UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS – CEG
PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
FLAVIO SAMPAIO BARTOLY
Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar
NITERÓI
2007
FLAVIO SAMPAIO BARTOLY
Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Ordenamento territorial.
ORIENTADOR: PROF. DR. MARCIO PIÑON DE OLIVEIRA
Niterói
2007
2
B292
Bartoly, Flavio Sampaio
Shopping Center: entre o Lugar e o Não-Lugar / Flavio Sampaio Bartoly. –
Niterói : [s.n.], 2007.
205 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal
Fluminense, 2007.
1.Espaço. 2.Não-lugar. 3.Shopping Center. I.Título.
CDD 381.1
3
FLAVIO SAMPAIO BARTOLY
Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar
Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do Grau de Mestre.
Aprovada em julho de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Doutor Márcio Piñon de Oliveira – Orientador
UFF- GEOGRAFIA
Prof. Doutor Sérgio Martins
UFMG- GEOGRAFIA
Prof. Doutor Werther Holzer
UFF- ARQUITETURA E URBANISMO
Prof. Doutor Ruy Moreira
UFF- GEOGRAFIA
Niterói
2007
4
Agradecimentos
Neste momento de conclusão da dissertação, agradeço a todos que, mesmo sem
perceber ou do modo mais singelo, me ajudaram a chegar até aqui. Em especial, gostaria de
agradecer:
•
À Universidade Federal Fluminense, em especial ao Programa de PósGraduação em Geografia – PPGE, professores, colegas e funcionários,
pelo suporte fornecido durante todo o curso de Mestrado.
•
Ao Prof. Dr. Márcio Piñon de Oliveira, meu orientador, por ter me
mostrado (e demonstrado) o valor da orientação acadêmica, por sua
amizade e pela generosidade de suas contribuições, fundamentais em todos
os momentos deste trabalho.
•
Ao Prof. Dr. Ruy Moreira, especialmente pelo apoio concedido nos
momentos difíceis do início desta caminhada.
•
Ao colega Sávio Reader pela paciência e longa convivência.
•
Aos amigos Arthur, Kling, Glauco, Vinícus, Daniel, Rejane e Márcio
Camillo pela troca de idéias tão importante em todos os momentos.
•
À minha família, Mãe, Pai, Claudia Luiza, Emanuella, Carlos Eugênio,
Olga, Maeve, Eurides, Lia e Cláudio.
Fernando Carlos Ribeiro Sampaio e Alfredo Bartoly, eterna saudade.
Ao meu eterno amor, Danielle.
5
Dedico este trabalho à querida tia e Professora
Fanny Sampaio Cocco, que sempre esteve
presente nos momentos mais importantes da
minha vida, e que em muito breve estará
restabelecida para acompanhar os que virão.
6
Resumo
Na década de 1940 nos EUA e nos anos 60 no Brasil, provavelmente, a afirmativa
de que os shoppings eram pouco representativos para o cotidiano e que a relação que o
público mantinha com esses espaços era muito distante, não seria alvo de qualquer
contestação. Havia muito pouco para se fazer em um centro de compras, até porque as
administrações ainda não compreendiam o potencial do shopping em ser mais do que um
centro de compras e com isso atrair mais (as) pessoas. A ida ao shopping era esporádica,
rápida e motivada pela compra.
Esta primeira inserção do shopping na cidade, caracterizando-se como um local de
passagem para compras, homogêneo, objetivo e pouco comunicativo, credenciou este
equipamento urbano como um possível exemplo daquilo que alguns autores chamariam de
“não-lugar”; uma paisagem estandardizada, projetada sem levar em conta contextos ou
fatores particulares que pudessem promover uma identificação com as pessoas que ali se
encontram. Um espaço desprovido de peculiaridades, uma paisagem amorfa, interesseira,
“sem alma”, que reduz a comunicação a placas ou ao mínimo necessário exigido pela
objetividade. Assim se estabelece um local que por sua própria inautenticidade não pode ser
caracterizado como um lugar.
Ainda que conservem a forma “homogeneizada” e o objetivo primordial do
comércio, diversos fatores concorreram para que, há vários anos, a inserção dos shoppings
na cidade tenha se modificado expressivamente. O shopping tornou-se, também, um espaço
de sociabilidade, em que as pessoas cotidianamente se encontram, se divertem e passeiam.
Apesar de podermos qualificar a sociabilidade nos shoppings de “instrumental”, pelo fato
de em grande medida constituir-se em uma estratégia da administração para ampliar o
tempo de permanência e o consumo, para os freqüentadores a sociabilidade é dotada de um
fim em si mesma.
Nos lançamos assim, ao desafio de estabelecer uma discussão sobre a validade de
rotularmos, a priori, os shoppings de hoje como não-lugares, especialmente diante do
aprofundamento da relação do shopping com os freqüentadores e com a própria cidade.
Através de sua organização espacial, a busca por uma dimensão “lugarizada” do shopping,
pode lançar contribuições importantes para a compreensão de aspectos da realidade urbana
contemporânea.
Para isso, realizamos um levantamento bibliográfico que nos forneceu os
instrumentos para estabelecer discussões à cerca dos conceitos de lugar, não-lugar e
sociabilidade, bem como a possibilidade de uma melhor compreensão da inserção dos
shoppings no espaço urbano. Fizemos, também, um levantamento de dados e recorremos à
observação participativa no Barra Shopping e no Iguatemi Rio, além de termos realizado
entrevistas com as administrações e os freqüentadores desses dois shoppings.
7
Abstract
In the decade of 1940 in USA and in the years 60 in Brazil, probably, the
affirmative that the shopping centers were less representatives for the everyday life and that
the relation the public had with this spaces were very distant would not be contested. There
were very little to do in a shopping center, because the administrations didn’t get the
potential of the shoppings in being more than a center where people would just buy things
and with this, attract more people. Going to the mall was then unusual, quick and only for
shopping.
This first insertion of the shopping in the city, characterized as a place just for
shopping, homogeneous, objective and little communicative, made this urban equipment as
a possible example of what some authors would call “non-place”; a standardized landscape,
projected without take in consideration contexts or particular factors which could promote
an identification with the people who are there. A space without peculiarities, a landscape
without form, without soul, materialist (valuing spiritual and intellectual things too little)
which reduces the communication to the minimum necessarily required by objectivity. This
way one establishes a place, which by its own lack of authenticity, can’t be reputed as a
place.
In a number of years, many factors contributed for the considerable modification of
the shopping’s insertion inside the city, even if the homogenized form and the main goal of
the commerce are kept. The shopping became also a space of sociability, where people
meet everyday, have fun and go for a walk. Despite we can qualify the shopping’s
sociability as “instrumental” (because it is an strategy of the administration in order to
amplify the time people stay and buy), the sociability is an objective itself to the users.
So we took the challenge of establish a discussion about the valuation of calling the
shoppings of today as non–places, especially when facing the everyday more deep
relationship between the shopping and the users and with the city itself. Through its special
organization, the search for a “placed” dimension of the shopping can give important
contributions towards the comprehension of the aspects of the contemporary urban reality.
With this objective, we made a bibliographic search, which provided us with the
instruments to establish discussions about the conceptions of place, non-place and
sociability, well as the possibility of a better comprehension of the insertion of the shopping
in urban space. We collected also a number of data and used the participant observation in
BarraShopping and Iguatemi Rio, well as made interviews with the administrations and
users of these shoppings.
8
Sumário
Apresentação........................................................................................................................... 11
Objetivos e Metodologia.
1. Do shopping na cidade à cidade no shopping: A importância da sociabilidade na
renovação da representatividade dos shoppings no espaço urbano .................................. 29
1.1 A sociabilidade como via de entendimento do espaço do shopping.
1.2 A (quase) ausência da sociabilidade nos primeiros shoppings.
1.3 - A relevância da contribuição da geografia no processo de evolução da organização de
espaços de consumo.
1.4 A organização do espaço do shopping.
1.5 Sociabilidade e espaços de consumo.
1.6 O Brasil como exemplo da renovação da representatividade do shopping na cidade.
2. O rótulo do não-lugar: Uma breve revisão conceitual como um convite à ampliação
da reflexão sobre o shopping renovado pela sociabilidade................................................. 85
2.1 As dimensões do Lugar
2.2 Considerações a respeito do conceito de lugar na perspectiva da Geografia Humanista
2.2.1 O lugar como conceito-chave da geografia.
2.2.2 Fenomenologia e Existencialismo: A fundação do lugar humanista.
2.2.3 Até onde vai o lugar?
2.2.4 A produção do lugar humanista.
2.2.5 Identidade e lugar.
2.2.6 O Sentido do lugar.
2.3 Outras abordagens do lugar na geografia
2.3.1 A crítica do lugar.
2.3.2 Em busca de uma visão “integrada” do lugar.
9
2.4 O não-lugar
2.4.1. As raízes do conceito na abordagem de Edward Relph
2.4.2 Augé e o não-lugar da supermodernidade
2.4.3 Lugar, espaço e não-lugar
3. O lugar e o não-lugar também se encontram no shopping? – conceitos marginais e
desconfortáveis também se encontram no espaço (demonizado) do consumo? ............. 141
3.1 O espaço “demonizado” do consumo e as possibilidades de uma análise geográfica da
sociabilidade no shopping.
3.2 A produção do espaço (no/do) shopping.
3.2.1 A Praça de Alimentação.
3.2.2 Os desfiles.
3.2.3 Exposições Culturais.
3.2.4 Recreação/ Esportes.
3.2.5 Casas de Shows e Teatros.
3.2.6 Os Cinemas.
3.2.7 A territorialização dos espaços do shopping por grupos de jovens.
3.2.8 As Manifestações.
3.3 O lugar e o não-lugar também se encontram no shopping?
Considerações Finais . .......................................................................................................... 172
Bibliografia Citada .............................................................................................................. 177
Anexos .................................................................................................................................. 185
10
Apresentação
Na organização da cidade capitalista contemporânea, a funcionalidade e a rapidez
são itens por demais apreciados, tanto por aqueles que vendem, quanto por aqueles que
compram. O sistema de transportes e a segurança pública são fatores que desempenham um
papel fundamental diante da possibilidade de êxito naquilo que diz respeito ao consumo do
lugar. Assim, ainda que a princípio sejam funções do Estado, quando falamos de setores
como segurança e transportes, de algum modo também estamos falando da maior ou menor
capacidade de realização de lucros por empresas privadas. Grandes, médias e pequenas
empresas particulares dependem em maior ou menor grau desses serviços “estatais”.
Obviamente, as grandes empresas dominam o cenário urbano, arrumando e desarrumando
os espaços à sua maneira, estando normalmente em uma posição muito confortável diante
do poder público. Quando nos referimos a estas empresas, de maneira geral, estamos
tratando de grupos empresariais cujos negócios transcendem o espaço nacional, ou seja, vão
buscar lucros e, conseqüentemente, no mínimo, interferir na organização do espaço urbano
também no exterior.
A tentativa de padronizar determinados setores da vida em sociedade nas mais
diferentes áreas do planeta advém da necessidade de otimizar a circulação dos fluxos
(especialmente financeiros) de investimentos, os quais são facilitados quando temos uma
“rede conectada” e “formatada” dentro de determinados parâmetros gerais. Assim, a
cultura, os gostos, os modos de se relacionar com os outros e a representatividade de estar
em determinados espaços são moldados a partir de uma mesma lógica, a qual deve ser
“injetada” da forma mais eficiente possível em diversos países. Mais especificamente, a
11
própria arrumação do espaço passa a ser modificada dramaticamente a fim de atender às
necessidades e imposições “globais”. Verifica-se assim, que a organização do capitalismo
em uma rede global, tem a cidade (“subjugada”) como um de seus principais nós que
amplia e ordena a relação entre a produção e o consumo.
No século XIX, e sobretudo no século XX, toma forma a racionalidade
organizadora, operacional nos diversos degraus da realidade social (...)
uma razão analítica levada às últimas conseqüências(...) ciência da cidade,
conhecimento que tende para a planificação do crescimento e para o
domínio do desenvolvimento (LEFÉBVRE, 2006, pgs 22 e 111).
Um bom exemplo dessa atuação de planificação da cidade em prol de eficiência
para a rotação do capital, pode ser coletado no chamado setor terciário da economia, mais
pontualmente no varejo, no comércio que movimenta a cidade. Neste ramo de negócios, no
qual se encaixam diversas maneiras de se apresentar e vender mercadorias, pode-se afirmar
que sua maior expressão em termos de adequação à planificação anteriormente citada é o
shopping center. Este equipamento urbano tornou-se uma solução para vários “problemas”,
sendo aclamado pela grande maioria dos personagens envolvidos no varejo, inclusive e,
principalmente pelos consumidores. Esses “problemas” variam de acordo com o tempo e
com o lugar ao qual nos referimos1. Seja para atender aos moradores motorizados e
abastados dos novos subúrbios americanos, em sua origem em fins da década de 1940, ou
para satisfazer aos anseios da elite paulistana na segunda metade da década de 1960, ou até
para servir de refúgio à violência urbana do Rio ou ao frio congelante de Edmonton ou
Toronto, o shopping reúne diversos tipos de mercadorias que estavam dispersos pela
1
Não se pode esquecer que o Brasil, os EUA e o Canadá são ótimos exemplos da aceitação do “modelo
shopping center”, o que não é necessariamente válido para a Europa, por exemplo.
12
cidade, com o “conforto e a comodidade” do descolamento, ainda que parcial com a
distância do centro (“original”), com os efeitos do clima, ou com a própria realidade social.
Os shoppings são construídos por grandes grupos empresariais que muitas vezes
conseguem estabelecer parcerias com o Estado para viabilizar a execução do projeto. A
escolha do local de instalação é apenas um dos inúmeros itens que constam da pauta de
uma série de especialistas engajados em determinar estratégias para que o sucesso do
investimento seja quase garantido. No capítulo seguinte voltaremos a tratar dessas
estratégias com um pouco mais de detalhes. No momento, o que nos parece fundamental é
observar que atualmente há disponibilidade de assessorias especialmente preparadas para
atender aos empreendedores, o que evidentemente promove uma homogeneização dos
parâmetros que devem ser seguidos para que se tenha um futuro promissor no negócio.
Com mais de trinta anos de existência, pode-se dizer que a ABRASCE (Associação
Brasileira de Shopping Centers) coordena com competência essa padronização que vai
muito além das estratégias montadas para a implantação do shopping. A ABRASCE foi
criada nos moldes da ICSC (International Council of Shopping Centers), como parte da
importação do “modelo shopping center” dos EUA. A instituição foi fundamental na
organização do setor, que contava com aproximadamente oito unidades no ano de sua
criação, 1976, e na própria adequação do modelo americano no Brasil. Hoje, há mais de
300 shoppings no país, sendo que pouco mais da metade é filiado a ABRASCE.
Com isso, pode-se observar que quando nos referimos aos shoppings estamos nos
reportando a uma verdadeira indústria, muito bem organizada e especializada não só em
vender, mas em prover conforto aos consumidores. O “primeiro” “modelo shopping center”
preconizava o estacionamento, a iluminação, a segurança e a adequação do mix de lojas, ou
seja, a composição de grifes que variam, principalmente de acordo com o tipo (a classe) de
13
consumidor que se quer atingir. Assim, em certa medida, pode-se observar que nos
primeiros anos de implantação do shopping, seja na década de 40 nos EUA, ou na década
de 60 no Brasil, o tempo de permanência no shopping era bem reduzido em comparação ao
atual. A ausência de atrativos que transcendessem a compra ou um pequeno lanche,
acrescidos da própria característica da novidade, que impõe um certo tempo para que se
possa definir um espaço como parte do cotidiano. Visto por esse ângulo, e até este
momento da evolução do “modelo shopping center”, poderíamos afirmar que de modo
geral falamos de um espaço de passagem, um corredor padronizado composto por inúmeras
vitrines em suas extremidades, entre as quais o caminho livre nos indica não mais do que a
possibilidade de uma nova compra. O objetivo da ida ao shopping se restringia tão somente
a compra de um ou mais objetos. Esse “primeiro modelo shopping center” vigorou nos
EUA até por volta do final da década de 1970, no Brasil até a segunda metade da década de
1990.
Este modelo de shopping tornou-se gerador de uma impessoalidade, que se tornou
uma marca desses empreendimentos durante um longo período de tempo. A impressão que
se tem é que o comprador não se dava conta nem de qual shopping estava entrando, já que
em qualquer shopping, a mesma estrutura (rígida) apresentava pequeníssimas variações de
um empreendimento para outro. Da mesma forma, a própria comunicação entre as pessoas
foi diminuída ao máximo, já que através das placas indicativas acha-se a loja ou as lojas
que satisfazem suas necessidades e/ou desejos, o banheiro e a saída, nada mais. O shopping
cumpria o seu propósito inicial a risca, ampliou as vendas da maioria das lojas que lá se
instalaram, pela força do conjunto de opções em um mesmo local, sem oferecer
praticamente nada além. Havia muito pouco para se fazer em um centro de compras. A
14
relação que o público mantinha com esses espaços era muito distante, até porque não havia
qualquer motivação das administrações de ampliar essa relação.
A ida ao shopping era esporádica, rápida e motivada pela compra. No caso dos
subúrbios americanos, por exemplo, talvez as visitas fossem mais freqüentes desde o início,
pela própria falta de outras alternativas próximas, mas o tempo de permanência e a relação
com o público permaneciam em um nível bem diminuto. No caso brasileiro, ir ao shopping
tornou-se um grande programa para as elites, já que os primeiros shoppings se localizavam
em bairros nobres2, esbanjando o glamour de uma idéia “importada”, e que, portanto,
possui aqui um caráter de riqueza, especificamente projetado para pessoas de “alto nível”.
Principalmente nos países subdesenvolvidos3, o shopping acabaria se tornando um
componente importante da auto-segregação, uma nova opção para a efetivação do
“escapismo”4 das elites urbanas.
Esta primeira inserção do shopping na cidade, caracterizando-se como um local de
passagem para compras, extremamente homogêneo, objetivo e pouco comunicativo,
2
Podemos comprovar a idéia de que os primeiros shoppings foram instalados em áreas nobres de cidades
brasileiras com quatro “antigos” shoppings do país. O primeiro shopping, reconhecido como tal, surge no
Brasil em 1966. O Iguatemi São Paulo está localizado em uma das áreas mais nobres da maior metrópole
brasileira, na Av.Brigadeiro Faria Lima 2232, Jardim Paulistano. Ainda na cidade de São Paulo, o Shopping
Ibirapuera, localizado na Zona Sul da cidade atende a uma clientela de bom poder aquisitivo. Em 1971 o
Shopping Conjunto Nacional foi inaugurado em Brasília-DF, no Setor de Diversões Norte, em frente ao
Teatro Nacional. O primeiro shopping de Belo Horizonte, o BH Shopping, inaugurado em 1979, localiza-se
no luxuoso bairro Belvedere.
3
Durante suas pesquisas sobre os centros comerciais de Buenos Aires, CAPRON (1998) entrevistando uma
senhora do luxuoso bairro Palermo ilustra a idéia do escapismo das elites urbanas, especialmente em países
subdesenvolvidos: “Les propos d’une dame du quartier chic de Palermo sont significatifs: ‘Si tu vas sur une
place publique et tu veux rester sur la pelouse, on te vole ton sac, ou il y a a quelqu’um qui te dérange (...)
Dans um centre commercial, c’est moins dangereux et tu regardes plus tranquillement” (CAPRON 1998,
pg.62).
4
“O escapismo das elites não se restringe aos condomínios exclusivos: os shopping centers, que, sobretudo a
partir da década de 80 se incorporam à paisagem das metrópoles e de outras grandes cidades brasileiras,
compõem, juntamente com os condomínios exclusivos, o quadro típico desse escapismo. É bem verdade que
os shoppings não são tão fechados quanto os condomínios...” (SOUZA, 1999, pg. 201).
15
credenciou este equipamento urbano como um possível exemplo daquilo que alguns autores
chamariam de “não-lugar”; uma paisagem estandardizada, planejada para obter resultados
objetivos, projetada sem levar em conta contextos ou fatores particulares que pudessem
promover uma identificação com as pessoas que ali se encontram, vivem ou trabalham. Um
espaço desprovido de peculiaridades, uma paisagem amorfa, interesseira, “sem alma”, que
reduz a comunicação a placas ou ao mínimo necessário exigido pela objetividade. Assim
caracteriza-se um local que por sua própria inautenticidade não pode ser caracterizado
como um lugar. Há outros exemplos, além do shopping, de equipamentos urbanos
utilizados por autores como Augé e Relph, para ilustrarem o conceito de não-lugar.
Dos inúmeros rótulos atribuídos ao shopping, entre os quais, “templo do
consumo” e “catedral das mercadorias” figuram como os mais conhecidos, o do não-lugar
foi que mais nos chamou a atenção. Os dois outros, já ultrapassaram o nível da repetição e
da falta de criatividade, ainda que de certo modo pareçam trazer uma idéia explicativa de
um componente fundamental (mas muito simples e óbvio) deste tipo de espaço. O caso da
aplicação da idéia de não-lugar, entretanto, chama a atenção primeiramente pela ausência
de uma bibliografia que discuta o shopping como tal. O rótulo é atribuído como se
estivéssemos diante da mesma obviedade que se configura quando aplicamos o termo
“templo do consumo”. Em geral, não se procede nem mesmo a uma discussão sobre o
conceito, além de não haver um esforço de reflexão sobre a aplicabilidade deste rótulo nas
diferentes épocas e contextos da existência dos shoppings. Talvez, antes mesmo de
qualquer outra razão, o fato de o lugar ser um conceito muito importante (pelo menos em
tese) para nós geógrafos, não pode deixar de ser mencionado como uma grande motivação
para este recorte.
16
A discussão que envolve o não-lugar se insere no contexto que brevemente
ressaltamos páginas atrás, da tentativa de uma certa organização homogeneizante das
diferentes realidades sociais, especialmente por parte das empresas chamadas de
transnacionais, como parte do avanço do sistema capitalista pelo planeta. A revolução da
mobilidade e das comunicações trouxe consigo algumas inquietações que se relacionam à
formação de uma aldeia global, a qual promoveria, por exemplo, o fim das distâncias, o fim
do Estado, o fim das especificidades locais. No bojo dessas discussões, a possibilidade de
eliminação das especificidades locais, culminando com o fim dos lugares, ou com a
proliferação de lugares desprovidos de identidade, está o conceito de não lugar. Talvez,
possamos afirmar que no centro desta discussão encontra-se a própria geografia, ciência na
qual o lugar possui o status de conceito-chave, e para a qual esses “novos tempos” trazem o
desafio do encontro com a fluidez e a efemeridade levadas ao extremo pelo processo de
globalização. Experimentamos e observamos novos arranjos espaciais, os quais são ao
mesmo tempo causa e conseqüência das novas relações sociais que se estabelecem.
A progressiva velocidade das informações, que por sua vez nos chegam em
número cada vez maior é denominada por Marc Augé de superabundância factual, através
da qual a multiplicação de acontecimentos cada vez menos prevista pelos cientistas sociais
é comum. Neste sentido a chamada “sociedade da informação” pode assim ser “...definida e
rotulada, por seus métodos de acessar, processar e distribuir informação” (KUMAR, pg 15).
Marc Augé exprime claramente sua preocupação com a questão da identidade diante desta
realidade incerta e efêmera que hoje impera no que ele próprio chama de
supermodernidade. Este período, que segundo o autor é definido pela “aceleração da
história” e pelo “encolhimento do planeta”, seria produtor de espaços e de situações
padronizadas, homogêneas, nas quais “...nem a identidade, nem a relação, nem a história
17
fazem realmente sentido...” (AUGÉ, 2003, pg.81). Com isso, Augé parece apontar para o
progressivo fim das identidades, ou no mínimo, para uma importante escassez em sua
produção. Também empenhado em formular novas possibilidades de se entender como
ficam as identidades em nossa época “líquido-moderna”, Bauman distancia-se da
perspectiva de Augé na medida em que vê surgir novas maneiras de se produzir
identidades. “As identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem
ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando os seus próprios recursos e ferramentas”
(BAUMAN, 2004, pg. 35).
Bauman não acredita no fim das identidades, mas percebe que não conseguiremos
abrir caminho para um melhor entendimento da sociedade atual, se não aceitarmos que a
forma de constituição, o caráter e a “durabilidade” das identidades sofreram uma grande
mudança nos últimos tempos. Neste sentido o autor se afasta dos discursos que ainda
formulam a cerca da existência de identidades estáticas, seguras e duradouras diante do
momento atual, caracterizado pelas mudanças em “tempo real”.
Todavia, parece claro que o turbilhão de informações trazido pelo atual estágio da
globalização não atinge a todas as partes do planeta com a mesma intensidade, há um
verdadeiro “hiato de informação” (KUMAR, 1997 pg. 44), provocado em grande medida,
por um acesso por demais desigual a recursos e ferramentas, que nos leva, portanto, a
concluir que a própria possibilidade de “capturar” identidades, como se refere Bauman,
torna-se uma tarefa difícil para muitos. Esta conhecida falta de acesso por grandes massas
de indivíduos espalhados pelo mundo às principais ferramentas daquilo que chama de
“meio-técnico científico e informacional”, é uma das principais razões para que Milton
Santos considere a chamada “aldeia global” uma das principais “fábulas” da globalização.
18
Não se pode esquecer de que se constrói uma verdadeira geometria do poder5, em relação
não só às possibilidades de inclusão, como o de controle destes fluxos. Neste sentido, é
urgente lembrarmos que “a compressão de tempo-espaço precisa de diferenciação social”
(MASSEY, 2002, pg.179).
Diante dessas mudanças renova-se a própria noção de tempo e espaço. A partir da
formação de complexas redes de atuação global, parece fundamental que nos coloquemos
diante da tarefa de repensar o modo como tratamos, principalmente, as relações entre o
local e o global.
A vida política, econômica e cultural é agora muito influenciada por fatos
que ocorrem no nível global. Este fenômeno teve como um de seus
efeitos, inesperadamente, a renovada importância do local e uma
tendência para estimular culturas subnacionais e regionais (KUMAR,
1997, pg.132).
Da mesma forma, repensar a cidade à luz das novas reflexões sobre a relação entre
o local e o global se apresenta como um desafio essencial. É como uma tentativa de uma
pequena contribuição para o cumprimento desta tarefa que nos propomos, a tarefa de
repensar a representatividade que tem o shopping na cidade contemporânea, tendo como
suporte e mecanismo de leitura desses espaços, a discussão do não lugar.
Identificamos, portanto, um esgotamento do que chamamos anteriormente de
“primeiro modelo de shopping center”. A renovação que ocorreria evidentemente partiu do
berço dos shoppings, a América Anglo-Saxônica, se irradiando posteriormente para outras
áreas do planeta.
O que se seguiu, primeiramente nos EUA e no Canadá, e que se alastrou para
diversos países em diferentes épocas, foi uma “completa” expansão dos shoppings. A
palavra “completa” tenta sublinhar que a expansão da qual falamos foi muito além de uma
5
(MASSEY, 2002).
19
simples ampliação do número de shoppings, tratando principalmente de uma mudança
sensível no tipo de inserção que o shopping passaria a ter na cidade. Não se pode deixar de
lembrar que diferentes razões compõem o leque de explicações para esta mudança,
variando nos diferentes contextos urbanos em que os shoppings se inserem. Todavia, os
bons resultados apresentados nos EUA, faziam do shopping center uma fórmula promissora
para se conseguir dar uma resposta satisfatória à expansão da produção industrial e ao
aumento do ritmo das inovações, o que seria fundamental para todas as cidades em que os
shoppings ampliaram o seu leque de atuação.
Reforçamos que a mudança a qual nos referimos não faz parte do conjunto de
modificações que são recorrentes na vida de um shopping. O espaço do shopping apresenta
diversas mudanças, seja através da saída e/ou entrada de lojas, ou mesmo da inclusão de um
novo serviço. “Normalmente há vagas, já que a rotatividade das lojas em um shopping no
Brasil é de 5% a 10% de seu número de unidades ao ano” 6
Estamos tratando aqui de uma transformação da própria essência desses
empreendimentos, que deixaram de apresentar-se apenas como centro de compras, mas
como um espaço de sociabilidade, lazer, serviços e consumo. Evidentemente, diante desta
transformação podem-se apontar algumas de suas causas, destacar as modificações no
espaço do shopping, as alterações no entorno do shopping, as mudanças no perfil dos
freqüentadores e o próprio modo como as pessoas se relacionam com esses espaços.
Tocaremos em algum momento do trabalho nestes fatores, que são importantes para a
compreensão do momento que estamos propondo como recorte para o trabalho. Além disso,
estas discussões nos fornecem os instrumentos necessários para desenvolvermos a pergunta
principal do trabalho, a qual gira entorno desta mudança a qual nos referimos
6
Pequenas Empresas Grandes Negócios – Janeiro de 2007 – Pg.99.
20
anteriormente. Este questionamento trata da validade de mantermos o rótulo de não-lugar
atribuído ao shopping por pensadores de algumas áreas das ciências sociais, como
antropólogos e geógrafos. Na verdade, não partimos do pressuposto de que antes da
renovação que apontamos como foco da análise, a aplicação deste rótulo seria válida, mas
procedemos a este recorte como um momento propício a uma possível reavaliação de como
pensamos o shopping.
O “novo” modelo de shopping center não se contentava com um espaço de
passagem, de entrada e saída de compradores, a proposta visava criar um ambiente de
“parada continuada”, ou seja, fazer com que o comprador passasse mais tempo no
shopping, não só ampliando o número de lojas, como também inaugurando outros tipos de
atrativos7. Havia uma necessidade premente de multiplicar o tempo de permanência no
shopping, transformar o comprador em freqüentador, operação que por sua vez é fruto de
uma equação que foi a chave para o sucesso incontestável dos shoppings: comprador +
atrativos (lazer, eventos, serviços, segurança, conforto) = Freqüentador. O que não se pode
perder de vista, é que desavisadamente poderia se pensar que o shopping estaria se
desviando de seu objetivo principal, a venda. Na verdade o que ocorreu foi exatamente o
oposto, houve uma enorme ampliação das vendas através de uma verdadeira publicização
do shopping na cidade. Ir ao shopping tornaria-se algo normal, parte do dia-a-dia, um
programa em que a compra é um dos afazeres do freqüentador, mas não é a única que
consome seu dinheiro e seu tempo nos centros de consumo. Através do marketing, os
7
O shopping agregou inclusive outras áreas do setor terciário, que passaram a perceber que também poderiam
ampliar seus negócios, participando da vida nos shoppings. Bancos, agências de viagens e instituições de
ensino são só alguns dos vários exemplos que podem ser citados. Apresenta-se, portanto, a possibilidade de
refletirmos sobre o shopping enquanto um gerador de centralidades. Transformado pelos diversos usos, os
shoppings passaram a ser, na maioria das vezes, uma referência para o bairro e até para a cidade, modificando
o trânsito, o volume de circulação de pessoas no entorno, o valor dos imóveis próximos, o comércio
“tradicional” de rua e a própria imagem da área urbana em que se instala.
21
shoppings passaram a fazer do comércio uma verdadeira festa e a embutir ainda mais nas
mercadorias outros significados, que elevam-nas a um patamar muito superior do que o de
simples objetos. “...o aglomerado dos objetos nas lojas, vitrines, mostras, torna-se razão e
pretexto para a reunião das pessoas; elas vêem, olham, falam, falam-se. E é o lugar de
encontro, a partir do aglomerado das coisas” (LEFÉBVRE, 2006, pg.131).
Chamamos a atenção para a citação acima, em que Lefébvre identifica
precisamente esta mudança de modelo de shopping a qual estamos nos referindo.
Atualmente, a compra não é mais somente uma razão, ela se tornou também um pretexto,
para um fim que às vezes torna-se mais decisivo para uma expressiva quantidade de
freqüentadores de shoppings, ou seja, o encontro. Este encontro pode ser com pessoas
conhecidas, ou mesmo com o movimento de ver e ser visto por desconhecidos, ou com
opções de lazer. Se quisermos ir além, pode-se dizer até que em alguns casos a compra não
faz parte do roteiro no shopping, caso muito comum entre os adolescentes. Este grupo, que
em grande medida tem o shopping, já há algum tempo, como uma espécie de “centro de
sociabilidade e diversão” , é um dos principais protagonistas daquilo que veio a se chamar
“consumo simbólico”, ou seja, pequeníssimos e esporádicos gastos nas visitas ao
shopping.8 Neste mesmo sentido, ainda que “o aglomerado das coisas” mantenha sua
importância e seu aspecto fundador na própria concepção do shopping center, deixou de se
configurar em apenas um fim, para se tornar também um meio de atração para outras
atividades que se realizam no shopping. As administrações dos shoppings perceberam que a
incorporação de outras atividades e a criação (e/ou expansão) de determinadas áreas
8
Não se deve perder de vista que estamos nos referindo principalmente às visitas em que os adolescentes
encontram-se desacompanhados, já que os shoppings registram grandes vendas para esta faixa etária, às quais
obviamente são executadas mais comumente por seus responsáveis.
22
próprias para essas outras funções seria fundamental para a manutenção e/ou ampliação dos
lucros do negócio.
Os shoppings passaram a concentrar não somente lojas de diversos ramos, mas
uma grande diversidade de possibilidades de atividades, seja através dos serviços que
oferece, do lazer que proporciona, ou simplesmente pelos espaços de sociabilidade que
inaugura. Neste sentido, agregam-se aos shoppings partes importantes do cotidiano de
milhões de assíduos freqüentadores, o que evidentemente traz implicações práticas e
simbólicas para a vida no espaço urbano.
Na cidade atual, os shoppings desempenham uma centralidade muito expressiva,
modificando não só a concepção de fazer compras e de se socializar, mas alterando
drasticamente o cotidiano da área em que se localiza. O mercado de imóveis, o trânsito, a
circulação de pessoas, as opções de lazer, e a própria imagem do bairro em que se instala
um shopping center, são algumas variáveis que são modificadas ou se modificam para se
adequar ao novo e ilustre vizinho.
Podemos mais uma vez tomar a cidade do Rio de Janeiro como exemplo. No
segundo semestre de 2006 foi inaugurado um shopping center em um dos bairros de maior
poder aquisitivo da cidade, o Leblon. A inauguração do Shopping Leblon tornou-se um
grande evento para a cidade, com uma enorme repercussão na mídia carioca, atraindo
personalidades, e modificando a rotina do bairro. Passada a abertura do shopping, o que
podemos presenciar é um período de acomodação do empreendimento no bairro, e deste
com aquele. O caos que se instalou na Avenida Afrânio de Mello Franco no dia da
inauguração (5 de Dezembro de 2006) e nas semanas que se seguiram já não era tão
freqüente nas primeiras semanas de 2007, mesmo nos fins de semana. No entanto, não se
23
pode negar que o Shopping Leblon promoveu um aumento significativo do movimento de
pessoas no bairro, o que provavelmente não agradou a todos.
Há casos em que as mudanças no entorno começam a se efetivar bem antes de o
empreendimento ser finalizado. É o caso do Barra Shopping Sul, o próximo shopping a ser
inaugurado em Porto Alegre, com abertura marcada para 2008.
No ritmo do trabalho dos operários, o futuro Barra Shopping Sul começa a
gerar mudanças no perfil, na infra-estrutura e na economia da zona sul da
Capital. Com inauguração prevista para novembro de 2008, a obra da
Multiplan Empreendimentos Imobiliários deve resultar em melhorias
como a duplicação de avenidas e o reassentamento de moradores de vilas
irregulares(...)As mudanças devem alcançar o bairro Cristal, além da Vila
Assunção, Tristeza e Cavalhada. No mercado imobiliário já se prevê a
valorização de imóveis em um raio de até 10 quilômetros de onde será
erguido o Barra Shopping Sul, nova denominação do Cristal Shopping(...)
De acordo com estimativa do vice-presidente de Comercialização do
Sindicato das Imobiliárias e dos Condomínios (Secovi/Agademi), Gilberto
Cabeda, casas e apartamentos devem ser valorizados em no mínimo 20%”
(Jornal Zero Hora, 15 de Janeiro de 2007, Dionara Melo).
Objetivos e Metodologia
Neste sentido, o objetivo principal deste trabalho é contribuir para o entendimento
do fenômeno shopping center na cidade contemporânea. Especificamente, objetivamos
chegar este propósito fundamental através dos conceitos de lugar e não-lugar. Os shoppings
foram e ainda são tratados por diversos autores como exemplo eloqüente daquilo que
definem como não-lugar, fato este que já foi pontuado brevemente em linhas acima;
Todavia, nos parece que se observarmos a evolução desses equipamentos urbanos com
maior atenção, talvez possamos concluir que, no mínimo, pode-se perceber a produção de
uma certa “lugaridade”. Por isso, insisto em sublinhar esta renovação da imagem do
24
shopping perante a cidade, que já há algum tempo deixou de ser um ilustre novato, para se
tornar um velho (e sempre novo) conhecido.
Desta forma, esta dissertação está organizada da seguinte maneira: seguindo a esta
apresentação, o próximo capítulo será composto de uma série de reflexões concernentes à
ampliação das funções e da representatividade dos shoppings na vida urbana. Como via de
compreensão desta “evolução” dos shoppings a qual já havíamos nos referido
anteriormente, daremos especial atenção à discussão que envolve o conceito de
sociabilidade. Tentaremos demonstrar que a ampliação em larga medida da sociabilidade
nos shoppings foi um dos fatores primordiais para a renovação da dinâmica desses espaços.
Com esta renovação acontecendo, nos questionamos sobre a validade da constante
“rotulação” do shopping como sendo um não-lugar. Ou seja, nossa pergunta gira em torno
da idéia de que, pelo menos, a partir da maior complexidade social que esses
empreendimentos passaram a ter, nos parece que a análise deve seguir o mesmo caminho.
Utilizo a idéia de “rótulo”, pois em diversos trabalhos, como em PADILHA
(2006), o shopping é classificado como não-lugar, sem que haja qualquer reflexão sobre as
implicações desta afirmação e, muito menos uma preocupação com a precisão sobre o que
se define em termos teóricos como não-lugar. A partir disso, propomos no capítulo 3 uma
discussão teórica sobre os limites e as possibilidades de tomarmos o shopping como um
exemplo do que seria o não-lugar. No capítulo que precede as considerações finais,
pretendemos apresentar uma leitura do shopping como espaço de sociabilidade a partir da
discussão dos conceitos de lugar e não-lugar.
Na tentativa de alcançar os objetivos propostos, foi realizado um levantamento
bibliográfico sobre os shopping centers e sobre os conceitos de lugar e de não-lugar. Além
disso, foram coletados diversos dados e alguns mapas que nos ajudaram a compreender
25
melhor a evolução da indústria de shopping centers no Brasil e no mundo. Os números e os
mapas nos esclareceram diversas estratégias utilizadas na montagem geral de um shopping.
