Observatório dos Direitos do Cidadão acompanhamento e análise das políticas públicas da cidade de São Paulo 2 Educação na Cidade de São Paulo (1989 a 2000) Janeiro, 2002 Instituto Pólis/PUC-SP 2 Apresentação O Observatório dos Direitos do Cidadão é um instrumento para o exercício da cidadania. Seu objetivo é acompanhar e analisar a evolução das políticas públicas na cidade de São Paulo e tornar público o resultado de seu trabalho. As iniciativas recentes de democratização da gestão municipal levaram à criação de vários Conselhos e de outros mecanismos de participação, como o Orçamento Participativo, que se propõem a estimular a participação de representantes eleitos pelas comunidades na definição, implementação e fiscalização de políticas públicas cuja responsabilidade de execução é da Prefeitura. A existência dos Conselhos e de outros processos de participação na gestão municipal é uma conquista da sociedade que se mobilizou para criá-los e um avanço de governantes empenhados na construção de uma nova forma democrática de governar. Entretanto, sua transformação em efetivos órgãos de decisão colegiada ainda não se deu, e uma das razões para isso é que as representações eleitas da sociedade civil não detém as informações sobre a evolução do gasto público e sobre a execução das políticas em questão. Com base nesse diagnóstico e reconhecendo a importância destes Conselhos e demais mecanismos de participação para orientar o gasto público e as políticas específicas segundo as prioridades determinadas pelas comunidades, o Instituto Pólis e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo decidiram unir esforços e criaram o Observatório dos Direitos do Cidadão. A partir de agora o Observatório dos Direitos do Cidadão faz o acompanhamento trimestral da execução orçamentária da Pre3 feitura e das políticas de educação, saúde, moradia, assistência social e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Seus relatórios periódicos serão públicos e existirá um programa especial de capacitação e informação para as lideranças comunitárias, eleitas para atuarem nos espaços públicos de participação. O trabalho do Observatório dos Direitos do Cidadão é coordenado pelo Instituto Pólis e pelo Instituto de Estudos Especiais da PUC-SP e conta com a indispensável parceria dos seguintes organismos da PUC-SP: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social; Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre a Criança e o Adolescente; Núcleo Currículo, Estado, Sociedade. O Observatório dos Direitos do Cidadão conta com o apoio da Fundação Ford e se beneficia também do apoio da EED ao Instituto Pólis. Através do Observatório dos Direitos do Cidadão colocamos à disposição da sociedade paulistana, especialmente de suas representações coletivas e comunitárias, informações e análises que visam colaborar para uma atuação mais efetiva e propositiva de suas lideranças na construção de um governo democrático e de uma vida melhor. 4 PÓLIS I N S T I T U T O D E E S T U D O S, FORMAÇÃO E ASSESSORIA EM POLÍTICAS SOCIAIS Núcleo Currículo, Estado, Sociedade PUC/SP José Cleber de Freitas Ana Maria Saul Antonio Fernando Gouvêa da Silva Colaboração Antonio Chizzotti Bruna Michelman 5 2ª Edição CATALOGAÇÃO NA FONTE - PÓLIS/CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO FREITAS, José Cleber; SAUL, Ana Maria; SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da Educação na cidade de São Paulo (1989 a 2000). 2ª edição. São Paulo, Pólis / PUC-SP, 2002. 40p. (Observatório dos Direitos do Cidadão: acompanhamento e análise das políticas públicas da cidade de São Paulo, 2) 1.Políticas Públicas. 2. Política de Educação. 3. Indicadores Sociais. 4. Inclusão Social. 5. Direito Social. 6. Educação. 7. Política de Educação na Cidade de São Paulo. 8. Conselhos Gestores de Políticas Públicas. 9. Avaliação de Gestão. FREITAS, José Cleber. II. SAUL, Ana Maria. III. SILVA, Antônio Fernando Gouvêa da. IV. Pólis. V. PUC-SP. VI. Título. VII. Série. Fonte: Vocabulário Pólis/CDI Editoração Eletrônica: Renato Fabriga Capa: Bamboo Studio Produção Gráfica: Bamboo Studio Fotolitos: Digilaser Impressão: Gráfica Peres 6 Sumário 1 – São Paulo: Desigualdades e Exclusão 1. 1. Indicadores Sociais 1. 2. A situação da educação na cidade 2 – Resgatando a História: as políticas educacionais na cidade (1989- 2000) 2. 1. A Inclusão Educacional como um Direito Social 2. 2. As Concepções de Qualidade da Educação 2. 3. Os Paradigmas de Gestão 09 09 14 20 20 25 30 3 – Os Desafios de Hoje 35 Notas 37 Referências bibliográficas 39 7 8 1. São Paulo: Desigualdades e Exclusão 1. 1. Indicadores sociais Com 10.405.867 habitantes1 , São Paulo é a maior cidade da América do Sul. Nas duas últimas décadas, a cidade vem se renovando e assumindo um novo perfil com o decréscimo da população nas áreas mais centrais, ao mesmo tempo em que se torna mais compacta e mais densa. Isso se expressa no aumento da área construída anualmente, passando dos 7,4 milhões de m 2., na década de 80, para 10,4 milhões de m2., nos anos 90. São Paulo também vem se tornando menos residencial 2 , pois a área construída não residencial passou de 33% do total, em 1980, para 37%, em 1990, destacando-se a queda da participação do setor industrial que de 35% em 1980, caiu para 21% em 1999. 3 Registra-se ainda um grande crescimento do setor terciário, isto é, serviços e comércio, que se expandiu de forma horizontal. Em síntese, cada vez mais, São Paulo vai assumindo “um papel de núcleo polarizador de atividades de comércio, serviços, cultura e lazer de toda uma região metropolitana, cada vez maior. Por outro lado, à medida que sua população de maior renda amplia sua ocupação no espaço urbano, o processo de exclusão intensificase, marginalizando as populações de renda mais baixa ou levandoas para uma periferia cada vez mais distante, que já ultrapassou os limites do município”.4 E, assim, a cidade vai se consolidando num amplo anel de bairros periféricos cada vez mais distanciados do núcleo central da cidade, habitados por uma população 9 quase que totalmente desassistida pelos serviços públicos. Por outro lado, São Paulo é o maior centro econômico e financeiro do país. Aqui, concentra-se a maior parcela do capital nacional e a grande maioria dos grupos internacionais que atuam no Brasil, o que faz da cidade o mais importante pólo de conexão da economia brasileira com fluxos de capital estrangeiro. A cidade desempenha funções de centro financeiro, sedia grandes empresas transnacionais e é uma base de complexas redes de serviços modernos de alta especialização. Hoje, os escritórios centrais das 500 maiores empresas privadas do país e 60% das empresas multinacionais estão instalados na cidade de São Paulo 5 . Apesar de toda essa riqueza econômica e financeira, São Paulo sofre um processo de deterioração das condições de trabalho e um crescimento constante do desemprego, além de queda do nível de rendimentos. O número de pessoas ocupadas caiu de 56,4% em 1988 para 51,7% em 1998. O desemprego cresceu de entre 8,2% e 10,8%, em 1991, para 14,2% em 1992 e tem aumentado continuamente, chegando a 17,0% em 1998 e 17,9% em 1999. 