a consumir, onde a liberdade individual de escolha sobre o quê consumir é valorizada. A noção de igualdade, nessa perspectiva parece sofrer forte abalo. Se utilizarmos, ainda como exemplo, a propensão a consumir, veremos que o consumo não depende somente das necessidades subjetivas, inclinações psi- 65 cológicas e hábitos dos indivíduos, mas também “1- do montante de sua renda; 2de várias circunstâncias objetivas, como as variações nas unidades de salários, o nível e a distribuição da tributação e os controles governamentais.”11 Como podemos perceber, as condições de consumo não podem ser integralmente determinadas autonomamente pelos indivíduos, já que interferem decisões do nível governamental em que grupos que possuem mais capital — na visão simbólica de Bourdieu (1993) — exercem uma maior influência buscando manter ou ampliar suas posições relativas e valorizadas socialmente. Além disso, ainda segundo Bourdieu, o indivíduo que nasce em uma determinada classe social é socializado a partir de um universo simbólico que restringe seu campo de possibilidades de posições sociais, sendo os processos de mobilidade mais difíceis de serem empreendidos. Parece-nos que os efeitos do individualismo no desenvolvimento da Economia e, em conseqüência, nas políticas econômicas, são decisivos para a compreensão da crise da sociedade que delineamos no início do presente trabalho. A ação livre do indivíduo como base do individualismo resulta no liberalismo clássico que adotou a livre concorrência como princípio máximo. Da mesma forma que os movimentos revolucionários de cunho político, a tendência liberal expressa a luta da burguesia contra as restrições econômicas impostas pelos Estados absolutistasmercantilistas. 11 Dicionário de Economia — Editora Abril Cultural, 1985, pág. 357. 66 Na análise desse movimento na Economia, encontramos Dudley North (16411691) — citado no verbete Individualismo do Dicionário de Economia (1985) — como o primeiro ideólogo a expressar a ética individualista: “Dizia [North] que os homens são por natureza egoístas, motivados apenas por interesses próprios. Deveriam, contudo, ser deixados livres, sem leis restritivas nem favorecimentos, pois assim se desenvolveriam as potencialidades naturais de cada indivíduo e, pela soma dessas potencialidades — expressa no livre jogo das forças do mercado — , se atingiria o bem comum. (...) Na atualidade [1985], o individualismo econômico integra de forma atenuada a doutrina do neoliberalismo, que admite a ação do Estado não apenas como guardião da propriedade privada e da livre iniciativa, mas também como regulador da estabilidade monetária e das finanças nacionais.” 12 Parece-nos que o ideal do bem comum a partir da livre iniciativa e manifestação das potencialidades não foi capaz de ser alcançado pela maior parte do “comum” da população. Algumas das características da crise podem estar associadas a uma frustração pela impossibilidade de se consumir no nível oferecido pela Economia e a tecnologia, necessidades criadas pelas disputas de mercado e pelas estratégias de marketing de vendas. Dumont (1985) destaca outra importante característica básica do individualismo na evolução do Direito Natural Moderno: a exigência de auto-suficiência do indivíduo. Essa noção vem da auto-suficiência da polis em Platão e Aristóteles, mas será marcada pelo individualismo cristão-estóico: “Para os modernos, sob a influência do individualismo cristãoestóico, aquilo a que se chama direito natural (em oposição ao direito positivo) não trata de seres sociais mas de indivíduos, ou seja, de homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem de Deus e enquanto depositários da razão.” (Dumont, 1985, p. 87). 12 Dicionário de Economia — Editora Abril Cultural, 1985 — verbete Individualismo pág. 206. 67 A exigência pela auto-suficiência será reforçada pelo desenvolvimento do Estado, que não derivará mais do conjunto da humanidade ou da dimensão divina, mas na união de homens individuais e, por isso, torna-se um Estado soberano individual e auto-suficiente. Só que essa exigência de auto-suficiência acaba assumindo características específicas na sociedade contemporânea que podem ser relacionadas a alguns dos aspectos da crise que apontamos nesse trabalho. Diante da complexa divisão do trabalho na sociedade, o indivíduo vem sendo compelido a uma crescente especialização nas suas atividades, principalmente profissionais. Com esse movimento de especialização estabelece-se o que Duarte(1986) chama de fragmentação dos domínios. Como a ideologia atual privilegia uma racionalidade formal, a visão de mundo passa a se tornar desmembrada em domínios e esferas autônomas de práticas e saber. A ampliação da necessidade de especialistas acaba por distanciar os indivíduos das decisões que passam a exigir, pela sua “complexidade”, tratamento especializado. Alie-se a isso, a característica dos mercados de massa atuais que tendem a desencorajar a iniciativa e a auto-confiança, desencorajam a produção doméstica, fazem as pessoas não acreditarem no seu próprio julgamento do que querem ou do que é melhor consumir, e teremos um quadro de conflito estabelecido: por um lado, toda uma “pressão” implícita no sentido de uma busca pela auto-suficiência e, por outro, uma fragmentação da capacidade de decisão e de uma constatação da dependência dos saberes que não dominamos. Podemos identificar aqui, claramente, uma contradição entre uma busca à auto-suficiência, à liberdade ou autonomia e a dependência e fragmentação da decisão vivenciada pelos indivíduos da sociedade ocidental atual. A questão parece centrar-se na dificuldade que temos em conciliar o desenvolvimento industrial e as bases de uma ideologia individualista que não gere contradições estruturais que possam provocar conflito e adoecimento. Uma aná- 68 lise que não considere apenas os fatores econômicos deverá levar em conta que o progresso industrial pode estar conduzindo a efeitos no campo social e político como a “perda da autonomia, do controle popular, a tendência à confusão entre autodeterminação e o exercício das opções do consumidor, a crescente ascendência das elites, a substituição das habilidades práticas pela especialidade organizada.”(Lasch, 1986, p.32). Essa contradição básica entre a auto-suficiência, a liberdade e autonomia e a dependência e fragmentação da capacidade de decisão já é apontada no trabalho de Dumont (1985) quando ele trata da questão do valor da sociedade ocidental americana: “(...) O valor americano central (core value), sugeriu ele [Francis Hsu], era a confiança em si mesmo (self-reliance), ou seja, uma modificação ou intensificação do individualismo europeu ou inglês. Ora, esse valor implicará em sua aplicação, uma contradição, uma vez que, de fato, os homens são seres sociais que dependem, em alto grau, uns dos outros. Uma série de contradições se desenvolverá, assim, entre o nível da concepção e o nível da aplicação desse valor principal e dos valores secundários dele derivados.” (Dumont, 1985, p. 242). A vivência constante dessa contradição — uma exigência paradoxal implícita — entre a busca da auto-suficiência, liberdade e autonomia diante da constatação da dependência dos outros indivíduos ou das instituições e de um certo distanciamento e isolamento das decisões que interferem diretamente na qualidade e manutenção de sua vida, pode contribuir para o adoecimento dos indivíduos, a sua insatisfação com a situação atual e sua angústia existencial diante da impotência de fazer o que queriam e uma concomitante pressão a realizar o que se espera deles. 69 A busca pela auto-suficiência, pela liberdade, autonomia e independência parece relacionar-se diretamente com a utilização da capacidade individual enquanto valor e meio de ascensão social. A partir do Renascimento até os dias de hoje, o reconhecimento da inteligência como valor social garante ao indivíduo aspirar à conquista de bens e condições que lhe propiciem maior prazer e/ ou felicidade, independentemente das condições do grupo social ao quais pertence: “Esse novo valor, colocado no individualismo e na genialidade pessoal, reforçava uma característica semelhante dos humanistas italianos, cujo senso de mérito pessoal também se baseava na capacidade individual e cujo ideal era igualmente o do Homem emancipado, com múltiplos talentos.” (Tarnas, 2000, p. 249). Movido pela necessidade de conquistas que o mantenham seguro quanto à sua sobrevivência, utilizando os recursos de capacidade individual que possui e que é levado a desenvolver, o indivíduo da sociedade contemporânea individualista acaba desenvolvendo uma significativa competitividade. Vários fatores podem ser identificados nesse movimento de competição: a exposição a situações extremas de sobrevivência, o desejo de levar vantagem em tudo e, principalmente, a luta para evitar uma “derrota” arrasadora na vida. Essa tendência acaba por levar a uma outra que também caracteriza a crise da sociedade ocidental que é o imediatismo. O distanciamento das decisões complexas — delegadas aos especialistas ou às instituições a que o indivíduos está associado — e a necessidade de conquistas pela competição, leva-o a preocupar-se com os obstáculos pequenos e imediatos do seu cotidiano. Quanto mais se concentra no presente, mais garante um “funcionamento” eficiente e evita a derrota e o fracasso. Outro impasse verificado na crise da sociedade contemporânea individualista está na contradição entre liberdade de escolha e de consciência e a hierar- 70 quia e a cultura de consumo de massa. A origem de todas as liberdades e direitos está na conquista da liberdade de consciência, principalmente, a partir da liberdade religiosa da Reforma, segundo Dumont (1985). Essa liberdade deve hoje ser questionada em função de vários aspectos da sociedade atual como, por exemplo, a cultura de consumo de massa que determina uma abundância de opções à qual os indivíduos estão expostos. Para Lasch (1986), essa necessidade de fazer escolhas diante de uma gama crescente de alternativas dá origem a sentimentos persistentes de descontentamento, que passa a ser o preço a ser pago pela liberdade de escolha. Mesmo a capacidade de escolher entre essas opções passa a ser discutível já que, cada opção assumida pode enfrentar toda uma propaganda pelos meios de comunicação de massa no sentido de outros valores e prazeres, conduzindo a vontade, tornando, portanto, a liberdade relativa. Os modelos relacionais, já citados, apontam para a dependência da liberdade de escolha de profissões, hábitos de consumo, comportamentos etc, da posição em que nasce e que se individualiza o indivíduo, da situação de seus pais e da escolarização que recebe. A especialização do saber gera uma concentração de poder de decisões em uma elite que “orienta” o curso dos eventos com base em suas próprias aspirações e valores, podendo, com isso, gerar uma crescente insatisfação ou conflito naqueles que não conseguem romper a rede de dependência em que se situam. A crise de referenciais atual pode estar relacionada a uma aproximação do limite de tolerância a essa insatisfação de origem não-consciente para os indivíduos. 71 Renaut (1998) citando Tocqueville ainda destaca dois aspectos importantes do individualismo moderno. Dizem respeito à oposição existente entre os termos igualdade X hierarquia e liberdade X tradição. No primeiro, igualdade X hierarquia, o individualismo traduz-se em primeiro lugar pela revolta dos indivíduos contra a hierarquia em nome da igualdade. Na atualidade, o individualismo não está visando a hierarquia dos privilégios inerentes a certos grupos por natureza, mas a reivindicação individualista anti-hierárquica concentra-se nas novas hierarquias que instauram as desigualdades sociais e econômicas. O impasse encontra-se exatamente na constatação de que estas novas hierarquias assentam-se em valores e posses de bens (culturais, econômicos, sociais etc.) que determinam uma disputa pela manutenção e ampliação da condição conquistada. Como temos destacado, a posição em que o indivíduo nasce e se socializa determina um campo de possibilidades específico, restringindo a mobilidade social e a gama de oportunidades para cada classe social e econômica. A diferença de força simbólica que cada grupo possui irá determinar a sua capacidade de impor seus projetos, como nos diz Velho (1987): “Em toda sociedade complexa podem ser identificados grupos que, através de suas trajetórias e posição em relação ao resto da sociedade, têm mais possibilidades de divulgar seus projetos.” (Velho, 1987, p. 34). Com isso podemos identificar que a igualdade fica no campo do “formal” e não no do “real” já que não há oportunidades verdadeiramente iguais para os indivíduos. Parece-nos que a igualdade real realmente seria uma utopia já que as diferenças de aptidões, de habilidades, de posição social, dentre outras, impossibilitariam uma igualdade absoluta, mas a manutenção de um movimento individualista nos termos que temos observado na sociedade atual — em função de alguns dos aspectos que levantamos nesse trabalho — parece ter exacerbado as diferenças 72 sociais e econômicas em um nível inaceitável para a manutenção do equilíbrio e estabilidade social. Em resumo, uma contradição entre uma ideologia igualitária em uma sociedade altamente desigual parece colaborar no desdobramento da crise atual. Quanto ao conflito liberdade X tradição, reflete-se na sociedade contemporânea pela deterioração da tradição como forma de legislação, passando para a lei fundada na vontade do homem. Podemos, entretanto, identificar outras formas de manifestação desse conflito na sociedade atual. O individualismo moderno caracteriza-se também pela liberdade como oposição dos indivíduos a toda a forma de tradição imposta. Dumont (1985) descreve assim as sociedades tradicionais como a hindu, onde a tradição se impõe ao indivíduo sem ter sido por ele escolhida, nem passando pela sua vontade, fazendo com que sua existência esteja vinculada ou dependente dessa tradição. Em oposição, considera a sociedade moderna como aquela em que prevalece a idéia de auto-instituição fundando a lei sobre a vontade dos homens. A própria constatação da existência de diferentes tradições e códigos culturais na sociedade já sinaliza a contradição existente com uma premissa de liberdade da vontade do indivíduo moderno. É claro que a sociedade contemporânea ampliou a possibilidade de acesso a novos códigos culturais e, principalmente, a extensão da capacidade de expressão da vontade na democracia atual. Por outro lado, a transmissão dessas tradições entre os membros de um determinado grupo tende a perpetuar uma certa condição social e econômica. Como nos diz Velho (1987): “Tomando-se como referência qualquer sociedade, poder-se-ia dizer que ela vive permanentemente a contradição entre as particularizações de experiências restritas a certos segmentos, categorias, grupos e até indivíduos e a universalização de outras experiências que se expressam culturalmente através de conjuntos de símbolos homogeneizadores — paradigmas, temas etc.” (Velho, opus cit., p.18). 73 Parece que a rejeição sistemática à tradição como forma de garantir a liberdade acabou levando a extremos que não conseguiram resolver alguns dos principais problemas da sociedade organizada. Um desses extremos foi a abolição do conceito de comunidade por um de sociedade onde o aspecto individual se sobrepôs completamente ao bem-comum, ao coletivo, à totalidade. Parece que nosso desafio está em encontrar um novo modelo de entendimento e de estruturação da sociedade na qual estes antagonismos possam ser minimizados e contemplem uma maior gama de indivíduos. As discussões polarizadas entre uma sociedade tradicional em comparação a uma sociedade individualista parecem não ter conseguido preencher lacunas que acabaram por resultar em uma crise sem precedentes da sociedade contemporânea. Um dos pontos a serem revistos é essa dualidade entre opostos individualismo X holismo feita por Dumont (1985), que já tem sido alvo de críticas (Duarte, 1986, p. 46) quando submetida a uma análise da configuração e dinâmica individualista. Velho (1987, p.79) chega a identificar a coexistência, nem sempre pacífica e, necessariamente, contraditória, de situações onde o indivíduo enquanto sujeito moral se destaque mesmo estando subordinado a uma ordem holista dominante. Porém, um exame apurado da obra de Dumont (1985) pode identificar como o autor já identificava esta combinação e mistura, na ideologia contemporânea, de individualismo e holismo. Vai identificar nos movimentos socialistas uma forma nova e original que redescobre a preocupação com o todo social, mas sem ser tradicionalmente holista já que rejeita a hierarquia e também não é individualista porque o individualismo já foi fragmentado: “Quanto à sociedade socialista, ela mantém a negação da hierarquia — pelo menos em princípio e inicialmente — mas reintroduz uma certa preocupação do todo social. Combina, assim, um elemento do individualismo e um elemento do holismo; é uma nova forma híbrida. 74 No conjunto de doutrinas e movimentos socialistas e comunistas, a igualdade tem, em suma, um lugar secundário, deixando de ser um atributo do indivíduo para passar a ser da justiça social.” (Dumont, 1985, p. 92). Entretanto, poderíamos nessa altura do trabalho indagar, por que motivos os movimentos socialistas e, principalmente, comunistas não foram capazes de dar conta dessas questões. Pelo contrário, também neles as diferenças sociais e econômicas inviabilizaram a manutenção dos sistemas políticos que os adotaram. A questão parece residir em um ponto que se destacou ao longo de nossa pesquisa: a noção de valor no indivíduo e na sociedade. Pela abrangência e complexidade, o tema exigiria trabalho específico, o que escapa aos objetivos desse trabalho, mas não podemos deixar de sinalizar um caminho interessante para a compreensão da crise da sociedade contemporânea ocidental. Traçaremos breves comentários do que foi possível identificar das obras que tratam do individualismo ocidental em função da questão do valor. O principal pressuposto da ideologia individualista é a noção de indivíduo livre, igual, autônomo, independente e que busca a auto-suficiência, como valor fundamental. Porém, o próprio Dumont (1985) irá constatar que, nesse movimento do individualismo, o valor se deslocou totalmente da sociedade ou comunidade, ou ainda do todo, para o indivíduo: “Pode-se considerar a configuração moderna como resultante da quebra da relação de valor entre elemento e todo. O todo converteu-se num amontoado.” (Dumont, opus cit., p. 272). Essa ênfase no indivíduo acabou por reforçar toda a tendência da ideologia individualista como a temos discutido nesse trabalho, com todas as suas distorções e lacunas que podem ser associadas ao surgimento da crise atual. Podemos argu- 75 mentar que, se o indivíduo é o valor principal da ideologia individualista, existem outras formas de manifestação desse valor que vêm se configurando na sociedade. Como vimos anteriormente, a noção de valor em Duarte (1986), assume um sentido do que faz a diferença em uma relação hierárquica. Ora, além dos valores secundários do individualismo — como a auto-suficiência, a liberdade, a igualdade, dentre outros — encontramos uma ênfase significativa no valor econômico norteando os principais fenômenos sociais seja de forma direta ou indireta, consciente ou não-consciente. A ruptura com os esquemas conceituais tradicionais e religiosos, principalmente a partir da Reforma Protestante, passou a distanciar o homem dos valores religiosos ou transcendentes direcionando-o para valores materiais, econômicos e imediatistas. O próprio Dumont (1985) reconhece essa ênfase na configuração moderna e na definição de valor: “A cena moderna é familiar. Em primeiro lugar, a consciência moderna liga o valor, de maneira predominante, ao indivíduo, e a filosofia trata, em todo o caso principalmente, de valores individuais, ao passo que a antropologia considera os valores essencialmente sociais. Em seguida, na linguagem corrente, a palavra que significava, em latim, vigor saudável, força eficaz, e designava na Idade Média a bravura do guerreiro, simboliza hoje, a maior parte das vezes, o poder do dinheiro para medir todas as coisas. Esse aspecto importante só estará aqui presente por implicação.” (Dumont, opus cit., p. 240). A ênfase no valor econômico concomitante ao individualismo fez com que os parâmetros de avaliação dos fatos, das atitudes, políticas etc, sejam quase sempre monetários ou econômicos. Até mesmo projetos de cunho assistencial ou filantrópicos tendem a ser chamados de “sociais” numa clara alusão à não ocorrência de lucro e são avaliados economicamente pelo custo-benefício para os indivíduos envolvidos. Esse predomínio na sociedade ocidental das representações econômicas 76 resultou na emancipação do econômico em relação ao político adquirindo status de valor principal na sociedade. Muitos dos recursos oriundos do desenvolvimento tecnológico passaram a servir e a reforçar o valor econômico como principal na dinâmica social. Ao analisar os efeitos dessa ênfase do econômico e seus instrumentos de atuação na sociedade americana, Lasch (1986) discute como a Cultura de Massa a que estamos sujeitos, estabelece instrumentos de controle social poderosos. Cita a comunicação que acaba sendo colocada a serviço de uma concentração de poder, através da posse do capital “informação”, estabelecendo um sistema unilateral de gestão e comunicação, concentração de poder político, econômico e cultural nas mãos de elites planificadoras. As tensões existentes entre os grupos que possuem e não possuem este capital acabam por gerar inúmeras formas de adoecimento da sociedade e dos indivíduos. A própria liberdade de escolha do indivíduo comum fica orientada para uma abstenção de escolha, pois não se trata mais de escolher se queremos ou não consumir, mas se vamos escolher entre “a” ou “b”, muitas das vezes necessidades criadas pela cultura de massa. A posse crescente dos bens econômicos faz surgir uma situação de monopólio “econômico” que, segundo Elias (1994) se liga direta ou indiretamente ao monopólio da força física para se perpetuar. A esfera econômica passa a ser considerada como única força propulsora das outras esferas e depende também do monopólio da violência. Porém, o impasse aparece, mais uma vez, pois a sociedade baseada nessa dinâmica vai encontrar uma contradição complexa a resolver: ao mesmo tempo que ela precisa de indivíduos que se dediquem exclusiva e dedicadamente ao tra- 77 balho para garantir margens de lucro, renda, participação em mercado, também precisa de um contingente cada vez maior de indivíduos que estejam dispostos a consumir e desfrutar dos benefícios crescentes da tecnologia. Outro aspecto importante que se apresenta como um impasse e decorre da discussão de valor econômico é a constatação de que muitos processos de crise representam uma transformação e ocorrem exatamente em períodos de estabilidade e prosperidade econômica como o vivido atualmente pela sociedade norteamericana. Indivíduos que passam por uma crise de valores morais e se perguntam qual o real sentido da existência. Para autores como Awbrey (1999) as principais figuras da história ocidental não são os príncipes, presidentes ou generais, mas o desejo espiritual, indivíduos ansiosos em buscar o sentido da vida. Em resumo, ele aponta que a crise atual, onde a depressão e a melancolia são suas principais demonstrações, é um período de transformação porque muitas pessoas estão rejeitando o materialismo, a negação da alma, a cultura moralmente indiferente da sociedade ocidental para uma relação mais íntima com a natureza, a comunidade e a divindade. 78 CAPÍTULO 5 O “DIÁLOGO” TRANSDISCIPLINAR NA COMPREENSÃO DA CRISE SOCIAL CONTEMPORÂNEA: A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL COMO INTERLOCUTORA “A nossa consciência normal em estado de vigília é apenas um tipo especial de consciência, ao passo que em toda a sua volta, separadas dela pela mais fina das telas, jazem formas potenciais de consciência inteiramente diversas. Podemos passar a vida inteira sem suspeitar-lhes sequer da existência; aplique-se-lhes, porém, o estímulo necessário e, ao primeiro toque, por mais leve que seja, hei-las ali em toda a sua completitude... Não pode ser definitiva nenhuma explicação do universo em sua totalidade que não dê tento dessas outras formas de consciência...” (WILLIAM JAMES) 79 Diante das observações preliminares que fizemos sobre as tentativas de compreender a crise social contemporânea, podemos perceber a existência de lacunas que não garantem uma compreensão satisfatória. A complexidade das relações entre os diversos conceitos envolvidos no fenômeno oferece a característica ideal para uma proposta interdisciplinar como a que pretendemos nesse trabalho. Dentre as diversas modalidades desse exercício interdisciplinar que se apresentam na atualidade, julgamos que a proposta transdisciplinar é a que permite um “diálogo” mais proveitoso com outros saberes, ainda que estejam comprometidos com estruturas de conhecimento diferentes das do paradigma científico tradicional — newton-cartesiano. Assim, nossa proposta será a de buscar um nível de aproximação com os principais conceitos e pressupostos da Psicologia Transpessoal, bem como refletir sobre alguns de seus desdobramentos acerca da sociedade contemporânea, privilegiando o contexto e recorte que fizemos para compreender a crise atual. Como todo trabalho transdisciplinar, nosso objetivo não é o de promover mudanças de fundo nas concepções existentes, mas sim ampliar percepções sobre conceitos como indivíduo, sociedade, liberdade, autonomia, igualdade, valores, hierarquia etc. As mudanças de percepção promovidas gerarão mudanças de fundo? Essa é uma questão que só será respondida em função do tempo e da postura que venha a ser assumida diante da continuidade desse movimento transdisciplinar. O enriquecimento do produto de conhecimento e a ampliação das questões e perspectivas que podem ser tratadas e levantadas para os problemas complexos são vantagens que o exercício transdisciplinar permanente pode oferecer. Entretanto, é preciso ficar atento aos cuidados especiais que esse trabalho requer, sem os quais podem-se gerar grandes inconvenientes. Alguns deles são os riscos da perda de integridade de algumas disciplinas participantes, comprometimento do nível de 80 qualidade do trabalho de pesquisa, a perda dos objetivos da pesquisa, além daqueles referentes aos conflitos de interesses de toda ordem que podem influir no desenvolvimento de um trabalho transdisciplinar: interesses comerciais e/ou financeiros com os resultados da pesquisa ou os de status social e/ou profissional em função desses resultados. Aliás, esse parece ser um ponto preocupante para os pesquisadores envolvidos em uma proposta transdisciplinar. Falamos de uma certa sensação de “ameaça” ao objetivo do saber puro nas universidades que uma aproximação com outras formas de saber poderia acarretar. Na verdade, o impasse fica caracterizado pelos riscos dessa aproximação confrontados com os riscos que a universidade corre, de perder a importância para o grupo social, caso se afaste sobremaneira da realidade dos problemas da comunidade. A necessidade de se considerar a existência de outras formas de saber passa a ser condição básica para uma visão transdisciplinar mais atual. Como Somerville (1993) destaca: “Devemos aceitar o fato de que há outras ‘fontes de saber’ além dos processos cognitivos mentais. É o que nós, sem dúvida, aceitamos implicitamente quando temos o sentimento de não saber tudo, mas a segunda era do nosso saber teve tendência a nos fazer crer que os dados científicos puros eram os únicos válidos e que nós possuíamos todos, ou quase todos, esses dados no que dizia respeito a qualquer questão. Uma parte de nossa nova realidade consistirá em restabelecer virtudes antigas como a ‘sabedoria’, e em reconhecer a importância de faculdades ‘antigas’ como a intuição, que foram negligenciadas ou mesmo negadas na ‘segunda era’ do nosso saber.” (Somerville, 1993, p. 90). Por “segunda era” Somerville entende o período do desenvolvimento do saber que se caracterizou pelas especialidades e especialistas cujos reflexos sentimos até hoje, enquanto o terceiro período de conhecimento é o da integração de 81 correntes especializadas e paralelas do saber. Para essa nova etapa do conhecimento é fundamental ser receptivo a propostas alternativas aos saberes instituídos, o que exige, segundo a autora, a manifestação de uma sinergia disciplinar entre as pessoas envolvidas no exercício transdisciplinar — onde o todo da produção de conhecimento será maior que a soma das partes constitutivas. O produto de conhecimento a que nos referimos não será homogeneizado. Ao contrário, apresentará “incompletudes” com as quais os pesquisadores deverão se acostumar a conviver, mesmo que isso gere uma angústia ante a incerteza da constatação de que “não conseguimos saber de tudo!”. Todavia, o maior cuidado que se deve ter ao lidar com uma proposta transdisciplinar que envolva, como no nosso caso, outras formas de saber, é o de evitar atitudes preconceituosas em relação a elas. Muitas vezes podemos incorrer no erro, para uma proposta desse tipo, de considerar ingenuidade a consideração de outros modelos conceituais que não estejam inseridos no quadro do pensamento científico tradicionalmente aceito como válido. Ou, em outros momentos, considerar que aqueles que assim procedem — coerentemente com a transdisciplinaridade atual — demonstrem falta de preparo acadêmico ou científico, numa repetição de uma postura reducionista empobrecedora, do passado. Como podemos perceber, o trabalho em uma proposta transdisciplinar não é fácil e não ocorre por si só. É preciso que se facilite a sua ocorrência superando alguns problemas. A dificuldade de se obter um consenso sobre os valores envolvidos nas questões que desafiam o conhecimento humano, exige um fórum de debates e pesquisas em que o espírito aberto e uma tolerância ativa, garantam a fecundidade das discussões para a solução que se almeja. Julgamos que a Academia ainda é o lugar privilegiado para se obter um ambiente favorável à reflexão. 82 No presente trabalho, a proposta transdisciplinar nos parece estar favorecida pois alguns desses impasses estão relativamente equacionados dada a condição especial em que nos encontramos. Por um lado, temos uma formação no campo das Ciências Sociais, mais especificamente nas Ciências Econômicas; por outro, a formação em Psicologia, o que nos parece favorecer a postura psicossociológica que buscamos como base. Além disso, temos convivido, nos últimos anos com a Psicologia Transpessoal com a qual desejamos “dialogar” nessa proposta transdisciplinar. Nesse ponto do trabalho, julgamos necessário abordar sua tendência sintética. Dada a abrangência do tema e a forma com que nos propomos estudá-lo, nossa dissertação tenderá a estabelecer relações e reflexões de caráter de síntese ao invés de análise. Alguns conceitos ou relações entre eles serão apenas sinalizados, apontando para possíveis propostas de estudos mais aprofundados, de aspectos cuja relevância justifique um programa de Doutorado. A opção por uma proposta transdisciplinar que procuramos explicitar na presente seção, não pode descuidar dos parâmetros do “fazer acadêmico”. Dessa forma, estaremos utilizando critérios que possam garantir a consistência de nossa proposta, com atenção especial para o rigor na escolha dos conteúdos teóricos utilizados, os cuidados para uma permuta de códigos adequada e uma escolha criteriosa dos textos e autores da Psicologia e Movimento Transpessoais. Privilegiaremos aquelas obras cujos autores tenham legitimação científica pelas suas formações acadêmicas básicas e de especializações. Para identificação desses pesquisadores transpessoais, utilizaremos como principal, mesmo que não exclusivamente, as publicações de artigos e resultado de pesquisas em The Journal of Transpersonal Psychology, publicação norte-americana que reúne os principais nomes do movimento transpessoal da atualidade. 83 Finalmente, resta uma pergunta pertinente a essa seção do presente trabalho: Por que a escolha da Psicologia Transpessoal como interlocutora nesse “diálogo”? Alguns argumentos me parecem decisivos nessa escolha. O critério de apresentação seguinte não representa uma ordem de importância, mas apenas de uma dimensão mais particular para uma mais geral. O primeiro deles refere-se a um interesse pessoal em aprofundar de forma sistemática e criteriosa um estudo sobre esse novo ramo de saber psicológico: Psicologia Transpessoal. Em segundo lugar, está a proposta de um desafio a esse saber e suas contribuições para questões com as quais temos nos deparado e interessado na abordagem psicossociológica, particularmente na compreensão da crise da sociedade contemporânea. Um último argumento, mais complexo e abrangente, deve ser apresentado mais detalhadamente. Em um interessante artigo, com o qual tivemos contato há alguns anos atrás, Amaral (1989) apresenta uma compreensão para a crise da Ciência no Ocidente partindo do princípio que ele designa como amnésia paradigmática por substituição, onde o Ocidente se confunde com a Verdade, a partir da negação do Oriente. Paradoxalmente, a crise da Ciência faz com que esse Outro (Oriente) torne-se mais próximo de nossa visão ocidental, resgatando uma possível identificação original negada em alguns séculos de primazia da razão sobre a intuição, do fato sobre o mito. A Psicologia Transpessoal como se verá a seguir, propõe uma integração de alguns conceitos da Filosofia Perene oriental com as principais conquistas da ciência como a entendemos no lado ocidental, principalmente em uma nova possibilidade de entendimento do indivíduo. É possível, e isso parece tornarse nosso ponto principal, que uma nova visão de indivíduo — interligado e interdependente com o grupo social e com o Universo — em uma abordagem transpessoal — que introduz a dimensão espiritual no entendimento do ser humano 84 — contribua para uma maior compreensão dos desdobramentos do individualismo na crise da sociedade contemporânea. 5.1- A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL Desde o seu desmembramento da Filosofia, a Psicologia vem dedicando-se ao estudo das diferentes formas de processos mentais e fenômenos comportamentais. Várias escolas ou abordagens privilegiam aspectos desse complexo objeto de estudo que é o psiquismo humano. Linhas teóricas com suas respectivas aplicações práticas têm determinado a base de entendimento e concepção de indivíduo psicológico em toda a nossa ciência ocidental. Durante a década de 60 porém, houve um questionamento sobre as limitações que as linhas teóricas até então desenvolvidas vinham trazendo. Apesar das inúmeras e inquestionáveis contribuições oferecidas, essas linhas de pensamento eram incapazes de oferecer explicações completas para a totalidade das experiências humanas. O movimento humanista e a abordagem existencialista, surgiram da tentativa de oposição às escolas anteriores. Buscavam a possibilidade de estudar a experiência humana e tudo que pudesse levar ao bem-estar. A preocupação passou a situarse no aqui e agora como principais pontos de observação da experiência humana. A consideração dos sentimentos e relações sociais na determinação de condutas e comportamentos, alterou e ampliou o eixo de reflexão sobre o homem. A meta do homem deixou de ser apenas a redução do sintoma para ser substituída pela busca da auto-realização. 85 Com a ampliação do campo de observação das experiências humanas, os pesquisadores começaram a descobrir fenômenos que acabaram resultando no aparecimento da Psicologia Transpessoal. Tratavam-se das chamadas experiências de pico: “As pessoas que gozam de excepcional saúde psicológica, tendem a viver aquilo que chamamos de ‘experiências de pico’: experiências de expansão da identidade e de união com o universo, breves porém extremamente intensas, cheias de sentido e júbilo, além de benéficas.”(Walsh & Vaughan, 1997, p. 16). Os pesquisadores concluíram que muitas dessas experiências podiam ser encontradas nas práticas de diversas tradições orientais que, aparentemente, possuíam métodos próprios para levar os indivíduos a induzi-las deliberadamente. As experiências eram identificadas como expansões da personalidade, com mudanças nas percepções da realidade objetiva que pautava o paradigma newton-cartesiano contemporâneo. A esse movimento, chamado por seus fundadores de “4a. força em Psicologia” (Tabone, 1992), chamou-se Psicologia Transpessoal.13 Autores humanistas como Abraham Maslow, passaram a ampliar o entendimento do conjunto de necessidades próprias à sobrevivência do homem. Além da necessidade do alimento, do abrigo, de vestuário, de relacionamentos etc., outras necessidades deveriam ser supridas para que o homem atingisse um nível considerado satisfatório de saúde psicológica. O atendimento à necessidade dita espiritual parecia ser o elemento comum naquelas práticas orientais e das experiências de pico. 13 GROF está na origem do movimento transpessoal (SUTICH, 1978, P. 27). O próprio GROF relata em uma de suas obras o surgimento do termo Psicologia Transpessoal: “Conheci um pequeno grupo de profissionais, nos últimos anos da década de 60, que incluía Abraham Maslow, Anthony Sutich e James Fadiman, que compartilhavam minha crença de que o tempo estava maduro para lançar um movimento de psicologia, que enfocasse o estudo da consciência e o reconhecimento do significado das dimensões espirituais da psique. Após vários encontros para determinar a clarificação desses novos conceitos, decidimos chamar essa nova orientação de ‘psicologia transpessoal’. Logo em seguida foi lançado o Journal of Transpersonal Psychology e a Associação de Psicologia Transpessoal.” (GROF, 1987, p. XII-XIII). 86 A Psicologia Transpessoal objetiva estudar os vários estados de consciência14 por que passa o homem, assim como as suas relações com a realidade, com o comportamento e valores humanos (Weil, 1982). É considerada como uma expansão do movimento humanista ampliando-o pela inclusão e valorização da dimensão espiritual do ser humano. Daí resulta que o objetivo não seja mais, apenas, a auto-realização, mas a auto-transcendência do ser humano. Não se trata, como pode parecer a princípio, de uma negação da Psicologia ocidental. A Psicologia Transpessoal caracteriza-se por um ajuste da Psicologia ocidental ao paradigma emergente, encontrado nas principais escolas filosóficas orientais: “Com o objetivo de preencher as lacunas deixadas por funções não desenvolvidas por nosso sistema educacional/cultural, a abordagem transpessoal da Psicologia combina, sem preconceitos científicos ou culturais, as várias tendências do pensamento psicológico ocidental com as metodologias desenvolvidas por sistemas esotéricos como o Budismo, o Yoga, o Tibetanismo, o Sufismo e outros.”(Tabone, 1992, p. 19). Esse movimento permite uma abertura conceitual para a valorização de assuntos que, por conflitarem com o paradigma tradicional dominante, foram desconsiderados nos períodos que antecederam a década de 60. A Psicologia Transpessoal propõe-se a ser a interseção entre o cientificismo e o misticismo — aqui entendido como o conjunto das tradições orientais milenares — duas formas até então autônomas de apreensão da realidade que possuem metodologias e bases conceituais diferentes mas que juntas oferecem maior capacidade de entendimento de diversas experiências por que passa o homem. Segundo Fritjof Capra “A ciência 14 O uso do termo Consciência remete a uma diversidade de conceituações. Na Psicologia Transpessoal o termo Consciência designará a capacidade humana de mobilizar a atenção/percepção do meio ambiente, a auto-percepção e a estrutura que atua sobre as informações e estímulos captados pelos sentidos básicos. Os estados alterados de consciência serão as variações do estado dito “normal” ou de “vigília”. 87 não necessita do misticismo e este não precisa da ciência; entretanto o homem necessita de ambos.” (Capra, 1996, p. 69). No presente trabalho estaremos enfatizando a Psicologia Transpessoal tendo em vista nosso objetivo de refletir sobre as conseqüências de uma nova concepção de indivíduo para a compreensão da crise da sociedade contemporânea. Para atingirmos esse objetivo, não podemos desconsiderar os desdobramentos que a Psicologia Transpessoal tem oferecido no desenvolvimento de novas disciplinas nos demais campos do conhecimento humano. Particularmente nos interessam os movimentos em áreas como a Sociologia, a Antropologia e a Ecologia, por exemplo, para a compreensão da crise contemporânea sob uma nova perspectiva. Tendo em vista o desenvolvimento atual dessas outras disciplinas no movimento transpessoal, julgamos necessário introduzir algumas definições básicas para o entendimento do assunto, o que está resumido no ANEXO 1, ao final desse trabalho.15 Apesar da ênfase no transpessoal, as disciplinas transpessoais não invalidam, não excluem e não limitam o campo do pessoal. Pelo contrário, elas situam os interesses pessoais dentro de um contexto mais amplo que inclui as principais contribuições da ciência sobre a dimensão pessoal. Para Walsh (1997), inclusive, “ (...) uma das interpretações do termo ‘transpessoal’ é que o transcendente se expressa através (trans) do pessoal.” (Walsh & Vaughan, 1997, p.18). A Visão Transpessoal, apesar de incluir áreas que estão situadas além dos limites das escolas ocidentais, não pretende substituí-las, mas integrar suas contribuições a uma compreensão mais ampla do ser humano. 