Ressaltamos que as considerações feitas em relação ao shopping center ao longo deste
trabalho não se prendem a determinada cidade ou mesmo se restringem ao Brasil. Tratamos
aqui do shopping como um equipamento urbano disseminado em várias áreas do planeta,
não nos furtando de destacar exemplos e situações verificadas em outros países, fazendo
evidentemente as devidas ressalvas e considerações. Todavia, é inegável a propensão de
privilegiarmos na análise do shopping, o contexto brasileiro e até carioca, diante de nossa
proximidade com esta realidade.
Assim, como campo mais próximo de estudo, escolhemos dois shoppings da
cidade do Rio de Janeiro, que pudessem ilustrar nossa tentativa de responder, através de
dados e entrevistas, alguns questionamentos sobre os shoppings. Já que tomamos a
sociabilidade nos shoppings como o “fio condutor” de nosso trabalho, uma das grandes
preocupações foi eleger dois shoppings que fossem de épocas diferentes, para que
pudéssemos observar a inserção da sociabilidade nesses empreendimentos em diferentes
momentos. O fato do Barra Shopping ter sido aberto ao público bem no início da década de
80, nos deu a oportunidade de observar como a inserção da sociabilidade no
empreendimento se deu de modo lento nos primeiros 15 anos. Por outro lado, o Iguatemi
construído exatamente 15 anos depois do Barra Shopping, já nasceu com a idéia de que a
sociabilidade seria um componente fundamental para o sucesso do shopping.
Com isso, escolhemos o Barra Shopping inaugurado em 1981, localizado na Barra
da Tijuca, um bairro considerado de alto poder aquisitivo, e o Shopping Iguatemi,
inaugurado em 1996, localizado em Vila Isabel, um bairro bem mais modesto do que a
26
Barra. Realizamos observações participativas9, entrevistas10 com freqüentadores e
entrevistas com as administrações dos dois shoppings. Esses procedimentos foram de
grande valia como ilustração das idéias a que nos propusemos discutir, bem como geraram
novos questionamentos e lançaram luz sobre como os shoppings são vividos e analisados
sob diversos pontos de vista. No entanto, não utilizamos qualquer tipo de amostra, nem
formulamos dados estatísticos com as entrevistas que colhemos, sendo o produto do esforço
de utilizar este instrumento, uma forma de nos aproximarmos um pouco mais do dia-a-dia
dos shoppings, e não de colher dados estatísticos, os quais foram obtidos através de outras
fontes. Vale destacar também, que as administrações dos shoppings pesquisados procuram
dificultar ao máximo a pesquisa, seja através da abordagem dos seguranças que querem
saber se somos funcionários de um shopping concorrente, seja através da resistência em
responder aos contatos solicitados por nós. Assim, mesmo diante desses obstáculos, os
quais eram esperados, conseguimos dados nas administrações e respostas de freqüentadores
que ilustraram e nos levaram, nós e os freqüentadores, a refletir sobre questões que não
havíamos pensado anteriormente.
Desse modo, o estudo de um empreendimento urbano que está progressivamente
ampliando, de diversas formas, seu papel social, pode ser de grande interesse para a
geografia. Além disso, acreditamos que a relevância do tema para a geografia também
esteja presente na medida em que será exatamente a partir da lógica do espaço do shopping,
que partiremos para a compreensão desse empreendimento. “...esta ordem espacial das
9
Segundo (Costa, 1986), a observação participante proporciona os melhores resultados na obtenção de
informações sobre comportamentos, discursos e acontecimentos observáveis, mas que passam desapercebidos
à consciência explícita dos atores sociais. Essas observações foram sistemáticas, realizadas entre Novembro
de 2006 e Abril de 2007.
10
Os questionamentos direcionados aos freqüentadores e às administrações estão em anexo. Tratam-se de
questionários “abertos”, sem itens objetivos.
27
coisas quer dizer que sua distribuição tem uma lógica, uma coerência. É esta lógica do
arranjo espacial a questão geográfica por excelência” (GOMES, 1997, p.35).
Neste sentido, não estará envolvida neste trabalho somente a organização espacial
do entorno do shopping, mas principalmente o espaço interno deste centro comercial. É aí
que priorizaremos a sociabilidade como dimensão de análise e procederemos a uma leitura
do espaço do shopping a partir da discussão lugar/não lugar. Finalmente, nos parece de
fundamental importância o surgimento de contribuições que contemplem as bases
conceituais da geografia, especialmente quando nos referimos ao conceito de lugar, que
apesar de ser considerado um dos conceitos-chave para a geografia, é provavelmente,
dentre esses, o menos discutido.
28
Capítulo 1
Do shopping na cidade à cidade no shopping: A importância da sociabilidade na
renovação da representatividade dos shoppings no espaço urbano.
A ampliação do sucesso da indústria de shopping centers possui uma estreita
relação com o papel que a sociabilidade passou a exercer nesses espaços. Neste sentido, a
própria existência dos shoppings pode ser dividida, a partir da expressiva participação da
sociabilidade, em dois “modelos” distintos. O primeiro relaciona-se a uma época em que os
administradores estavam muito concentrados em métodos extremamente objetivos de levar
o cliente à compra. Os shoppings, em geral, se resumiam às lojas, ao estacionamento, aos
banheiros e a algumas lanchonetes. O marketing desses empreendimentos se esgotava em
sublinhar as vantagens de se estar em um shopping, a partir de fatores como o grande
número e a variedade das lojas concentradas em uma mesma área climatizada (protegida
das intempéries), elegante, segura e com amplo estacionamento. O próprio arranjo do
29
espaço, fazia do shopping, tão somente uma área de passagem, em que comprar era a única
atividade que fazia sentido naquele ambiente pouco flexível a outras atividades.
Mesmo com as mudanças de lojas, as ampliações, os shoppings começaram a
observar um certo esgotamento deste “primeiro modelo”. As vendas já não se mostravam
tão vantajosas e os atrativos dos shoppings não se ampliavam. Um ponto que ficou claro
para os administradores foi, a necessidade urgente de ampliar de forma drástica o tempo de
permanência no shopping. Como isso poderia ser feito? No Brasil, por exemplo, este
“esgotamento” se verificou no início dos anos 90, uma época em que os casos de violência
urbana saltavam a novos patamares, e o “medo da rua“ se insinuava como uma possível
regra do espaço “público” das grandes cidades brasileiras. Este fator também foi tomado
pelos administradores dos shoppings como uma oportunidade de renovação do próprio
papel que esses empreendimentos desempenhavam na cidade até então. Mais uma vez, a
reflexão voltava para a mesma pergunta: Como atrair este público ansioso por comprar,
mas medroso de sair à rua?
De modo geral, pode-se afirmar que a resposta estaria na flexibilização, e mesmo,
na ampliação dos conteúdos do shopping. Deixar de ser um espaço de compras, para ser um
empreendimento voltado para compras, lazer e entretenimento foi o ponto-chave para o
“segundo sucesso” dos shoppings. Essa verdadeira renovação também implicaria em
mudanças na forma e na estrutura do empreendimento, as quais promoveriam um rearranjo
do espaço do shopping, que se tornaria, então, afeito também à sociabilidade. A passagem
de um modelo para outro, pode ser vista como um verdadeiro marco de uma mudança mais
geral, que salta aos olhos quando refletimos, entre outros fatores, sobre o próprio papel que
o shopping desempenha no contexto urbano. Esta mudança não ocorre de modo simultâneo
nas diferentes áreas do mundo que possuem shoppings.
30
Neste trabalho, estamos procurando seguir este momento de mudança na
concepção dos shoppings, que ao nosso ver teve na introdução da sociabilidade como um
item pertencente ao leque de atrativos do shopping, um fator fundamental para o grande
sucesso (renovado) que esses empreendimentos vêm experimentando. Da mesma forma, em
paralelo, propomos ao longo deste caminho uma observação cuidadosa quanto à pertinência
da conceituação do shopping como um exemplo de um não-lugar, diante dessas mudanças a
que nos referimos anteriormente. Com isso, este capítulo pretende desenvolver uma
reflexão sobre a inserção da sociabilidade no shopping. Na atualidade, presenciamos um
momento em que agenciar o espaço de um shopping passa (quase que) necessariamente
pela existência de espaços de sociabilidade nestes empreendimentos.
1.1 A sociabilidade como via de entendimento do espaço do shopping
É muito comum vermos o conceito de sociabilidade apresentado como sinônimo
de relações sociais. Na verdade, mais do que a confusão entre conceitos diferentes, a
sociabilidade é quase sempre tratada de forma simplista, como um termo que indica copresença, ou faz referência a qualquer comunicação entre duas ou mais pessoas.
A vida em sociedade abrange, mas não se restringe aos seus momentos de
sociabilidade. Simmel nos lembra que a sociabilidade pode ser entendida como uma forma
(lúdica) de socialização, uma forma que, na verdade, resulta do processo de socialização,
que ganha vida própria quando “se poupa dos atritos com a realidade, por meio de uma
relação meramente formal com esta” (SIMMEL, 1983, pg 169). Aquilo que Simmel chama
de “impulso da sociabilidade”, extrai dos fenômenos da vida social sua mera forma, a qual
será adaptada dentro de estruturas específicas. Isto não quer dizer que sociabilidade seja
31
uma forma vazia, já que o conteúdo que lhe deu o primeiro sentido, que foi extraído da
realidade, se metamorfoseou e se dissolveu no jogo da forma. Neste sentido, ao ganhar vida
própria, a sociabilidade passa a depender inteiramente dos “jogadores” envolvidos.
A idéia do jogo, como uma forma de sociabilidade, é muito cara a Norbert Elias,
quando este autor trata dos fenômenos de interdependência que estruturam a socialização.
Assim, através de elementos formadores da própria natureza do jogo, como a disputa por
territórios, a medição de forças, as tensões, os conflitos, Elias procura estruturar os laços
que compõem a natureza da sociedade em movimento. É neste sentido que podemos
entender a sociedade como formada por jogadores interdependentes, e a sociabilidade como
via de acesso à compreensão do todo social de que faz parte. Desta forma, não é demais
lembrarmos que a sociabilidade nem sempre é sinônimo de boas relações, de amenidades,
mas pode representar momentos de conflitos e disputas, inclusive por territórios. No caso
de (ELIAS apud WAIZBORT, 1999), é através do conceito de figuração que nos tornamos
aptos a compreender como se articulam os elementos que constroem e destroem
continuamente a sociedade. Assim, a idéia de figuração trata de afirmar que a sociedade...
...não é nem uma abstração das peculiaridades dos indivíduos que existem
como que sem sociedade, nem um “sistema” ou uma “totalidade” que está
para além dos indivíduos, mas sim que, justamente, a sociedade é o
próprio entrelaçamento das interdependências formadas pelos indivíduos
(WAIZBORT, 1999, pg 102).
Neste sentido, tanto para Elias como para Simmel, a socialização constitui-se em
um todo relacional, formado pelas interações entre seus elementos. Essas relações estão em
processo, construindo-se e destruindo-se continuamente, não havendo, portanto, uma
sociedade acabada. Para Simmel, é o conceito de interação que expressa de modo mais
claro esse encadeamento constante e simultâneo “entre os átomos da sociedade”. Ou seja,
através de relações mútuas, as interações, abre-se caminho para desvendarmos a teia social.
32
“A partir de cada interação singular é possível adentrar na teia do todo” (WAIZBORT,
1999, pg 97). Com isso, a sociabilidade parece ser um dos elementos que estão
promovendo a constante interação ou a constante figuração, que nos levam a compreender a
vida social como um todo.
A sociabilidade, o encontro, o ver e ser visto têm participado ativamente da
organização do espaço dos shoppings, um espaço de co-presença em que os freqüentadores,
ao mesmo tempo em que avaliam, são avaliados, interpretam símbolos e são também
propagadores de outros símbolos, são simultaneamente sujeito e objeto. Ocorre aí uma
visibilidade mútua, em que as pessoas são simultaneamente atores e observadores. Georg
Simmel define que “o olhar pelo qual procuramos perceber o outro é em si mesmo
expressivo. Pelo olhar que desvenda o outro, desvendamos a nós mesmos” (JOSEPH, 2000,
p.19).
Com isso, a partir do momento em que observamos, fazemos parte de um jogo de
interações, no qual a regra principal consiste em aceitarmos que o outro também nos
observe. George Mead lembra que “o eu é o organismo que pode tomar a si próprio como
objeto, ele pode se ouvir falar. Como tal é uma estrutura social que se desenvolve
inteiramente numa experiência de comunicação” (JOSEPH, 2000, p.21). Remetemos-nos aí
a Bruno Latour, em sua afirmação de que “os seres em presença se defrontam ao mesmo
tempo enquanto sujeitos e objetos” (LATOUR, 1994, pg.55).
Isaac Joseph deixa claro que a dimensão espacial tem importância fundamental no
estudo das interações quando afirma que:
o encaixe dos territórios e das regiões de significação combina o material
e o imaterial, o visível e o virtual, os índices e as interpretações. Essa
grande mistura, essa grande hibridização são precisamente os traços da
ordem simbólica atuante numa situação” (JOSEPH, 2000, p.39).
33
1.2 A (quase) ausência da sociabilidade nos primeiros shoppings
O “primeiro modelo de shopping center” nasceu na América Anglo-Saxônica,
mais precisamente através da ocupação dos subúrbios de diversas cidades dos EUA,
movimento este que ganhou mais expressão a partir do término da Segunda Guerra
Mundial. Até aquele momento, as galerias e as lojas de departamento dominavam
amplamente o comércio varejista. Os shoppings nasceram primeiramente como uma
necessidade da nova população que se instalava nos subúrbios, sendo que posteriormente,
se afirmaram como um projeto de redefinição do conceito de comércio a varejo na cidade.
Suburbanization was already taking place in the second half of the
nineteenth-century; however, its nationwide acceleration began only early
in the twentieth-century(…)the population moving to suburbs have higher
per capita income (COHEN, 1972, pg.25).
A proliferação de áreas suburbanas11 nos EUA no início do século XX como um
movimento de populações com no mínimo, um bom poder aquisitivo, para áreas mais
afastadas do centro, possui uma estreita relação com a difusão do automóvel. As
possibilidades de deslocamento proporcionaram um rearranjo da organização do espaço
urbano, o que aconteceria de modo efetivo novos subúrbios. Assim, o nascimento dos
shoppings fazia parte da composição de elementos que passaram a nortear a vida de um
ambiente urbano que se pautava em uma dinâmica diferente das áreas centrais tradicionais.
De modo geral, os subúrbios americanos se estabeleceram como áreas planejadas, em que o
zoneamento estabelecia a fragmentação dos espaços através de critérios funcionais, ficando
a articulação desses espaços a cargo das vias expressas. Muitos shoppings foram erguidos
11
Assim, vencendo as dificuldades da cidade supercongestionada e demasiado extensa, o subúrbio se revelou
a um tempo uma solução (…) o resultado foi uma ampla dispersão de subúrbios de classe superior…
(MUMFORD, 1965, pg. 530&535).
34
ao longo dessas vias, em que a acessibilidade era total, e a área disponível para a construção
era a maior possível. A concepção de um espaço que concentrasse diversos ramos de
comercialização de bens e serviços, os quais estariam submetidos a uma administração
centralizada, tornou-se necessária a partir da “...progressiva mudança nas formas de
organização, métodos e técnicas de produzir...” e da “...incorporação encadeada de
inovações nos modos de troca, principalmente a partir do século XIX” (BIENENSTEIN,
2002, pg. 72). O shopping surge em um contexto de mudanças importantes não só na
estrutura capitalista, como também no espaço urbano dos EUA.
Enquanto a estação ferroviária e as distâncias a pé controlaram o
crescimento suburbano, o subúrbio teve uma forma. A própria
concentração de lojas e facilidades de estacionamento ao redor da estação
ferroviária, nos melhores subúrbios, chegou a promover um novo tipo de
área de mercado, mais concentrada que o mercado linear ao longo de uma
avenida. Surgiu assim um protótipo espontâneo de shopping center
suburbano, cujas facilidades acessíveis de estacionamento lhe
emprestavam vantagens sobre os estabelecimentos urbanos mais centrais,
depois que o automóvel particular tornou-se o principal modo de
transporte (…) O advento do automóvel foi acompanhado pelo deliberado
desmantelamento do sistema de transportes eletrificados (…) Com a
destruição das distâncias que se podiam cobrir a pé, verificou-se a
destruição do caminhar como um meio normal de circulação humana: o
automóvel tornou-o inseguro e a extensão do subúrbio tornou-o
impossível. (…) Assim, cada nova fábrica ou escritório, cada nova loja de
departamentos ou shopping center, implantado no meio do campo aberto,
exige estacionamentos tão amplos… (MUMFORD, 1965, pg. 546&547).
Os anos 50 representaram uma época de ampliação dos subúrbios de classe média
nos EUA, além do aumento do número de carros. Para o arquiteto Victor Gruen, este era
um momento propício para resolver alguns problemas comuns nos centros urbanos
tradicionais. Gruen acreditava que o clima, a dificuldade de circulação e estacionamento
dos veículos, a falta de espaços com acessibilidade adequada para atividades culturais e
recreativas, eram alguns dos principais desafios a serem superados. Não se pode esquecer
que este projeto estava inserido no contexto do consumo, ou seja, não se pensava em
35
projetar um equipamento para “simplesmente” resolver problemas urbanos, mas sim para
principalmente ampliar os ganhos dos empreendedores e de seus sócios. Entretanto,
baseando-se no formato utilizado na construção dos parques da Disney, os empreendedores
perceberam que o controle e a vigilância seriam essenciais para o “espetáculo do consumo”.
Desse modo, a solução seria obtida através de espaços projetados, que promovessem um
ambiente de organização, “felicidade” e limpeza. O mais antigo shopping construído e
organizado nos moldes conhecidos hoje, o Southdale Center, em Minesota, EUA, foi
projetado por Victor Gruen.
Em 1956 o Southdale Center em Minesota, EUA, foi o primeiro a adotar o
modelo arquitetônico todo fechado, por ser uma região de invernos
rigorosos, adotado na maioria dos shopping centers posteriores,
independente do clima (RAIUNEC, 1988, p.68).
Uma das novidades do Southdale, que foi inaugurado com 150 mil metros
quadrados, foi oferecer em suas áreas de circulação, que eram internas, aquecimento no
inverno e ar condicionado no verão (RYBCZYNSKI, 1995).
Assim surge o mall, uma alameda coberta, com lojas em ambos os lados,
assumindo vários formatos, ainda que as linhas retas e curvas tenham sido os principais
modelos adotados, como podemos verificar nas ilustrações abaixo.
Straight Arcade
Curved Arcade
36
Source: Tutt, P. & Adler, D. 1981, 'The New Source: Tutt, P. & Adler, D. 1981, 'The New
AJ Metric Handbook', Architechtural Press, AJ Metric Handbook', Architechtural Press,
London.
London
De forma geral, o shopping poderia ser descrito como um empreendimento
composto por uma alameda coberta com lojas de diferentes ramos em ambos os lados, as
quais estariam subordinadas a uma administração centralizada pelos empreendedores.
Antes mesmo da escolha do local da construção, os incorporadores promovem análises
minuciosas sobre as condições locacionais, populacionais e econômicas da área, buscando
garantias mínimas de sucesso para o empreendimento. Aspectos como a acessibilidade e o
padrão econômico dos possíveis freqüentadores, são determinantes para a escolha do
conjunto de lojas e de atividades que farão parte do shopping. Outros requisitos
fundamentais seriam um estacionamento, compatível não só com o tamanho do shopping,
mas também com sua área de influência, além de possuir uniformidade arquitetônica.
...as expressões individualistas das diferentes lojas seriam contidas por
controles arquitetônicos e, como os primeiros esforços de planejamento
dos capitalistas, os shoppings uniram, idealmente, comércio e
modernismo (GHIRARDO, 2002, pg 73).
Neste sentido, o shopping surge como uma novidade dos anos de 1950, pela
criação de um novo modelo de organizar o espaço varejista, constituído por requisitos e
arranjos que, de modo geral, não incentivavam a sociabilidade. Neste modelo de shopping,
quando existiam, o lazer, os serviços e os espaços de sociabilidade eram fatores
secundários.
Os primeiros (shoppings)12, geralmente com supermercado, tinham como
maior atração, a concentração de lojas comerciais em um só lugar. Com
isso, os consumidores podiam estacionar o carro e andar de loja em loja,
em vez de dirigir para cima e para baixo (RYBCZYNSKI, pg.185, 1995).
12
O adendo é nosso.
37
Este modelo de shopping perdurou nos EUA, desde sua criação após a Segunda
Guerra Mundial até aproximadamente o final da década de 1970. Foi exatamente nesta
“fase” que a idéia de não-lugar ganhou força como um conceito possível para a definição
da dinâmica espacial do shopping, e para a caracterização de sua própria natureza enquanto
parte do espaço urbano.
...satisfying consumers has become increasingly important since 1980,
when malls approached the saturation point. The system demonstrated a
surprising adaptability: in spite of its history of rigidly programmed
uniformity, new economic and locational opportunities prompted new
prototypes. Specialty malls were built without department stores, allowing
a more flexible use of space. To fit urban sites, malls adopted more
compact and vertical forms with stacked floors of indoor parking , as at
the Eaton Center in Toronto and the Beverly Center in Los Angeles
(CRAWFORD, 2000, pg.10).
Assim, desde a década de 1980, especialmente nos EUA e no Canadá os
shoppings não só se adaptaram às novas possibilidades de localização nas áreas mais
centrais das cidades, promovendo modificações em seu protótipo de construção, como
também em sua organização interna. A “indústria dos shoppings” passou a não atuar
somente nos subúrbios, ampliando grandemente seu mercado potencial nos centros
urbanos. Além disso, a inclusão de áreas de lazer, prestação de serviços e espaços afeitos à
sociabilidade, direcionaram as mudanças no espaço interno. algo que não estava previsto
originalmente. “To differentiate themselves from the competition, some developers have
opted for the inclusion of major recreational attractions in their mega-projects…
(BORCHERT, 1990 in: JONES, 1991, pg. 248).
Considerado o maior shopping do mundo até 2005, quando foi superado pelo
South China Mall13, o West Edmonton, em Alberta, no Canadá, possui 500mil m2 de área,
localizando-se a 20km do centro de Edmonton, é um bom exemplo de como as mudanças
13
O South China Mall foi inaugurado em 2005 e conta com cerca de 600mil m2 de área.
38
no espaço interno, e a verdadeira renovação nas atividades e na própria imagem do
shopping, garantiram o sucesso de um empreendimento gigantesco e milionário. O West
Edmonton, inaugurado em 1981, já nasceu pautando-se na idéia de que além da compra, o
shopping também é um espaço a ser apropriado pelo lazer, pelos serviços e pela
sociabilidade. Assim, nesse mais de 25 anos de existência ocorreram diversas ampliações e
inovações que fazem do West Edmonton não só um pólo de atrações e de encontro na
cidade, mas também um local turístico. “...leasable, retail and service space. It (West
Edmonton Mall) contains more than 600 shops, plus a hotel and leisure and recreational
facilities that are unmatched in any previous shopping center” (JACKSON & JOHNSON,
1991, pg. 226).
O West Edmonton recebe em média cerca de 22 milhões de visitantes por ano,
possuindo, por exemplo, o maior parque aquático coberto da América do Norte, com 20mil
m2 de área. As áreas destinadas a shows e alimentação são o centro de sociabilidade do
shopping, locais em que os freqüentadores se entretêm, se comunicam e se encontram.
Além disso, essas atividades ampliam sobremaneira a atração de pessoas para fazer
compras.
Nonetheless, it is the recreation component that contributes to West
Edmonton’s Mall’s uniqueness, and the largest of these components may
well be unconventional, but significant, anchors to draw potential
shoppers to the mall (JOHNSON, 1991, pgs.252&253).
1.3 - A relevância da contribuição da geografia no processo de evolução da
organização de espaços de consumo.
À construção de um shopping center, é realizada previamente uma complexa
gama de pesquisas sobre a melhor localização para se instalar o empreendimento, sobre a
39
acessibilidade e principalmente, sobre o perfil econômico do público da área que se
pretende “atingir”. Essas técnicas de avaliação de mercado, que desempenham, portanto,
um papel reconhecidamente decisivo no sucesso deste tipo de empreendimento comercial,
estão muito atentas para a geografia da área em que o shopping se assentará. A correta
leitura da organização dos espaços adjacentes, ou seja, o modo como as ruas, os prédios, as
calçadas, os transportes e as pessoas estão dispostas no espaço, torna-se a lógica principal
de um jogo determinante para os lucros futuros. Assim, ainda que de modo geral, pode-se
perceber que há uma verdadeira equipe de estrategistas trabalhando em função de encontrar
aquele ponto exato do espaço, aquele nó fundamental que trará ao shopping a visibilidade e
a inserção necessária para o sucesso na rede do consumo urbano. Por sua vez, os fatores a
serem levados em consideração são tantos e, especialmente, de naturezas tão diversas, que
este grupo de “estrategistas” deve ser composto de profissionais de várias áreas, já que há
uma real necessidade de trocas de dados, informações e conceitos diversos.
A complexidade que envolve a “concepção” dos shoppings vem crescendo
progressivamente na medida em que o número de empreendimentos vem se multiplicando
em um número cada vez maior de países, com diferentes questões a serem observadas. “Os
shopping centers participam ativamente de um complexo processo de encadeamento de
espaços urbanos...”(PADILHA, 2006, pg.33). Neste sentido, se nos dias de hoje
observamos um enorme aprimoramento nesta “arte” de desvendamento da organização do
espaço como base para um processo de acumulação nos espaços de consumo, por outro
lado nos parece oportuno lembrar que a importância da lógica que dá sentido a esse
“encadeamento” urbano fez parte da “concepção” de espaços de consumo em diferentes
momentos pretéritos. Da mesma forma, a distribuição das lojas, as diferentes funções
delegadas às diferentes áreas, aquilo que talvez possamos chamar de produção do espaço do
40
shopping, ainda que possua claras e importantes inovações, traz consigo de algum modo,
“concepções geográficas” já utilizadas em outras épocas.
Nos parece um exercício interessante, não somente sob o ponto de vista
metodológico, mas também como uma possibilidade de encaminhamento de reflexões que
ampliem o escopo da discussão aqui proposta, uma tentativa de demonstrar que
determinados agenciamentos do espaço e as práticas sociais a eles relacionados em
diferentes momentos históricos, podem ser observados como contínuos sob o ponto de vista
geográfico, ainda que haja um abismo temporal entre eles. Evidentemente, não se está aqui
com a intenção de minimizar as particularidades e os condicionantes de práticas sociais e
espaciais de cada momento histórico, mas de realçar possíveis semelhanças quanto à
organização de determinados espaços, ainda que pertençam a temporalidades diferentes.
Um exemplo ilustrativo para esta abordagem é a descrição do Crystal Palace de
Ebenezer Howard, em Garden Cities of To-morrow. Escrevendo esta obra nos últimos anos
do século XIX, Howard traça uma cidade imaginária que pudesse reunir o que de melhor o
campo e a cidade podem oferecer. “Howard had seen the miseries of crowded Victorian
cities and the backwardness of the rural areas” (CRESSWELL, 2004, pg.97). Nesta cidade,
haveria, então, um “Palácio de Cristal”, que seria uma galeria envidraçada virada para um
parque. Seria um dos locais mais freqüentados em dias chuvosos, devido à sua cobertura
luminosa. O espaço fechado do “Palácio Cristal” seria grande o suficiente para que
inúmeros artigos fossem expostos para venda, e para que as pessoas pudessem comprar e
passear. Haveria também um jardim de inverno. O conjunto, forma um círculo, o que faz
com que esteja próximo de todos os habitantes da cidade. Assim, a acessibilidade do
“Palácio Cristal” é total, já que todos os caminhos da cidade levam ao palácio. Observa-se,
portanto, uma preocupação especial com a acessibilidade, além de uma cobertura, que
41
permite o acesso em dias chuvosos, sem falar na disposição de mercadorias em um espaço
amplo, em que as pessoas escolhem, compram e passeiam. Ressaltamos ainda, que se trata
de uma galeria envidraçada que expõe mercadorias, voltada para um parque, ou seja,
através desse modo de arrumar o espaço, denota-se uma preocupação em aliar a compra, ao
passeio. Howard parece ter tirado o nome “Palácio de Cristal” da construção que
efetivamente foi levantada em Londres, em 1851, pelo arquiteto inglês Joseph Paxton. O
“Palácio” feito de ferro e vidro foi construído para abrigar uma grande exposição de artigos
comerciais vindos de várias partes do mundo, atraindo milhares de visitantes. Precisamente
nesta mesma época, na metade do século XIX, as grandes galerias comerciais surgiam na
Europa. As galerias proporcionaram uma monumentalidade “física” ao comércio, como que
demonstrando a que patamares o capitalismo europeu chegava um século após a Revolução
Industrial. Na verdade, já na primeira metade do século XIX a Burlington Árcade surgia em
Londres (1818). Outros nomes importantes seriam a Bon Marché, em Paris (1852), e a
Victor Emmanuel em Milão (1867). Fora do contexto europeu, podemos citar a Stewart e
Co. , a em Nova York (1859). As galerias e lojas de departamento concentravam-se
significativamente nos centros das cidades, formando ruas e pátios internos, que permitiam
o acesso às lojas. O Cristal Way em Londres (1855) era uma edificação com inúmeros
andares de lojas que possuía um subsolo interligado com linhas do metrô.
A origem mais remota das galerias, que evoluíram para os Shoppings,
estaria nos arqui-antigos bazares orientais, como os de Damasco,
Isphahan, Boukhara, Istambul, Fez. Bazar significa mercado, mas com
ruas cobertas, ladeadas de comércios. Segundo os analistas, o que
distingue o bazar oriental das galerias ou passagens é o emprego do vidro
na cobertura, e onde também, o cliente pode mexer nas mercadorias,
devido à ausência de vitrines. A crescente visualização da mercadoria na
Europa Ocidental leva o passante a parar, a fim de apreciar, com fascínio,
tantas novidades proporcionadas pela indústria e pelos modismos...era
preciso um espaço mais acolhedor do que o eram as ruas de Paris,
fedorentas (valetas centrais drenavam as águas usadas), enlameadas e
perigosas devido às carruagens (YÁZIGI, 2000, p. 154).
42
Tanto na descrição acima quanto nas idéias de Ebenezer Howard sobre a “Cidade
Jardim”, é interessante percebermos o destaque dado aos problemas urbanos de Londres e
Paris no século XIX. Como parte fundamental do mesmo processo de mudanças que se
alastrava rapidamente na economia e no comércio da época, o espaço urbano também
passava por um momento de reestruturação, do qual as galerias e as lojas de departamento
tinham um papel importante.
A produção em massa gerada especialmente com a Revolução Industrial do século
XVIII começava também, a introduzir uma nova forma de consumo, novos gostos,
modismos, que seriam passados ao público, nas galerias. Pensava-se em apresentar o
consumo, não mais como um meio de satisfazer necessidades físicas, mas como uma
atividade de recreação, social, em que a saciar gostos e caprichos, admitir a compra como
uma forma de alçar status, é fundamental. A propósito, esse tipo de idéia permanece até
hoje, sendo cada vez mais difundida, pelo marketing dos shoppings.
Lewis Mumford comenta esse período de mudanças no modo de produção
europeu em Cidade na História:
Entre o século XVI e o século XVIII, tomou forma na Europa um novo
complexo de traços culturais. Tanto a forma quanto o conteúdo da vida
urbana, em conseqüência, foram radicalmente alterados. O novo padrão
de existência brotava de uma nova economia, a do capitalismo
mercantilista; (MUMFORD, 1965, p.444).
43
Nas ilustrações, a galeria Victor Emmanuel com o teto envidraçado e suas grandes
dimensões, as quais eram as grandes novidades que atraíam numerosos contingentes de
pessoas em Milão. Na loja de departamentos Printemps, em Paris, observa-se a
monumentalidade que o comércio ganhava com as novas lojas, no século XIX. A
concepção de um espaço de comércio que representasse uma idéia de festa e sociabilidade
torna-se um ponto fundamental para o sucesso das galerias e das lojas de departamento e,
de certa forma, do próprio capitalismo.
Segundo Max Weber, foi na Idade Média, com o renascimento do comércio e das
cidades, que o homem político da Antigüidade tornou-se um cidadão econômico. Citando
Weber, Richard Sennett nos lembra que:
No mundo antigo, o comércio e o trabalho manual pareciam um pouco
mais do que atividades grosseiras e miseráveis. A cidade medieval
sofisticou-as. Segundo Max Weber, “o cidadão medieval estava prestes a
converter-se em um econômico”, já bastante distanciado do cidadão
antigo, que era um homem político (SENNETT, 1999, p.136).
Sennett descreve ainda, uma mudança na forma de comercializar:
Na Alta Idade Média, a exposição dos artigos tornara-se uma verdadeira
festa. As grandes feiras não se organizavam mais a céu aberto, mas em
“salões especialmente destinados ao comércio de diversos ramos ou
especialidades, pátios cobertos e aléias arcadas”, informa Robert Lopez,
historiador da economia. Flâmulas e outros ornamentos pendiam dos
quiosques; em compridas mesas espalhadas pelos corredores, comia-se,
bebia-se e negociava-se, tudo ao mesmo tempo...Rompendo com as
tradições religiosas e desconsiderando os dias santificados, a usura
florescia (SENNETT, 1999, p.141).
A concepção dos shoppings atuais agrega alguns elementos que, como vimos, já
existiam em momentos anteriores. Podemos comprovar esta afirmativa, na medida em que
observamos que a idéia de um espaço fechado que aliasse o comércio com a sociabilidade,
44
muito comum nas galerias do século XIX, e até em épocas mais distantes, é ampliada em
grande medida nos shoppings dos séculos XX e XXI. Neste sentido, o processo de
construção daquilo que no século de XIX se efetiva como uma “cultura do consumo”
parece fazer nascer não só uma nova perspectiva econômica, como também um novo
homem. O comércio toma, portanto, um caráter festivo e, o exemplo de homem bem
sucedido não é mais aquele que detém o dom da oratória, da palavra, como fora na
Antigüidade, mas aquele que é bem sucedido financeiramente, que desfruta da
possibilidade de satisfazer suas vontades (econômicas) em novos ambientes, ou seja, nas
galerias e nas lojas de departamento. A economia tomava as rédeas da sociedade. Como
vimos, esse processo que segundo Max Weber se inicia na Idade Média, toma um novo
impulso com a Revolução Industrial e as galerias e lojas de departamento.
Sobre esta mudança de valores e de comportamento, podemos nos remeter a Jean
Jacques Rousseau:
O homem outrora livre e independente, agora está subordinado a uma
infinidade de novas necessidades, ou seja, a toda a natureza e
principalmente a seus semelhantes, dos quais fica escravo em um sentido,
mesmo que vire seu senhor: rico, precisa dos serviços deles, pobre, da
ajuda, e a mediocridade não o põe em uma situação de dispensá-los...a
ambição devoradora, o ardor para aumentar a fortuna relativa, menos por
uma real necessidade do que para se colocar acima dos outros
(ROUSSEAU, 2002, p.23).
Como nos referimos anteriormente, alguns agenciamentos engendrados hoje
pelos administradores dos shopping centers, não podem ser considerados exatamente como
novidades, em termos de concepção. Sem desconsiderar o momento específico de
surgimento do shopping, como conseqüência da reestruturação que levou o capitalismo à
sua época “monopolista”, mas privilegiando a observação da organização dos espaços de
45
comércio através da história, e dos sentidos que lhes foram atribuídos, de fato, encontramos
relevantes contribuições aos requisitos básicos que compõem os shoppings de hoje.
1.4 A organização do espaço do shopping14
O shopping deveria ser confuso, para que o consumidor se perdesse,
possibilitando maior circulação e compra por impulso. Não poderiam
existir bancos para sentar, relógios, nem contato visual com o exterior
para que se perdesse a noção do tempo, proporcionando maior
permanência e vendas. Não deveriam haver bebedouros, pois o ideal seria
que o cliente comprasse a bebida. O piso do shopping devia ser
escorregadio para o consumidor passar devagar e poder melhor observar
as vitrines (Shopping Center 1996 – Rio Sul – UK design).
É a partir da disposição das lojas que se começa a montar um shopping center.
Escolher o que se convencionou chamar de “Tennant Mix”, que nada mais é do que a
mistura de lojas de diversos ramos é um passo fundamental para o sucesso do shopping.
Através do recolhimento de dados de alguns shoppings, juntamente com os respectivos
mapas conseguimos observar como funciona a estratégia de montagem dos espaços
internos. Os números são de grandes shoppings cariocas, entre os quais não poderiam faltar
aqueles que mantivemos uma maior proximidade durante nossa pesquisa, ou seja, o
Iguatemi Rio e o Barra Shopping, das mais variadas partes da cidade e do mais tradicional
shopping do país. O Barra Shopping e o Norte Shopping são respectivamente o maior e o
segundo maior shoppings da cidade do Rio de Janeiro. O Rio Sul foi o primeiro shopping
inaugurado no Rio de Janeiro* e permanece como o principal shopping da Zona Sul da
cidade. O Iguatemi Rio atende a uma área importante da Zona Norte, especialmente os
bairros de Vila Isabel e Tijuca. O Iguatemi São Paulo além de ter sido o primeiro shopping
14
Neste momento, tomaremos como referência básica desta organização do espaço, os shopping centers
localizados preferencialmente na cidade do Rio de Janeiro.
46
implantado no país, encontra-se em uma das áreas mais nobres da cidade mais rica do
Brasil.
O “Tennant Mix” é formado basicamente por dois tipos de lojas. As lojas-âncora
correspondem às grandes lojas, que têm clientes cativos, que por si só atraem público. O
Barra Shopping é ancorado pelas lojas C&A, Fast Shop, Fnac, Lojas Americanas, Renner,
Ponto Frio mega store e Zara. O Norte Shopping possui 9 Lojas Âncora, que são: Lojas
Americanas, Casas Bahia, C&A, C&C, Carrefour, Casa & Vídeo, Leader Magazine, Ponto
Frio e Renner. No Rio Sul, por exemplo, correspondem às lojas Zara, Casas Bahia, Renner
e Lojas Americanas. O Iguatemi Rio tem como âncoras a C&A, Casa e Vídeo, Casas
Bahia, Renner, Ponto Frio, Marisa e Lojas Americanas. O Iguatemi São Paulo possui 4
lojas Âncora: C & A, Lojas Americanas, Pão De Açucar e Zara. Por outro lado, há as lojassatélite, que são lojas de sucesso em menor escala. Há 450 lojas deste tipo no Rio Sul, 220
no Iguatemi Rio, 322 no Iguatemi São Paulo, 281 no Norte Shopping e 574 no Barra
Shopping. As lojas-satélite, em geral, precisam mais do shopping, do que o contrário. As
próprias lojas-satélite se beneficiam com as lojas-âncora, as quais são geradoras de enormes
fluxos de pessoas.
