Pág 1 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Índice 1 Menina e Moça. Ou Saudades, Bernardim Ribeiro. Sécs. XV XVI (1482? - 1552?) ............................................................................................. 3 2 O Chapéu das Fitas a Voar, Agustina Bessa-Luís. ........................ 5 3 O Físico Prodigioso, Jorge de Sena ................................................... 9 4 Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Manuel Maria Barbosa du Bocage .................................................................................................. 11 5 Versos de Luís Vaz de Camões - Escolhidos e prefaciados por Vitorino Nemésio..................................................................................... 14 6 Poesias Completas, Alexandre O'Neill ............................................ 16 7 A Cidade e as Serras, Eça de Queirós ............................................. 18 8 Amor de Perdição, Camilo Castelo-Branco ................................... 21 9 Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.. 24 10 Odes Escolhidas, Ricardo Reis /Fernando Pessoa ..................... 26 11 Desobediência, Eduardo Pitta ........................................................ 28 12 A Paixão, Almeida Faria.................................................................. 30 13 As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta ..................................... 33 14 Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira .............................. 36 15 Elogio da Cidade de Lisboa, Damião de Góis ............................. 38 16 A Função do Geógrafo, Rui Cóias .................................................. 40 17 Peregrinação, Fernão Mendes Pinto (versão para português actual) ........................................................................................................ 43 18 Um calculador de improbabilidades, e Tisanas, Ana Hatherly. ..................................................................................................................... 46 19 A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge ............................................ 48 20 Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett ................................. 52 Pág 2 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 1 Menina e Moça. Ou Saudades, Bernardim Ribeiro. Sécs. XV XVI (1482? - 1552?). Ed. D. Quixote Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 4 Bernardim Ribeiro, português, escritor renascentista que frequentou a corte de D. Manuel I. Esta novela, sobre uma jovem cujo destino se "vai escrevendo", é considerada como um texto cabalístico judaico. A linguagem é complexa mas muito bonita e o interesse pelo que pensa e diz aquela que conta a sua história, vai crescendo. Texto a ler Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era muito pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui eu em aquela terra, mas coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas coisas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. Escolhi para meu contentamento (se entre tristezas e cuidados há aí algum) vir-me viver a este monte, onde o lugar e a míngua da conversação da gente fosse como já para meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com Pág 3 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que ele não deu a ninguém. Estando eu aqui só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e da outra parte águas do mar, que nunca estão quedas – onde cuidava eu já que esquecia à desaventura, porque ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse achar lugar nova mágoa, antes tudo havia muito tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com razão. Mas parece que das desaventuras há mudanças para outras desaventuras, porque do bem não a havia para outro bem. E foi assim que, por caso estranho, fui levada em parte onde me foram ante meus olhos apresentadas, em coisas alheias, todas as minhas angústias, e o meu sentido de ouvir não ficou sem a sua parte de dor. Pág 4 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 2 O Chapéu das Fitas a Voar, Agustina Bessa-Luís. Guimarães Editora. Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 3 Agustina Bessa-Luis, nasceu em 1922. É autora de inúmeros romances, biografias, contos, memórias, crónicas, ensaios, peças de teatro, contos infantis. A sua obra é um marco essencial na Literatura, principalmente a partir da publicação do romance A Sibila, em 1954. O seu sentido de humor e a riqueza da sua escrita são amplamente reconhecidos. Em “As Duas Irmãs Fabianas” a autora conta, em jeito de fábula, a história de duas irmãs tão diferentes, tão diferentes, que a própria mãe as trata de uma forma totalmente distinta: uma é perfeita, certinha, bem comportada; a outra é uma rebelde. Qual das irmãs será a preferida do (a) leitor (a)? Texto a ler As duas Irmãs Fabianas, (pgs. 127-129) Eram duas irmãs, de igual tamanho e quase da mesma idade. Mas uma era querida da mãe e outra não. A mais velha aprendera a tecer e a bordar; sabia estrelar ovos e cozinhar bacalhau de quarenta e seis maneiras. Fazia as camas à inglesa, servia à mesa à francesa, e dava de comer aos periquitos logo às seis da manhã. Cozia batatas para os porcos e deitava-lhes uma mão de sal. Assim, as fêveras ficavam mais saborosas. A mãe andava atrás dela todo o dia. - Fabiana, olha o carteiro. Varre a casa, lava a roupa, engoma os fatos. Fabiana, faz o almoço, escolhe o feijão, traz a água, engarrafa o vinho, tempera as azeitonas, doba o linho, fecha as galinhas, recolhe os ovos, pensa o gado, munge as vacas. Pág 5 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Fabiana corria e suava e nunca tinha tempo para mais nada senão trabalhar. A irmã tinha vida regalada. Frisava o cabelo, pintava as unhas, pregueava a saia, cheirava a alfazema; e comia natas e toucinho do céu. A mãe chamava-lhe menina, e não sabia mais que laços lhe pôr, nem que alegrias lhe dar. Ambas eram bonitas, mas Fabiana andava mal vestida e sempre com um grande avental de quadradinhos. A outra usava botas de couro e de cetim (às vezes, quando havia casamentos ou baptizados) e um grosso cordão de ouro. Não se podiam comparar. Cresceram e fizeram-se mulherzinhas. Uma em casa, outra no caramanchão. Ambas se casaram; uma de preto, outra de branco, com coroa e grinalda, ramo e dote, tudo isso. Fabiana chorou ao deixar a casa, os periquitos, as vacas malhadas e a cama de solteira. Ainda que tivesse muito trabalho e a mãe andasse sempre a ralhar e a dar ordens, ela tinha saudades. Foi com o marido para muito longe e escrevia de vez em quando cartas que a mãe não chegava a ler porque estava ocupada a vigiar as criadas e a fazer contas com os caseiros. A outra filha casou muito rica e também foi viver para outro lugar. Não escrevia porque, depois da escola, nunca mais pegou numa pena, e esqueceu o que aprendera. Um dia a mãe pensou fazer-lhes uma visita. Tirou da mala o lenço de merino e a saia com fitas em redor e pôs-se a caminho. «Como viverão as minhas filhas?» - cogitava ela. «A minha menina, já sei: vive como uma rainha e tem pelo menos dez pares Pág 6 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt de meias de renda. É tão delicada que as meias de linho fazem-lhe calos». Quanto a Fabiana, não chegara a pensar nada. Não se admirou de a ver limpa e bem penteada, de encontrar a casa dela varrida e a comida feita. As crianças vestidas e com o nariz assoado. O cão com o pelo cortado e as vacinas tomadas. Não disse está bem, nem mal. Abraçou-a à pressa e saiu a correr. Fabiana chorou ao vê-la e chorou ao deixá-la. Tinha um lenço grande, bem branco e bem vincado ao ferro, para secar as lágrimas. A mãe estava com pressa para ver a outra filha. Chegou ao solar, que estava em ruínas, e vieram à porta dois rapazes sujos e mal encarados que se riam dela e a ameaçaram de a correr à pedra. A mãe já ficou desconfiada. Andou mais um bocado e entrou num pátio sujo onde os porcos grunhiam, à solta. Levantavam as pedras com o focinho e perseguiram-na como se fossem javalis enfurecidos. - Credo – disse a mãe. – Ó da casa! Respondeu-lhe o eco, não havia ninguém por perto. Só se ouvia de vez em quando uma camélia podre a cair no chão, lá no jardim abandonado. Mas a maior surpresa esperava-a na cozinha. Montes de pratos, rodilhas, e ratos que corriam nos armários. A sala ainda era pior: os tapetes estavam coladas ao chão, de tão carregados de lama. As aranhas bamboleavam-se nas teias como acrobatas no circo. Era uma coisa nunca vista. A mãe não sabia se avançar ou recuar. – Menina – disse ela -, Menina, onde estás? Venho visitar-se. Uh! Uh! Pág 7 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Então