15 O resumo da definições é apresentado por Walsh e Vaughan (1993) no The Journal of Transpersonal Psychology, vol 25, no. 2. 88 5.2- A DÉCADA DE 60 E OS ALUCINÓGENOS Os estudos humanistas e transpessoais não ocorreram isolados de um contexto socio-cultural. Ambos foram influenciados e, ao mesmo tempo influenciaram, um período de grandes transformações na cultura ocidental de modo geral. Algumas dessas mudanças diziam respeito ao nascimento de um movimento de defesa do potencial humano e ao questionamento do sonho materialista, já que não tinha sido possível, até então, promover níveis de satisfação que as metas de sucesso exterior e posses de bens materiais tinham “prometido”. São dessa época movimentos de contra-cultura, como o movimento hippie, e os de caráter questionador dos comportamentos sexuais, que tiveram participação importante na evolução dessas novas disciplinas transpessoais. A busca por modos de vida alternativos fizeram com que o ocidente experimentasse a disseminação de diversas práticas asiáticas. Muitas dessas práticas, que tinham sido consideradas patológicas ou destituídas de sentido, agora eram consideradas meios para vivenciar estados ampliados de consciência e geradores de profundas mudanças de valores e condutas. Práticas de meditação, respiração, Yoga etc. passaram a ser utilizadas por uma minoria significativa da população oferecendo material para os pesquisadores que se interessaram pelos estados alterados de consciência atingidos durante essas práticas, como objeto de estudo das novas disciplinas transpessoais. Entretanto, foram as drogas psicodélicas que exerceram o maior impacto nas pesquisas transpessoais, pois provocaram experiências de estados alterados de consciência que ampliaram a concepção sobre a plasticidade e potencialidade do psiquismo além do nosso estado habitual de vigília. Seja como resultado dos movimentos de contra-cultura, já citados, seja pelos efeitos observados, nos EUA, nos soldados que retornaram da guerra do Vietnã, o 89 uso indiscriminado dos alucinógenos possibilitou aos pesquisadores vasto material de observação de estados incomuns de consciência. Os hospitais e a própria sociedade passaram a se preocupar com as conseqüências desse uso indiscriminado no comportamento do indivíduo em sociedade. As drogas ditas psicodélicas — do grego, “que alteram a mente” — promovem alterações psíquicas nos indivíduos afetando, principalmente, as percepções visuais. Daí serem chamadas de “alucinógenos” numa alusão aos sintomas alucinatórios descritos dela Psiquiatria. Com a aproximação entre as culturas ocidental e oriental, algumas práticas místico-religiosas passaram a ser empregadas e estudadas pelos pesquisadores das universidades norte-americanas. Alguns deles transformaram-se em verdadeiros gurus — como Timothy Leary, Richard Alpert e Ralph Metzner — para parte significativa da juventude norte-americana, associando práticas místicas ao uso de drogas. Na verdade, o uso de substâncias naturais como estimuladoras de potencialidades criativas parece ser comum em inúmeras culturas, desde os tempos mais remotos (Tabone, 1992). Diversas culturas pelo mundo, utilizaram plantas capazes de provocar alterações nos estados mentais habituais, buscando experiências transcendentais (místico-religiosas) e/ou para despertar potencialidades criadoras. Entre as principais substâncias alucinógenas usadas podemos citar a mescalina que tem como fonte natural o cactus peyote, a psilocibina, um alcalóide derivado dos chamados cogumelos sagrados mexicanos e, principalmente, o LSD (Dietilamida do ácido lisérgico) droga semi-sintética, derivada da cravagem do centeio. Destas drogas, o LSD foi o mais utilizado pelo seu alto poder alucinógeno e pela maior facilidade de controle, em laboratório, das dosagens utilizadas nas pesquisas. Nas pesquisas com os alucinógenos, temos que destacar dois nomes como dos mais importantes: Aldous Huxley e Stanislav Grof. Já em 1954, Aldous Huxley 90 era considerado um dos maiores nomes da fenomenologia psicológica induzida por alucinógenos. Em sua obra “As Portas da Percepção” (Huxley, 1984) começou a despertar o interesse da comunidade científica pelas drogas alucinógenas como instrumento de pesquisa profunda sobre o psiquismo humano. Entretanto, é Stanislav Grof — tcheco naturalizado americano — que se tornará um dos mais respeitáveis pesquisadores do LSD e outros alucinógenos. Doutor em Medicina e Filosofia, Grof realizou, a partir de 1956, mais de duas mil sessões psicoterápicas sob efeito do uso controlado do LSD, conduzidas por ele próprio e mais mil e setecentas conduzidas por seus colaboradores espalhados por vários pontos do mundo. Grof (1987) afirma que o resultado de suas experiências sugerem a existência de dimensões da mente humana que a pesquisa psicológica não explorou satisfatoriamente. Seus trabalhos (GROF, 1987, 1994, 1997) consistiam na aplicação controlada de dosagens mínimas de LSD nos sujeitos de pesquisa que eram, imediatamente após, submetidos a uma sessão psicoterápica de base analítica. Pelas alterações de percepção e de relatos dos sujeitos e pela semelhança de relatos entre os inúmeros sujeitos, Grof identificou padrões de modificação na percepção da realidade objetiva, que se repetiam de forma consistente. Suas conclusões davam conta de níveis diferentes da consciência que sugeriam uma mente estratificada, onde cada nível apresentaria sua especificidade. Como Grof, inúmeros pesquisadores (Ring, 1978; Assagioli, 1982; Lilly, 1983; Wilber, 1996) passaram a dedicar-se ao estudo de uma nova Cartografia da Mente. 91 5.3- CARTOGRAFIAS DA MENTE O estudo criterioso e sistemático de experiências que, até então, não tinham sido consideradas pela Psicologia, contribuiu para o aparecimento da Psicologia Transpessoal. Nesse novo campo de estudo, tornou-se necessário o estabelecimento de um mapeamento da psiqué mais abrangente que os existentes. Com a ampliação dessas pesquisas constatou-se que muitos dos estados alterados de consciência experimentados pelos indivíduos assemelhavam-se a alguns estados descritos por práticas milenares da filosofia oriental — Vedanta, Yoga e religiões orientais — que também indicavam ser a consciência multidimensional e estratificada em níveis distintos. A tradição hindu, por exemplo, considera que a totalidade da vida psíquica atua como uma estrutura dinâmica composta de níveis diferentes mas que se manifestam de um único centro de irradiação, o self. Cada um desses níveis representa uma capacidade de percepção diferenciada de aspectos da realidade correspondentes ao estado de consciência (Ramacharaca, 1983 apud Tabone, 1992). Essa comparação com a tradição hindu parece-nos especialmente importante para o presente trabalho já que foi a Índia uma das bases da pesquisa de Antropologia Comparada de Dumont, quando analisa o individualismo ocidental. Conforme nos aprofundemos na reflexão transpessoal em uma nova noção de indivíduo, que se aproxime de uma visão tradicionalmente oriental, podemos estabelecer relações entre as conseqüências nos processos de socialização das diferentes culturas e sobre os efeitos na crise contemporânea que se pretende considerar. Os estudos das alterações da consciência não poderiam basear-se exclusivamente em relatos de ocorrências de estados subjetivos. A identificação de estados de expansão ou extensão da consciência passou, então, a ser correlacionada a evidências concretas de modificações psicofisiológicas. Os diversos estados altera- 92 dos de consciência — meditação, hipnose, sonhos, técnicas psicoterápicas etc. — podem ser estudados através de seus vários indicadores como as ondas alpha, theta e delta, movimento rápido dos olhos, EEG (Eletroencefalograma), atividade dos hemisférios cerebrais, dentre outros.16 Algumas dessas pesquisas (Walsh & Vaughan, 1997) compararam os parâmetros psicofisiológicos dos estados de consciência obtidos por práticas da meditação, do xamanismo e da Yoga com os experimentados pelos quadros esquizofrênicos, demonstrando que os perfis são completamente diferentes, excluindo a possibilidade de que os estados alterados, obtidos por aquelas práticas, fossem considerados patológicos. Ao invés de patológicos, estes estados parecem representar uma expansão ou extensão da consciência onde os referenciais tradicionais da realidade objetiva (newton-cartesiana) são ampliados ou modificados. Dentro desse enfoque, a consciência do Eu pode mudar de estado, seja através de auto ou hetero-indução, a partir de um deslocamento da atenção para um outro nível de consciência que não o habitual, chamado de “estado de consciência ordinário” ou “de vigília”. Esse nível é utilizado como referencial para se determinar os demais níveis de consciência, por isso chamados de alterados 17 . Todas as experiências que envolvem algum tipo de expansão ou extensão da consciência são chamadas de experiências transpessoais: “... a experiência transpessoal envolve uma expansão ou extensão da consciência além das limitações usuais do ego e das limitações de tempo e espaço, como são percebidas no mundo tridimensional.” (Grof, 1987, p. 129). 16 Para maiores detalhes sobre essas pesquisas, o leitor poderá recorrer às obras de WALSH & VAUGHAN, 1997; GOLEMAN, 1988; ORNSTEIN, 1972. 17 A nomenclatura de “alterados” tende a causar uma impressão de desequilíbrio, desajuste ou patologia, sendo muitas vezes substituída por termos sinônimos como incomuns, alternativos, “outros”. 93 As cartografias da mente que se desenvolveram partem da constatação da graduação dos níveis de consciência, baseada na percepção dualista eu/mundo dos níveis pessoais — biográficos ou do “ego” — tendo como ponto máximo de expansão da consciência uma percepção una e plena da realidade, descrita em muitas tradições espiritualistas de várias denominações como: nirvana, êxtase, estado de iluminação, consciência cósmica 18 etc. (Tabone, 1992). Entre estas duas dimen- sões de consciência, cada autor descreve outros níveis conforme o critério de observação do qual se utilizou. Destacaremos, aqui, apenas as obras básicas de Grof (1987) e de Ken Wilber (1996). A escolha por esses dois teóricos procurou atender a alguns critérios importantes para a elaboração de nosso trabalho. O primeiro refere-se ao fato de terem suas produções reconhecidas no movimento transpessoal como contribuições expressivas. O segundo por apresentarem características complementares em relação à proposta de cartografia do psiquismo: Wilber enfatiza a hierarquia de níveis da consciência destacando os biográficos e pós-natais enquanto Grof destaca os níveis perinatais e os transpessoais, como veremos a seguir. 5.3.1- O Espectro da Consciência de Ken Wilber Ken Wilber é um dos principais teóricos do campo da Psicologia Transpessoal atual. Seu trabalho resulta de uma síntese teórica das principais contribuições da Psicologia ocidental com as dos princípios oriundos da chamada Filosofia e Psicologia Perenes: “doutrina universal sobre a natureza da humanidade e da realidade existente no âmago de todas as principais tradições metafísicas. (...) uma Psicologia perene ou visão universal da natureza da consciência humana.” (Wilber, 1997, p. 35). 18 O termo Consciência Cósmica foi escolhido pelo psiquiatra canadense Richard Maurice Bucke em 1901, para designar um estado de consciência que se situa acima da simples consciência comum do homem ou mesmo da consciência de si mesmo. (Weil, 1989, p. 19). 94 Wilber parte de uma analogia com o espectro eletromagnético da Física, onde os diversos tipos de radiação — como os raios X, a luz visível, as ondas de rádio, infravermelhas e ultravioletas — são considerados faixas desiguais de um mesmo espectro de energia, isto é, manifestações diferentes em comprimento de onda, velocidade de propagação, freqüência etc. de uma onda eletromagnética essencialmente característica, pois contêm um sem número de propriedades semelhantes. Com essa base, Wilber batizou seu modelo de Espectro da Consciência. Por Espectro da Consciência Wilber considera que a personalidade humana se expressa em diversos níveis de uma única consciência individual, um mesmo continnum, variando na forma como apreende seu sentido de identidade de acordo com o nível de consciência em que se situe. Para Wilber: “ (...) o Espectro da Consciência é uma visão pluridimensional da identidade humana, ou seja, cada nível do Espectro é marcado por sensos de identidade individual diferentes e facilmente reconhecíveis, que vão desde a Identidade Suprema da consciência cósmica até o estreito senso de identidade que se associa à consciência egóica, passando por diversas gradações ou faixas.” (Wilber, opus cit., p. 35). A possibilidade de se pensar a consciência humana como composta de diversos níveis “vibratórios” diferentes, levou Wilber a considerar que as diferenças verificadas entre os pesquisadores da consciência, principalmente entre os grupos comumente chamados de ocidental e oriental, estava no fato de privilegiarem um determinado nível ou grupo de níveis desse espectro, em função dos instrumentos, lógica e metodologia de que dispunham. Mesmo no recorte ocidental, ficariam esclarecidas as eternas discussões entre correntes e abordagens nas áreas da Psicologia: “Afirmo, com efeito, que a principal razão da existência, no Ocidente, de quatro ou cinco escolas principais, porém diferentes de psicologia e psicoterapia é 95 que cada uma delas focalizou sua atenção numa faixa ou nível principal do Espectro.” (Wilber, 1996, p. 18). Portanto, em sua opinião, essas escolas têm abordagens complementares e não exclusivas, do entendimento da consciência pois se dirigem a diferentes níveis, sendo mais ou menos “corretas” dentro do nível em que representam seu objeto de estudo e intervenção. Em resumo são os seguintes os níveis do Espectro de Wilber, assim como as principais faixas que compõem e caracterizam o psiquismo: O NIVEL DA MENTE: Para a Psicologia Perene esse seria o nível onde estamos identificados com o universo, o Todo, não devendo ser considerado um estado anormal ou alterado de consciência, mas antes o único estado real de consciência, sendo os demais considerados ilusórios. No nível dessa consciência real, os limites do dualismo eu/não-eu desaparecem e alcançamos a Consciência Cósmica. No Nível da Mente, existem as Faixas Transpessoais onde já há uma consciência do dualismo eu/não-eu, mas ainda relativizado em relação aos níveis posteriores onde esse dualismo é determinante. FAIXAS TRANSPESSOAIS: Representam as faixas de consciência onde o indivíduo é capaz de tornar conscientes aspectos de sua ligação com dimensões além dos limites usuais do ego e do corpo e da interdependência e interligação desses aspectos com a sua individualidade. O NÍVEL EXISTENCIAL: os seres se identificam unicamente com a totalidade de seu organismo psicofísico, tanto soma quanto a psique, como existe na 96 realidade objetiva, no tempo e espaço, compreendendo nosso sentido básico de existência, de ser. É nesse nível que os processos de pensamento racional começam a se desenvolver e também as relações entre organismo e meio ambiente são nítidas. Para Wilber, é nesse nível que são internalizadas as premissas culturais, relações familiares e hábitos sociais, influenciando o senso elementar de existência do organismo. FAIXAS BIOSSOCIAIS: De forma muito geral, podem ser entendidas como a soma total de toda a informação sociológica básica que o organismo acumulou. O NÍVEL DO EGO: Aqui o indivíduo se identifica, não com seu organismo, mas com um quadro ou representação mental mais ou menos preciso da totalidade do organismo: o Ego ou auto-imagem. O indivíduo se identifica plenamente com a psique, a mente e o ego, fazendo com que predominem os processos simbólicos e intelectuais. É a faixa da consciência que compreende o nosso papel, a imagem que temos de nós mesmos, com os seus aspectos conscientes e inconscientes. FAIXAS FILOSÓFICAS: representam uma espécie de filtro pessoal refletindo as suposições metafísicas, paradigmas pessoais, premissas intelectuais e conjuntos simbólicos não conscientes ao indivíduo. O NÍVEL DA SOMBRA: Quando, por alguma distorção, o indivíduo se identifica com partes de sua psiqué, alienando outras partes. A identificação aqui é com uma auto-imagem imprecisa e empobrecida do seu eu. Na verdade, Wilber admite que um espectro da consciência humana seria complexo, composto de inúmeros níveis e faixas oferecendo extremas dificuldades 97 para sua análise. Optou por um conjunto resumido que pudesse apresentar os principais aspectos e características da consciência. A divisão em níveis estabelecida por Wilber é esquemática, pois, na verdade, os níveis do Espectro se interpenetram e se transfundem uns nos outros não podendo ser separados. Espectro da Consciência de Ken Wilber Para entendermos o Espectro de Wilber, precisamos partir de sua premissa básica: só há uma única realidade, onde não há distinção ou dualismo entre sujeito e objeto e sim uma percepção não-dual, em que o observador é o observado. Para ele, “quando descemos à própria base da nossa consciência encontramos o universo” (Wilber, 1996, p. 83). Este nível básico, não-dual é o chamado Nível da Mente, onde o homem se identifica com o Todo e está em união com a Energia básica do universo. A partir desse nível, onde o espaço e o tempo não têm sentido, estabelecese um dualismo entre sujeito e objeto pelo processo de objetivação do pensamento humano — o que tenta conhecer a Realidade como objeto através de um sujeito. Para Wilber, esta divisão não é real mas o homem a toma com tal e se prende a esse dualismo que pode ser descrito como sujeito / objeto, eu / não-eu ou organismo / meio ambiente, gerando o segundo nível do Espectro ou o Nível Existencial, onde se passa de uma identidade cósmica com o Todo para uma identidade pessoal com o seu organismo, separado desse Todo. 98 Esse primeiro processo do dualismo primário é estabelecido pelo pensamento — chamado de auto-reflexão — e vai gerar o universo convencional e simbólico de coisas separadas, possibilitando a “criação” do espaço e do tempo. Wilber apresenta um exemplo para esclarecer esse processo a partir de uma folha em branco tomada como se fosse a Mente, não-dual. Se sobrepusermos uma grade sobre o espaço em branco teremos uma figura como a seguir. Pensamento Fragmentando a Realidade Una As linhas da grade são distinções que representam o próprio pensamento, elaboração simbólica, dualismo, mensuração, conceituação etc. Portanto, a Unidade (Mente) que jaz debaixo da grade já não é diretamente visível, foi obscurecida, ficou implícita ou reprimida. A Unidade agora se manifesta ou se projeta como um mundo de objetos “separados” no espaço e tempo, uma multiplicidade de coisas separadas. Wilber postula que esse processo — que ele chama de Dualismo-repressão-projeção — se repete inúmeras vezes em todos os níveis subseqüentes de consciência gerando uma nova faixa do espectro. No diagrama proposto por Wilber, o traço diagonal que cruza todo o Espectro representa a sucessão de dualismos que a consciência irá realizar entre os objetos específicos da percepção de cada nível. Ou seja, em cada nível o indivíduo se identifica com uma parte — que se torna mais consciente — e se opõe a outra — que se torna inconsciente. Para Wilber, cada nível do Espectro representa um diferente nível de identificação da consciência: 99 “Metaforicamente, cada nível do espectro representa a aparente identificação da Subjetividade Absoluta [Mente] com um grupo de objetos como se estivesse contra todos os outros, e a cada novo nível do espectro, a identificação se torna mais estreita e exclusiva.”(Wilber, 1996, p. 88). No diagrama, observamos que a linha do dualismo não existe no Nível da Mente, pois ali não há distinções entre sujeito e objeto, ali a consciência é da realidade do Todo, o indivíduo mantém a noção de sua individualidade mas integrada e interligada com o universo, com o cosmos. Como vimos, o resultado do dualismo primário é a geração do Nível Existencial, onde o indivíduo acredita e se sente como um organismo distintamente separado do meio ambiente. As faixas existentes entre a Mente e o Nível Existencial são as chamadas Faixas Transpessoais. A linha tracejada representa que o limite entre o eu e o não-eu não se cristalizou por completo. Nas Faixas Transpessoais se identificaria o Inconsciente Coletivo de Jung, a percepção extra-sensorial, as experiências transpessoais, projeção astral e todos os fenômenos ditos paranormais, pois representam uma expansão além dos limites do nível pessoal da percepção dos sentidos básicos. No Nível Existencial, o homem centraliza a própria identidade no seu organismo e, como está ilusoriamente separado do objeto — seu meio ambiente —, cria a dimensão do espaço que os separa e também o tempo. Identificado com o organismo, surge o medo da morte como um dilema entre o existir e o não-existir. O resultado desse processo é o dualismo secundário entre vida / morte pois o homem não suporta a possibilidade de seu aniquilamento, desencadeando a luta para a superação da morte. Toda essa dinâmica reforça a “criação” do tempo inaugurando o passado e o futuro. A ansiedade gerada pela fuga da morte vai desencadear um novo processo de Dualismo-repressão-projeção que irá resultar em um novo nível: Nível do Ego. Nas palavras do próprio Wilber: 100 “(...) — o homem, não aceitando a morte, abandona o seu organismo mortal e escapa para alguma coisa muito mais ‘sólida’ e impérvia do que a ‘simples’ carne — vale dizer, as idéias. Fugindo da morte, o homem foge do corpo mutável e identifica-se com a idéia de si mesmo, aparentemente imortal. Corrompido pela lisonja, chama a essa idéia o seu ‘ego’, o seu ‘eu’.” (Wilber, opus cit., p. 102). A consciência de organismo do Nível Existencial é agora desmembrada em um dualismo entre psique / soma característico do Nível do Ego. Aqui, a mente se separa do corpo e o homem se identifica com a representação puramente mental ou psíquica de seu ser psicossomático total, isto é, se identifica com seu Ego. Esse mecanismo de identificação afasta o indivíduo de sua percepção organísmica — a percepção dos cinco sentidos básicos de forma integrada. Do limite do Nível Existencial até o Nível do Ego a consciência se caracteriza, para Wilber, por uma seqüência de faixas — chamadas Faixas Biossociais — onde são absorvidas as premissas culturais do organismo que vão pautar todas as transações entre o organismo e o seu meio ambiente. Esse fundo comum de fatores sociológicos e culturais, que funciona como um polimento social, determina o modo como o organismo percebe o meio ambiente e também o modo como age em relação a ele. Segundo Wilber: “Cada indivíduo, nesse nível, carrega consigo vasta rede de relações representando a sociedade ‘interiorizada’. É de uma natureza extraordinariamente complexa, pouco percebida, que compreende uma matriz de linguagem e de sintaxe, a estrutura introjetada da família do indivíduo, crenças e mitos culturais, regras e meta-regras.”(Wilber, opus cit., p. 108). O fenômeno da linguagem é, talvez, o mais básico dos vários conjuntos de relações que constituem as Faixas Biossociais. Com os processos linguísticos, estabelecemos escolhas simbólicas determinantes de muitas das características das rela- 101 ções entre indivíduos. Não nos damos conta da internalização inconsciente da linguagem que será de grande influência na experiência do indivíduo. As Faixas Biossociais não são responsáveis por nenhum dualismo mas operam no sentido de reforçar os existentes: “A linguagem — o constituinte mais fundamental da Faixa Biossocial — é um reforçador prototípico de dualismos, pois opera dividindo e classificando o ‘fluxo caleidoscópico’ da natureza, reprimindolhe a qualidade não-dual ou inconsútil e projetando-a como objetos aparentemente discretos e separados.”(Wilber, opus cit., p. 110). Wilber destaca outras três importantes funções exercidas pelas Faixas Biossociais: a) Reforça o sentimento central do indivíduo como ser separado e distinto do seu meio ambiente; b) Reservatório de símbolos, sintaxe e da lógica para a atividade do pensamento, da intelecção abstrata; c) Age como reservatório para a formação do ego, seus papéis, valores, status, conteúdo etc. (Wilber, opus cit., p. 111). O estudo dessas faixas é de muita importância para o nosso trabalho tendo em vista a possibilidade de ampliação do entendimento dos fatores sociais e individuais, bem como as características do processo de socialização e individuação do indivíduo a partir dessa abordagem no “diálogo” a que nos propomos. Como podemos observar, essas características são decisivas para o próximo nível de consciência do Espectro: o Nível do Ego. Uma das características interessantes apontadas por Wilber sobre o Nível do Ego está na consideração da identificação do ego tanto com o passado quanto com 102 o futuro. Para Wilber, o ego, como está desidentificado com o organismo total e identificado com a representação simbólica e mental do organismo, acaba se caracterizando por um conjunto de lembranças organizadas do passado que dão coerência para o indivíduo no presente. Como a identificação com o passado tende a ser frustrante pois não realiza o presente, o ego tende a buscar a satisfação no futuro onde, espera, possa alcançar a felicidade. A fixação dessa “estratégia” mental — inconsciente — torna-se um paradoxo pois o futuro que se persegue nunca será presente resultando numa crescente frustração. O risco, segundo Wilber — o que se torna particularmente relevante para a nossa tentativa de ampliar a compreensão da crise social —, é passarmos a identificar a felicidade com o próprio processo de correr atrás dela e acabar “confundindo a felicidade com a sua busca” (Wilber, opus cit., p. 112). A ilusão de poder alcançá-la pode me fazer correr mais depressa, como se estivesse faltando fazer algo para alcançá-la, em um círculo vicioso de investimento permanente na frustração. A passagem para um novo nível de consciência se dá quando o indivíduo enfrenta as dificuldades de internalizar mensagens e metamensagens trocadas sobre si e sobre o seu meio. Muitas vezes, as mensagens e metamensagens trocadas fazem com que ele enfrente uma situação de impasse (Gestalt) ou de duplo-vínculo, pois são contraditórias. O resultado do emaranhamento e distorção dos processos metacomunicativos do indivíduo é um novo dualismo onde ele separa facetas da própria psique, renegando e alienando aspectos de si mesmo, projetando-os ou percebendo-os como sendo do meio ambiente, gerando uma imagem distorcida e fragmentada de si mesmo. Esse processo gera o Nível da Sombra onde a Persona será a auto-imagem distorcida e inexata, composta de fragmentos do ego verdadeiro e a Sombra corresponde às partes renegadas e projetadas do ego no meio ambiente. Em resumo, nesse nível, o indivíduo promove uma cisão do próprio ego, 103 reprimindo e projetando uma parte fragmentada dele com a qual não se identifica, gerando um novo dualismo entre Persona versus sombra. Para Wilber, um dos grandes aspectos geradores desse nível — o Nível da Sombra — é o chamado por ele de “inconsciente filosófico” do indivíduo, que atua como um filtro pessoal: as Faixas Filosóficas. Essas faixas englobam todas as suposições metafísicas não examinadas, paradigmas pessoais não expostos, premissas intelectuais básicas e os conjuntos simbólicos em que o indivíduo se insere. Portanto, esse processo irá determinar a forma como o dualismo Persona / sombra se desenvolverá. Esse é um pequeno resumo da interessante abordagem de Wilber sobre o Espectro da Consciência. Algumas conseqüências desse modelo devem ainda ser destacadas. A primeira delas diz respeito às características do conteúdo que, a cada nível, passa pelo processo de Dualismo-repressão-projeção. Para Wilber, esse material se torna inconsciente para o nível seguinte, ou seja, por exemplo, todo o material reprimido e projetado “para fora” do Nível do Ego para a Sombra, é inconsciente para a Persona. Por inconsciente, Wilber irá se referir aos aspectos de consciência que por algum motivo não são totalmente apreendidos como objetos de percepção passando então a poder caracterizar o inconsciente no espectro: “Cada nível do espectro, por ser gerado por um dualismo-repressão-projeção particular, é sempre acompanhado de aspectos inconscientes particulares e específicos. Em outras palavras. Cada nível tem seu próprio inconsciente, gerado pela superposição de um dos quatro principais dualismos-repressões-projeções.”(Wilber, opus cit., p. 118). Como podemos observar, Wilber não desconsidera as contribuições de Freud e seus seguidores na caracterização de uma instância inconsciente, mas amplia-o de 104 forma a abranger os demais fenômenos humanos. Para Wilber, portanto, seria razoável se pretender um inconsciente total do indivíduo que resulta do somatório de todos os aspectos que não são percebidos por um determinado nível de consciência e, como o indivíduo tem como base fundamental uma consciência não-dual do universo, “o inconsciente ‘total’ consiste na soma de todas as características e aspectos do universo com os quais — nesse nível [qualquer um deles] — já não no identificamos, (...)” (Wilber, opus cit., p. 122). O segundo aspecto diz respeito à ocorrência das patologias, principalmente as psicopatologias. Tomando como base o Nível da Sombra, podemos identificar as conseqüências do movimento de fragmentação e repressão de partes de si mesmo para o “inconsciente da sombra” que, de forma paradoxal, continuam sendo do indivíduo e acabam sendo ressaltadas ou destacadas na consciência, através de desequilíbrios ou disfunções ou, ainda, “sintomas neuróticos”. Sem querermos aprofundar essa análise das psicopatologias — que Wilber aborda em outra obra (Wilber, 1999) — julgamos importante destacar a compreensão desse autor de que, cada nível de consciência poderá gerar tipos diferenciados de psicopatologias, das neuroses às psicoses. Com isso, os sintomas, de modo geral, representariam uma forma de manifestação do conteúdo mantido em nível inconsciente em qualquer dos níveis de consciência. O último aspecto que gostaríamos de destacar da obra de Wilber, nessa sessão, diz respeito à tendência de movimento do espectro. Como o Nível da Mente seria o nível de consciência cósmica por excelência e, assim, todos os demais representam algum tipo de “inconsciência”, o nosso psiquismo se “movimentaria” no sentido de uma crescente e progressiva tentativa de integração dos conteúdos inconscientes de cada nível na direção da consciência cósmica. Esse aspecto nos 105 parece relevante pois remete a um movimento que, independente de, ou coerentemente com, aspectos individuais, culturais, sociais etc. levaria os indivíduos a uma busca por uma integração dos seus aspectos fragmentados. Esse aspecto nos parece importante quando refletirmos, mais à frente, sobre o entendimento da crise como transformação de valores, sentidos etc. 5.3.2- A Cartografia de Stanislav Grof Stanislav Grof é hoje considerado um dos maiores estudiosos dos estados não comuns de consciência (Walsh & Vaughan, 1997;Tarnas, 2000). Ao longo de quarenta anos de pesquisas com estados não comuns de consciência, Grof desenvolveu um dos mais conceituados modelos de cartografia do psiquismo humano. A partir de uma experiência pessoal em um programa de pesquisa psiquiátrica sobre o uso do LSD, Grof passou a se interessar pelos diversos tipos de estados não comuns de consciência que o ser humano poderia experimentar. No início, suas pesquisas se concentravam em sessões de psicoterapia após a utilização de micro-dosagens de LSD, controladas laboratorialmente em um grupo experimental de indivíduos considerados psicologicamente saudáveis. Durante alguns anos também participou de um grande projeto de pesquisa para avaliação do efeito da terapia psicodélica19 em pacientes terminais de câncer. Posteriormente, Grof desenvolveu uma técnica própria chamada Respiração Holotrópica que associa o emprego de respiração acelerada, música evocativa e trabalho corporal induzindo o indivíduo a experienciar estados não comuns de consciência. 19 O termo terapia psicodélica é empregado para designar as práticas psicoterápicas que utilizam algum tipo de recurso para levar o indivíduo a experimentar estados alterados e que baseiam sua clínica na consideração dos conteúdos vivenciados por ele. 106 Superando todas as dúvidas pessoais que sua formação em psiquiatria e psicanálise colocaram diante das observações iniciais, mas diante da consistência de tais fenômenos, Grof entendeu que estava diante de um novo campo que exigia um ampliação ou revisão dos conceitos de psiquismo humano: “Nesse momento, não tenho dúvidas de que os dados das pesquisas de estados não-comuns de consciência representam um desafio conceitual crítico para o paradigma científico que atualmente domina a psicologia, a psiquiatria, a psicoterapia e muitas outras disciplinas.” (Grof, 2000, p. 11). Talvez a principal contribuição nessa revisão dirija-se ao conceito de consciência utilizado pela psiquiatria como sendo um epifenômeno da matéria, um produto de processos neurofisiológicos do cérebro. Dentro da Psicologia Transpessoal, segundo Grof: “Elas [pesquisas com estados não-comuns] mostram que a consciência é um atributo primário da existência e é capaz de muitas atividades impossíveis de serem desempenhadas pelo cérebro. Segundo as novas descobertas, a consciência humana é fragmento participante de um campo universal vasto de consciência cósmica que permeia toda a existência.”(Grof, opus cit., p. 11). Grof identificou que estes estados, que ele passou a chamar de Holotrópicos20 — onde a consciência humana poderia transcender as fronteiras restritas do ego corporal e reivindicar uma identidade total — eram verificados em diversas culturas antigas e pré-industriais como instrumentos de rituais e relações espirituais bem como em diversos processos sociais como os ritos de passagem. Grof estudou inúmeros grupos e tradições culturais — como o xamanismo, tribos aborígenes da África e América Central, culturas da Polinésia etc. — que utilizavam recursos diversos como plantas, danças, rituais, trabalhos respiratórios etc. para atingir estados 20 Por Holotrópico, Grof (1992) entende como o estado de consciência orientado para a totalidade / inteireza, termo originado do grego (holos = totalidade / inteireza; trepein = indo em direção a algo). 107 não-comuns de consciência, observando que todos eles respaldavam suas pesquisas de laboratório e consultório. Todo o trabalho de observação de Grof é resultado de milhares de sessões com estados não-comuns de consciência durante mais de quarenta anos de pesquisas. Inicialmente foram mais de três mil sessões com LSD, bem como o acesso a mais de dois mil relatórios de sessões conduzidas por colegas na Checoslováquia e nos Estados Unidos (Grof, 1987, p. 20-21). Após o desenvolvimento da técnica da Respiração Holotrópica, menciona em A Mente Holotrópica (Grof, 1994) o registro de mais de vinte mil sessões com pessoas de países e estilos de vida diferentes. Esse é outro dado relevante da pesquisa de Grof: o uso de estados não-comuns de consciência revela semelhanças estreitas entre indivíduos de diferentes culturas e condições socio-econômicas: “Durante os últimos dez anos, nós temos usado a respiração holotrópica com muitos milhares de participantes em nossos workshops na América do Norte, América do Sul, diversos países europeus, Austrália e Ásia, e descobrimos que ela é igualmente efetiva em todas estas áreas do mundo, apesar das grandes diferenças culturais envolvidas.” (Grof, 1997, p. 18). A reunião das observações de todo esse acervo proporcionou a Grof uma visão ampliada sobre diversos fenômenos anteriormente classificados como patológicos pela ciência tradicional 21 por escaparem dos modelos explicativos psiquiátricos. Segundo Grof, o advento das terapias psicodélicas e as técnicas de indução a estados não-comuns de consciência representa um desafio conceitual para a Psicologia e Psiquiatria ocidentais que ainda resistem em considerar os estudos realizados nessa área: 21 Consideraremos pelo termo Ciência Tradicional os modelos científicos — teóricos e práticos — que se baseiam nas premissas do paradigma newton-cartesiano, em oposição aos modelos que estão enquadrados no chamado Paradigma Emergente. (Grof, 2000). 