Portanto, a disposição das lojas-âncora é estratégica, como podemos visualizar
nos mapas em anexo15. Fica claro que a lógica da arrumação do espaço interno do shopping
é concebida a partir do posicionamento dessas lojas. Nos mapas do Iguatemi Rio e do Norte
Shopping, por exemplo, podemos perceber com clareza, o grande espaço que as lojasâncora têm no shopping, ocupando até, mais de um andar, como a Loja Americana do
Iguatemi Rio e a C&A e o supermercado Carrefour no Norte Shopping. Outro ponto
interessante, é que nos mapas do Iguatemi, além das lojas-âncora, recebem destaque os
15
Ver mapas em Anexo: Barra Shopping, Norte Shopping, Iguatemi São Paulo, Rio Sul e Iguatemi Rio.
47
cinemas, as “praças de eventos” e o restaurante Petisco da Vila. Os cinemas e as “praças de
eventos”16 geram enorme fluxo de pessoas para o shopping, transformam-se portanto, em
uma forma de ancoragem muito eficiente.
Antes mesmo da construção de um shopping, faz-se a definição do tipo de público
que se quer atingir preferencialmente. Evidentemente, as lojas que fazem parte do
shopping, também devem estar “de acordo” com esse “público-alvo”. Durante nossas
pesquisas, pudemos perceber que a delimitação do público-alvo é um fator primordial para
o sucesso do empreendimento. Em geral, as administrações trabalham com a idéia de que
“se quisermos atingir todos, não atingiremos ninguém”, frase que resume o pensamento dos
administradores sobre a necessidade de estabelecer um público preferencial. O público-alvo
é, em geral, formado pelos residentes em áreas próximas ao shopping, e/ou com
determinada faixa de renda. Isso não quer dizer, que não haja uma freqüência expressiva
em inúmeros shoppings, de pessoas que estariam fora do público-alvo, ou por não morarem
nas imediações, ou por terem nível de renda maior ou menor do que o público-alvo.
Na década de 1980 foram construídos os primeiros grandes shoppings do Rio de
Janeiro. Todos os shoppings cariocas da década de 1980 foram construídos em grandes
espaços ou em áreas extensas marginais a grandes avenidas, havendo apenas duas exceções.
Nos dois casos, o acesso ao shopping se dava, em esmagadora maioria, por carro ou por
ônibus. O Barra Shopping (1981) e o Casa Shopping (1984) foram construídos em grandes
áreas abertas da Barra da Tijuca, bairro que começava a ampliar sua importância na cidade.
O São Conrado Fashion Mall (1982) e o Norte Shopping (1986) foram construídos em
áreas de grande fluxo automotivo, como a Auto-Estrada Lagoa Barra e a Avenida
Suburbana, respectivamente.As exceções citadas acima se referem ao Madureira Shopping
16
As atividades e shows das “praças de eventos” são gratuitos.
48
inaugurado bem no final da década (abril de 1989), e ao Rio Sul, o primeiro shopping da
cidade, construído em 1980. No entanto, o Rio Sul nasceu em prédio empresarial, que não
havia originalmente sido projetado para abrigar um shopping center.
Os maiores shoppings ainda são o Barra Shopping17 e o Norte Shopping, até
porque os novos foram projetados para serem, em geral, menores, já que algumas áreas
escolhidas para as construções são “apertadas” como Tijuca, Vila Isabel e Leblon, além do
fato de que o número de shoppings aumentou exponencialmente. A ameaça de
sobreposição de áreas de influência é um fato indesejável para os administradores, e
principalmente para os lojistas. Todavia, este caso já se constitui em realidade na cidade de
São Paulo, que concentra mais de 40 shoppings.
Oferecer marcas exclusivas, entretanto, ainda é o melhor caminho para se
diferenciar. Não basta montar um cardápio de lojas atraente e coerente
com o perfil de cada público. É fundamental garantir que as melhores
fiquem longe dos vizinhos. Daí surgiu a chamada cláusula de raio18, que
determina em contrato a distância mínima para que a mesma grife se
instale em outro lugar. O Iguatemi é um exemplo. Entre suas 330 lojas
figuram marcas internacionais que, sozinhas, já lhe dão prestígio. É o caso
da Louis Vuitton e da Tiffany & Co. A cláusula de raio do Iguatemi é de
2,5 quilômetros. Com 100 lojistas que considera estratégicos, a
administração do shopping mantém ainda uma cláusula de exclusividade
total (independentemente da distância) no documento de locação19.
No Rio de Janeiro, pode-se perceber uma situação parecida examinando-se o
caso da recente inauguração do Shopping Leblon, que rapidamente causou danos ao São
Conrado Fashion Mall. Os dois shoppings têm como alvo principal um cliente requintado, e
nessa briga pelo topo da elite econômica carioca, o irmão mais novo está desbancando
subitamente o tradicional “shopping dos ricos”, em São Conrado.
17
Atualmente o maior shopping do Rio de Janeiro é o Barra Shopping, com 90mil m2 de ABL17. Ao final das
obras de expansão no Norte Shopping, o empreendimento deve chegar aos 95mil m2 de ABL, tornando-se
assim, pela primeira vez, o maior shopping da cidade.
18
O grifo é nosso.
19
Revista Veja – São Paulo – 23 de Agosto de 2006 - Reportagem de Sandra Soares.
49
Daniel Brett, diretor comercial da grife italiana Ermenegildo Zegna no
Brasil, conta que a decisão de migrar do São Conrado para o Leblon foi
motivada pela clientela: 80% dos clientes da loja do Fashion Mall moram
na região. A expectativa é de que a mudança aumente em 30% o
faturamento da nova loja...20
Em relação ao poder aquisitivo dos freqüentadores, os shoppings parecem estar
voltados para as chamadas classes A e B. Ainda que em inúmeros shoppings, inclusive por
suas localizações, possamos concluir que atendam a outras classes como C e D.
No Brasil, temos observado, sobretudo a partir do último decênio do
século passado, a expansão do fenômeno em direção aos subúrbios21 e
periferias e, mais que isto, sua crescente apropriação pelos segmentos
menos privilegiados (MAIA, 2002, pg.7).
A cidade do Rio de Janeiro pode ser tomada como um bom exemplo de um
importante movimento de construção de shoppings22 em áreas que possuem indicadores
sociais e de renda considerados baixos. Na cidade do Rio de Janeiro, temos como exemplo
mais tradicional, o Norte Shopping, que fica no bairro do Caxambi, Zona Norte, inaugurado
em 1986, além do Madureira Shopping, inaugurado em 1989. Além deste, podemos citar O
West Shopping, em Campo Grande, Zona Oeste, inaugurado em setembro de 1997, o Nova
América23 em Del Castilho, Zona Norte, inaugurado em 1995, o qual inclusive possui uma
integração direta com a estação do metrô do bairro. O Carioca Shopping na Vila da Penha,
Zona Norte, inaugurado em 2001, e no qual foi instalado um campus da Universidade
UNIGRANRIO. Destacamos a inauguração prevista para 2007 do Shopping Bangu na Zona
Oeste da cidade. Na Baixada Fluminense, destacam-se o Top Shopping em Nova Iguaçu,
20
Valor Econômico – 04 de Dezembro de 2006.
21
Vemos como relevante uma menção ao fato de que o significado do “subúrbio” neste momento difere
completamente do contexto dos EUA, citado anteriormente.
22
Filiados a ABRASCE.
23
Tanto o Nova América quanto o Carioca Shopping foram o resultado da adaptaçào de antigas plantas fabris,
cujas fábricas já haviam sido desativadas. No local em que funcionara a “América Fabril” de fiação e
tecelagem, está atualmente o Nova América. Já a “Standard Eletric” de telefones e equipamentos elétricos
encontrava-se onde hoje está o Carioca Shopping.
50
inaugurado em 1996, o Shopping Grande Rio em São João de Meriti, inaugurado em 1995
e o Caxias Shopping, em Duque de Caxias, inaugurado em 2003.
O raio de ação do Rio Sul estende-se preferencialmente aos bairros de Botafogo,
Copacabana, Ipanema e Leblon. Abrange classe média e alta (A e B). Segundo a
administração, em outras épocas houve mais classe C, mas a saída de lojas como a C&A e
as Lojas Brasileiras, demonstravam que essa faixa de renda não estava mais sendo
significativa para o shopping. No Iguatemi Rio o público-alvo localiza-se em Vila Isabel,
Tijuca, Grajaú e Méier; abrangendo as classes A, B e uma expressiva classe C. No Iguatemi
São Paulo, mais da metade dos freqüentadores mora nos bairros Pinheiros, Itaim Bibi e
Morumbi, havendo assim um perfil que abrange em grande medida a classe A. Já no Barra
Shopping, cerca de 80% do público-alvo pertence às classes A e B, sendo que o raio de
ação do shopping é muito amplo. Este pode ser demonstrado a partir do fato de que o site
do shopping (www.barrashopping.com.br) é o único que disponibiliza a descrição de todas
as vias de acesso ao shopping a partir de inúmeros pontos da cidade, inclusive com
destaque para as linhas de ônibus que fazem os trajetos. A área de influência do Norte
Shopping atende a 10 dos 32 subdistritos do município do Rio de Janeiro, reunindo ao todo,
52 bairros vizinhos. Como já foi dito, pela própria localização, o Norte Shopping atende a
um público diversificado, em que também se verifica presença importante das classes C e
D.
Abordando essa relação entre o mix de lojas e o público alvo, Don Mitchel
afirma que: “When the malls opens, the owner-developers need to carefully manage the
mix of tenants to ‘ensure complementarity of retail and service functions’ so as to attract
the desired mix of consumers” (MITCHEL, 2000, pg.134).
51
Com o grande número de pessoas que passam pelos shopping centers24, estes
passaram a internalizar inúmeros serviços. No Rio Sul há quatro cabeleireiros, duas
agências de bancos, postos do Detran, da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de
Fazenda. Há lavagem de carro, curso de inglês, posto telefônico, engraxate, entre outros.
No Iguatemi Rio, podemos citar o fraldário, duas agências de bancos, agência dos Correios,
lotérica, dois cabeleireiros, lavagem de carro, além de empréstimo de carrinhos para bebê.
No Norte Shopping há um colégio, um projeto para a construção de uma universidade,
postos do Detran, do Ministério do Trabalho, três agências de bancos, quatro cabeleireiros,
fraldário e lava-jato. Além disso, há um complexo de 35 salas que reúne consultórios
médicos, dentistas, ortodontistas, laboratórios de análises clínicas, clínicas de estética, salão
de beleza, fisioterapia e clínicas de diagnósticos, chamado Vida Center Saúde & Estética. O
Barra Shopping conta com uma academia de ginástica, três agências bancárias, seis
cabeleireiros, uma agência dos Correios, uma casa lotérica, uma corretora de imóveis, uma
escola de idiomas, um colégio, um Centro Médico com trinta especialidades e um Centro
Empresarial com onze edifícios comerciais. No Iguatemi São Paulo há duas agências
bancárias, uma casa lotérica, um posto de gasolina e um supermercado.
Um grande diferencial dos shoppings é o estacionamento. Pierre George quando
se refere ao estabelecimento dos primeiros shoppings nos EUA, comenta a importância dos
estacionamentos. “Eles se estabeleceram na junção de vários conjuntos residenciais, onde
havia um espaço bastante vasto para instalar o mercado, 10 a 12 há para um mercado capaz
de abastecer 10.000 famílias, e assegurar o estacionamento de veículos ao redor”
(GEORGE,1983,pg. 197).
24
Mensalmente, o Iguatemi Rio recebe cerca de 1 milhão de pessoas, o Rio Sul, cerca de 2 milhões de
freqüentadores, o Iguatemi São Paulo cerca de 1,5 milhão de pessoas, o Norte Shopping cerca de 2,4 milhões
de pessoas e o Barra Shopping cerca de 1,4 milhão de pessoas. Fontes: Sítios dos referidos shoppings – 2006.
52
Os estacionamentos devem ser compatíveis com o tamanho do shopping e com o
tamanho de seu público. Essa importância do estacionamento deve-se antes de tudo, à
disseminação do carro como meio de transporte. Os shoppings representam
estabelecimentos que já nasceram pensando no freqüentador motorizado. Até a metade da
década de 1990, os estacionamentos eram gratuitos. Hoje, paga-se 3 reais e cinqüenta
centavos para ficar no máximo quatro horas em uma das 3 mil vagas do Rio Sul. O
estacionamento do Iguatemi Rio possui capacidade para 1500 carros, e desde a inauguração
do shopping, em 1996, paga-se para estacionar. Na verdade, houve a terceirização da
operação dos estacionamentos, o que levou à cobrança de taxa. No Barra Shopping há 4500
vagas, no Iguatemi São Paulo há 1824 vagas e no Norte Shopping, há 4500 vagas.
Em cada shopping, há um “exército” de funcionários (terceirizados) que têm por
função manter a limpeza do ambiente. Os banheiros, os corredores, as escadas, elevadores,
estacionamentos, são revisados constantemente. A limpeza é um item fundamental na
estratégia de atração de público.
Um outro fator que não pode ser negligenciado em relação ao espaço do shopping,
é a segurança. Longe disso, a segurança é um item cuidadosamente planejado pelas
administrações25. Os shoppings funcionam de portas abertas, muitos deles em locais de
grande movimento de pessoas no entorno. Apesar da extensiva vigilância, não se pode
afirmar que o shopping é o “lugar mais seguro do mundo”. Entretanto, a idéia de que o
shopping é um local absolutamente seguro, ermético à violência urbana, é muito difundida.
Muito mais do que a segurança efetiva (sem dúvida mais eficiente que a da “rua”),
representada não só pelos seguranças (terceirizados), como também pelas inúmeras
25
“O shopping é um local muito procurado pelo público por oferecer segurança e conforto” (Administração
do Iguatemi).
53
câmeras, a “sensação de segurança” é o mais importante. As pessoas parecem sentir que
está tudo sob controle naquele espaço vigiado, filmado e com boa iluminação. Da mesma
forma, o fato de ser um local, em princípio, de livre acesso e de uso comum, faz com que os
agentes de segurança dos shoppings atuem de modo “sutil” para desencorajar a presença de
“indesejáveis”. “...sei lá, no shopping é como se você tivesse a atenção que você não tem na
rua. Você não tem ninguém para pedir informações, você tem até medo de chegar perto de
um policial” (Freqüentadora do Barra Shopping)26.
Aí, coloca-se em questão a própria classificação do espaço do shopping, que
parece, de certo modo, pairar entre as dimensões do público e do privado. Ampliaremos
estas discussões mais à frente.
Portanto, bem distante das estratégias de pisos escorregadios ou ausência de
contato visual com o exterior, como era feito nos EUA em 1940/50, as administrações
desenvolveram novas e complexas maneiras de atrair e manter o público dentro do
shopping.
1.5 Sociabilidade e espaços de consumo
Na verdade, o próprio caráter do espaço, público ou privado, traz importantes e
diferentes mediações, que são decisivas para que o modo como a sociabilidade se desenrola
nesses espaços também seja distinto. Tradicionalmente, a sociabilidade ganha uma
expressão importante e diferenciada quando se assenta no espaço público. No caso dos
espaços de consumo, a discussão em torno da classificação em público ou privado leva
consigo também uma nova perspectiva para a questão da sociabilidade nesses espaços.
26
Entrevista realizada pelo autor.
54
A rua é o espaço público por excelência, regido por normas de civilidade, sob às
quais somos chamados a estar de fronte ao que nos é estranho, diferente. O geógrafo
francês Jacques Lévy ensina que o percurso no espaço público exige uma suspensão do
íntimo, que se manifesta de modo que se garanta ao indivíduo que não haverá sobre ele,
uma projeção da intimidade de outrem. O espaço público constitui o lugar do encontro dos
diferentes, trata-se do espaço da lei, o qual é produzido a partir de um contrato social
estabelecido democraticamente, em que o acesso é irrestrito àqueles que estão de acordo
com essas regras. Assim, o espaço público possui uma dimensão abstrata, sendo regido por
princípios e normas, e uma dimensão concreta, demonstrada pela co-presença, por seus
usos. O fato de que o comportamento que se espera de um cidadão varia no tempo e no
espaço, e de que o espaço do cidadão, ou seja, o espaço público é o local por excelência da
própria produção e reprodução da sociedade civil, fazem com que a sociabilidade ganhe
novos contornos neste âmbito.
No caso do espaço público a sociabilidade se transforma em civilidade,
em comportamento que extrapola a simples maneira convencional que
uma sociedade atribui ao homem educado de se apresentar e se conduzir,
a etiqueta (GOMES, 2002, pg 163).
Apesar de sabermos que a sociabilidade não se reduz à “etiqueta”, nos parece
importante, a lembrança de que ela ganha uma nova dimensão no espaço público, o que fica
claro especialmente em (MOREL, 2005). Analisando a vida pública carioca entre 1820 e
1840, o autor atribui aos espaços públicos um papel fundamental no cenário de mudanças
políticas e sociais. A difusão das novas idéias através das “vozes públicas” e da linguagem
visual (cartazes, caricaturas) foi possível em grande medida pela acessibilidade e pela
visibilidade dos espaços públicos. “Os gritos e vozes nas ruas constituem uma forma de
55
ocupação dos espaços públicos, ainda que simbólica e efêmera, mas muitas vezes eficaz e
impressionante” (MOREL, 2005, pg231).
Da mesma forma, as transformações ocorridas em inúmeras capitais européias na
segunda metade do século XVIII também incluíram mudanças nas regulamentações do
espaço público. Em geral, estas modificações associavam-se entre outras razões, além de
novas necessidades de circulação, a um expressivo aumento populacional pelo incremento
da imigração. Lousada (2004) observa as melhorias dos espaços públicos através de nova
iluminação, calçamento e policiamento. Ora, essas medidas foram tomadas a partir de uma
necessidade de maior normatização dos usos que se fazia da rua, de novos limites para os
comportamentos que seriam aceitáveis em público. Pois bem, com a concretização dessas
medidas, em especial pela atuação enérgica da polícia, os usos dos espaços públicos foram
modificados. Aí, podemos notar que o espaço deixa de ser somente um reflexo, objeto da
consolidação e da demonstração das novas regras, para assumir também, a função de
sujeito influenciador de novos comportamentos e atitudes. O espaço urbano lisboeta
reorganizado e remodelado desfez a imagem de que o “português passeia pouco”, atraiu
inclusive as mulheres, que ficavam afastadas especialmente por causa da sujeira que
reinava na rua e apresentou novos lugares de passeio. “...as formas são tanto um resultado
quanto uma condição para os processos. A estrutura espacial não é passiva mas ativa ,
embora sua autonomia seja relativa, como acontece às demais estruturas sociais”
(SANTOS, 2002b, pg185).
Não nos parece uma simples coincidência, o fato de que as transformações das
práticas de sociabilidade tenham experimentado um período de profusão pouco antes do
momento em que novas regulamentações seriam estabelecidas nos espaço públicos das
principais capitais européias. Dessa forma, a própria autora toma inúmeros exemplos de
56
sociabilidades vividas no cotidiano lisboeta para demonstrar como os espaços públicos
foram rearrumados a partir de uma renovação do pacto que o fundara. Na verdade, as novas
utilizações sociais, inclusive uma “apropriação política” da rua, demandavam novas regras
e novos arranjos espaciais.
Todavia, as classes populares não eram as únicas que através de seus arraiais, de
suas festas religiosas, ou mesmo em simples encontros, que faziam com que a rua fosse um
espaço privilegiado para a sociabilidade. Especialmente após as melhorias concretizadas no
passeio público, como o calçamento das ruas e a inauguração da iluminação pública em
1780, além da criação da rede de vigilância policial, indivíduos de diversos grupos sociais
passaram a praticar o passeio urbano. Comprovando as alterações das regras de uso da rua,
bem como a questão já mencionada de que o espaço público muitas vezes não é tão livre
quanto parece, Lousada nos descreve uma medida tomada em 1787, que visava facilitar e
ampliar as práticas de sociabilidade urbana. Foi dada uma “ordem para que as prostitutas
não estejam na beira mar, passeio público, praça da Alegria, e outros sítios por onde há
maior concurso de gentes sérias que costumam ir àqueles lugares a recrearem-se”
(LOUSADA, 2004, pg 103).
Percebe-se assim, que com a mudança na organização dos espaços públicos de
Lisboa, os indesejáveis, no caso as prostitutas, eram impedidos pela polícia de atuar em
determinadas áreas que estivessem, agora, voltadas para outros tipos de atividades. Com a
mudança dos padrões de comportamento público, alguns antigos usos de determinados
espaços (públicos) não eram mais permitidos em Lisboa.
Evidentemente, as “melhorias” promovidas nas ruas de Lisboa durante o século
XVIII representavam uma valorização do espaço público. Nos dias atuais, Richard Sennett
aponta que o processo inverso está prevalecendo nas relações sociais urbanas. Através de
57
uma constante extrapolação das intimidades, a vivência dos espaços públicos está se
perdendo de tal forma, que presenciamos hoje, segundo Sennett, um verdadeiro “declínio
do homem público”. Dessa forma, expressões como “emuralhamento da vida social” ou
“recuo da cidadania” são recorrentes quando se pensa o espaço público nos dias de hoje. O
próprio sentido da palavra público parece ter sofrido uma séria distorção. Em vez de ser
vivenciado como o espaço da política, da lei, a qualificação de público parece atribuir ao
espaço uma idéia de que tudo é permitido, de que não existe um “dono”, e que, portanto,
podemos despejar nosso lixo na praia, colocar nossa barraca no meio da praça, ou mesmo
erguer as grades do condomínio bem avançadas sobre a calçada, sem que ninguém possa se
opor, já que a rua é “pública”.
Além disso, a falta de conservação, o espetáculo da miséria e o descontrole da
violência são ingredientes fundamentais para o esvaziamento da rua. Dessa forma, a
proliferação de espaços fechados de sociabilidade parece guardar uma relação próxima com
esse declínio do espaço público. Os setores sociais mais privilegiados buscam refúgio
através da criação de espaços privados que sejam afeitos ao lazer e à sociabilidade, ainda
que muito restrita, entre os quais o melhor exemplo é o do condomínio fechado. Neste
contexto, não se pode ignorar a difusão e a ampliação da importância dos shoppings para a
vida de muitos que vivem nas grandes cidades. “...novos arranjos físicos resultam em novas
formas de se construir a vida coletiva, novas imagens físicas e sociais da cidade” (GOMES,
2002, pg 174).
Os shoppings nos levam de volta ao debate que relaciona os usos do espaço ao
caráter de sua propriedade. Ainda que seja propriedade de grandes empresas, portanto um
equipamento urbano privado, o espaço do shopping pode nos apresentar sua dimensão
pública quando pensamos em seus usos. Assim, ainda que tenha horários para a circulação,
58
vigilância e restrições de diferentes tipos ao acesso, esses fatores não nos impedem de
continuar em busca da dimensão pública do shopping. Vimos que muitos desses fatores, ou
talvez sua totalidade possam ser verificados também na rua, a qual não se apresenta tão
livre quanto se imaginaria. Sendo que esta idéia de que na rua pode-se fazer qualquer coisa,
ou ter acesso a tudo, nos parece resultar da mudança radical do sentido daquilo que é
público, como nos referimos anteriormente.
For example, at the end of the last century, the boulevards and the streets
in Latin-American city centres were strictly controlled by the authorities.
The habits and clothing of the public were severely policed, and in certain
fashionable Buenos Aires streets, it was compulsory to wear a hat and a
suit! (CAPRON, 2003, p.218).
Embora permaneçam voltados para a sua função primordial, alguns espaços de
consumo são tomados por seus freqüentadores como espaços de sociabilidade. A
visibilidade que o espaço do shopping vem alcançando nos dias de hoje pode ser
demonstrada através das diversas manifestações que passaram a ocorrer nesses espaços,
como a dos estudantes das universidades públicas, de um grupo de “sem teto”, ambas no
Rio Sul, ou o protesto do movimento gay de São Paulo no shopping Frei Caneca em 2003,
que atraiu 3 mil pessoas e ficou conhecido no país e no exterior. Da mesma forma, verificar
a presença expressiva de grupos de jovens, e até de gangues em shopping centers não é
tarefa difícil. Esses grupos promovem uma verdadeira disputa territorial, produzindo uma
convivência nem sempre amigável. Além disso, as inovações da iluminação, as vitrines, as
atrações musicais da praça de alimentação, configuram um clima de celebração, em que
não se está apenas comprando, mas se divertindo. Passear no shopping transforma-se assim,
em um exercício de sociabilidade, através do movimento de ver e ser visto. Aquilo que no
século XIX era conhecido como “fazer o chiado” se aproxima bastante deste tipo de
sociabilidade que verificamos nos shoppings atualmente.
59
...admiravam-se as fachadas, as luzes e o movimento dos cafés e teatros,
as montras das lojas com as suas mercadorias(...) estabelecimentos onde
se vêm expostas as alfaias e jóias mais preciosas, obras de ouro e prata de
toda espécie, em armários envidraçados, suspensos dos dois lados da
porta. Em frente desses estabelecimentos há sempre muita gente
pasmada”, especialmente senhoras que tinham como uma de suas
principais distrações, “passear de carro parando às portas das lojas para
ver tecidos e jóias (...) Este tipo de passeio dará origem, na segunda
metade do século XIX, à expressão “fazer o Chiado”, em que ver e ser
visto em público se torna um dos ritos de sociabilidade (LOUSADA,
2004, pg(s).104 e 105).
Segundo (Lousada 2004) os cafés e as tabernas seriam, dois exemplos de espaços
semi-públicos, já que a acessibilidade desses locais pode ser tão livre quanto a da rua, ainda
que o dono possa promover restrições a este acesso. Todavia, nada impede que na rua
também ocorram restrições ao acesso de determinados espaços, que já vimos sob a forma
de novas regulamentações do espaço urbano de Lisboa, como no caso das prostitutas que
foram proibidas de se concentrarem nos sítios em que passeavam “gente séria”.
Próximos aos principais mercados da cidade ou em áreas circundantes dos
maiores cais de Lisboa, a posição estratégica garantia o grande afluxo de pessoas a esses
estabelecimentos. Entre a casa (espaço privado por excelência) e a rua (espaço público por
excelência) havia no meio do caminho o café ou a taberna (espaços público-privados ou
semi-públicos), dependendo da posição social. O café e a taberna, no caminho de casa ao
trabalho, tornaram-se locais de sociabilidade masculina, espaços de debates políticos e de
divertimento. As tabernas atraíam um contingente maior, eram mais populares e
conservavam os velhos hábitos de bebida. Tinham inclusive um papel fundamental na
alimentação das classes populares. Os cafés eram espaços mais requintados, oferecendo
produtos mais caros, para uma clientela mais refinada.
O jogo era uma das principais atividades praticadas nos cafés e tabernas, ainda
que o regimento dos taberneiros lisboetas de 1797 estabelecesse que era proibido este tipo
60
de divertimento nas casas de bebida. Entretanto, mesmo assim o jogo continuou tendo
papel fundamental na sociabilidade desses espaços, desde os cafés mais aristocráticos, até
as tabernas mais populares. Os jogos eram diferenciados através dos grupos sociais, o que
se apresentava claramente nos locais em que eram praticados. Nos cafés das áreas mais
requintadas da cidade praticavam-se os jogos de rico, os quais não se verificavam nas
tabernas da periferia. A sociabilidade nos cafés se tornou tão importante para a aristocracia,
que os manuais de civilidade passaram a incluir situações de conduta para esses espaços
públicos comerciais.
Tanto as tabernas como os cafés, além de espaços de sociabilidade, tornaram-se
também centros de discussão política, de conspiração, que mereceram até atos de vigilância
e espionagem, pois constituíam-se também como espaços influenciadores da opinião
pública. Assim, podemos concluir que os cafés e as tabernas fizeram parte ativa não só das
novas concepções de público e privado, do rearranjo do espaço urbano de Lisboa, mas
também de uma cultura política que se desenrolava através das discussões travadas nesses
espaços.
A proliferação dos cafés, e sua tomada como locus de sociabilidade também fez
parte da vida brasileira, notadamente no Rio de Janeiro do século XIX.
Nos pontos principais da cidade existiam o Café Americano e o Café do
Globo, na rua Primeiro de Março; o Café Central na rua da Quitanda, o
Café Comercial na rua do Hospício, o Café Flor da América na rua Sete
de Setembro; o Café Espanha no largo do Rossio, o Café Amorim na rua
do Rosário, esquina do beco das Cancelas, o Café Império na rua
Gonçalves Dias e o Café Vitória no largo da Carioca; além de mais 362
botequins onde se vendia café, bebidas e se explorava o jogo de bilhar,
estabelecidos em várias ruas da cidade desde a Ponta do Caju ao Jardim
Botânico (SENNA, 2006, pg.196).
Interessante observar que a mesma diferenciação social feita por Lousada, em
Lisboa, entre os Cafés e as tabernas, aparece no Rio de Janeiro entre os Cafés, reservados à
61
“elite”, e os botequins, evidentemente mais populares. Referindo-se ao Café do Rio,
Ernesto de Senna descreve um pouco da importância que a sociabilidade trazia aos cafés
cariocas.
Tornou-se ele27 o centro da nossa melhor sociedade, o ponto predileto das
classes armadas e acadêmicas, o local escolhido para os encontros de
negócios comerciais e, porque não dizê-lo, o canto da esquina, onde
numerosos adoradores do Deus vendado, se desvendavam à passagem das
suas garridas Dulcinéias (...) O Café progredia cada vez mais e o Brito28 já
planejava novas disposições internas, para acomodar maior número de
mesas (...) sempre teve a original mania de fazer modificações na
disposição do mobiliário e quando o interpelavam respondia “é para ficar
mais moderno... (SENNA, 2006, pg. 198).
Assim, a percepção “original” da necessidade de constantes modificações na
organização do espaço interno do estabelecimento, parece explicar em parte o sucesso do
estabelecimento, advindo do próprio fato de ampliar a atratividade, especialmente das
“pessoas de bem”. Destacando o século XVIII, Richard Sennett também observa a
importância da sociabilidade nos bares e cafés, reforçando o momento de chegada destas
formas de relações sociais em espaços de consumo às camadas mais pobres.
À medida que as cidades cresciam e desnvolviam suas redes de
sociabilidade independentes do controle real direto, aumentaram os locais
onde estranhos podiam regularmente se encontrar. Foi a época da
contruções de enormes parques urbanos, das primeiras tentativas de se
abrir ruas adequadas à finalidade precípua de passeio de pedestres, como
uma forma de lazer. Foi a época em que cafés e mais tarde bares e
estalagens para parada de diligências tornaram-se centros sociais; época
em que o teatro e a ópera se abriram para um grande público graças à
venda aberta de entradas, no lugar do antigo costume pelo qual
patrocinadores aristocráticos distribuíam lugares. A difusão das
comodidades urbanas ultrapassou o pequeno círculo da elite e alcançou
um espectro muito mais abrangente da sociedade, de modo que até mesmo
as classes laboriosas começaram a adotar alguns hábitos de sociabilidade,
como passeios em parques, antes terreno exlusivo da elite, caminhando
por seus jardins privativos ou “promovendo” uma noite no teatro
(SENNETT,1993, pg.32)
27
28
O Café do Rio
O autor refere-se ao português João Inácio de Brito, proprietário do estabelecimento em questão.
62
Desses exemplos tão distante temporalmente, podemos ilustrar a complexidade
das relações sociais, mais especialmente da sociabilidade, que se desenrolam de modo
diferenciado em diferentes ambientes, imprimindo lógicas e sentidos na organização de
cada um desses espaços. Se por um lado há que se considerar que o shopping não tem
exatamente qualquer importância na produção de uma cultura política, ou de debates
públicos relevantes, como os cafés e as tabernas citados, por outro lado podemos concluir
que sua presença cada vez mais comum e funcional na vida urbana nos impõe a
necessidade de lançarmos um olhar mais atento, ao modo como este equipamento
influencia reformulações na arrumação do espaço urbano e no próprio desenrolar da
sociabilidade e das representações da sociedade. Don Mitchell traz uma grande
contribuição a este debate, na medida em que identifica duas perspectivas predominantes de
enxergarmos o espaço público nas cidades contemporâneas:
In the first of these visions, public space is taken and remade by political
actors; it is politicized at its very core; and it tolerates the risks of disorder
(including recidivist political moviments) as central to its functioning. In
the second vision, public space is planned, orderly, and safe. Users of this
space must be made to feel comfortable, and they should not be driven
away by unsightly homeless people or unsolicited political activity
(MITCHELL, 1995, pg.115).
Ainda que os shoppings não possam mais ser tomados como exemplos de espaços
herméticos, perfeitamente seguros e “livres” das mazelas do caos urbano, a segunda
perspectiva observada por Don Mitchell constitui-se, de modo geral, em um aspecto
importante da realidade dos shoppings. Refletindo exatamente sobre a ambigüidade da
classificação do espaço do shopping, Marcelo Lopes de Souza ilumina o caminho da
discussão afirmando que: “Um passo adiante na direção do espaço “público” e tem–se algo
que poder-se-ia denominar de espaço “público”- privado: é, justamente, o caso do shopping
centers” (SOUZA, 2000, pg.204).
63
Nem tão intimistas quanto os condomínios residenciais fechados nem tão
democráticos quanto a rua, os shoppings nos impõem a necessidade de aprofundarmos os
olhares para os “novos” movimentos que vêm tornando a análise do urbano cada vez mais
complexa. Além disso, o sucesso e a conseqüente importância que estes equipamentos
alcançam progressivamente nas cidades contemporâneas, nos confirmam a validade e a
relevância de tomarmos o shopping como objeto de estudo.
A construção do West Edmonton Mall no Canadá, em 1981, pode ser interpretada
como a consagração do modelo do shopping center. Não somente pelo tamanho29, como
também pela importância que o shopping passou a ter para a economia da cidade e para a
vida dos seus habitantes. O West Edmonton superou de longe os centros comerciais
tradicionais, não só pela diversidade de lojas, ou pela amplitude de seus corredores, de suas
alamedas e praças, como também pelos serviços e atrações que oferece. Com suas ruas
temáticas, parque de diversões e um hotel imponente, este shopping canadense diversificou
sua prestação de serviços de um modo até então nunca visto. Um outro fator importante
para o sucesso do West Edmonton são as diversas opções de lazer e entretenimento.
Competições de skate, apresentações acrobáticas de motociclistas, além de exposições
artísticas e shows musicais atraem especialmente o público jovem.
Muitos jovens, alguns até de outras cidades próximas a Edmonton, viajam grandes
distâncias para se socializar e passear. Neste sentido, o West Edmonton tornou-se, também,
especialmente para os jovens, um local para se divertir, encontrar amigos, conhecer outros
jovens, ou seja, o shopping transformou-se em um importante espaço de sociabilidade.
“…tend to have more leisure time and less money than most other segments of society,
29
O West Edmonton atravessou duas décadas com o título de maior shopping do mundo.
64
their presence in shopping malls is probably oriented more toward social activities than
toward purely economic ones” (SIJPKES et al. 1983, pg 17 in: HOPKINS 1991, pg 274).
Estes eventos trazidos e incentivados pelas administrações dos shoppings
demonstram que no passado, a sociabilidade que se realizava timidamente por iniciativa
dos freqüentadores, poderia transformar-se em atividades interessantes, que teriam
inclusive potencial para ampliar, ainda que indiretamente, os lucros das lojas e do shopping
como um todo.
Os shoppings são, em última análise, literalmente, teatros do consumo,
montados a partir de um cuidadoso planejamento, concebido para
promover o drama do varejo. No entanto, a introdução formal de
atividades sociais (lazer, entretenimento) no shopping, é mais uma
confirmação do papel social dos centros de consumo (HOPKINS, 1991,
p.270).
Neste sentido, passear no shopping deixa de ser apenas o movimento de compras
em lojas dispostas lado a lado, para ter também uma função em si mesmo, a de participar de
um espaço propício ao encontro, em que ver e ser visto torna-se um ritual de sociabilidade.
Com isso, ampliam-se tremendamente as possibilidades de abordagem do shopping, diante
de sua complexificação em termos sociais. Tornando-se mais do que um espaço de
consumo e passando a fazer parte do cotidiano da cidade, os shoppings ganharam cores de
representações, de identidades, de apropriações simbólicas e de sociabilidade. Sua
expansão nos grandes centros urbanos, inclusive para áreas tradicionalmente menos
favorecidas, é um fato que hoje assistimos nos subúrbios e nas Regiões Metropolitanas de
Rio e São Paulo, por exemplo. Em bairros como Campo Grande e Del Castilho, ou em
municípios como Duque de Caxias, os shoppings assumem uma função que a princípio não
se imaginaria, viabilizando uma das parcas possibilidades de lazer nessas áreas. Da mesma
65
forma, acabam revitalizando determinadas áreas e promovendo a valorização de algumas
regiões que antes estavam degradadas.
A expansão do shopping funciona como uma espécie de imã para o
desenvolvimento de seu entorno. A construtora Klabin Segall vai lançar
um condomínio com oito prédios de apartamentos de dois e três quartos e
estrutura semelhante a dos grandes condomínios da Barra... 30
No bairro de Cachambi, mais precisamente na antiga Avenida Suburbana, atual
Avenida Dom Helder Câmara, encontra-se o segundo maior shopping da cidade, o Norte
Shopping. Tendo completado 20 anos em 2006, o shopping passa pela maior reforma desde
sua construção. A valorização do bairro de Cachambi foi tanta, que prédios residenciais
com ampla infra-estrutura estão sendo construídos próximos ao shopping. Até o nome da
avenida foi trocado, já que “suburbano” no Brasil possui um caráter reconhecidamente
pejorativo, e, além disso, as comparações entre as novidades implantadas no shopping e na
região com aquelas já presentes em áreas mais abastadas como a Barra da Tijuca e a Zona
Sul são recorrentes. Uma das novas áreas do Norte Shopping será ocupada por uma
academia de ginástica. “Estamos investindo 20 milhões de reais nessa academia, mais do
que investimos na da Barra (16 milhões de reais). Termos esteiras com TV de plasma e
tudo o mais que há nas academias da Zona Sul”, diz um dos empresários da rede.31
Assim, além da grande ampliação dos usos dos shoppings outro fator marcante é a
inclusão de camadas sociais menos privilegiadas financeiramente na festa do shopping.
Com a disseminação destes equipamentos pelos centros urbanos, originada pela renovação
da própria representatividade do shopping na cidade, ocorreu paralelamente a renovação da
imagem de alguns bairros habitualmente desvalorizados. Neste sentido, é inegável a
importância que os shoppings adquiriram no que diz respeito à produção do espaço urbano.
30
31
Veja Rio – 6 de Dezembro de 2006.