6 Houve uma diminuição da mão-de-obra empregada na indústria (de 29,11%, em 1988, para 17,8% em 1998). Também houve redução na construção civil, em que o número de empregados caiu de 4,0% em 1988 para 2,4% em 1998. Parte dos trabalhadores que ficaram desempregados nesse setor foram absorvidos pelo setor de serviços, inclusive domésticos. Assim, o setor de serviços e comércio registra um grande crescimento, passando de 66,2% em 1988 para 79,4% em 1998.7 Da mesma forma, o trabalho assalariado e o emprego assalariado, com registro em carteira, vêm decaindo constantemente, chegando a 40,5% do total dos trabalhadores, em 1998.8 Atualmente, o mercado de trabalho em São Paulo configura a seguinte distribuição: 79% da mão-de-obra empregada localiza10 se no setor de comércio e serviços, enquanto a indústria de transformação absorve apenas 17,8% dos ocupados e a construção civil, meros 2,4%9 . “Em suma, a queda do emprego industrial, o crescimento dos serviços (um setor em que o trabalho informal tradicionalmente é maior que na indústria), o crescimento do trabalho autônomo, em detrimento do assalariado e a queda do registro em carteira são indicações claras da perda, por parte de uma expressiva massa de trabalhadores, dos direitos e garantias previstas na legislação”. (SEMPLA, 2000, pg.21)10 Por outro lado, em relação ao conjunto do país, em termos comparativos, trata-se de uma das cidades que apresentam melhores indicadores sociais em relação a padrões de renda, alfabetização, habitação e saneamento básico.11 No entanto, a qualidade de vida destacada pelos indicadores sociais não é partilhada igualmente por todos seus moradores. Há uma diversidade muito grande nas condições de acesso aos benefícios desta qualidade de vida e existe um fosso que distancia econômica e socialmente os habitantes, de acordo com suas classes sociais. A cidadania real fica restrita a uma pequena parcela que detém as rendas mais altas. As profundas desigualdades sociais ampliaram-se nas duas últimas décadas. Durante esse período (1980-2000), houve um grande crescimento da população moradora em habitações precárias. Isso ocorria ao mesmo tempo em que havia um contínuo aumento das taxas de desemprego, que afetava a 18% da população ativa em 1999. Segundo estimativas da Prefeitura, a cidade de São Paulo conta, hoje, com cerca de 2 milhões de moradores em favelas e assemelhados, em 378.863 domicílios, e com cerca de 600 mil moradores, em 23.688 cortiços cadastrados. O crescimento da população favelada em São Paulo é superior ao crescimento da população total do município. Em 1973, 1,2% 11 da população da cidade vivia em favelas; em 1980, essa taxa atinge 5,0% da população; em 1987, sobe para 8,9% e em 1993, salta para 19,8% da população.12 Além desse universo de habitações subnormais em São Paulo, existem 1,5 milhão de habitantes, segundo estimativas da PMSP/ Sehab, “vivendo em moradias precárias situadas em 2.450 loteamentos clandestinos, sem nenhum tipo de acesso a serviços básicos de infra-estrutura e, muitas vezes, em áreas de risco”.13 São Paulo é uma cidade de desigualdades profundas, de contradições que expõem a olho nu sua realidade social, pois convivem em seu espaço urbano “realidades socioeconômicas extremamente díspares, que expressam a polarização entre contingentes sociais incorporados aos setores mais dinâmicos da economia – e cada vez mais conectados à economia global – e aqueles reduzidos à marginalidade econômica e cada vez mais submetidos a um processo de exclusão social”.14 Estes últimos encontram-se cada vez mais pauperizados e excluídos do mercado e dos direitos de cidadania social. O Mapa da Exclusão Social15 aponta que, dos 96 distritos da cidade, apenas 23 apresentam padrões de qualidade de vida comparáveis aos centros urbanos do mundo desenvolvido. Importante observar que nesses 23 distritos reside uma pequena parcela da população, equivalente a 18%, formada por moradores que apresentam as rendas mais altas da cidade. São Paulo é, assim, marcada por profundas desigualdades econômicas, sociais e territoriais. Para se perceber com maior clareza o que representa a exclusão na cidade de São Paulo, basta fixar-se num dado que revela o quanto é perversa a situação de miséria em que vive parcela significativa de sua população: em 29 distritos, onde vive 40% da população ou 4 milhões de pessoas, os habitantes situam-se abaixo da linha de pobreza, destituídos de direitos sociais e alijados do acesso aos bens materiais e, portan12 to, excluídos não só econômica, mas social e até simbolicamente. Dois territórios profundamente desiguais convivem em São Paulo: um moderno, rico, globalizado, com acesso a bens e serviços comparáveis ao mundo desenvolvido; outro miserável, carente, excluído, alijado dos bens, materiais e simbólicos, construídos pela sociedade humana. Neste último território, vivem os “desqualificados sociais” e que, na maioria, são estigmatizados socialmente. A cidade de São Paulo comporta uma sociedade fraturada e marcada profundamente por desigualdades sócio-espaciais, que a dividem em dois mundos desiguais. Por outro lado, trata-se também do maior centro do país de informação e de cultura, que oferece grandes possibilidades de lazer e de bens culturais, comparando-se aos grandes centros culturais de países desenvolvidos, como Londres, Paris e Nova Iorque. No entanto, devido à situação de pobreza e de exclusão da maioria de seus moradores, o acesso a quase totalidades desses bens culturais é negado à maioria dos seus habitantes. Além dos custos para se ter acesso a esses bens culturais, o crescimento da pobreza e da miséria da maioria dos habitantes de São Paulo provocou uma redução de 40% do índice de sua mobilidade para o lazer. A pressão de outros gastos no orçamento familiar, impedindo a mobilidade da maioria de sua população para o lazer, forçou um aumento da busca desse serviço dentro de casa, o lazer doméstico. Outros fatores podem estar influenciando este crescimento: o agravamento da violência na cidade e a dispersão das moradias pela periferia da cidade, tornando mais difícil o acesso aos equipamentos culturais. Esse aumento do lazer doméstico revela-se no crescimento do número de domicílios que possuem TV em cores (mais de 90%) e aparelhos de videocassete (cerca de 60%).16 A exclusão social assume a sua face mais perversa e radical na 13 existência de um conjunto de moradores da cidade que vivem nas ruas. Em fevereiro de 2000, existiam 8.706 pessoas morando nas ruas da cidade de São Paulo, sendo que a maior concentração 68,5% - ocorria na macro-região que compreende os distritos da Barra Funda, Perdizes, Santa Cecília, Consolação, Bom Retiro, República, Sé, Bela Vista, Liberdade, Cambuci, Brás, Pari, Belém e Mooca. Constatou-se que existiam 109 crianças até 06 anos de idade e 400 entre 07 e 17 anos morando nas ruas da cidade, no período noturno.17 Por sua vez, a Secretaria Municipal de Assistência Social contou, em 1997, 1465 crianças e adolescentes morando nas ruas de São Paulo. Essa visão de uma cidade dividida e separada