108 “A rigidez com a qual os cientistas da corrente dominante têm lidado com as informações acumuladas por todas essas disciplinas [estudos históricos, religião comparada, antropologia, pesquisas da consciência, parapsicologia, terapia psicodélica, psicoterapias experienciais, hipnose, tanatologia] é algo que se esperaria de fundamentalistas religiosos. É muito surpreendente quando tal atitude ocorre no mundo da ciência, já que isto é contrário ao próprio espírito do questionamento científico. Mais de quatro décadas de pesquisa da consciência me convenceram de que um exame sério dos dados sobre estados holotrópicos teria conseqüências de grande alcance não apenas para a teoria e prática psiquiátrica, mas também para a científica visão de mundo ocidental. A única forma pela qual a ciência moderna pode preservar sua monística filosofia materialista é a exclusão e a censura sistemática dos dados relativos aos estados holotrópicos.” (Grof, 2000, p. 31). Na verdade, Grof precisou romper com alguns dos principais postulados do modelo newton-cartesiano, característico da ciência ocidental dos últimos 3 séculos, para poder avaliar as experiências observadas em suas pesquisas. É exatamente isso que ele apresenta em uma de suas principais e primeiras obras Além do Cérebro (Grof, 1987) em que descreve sua postura crítica diante do paradigma newtoncartesiano e sua proposta de estabelecer pontes, um “diálogo”, entre o modelo científico tradicional e o modelo emergente: “(...) a mensagem principal deste livro é que a ciência ocidental se aproxima de uma mudança paradigmática de proporções inusitadas que modificará nossos conceitos de realidade e da natureza humana, fazendo uma ponte entre conhecimentos antigos e a ciência moderna, reconciliando dessa forma a espiritualidade oriental e o pragmatismo ocidental.” (Grof, 1987, p. 11). Com os resultados mais recentes de seus estudos, Grof propõe uma revisão radical de nossas idéias sobre a consciência e a psique humana. Para ele, essa revisão deveria passar por algumas grandes categorias (Grof, 2000, p. 32): • A Natureza da Psique Humana e as Dimensões da Consciência; • A Natureza e a Arquitetura de Desordens Emocionais e Psicossomáticas; 109 • Mecanismos Terapêuticos Eficazes; • Estratégia da Psicoterapia e da Auto-exploração; • Papel da Espiritualidade na Vida Humana; • A Natureza da Realidade: Psique, Cosmo e Consciência. Uma das principais conseqüências desses estudos refere-se, certamente, à questão das diferentes Dimensões da Consciência humana. Grof questiona a relação entre consciência e cérebro utilizada pela ciência tradicional, ou seja, de que a consciência é um produto direto do cérebro, resultado de funções neurofisiológicas básicas da existência do indivíduo. Grof, obviamente, não nega a relação estreita entre certos aspectos da consciência com a estrutura física cerebral, exemplificada nos efeitos na consciência provenientes de lesões, infecções, tumores ou derrames nessa área do organismo. Entretanto, para Grof, isso não representa necessariamente que a consciência é um subproduto do cérebro. Grof apresenta, para ratificar seu ponto de vista, uma interessante analogia com um aparelho de televisão (Grof, 1987, p.15; Grof, 1994, p.17). “(...) um especialista em consertar aparelhos de televisão, ao perceber uma distorção de imagem ou som sabe, exatamente, o que há de errado e quais são as partes que devem ser trocadas ou reparadas para que o aparelho funcione bem novamente. Entretanto, ninguém encararia esse fato como prova de que é o aparelho que gera, dentro de si mesmo, os programas a que assistimos quando o ligamos. Isso é, porém, o tipo de argumento que a ciência mecanicista apresenta como prova de que a consciência é produzida pelo cérebro. (Grof, 1994, p.17). Como foi visto, em todo o seu trabalho, tanto no período em que utilizou o LSD quanto a partir do momento em que utilizou a Respiração Holotrópica, Grof sempre teve como objeto de estudo os estados não-comuns de consciência, ou seja, suas observações privilegiaram os fenômenos ocorridos em estados de ampliação da consciência para além das fronteiras usuais do tempo linear e espaço objetivo 110 considerados pela ciência tradicional. Portanto, pode sistematizar suas observações em uma nova Cartografia do psiquismo que levava em conta uma série de fenômenos desconsiderados pela ciência tradicional. Como já dito, isso exigiu um modelo mais abrangente de psiquismo que não desconsiderava as contribuições da ciência tradicional, mas tornava essa compreensão da consciência mais abrangente. Em especial, Grof identificou uma série de fenômenos com características semelhantes e agrupou-os em função dessas características diferenciais. Apesar de identificar os níveis mais associados aos sentidos humanos básicos e o nível onde se observa a psicodinâmica psicanalítica, Grof vai oferecer uma significativa contribuição na descrição dos chamados Domínios Transbiográficos: o domínio perinatal (ou início das experiências transpessoais) e o domínio transpessoal: “Conforme mencionado anteriormente, esse mapa contém, além do usual nível biográfico, dois domínios transbiográficos: o domínio perinatal, relacionado ao trauma do parto biológico; e o domínio transpessoal, que explica fenômenos tais como a experiência de identificação com outras pessoas, animais, plantas e outros aspectos da natureza. Este último domínio também é a fonte de memórias ancestrais, raciais, filogenéticas e cármicas, assim como de visões de seres arquetípicos e de regiões mitológicas. As experiências extremas nessa categoria são a identificação com a Mente Universal e com o Vazio Supracósmico e Metacósmico. Os fenômenos perinatais e transpessoais têm sido descritos através dos tempos na literatura religiosa, mística e oculta de vários países do mundo.” (Grof, 2000, p.35). Podemos identificar, aqui, uma aproximação importante entre os trabalhos de Wilber e Grof. Ambos consideram o nível extremo da consciência como sendo de uma unidade, uma espécie de consciência una, não dual, onde o indivíduo experimentaria um profundo grau de interligação e interdependência com as dimensões do universo, normalmente chamadas por esses autores, e diversos outros — Weil, Tabone, Tart etc — como cósmica. Embora Grof não se detenha em descrever essa consciência como um nível, poderemos observar, mais adiante, que 111 algumas de suas experiências transpessoais aproximam-se da descrição feita por Wilber sobre essa Consciência Cósmica. Grof resume sua cartografia em quatro níveis principais: O NÍVEL ABSTRATO E ESTÉTICO: são experiências mais superficiais, onde não se verificam conteúdos simbólicos relacionados com a personalidade do indivíduo e podem ser explicadas pela anatomia e fisiologia dos órgãos sensoriais, enquadrando-se nos conceitos newton-cartesianos desses campos de saber. O NÍVEL PSICODINÂMICO, BIOGRÁFICO OU REMEMORATIVO: as experiências desse tipo envolvem lembranças de memórias emocionalmente intensas e relevantes de qualquer período da vida do indivíduo. Podem ter conteúdo eminentemente simbólico. Os fenômenos ocorridos nessas experiências podem ser trabalhados através da estrutura teórica psicanalítica com sucesso. Aliás, Grof chega a afirmar que esse nível “é a prova laboratorial das premissas básicas da psicanálise.” (Grof apud Tabone,1992, p. 47). Porém, há uma diferença importante entre a psicoterapia experiencial profunda de Grof e a psicanálise. Na experiencial, o conteúdo do material biográfico não é apenas relembrado ou reconstruído mas plenamente vivido envolvendo as emoções, sensações físicas, percepções visuais e outros dados percebidos pelos sentidos na situação original. O NÍVEL PERINATAL E INÍCIO DAS EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAIS: Grof utiliza o termo perinatal (palavra composta greco-latina no qual o prefixo peri significa ao redor ou perto e a raiz natalis a relação de proximidade com o nascimento). Grof identificou que, apesar das alegações de que o feto não tem suficiente maturidade do córtex cerebral para registro de memórias, 112 era freqüente a ocorrência de experiências rememorativas desse período pelos indivíduos em uma sessão experiencial. Grof (1987) relata a confirmação de casos pesquisados onde o indivíduo não possuía conhecimento de detalhes do seu nascimento que, depois de vivenciados em uma sessão psicoterápica, são confirmados. Grof (1987, 1997) estabelece, ainda, uma conexão entre o nascimento biológico e as experiências perinatais, associando estágios clínicos da gestação e do parto às experiências no nível perinatal. Com isso, ele identifica quatro conjuntos de experiências conforme o período perinatal em que são vividos, ao que chamou de Matrizes Perinatais Básicas I, II, III e IV. O NÍVEL TRANSPESSOAL: Nesse nível ocorrem as experiências transpessoais propriamente ditas, ou seja, o indivíduo experimenta fenômenos que têm como denominador comum a expansão ou extensão da consciência “normal”, percebendo uma ampliação do senso de identidade além da imagem corporal e/ou da percepção espaço-temporal do estado de vigília. O primeiro nível descrito por Grof — abstrato e estético — representa, basicamente, os efeitos iniciais das experiências em estados não-comuns de consciência onde o indivíduo percebe uma certa ativação de seus órgãos sensoriais. Grof vai considerá-los, inclusive, como uma espécie de barreira que deve ser ultrapassada para dar acesso aos níveis posteriores da consciência. Normalmente, as experiências nesse nível não apresentam significado simbólico pessoal não levando a um processo de auto-entendimento e auto-exploração. Grof relata que “Alguns aspectos dessas experiências podem ser explicados a partir de certas caraterísticas anatômicas e fisiológicas dos órgãos sensoriais”(Grof, 1987, p.69) enquadrando-se nos modelos newton-cartesianos vigentes. 113 O próximo nível — o biográfico-rememorativo ou inconsciente individual — consistiria de nossas memórias de infância, adolescência e vida adulta, bem como todo o material espontaneamente esquecido ou ativamente reprimido conforme a descrição feita por Freud. Grof observa ser este material biográfico pós-natal o campo de atuação das escolas de Psicologia e Psiquiatria ocidentais tradicionais, mas destaca algumas diferenças na condução destas abordagens verbais em relação aos trabalhos vivenciais das terapias experienciais. Nessas últimas, o indivíduo não apenas relembra os eventos emocionais significativos ou os reconstrói através dos sonhos, atos falhos, parapraxias ou processos transferenciais mas revive-os como emoções, sensações físicas e demais impressões originais do evento, em uma espécie de regressão total (Grof, 2000, p.36). Ao acessarmos esse material podemos revivê-lo literalmente, isto é, com o mesmo nível de emoções, sensações físicas, percepção corporal da época em que ocorreu o episódio traumático possibilitando a liberação dos efeitos remanescentes desse trauma a partir de uma integração mais equilibrada do episódio no psiquismo. O trabalho em estados não-comuns de consciência parece acelerar grandemente esse processo. As observações dessas experiências no nível biográfico, sob esse novo enfoque, permitiu a Grof elaborar um novo insight sobre a estrutura de registro desse material traumático no psiquismo: Sistemas COEX (Sistemas de Experiência Condensada). Faremos uma breve descrição pela relevância, principalmente terapêutica, que esse sistema representa na obra de Grof. O conceito de Sistema COEX surgiu para Grof a partir do seu trabalho psicoterápico com clientes que sofriam diversas modalidades de psicopatologias severas. Ao estimular o trabalho com estados não-comuns de consciência com esses indivíduos eles começavam a reviver situações de diversos períodos de sua biografia pós-natal com significativa carga emocional e sensorial. Apesar da ênfase nos aspectos negativos, em função dos objetivos terapêuticos, os sistemas COEX também podem registrar núcleos de experiências prazeirosas. Para Grof, então: 114 “Um sistema COEX consiste de memórias com carga emocional, de diferentes períodos de nossas vidas, que se assemelham pela qualidade da emoção ou sensação física que compartilham. Cada COEX tem um tema básico que permeia todas as suas camadas e que representa seu denominador comum. As camadas individuais contêm variações desse tema básico que ocorreram em diferentes períodos da vida da pessoa. O inconsciente de um determinado indivíduo pode conter várias constelações COEX. Sua quantidade e a natureza dos temas centrais varia consideravelmente de pessoa para pessoa.” (Grof, 2000, p.37). Na verdade, ao longo de suas pesquisas, Grof observa que o sistema COEX não governa apenas o material inconsciente do nível biográfico mas pode ser considerado um princípio geral de funcionamento do psiquismo, com raízes profundas na experiência do nascimento biológico do indivíduo — que veremos em detalhes no nível perinatal — e também nos domínios mais profundos da consciência humana: “Além desses componentes perinatais, os típicos sistemas COEX têm raízes ainda mais profundas. Podem alcançar a vida pré-natal e o campo dos fenômenos transpessoais, como experiências de vida passada, arquétipo do ‘inconsciente coletivo’, e identificação com outras formas de vida e com processos universais. Minhas experiências de pesquisa com os sistemas COEX convenceram-me que não apenas servem para organizar o inconsciente individual, como eu antes imaginara, mas organizam toda a psique.” (Grof, 1994, p.42). O papel atribuído ao sistema COEX por Grof, como princípios gerais de funcionamento e organização da psique humana, revela-se de uma importância significativa nos processos psicológicos: “Os sistemas COEX desempenham um importante papel em nossa vida psicológica. Eles podem influenciar a forma pela qual percebemos a nós mesmos, a outras pessoas e ao mundo, e como nos sentimos e agimos. Eles são as forças dinâmicas por trás dos nossos sintomas emocionais e psicossomáticos, dificuldades em relacionamentos com outras pessoas e comportamentos irracionais.” (Grof, 2000, p.38). Após o nível biográfico-rememorativo ou inconsciente individual, Grof identificou o nível perinatal ou início das experiências transpessoais. Grof também se 115 refere a esse nível como nascimento e morte pois envolve experiências não necessariamente ocorridas no nascimento do indivíduo mas onde experenciou “lutas” internas ou externas, simbólicas ou reais para a manutenção da vida diante de uma ameaça. Em um certo sentido, as experiências perinatais representam verdadeiras lutas para a efetivação pela vida tendo o indivíduo que enfrentar diversas dificuldades até orgânicas do meio materno em que se encontra para alcançar, finalmente, no momento crítico do parto, sua condição externa da existência. A possibilidade de uma lembrança de episódios ocorridos durante a gestação e parto do indivíduo encontra séria restrição por parte da ciência tradicional, tendo em vista que essa considera como condição básica para os processos de memorização a completa mielização do córtex cerebral (Grof., opus cit., p.45). A despeito desse entendimento, os indivíduos revivem esse período com intensidade emocional e sensorio-motora compatíveis com os acontecimentos reais vividos, trazendo inclusive detalhes desse período que desconheciam em seus registros biográficos de memória. Tais pesquisas, dentre outras (Verny & Kelly, 1991), têm demonstrado que o parto pode ser considerado um dos traumas mais profundos da experiência humana com grandes repercussões psicológicas, comportamentais e de grande importância psicoespiritual. Além dessa observação importante sobre a capacidade de registro de memória independente do aparelho físico do indivíduo, Grof observou que as experiências comuns revividas pelos indivíduos no nível perinatal podiam ser divididas em quatro grandes grupos e que correspondiam a fases fisiológicas específicas da gestação e parto: “Apresentam-se em quatro típicos padrões experienciais ou constelações. Há uma profunda correspondência entre esses grupos temáticos 116 e os estágios clínicos do processo biológico do nascimento. Essa correspondência provou ser bastante útil para a teoria e a prática de um profundo trabalho experiencial visando postular a existência de matrizes dinâmicas hipotéticas, orientadoras do processo relacionado com o nível perinatal do inconsciente e denominadas Matrizes Perinatais Básicas (MPB).” (Grof, 1987, p.73). O estudo das Matrizes Perinatais Básicas é utilizado por Grof para identificar psicopatologias decorrentes da forma e intensidade com que o indivíduo passa por esses períodos traumáticos da sua existência. Grof vai, portanto, relacionar dimensões tanto biológicas quanto psicológicas, arquetípicas e espirituais às Matrizes Perinatais. O resumo a seguir apresenta essa correlação das Matrizes Perinatais Básicas I, II, III e IV. Primeira Matriz Perinatal Básica (MPB I): chamada também de União Primordial com a Mãe, está associada ao período que vai da concepção ao início do trabalho de parto. Nessas experiências o feto não tem percepção de fronteiras e da noção de externo e interno, sendo experienciada como flutuar num oceano ou experiências tipicamente aquáticas. Segunda Matriz Perinatal Básica (MPB II): também chamada de Engolfamento Cósmico, Sem saída ou Inferno, está associada ao início do parto biológico com as primeiras contrações mas ainda sem a abertura do colo do útero. O indivíduo tende a reviver como um sugamento para um gigantesco redemoinho, podendo também vivenciar como se todo o universo estivesse sendo engolfado. Pode ocorrer uma sensação de uma esmagadora ameaça vital, nos sentirmos presos dentro de um monstruoso pesadelo, sujeitos a enormes dores físicas e emocionais agonizantes com a sensação de desespero e desamparo totais. Uma impressão de que esta situação não terminará nunca e de que não há saída para ela. 117 Terceira Matriz Perinatal Básica (MPB III): ou a Luta de MorteRenascimento. Está associada ao início da propulsão do feto pelo canal de parto após a abertura do colo do útero. As pressões mecânicas esmagadoras vividas nesse momento parecem desencadear todo o sentido de luta pelo renascimento diante da morte iminente. Normalmente é vivida com alto nível de ansiedade e a luta ‘feroz’ que se trava parece oferecer um sentido, uma direção definida. Quarta matriz Perinatal Básica (MPB IV): ou a Experiência de MorteRenascimento. Está associada ao momento de expulsão final do canal de parto e o corte do cordão umbilical. Essa matriz se caracteriza por uma vivência que pode ser acompanhada de memórias concretas e realistas do parto biológico e todos os procedimentos usados. Atingimos uma liberação explosiva de emoções e sensações com significativo conteúdo para o indivíduo: “Reviver o parto biológico não é uma experiência da repetição simples e mecânica do evento biológico original: é também uma experiência de morte e renascimento psicoespiritual” (Grof, 2000, p.65). A sensação de morrer e a agonia durante a luta para nascer refletem a dor e a ameaça à vida presentes paradoxalmente no processo do parto biológico. O nível perinatal — descrito acima em suas matrizes básicas — representa uma interface entre o domínio biográfico inicial e o próximo domínio da consciência denominado de transpessoal. As experiências do nível perinatal parecem abrir novas perspectivas sobre os domínios e fronteiras da consciência humana para um novo patamar de fenômenos que não podem ser entendidos pelos modelos tradicionais. Quando estudadas pelo modelo tradicional newton-cartesiano essa categoria de experiências vividas pelos indivíduos tendem a ser consideradas estranhas — pois abalam suas suposições mais fundamentais — ou, na maioria das vezes, como resultados de ações patológicas. Ao considerar que a consciência não é um 118 epifenômeno da matéria não estando vinculada exclusivamente aos processos neurofisiológicos do cérebro, Grof estabelece uma nova possibilidade de explicação para esses fenômenos. Através de suas observações, Grof afirma que os fenômenos transpessoais revelam conexões entre os indivíduos e o cosmo muito mais significativas do que se podia imaginar, rompendo os limites do espaço e tempo. Para Grof: “O denominador comum do rico e ramificado grupo dos fenômenos transpessoais é a sensação que a pessoa tem de que sua consciência se expandiu além dos limites usuais do ego e transcendeu as limitações de tempo e espaço.” (Grof, 1997, p.54). Esse, aliás, o principal sentido para a utilização da expressão trans-pessoal, ou seja experiências em que se observa subjetivamente uma expansão ou extensão da consciência além dos limites do corpo e do ego, tanto na dimensão espacial como na temporal da existência. Em várias de suas obras (Grof, 1987, 1994, 1997, 2000) Grof ressalta esse aspecto das experiências transpessoais das quais destacaremos uma das principais citações do autor: “No estado ‘normal’ ou usual da consciência nós nos sentimos vivendo entre os limites do corpo físico (imagem do corpo) e nossa percepção do meio ambiente é restringida por uma cadeia, fisicamente determinada, de exteroceptores, isto é, órgãos do sentido excitados por estímulos que se originam fora do corpo. Tanto a interocepção (percepção interna) quanto a exterocepção (percepção do mundo externo) são confinadas pelos limites usuais de espaço e tempo. Em situações normais, vivenciamos fortemente apenas o momento presente e o meio ambiente que nos cerca; relembramos o passado e antecipamos o futuro ou o idealizamos. Nas experiências transpessoais, uma ou muitas das limitações acima mencionadas parecem ser transcendidas. Muitas experiências dessa categoria são interpretadas pelos sujeitos como regressão no tempo histórico e exploração de seu passado biológico ou espiritual. (...) Alguns outros fenômenos transpessoais envolvem transcendência 119 de barreiras espaciais em vez de barreiras temporais. (...) Em grande parte de experiências transpessoais a extensão da consciência parece sobrepujar o mundo fenomenal e o continuum tempo-espaço como percebemos em nossa vida diária.” (Grof, 1987, p.99). É a partir dessa reflexão que Grof passa a sistematizar as experiências transpessoais em função do conteúdo que apresentam. A preocupação de Grof não é hierárquica mas fenomenológica das experiências. Portanto, ele divide as experiências transpessoais em três grandes grupos: experiências que envolvem expansão ou extensão da consciência dentro do conceito comum de tempo e espaço; experiências que envolvem expansão ou extensão da consciência além do conceito comum de espaço e tempo; e as experiências “psicóides” (Grof, 1994) ou de Natureza Paranormal (Grof, 1997). A tabela abaixo (Grof, 2000, p.71) apresenta a descrição detalhada de todas as experiências catalogadas por Grof. “EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAIS Extensão Experiencial dentro do Espaço-Tempo e da Realidade Consensual: Transcendência de Barreiras Espaciais: • Experiência de união dual; • Identificação com outras pessoas; • Identificação grupal e consciência grupal; • Identificação com animais; • Identificação com plantas e processos botânicos; • União com a vida e toda a criação; • Consciência planetária; • Experiências com seres e mundos extraterrestres; • Identificação com todo o universo físico; • Fenômenos psíquicos envolvendo a transcendência do espaço; 120 Transcendência de Barreiras Temporais • Experiências embrionárias e fetais; • Experiências ancestrais; • Experiências raciais e coletivas; • Experiências de encarnações anteriores; • Experiências filogenéticas; • Experiências de evolução planetária; • Experiências cosmogenéticas; • Fenômenos psíquicos envolvendo a transcendência do tempo; Explorações Experienciais do Micromundo • Consciência orgânica e tissular; • Consciência celular; • Experiência do DNA; • Experiência do mundo dos átomos e das partículas subatômicas. Extensão Experiencial Além do Espaço-Tempo e Realidade Consensual: • Experiências espíritas e mediúnicas; • Fenômenos energéticos do corpo sutil; • Experiências de espíritos de animais (animais de poder); • Encontros com guias espirituais e seres supra-humanos; • Visitas a universos paralelos e encontros com seus habitantes; • Experiências de seqüências mitológicas e de contos de fada; • Experiências de divindades específicas extasiadas e coléricas; • Experiências de arquétipos universais; • Compreensão intuitiva de símbolos universais; • Inspiração criativa e o impulso de prometeu; 121 • Experiências do demiurgo e insights da criação cósmica; • Experiências de consciência cósmica; • O vazio Supracósmico e Metacósmico; Experiências Transpessoais de Natureza Psicóide: Sincronicidades (interação entre experiências intrapsíquicas e a realidade consensual) Eventos psicóides Espontâneos • Façanhas físicas sobrenaturais; • Fenômenos espíritas e mediunidade física; • Psicocinese espontânea recorrente (Poltergeist); • Ovnis e experiências de abdução por alienígenas; Psicocinese Intencional • Magia cerimonial; • Curas e feitiços; • Siddhis da ioga; • Psicocinese laboratorial.” É importante destacar que a classificação feita por Grof baseia-se, em sua maior parte, em experiências transpessoais vividas ou testemunhadas por ele próprio na pesquisa psicodélica, nas sessões de respiração holotrópica e no trabalho com pessoas que passavam por episódios espontâneos de estados não-comuns de consciência, acrescidos de alguns poucos fenômenos parapsicológicos não observados por ele nesses trabalhos mas descritos pela literatura mística ou pesquisadores modernos dessa área. Para os objetivos de nosso trabalho algumas dessas experiências são de maior relevância e serão detalhadas no próximo capítulo por envolTabela 1 - Classificação de Grof das Experiências Transpessoais 122 verem aspectos que podem ampliar a compreensão da crise ocidental bem como dos impasses decorrentes da ideologia individualista em nossa sociedade. Em todas essas experiências, um dos aspectos mais marcantes para Grof é a importância do potencial de cura e transformação nos domínios transpessoais para diversos tipos de psicopatologias consideradas severas para os moldes da ciência tradicional. Grof destaca um importante aspecto dos estados holotrópicos que desempenham fundamental importância no entendimento do potencial terapêutico das experiências transpessoais: o funcionamento de um “radar interno”. Segundo o próprio Grof: “Os estados holotrópicos tendem a empregar algo semelhante a um ‘radar interno’, que traz à consciência, automaticamente, os conteúdos do inconsciente que têm a maior carga emocional, que são psicodinamicamente mais relevantes na ocasião e que estão mais disponíveis para o processamento consciente.” (Grof, 2000, p.42). Este mesmo princípio é utilizado em diversas outras abordagens mais atuais — como a Orientação Naturalista da hipnose ericksoniana (Dr. Milton Erickson) — que consideram que cada indivíduo possui internamente todos os recursos para superar as dificuldades e reencontrar o equilíbrio psíquico (O’Hanlon, 1994, p.19; Rossi, 1997). É preciso deixar claro que o presente trabalho apresenta um pequeno resumo da obra e das contribuições de Grof sobre as novas perspectivas da consciência e psiquismo humanos, não pretendendo ser uma síntese completa dessas idéias. Os leitores poderão se utilizar das referências bibliográficas para aprofundar suas informações e reflexões dobre a pesquisa de Grof, já que seria inviável, pelos nossos objetivos, reproduzir em detalhes todas as propostas e reflexões desse autor. Destaco, principalmente as obras Além do Cérebro, Aventura da Autodescoberta e Mente Holotrópica. Para os que desejarem ter uma visão geral sobre o pensamento e conteúdos das pesquisas de Grof, remeto à sua mais recente obra A Psicologia do Futuro. 123 5.3.3- A Escolha por Grof e Wilber Mesmo não sendo nosso objetivo refletir sobre as pesquisas da Psicologia Transpessoal, foi necessário estendermo-nos na apresentação dessa proposta já que os seus elementos serão necessários para a discussão que se seguirá. Uma das grandes diferenças que já podemos identificar entre os trabalhos de Ken Wilber e Stanislav Grof está no referencial de que se utilizaram para desenvolver suas teorias e propostas. Apesar de se aproximarem de forma significativa no estabelecimento dos principais níveis da consciência, Grof parte de uma extensa investigação prática — a partir de suas pesquisas, inicialmente com o LSD e posteriormente com a Respiração Holotrópica — para, em seguida, sistematizar suas observações em uma teoria. Já Wilber parte de uma reflexão intelectual, filosófica e religiosa comparativa entre as tradições orientais e as principais escolas do ocidente. Uma outra diferença que pode ser destacada é a de que a classificação proposta por Grof é fenomenológica e não hierárquica, como a de Wilber. A escolha por esses teóricos da Psicologia Transpessoal considerou uma certa complementaridade entre as duas propostas. Wilber tem o estudo especulativo intelectual abrangente que enfatiza os níveis biográficos e pós-natais que podem ser comparados com as principais escolas psicológicas e sociológicas da ciência tradicional, mas não destaca as faixas transpessoais apesar de introduzi-las. Já Grof, enfoca principalmente essas faixas transpessoais pois seu método de trabalho objetivava exatamente os estados não-comuns de consciência. Poderíamos dizer que a associação dos dois nos oferece uma dimensão ampliada das novas tendências de compreensão do indivíduo, sua psique e sua consciência ratificando o interesse por essa escolha para os objetivos desse trabalho. 124 Outra colocação que se faz importante está relacionada à dificuldade que tivemos de estabelecer um critério de escolha dos autores do Movimento Transpessoal que pudessem ser representantes desse pensamento. Diante da diversidade de obras encontradas, tivemos que proceder a uma escolha que considerasse a estruturação do pensamento, sua aproximação com o tema da dissertação, seu reconhecimento no próprio Movimento Transpessoal, consistência, coerência etc.. É importante frisar que existem diversas outras contribuições dentro dessa nova abordagem que poderiam ser utilizadas, cada uma com sua especificidade. A escolha por esses teóricos também não representa nossa concordância irrestrita com seus pensamentos. O que pretendemos é, exatamente, poder fazer uma discussão crítica entre as posturas que foram apresentadas que se relacionem, de alguma forma, com a crise da sociedade ocidental. A partir da escolha e recorte que fizemos, nosso desafio é investigar os desdobramentos teóricos que a Psicologia e o Movimento Transpessoais vêm produzindo, buscando maiores e melhores elementos para o “Diálogo” a que nos propomos. Talvez a dicotomia Indivíduo / Sociedade que vem dividindo, em alguns momentos, o pensamento ocidental, possa encontrar uma nova forma de leitura onde o Indivíduo é a base mas com a consciência de integração com os outros seres que coabitam seu mundo e o meio em que vive — Sociedade — modelo que não admite o sucesso e felicidade de um ser em detrimento da felicidade de outro ser. Algumas perguntas sobre a liberdade e a igualdade absolutas, sobre a exigência de auto-suficiência e competitividade deverão ser refeitas no nosso “diálogo”. Também os valores que são encontrados nos indivíduos que passaram por experiências transpessoais poderão oferecer material de reflexão para a compreensão de nossa crise da sociedade contemporânea. Para Grof (1997-a, p. 237): 125 “Em última análise, os problemas que enfrentamos não são, em sua natureza, meramente econômicos, políticos ou tecnológicos. Todos eles são reflexos do estado emocional, moral e espiritual da humanidade contemporânea. (...) Os valores das pessoas que viveram fortes experiências transformadoras e tiveram êxito em aplicá-las à vida cotidiana demonstram mudanças bastante significativas. Esse progresso revela-se muito promissor em termos do futuro do mundo, já que representa um abandono das características destrutivas e autodestrutivas da personalidade e uma emergência daquelas que promovem a sobrevivência individual e coletiva.” O presente trabalho não pretende uma compreensão romântica ou moralizadora da crise da sociedade contemporânea, mas uma reflexão com base na contribuição de autores com significativo percurso acadêmico e com trajetória expressiva em termos de publicações na área da transpessoalidade, como pode ser verificado no ANEXO II ao final desse trabalho. 126 CAPÍTULO 6 O OLHAR DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL “A ciência moderna desenvolveu eficazes meios que poderiam resolver a maior parte dos problemas urgentes no mundo atual — combater a maior parte das doenças, eliminar a fome e a pobreza, reduzir a quantidade de lixo industrial e substituir os combustíveis fósseis destrutivos por fontes de energia limpas e renováveis. Os problemas que se interpõem não são de natureza econômica ou tecnológica: suas fontes mais profundas encontram-se dentro da personalidade humana. Por causa disso, recursos inimagináveis têm sido desperdiçados no absurdo da corrida armamentista, nas lutas por poder e na busca de ‘crescimento ilimitado’. Esse motivo também impede uma mais apropriada distribuição de riqueza entre indivíduos e nações, assim como uma reorientação de preocupações puramente econômicas e políticas para prioridades ecológicas que são críticas para a continuidade da vida no planeta. (...) As estratégias usadas para aliviar essa crise estão desde o início enraizadas na mesma ideologia que a criou. Em última análise, a atua crise global é basicamente de natureza psicoespiritual: ela reflete o nível de evolução de consciência da espécie humana. É, portanto, difícil imaginar que ela possa ser resolvida sem uma radical transformação interna da humanidade, em larga escala, e sua elevação a um nível mais alto de maturidade emocional e consciência espiritual.” (STANISLAV GROF) 127 Como pudemos perceber, a Psicologia Transpessoal oferece uma nova perspectiva no entendimento da noção de indivíduo. Ampliando a compreensão dos níveis de expressão do ser humano, esse novo saber possibilita considerar o indivíduo como um ser integrado — interrelacionado e interdependente — dos demais níveis da experiência humana e das formas de vida com as quais convive — humanas e não-humanas. A descrição das mudanças de comportamento e de valores promovidas por aqueles que passam por experiências transpessoais, espontâneas ou provocadas, não só no sentido da cura de psicopatologias mas, também, com um nível de maior qualidade na integração e interrelação na vida familiar e social, nos levam a cogitar sobre os seus possíveis desdobramentos sociais. Para os objetivos de nosso trabalho, oferece material de reflexão sobre os fatores que vêm determinando os aspectos da crise da sociedade contemporânea em suas características mais importantes. A tendência da ciência tem sido a de trabalhar com uma prevalência da noção de indivíduo influenciada pelas escolas psicológicas que priorizam a atuação do ego, seja freudiano ou de outras denominações que representam essa instância do psiquismo, na determinação dos comportamentos e condutas pessoais, evidenciando o individualismo, o desejo de consumo atendendo às necessidades externas, a realização pessoal, a auto-suficiência e o isolamento. A Psicologia Transpessoal permite que a consciência desloque-se para outros níveis onde há uma maior integração com as demais dimensões da existência — biológico humano e não-humano, social, cultural, existencial, espiritual — rompendo com a prevalência do indivíduo isolado do seu contexto existencial mais amplo. 6.1- UMA OUTRA CONCEPÇÃO DE INDIVÍDUO Como podemos depreender da apresentação dos dois exemplos de cartografia da consciência utilizados pelos autores transpessoais mencionados, existe uma 128 série de características comuns a essas abordagens sobre a “composição” da consciência humana. Essas características acabam por oferecer uma nova concepção de indivíduo e, para os objetivos do nosso trabalho, são de fundamental importância no diálogo que visa a compreensão da crise da sociedade ocidental atual. Esboçaremos, então, um resumo das principais características da nova concepção de indivíduo para podermos refletir sobre as dimensões sociais do “novo indivíduo” e as possibilidades de entendimento da crise. Um ponto que deve, primeiramente, ser abordado diz respeito à dificuldade que experimentam os indivíduos inseridos em uma cultura específica, em um código lingüístico e simbólico específico, em lidar com uma gama de experiências que parecem fora da realidade considerada “normal”. Portanto, é preciso levar em consideração nossa dificuldade de apreensão de termos e experiências em estados não-comuns de consciência já que estamos inseridos em um sistema de pensamento e conhecimento que valoriza apenas as experiências da chamada consciência de vigília. Sobre isso Daniel Goleman diz que: “Nossa realidade cultural normativa é sujeita a especificidade de estado. Na medida em que a “realidade” é uma convenção validada por consenso, apesar de arbitrária, um estado alterado de consciência pode representar um modo anti-social, rebelde, de ser. (...) Embora o sistema de valores culturais que levou à preeminência do estado de vigília em detrimento dos estados alterados (exceto a intoxicação alcoólica) tenha se demonstrado funcional em termos de crescimento econômico — por exemplo —, ele também condenou a nossa cultura a uma relativa falta de sofisticação em termos de estados alterados de consciência (EAC).” (Goleman, in Walsh & Vaughan, 1997, p.33). Portanto, parece-nos importante lançar mão da tolerância ativa exigida nos trabalhos transdisciplinares para interagir com um novo conjunto de termos e conceitos estabelecido por essas pesquisas. 129 Uma das características comuns aos modelos de consciência do indivíduo na Psicologia Transpessoal é a visão pluridimensional da consciência em diversos níveis diferenciados e interligados. Todos os autores consideram a consciência estratificada em níveis diferenciados e que possuem características próprias, apesar de todos enfatizarem que as fronteiras entre os níveis não são precisamente definidas. Como vimos, mesmo com abordagens diferentes, Grof e Wilber partem do mesmo princípio de consciência pluridimensional. Para Charles Tart (1997) a consciência pode ser decomposta em muitas partes que funcionam conjuntamente, formando um sistema composto de estruturas, funções e subsistemas relativamente permanentes do psiquismo. A possibilidade de percepção desses componentes da consciência depende do direcionamento do que, normalmente, chamamos de atenção/percepção. Um dos desdobramentos dos aspectos da visão pluridimensional refere-se à interligação entre os níveis de consciência. Tendo em vista que todos os níveis são expressão de uma mesma origem ou fonte básica (Consciência Cósmica), a diferença existente entre eles é de certa forma ilusória. A Psicologia Transpessoal considera, então, a consciência como um continuum. Para Wilber: “Os níveis do Espectro da Consciência não são de modo algum descontínuos — como qualquer espectro, eles se fundem infinitamente entre si.” (Wilber, 1997, p.39). Já Grof, utilizando sua própria nomenclatura para a diferença de estados de consciência, considera o indivíduo como um campo de consciência de amplas proporções: o campo de consciência hilotrópica e o campo de consciência holotrópica. Segundo o próprio Grof: 130 “A pesquisa moderna indica claramente que os seres humanos têm uma estranha natureza paradoxal. Parece apropriado pensar nas pessoas como objetos newtonianos separados, nos contextos tradicionalmente explorados pela ciência mecanicista — como máquinas biológicas feitas de células, tecidos e órgãos. Contudo, as descobertas recentes confirmam as afirmações da filosofia perene e das grandes tradições místicas de que os humanos podem também funcionar como campos infinitos de consciência, transcendendo as limitações de tempo, espaço e causalidade linear. Esta imagem tem seu paralelo subatômico no famoso paradoxo partícula-onda em relação à matéria e à luz descrito por Niels Bohr no princípio da complementaridade. Estes dois aspectos complementares da natureza humana estão conectados experiencialmente com os dois modos de consciência diversos que foram mencionados brevemente (pp. 52,53). O primeiro aspecto pode ser denominado como consciência hilotrópica, que é traduzido como consciência orientada pela matéria. O nome deriva do grego hylé = matéria e trepein = mover-se na direção a. É o estado mental que experienciamos na vida cotidiana, e que a psiquiatria ocidental considera como o único normal e legítimo — aquele que reflete corretamente a realidade objetiva do mundo. No modo de consciência hilotrópico, um indivíduo se experiência como uma entidade física sólida, com limites definidos e com uma amplitude sensorial limitada. O mundo parece formado por objetos materiais separados e tem características claramente newtonianas: o tempo é linear, o espaço é tridimensional, e todos os eventos parecem ser governados por cadeias de causa e efeito. (...) Contrastando com o modo hilotrópico, estreito e restrito, a variedade holotrópica envolve a experiência de si mesmo como um campo de consciência potencialmente ilimitado, que tem acesso a todos os aspectos da realidade sem a intermediação dos sentidos. Holotrópico é traduzido literalmente como a busca da totalidade ou como movimento para a totalidade (de grego holos = todo e trepein = em direção a). (...) Estes dois modos parecem um jogo dinâmico na psique humana. A consciência hilotrópica parece ser atraída por elementos do modo holotrópico e, vice-versa, as formas holotrópicas mostram uma tendência a se manifestar na consciência cotidiana.” (Grof, 1997, p.223-225). 131 As inúmeras experiências transpessoais estudadas pela Psicologia Transpessoal levam também a uma nova concepção de consciência do indivíduo, a de que a consciência humana não se reduz aos mecanismo neurofisiológicos do organismo biológico: “Mais de três décadas de estudo sistemático da consciência humana levaram-me a conclusões que muitos psiquiatras e psicólogos tradicionais poderiam julgar implausíveis ou totalmente incríveis. Hoje, acredito firmemente que a consciência é mais que um subproduto dos processos neurofisiológicos e bioquímicos do cérebro humano. Vejo a consciência e a psique humanas como expressões e reflexos de uma inteligência cósmica que permeia todo o universo e toda a existência. Somos também campos ilimitados de consciência transcendendo tempo, espaço, matéria e causalidade linear.”(Grof, 1994, p.33-34). A possibilidade de se ampliar a concepção da consciência humana para além dos mecanismos neurofisiológicos do cérebro, sustenta a hipótese da Psicologia Transpessoal de que as experiências transpessoais — onde há uma transcendência das dimensões de tempo, espaço e realidade objetiva (associada aos sentidos básicos) — podem referir-se a eventos ocorridos fora do contexto biográfico do indivíduo, ou seja, experiências arquetípicas, raciais, de outras espécies da natureza, experiências ancestrais ou até de supostas vidas passadas do indivíduo. Em todas as propostas de formulação de cartografias do psiquismo constatamos, basicamente, que os autores consideram a visão pluridimensional a partir de dois extremos distintos: em um extremo uma consciência una, não dual do universo e, no outro, uma consciência de partes específicas da personalidade pessoal. Lançaremos mão da posição, representativa dessa opinião, de Wilber: “(...) o Espectro da Consciência é uma visão pluridimensional da identidade humana, ou seja, cada nível do Espectro é marcado por sensos de identidade individual diferentes e facilmente reconhecí- 132 veis, que vão desde a Identidade Suprema da consciência cósmica até o estreito senso de identidade que se associa à consciência egóica, passando por diversas gradações ou faixas.”(Wilber, in Walsh & Vaughan, 1997, p. 35). (grifos nossos). Esses são, então, outros aspectos comuns nas propostas de cartografia transpessoal que abordaremos a seguir: consciência cósmica e senso de identidade de cada nível de consciência. Os níveis associados à dinâmica pessoal do indivíduo — como os níveis Persona, Ego e Existenciais de Wilber ou os Níveis Estéticos e Psicodinâmicos de Grof — podem ser mais facilmente apreendidos pois representam o objeto de estudo das abordagens psicológicas ocidentais tradicionais, apesar de aqui serem tratados de forma diferenciada. As maiores dificuldades parecem estar na identificação e compreensão do conceito de Consciência Cósmica — referido por Grof e por Wilber (Nível da Mente) —, bem como na definição operacional de aspectos objetivos de avaliação da experiência de um estado de consciência cósmica. Para Weil (1989): “Entre as características isoladas por diversos autores, podemos citar: Unidade: é o desaparecimento da percepção dual Eu-Mundo. Inefabilidade: a experiência não pode ser descrita com a semântica usual. Caráter noético: um senso absoluto de que o que é vivido é real, às vezes muito mais real do que a vivência quotidiana comum. Transcendência do tempo-espaço: as pessoas entram numa outra dimensão; o tempo não existe mais e o espaço tridimensional desaparece. Sentido de sagrado: o senso de que algo grande, respeitável e sagrado está acontecendo. Desaparecimento do medo da morte: a vida é percebida como eterna, mesmo se a existência física é transitória. Mudança de sentido do sistema de valores e de comportamento: muitas pessoas mudam os seus valores no sentido dos valores B de Maslow (Beleza, Verdade, Bondade etc.) Há uma subestimação pro- 133 gressiva dos valores ditos materiais e do apego ao dinheiro. O ‘Ser’ substitui o ‘Ter’.” (Weil, 1989, p.10). Como primeiro e mais básico nível de consciência, a consciência cósmica se caracteriza por um senso de identidade característico onde o indivíduo percebe sua identificação com o universo: “Neste nível, estamos identificados com o universo, o Todo — ou melhor, nós somos o Todo. Segundo a psicologia perene, este nível não é um estado anormal de consciência, mas antes o único estado real de consciência, todos os demais constituindo essencialmente ilusões.” (Wilber, 1997, p.37). Descrevendo as características da experiência de consciência cósmica, Weil (1989) traz nova contribuição para o entendimento do conceito: “O termo traduz uma experiência em que determinadas pessoas percebem a unidade do Cosmos, se percebem dentro dela (e não fora, como muitos poderiam imaginar); a experiência é acompanhada de sentimentos de profunda paz, plenitude, amor a todos os seres. Compreende-se de um relance o funcionamento e a razão de ser dos universos, a relatividade das três dimensões do tempo e do espaço, a insignificância e ilusão do mundo em que vivemos, os erros monumentais cometidos por muitos seres humanos; uma iluminação acompanha muitas destas percepções. A morte é vista apenas como uma passagem para outra espécie de existência e o medo dela desaparece totalmente. Ela pode ser e é, em geral, o resultado de uma longa e lenta evolução; às vezes, no entanto, ela constitui o início de uma profunda transformação no sentido dos valores mais elevados da humanidade; neste último caso ela acontece em momento inesperado.”