Veja Rio – 6 de Dezembro de 2006.
66
O shopping é hoje um grande representante da histórica união entre sociabilidade
e consumo, aliás, foi assumindo essa união publicamente, que os shoppings chegaram a ter
a importância que têm hoje nas mais diferentes cidades do mundo. Cada vez mais, o espaço
de passagem, impessoal, pasteurizado e homogêneo socialmente, vai ganhando contornos
mais humanizados no momento em que o consumidor é, muitas vezes, na verdade, um
freqüentador. Este personagem, que também consome, tem o espaço do shopping como um
ponto de referência para o seu cotidiano, para seus afazeres, para o lazer e para a
sociabilidade. Reafirmamos que a partir desta ampliação do papel que os shoppings
exercem na cidade, seu espaço, suas representações se modificaram. Nos parece que as
reflexões que lhe dizem respeito devem seguir o mesmo caminho.
1.6 O Brasil como exemplo da renovação da representatividade do shopping
na cidade
Desde a implantação do primeiro shopping, reconhecido pela ABRASCE32, em
1966, o Iguatemi, em São Paulo, o número de empreendimentos deste tipo cresceu
significativamente no Brasil. Por razões de viabilidade dos dados, trabalharemos com os
shoppings que são reconhecidos pela ABRASCE. Além de preencher os requisitos mínimos
que a ABRASCE estabelece, o shopping associado paga uma taxa de admissão, uma
contribuição mensal regular e possíveis contribuições extraordinárias. Criada em 1976,
desde então a ABRASCE regula os empreendimentos que podem obter o título oficial de
32
ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Center.
67
Shopping Center. Os requisitos para receber o título são determinados pelo Selo
ABRASCE:
O Selo Abrasce é conferido aos empreendimentos admitidos como
membros na categoria de Associados Empreendedores. Para tanto, o
shopping
deve
satisfazer
os
seguintes
requisitos:
- Ser constituído por um conjunto planejado de lojas, operando de forma
integrada,
sob
administração
única
e
centralizada;
- Ser composto por lojas destinadas à exploração de ramos diversificados
ou especializados de comércio e prestação de serviços;
- Ter locatários lojistas sujeitos a normas contratuais padronizadas, sendo
estabelecido em contrato de locação da maioria das lojas cláusula
prevendo aluguel variável de acordo com o faturamento mensal do lojista;
- Possuir lojas-âncora ou características estruturais e mercadológicas que
possam atrair um fluxo de consumidores essencial ao bom desempenho do
empreendimento;
- Oferecer estacionamento compatível com a área de lojas e à afluência de
veículos;
- Estar sob controle acionário e administrativo de pessoas ou grupo de
comprovada idoneidade e reconhecida capacidade empresarial
(www.abrasce.com.br).
Nos primeiros dez anos, entre 1966 e 1976, foram construídos 8 shoppings. Em
apenas cinco anos, entre 1976 e 1981, foram construídos mais 8 shoppings, aferindo-se
portanto, um aumento no ritmo de implantação de shoppings.
No entanto, foi a partir da década de 1980 que os números começam a
impressionar. Em 1981 eram 16 shoppings reconhecidos pela ABRASCE. (Somente em
1980, o Rio de Janeiro terá a inauguração de um shopping reconhecido pela ABRASCE, o
Rio Sul.) Dez anos depois, em 1991, havia 90 empreendimentos. Nos cinco anos seguintes,
o aumento foi de 57. Entre 1996 e 2001, houve o maior crescimento da história da indústria
de shoppings no país; foram construídos 93 shoppings. Podemos visualizar esses dados no
gráfico abaixo:
68
Núm ero de Shoppings no Brasil
263
2006
252
2002
240
2001
147
1996
90
1991
34
1986
16
1981
8
1976
1971
2
1966
1
Fonte: ABRASCE 2006.
Há 168 shoppings reconhecidos pela ABRASCE, e cerca de outros 400
espalhados pelo país, e que se intitulam shopping centers. Na Região Sudeste, localizam-se
mais de 60% dos shoppings brasileiros, enquanto que na Região Norte, estão apenas 2%
dos shoppings. Somente o estado de São Paulo, possui 61 shoppings. Exatamente o mesmo
número que as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul somadas. Desta forma, deve-se
atentar para o fato de que se na Região Sudeste o shopping center é um equipamento
urbano por demais utilizado e conhecido, esta situação não se repete com a mesma
intensidade no restante do país. Na verdade, a distribuição dos shoppings pelo país, segue
assim, a concentração de importância econômica, que historicamente privilegia a Região
Sudeste33. A partir dos números que foram apresentados, temos então, uma visão mais clara
do estágio em que a indústria de shopping centers se encontra no país. Apesar de
33
Ver Mapa em anexo sobre a distribuição de shoppings pelo país.
69
acreditarmos na grande importância dos shoppings para as cidades brasileiras, reiteramos
que essa importância pode ser considerada relativa, já que apesar de estarem concentrados
nos estados mais populosos e relevantes, há 6 estados (MT, TO, RO ,AC, AP e RR) que
não possuem nem sequer um shopping reconhecido pela ABRASCE.
Além disso, podemos concluir (através dos mapas em anexo) que mesmo no Rio
de Janeiro, que aparece com um dos maiores números de shoppings (reconhecidos pela
ABRASCE), tanto no estado como na cidade do Rio, ainda existem inúmeros “vazios de
shoppings”. Todavia, lembramos que há centenas de “shoppings” espalhados pela cidade e
pelo estado do Rio de Janeiro (assim como por quase todos os outros estados), que se
intitulam como tal, mas que não são reconhecidos pela ABRASCE.
Porcentagem de Shoppings reconhecidos pela ABRASCE por Região
Norte
2%
Centro-Oeste
7%
Nordeste
9%
Norte
Centro-Oeste
Sul
18%
Sudeste
64%
Nordeste
Sul
Sudeste
Fonte: ABRASCE 2006
70
Para além das quantificações que nos permitem verificar a dimensão dos
shoppings no Brasil, pretende-se destacar o fato de que esses espaços obtiveram não só uma
considerável ampliação de suas funções, como também ganharam novos sentidos, novos
arranjos, os quais parecem apontar para a necessidade de uma ampliação das possibilidades
de análise desses espaços de consumo, no Brasil e no exterior.
A chegada do shopping center ao Brasil na década de 1960 só foi possível a partir
do momento em que “uma dinâmica de acumulação verdadeiramente capitalista teve
condições de estabelecer-se no país” (BIENENSTEIN, 2002, pg. 75). Não se pode esquecer
que neste período o país experimentava um processo intenso de urbanização, concentrado
no sudeste brasileiro, além da constituição efetiva daquilo que Milton Santos chamou de
“Meio técnico-científico e informacional”.34 A partir daí, o desenvolvimentismo
característico deste momento da história brasileira, levou o país a uma maior inserção no
projeto de internacionalização econômica comandado pelas empresas multinacionais, o
qual impunha um novo modelo de consumo.
...com o atual capitalismo da organização comandado pela presença das
firmas multinacionais, o processo de acumulação do capital não poderia
mais fazer-se sem que tais grandes firmas pudessem ir buscar, seja onde
for, as condições para a obtenção de um lucro maior (...) Isso não poderia
ser obtido se não houvessem ocorrido, paralelamente, diversos processos
de internacionalização: do capital, da tecnologia, do mercado dos bens e
do mercado de trabalho, da educação e das preferências e gostos, inclusive
na alimentação (SANTOS, 2002b, pg. 208;209).
34
“O meio técnico científico e informacional é marcado pela técnica, ciência nos processos de modelação do
território, essenciais às produções hegemônicas, que necessitam desse novo meio geográfico para sua
realização. A informação em todas as suas formas, é o motor fundamental do processo social e o território é,
também, equipado para facilitar sua circulação” (SANTOS, 1993, p.56).
71
Pode-se entender a inauguração do Shopping Iguatemi, em 196635, na cidade de
São Paulo, como representativa não apenas de um novo modo de fazer compras, ou de uma
modificação importante no cenário urbano paulistano. Na verdade, podemos interpretar que
naquele momento, a maior cidade do país assistia o nascimento de um importante
representante do processo de “modernização” que invadia o país em diversos setores. Trinta
anos depois, o shopping center já seria considerado “a forma predominante de aglomeração
da atividade comercial com vistas à sua reprodução ampliada” no país (PINTAUDI in
BIENENSTEIN, 2002, pg. 77).
1.6.1 A(s) cidade(s) (brasileiras) no shopping – a publicização dos
empreendimentos pelo país, através da introdução do lazer, dos serviços e da
sociabilidade.
Nas décadas de 1960 e 1970, os shoppings não possuíam expressão significativa
no Brasil. Eram apenas alguns poucos centros de compras, elegantes, convenientes para os
automóveis e para os indivíduos mais abastados. A discrição dos shoppings àquela época
pode ser exemplificada não só pelo parco número de unidades, bem como por sua ausência
na segunda cidade mais importante do país. Somente em 1980, o Rio de Janeiro entrou na
rota da indústria dos shopping centers. Estava em curso o processo de maturação da idéia
35
O Shopping do Méier, inaugurado em 1963 na rua Dias da Cruz, principal área commercial do Méier,
bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, se intitula como “o primeiro shopping do Brasil”. Na época
de sua implantação o “Shopping” do Méier apresentava as características típicas de uma galeria, não tendo,
por exemplo uma administração única. Até hoje, este centro commercial não é reconhecido como um
shopping center. Alguns dos motivos a serem considerados podem ser o pequeníssimo estacionamento para
apenas 250 carros, e as diversas lojas que possuem uma de suas portas voltada diretamente para a rua. Além
disso, só há duas lojas âncora (Lojas Americanas e C&A), o que é consideredo como bem abaixo do padrão.
O Shopping Center Lapa, localizado na cidade de São Paulo, apesar de ter sido inaugurado em 1968, só foi
reconhecido pela ABRASCE como tal em 1994, não aparecendo nos registros, portanto, como um dos
primeiros shoppings da cidade (e do Brasil). O Shopping Gilberto Salomão se intitula “o primeiro de
Brasília”, título que oficialmente pretence ao Shopping Conjunto Nacional de Brasília, por motivos
semelhantes aos que justificam o caso do Shopping do Méier.
72
no país. Nos anos 80, houve o primeiro momento de grande expansão dos shoppings pelo
Brasil. Avaliamos que esta expansão possuía muito mais um caráter quantitativo e de
ampliação das áreas cobertas pelos shoppings. Queremos dizer, que a composição do
empreendimento e mesmo sua capacidade de atrair freqüentadores, não foram
dramaticamente modificados. A essência do shopping permaneceu a mesma, falamos,
ainda, de apenas um centro de compras. “Foi, entretanto, somente a partir dos anos 90, que
o modelo shopping center ganhou tamanha visibilidade, sem falar que, nesta mesma
década, verificamos uma mudança significativa no “perfil” destes empreendimentos”
(MAIA, 2002, pg.126).
É evidente que a ampliação da indústria de shoppings no Brasil, ocorrida como
vimos, com maior vigor, a partir de 1996, segue a lógica administrativa de um
planejamento que leve à reprodução ampliada do capital, principalmente através do
monopólio do espaço. É importante lembrar também, que novas necessidades de consumo,
novos gostos e hábitos passaram a ser apresentados e saciados nos shoppings. Todavia, não
se pode esquecer que a degradação dos espaços públicos é um fator fundamental para a
compreensão dessa proliferação de shoppings no país.
1.6.1.1 – A degradação da rua: Em fuga do (no) espaço público.
Retomando esta discussão, que lançamos aqui no item 2.5, a degradação dos
espaços públicos passa, em diversos países, entre eles o Brasil, de modo inevitável, pelo
definhamento da civilidade e com esta do “declínio do espaço público”. Grande parte dos
73
cidadãos de metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo se vêem amedrontados pelo
descontrole da violência urbana, que também expõe a incompetência e outras mazelas que
mancham as “autoridades”. Coloco entre aspas, pois no Rio de Janeiro, por exemplo,
muitas vezes (e cada vez mais) as autorizações ou proibições parecem não ter origem nos
estabelecimentos em que se encontram as pessoas que elegemos democraticamente, e que,
portanto, em tese, são as autoridades legais. Ao andar pelas ruas das metrópoles nacionais
sabe-se da possibilidade real de encontrar uma bala “perdida”, um assalto, e da certeza de
presenciar cenas deploráveis como crianças pedindo esmolas e famílias desabrigadas,
obrigadas a fazer no espaço público tudo aquilo que talvez gostassem de fazer
privadamente. Mais do que uma degradação dos espaços públicos, ou do que uma cena
constrangedora, espetáculos como estes traduzem a falência de uma sociedade, e
conseqüentemente de seus espaços mais importantes, mais cidadãos. Estes, aliás, os
cidadãos, estão diminuindo em progressão geométrica, seja porque se tornaram criminosos,
ou porque foram demitidos da vida social (e realizam atividades privadas no “espaço
público”, já que para estes até espaço privado foi negado) ou porque foram assassinados
pelo crime que se tornou um item cativo nas ruas. A descaracterização das bases
fundadoras do espaço público e a escassez cada vez maior de cidadãos fazem com que
conceitos como urbanidade e cidadania sejam simplificados, desvirtuados e até esquecidos.
Por outro lado, a idéia de violência urbana aparece como uma ferramenta importante na
tentativa de se tentar compreender este emaranhado de problemas. Marcelo Lopes de Souza
define violência urbana como:
...as diversas manifestações da violência interpessoal explícita que, além
de terem lugar no ambiente urbano, apresentem uma conexão bastante
forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de
sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se
concretizarem no meio citadino, ainda que não sejam exclusivamente
74
“urbanos” (a pobreza e a criminalidade são, evidentemente, fenômenos
tanto rurais quanto urbanos) e sejam alimentados por fatores que emergem
e operam em diversas escalas, da local à internacional. Vista a partir desse
ângulo, podem ser tomados como típicos exemplares da violência
propriamente urbana a violência no trânsito, os “quebra-quebras”, os
assassinatos debitáveis na conta de grupos de extermínio e os atos
violentos perpetrados por quadrilhas de traficantes de drogas ou gangues
de rua (SOUZA, 1999, pg.52).
A extensão dos exemplos da definição somada à continuidade ampliada desta
realidade violenta e urbana nos fornece, no mínimo, boa parte da explicação dos motivos
que levam até as camadas menos endinheiradas da população das maiores cidades do
Brasil, a tentarem fugir dos espaços públicos. Faço este destaque porque é mais comum, e
numericamente mais expressivo, pela própria situação econômica, que as classes mais
privilegiadas economicamente promovam a chamada “auto-segregação”. No entanto, a
constatação da impunidade, e da conseqüente gravidade da situação, fazem com que os
condomínios, as grades e as câmeras de segurança também façam parte da paisagem
suburbana. “...são36 como eram as ruas antes que a indiferença da polícia e os
supercautelosos
defensores
dos
direitos
individuais
permitissem
que
qualquer
comportamento, mesmo que anti-social, seja permitido” (RYBCZYNSKI, pg.191, 1995).
O trabalho de Rosemere Maia, intitulado “Shopping Center: O afrouxamento da
promessa de assepsia e o lugar da pobreza nos templos de consumo das cidades
contemporâneas”, nos fornece uma visão diferenciada da realidade dos shoppings nas
grandes cidades de um país como o Brasil. Imaginar que os shoppings estão absolutamente
livres do contato com as mazelas de cidades em que se verifica uma séria “Fragmentação
do tecido sóciopolítico-espacial”37 é ignorar o próprio cotidiano atual de muitos shoppings
brasileiros, por exemplo. Os grupos de pedintes utilizam a estratégia de se separarem,
36
O autor está se referindo aos shoppings.
Expressão introduzida pelo Professor Marcelo Lopes de Souza, a qual incorpora a dimensão espacial na
análise e engloba “...um corolário de problemas...” (SOUZA, 1999, pg.180).
37
75
portanto não andando em grupos, para não chamar a atenção dos seguranças do shopping, e
disfarçam seus objetivos. Sentam na Praça de Alimentação, observam o movimento e
realizam uma abordagem “sutil”, como se fosse uma pessoa fazendo uma pergunta a outra,
ou mesmo sentando para conversar. Os assaltos em shoppings vêm aumentando, até por
conta do grande aumento no número desses empreendimentos, e também por causa do
aumento progressivo da criminalidade nas cidades.
“Uma colega minha disse outro dia que estava na fila do Mcdonald’s e
havia garotos pedindo dinheiro para comprar sanduíches. Ela se sentiu
incomodada e não concordou em dar dinheiro para os garotos, que
começaram a ameaçá-la. Uma outra moça que estava na fila, vendo a
situação, resolveu chamar um segurança que estava próximo, e questionálo sobre sua omissão em afastar os garotos. O segurança explicou que não
estão mais fazendo nada, pois senão ficam “jurados” de morte pelos
bandidos que comandam uma favela por aqui” (Freqüentadora do
Iguatemi)38.
Assim, ainda que acreditemos que os fatores que levaram o shopping a se tornar
mais do que um centro de compras, se estendam muito além das questões relativas à
violência urbana e, de modo geral, à degradação dos espaços públicos, não deixamos de
considerar que estes, são aspectos que mantém uma estreita relação com o sucesso dos
shoppings, o que é ampliado em cidades “mais do que violentas”, como o Rio de Janeiro e
São Paulo. Os congestionamentos, as altas temperaturas e os altíssimos índices de poluição
complementam o quadro do “caos” urbano das grandes metrópoles, e que também mantém
uma ligação importante com a proliferação e o aprofundamento das funções dos shoppings.
“O GLOBO teve acesso a escutas telefônicas feitas pela polícia com autorização judicial,
mostrando a ação de uma dessas quadrilhas. Em uma das ligações, o bandido vai entregar a
cocaína num shopping na Barra” (www.oglobo.com.br - 26 de Outubro de 2003).
38
Entrevista realizada pelo autor.
76
1.6.1.2 – O abrigo e a festa no shopping
Como vimos anteriormente, entre 1991 e 2001 foram construídos cerca de 200
shoppings no país, sem contarmos aqueles que não são reconhecidos pela ABRASCE. Os
50 shoppings que existiam no país em 1991, já eram 147 em 1996 e chegaram a 240 em
2001. Além do aumento no número de empreendimentos, pode-se verificar que desde a
metade da década de 1990, vem ocorrendo uma enorme ampliação das opções de lazer e
serviços nos shoppings brasileiros. Esta geração de “novos” shoppings já nasceu sob a
égide do modelo de concentração de sociabilidade, lazer e serviços nos shoppings.
Uma das características mais marcantes, na nova safra de shoppings, é a
concepção do perfil da loja - âncora. Atualmente, as âncoras apresentadas
oferecem grandes ofertas de áreas para lazer (casas de espetáculos,
cinemas e parques infantis), e de áreas de abastecimento e prestação de
serviços (academia de ginástica, mercado de frutas, praças de
alimentação)(...)Entende-se lazer, como alimentação, cinemas/teatros,
enfim, diversão, voltado para todas as faixas etárias (CARVALHO, 2005,
pgs176 & 198).
As lojas-âncora correspondem às grandes lojas, que têm clientes cativos, que por
si só atraem público. No entanto, hoje, a importância do lazer, dos serviços e da
sociabilidade para os shoppings é tão grande, que estes componentes já são considerados
“âncoras” dos shoppings. Por outro lado, os shoppings criados nas décadas anteriores,
sofreram modernizações para se adequar à nova concepção de shopping. No caso do Rio de
Janeiro, o Barra Shopping introduziu opções de lazer como rinque de patinação e três
cinemas logo no início de suas atividades em 1981. Todavia, a sociabilidade e os serviços
não ocupavam uma posição expressiva no espaço do shopping. Nada comparável ao Barra
Shopping de hoje, que além de ser o maior shopping da cidade, possui diversos espaços
afeitos à sociabilidade, como suas 4 praças de alimentação, além de uma programação
77
permanente de eventos. Outro ponto a ser destacado em relação ao Barra Shopping, referese à sua recente “união” com o New York City Center, um verdadeiro complexo de lazer
com restaurantes da moda, 18 salas de cinema e um grande espaço em que se observam
grupos de adolescentes, jovens e namorados que se encontram no “New York”.
Destacamos que, o Barra Shopping “evoluiu”, para se tornar um
complexo multiuso, agregando operações que atraem público em
diferentes horários, ao longo dos sete dias da semana. Os espaços de lazer
e entretenimento são o grande atrativo no horário noturno. Durante o dia,
além do comércio, o espaço apresenta inúmeras opções de prestação de
serviços, tais como: bancos, feiras e clínicas (CARVALHO, 2005,
pg.159).
Durante nossas idas ao Barra Shopping, pudemos testemunhar uma ocasião que
nos parece ser bastante ilustrativa no que se refere à presença marcante da sociabilidade no
shopping. Mais precisamente no New York City Center, que se uniu (foi acoplado) ao
Barra Shopping, presenciamos uma grande festa de carnaval.
78
Evidentemente, como estávamos em plena segunda-feira de carnaval, as lojas
estavam fechadas, exceções feitas às lanchonetes e aos restaurantes, que ao contrário,
aproveitaram para faturar alto. Havia uma multidão de pessoas dançando, cantando e
brincando, especialmente próximo ao palco montado para o show de uma banda que tocava
marchinhas de carnaval e música baiana, e que no dia 20 de Fevereiro iria abrigar a
apresentação de uma escola de samba.
Nas fotos acima, exemplos de lojas fechadas enquanto a festa de carnaval ocorria
no shopping. A realização de uma única festa de carnaval em um shopping de uma cidade
como o Rio de Janeiro, seria no mínimo um evento com possibilidades duvidosas de lograr
êxito. O New York e o Barra Shopping registraram 4 dias grandes públicos para as festas
infantis de carnaval.
79
O caráter infantil da festa, ainda que jovens e adolescentes também tenham
participado, foi bem destacado no cartaz, ficando claro que os excessos comuns dos bailes
tradicionais de carnaval não seriam permitidos, e que o ambiente “familiar” do shopping
não seria alterado por conta da festa. Assim, registramos também a presença de seguranças
do shopping observando todo o movimento.
80
Com essas fotos, pudemos registrar um evento que exemplifica a diversidade de
usos e a própria modificação da dinâmica do espaço no shopping center. No caso da festa
de carnaval, até os corredores do shopping (espaços de circulação) foram tomados pelo
público que compareceu única e exclusivamente por conta deste evento, já que, como
vimos, as lojas estavam fechadas. A foto 5 é muito ilustrativa no que se refere à realização
de uma festa que é, a grosso modo, tipicamente brasileira39, e que possui referências mais
do que especiais com o Rio de Janeiro, em um ambiente que, a princípio, é fisicamente
padronizado em âmbito mundial. É imprescindível que lembremos que eventos festivos e
espaços de sociabilidade não são observados somente em épocas como o carnaval. E é
exatamente o fato dos shoppings se apresentarem cada vez mais como espaços de compras
afeitos à sociabilidade que trazem modificações expressivas nas principais razões que
levam as pessoas ao shopping, e fazem com que o perfil dos freqüentadores esteja se
tornando mais complexo.
39
É verdade que o “carnaval de shopping” não possui a menor representatividade como festa típica,
folclórica. Entretanto, guardando as devidas proporções, também não se pode esquecer que os desfiles na
Marquês de Sapucaí, cada vez mais industrializados e ricos e por demais afastados da cultura popular e do
folclore, já se acoplaram ao mesmo mercado global no qual o shopping exerce uma outra função.
81
Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de Mercado
– IPDM 40, pode-se verificar esta ampliação da representatividade do shopping no cotidiano
das grandes cidades brasileiras. Em comparação com uma pesquisa semelhante realizada
em 1998, percebe-se que os freqüentadores visitam menos lojas e são mais objetivos
quando a intenção da visita é a compra. A taxa de conversão em venda, ou seja, a intenção
de ir ao shopping comprar e, a efetivação da compra, aumentou. Entretanto, o número de
lojas visitadas vem caindo, exatamente porque a intenção de ir ao shopping para comprar
vem perdendo pontos para outras motivações, como lazer, passeio e alimentação.
Freqüentar os cinemas dos shoppings faz parte da rotina de 69% dos entrevistados, um
aumento de 11% em relação à pesquisa de 1998. A expressiva diferença verificada no
tempo de permanência em relação à motivação de ida ao shopping nos fornece a noção da
importância das outras atividades que os shoppings vêm oferecendo.
Como demonstra o gráfico abaixo, quando o motivo da visita é a compra, o tempo
médio de permanência é de 79 minutos.
Todavia, este tempo mais do que dobra (2 horas e 45 minutos) quando nos referimos
àqueles que declararam ir ao shopping para aproveitar as opções de lazer.
40
A pesquisa acima referida foi encomendada pela ABRASCE ao Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de
Mercado – IPDM. Foram realizadas 1100 entrevistas com freqüentadores de 31 shoppings do Rio de Janeiro e
de São Paulo. Revista ABRASCE, setembro de 2003.
82
Principal Motivo de Visita a um Shopping Center -1998/2003- Fonte IPDM - 2003
16
Outros
23
11
Alimentação
10
2003
1998
31
Passeio Serviços Lazer
21
42
Compras
46
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
No gráfico acima, sobre a motivação principal para a ida ao shopping, observa-se
que o item “compras” supera o item “lazer, passeio e serviços” por uma diferença de apenas
11%. Na tabela abaixo, observa-se que diferentemente do que se poderia pensar, os cariocas
estão na frente dos paulistas no que se refere à freqüência semanal ao shopping. Além
disso, 64% dos cariocas são favoráveis a que os shoppings fiquem abertos todos os
domingos. Outra idéia, a princípio consolidada, e que cada vez mais perde força, é a de que
o shopping é um “espaço de jovens”. A pesquisa revela que na faixa etária a partir de 45
anos, o índice de freqüência semanal é igual ao dos grupos de até 19 anos e de 20 a 29 anos.
83
A comuníssima máxima de que os shoppings são “locais de ricos” também sofre
sérios abalos diante da pesquisa do IPDM. As classes B e C respondem por 82 % da
freqüência dos shoppings no Rio de Janeiro e em São Paulo. Se preferirmos, podemos
realçar o fato de que as classes C, D e E, que a princípio poderíamos pensar que estariam
quase que excluídas da dinâmica dos shoppings, respondem por quase 40% da freqüência
nos shoppings do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Assim, reafirmamos nossa pergunta fundamental, que se relaciona ao rótulo do
não-lugar comumente atribuído ao shopping. Elegemos como “catalisador” de nossas
discussões o conceito de sociabilidade, o qual pode ser muito útil na análise desses
empreendimentos, visto que já há algum tempo, os shoppings tornaram-se parte do
cotidiano de milhões de pessoas em diversas cidades de vários países.
No capítulo seguinte, faremos uma discussão conceitual à cerca dos conceitos de
lugar e de não-lugar, com o objetivo de preparar o caminho para uma análise deste
“shopping de hoje” através desses dois conceitos.
84
Capítulo 2
O rótulo do não-lugar: Uma breve revisão conceitual como um convite à ampliação da
reflexão sobre o shopping renovado pela sociabilidade
A rotulação dos shoppings como um exemplo do que seria um não-lugar tornou-se
quase um consenso nos trabalhos sobre esses centros de consumo nas ciências sociais. A
observação de que assim como aeroportos e auto-estradas, os shoppings parecem ser
idênticos em qualquer parte do mundo, muitas vezes serve como a única justificativa para a
adequação do rótulo. O perigo desta rápida associação se assenta ao nosso ver, em dois
85
aspectos principais: Primeiramente, o fato parecerem idênticos, não quer dizer que esses
espaços sejam exatamente idênticos. Aliás, nos parece quase impossível afirmarmos que
determinado espaço se apresenta exatamente igual a outro. Tomamos aqui o conceito de
espaço como “ ...um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de
objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e
os anima, ou seja, a sociedade em movimento” (SANTOS, 1992, p.21).
Ou seja, é extremamente improvável que a forma e o conteúdo que compõem de
modo indissociável o espaço geográfico, se repita completamente. Partindo desta idéia,
podemos lançar um olhar prospectivo para a discussão do não-lugar, que nos leva a
entender que mesmo aqueles ambiente regidos pela ordem de um modelo comum, com fins
à funcionalização, não podem ser tomados como a mesma “coisa”. A semelhança da forma
em prol de um reconhecimento visual e objetivo, que por sua vez condiciona determinados
usos e comportamentos, não é suficiente para subestimarmos a capacidade de diferenciação
das relações sociais enquanto produtoras de um conteúdo particular que se reveste em
forma, através também, de um modo particular. Subestimar esta capacidade é o segundo
aspecto do perigo de associarmos determinados espaços, os quais muitas vezes nem nos
ocupamos em estudar, como o não-lugar, conceito que muitas vezes é aplicado sem
qualquer aprofundamento em sua análise. Promove-se, então, a obstrução do caminho que
poderia nos conduzir a reflexões que possam clarear a discussão ultrapassando essas
associações, até certo ponto, simplistas.
Acreditamos que o shopping é um bom exemplo do que expressamos nas linhas
acima. Especialmente sobre este “novo shopping”, que foi abordado no capítulo anterior
deste trabalho, que agrega a sociabilidade como fator preponderante de sua “vida”,
acreditamos na necessidade de um olhar mais atento para as representações e significados
86
engendrados nestes espaços. Como já dissemos, a aparente clareza da pasteurização da
forma em função da praticidade, que leva muitas vezes a comportamentos e situações
repetidos, não deve encobrir a possibilidade de enxergarmos as diferenciações que nosso
olhar deixa para trás.
Especialmente com a ampliação das funções do shopping, que deixou de ser
apenas um centro de compras, para também se tornar um centro de lazer, sociabilidade e
serviços, estes espaços tornaram-se mais complexos. Assim, este capítulo pretende
desenvolver uma base conceitual para a discussão sobre a validade de se apresentar o
shopping como um não-lugar. Para isso, faremos uma breve revisão deste conceito, a qual
será antecedida por uma discussão do conceito de lugar.
2.1 As dimensões do Lugar
O status de “conceito-chave”, não reflete a atenção ou a importância dispensada
ao lugar no âmbito da geografia. Na verdade, se comprado aos conceitos de espaço,
território, região e paisagem, o lugar foi e de certa forma continua sendo por demais
esquecido no trabalho dos geógrafos. É interessante lembrar que local e lugar são tratados
muitas vezes como sinônimos. Na linguagem do senso comum isto talvez possa aparecer
como livre de causar qualquer tipo de confusão no entendimento do que se quer apontar.
Todavia, no campo das ciências sociais é importante que lembremos as diferenças
fundamentais que se podem estabelecer entre o lugar e o local.41 A idéia do local relacionase a uma noção cartográfica, ao sentido exato de apontar onde está alguém ou algo. O lugar
possui uma localização no espaço, contém o local, mas vai muito além dele. Para Susanne
41
“Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo
encontra-se em toda parte” (SANTOS, 2002, pg.314).
87
Langer, o lugar é culturalmente definido, já o local é uma qualidade incidental do lugar,
definida pela cartografia (in RELPH, 1976). LUKERMANN acredita que um lugar não é só
o onde de alguma coisa, mas é o local mais tudo que está implícito como o aspecto
essencial da base fenomenológica da geografia (in RELPH, 1976). É exatamente esta
dimensão do lugar que vai muito além do local, que se pretende explorar não somente como
base teórica, mas também como fomentadora de discussões próprias para este trabalho.
Apesar disso, o conceito de lugar não vem recebendo reflexões mais atentas no
campo das ciências sociais. Nos parece que ou há uma dificuldade prévia em trabalhar com
o conceito, por parte dos cientistas sociais, ou há um quase consenso de que o lugar não
traz questionamentos e esclarecimentos importantes para nos ajudar a compreender melhor
a lógica do espaço geográfico. Alain Bourdin parece acreditar na “...dificuldade que têm os
historiadores e os geógrafos, como também os sociólogos e antropólogos, em construir um
“paradigma do local” (BOURDIN, 2001, pg 25). Relph é mais enfático e específico quando
demonstra espanto não só com o desinteresse dos arquitetos, mas principalmente com o
fracasso dos geógrafos em explorar o conceito de lugar. Este fracasso, estaria relacionado
com o fato de que os geógrafos muitas vezes acreditam que sendo o lugar um conceito
considerado importante para a geografia, necessariamente deva possuir uma história de
discussões bem estabelecidas e elucidadas (RELPH, 1976).
Para efeito de análise, dividimos a discussão do conceito de lugar em três partes,
que correspondem a três diferentes abordagens deste conceito na geografia. Começamos
com a corrente de pensamento conhecida como Geografia Humanista, a qual promoveu
ampliação sem precedentes nas reflexões sobre o lugar.
88
2.2 Considerações a respeito do conceito de lugar na perspectiva da
Geografia Humanista
A quantificação em geografia originou-se especialmente da ciência cartográfica,
tendo como base o positivismo lógico. As técnicas e os métodos quantitativos se
impuseram como detentores da condição de legitimação dos conhecimentos geográficos
através de explicações eficientes para os problemas colocados. O espaço é o conceito-chave
da disciplina na geografia teorética. Paisagem, lugar e território não são conceitos
significativos, enquanto que a região é tratada como resultado de um processo de
classificação de unidades espaciais através de técnicas estatísticas (CORRÊA, 1995). Os
estudos geográficos voltados para a “explicação em um quadro probabilístico” (SANTOS,
2002b, pg. 67) impunham aos pesquisadores, que se perguntassem sobre qual deveria ser o
encaminhamento do trabalho; seria “medir para refletir ou refletir para medir?” (SANTOS,
2002b, pg. 69). Assim, uma das principais críticas à corrente quantitativa, advém do fato de
que em muitos casos, pode-se descrever padrões espaciais muito complexos, sem ao menos
compreender os processos que lhes deram origem, ou que são fundamentais para a
compreensão do espaço. Com isso, parece ter ocorrido um esquecimento em relação ao fato
de que a quantificação pode aparecer como um instrumento para auxiliar a reflexão em
geografia, mas o que permanece como fundamental é a teoria. Nesta época, dominada pela
quantificação, a ausência de reflexões mais profundas sobre o lugar também era sentida em
outras áreas das ciências sociais. “Indeed the phenomenon of place has been the subject of
almost no detailed discussion, although philosophers, historians, architects, and
geographers have made brief comments about it” (RELPH, 1976, pg.1).
89
O sucesso da chamada Geografia Teorético-Quantitativa foi o grande estímulo
para que uma geração de geógrafos procurasse privilegiar a reflexão de questões que
envolvessem a subjetividade e relações mais particulares com o espaço.
Muitos geógrafos ligados à corrente cultural e histórica nos EUA se
encaminharam pra questões relacionadas à percepção ambiental, o que fez com que fossem
vistos como parte da geografia do comportamento e da percepção, identificando-se,
portanto, com a geografia analítica, a qual já vinha desenvolvendo os referidos temas
(HOLZER, 1992). Este momento representou um certo declínio da geografia cultural, um
“...período de relativa perda de prestígio, entre 1940 e 1970...” (CLAVAL, 1995. in:
CORRÊA, 1999, pg.51). Assim, a década de 1970 representou uma grande renovação para
a geografia cultural européia e norte-americana, “...uma renovação temática e, mais do que
isto, uma renovação também na abordagem” (CORRÊA, 1999, pg.51). Nesta renovação, a
geografia cultural foi influenciada pela geografia cultural tradicional, pelo materialismo
histórico e dialético e pelo surgimento da geografia humanista (CORRÊA, 1999).
O surgimento da geografia humanista também foi resultado da busca dos
geógrafos culturais por uma base filosófica que os afastasse claramente de qualquer
semelhança com os geógrafos teoréticos-quantitativos. Edward Relph parece ter achado o
que esse grupo de geógrafos procurava.“... RELPH (1970) foi o primeiro a colocar em um
artigo as possibilidades da fenomenologia ser o suporte filosófico capaz de unir todos os
geógrafos ocupados com aspectos subjetivos da espacialidade...” (HOLZER, 1996, pg. 11).
Neste sentido, a fenomenologia seria não só a base filosófica para a geografia
humanista, como também uma fonte para que os geógrafos que trabalhassem com a
subjetividade e suas relações com os espaços pudessem se distinguir claramente não só dos
geógrafos quantitativos, como também da própria geografia cultural tradicional.
90
Todavia, os primeiros trabalhos produzidos com a intenção de destacar os
geógrafos humanistas da geografia cultural e histórica tradicional, demonstravam que ainda
não havia uma separação clara entre as duas perspectivas. Esses trabalhos, por sinal, não
formavam um conjunto homogêneo42, ainda que tivessem como importante semelhança, a
utilização do conceito de paisagem como chave principal para suas reflexões. “...qualquer
paisagem é composta não apenas por aquilo que está à frente de nossos olhos, mas também
por aquilo que se esconde dentro de nossas cabeças” (MEINIG, 1979 A, 33, in: HOLZER,
1992, pg.208).
Posteriormente, o trabalho de Tuan na década de 70 foi dedicado a encontrar “um
conceito espacial que fosse mais adequado do que o de paisagem às características
subjetivas e antropocêntricas da investigação...” (HOLZER, 1992, pg.213). Assim, o lugar
ganhará uma importância fundamental para as formulações humanistas na geografia, como
o conceito que melhor traduz o modo como a experiência individual, a intersubjetividade43
e os valores, são vivenciados e atribuídos ao meio.
Outras bases filosóficas, como o idealismo, o surrealismo e o existencialismo,
foram propostas como possíveis suportes à abordagem humanista na geografia na década de
1970. Todavia, apesar de provocarem discussões, os dois primeiros não obtiveram grande
repercussão para as bases teóricas da corrente humanista. Por outro lado, o existencialismo
passou a ganhar importância, especialmente através de Anne Buttimer, que acreditava que o
estudo da subjetividade na geografia seria mais completo, se tomasse como base filosófica
uma fusão da fenomenologia, com o existencialismo.
42
Para maiores esclarecimentos sobre as distinções e até divergências de concepções entre os primeiros
trabalhos que buscavam consolidar a corrente humanista na geografia, ver HOLZER (1992).
43
A idéia fenomenológica de intersubjetividade se refere à experiência que um determinado grupo tem com o
meio.
91
A fenomenologia e o existencialismo não separam os valores dos fatos, ou
os valores da ação dos agentes dessas ações. No entanto, a fenomenologia
enfatiza os problemas do conhecimento e do significado, enquanto que o
existencialismo enfatiza a conduta de vida (BUTTIMER, 1974, pg.37, in:
HOLZER, 1992, pgs.191,192).
Buttimer promove inclusive, uma crítica sobre a importância dada pela
fenomenologia às questões dos valores e da subjetividade, deixando de lado as reflexões
importantes sobre o papel da dimensão física na construção do espaço. A autora acreditava
que o ambiente estava sendo tratado como mero receptáculo e cenário de eventos. Com
isso, Buttimer propõe a incorporação do tradicional conceito vidaliano de Gênero de Vida,
para que ficasse mais clara a importância do meio em que as atividades se desenrolam.