pela exclusão da maioria dos que nela habitam é também compartilhada pela maioria dos seus moradores, cuja “imagem de duas cidades, uma rica e moderna e a outra miserável e violenta desperta no paulistano um sentimento de ambigüidade. Perplexo e indignado com a degradação de São Paulo, ele aponta a necessidade do governo implementar políticas capazes, senão de reverter, pelo menos de amenizar a miséria e a exclusão que conformam a São Paulo de 5º. mundo. Miséria e carências que atingem particularmente a população de baixa renda, mas que afetam a cidade no seu todo e colocam em xeque o seu status e as bases da cidadania do paulistano”.18 1.2. A situação da Educação na cidade Neste contexto de uma sociedade marcada pela exclusão da maioria dos seus cidadãos, a educação, ao invés de ser um mecanismo de superação dessas desigualdades, ao contrário, vem, de um modo geral, reforçando-as. A educação é uma das condições 14 necessárias para a transformação social, no entanto, ela sozinha não é suficiente. Deve-se rejeitar uma visão ingênua, muito divulgada pelos meios de comunicação e até pelo governo e empresariado, que a educação exerce a função salvadora para a superação das desigualdades sociais. Para se compreender que a educação sozinha não consegue levar as pessoas à superação de suas desigualdades sociais, basta observar os dados da pesquisa realizada pela Prefeitura em 2001, com base na amostragem de 11,8 mil famílias cadastradas nos programas sociais da Prefeitura. Estes dados revelam ainda que 86,4% das pessoas situadas na linha da pobreza têm baixa escolaridade.19 No entanto, quando se observa a faixa de idade das pessoas, constata-se que no grupo de 16 a 20 anos, os jovens freqüentaram a escola por mais tempo: 64,7% cursaram o Ensino Médio e 35,3% concluíram o Ensino Fundamental. Por outro lado, no grupo dos mais velhos, com mais de 40 anos de idade, 93,8% cursaram apenas o Ensino Fundamental e somente 6% têm o Ensino Médio. Pode-se concluir que entre as pessoas com mais de 40 anos de idade – “a velha pobreza” – permanece o problema da baixa escolaridade e entre os mais jovens, de 16 a 20 anos de idade – “a nova pobreza” – a principal dificuldade já não é mais a escolaridade, mas a falta de trabalho. Portanto, a escolaridade sozinha não diminui as desigualdades sociais. São esses jovens, na sua maioria, que já concluíram o ensino médio, que estão buscando o apoio nos programas sociais da Prefeitura: “Tem-se, então, a combinação explosiva: o indivíduo estuda na esperança de fugir da miséria, mas vê-se obrigado a rastejar por verbas oficiais”. 20 Assim o que se observa é que “a educação, no processo da chamada “globalização”, tem sido tomada como condição necessária para a inclusão em uma sociedade cada vez mais baseada no conhecimen15 to. No entanto, a visão neoliberal, ao reduzir o papel do Estado, nega sistematicamente este direito aos trabalhadores e trabalhadoras, fazendo com que a educação assuma, cada vez mais, um papel determinante no quadro de exclusão social vigente”.21 A situação da educação na cidade de São Paulo, hoje, reflete a história da grande maioria das políticas públicas do país que se pautavam pela negação de direitos, dificultando o acesso à educação das classes sociais excluídas, em particular, negros e mulheres. O resultado destas políticas públicas numa cidade com 10.405.867 residentes, traduz-se, a partir de levantamentos estatísticos do IBGE,22 nos seguintes dados: - havia, em 1997, na cidade de São Paulo, 2.625.391 pessoas com 04 anos de idade ou mais freqüentando escola; - a população da cidade que, nesta mesma época, não freqüentava escola, era de 6.487.847 pessoas; - dos que não estavam freqüentando escola: 1.043.351 pessoas não tinham nenhuma instrução ou estudaram menos de 01 ano; 378.095 estudaram apenas 01 ano; 473.879 tinham apenas 02 anos de escolaridade; 538.577 só estudaram 03 anos e os que estudaram durante 04 anos eram 1.497.737. Visto de uma forma mais completa, o quadro da escolaridade na cidade de São Paulo apresentava os seguintes dados, em 1997: - população com menos de 01 ano de estudo - 820.460 pessoas; - população com 01 a 07 anos de estudo (Ensino Fundamental incompleto) – 4.414.936 pessoas; - população com 08 a 10 anos de estudo (Ensino Fundamental completo) – 1.660.850 pessoas; - população com 11 a 14 anos de estudo (Ensino Médio completo) – 1.538.202 pessoas; - população com 15 anos ou mais de estudo (Ensino Superior completo) – 613.245 pessoas. 23 16 Em resumo, havia na cidade 2.888.288 pessoas que ou nunca tinha estudado ou que só conseguiram freqüentar a escola durante, no máximo, 04 anos. Isto significa que esta parcela expressiva da população ficou excluída de um direito subjetivo, assegurado pela Constituição Federal – o acesso ao Ensino Fundamental, com 08 anos de escolaridade. É importante destacar que este direito de acesso ao Ensino Fundamental é reafirmado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei 9394/96), pela Constituição do Estado de São Paulo e pela Lei Orgânica do Município de São Paulo. A garantia do acesso ao Ensino Fundamental é, sobretudo, uma responsabilidade do Município, segundo as Disposições Transitórias da LDB, a quem cabe realizar a chamada escolar e oferecer o Ensino Fundamental a todos os cidadãos, independente de sua idade. Em relação à Educação Infantil, no início do ano letivo de 2001, havia 104 mil crianças, de zero a três anos, em lista de espera por vaga em creche. A face mais perversa da exclusão escolar na cidade de São Paulo manifesta-se na existência de 1,4 milhão de pessoas jovens e adultos com menos de 04 anos de escolaridade. Assim, estima-se que a demanda potencial por programas de alfabetização e pós-alfabetização de jovens e adultos correspondentes às séries iniciais do ensino fundamental seja superior a 1,4 milhão de pessoas. Um dado que reafirma o processo de exclusão das crianças e adolescentes da educação escolarizada se refere à proporção de crianças e adolescentes fora da escola: em 1997, são 36,8% da população na faixa etária de 04 a 06 anos (educação infantil) e de 3,2% da população na faixa etária entre 07 e 14 anos (ensino fundamental). As áreas mais críticas em termos de déficit de aten17 dimento com relação às crianças de 4 a 6 anos de idade foram as de Santo Amaro-Grajaú; São Miguel Paulista-Ermelino Matarazzo e Casa Verde-Freguesia do Ó. Para a faixa dos 7 aos 14 anos, foram as de Santo Amaro-Grajaú; Itaquera-São Mateus e Casa Verde-Freguesia do Ó 24 . Um problema que agrava as desigualdades é o fato de a maioria das Escolas Municipais ainda funcionarem em 04 turnos, o que revela um descompromisso das políticas públicas com a questão do tempo de permanência das crianças e adolescentes na escola e, sobretudo, com a qualidade da educação que aí se pratica. E o que se torna mais agravante ainda é que a maioria das escolas de 04 turnos se concentra nos territórios excluídos, nos bairros periféricos, aprofundando mais as desigualdades educacionais e sociais. Hoje, no que se refere ao Ensino Fundamental, a situação no Município de São Paulo está atualmente