(Weil, 1989, p.19). A partir desse nível básico de consciência, cada autor irá privilegiar um determinado critério para relacionar os níveis componentes da consciência. Em cada um deles, se manifestará um determinado senso de identidade, ou seja, o indivíduo estará identificado com diferentes dimensões da realidade. De todos os níveis já apresentados anteriormente das cartografias de Grof e Wilber, os de maior impor- 134 tância nesse ponto de nosso trabalho são os chamados Níveis ou Faixas Transpessoais. A importância desses níveis está na possibilidade de ampliação do senso de identificação além dos critérios associados exclusivamente ao organismo físico, como o próprio nome sugere “além do pessoal”, transcendendo as fronteiras usuais do corpo e do ego. Wilber afirma que: “Nela [Faixa Transpessoal], embora não se tenha consciência da própria identidade com o Todo, a identidade não está confinada aos limites do organismo individual.”(Wilber, 1997, p.37). Para Grof, nossa consciência comum está marcada pelo estado hilotrópico (material, pessoal e individual) e a ampliação dos níveis de consciência, pelos estados holotrópicos (espiritual, transpessoal e cósmico). Portanto, as experiências transpessoais representam a superação das barreiras sensoriais ou da nossa percepção diária do mundo, onde vivemos uma condição de relativa separatividade da natureza, dos objetos, dos animais e dos outros indivíduos: “A natureza extraordinária dos fenômenos transpessoais torna-se óbvia quando os comparamos com a nossa percepção diária do mundo e das limitações que consideramos obrigatórias e inevitáveis. No estado comum ou normal da consciência, percebemos a nós mesmos como corpos materiais sólidos e a nossa pele como a fronteira e a interface com o mundo exterior. Nas palavras do famoso escritor e filósofo Allan Watts, um intérprete e divulgador dos ensinamentos orientais no Ocidente, isto leva-nos a acreditar em ‘egos encapsulados pela pele’. (...) Nos estados transpessoais da mente, todas essas limitações parecem ser transcendidas. Podemos nos sentir como uma atividade energética ou um campo de consciência que não está confinado a um recipiente físico. Isso pode se desenvolver mais para a identificação com a consciência de outras pessoas, grupos de indivíduos ou até mesmo com toda a humanidade. O processo pode se estender além dos limites humanos e incluir vários animais, plantas e até materiais inorgânicos e acontecimentos.” (Grof & Grof, 1995, p.149-150). 135 Em resumo, podemos afirmar que os principais aspectos comuns nas pesquisas com estados não-comuns de consciência e que geraram diversos modelos de cartografia do psiquismo são: • Visão pluridimensional da consciência; • Consciência como um continuum; • Consciência não é um epifenômeno da matéria; • Consciência Cósmica como base da estrutura; • Senso de identidade diferenciado em cada nível de consciência; • Níveis, Faixas e Experiências Transpessoais. A partir desse resumo, iremos destacar algumas características específicas de diferentes cartografias na tentativa de introduzir uma visão transpessoal dos fenômenos sociais e, posteriormente, podermos estabelecer um entendimento para a crise da sociedade ocidental atual com base nessa concepção de indivíduo. 6.2- O INDIVÍDUO IDENTIFICADO COM O GRUPO E A HUMANIDADE: INTERDEPENDÊNCIA E INTERLIGAÇÃO A citação anterior de Grof, sobre a expansão dos limites usuais da realidade objetiva ocorrida nas experiências transpessoais, traz à tona uma possibilidade de reflexão para a questão da crise social. Em Aventura da Autodescoberta (1997), Grof faz uma detalhada descrição das principais experiências transpessoais observadas ao longo de suas pesquisas, apresentadas acima. Como pode ser visto, as experiências transpessoais se dividem em três grandes categorias: 136 a) Expansão Experiencial Dentro da Realidade e do Espaço-Tempo Consensuais; b) Extensão Experiencial Além da Realidade e do Espaço-Tempo Consensuais; c) Experiências Transpessoais de Natureza Paranormal (ou Psicóide). Nossa atenção se prenderá, nesse momento, à categoria onde há uma transcendência das barreiras consensuais de espaço e tempo. A principal característica dessa categoria de experiências transpessoais está, como o próprio nome diz, no rompimento das barreiras usuais da realidade e do tempo-espaço percebidos pela consciência de vigília. Dentre essas, nos interessam as experiências de Transcendência dos Limites Espaciais. Segundo Grof: “As experiências transpessoais que envolvem transcendência de barreiras espaciais sugerem que os limites entre o indivíduo e o resto do universo não são fixos e absolutos. Sob circunstâncias especiais é possível identificar-se vivencialmente com qualquer coisa no universo, incluindo o próprio cosmo.” (Grof, 1997, p.60). Grof começa por relatar experiências onde o indivíduo é capaz de perceber-se em união dual com outra pessoa — Experiência da Unidade Dual. Nessa experiência, o indivíduo percebe uma dissolução e fusão dos limites do ego corporal com outra pessoa em um estado de unidade e totalidade, mas mantendo a consciência de sua própria identidade. Grof identifica muitas dessas experiências nos relatos de vivências de memórias perinatais, principalmente as de fusão simbiótica com o organismo materno (amamentação, p.ex.). Outra experiência relatada é a Identificação com Outras Pessoas. Muito próxima da anteriormente descrita, essa envolve a imagem corporal, as sensações 137 físicas, as reações emocionais e atitudes, os processos de pensamento, as lembranças etc., em diferentes formas, graus e níveis de identificação. Esta identificação pode estar associada a figuras parentais na história biográfica de experiências importantes do indivíduo, além de figuras famosas históricas e públicas. Uma das experiências que mais nos interessa desse quadro é a da Identificação Grupal e Consciência Grupal. Neste subgrupo Grof identifica uma experiência característica de identificação onde os limites de consciência se dissolvem de tal forma que o indivíduo passa a ter a sensação de fazer parte de todo um grupo de pessoas com características comuns: raciais, culturais, nacionais, ideológicas, políticas, profissionais, qualidade da experiência física e emocional ou a situação e o destino que uniram essas pessoas: “A fusão progressiva de limites pode resultar em experiências de identificação com um grupo social ou político, ou com a população de todo um país ou continente, ou com todas as pessoas que pertencem a uma raça específica, ou com os crentes de uma grande religião. No extremo, é possível identificar-se com a experiência de toda a humanidade e toda a condição humana — com sua alegria, raiva, paixão, tristeza, glória e tragédia.”(Grof, 1997, p.65). Esse nível de identificação pode, em alguns raros casos, chegar aos limites da totalidade da vida no planeta, incluindo toda a humanidade, a flora, a fauna etc. A experiência pode levar o indivíduo a uma percepção ampla dos complexos processos da vida ou a manifestar a impressionante inteligência cósmica criativa que rege o universo. Para Grof: “Algumas vezes, a experiência de identificação com toda a vida é apenas horizontal, envolvendo todas as interações e interdependências complexas das diversas formas de vida, em todas as trocas de seus sinergismos e antagonismos que constituem a ecologia planetária.(...) Este tipo de experiência pode resultar numa profunda compreensão das leis cósmicas e naturais, numa percepção ecológica ampliada, e numa grande sensibilidade aos problemas criados pelo desenvolvimento tecnológico e pela industrialização acelerados.”(Grof, opus cit., p.74). 138 Para dar maior clareza à abrangência e repercussão de um desses tipos de experiência para o indivíduo, reproduziremos um dos relatos de caso de um psiquiatra que passou por uma sessão com LSD, tendo essa sessão ocorrido pouco tempo após uma visita de cinco semanas à Índia: “Neste ponto, eu fui inundado pelas lembranças de minha recente viagem à Índia, vivenciando novamente o quanto fui profundamente tocado pela amplitude de existência incrivelmente vasta que pode ser encontrada naquele país — desde a miséria profunda até a beleza atemporal da arquitetura e escultura sublimes dos templos e as mais elevadas realizações do espírito humano. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, a ênfase da minha experiência mudou. Em vez de ser um visitante e um observador, eu me tornei realmente identificado com aquilo que eu estava percebendo. E, então, o espectro da minha experiência foi além da extensão de minhas lembranças reais da Índia. Eu percebi que eu havia me tornado O POVO DA ÍNDIA! Por mais difícil que possa ser imaginá-lo no estado de consciência cotidiano, eu sentia que era um imenso organismo cujas ramificações e elementos constituintes eram os incontáveis milhões de pessoas que habitam o subcontinente da Índia. A melhor comparação que posso encontrar é com o corpo humano. Cada célula é, de alguma maneira, uma entidade separada, mas é também uma parte infinitesimal do organismo total. E a consciência e a autopercepção refletem o todo, não as partes individuais. De uma forma semelhante, eu era uma única e imensa entidade consciente — a população da Índia. Contudo, ao mesmo tempo, eu estava me identificando também com indivíduos leprosos e mendigos aleijados nas ruas de Bombaim e Calcutá, mascates vendendo cigarros bidi ou nozes, criancinhas famintas com câncer na boca, ou morrendo nas sarjetas, multidões piedosas realizando suas cerimônias de purificação no Ganges ou cremando seus parentes nos ghâts de cremação em Benares, os sadhus despidos repousando em samadhi no gelo e na neve do Himalaia, confusas noivas adolescentes unindo-se a estranhos em cerimônias de casamento combinados por suas famílias, e os marajás poderosos e fabulosamente ricos. Toda a glória e a miséria da Índia apareceram em minha experiência como os diversos elementos de um organismo cósmico, uma divindade de proporções imensas cujos milhares de braços estavam tocando e tornando-se todos os aspectos possíveis de minha existência. Uma profundidade e amplitude de sensações inimagináveis preencheu todo o meu ser; eu senti uma conexão indescritível com a Índia e seu povo.” (Grof, 1997, p.66). 139 A última experiência que gostaríamos de destacar do conjunto apresentado por Grof em Aventura da Autodescoberta, é a chamada Consciência Planetária. Nessa classe de experiências os indivíduos vivenciam uma consciência que abrange todos os aspectos do planeta Terra incluindo aspectos geológicos, a biosfera com todas as formas de vida, inclusive os humanos: “Deste ponto de vista, toda a Terra parece ser um organismo complexo, uma entidade cósmica cujos diversos aspectos — geológico, biológico, psicológico, cultural e tecnológico — podem ser vistos como manifestações de um esforço constante para alcançar um nível de evolução, integração e auto-realização mais elevado.”(Grof, 1997, p.78). Afirmações desse tipo, vindas de pessoas das mais diferentes formações culturais e sociais, convergem para estudos que sugerem, a partir de diversas evidências, a possibilidade de se considerar a Terra como um organismo vivo e inteligente (Roszak, 1978; Bateson, 1979; Lovelock, 1979; Russel apud Grof, 1997, p. 79; Lovelock apud Thompson, 1990). Quais seriam as contribuições que essa forma de experiência transpessoal poderia oferecer ao nosso estudo? Ao observarmos o conteúdo dos relatos dessas experiências e partindo da hipótese de que a estrutura da consciência se dê, efetivamente, em níveis estruturados, como afirmam esses autores respaldados por suas pesquisas, podemos supor que esses relatos refletem a existência de um determinado nível de consciência em que o indivíduo se identifica com outras pessoas, grupos com características afins, com a humanidade, com os diversos processos planetários e com a própria vida. Podemos, então, inferir que, em um nível de consciência diferente do comumente vivenciado pelo indivíduo, podemos estar em contato com a situação ou condição de grupos sociais maiores como a nação, a raça, classe econômica etc. ou, de uma forma mais geral, com a sociedade. Essa afirmação pode oferecer importante subsídio para uma compreensão de 140 processos psicossociais onde há engajamento e participação de indivíduos em “causas” específicas, mobilizados por sentimentos e atitudes aflorados de forma repentina. Podemos supor que, nesses casos, houve um acesso a um nível de consciência de grupo que resulta em uma mobilização de valores e comportamentos compatíveis com essa nova atitude. É comum a referência à descoberta ou eclosão de uma consciência ecológica ou movimentos de consciência negra, por exemplo, talvez refletindo o acesso natural de pessoas — nem sempre ligadas aos grupos específicos — às necessidades, sofrimentos, discriminações etc. percebidos pelos seus componentes ou pelo grupo como um todo (na caso da consciência ecológica, a própria necessidade da humanidade de sobrevivência, bem como da Terra enquanto supostamente “organismo” vivo). Como desenvolveremos mais à frente, é possível que aspectos da crise como a perda de referenciais de vários tipos e a angústia existencial — que levaram muitos indivíduos bem situados, materialmente falando, às chamadas “revoluções silenciosas” — possam expressar conflitos íntimos comuns a indivíduos que já pressentem um nível de consciência social mais ampla — ainda inconsciente — sem ainda se darem conta disso conscientemente. 6. 3 - A DINÂMICA HORIZONTAL E VERTICAL DAS ESTRUTURAS (KEN WILBER) Julgamos importante, nesse ponto de nosso trabalho, apresentar algumas reflexões sobre os desdobramentos sociológicos dessa nova concepção de indivíduo. Iremos nos basear no trabalho de Ken Wilber que, principalmente na obra Um Deus Social (Wilber, 1987), apresenta a possibilidade de análise sociológica a partir dos estudos transpessoais. Wilber parte de seu modelo do Espectro da Consciência aplicando-o 141 como uma estrutura de desenvolvimento para poder avaliar os diversos níveis de interação social. Parte da análise das diferentes formas de conhecimento, associando-as aos níveis da estrutura de desenvolvimento do indivíduo passando a compará-las com a evolução das religiões. Sua opção é por uma análise das respostas psicológicas e sociológicas ao movimento religioso buscando um entendimento das interações sociais. Primeiramente, Wilber analisa as principais respostas sociológicas que, segundo ele, têm sido oferecidas ao movimento religioso. A religião pode ser vista a partir de uma Teoria de Primitivização, onde é considerada como um estágio primitivo ou inferior do desenvolvimento humano — deslocando-se, na evolução histórica, da religião mítica para a metafísica e, posteriormente, para a ciência racional. O Funcionalismo que tende a considerar a religião como parte da sociedade, sendo analisada pela função útil ou necessária na construção da sociedade. A Hermenêutica Fenomenológica trata o símbolo religioso exatamente pelo o que ele diz ser e só pode ser compreendido a partir de uma interpretação empática. O Estruturalismo de Desenvolvimento defende que as estruturas psicológicas desenvolvem-se de forma hierárquica, semelhante ao desenvolvimento histórico do pensamento religioso. A partir dessas abordagens, Wilber propõe uma Abordagem Geral onde existe uma hierarquia não somente de desenvolvimento psicossocial mas também de desenvolvimento religioso autêntico, uma incorrendo precisamente na outra, como extremidades de um único espectro. Wilber acaba considerando que determinada experiência religiosa pode ser hierarquizada em função do nível do espectro de consciência que representa. Portanto, para Wilber, o racionalismo científico — característico da sociedade ocidental atual — não seria o último estágio da estrutura de desenvolvimento humano, mas sua base necessária para estágios hierarquicamente mais elevados ou, por ele chamados transracionais. 142 Diante da comparação da evolução filogenética com a ontogenética, Wilber descarta a conclusão de alguns autores de que o pensamento religioso seria expressão das fases imaturas / infantis, pré-pessoais ou pré-racionais do indivíduo. Esses autores tratam a religião como uma estrutura entre outras e não algo potencialmente partilhado por todas as outras estruturas, daí suas conclusões de que “o crescente desenvolvimento histórico mostrará claramente uma eventual religiosidade decrescente.”(Wilber, 1987, 42) já que a ciência racional juntamente com o raciocínio operacional formal e hipotético-dedutivo está no topo da hierarquia. A premissa implícita é de que não há uma estrutura de consciência religiosa altamente desenvolvida ou pelo menos não tanto quanto é a racional-científica. Wilber (Wilber, 1987, p.45) vai defender a existência de estágios de estruturalização superiores ao pensamento operacional formal: a) Ontogeneticamente: o indivíduo pode evoluir para estágios superiores de consciência ainda não especificados no pensamento operacional formal do ocidente; b) Filogeneticamente: evolução da cultura humana contínua enfrentando níveis adicionais e superiores de estruturalização (r)evolucionária. São as estruturas transracionais. Na sua pesquisa, Wilber passa a buscar relações com as tradições orientais onde pudesse encontrar descrições do que poderiam ser os níveis transracionais. Utiliza primeiramente os sistemas psicológicos do budismo e do hinduísmo, explorando depois as repercussões destes no sufismo, na cabala, no neoconfucionismo, no cristianismo místico e outras tradições esotéricas. Ficou surpreso ao verificar que estas tradições descreviam, sem tantos detalhes, as características gerais da estrutu- 143 ra de desenvolvimento ocidentais em níveis (chamada por ele de base ortodoxa) acrescentando outros níveis ‘superiores’ em termos de organização e de integração estrutural da consciência “e que esses estágios manifestam de maneira crescente o que só pode ser chamado de tom espiritual ou transcendental.” (Wilber, 1987, p.47). Acrescenta, então, aos níveis da psicologia do desenvolvimento ortodoxa, novos níveis compatíveis com os níveis transpessoais de seu Espectro. Sua nova proposta de estrutura do desenvolvimento humano seria, então, formado pelos 6 (seis) primeiros níveis da base ortodoxa acrescido de mais 3 (três) níveis transpessoais: 1 - Físico: o simples substrato físico do organismo; 2 - Sensório-perceptivo: áreas de sensação e percepção; (conhecimento sensório-motor simples de Piaget); 3 - Emotivo-sexual: invólucro da bioenergia, libido; 4 - Mágico: início das esferas mentais; símbolos simples e primeiros conceitos rudimentares; (processo primário de Freud, pensamento pré-operacional de Piaget, necessidades de segurança de Maslow); 5 - Mítico: apresenta um princípio de pensamento operacional concreto (Piaget) e de perspectivismo, mas ainda incapaz do raciocínio hipotético-dedutivo; ( necessidade de pertinência de Maslow); 6 - Racional: o pensamento operacional formal de Piaget; primeira estrutura capaz de pensar sobre o pensar, auto-reflexiva e introspectiva; primeira estrutura capaz de pensar hipotetico-dedutivamente ou proposicional; (necessidades de auto-estima de Maslow); 7 - Nível Psíquico: trabalha com os resultados do nível operacional formal estabelecendo um entrelaçamento das relações obtidas naquele nível; lógica panorâmica ou visionária (operações cognitivas de nível superior onde é possível sintetizar, integrar conceitos, relacionar ‘verdades’ etc.) Seu “movimento mais característico é uma ideação maciça, um sistema ou totalidade de ver a verdade num único exame; (...) autoobservadas no todo integral.”(Wilber, opus cit., p.50). Ainda é uma estrutura pessoal altamente integrada que se avizinha das conjunturas transcendentais. (Necessidades de auto-realização de Maslow); 8 - Nível Sutil: sede dos arquétipos, do insight transcendental; uma estrutura verdadeiramente transracional (não pré ou anti-racional) a intuição no sentido mais elevado; (necessidades de auto-transcendência de Maslow) 9 - Nível Causal: base transcendental de todas as estruturas inferiores; a própria consciência radical e trancendental; (nirvikalpa samadhi 144 do hinduísmo, jnana samadhi no Vedanta) É o nível onde o dualismo sujeito-objeto é transcendido e a realidade passa a ser una com a divindade. A pessoa se torna desprovida do ego, “assumindo uma identidade absoluta com toda a manifestação, superior ou inferior, sagrada ou profana.”(Wilber, opus cit., p.54). Dessa nova estrutura de desenvolvimento humano, Wilber apresenta uma definição do que ele chama Indivíduo Composto: “(...) dizemos que o ser humano é um indivíduo composto — composto de todos os níveis anteriores de desenvolvimento e completo pelo atual. Potencialmente, então, o ser humano compõe-se de matéria, prana, mente, alma e espírito.”(Wilber, opus cit., p.60). Para uma simplificação, Wilber resume os níveis da organização estrutural para 5 (cinco) com seus termos mais usualmente empregados: Matéria (1), corpo (2-3), mente (4-6), alma (7-8) e espírito (9-10) 22 . A partir dessas premissas, Wilber começa a estabelecer seu entendimento para a dinâmica em operação dentro e entre níveis da estrutura do indivíduo composto, bem como entre os diversos indivíduos compostos. Wilber afirma que cada nível representa um processo de troca — troca relacional — com outros níveis correspondentes da organização mais ampla do processo planetário em geral. Em resumo, as principais características da troca relacional seriam: • cada nível transcende mas inclui os seus predecessores; • cada nível do indivíduo composto age em um sistema complexo de relacionamentos com os níveis correspondentes de organização estrutural no processo mundial de modo genérico; • a humanidade se reproduz em cada nível através de um intercâmbio dos elementos desse nível com os níveis correspondentes do mundo de um modo geral; 22 O nível número 10 seria a própria Mente, não sendo considerado um nível em si, mas a própria consciência absoluta na qual todos os outros níveis estariam “imersos”. 145 • cada nível está inserido em uma sociedade de trocas ou de relacionamento social específico: “Torna-se, então, evidente que cada nível constitui parte intrínseca de uma corrente deslizante de trocas relacionais, conseqüentemente representando ele próprio, em seu cerne, uma sociedade de trocas ou de relacionamento social.” (Wilber, opus cit., p.61); • Os indivíduos compostos estão interligados entre si, em sociedade, pelos níveis de troca: “Cada nível forma uma sociedade de relacionamentos ou de oportunidades de troca, em que o indivíduo composto consiste numa sociedade dessas sociedades, irremediavelmente interligado com outros seres humanos nas sociedades deles.” (Wilber, opus cit., p.61); • A noção de troca relacional expressa-se em necessidade e impulsos, correspondentes às características de cada nível, como se existissem alimentos para cada nível. • Sendo um processo de troca relacional, cada nível se liga necessariamente aos objetos que satisfazem suas necessidades. Então, os três principais aspectos do processo de troca relacional seriam: ‘estrutura’, ‘necessidade’ e ‘relações entre objetos’. • Apesar de apoiar-se no nível inferior, o superior não é por ele causado nem constituído: “O crescimento do nível superior representa em parte o processo da transcendência vertical ou diferenciação (e depois integração) do nível inferior através do qual passou ao surgir.”(Wilber, 1987, p.63). O nível superior só surge, de fato, quando se diferencia totalmente do inferior, transcendendo-o. Wilber utiliza a analogia com os estágios de diferenciação da infância: separação eu/meio, diferenciação mente e corpo etc. Como podemos observar, é dessa forma que os indivíduos se interligam na sociedade, percebendo-se componentes de uma totalidade da qual fazem parte, 146 buscando intercâmbio de elementos de cada nível de sua estrutura. Quanto mais adequado é este intercâmbio, mais as relações existentes na humanidade se efetivam. Quando esse intercâmbio não satisfaz às necessidades ou impulsos do indivíduo do nível preponderante pode se estabelecer uma crise, pois os elementos do nível atual não são suficientes para essa satisfação e os elementos de outro nível — superior — ainda podem não estar totalmente conscientes. Abordaremos esse processo em maiores detalhes quando apresentarmos as diversas visões da crise ocidental a partir da abordagem transpessoal. Wilber exemplifica essa dinâmica a partir dos exemplos de contribuições de pensadores como Marx e Freud, apesar de destacar seu caráter reducionista. Com base na observação dos níveis da organização estrutural e da troca relacional do indivíduo composto, muitos desses teóricos tomaram um dos níveis, estudaram suas dinâmicas mas tentaram convertê-lo em paradigma. No exemplo citado, Marx se fixou no nível material e Freud no afetivo-sexual procurando explicar (reduzir) todos os demais fenômenos — cultura, ego, mente, religião etc. — como decorrentes exclusivamente deles. A abordagem estruturada em níveis que se relacionam pode ampliar as reflexões para uma abordagem em Sociologia — uma Teoria Crítica em Sociologia: “Minha opinião é que uma teoria sociológica completa, unificada e crítica seria mais bem elaborada em torno de uma análise multidisciplinar detalhada da lógica de desenvolvimento e dos níveis hierárquicos das trocas (psicossociais) relacionais que constituem o indivíduo composto. A teoria seria crítica sob dois importantes aspectos: (1) adjudicativa com relação a cada nível superior da organização estrutural e crítica com relação à parcialidade comparativa do nível inferior, (2) crítica com relação às distorções no intercâmbio, quando e se ocorrerem em qualquer nível específico.” (Wilber, opus cit., p.70). 147 O primeiro dos aspectos da teoria crítica representaria uma crítica entre níveis enquanto que o segundo aspecto uma crítica dentro de um nível. Essa formulação passa a ser de fundamental importância no pensamento de Wilber, com veremos a seguir. Wilber faz uma consideração sobre como deveria ser uma análise mais coerente da Sociologia a partir dos novos modelos de consciência, como vimos acima. Ele vai identificar como sendo essencial um entendimento das relações existentes entre as estruturas que representam cada nível e entre os níveis: Ele faz uma analogia da organização estrutural dos níveis como um edifício de andares, onde (1) cada andar representa uma estrutura profunda; (2) a mobília de cada andar, constitui estruturas superficiais; (3) o movimento das estruturas superficiais chama translação; (4) o movimento das estruturas profundas, transformação; e (5) a relação entre uma estrutura profunda e suas estruturas superficiais, transcrição.(Wilber, opus cit., p.74). Outra característica importante da abordagem de Wilber está na consideração de que as estruturas profundas são a-históricas enquanto as estruturas superficiais são históricas: “Trata-se de um pequeno exemplo de um postulado global referente aos níveis básicos da organização estrutural: até onde surgiram, as estruturas profundas da consciência (...) são relativamente a-históricas, coletivas, invariáveis e acumuladas, enquanto suas estruturas superficiais são sempre variáveis, historicamente condicionadas e culturalmente moldadas. Assim, por exemplo, a estrutura profunda da mente operacional formal é, até onde sabemos, idêntica onde quer que se manifeste, porém as formas superficiais em si dessa mente — seus sistemas particulares de crença, ideologias, linguagens, costumes e assim por diante — são diferentes em toda a parte amplamente moldadas pela cultura na qual essa própria mente desenvolve-se.” (Wilber, opus cit., p.76). 148 Para Wilber, o desenvolvimento ou crescimento se dará em duas dimensões primárias: a) horizontal-evolucionária-histórica: translação = integrar, estabilizar e equilibrar um dado nível; b) vertical-revolucionária-transcendental: transformação = reorganização revolucionária de elementos anteriores e o surgimento de novos; transcender um dado nível. Ou seja, podemos inferir que, a cada movimento de transformação para estruturas superiores, o movimento de translação poderá ganhar novas possibilidades dentro do próprio nível inferior, ampliando sua capacidade de integrar, estabilizar e equilibrar as trocas relacionais com os seus objetos. A transcendência não exige que o nível inferior seja descartado, mas sim contextualizado, relativizado na sua importância (antes tida como vital ao indivíduo e que, agora, representa o alimento do novo nível, até a próxima transformação etc.). Isso ocorre a partir de uma reorganização dos elementos existentes e com o surgimento de novos: “Ao atentarmos para o desenvolvimento vertical ou transformativo, torna-se um pouco mais evidente o que está em questão: para um indivíduo passar para o nível superior seguinte, ele deve, na verdade, aceitar a morte do atual nível de adaptação, ou seja, cessar uma identidade exclusiva com esse nível.(...) Em cada caso, somente quando suficientemente forte para morrer em determinado nível é que o eu pode transcender esse nível, ou seja, passar para o nível superior seguinte de maneira específica de fase, de alimento, de mana. À medida que o eu identifica-se com o novo nível e começa a adaptar-se aos seu alimentomana, então enfrenta o medo de morrer nesse e para esse nível, e os seus movimentos translativos entram em ação para proteger a nova versão da mortalidade perpétua que de outro modo paralisaria o movimento do eu.” (Wilber, opus cit., p.84). 149 A percepção desses novos níveis (superiores) não se dá de forma automática. O indivíduo pode começar a perceber elementos parciais e fragmentados do nível superior que, de alguma forma, já estimulam ou atendem a uma demanda de suas necessidade ou impulsos, mesmo que esses não sejam plenamente conscientes para o indivíduo no nível de consciência que predomina. É daí que Wilber define a ocorrência das experiências culminantes relatadas pelos indivíduos: “como um insight temporário de (e influxo de) um dos níveis autênticos da organização estrutural religiosa (psíquico, sutil, causal).” (Wilber, opus cit., p.101).Ou ainda: “As experiências culminantes autênticas (em oposição aos curtoscircuitos estáticos-emocionais) normalmente ocorrem com aqueles que evoluíram ao nível racional da adaptação estrutural, embora ocasionalmente aconteçam com aqueles ainda em um nível mítico ou mágico. A fé verdadeira parece conduzir à experiência; os sistemas de crença parecem inibi-la.” (Wilber, opus cit., p.102). Aqui os pontos importantes parecem ser a importância que ele dá ao nível racional como predispondo à ocorrência da experiência que ‘transforma’, experiências culminantes e o fato de que o insight é temporário, isto é, não permanece, porque pertence a outro nível, mas opera uma grande transformação na troca relacional daquele nível. Nas palavras de Wilber: são uma olhadela nos níveis de organização estrutural superior. Muitos pesquisadores, na opinião de Wilber, acabaram considerando as experiências culminantes apenas como eventos isolados e não como representantes de níveis superiores que poderiam ser vividos de forma estável quando fosse feita a transformação (diferenciação) definitiva. Os relatos e comprovações das tradições orientais poderiam representar a possibilidade de efetivação desses estágios como etapas posteriores do pensamento e consciência humanos. Com base nos relatos das tradições orientais, Wilber considera que o pensamento humano vem evoluindo do arcaico, ao mágico, ao mítico, ao racional, tendo 150 a estrutura de filiação mítica já atingido o limite das suas capacidades integrativas. Considera então o desenvolvimento moderno caracterizado por uma crescente racionalização que ainda não esgotou todo o seu potencial, e caminha para o nível psíquico, ao sutil e ao causal, ao final. Wilber, ao contrário de muitos pensadores e teóricos que consideram as contribuições orientais, julga ser: “a tendência à racionalização em si necessária, desejável, adequada, específica de fase e evolucionária. (...) uma expressão cada vez mais avançada da consciência e da percepção clara que tem por meta final, e contribui para, a ressurreição do Espírito-Geist. Também julgo a adaptação racional perfeitamente religiosa (...): capaz de fornecer uma visão de mundo legítima, convincente, integradora e significativa, (...). Contudo não nos pode proporcionar uma Visão Total do Mundo”(Wilber, opus cit., p.111). Para o nosso estudo, Wilber faz importantes reflexões sobre os efeitos da elevação do nível racional para outros níveis de consciência. Para ele, o indivíduo passa para uma posição mais reflexiva sobre a relação eu/não-eu, distancia-se de modo crítico das normas da sociedade, pode regulá-las, rejeitá-las ou adotá-las, enfim, age em considerações mais razoáveis e perspectivistas e não mais cegamente conformistas. Wilber defende a posição de que antes de chegar a uma transformação que ele chama iogue (nível superior ao racional atual): “a sociedade individual-racional deverá primeiro atingir o seu potencial máximo e fornecer as verdades, os valores e as subestruturas específicas de fase para os quais se destina e dos quais dependerão as futuras transformações, tais como a tecnologia adequada, estrutura médica sofisticada, telecomunicações como vinculação global através do perspectivismo global, interfaces de processamento de dados como extensão da mente e, em especial, desmitificação da realidade, da divindade e da consciência. Ocorre, a meu ver, que as primeiras tendências transformativas em larga escala virão através daqueles que já dominaram adequada- 151 mente a base operante-individual-racional. Pois o insight iogue surge através e, em seguida, a partir da esfera da razão, não em volta ou distante dela nem contra ela.” (Wilber, opus cit., p.139). Como vimos, Wilber não desconsidera qualquer contribuição dos modelos científicos racionais ocidentais. Pelo contrário, estimula sua potencialização para o alcance de novos níveis de consciência e pensamento. Acredita, porém, que a transformação exige uma compatibilização entre as estruturas antigas e as novas, de tal forma que sejam diferentes, para representar uma transformação de fato e, parecidas, para favorecer o salto dos indivíduos a adotá-las. Wilber postula que, quando introduz os diversos modelos e interesses do conhecimento humano nos vários níveis da organização estrutural e do intercâmbio relacional do indivíduo composto, com todos os corolários e desdobramentos psicossociais que ele apresenta, temos o esboço de uma teoria sociológica completa pois passa-se a considerar não só as estruturas pré-pessoais e pessoais mas também as transpessoais da existência, sem comprometer as dinâmicas dos três sentidos ou dimensões — os níveis, seu desenvolvimento, a natureza de seu intercâmbio social, suas possíveis distorções repressivas (psicológicas) e opressivas (sociais), seus modelos de conhecimento e de interesse, sua organização estrutural, suas relações funcionais — “Trata-se, também, de uma teoria sociológica verdadeiramente crítica e normativa, em virtude dos dois interesses emancipatórios que se eriçam sempre que surgem a falta de liberdade e a falta de clareza estrutural.” (Wilber, opus cit., p.163). Quando aborda a questão da metodologia para esse tipo de sociologia das religiões, Wilber aponta para um interessante aspecto que, além de resumir o movimento de transformação de um nível para outro e suas motivações, introduz o 152 entendimento da crise que pode ser percebida pelo indivíduo quando a estrutura de níveis não funciona de forma harmônica: “Sem me alongar sobre o assunto, considerarei evidente que a terapia global envolve uma auto-reflexão crítica sobre translações passadas e possíveis translações incorretas (textos ocultos). Acredito que isso seja verdadeiro tanto para indivíduos como para sociedades como um todo (embora, naturalmente, os aspectos específicos variem). Tal reflexão é impulsionada pelo interesse emancipatório horizontal — um desejo de ‘liquidar’ translações passadas incorretas (subtextos ocultos, repressões, opressões, dissociações). Essas distorções, secretamente encerradas na hierarquia do indivíduo composto, geram tensões estruturais e irritações que acionam o interesse emancipatório. Quando tais fixações/repressões são re-lembradas, re-criadas e re-integradas, os aspectos da consciência individual (ou de grupos de pessoas) anteriormente presos num nível inferior de estruturalização libertam-se, ou se tornam capazes de uma transformação ascendente, renunciando às suas lamentações sintomáticas e reingressando no modelo médio de estruturalização superior agora característico do eu central (ou da sociedade como um todo). Tal avanço transformador é impulsionado pelo interesse emancipatório vertical inerente ao desenvolvimento e à evolução em si.” (Wilber, opus cit., p.179). Como veremos posteriormente, a crise poderá ser percebida quando o interesse emancipatório vertical esbarra nas limitações do indivíduo ou da sociedade em “liquidar” as translações do nível horizontal, esgotando suas possibilidades naquele nível e, ao mesmo tempo, experimentando uma ansiedade por uma troca mais satisfatória para o indivíduo composto ou a (s) sociedade (s) em que ele atua. Quanto mais o indivíduo ou sociedade avançam para a consciência de níveis mais elevados, as diferenças entre o Eu e o Não-eu são relativizadas. O indivíduo passa a perceber-se pertencendo a uma sociedade mais ampla, onde a consciência 153 de Não-eu exige a participação no grupo social, participação política, ecológica etc. e, como Eu, exige identidade pois não se perde em um oceano da divindade. Para Wilber essa pode ser uma nova percepção de Deus: “Nesse ponto, Deus deixa de ser um mero símbolo em sua consciência para transformar-se no nível máximo da sua própria individualidade composta e adaptação estrutural, a sociedade de todas as sociedades possíveis, que agora reconhece como o seu verdadeiro eu. Além disso, quando vemos Deus como a sociedade de todas as sociedades possíveis, o estudo da sociologia adquire um novo e inesperado significado, e nós todos encontramo-nos imersos num Deus social, criado e criador, liberado e liberador — um Deus que, como Outro, exige participação, e que, como Eu, exige identidade.” (Wilber, opus cit., p.182). 6. 