Perseguia-se a idéia de que “o homem faz parte desta cadeia (que une as coisas e os seres)
e, em suas relações com o que o cerca, ele é ao mesmo tempo ativo e passivo, sem que seja
fácil determinar na maioria dos casos até que ponto ele é um ou outro” (VIDAL DE LA
BLACHE, 1921, pg. 104. In: GOMES, 1995, pg 200).
No entanto, diferentemente das propostas relacionadas a uma aproximação entre a
fenomenologia e o existencialismo, as idéias de Buttimer sobre uma possível aproximação
com o “gênero de vida” não foram encampadas. Na verdade esta construção teórica de
Buttimer, significaria não só uma aproximação com o conceito de gênero de vida, como
também com a geografia francesa. No entanto, somente na década de 80 ocorreria uma
aproximação entre a geografia humanista anglo-saxônica e o humanismo francês
(HOLZER, 1992).
Assim, geógrafos como Edward Relph, Anne Buttimer e Yi-fu Tuan, entre outros,
foram buscar principalmente na fenomenologia e no existencialismo, a base teórica para
formular uma concepção de espaço que se distanciasse consideravelmente das proporções
92
matemáticas e sistemas de análises propostos pelos geógrafos quantitativos44.
Protagonizaram, portanto, um momento fundamental de renovação da própria geografia, no
qual ocorria a consolidação da geografia humanista e o surgimento de novas possibilidades
de pesquisa para a geografia cultural. Com isso, essa renovação também pode ser tomada
com uma reação às abordagens que privilegiavam as explicações matemáticas em
detrimento das particularidades e sutilezas do cotidiano. Ao contrário, as perspectivas
quantitativas em geografia aprisionavam a complexidade da vida social em modelos
analíticos e objetivos, que produziam uma visão de mundo restrita e simplificada. Esses
modelos serviram (e ainda servem) como base teórica para a construção de espaços “mais
eficientes”, e para a modificação de espaços já existentes em prol de uma “racionalização”
dos usos no espaço. Este discurso foi, em geral, muito bem aceito, por seu tom de
objetividade e sua capacidade de fornecer explicações precisas sobre a vida social.
2.2.1 O lugar como conceito-chave da geografia
Por oposição, a corrente humanista preocupava-se com o mundo vivido, com as
situações do dia-a-dia, sempre com o objetivo de explorar o caráter único da experiência do
indivíduo no espaço geográfico. Dessa forma, o lugar passou a ser pensado como o
conceito-chave da geografia, como uma maneira alternativa de se pensar a organização do
espaço. Todavia, não foi somente o contexto acadêmico da geografia que propiciou o
aparecimento e o sucesso da chamada corrente humanista na geografia. Não se deve
esquecer do clima de mudança que se anunciava ao final dos anos 60, da busca por uma
maior valorização da subjetividade humana através do...
44
“No entanto, RELPH (1970) foi o primeiro a colocar em um artigo as possibilidades da fenomenologia ser
o suporte filosófico capaz de unir todos os geógrafos ocupados com aspectos subjetivos da espacialidade...”
(HOLZER, 1996, pg. 11).
93
movimento hippie, da revolta estudantil, e do questionamento feroz dos
padrões culturais e políticos instituídos(...)Uma geografia que fosse ao
encontro desses novos valores deveria basear-se em uma “aproximação
humanística... (HOLZER, 1996, pgs.10 e 11).
Os autores queriam demonstrar que existem profundas ligações sentimentais e
psicológicas entre as pessoas e os lugares em que vivem, e que os lugares podem ser
vividos de diversos modos, especialmente como “...centres of special importance and
meaning which are distinguished by their quality of insideness. These are places” (RELPH,
1976, pg.21). A principal tarefa seria desvendar a alma dos lugares, suas identidades, seus
sentidos e significados.
Apesar desse movimento ter obtido maior consistência e visibilidade ao final da
década de 1960, parece que o humanismo já havia aparecido na geografia em tempos
anteriores.
O sentimento de simpatia estabelecido entre o geógrafo e a região que ele
estuda, é um dos elementos centrais da concepção monográfica
compartilhada pelos defensores do espaço vivido. A região, que define ao
mesmo tempo, um espaço de pertencimento e de inclusão a uma
comunidade dada, inscreve também a inteligibilidade do sentimento
regional vivido pelos signos identitários (GOMES, 1996, p.319).
Hartshorne nos lembra que o sentimento de pertencimento, de identificação com
determinada porção do espaço, já fazia parte das relações sociais antes mesmos dos
geógrafos tratarem do tema.
Esse interesse pelo caráter individual das áreas, grandes ou pequenas,
encontra sua expressão mais clara no fato universal de que, muito antes do
advento dos geógrafos profissionais, os lugares conhecidos pelo homem
receberam denominações próprias, para fins de reconhecimento de sua
individualidade... (HARTSHORNE, 1978, p.123).
Desse modo, Hartshorne remete-se a Vidal de La Blache que em 1913 propõe que
“A geografia é o estudo dos lugares”. Assim, estaria colocado o propósito basilar da
geografia, que seria justamente satisfazer esse interesse pelo caráter individual das áreas.
94
Pierre Birot, em seu estudo de geografia regional sobre Portugal, afirma que “...a geografia
regional é uma arte que se emprega em evocar verdadeiras individualidades” (GOMES,
1996, p.318). Para La Blache, a França seria formada por um mosaico de identidades
regionais, que em conjunto formariam o Estado francês. A propósito, esta individualidade
regional inspirada em Ritter e aplicada a uma abordagem do Estado francês, afasta a
perspectiva vidaliana da corologia.
Hartshorne considera a região como o conceito primordial de sua geografia de
diferenciação de áreas retomada de Hettner. Diferentemente de La Blache, que isola a
região, Hettner parte do singular para o geral, para em seguida voltar ao singular. Neste
sentido, cada porção do espaço é fruto de uma combinação única e a conexão dinâmica
entre essas áreas constitui-se na articulação do mundo. Ainda, Hartshorne afirma que o
conceito de lugar estaria também relacionado à síntese singular das localizações.
Assim, se por um lado foi a geografia humanista levou a questão das identidades
às últimas conseqüências, trazendo o conceito de lugar para o centro do debate na
geografia, por outro lado, as raízes desta questão e da própria influência do humanismo,
podem ser observadas em momentos precedentes na geografia.
2.2.2 Fenomenologia e Existencialismo: A fundação do lugar humanista
O aporte filosófico da geografia humanista foi constituído também, a partir da
apropriação de alguns conceitos oriundos especialmente da fenomenologia e do
existencialismo. “Mundo vivido” e “ser-no-mundo”, são identificados na geografia com o
conceito de lugar (HOLZER, 1996).
95
Para a fenomenologia, o objeto é um ato da consciência, a qual é uma
particularidade, sempre intencional no sentido de se apropriar do mundo e dar-lhe um
sentido. Não há um sujeito separado do objeto, nem vice-versa, pois não há uma
consciência separada do real. Desse modo, a consciência não é abstrata, é intencional e
relaciona-se à questão da liberdade / necessidade, sendo corpórea. A fenomenologia tem
seus atributos relacionados a Husserl, ainda que possamos nos remeter às influências de
Kant e Hegel como suas raízes mais remotas (CHRISTOFOLETTI, 1985).
Kant elaborou a concepção de que a consciência é dada, originária do momento
do entendimento, enquanto razão organizadora. Neste sentido, através da consciência, a
experiência humana submetida ao pensamento é organizada, ganha unidade. No entanto,
este processo não nos leva ao conhecimento da “coisa em si” (do real), mas ao
conhecimento do real (objeto) em relação com o sujeito do conhecimento, ou seja, o
fenômeno. Só chegamos a apreender o a priori das coisas, o predicado já contido nelas,
visto que se conhecêssemos as coisas em si, já estariam em nós, afetadas por nossa
subjetividade.
Posteriormente, Hegel critica a perspectiva kantiana da consciência como dada,
como originária. Para Hegel a consciência das coisas é o próprio processo dialético que
leva à essência dos fenômenos, ao absoluto, ao verdadeiro. Em Hegel, “a fenomenologia
pretende assim ser um conhecimento do absoluto, (...) a ciência da experiência da
consciência” (MARCONDES, 1997, pg. 219) o qual não é, portanto, inacessível. Todavia,
a verdade só é atingida quando a essência (o ser em si) coincide com a sua manifestação (o
ser para nós).
A fenomenologia é inaugurada como movimento filosófico por Edmund Husserl.
A intencionalidade torna o sujeito e o objeto inseparáveis, sendo, além disso, a base da
96
consciência. Esta, por sua vez, é a única via possível de apreensão do a priori das coisas, do
fenômeno em si. Com esses pressupostos, Husserl confronta as idéias basilares da
Psicologia Clássica, que falavam de uma consciência passiva, como um simples depositário
das representações da realidade e dos objetos sob a forma de imagens. Em oposição, através
da noção de intencionalidade, Husserl apresenta uma consciência capaz de arrumar as
imagens e os fenômenos da realidade de modo a dar-lhes um sentido. Assim, ter
consciência é ter consciência de algo, é estar intencionalmente voltado para um objeto, este,
um fenômeno, por exemplo, só pode ser conhecido a partir do momento em que é
“codificado” pela consciência. A essência do fenômeno é revelada pela consciência. Havia,
portanto, uma busca em chegar à consciência “pura”, o que não seria possível através dos
métodos científicos “tradicionais”. Neste sentido, seria o método fenomenológico que se
encarregaria de nos fazer compreender esta consciência “pura”, “universalmente
verdadeira” (STRATHERN, 2002). Assim, a filosofia de Husserl procura trabalhar a
subjetividade e o sentido da experiência humana, através da análise da consciência em sua
relação com o real. Desse modo, é possível chegar ao fenômeno em si mesmo, através de
um retorno a sua essência, denominada de “redução eidética”. A essência relaciona-se a
unidades ideais (eternas)45 de significação, que constituem o sentido de nossa experiência.
Neste sentido, a fenomenologia descreve essências (objetos ideais, não-empíricos) das
experiências de uma consciência. Contestando a razão homogeneizadora e o materialismo
universalizante, a fenomenologia acredita que o mesmo objeto pode ser percebido de
diferentes formas por cada um dos sujeitos.
45
“Os objetos ideais se distinguem dos reais por um aspecto essencial. O ser ideal é intemporal, e o ser real
está submetido ao tempo...” (MARÍAS, 2004, pg.452).
97
Quando Husserl foi lecionar em Freiburg, por volta da metade da década de 1910,
passou a ter como assistente um profundo conhecedor de sua obra, chamado Martin
Heidegger. Posteriormente, a partir da base fenomenológica de Husserl, Heidegger dedicou
sua filosofia às questões que envolviam a própria existência humana; “ser” não era tão
simples quanto a sociedade moderna pensava. “Toda ontologia – diz Heidegger - é cega se
não explicar primeiro suficientemente o sentido do ser e compreender esta explicação como
seu tema fundamental” (MARÍAS, 2004, pg.475).
Para chamar a atenção para a importância das questões relativas à vida cotidiana e
aos próprios significados que envolvem a experiência de existir, que estão tão próximos de
nós, e que por isso mesmo muitas vezes passam desapercebidos, Heidegger desenvolveu o
conceito de Dasein. Este conceito pode ser tomado como a idéia de “ser-no-mundo”, “...a
entidade que cada um de nós encontra na asserção fundamental: eu sou” (STRATHERN,
2002, pg.36). A partir daí, pode-se perceber uma distinção importante entre esta formulação
de Heidegger e a base fenomenológica tributária de Husserl, já que “a intuição
fenomenológica conduz à contemplação das essências, e estas são algo absolutamente dado,
mas como ser essencial (Wesenssein), nunca como existência (Dasein)” (MARÍAS, 2004,
pg.459).
Neste sentido, a fenomenologia de Husserl, o “desvelamento” das essências de
objetos não empíricos, através de uma consciência “pura” (não empírica), não tem,
portanto, compromisso com a existência propriamente dita. Todavia, não se pode perder de
vista que Heidegger introduz o tema do existir (no mundo) através do método
fenomenológico. “O método da pergunta fundamental sobre o sentido do “ser” é
fenomenológico” (MARÍAS, 2004, pg.477).
98
A idéia do “ser-no-mundo” desenvolvida por Heidegger é completada na
ontologia do autor por suas preocupações com a temporalidade. A existência no mundo só
faz sentido se levarmos em conta a influência do tempo. Não por isso, a principal obra de
Heidegger foi intitulada “Ser e Tempo”. A propósito, as formulações heideggerianas sobre
o (Dasein) “ser-no-mundo” foram de fundamental importância para a corrente humanista da
geografia. Na verdade, os geógrafos encontraram no conceito de lugar o campo mais
promissor para o desenvolvimento da temática do “ser-no-mundo”.
A teoria de Heidegger também foi uma inspiração importante para o
desenvolvimento de uma corrente filosófica complexa, que ganhou notoriedade a partir do
final da Segunda Guerra Mundial. O existencialismo nasceu não só como corrente
filosófica, mas também trazia consigo um certo desprezo e confronto à moral vigente. Os
existencialistas eram acusados de diversas infrações à “moral e aos bons costumes”, o que
gerou uma caricatura de “aparência descuidada, cabelos abundantes e desgrenhados; brusco
nas maneiras; mal asseado...” (PENHA, 1982, pg.8). Para além desse tipo de impacto
gerado à época de seu surgimento, pode-se dizer que alguns dos mais importantes preceitos
do existencialismo tem como base a obra do pensador dinamarquês Sören Kierkegaard.
Este pensador se opunha duramente às idéias defendidas por Hegel, no que diz respeito à
formulação de um sistema que pudesse explicar de modo total a realidade. Kierkegaard
argumentava que a realidade concreta só poderia ser compreendida se partíssemos de uma
análise centrada no indivíduo, deve-se partir da subjetividade através da qual se revela a
realidade de cada ser, a partir da qual pode-se chegar às abstrações que regem a totalidade.
Kierkegaard foi um severo defensor da singularidade e não acreditava que algum sistema
poderia dar conta de explicar a existência humana.
99
O indivíduo, por isso mesmo, jamais pode ser dissolvido no anonimato,
no impessoal. Todo conhecimento deve ligar-se inapelavelmente à
existência, à subjetividade, nunca ao abstrato, ao racional, pois se assim
proceder fracassará no intento de penetrar no sentido profundo das coisas,
logo, de atingir a verdade (PENHA, 1982, pg.17).
Não se pode, portanto, pensar o espaço somente através de uma perspectiva de
objetividade, sob pena de deixar escapar as diversas formas pelas quais o espaço é
apropriado pelos grupos sociais que lhe conferem símbolos, estéticas, valores, imagens, ou
seja, que lhe transformam em lugar. A fenomenologia e o existencialismo passaram então, a
servir de suporte para que a geografia ampliasse sua capacidade de compreender, através da
intencionalidade, as experiências vividas pelos diferentes indivíduos em diversos lugares.
Assim, a execução do método fenomenológico na geografia apresentaria a necessidade de
descrições minuciosas, que permitissem uma nova maneira de compreender as relações do
homem com a natureza. Neste sentido, a fenomenologia desviaria o foco das preocupações
fundamentais da geografia para a subjetividade humana e sua importância na produção do
espaço. Desse modo, a grande valorização da subjetividade humana na geografia,
manifestada no espaço através da percepção, dos símbolos e das ações, não permitiria uma
separação entre sujeito e objeto. Com isso, mais uma vez os geógrafos humanistas
obtinham sucesso em se afastar das perspectivas analíticas, já que propunham uma reflexão
que mantivesse o sujeito indissociavelmente conectado ao objeto, o que se coloca como
totalmente contrário à clara separação entre sujeito e objeto promovida tradicionalmente
pela geografia quantitativa.
A própria formulação do espaço vivido46 é executada pelos atores sociais, os
sujeitos, que vivem este lugar. Assim, a compreensão do espaço vivido não se pauta na
46
GOMES (1996) faz uso da explicação de A.Frémont, segundo a qual “o espaço vivido visa a substituir a
noção de um espaço alienador, definido ao mesmo tempo por uma atitude de nostalgia do passado e por uma
febre futurista de planificação. Desta maneira, o espaço vivido torna-se uma categoria que acentua a
100
procura de eventos regulares, ou de uma pretensa homogeneidade de práticas ou paisagens,
mas na busca por fatores singulares que dêem sentidos a cada realidade vivida, que
interpretem o lugar.
A chave fundamental desta interpretação é o comportamento e a
linguagem, que juntos estruturam o código de expressão deste universo
simbólico. (...) O método de interpretação, à imagem daquele da
psicanálise, consiste em resgatar o sentido a partir daquilo que circula
entre a esfera da ação e a da representação, projetado sobre o espaço
(GOMES, 1996, p. 322 e 323).
Neste sentido, uma correta leitura dos códigos, dos símbolos, dos significados, das
representações, é fundamental para a compreensão do lugar, que é único, constituído por
fatores identitários singulares. Desse modo, para a geografia humanista, o lugar, que evoca
apenas uma parte do espaço, em que se relaciona um número restrito de pessoas, promove
as relações basilares da dinâmica espacial. Com isso, fica cada vez mais distante a
formulação da idéia de lugar somente enquanto um ponto de localização dos fenômenos.
Assim, através da consciência, advinda de uma ligação sentimental duradoura
com uma determinada porção do espaço, as pessoas tomam as identidades de seus lugares
como suas, ou seja, particularidades impregnadas em um local que passam a fazer parte dos
indivíduos. “…people are their place and a place its people, and however readily these may
be separated in conceptual terms, in experience they are not easily differentiated” (RELPH,
1976, pg.34).
O autor ilustra sua concepção através da história de uma agricultora vietnamita
que vivia no meio do que se tinha tornado um campo de batalha; perguntada sobre o motivo
de sua permanência em tal área de insegurança respondeu que aquela era a terra de seus
ancestrais, e que, portanto, ela não poderia sair (RELPH, 1976). A identidade do lugar não
constituição atual dos lugares, dedicando uma atenção especial às redes de valores e de significações
materiais e afetivas” (GOMES 1996, p.317).
101
seria simplesmente uma abstração, mas interpretações intencionais que levam a
determinadas atitudes que demonstram o grau de pertencimento e de ligação histórica e
sentimental com um lugar. Na verdade, cada pessoa tem suas próprias lembranças e
histórias, é essa individualidade que faz com que a experiência no lugar seja única. Além
disso, uma pessoa pode atribuir mais de uma identidade a um mesmo lugar. Portanto, a
identidade de um lugar é o resultado da combinação de fatores como a aparência (a
dimensão física), as atividades observáveis e os significados e os símbolos atribuídos pelos
indivíduos.
2.2.3 Limites e extensão do lugar.
A partir do momento em que o lugar passa a ser objeto de reflexão conceitual,
parece haver um consenso de que estamos falando necessariamente de uma pequena porção
do espaço. Assim, podemos admitir que há uma tentação em definir, ou a iniciar uma
construção conceitual do lugar através de suas dimensões. Partimos então da idéia de um
espaço necessariamente “menor”, restrito a alguns indivíduos, composto por algumas
poucas paisagens. Todavia, independente da amplitude da área a que se faz referência,
“quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (TUAN, 1983, pg.83).
...those aspects of the lived-world that we distinguish as places are
differentiated because they involve a concentration of our intentions, our
attitudes, purposes and experience. Because of this focusing they are set
apart from the surrounding space while remaining a part of it (RELPH,
1976, pg.43).
Deste modo, para os humanistas o tamanho do lugar é subjetivo. Cada indivíduo
tem a capacidade de estruturar uma determinada porção do espaço, com seus referenciais,
102
sua vivência, e torná-lo parte integrante de sua experiência. O desconhecido é um desafio,
mover-se em um espaço em que não reconhecemos as formas, em que podemos até
compreender o sentido de sua arrumação, mas no qual não conseguimos imprimir as
referências que nos permitam identifica-lo, causa em geral uma sensação de desconforto.
Quando se constrói conhecimento sobre grandes áreas, estas podem deixar de ser
um espaço indiferenciado, para ser um lugar. Através da experiência47 no espaço, do
reconhecimento de referenciais de localização, e da própria vivência com outras pessoas,
constrói-se um espaço familiar quanto à locomoção, e também em termos de lembranças e
significados, independente da amplidão da área. Um bom exemplo deste descolamento
entre o lugar e o seu tamanho (pequeno) são os relatos de ilhéus do Pacífico, que exploram
e vivenciam ambientes distantes de seus locais de origem.
As visitas a ilhas distantes ampliam a base do suprimento de comida, mas
também permitem às pessoas estreitar velhas relações., estabelecer novas
e trocar idéias. Uma pequena comunidade do tamanho de Puluwat não
poderia ter alcançado seu atual nível de cultura se não se apoiasse em um
mundo muito maior (TUAN, 1983 pg.91).
No entanto, a ampliação de nossa mobilidade não precisa depender da experiência
pessoal. Através da técnica podemos nos localizar em um espaço desconhecido, utilizando
aparelhos que nos permitirão cruzar grandes distâncias sem maiores problemas. Todavia, o
fato de estarmos referenciados em termos locacionais, não nos permite dizer que
construímos os caminhos que nos levam ao lugar. O espaço nos é familiar do modo mais
distante possível, pois através da máquina procuramos evitar ao máximo a vivência do
espaço, a qual constitui um elemento fundamental para produção de referências simbólicas
na construção do lugar. É evidente que os aparelhos podem ajudar na localização e nos
47
“Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele(...) A experiência é constituída de
sentimento e pensamento” (TUAN, 1983, pgs.10 e 11).
103
privar mais rapidamente do desconforto e da ansiedade que a sensação de “estar perdido”
pode nos trazer. Mas, a partir do momento em que os instrumentos de localização passam a
substituir, ou mesmo a achatar a importância e os significados construídos através da
experiência pessoal, eles nos afastam do lugar à medida que nos aproximam do local.
Aliás, a questão da mobilidade do mundo atual, típica de um espaço produzido por
efeitos da “globalização”, da “modernidade” ou mesmo da “pós-modernidade”, é um ponto
importante e trágico para a geografia humanista. A proliferação de espaços pasteurizados,
assentados sobre “valores artificiais”, como o consumo, e a própria constância e rapidez
com que as pessoas se deslocam, promoveriam uma drástica diminuição na intensidade de
uma relação “autêntica” com o lugar. Neste sentido, a contemporaneidade nos apresentaria
um planeta no qual o enraizamento é cada vez menor, e que, por conseguinte ameaça a
produção do lugar humanista. Por ironia, quando estamos viajando, por exemplo, a
agradável sensação de familiaridade pode inesperadamente aparecer quando nos deparamos
com um desses espaços pasteurizados, que são adjetivados desta forma justamente por se
apresentarem de modo semelhante em uma série de pontos diferentes do “mundo
globalizado”. No entanto, para geógrafos humanistas como Relph, esta familiaridade é
“inautêntica”, artificial, não serve como base para a construção do lugar, pois foi
estimulada por valores e identidades “superficiais”. Na verdade, esta “inautenticidade”
promoveria a construção de não lugares, monumentos artificiais cada vez mais comuns.
Assim, o lugar é um centro de significados e valores (“autênticos”) atribuídos a
uma dada porção do espaço, um conceito que não tem como parte de sua construção uma
métrica que nos ajude a desvenda-lo. Sobre uma possível determinação de uma escala para
o lugar, Relph lembra que os lugares:
104
They can be at almost any scale, depending on the manner in which our
intentions are directed and focused, as a nationalist my place is the nation,
but in other situations my place is the province or region in which i live,
or the city or the street or the house that is my home (RELPH, 1976,
pg.43).
É evidente a importância da localização, das atividades que os indivíduos
desempenham no local, da relação dialética entre a forma e o conteúdo do espaço, mas a
essência do lugar está mais diretamente ligada a uma associação profunda da consciência
do indivíduo com o local em que nasceu, ou com o local em que vive, em que possui uma
história. Esta associação é fruto das experiências vividas pelo indivíduo em um
determinado espaço, que lhe permite atribuir valores e significados a este local,
transformando-o assim, em lugar. Segundo Relph, este processo faz parte da base de nossa
vivência e orientação no mundo em que vivemos. “This association seems to constitute a
vital source of both individual and cultural identitiy and security, a point of departure form
which we orient ourselves in the world” (RELPH, 1976, pg.43).
2.2.4 A produção do lugar humanista
A idéia da essência do lugar a que nos referimos anteriormente como sendo
produto de uma profunda associação entre o indivíduo, ou até mesmo, entre um grupo de
indivíduos e uma determinada porção do espaço, constitui um ponto fundamental no
entendimento da perspectiva humanista quanto ao conceito de lugar. Neste sentido,
acreditamos que o assunto mereça uma análise um pouco mais detalhada.
Entre os geógrafos humanistas, notadamente Edward Relph, a idéia de identidade
parece ter sido aquela que melhor conseguiu expressar a noção de essência do lugar. Sob
esta idéia o autor se refere à profunda associação que mencionamos anteriormente, à qual
105
carrega consigo um grau acentuado de identificação do indivíduo com determinado local, a
ponto de como já dissemos, o indivíduo ser confundido com o “seu” lugar e vice-versa.
Com isso, podemos dizer que é através da sua identidade, e da identidade que os indivíduos
lhe atribuem, que o lugar é definido na perspectiva da geografia humanista.
2.2.5 Identidade e lugar
Individualmente pode-se estabelecer uma identidade própria com um lugar. É a
combinação das diversas identidades pessoais atribuídas a uma determinada porção do
espaço, que gera a identidade desse lugar, ou a identidade que a coletividade estabelece
com este lugar. A confecção desta identidade do lugar, ou com o lugar, seja de modo
coletivo ou individual pode ser um processo consciente, em que determinadas intenções e
preferências apontam para um ou outro formato da identidade, ou pode ser um processo
mais espontâneo, inconsciente, em que não há uma reflexão prévia, ou intenções
claramente estabelecidas quanto ao formato da identidade que se está formulando.
A questão da identidade possui uma importância fundamental no que diz respeito
à produção do lugar. Isto pode ser observado à medida que nos damos conta de como se
configura o processo de diferenciação do lugar, o qual é parte importante da construção da
identidade do lugar. A própria idéia de que para identificarmos determinada porção do
espaço, tivemos que previamente distinguir características que estão presentes em um lugar
e que não se encontram em outros, estabelece uma fronteira entre aquilo que está fora e
aquilo que está no interior do lugar. Ou seja, a identificação de uma combinação própria de
fatores estabelece uma das fronteiras do lugar.
106
Há diferentes graus de identificação com o lugar, os quais são definidos por
fronteiras, sejam elas físicas ou culturais. Há também, estágios de afastamento afetivo com
o lugar. Edward Relph promoveu uma classificação desses graus de envolvimento ou
afastamento, que nos permite compreender essas diferentes formas de se relacionar com os
lugares, as quais são elementos fundamentais para o próprio entendimento da produção dos
lugares e dos não-lugares. Para efeito de organização deste trabalho, abordaremos neste
tópico os diferentes graus de envolvimento com o lugar, deixando os de afastamento para
a etapa em que estaremos discutindo o não-lugar.
O que Relph chamou de “Vicarious insideness”, fala de locais que apesar de não
termos estado presentes de fato, mantemos algum tipo de envolvimento (muitas vezes
profundo). Esse tipo de relação com determinado lugar ocorre de modo ilustrativo quando
nos envolvemos com determinada narrativa que parece ter o poder de não só nos
“transportar” para o local descrito, como nos conduz a um considerável grau de percepção
das identidades e dos sentidos desse lugar. Todavia não se pode deixar de lembrar que o
fato de não haver a presença física carrega em si uma série de implicações que talvez nos
permitam questionar até que ponto essa relação é comprometida por uma idealização do
lugar, ou por relatos “filtrados”. Não nos propomos neste trabalho a avançar nesta questão,
mas acreditamos que estas perguntas podem ser objetos de análise no que concerne ao
entendimento desta classificação estabelecida por Relph, no sentido de que estamos falando
de uma construção do lugar, como o próprio Relph definiu, de “segunda mão”.
Já o caso do “Behavioural insideness” trata de um envolvimento com o lugar em
que há uma atenção especial com a morfologia da paisagem, com o ambiente, o qual tornase parte fundamental da identidade do lugar. O ambiente não é somente um pano de fundo,
mas um protagonista da experiência e da construção do lugar. A principal contribuição
107
deste tipo de relação é exatamente chamar a atenção para a importância dos aspectos
visuais na definição da identidade do lugar. O próprio Relph admite que é uma tarefa árdua
diferenciar o Behavioural insideness do que seria o Empathetic insideness. Basicamente,
neste último, há uma menor preocupação com os aspectos visuais, em direção a uma
atenção especial com o envolvimento emocional com o lugar. Deve-se estar preparado para
compreender e apreciar os símbolos e significados do lugar.
O grau mais avançado de pertencimento ao lugar se assenta naquilo que Relph
chamou de Existential insideness. Há um profundo envolvimento com o lugar, mediado por
valores e significados que nos fazem sentir totalmente pertencentes à nossa casa, ou à nossa
cidade ou à nossa região. Neste caso, a identificação do indivíduo com o local é total,
havendo laços de diversos tipos, históricos, familiares, culturais, religiosos, que
transformam uma determinada área em lugar.
De forma geral, pode-se entender a formação da identidade do lugar como o
resultado do saldo entre expectativas prévias e experiências vividas no lugar. Todavia, em
direção a uma maior precisão na análise, os “fatores” aos quais já fizemos referência
anteriormente, e que combinados promovem a identidade do lugar, podem ser identificados,
segundo Relph (1976), através de pelo menos três dimensões: A dimensão física, as
atividades que ocorrem no lugar e por fim os significados e símbolos produzidos pela
história dos acontecimentos e das antigas ligações afetivas dos indivíduos com determinado
local (e também por acontecimentos do presente).
Thus identity is founded both in the individual person or object and in the
culture to which they belong. It is not static and unchangeable, but varies
as circumstances and attitudes change; and it is not uniform and
undifferentiated, but has several components and forms (RELPH, 1976,
pg.45).
108
Além desses fatores que atuam dialeticamente na produção da identidade do lugar,
há um outro componente fundamental neste processo. Aquilo que os humanistas se referem
como o sentido do lugar, ou o “espírito do lugar”, também desempenha um papel vital na
composição da identidade do lugar. Diante da especificidade desta categoria, o sentido do
lugar será contemplado no item seguinte. “Different places on the face of the earth have
different vital influence, different vibration, different chemical exhalation, different polarity
with different stars: call it what you like. But the spirit of place is a great reality” (D.H.
LAWRENCE, 1964, pg.6, in RELPH, 1976, pg 49).
2.2.6 O Sentido do lugar
Um outro fator fundamental para a composição da identidade do lugar é o que se
poderia chamar de sentido do lugar. Talvez seja a categoria mais difícil para ser explicada
em termos formais, mas constitui-se em um fator fundamental da experiência do indivíduo
no lugar. O sentido do lugar envolve os outros três componentes da identidade do lugar,
mas trata mais detidamente do “espírito” do lugar, de suas características mais psicológicas
e abstratas, que apesar do tempo, das modificações no modo de arrumar os objetos e as
pessoas no espaço, podem permanecer inalteradas. Assim, pode-se entender o sentido do
lugar como sua personalidade, como o fator que é a base da individualidade e do caráter
único da experiência no lugar. “Este sentido do lugar se dá pela apreciação visual ou
estética, e também pela audição, olfato, paladar e tato, que exigem um contato próximo e
uma longa associação com o ambiente” (HOLZER, 1992, pg.225).
Para Edward Relph, pode-se definir o sentido do lugar, ainda que de modo bem
geral e superficial, como referente à “...habilidade de reconhecer diferentes lugares e
109
diferentes identidades de um lugar”48 (RELPH 1976, pg.63). Trata-se, portanto, de uma
idéia que varia de acordo com determinadas características dos lugares. Evidentemente,
além da influência que a dimensão física exerce, a atuação do indivíduo, especialmente no
que se refere à sua capacidade e disposição em perceber e sentir o “espírito” do lugar é
fundamental para a produção do sentido do lugar. Este, “atribui personalidade ao espaço,
conseqüentemente transformando o espaço em lugar” (TUAN, 1983, pg.103).
Entretanto, a produção de um sentido do lugar não ocorre da mesma maneira, e
nem produz o mesmo resultado. De acordo com a teoria formulada por Relph em Place and
Placeslessness, o sentido do lugar pode ser considerado autêntico ou inautêntico. Assim,
conseqüentemente, teremos a produção de lugares autênticos e inautênticos. Mais uma vez,
Relph49 se baseou na fenomenologia para trazer para a geografia as noções de
“autenticidade” e “inautenticidade”, ainda que se utilize também, de um suporte
existencialista para explicar essas noções. A base dessas noções, que serão aplicadas por
Relph na diferenciação dos lugares, aparece claramente nas idéias de Martin Heidegger, nas
quais também já se pode perceber um certo temor em relação à deturpação do homem
através dos novos caminhos que a evolução tecnológica e a vida moderna proporcionavam.
A grande argumentação de Heidegger sobre a necessidade de se proceder ao que
chamou de “analítica existencial”, girava em torno do fato de que a questão do ser, que fora
estudada a fundo pelos pré-socráticos, teria sido deixada para trás e levado “a humanidade a
perder sua experiência primitiva de si mesma” (STRATHERN, 2002, pg. 27). A partir daí,
surge um mundo dominado pela ciência, em que a discussão fundamental sobre o ser é
esvaziada em função da lógica preponderante da tecnologia. Este mundo afastado do ser é
48
“...ability to recognize different places and different identities of a place”.
“Relph foi um pioneiro em propor a incorporação da fenomenologia pela geografia como alternativa aos
métodos quantitativos...” (HOLZER, 2005, pg.6).
49
110
artificial, o homem se confunde com a máquina, bestializado através da repetição imposta
pelo “avanço” da técnica. A relação entre o homem transformado em operário com o
homem transformado em chefe perde completamente seu sentido humano, e se torna
moldada por um conjunto de critérios e situações objetivas e racionais, que de forma
alguma levam em consideração a condição do ser. Esta seria uma das duas dimensões
possíveis para aquilo que Heidegger reconhece como um homem inautêntico, ou seja, o
indivíduo que perde não só o domínio de sua consciência, como também as raízes de sua
condição de existência. Para Heidegger “o homem autêntico é aquele que reconhece a
radical dualidade entre o humano e o não-humano. Desconhece-la é mergulhar na
inautenticidade, é sofrer uma queda” (PENHA, 1982, pg.32).
A segunda dimensão da inautenticidade estaria relacionada ao momento em que
os atos, que produzem a existência do ser, tornam-se influenciados e até dominados por
modismos, estereótipos e convenções. Assim, o indivíduo se perde numa avalanche de
imposições não questionadas, e mergulha na impessoalidade e na passividade. Estas, por
sua vez, levam o “sujeito” a não mais articular, ou mesmo enxergar seus princípios, sua
consciência, manipulada pelas superficialidades do mundo científico-tecnológico. Se
admitirmos que a intencionalidade é o componente básico da consciência, e que a
consciência atribui significado ao mundo, pode-se dizer que a inautenticidade é um estado
de perda da consciência, já que a intencionalidade se perde como condição do indivíduo a
partir do momento em que é manipulada por outrem.
Essa preocupação de Heidegger com a questão da autenticidade pode ser
observada em exemplos simplórios, mas alusivos, como o fato de que o filósofo ministrava
suas aulas vestido com um traje típico alemão, um modo de demonstrar enfaticamente sua
obsessão pelas autênticas raízes germânicas. As férias, geralmente desfrutadas em uma
111
propriedade no interior da Floresta Negra, marcavam uma época em que Heidegger podia
se recolher à reflexão em um lugar dotado de um espírito autêntico, representante de uma
porção do planeta ainda (ou supostamente) inalcançada pelos estereótipos da vida moderna.
“Sua (do homem) individualidade estava sendo perdida – a tal ponto que estava se
tornando, num sentido muito real, um não-ser, um ninguém” (STRATHERN, 2002, pg. 48).
Da mesma forma, a autenticidade é tomada por Relph como uma experiência
moral, como um modo de ser, fatores a partir dos quais constrói-se o sentido autêntico do
lugar. Quando isto ocorre, temos então concluída uma profunda associação com o lugar, um
forte sentimento de pertencimento, que faz com que o indivíduo não consiga se dissociar do
lugar. Um sentido autêntico de lugar advém de uma experiência que proporcione um
contato direto com valores e significados que expressem efetivamente uma história de
convivência, de momentos vividos que ficam marcados com sendo características inerentes
a uma sala, a uma casa, a um bairro, a uma cidade, e que passam a construir a personalidade
desses lugares. Quando visitamos, por exemplo, um antigo campo de concentração da
Segunda Guerra Mundial, ou um monumento que nos remeta a algum passado
perfeitamente conhecido, concluímos que não precisamos exatamente ter tido experiências
pretéritas em determinado lugar, para que consigamos enxergar e sentir claramente seu
espírito. Neste caso, o sentido de lugar foi construído de forma tão autêntica ao longo dos
anos, ou em alguns casos, de forma tão genuinamente trágica, que mesmo para o indivíduo
que de algum modo não fez parte dessa “construção”, apenas o conhecimento basta para
poder reconhecer o espírito do lugar. “Não é interessante como este castelo muda tão logo a
gente imagina que Hamlet viveu aqui?(...) ...um canto escuro nos lembra a escuridão da
alma humana, e escutamos Hamlet: “Ser ou não ser” (TUAN, 1983. pg.4).
112
Apesar de ter grande capacidade de resistir ao tempo e a modificações de variadas
espécies, o sentido do lugar pode sofrer uma brusca alteração para determinado indivíduo,
ou grupo social. Em muitos casos, estabelecer uma profunda ligação sentimental com
determinado lugar, relaciona-se de modo vital à presença de determinados fatores, que
quando não estão mais presentes, podem alterar dramaticamente a personalidade do lugar
na perspectiva do indivíduo. “Na ausência da pessoa certa, as coisas e os lugares
rapidamente perdem significado, de maneira que sua permanência é uma irritação mais do
que um conforto” (TUAN, 1983, pg.155).
Na verdade, nos parece que neste caso o lugar perde o significado que possuía
anteriormente, já que um fator fundamental da formação de seu sentido já não se faz mais
presente. No entanto, o lugar ganha novo significado, há uma reformulação quanto a seu
sentido, mesmo que isto aponte para uma relação de repulsa entre o indivíduo e o “novo”
lugar. A partir deste exemplo, percebe-se como a partir da perspectiva humanista, o lugar
torna-se totalmente indissociável de sua “personalidade”, de seu sentido.