bem próxima do ideal da universalização, com 96,8% das crianças e jovens na faixa de 07 a 14 anos de idade freqüentando escola. O total de matrículas no Ensino Fundamental está assim distribuído:25 - escolas estaduais: 930.075 matrículas; - escolas municipais: 536.871 matrículas; - escolas particulares: 289.681 matrículas. Não obstante ser reduzido o número de crianças e jovens fora da escola, a proporção de atendimento se distribui desigualmente na cidade, sendo que os Núcleos de Ação Educativa (antigas Delegacias de Ensino) que abrangem os extremos das regiões Leste e Sul da cidade apresentam as maiores deficiências de atendimento (maior número de crianças fora da escola). Na área da Educação Infantil, ainda é muito grande o número de crianças que não a freqüentam (quase 37%), sendo que as maiores carências situam-se igualmente nas regiões Leste e Sul 18 (...)26 . Deve-se dar um destaque especial para as 104 mil crianças de 0 a 03 anos de idade que, no início de 2001, não encontravam vagas nas creches municipais. Na Educação Infantil, na cidade de São Paulo, há 296.436 crianças matriculadas:27 - nas escolas municipais (EMEIs): 226.014 matrículas; - nas escolas particulares: 70.422 matrículas. No Ensino Médio, na cidade de São Paulo, há 568.832 matrículas, assim distribuídas:28 - escolas federais: 2.683 matrículas; - escolas estaduais: 447.657 matrículas; - escolas municipais: 5.338 matrículas; - escolas particulares: 70.422 matrículas. O reduzido número de matrículas de Ensino Médio nas escolas municipais explica-se pelo fato de que, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, este nível de ensino é mais uma responsabilidade dos Estados do que dos Municípios. Na Educação de Jovens e Adultos, o atendimento no Sistema Municipal de Ensino atinge um número insignificante, frente à demanda existente na cidade que está em torno de 1,4 milhão de pessoas que não concluíram o Ensino Fundamental. Atualmente são atendidos 32.026 (de 1ª. a 4ª. série do Ensino Fundamental) e 102.873 (da 5ª. a 8ª. série do Ensino Fundamental). Como conclusão, pode-se afirmar que a situação da educação na cidade de São Paulo apresenta uma grave e complexa rede de desafios que se concentram, sobretudo, na oferta de vagas nas creches, na ampliação da escolarização na Educação Infantil e na construção de formas de atendimento ao grande número de cidadãos excluídos desta cidade de São Paulo que não tiveram acesso ao Ensino Fundamental ou que não puderam concluí-lo, cuja demanda aproxima-se de 1,4 milhão de pessoas. 19 2. Resgatando a História: as políticas educacionais na cidade (1989-2000) 2.1. A inclusão educacional como um direito social Tomando como referência a estrutura socioeconômica brasileira das últimas décadas, podemos perceber que cresce a miséria, a dificuldade de acesso aos bens de consumo e o desemprego; cai o salário médio da esmagadora maioria da população; há maior demanda por equipamentos coletivos nas áreas de saneamento, saúde, abastecimento, educação. Enfim, a crise nas condições de vida da população é uma realidade. Não há políticas sociais efetivas no que se refere ao desemprego, reforma agrária, saúde, educação, relações econômico-produtivas, relações capital-trabalho. Não houve, até o momento, eficiência em reverter o quadro de distribuição de riqueza. A “regulação natural” do mercado é uma solução apenas para as elites que, em seus discursos, procuram projetar uma situação futura otimista. Em nosso cotidiano, sabemos que a “margem de lucro” é a constante que determina efetivamente os preços e, como não está sujeita às regras sociais, é inquestionável, torna-se um direito privativo de proprietários e cartéis. Continuamos, como sempre, a assistir ao agravamento da situação social do país. Estamos vivendo uma estabilidade econômica que não contribui para a conquista de melhorias nas condi20 ções sociais. As contradições permanecem aumentando as diferenças socioeconômicas, às custas da maioria da população. Os recursos públicos que, em princípio, compensariam os desvios no acúmulo de riquezas, cada vez mais, estão a serviço das elites privadas: banqueiros, latifundiários, usineiros e outros. As empresas estatais são leiloadas e os equipamentos públicos, que deveriam atender à maioria da população, estão sendo reduzidos ou completamente sucateados. Que relação poderíamos estabelecer entre o sistema educacional e essa estrutura social? Que políticas educacionais, então, levariam a população ao exercício pleno e crítico de uma cidadania para todos? A educação brasileira tem sido influenciada, nas últimas décadas, em tese, por várias políticas e tendências pedagógicas: tentativas de democratizar o acesso à escola pública, formação de mão-de-obra qualificada para atender aos modelos desenvolvimentistas (ensino profissionalizante), psicologização do ensino, tecnicismo, ensino integrado, cientificismo. Estamos, há décadas, reforçando em nossa prática o mesmo modelo educacional que tem se mostrado pouco eficiente em preparar cidadãos. Mas que cidadania é essa? Sem dúvida, na prática pedagógica tradicional, a participação, a criticidade, e a criatividade não são privilegiadas na construção da cidadania, embora estejam presentes, muitas vezes, em seu discurso. A competitividade, a passagem pelo funil social, o individualismo e a especialização técnica são as metas de suas tendências pedagógicas e políticas educacionais. O que se promete aos bem-sucedidos é a “ascensão” mesmo que em detrimento de muitos. Em princípio, todos teriam condições de se tornar cidadãos, porém, poucos são os “esforçados, os inteligentes e capazes” para conquistar seu espaço social e exercer seus 21 direitos constitucionais. O contexto social é relegado a um segundo plano nessa conquista do “sucesso”. O “cidadão” é aquele que, naturalmente, ganha evidência ao vencer os seus concorrentes, ou seja, não há diferença entre as empresas bem sucedidas e os indivíduos bem sucedidos. É evidente que essa concepção de cidadania não está explícita, embora presente, nas políticas educacionais. Somada aos baixos investimentos nos recursos humanos e materiais, é a ideologia velada e cotidiana da prática educacional, implícita e pragmática, que constrói essa cidadania. Com certeza, não é essa cidadania que estamos almejando, mas uma que busque a justiça, o respeito às diferenças individuais, que garanta o acesso aos bens sociais, a participação democrática, o direito à apreensão do conhecimento universal, buscando uma transformação coletiva da sociedade. A construção desta cidadania requer uma vontade política dos governantes e um investimento público coerente que implique no atendimento à demanda, garantindo acesso e permanência com qualidade das crianças, adolescentes, jovens e adultos na escola. A partir deste enfoque, pode-se analisar o que significaram para a cidade de São Paulo as políticas públicas de educação promovidas pelos governos municipais entre 1989 e 2000. No governo do Partido dos Trabalhadores (PT), sob a gestão de Luiza Erundina (1989-1992), o atendimento, no sistema municipal de educação, cresceu 15%, uma