4 - SOCIEDADE, INDIVÍDUO E NATUREZA INTEGRADOS: UMA NOVA CONCEPÇÃO Uma das principais conseqüências que podemos observar da concepção de indivíduo proposta pela Psicologia Transpessoal é uma nova concepção de sociedade e de universo. Entretanto, nos parece que a tarefa de poder apresentar uma nova concepção de sociedade escapa aos objetivos de nosso trabalho. O que fica claro, até esse ponto de nossas reflexões, é que são identificadas algumas características peculiares da sociedade e das relações entre os indivíduos e entre os indivíduos e a natureza, em relação aos postulados normalmente utilizados pela ciência tradicional ocidental. A análise dos relatos das experiências transpessoais demonstra que o indivíduo que as vivencia é capaz de obter uma consciência diferenciada da sua inserção no todo social. A percepção desse indivíduo é de que a sociedade é muito mais que uma reunião ou conjunto de indivíduos. Principalmente nos trabalhos de Grof, os 154 indivíduos experienciam de forma significativa a sua interligação com algumas pessoas, especificamente, ou com as demais pessoas do seu grupo social, racial, familiar, ancestral etc. Esse nível de consciência da interligação e interdependência pode chegar a uma dimensão mais abrangente: do planeta ou do próprio cosmos. A fundamentação dessa interligação e interdependência parte da premissa consensual dos autores transpessoais — e coerentes com a tradição oriental — de que há um espaço infinito e primordial de onde emana a energia que compõe tudo que existe no universo. Desse espaço consciencial emana uma mesma energia que se manifestará de diferentes formas não só nos seres humanos, animais, vegetais, seres inanimados etc. mas também nas relações entre esses seres. A física quântica moderna apresenta exatamente esse princípio em que a energia se manifesta em faixas — ou quanta — que poderão ser percebidas ou 155 identificadas num espectro. A Psicologia Transpessoal defende que as experiências transpessoais ocorrem por uma ampliação da consciência — estados alterados de consciência — possibilitando ao indivíduo perceber suas interrelações com os demais níveis de manifestação dessa energia. A base do pensamento que propõe a interligação e interdependência de todas as “partes” constitutivas do universo, poderia ser simplificada por nós, através de um gráfico que pudesse traduzir a idéia principal: Figura 3: Ligação Indivíduo — Sociedade — Natureza Para efeitos de simplificação, fizemos um recorte que considera apenas a dimensão individual, a da sociedade e a da natureza, representando, essa última, os recursos do meio ambiente em suas diferentes formas. Por esse gráfico esquemático, poderíamos entender que há uma estreita ligação e dependência entre as três dimensões consideradas, que funcionam de forma integrada. Portanto, as relações entre elas também fazem parte da dinâmica que as sustenta, não havendo qualquer parte ou relação entre partes que se sobressaia ou se destaque em importância sobre as outras. Segundo o que foi apresentado anteriormente, o pensamento humano inaugura uma ilusão de separatividade entre o indivíduo e o ambiente — chamado por Wilber de Dualismo primário. A partir dessa primeira fragmentação, o indivíduo se “esquece” da sua interligação original. Se esquece que Indivíduo, Sociedade e Natureza são indissociáveis, interligados e interdependentes. Processo que vai se 156 estender também dentro do próprio indivíduo, acarretando uma fragmentação entre suas partes constitutivas, tais como mente, corpo e emoções. A prevalência da mente sobre as demais dimensões faz com que se torne “ignorante” daquela integração e interdependência. A conseqüência pode ser o desenvolvimento de emoções destrutivas, um apego e possessividade sobre as coisas que dão prazer a si mesmo e evitar as que dão desprazer. A ocorrência das emoções destrutivas e a convicção da separatividade promovem um círculo vicioso e autoreforçador que acaba resultando no desequilíbrio da organização física, no estresse e na doença. A ação individual fragmentada — por estar interligada a todos os outros níveis do universo e a despeito da consciência ou não do indivíduo — afeta as relações e dinâmicas sociais ocasionando uma cultura fragmentada, uma vida social e política competitiva e violenta, além de condições econômicas de consumismo exploração e miséria. Como resultado, podemos ter um maior sofrimento individual que tende a reforçar o processo de fragmentação. O processo se completa através de uma ação da Sociedade possessiva, competitiva e exploradora do homem pelo homem, da natureza pelo homem. A resultante desse processo converge para um quadro individual e social compatível com a descrição da crise da sociedade ocidental atual feita durante nosso trabalho, podendo ser considerada a sua concepção transpessoal. A crise poderia ser considerada uma crise da transformação da consciência do indivíduo que procura, mesmo sem saber como, uma maior harmonização do desequilíbrio entre as partes. A busca — mesmo que não consciente — dessa integração com a totalidade, uma certa consciência de unidade e interdependência, parece conflitar com os níveis atuais de consciência do Indivíduo. Esse “conflito” pode nos dar o início da reflexão 157 transpessoal sobre a crise atual da sociedade ocidental. Passaremos, então, a apresentar um resumo apontando as principais argumentações dos autores transpessoais estudados sobre a concepção de crise. 6.5- CRISE: EMERGÊNCIA ESPIRITUAL A primeira, e talvez a principal afirmação que podemos fazer sobre uma concepção transpessoal de crise é que ela é encarada, sempre, na sua acepção de processo de transformação na estrutura de valores, no sentido e funcionamento da vida bem como na compreensão do Indivíduo, da Sociedade e do Mundo. Como destacamos no início de nosso trabalho: “Períodos de crise podem, então, ter um significado de aquisição de grandes avanços na compreensão da vida, do indivíduo, da sociedade... Através da crise, os indivíduos podem repensar o que é realmente importante nas suas vidas, reavaliando sua estrutura de valores.” Em todos os autores estudados, verificamos uma tendência a estabelecer uma noção de crise atual da sociedade ocidental como resultado de uma fixação em valores, aspectos e prioridades relativas às dimensões mais voltadas para os domínios pessoais do indivíduo. Apesar de considerarem a crise no sentido de transformação, todos eles alertam para uma certa urgência nas providências individuais e coletivas visando a superação desse quadro, sob o risco de se comprometer a sobrevivência do planeta. Iremos apresentar alguns dos argumentos dos principais autores transpessoais estudados, sobre a concepção da crise. Talvez seja importante retomar a argumentação sobre as concepções do termo crise, ampliando-a. O que poderíamos acrescentar à reflexão anterior sobre o que é crise? 158 Grof, em Emergência Espiritual (Grof, 1992, p. 27), aborda a questão do termo crise baseando-se no pictograma chinês que compõe-se de dois signos básicos ou radicais, significando um deles “perigo” e o outro “oportunidade”. Com isso, a passagem por uma situação desse tipo — crise ou emergência espiritual — costuma ser difícil e até dolorosa mas, paradoxalmente, possui enorme potencial de cura e evolução. Santos Neto (1998), apresenta novos dados sobre uma concepção semelhante de crise, citando Leonardo Boff: “E o que significa crise? Segundo BOFF (1983, p.3) a palavra crise tem raiz no sânscrito KRI que significa limpar, separar, purificar, depurar. A crise seria portanto um momento de depuração, de separação daquilo que ainda é válido daquilo que não vale mais. Crise implica portanto em ruptura. Com essa compreensão de crise podemos ver a vida como uma sucessão de crises que podem, no seu conjunto, gerar um processo evolutivo. Com isso quero dizer que as respostas que temos jamais são definitivas mas sempre próprias para um determinado tempo histórico, findo o qual elas entram em crise, por não responder às questões agora atuais. Claro está que as respostas anteriormente dadas, muitas vezes, comportam elementos que deverão ser mantidos ao lado de outros já superados e com os quais dever-se-á romper. Enquanto não se encontram novas respostas, enquanto não se faz o discernimento do que vale do que já não vale mais, permanece-se numa situação de crise.” (Santos Neto, 1998, p.35). No trabalho de pesquisa de Grof, observamos que sua ênfase está na abordagem clínica individual, principalmente no entendimento dos quadros psicopatológicos que considera como crise. Considera os casos que a Psiquiatria diagnostica como psicose, quadros que representam, no seu modo de ver, “estágios difíceis de radical transformação de personalidade e de abertura espiritual” (Grof, 2000, p.141). Em diversos momentos de suas obras, Grof aborda a questão da crise atual da sociedade ocidental. Sua proposta básica é de que a crise atual da sociedade está associada a um afastamento da realidade espiritual do indivíduo ao longo dos 159 tempos. Ele vai argumentar que esse afastamento provoca efeitos negativos no indivíduo, na sociedade e nas condições de vida do planeta: “Mais e mais pessoas parecem se conscientizar de que a genuína espiritualidade baseada em profunda experiência pessoal é uma dimensão da vida de essencial importância. Em vista da crescente crise global ocasionada pela orientação materialista da civilização tecnológica ocidental, fica óbvio que estamos pagando um preço altíssimo por termos negado e rejeitado a espiritualidade. Banimos de nossas vidas uma força que nutre, potencializa e confere significado à existência humana. Em nível individual, o tributo pela perda da espiritualidade é um empobrecido, alienado e insatisfatório modo de vida e uma aumento de desordens emocionais e psicossomáticas. Em nível coletivo, a ausência de valores espirituais leva a estratégias de vida que ameaçam a continuidade da vida em nosso planeta, tais como a espoliação de fontes não-renováveis, poluição do ambiente natural, perturbação do equilíbrio ecológico e uso da violência como principal meio de resolução de problemas.” (Grof, opus cit., p.143). Um dos principais argumentos de Grof é o de que o indivíduo utiliza um padrão muito abaixo do seu potencial real, em virtude de estar identificado com uma pequena fração do seu ser — o corpo físico e o ego — o que resulta em um estilo de vida sem autenticidade, saúde e realização, contribuindo para um desequilíbrio geral que pode se refletir em desordens emocionais e psicossomáticas. A vivência de desordens emocionais desse tipo — que também podem ser associadas a alguns aspectos levantados por nossa avaliação da crise, tais como a angústia existencial, isolamento etc. — pode representar que o indivíduo chegou ao ponto em que sua antiga forma de ser no mundo não funciona mais e tornou-se insustentável. O indivíduo experiencia essa separação e alienação da Consciência Cósmica de forma dolorosa pelos problemas de integração do sofrimento emocional e físico, limitações espaciais e temporais, transitoriedade e morte. Intimamente, o indivíduo “sente” uma forte necessidade de voltar à fonte e reunir-se a ela. 160 A dificuldade experimentada pelos indivíduos está, conforme Grof, na integração dos campos de consciência hilo e holotrópicos, sejam por motivos da história biográfica do indivíduo ou até por motivos culturais, tornando-os apegados às dimensões pessoais — ego e corpo físico — não se religando às dimensões perinatais e transpessoais, experiências de totalidade. Às crises de transformação que esse processo de busca da religação provoca, Grof e Cristina — sua esposa — deram o nome de Emergência Espiritual: “Esse potencial positivo é expresso pelo termo ‘emergência espiritual’, que é um jogo de palavras, sugerindo tanto uma crise [emergência no sentido de ‘urgência’], como uma oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência [emergência como ‘elevação’].”(Grof, 1995, p. 11). Como fica claro, Grof considera a questão da crise associada a uma dificuldade do indivíduo em conciliar e integrar os aspectos materiais e os espirituais, ou seja, sua visão é de que a crise é uma crise psicoespiritual. É importante que se antecipe aqui um aspecto que será abordado posteriormente nesse trabalho e que trata da diferença que esses autores enfatizam entre Espiritualidade e Religião. Essa diferença será importante quando se pensar sobre as possíveis saídas para uma crise que se designe psicoespiritual através de alternativas às religiões instituídas na cultura ocidental. Quando Grof aborda a natureza da crise psicoespiritual da humanidade e das transformações necessárias para a sua superação, utiliza alguns elementos retirados da tradição tibetana, uma figura chamada thangka que representa o ciclo de vida, morte e reencarnação, onde existem três figuras consideradas os venenos da humanidade, responsáveis por todo o sofrimento humano: 161 “Os animais no centro da roda representam os ‘três venenos’ ou forças que, segundo os ensinamentos budistas, perpetuam os ciclos de nascimento e morte e são responsáveis por todo o sofrimento em nossas vidas. O porco simboliza a ignorância relativa à natureza da realidade e de nossa própria natureza, a cobra representa raiva e agressão e o galo retrata desejo e luxúria que levam ao apego. A qualidade de nossa vida e nossa habilidade para lidar com os desafios da existência dependem crucialmente do quanto somos capazes de eliminar ou transformar estas forças que regem o mundo dos seres animados.” (Grof, 2000, p.322). A reflexão de Grof concentra-se, então, na avaliação da ignorância, na violência e na ganância dos seres humanos. Nos preocuparemos apenas com uma pequena indicação do pensamento de Grof, somente pelas ligações importantes com alguns dos temas apontados por nós, da crise atual, sugerindo aos leitores mais interessados no assunto a leitura das obras O Jogo Cósmico e A Psicologia do Futuro. Uma contribuição importante do trabalho holotrópico de Grof é a associação das raízes da violência e da ganância aos níveis ou domínios perinatais e transpessoais. A violência tem, segundo Grof, normalmente, raízes no trauma do nascimento biológico que gera elevadas quantidades de ansiedade e de agressividade alojadas no corpo e no psiquismo. Nos domínios puramente transpessoais, Grof compara o inconsciente individual ao coletivo de Jung, associando as raízes da violência à ativação de memórias violentas da humanidade. Como resultado de uma terapia holotrópica em que a violência no nível individual seja adequadamente integrada e harmonizada, estaríamos processando uma terapia na consciência da espécie humana. Sobre a ganância, Grof identifica sua influência na vida individual e social do ser humano em diversos pontos de sua obra. Destacaremos duas citações que expressam bem sua opinião e que convergem, de certa forma, para alguns dos aspectos que ressaltamos como componentes da crise da sociedade ocidental, como a ênfase nos valores econômicos, no consumismo desenfreado e na competitividade: 162 “A ganância humana também encontrou novas formas de expressão, menos violentas, na filosofia e estratégia da economia capitalista, que enfatiza o aumento do produto interno bruto, no ‘crescimento ilimitado’, na espoliação temerária dos recursos naturais não-renováveis, no consumo conspícuo e na ‘obsolência (sic) planejada’. Além disso, grande parte dessa política econômica de consumo, que tem conseqüências ecológicas desastrosas, tem sido orientada para a produção de armas com poderes destrutivos cada vez maiores.” (Grof, opus cit., p.318). “(...) A ganância insaciável está levando as pessoas à perseguição frenética de lucros e aquisições de propriedades pessoais além de qualquer limite razoável. (...)” (Grof, opus cit., p.319). A concisão das citações do presente trabalho pode oferecer, a princípio, uma visão simplista da abordagem de Grof para os complexos temas da crise da sociedade. Entretanto, sua visão considera essa complexidade e abrangência: “Naturalmente, as guerras e revoluções são fenômenos extremamente complexos com dimensões históricas, econômicas, políticas, religiosas e outras. A intenção aqui não é a de oferecer uma explicação reducionista substituindo todas as outras, mas sim adicionar alguns novos insights relativos às dimensões psicológicas e espirituais dessas formas de psicopatologia social que têm sido negligenciadas ou que só receberam um tratamento superficial pelas teorias anteriores.” (Grof, opus cit., p.326). Como já dissemos, a principal conclusão de Grof é de que a crise e os problemas da humanidade são reflexo do precário estado emocional, moral e espiritual da humanidade contemporânea: “Se temos os meios e o conhecimento tecnológico para alimentar a população do planeta, garantir a todos um padrão de vida razoável, combater a maioria das enfermidades, reorientar as indústrias para fontes de energia inesgotáveis e evitar a poluição, o que nos impede de dar esses passos positivos? A resposta está no fato de todas as situações difíceis acima mencionadas serem sintomas de uma única crise fundamental: os problemas que enfrentamos não são, em última análise, apenas econômicos, políticos e tecnológicos. Eles são reflexos do estado emocional, moral e espiritual da humanidade contemporânea. Dentre os aspectos mais des- 163 truidores da psique humana, estão a agressão mal-intencionada e o consumismo insaciável. Trata-se de forças responsáveis pelo desperdício inimaginável da beligerância moderna. Elas também impedem uma divisão mais adequada dos recursos entre pessoas, classes e nações, bem como a reorientação para prioridades ecológicas essenciais à continuidade da vida neste planeta. Esses elementos destruidores e auto-destrutivos na atual condição humana são uma conseqüência direta da alienação da humanidade moderna tanto de si mesma como da vida e dos valores espirituais.” (Grof, 1995, p.240-250). 6. 6 - O MOVIMENTO DE TRANSLAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO NO ENTENDIMENTO DA CRISE SOCIAL Como vimos, o trabalho de Wilber considera que uma análise mais coerente da Sociologia passe pelos novos modelos da consciência. Identifica como sendo de fundamental importância um entendimento das relações existentes entre as estruturas que representam cada nível e entre os níveis. Vimos que o desenvolvimento ou crescimento das relações dessas estruturas se dá em duas dimensões primárias: translação ( horizontal-evolucionária-histórica) que visa integrar, estabilizar e equilibrar um dado nível; e transformação (vertical-revolucionária-transcendental) que pretende a reorganização revolucionária de elementos anteriores e o surgimento de novos; transcender um dado nível. Entretanto, Wilber destaca que essa tendência a um movimento horizontal e vertical no desenvolvimento das relações estruturais é composta por forças antagônicas, cuja resultante oferece uma indicação do movimento do indivíduo e sua contribuição para o movimento do conjunto social como um todo. Segundo esse autor, em qualquer escala intermediária do desenvolvimento da estrutura, o indivíduo se depara com “trações direcionais”(Wilber, 1999, p.30-31). Horizontalmente, isto é, dentro do seu nível de desenvolvimento atual, ele se depara com a alternativa de integrar, consolidar e preservar o nível ou, por outro lado, diferenciar, separar e negar esse nível. No 164 movimento vertical, o indivíduo se depara com as oposições entre subir e evoluir, “subindo” para outros níveis do desenvolvimento ou descer e regredir para níveis menos organizados, menos diferenciados e menos integrados. Partindo dessas premissas, a crise poderia ser identificada quando o processo de translação (superficial dentro do próprio nível) não consegue realizar seus objetivos integrativos, os símbolos que estruturam esse nível são seriamente abalados e a tensão estrutural começa a afrouxar a coesão. Como conseqüência, o sistema pode se desintegrar, se fixar de forma cristalizada em um nível inferior ou buscará elementos para permitir uma transformação para novos níveis superiores com translações novas, renovadas. Uma crise seria, então, entendida como uma reação desse processo de adaptação a um novo nível estrutural de desenvolvimento do indivíduo. Como o momento de crise é de transição, ou um processo de transição, o indivíduo já “perceberia” as necessidades inerentes ao nível superior (mais no nível psíquico de Wilber), mas como ainda está “ligado” aos objetos próprios do nível atual — no nosso caso da crise atual da sociedade ocidental egóico, individualista —, tenta manter um intercâmbio desses elementos para atender às necessidades, não conseguindo satisfazê-las, gerando uma espécie de angústia existencial, que Wilber designa como “medo de morrer naquele nível”. Estabelece-se uma certa confusão pois os elementos disponíveis não atendem às necessidades do indivíduo. Pelo contrário, tendem a gerar uma expectativa de “morte” iminente ou aniquilamento no nível atual, de falta de perspectivas, pois os meios de conhecimento não conseguem “enxergar” possibilidades de superação das dificuldades. Tudo porque os níveis não estão plenamente diferenciados. Quando, isoladamente, um indivíduo consegue perceber e transcender este impasse, caracterizando o surgimento do nível superior, tende a garantir harmonia para os dois níveis, pois vislumbra e diferen- 165 cia as estruturas, as necessidades e os objetos de troca relacional que os complementam. Com isso, o indivíduo é capaz de atender suas necessidades com trocas relacionais no nível superior sem impedir as buscas de objetos relacionais adequados para as necessidades dos níveis inferiores que, pelo contrário, podem adquirir relevância e importância ampliada, no sentido do indivíduo composto atual. Podemos dizer que, conforme esse indivíduo composto se apropria de experiências que representam o alimento mais adequado para o nível imediatamente superior, melhor percebe suas necessidades sendo atendidas, torna-se mais tranqüilo, seguro etc. A crise, nessa perspectiva, é um típico movimento de transformação e adaptação. Para Wilber, a necessidade e o impulso atuam como defesa da estrutura para não perecer, buscando relações entre objetos que atendam a essas necessidades. O crescimento e desenvolvimento representam um processo de adaptação a níveis cada vez mais sutis de alimento, onde se aprende a digeri-los e integrá-los no “novo” indivíduo composto, em novas sociedades. Para melhor entendimento, procuramos desenvolver um modelo gráfico esquemático que nos facilitasse a compreensão — através de uma analogia — do funcionamento desse processo. Digamos que os níveis da estrutura de consciência estabelecidos por Wilber pudessem ser expressos graficamente como uma sucessão de camadas cujas fronteiras representariam uma mudança nas principais características em relação aos níveis inferiores. Esse é um modelo esquemático, pois Wilber deixa claro, ao longo de sua obra, que o estabelecimento de fronteiras atende à nossa necessidade linear de pensamento, não podendo refletir o processo da consciência. Não houve uma preocupação nossa em identificar os níveis mas apenas demonstrar o possível movimento da estrutura na ocorrência de uma “crise”. Para 166 acompanhar a coerência dos termos empregados até aqui, também utilizaremos a noção de transformação, no entendimento de Wilber, como um movimento de “baixo” — níveis inferiores — para “cima” — níveis superiores. Vamos partir do entendimento inicial de que existem esses níveis de consciência, estabelecidos, originariamente, na individualidade, conforme a figura a seguir: Potencialmente, cada um de nós possuiria toda a estrutura de níveis. Entretanto, a partir dos processos descritos por Wilber como dualismo primário, secundário etc. nos “esqueceríamos” dessa nossa interligação com a totalidade de nossa consciência e do universo. Esse “esquecimento” poderia ser graficamente expresso como uma nuvem que se sobrepõe aos demais níveis superiores, obscurecendo-os para o indivíduo diante das dimensões em que ele tem mais “consciência”. Segundo Wilber, a situação desse indivíduo faz com Figuara 4 (a direita) – Estrutura Hierárquica Figura 5 (a esquerda) – Estrutura em crise 167 que ele se utilize dos objetos relacionais ou alimentos característicos do nível em que se encontra, onde tem maior visibilidade e possibilidade de trocas relacionais próprias para as necessidades daquele nível. As necessidades experimentadas por esse indivíduo no nível N podem ser atendidas por trocas relacionais de objetos do nível N, satisfatoriamente. O maior equilíbrio nas trocas do nível N, pressupõe uma estabilidade no nível de trocas de N-1 e, até mesmo, um redimensionamento dos valores envolvidos nesse nível a partir do equilíbrio em N. A busca incessante da estrutura de consciência pela integração com a totalidade impulsiona o indivíduo para “cima”. As trocas relacionais passam a não atender necessidades surgidas, pois referem-se a necessidades de um nível superior (N+1). Pelo processo de transformação em curso, o indivíduo ainda não tem plena lucidez desse movimento: já percebe, de alguma maneira, mudanças de valores, de sentido existencial, de comportamentos, propósitos, motivos etc, mas não enxerga de forma transparente os objetos ou alimentos adequados. Busca atender a essas necessidades (N+1) Figura 6 e 7- Estrutura hierarquica em crise. (Direita) – Dinâmica da transformação. (Esquerda) 168 com os objetos com os quais está acostumado (N). Graficamente poderia ser expresso, conforme a figura abaixo, por uma gradativa clarificação do nível superior (N+1) mas sem a noção de que precisa transcender uma barreira ou uma fronteira, que pode significar uma resignificação de valores, sentidos, motivos etc. Portanto, o indivíduo já “enxerga” alguns pontos do nível superior, busca-os, mas não percebeu a linha divisória que altera sua visão, sua perspectiva de valores, de vida ou de mundo pois representa uma nova dimensão consciencial, muito mais complexa e próxima à totalidade. A crise poderia ser entendida, dessa forma, como a transição no processo de transformação vertical de Wilber, de um nível para outro superior. A superação dessa crise poderia possibilitar a estabilização do processo interno, normalmente vivido como certo caos, resignificando o nível anterior e seus principais objetos e trocas relacionais, bem como retira o indivíduo de todas as pressões internas e externas que o período de crise ofereceu. O gráfico a seguir procura expressar a dinâmica da crise superada. Essa experiência poderia ser exemplificada pelos indivíduos que passaram por experiências transpessoais, experiências culminantes ou pelas chamadas Revoluções Silenciosas. A crise atual da sociedade ocidental poderia, nesse sentido, ser transpessoalmente entendida como uma crise espiritual pois, em diversos casos, pessoas que passam por esse tipo de dilema e integram mudanças nos tipos de alimento que estabelecem Figura 8: Crise superada 169 na troca relacional de um nível superior, alcançam significativos quadros de estabilidade emocional e mental, como veremos mais adiante. Em sua obra, Wilber refere-se à possibilidade de um período de crise poder representar uma crise de autenticidade de uma certa ideologia ou visão de mundo. A busca de uma nova ideologia “mais autêntica” viabiliza o movimento de transformação para um nível de dimensão específico considerado mais legítimo em relação ao novo conjunto de valores. O fenômeno da crise de autenticidade nos permite uma comparação com o sentido de crise da sociedade ocidental que abordamos nesse trabalho: “Uma crise na autenticidade ocorre sempre que uma visão de mundo (ou religião) predominante defronta-se com desafios de uma outra de nível superior. Isso pode acontecer em qualquer plano, sempre que um nível novo e mais elevado (ou sênior) começa a surgir e ganhar legitimidade. A nova perspectiva de mundo encarna um poder transformativo novo e mais elevado, assim desafiando a antiga, não apenas com relação à legitimidade mas também quanto à própria autenticidade.”(Wilber, 1987, p.92). Wilber exemplifica sua posição citando os efeitos da chamada Religião Civil da América e o conseqüente surgimento de novas religiões, no final da década de 60. Afirma que a Religião Civil Americana conseguiu, durante algum tempo, filiação mítica (ética protestante mítica) e proporcionou símbolos de imortalidade (nacionalismo), significado integrativo, freio moral e coesão social. O antigo acordo civilreligioso de filiação tradicional seria abalado pelo crescente racionalismo que desmistificava sua estruturas. Mas ele será definitivamente rompido com uma ação combinada do movimento dos estudantes radicais, os efeitos da guerra do Vietnã, epifanias espirituais orientais, incertezas econômicas e desmascaramento geral do nacionalismo americano, ocorridos na década de 60. O resultado teria sido a for- 170 mação de um campo propício ao surgimento de diversas novas religiões que pudessem atender às necessidades individuais. O movimento de transformação vertical nem sempre é natural e harmônico. Pode ter, como conseqüência, dois tipos de desdobramento. O primeiro seria produto do fracasso do processo de individuação-racional resultando numa fixação/ regressão aos aspectos dos níveis anteriores. Um exemplo no campo da religião seria o movimento atual de religiões fundamentalistas. O segundo desdobramento, representa uma tentativa efetiva de transformação vertical e estruturalização superior, exemplificado nos grupos que partem do secularismo racional, adaptados a ele, mas que buscam meios de alcançar níveis de estruturação mais elevados. A busca de elementos que possam viabilizar o processo de transformação vertical pelos grupos caracterizados acima, torna-os fora-da-lei, aqueles que estão fora do modelo explicativo do nível anterior. Citando Tiryakian, Wilber complementa que: “(...) importantes componentes ideacionais de mudança (por exemplo, mudanças na consciência social da realidade) podem com freqüência originar-se em grupos ou setores não-institucionalizados [forada-lei] da sociedade, cujos modelos de realidade poderão, em determinados momentos históricos, transformar-se naqueles que substituirão os padrões institucionalizados e tornar-se, por sua vez, novos projetos sociais.” (Wilber, opus cit., p.134). Porém, Wilber adverte para o risco de se considerar todo movimento advindo dos fora-da-lei como legítimo. Ele julga que não se pode julgar todos os movimentos originados da crise do pensamento da década de 60, por exemplo, como legítimos. Vai fazer uma distinção dos fora-da-lei em pré-leis, contra-leis e trans-leis. Os pré-leis seriam os que não preparados para a transformação de nível se prendem em formas míticas ou mágicas (cita a astrologia, vudu, tarô etc). Os contra-lei representam os movimentos de contracultura em geral que apesar de externamente 171 conterem elementos que supõem estruturalização superior representam uma repetição caricatural-oposta do modelo anterior (Wilber chama de movimento adolescente rebelde). Os trans-leis seriam os que verdadeiramente são capazes de desenvolver uma transformação de nível. Concluindo a abordagem de uma visão transpessoal da crise atual da sociedade, podemos identificar que há um consenso entre os autores com essa orientação de que o grande problema da humanidade é o seu anseio de retornar à experiência de nossa divindade, já que essa é a força motivadora mais profunda na psique humana, em qualquer nível de consciência considerado. A busca dessa transcendência requer a “morte” do ser separado, exclusivo, identificado parcialmente com seu ego. Porém, o apego ao ego e o medo da “morte” faz com que o indivíduo busque elementos substitutos à unidade da divindade, específicos em cada nível da estrutura de consciência. Portanto, o sentimento de plenitude para o feto será o êxtase experienciado no útero e no seio bom, para uma criança será a satisfação dos impulsos fisiológicos básicos da idade, para um adulto se desdobra em uma diversidade de substitutos eleitos entre comida e sexo e também dinheiro, fama, poder, aparência, conhecimento etc. A contradição dessa busca diante dos elementos substitutos — insuficientes para a plenitude do indivíduo — acarretaria o processo descrito por Wilber, quando analisa as religiões: ou os indivíduos regridem e fixam-se de forma exacerbada nos elementos do nível anterior ou buscam novos elementos capazes de transcender a um nível mais adequado. Portanto, a crise social passa por um processo de mudança na estrutura de valores e princípios: “(...) Parece que estamos todos coletivamente envolvidos em um processo semelhante à morte e renascimento psicológico que muitas 172 pessoas experienciaram individualmente em estados holotrópicos de consciência. Se continuarmos a exteriorizar (act out) as problemáticas tendências destrutivas e auto-destrutivas que têm origem nas profundezas do inconsciente, sem dúvida destruiremos a nós mesmos e à vida no planeta. Porém, se conseguirmos internalizar esse processo em uma escala suficientemente grande, isso poderá resultar em um progresso evolutivo que poderá nos levar muito além da nossa atual condição de primatas. Por mais utópica que pareça, a possibilidade de tal desenvolvimento pode ser a nossa única chance real.(...) Mas, mesmo uma radical mudança intelectual para um novo paradigma, em grande escala não seria suficiente para aliviar a crise global e reverter o curso destrutivo em que nos encontramos. Para isso, é necessária uma profunda transformação emocional e espiritual da humanidade.” (Grof, 2000, p.351). O que podemos entender por transformação emocional e espiritual da humanidade? A questão acima nos remete à necessidade de refletir tanto sobre os mecanismos que podem levar a essa transformação como sobre os aspectos individuais e sociais que precisam ser transformados. É o que abordaremos no próximo tópico. 6. 7 - REVOLUÇÃO SILENCIOSA As experiências de alterações radicais no sistema de crenças e valores e, consequentemente, nos comportamentos dos indivíduos, nem sempre são experiências transpessoais provocadas. Muitos indivíduos têm relatado a vivência de momentos ou períodos de crise existencial pessoal, que resultaram em uma expressiva mudança de valores, com alteração na forma de integração e interação na sociedade e na vida. Pierre Weil (1982) chama essas experiências de Revoluções Silenciosas. Parece que o potencial de “cura” — tratada aqui como melhora das condições de vida — e transformação é semelhante ao obtido nas experiências transpessoais provocadas. 173 Em sua obra A Revolução Silenciosa — Autobiografia Pessoal e Transpessoal, Pierre Weil (1982) descreve o seu próprio processo de transformação a partir de um estado identificado por ele como de crise existencial provocado pelo “tédio e vazio do homem realizado”. Com essa expressão Weil descreve como, tendo obtido todos os itens normalmente associados ao sucesso em nossa sociedade ocidental — sucesso e reconhecimento profissional, conforto material, extrema tranqüilidade financeira, lazer etc. — não se sentia satisfeito. As explicações obtidas em seu processo terapêutico tradicional não atendiam na procura de alívio para sua angústia existencial: “Foi então que entrei na grande crise existencial. Ela se caracterizou antes de tudo pelo tédio, seja sozinho ou, o que é muito pior, a dois. O tédio e o vazio provocado paradoxalmente pela satisfação de todos os meus desejos. Hoje eu posso dizer que isso foi o resultado de uma vida baseada predominantemente no TER em vez de no SER. Eu não tinha consciência nenhuma de que o problema estava dentro de mim, e a solução também.”(Weil, 1982, p.53). A partir de diversos caminhos, como terapias experienciais, ioga, psicodrama, práticas artísticas e musicais etc., seus valores começaram a se transformar. Mas o grande desafio foi, sem dúvida, um período onde teve que conviver com um tratamento de um câncer. Durante sete anos não teve certeza se iria sobreviver, vivenciando momentos de profunda angústia. Em contrapartida, ainda no leito do hospital, percebeu-se mais aberto e sensível à dor humana: “O medo da morte me levou a começar a pesquisar sobre o após a morte, e também a procurar sistemas de vida mais sadios.”(Weil, opus cit., p.55). Todos os caminhos levaram a uma transformação radical na sua perspectiva e interação na vida. O fato de se identificar uma crise em indivíduos que alcançaram fases de significativo sucesso material, já foi apontado no início de nosso presente trabalho, 174 quando destacamos a visão do autor de Encontrando a Esperança na Era da Melancolia, David Awbrey (1999), que relata as altas estatísticas de crise de melancolia nesses indivíduos. Um grupo de experiências que costumam levar a grandes transformações na estrutura de valores, são as Experiências de Quase Morte — EQM. Normalmente, as EQM são vividas pelos indivíduos com uma grande manifestação de fenômenos que escapam à possibilidade dos modelos tradicionais da ciência, sendo portanto, objetos de estudo pelas diversas áreas transpessoais. Muitas pesquisas tem sido desenvolvidas na área da tanatologia (Ariés, 1990; Kübler-Ross, 1992, 1996) oferecendo inúmeros subsídios para os trabalhos e reflexões transpessoais. Parece que o fato do indivíduo deparar-se com a possibilidade de aniquilamento da vida física de forma radical provoca a entrada em experiências transpessoais ou emergências espirituais, conforme Grof, tendo também como conseqüência grandes transformações para os que sobrevivem. Quando nos referimos a EQM, queremos designar um grande grupo de experiências, não somente aquelas associadas ao coma profundo e prolongado, mas também os acidentes de trânsito, ataques cardíacos, tentativas de suicídio frustradas etc., que podem, em alguns segundos, provocar uma significativa transformação posterior. As implicações na qualidade de vida do indivíduo, sua hierarquia de valores e estratégias de vida parecem ser expressivas nas experiências de confronto com a morte, seja simbólica — em meditações, sessões de terapia experiencial, emergências espirituais ou terapia holotrópica (Grof) — seja real — acidentes, guerras, campos de concentração, ataque cardíaco. 175 Fernandes (1995), em estudo específico sobre a EQM, resume diversas pesquisas sobre os padrões de mudança nos indivíduos que passam por essas experiências: redução do medo da morte, senso de onipotência (senso de maior controle sobre a vida), sentimento de importância especial ou destino a cumprir, sensação de preciosidade (valor) da vida, sentido de urgência e reavaliação de prioridades (hierarquia de valores) e redução da cautela. Daremos um destaque ao item sobre a hierarquia de valores pela aproximação com a nossa reflexão: “Um sentido de urgência e reavaliação de prioridades (hierarquia de valores): O sentido de urgência refere-se a uma necessidade que o indivíduo apresenta de realizar algo de significativo em sua vida e na coletividade, tendo em vista que passa a se orientar de modo mais dinâmico. Uma reavaliação em sua própria hierarquia de valores sucede muitas vezes, porquanto sua percepção dos acontecimentos da vida se altera significativamente. Nessa situação, são comuns os relatos de comportamentos altruísticos e solidários.” (Fernandes, 1995, p. 11). Em seu estudo, Fernandes (1995) destaca que o plano principal, onde se realizam as mudanças, verifica-se no âmbito da axiologia, já que os indivíduos passam a orientar suas vidas pelos valores do modo ser de existência, e não pelo modo ter. Além disso, afirma: “É possível ainda que as conseqüências pragmáticas da EQM resultem de uma mudança ainda maior, ou seja, do grau de conscientização que o indivíduo alcançou quando de sua relação direta com a morte. Este confronto com a morte leva o indivíduo, em muitos casos, a uma verdadeira mudança de consciência (expansão de consciência), a partir da qual a realidade adquire para ele um significado mui diverso. Este fato é semelhante aos relatos dos que passaram por experiências místicas ou religiosas ou transpessoais (cf. Weil, 1993).” (Fernandes, opus cit., p.4). 176 Outro aspecto que aproxima de forma determinante nosso estudo das pesquisas sobre EQM diz respeito à profunda mudança na concepção e vivência de espiritualidade pelos indivíduos. Segundo Ring (1997, p.190) as transformações se dão em um despertar geral para os mais elevados potenciais humanos, maior apreciação da vida, redobrado interesse pelo bem-estar do próximo, aumento da auto-estima, maior apreciação do ser humano em geral, busca de auto-conhecimento, crença em uma unidade que interliga as religiões, despertar espiritual e de crescimento do indivíduo, convicção de que existe vida após a morte independente da crença religiosa e transformação espiritual radical (principalmente seu conceito de si mesmo, abertura para a Doutrina da Reencarnação etc.). 6. 