A experiência do lar nos permite, como poucas, compreender de forma clara a
questão da autenticidade na vivência do lugar. Evidentemente, há uma forte ligação entre o
indivíduo e o espaço em que define sua morada, e até, mais especificamente, com
determinados locais dentro de sua casa. As singularidades e características principais dos
moradores aparecem, em geral, estampadas nos objetos, na aparência da casa, no cheiro e
na arrumação do espaço. Assim, a profunda ligação afetiva dos moradores com a casa, um
reflexo óbvio, mas fundamental, da história de vida que este lugar guarda, constroem o
“espírito” da casa, que se torna um espaço único, diferenciado pelos valores que lhe são
atribuídos.
113
O lar é um lugar íntimo(...)não tanto pela totalidade do prédio, que
somente pode ser visto, como pelos seus elementos e mobiliário, que
podem ser tocados e também cheirados: o sótão e a adega, a lareira e a
janela do terraço, os cantos escondidos, uma banqueta, um espelho
domado, uma concha lascada (TUAN, 1983, pg.160).
Assim, pode-se dizer que para Relph (1976), o sentido do lugar deve ser pensado
a partir da oposição entre um sentido autêntico ou inautêntico, os quais promoveriam
lugares autênticos ou inautênticos, respectivamente.
2.3 Outras abordagens do lugar na geografia
Apesar da grande expressividade que a corrente humanista obteve, com amplas
discussões sobre o lugar, este conceito também foi discutido (e vem sendo discutido
atualmente) sob outros aspectos dentro da geografia. David Harvey50, por exemplo,
apresentou severa crítica ao modo como a corrente humanista teorizou o lugar, traçando
reflexões que nos fazem enxergar um lugar menos psicológico e mais relacionado com os
acontecimentos globais. Avançando neste sentido, Doreen Massey indica o caminho de
uma perspectiva mais integradora do lugar, reconhecendo seus sentidos e significados, mas
direcionando essas particularidades do lugar a um sentido global. Nicholas Entrikin, Tim
Cresswell, Andrew Merriefield e Tim Oakes, podem ser citados como geógrafos que
desenvolveram uma abordagem do lugar que fosse mais objetiva do que a proposta
humanista, mas sem esquecer a importância da subjetividade na construção do lugar. John
50
Harvey questiona, por exemplo, a validade para a compreensão do mundo atual, das noções de
enraizamento, ou mesmo de uma relação autêntica com determinados lugares (HARVEY 1996 in FERREIRA
2000).
114
Agnew ratifica a importância de que os diferentes aspectos do lugar sejam tratados de modo
complementar nas reflexões, e não como incompatíveis.
...by involving the notion of an ‘in between’ it seeks to understand how
two polar opposites can be brought together rather than to comprehend
how the locus of place is a unity containing within itself different aspects.
The dialectical standpoint opposes the reification (MERRIFIELD, 1993,
pg. 519).
2.3.1 A crítica do lugar
Apesar da dificuldade e do perigo em enquadrar e rotular determinadas
perspectivas como parte de uma linha teórica, nos lançamos aqui ao esforço de sistematizar
algumas abordagens da geografia que tratam o lugar a partir de uma perspectiva marxista.
Na década de 1970, a mesma em que como vimos, a corrente humanista
manifestou-se com grande vigor na renovação do pensamento geográfico, ganham enorme
projeção, idéias que postulavam um maior comprometimento político do espaço. Ou seja, é
inaugurada uma corrente geográfica que privilegiaria a análise do “papel do capitalismo
como a força fundamental da organização do espaço” (GOMES, 1996, pg.286). A chamada
geografia radical nasce como um projeto de total renovação da geografia, primeiramente
através de críticas severas dirigidas não só à geografia quantitativa, como também aos
geógrafos tradicionais, e posteriormente através da incorporação51 dos conceitos advindos
do marxismo. “O espaço aparece efetivamente na análise marxista a partir da obra de Henri
Lefébvre” (CORRÊA, 1995, pg.25).
Em relação à chamada geografia teorético-quantitativa, baseada no positivismológico, a crítica girava em torno da idéia de que o total comprometimento com modelos
51
Sobre a questão da diferenciação no modo de incorporação do arcabouço teórico marxista na geografia
francesa e na geografia anglo-saxônica, ver GOMES, 1996, páginas 284 e 285.
115
matemáticos e estatísticos afastava a análise do espaço de questões fundamentais,
relacionadas à política, às desigualdades sociais, etc. Assim, para os críticos, os trabalhos
da geografia quantitativa eram omissos em expor os problemas existentes na ocupação do
espaço pela sociedade, o que, portanto, caracterizaria uma geografia que estava servindo a
interesses da burguesia hegemônica. As restrições feitas aos geógrafos tradicionais
seguiam, em um certo sentido, uma linha parecida com as que foram dirigidas aos
quantitativos. A geografia tradicional também era acusada de desviar o foco das reflexões
para longe de uma abordagem política do espaço. Diferentemente, no entanto, procedia
assim através de suas monografias regionais, que atribuíam à geografia a condição de
“ciência de síntese”, que seria capaz de desvendar diversos aspectos da relação do homem
com a natureza. No entanto, para os “críticos”, os geógrafos tradicionais aplicavam critérios
vagos, que não ultrapassavam um empirismo, que reduzia os estudos em geografia a uma
coletânea de dados sobre a natureza de uma dada região.
Com isso, muitas críticas caminharam no sentido de considerar...
...a ciência em sua forma dominante como um instrumento de alienação
social, e os métodos positivistas como procedimentos eficazes para
reproduzir os modelos de desigualdade social e espacial. Esta crítica é
uma das mais difundidas nos textos dos geógrafos radicais... (GOMES,
1996, pg.278).
Assim, os geógrafos radicais acreditavam que poderiam inaugurar uma nova
abordagem da organização espacial, à qual seria imprescindível um método objetivo,
baseado no materialismo-histórico e dialético, que pudesse explicar de modo “científico” as
contradições existentes e inerentes à produção do espaço social. Ao mesmo tempo em que
estabeleciam uma perspectiva de análise que se pretendia mais precisa do que aquelas dos
corologistas, a explicação e a objetividade da geografia radical não se reduziam a modelos
116
matemáticos ou sistemas explicativos, os quais ganharam enorme importância na corrente
quantitativa.
...a objetividade possui uma natureza diferente daquela estabelecida pela
ciência positivista, e só através dela se poderá, por assim dizer, revelar a
estrutura da realidade última(...)... tal corrente acredita estar fundada sobre
o conhecimento da essência dos fatos, e não das suas aparências
(GOMES, 1996, pg.279 & 280).
Mais detidamente no que concerne ao conceito de lugar, os geógrafos marxistas
teceram críticas ferozes às abordagens da corrente humanista, baseadas na fenomenologia e
no existencialismo. A visão do lugar como um centro de relações afetivas, repleto de
significados e valores psicológicos, com um forte comprometimento com o passado, será
apontada pelos “radicais” como mais uma forma de descolar a análise da dinâmica espacial,
de questões “mais importantes”, relacionadas aos conflitos sociais e à importância do
capitalismo na produção do espaço. David Harvey foi um dos mais severos críticos das
proposições trazidas pelos humanistas quanto ao lugar. Harvey contestava totalmente a
aplicação de noções como enraizamento e autenticidade como critérios válidos para a
compreensão do lugar na geografia. “David Harvey argued that the idea of significance to
man was “empty of any meaning…” (ENTRIKIN, 1991, pg.89). Na verdade, Harvey
acredita que a idéia de um lugar pretensamente homogêneo, em que os indivíduos
reconhecem um “sentido do lugar”, em que o lugar tem um espírito e uma personalidade, os
quais devem ser preservados das possíveis influências exteriores, é oportuna para a
manutenção de privilégios de uma classe social sobre determinada área. Assim, Harvey
entende os discursos que “defendem” este lugar “fechado”, como legitimadores da
formação de “guetos” de luxo. De outra forma, o lugar é visto por Harvey como em
contínua modificação, sendo constantemente reformulado nos diferentes momentos em que
os fluxos de capital se infiltram e renovam o lugar.
117
Há momentos, cada vez mais freqüentes, em que a lógica através da qual o lugar é
organizado já não satisfaz os interesses do capital. A partir daí, faz-se necessária à
aplicação de um novo conjunto de diretrizes para a arrumação das pessoas e dos objetos no
lugar. Alguns locais desaparecem, enquanto outros são criados, os que permanecem têm
seu conteúdo e/ou sua forma modificados, tudo para que a relação dos fluxos (econômicos,
de pessoas, etc.) com o lugar se estabeleça de modo cada vez mais coordenado. É evidente
que as técnicas desempenham um importante papel nesta renovação dos lugares, ou seja, os
mais recentes aparatos da telecomunicação e dos transportes são dispostos de modo
estratégico no lugar. Uma das principais conseqüências dessa progressiva “tecnificação” do
lugar é o fato de presenciarmos hoje, uma verdadeira guerra entre os mais diversos lugares,
que investem cada vez mais alto para se apresentarem como adequados às “novas”
exigências das grandes empresas, o que significa lutar por uma participação cada vez maior
no desenvolvimento econômico mundial. Neste sentido, Harvey, por exemplo, acredita que
essa competição entre os lugares pelo recebimento de fluxos econômicos, é um dos motivos
que fazem com que em vez de perderem sua importância no mundo contemporâneo, os
lugares tenham ampliado sua visibilidade e participação no contexto de avanço da
globalização. “...the qualitative aspects of place – the quality of life – have increased in
importance when a multinational company (for instance) chooses a location”
(CRESSWELL, 2004, pg.59).
Milton Santos lembra que o lugar não nos dá somente a oportunidade de conhecer
o mundo como ele é, através das reminiscências ou das “rugosidades”, como prefere o
autor, que nos falam do passado, mas, principalmente, o lugar nos possibilita vislumbrar o
futuro. Dessa maneira, através da imprevisibilidade do evento, abre-se a chance...
118
...de construir uma história das ações que seja diferente do projeto dos
atores hegemônicos. É esse o grande papel do lugar na produção da
história, e aponta-lo é a grande tarefa dos geógrafos neste fim de século
(SANTOS, 2002a, pg.163).
Ainda sim, talvez a maior expressão da contundência dos apontamentos da
chamada geografia radical tenha sido Yves Lacoste. Este autor pretendia alçar a geografia a
uma posição epistemológica que pudesse superar as limitações das teorias e métodos
desenvolvidos pelos geógrafos tradicionais (“a geografia dos professores”). Criticava
também a utilização da geografia como fonte teórica para os empreendimentos da burguesia
e do Estado. Em uma de suas principais argumentações, Lacoste utiliza a idéia de lugar
para analisar a submissão popular ao Estado e às “forças hegemônicas”, diante do poder de
organizar o espaço. O autor nos lembra que o Estado e as grandes empresas possuem “uma
visão integrada e articulada do espaço”52, já que possui informações sobre os diversos
lugares, o que não ocorre com a população, que vive uma idéia de um espaço restrito sob à
vista de um bairro, uma cidade, “pois só concebe os lugares abarcados por sua vivência
cotidiana”53. Assim, Lacoste defende que este conhecimento sobre a lógica que rege a
organização do espaço deve ser compartilhado com a massa da população, o que poderia
tornar-se um valioso instrumento de combate aos chamados agentes hegemônicos. Nos
parece, que para Lacoste o lugar relaciona-se com uma localização que possui dinâmicas
(sociais e econômicas) próprias, e que está indissociavelmente e mutuamente dialogando
com a totalidade.
Para a geografia crítica, a especificidade do lugar advém do papel que este
representa na dinâmica capitalista. Na definição do conceito, não é necessário que o lugar
desfrute de uma longevidade para que seja relevante, mas que desempenhe uma função
52
53
(LACOSTE, In: MORAES, 2005, pg.122).
Id.
119
importante que o diferencie dos demais. Com isso, um lugar se destaca, e, por conseguinte,
torna-se singular, a partir de sua maior ou menor capacidade técnica e de comunicação, por
exemplo. À medida que o lugar apresenta uma estrutura funcional adequada, tem-se a
impressão de que o mundo necessariamente passa pelo lugar, de que os fluxos globais não
só atravessam-no, como estabelecem uma relação dialética com o lugar. Neste sentido, é
exatamente essa relação dos fluxos globais com as condições locais, que produzem o lugar
na geografia crítica. Assim, o lugar é definido a partir das relações que mantém com a
totalidade, a qual seria manobrada pelo movimento histórico do capitalismo. Desse modo, a
especificidade do lugar mantém, então, uma ligação indissociável com o tempo histórico,
na medida em que o significado do lugar se modifica à medida que o capitalismo se
transforma.
O lugar, aliás, define-se como funcionalização do mundo e é por ele (lugar) que o
mundo é percebido empiricamente (...) Assim, cada lugar se define tanto por sua
existência corpórea, quanto por sua existência relacional (SANTOS, 2002a,
pg.158 & 159).
Assim, Milton Santos54 acredita que o lugar é o espaço banal, espaço da
concretude, em que as relações sociais se materializam. O lugar é, principalmente, “o
depositário final, obrigatório, do evento” (SANTOS, 2002, p.144). O evento é trabalhado
pelo autor como uma categoria de análise, portador de uma ação do presente, possuindo
conteúdo e significação. O evento pode ser o vetor das possibilidades existentes num lugar,
o qual é constituído por uma combinação quantitativa e qualitativa específica de vetores
(SANTOS, 2002).
54
“O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas
de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da
ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade” (SANTOS, 2002,
pg.322).
120
Vemos aí, que o lugar é tomado como a área de ocorrência dessa ação do
presente55, em que os sujeitos produzem transformações, modificando dramaticamente os
conteúdos e os significados pré-existentes. Há uma superposição de tempos e escalas, uma
simultaneidade de acontecimentos em que as relações de espaço e tempo se fundem.
É através do evento que podemos rever a constituição atual de cada lugar
e a evolução conjunta dos diversos lugares, um resultado da mudança
paralela da sociedade e do espaço (...) Por isso a cidade grande é um
enorme espaço banal, o mais significativo dos lugares (SANTOS, 2002,
pg.155 e pg.322).
Ana Fani Carlos identifica essa mudança sócio-espacial indicada por Milton
Santos como o processo de globalização, que avança em ritmo mais acelerado nas últimas
décadas, e nos impõe a necessidade de redefinir o lugar. A autora acrescenta ao debate, que
cada lugar tem uma história particular, que se realiza em função de cultura, hábitos, que lhe
são próprios, somados ao que vem se impondo de fora, “como conseqüência do processo de
constituição do mundial” (CARLOS, 1996, p.20).
Desse modo, o lugar deve ser compreendido principalmente como uma
configuração de processos heterogêneos específicos, contidos no processo global. Assim,
seria impensável discutir o conceito de lugar e suas implicações na dinâmica espacial de um
equipamento urbano, se perdêssemos a noção do todo, já que “o lugar representa e fixa
relações e práticas sociais produzindo uma identidade complexa que diz respeito ao mesmo
tempo ao local e ao global” (CARLOS, 1996, p.68). A constituição do lugar, então, ocorre
a partir de usos que os sujeitos fazem daquela porção do espaço, que por sua vez expressam
um conjunto de formas de apropriação deste espaço.
55
O fato de não haver um evento sem um sujeito faz com que Milton Santos afirme que, de fato toda teoria da
ação é também uma teoria do evento.
121
Avançando na reflexão sobre o lugar, Doreen Massey56 faz uma crítica clara à
concepção da geografia humanista à cerca do lugar, a qual seria extremamente idealizadora.
A crítica é feita com base na contraposição à idéia de que houve um tempo em que
comunidades ou indivíduos coerentes mantinham uma relação de afetividade total com o
lugar, produzindo uma identidade genuína, possível de ser totalmente distinguida de
qualquer outra. Assim, Massey acredita que nunca houve uma relação em tal grau de
estabilidade, entre comunidades supostamente homogêneas e seus lugares genuínos e
“puros”. Ademais, percebe-se uma incompatibilidade entre esta concepção de um lugar
“fechado”, voltado para um passado de histórias, símbolos e evocações de acontecimentos
particulares, e a realidade atual, caracterizada por fragmentações e rupturas. Na verdade,
esta concepção reaparece como uma possibilidade de refúgio das incertezas, da insegurança
e das constantes modificações que se apresentam no mundo globalizado. O lugar aparece,
então, como uma válvula de escape, como uma chance de parada e de reencontro com uma
identidade mais estável que nos promoveria (ou simplesmente nos passaria a idéia de)
maior segurança. Com isso, a concepção de um lugar fechado em seu próprio sentido
particular e em suas fronteiras nada porosas, como uma instância separada do restante da
realidade, nos passa a sensação de imobilidade em relação a uma porção do espaço que
permanece parada no tempo, imune às constantes modificações que o homem promove na
organização espacial.
Neste sentido, se estabelece a necessidade de repensarmos o lugar e adequarmos
as reflexões à cerca do conceito ao momento em que estamos vivendo. É assim que
podemos chegar à formulação de um lugar que não tenha um sentido pretensamente
56
Em MASSEY (2002) a autora não atribui em nenhum momento, diretamente, ou nominalmente, as
referidas críticas à corrente conhecida como geografia humanista.
122
compartilhado por todos, mas que se reconheça que cada indivíduo possui suas impressões,
histórias e experiências concernentes a um lugar. Da mesma forma, se tentarmos ampliar
nossa escala de análise quanto ao lugar, podemos perceber que esses sentidos e significados
não são unicamente produtos de uma história “fechada”, construída no interior do lugar,
mas que são conseqüência também, de diversas influências que brotam, cada vez mais, das
mais variadas áreas do planeta, e que são determinantes para se compreender o lugar.
Então, longe de haver uma identidade coesa, estável e que tenha suas origens circunscritas a
fronteiras pré-estabelecidas, o lugar pode ser entendido a partir de um sentido global, que
não despreza as especificidades, mas que “mistura” a história do lugar às relações que este
mantém com o resto do planeta (MASSEY, 2002). É justamente o modo particular como
essa “mistura” ocorre, que promove a singularidade do lugar.
2.3.2 Em busca de uma visão “integrada” do lugar
As
novas
tecnologias
das
comunicações
e
dos
transportes
alteraram
definitivamente o nosso sentido de lugar. Associado a isso, está a polaridade fundamental
da consciência humana, entre os pontos de vista da subjetividade e da objetividade
(ENTRIKIN, 1991). A partir da objetividade, o lugar é tratado como parte de um todo,
estando inserido em determinado período histórico. Portanto, a partir desta perspectiva,
pode-se esperar que o lugar sofra freqüentes mutações, já que seu sentido está
indissociavelmente relacionado com a sucessão do tempo histórico. Por outro lado, a
subjetividade reflete sobre um lugar que está além do tempo histórico, e que se encontra
descolado do restante entorno. Neste sentido, Entrikin lembra que refletir sobre o lugar
através de apenas uma dessas visões, não nos levará a uma compreensão mais clara do
123
conceito de lugar, e nem de sua importância para o entendimento do mundo atual. Desta
forma, o autor sugere uma apreensão do lugar que combine as duas perspectivas, como um
caminho mais promissor para um entendimento menos subjetivo ou objetivo do lugar. “To
understand place requires that we have access to both, an objective and a subjective
reality(…)Place is best viewed from points in between” (ENTRIKIN, 1991, pg.5).
Assim, Entrikin busca uma abordagem que seja capaz de teorizar sobre um lugar
que carregue consigo duas dimensões indissociáveis. É justamente da tensão entre a
subjetividade e a objetividade, que nasce o lugar composto pela dimensão material, aquela
que nos fala da localização dos objetos, de sua distribuição objetiva no espaço e da relação
do lugar com a totalidade; e pela dimensão abstrata, aquela que trata dos símbolos e dos
significados que são atribuídos pelos indivíduos ao lugar, e que dão sentido à própria
arrumação dos objetos e das pessoas nesta porção do espaço geográfico. Privilegiar apenas
uma dessas dimensões nos conduzirá, ou a uma perspectiva em que a importância do lugar
como componente fundamental da identidade do indivíduo seja por demais diminuída, ou,
por outro lado, a tratarmos o lugar como um fenômeno apenas abstrato, desprovido de
materialidade.
We live our lives in place and have a sense of being part of place, but we
also view place as something separate, something external. Our
neighborhood is both an area centered57 on ourselves and our home, as
well as an area containing houses, streets and people that we may view
from a decentered58 or an outsider’s perspective. Thus place is both a
center of meaning and the external context of our actions (ENTRIKIN,
1991, pg.7).
Na verdade, Entrikin trabalha uma idéia de lugar que é tributária de uma mediação
entre as perspectivas dos neomarxistas, que estão muito atentas às relações mantidas entre a
circulação do capital, a influência das técnicas e das estruturas sócio-espaciais e o lugar, e a
57
58
O grifo é nosso.
Id.
124
perspectiva dos humanistas, com seus significados e valores atribuídos ao espaço, que então
se torna lugar. As análises que trabalham somente com os aspectos subjetivos do lugar são
classificadas pelo autor como uma perspectiva “centrada”, em oposição a uma abordagem
“descentrada”, relacionada às análises que enfocam o lugar a partir de uma perspectiva
mais objetiva.
A corologia de inspiração neo-kantiana confiava mais na intuição do pesquisador,
do que nos estudos teóricos. Com isso, a carência de uma visão que também levasse em
consideração uma dimensão mais objetiva da realidade, foi vista como um problema, tanto
pelos corologistas como por seus críticos. Posteriormente, os geógrafos humanistas
tomaram essa via de afastamento de qualquer tipo de objetividade na análise, vendo-a não
como um problema, mas como um aspecto positivo de uma verdadeira ciência humana
(ENTRIKIN, 1991). Os geógrafos humanistas restringiram ao máximo a importância da
dimensão física na construção da idéia de lugar. Assim, negando-se a qualquer tipo de
aproximação com uma perspectiva “descentrada”, criaram um lugar “fechado”, ou seja,
voltado obrigatoriamente para um passado estável, que muitas vezes pode ser reconhecido
como significativo não só pelo indivíduo, como também por uma “comunidade”. Com isso,
para que um grupo de pessoas compartilhe sentimentos e valores tão profundos, é
necessário um prévio envolvimento conjunto (de longa duração), que permita a todos,
reconhecer o “espírito” do lugar. Impõe-se, portanto, a existência de uma comunidade
“homogênea”, na medida em que devem partilhar os mesmos significados historicamente
construídos, os quais não podem ser afetados pelo mundo exterior. O lugar torna-se assim
uma redoma, que deve permanecer imunizada das “contaminações” externas, já que estas
poriam em risco a pureza e a estabilidade do envolvimento psicológico da comunidade, o
qual é capaz de promover aquilo que a perspectiva existencialista chama de
125
“intersubjetividade”. O “lugar humanista” acaba trazendo certas dificuldades para uma
análise dos movimentos do dias atuais, que em geral estão cada vez mais distantes do que
Oakes chama de “place/community-based, as in "traditional societies"” (OAKES, 1997, pg.
510).
The rekindling of interest among social scientists in the study of place has
been connected to an effort to divorce place from ideas of traditional
community (…) discourages the romanticism that has prevented a proper
understanding of the role of place in modern life (ENTRIKIN, pg.60).
Entretanto, as críticas dos geógrafos que pretendem abordar o lugar de forma mais
integradora atingem também a perspectiva crítica do lugar. Nicholas Entrikin e Nigel Thrift
fazem duras críticas à visão de David Harvey, a qual partilha da idéia de que a
especificidade dos lugares advém do fato de que o desenvolvimento não ocorre da mesma
forma e ao mesmo tempo nas diferentes áreas do planeta. Entrikin define esta abordagem
de Harvey como uma “ortodoxia marxista”, e Thrift, como uma estratégia reducionista, que
seria desafiada pelos chamados “contextualistas”, os quais vão procurar manter uma
conexão com a teoria marxista, mas atribuindo uma atenção especial e necessária à
consciência humana (ENTRIKIN, 1991). Fazendo parte dos “contextualistas”, Thrift
lembra que “there is more to subjectification than the logic of the economy – a lot more”
(THRIFT, 1987, pg.406 in ENTRIKIN, 1991, pg.50).
2.4 O não lugar
126
Apesar de receber numerosos comentários e apontamentos em trabalhos de
diversas áreas das ciências sociais, notadamente na sociologia, na antropologia e na
geografia, são poucos os trabalhos que se detém a uma análise um pouco mais
pormenorizada sobre a idéia do não lugar. Esta constatação pode dar a impressão de ser
paradoxal, já que diante de um mundo em pleno e avançado processo de globalização, a
idéia daquilo que se vem apontando como não lugar parece resolver muitos problemas e
inquietações. Da mesma forma, por ser o lugar considerado um conceito basilar na
geografia, o que se poderia esperar dos geógrafos seria um movimento rápido e
contundente no sentido de esclarecer a idéia do não lugar, estabelecendo um debate amplo
sobre seus alcances e limites. Inclusive, talvez fosse este, o momento para que a geografia
promovesse novas reflexões sobre o próprio lugar, que pudessem avançar para além das
idéias da chamada corrente humanista, que ainda domina este conceito na geografia. De
certa forma, isto parece ter acontecido, e como dissemos anteriormente, autores como
Entrikin, Cresswell, Merriefield e Oakes, representam uma tentativa de renovação da
perspectiva do lugar na geografia. Apesar disso, estas tentativas de promover uma
renovação na abordagem do lugar parecem ainda não ter sensibilizado efetivamente a
geografia brasileira. No entanto, os debates que incluem o não lugar como um desafio
conceitual e metodológico para as ciências sociais, e neste conjunto, mais especialmente
para a geografia, ainda são escassos. O único autor da geografia que promoveu uma
reflexão mais atenta sobre o não lugar, foi Edward Relph59, há exatamente trinta anos
(1976). Passados vinte anos, recentemente, em 1996, o antropólogo Marc Augé60
apresentou um trabalho voltado especificamente para o tema em questão. Ou essas duas
59
60
“Place and Placelessness”
“Não Lugares: Uma Antropologia da supermodernidade”
127
obras encerraram completamente a questão, ou constata-se um certo descompasso entre o
uso corrente (indiscriminado) da idéia do não-lugar, e a pequena discussão teórica
produzida a respeito, já que essas três obras formam a base das formulações sobre o não
lugar nas ciências sociais. Assim, distante da pretensão de querer desfazer esta impressão
de ausência quanto à discussão do não-lugar descrita na seqüência acima, objetivamos
resgatar certas idéias, e quem sabe contribuir para esclarecer algumas noções que fazem
parte deste conceito pouco discutido e ao mesmo tempo tão utilizado.
O não-lugar é caracterizado por locais que apresentam arquitetura estandardizada,
nos quais os modismos, o consumismo e o pragmatismo, valores cada vez mais difundidos
e aceitos na contemporaneidade, desvirtuam valores “genuínos” como afetividade,
memórias, vivência. Neste sentido, pode-se considerar o não-lugar como uma experiência,
que segundo alguns autores, torna-se cada vez mais comum nos dias atuais. Aquilo que
Henri Lefébvre chama de “Espaço Abstrato”, parece guardar uma grande proximidade com
a conceituação do não-lugar:
...the homogenizing efforts of the state, of political power, of the world
market, and of the commodity world – tendencies which find their
practical expression through and in abstract space (…) Abstract space
works in a highly complex way (LEFÉBVRE, 1991, pgs.64 & 56).
Pode-se considerar a idéia do não lugar como tributária das concepções que tratam
o lugar como um ponto de refúgio, de segurança, diante da avalanche de incertezas e
efemeridades características do mundo atual. O fenômeno do não lugar é a erradicação
casual de lugares significativos e a produção estandardizada de paisagens que resultam de
uma insensibilidade em relação à significância do lugar. Resulta de um enfraquecimento da
identidade dos lugares ao ponto em que fica sensível, o fato de que oferecem o mesmo
conjunto de possibilidades para a experiência (RELPH, 1980). Relph vê o espaço
128
existencial de uma cultura de aborígines, por exemplo, como um espaço sagrado, permeado
por aspectos simbólicos. Já os espaços experimentados pelas culturas mais tecnológicas e
industriais seriam funcionais, práticos, objetivos. Os “novos” espaços, produtos do
desenvolvimento urbano contemporâneo, são, portanto, apontados como uniformes e
cuidadosamente planejados. Este planejamento dos espaços, que lhes dá um aspecto de
uniformidade, é visto como um atentado aos possíveis significados e afetividades que se
pode manter com uma porção do espaço.
Além disso, o próprio sentido do lugar é
desvirtuado, tornado inautêntico, permeado por modismos e valores que afastam o homem
de sua condição de organizador de um espaço que seja uma representação genuína de seus
significados e identidades, e o aprisionam na vivência cotidiana de um espaço
estereotipado, produzido em série, em que o indivíduo toma a condição de um verdadeiro
receptáculo de valores e idéias superficiais, mas muito eficientes para a manutenção e
ampliação do sistema econômico global da contemporaneidade. “And today, as the
uniqueness of places becomes more and more threatened by the homogenizing veneer of
commercialism and standardized-component architecture...” (BUTTIMER, 1980, pg.166).
A atribuição destes adjetivos aos espaços mais “modernos” traduz uma idéia de
crítica e desilusão por parte dos autores da geografia humanista. Este discurso nos traz
novamente a impressão de que o lugar como “...espaço dotado de valor” (TUAN, 1983, pg.
6) é um espaço aprisionado ao passado, impossível de ser verificado e produzido no mundo
atual, em meio às perversidades da tecnologia e da objetividade, que fazem dissipar os
lugares. As experiências singularidades e a construção de um sentido autêntico do lugar se
tornam impraticáveis em meio à parafernália tecnológica do mundo “moderno”.
129
Relph não menciona exemplos de não lugares em sua definição, ainda que em sua
obra Place and Placelessness, redija uma lista daqueles espaços que devem, segundo ele,
ser enquadrados naquele conceito. Por outro lado, Marc Augé acredita que:
os não lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada
de pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto
os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou
ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os
refugiados do planeta (AUGÉ, 1994, p.36).
2.4.1. As raízes do conceito na abordagem de Edward Relph
Na geografia, a idéia do não lugar surgiu exatamente no momento em que o lugar
tomava uma posição importante nos debates a cerca da organização do espaço do homem.
No livro Place and Placelessness de Edward Relph, demonstrava uma clara inquietação
não só com a objetividade e a sistematização dos geógrafos quantitativos, o que foi regra
entre a corrente humanista da qual faz parte, como também em relação a importantes
modificações que apareciam expressivamente no cenário urbano da época, e que na verdade
faziam parte de um processo importante61 de profundas modificações nas relações sócioespaciais.
A percepção do autor girava em torno do fato de que a produção do espaço não
estava mais sendo feita de modo a representar os valores históricos de determinada
comunidade ou a expressar suas raízes através da constituição do bairro, da cidade, ou
mesmo do país. Este processo torna-se cada vez mais claro, na medida em que até a própria
61
Podemos identificar este processo mais geral de modificações nas relações sócio-espacial, como um
momento de avanço daquilo que se entende por globalização.
130
casa passa a ser um produto feito em série, com o propósito objetivo de servir à moradia e
nada mais. Abandonara-se o tempo em que a construção do lar seria concebida a partir das
necessidades específicas de determinada família, sendo, portanto a representação material
do estilo e dos valores dos proprietários. “...the home, the central reference point of human
existence” (RELPH, 1976, pg.20).
Assim, o que fica claro no discurso de Relph, é a necessidade de se observar que
essas mudanças visíveis na paisagem urbana, que chegam a ponto de afetar de algum modo
o significado do espaço do lar, não são resultado de motivações geradas pela própria
população envolvida. Não foram as demandas, as novas formas de se organizar o espaço ou
os novos valores, produzidos pelas comunidades locais, que alteraram a paisagem e os
lugares. Essas modificações foram impostas por planejadores, arquitetos, que não trazem
em seus projetos os significados e as características que promovem um forte sentimento de
pertencimento por parte de determinado grupo social a uma determinada porção do espaço.
Com isso, pela falta de envolvimento com as especificidades de cada área, as construções
planejadas, em geral, também não têm representatividade alguma quanto às aspirações
futuras de cada comunidade.
Essas alterações “impostas” pela necessidade de prover maior eficiência e
funcionalidade a determinados espaços, que por sua vez tornam-se então atrativos a
investimentos maiores, promovem uma progressiva diminuição da identificação e do
sentimento de pertencimento do indivíduo a um lugar que praticamente já não existe mais.
Dessa forma, quanto à disposição dos objetos no espaço, impera a lógica de satisfação de
interesses econômicos de escalas cada vez maiores, em detrimento dos valores produzidos
pela experiência humana no espaço, seja através de movimentos coletivos, ou de práticas
individuais, os quais têm uma representatividade cada vez menor na paisagem. “The space
131
of city planning, however, is not based on experiences of space, but is concerned primarily
with function in two-dimensional map space” (RELPH, 1976, pg.22)
A descaracterização da paisagem e a produção de um sentido de lugar artificial,
característicos dos espaços planejados fazem com que a diversidade de experiências, e a
possibilidade de que cada experiência seja única, em uma vizinhança do subúrbio dos EUA,
ou em um shopping center, por exemplo, seja mínima.
2.4.2 Augé e o não-lugar da supermodernidade
O antropólogo francês Marc Augé procede à análise do lugar e do não-lugar como
parte de uma reflexão sobre a contemporaneidade. Aquilo que o autor chama de
“supermodernidade”, resume os processos de “aceleração” da dinâmica do planeta, através
dos meios de transporte e de comunicação de última geração. Augé lembra a necessidade
de estarmos vigilantes para não cairmos em análises obsoletas frente à realidade mutante.
Acrescente-se a isso, portanto, o fato de que se os trabalhos das ciências sociais pretendem
acompanhar (ou pelo menos tentar) as rápidas mudanças da realidade, é fundamental que
estejam prontos a teorizar sobre novos objetos, situações, espaços e relações. “O próprio
mundo contemporâneo que, por causa de suas transformações aceleradas, chama o olhar
antropológico, isto é, uma reflexão renovada e metódica sobre a categoria da alteridade”
(AUGÉ, 1994, p.27).
Augé nos fala de um período de excessos, de tempo, de espaço, em que os
historiadores, economistas, antropólogos, geógrafos, ficam muitas vezes perdidos com
tantas variáveis e tantas mudanças acontecendo (rapidamente) de tal modo, que somos
levados a repensar nossas referências de tempo e espaço. Essa é uma imposição drástica da
132
supermodernidade, ela nos impele a revermos nossas bases mais primárias, ela mexe com o
íntimo de nossa reflexão e com o modo pelo qual encaramos a individualidade e a vida em
sociedade.
A incrível intensidade dos fluxos de pessoas, mercadorias, informações e da
própria vida de um modo geral, promove, segundo Augé, um acúmulo factual, um
verdadeiro entupimento dos canais de compreensão da vida, da história e dos sentidos que
atribuímos a essas referências básicas. Assim, concordando com Bauman, o autor francês
entende que a progressiva sensação de ausência de sentido para a vida, para a história e o
mal estar decorrente dessas percepções, nos trazem uma necessidade constante de
reafirmação e/ou busca por significados e valores que diminuam nosso incômodo. Tornamse recorrentes os momentos em que lançamos mão de idéias e conceitos que nos ajudem
nessa tarefa; comunidade, identidade, enraizamento, autenticidade são palavras, conceitos e
idéias que parecem confortar, que nos dão a impressão de que procedemos a uma pausa, ao
reconhecimento de singelas manifestações daquilo que nos é familiar, em meio ao
desconhecido que teima em prevalecer. Essa preponderância (da “velocidade” que é motor
fundamental na produção) do desconhecido pode ser concebida a partir da idéia de que
quando caminhamos em direção ao fenômeno, com o objetivo de reconhecê-lo,
compreende-lo e quem sabe, dotar-lhe de significados, este já se metamorfoseou e/ou, foi
metamorfoseado pelo intenso ritmo da supermodernidade. A idéia de que podemos ter
“acesso instantâneo ao mundo inteiro” (através dos meios de comunicação) e de que nossos
atos podem ganhar uma escala jamais imaginada, traz aos ombros um peso proporcional,
que faz com que o indivíduo tente, pelo menos em alguns momentos, se afastar desse
mundo que se constitui com base no desconhecido. A busca por aquilo que nos é familiar (à
qual nos referimos anteriormente) torna-se materializada em rotas de fuga inscritas no
133
espaço físico. Muitos entendem que o lugar é o conceito mais adequado para nos fazer
compreender essa fuga em direção a uma porção do espaço mais aconchegante.
Todavia, esse espaço enraizado na memória, essa “terra natal”, não é o espaço que
prevalece na supermodernidade. Neste sentido, há um outro tipo de experiência produzindo,
por conseguinte, um outro espaço. Para Augé, estamos falando, nesse caso, do não-lugar,
dos espaços de circulação rápida, pasteurizados em prol da aceleração da velocidade com
vistas à ampliação da realização do lucro. Aí, mais uma vez, pode-se fazer menção a uma
necessidade de revermos alguns aspectos de nossa compreensão do processo social, ou seja,
estamos diante de um determinado momento que nos impõe, inclusive, “novos” arranjos
espaciais.“...vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender
a pensar o espaço” (AUGÉ, 1994, p.37). Nesse “novo” espaço de que fala Augé, não há
tempo para enraizamentos, memórias e construções que sejam a expressão de uma cultura,
ou de uma identidade “genuína”. Neste sentido, a homogeneização toma conta também da
produção do espaço, a partir do nascimento do não-lugar.
De certo modo, essa busca por aquilo que nos é familiar, pode também promover,
por outro lado, o desenvolvimento de um olhar fantasioso sobre o passado. A idéia de uma
sociedade tão transparente, da produção de lugares legitimados pela cultura e pelos rituais
tradicionais, de uma estabilidade que permeia um mundo fechado, intocado, produto
inteiramente genuíno das origens e dos valores do grupo social, “prolonga a fantasia e
aumenta a ilusão” (AUGÉ, 1994, pg.45). Ou seja, em direção a uma minoração do
desconforto trazido pela impessoalidade característica da supermodernidade, pintamos os
saudosos momentos e lugares pretéritos com cores que parecem realçar nossa insatisfação
com o presente, mas que nem por isso retratam a realidade desses tempos passados. Neste
134
sentido, ao mesmo tempo em que se afasta das “fantasias”, Marc Augé relembra que o
lugar é, sim, revestido de valores, significados e identidades históricas.
Para Augé, o lugar é composto por três requisitos básicos; um componente
identitário, um histórico e um relacional. O lugar pode ser definido como sendo
fundamentado por uma dimensão concreta e por uma dimensão simbólica, sendo
“simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de
inteligibilidade para quem o observa” (AUGÉ, 1994, pg.51). O lugar mantém uma relação
dialética com a identidade (individual e/ou de um grupo social). Assim, se por um lado o
indivíduo pode, por exemplo, receber um nome que faça referência ao local em que nasceu,
o que poderíamos tomar como a inscrição (“influência”) do lugar no indivíduo, por outro
lado, o indivíduo imbuído da idéia de pertencimento àquela porção do espaço, irá
progressivamente atribuir ao lugar uma série de valores e memórias particulares. Augé nos
lembra que o habitante do lugar “não faz história, vive na história” (AUGÉ, 1994, pg.53).