média de 4% ao ano29 . A expansão do ensino municipal ocorreu, sobretudo, em creches e Educação de Jovens e Adultos. Para atender à expansão de Educação Infantil, foram construídas 48 novas creches e estabelecidos 52 novos convênios com entidades filantrópicas, totalizando, em 1992, 317 creches da administração direta e 336 conveniadas. Em termos quantitativos, o atendimento passou de 57 mil 22 crianças para 75 mil, o que significa um crescimento de 31%. Na Educação de Jovens e Adultos, o sistema municipal atendia, em 1988, a 21.818 jovens e adultos. Em 1992, eram atendidos, nesta modalidade de ensino, 95.124 alunos, o que representava um crescimento de 341%. Acrescido à modalidade de ensino supletivo, Paulo Freire, como secretário municipal de educação deste governo, criou o MOVA /SP (Movimento de Alfabetização da cidade de São Paulo), em parceria com os movimentos populares. O MOVA se diferenciava das tradicionais campanhas de alfabetização ocorridas no país pelo seu caráter de continuidade, não se tratando de um evento esporádico e pontual. Foram instaladas mais de mil salas na cidade, dando atendimento aos jovens e adultos excluídos da educação escolarizada. Nos governos do Partido Progressista Brasileiro (PPB), sob as gestões de Paulo Maluf e Celso Pitta (1993-2000), o sistema municipal de ensino cresceu apenas 17,5% nos oito anos, considerando-se ainda que este crescimento não se deve apenas ao aumento da própria rede municipal de escolas. É importante comparar este dado no que se refere à inclusão de mais crianças e adolescentes na educação: com o governo do PT (Luiza Erundina), em quatro anos, um crescimento de 15%; com os governos do PPB (Paulo Maluf e Celso Pitta), em oito anos, um crescimento de 17,5%. Quanto às creches, Maluf e Pitta invertem totalmente a política de expansão e de inclusão desenvolvida na gestão Erundina, terceirizando 147 creches, sob o argumento de que o serviço terceirizado seria mais barato. Há uma diminuição, portanto, das creches administradas diretamente pela Prefeitura, num total de 270 creches da administração direta e 308 conveniadas. Além disso, em 1996, é aprovada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que, entre outras medidas, estabelece um prazo de 03 anos para que as creches passem a ser admi23 nistradas pelas Secretarias de Educação e não mais as Secretarias de Bem Estar Social. Em três anos, de 1996 a 1999, Celso Pitta não tomou nenhuma medida para fazer a transição, isto é, a passagem das creches da Secretaria do Bem Estar Social para a Secretaria da Educação. Só no final de 1999, para cumprir estritamente o prazo legal, baixa um decreto, oficializando a mudança da passagem, sem propor e nem tomar medida prática alguma. Quanto à Educação Infantil, em 1992, último ano da gestão Luiza Erundina, eram atendidas 200.704 crianças. Em dezembro de 1999, quase no final do mandato de Celso Pitta, após 07 anos de governo de Maluf/Pitta, eram atendidas 210.211 crianças,30 o que representa um crescimento de apenas 4% em sete anos. Quanto ao Ensino Fundamental, a implantação do FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental) criado pelo Governo Federal, repassando verbas apenas para o Ensino Fundamental proporcionalmente ao número de alunos matriculados, significou uma expansão do atendimento e de concentração de um volume maior de recursos nesta modalidade de ensino. Esta política repercutiu negativamente no atendimento à população de jovens e adultos, justamente a faixa de população em que se concentram os excluídos da escola, representando um real retrocesso em termos de políticas públicas voltadas para a inclusão social. Em 1992, final da gestão Luiza Erundina, o sistema municipal de educação atendia a 95.124 alunos em Educação de Jovens e Adultos. Em dezembro de 1999, quase final da gestão Maluf/Pitta, são atendidos 84.608 alunos. 31 Isto significa uma diminuição de mais de 10 mil matrículas no ensino supletivo. Considerando-se que na cidade São Paulo existe cerca de um milhão de jovens e adultos com até três anos de escolaridade e que o atendimento da Prefeitura se concentra na Suplência II (5ª. a 8ª. séries do Ensino Fundamental), podemos ter a visão de como 24 os governos Maluf/Pitta aprofundaram as desigualdades na cidade de São Paulo, negando aos já excluídos o direito ao acesso à educação. É importante lembrar que uma das primeiras medidas do governo Maluf foi fechar o MOVA (Movimento de Alfabetização de Adultos), iniciado na gestão Luiza Erundina. 2.2. As concepções de Qualidade da Educação Hoje, políticas públicas, sejam progressistas ou conservadores, defendem, em tese, a qualidade da educação. Uma questão emerge como fundamental para a compreensão da qualidade: afinal, de que qualidade se está falando e em benefício de quem e do quê se defende a qualidade da educação? A qualidade não é um atributo ou coisa que se possa adquirir no mercado dos bens educativos, como aponta a visão neoconservadora e neoliberal. Nesta perspectiva, a qualidade da educação transforma-se em mercadoria. E numa sociedade estratificada econômica e socialmente como a brasileira e a da cidade de São Paulo, apropria-se dela quem dispuser de recurso para comprá-la. A qualidade que se quer é aquela regulada pelos princípios da igualdade, democracia, solidariedade e inclusão que, por sua vez, impregnam as concepções de educação, criança , jovem e escola. Daí se deriva, de imediato, o direito inalienável à educação para todas as crianças e jovens, como atributo primordial de qualidade da educação. A seleção de critérios para identificar esta qualidade pode expressar um vasto campo de visões. Aqui serão considerados os seguintes critérios básicos para dar significação à qualidade: - quanto à politização da educação: a apreensão de uma nova 25 lógica de apropriação, por parte dos professores, das condições deterioradas da infância, da adolescência , dos jovens e adultos e do cotidiano das instituições públicas; - quanto ao conhecimento: a correspondência entre a cultura da escola e as experiências e conhecimentos dos alunos; - quanto à mediação: a formação dos educadores e suas práticas pedagógicas e as condições dos equipamentos e recursos disponíveis nas escolas; - quanto à aprendizagem: o significado do que é aprendido pelas crianças, adolescentes, jovens e adultos. A concepção de “qualidade da educação”, no marco de um referencial progressista, se traduz pela: - construção de uma educação democrática; - atenção, reconhecimento e respeito à diversidade cultural dos alunos; - transformação da escola num espaço público de cultura; - forma de trabalhar os conhecimentos que os alunos trazem para a escola e pela construção de novos conhecimentos a partir deles; - relação de diálogo entre educadores, crianças, adolescentes, jovens e adultos; - perspectiva de se formar cidadãos que participem da construção de uma sociedade mais justa e mais solidária. Para se conseguir esta “qualidade de educação” faz-se necessário repensar, recriar e reconstruir o currículo, isto é, o que se ensina, o que se aprende e o que se faz na escola, seja discutido