8 - A QUESTÃO DE VALORES E SUAS MUDANÇAS: Ao pensarmos, então, nos valores humanos e na necessidade de mudança do quadro destes valores como possibilidade de superação da crise da sociedade, podemos nos questionar sobre quais valores devem ser modificados. Essa questão apresenta uma grande dificuldade: a da classificação dos valores. O desafio é significativo pois poderíamos encarar o tema sob diversos pontos de vista e sistemas de classificação. Principalmente, se tivermos que nos concentrar nos valores que convergem para a questão ética do indivíduo. Ao pensarmos em uma perspectiva transpessoal — que estabelece um elo de vinculação entre indivíduo, sociedade e natureza — os valores éticos passam a ter um fator complicador de relevância: os padrões éticos para o indivíduo devem contemplar também o princípio da vida social e da natureza. Encontrar um nível mínimo necessário e suficiente passa a ser o grande desafio. Weil (2000) designa 177 esse processo de encontrar o Conforto ou Condição Essencial, onde os elementos constitutivos do universo teriam preservadas suas condições básicas para manter o princípio da vida. Ele define três valores fundamentais para o Conforto Essencial: • Segurança (conservação do indivíduo): alimentação sadia na medida saudável, um habitat que assegure proteção contra as intempéries, condições de higiene e limpeza em prol da saúde; • Sensualidade (conservação da espécie): liberdade de expressão do prazer sexual e da função procriativa; • Poder (conservação da sociedade): liberdade de assumir funções na sociedade de acordo com as capacidades individuais e as necessidades essenciais da organização social. Esses seriam aspectos já discutidos pela ciência tradicional sobre uma possível hierarquia de valores. Quem muito insistiu sobre a existência de uma hierarquia de valores foi Abraham Maslow, defendendo a tese de que tais valores — ou metamotivos — correspondem a uma necessidade cuja satisfação e carência é tão ou mais significativa que as necessidades orgânicas. Uma conseqüência direta da reflexão sobre a mudança de valores recai na questão do sentido que esta mudança pode ter na vida dos indivíduos e da sociedade. Parece lógico que os esforços devem se concentrar na transformação dos comportamentos destrutivos — em uma visão mais ampla que a exclusivamente individual — em outros mais construtivos, conservadores e promotores da vida. Uma das aplicações que podemos identificar, na prática, seria a ética na utilização das 178 tecnologias que possam representar ou um decréscimo ou uma elevação dos níveis de Conforto Essencial, tanto do indivíduo quanto da sociedade e natureza. Um exemplo de como essa utilização pode ser negativa são os meios empregados para a elevação do consumismo em detrimento de um equilíbrio ecológico correspondente, ameaçando a vida no planeta. A capacidade de lidar com os aspectos de uma hierarquia de valores de forma harmônica parece exigir a consideração dos outros aspectos explicitados anteriormente que complementam a escala da hierarquia. O equilíbrio no trato com esses aspectos exige o que Grof chama de Inteligência Espiritual — fazendo uma analogia ao termo Inteligência Emocional de Daniel Goleman (Goleman, 1995) — : “A inteligência espiritual é a capacidade de conduzir nossa vida de tal forma que ela reflita uma profunda compreensão filosófica e metafísica da realidade e de nós mesmos.” (Grof, 2000, p.322). Em todas as abordagens transpessoais, a mudança de valores é uma conseqüência imediata e uma necessidade premente da transformação espiritual do indivíduo e da sociedade: “Mestres espirituais de todos os tempos parecem concordar que a busca de objetivos materiais, em si e por si, não pode trazer-nos satisfação, felicidade e paz interior. O vertiginoso crescimento da crise global, da deterioração moral e de descontentamento crescente, acompanhando o aumento da afluência material nas sociedades industriais, dão testemunhos desta antiga verdade. Parece haver concordância geral na literatura mística de que o remédio para o mal-estar existencial que assedia a humanidade é entrar para seu interior, buscar as respostas em sua própria psique e passar por uma profunda transformação psicoespiritual. Isto, é claro, levanta a questão sobre a natureza e a direção das mudanças pelas quais temos que passar para melhorar nossa qualidade de vida.” (Grof, 1998, p. 216). Entretanto, a modificação de valores individuais não resulta apenas em benefício pessoal do indivíduo. Quanto mais ele se aprofunda no processo de autoexploração e se descobre elemento integrado e interdependente das diversas formas de vida do universo, identificando-se com vários aspectos e processos da cri- 179 CAPÍTULO 7 O “DIÁLOGO” “Para sair do século XX, [deveríamos chegar a uma] certa convivência com nossos mitos, e que nossa Razão dialogue com nossa paixão; que aceitemos a incerteza, convivamos com a angústia, em vez de repetí-la. Todo crente tem uma parte de si que duvida; todo não crente, uma parte de si que crê: uma diferença infinita os separa, mas também uma diferença ínfima, se eles emergem à consciência do diálogo inevitável entre a fé e dúvida, que se agita em cada um.” (Edgar Morin) 180 Uma conversa pode encerrar diversos tipos de comunicação e, dependendo dos interlocutores, desencadear vários tipos de resultados. Em alguns casos, um dos interlocutores se julga único conhecedor do assunto da comunicação e participa como aquele que vai falar ao outro que não sabe. Em outros, os dois interlocutores acham que sabem tudo sobre o assunto da comunicação, e passam a querer convencer um ao outro das suas “verdades”. O resultado dessa conversa normalmente é a desavença, o distanciamento ou uma postura de considerar o outro como ingênuo, imaturo ou despreparado, em uma atitude pseudo-adulta que esconde a presunção da exclusividade do conhecimento. Uma outra possibilidade, envolve dois interlocutores que sabem da consistência de seus pensamentos e conhecimentos, reconhecem de forma autêntica seus impasses e lacunas, dispõem-se a ouvir e a considerar o que o outro tem a dizer, sem compromissos ou imposições com mudanças de pontos de vista, entretanto com grande oportunidade de crescimento para ambos. Nesse caso, tem-se o que se pode considerar um diálogo. Nossa tarefa chega, talvez no seu ponto culminante: procurar promover um “diálogo” entre saberes distintos, sem pretender convencer ou impor pontos de vista, mas visando compartilhar visões, opiniões, abordagens... Partimos de um quadro de crise da sociedade ocidental atual, procurando apresentar as principais características que o pensamento e o conhecimento ocidental vêm trazendo para a compreensão dessa crise. Utilizamos o referencial da Psicossociologia, enfatizando o conceito de indivíduo utilizado pela ciência tradicional e, principalmente, a ideologia individualista que tem o indivíduo como principal valor intrínseco da sociedade ocidental. Apontamos as origens e as conseqüências desse processo na sociedade, bem como as lacunas e os impasses. Consideramos, também, a partir da Psicologia Transpessoal, uma concepção de indivíduo — 181 o indivíduo composto — compatível com as principais e milenares tradições orientais, e apoiada em extensas pesquisas com os estados alterados de consciência, remetendo a uma outra compreensão de indivíduo, sua relação com a sociedade e com o universo. Uma abordagem que vê a crise como a transformação de valores, como uma crise espiritual. Nosso objetivo é promover um diálogo entre essas duas perspectivas que poderá oferecer maiores possibilidades de solução para alguns dos impasses do conhecimento humano. Algumas dificuldades de se manter um “diálogo”, como o que pretendemos, devem ser consideradas. Uma das principais foi a da utilização da terminologia. Ao longo de todo o trabalho, o leitor pode observar a utilização de expressões e termos — como moderno, explicação, universal, estrutura, hierarquia, natural, essência, cultura etc. — quando apresentamos as abordagens transpessoais das cartografias do psiquismo, da estrutura dos níveis de consciência e dos aspectos relacionados à crise. O uso deliberado dessas expressões resultou de uma escolha de nossa parte, que procurou preservar a originalidade das posturas dos autores encontrados na Psicologia Transpessoal. Estamos cientes da impossibilidade de explorar as repercussões e abrangência que a utilização de cada termo ou conceito expressam, principalmente diante das diversas contribuições já realizadas pela Ciência. É claro que cada expressão poderia remeter a uma reflexão complexa sobre a contextualização e coerência de seu emprego, mas diante da proposta de nosso trabalho, não caberia esse aprofundamento, pelo menos neste momento. Portanto, a escolha por esse recorte não desconsiderou a importância e complexidade dos termos, podendo estar sujeita à crítica do leitor quanto aos critérios — a nossa conta e risco —, nunca por ser irresponsável ou irrefletida. Apenas traduziu uma tentativa de priorizar os debates que podem decorrer de nossa reflexão. 182 As discussões sobre a nova concepção de indivíduo apresentada, as noções de integração e interdependência das dimensões individuais, sociais e ambientais, as possibilidades de se pensar a crise da sociedade ocidental como uma crise de valores éticos, as questões relativas a uma certa universalidade de modelo de consciência que subjaza aos aspectos culturais, são exemplos dos temas que parecem emergir de nossa reflexão, até aqui, e que poderiam resultar na produção de novos trabalhos em programas de mestrado e doutorado. Se assim for, um dos objetivos da proposta de um “diálogo” transdisciplinar com a Psicologia Transpessoal terá sido alcançado, na medida em que amplia as discussões e perspectivas de alguns impasses do conhecimento humano atual sobre o homem, a sociedade e o sentido da existência. A promoção de um “diálogo” transdisciplinar dessa ordem passa também pela superação de outra grande dificuldade inicial. Cada um dos interlocutores desse “diálogo” possui um conjunto de premissas filosóficas implícitas bem definidas e com características bem diversas. Portanto, enquanto a ciência clássica trabalhou em uma abordagem e perspectiva materialista, mecanicista e atomista, as tradições orientais, de modo geral, sempre trabalharam com uma premissa espiritualista, sistêmica e universalista. A possibilidade de uma reflexão comparativa ou que procure considerar as possíveis contribuições de um saber para outro deve levar em conta essa diferença básica. Exige uma atitude empática — no sentido das abordagens humanistas da psicoterapia — onde se procura colocar no lugar do outro como se fosse o outro, mas apenas como se fosse, permitindo uma ampliação na compreensão dos valores e perspectivas daquilo que é diferente. 183 7.1 — APROXIMAÇÕES 7.1.1 — Modelos relacionais e as faixas biossociais Inicialmente, iremos abordar algumas das principais aproximações identificadas ao longo de nosso trabalho. Um dos pontos de vista mais importantes da contribuição da Psicologia Transpessoal, trazido das tradições orientais, é a interdependência e interrelação entre todas as partes constitutivas do universo. Mesmo reconhecendo os dualismos verificados a partir do pensamento, o olhar transpessoal está apoiado na hipótese de que existe uma rede de interrelacionamentos entre os níveis de consciência do homem e, em determinados destes níveis, a consciência de sua interrelação com outros indivíduos, grupos sociais, natureza etc.. Como vimos, quando tratamos da base psicossociológica da crise, verificamos que essa abordagem já é desenvolvida pela ciência tradicional através dos modelos relacionais. A aceitação e verificação da complexidade dos objetos de estudo — os objetos híbridos — e a forma de relacionamento entre eles — as redes — acabam por resultar em uma aproximação dos conceitos de interdependência, interrelação e integração também defendidos pela Psicologia Transpessoal. A verificação, principalmente por Latour (1994), da importância dos estudos da hibridação e purificação demonstraram a necessidade de relativização do movimento de fragmentação e reducionismo pela ciência tradicional, ampliando os limites das disciplinas estanques para grandes movimentos inter ou transdisciplinares como já considerado anteriormente. 184 Nesse ponto de nosso trabalho, julgamos importante estabelecer um “diálogo” entre os modelos relacionais e a Psicologia Transpessoal. Como mencionado, os trabalhos de Norbert Elias e Pierre Bourdieu já sinalizam para uma tendência de se privilegiar modelos que considerem o entrelaçamento incessante e irredutível de relações e funções entre indivíduos, ou seja, o rompimento da alternativa ou INDIVÍDUO ou SOCIEDADE, para uma outra que, além dessas dimensões (ou pólos) considere também a função e relação existente entre os seus diversos componentes. As questões apresentadas por Elias (1994) sobre quais os fatores que levam ao fenômeno social — a partir de indivíduos isolados e não intencionados, na maioria das vezes, a atuar na estrutura social — levam-nos a dialogar com a noção da Psicologia Transpessoal de uma interdependência dos níveis de consciência dos indivíduos entre si através de um nível onde essa separação Eu x Mundo são transcendidas. Por outro lado, Pierre Bourdieu (1990) aborda a influência das posições de classe relativas no espaço social e do habitus que cada indivíduo possui, e que também é influenciado pela posição social a partir do qual se constrói, chegando a afirmar que o indivíduo constrói a sua realidade de forma dupla — objetiva e subjetivamente — ou seja, enquanto estrutura o campo social em que está inserido, também é estruturado por esse campo e suas características. Esse último ponto de vista converge para a proposta de Wilber no seu Espectro da Consciência no que chamou de Faixas Biossociais. Para Wilber, as Faixas Biossociais determinam, diretamente, a existência da civilização, da cultura, sociedade e do indivíduo (Wilber, 1996, p.181). As percepções dos dualismos associados a esse nível do Espectro de Consciência, resultam em um homem que se sente um organismo fundamentalmente separado de tudo, que existe no espaço e perdura no tempo, sendo essa a percepção básica da 185 existência. Portanto, o sentido da existência será marcado pelos fatores biológicos (transmitidos geneticamente) e pelos fatores sociológicos — como a estrutura de linguagem, sistemas de valores sociais, as regras implícitas e inconscientes da comunicação. Os mapas simbólicos internalizados no processo de individuação serão representados pela linguagem, perspectiva religiosa básica, estrutura familiar, tabus, regras de comunicação etc. Para Wilber, os mapas simbólicos têm como finalidade garantir uma percepção anterior do indivíduo em formas convencionais aceitáveis e significativas para a sua sociedade. Quanto mais o indivíduo interioriza com sucesso os mapas ou conjuntos de relações simbólicas que constituem a sua sociedade, maior será o seu sentido de pertencimento e, com isso, passa a ser socialmente integrado. Podemos inferir que, quando o processo de internalização de mapas simbólicos é manipulado visando determinados objetivos estabelecidos por um indivíduo ou grupos de indivíduos, estaremos nos aproximando do sistema de violência simbólica tão bem descrito por Bourdieu. Segundo a descrição de Wilber, o mecanismo do dualismo faz com que estabeleçamos descrições parciais da realidade que são aceitas como a própria realidade. A partir da atuação de um Filtro da Faixa Biossocial, acabamos por nos “esquecer” de que era apenas uma descrição parcial e todos os aspectos que não se enquadram nessa descrição acabam permanecendo no inconsciente biossocial. A prevalência das interpretações perceptivas que visam garantir o sentido de pertencimento do indivíduo “escondem”, no inconsciente biossocial, todos os aspectos relacionados à percepção do Nível Existencial de Wilber, onde o indivíduo se integra com as demais dimensões do universo. Apesar de estarem em um nível inconsciente, atuam indiretamente. Podemos avaliar que, na Sociedade Ocidental contemporânea, os filtros biossociais determinarão uma maior importância e 186 internalizarão valores, tabus, regras, linguagem etc. relacionadas aos valores do individualismo, valores econômicos, modelos de sucesso, competitividade e inúmeros outros aspectos relacionados ao longo desse trabalho. O indivíduo busca, por um lado, o sentido de pertencimento a essa sociedade, através de sua cultura, posição socio-econômica etc.. Entretanto, podemos supor — segundo o modelo de Wilber — que no inconsciente biossocial, existe todo o sentido de pertencimento à totalidade, à realidade una, não dual, integrada, interdependente e interrelacionada do universo, característico do Nível Existencial. Há um movimento automático na direção da solução desse conflito que é ao mesmo tempo individual e expressão de um coletivo semelhante. Essa posição é reforçada pelas pesquisas de Grof ao identificar um grupo de experiências transpessoais, verificadas em indivíduos de diversas culturas e sociedades, onde há uma significativa identificação do indivíduo com outros indivíduos, com segmentos sociais, raciais, com aspectos ecológicos e até com a humanidade como um todo. A crise da Sociedade Ocidental, nesse sentido, poderia expressar (a) o conflito interno e geral entre os mapas simbólicos insuficientes na solução dos principais problemas do indivíduo e da sociedade, (b) a verificação dos efeitos individuais e sociais negativos da internalização desse conflito e (c) a busca, ainda não consciente, de valores e níveis de consciência compatíveis com as estruturas mais transcendentes do indivíduo. 7.1.2 — Universalidade do Indivíduo A outra reflexão que pode representar uma aproximação importante no “diálogo” refere-se ao conceito de indivíduo em Dumont (1985) — nos seus dois 187 sentidos — comparado a um certo universalismo dos modelos de cartografia do psiquismo estabelecido pela Psicologia Transpessoal. Ao avaliarmos a base psicossociológica de nossa discussão sobre o individualismo, em que privilegiamos o trabalho de Dumont (1985), destacamos o conceito utilizado por esse autor para indivíduo. Vimos, naquela oportunidade, como as sociedades modernas estão marcadas pelo segundo sentido dado por Dumont ao termo como “ser moral, independente e autônomo e, assim, (essencialmente) não social (...)” (Dumont, 1985, p. 75). Esse sentido do termo justifica-se pelo percurso histórico do individualismo ocidental, principalmente diante das influências dos movimentos religiosos e políticos encetados pela sociedade ocidental. Entretanto, o primeiro sentido do termo nos leva a uma discussão importante no “diálogo” com a Psicologia e movimento Transpessoal. No primeiro sentido do termo indivíduo dado por Dumont, destaca-se o caráter de ser uma amostra indivisível da espécie humana, “tal qual o observador encontra em todas as sociedades” (grifo nosso). Essa abordagem aproxima-se significativamente da base tomada pela Psicologia Transpessoal, que busca demonstrar uma certa universalidade ou essência comum de consciência do ser humano, independente da diversidade dos fatores como cultura, sociedade, raça etc. A busca de confirmação de conceitos como Mente, Consciência Cósmica etc, também referese a essa tendência de encontrar ou sistematizar, conceitos universais que possam dar conta de uma gama maior de fenômenos e experiências humanas e sociais. Wilber chega a fazer uma inferência sobre a possibilidade dessa universalidade a partir do dado concreto da composição do corpo humano: todos temos dois rins, dois braços etc, sugerindo que a natureza da consciência humana e sua dinâmica seriam semelhantemente universais. 188 Vale ressaltar que todo o modelo de desenvolvimento das estruturas em níveis de consciência e o crescimento dentro da estrutura de níveis de Wilber — que vai delinear uma possibilidade de reflexão sobre os movimentos sociais mais amplos — parte do entendimento de um movimento individual, ou seja, o indivíduo começa a percorrer um caminho em que dinamiza as etapas do desenvolvimento mais abrangente. Podemos observar, aqui, a ênfase que a Psicologia Transpessoal dá a uma nova concepção de indivíduo, mais ampla e abrangente. Esperamos ter ficado claro que a Psicologia Transpessoal não desconsidera a influência dos aspectos culturais e/ou sociais no processo de individuação humanos e que os autores abordados destacam a importância desses aspectos — propondo uma tentativa de integração da dinâmica de participação dessas dimensões no indivíduo e na sociedade. Identificamos no “diálogo” outras importantes aproximações, sugerindo um movimento espontâneo de convergência em direção a algumas questões. Um exemplo é a dos conceitos de Wilber e Dumont sobre uma hierarquia de valores com características universais e que fundamenta todo o processo de desenvolvimento humano. Pelas características dos trabalhos, Dumont tende a ser mais concentrado na sua discussão, enquanto Wilber amplia sua abordagem. Dumont, sobre o tema, chega a afirmar que: “Cada configuração particular de idéias e de valores está contida com todas as outras numa figura universal de que ela é uma expressão parcial. Contudo, essa figura universal é tão complexa que não pode ser descrita mas apenas vagamente imaginada, como uma espécie de integral de todas as configurações. Assim, é impossível apreendermos diretamente a matriz universal em que está enraizada a coerência de cada sistema particular de valores, mas a qual será perceptível de uma outra maneira: cada sociedade 189 ou cultura possui o cunho distintivo de sua ideologia no interior da condição humana. (...) Assim, em toda a sociedade concreta existe o cunho desse modelo universal, o qual se torna perceptível, em algum grau, logo que a comparação começa.” (Dumont, 1985, p.275). Podemos assinalar que Dumont, apesar de tratar de uma certa universalização da estrutura de valores, não considera a possibilidade de desenvolvimento dessa estrutura. Essa será uma das críticas feitas ao seu trabalho e que retomaremos mais adiante, quando discutirmos a chamada bidimensionalidade mínima do modelo. O que podemos observar — quando avaliamos as aproximações — é que alguns desses pontos demonstram uma possibilidade de aprofundamento de aspectos levantados pelo “diálogo”. Sugerimos que tais pontos possam ser “ouvidos” pela ciência tradicional como importantes aspectos de reflexão ou de re-avaliação em cada disciplina e, principalmente, nas propostas transdisciplinares. Vamos abordar esses Domínios Inexplorados no próximo item. 7. 2 - DOMÍNIOS INEXPLORADOS Por Domínios Inexplorados estamos entendendo os aspectos levantados pelo nosso trabalho que demonstram claramente a necessidade de uma maior exploração por parte de todos os saberes envolvidos no nosso “diálogo” transdisciplinar. Não queremos dizer com isso que haja uma obrigatoriedade dessa exploração por parte de qualquer disciplina, mas parece emergir um interesse imediato a partir das reflexões estabelecidas. Nosso objetivo será o de apontar os aspectos que nos pareceram mais imediatos e claros: a ampliação da discussão sobre hierarquia, a sociologia transpessoal e a estrutura de valores que podem estar envolvidas na discussão da crise. 190 7.2.1 — Explorando uma Teoria de Hierarquia O primeiro domínio que nos parece ainda inexplorado é o que trata da questão da hierarquia. Duarte (1986) analisa as principais características e os desdobramentos sobre o que Dumont chamou de Teoria da Hierarquia. Segundo Duarte (1986), Dumont substitui a lógica aristotélica de hierarquia por uma “lógica hierárquica” onde o elemento faz parte do todo, sendo idêntico mas ao mesmo tempo distinto — englobamento do contrário. Outra característica da teoria de Dumont é a chamada bidimensionalidade mínima do modelo em que a hierarquia supõe a distinção de níveis: um nível superior (unidade) e outro inferior (distinção por complementaridade ou reciprocidade). Como conseqüência, os dois primeiros aspectos só terão sentidos se forem considerados ocorrendo dentro de uma totalidade. As dificuldades de comparação entre os diferentes aspectos da realidade humana, exigiram o desenvolvimento do conceito de inversões hierárquicas: o que é superior em um nível superior pode ser inferior em um nível inferior. Por último, a Teoria da Hierarquia considera a questão da situação de cada aspecto ser distinta e diferenciada pelo valor que a ela é atribuído. Se observarmos as descrições de Dumont veremos a utilização de uma série de conceitos e definições que se aproximam dos princípios transpessoais estudados. Dumont entende que a hierarquia é um fenômeno universal; que o indivíduo enquanto valor só aparece na ideologia individualista das sociedades modernas; e que o valor é o que faz a diferença em uma relação hierárquica. Entretanto, suas premissas não são capazes de dar conta da diversidade das experiências e fenômenos humanos. Duarte (1986) apresenta algumas críticas a Dumont tendo por base estas lacunas. A primeira delas refere-se a uma dificuldade de Dumont em conciliar 191 sua visão de sociedade (unidades/totalidades sociais) e a arquitetura interior das sociedades a partir do conceito de ideologia (Duarte, 1986, p. 49). Há uma importante contradição aqui, pois Dumont vai tratar os elementos básicos da ideologia como implícitos ou não conscientes e a hierarquia seria um resíduo, o lado não consciente da ideologia. Porém, considera que as sociedades modernas tratam individualismo como ideologia básica, principal, predominante e consciente, resultando em uma contradição conceitual. Outra crítica refere-se a uma ambigüidade das referências do autor ao tratar das oposições binárias entre os níveis hierárquicos cujo encadeamento, para Duarte, quando aplicamos o modelo na realidade da vida social, não parece poder ser linear como trata Dumont. Ao considerarmos as contribuições da Psicologia Transpessoal através do “diálogo” proposto, podemos refletir sobre as lacunas do pensamento de Dumont. Parece-nos que a grande dificuldade de Dumont está exatamente em não considerar as estruturas hierárquicas como sendo multidimensionais. Quando apresentamos, anteriormente, o resumo do desenvolvimento das estruturas dos níveis, como conseqüência da Psicologia Transpessoal, estabelecemos pelo menos três dimensões equivalentes: Indivíduo, Sociedade e Natureza. Daí pode resultar uma alternativa para os impasses de Dumont quando procura comparar diversos aspectos pela sua Teoria da Hierarquia, já que poderemos identificar valores relacionados às três dimensões mas com formas de expressão diferentes, dificultando uma comparação linear simples. Quando compara, por exemplo, o individualismo em uma hierarquia de valores e níveis superiores ou inferiores, com Holismo, está utilizando parâmetros de duas dimensões diferentes que, na abordagem transpessoal, são integradas e interdependentes, não podendo ser comparadas hierarquicamente. 192 Quando Dumont fala do englobamento do contrário, isto é, um nível superior — como unidade — sempre engloba o contrário — como distinção —, recai no mesmo problema, dificultando uma análise completa dos fenômenos sociais sem gerar conflito nas conclusões sobre a comparação dos valores. Portanto, quando Duarte (1986) avalia a configuração de valores do individualismo, descreve-a como apoiada na idéia de indivíduo autônomo e independente, com um compromisso com os valores da liberdade e da igualdade. A possibilidade de se desenvolver uma diferença entre idéias e valores pode representar, segundo Duarte, uma saída para o impasse conceitual criado. Duarte chega a admitir que o grande núcleo polêmico do modelo dumontiano é o da oposição entre holismo (hierarquia) / individualismo. Duarte também aponta algumas implicações fundamentais da configuração de valores atribuída ao individualismo da sociedade ocidental. Essas implicações nos remetem à alguns aspectos da crise que temos delineado em nosso trabalho. A primeira implicação é a fragmentação dos domínios. Para Duarte, a ideologia acaba por privilegiar uma racionalidade formal e sustenta uma visão de mundo laicizada, desmembrada em domínios, disciplinas, setores etc. estanques e autônomos. Os efeitos dessa implicação na ciência já foram mencionados nesse trabalho, bem como os desdobramentos na crise pelo isolamento, fragmentação e a perda de referenciais em geral dos indivíduos. A segunda implicação está no achatamento do mundo, ou seja, a ideologia individualista acaba por provocar um achatamento da percepção da vida social e, principalmente, pela recusa de qualquer forma de transcendência, com a perda da poliformia “natural”, “sobrenatural”. Esse achatamento da visão de mundo pode estar apontando para o caráter espiritual da crise, conforme defendem os autores transpessoais. A ênfase no individualismo ocasionou o achatamento 193 reduzindo a percepção das dimensões espirituais que, apesar disso, emergem como parte das necessidades humanas não atendidas e ainda não conhecidas conscientemente. A última implicação que pode ser relacionada à crise ocidental trata-se de uma contradição que pode gerar, intimamente nos indivíduos, um grande conflito: se a hierarquia é universal, uma ideologia como o individualismo que a nega acaba por se apresentar como “artificial”, “paradoxal” ou “anti-sociológica”. Essa contradição poderia gerar nos indivíduos alguns efeitos negativos da crise, relacionados às perdas de referenciais. A necessidade de apreensão de uma nova estrutura ou configuração de valores parece ser uma alternativa para a crise ocidental. O próprio Dumont já apontava para esse aspecto em sua obra: “É muito possível que exista, na verdade existe, uma necessidade de reintroduzir um certo grau de holismo em nossas sociedades individualistas, mas isso só pode ser feito a níveis subordinados e claramente articulados, de modo a impedir todo e qualquer conflito de vulto com o valor predominante ou primário.” (Dumont, 1985, p. 251). Fica claro que a posição de Dumont parte de uma prevalência de uma dimensão individual. Tanto é que só considera a introdução de valores holistas em níveis subordinados, de modo a evitar um possível retrocesso nas conquistas individuais atribuídas ao individualismo. A questão que resulta desse ponto de reflexão está relacionada a uma aparente contradição entre os valores positivos identificados na ideologia individualista e no holismo (hierarquia) de Dumont: Como conciliar essas duas tendências? 194 Parece-nos que a possibilidade de um “diálogo” transdisciplinar aponta para uma gama de oportunidades de ampliação das abordagens que podem ser empreendidas por todos os saberes envolvidos. 7. 2. 2 — Exploração de Novas Configurações de Valores Ao introduzirmos o pensamento de Wilber sobre o possível desenvolvimento da estrutura de níveis hierárquicos e sua conseqüência na estrutura de valores, podemos estabelecer alguns pontos de ligação com a crise da sociedade ocidental que também merecem maior aprofundamento posterior. O primeiro aspecto parece referir-se, na estrutura de valores, ao individualismo como valor predominante da sociedade ocidental. Para Dumont, a discussão ficaria entre uma análise comparativa entre individualismo e holismo, de forma linear e simples, fato que limita, no nosso entender, a possibilidade de entendimento da crise. Já Wilber propõe, na sua abordagem de estrutura hierárquica em níveis, a possibilidade — ou até mesmo a necessidade — de se relativizarem as comparações entre alguns aspectos verificados no indivíduo e na sociedade, conforme o nível da estrutura hierárquica a que estariam associados. Portanto, não se poderia comparar simplesmente individualismo com o que Dumont denominou holismo, sem considerar suas estruturas parciais também em níveis. O individualismo seria, nessa abordagem, uma etapa onde o valor Indivíduo se sobrepõe, acentuada e desproporcionalmente, ao valor Sociedade, impossibilitando afirmar se seriam um superior ao outro. Entretanto, a crise da sociedade ocidental poderia representar uma ruptura no processo. 195 Como vimos, para Wilber, a crise poderia expressar uma transição de um nível inferior para níveis superiores de desenvolvimento. Nessa transição, o indivíduo estaria incorporando valores diferentes ou ampliados em relação àqueles que caracterizam a ideologia individualista. Esse movimento de crise pode ser entendido como um processo que ocorre simultaneamente com milhares de indivíduos da sociedade ocidental, que compartilham de algumas características básicas, apesar das diferenças culturais e sociais pertinentes a cada subgrupo. Se o nível em que nos situamos correntemente, orienta-se, eminentemente, por uma estrutura de valores e por objetos de troca relacional de uma dimensão material, sensorial ou egóica, a crise poderia ser a transição para um apreensão dessa dimensão da totalidade da sociedade a que estamos interligados e interdependentes “naturalmente”, em uma transcendência para uma consciência cósmica — totalidade. O advento da crise como transformação (no sentido de Wilber, como a transcendência de níveis de desenvolvimento na estrutura) é feito a partir de uma reorganização dos elementos constitutivos do nível anterior — individualismo, indivíduo como ser moral, valor econômico, materialismo etc. — e o surgimento de uma nova estrutura de valores. 7. 2. 3 — Uma Sociologia Transpessoal a Explorar Nesse ponto, entretanto, acreditamos oportuno destacar que a Psicologia Transpessoal ressente-se, no nosso modo de ver, da ausência de uma abordagem sociológica mais consistente. Apesar de desenvolver um conceito ousado e ampliado de indivíduo, o movimento transpessoal ainda não conseguiu formular uma Sociologia Transpessoal da envergadura da Psicologia Transpessoal, trabalho necessário para os teóricos dessa área. Embora a visão transpessoal não desconsidere as influências culturais e/ou sociais no processo de individuação humanos, não identificamos, até esse momento de nosso trabalho, uma produção teórica que 196 tratasse dos fenômenos sociológicos com a mesma desenvoltura e abrangência da Psicologia Transpessoal. Quando acompanhamos o desenvolvimento do pensamento de Wilber, principalmente em Um Deus Social, observamos que o autor propõe um modelo sociológico com base no processo da dinâmica da estrutura de consciência individual comparando-o à da própria sociedade. Sua proposta está baseada na necessidade de maior entendimento das relações existentes entre as estruturas que representam cada nível e também entre os níveis. Para Wilber, portanto, a sociedade é entendida como um sistema complexo de trocas ou relacionamento social com os níveis correspondentes da organização estrutural do indivíduo e entre os indivíduos no processo mundial em geral. É possível, em conseqüência desse ponto, se pensar no desenvolvimento de uma Psicossociologia Transpessoal, já que o modelo que propomos de integração e interdependência entre as dimensões da realidade — como Indivíduo, Sociedade e Natureza — reflete a necessidade de se pensar os objetos de estudo, em situação. Talvez, o nosso trabalho seja uma possibilidade de sinalizar lacunas e necessidade de desenvolvimento teórico nessa área. A principal contribuição do pensamento de Wilber, para uma visão sociológica mais completa, parece-nos ser a consideração não só das estruturas pré-pessoais e pessoais, mas também das transpessoais da existência humana. Entretanto, não chega a explorar ou avançar significativamente na compreensão dos fenômenos sociais mais amplos. As cartografias do psiquismo apresentadas demonstram a presença de níveis de consciência em que o indivíduo se identifica com os grupos sociais, raciais etc.; 197 pode, com isso, como fizemos, esboçar o entendimento de um certo movimento social mais amplo, entretanto ainda insuficiente para refletir fenômenos mais complexos da dinâmica social. Com certeza, nosso trabalho apresenta bases e premissas importantes de serem aprofundadas como: a interligação e interdependência de todas as partes, a mutidimensionalidade da consciência humana, a integração com uma consciência cósmica, a estrutura de hierarquia dos níveis, a dinâmica da estrutura de valores que envolve o desenvolvimento da consciência, dentre outras. O principal comentário que se pode fazer nessa reflexão, aponta a insuficiência de fundamentação que o movimento transpessoal ainda oferece para o entendimento mais amplo dos fenômenos sociais. Um exemplo de nossa posição pode ser destacado quando analisamos o trabalho de Grof. Em suas pesquisas, fica clara a existência de uma dimensão importante da consciência humana que compreende um sentido de identidade com o campo social mais amplo, com outros campos da realidade humana — como os da espécie humana, outras espécies biológicas, raciais, ancestrais etc — além das realidades, digamos, não-humanas — como as arquetípicas, espirituais, extraterrestres etc. — e das realidades a-temporais — como as memórias de supostas vidas passadas. Todos esses aspectos poderiam ser associados e identificados no processo de individuação e socialização humanas, podendo oferecer parâmetros para compreensão de diversas características e fenômenos na formação da personalidade e do comportamento. Entretanto, não fica explícita a hipótese sobre o funcionamento dessa interdependência e interligação dos “campos” descritos. Seriam campos — como os magnéticos — de características próprias que se interpenetram e, nos quais, os seres humanos teriam a capacidade de absorver e transformar suas experiências no transcurso de sua existência? Questões como essa, podem ser retiradas da reflexão de nosso trabalho como possibilidades de novas pesquisas futuras, fugindo ao objetivo e limites de nossa proposta. 198 No prefácio de Um Deus Social, Roger Walsh afirma que a proposta de Wilber oferece extenso material para que psicólogos e sociólogos ampliem suas pesquisas com as contribuições provenientes dos seus saberes, sob essa nova perspectiva. Um dos desafios que se pode identificar seria o estabelecimento de uma metodologia de pesquisa que favorecesse a reflexão sobre os fatores psicossociais mais amplos observados no complexo sistema de relações humanas. Parece-nos importante que a Psicologia Transpessoal não incorra no erro, verificado em muitas disciplinas científicas, de fechamento em si mesma. Coerentemente com a proposta da abordagem transpessoal, a ampliação das observações devem caminhar no sentido de buscar as interligações e interdependências entre as dimensões que a existência oferece à observação e experimentação. 7. 3 — PERCURSOS DIFERENTES Como resultado de nosso “diálogo”, também pudemos identificar uma série de aspectos que demonstram um percurso — histórico e estrutural — diferente entre os interlocutores. A discussão dessas características deve ser observada para que não se perca de vista a lógica interna de cada saber antes de se estabelecerem críticas ou divergências conceituais. A diversidade demonstrada na comparação desses percursos pode enriquecer as propostas de exploração anteriores. 7. 3. 1 — Religião, Espiritualidade e Ciência A ênfase dada pela Psicologia Transpessoal à espiritualidade, como base de explicação para a crise da sociedade ocidental, coloca-nos diante de um aspecto importante no nosso “diálogo”: a diferença entre Religião e Espiritualidade. 199 Através da história, a religião vem desempenhando um significativo papel na vida humana, desde os estabelecimentos de códigos de conduta e organização social, passando pelo papel de agente do desenvolvimento intelectual e de educação, aos significativos envolvimentos com o poder político e econômico ao longo dos séculos. Como vimos em Dumont, a base do entendimento do movimento ideológico que será conhecido como Individualismo, parte de um processo de dissociação das “amarras” estabelecidas por uma estrutura hierárquica forte, que desconsiderava as necessidades individuais em detrimento de valores totalizantes da sociedade. A evolução de uma visão de totalidade onde o indivíduo era uma dimensão indiferenciada, para uma outra onde o Indivíduo é o valor preponderante, passa por uma transformação nas relações entre o poder religioso estabelecido e os grupos sociais, através das conquistas políticas e econômicas, principalmente nos campos da liberdade e da igualdade. Estamos privilegiando o desenvolvimento do pensamento ocidental. Poderíamos identificar, inclusive, que a tentativa de envolvimento e influência da Religião nos processos políticos e econômicos a partir de uma base dogmática específica, não consegue suportar a revolução gradativa do pensamento científico. Com isso, podemos identificar um claro afastamento ocorrido entre a Ciência e a Religião. A capacidade da Ciência em oferecer informações e explicações para os fenômenos antes atribuídos a manifestações do poder da divindade, em suas diversas denominações, acabou por inferiorizar, infantilizar ou até ridicularizar o envolvimento dos indivíduos com as religiões. A conseqüência natural foi uma supremacia do valor do pensamento racional sobre o místico. Por uma outra perspectiva, uma supremacia da visão materialista sobre uma visão mais espiritualista. Entretanto, esta associação entre Religião e Espiritualidade pode levar-nos a um equívoco importante. 