Por sua vez, esses valores e memórias que passam a dar sentido ao lugar, que vão
construindo o seu “espírito”, são compartilhados entre aqueles que mantém relações
afetivas e históricas com determinada porção do espaço.
Como ressaltamos no parágrafo anterior, há uma relação importante entre os
lugares e os nomes que lhes são atribuídos. Estamos falando daquilo que poderia ser
chamado de Toponímia, ou seja, a possibilidade que os nomes dos lugares têm de externar
particularidades e memórias impregnadas em determinada porção do espaço. Todavia,
Augé, com base em Michel de Certeau, lembra que uma prática muito comum na
supermodernidade é transformar a complexidade de sentidos e significados que envolvem o
lugar, em imagens previamente desenhadas, simplistas, que transformem o lugar em um
produto fácil de ser “vendido”. “Muitos prospectos turísticos sugerem um tal desvio, um
135
tal giro do olhar...” (AUGÉ, 1994, pg.81). Desse modo, o prospecto de turismo parece ter a
função de nos informar quais as experiências que serão vividas em determinado lugar, além
da maneira como devem ser experimentadas. Assim, é como se o próprio nome do lugar,
agora, nos revelasse de imediato, como por associação, aquilo que iremos viver se
concordarmos em participar da viagem. Ou seja, paga-se para simplesmente preencher os
contornos do caminho que já está programado. O “giro do olhar” ao qual Augé se refere,
trata-se exatamente dessa associação do nome dos lugares com noções e idéias direcionadas
pelo “criador de itinerários”, que selecionam aquilo que julgam como “importante” para ser
visto, e empobrecem a experiência do lugar.
O espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não-lugar(...)onde nem a
identidade, nem a relação, nem a história fazem realmente
sentido(...)diante da paisagem que é obrigado a contemplar (AUGÉ,
1994, pg.81).
2.4.3 Lugar, espaço e não-lugar
Todavia, se entendemos o não lugar como uma experiência, que tem como seu
produto final a distorção dos significados mais “humanos” e “autênticos” do lugar, nos
parece que não podemos classificar como não lugar, aqueles locais que estão distantes do
nosso cotidiano, já que um país, uma cidade, ou uma localidade qualquer muito distante de
nós, pode ser apenas mais um ponto no mapa, uma informação abstrata com a qual não
temos nenhum vínculo afetivo, psicológico ou físico. Neste caso, estamos diante do espaço
indiferenciado, cuja identidade podemos ter uma vaga idéia e com o qual não mantemos
nenhum conhecimento sobre seu “espírito” e personalidade. Portanto, este é um caso em
que simplesmente não há qualquer tipo de experiência em relação àqueles locais que não
136
fazem parte de nosso cotidiano, e com o qual, além disso, não mantemos envolvimento de
qualquer espécie. Desse modo, enxergamos uma certa dificuldade de enquadrarmos esta
questão aos contornos da discussão lugar / não lugar, já que não há nenhuma uma relação,
autêntica ou não, com esta determinada porção do espaço. Esta impossibilidade não está
diretamente relacionada ao fato de que o local em questão não faz parte de nosso cotidiano,
mas como dissemos anteriormente, é indissociável do fato de que se trata de uma porção do
espaço com a qual não temos nenhum tipo de vínculo. Se não estabelcemos nenhum
vínculo, estamos falando do espaço, e não do lugar ou mesmo do não lugar. A estes dois
últimos são atribuídos valores, significados, sentidos, diferenciados pela autenticidade e
pela inautenticidade com que são produzidos. Assim, nos parece que dentro da perspectiva
humanista, mais detidamente nas idéias de Edward Relph, o primeiro a teorizar sobre o
não-lugar na geografia, aquele local com o qual não mantemos vínculo de nenhuma
espécie, mesmo que cheguemos a estar nele em algum momento, seria conceituado como
espaço, e não como não-lugar. “Além das fronteiras afetivas / “físicas” e/ou intelectuais
encontra-se o espaço(...), qualquer porção da superfície terrestre(...), distante – “física” ou
mentalmente – estranho e ignorado” (MELLO, 1990, pg.102).
Por outro lado, se mantemos algum tipo de relação com um local muito distante
de nós, se ele tem algum significado para nós, se ele “nos diz alguma coisa”, mesmo que
não faça parte de nosso cotidiano, pode ser considerado um lugar, ou até mesmo um nãolugar, pois há uma relação mediada por símbolos e pelo conhecimento da visão de mundo
que o local projeta, bem como da experiência que proporciona. Desse modo, “uma pessoa
pode conhecer um lugar tanto de modo íntimo como conceitual” (TUAN, 1983, pg.7), já
que “pontos distantes podem ser lugares(...)amados e reverenciados como emocionalmente
próximos” (MELLO, 1990, pg.106). Lembramos, apoiados em Relph, que a produção do
137
não lugar (também) é uma experiência, “uma atitude e uma expressão dessa atitude”
(RELPH, 1976, pg.80), a qual não está relacionada ao fato de fazer ou não, parte do
cotidiano, mas ao tipo de relação através da qual nos envolvemos com o lugar.
Neste sentido, o não lugar não pode ser tratado como a simples antítese do que é o
lugar. Ou seja, aquilo que não se configura como lugar para a geografia humanista, não
pode ser “rebatido” diretamente e definido, portanto, como não lugar. Apesar do prefixo de
negação, não nos parece que a idéia se encerre com este tipo de simplificação.
“Poderíamos, então, ser tentados a opor o espaço simbólico do lugar ao espaço nãosimbólico do não lugar. Mas isso seria ater-nos a uma definição negativa dos nãolugares...” (AUGÉ, 1994, pg.77).
Assim, nem sempre aquilo que não identificamos como lugar, poderá ser
classificado como não lugar. Reafirmamos com isso, que os locais com os quais não
mantemos nenhum tipo de vínculo, os quais não necessariamente devem fazer parte de
nosso
cotidiano,
como
discutimos
anteriormente,
parecem
se
inscrever
mais
adequadamente no conceito de espaço, daquilo que não conhecemos, que é mais abstrato,
que nos traz a idéia de insegurança, de mobilidade, de “amplidão, da liberdade e da
ameaça...” (TUAN, 1983, pg.6).
Apesar de trabalharem com abordagens até certo ponto semelhantes, Relph e
Augé divergem, entre outras questões, sobre a origem temporal dos não lugares. Segundo
Relph, a produção de espaços estandardizados não é uma novidade do mundo
contemporâneo. A novidade desta produção na atualidade seria a escala do fenômeno, ou
seja, vivemos uma época de proliferação dos não-lugares. A cada vez maior rapidez dos
fluxos, que por sinal parece estar sendo o grande diferencial deste estágio avançado da
globalização, além do planejamento dos espaços em prol dessa “eficiência” têm sido dois
138
elementos fundamentais para a homogeneização dos espaços. “In all societies of all times
there has been some placelessness and insofar as lack of care for places provides a context
and comparison it is essential for a sense of place” (RELPH, 1976, pg.80).
Por outro lado, Marc Augé acredita que os não lugares são um fenômeno típico
do mundo contemporâneo, resultado do que ele chama de “supermodernidade”. Como já foi
abordado, este fenômeno estaria relacionado especialmente ao “encolhimento do planeta”, à
rapidez das trocas e ao ego do indivíduo que pretende interpretar por e para si mesmo as
informações. Na verdade, discordamos de Augé, com base em SANTOS (2000), que como
vimos reprova a noção de tempo e espaço contraídos.
É como se o mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão.
Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de
homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são
aprofundadas (SANTOS, 2000, p.19).
Com isso, parece que em vez de se extinguirem, os lugares parecem ter ganho
uma grande importância no que diz respeito à compreensão do mundo atual. Neste sentido,
(AGNEW & DUNCAN, 1989) acreditam que a emergência de uma comunicação de massa,
não leva necessariamente a uma cultura de massa. A argumentação baseia-se na questão da
interpretação das mensagens recebidas. Dessa forma, se a recepção de mensagens é passível
de interpretação, e esta, por sua vez, depende diretamente da natureza da situação
sociológica na qual diferentes espaços de referência operam, o mesmo estímulo não leva à
mesma resposta.
Assim, parece-nos cada vez mais distante a validade de classificações gerais e,
que a priori, procedem a simples apontamentos daqueles espaços que são ou que não são
lugares. As realidades dos lugares são cada vez mais complexas, e neste sentido, são
percebidas e vividas de diferentes formas, por diferentes indivíduos. Neste sentido,
139
acreditamos que a tendência é de proliferação dos lugares, pois a possibilidade de diferentes
interpretações, das inúmeras novas situações do mundo globalizado, com diferentes
formatos e intensidades nas diversas localidades, nos conduz ao entendimento, de que em
vez de desaparecerem, os lugares estão mudando de sentido. Milton Santos acredita que o
incremento da estrutura de circulação representada pela globalização nos conduz ao desafio
de repensar o lugar, já que a uma maior globalidade, corresponde uma maior
individualidade
(SANTOS,
2002).
“Onde
existe
desterritorialzação
há
também
reterritorialização (...) Assim, a desterritorialização não pode significar o fim da localidade,
mas sua transformação em um espaço cultural mais complexo” (TOMLINSON in:
HAESBAERT, 2004, pg.232).
Neste sentido, fazendo uso, como exemplo, do movimento do território descrito
acima, nos parece que no shopping permeado pela sociabilidade, se há uma dimensão da
“deslugarização”, há também uma “relugarização”, uma apropriação também afetiva e
psicológica do espaço do shopping por seus freqüentadores. A partir daí, abre-se, portanto,
a possibilidade de reflexão a cerca de uma dimensão “lugarizada” do shopping. É o que
pretendemos tratar no capítulo 3. Para isto, privilegiaremos a visão de Nicholas Entrikin
sobre o lugar, uma abordagem, que como vimos, acima, procura integrar a dimensão física,
a materialidade e os aspectos objetivos, sem deixar de lado a subjetividade, que marca a
história de cada um dos “insiders” , que vêem naquela materialidade muito mais do que um
espaço, mas um “lugar” de significados.
...vista de dentro, seria uma outra cidade; Irene é o nome de uma cidade
distante que muda à medida que se se aproxima dela. A cidade de quem
passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais
dali (CALVINO, 1990, pg.115).
140
Capítulo 3
O lugar e o não lugar também se encontram no shopping? – conceitos marginais e
desconfortáveis também se encontram no espaço (demonizado) do consumo?
Neste capítulo, objetivamos encontrar algumas indicações de possíveis respostas,
na medida em que questionamos a rotulação do shopping de hoje, regido em grande parte
pela sociabilidade, como um não-lugar.
Dentre as abordagens do lugar que focalizamos no capítulo 2, estaremos
privilegiando a abordagem de Nicholas Entrikin. Este autor, que enquadramos naqueles que
buscam uma visão “integrada” do lugar, é sem dúvida, o que dentre esses, mais aprofundou
as discussões sob esta perspectiva. Entrikin resgata as noções erigidas por Edward Relph,
quanto ao envolvimento e afastamento do indivíduo com uma dada porção do espaço.
Através da diferenciação entre o que ele chama de uma perspectiva centrada (subjetiva) e
descentrada (objetiva) do lugar, Entrikin procura uma abordagem na qual o lugar seja fruto
da tensão entre os aspectos objetivos (privilegiados pela chamada “geografia crítica”) e
subjetivos da experiência (enfatizados pela chamada “geografia humanista”).
Baseada, como afirma Doreen Massey, na concepção de um lugar “fechado”, a
geografia humanista trata de interações estáveis entre comunidades e indivíduos coerentes,
sem dispensar muita importância à dimensão física como fator fundamental da produção do
lugar.
141
Podemos admitir que existam ainda espaços geográficos cujas
características são o resultado de uma interação íntima entre grupo
humano e base geográfica. Mas estes casos são cada vez menos
numerosos; eles parecem ser o resultado de uma falta de dinamismo social
freqüentemente denominado na linguagem corrente, dinamismo
geográfico. Estes não são mais que o resultado da ausência de resposta às
condições do mundo moderno ou de uma inadaptação local às influências
dos progressos econômicos, sociais. Os progressos realizados no domínio
dos transportes e das comunicações, a expansão de uma economia
internacional que se tornou “mundializada” etc. (...) Se ainda quisermos
conservar a denominação, somos obrigados a dar uma nova definição à
palavra (SANTOS, 2002b, pg.40).
Por
outro
lado
os
autores
da
perspectiva
marxista
distanciaram-se
consideravelmente da dimensão simbólica do lugar, que torna-se, então, somente produto
do entroncamento de redes capitalistas que se expandem ao redor do mundo, tendo que “lhe
dar” com as “especificidades locais”.
Em sua abordagem, Entrikin deixa muito clara a importância que dispensa aos
aspectos mais psicológicos e afetivos do lugar. As bases humanistas transparecem em sua
análise, ainda que a dimensão material, física, objetiva do lugar, essencial para a análise
geográfica, ganhe a mesma importância. A conceituação do lugar nasce exatamente das
relações entre esses componentes dialéticos e indissociáveis: a materialidade e a vida social
que se desenrola. As interações simbólicas são relativizadas e se afastam das acusações de
idealização, tão comuns nos ataques à perspectiva humanista.
A concepção de um lugar que deve ser “defendido”, “protegido” das
superficialidades e padronizações do mundo moderno, em prol da manutenção de sua
autenticidade, é substituída por um lugar “dinâmico”, que não deixa de possuir sentido
próprio, mas que está “aberto” o suficiente para enxergarmos os significados que são
constantemente construídos e desconstruídos.
Entrikin acredita que o grande desafio dos cientistas sociais que demonstram um
renovado interesse pelo estudo do lugar é conseguir separar o lugar das idéias de uma
142
sociedade tradicional, coerente e homogênea. Na verdade, este romantismo mantém o
pesquisador distante do entendimento do papel do lugar na vida moderna.
Com isso a geografia e as ciências sociais, em geral, “ganham” um conceito não
só capaz de exprimir adequadamente as interações mais abstratas e “sentimentais” que um
indivíduo ou grupo social pode estabelecer com uma porção do espaço, mas que também
pode ser um dos instrumentos mais valiosos para a compreensão de diversos aspectos da
realidade do mundo moderno.
3.1 O espaço “demonizado” do consumo e as possibilidades de uma análise
geográfica da sociabilidade no shopping
Tomado como um espaço arquitetônico pasteurizado, símbolo da sociedade de
consumo e da monumentalidade artificial, o shopping é para muitos autores um típico nãolugar. Sua própria lógica se assenta em valores, conceitos e apelos superficiais, que
transformam tudo em mercadoria, até o ser humano. Este se torna alienado de si mesmo,
um zumbi que vagueia acompanhando o fluxo da multidão, hipnotizado pela grandeza de
um espaço concebido pela pequenez do lucro. Desse modo, as relações interpessoais e o
próprio indivíduo acabam vivendo uma experiência artificial, que não inclui as mazelas da
realidade urbana e nem mesmo o clima, o qual também não escapa dessa racionalização
extremada que direciona a produção desses espaços. “O shopping center acaba se
transformando62
num
significativo
instrumento
de
manutenção
do
capitalismo...”(PADILHA, 2006).
62
O grifo é nosso.
143
Por outro lado não se pode perder de vista que, quando nos referimos ao shopping
center, estamos trabalhando com um espaço projetado, pensado e concebido a partir da
lógica do consumo, da venda, do lucro. O próprio sentido do nascimento do shopping foi a
busca por uma reprodução ampliada do capital, que seria possível a partir de uma
racionalização da disposição das lojas em um espaço integrado, advindo da concepção de
que diferentes gêneros comerciais poderiam ser encontrados em um único local, com
acesso facilitado e dotado de confortáveis estacionamentos. O empreendimento deveria
contar com uma gerência única, capaz de uniformizar determinadas posturas e
apresentações das lojas e dos funcionários, para que o dia-a-dia do “negócio” pudesse
apresentar uma coerência com os objetivos traçados.
Dessa forma, observamos que o shopping center (como o próprio nome denuncia),
nasceu na cidade capitalista, e com objetivos de melhorar a realização dos lucros de
comerciantes e grandes empresas. Por outro lado, o fato de o shopping ter expandido seu
grau de atuação e diversificado os serviços que oferece, não pode nos desviar da idéia de
que os objetivos desses empreendimentos permanecem os mesmos, ou o mesmo, realizar
cada vez mais lucros. A progressiva ampliação da complexidade da vida urbana, suas
mazelas e modificações de diferentes tipos e intensidades nos mais variados contextos
sociais nos impõem novas situações, novas representações, novos valores e novos
equipamentos urbanos. Seguindo esta mesma lógica, atualmente o shopping center não
pode ser considerado, de modo geral, como somente um centro de compras, justamente pela
significativa ampliação de sua participação na vida contemporânea de grandes cidades em
diversos países. Atividades de lazer de diversos tipos e a prestação de serviços podem ser
apontados como os grandes agentes dessa modificação do papel do shopping no cenário
urbano. Todavia, se não esquecemos do sentido primeiro de criação do shopping, o qual
144
permanece vivo em seu próprio nome, concluímos que evidentemente, essas “novas”
atividades e comodidades não têm um fim em si mesmas, mas são estratégias para ampliar
ainda mais os lucros e o sucesso do negócio.
Assim, quando nos propusemos a uma análise do shopping através da dimensão
da sociabilidade, pretendemos chamar a atenção para esse “novo” espectro de relações que
proliferam nos shoppings, o que não nos faz esquecer de que essas atividades são
incentivadas pelas administrações através do interesse comercial. Na Europa, especialmente
nos séculos XVIII e XIX, com seus cafés, bares, galeria e lojas de departamentos, a
sociabilidade em espaços de comércio nasceu como um movimento espontâneo dos
freqüentadores. Observando a potencialidade econômica que essa nova dimensão social
teria para contribuir com o objetivo comercial desses espaços, os proprietários passaram a
incentivar essas atividades. Este incentivo veio especialmente com a efetivação de sensíveis
modificações na arrumação desses espaços que pudessem favorecer a sociabilidade. Além
disso, diversos tipos de jogos passaram a ocorrer, com espaços próprios e contando com
uma grande divulgação por parte dos proprietários. Este movimento verificava-se também,
por exemplo, no Rio de Janeiro do final do século XIX. O processo que faz hoje do
shopping um espaço de sociabilidade tem características bem parecidas, especialmente no
que se refere ao fato de que tomá-lo como um espaço de sociabilidade constituiu-se como
um movimento espontâneo dos freqüentadores, idéia ampliada pelos administradores com
vistas ao aumento de seus lucros.
Não podíamos mesmo esperar de um equipamento urbano que atende pelo nome
de shopping center um amplo projeto social, desligado em grande medida da lógica do
capitalismo ou com algum compromisso em contribuir com a amenização das
desigualdades sociais tão visíveis na “rua”.
145
Como um espaço privado que se traveste de público para dar a ilusão aos
consumidores que se trata de uma “nova cidade”, mais bonita, mais
limpa e mais segura que a cidade real, que pertence ao mundo de
fora...(PADILHA, 2006, pg. 23).
O shopping surgiu na cidade capitalista, um espaço conceitualmente fragmentado
em termos sociais. Sabemos que a desigualdade social inscreve-se no âmago do
capitalismo, por conseguinte a cidade que advém da colocação em prática desse sistema é,
portanto, desigual. Assim, o shopping é excludente sim, pois é um produto da cidade
capitalista, a qual é extremamente desigual. Com isso, esses equipamentos têm sua parcela
de contribuição à segregação social, à exclusão daqueles que não se identificam com o
perfil esperado pelos administradores e lojistas. O que estamos querendo colocar em pauta
é que não faz sentido proceder a uma verdadeira demonização do shopping, provocada por
uma mistura de revolta e repugnância para com esta postura excludente que esses
empreendimentos apresentam. Este tipo de postura, tão comum na vida das cidades
capitalistas, pode até certo ponto ser considerada como previsível para um empreendimento
que na lógica urbana tem o papel de ampliar cada vez mais os seus ganhos e de seus
associados.
Parece-nos que, se há algum espaço em declínio, desvirtuado e travestido no
cenário urbano, este é o espaço público, a “rua” propriamente dita. O espaço da lei, da
cultura pública, fundamento da cidadania e isonômico por definição, se apresenta cada vez
mais travestido de público. Tomado por usos privados territorializados, guetos e
classificações excludentes de toda ordem, o espaço que se pretende político torna-se
vulgarizado, dominado e decadente. Quanto ao shopping, que nunca se pretendeu político,
isonômico ou público, parece que descarregamos nossas frustrações com o espaço público
(a rua) em um espaço fundamentado conceitualmente e, por princípio, na lógica do negócio
146
capitalista. Ainda, nesta verdadeira crucificação do shopping, ele é também descrito como
responsável por esse contínuo declínio do espaço público. É como se o shopping fosse o
grande vilão da cidade, aquele “espaço do mal”, em que aquilo que os pobres não podem
comprar é oferecido com ares de glamour e celebração, em que o lucro é motor para tudo, e
no qual o cidadão vira um mero usuário, consumidor. A cidade capitalista não se oferece,
ou não é alcançada pelos pobres, e mesmo assim o espaço urbano ostenta o luxo e a
realização do lucro de várias formas e em vários espaços diferentes (além do shopping). Se
a vigilância no shopping é discriminatória, pois afasta as “possíveis ameaças”, com base
naqueles que destoam pela pobreza, será que podemos dizer que isso é uma novidade ou
uma particularidade do shopping? Será que a cidade, a “rua” é tão isonômica, justa,
acolhedora, recheada de indivíduos com notável espírito público e que o shopping é o
câncer social que desvirtua o “bom cidadão”?
Assim, distante de tomar partido de qualquer tipo de situação de acusação ou
defesa, o que estamos apresentando aqui é a dúvida de que talvez estejamos atribuindo ao
shopping um conjunto de observações lógicas que, na verdade, constituem o motor da vida
urbana capitalista, especialmente se pensarmos em países como o Brasil. Com isso, não
estamos discordando das inúmeras observações feitas, repetidas vezes, que nos chamam a
atenção para o fato de que o shopping procura espantar as mazelas do cotidiano, tornandose um espaço que não é acessível a todos e no qual a representação do cidadão é engolfada
pela figura do consumidor, e que isto não contribui para uma vivência ampliada da
cidadania e dos valores sociais em geral. Não se pretende aqui, também, justificar ou
mesmo passar uma idéia de acomodação e concordância quanto à exclusão social que se
realiza no espaço urbano. Por outro lado, não acreditamos que este seja o único prisma
possível para uma análise do shopping ou mesmo da cidade. Até certo ponto, ainda que a
147
atribuição de rótulos ao shopping, como “templo do consumo”, “catedral das mercadorias”
sejam “frases de efeito” que nos trazem uma idéia correta do que os shoppings realmente
são, a constante, repetitiva e inevitável “demonização” que se segue, parece que mais do
que nos trazer uma boa compreensão de como esses empreendimentos realizam seus lucros,
acabam de uma certa forma reduzindo as possibilidades de enxergarmos este mesmo objeto
através de outras perspectivas.
3.2 A produção do espaço (no/do) shopping
Selecionamos alguns espaços, eventos e situações que nos chamaram a atenção ao
longo da pesquisa e que, esperamos, possam demonstrar a variedade cada vez maior de
relações sociais que se verificam nos shoppings, bem como prover-nos com elementos de
discussão de questões relativas aos conceitos de lugar e de não-lugar no que se refere ao
shopping center. Estamos propondo um “passeio” pelo shopping, em que munidos das
discussões do lugar e do não-lugar, pretendemos analisar algumas situações e espaços
proporcionados pela sociabilidade que vem se desenvolvendo nesses empreendimentos.
3.2.1 A Praça de Alimentação
A sociabilidade tomou inúmeras formas nos shoppings e seu local principal é a
chamada Praça de Alimentação. Inclusive, alguns shoppings mudaram o nome da Praça de
Alimentação para Praça de Eventos. Em si mesma, a praça de alimentação de um shopping
center guarda uma vocação à sociabilidade, especialmente pelo arranjo espacial que possui.
148
De forma geral, é um local em que variados restaurantes, lanchonetes, bares se concentram,
os quais, em sua maioria, utilizam os espaços frontais aos seus estabelecimentos para a
disposição de suas mesas e cadeiras. Forma-se então, um território que não se condiciona à
idéia de circulação permanente de pessoas, como no restante do shopping, mas é
demarcado por mesas, cadeiras e, principalmente, por grande quantidade de pessoas. Se o
shopping por si só pode ser pensado como um local do encontro, a praça de alimentação
pode ser analisada como o “território do encontro” por excelência nesse empreendimento,
uma porção do shopping totalmente afeita à sociabilidade.
Esse “potencial social” da praça de alimentação se ampliou com a promoção de
eventos nesse “território”. Esses eventos são mais comumente shows de música, nos quais
apresentam-se artistas, “desconhecidos” e “famosos”, além de bandas que fazem sucesso
em determinado bairro ou área da cidade. Os shows na praça de alimentação são, em geral,
gratuitos e sua importância cresceu de tal forma, que as administrações disponibilizam
previamente as agendas com a programação semanal ou mensal dos shows realizados no
“Palco Iguatemi”, no “Sabor e Som” do Norte Shopping ou no “Happy Hour” do Rio Sul,
entre outros. Ao longo de nosso trabalho, pudemos perceber que a existência de uma
programação fixa de eventos é mais comum em shoppings localizados fora da Zona Sul e
da Barra da Tijuca. No caso do Barra Shopping, por exemplo, a proximidade com a maior
casa de shows da cidade, o Citibank Hall, no Via Parque, possivelmente é um forte motivo
para que não haja uma grade fixa de shows e eventos. Os casos63 do Iguatemi e do Norte
Shopping, que possuem, já há algum tempo, uma programação fixa de eventos de diversos
tipos, são ilustrativos de outro papel que esses shoppings desempenham na Zona Norte:
cobrir, de algum modo, a carência de espetáculos e opções de divertimento nessas áreas.
63
Ver anexos – Panfletos das programações do Iguatemi e do Norte Shopping.
149
“And as spaces of sociability such landscapes allow for the staging of all kinds of activities,
many of which find expression in a way that has nothing to do with the dictates of the
commodity or of consumption” (MITCHELL, 2000, pg.136).
Os shows da praça de alimentação teriam sido pensados a priori, como forma de
tornar o “ambiente mais agradável”, atraindo assim, de forma indireta, mais consumidores
para os restaurantes e para o shopping como um todo, já que o tempo de permanência se
amplia.
No entanto, determinados artistas, em geral os “famosos”, quando fazem seus
shows nos shoppings, transformam essa dinâmica; De início, há parcela considerável de
pessoas que vão estritamente ver e ouvir o cantor ou a banda. Além disso, o comportamento
das pessoas que estão na praça de alimentação se modifica: o enorme barulho das conversas
tendo a música como “pano de fundo”, desaparece; as atenções voltam-se então, quase que
totalmente para o artista. Essa nova dinâmica faz com que, por algumas horas, a praça de
alimentação pareça estar dissociada do restante do shopping.
No sítio da ABRASCE, a matéria intitulada “Show ou música de fundo?” nos
fornece um exemplo dessa dinâmica de shows de artistas famosos nos shoppings.
Tem bamba na praça de alimentação. Quem disse foi o jornal O Globo,
em matéria publicada em 24 de março, sobre shows de artistas renomados
em shopping centers. Os artistas diziam que "os shoppings são uma
excelente e movimentada vitrine" e não falaram de um público "frio e
disperso" - ao contrário, Cláudia Telles disse já ter chorado depois de
shows realizados em malls. Paulinho Tapajós, Miúcha, Danilo Caymmi e
Carlinhos Vergueiro foram outros que comentaram sobre a grande
interação
com
o
público
no
ambiente
do
shopping
(WWW.ABRASCE.COM.BR).
Ainda na mesma matéria, a ABRASCE disponibiliza opiniões de profissionais da
área sobre os shows na praça de alimentação;
150
"Manter uma programação de shows de artistas consagrados
pode ser boa estratégia, mas requer espaço adequado. O público acaba se
tornando consumidor do shopping. É importante, no entanto, manter
regularidade nas apresentações". Luis Antônio Lopes, superintendente do
Bay Market64 (WWW.ABRASCE.COM.BR).
Em alguns casos, na Praça de Alimentação (“Praça de Eventos”), a experiência se
descola do sentido “original” da experiência do shopping, constituindo-se em uma relação
moldada por um evento musical ou teatral, que acaba por dissuadir, por pelo menos
algumas horas, o indivíduo de seu papel de comprador. Dessa forma, a produção de eventos
culturais que tomam especialmente a praça de alimentação do shopping como palco,
transformam não só o caráter da experiência no shopping, como também o próprio sentido
da praça de alimentação, na qual se abre a possibilidade de se guardar futuras lembranças
de situações próprias de um local de sociabilidade, e que, portanto, apresenta uma inegável
dimensão afetiva. Assim, a Praça de Alimentação torna-se efetivamente um lugar, tanto
para o público, como para os artistas. A impressão que obtivemos ao longo de nossas
observações no Barra Shopping e no Iguatemi, nos faz concluir que este tipo de situação se
concretiza com maior clareza nos casos em que artistas famosos atraem espectadores, que
muitas vezes talvez nem fossem ao shopping se não houvesse a motivação do show. Por
outro lado, é muito comum a situação de “música de fundo”, o que na verdade
simplesmente se constitui como mais um elemento na composição “artificial” do shopping,
não modificando de forma decisiva o caráter da experiência. Neste caso, diante da
perspectiva que define o lugar como um centro de lembranças e valores autênticos, o
shopping permaneceria por sua inautenticidade e pela promoção de uma experiência
estandardizada, como não-lugar.
64
Shopping localizado na cidade de Niterói - RJ
151
Todavia, se lembrarmos que a cotidianidade está cada vez mais se desenrolando
no shopping, podemos pensar até que ponto, mesmo sem os shows dos artistas famosos na
Praça de Alimentação, por exemplo, a experiência daqueles que freqüentam o shopping
quase que diariamente, pode ser definida (ou rotulada) como estandardizada. Ou seja,
estamos questionando o fato de que se há quem tenha passado a viver partes consideráveis
de suas semanas no shopping, será que mesmo estando em um ambiente que repete sua
“fórmula de paisagem” nas mais diversas localizações ao redor do mundo, o que temos no
final das contas é uma indiferença em relação ao ambiente? Parece-nos que a resposta para
este questionamento ganha contornos mais claros quando utilizamos a perspectiva de
análise do lugar proposta por Nicholas Entrikin.
The term “placelessness”, which has been used in reference to the creation
of standardized landscapes that diminish the differences among places,
signifies one aspect of the loss of meaning in the modern world. But
“loss” may be too strong a term. Meaning is both “lost” and “gained” in
such landscapes (ENTRIKIN, 1991, pg.57).
Assim, se por um lado há uma perda considerável para a experiência por conta da
paisagem estandardizada, há que se lembrar que o shopping tornou-se parte daquilo que
Milton Santos chama de “espaço banal”, um espaço do dia-a-dia, em que aqueles que
tomam o shopping indiferenciado como parte fundamental de sua cotidianidade, recriam a
própria gênese do ambiente, que para eles, deixa de ser indiferenciado. O que parece ficar
claro é que diante da expressiva modificação no próprio papel que o shopping exerce na
cidade, à qual dedicamos o capítulo 2, a discussão do lugar e do não-lugar não pode ficar
restrita a rótulos rascunhados como conclusão de uma análise literalmente superficial, uma
análise de aparências, que até se encaixa no movimento das pessoas no shopping, em que
ver e ser visto torna-se um roteiro para estar na moda, mas que não serve para entendermos
como as pessoas “vivem” no shopping.
152
Ainda a partir desta perspectiva do lugar, o mesmo raciocínio é válido para as
exposições culturais, para a recreação e esportes, para os cinemas, para as casas de shows e
para os teatros em shoppings. Ou seja, esses espaços e eventos promovem uma alteração
significativa do que a princípio se imaginaria para a experiência em espaços do shopping, o
que nos impõe mais ainda a necessidade de repensar a discussão do lugar no (do) shopping.
3.2.2 Os desfiles.
A ligação do shopping com a moda possui múltiplas formas. As lojas relacionadas
ao vestuário são maioria em grande parte dos shoppings. A intenção do próprio sistema
econômico e de mídia de promover tendências, criar novas necessidades em termos de
consumo em geral, estabelece para muitos uma necessidade contínua de estar sempre “na
moda” para se sentir vivo. De uma outra forma, ir ao shopping está cada vez mais na moda,
ainda que este tipo de empreendimento esteja completando apenas sua quarta década no
Brasil. Prova disso foi a disseminação dos shoppings pelo país, especialmente na segunda
metade da década de 1990, inclusive em áreas mais periféricas de metrópoles, como no
caso do Rio de Janeiro.
Em uma dimensão metafórica, pode-se dizer que “passear”, circular no shopping
assemelha-se a um desfile de moda. Os corredores transformam-se em passarela e cada
pessoa ganha ao mesmo tempo o papel de modelo e espectador, vê e é visto.
A partir dessas semelhanças, que possivelmente não são as únicas, a moda chegou
efetivamente ao shopping em um passado recente. Em fins da década de 90, shoppings
153
como o Shopping Tijuca, o Norte Shopping65, o Rio Sul, o Barra Shopping e o Morumbi
Shopping, entre outros, passaram a servir, literalmente, de passarela para os lançamentos de
novas coleções de grifes nacionais e internacionais, trazendo modelos famosos e atraindo
grande número de pessoas.
Dois grandes eventos da moda internacional, o São Paulo Fashion Week e o
Fashion Rio, surgiram em shoppings, em 1996:
MorumbiShopping, em São Paulo, e BarraShopping, no Rio de Janeiro,
foram os laboratórios de onde nasceram a São Paulo Fashion Week e o
Fashion Rio, hoje os dois maiores eventos de moda do país, com
repercussão internacional (WWW.ABRASCE.COM.BR)
Os desfiles são, como dissemos anteriormente, uma metáfora interessante para
refletirmos sobre o que cerca um passeio no shopping. Neste sentido, não há evento que
possa retratar melhor os aspectos mais superficiais da experiência no espaço do shopping.
No desfile um determinado protótipo é lançado sobre uma passarela com o objetivo de
direcionar a moda e o consumo, dois dos pressupostos mais importantes em um shopping.
Assim, a inautenticidade ganha largas dimensões nos desfiles, que na verdade ampliam a
condição do shopping como exemplo ilustrativo da experiência do não-lugar. Entretanto, se
virarmos o foco da análise para as meninas que fazem seus primeiros desfiles nos
shoppings, para os pais que assistem, ou mesmo para os fãs de moda que fotografam os
ídolos e guardam a lembrança da ocasião, provavelmente seria no mínimo precipitado
atribuir a condição de indiferenciado ao espaço que foi palco dessa memória. Visitas
posteriores provavelmente trarão à lembrança, os momentos e as histórias do evento.
Fazendo eco com as reflexões de Nicholas Entrikin, o significado pode se perder, como
65
Ver anexo 12.
154
pode reaparecer, se considerarmos outros aspectos, ou outros atores que vivenciam esses
lugares a partir de diferentes graus de envolvimento.
3.2.3 Exposições Culturais
O número de shoppings que promove eventos relacionados à cultura, como
exposições de pintura, literatura, história é limitado. Pode-se destacar o Fashion Mall e o
Shopping Via Parque, no qual as exposições, cada vez mais freqüentes, possuem um espaço
determinado para ocorrer. Em outros shoppings, podem ocasionalmente ocorrer exposições
culturais, como à época dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Inúmeros shoppings não
deixaram esse período “passar em branco” e promoveram diversas exposições sobre o tema
que atraíram número considerável de pessoas.
No entanto, salvo datas como essa, em que o descobrimento estava “na moda”, as
exposições têm em geral, ainda, uma importância diminuta para os shoppings, com pouca
divulgação. Uma grande exceção foi a exposição intitulada “W.C”, lançada no Norte
Shopping, de 04 a 26 de abril de 2002:
Quem quiser ver personalidades do meio artístico, esportivo e cultural,
fotografados em banheiros, fazendo poses pouco convencionais, terá a
oportunidade na exposição "WC", com 100 imagens feitas pelo fotógrafo
Rogério Faissal, ao longo de 4 anos. Tem Chico Buarque, todo ensaboado
embaixo do chuveiro; Juarez Machado, pintando um quadro dentro do
boxe; Marcos Palmeira, sentado em um vaso sanitário no banheiro do
Maracanã; Luiza Brunet, tomando banho com os filhos
(WWW.ABRASCE.COM.BR).
O sucesso da exposição foi tão grande, que ela seguiu para outros três shoppings;
no TopShopping, em Nova Iguaçu, no Center Shopping, em Jacarepaguá, e no West
Shopping, em Campo Grande.
155
Durante nossas observações no Iguatemi, a exposição sobre a banda inglesa “The
Beatles” atraiu grande público para o shopping. A chamada para o evento pode ser
observada no cartaz abaixo, no qual também podemos notar que os bordões de “compre
aqui” ou o “melhor lugar para suas compras” caíram, de certo modo, em desuso, abrindo
espaço para frases que captem a amplidão de opções e de usos do shopping.
Fonte: Shopping Iguatemi
3.2.4 Recreação/ Esportes
Freqüentado por um público infanto-juvenil, o setor de recreação dos Shoppings
fica muito movimentado nos finais de semana, oferecendo variadas opções de diversão.
Muitas vezes, os pais também permanecem nesses locais, “tomando conta” do filho,
ocasionalmente se socializando com outros pais na mesma situação.
Diferentemente da década de 1980, os jogos eletrônicos têm a predominância e a
preferência absoluta nesses espaços, atraindo não só o público infantil. Em relação ao
público juvenil, o setor de recreação torna-se também um ponto de encontro. No Barra
156
Shopping localiza-se o maior centro de jogos eletrônicos em shoppings do Rio de Janeiro: o
“Hot Zone” agrega mais de 150 equipamentos com os mais variados estilos de jogos.
Uma atração que é difícil de ser encontrada nos shoppings, mas que,
diferentemente das exposições, é muito procurada são os esportes. No Rio de Janeiro, o
Barra Shopping foi o primeiro a lançar um espaço destinado ao boliche, o “Barra Bowling”.
No início foi um grande sucesso, todavia o alto preço da diversão começou a ser sentido na
significativa queda no número de freqüentadores. Através de inúmeras promoções, a
administração do Barra Shopping conseguiu trazer o público de volta ao boliche, que
atualmente está passando por reformas. No Norte Shopping, o preço popular e a condição
de atração inusitada fazem com que a pista de kart fique lotada nos finais de semana. Da
mesma forma, o boliche atrai um grande número de pessoas às dependências do Shopping.