e elaborado por quem nela trabalha. A tradição brasileira se pauta pelo controle técnico e pela construção e reconstrução de currículos nos gabinetes das secretarias e ministérios. É a “Pedagogia dos Diários Oficiais” que se manifesta sob várias formas: Decretos, Instruções, Resoluções, Indica26 ções, Guias Curriculares, Diretrizes Curriculares. Esta prescrição de currículos, a partir de gabinetes, encontra-se muito distante do que acontece de fato na sala de aula. Há muitas explicações para que se defina o currículo das escolas desta forma: as condições do trabalhador em educação, a formação tecnicista e aligeirada do professor e, sobretudo, as condições frágeis, confusas e sucateadas da organização escolar. Nesta visão, o currículo passa a ser a “transmissão do conhecimento” que o mercado editorial produz, propagandeia e vende, através dos livros didáticos. Em l989, com o início do Governo Luiza Erundina, a Secretaria Municipal de Educação buscou modificar o quadro caótico encontrado na rede, fruto da falta de interesse e do desleixo com o patrimônio público. Para tanto foram recuperados os equipamentos públicos32 e definidas quatro prioridades: - democratização do acesso; - gestão democrática; - nova qualidade da educação; - educação de jovens e adultos trabalhadores. A nova qualidade de educação, neste governo, concretizou-se no Movimento de Reorientação Curricular , centrado nos seguintes eixos: a) construção coletiva, caracterizada por um amplo processo participativo das decisões e ações sobre o currículo; b) respeito à autonomia da escola, permitindo o resgate de práticas valiosas e, ao mesmo tempo, criando e recriando experiências curriculares que respeitassem os referenciais de qualidade; c) valorização da relação teoria e prática, refletida no movimento de “ação-reflexão-ação” sobre experiências curriculares; 27 d) formação permanente dos educadores, buscando-se, nas relações com as práticas cotidianas, um agir pedagógico significativo. No contexto do Movimento de Reorientação Curricular e da Formação Permanente dos Educadores, desenvolve-se com todos os educadores, alunos, pais, comunidade, sindicatos, organizações e movimentos populares a discussão sobre a organização curricular das escolas em ciclos, contemplada no novo Regimento Comum das Escolas Municipais. Interessante lembrar que isto ocorria cinco anos antes da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Ao mesmo tempo, discute-se a proposta do Estatuto do Magistério que aponta para novas condições de trabalho, articulando-se, desta forma, a organização da escola e as condições necessárias para sua efetivação. A nova organização da escola articulava-se com os princípios e prioridades que orientavam as políticas de educação do governo municipal deste período: a) Gestão colegiada da escola; b) Gestão vinculada ao currículo – gestão vinculada à qualidade de ensino; c) Valorização dos conhecimentos que o aluno traz, a partir de suas experiências e de sua vida; d) Busca da dialogicidade nas relações entre professor e aluno, permitindo uma ponte entre os novos conhecimentos a serem construídos ou reconstruídos e aqueles que o aluno traz consigo; e) Nova concepção de avaliação: mudança do enfoque nos resultados para o acompanhamento contínuo do processo ensino-aprendizagem; f ) Nova visão de currículo: a compreensão do currículo como o 28 conjunto de todas as decisões e ações da escola, não se limitando apenas à grade curricular, disciplinas, provas, testes, trabalhos escolares; g) Nova perspectiva para os educadores: são criadas condições profissionais de trabalho que permitem aos educadores refletir criticamente sobre suas práticas e suportes teóricos para suas ações. Este programa de formação permanente dos educadores procurava desvelar as contradições das práticas pedagógicas existentes, em estreita relação com o movimento de reorientação curricular. Nos governos Maluf/Pitta (1993-2000), pouco se fez em termos de projeto político-pedagógico para as escolas municipais. Estes governos caracterizaram-se mais pelo desmonte da política educacional do governo anterior: investiram na desorganização das equipes pedagógicas dos Núcleos de Ação Educativa (NAEs), transformaram a ação supervisora numa atividade extremamente fiscalizadora, acabaram com os grupos de formação de educadores e cortaram os convênios com as universidades, quebrando a possibilidade de formação das equipes para coordenar a formação permanente e os projetos das escolas. A orientação do trabalho passou a ser a da “Qualidade Total”. Nestes governos, a formação dos educadores se restringiu a um conjunto de palestras, das quais muitas estavam voltadas para a relação entre educação e competitividade. À “Qualidade Total” seguiu-se o chamado “pluralismo de idéias”, cuja medida mais ousada foi a distribuição de publicações dos governos Mário Covas e Luiza Erundina. Era a ausência total de uma proposta político-pedagógica coerente e que apresentasse diretrizes para o trabalho educacional nas escolas municipais. Embora os governos Maluf/Pitta, conforme consta de docu29 mento do Instituto Florestan Fernandes 33 e de outros estudos34 tenham se esforçado em desmontar o construído35 , e oferecerem péssimas condições de trabalho aos educadores, a Rede Municipal resistiu e conseguiu manter várias conquistas da Administração anterior, entre elas: a jornada de trabalho continua prevendo o horário coletivo; os ciclos permanecem como forma de organização curricular; os Conselhos de Escola continuam deliberativos e não apenas consultivos. 2.3. Paradigmas de Gestão No governo do PT, durante a gestão Luiza Erundina (19891992), a qualidade do ensino está intimamente vinculada à Gestão da Escola e do próprio sistema educacional do município. O projeto educacional que se buscou implementar pressupunha a construção de relações democráticas no interior da escola. À medida em que se criam relações profundamente democráticas dentro da escola, a sua gestão assume um caráter pedagógico da própria construção de uma cultura democrática. Esta cultura, certamente, não se forma apenas com processos eleitorais ou abertura de canais institucionais de participação como os Conselhos de Escola, Conselhos Regionais de Representantes de Conselhos de Escola (CRECEs), mas, sobretudo, com projetos e programas de gestão que podem e devem ser debatidos e definidos pelos Conselhos de Escola e serem expressos nos Planos Escolares. Desta forma, a escola transforma-se num espaço democrático, onde podem coexistir diálogo e questionamentos críticos, e a comunidade escolar sendo o sujeito e não objeto da ação. A democratização da administração pública, do sistema edu30 cacional e da escola constitui-se num passo fundamental para a construção de uma Política Educacional de longo prazo e indispensável para se alcançar novos padrões de qualidade da educação pública e para se concretizar o exercício da cidadania. O processo de elaboração e definição do Regimento Comum das Escolas Municipais representou os momentos de maior vivência democrática do governo Luiza Erundina (1989-1992), na busca da construção