200 Em diversos momentos, os autores transpessoais enfatizam a necessidade de se estabelecer uma distinção entre o que chamamos Espiritualidade e Religião (Grof, 2000; Wilber 1987, 1996). A Espiritualidade se baseia em experiências diretas do indivíduo com aspectos e dimensões não-comuns da realidade. Envolve uma forma de relação, pessoal e particular, entre o indivíduo e o cosmos. Os místicos não necessitam de templos ou de igrejas já que experienciam as dimensões sagradas da realidade, incluindo sua própria divindade, nos seus corpos e na natureza (Grof, 2000, p. 204). Já a Religião organizada representa uma atividade de um grupo institucionalizado, reunido por uma determinada afinidade; envolve, na maioria das vezes, um sistema hierárquico e uma estrutura de funcionamento; necessita de um local como referência para a prática religiosa, como um templo ou igreja. As religiões organizadas tendem a estabelecer sistemas hierárquicos que objetivam poder, controle, política, dinheiro, posses ou outras preocupações seculares, não favorecendo, necessariamente, a vivência de experiências autenticamente espirituais — no sentido estabelecido acima — pelos seus seguidores. A maioria das grandes religiões do mundo foram iniciadas por significativas experiências espirituais — ou holotrópicas nos termos de Grof — que “revelavam” a existência de dimensões sagradas ou divinas da realidade, tornando-se base da orientação religiosa que se seguia: um código ou caminho para alcançar aquelas dimensões. Entretanto, a religião organizada tende a perder a conexão com sua origem espiritual, degenerando doutrinas em dogmatismos, rituais em ritualismos e ética cósmica em moralismo (Grof, opus cit., p. 207). A conseqüência pode ser a exploração das necessidades espirituais dos indivíduos sem atendê-las plenamente. Esse raciocínio converge para a posição de Wilber quando trata das religiões ou ideologias autênticas, ou seja, aquelas que seriam capazes de promover e alcançar os objetivos e necessidades espirituais do indivíduo, diferentemente daquelas 201 que os atendem superficialmente ou incompletamente através da utilização de uma fixação em aspectos pertencentes a um nível inferior de consciência. Parece existir um certo consenso entre os autores transpessoais em relação à capacidade da experiência espiritual de integrar o indivíduo com os outros indivíduos, a natureza, o universo, diferentemente do que se verifica como resultado da maioria das práticas religiosas, exclusivistas e fragmentadoras: “(...) Uma experiência mística profunda tende a dissolver barreiras entre religiões, enquanto o dogmatismo das religiões tende a enfatizar as diferenças e gerar antagonismos e hostilidade.” (Grof, opus cit., p. 207). A partir dessa reflexão podemos supor que parte do distanciamento da Ciência deveu-se muito mais às características do movimento institucionalizado das religiões do que propriamente das experiências espirituais. Outro componente desse distanciamento pode ser identificado como uma tendência da Psicologia e Psiquiatria tradicionais em patologizar as experiências espirituais. Talvez por estar pautada em uma filosofia materialista ou por não considerar essas experiências como objetos de estudo científico, a psiquiatria ocidental tende a classificar as experiências místicas como experiências psicóticas, considerando ambas manifestações de doença mental. Em sua obra, Grof julga que há uma posição radical e preconceituosa da ciência tradicional em relação ao estudos das experiências espirituais ou estados holotrópicos, que agora começa a ser modificada pela crescente pesquisa nos campos dos estados não-comuns de consciência por pesquisadores com sólida formação científica. Para ele, demonstrar interesse sério por esses objetos de estudo, pode ser considerado, pela comunidade científica, um sinal de julgamento deficiente, 202 ingênuo, despreparo ou mistificação do pesquisador. A posição de Grof talvez reflita suas dificuldades ao longo de quarenta anos de pesquisas com experiências holotrópicas, fato que deve ter gerado, principalmente no início de seu percurso, grandes dificuldades de aceitação. Entretanto, parece-nos que a necessidade de revisão dos principais conceitos da ciência tradicional, a abertura — diante da necessidade dos desafios sobreviventes — para as práticas interdisciplinares e, principalmente, transdisciplinares, e a própria crise de transformação do pensamento ocidental, vêm permitindo uma modificação dessa postura. O estágio atual do pensamento não permite uma posição exclusivista, onde apenas uma elite intelectualizada da civilização tem uma correta, confiável e definitiva compreensão da existência. A consideração de saberes das tradições de sociedades pré-industriais milenares, nesse caso, em relação à vida espiritual, estados não-comuns de consciência e suas conseqüências na vida dos indivíduos, sem desconsiderar o rigor e os critérios de um pensamento científico, é fundamental para o avanço do pensamento e conhecimento humano como um todo. Importante ressaltar que a própria realização do presente trabalho possa representar um exemplo desse movimento na medida em que elege como objeto de estudo científico, híbridos — talvez numa concepção diferenciada e ampliada de Latour — envolvendo conhecimento científico e outras possibilidades de compreensão humanas, em um programa acadêmico interdisciplinar. A receptividade e acolhimento do tema de nosso trabalho, mesmo diante dos desafios de sistematização e metodologia para abordar o tema, podem ser considerados exemplos da maior abertura existente na academia para essa discussão. Nossa escolha pela Psicologia Transpessoal considerou, inclusive, o aspecto de ela estudar e respeitar com seriedade todo o espectro da experiência humana, 203 principalmente os estados holotrópicos e os domínios biográficos e transpessoais do indivíduo. A forma de abordagem torna-a mais sensível culturalmente para uma compreensão mais abrangente, pois pretende um entendimento universal da psique humana, aplicável a qualquer grupo humano e período histórico, sem que elimine ou desvalorize os aspectos culturais e sociais diferenciados. A Psicologia Transpessoal considera, também, as dimensões espirituais da existência como legítimas e reconhece a necessidade intrínseca do indivíduo em ter experiências transcendentais. As necessidades espirituais do indivíduo não são totalmente desconsideradas pela ciência tradicional. Os trabalhos de Maslow (1978), Jung (1963, 1990) e James (1991) dentre inúmeros outros já apontam para uma reflexão do papel e importância da espiritualidade para o indivíduo. Jung definiu como numinosa a experiência originária dos níveis mais profundos do psiquismo, onde há uma apreensão direta dos domínios de uma ordem superior da realidade, completamente diferente do mundo material observável. As metanecessidades de Maslow são outro exemplo da importância dessa dimensão no processo de equilíbrio e saúde do indivíduo. Ainda segundo Grof, o maior problema na incompatibilidade da ciência com a espiritualidade está no nosso desconhecimento sobre os estados holotrópicos de consciência. A diferença entre a Ciência e a Espiritualidade pode ser encarada como uma complementaridade, pois representam aspectos importantes da vida humana, cada uma a sua maneira: enquanto a ciência é o melhor instrumento para se obterem informações sobre o mundo em que vivemos, a espiritualidade é indis- 204 pensável, na visão transpessoal, como fonte de significado da vida. Encerrando esse tópico com Grof: “Contudo, a diferença mais marcante entre as duas visões de mundo não está na quantidade nem na exatidão dos dados sobre a realidade material — esse é o resultado esperado e natural do progresso científico. A discordância mais profunda se dá em torno da questão de a existência ter ou não uma dimensão sagrada ou espiritual. Obviamente, esse é um assunto muito significativo, com implicações de longo alcance para a existência humana. A forma como respondemos a essa questão influencia profundamente nossa hierarquia de valores, nossa estratégia de vida e nosso comportamento diário em relação às pessoas e à natureza. E as respostas dadas por estes dois grupos humanos são diametralmente opostas.” (Grof, 2000, p. 201). 7. 3. 2 — Uso dos termos Tradição e Hierarquia Um dos pontos que evidencia uma diferença de percurso, quando pensamos no “diálogo” trandisciplinar em questão, é o receio e cuidado no uso, pela Ciência, dos termos tradição e hierarquia. Como vimos no resumo da obra de Dumont (1985), esses termos estão associados às sociedades primitivas, préindustriais e totalizantes onde a sociedade se sobrepõe ao indivíduo. Além disso, está invariavelmente associado a uma forte influência do pensamento religioso e à estrutura social resultante dessa visão de mundo. Parece-nos importante ressaltar alguns aspectos relacionados a esse fenômeno. Podemos constatar que, geralmente, a utilização desses termos está associada a uma caracterização de grupo social específico. Quando Dumont apresenta seu indivíduo-fora-do-mundo está associando-o claramente ao indivíduo das sociedades tradicionais, holistas, onde a hierarquia e a totalidade são os fatores preponderantes. Toda a evolução que Dumont fará da sociedade ocidental a partir dos primeiros cristãos, será um percurso de negação e superação das principais características daquelas sociedades: imobilidade social, indiferenciação dos indivíduos, restrição da representação política, estrutura social, econômica e política transmitida por 205 tradição e dentro da estrutura hierárquica e restrição da vontade e pensamento individuais em função dos grupos dominantes. O movimento da ideologia individualista, no sentido de Dumont, representa o estabelecimento do indivíduo como valor principal da sociedade ocidental, e toda a série de conquistas — no campo da liberdade e da igualdade do ideário francês — representa a superação daquele modelo de organização social, chamado por ele de tradicional. Falar em Tradição ou Hierarquia pode, então, representar, de alguma forma, um receio de retrocesso em relação às conquistas da atualidade, principalmente no campo da cidadania, da democracia da representação, nos princípios de igualdade e da liberdade para uma mobilidade social, que se contrapõem às características das sociedades tradicionais. Nessas últimas, um rigoroso sistema de castas e de estratificação social impede o acesso da grande maioria da população aos recursos mínimos de sobrevivência humana, até hoje. Nesse sentido, a hierarquia do poder transmitido por tradição, a impossibilidade de ascensão social, o uso de todos os atributos que o poder tradicional confere apenas a alguns grupos dominantes, são questionáveis e até mesmo condenáveis diante de uma visão mais igualitária e livre de indivíduo. A posição acima parece confirmar a lógica dos princípios da ideologia individualista. Entretanto, corremos o risco de reduzir, como temos feito inúmeras vezes ao longo da história do pensamento humano, toda uma gama de possibilidades de complexos fenômenos sociais e individuais, a uma avaliação tão restrita. Mesmo porque, em última análise, a visão mais democrática, autônoma e igualitária do ocidente não foi capaz de eliminar o mal do qual procura se defender, já que, como vimos, mantém significativos níveis de rigidez social, busca de preservação de 206 privilégios, uso dos instrumentos de poder para manutenção de níveis sócioeconômicos etc.. Somente modificou os instrumentos e as vias de legitimação do poder de uns (os que detêm as diversas formas de capital) sobre os outros, como já evidenciamos nesse trabalho. Tradição e hierarquia estão, portanto, costumeiramente vinculadas, no Ocidente, a instituições — como o cristianismo, protestantismo, estados absolutistas monárquicos, impérios de dominação econômica, religiosa, política ou intelectual etc. — que podem apresentar distorções nas estruturas dogmáticas, hereditárias, fechadas, alienantes, na transmissão de privilégios etc. Pode-se considerar coerente um receio em relação ao retrocesso das conquistas atuais. Entretanto, a constatação das distorções históricas desses movimentos não pode acarretar em nós o temor paralizante que impede a separação do que deve ser evitado ou modificado daquilo que pode representar legítimo objeto de consideração e reflexão. A Psicologia Transpessoal vai considerar a tradição como um conjunto de conhecimentos — acumulados ao longo de séculos de observação e reflexão das culturas orientais, caracterizadas como tradicionais e de totalidade — sobre a consciência humana, a vida e o mundo. A própria palavra tradição (em latim traditio, ato de transmitir) vem do verbo tradere, fazer passar a um outro, entregar, remeter. A esse sentido de transmissão soma-se um outro — de mediação e integração — onde cada sociedade recria-se ao adaptar o que pretende conservar com o novo saber que resulta da sua atuação. 7.3.3- Oriente e Ocidente Ao longo do que vimos chamando de “diálogo”, pudemos constatar que a Psicologia Transpessoal, como uma das interlocutoras, tem grande parte de sua fundamentação nas experiências com estados não-comuns de consciência mas refere- 207 se, constantemente, às tradições das filosofias orientais. Os autores transpessoais indicam a convergência de suas observações e reflexões para conceitos milenarmente estabelecidos pelas grandes tradições orientais, sugerindo que, por outras vias de conhecimento, essas tradições foram capazes de perceber determinadas características e aspectos da realidade que escapavam, até então, à ciência tradicional. Como pudemos destacar do trabalho teórico de Wilber, essa diferença está na forma de conhecimento utilizada pelas duas linhas de pensamento. Enquanto as tradições orientais alcançaram o conhecimento de alguns desses aspectos através de práticas meditativas, disciplinas de pensamento e funções fisiológicas, elementos alucinógenos (sociedades primitivas ou indígenas) etc., a sociedade ocidental pautou sua trajetória do conhecimento sobre o pensamento racional, resultando em uma prevalência do método científico, experiência controlada, possibilidade de repetição e previsão dos eventos etc., ou seja, mais na razão do que na experiência pessoal, subjetiva. Utilizando a nomenclatura de Wilber, podemos dizer que as tradições orientais buscam diretamente, através das experiências chamadas aqui de transpessoais, aspectos da realidade, acessando níveis superiores de consciência e procurando relativizar ou retirar a importância dos níveis “inferiores”. Já o pensamento Ocidental procura explorar pela racionalidade, o máximo da potencialidade do nível em que se encontra — pensamento formal e racional — como forma de ampliar o entendimento da vida e a melhor compreensão e descrição da vida e da existência do homem. Enquanto o Ocidente estaria orientado por uma filosofia implícita materialista e atomista, as tradições orientais se orientam por uma filosofia espiritualista e universalista. As crises seriam momentos de transformação de níveis, onde os indivíduos procuram ascender, nem sempre conscientemente, para níveis de compreensão e consciência da existência mais elevados. Como estamos 208 trabalhando a partir da perspectiva ocidental, como observadores, estivemos sempre procurando entender a “nossa” crise, a partir das propostas transpessoais, como uma transformação no sentido de aquisição de valores espirituais. Certamente, do lado oriental, a crise, ou necessidade de transformação, terá outra conformação. Mesmo sem subsídios para tal afirmação, podemos pensar nas diversas conquistas necessárias para as sociedades orientais em relação às diferenças sociais, oportunidades de trabalho e renda, liberdades democráticas, igualdades de direitos em termos de raça, credo, condição socio-econômica etc., típicas da valorização da dimensão Indivíduo, não tão valorizada quanto no lado ocidental. Poderíamos levantar uma hipótese de que o recente, e crescente, movimento de globalização favorece uma interpenetração e confrontação dos valores típicos de cada categoria de sociedade — oriental e ocidental — possibilitando a emergência de “crises de transformação” de parte a parte. É preciso deixar claro que nossa posição, e parece ser a posição também dos autores transpessoais, não é a de estabelecer uma supremacia das características orientais sobre as ocidentais como superiores, preferíveis ou ideais. As práticas orientais foram capazes de antecipar, por outras vias de conhecimento, alguns aspectos que agora se avizinham do pensamento ocidental como uma necessidade de entendimento. Entretanto, há de se evitar que essa generalização ingênua se constitua em uma prevalência do oriental sobre o ocidental, na medida em que o pensamento racional, característico da sociedade ocidental, seja considerado inferior ao pensamento transracional (Wilber) oriental. Os resultados expressivos da tecnologia e da ciência na qualidade de vida dos indivíduos, na preservação da vida em todas as suas formas, no estabelecimento de oportunidades de conforto e desenvolvimento pessoal etc. são exemplos do potencial positivo que o pensamento ocidental tem sido capaz de produzir. 209 A síntese talvez seja a de encontrar pontos de convergência entre as duas tendências e formas de conhecimento visando uma ampliação na capacidade de conscientização do indivíduo e dos seus potenciais de crescimento, não só no nível material das diferenças sociais e econômicas, mas em todos os níveis de consciência que as novas abordagens propõem. Há de se fazer uma distinção importante nesse ponto. Referimo-nos ao que poderia ser considerado uma essência do pensamento dessas tradições orientais com suas possibilidades de ampliar a reflexão do indivíduo ocidental e as suas formas manifestas de expressão, normalmente associadas a sistemas filosóficos ou religiosos instituídos. Roger Walsh, no prefácio de Um Deus Social (Wilber, 1987) afirma: “Naturalmente, isso não quer dizer que todas as coisas orientais ou religiosas sejam desse teor. Existem claras distorções, dogma, patologia, má interpretação e má utilização em torno de todas as religiões. Na verdade, a essência pragmática do treinamento mental rigoroso é freqüentemente encoberta por pompa e dogma exotéricos, ou reservada como um núcleo esotérico para os poucos considerados capazes de atender as suas severas exigências. Porém, onde encontrada, essa essência esotérica de treinamento mental tende a revelar semelhanças acentuadas entre sistemas aparentemente diferentes e indicar princípios psicológicos, cosmovisões e estados transcendentais comuns: as chamadas ‘unidade transcendente das religiões’, ‘filosofia perene’ e ‘psicologia perene’.”(Walsh, in Wilber, 1987, p.11). Isso nos leva a considerar que não tem sentido a simples “importação” de práticas orientais, na medida em que, como já foi considerado pelo próprio modelo transpessoal, a consciência do indivíduo é decisivamente influenciada pelos filtros sociais a que está submetido desde o seu nascimento (ontogênese), bem como na sua inserção em uma determinada raça (racial), família (ancestral) ou até mesmo da espécie humana (filogenético). Além disso, convergem as opiniões sobre a influência de todo o contexto cultural da posição em que o indivíduo nasce no seu processo 210 de individuação e seu conseqüente convívio social. O objetivo poderia, então, ser o de encontrar formas próprias — conforme as principais características de pensamento —de desenvolvimento da consciência do indivíduo para campos de valores, idéias, percepções etc. considerados superiores em relação aos níveis atuais experienciados. Sobre isso, o próprio Wilber fala que: “Devido a essa necessidade geral pela compatibilidade da estrutura superficial, não creio que as religiões orientais servirão como modelos em grande escala para a transformação ocidental, não importa quão significativas possam ter-se mostrado enquanto provocadoras. Sua influência será, com certeza, considerável, mas de maneira a ser finalmente transformada e assimilada pela nova perspectiva de mundo ocidental iogue, e não meramente transplantada de uma só vez. Consequentemente, se a transformação iogue não é esotericamente cristã, não me surpreenderia se surgisse um novo misticismo especificamente ocidental, embora compatível em termos superficiais com a simbologia cristã e a tecnologia racional.” (Wilber, 1987, p.140). Um dos aspectos que se enquadram nessa situação de deverem ser estudados e discutidos e não simplesmente “importados” das tradições orientais, está nas premissas filosóficas implícitas de cada corrente de pensamento. Dentre essas premissas, julgamos a Hipótese da Reencarnação como uma das mais significativas. Sua importância está ressaltada pelo relato dos indivíduos que passaram por experiências transpessoais — espontâneas ou provocadas — que tiveram expressivos insights sobre esse fenômeno, tendo alguns, até mesmo relatado, experiências de rememorização de possíveis “vidas passadas”: “Provavelmente este é o grupo de experiências transpessoais mais fascinante e controvertido. Como sugeri anteriormente, as memórias de vidas passadas assemelham-se de diversas maneiras a experiências ancestrais, raciais e coletivas. Entretanto, usualmente elas são dramáticas e se associam a uma intensa carga emocional, negativa ou positiva. Sua característica vivencial essencial é uma sensação convincente de estar lembrando algo que aconteceu à mesma entidade, à mesma unidade de consciência. As pessoas, ao participarem dessas experiências dramáticas, mantém um sentido de individualidade e de identidade pessoal, 211 mas experienciam a si mesmas em outra forma, em outro tempo e lugar e em outro contexto.” (Grof, 1997, p. 93). Em outra de suas obras, Grof aborda a questão da Reencarnação como conseqüência direta das suas observações das experiências transpessoais de vidas passadas: “Essas experiências [de vidas passadas] têm importantes implicações para a compreensão da natureza da consciência e para a teoria e prática de psiquiatria, psicologia e psicoterapia. Não há dúvida de que experiências desse tipo constituem a base empírica para a difundida crença da reencarnação. A universalidade histórica e geográfica dessa crença demonstra que ela é um fenômeno cultural muito importante.” (Grof, 2000, p. 227). Observamos que o pensamento ocidental já vem, mesmo que modestamente, se preocupando com a hipótese da reencarnação, através do desenvolvimento de diversas pesquisas científicas (Stevenson, 1970, 1997; Banerjee 1979; Andrade, 1988) que procuram identificar pessoas, normalmente crianças, que façam relatos espontâneos de suas supostas vidas passadas associados à identificação de marcas de nascença que possam ser relacionadas à acidentes, doenças ou à causa mortis da “última” vida. No mais importante — e impressionante — estudo sobre o tema, Stevenson (1997) relacionou mais de três mil e quinhentos casos sugestivos de reencarnação, seguindo rigoroso critério de observação e análise de evidências. Contrariando as afirmações de que pesquisas desse tipo representam imaturidade, despreparo acadêmico ou ingenuidade intelectual, Stevenson é reconhecido como um dos maiores pesquisadores ocidentais sobre o tema (Prophet, 1997). Independentemente de se fazer meditação ou passar por uma experiência transpessoal, espontânea ou provocada — que parece realmente desencadear esse processo de mudança de valores —, a própria crise ocidental leva a uma mudança de atitudes, de posições e de comportamentos, na busca de soluções — nem sem- 212 pre conscientes mas igualmente eficientes, na direção de uma reformulação da configuração de valores — para os efeitos negativos experienciados pelos indivíduos. 7. 4 - IMPLICAÇÕES 7. 4 .1 - Implicações do “Diálogo” sobre a Crise da Sociedade Atual Como conseqüência de nosso “diálogo”, podemos abordar as lacunas identificadas na crise da sociedade ocidental sob uma ideologia individualista através de uma outra perspectiva. A possibilidade de se pensar essas questões considerando um “diálogo” com o modelo transpessoal apresentado nos oferece maiores oportunidades de exploração do tema. Nosso objetivo nesse ponto, é apresentar algumas dessas possibilidades sinalizando enfoques e desdobramentos que exigem maior aprofundamento, dada a significativa contribuição que podem oferecer no entendimento da crise e de diversos fenômenos relacionados à existência humana. Primeiramente, vamos enfocar um aspecto importante retirado de nossas reflexões: o valor atribuído ao Indivíduo pelas sociedades ocidentais. Como vimos, a ênfase no Indivíduo como valor primordial da sociedade — aliada a uma filosofia implícita de caráter materialista — acarretou uma exacerbação de outros valores como o econômico, o status e a posse de diversos capitais sociais. A posse diferenciada determinou o estabelecimento de estratégia de manutenção e/ou ampliação desses capitais como forma de alcançar modelos de sucesso coerentes com as bases da configuração de valores da ideologia individualista. Entretanto, esse processo acabou por criar aquilo que a sociedade se propunha a combater: 213 uma nova hierarquia implícita, baseada em critérios de avaliação e estratificação a partir da posse desses capitais. O distanciamento da consciência da totalidade radicalizou esse movimento, transformando o valor econômico em, talvez, o principal valor da sociedade ocidental. As experiências transpessoais permitem uma ampliação, primeiramente da filosofia materialista implícita, possibilitando uma transformação na configuração de valores individuais. Como conseqüência direta desse ponto, relativiza, sem negar, a importância do valor econômico como instrumento das realizações mais elevadas — redução das diferenças socio-econômicas, por exemplo — e não como finalidade em si mesmo. Outra ampliação obtida a partir das experiências transpessoais é a dos padrões de liberdade e de igualdade para o indivíduo e para o grupo social, já que, em determinados níveis de consciência, o indivíduo identifica a sua estreita ligação e identificação com o grupo social maior. A percepção, pelo indivíduo, dessa identificação, torna completamente incoerente as atitudes e comportamentos de exploração ou desigualdade pois representariam uma auto-exploração, em última análise. As conquistas obtidas no campo das liberdades políticas foram de fundamental importância para todo o movimento verificado na atualidade. A partir do humanismo, o homem não aceita mais receber normas ou leis por outras vias que não a sua razão e sua vontade. A consistência dessas conquistas possibilita o homem ocidental pensar na transformação vertical para um nível mais transcendente, segundo Wilber, no âmbito do valor Liberdade. 214 Outro aspecto que levantamos na análise da crise foi a constatação da pouca capacidade de autodeterminar-se, levando os indivíduos ao imediatismo e ao isolamento. A reflexão transpessoal remete à possibilidade do indivíduo identificar, pela vivência de estados holotrópicos, sua real capacidade de promover mudanças nos rumos de sua existência, porém, percebe que essa capacidade está associada a uma responsabilidade com os desdobramentos de sua atuação no conjunto social e de recursos da natureza. Sua capacidade de autodeterminar-se está limitada pela sua interdependência no universo. Entretanto, ao tomar consciência disso, não se verifica uma imposição vivida como negativa, mas muito coerente com a visão da totalidade que passa a compartilhar. Quando abordamos o contexto histórico do Individualismo, deparamo-nos com afirmações de Dumont (1985) sobre a origem cristã da ideologia individualista, como baseada em uma fraternidade universal, onde todos são filhos de Deus e, como conseqüência da mesma paternidade, “irmãos”. Curiosamente, através de outros caminhos completamente diversos, as tradições orientais defendem a interligação de todos os seres do universo. A Psicologia Transpessoal — ao identificar uma estrutura de níveis de consciência do ser humano com características universais e observar que dentro desses níveis existe a percepção do sentido de pertencimento e identificação com o grupo social mais amplo — converge para uma certa fraternidade universal, onde o princípio da igualdade ideal poderia ser percebido. O “diálogo” com a Psicologia Transpessoal provocou um questionamento sobre uma das conseqüências da ideologia individualista da sociedade ocidental: a auto-suficiência. A auto-suficiência é um dos aspectos implícitos na configuração de valores do individualismo que, como já mencionado, apresenta uma contradição já que a complexidade das relações individuais e sociais, a divisão social do trabalho e a crescente tendência à especialização nos torna cada vez mais depen- 215 dentes uns dos outros. A Psicologia Transpessoal apresenta como base de seu modelo exatamente as características da interdependência e interrelação entre as partes, sejam indivíduos entre si ou entre dimensões da existência humana. Por outro lado, podemos identificar a auto-suficiência do indivíduo em relação à sua capacidade de promover o desenvolvimento dos níveis de consciência por si mesmo, de forma suficiente. A competitividade talvez seja uma das características marcantes da crise da sociedade ocidental que temos tratado no decorrer deste trabalho. A disputa pelos recursos e oportunidades escassos, levam necessariamente a um clima de competição acirrada pela posse dos capitais socialmente valorizados que representem um aumento nos níveis de felicidade. O medo do fracasso estabelece uma forma de atuação na vida caracterizada pela ansiedade de buscar — a felicidade — a qualquer preço. A distorção pode chegar a um ponto tal que passamos a confundir a felicidade com a busca por ela, isto é, passamos a encontrar satisfação na busca de mais satisfação. A conseqüência natural desse processo é o desenvolvimento de quadros associados à frustração ou ao estresse, que não são solucionados facilmente. Daí os quadros de melancolia e depressão verificados na sociedade ocidental mesmo nos indivíduos ou grupos de indivíduos que alcançaram significativos resultados na posse e benefício dos capitais acumulados. A Psicologia Transpessoal sugere que esse processo se dá pela falta de uma transcendência de valores em direção à espiritualidade. Enquanto se sente isolado do meio ambiente e do universo em geral, o indivíduo atua de forma auto-contraditória, pois ignorar o meio ou o outro indivíduo em nome da felicidade própria é comprometer a si mesmo, uma parte de sua própria felicidade. As experiências transpessoais parecem demonstrar a capacidade de modificação de valores a partir da conscientização, pelo indivíduo, do seu pertencimento 216 ao todo universal. Essa mudança proporciona uma redução da angústia e da competitividade, pois muda-se automaticamente o sentido da existência. Além disso, a mudança de sentido, como a apresentada, tende a relativizar a ênfase na cultura de consumo de massa, outra característica da crise atual. Como vimos anteriormente, a dicotomia entre igualdade X hierarquia representa uma das bases da ideologia individualista que pretende lutar contra os efeitos negativos da hierarquia das sociedades primitivas, no sentido de Dumont, em que o indivíduo estava subordinado ao todo social, aos privilégios do poder aristocrático transmitido por tradição e impossibilitado de qualquer mobilidade na estrutura social em função da rigidez da hierarquia. O individualismo atual, com um discurso igualitário, acabou por substituir uma hierarquia por outra, mais sutil, mas mantendo distorções sociais e econômicas compatíveis com as anteriores. O modelo hierárquico em que se baseia a abordagem transpessoal não comporta as distorções historicamente associadas às sociedades primitivas e às atuais, pois refere-se à hierarquia dos níveis de consciência. O modelo de estrutura da consciência em níveis irá permitir parâmetros de avaliação como superiores ou inferiores, mas não se referem aos mecanismos de poder, seja ele político, econômico ou intelectual, e sim ligados à uma maior compreensão da realidade e da existência humana. As diferenças verificadas estão na conceituação de Hierarquia e Tradição. A oposição entre Liberdade e Tradição exemplifica bem essa questão. A aparente oposição se sustenta enquanto entendemos a Liberdade como liberdade de escolha e a Tradição como uma tendência à imposição de valores, idéias, posições, oportunidades etc. Se considerarmos a Tradição como uma transmissão de conhecimentos que devem ser considerados mas, atualizados pelas mudanças de compreensão da realidade a cada momento, verificamos que pode preservar o conceito da liberdade de escolha dos indivíduos para os caminhos dessa atualização. Com a 217 maior compreensão da realidade e da existência, aumenta-se a responsabilidade por essas escolhas entre o que se mantém e o que se atualiza da Tradição. Portanto, a Tradição compreendida e buscada pela vontade, não aceita a submissão por outros, mas entende a interdependência e integração com a totalidade. Uma questão importante relacionada à mudança de valores da configuração individualista, pode ser levantada nesse ponto do trabalho. Dumont afirma que o movimento do Individualismo acabou por resultar, principalmente a partir da Reforma, em um distanciamento do homem dos valores religiosos ou transcendentes direcionando-os para valores materiais, econômicos e imediatistas. A questão que se coloca é: será que estamos buscando um retorno a esses valores? Será que eles, de alguma forma, já existiram? A reflexão, com base no trabalho de Wilber, sugere que não. Quando discutimos a diferença entre Espiritualidade e Religião destacamos a diferença entre as formas instituídas de expressão da espiritualidade através das religiões e os valores essencialmente espirituais necessários ao indivíduo. A aparente retração dos valores espirituais com a ênfase do Individualismo, refere-se a um movimento em espiral dos principais aspectos da existência no qual, após um determinado ciclo, torna a passar pelo mesmo setor mas sempre em um ponto mais elevado (superior) da estrutura. Segundo a proposta de Wilber apresentada, as lacunas do individualismo poderiam representar um processo de fixação dos indivíduos no Nível do Ego do seu Espectro da Consciência. Esse processo teria determinado a ênfase na dimensão individual em detrimento da noção de totalidade e integração com o meio e com o outro, típicos do Nível Existencial imediatamente superior. A crise significaria um movimento de tentativa de ruptura com a fixação no Nível do Ego a partir 218 da apreensão desse sentido de pertencimento do Nível Existencial que, como ainda não está plenamente consciente, é vivido como conflitante. Essa abordagem permite uma nova compreensão da crise da sociedade ocidental. Com base em toda a proposta de Wilber, a crise pode, então, ser entendida como efeito do processo de dualismo-repressão-projeção verificados pelos indivíduos nos Níveis do Ego e Existencial. A partir de uma ameaça da Sociedade ao Indivíduo nas sociedades primitivas, a reação natural seria uma identificação do Indivíduo com o Nível do Ego associado a uma alienação da interrelação e integração com ao totalidade (Nível Existencial), resultando em uma forma distorcida e exacerbada de individualismo. Como Wilber considera, no exemplo das religiões fundamentalistas da atualidade, o movimento do individualismo poderia ter representado uma regressão e cristalização no Nível do Ego, fixando nos seus aspectos mais negativos, que poderiam ser associados ao egoísmo, competitividade exacerbada, isolamento, fragmentação, indiferença. Como podemos verificar, os aspectos da crise relacionados anteriormente em nosso trabalho, aparecem claramente nessa reflexão. As perdas de certezas e de referenciais, sejam econômicos, religiosos ou dos valores éticos, que resultam em um imediatismo, podem ser entendidos no processo de fixação dos caracteres negativos da configuração de valores do individualismo. O isolamento e a fragmentação podem ser associadas a esse distanciamento da consciência de integração com o todo que, alimentada pela ilusão de auto-suficiência do nível atual no encontro da felicidade, geram conseqüências que vão da indiferença ao adoecimento dos indivíduos e das relações sociais. 219 A angústia e a perda do sentido existencial resume o quadro da crise da sociedade ocidental atual: um momento de transição e de transformação de valores e de questionamento e adequação das filosofias implícitas que tem orientado o pensamento e a vida no ocidente. Para chegar a superar a crise “transformadora” que a sociedade ocidental passa, parece-nos ser de fundamental importância a atualização e o equilíbrio da sua configuração de valores. É preciso relativizar o Individualismo — como valor prioritário da sociedade ocidental — introduzindo novos valores e preocupações relacionados à totalidade do grupo social e do contexto dos recursos naturais. Na verdade, já observamos uma tendência de significativa capacidade de superação do pensamento ocidental, mesmo que ainda insuficiente para a transformação necessária. Os grandes movimentos de consciência ecológica, de preservação de espécies em extinção, as pesquisas por redução da utilização de elementos químicos prejudicais na produção de alimentos e outros gêneros de consumo, as pesquisas de fontes alternativas e menos poluentes de energia, dentre outras, são exemplos de caminhos que devem ser percorridos na superação da crise. 7.4.2- Multidimensionalidade do Real: Equilíbrio entre Indivíduo, Sociedade e Natureza Outro ponto que apresenta uma significativa implicação com nosso estudo, e que gostaríamos de abordar, é a relação indivíduo / sociedade. A tendência da ciência tradicional em se desenvolver de forma compartimentalizada como disciplinas, acabou por polarizar a discussão entre Indivíduo e Sociedade. Dependendo da disciplina envolvida ou, mesmo dentro de uma mesma disciplina, dependendo da 220 escolha de recorte do autor, temos uma oposição entre os dois termos. Cada autor irá privilegiar um deles como base de explicação dos fenômenos sociais e individuais. O debate tende a permanecer insolúvel já que cada autor consegue fundamentar seu ponto de vista de forma coerente dentro do seu escopo teórico ou experimental, considerando-o, por isso, verdadeiro. A definição de objetos híbridos complexos abre a discussão para uma relativização definitiva da polarização e disputa pela forma “correta” de descrever determinado fenômeno ou objeto, conciliando as reflexões exclusivas de cada disciplina relacionada a eles e as relações entre essas diferentes formas de “olhar” para o objeto. A abordagem transpessoal, ao postular a integração, a interrelação e a interdependência entre todas as partes, afina-se com essa proposta. Faz parte das tradições milenares orientais a noção de integração de todos os aspectos do universo. Diz a tradição hindu: “Quando se arranca uma folha de grama, está se alterando o universo”. Em particular na discussão entre indivíduo / sociedade, a abordagem transpessoal traz uma possibilidade de interação entre as dimensões da existência, em que não há super ou sobreposição de nenhuma delas, apenas uma relação de equanimidade. Conforme essa relação de equilíbrio foi, em diversos momentos históricos, distorcida ou negligenciada, geraram-se desequilíbrios que se refletem em todos os níveis, em um processo de adoecimento. O desequilíbrio e a crise, então, parecem sempre poder refletir um movimento de re-equilíbrio do sistema. As experiências transpessoais demonstram a possibilidade do indivíduo, em um estado não-comum de consciência, perceber o fato de que participa, simultaneamente, de todas as dimensões do universo. A hierarquia de níveis de consciência e a sua posição em níveis ainda intermediários dessa hierarquia impedem sua percepção plena desse processo. Ao participar também da dimensão Sociedade, perde o sentido determinarse qual dimensão prevalece nos fenômenos da existência humana, mas continua tendo sentido a descrição de como cada dimensão participa nesses fenômenos. 221 O desafio será encontrar uma formulação capaz de dar conta da atuação simultânea e integrada entre dimensões como indivíduo, sociedade e natureza. Talvez as recentes descobertas da Física Moderna sobre as características das unidades subatômicas de atuação simultânea como partícula e como onda possam representar uma analogia que oriente nossas reflexões para modelos que envolvam essas dimensões Indivíduo e Sociedade. 