ouviu a vozinha meiga e mimosa da sua menina. Ela estava do outro lado da sala, e a luz da varanda caía-lhe na cabeça. Vamos lá, tinha posto uma touca para não se ver que estava mais tinhosa do que formosa. - Entre, minha mãe, pode entrar. – E bocejou com estrondo. Até as pombas na varanda levantaram voo. – Venha de pedrinha em pedrinha para não cair na merdinha. A tia Amélia ria-se com este desfecho, eu ficava meio embatucada. A história das Fabianas nunca foi a minha favorita. Eu apreciava mais contos de horror ou, pelo menos, de magia. Mas isso ela não gostava muito de abordar. Minha tia Amélia era crente em coisas estranhas. Penso que essas pessoas nunca contam boas histórias. Guardam o melhor para elas. Pág 8 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 3 O Físico Prodigioso, Jorge de Sena. Ed. Edições 70 Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 3 Jorge de Sena, (1919-1978) poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, que se exilou primeiro no Brasil e depois nos EUA onde deu aulas na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. O Físico Prodigioso conta uma história fantástica de um jovem que faz um pacto com o diabo, oferecendo-lhe o corpo em troca de vários poderes. Na posse destes poderes viaja de castelo em castelo, ajudando damas doentes. Um dia, à beira de um rio onde toma banho (excerto a ler) aparecem três jovens que o levam à rainha. Para saber mais, é preciso ler até ao fim. (Atenção: é um conto erótico.) Texto a ler Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstrato, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. O manso ruído de águas entre seixos e o suave dançar das folhas do arvoredo ao sopro de uma brisa ténue fizeram que o cavaleiro despertasse para o calor que sentia, o cheiro acre de suor e pó, que Pág 9 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt dele e do cavalo era mistura, e um cansaço dos membros e da boca seca. Ele próprio dirigia a descida, buscando com os olhos uma sombra que estivesse à beira de onde o rio corresse mais límpido e profundo. E o seu olhar, agora, já não pervagava, mas fito e dardejante perscrutava os recantos marginais do rio, que na verdade pareciam desertos; e os ouvidos, igualmente atentos, habituados a acompanhar os olhos em tais pesquisas, também não distinguiam, sob o arrulhar das águas e o restolhar macio do arvoredo, qualquer ruído que humano fosse. Respirou fundo, no antegosto do banho prolongado, e do repouso à sombra. Depois cearia e dormiria até de madrugada, quando as aves e o frio do alvorecer o acordariam para continuar o caminho. Para onde? E um sorriso de amarga displicência lhe estava estampado nas comissuras dos lábios, quando já o cavalo parava e baixava a cabeça para beber. Apeou-se e, antes de agachar-se para também beber, movimentou as pernas com o jeito da montada ainda, e espreguiçou-se em movimentos de ombros e dos braços, para distender as costas. Depois ajoelhou-se à beira de água, e abaixou-se com as mãos em concha. E segurou, num gesto repentino, o gorro que ia cair na cristalina correnteza. Sempre isto lhe acontecia. Crescera com ele o gorro, não podia o gorro molhar-se, e sempre se esquecia dele. Pousou-o cuidadosamente a seu lado, e então bebeu consoladamente a largos sorvos. A água estava muito fria, bem mais do que seria de esperar ali no vale, em pleno Verão, e deu-lhe um arrepio que todo o percorreu. Pág 10 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 4 Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Manuel Maria Barbosa du Bocage Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 4 Manuel Maria Barbosa du Bocage, (1765-1805), um dos mais importantes poetas portugueses. Foi destemperado e desabrido, escrevendo sobre o que lhe apetecia, com violência verbal, humor e tristeza, por não ver o seu génio reconhecido. Chegou a ser preso mas nunca parou de escrever. Nasceu em Setúbal, cidade em que o dia do seu nascimento (15 de Setembro) é feriado municipal. Meu ser evaporei na lida insana - Neste soneto, Bocage fala do tempo que passa e de como ele próprio sente que não tem aproveitado a vida como devia. Recorda-nos como deixamos passar os dias pensando que somos "imortais" e como é difícil encarar o fim. Em Olha, Marília, as flautas dos pastores, revela-se-nos um outro Bocage, alegre e folgazão, atento à beleza do mundo. Na Fábula O Leão e o Porco - e é possível contestar a ideia de Bocage - o poeta diz, através de uma alegoria, o seguinte: mesmo que se cubra "alguém" de honrarias e riquezas, a natureza de cada um mostra-se, mais tarde ou mais cedo; não é possível disfarçá-la. Textos a ler Meu ser evaporei na lida insana Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava; Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana. De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana. Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos. Pág 11 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube. Olha, Marília, as flautas dos pastores Olha, Marília, as flautas dos pastores Que bem que soam, como estão cadentes! Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes Os Zéfiros brincar por entre as flores? Vê como ali beijando-se os Amores Incitam nossos ósculos ardentes! Ei-las de planta em planta as inocentes, As vagas borboletas de mil cores. Naquele arbusto o rouxinol suspira, Ora nas folhas a abelhinha para Ora nos ares sussurrando gira. Que alegre campo! Que manhã tão clara! Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira, Mais tristeza que a noite me causara. Na Fábula O Leão e o Porco - e é possível contestar a ideia de Bocage - o poeta diz, através de uma alegoria, o seguinte: mesmo que se cubra "alguém" de honrarias e riquezas, a natureza de cada um mostra-se, mais tarde ou mais cedo; não é possível disfarçá-la. O Leão e o Porco O rei dos animais, o rugidor leão, Com o porco engraçou, não sei por que razão. Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna (A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna): Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes, Poder de despachar os brutos pretendentes, De reprimir os maus, fazer aos bons justiça, Pág 12 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça; Mas em vão, porque o porco é bom só para assar, E a sua ocupação dormir, comer, fossar. Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria Soltavam contra ele injúria sobre injúria Os outros animais, dizendo-lhe com ira: «Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!» E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais, Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais! Dos filhos para o génio olhai com madureza Não há poder algum que mude a natureza: Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos O faça cortesão pelos seus vãos caprichos. Pág 13 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 5 Versos de Luís Vaz de Camões - Escolhidos e prefaciados por Vitorino Nemésio Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 3 Luís Vaz de Camões, (1524 – 1580), é um dos maiores poetas de todos os tempos, a par de Homero, Vírgilio, Dante, Cervantes e Shakespeare. Para além de Os Lusíadas, o longo poema épico dedicado aos feitos dos portugueses, escreveu sonetos, cantigas, peças de teatro, uma enorme variedade de Rimas. Foi soldado aventureiro, participou em batalhas - onde perdeu um olho cantou o amor como poucos, andou pelo mundo. Era dado a brigas, foi preso mais do que uma vez, era corajoso, bom companheiro e gostava de se divertir. Os dramas por que passou, as infelicidades, não lhe abateram o espírito. Sabia que era um grande poeta, um valoroso soldado e um homem de honra. Um perfeito renascentista, curioso, inteligente e destemido. Textos a ler Do Autor ao desconcerto do mundo Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e, para mais me espantar, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim o bem tão mal ordenado, fui mau, mas fui castigado. Assim que, só para mim anda o mundo concertado. Pág 14 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Cantiga A três damas que lhe diziam que o amavam Moto Não sei se me engana Helena se Maria, se Joana, não sei qual delas me engana. Voltas Uma dize que me quer bem, outra jura que mo quer; mas, em jura de mulher quem crerá, se elas não crêem? Não posso não crer a Helena a Maria, nem a Joana, mas não sei quem mais me engana. Uma faz-me juramentos que só meu amor estima; a outra diz que se fina; Joana, que bebe os ventos. Se cuido que mente Helena, também mentirá Joana; mas quem mente, não me engana. Pág 15 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 6 Poesias Completas, Alexandre O'Neill. Assírio & Alvim, Lisboa, 2000 Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 