No Shopping Tijuca há, durante todo o ano, um campeonato de Futebol de Mesa,
distribuindo prêmios e atraindo inúmeros e atentos espectadores, transformando-os, em
muitos casos, em verdadeiros torcedores.
3.2.5 Casas de Shows e Teatros
Um outro exemplo desse grande alcance do shopping são seus teatros, boates e
casas de shows. Inaugurado em 1994, o Metropolitan, atual Citibank Hall, surgiu como a
maior casa de espetáculos da América Latina, com capacidade para 10 mil pessoas,
possuindo todos os requisitos necessários para grandes shows e eventos, nacionais e
internacionais. Localizado no Via Parque Shopping, na Barra da Tijuca, o “ATL Hall”
(como era chamado) passou em 2002 por inúmeras reformas:
157
Depois de dois meses fechado para o público, o ATL Hall, maior casa de
espetáculos carioca, reabre suas portas reservando uma boa surpresa para
a cidade: uma reforma de R$ 9 milhões transformou o local, que passa a
ser um dos mais modernos palcos para shows do país, similar às grandes
casas de espetáculos das principais capitais do mundo. A nova era, sob o
signo da modernidade e do conforto, tem início no próximo dia 23 de
abril...66
No Norte Shopping localiza-se um teatro de grande apelo no Rio de Janeiro, o
teatro Miguel Falabella. Além de peças nos fins de semanas e em alguns dias da semana, há
a “Companhia de Teatro Atores de Laura” que promove cursos de teatro, de balé e de
modelo. No Recreio Shopping e no Madureira Shopping, por exemplo, também há oficinas
de teatro. No Shopping da Gávea são nada menos do que 4 teatros, o Teatro Vanucci, o
Teatro Clara Nunes, o Teatro dos Quatro e o Teatro das Artes são destinos consagrados das
peças no circuito carioca. “Fiquei um ano e meio em cartaz com o espetáculo “Cócegas”.
Nem me considero freqüentadora assídua de shoppings, mas o da Gávea é quase a minha
casa67” (O GLOBO, 04/12/2005) 68.
O depoimento da atriz nos confirma que, dependendo do modo como estamos
vivenciando determinada situação em um local, esta relação pode ganhar proporções que
extrapolem aquilo que a princípio poderíamos imaginar ao subestimarmos um “teatro de
shopping”, ou o próprio shopping. A idéia da casa nos perpassa a noção de identificação
imediata com o local, tanto a partir do fato de que sabemos por onde andar, ou seja,
enxergamos a dimensão física, a materialidade, como algo conhecido, como a partir das
(memórias) situações pretéritas que foram vividas no local. A paisagem e a própria
dinâmica social que dá vida ao local, se enquadram naquilo que o indivíduo deseja ver e
66
(http://www.mediamania.com.br/secundarias/atl/pag.htm).
O grifo é nosso.
68
Depoimento da atriz Ingrid Guimarães ao jornal O GLOBO, 4 de Dezembro de 2005 – “Tribos de
Shopping” pg.30.
67
158
conviver, o que, por conseguinte, promove ao longo do tempo uma ligação afetiva, que
transforma o espaço em lugar. “The desestabilization of meaning in modern life has meant
that the individual must create a “place” for himself or herself in the world. No “natural”
place exists” (ENTRIKIN, pg.64).
3.2.6 Os Cinemas
Uma forma de lazer cada vez menos encontrada nas ruas do Rio de Janeiro e que
passou a estar diretamente associada ao shopping é o cinema. Os inúmeros e tradicionais
cinemas de rua deram lugar, em sua maioria, a templos religiosos. Essa escolha das antigas
salas de cinema pelas religiões não nos parece ocorrer ao acaso. Na verdade, o arranjo
espacial dos cinemas é perfeito para o propósito desses grupos que, da mesma forma,
querem uma grande platéia para suas encenações, seus shows e pregações.
Seria impensável que os shoppings, que passam a ser cada vez mais não só um
centro de compras, mas uma referência em termos de lazer e serviços, não dispusessem de
uma diversão como o cinema. Tanto que muito antes da saída dos cinemas das ruas, o Barra
Shopping, o Rio Sul, o Fashion Mall, entre outros, já possuíam seus próprios cinemas. A
partir da metade da década de 1990, os cinemas passaram a se concentrar majoritariamente
nos shoppings. Foi nesse período que ocorreu uma nova e significativa expansão no
número de shoppings, aliada ao medo crescente da violência que, progressivamente,
afastava as pessoas dos chamados “cinemas de rua”. Um exemplo da importância dos
cinemas para os shoppings pode ser constatado no New York City Center, agregado ao
Barra Shopping, em que há 18 salas. Como pudemos observar ao longo de nossas pesquisas
no Barra Shopping, o espaço próximo ao cinema é um local de grande aglomeração de
159
pessoas, tanto que duas praças de alimentação ficam bem próximas dos cinemas. Nos finais
de semana os cinemas registram inúmeras sessões com lotação esgotada. Há serviço de
compra de ingresso antecipada, inclusive pela Internet. O fato dos cinemas atraírem um
grande contingente de pessoas e ampliarem (e muito) os ganhos dos shoppings, faz com
que sejam considerados verdadeiros âncoras desses empreendimentos. No Iguatemi a cena
se repete: a “praça de eventos” fica em frente às sete salas de cinema do shopping69.
Esta repetição observada em aspectos da organização do espaço nos shoppings,
em que, no caso, o posicionamento dos cinemas respeita uma determinada lógica comum,
de algum modo nos abre a possibilidade de ilustrarmos aí a dimensão do não-lugar. A
paisagem é fabricada de modo tão semelhante, que para muitos, até identificar com clareza
em qual shopping estamos, pode se tornar uma difícil tarefa. “Perception naturally depends
on the “subject”: a peasant does not perceive “his” landscape in the same way as a towndweller strolling through it” (LEFÈBVRE, 1991, pg.114).
3.2.7 A territorialização dos espaços do shopping por grupos de jovens
A atração pela compra, mas principalmente pelos cinemas e pela sociabilidade faz
com que a presença de inúmeros grupos de jovens seja, em geral, marcante nos shoppings.
As administrações dos shoppings estão quase sempre muito atentas a este tipo de
aglomeração, identificando facilmente onde se localizam e em que horários e dias são mais
expressivos. Esses grupos de jovens são tratados com cautela pela administração dos
shoppings, tidos como potenciais problemas para a ordem.
69
Ver Mapas do Iguatemi em anexo.
160
Em geral, esses jovens concentram-se próximos aos cinemas, nos locais
destinados aos jogos eletrônicos e na praça de alimentação. Há inúmeras “tribos”: os
mauricinhos, as patricinhas, os surfistas, os punks, os metaleiros, os grunges, todos
aparecem nos shoppings. A preocupação das administrações dos shoppings quanto aos
grupos de jovens justifica-se na medida em que já houve problemas e incidentes de variadas
intensidades com esses jovens. Heitor Frúgoli Jr descreve um pouco dessa convivência nos
shoppings:
...especialmente nos fins de semana, os shopping centers transformam-se
em cenários, onde ocorrem encontros, paqueras, “derivas”, ócio, exibição,
tédio, passeio, consumo simbólico. Tornam-se uma espécie de “praça
interbairros” que organiza a convivência, nem sempre amena, de grupos e
redes sociais, sobretudo jovens, de diversos locais da cidade (FRÚGOLI
JR., 1992, p.77).
Há, portanto, um conjunto de identificações sociais (modo de vestir, de falar,
horários, atitudes, pensamentos, músicas, ídolos, times de futebol, entre outros) que forma
um sentimento de pertencimento a determinado grupo. No entanto, essas identificações
sociais se manifestam a partir de um território, ou seja, de uma determinada “identidade
territorial”. É o que acontece nos shoppings. Os grupos de jovens procuram medir forças
uns com os outros, na busca de demonstrar ou muitas vezes impor, seus valores e
identidades aos demais, gerando assim, ocasionais conflitos. A forma de concretizar essas
demonstrações de força ocorre pela “invasão” do território de outro grupo, o qual procura
defender o espaço sobre o qual vigoram suas identidades, valores e regras. Com isso,
identificamos a existência de um processo de territorialização de determinados espaços do
shopping pelos grupos de jovens. Entendemos territorialização como “...o movimento de
um agente titular no ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma dada
161
superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas que afetam as práticas sociais que
aí terão lugar” (GOMES, 2002, p.12).
No caso da observação de grupos de jovens nos shoppings, a idéia fundamental é
mesmo a de territorialização, como já foi pontuado. Ao se verificarem demarcações de
determinadas identidades e disputas por determinados espaços, pode-se inferir a existência
dos espaços territorializados, já que se tornam espaços “controlados” por simbologias
específicas e rivais.
Para os funkeiros, os shopping centers assumem um papel fundamental no
que se refere à afirmação de seu estilo e, mesmo, na construção de sua
identidade, pela confrontação com outros grupos e segmentos e pelo
enfrentamento de atitudes segregacionistas (MAIA, 2002, pg.191).
3.2.8 As Manifestações
“O que era para ser um protesto contra a discriminação dos homossexuais
virou atração dominical para os paulistanos. Milhares de pessoas lotaram
ontem a praça de alimentação do shopping Frei Caneca para assistir ao
“beijaço” coletivo organizado por grupos gays em protesto contra o
preconceito sofrido por um casal gay na semana passada.”70
Se em algum momento poderíamos até contestar a autenticidade dos símbolos e
identidades das tribos de jovens, o que de certa forma colocaria em cheque o caminho que
traçamos no parágrafo acima, por outro lado não se pode negar a autenticidade revelada nas
raras manifestações ocorridas em shoppings.
As manifestações em shoppings não ocorrem somente em São Paulo, como no
caso da citação anterior. No Rio de Janeiro, os “sem teto” fizeram manifestações no Rio Sul
e no Barra Shopping, em 2001, enquanto que uma enorme manifestação de estudantes
ocorreu no Rio Sul, no mesmo ano.
70
O Globo – 4 de Agosto de 2003 – “Protesto Gay atrai 3 mil pessoas em São Paulo”
162
Na verdade, como em qualquer local onde ocorra uma manifestação, há uma certa
apreensão por parte daqueles que não estão participando, ocorrendo, portanto, alterações na
dinâmica do local. Para a administração, essas manifestações provocaram uma alteração
indesejada na rotina do shopping.
A escolha de shoppings como palco de manifestações não se dá por acaso. Além
de ser um ambiente de compra, pretensamente “um símbolo do capitalismo”, esses
movimentos parecem ter percebido que a cena da vida pública ocorre também nos
shoppings, por sua grande visibilidade e ao grande número de freqüentadores.
A própria legitimidade e o caráter sócio-político das manifestações de grupos
gays, de estudantes e dos sem-teto, por exemplo, revelam que durante as manifestações o
próprio sentido do espaço do shopping foi subvertido, o que evidentemente não agradou
nem aos lojistas, nem aos administradores. O caráter evidentemente apolítico do espaço do
shopping, em que normalmente não se instauram debates públicos, foi, nessas ocasiões,
transformado em um espaço71 no qual se desenrolava a própria cena pública, em que a
visibilidade, os símbolos e as representações elevaram à expressão pública aquilo que se
estava tentando comunicar. Neste sentido, a própria visibilidade que o espaço do shopping
vem ganhando nesses últimos anos no Brasil, especialmente por conta da ampliação das
áreas de lazer e sociabilidade nesses empreendimentos, foi um fator decisivo para que os
manifestantes escolhessem-no como palco. Ademais, especialmente os protestos dos sem
teto e dos estudantes apresentaram um caráter simbólico interessante pelo fato de ocorrer
em um espaço “símbolo do capitalismo”, do consumo, etc.
71
“o espaço público é simultaneamente o lugar onde os problemas se apresentam, tomam forma, ganham uma
dimensão pública...” (GOMES, 2002, pg.160).
163
Desta forma, pode-se dizer que as manifestações imprimiram ainda que
momentaneamente um caráter “autêntico” ao espaço do shopping, que não estava mais
regido pela lógica da superficialidade e do consumo, mas por um sentido político e
contestador da ordem cotidianamente ali estabelecida. Com isso, estes protestos obtiveram
grande publicidade, com destaque em inúmeros meios de comunicação, instaurando
diversos debates.
3.3 O lugar e o não lugar também se encontram no shopping?
Os espaços dos diferentes shoppings apresentam em geral os mesmos
componentes, com formatos muitas vezes parecidos, como as vitrines, o estacionamento, o
piso, a iluminação. Além disso, muitas redes de lojas dispõem suas filiais nos mais diversos
shoppings, fazendo com que reconheçamos em diferentes shoppings, muitas vezes de
diferentes cidades, estados e até países, as mesmas lojas. Da mesma forma, a disposição
central da praça de alimentação, a existência de cinemas, a prestação de serviços são itens
quase que obrigatórios nos shoppings do mundo inteiro. Olhado por este prisma, os
shoppings se adequam perfeitamente à categoria do não-lugar, já que a pasteurização do
espaço em prol da maior possibilidade de lucros para o shopping denuncia a artificialidade
de sua montagem, que não se relaciona a princípio com os valores, significados e
peculiaridades de determinado grupo social, cidade ou país. “Space is understood to be
empty and undifferentiated and objectively manipulable according to the constraints of
functional efficiency, economics, and the whims of planners and developers” (RELPH.
1976, pg.23).
164
No entanto, o fato de ser perfeitamente possível encontrarmos as mesmas lojas em
diferentes cidades e até países, nos leva também a entendermos que o shopping se inscreve
como um dos espaços utilizados por capitais que mantêm uma vasta gama de possibilidades
de realização de seus lucros em âmbito global. Neste sentido, expressões do mundo
globalizado como a francesa Fnac, a espanhola Zara e a americana Mc Donald’s, entre
muitos outros exemplos, encontram-se nos shoppings pelo mundo afora. Todavia, esta
reflexão nos traz à lembrança o fato de que, apesar de encontrarem-se dispersas pelo
planeta, essas lojas se inscrevem em diferentes contextos, convivendo com lojas “locais”,
gostos e culturas particulares e até com a própria diferenciação do poder de compra. Assim,
o que à primeira vista poderia parecer completamente indiferenciado torna-se
extremamente flexível, para se inserir satisfatoriamente no contexto local. Resgata-se aí a
idéia de que, neste caso, o lugar é produzido exatamente a partir da particularidade da
adequação daquilo que é global aquilo que é local.
Do mesmo modo, se por um lado a aparência e até alguns aspectos da organização
do espaço possam se apresentar da mesma forma, “pasteurizada”, podemos estender este
raciocínio até o ponto em que percebemos a necessidade de considerarmos que esses
elementos e espaços pasteurizados se engendram de modos diferentes, até mesmo quando
nos referimos a shoppings que ficam na mesma cidade. Acrescentamos que essa
“montagem do teatro” varia em grande medida de um empreendimento para outro. Os
empreendedores procuram dar uma identidade ao shopping, baseados na premissa de que
“quem pretende atender a todos, não atenderá a ninguém”. Nesse sentido, a identidade é
constituída a partir de um estudo sobre o público-alvo. Essa categoria corresponde àqueles
que residem no “raio de ação” do shopping, ou seja, em suas adjacências. A partir daí, são
internalizadas nos shoppings inúmeras identidades e símbolos da área da cidade em que se
165
localiza. Com isso, percebemos que o shopping não só influencia, como também é
influenciado pelas dinâmicas e identidades desse bairro. Podemos comprovar a importância
dessa identificação, através das campanhas publicitárias dos shoppings. O Rio Sul, por
exemplo, que se intitula “o shopping carioca”, aparece sempre relacionado à praia,
justamente o principal fator de identificação da área da cidade em que está situado. Por
outro lado, no Iguatemi, reconhecemos a boemia e o samba de Vila Isabel, no restaurante
Petisco da Vila. “Assim, podemos entender, que os shoppings usam uma mistura peculiar
de público e privado para criar um tipo diferente de palco, um palco não só para a produção
de identidade, mas para o consumo também” (MITCHELL, 2000, p.129).
A propaganda do Iguatemi Rio em um outdoor localizado na Praça Saens Peña, na
Tijuca, “Shopping Iguatemi, um lugar com tudo o que você gosta” resume bem essa idéia.
É interessante percebermos que a chamada para que a pessoa vá ao shopping não parte da
propaganda das lojas que figuram em seu interior, mas de um apelo à própria montagem do
espaço do shopping. O Iguatemi, por exemplo, abre mais cedo que a maioria dos shoppings,
às 8hs, para atender aos seus freqüentadores da terceira idade.
Uma turma de bons vivants que passaram dos 60 já marcou sua festa de
confraternização. Na praça. De alimentação. De um shopping onde eles
religiosamente se encontram todas as tardes. O hábito dos amigos de seu
Antonio Salma é marca de uma das muitas tribos, de diferentes gerações,
categorias profissionais e classes sociais que modificam os templos do
consumo e por eles são modificados 72.
No Barra Shopping, por exemplo, pelo fato de ser um shopping com 26 anos de
existência, a administração73 teve, e continua tendo, a preocupação de “modernizar” o
shopping, introduzindo novos serviços, eventos, novidades na arquitetura, sem destruir o
perfil do shopping, sem perder a identificação com o público mais antigo. Portanto, o Barra
72
O GLOBO, 4 de Dezembro de 2005 – “Tribos de Shopping” pg.28.
“O Barra Shopping esteve presente na própria evolução da Barra” (Entrevista feita pelo autor com a
Administração do Barra Shopping).
73
166
Shopping vem ao longo dos anos procurando um meio termo entre as modernizações,
inevitáveis para continuar competindo com outros shoppings74 e atrair o público jovem, e a
preservação de suas características originais. A paisagem do Barra Shopping é, então, tanto
identificada pelo o público mais jovem, que freqüenta o shopping há cinco anos, por
exemplo, quanto pelos adolescentes da década de 80, que hoje continuam freqüentando o
Barra Shopping, sem que as mais de duas décadas tenham consumido totalmente suas
lembranças, revividas pelas “rugosidades” do shopping.
As mensagens propagadas pela comunicação institucional e pelo
marketing reafirmam a imagem desse shopping como sendo um espaçocomunicação, permitindo um contato social diverso em uma circunstância
carregada de elementos do repertório simbólico local (GOTTSCHALL,
2001 pg.175).
Com isso, poderíamos proceder à afirmação de que pelo fato de produzir
identidades, especialmente através da reprodução de elementos simbólicos e por começar a
desenvolver uma certa história com seus freqüentadores mais antigos, o shopping seria,
neste caso, considerado como um lugar pela perspectiva da geografia humanista. “Os
artefatos “pasteurizados”, uniformes e seqüenciais são deslugares para os “outsiders”...mas
lugares para aqueles que freqüentam / experienciam...” (MELLO, 2003, pg.69).
Por outro lado, se apontarmos para o sentido do lugar, e para as dimensões de
autenticidade e inautenticidade trazidas para a geografia por Relph, através da influência de
Heidegger, as conclusões podem-se alterar. O fato de que essas identidades geradas no
shopping e internalizadas por parte de seus freqüentadores se estabelecerem através do
contato com modismos e estereótipos impregnados nas mercadorias, ou por tratarem-se,
muitas vezes, de cópias adaptadas de determinados significados e situações, não “absolve”
74
(SIMMEL,1983) afirma que “A tensão antagônica com seu concorrente afia a sensibilidade do comerciante
para as tendências do público até o ponto da clarividência, em relação a futuras mudanças no gosto, no estilo,
nos interesses do público...” (SIMMEL, Georg apud MORAES FILHO, 1983).
167
o shopping de estar assentado sobre a inautenticidade, o que inviabilizaria a atribuição do
conceito de lugar a este tipo de espaço, mesmo a partir da perspectiva de um freqüentador
mais antigo. Ao contrário, por ainda permanecer como um espaço produzido basicamente
sob os auspícios da inautenticidade, o shopping permaneceria, pela perspectiva humanista,
como um não-lugar.
Todavia, de acordo com a perspectiva de análise que adotamos, advinda da
proposta de conceituação do lugar de Nicholas Entrikin, os significados vão se perdendo e
se refazendo, e com isso podem tornar-se bem diferentes daqueles mais “tradicionais”.
Assim, uma vivência de mais de 20 anos, ainda que em um “espaço globalizado”, faz com
que se estabeleçam ligações afetivas importantes com um determinado ponto da rede
mundial, o que através da combinação daquilo que Entrikin chama de “visão centrada” e
“visão descentrada”, nos autorizaria a chamar o shopping de lugar.
Neste sentido, o depoimento colhido por MAIA (2002) é ilustrativo desta
dimensão “lugarizada” do shopping.
Eu já trabalhei, durante bastante tempo, em shopping center. Minha vida,
nesse período, se restringia àquele espaço. Era lá que eu trabalhava, me
alimentava, me divertia. Lá também estavam meus amigos, aquelas
pessoas que eram importantes para mim. Depois que fui demitida, fiquei
um tempo perdida, tinha um sentimento ruim...Era como se minha vida
tivesse ficado para trás. Hoje, vou pouco ao Barra Shopping, onde
trabalhei, porque a distância é muito grande, mas venho sempre aqui no
West Shopping. Fico, às vezes, horas sentada aqui, perto da praça de
alimentação, sozinha, vendo o movimento. Sinto saudade daquele tempo...
(Entrevistado por Rosemery Maia no West Shopping, in: MAIA, 2002,
pg.300).
Neste caso, para além da padronização ou da artificialidade que podem levar o
shopping a ser tomado como um exemplo de não-lugar, fala-se de um espaço recheado de
significados, lembranças, que foi parte fundamental da vida de uma pessoa e que ficou para
trás. Mais importante ainda é o fato de que essas lembranças, esses significados e a
168
identidade que se constituiu entre o shopping e o indivíduo não foram mediadas pelo
contato com os símbolos artificiais agregados pelas mercadorias, mas através de relações
pessoais afetivas e de atividades cotidianas, que apesar de se realizarem no shopping, não
nasceram tomadas pelo espírito mercadológico-pasteurizado. Aí, o Barra Shopping assume
o papel de um local que fez (e ainda faz) parte de um profundo envolvimento, no qual a
vivência do cotidiano impregnou este espaço de uma história que o transformou em lugar.
Assim, como lembra Relph, aquilo que para um observador de fora, um outsider, é um
espaço indiferenciado, pode ser para outros um espaço dotado de valor, um lugar que tenha
em suas paredes a inscrição autêntica de parte importante do desenrolar da vida do
indivíduo.
Dessa forma, conclui-se que a atribuição dos conceitos de lugar e/ou de não-lugar
aos “novos” espaços do capitalismo, como por exemplo, o shopping center, nos abre uma
série de possibilidades para a compreensão de situações, eventos e épocas que podem nos
desviar da atribuição conceitual feita a priori. Em nosso trabalho, privilegiamos a dimensão
da sociabilidade como uma das organizadoras fundamentais do espaço do shopping e as
implicações desta importância da sociabilidade nestes empreendimentos na (tão comum)
atribuição do conceito de não-lugar ao shopping. No mínimo, esperamos ter contribuído
para deixar claro os perigos que uma rotulação simplista como esta traz às possibilidades de
novas visões sobre o assunto. Na verdade, a falta de compromisso com a discussão
conceitual do lugar e a tentação de seguir a maré que nos leva a “demonizar” espaços como
os shoppings, nos faz apontar a priori, através daquilo que há de mais superficial,
simplesmente o que é ou o que não é lugar. Este tipo de “rotulação”, que vem diminuindo,
ou até mesmo, pode-se dizer, fechando novas perspectivas de análise de espaços como o
shopping, torna-se um grande desafio e nos estimula em um certo sentido, a “remar contra a
169
maré”. E caminhar no “sentido contrário” não significa simplesmente contestar o que já foi
“concluído” sobre o assunto, mas ao menos proceder à tentativa de desenvolver um
trabalho que chame a atenção para a necessidade de termos um olhar mais cuidadoso e uma
perspectiva de análise menos pré-definida. Deste modo, provavelmente estaremos nos
distanciando da criação de rótulos, aparentemente sustentados por conceitos fundamentais
das ciências sociais, os quais acabam servindo para traduzir nossas preferências pessoais;
aquilo que gostamos deve existir, deve ter lugar; aquilo de que não gostamos ou que “não
fica bem” dizermos que gostamos deve ser extinto, não deve ter lugar...
Distante deste tipo de apropriação de conceitos com vistas a externar preferências
pessoais, privilegiamos a conceituação do lugar trazida por Nicholas Entrikin e concluímos
que, de acordo com o modo como as diferentes experiências vividas influenciam e são
influenciadas pela dimensão física do espaço em questão, podemos conceituar o mesmo
espaço (o mesmo shopping) como lugar e como não-lugar. Queremos dizer,
resumidamente, que a dimensão da pasteurização, da indiferença e da “inautenticidade”
pode ser aquilo que mais sobressaia para uma pessoa que pouco freqüente o shopping e se
encontre ali simplesmente para fazer uma rápida compra. Esta rápida compra poderia ser
feita no Rio, em São Paulo, em Madri ou em Nova York, sem que houvesse grandes
diferenciações nas experiências, pois as lojas, o ambiente e as pessoas em volta “são as
mesmas”75. Por outro lado, nem todas as pessoas mantêm este tipo de relação “anônima”
com o shopping center. Aliás, procuramos demonstrar neste trabalho que cada vez mais o
75
Neste capítulo 4, assim como na maior parte deste trabalho, demos maior atenção às possibilidades de
“lugarização” do shopping, pois queríamos exatamente desconstruir a “sentença definitiva” e largamente
difundida do não-lugar como modo de definir os shoppings. Assim, a sociabilidade foi um condutor
fundamental para que conseguíssemos chegar até aqui. Todavia, como no exemplo da “rápida compra”
formulado linhas acima, não negamos que mesmo fazendo parte do cotidiano de milhões de indivíduos
mundo afora, os shoppings apresentem, também, situações que se encaixem nas teorias do não-lugar.
170
shopping faz parte dos espaços do cotidiano das pessoas, seja como centro de compras,
lazer e sociabilidade, seja como local de trabalho. Por ter se impregnado à vida urbana, este
tipo de equipamento, a princípio indiferenciado, vem ganhando contornos que permitem
aos seus freqüentadores traçar diferenciações fundamentais e estabelecer, nestes lugares,
experiências distintas.
171
Considerações Finais
O conceito de não-lugar e as diversas discussões e contendas derivadas de sua
aplicação ainda carecem de maiores reflexões. Neste trabalho, tentamos proporcionar uma
contribuição para o aprofundamento dessa discussão teórica, que por sua vez possui uma
estreita ligação com o conceito lugar, um dos conceitos-chave da geografia, e que também
está longe (ainda que em proporção muito menor) de ocupar, na prática, uma posição de
destaque nas reflexões dos geógrafos. Neste sentido, concluímos que há correntemente uma
precipitação na utilização da idéia do não-lugar. Simplesmente estipular quais os ambientes
que são e quais os que não se enquadram como não-lugar, e promover assim uma rotulação
de certos espaços, deixa escapar a complexidade que envolve produção desses ambientes.
Quando nos referimos à “produção desses ambientes”, nos remetemos ao conceito
de espaço, e aos fatores que compõem a produção do ambiente social, tais como as noções
de forma e de conteúdo, idéias tão valiosas explicadas magistralmente por autores como
Henri Lefébvre e Milton Santos. Assim, os espaços planejados, “eficientes” e objetivos,
com suas formas homogêneas, podem nos chamar a atenção, em princípio, para a
possibilidade de um enfraquecimento do sentido de lugar e da própria experiência que este
ambiente proporciona. A diversidade de formas é minimizada em prol da eficiência dos
negócios daqueles que manejam o capital na cidade, um processo de âmbito global,
verificado de modo mais claro nas metrópoles.
Todavia, ainda que a forma componha uma dimensão fundamental do espaço, e
tenha, portanto, influência direta no comportamento das pessoas, e na vivência do ambiente
de modo geral, ou seja, no conteúdo, não se pode esquecer da importância, não só, das
experiências que se desenrolam no cotidiano desses espaços, mas também de como as
172
pessoas que vivem, ou simplesmente passam, “vêem” esses espaços. Ou seja, a objetividade
da forma, e mesmo as mudanças que a princípio ela promove nos conteúdos, influenciam,
mas não determinam o modo como um ambiente é vivido e pensado pelos indivíduos.
Neste caso, as noções de “insider” e “outsider” que vimos em outro momento deste
trabalho, o grau de envolvimento que se tem com o ambiente é fundamental para a
ampliação da discussão. Nos leva a refletir sobre a gama de possibilidades de relações
afetivas e históricas que mesmo os “ambientes pasteurizados” podem gerar. Quem vai dizer
a um funcionário de um aeroporto com mais de trinta anos de “casa”, que este espaço é
igual no mundo inteiro e que essa impossibilidade de diferenciação nos leva a afirmar que
estamos diante de um local sem memória, com o qual não conseguimos estabelecer nenhum
grau de afetividade ou identificação. Para a experiência do viajante, o aeroporto talvez não
consiga, realmente, despertar sua atenção, ou sua afetividade, tanto pela própria
característica da experiência que é apenas de passagem, como pelo fato de ser um espaço
montado a partir de planos muito parecidos, e difundidos globalmente. No entanto, fica
clara a diferença que não podemos deixar de considerar, quando nos remetemos à
experiência do funcionário.
Com isso, entendemos que mais do que determinar a condição de
“inautenticidade” de um local apenas por sua forma, o não-lugar pode nos ajudar a
compreender aspectos importantes de determinados espaços, que por apresentarem uma
clara padronização de sua forma, acabam por si só limitando ao mínimo a diversidade de
experiências. Todavia, o não-lugar não abrange todas as perspectivas que esses espaços
pretensamente padronizados apresentam para a experiência. É imprescindível lembrar que
dependendo do “papel” que exercemos nesses espaços, podemos reconhecer diferenças
naquilo que a princípio seria indiferenciado, e manter afetividade com um aeroporto ou
173
com um shopping específico. Assim, há que se ter cuidado na aplicação do conceito de nãolugar, para que possamos ampliar a análise de ambientes planejados (que proliferam em
ritmo acelerado), e não aprisionar a reflexão em um rótulo que transforma a análise em uma
identificação simplista e superficial daquilo que se encaixa ou não no rótulo.
Foi justamente esta necessidade de atribuir o mesmo peso na análise às idéias de
forma e conteúdo, e de objetividade e subjetividade, que nos fez optar pela utilização, de
modo mais amplo, da abordagem do conceito de lugar trazida por Nicholas Entrikin. Com
esta perspectiva do lugar pudemos enxergar de modo mais claro as ambigüidades dos
processos que têm se verificado nos shoppings, e que, portanto, nos impelem a necessidade
de rever o modo como classificamos e entendemos este empreendimento. Nesta caminhada,
registramos aqui a importância para este trabalho de nossa pesquisa sobre o conceito de
lugar. Especialmente no que se refere à abordagem da corrente humanista à cerca do lugar,
que através de suas bases filosóficas abriu caminho para discussões como a do não-lugar e
para que estudiosos como Nicholas Entrikin pudessem avançar em termos teóricos.
É precisamente esta publicização progressiva dos shoppings, sobre a qual tanto
discutimos, catalisada de modo assustador através da sociabilidade, que nos faz entender o
shopping como mais do que um centro comercial, ou um espaço hermético-exclusivo dos
setores mais abastados da sociedade, ou mesmo, como um espaço indiferenciado. Da
mesma forma, nossa proposta não foi estudar o shopping como um exemplo interessante
(que é) das “novas” tendências e contradições do espaço urbano, mas sim estudar o próprio
espaço do shopping de hoje, e questionar a validade de algumas atribuições conceituais que
parecem estar em desacordo com a vida urbana e os shoppings de hoje. Foi neste sentido,
que o não-lugar se apresentou como uma via interessante para tentarmos demonstrar a
necessidade de um cuidado maior na análise de ambientes que vêm se tornando mais
174
complexos em diversos sentidos, principalmente enquanto espaços sociais. Por outro lado,
não deixamos de lembrar que apesar de sua crescente publicização e até popularização, os
shoppings não primam pela “igualdade” na apropriação de seus espaços, e que a segregação
e os diversos instrumentos de intimidação e coerção permanecem sendo aperfeiçoados e
utilizados sobre os “indesejáveis”. Também, entendemos que a perspectiva da
“pasteurização” do espaço compõe uma parte significativa da própria constituição dos
shoppings76, o que, no entanto, não nos autoriza a conclusões automáticas sobre as
experiências e situações vividas nesses espaços, nem muito menos nos fornece o
instrumental necessário para classificarmos o shopping como lugar ou não lugar, por
exemplo.
…among the kinds of place we occupy most in the modern world are
those of consumption; and these pose a fundamental geographical
problem, because consumption creates places that have the appearance of
being unconnected by anything else in space. This spatial dissociation or
disorientation allows us to think we are both in place and in no place
(SACK, 1992, pg.84).
Neste sentido, o shopping de hoje, no qual a sociabilidade77 desempenha um papel
importantíssimo na própria arrumação do espaço, visando, é claro, a ampliação do
consumo, compõe uma parte cada vez mais importante do cotidiano de milhões de pessoas,
possibilitando uma diversidade considerável de experiências para muitos de seus
freqüentadores. Mesmo com a instabilidade e a superficialidade do comércio, das imagens
idealizadas, das construções pasteurizadas, que fazem do shopping, especialmente para
aqueles que não são freqüentadores, um não-lugar, identidades e afetividades são
76
Basta observarmos as semelhanças na lógica de sua montagem nos mapas em anexo, que apresentam
espaços de diversos shoppings.
77
Ainda que possamos qualificar a sociabilidade nos shoppings de “instrumental”, pelo fato de em grande
medida constituir-se em uma estratégia da administração para ampliar o tempo de permanência e o consumo,
para os freqüentadores a sociabilidade é dotada de um fim em si mesma.
175
produzidas e estabelecidas nos shoppings. Com certeza, para uma parcela importante dos
milhões de assíduos freqüentadores de shopping centers existem distinções muito claras
entre os empreendimentos, o que por conseguinte gera determinadas preferências e
experiências diferenciadas. Assim, nem todos conseguem “...entender por que sentar num
banco no shopping possa ser mais artificial do que sentar num banco no parque”
(RYBCZYNSKI, 1995, pg.197).
Concluímos, então, que a possibilidade de se pensar o shopping como um lugar
traduz em grande medida processos e vivências cada vez mais comum em diversas
sociedades urbanas mundo afora. O shopping apresenta uma ampla possibilidade de
análises e reflexões, que podem trazer contribuições importantes para a compreensão da
sociedade mundial atual e sua relação cada vez mais estreita com (a “espetacularização”
do) o consumo. Como foi possível observar em alguns momentos deste trabalho, o
shopping se apresenta no limiar da sociabilidade e do consumo, do público e do privado, do
lugar e do não-lugar e, portanto, nos convida a refletir sobre diversas inquietudes muito
comuns no período em que vivemos hoje, ou seja, o momento avançado da globalização.
Evidentemente, longe de esgotar as possibilidades de análise, e diante do caminho
árduo que escolhemos, seja quando falamos do shopping, da sociabilidade ou do não-lugar,
consideramos que este trabalho atingiu seus objetivos na medida em que a quase ausência
de discussões que tratem destes temas na geografia, paralelamente à importância que eles
podem ter no caminho de diversos questionamentos quanto à cidade, o homem e o espaço,
foram os motivos que instigaram o autor a tentar promover um trabalho que conseguisse
reunir esses temas de modo a produzir uma reflexão geográfica.
176
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198
199
200
Anexo 17 - Mapa da distribuição dos shoppings na cidade do Rio de Janeiro
Anexo 17 - Mapa da
201
Anexo 18 – Mapa da distribuição dos shoppings no estado do Rio de Janeiro
202
Anexo 19 - Entrevista com Freqüentadores
•
Para você, o que leva as pessoas a freqüentarem shopping centers?
•
•
Quais os shoppings que você costuma freqüentar? Por que?
Você vê alguma relação entre este shopping e o bairro em que ele se encontra?
•
Quais os principais motivos (em ordem de importância) de suas visitas ao
shopping?
•
•
•
Com que freqüência você vai ao shopping?
Quanto tempo você costuma ficar no shopping?
O que os shoppings trazem de positivo e de negativo para a cidade?
•
Há algo no shopping que te incomode?
203
Anexo 20 - Questionário para a Administração do Barra Shopping
•
Qual o perfil do freqüentador?
•
•
•
O que mais os atrai?
Que tipos de serviços são prestados no shopping?
O shopping possui uma programação fixa de eventos? Quais são esses eventos?
•
Além das lojas mais importantes, há outros tipos de ancoragem no shopping?
•
A partir de quando o lazer e os serviços tornaram-se fatores fundamentais no
mix do shopping?
•
Passear, marcar um encontro, namorar no shopping, tornou-se parte da vida dos
freqüentadores. Como vocês recebem o fato de que essas atividades são cada
vez mais freqüentes no interior do shopping?
•
Há um perfil que defina, de modo geral, o(s) indivíduo(s) que costuma(m)
causar problemas à segurança do shopping?
•
Quais são as principais estratégias utilizadas pela segurança?
•
•
Os agentes de segurança são terceirizados?
Como o shopping se situa no contexto de violência da cidade?
•
Como a administração agiu diante das manifestações dos “sem teto” em 2001?
•
Ainda existem semelhanças entre o Barra Shopping de hoje e o Barra Shopping
de 1981 (inauguração)?
•
Qual a relação do shopping com o bairro em que se situa?
•
O shopping é um espaço público, ou é um espaço privado?
204
Anexo 21 - Questionário para a Administração do Shopping Iguatemi
•
Qual o perfil do freqüentador?
•
•
•
O que mais os atrai?
Que tipos de serviços são prestados no shopping?
O shopping possui uma programação fixa de eventos? Quais são esses eventos?
•
Além das lojas mais importantes, há outros tipos de ancoragem no shopping?
•
A partir de quando o lazer e os serviços tornaram-se fatores fundamentais no
mix do shopping?
•
Passear, marcar um encontro, namorar, tornaram-se parte da vida dos shoppings.
Como vocês recebem o fato de que essas atividades são cada vez mais
freqüentes no interior do shopping?
•
Há um perfil que defina, de modo geral, o indivíduo que costuma causar
problemas à segurança do shopping?
•
Quais são as principais estratégias utilizadas pela segurança?
•
•
Os agentes de segurança são terceirizados?
Como o shopping se situa no contexto de violência da cidade?
•
Qual a relação do shopping com o bairro em que se situa?
•
O shopping é um espaço público, ou é um espaço privado?
205
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Shopping Center: Entre o Lugar e o Não-Lugar