7.4.3 — Individualismo e Holismo A questão proposta anteriormente — de como conciliar tendências antagônicas — parece não ter solução em um modelo que considere apenas uma única dimensão da existência humana. Se privilegiarmos a dimensão individual como mais importante, o individualismo aparece como tendência natural e coerente não admitindo a introdução ou relativização de valores associados ao holismo, nos termos de Dumont, sem que se considere retrocesso ou choque com o valor primordial. Se considerarmos, primordialmente, a dimensão social, nos remetemos a uma ideologia, anteriormente verificada nas sociedades ditas primitivas, onde a tradição determinava a estrutura de poder e representação e a hierarquia enrijecia a estrutura social e econômica, contra a qual o individualismo lutou e se sobrepôs, conquistando níveis de liberdade e igualdade inquestionáveis. No “diálogo” com a Psicologia Transpessoal, verificamos a possibilidade de se pensar na realidade como multidimensional e da qual destacamos três dimensões principais para os objetivos de nosso trabalho: indivíduo, sociedade e natureza. Esse modelo considera essas dimensões como equivalentes, e por isso mesmo impossíveis de serem analisadas como superior ou inferior uma à outra. Não há 222 superioridade pois há uma integração, interdependência e interrelação estreita entre as dimensões. Partindo dessa premissa não poderíamos mesmo comparar Individualismo com Holismo, não porque representem valores antagônicos, mas porque são idéias ou ideologias associadas a diferentes dimensões complementares da existência e não hierarquicamente superpostas. O que seria, então, o Holismo — hierarquia e totalidade — de Dumont? Como vimos, o termo Holismo em Dumont representa o valor primordial concentrado na sociedade, onde o indivíduo só tem valor como indivíduo-fora-domundo, ou seja, indiferenciado, dependente da hierarquia, submetido à tradição do poder político e econômico. Em uma análise desse fenômeno, pela abordagem transpessoal, poderíamos expressar o Holismo de Dumont através do seguinte gráfico: Figura 9 - Holismo 223 Apesar da interdependência das dimensões indivíduo, sociedade e natureza, o aspecto sociedade se sobrepõe por uma grande área das demais. Essa ocupação, estabelece um empobrecimento do nível de expressão do indivíduo, uma indiferenciação dos indivíduos diluídos no todo social, ficando apenas uma pequena porção de privilegiados a intervir ou interagir na relação com a sociedade e natureza. Também a Natureza fica submetida ao domínio da exploração dos grupos dominantes, sem representar uma distribuição mais eqüitativa para todos os indivíduos. Segundo Dumont, a tendência do Holismo seria uma transição para o Individualismo, substituindo a lógica da indiferenciação por uma priorização do indivíduo como valor principal da sociedade. A partir dessas conquistas, como também vimos no percurso histórico do Individualismo, o indivíduo vai alcançando maiores níveis de autonomia, liberdade e singularidade, nas relações com as demais dimensões. A igualdade entre os 224 indivíduos passa a ser buscada como princípio geral. O individualismo, como movimento ideológico, se exacerbaria nas suas características principais resultando no quadro que descrevemos e analisamos no início de nosso trabalho. Na sua concepção mais extrema, o Individualismo poderia ser representado pela seguinte figura: Como podemos observar, o Individualismo, na sua forma mais ampla, ocasionaria uma deterioração dos valores da totalidade social em prol dos valores individuais. Essa superposição determinaria — pela exacerbação dos aspectos individuais, sem a neutralização a partir da consciência grupal ou social — a ênfase dos aspectos negativos vivenciados como crise pela sociedade ocidental — diferenças sociais, diferença de oportunidades, diferença de posse de capital social, competitividade, isolamento e fragmentação, perda dos referenciais em geral, cultura do consumismo e Figura 10 - Individualismo 225 exploração do homem pelo homem etc. O que se deteriora nessa configuração individualista, é a consciência de pertencimento à totalidade, de integração ao todo da humanidade. Em relação à dimensão natureza, essa configuração determina um comportamento de exploração desenfreada dos recursos naturais pelo homem, do uso indiscriminado das fontes de energia, do prejuízo ecológico em geral etc.. 7.4.4 - Reflexão sobre Valores: Liberdade, Igualdade A crise ocidental poderia ser caracterizada, portanto, como uma crise de valores, oriunda de uma ênfase do valor individual em detrimento das demais dimensões componentes da existência humana. O desequilíbrio na interrelação das dimensões provoca um conflito no indivíduo, nas suas relações sociais e nas suas relações com os recursos da natureza. O Individualismo e o Holismo passam a ser considerados não como valores em si mesmos, mas como resultados da prevalência de idéias ou ideologias que podem e devem ser revistas e ampliadas a partir dos valores que as compõem. A solução para a crise poderia ser representada por uma Figura 11 – Equilíbrio: Integração das dimensões 226 redução dos excessos do individualismo, sem a perda das conquistas verificadas no desenvolvimento histórico da sociedade ocidental, mas que também pudesse ampliá-las a um grande setor da população que vive à margem dos benefícios mínimos desse progresso. O equilíbrio passaria, então, por uma transcendência da configuração de valores que caracterizam a sociedade individualista ocidental para uma outra de valores espirituais, entendidos aqui como aqueles que refletem uma visão de vida e de mundo de maior integração e interdependência entre os componentes, conforme a figura abaixo busca representar: Essa mudança na configuração de valores foi significativamente observada nos indivíduos que passaram por experiências transpessoais provocadas ou espontâneas. Claro está que não consideramos a perda das conquistas encetadas pelo movimento individualista. Pelo contrário. Valores como a Liberdade, a Igualdade, a Auto-suficiência etc. são legítimas conquistas do indivíduo. Entretanto, no estágio atual da sociedade, podem ser considerados apenas como ideais buscados mas difíceis de serem alcançados pela maioria da população mundial: no lado oriental, pela fixação em padrões primitivos de organização social, com pouca ou nenhuma mobilidade social, diferenças econômicas cristalizadas nas estruturas sociais etc. e, no lado ocidental, na necessidade de ampliação e extensão dessas conquistas a uma grande camada alienada e marginalizada que delas não desfruta de fato, conforme já apontamos no nosso trabalho. Utilizando as premissas transpessoais em uma tentativa de entendimento da crise, poderíamos afirmar que um dos aspectos da crise está relacionado à dificuldade dos indivíduos vivenciarem as conquistas da Liberdade, Igualdade, etc. de modo pleno, pois esses princípios ideais só estariam disponíveis em níveis superiores da estrutura de desenvolvimento da hierarquia. Como, em níveis diferenciados 227 e amplos de consciência, o indivíduo percebe a sua existência e começa a eleger esses princípios ideais como necessidade, almeja essas conquistas. Entretanto, como ainda estaria experienciando um nível inferior da estrutura, tem uma percepção parcial e distorcida desses valores, além de dispor de um determinado tipo de objetos relacionais (Wilber) insuficientes para atingir o nível superior. É necessário que se faça uma transformação (vertical) para se apropriar de trocas relacionais de níveis mais elevados, que envolvam esses valores ideais. Para uma mais fácil compreensão podemos utilizar a Figura 7 utilizado anteriormente, onde apresentamos uma proposta de entendimento da transformação ou mudança na estrutura para um nível superior. Usaremos também, os principais valores obtidos pelo movimento individualista na sua trajetória histórica, independente das distorções observadas: a Liberdade e a Igualdade. Vamos supor que os gráficos com divisões estratificadas, representem níveis diferenciados de cada valor. Portanto, o valor Liberdade e Igualdade possuem uma estratificação de diferentes formas de expressão ao longo de um movimento ascendente no gráfico. Como exemplificamos anteriormente, os níveis superiores desses valores existentes, são encobertos pelo esquecimento da totalidade, mas são percebidos de alguma forma — indiretamente ou não- Figura 12 – Estrutura Hierarquica de valores; Liberdade e Igualdade 228 conscientemente. Conforme vamos desenvolvendo o processo de transição (horizontal) dentro de um mesmo nível, vamos tornando parcialmente visíveis as necessidades do nível superior. A pouca “visibilidade” e mobilidade nesse nível superior, nos impossibilita de utilizar os recursos e objetos relacionais próprios que atenderiam àquelas necessidades. A utilização dos objetos conhecidos no nível inferior que nos é mais característico não atende às necessidades criando uma situação de crise. Podemos ilustrar com os gráficos abaixo para a Liberdade e a Igualdade: Vamos agora supor que o desenvolvimento para cima ao longo da estrutura de níveis desses dois valores — Liberdade e Igualdade — pudesse ser comparada com algumas conquistas historicamente observadas no percurso da ideologia individualista. Poderíamos, então, estabelecer uma certa evolução na forma de experienciar cada um desses valores: LIBERDADE: a) Nível 1: Sociedades primitivas de Dumont. Característica de indiferenciação dos indivíduos que são submetidos a uma rígida estrutura tradicional e hierárquica; não há possibilidade de mobilidade social e econômica; os indivíduos dependem da totalidade e não se fazem representar. b) Nível 2: Conquistas de Liberdades políticas; representação pelo voto; Liberdade de consciência pelo menos como princípio; Liberdade para utilização da capacidade intelectual para aquisição de capital social; Exacerbação da competitividade com predomínio dos que detêm outros instrumentos de poder (mais sutis). c) Nível 3: Conquistas de Liberdade social; busca de maior mobilidade social de fato; liberdade na divisão social do trabalho ainda como princípio; exacerbação do conflito entre auto-suficiência e especialização; Liberdade de escolha no 229 consumo, na escolha dos representantes (ainda relativa e manipulada pelos grupos dominantes); Nível atual da crise da sociedade ocidental. d) Nível 4: Liberdade transcendente de caráter espiritual; conquista de valores para um equilíbrio espontâneo na divisão social do trabalho, liberdade real de escolha; liberdade de pensamento, do conhecimento e da interação entre as dimensões da existência; Consciência Cósmica: nível que começa a ser percebido mas sem a apropriação plena dos objetos relacionais desse nível. IGUALDADE: a) Nível 1: Valores individuais diferenciados por raças, castas, credos, condição socio-econômica etc.; Sociedades primitivas de Dumont. b) Nível 2: Igualdade nos valores individuais na esfera política: poder igual de voto, representação e de ser representado; igualdade de oportunidades políticas (ainda como princípio ideal); utilização dos capitais sociais como forma de violência simbólica para supremacia de uns sobre outros. c) Nível 3: Igualdade de oportunidades de mobilidade social (ainda como princípio); busca da igualdade social, ou seja, de um mínimo para se garantir vida digna; Discurso de igualdade de oportunidades de ascensão social sem respectivo respaldo de oferta na infra-estrutura disponível; Exacerbação da competitividade como forma de diferenciação e projeção na estrutura social; Desequilíbrios sócio-econômicos (concentração de renda, escolaridade etc.); Estágio atual da sociedade ocidental. d) Nível 4: Espiritual; identificação da igualdade entre os seres na essência espiritual independente das diferenças culturais, econômicas, intelectuais etc.; re- 230 torno à fraternidade universal; garantia do mínimo essencial para assegurar a dignidade da vida; diferenças intelectuais como instrumentos de redução das diferenças sociais; Consciência Cósmica. Nosso objetivo ao apresentar algumas características associadas aos níveis não foi de esgotar o assunto ou fazê-lo de modo preciso, o que demandaria outro tipo de análise e formulação específica, fugindo completamente do objetivo de nosso trabalho. Nossa intenção foi alinhavar uma possibilidade de integração dos conhecimentos tradicionais com as contribuições das abordagens transpessoais que pudesse sinalizar para futuras reflexões ou questionamentos sobre esses aspectos relacionados à crise da sociedade ocidental vistos sob uma perspectiva transdisciplinar. 7. 4. 5- Superação da Crise e Mudança de Valores Ao longo da exposição dos modelos de compreensão da Psicologia Transpessoal sobre as estruturas de consciência do ser humano, pudemos observar que nos deparamos com um dilema. Por um lado, a busca por uma unidade indiferenciada “esquecida” e, por outro, a matéria, absolutamente necessária como referência na vida do indivíduo. Duas forças aparentemente antagônicas que tendem a desorientar o indivíduo quanto ao sentido da sua existência. Entretanto, há uma constatação — e a crise pode ser encarada como reflexo disso — buscar a satisfação e a paz de espírito apenas em objetos e objetivos materiais leva a uma sensação de fracasso por sua incompletude. Qual a alternativa? Parece que qualquer solução, para ser considerada satisfatória deverá abranger as dimensões materiais e a transcendentais: “Para encontrar a solução desse dilema, temos que nos interiorizar e conduzir uma busca interna sistemática. Com a contínua descoberta e exploração de várias dimensões escondidas, de nós mesmos e da realidade, nossa identificação com o ego corpóreo torna-se progressivamente mais fraca e menos compulsória. Continuamos a nos identificar com o 231 ‘ego encapsulado na pele’ por propósitos pragmáticos, mas esta identificação torna-se mais experimental e lúdica. Se tivermos suficiente conhecimento experiencial dos aspectos transpessoais da existência, inclusive o de nossa própria identidade verdadeira e de nosso status cósmico, a vida cotidiana torna-se muito mais fácil e mais compensadora.(Grof, 2000, p.278). Aqui, fica marcada uma distinção entre os trabalhos de Wilber — mais teóricos e abrangentes — e os de Grof — mais práticos e experienciais. As experiências de Grof com estados e experiências holotrópicos em diversos indivíduos apresentam um arsenal de relatos onde se pode constatar a vivência de aspectos dessa transformação de valores, sistemas de crença, comportamentos e sentido para a vida. O principal meio de promover essas mudanças seria complementar às atividades do dia-a-dia com alguma forma de prática espiritual sistemática que permitisse o acesso aos níveis transpessoais da existência. Grof refere-se à estratégia de vida, proposta por C.G.Jung, que contemplasse tanto a dimensão secular quanto a cósmica, de nós mesmos e da existência. Na sua proposta, Jung defende um trabalho de auto-exploração sistemática, através de uma busca interna que permita uma conexão com um aspecto mais elevado de nosso ser — dentro da abordagem de Jung, o self. Os indivíduos que passam por essas experiências, vivenciam uma nova perspectiva sobre sua realidade diária, tão convincente e propulsora que a incorporam automaticamente à sua visão de mundo. Para Grof, esse impacto diante de uma experiência transpessoal não depende do nível de inteligência, tipo de grau de educação ou das crenças profissionais dos indivíduos. Um dos principais efeitos do impacto provocado no indivíduo dá-se quando vivencia uma experiência transpessoal de identificação com a Unidade (Cosmos, 232 Bhrama, Absoluto etc.). Nesse tipo de experiência, o indivíduo percebe que é coextensivo a toda a rede cósmica do universo e a toda a forma de existência. A percepção desse sentido de pertencimento altera radicalmente sua perspectiva existencial. Os efeitos das experiências holotrópicas, tanto espontâneas como as provocadas, são enfatizados por Grof como significativos no processo de transformação do sistema de valores e crenças do indivíduo. O acesso aos níveis e conteúdos inconscientes — individual, coletivo e/ou transpessoal — promove uma espécie de liberação e alteração na organização desses sistemas: “Nesses anos, testemunhei profundas curas emocionais e psicossomáticas, assim como transformações radicais de personalidade, em muitas pessoas que se envolveram na busca interior séria e sistemática. (...) Quando o conteúdo do nível perinatal do inconsciente emergia à consciência e era integrado, esses indivíduos passavam por radicais mudanças de personalidade. O nível de agressão tipicamente diminuía consideravelmente e elas ficavam mais pacíficas, à vontade consigo mesmas e tolerantes com os outros. A experiência de morte psicoespiritual e renascimento e de conexão consciente com memórias pós-natais e pré-natais positivas reduzia impulsos irracionais e ambições. Ocasionava uma mudança de foco do passado e do futuro para o momento presente e aumentava a habilidade de desfrutar das coisas simples da vida, tais como atividades diárias, comida, amor erótico, natureza e música. Um outro importante resultado desse processo era a emergência de uma espiritualidade de natureza universal e mística que era autêntica e convincente porque baseava-se na experiência pessoal profunda. O processo de abertura e transformação espiritual tipicamente aprofunda-se ainda mais como resultado de experiências transpessoais, tais como identificação com outras pessoas, grupos humanos inteiros, animais, plantas e até mesmo materiais inorgânicos e processos da natureza.” (Grof, 2000, p.349). 233 7. 4. 6- Educação Transpessoal As reflexões sobre o entendimento da crise da sociedade atual, acabam por revelar nossa característica de pensamento racional ocidental: somos arrastados a pensar em soluções. Ao estabelecermos um “diálogo” com a Psicologia Transpessoal acabamos por depararmo-nos com uma possibilidade de ampliação da noção de indivíduo para além das dimensões biográficas-rememorativas-pessoais, entrando nas suas dimensões transpessoais. Esse movimento nos permite pensar no resgate da totalidade do indivíduo. Quanto mais o indivíduo se aprofunda no seu processo de autoconhecimento mais percebe que não se reduz ao seu pensamento, ao seu intelecto. Pelo contrário, a pesquisa de Grof, principalmente, demonstra que é na consciência da transpessoalidade que o indivíduo se percebe integrado à sua totalidade e sua ligação com os outros indivíduos, a natureza, o universo. Ao transcender seus limites individuais, confere diferente sentido à sua existência. Para uma cultura como a nossa, acostumada com os limites do mundo observável, material, é difícil buscar a experiência transpessoal atingindo a compreensão dos desdobramentos da sua existência. Se, comumente, já identificamos a necessidade da Educação como instrumento de inserção dos indivíduos em uma gama maior de possibilidades de realização e sobrevivência, a consideração de uma necessidade de transcendência da configuração de valores e de sentido da vida na direção de uma maior integração com a totalidade, passa pelo estabelecimento de uma Educação Transpessoal. Em importante trabalho, Elydio dos Santos Netto (1998), baseado nas pesquisas de Grof, desenvolve uma proposta para uma Educação Transpessoal: 234 “Então, a Educação Transpessoal é aquela que empenha-se, direta e intencionalmente, para formar o homem para a inteireza hiloholotrópica mediante a transmissão — crítica e transdisciplinar — dos conteúdos culturais necessários à manutenção e desenvolvimento da vida, e, também, mediante o trabalho de auto-conhecimento que possibilita religar as dimensões da pessoa humana: o biográfico, o perinatal e o transpessoal; o hilotrópico e o holotrópico; a interioridade e a exterioridade.” (Santos Neto, 1998, p. 267). Ao considerar a realidade biográfica, perinatal e transpessoal do indivíduo a partir do extenso trabalho de Grof, Santos Neto estabelece toda uma compreensão do processo educativo e da formação de educadores para que desperte no educando suas potencialidades a partir de seu auto-conhecimento. O sentido de pertencimento à totalidade garante uma significativa tolerância e compreensão quanto às diferenças de qualquer ordem: sexuais, raciais, econômicas etc., além de uma grande preocupação com as diversas formas de vida: “As pessoas envolvidas no processo de emergência espiritual tendem a desenvolver uma nova apreciação de todas as formas de vida, bem como reverência por elas, ao lado de uma nova compreensão da unidade de todas as coisas, o que costuma a levar a intensas preocupações ecológicas e a uma maior tolerância diante de outros seres humanos.” (Grof, 1989, p 250). O trabalho de Santos Neto oferece uma significativa exemplificação das possibilidades de se pensar uma ampliação dos objetivos da Educação com vistas à superação da crise da sociedade atual bem como na melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Destacamos os objetivos da Educação Transpessoal proposta pelo autor, que oferecem elementos para nossa reflexão: “São, portanto, objetivos da Educação Transpessoal: · Auxiliar a pessoa a caminhar rumo à totalidade de si mesmo, totalidade que compreende os níveis biográficos, perinatal e transpessoal da consciência, níveis estes que passam pelo corporal, pelo emocional, pelo racional e pelo espiritual da pessoa. 235 · Auxiliar a pessoa a caminhar na direção para a totalidade da realidade (a matéria, o outro, o coletivo, a natureza, o cosmos, a Divindade) e compreender a ligação que existe entre todas as coisas bem como a dinâmica de interconexão entre as várias esferas do real. · Transmitir os conteúdos culturais necessários à sobrevivência, manutenção e desenvolvimento da pessoa individual e do homem enquanto coletividade, sem contudo desconectar a transmissão de tais conteúdos da formação hilo-holotrópica, condição para que o educando venha a desenvolver o sentido de responsabilidade e cuidado para consigo mesmo, com o outro, com o coletivo, com a natureza, com o planeta e com o cosmos. · Auxiliar a formar pessoas que, tendo trabalhado no desenvolvimento integrado dos estados hilotrópico e holotrópico, e também por terem desenvolvido o cuidado consigo próprias e com a alteridade, participem do processo de superação da crise global que enfrentamos — que tem extensões políticas, econômicas, sociais, éticas, ecológicas, científicas e religiosas — e que ameaça a sobrevivência da vida no planeta.” (Santos Neto, 1998, p. 268). Como podemos observar do trecho acima, o trabalho de uma proposta de Educação Transpessoal, não se restringe a uma busca individual, do recolhimento íntimo e silencioso como pode parecer a princípio. Envolve sim, uma ampliação da consciência ecológica e uma solicitação espontânea por uma transformação da sociedade através de um trabalho sócio-político simultâneo e concomitante com o trabalho interior. O trabalho de Educação Transpessoal, despertando as potencialidades do indivíduo, tenderá a desenvolver uma nova consciência de cidadania, onde a autonomia — considerada em nosso trabalho como característica da configuração de valores da sociedade ocidental — poderá ser atingida na sua acepção mais plena: “autonomia da pessoa frente à vida e às possibilidades; da capacidade da pessoa escolher, livre e criativamente, os próprios caminhos dentro das condições concretas nas quais está vivendo. (...) [A religação dos níveis de consciência proporciona] 1. Compreender os vínculos entre o mundo hilotrópico e o holotrópico, ou como é que as experiências biográficas, perinatais e transpessoais interferem nas decisões que as pessoas tomam; 2. Compreender a própria história biográfico-perinatal- 236 transpessoal e consequentemente situar-se de maneira mais adequada na realidade; 3.Compreender as diferenças entre as maneiras de ver o mundo de pessoa para pessoa; 4. Perceber que a esfera da decisão política tem vínculos profundos com a interioridade conectada ou desconectada; 5. Finalmente, perceber a ligação que existe entre todas as coisas: do pessoal ao cósmico e divino.” (Santos Neto, opus cit., p. 251). Parece claro, que uma proposta de Educação Transpessoal estimula também o estabelecimento de diálogos — como o que desenvolvemos nesse trabalho — envolvendo o saber científico, o saber filosófico, as tradições espirituais e as formas artísticas de expressão e conhecimento, como forma de ampliar os limites e a consciência da interligação do indivíduo com a totalidade mais ampla 7.4.7- O que será que falta? Durante todo o percurso desse trabalho identificamos, na grande maioria dos autores, a tentativa de entendimento — pela Psicossociologia — do movimento do pensamento e comportamento humano, a partir da configuração de valores individualistas que caracterizam nossa sociedade ocidental. Identificamos propostas transpessoais que apontam para um resgate da totalidade do próprio indivíduo e com os demais “outros” da existência. Verificamos — e procuramos explorar nesse trabalho — as principais repercussões dos valores básicos da Liberdade, da Igualdade e da autonomia do indivíduo ao longo da história contemporânea, a partir do ideário da revolução francesa. Entretanto, fica a sensação de que falta algo! Quando pensamos na base do ideário da revolução francesa, podemos verificar que raramente os autores abordam a questão da fraternidade no desenvolvimento do entendimento da crise da sociedade atual. Talvez seja a falta da discussão sobre o papel da fraternidade na vida cotidiana humana que tenha distanci- 237 ado o indivíduo dos seus semelhantes, tenha tornado-o indiferente ao sofrimento e às diferenças sociais e econômicas, mesmo quando faltem as condições mínimas de sobrevivência aos outros indivíduos. A exacerbação dos objetivos individuais de igualdade — como na revolta contra a dominação hierárquica e na busca de condições semelhantes — desacompanhada da fraternidade, pode ter isolado os homens na sua competitividade e exigência de auto-suficiência, desenvolvido sistemas políticos igualmente totalitários, segregado os indivíduos em suas famílias, enfraquecendo os laços afetivos fora do núcleo familiar. A independência e liberdade, vividas de forma absoluta sem a fraternidade, podem levar à dedicação exclusiva aos projetos individuais de realização, que não considerem os projetos sociais coletivos, quando não fecham esses indivíduos em um quadro de indiferença, de competição desmedida pela conquista de valores financeiros e outros capitais socialmente valorizados. A manutenção do sistema de valores das sociedades como estão, tende a reforçar o estado atual das relações entre indivíduos e seus grupos. Um estado de questionamento profundo de valores éticos e morais que é gerado pela crise atual, inicia, certamente, um novo período de transformação. Os atuais movimentos mundiais de solidariedade e de fraternidade já têm demonstrado o início do processo de reformulação. Entretanto, há de se cuidar para que o movimento em direção ao resgate — ou conquista — da fraternidade nas relações humanas, seja o mais autêntico possível. Alguns estudos (Iamamoto, 2000) alertam para uma estratégia atual de re-filantropização social, onde a ausência do Estado no papel de responsável no estabelecimento de uma política social, cede lugar à participação da iniciativa privada, através de uma intervenção social dentro de uma perspectiva de filantropia empresarial. A ação, ao invés de demonstrar um aumento da conscientização da responsabilidade social ou do sentido de pertencimento tratado em nosso trabalho, pode representar, única e exclusivamente, uma estratégia co- 238 CAPÍTULO 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Certa vez, à noite, ergui os olhos e vi como se no céu se tivesse aberto uma enorme cortina, durante meio minuto. Experimentei uma sensação de profundo êxtase: Está Tudo Bem. Tudo É Correto. Logo o véu voltou a fechar-se e restaram as estrelas. As mesmas de sempre, e eu, na escuridão. Essa sensação não me abandonou nunca.” (RICHARD BACH) 239 A proposta inicial de manter um “diálogo” transdisciplinar não seria coerente com uma conclusão ao final de nosso trabalho. Em nosso entender, uma conclusão nos remete à etiologia da palavra latina “concluere”: fechar, encerrar. E um tema como esse, que envolve a dimensão individual e social da humanidade, não pode ser encerrado ou esgotado. Nos preocuparemos aqui em tecer algumas considerações importantes na finalização desse trabalho de pesquisa. Nossa proposta foi de ampliar a discussão e a reflexão transdisciplinar sobre o entendimento da crise da sociedade ocidental atual. Para isso, estabelecemos alguns recortes. Na abordagem psicossociológica, privilegiamos a ideologia individualista sob diferentes perspectivas disciplinares e interdisciplinares. Como outra interlocutora, elegemos a Psicologia Transpessoal em função de ousada e inovadora concepção de indivíduo que propõe. Como já esperávamos, encontramos várias dificuldades ao longo de nosso “diálogo” transdisciplinar. Muitas dessas dificuldades puderam ser relatadas em diversos momentos da articulação dos pensamentos, representando uma grande experiência para nós, no âmbito de um trabalho transdisciplinar. Entretanto, as vantagens também são significativas. A maioria delas, talvez, só nos seja possível apreciar no momento em que encerramos nosso trabalho, quando nos deparamos com a ampliação de horizontes que o exercício transdisciplinar promoveu. Tanto nos âmbitos do crescimento intelectual, social e, principalmente, pessoal. No âmbito intelectual, é como se os interlocutores voltassem de seu “diálogo” com a cabeça fervilhando de novas possibilidades e fronteiras a desbravar nos seus campos de conhecimento próprios. No âmbito pessoal, a vivência do trabalho transdisciplinar nos faz mais tolerantes, ponderados, flexíveis sem perder a determinação, a firmeza e a coerência da postura crítica equilibrada. 240 Também no âmbito pessoal, a execução do presente trabalho teve a importância de nos fazer constatar a gama de possibilidades que a Psicologia Transpessoal oferece. Ao longo de nossa vida profissional tivemos a oportunidade de entrar em contato com alguns desdobramentos clínicos da Psicologia Transpessoal, buscando formas alternativas e mais eficazes no entendimento e superação de diversas psicopatologias que acometem os indivíduos em nossa sociedade ocidental. Entretanto, somente agora podemos avaliar a extensão e profundidade do trabalho de Grof ou de Wilber. As contribuições dessa oportunidade de reflexão sistemática e aprofundada das propostas transpessoais ampliam as perspectivas tanto profissionais de nosso trabalho teórico e prático clínico, quanto sociais e pessoais na relação com a vida. Nos parece ter ficado claro, também, que o presente trabalho oferece uma gama de novas frentes; novos desafios. Alguns pontos levantados pelo trabalho merecem um aprofundamento mais criterioso e focal, como a questão da Sociologia Transpessoal, das relações entre Indivíduo e Sociedade e, principalmente, a questão da configuração de valores, dentre outros. Ao final de nossa reflexão, pudemos perceber a importância do tema da configuração de valores para a compreensão da crise da sociedade ocidental atual. Diríamos até que nos parece — e agora, talvez, seja o momento adequado para fazê-lo — não ser apenas em relação aos valores ocidentais. O processo de globalização crescente vem possibilitando uma reordenação dos valores individuais e sociais em todas as culturas ao redor do mundo. Tal fenômeno nos coloca diante de um novo desafio: qual o papel de uma configuração de valores do indivíduo e de uma sociedade no desenvolvimento humano? 241 No campo da Psicossociologia, que nos interessa em particular para os objetivos desse trabalho, podemos identificar algumas tentativas, ainda acanhadas, de transformação da configuração dos valores individualistas através dos movimentos de incentivo ao Trabalho Voluntário que ocorre atualmente em nível mundial, o Amigos da Escola e o Faça a sua Parte, no Brasil, a crescente participação dos movimentos de cooperativas de trabalhadores, os inúmeros movimentos de solidariedade verificados em todo o mundo no combate à violência, na defesa de minorias, no auxílio em catástrofes ou locais que representam focos de miséria absoluta, os movimentos pela paz etc.. Todas essas iniciativas parecem representar uma mudança de sentido na configuração dos valores do Individualismo, sem a perda das conquistas alcançadas, mas ampliando a inteligência espiritual, segundo Grof, que permita uma visão metafísica da realidade e da vida, uma transcendência do sentido da existência humana. Certamente, o espaço criado para nossa discussão não se adequava a uma reflexão tão específica e importante, representando uma necessidade de desenvolver, em uma proposta de doutorado, por exemplo, e em uma abordagem transdisciplinar, com certeza, um estudo mais profundo sobre o tema. Outro resultado significativo que julgamos ter obtido com a conclusão de nosso trabalho está na constatação de que a Abordagem Transpessoal não invalida o percurso do conhecimento atual pela Ciência Ocidental. Pelo contrário. Verificamos que o que parecia antagônico, pode ser dinamizador, ou seja, ao invés de contrapor ao conhecimento científico, amplia-o, desafia-o com novos horizontes, pressiona-o no sentido de flexibilizar cristalizações de posturas sem perder o caráter e rigor científico. 242 Essa aproximação entre os saberes que o exercício transdisciplinar possibilita, nos remete ao nosso interesse inicial apresentado no primeiro capítulo desse trabalho: o movimento dos profissionais da área de saúde mental que buscavam percursos alternativos aos da sua formação acadêmica tradicional. Verificamos, agora, o quanto estávamos implicados com essa questão, em função da situação pessoal diante desse movimento profissional. Verificamos, também, a coerência e vantagens de termos empreendido um caminho diferente do inicialmente proposto. Com toda a reflexão sobre a crise, pudemos entender o fenômeno de uma maneira mais ampliada, não nos restringindo — apesar de sua importância — aos componentes individuais. Com os estudos sobre Wilber verificamos que esse fenômeno parece representar um movimento autêntico do pensamento racional, que diante dos desafios e pressões para um processo de transformação de valores para níveis mais elevados na hierarquia da consciência, busca explorar ao máximo o potencial dos objetos relacionais disponíveis. Wilber chamou os indivíduos que operam nessa transformação de trans-leis. Esses indivíduos, enquanto não conseguem estabelecer bases totalmente coerentes e sólidas dos novos conhecimentos e perspectivas que desenvolvem, encontram-se, até mesmo, em uma situação de marginalidade diante do sistema predominante. Entretanto, a própria vivência da crise, entendida no seu sentido de transformação, pode representar a vivência, pelos indivíduos como um todo, ainda que de forma não consciente, da necessidade de transcendência dos valores que compartilham naquele momento histórico. Wilber faz uma analogia ao pensamento précopernicano, sobre a não esfericidade da terra, referindo-se a essa sensação como a 243 de um indivíduo que se aproxima da borda aniquiladora do mundo, a partir do qual despenca para o nada. Até que o indivíduo descobre que sua premissa estava equivocada e que a terra era redonda. A discussão sobre o fim da ciência, no início desse trabalho, pode representar a sensação de se aproximar de uma borda aniquiladora, pelo pensamento humano. A postura transdisciplinar vem mostrando que a “terra deve ser redonda”... Algumas dificuldades que nos deparamos ao longo da elaboração desse trabalho, estiveram relacionadas ao pouco conhecimento que a produção teórica e empírica do movimento transpessoal tem no meio acadêmico. Como vimos, parece ser esse um meio legítimo — a discussão transdisciplinar com outros saberes — do ocidente poder discutir e encontrar sua forma própria de religação com seus níveis de consciência, inclusive com a dimensão da consciência cósmica. A abordagem da crise da sociedade ocidental revelou também que o processo de “diálogo” transdisciplinar não ocorre indiscriminadamente. Existem diversos aspectos epistemológicos, antropológicos, filosóficos importantes envolvidos na discussão de uma nova concepção de indivíduo como propõe a psicologia Transpessoal. No Epílogo de A Epopéia do Pensamento Ocidental, Richard Tarnas (2000) ressalta o avanço epistemológico que pode representar o extenso e consistente trabalho de Grof no estabelecimento de uma nova cartografia do psiquismo humano. As possibilidades de se pensar o indivíduo sob essa nova perspectiva abre uma infinidade de questionamentos decisivos para o conhecimento humano atual. 244 Em nossa opinião, uma das principais questões propostas está no entendimento da crise da sociedade atual — e aqui nos permitimos a não recortar apenas a ocidental — como uma crise espiritual. Essa fronteira que se abre, apresenta desafios novos para a Ciência no estabelecimento de metodologias e critérios específicos para colocar o fenômeno espiritual — não necessariamente religioso — como objeto de estudo. O trabalho de Grof talvez represente um dos mais significativos exemplos de possibilidade de se combinar observação sistemática com novas premissas paradigmáticas, observação empírica com experiência subjetiva etc., com expressivos resultados para o conhecimento humano. Muitos questionamentos podem surgir como conseqüência de nosso trabalho. Se assim for, atingiu um de seus objetivos. Se desses questionamentos, resultarem discussões pertinentes, nossa satisfação será significativa. As grandes transformações necessárias para o avanço de nossa sociedade se darão, na maioria das vezes de modo lento e gradual. Conta-se que um brilhante escritor, reconhecido mundialmente e admirado por milhares de pessoas pela profundidade e lógica com que tratava as grandes questões filosóficas do ser humano, tinha o hábito de sair pela manhã, passeando pela bela praia existente perto de sua residência. Nesse momento, refletia sobre as questões da vida e do homem, para posteriormente, durante a tarde, sentar-se ao seu computador e procurar passar aos seus leitores o resultado de suas reflexões. Uma manhã, o escritor vê na praia um menino, que se preocupava em colher as estrelas do mar que as ondas arremessavam para a praia, retornando-as ao oceano. “O que você está fazendo aí, menino?” O menino sem se desviar do seu afazer respondeu: “Estou devolvendo ao mar as estrelas, para que não morram.” Diante 245 da resposta ingênua do menino, o escritor começou a tecer comentários sobre a inutilidade da sua ação, de quantas milhares de estrelas existiam, apenas naquela praia, e que ele não conseguiria salvar, que se projetasse isso para o mundo, talvez estivessem falando de milhões de estrelas e de como sua ação não fazia diferença. O menino ouvia sem interromper sua tarefa. Pegou mais uma estrela e, antes de arremessá-la ao mar retrucou: “Para essa aí, fez diferença”. No dia seguinte, o escritor passou a acompanhar o menino coletando estrelas... A possibilidade de pensar as questões que envolvem a crise da sociedade, a dimensão espiritual do ser humano, de se pensar uma Sociologia e Educação Transpessoais, a ampliação dos horizontes da Ciência em todas as suas disciplinas, bem como a necessidade premente de uma modificação da configuração de valores que garanta, não só a sobrevivência mas, principalmente, a “vivência” do ser humano, remete-nos à discussão de algumas das grandes questões filosóficas da humanidade: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido de nossa existência? 246 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Márcio T. — Paradigma, Ciência e História — in IDEA 1/89. A Crise da Ciência, Rio de Janeiro, IDEA/FCC/UFRJ, 1989. ______, Márcio T. — Transdisciplinaridade — Rio de Janeiro, Revista Tempo Brasileiro, 108, jan-mar, 1992. ANDRADE, Hernani G. — Reencarnação no Brasil — Matão, São Paulo, O Clarim, 1988. ARIÉS, Phillipe — O Homem Diante da Morte — Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990. 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Estes incluem a natureza e as variedades, causas e efeitos das experiências e do desenvolvimento transpessoal, como também as Psicologias, filosofias, disciplinas, artes, culturas, estilos de vida, reações e religiões por eles inspirados ou voltados à sua indução, expressão, aplicação ou compreensão. Psiquiatria Transpessoal: área da psiquiatria que se concentra no estudo das experiências e fenômenos transpessoais. Sua perspectiva é semelhante à da Sociologia Transpessoal, enfocando particularmente os aspectos clínicos e biomédicos desses fenômenos. 251 Antropologia Transpessoal: estudo transcultural dos fenômenos transpessoais e da relação entre a consciência e a cultura. Sociologia Transpessoal: estuda as dimensões, repercussões e expressões sociais dos fenômenos transpessoais. Ecologia Transpessoal: estuda as dimensões, repercussões e aplicações ecológicas dos fenômenos transpessoais. Movimento Transpessoal: movimento interdisciplinar que inclui e integra as diversas disciplinas transpessoais. 252 ANEXO 2 RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS AUTORES DA ABORDAGEM TRANSPESSOAL CONSULTADOS Stanislav Grof — Doutor em Medicina e Filosofia, psiquiatra e ex-presidente da International Transpersonal Association, foi chefe de pesquisa psiquiátrica do Centro de Pesquisa Psiquiátrica de Maryland e do Johns Hopkins Hospital. Autor de diversos livros, inclusive Além do Cérebro e Aventura da Autodescoberta, além de mais de uma centena de artigos e ensaios publicados. Ken Wilber — é um dos principais teóricos do transpersonalismo. Sua síntese transdisciplinar abrange as Psicologias, as filosofias e religiões do Oriente e do Ocidente, além da Psicologia, Antropologia e pós-modernismo. Roger Walsh, Ph.D. — Médico e professor de Psiquiatria, Filosofia e Antropologia da University of California, Irvine. Autor de 12 livros e de mais de uma centena de artigos sobre ciência, filosofia, religião e ecologia. Frances Vaughan, Ph.D. — Psicóloga, membro da equipe clínica da University of California Medical School, Irvine e ex-presidente da Association for Transpersonal Psychology. 253 Abraham Maslow, Ph. D. — foi um dos mais importantes psicólogos deste século, sendo visto como pai da Psicologia humanística e da Psicologia Transpessoal. Entre seus livros encontram-se Toward a Psychology of Being e The Farther Reaches of Human Nature. Charles Tart, Ph.D. — é professor de Psicologia da University of California, Davis. Tart é um dos mais renomados pesquisadores dos estados de consciência e da teoria transpessoal, autor de Walking Up e Transpersonal Psychologies, entre outros. Kenneth Ring, Ph.D. — é professor de Psicologia da University of Connecticut e ex-presidente da International Association for Near Death Studies. Ring é também o autor de Life at Death e The Omega Project. William James — foi um dos mais importantes filósofos e psicólogos americanos. Autor de inúmeros livros, são seus o Varieties of Religious Experience e Principles of Psychology. Daniel Goleman, Ph.D. — é editor de Psicologia do The New York Times. Entre suas diversas publicações, incluem-se Mind/Body Medicine e Mind Science. Charles Laughlin, Ph.D. — é professor de Antropologia da Carleton University, Ottawa, Canadá. Autor de uma pesquisa etnográfica com os lamas tibetanos no Nepal, é editor de Anthropology of Consciousness e co-autor de Brain, Simbol and Experience. Warwick Fox, Ph.D. — eminente ecologista, é autor de Toward a Transpersonal Ecology, além de pesquisador do Center for Environmental Studies, da Universidade da Tasmânia. 254 Bill Deval, Ph. D. — é um dos importantes autores da ecologia profunda e co-autor do clássico Deep Ecology: Living as if Nature Mattered. John Engler, Ph.D. — psicólogo e mestre de meditação budista, além de um dos pioneiros da integração entre as idéias budistas e o pensamento psicanalítico. John Shearer, Ph.D. — um dos pioneiros na colaboração para a implantação da Antropologia Transpessoal.