4 O'Neill nasceu em Lisboa em 1924 e morreu em 1986. Descendente de irlandeses trouxe à Poesia portuguesa uma audácia e uma irreverência invulgares. Foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. Corajoso, enfrentou a censura e chegou a ser preso, em 1953, pela polícia política, em Caxias. O seu humor ácido é bem visível nos seus textos que se caracterizam por uma intensa sátira a Portugal e aos portugueses. No Reino da Dinamarca, colectânea de poemas publicada em 1958, estabeleceu a sua reputação de grande escritor. Em "Que Vergonha, Rapazes" e em "Cão" mostra toda a sua capacidade para "jogar" com as palavras, utilizando um tom tristemente cómico. Texto a ler QUE VERGONHA, RAPAZES! Que vergonha, rapazes! Nós práqui, caídos na cerveja ou no uísque, a enrolar a conversa no “diz que” e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”) Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito é esta videirunha à portuguesa, que às vezes me sorgo no meu leito e vejo entrar quarta invasão francesa. Desejo recalcado, com certeza... Mas logo desço à rua, encontro o Roque (“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”) e desabafo: - Ó Roque, com franqueza: Você nunca quis ver outros países? Bem queria, Snr. O’Neill! E... as varizes? Pág 16 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt CÃO Cão passageiro, cão estrito, cão rasteiro cor de luva amarela, apara-lápis, fraldiqueiro, cão liquefeito, cão estafado, cão de gravata pendente, cão de orelhas engomadas, de remexido rabo ausente, cão ululante, cão coruscante, cão magro, tétrico, maldito, a desfazer-se num ganido, a refazer-se num latido, cão disparado: cão aqui, cão além, e sempre cão. Cão marrado, preso a um fio de cheiro, cão a esburgar o osso essencial do dia a dia, cão estouvado de alegria, cão formal da poesia, cão-soneto de ão-ão bem martelado, cão moído de pancada e condoído do dono, cão: esfera do sono, cão de pura invenção, cão pré-fabricado, cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija, cão de olhos que afligem, cão-problema… Sai depressa, ó cão, deste poema! Pág 17 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 7 A Cidade e as Serras, Eça de Queirós. ed. Quidnovi Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 4 Eça de Queirós (1845-1900) nasceu na Póvoa do Varzim e morreu em Paris. Foi o grande escritor português do século XIX que, como ninguém, recreou a essência da sociedade portuguesa. Criou algumas das mais espantosas figuras da nossa literatura – e da literatura mundial – descrevendo, através delas, com humor e fina inteligência, as características mais humanas de quem viveu uma época de grandes mudanças. Licenciado em Direito, seguiu a carreira diplomática, tendo viajado muito. A Cidade e as Serras: Rui Zink escreve no prefácio que o tema deste livro é a felicidade. E tem razão. Jacinto, o "bom príncipe Jacinto", habituado a todo o conforto e a todos os prazeres, defensor das comodidades trazidas pelo avanço tecnológico, aborrece-se de morte em Paris. Resolve regressar a Portugal e à quinta de Tormes com o seu criado Grilo, para um choque civilizacional. Será que irá mudar de ideias quanto à vida no campo, longe do bulício dos grandes centros urbanos? Texto a ler (O narrador é o amigo de Jacinto, o Zé Fernandes…), (pgs. 91 e 92) (…) Uma noite, no meu quarto, descalçando as botas, consultei o Grilo: - Jacinto anda tão murcho, tão corcunda…Que será, Grilo? O venerando preto declarou com uma certeza imensa: - Sua Excelência sofre de fartura. Era fartura. O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris: - e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social o Pág 18 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil. Pobre Jacinto! (…) Se eu nesse Verão capciosamente o arrastava a um caféconcerto, ou ao festivo Pavilhão d' Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramo de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta… raramente (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elísios. Não se ocupara mais das suas Sociedades e Companhias, nem dos Telefones de Constantinopla, nem das Religiões Esotéricas, nem do Bazar Espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, donde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. (…) Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos móveis roliços e fofos, todos os seus metais e todos os seus livros, tão espessamente o oprimiam que escancarava sem cessar as janelas para prolongar o espaço, a claridade, a frescura. Mas era então a poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o enfurecia: - Oh, este pó da Cidade! - Mas, oh Jacinto, porque não vamos para Fontainebleu, ou para Montmorency, ou… - Pra o campo? O quê! Pra o campo?! E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no arrependimento de ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que Pág 19 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt tanto amava. Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka e fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem afeições e sem ocupações." (…) Pág 20 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 8 Amor de Perdição, Camilo Castelo-Branco. Ed. Comunicação Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 3 Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa em 1825 e morreu em Vila Nova de Famalicão, em 1890. É, a par de Eça de Queirós, uma das glórias da nossa Literatura do século XIX. Romancista, cronista, jornalista, crítico literário, historiador, poeta e tradutor, foi um autor prolífero e marcante, senhor de uma personalidade complexa. Dado a amores tumultuosos, metia-se em brigas e esteve preso na cadeia da Relação do Porto por ter seduzido e raptado Ana Plácido, uma senhora casada. Em 1865 Camilo começou a ficar cego e acabou por se suicidar, em 1890 Amor de Perdição, inspirado na história de Romeu e Julieta, é um texto profundamente "romântico". Simão e Teresa vêm-se e apaixonam-se mas as respectivas famílias, desavindas e intransigentes, não permitem a aproximação dos dois jovens. Neste trecho, Simão, que fora um rapaz dado a brigas e a paixonetas, compreende que só pode amar a calma e decidida Teresa e sofre com o afastamento a que estão condenados. Texto a ler (…) "Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos. Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais serenidade que a usual nos seus anos. Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação Pág 21 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o voo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe que a está, da fronde próxima, chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe. Teresa de Albuquerque devia ser, por ventura, uma excepção no seu amor.O magistrado e a sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivos de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos, na celebrada pancadaria da fonte. É, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte. E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino, que se prometiam, era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível inocência de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património! Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como um tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações Pág 22 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt de se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e projectos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os cálculos. Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo desfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto estivesse febril. Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa." (…) Pág 23 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 9 Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos/Fernando Pessoa. Assírio & Alvim Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 4 Álvaro de Campos/Fernando Pessoa Fernando Pessoa - O grande poeta modernista universal, o génio que se desdobrou em múltiplas identidades (heterónimos) mostra, neste texto, a sua impaciência e desgosto pela vida banal, pela tentação da maior parte das pessoas se iludirem quanto à sua importância neste mundo. É um poeta exaltado e nada condescendente o que nos lança o desafio em Lisbon Revisited, o texto com a cidade de Lisboa no título, uma cidade que Pessoa tanto cantou mas cujos habitantes - o seu pendor burguês, o seu conformismo, as suas ilusões - contribuíam para a sua irritação. Texto a ler Lisbon Revisited (1923) Não: não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! (…) Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Pág 24 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço, Quero ser