coletiva de uma nova forma de se fazer currículo, com a participação de todos os interessados. A discussão do Regimento Comum das Escolas Municipais e a sua definição só veio a ocorrer no início do terceiro ano do governo (1991). Havia uma razão político-educacional para este tempo: o Regimento não expressava apenas um documento legal que iria normatizar e dirigir o fazer e o viver das escolas. Representava a sistematização do que já vinha sendo trabalhado e vivenciado pelas escolas, a partir de um projeto político-educacional-pedagógico explícito e em debate. O Regimento Comum das Escolas Municipais expressava a própria organização de poder dentro da escola – a gestão colegiada – através do Conselho de Escola, discutindo e deliberando sobre o seu plano anual de metas e ações – o Plano Escolar. Além disso, expressava a intrínseca relação dessa gestão colegiada com o currículo que se processava dentro da escola. Em síntese, o Regimento Comum das Escolas Municipais de São Paulo expressava a organização e a institucionalização da escola como um espaço essencialmente democrático, com base em duas dimensões que se interpenetram e se completam: a gestão da escola e o currículo que aí se constrói e se desenvolve. Estes foram os dois eixos fundamentais que nortearam e organizaram a construção do Regimento. O processo em que ocorreram as discussões e as definições do 31 Regimento pautou-se por um princípio básico: a participação ativa e intensa de toda a comunidade: pais, educandos, educadores, sindicatos, organizações e movimentos populares. Para que esta participação acontecesse concretamente, foram abertos canais efetivos de participação e garantida a representação paritária de todos os segmentos envolvidos, nos vários momentos e instâncias de decisão. O processo da construção coletiva do Regimento Comum das Escolas Municipais, empreitada nada fácil, transformou-se num significativo ato educativo, pois coerentemente apontava para as unidades escolares, pais, educadores e educandos o caminho escolhido e a ser percorrido pelo governo para se fazer educação na cidade. Com a democratização do país, a partir de 1985, a gestão democrática é muito utilizada como marketing eleitoreiro. No entanto, são raras as experiências, como a de São Paulo (19891992), que defendem e lutam para que a população, através de uma participação efetiva e decisória, possa intervir e decidir as bases, diretrizes e organização da educação escolarizada. Para a política educacional do governo do PT, lutar pela participação e decisão popular sobre o currículo foi essencial para se garantir a ampliação e descentralização do poder. Participar é meio e canal de construção de conhecimentos e de compartilhar decisões, o que significa divisão de poder. Participar e decidir juntos traduzem a prática democrática, uma dimensão substantiva para a construção de uma escola nãoexcludente. Participar e decidir foram instrumentos e meios para a construção da escola popular e democrática a serviço de uma sociedade mais justa e menos desigual. A partir deste significado da participação, algumas questões tinham de ser postas: ter-se clareza política sobre o próprio ato de participar: “pra quê” participar, com que objetivo e a favor de quem se desenvolve o processo de participação; a intencionalidade 32 da ação política deve estar desvendada para que o discurso da participação não mascare as verdadeiras intenções e interesses. No início, se fez necessário o estímulo pelo governo para a participação até que a força organizativa da população se tornasse presente. Havia a necessidade também de se garantir mecanismos de participação legitimada, como os Conselhos de Escola. A compreensão da participação não podia ser restringida ao ato de informar ou permitir consultas, mas significava o partilhar do poder, abrindo o ato de decidir aos que nela estavam envolvidos. Chamar a população apenas para ser informada, ser ouvida, ser consultada, sem nunca poder decidir, revela uma postura política de dominação, elitismo e, portanto, de exclusão. Para o projeto político-educacional deste período (19891992), a participação assentava-se num princípio básico: “decidir juntos”. Só assim se buscava superar a já desgastada, mas sempre presente, visão de que apenas os dominantes, as elites, “os estudados”, os intelectuais, os professores possuem a competência para definir o que é necessário e o que é de interesse para os filhos das classes subalternas. À medida em que a participação foi enfocada também como um processo de construção de conhecimentos, buscou-se superar relações de dominação, de mando e de autoritarismo, assentadas na relação entre saber e poder. Assim, entendia-se que, pela participação popular, democratizavase a educação, a escola, em todos os sentidos, visando a romper os mecanismos formais e informais da exclusão, pela ampliação e repartição do poder. Da mesma forma, entendia-se que gestão democrática da escola não podia ficar restrita à existência de alguns canais de participação popular já formalizados, como os Conselhos de Escola. Uma visão mais ampla e radical se impunha na direção de democratizar os procedimentos de tomadas de decisão, quer seja em nível do sistema educacional, da escola e da sala de aula. 33 Por último, tinha-se clareza de que a luta pela gestão democrática da escola, e, portanto, pela sua transformação, visando à superação de uma cultura excludente e fechada à participação popular, não era uma ação solitária e isolada. Esta luta somente faria eco e sentido se viesse no bojo de uma luta coletiva maior para a transformação desta sociedade, tornando-a mais justa e menos desigual. O significado da gestão democrática e da participação popular pode ser bem sintetizado nas palavras do Prof. Paulo Freire, secretário da educação: “Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas, para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história. A participação popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição de que só a elite é competente e sabe quais são as necessidades e interesses de toda a sociedade”. (Paulo Freire, 1989) Nos governos Maluf/Pitta (1993-2000), vive-se a negação de toda a formulação democrática e popular vivenciada na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Dessa forma, a autonomia dos Conselhos começa a ser ferida, o Regimento Comum das Escolas Municipais, que começara a ser implantado, é alterado a partir de uma pesquisa manipulada. Em síntese, as decisões político-pedagógicas passaram a ser extremamente centralizadas, sobrepondo-se a hierarquia autoritária a qualquer possibilidade de um trabalho democrático e coletivo nas escolas e nos Núcleos de Ação Educativa que, por sinal, passaram a ser novamente denominadas Delegacias Regionais do Ensino Municipal.36 34 3. Os Desafios de Hoje Hoje, a cidade de São Paulo, frente aos inúmeros problemas, na área de educação, precisa enfrentar e superar os seguintes desafios: 1. Definir políticas públicas de educação, a partir da concepção de educação como direito social da cidadania e não apenas como uma obrigação por força da lei. Neste sentido, a educação deve ser entendida “como um instrumento de formação ampla, de luta pelos direitos da cidadania e da emancipação social, preparando as pessoas e a sociedade para a responsabilidade de construir, coletivamente, um projeto de inclusão e da qualidade social para o país”.37 2. Articular as várias esferas que atuam na educação na cidade de São Paulo (União, Estado, Prefeitura e rede privada), buscando um projeto de desenvolvimento humano da cidade. 