sozinho, Já disse que sou só sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia! (…) Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo… E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! Pág 25 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 10 Odes Escolhidas, Ricardo Reis /Fernando Pessoa. ed. Assírio e Alvim, 2013 Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 5 Ricardo Reis é um dos heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa. Na sua biografia (imaginária) consta que nasceu no Porto, no dia 19 de Setembro de 1887 - não se sabe como morreu mas José Saramago em O Ano da Norte de Ricardo Reis aponta para a data de 1936 - foi educado num colégio de jesuítas e formou-se em Medicina, profissão que não exerceu. Por ser monárquico exilou-se no Brasil, a partir de 1919, na sequência da derrota da rebelião contra o regime republicano. Assumia-se como discípulo de Alberto Caeiro. Seguia os preceitos dos antigos gregos e a sua Filosofia, bem patentes neste texto, em que a voz do poeta exorta à contemplação e à serenidade necessárias para encarar a vida ( e o amor) na procura de um equilíbrio, próprio do espírito clássico greco-latino e aqui representado pela corrente de um rio. Texto a ler Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas (Enlacemos as mãos.) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, Pág 26 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento — Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos inocentes da decadência. Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço. Pág 27 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 11 Desobediência, Eduardo Pitta, Ed. D. Quixote Categoria – Poesia Grau de dificuldade – 3 Eduardo Pitta – é um poeta, escritor e ensaísta português. Nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, a 9 de Agosto de 1949. Viveu em Moçambique até Novembro de 1975. Escreve e publica desde 1967. Entre 1974 e 2013 publicou dez livros de poesia, um romance, uma trilogia de contos, cinco volumes de ensaio, dois diários de viagem e um livro de memórias. Mantém desde 2005 o blogue Da Literatura. Nestes poemas fala da ausência, tanto material (casas, livros, objectos) como, principalmente, de amigos, de amantes. Textos a ler (pg. 103) Os meus amigos andam perdidos um pouco por toda a parte. De Lausanne ao Rio é o vasto mundo dos desencontros, os mesmos que de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo animam exílios vários. Andam em diáspora os meus amigos. Une-os porventura, a mesma nostalgia. Feridas antigas hipotecadas ao futuro. Pág 28 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt (pg. 133) Mais de que uma casa era um refúgio forrado de livros, gravuras e mesmo alguns retratos. O fragor do mar não colidia com o canto da lareira e a impaciência de Xavier, o siamês. Rimbaud andou por lá, voando nas dunas, os pescadores extasiados do seu perfil motorizado. Havia quem roubasse amoras para o serão e os que em sigilosas noites chegavam a coberto das escarpas de Porto Batel. A casa continua lá, habitada pela memória desolada de quem partiu. O quintal abriga peregrinos, o vento, vegetação rasteira e o jogo ardiloso de dois amantes. Pág 29 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 12 A Paixão, Almeida Faria. Ed. Estampa Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 4 Almeida Faria - nasceu em 1943 em Montemor-o-Novo. É autor de romances, novelas, peças de teatro e ensaios. É também tradutor. Frequentou as Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa - é licenciado em Filosofia. Viveu como escritor residente (1968-1969) nos Estados Unidos (International Writing Program, Iowa City) e em Berlim. É um dos mais importantes romancistas portugueses do séc. XX. Os seus romances foram objecto de várias teses universitárias. Em Paixão, (1965) o autor reinventa um lugar, uma paisagem específica, onde os ciclos da vida e da morte se sucedem, num Alentejo implacável em que o que se passa na cabeça de uns, as suas vivências e angústias está intimamente ligado a todos os outros; assim, o monólogo interior de uns continua nos outros, por exemplo, o de Piedade continua no de João Carlos, o de este a Arminda, o de esta à Mãe e por aí fora… Texto a Ler Arminda Foi na conferência, poucos dias antes de vir para férias, que aquilo começou, à lembrança de que não devemos ir a