3. Garantir uma gestão democrática da educação, articulando-a ao conjunto das políticas públicas, numa visão de intersetorialidade, visando, sobretudo, à inclusão social. 4. Buscar a organização da escola como espaço real de construção e reconstrução do conhecimento. Isto implica: condições melhores de trabalho para os educadores, garantia de formação permanente nos espaços escolares e jornadas escolares condizentes com seus trabalhos. 5. Possibilitar e garantir o acesso à escolarização a mais de um milhão de jovens e adultos com menos de quatro anos de escolaridade na cidade de São Paulo. 6. Garantir o acesso a todas as crianças, adolescentes, jovens e 35 adultos que necessitem de educação escolar pela construção e ampliação dos equipamentos municipais. 7. Ampliar os equipamentos de creches e escolas de educação infantil para atender ao contingente de mais de duzentas mil crianças fora da escola. 8. Ampliar a jornada de permanência das crianças e adolescentes nas escolas, garantindo-se que as escolas funcionem, no máximo, com três turnos diários. 36 Notas 1 Fonte: IBGE – Resultado dos Dados Preliminares do Censo 2000 Prefeitura Municipal de São Paulo/Secretaria Municipal de Planejamento. Evolução do Uso do Solo nos Anos 90. São Paulo, 2000. 3 idem 4 idem, p.47 5 Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal de Planejamento. Perfil Socioeconômico do Município de São Paulo – Subsídios ao Plano Municipal de Assistência Social. São Paulo, 2000. 6 Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal de Planejamento. Globalização e Desenvolvimento Urbano, São Paulo, 2000. 7 idem 8 idem 9 idem 10 idem 11 Instituto Pólis. São Paulo: a cidade e seu governo : o olhar do cidadão. Revista Pólis 26, 1996 12 Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal do Planejamento. Perfil Socioeconômico de São Paulo – Subsídios ao Plano Municipal de Assistência Social. São Paulo, 2000. 13 Prefeitura Municipal de São Paulo/Secretaria Municipal de Planejamento. Perfil Socioeconômico do Município de São Paulo – Subsídios ao Plano Municipal de Assistência Social. São Paulo, 2000. 14 idem, pág. 69. 15 Núcleo de Estudos de Seguridade e Assistência Social . Mapa da Exclusão Social da Cidade de São Paulo . PUC/SP, 1995. 16 Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal de Planejamento. Globalização e Desenvolvimento Urbano. São Paulo, 2000. 17 Pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, em fevereiro de 2000. 18 Instituto Pólis. São Paulo: a cidade e seu governo: o olhar do cidadão. Revista Pólis, 26, 1996. 19 Carlos Araújo. “Pesquisa traça perfil de quem está na linha da pobreza em São Paulo”, in Estado de São Paulo, 24/08/01, p. 03. 20 Gilberto Dimenstein, “Como “espertinhos” podem fazer o papel de bobo”, in Folha de São Paulo, 26.08.01. 2 37 21 Carta de Belo Horizonte. 1ª. Conferência da Política Nacional de Formação da Central Única dos Trabalhadores, 19.11.99. 22 Fonte: IBGE, Contagem da População 1996 e Malha Municipal Digital do Brasil 1997. 23 idem. 24 Pesquisa sobre Censo, Matrícula e Freqüência escolar, realizada pela Fundação Instituto de Administração FIA-USP, por encomenda da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo, dezembro de 1996. 25 Fonte: IBGE, Malha Municipal Digital do Brasil 1997. 26 Secretaria Municipal de Planejamento. Perfil Socioeconômico do Município de São Paulo – Subsídios ao Plano Municipal de Assistência Social. São Paulo, 2000. 27 Fonte: IBGE, Malha Municipal Digital do Brasil 1997. 28 Idem. 29 Fonte: “Uma Política Educacional para nossa cidade. Uma Escola alegre, criativa e crítica”. Texto disponível em site do Instituto Florestan Fernandes. 30 Fonte: SME/ATP – Centro de Informática, Dados Gerenciais, no. 03, ano de 1999. 31 Fonte: Secretaria Municipal de Educação. 32 Nídia N. Pontuschka (org.) Ousadia no Diálogo. Ed. Loyola. São Paulo, 1993. Investimentos (1989 a 1992) em relação a l988: 164% nas despesas com operação e manutenção das escolas, só no primeiro ano de administração;- 635% na aquisição de materiais permanentes nas EMPGs e de 329% nas EMEIs;- 320% na verba de segundo escalão para as escolas; oito vezes em reformas parciais e totais dos prédios; vale citar que em 1987 a rede dispunha de 20.063 livros nas 260 salas de leitura e em 1992 passava de 700.000 livros em 331 salas de leitura. Outra referência é o Caderno Balanço Geral da Secr. Mun. de Educ. São Paulo, l992. 33 Instituto Florestan Fernandes. Uma política educacional para nossa cidade. Uma escola alegre, criativa e crítica. Texto disponível em site do Instituto. 34 Borges, Isabel Cristina Nache. Currículo democrático: resistências e possibilidades. São Paulo, Editora Articulação Universidade/Escola, 2000. 35 Podemos citar, como exemplo, a tentativa de retorno à seriação, através de proposta encaminhada ao Conselho Estadual de Educação. 36 Instituto Florestan Fernandes. Uma política educacional para nossa cidade. Uma escola alegre, criativa e crítica. Texto disponível no site do Instituto. 37 Proposta do Plano Nacional de Educação, construído pela sociedade civil nos Congressos Nacionais de Educação (CONEDs), 1997. 38 Referências bibliográficas BORGES, Isabel Cristina Nache. Currículo democrático: resistências e possibilidades. São Paulo, Editora Articulação Universidade/Escola, 2000. FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 2 ª. edição, São Paulo, Cortez, 1995. IBGE. Contagem da população 1996 e malha municipal digital do Brasil 1997. (Dados disponíveis no site do instituto). IBGE. Resultado dos dados preliminares do censo 2000. (Dados disponíveis no site do instituto). INSTITUTO FLORESTAN FERNANDES. Uma política educacional para nossa cidade. Uma escola alegre, criativa e crítica. (Texto disponível no site do instituto). INSTITUTO PÓLIS. São Paulo: a cidade e seu governo: o olhar do cidadão. Revista Pólis 26, 1996. NÚCLEO DE ESTUDOS DE SEGURIDADE E ASSISTÊNCIA SOCIAL. Mapa da exclusão social da cidade de São Paulo. PUC/SP, 1995. PONTUSCHKA, Nídia N. (org.). Ousadia no diálogo. São Paulo, Editora Loyola, 1993. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO/SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO. Evolução do uso do solo nos anos 90. São Paulo, 2000. ______________. Perfil socioeconômico do município de São Paulo – Subsídios ao planejamento municipal de assistência social. São Paulo, 2000. ______________. Globalização e desenvolvimento urbano. São Paulo, 2000. SAUL, Ana Maria. “A construção do currículo na teoria e prática de Paulo Freire”, in APPLE, Michel e NÓVOA, Antonio (orgs.). Paulo Freire: política e pedagogia. Porto, Porto Editora, 1998. 39