conferências nem fazer conferências, pelo que disse a Samuel: vamos embora, em voz alta, que os vizinhos ouviram, olhando sisudos, cheios de circunspecção, abanando a cabeça, à força levantando-se para nos dar passagem, enquanto eu ia dizendo, antes mesmo de alcançar a porta: usam pistolas, estes tipos, não nos deixam descer para a planície, mas são próximos os dias ou pelo menos já estiveram mais longe (saíamos à rua, subíamos o passeio a pé, ele assustado Pág 30 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt tentando serenar-me, eu tropeçando a cada instante sobre os sapatos altos), eis que ela chega, a nossa idade média, tropa de choques a cavalo, ouves ao longe os cascos dos cavalos, pergunto-te se ouves os cascos dos cavalos, cavalos de fogo, escuta, repara como galopam lentos, implacáveis, espumados de branco, repara, dir-seia que ficaram imóveis sobre a chapa do tempo, em movimento eterno pelo vácuo, as patas pisam a terra, pejados de ameaças, ouves o choro que fazem os cascos sobre as rochas, são eles, a quatro e quatro, serenos, certos, crinas e espadas, ah se tu ouvisses, Samuel, eles que chegam, caminham com as bocas fendidas e, nas caudas, o sinal de uma vingança escrita, eles vão separar-nos, Samuel, tu que és o ouvido divino, ouve, não posso consentir que partas, vês, os vidros do hospital ao pôr e nascer do sol sempre assim ensanguentados, jactos de sangue esguichado de baixo dos cascos cinzentos dos cavalos, apressemo-nos, ou chegaremos talvez demasiado tarde, traze a tua arma, o teu cavalo bravo, vamos para lá, não vês aquelas brancas sobre as nuvens da tarde, mas que foi, Samuel, não, não me quero deitar, dormir mais, tenho sono, sim, imenso, tanto, que se me deito durmo para nunca mais voltar a verte, tenho medo de dormir, tenho tempo depois, demasiado tempo, não me deixes sozinha à espera de morrer, não te vás, transporta as tuas coisas para o meu quarto, amplo, antigo e em desordem, com um espelho de cristal florenfeitado, um guarda-fato enorme em que até cabe a morte, aquela cruz cheia de merda e madrepérola, o meu quarto em que tenho frio e deliro, tenho febre, estou cansada, doente, dorida nas coxas, não me soltes o braço, Samuel, oiço o que dizes, oiço as tuas palavras, mas fala mais alto, grita, se isso for Pág 31 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt necessário, para que seja verdade, os teus olhos fixam os meus olhos, os teus olhos cortantes, a tua face abriu-se, faca afiada, Samuel, não vês como os teus olhos são duros, não gosto dos teus olhos nem desses punhais surdos, apaga essa luz que nos lambe de fogo, vermelha luz, agora o quarto penetrou, tu penetraste em trevas, agora nada oiço senão a tua voz, Arminda dorme, Arminda dorme, agora estou cansada como se tivesse atravessado a terra, agora o sol aparece a nascente, agora vou descansar no seio da terra. Pág 32 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 13 As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta, Ed. Dom Quixote Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 3 Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa, em 1937. É uma das maiores e mais importantes poetisas portuguesas. Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e dedicou-se ao cine-clubismo, como dirigente do ABC Cine-Clube, e ao jornalismo. É uma ardente feminista e co-autora, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, de Novas Cartas Portuguesas (1971), livro que gerou muita polémica e foi proibido pela censura. Escreve principalmente romances, contos e poemas. As Luzes de Leonor é uma biografia romanceada de Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna, neta dos Marqueses de Távora, uma distante antepassada da autora que a acompanha sempre, pela sua singularidade e exemplo. Escritora, diplomata, mãe e mulher, Leonor de Almeida distinguiuse na história literária e política de Portugal. Texto a ler (pgs. 74 e 75) D. Josefa de Menezes satisfaz com gosto a curiosidade de sua sobrinha Teresa de Mello Breyner em relação a Leonor de Almeida, filha mais velha dos marqueses de Alorna: - Sempre desconcertante e imprevisível, tão depressa um anjo de doçura como arrebatada pela rebeldia. Ora a imagem da vivacidade e da alegria, ora esquiva e triste, olhar assombrado pelo negrume que parece advir-lhe da fraca constituição da alma. Fazendo uma pausa longa a tomar fôlego, prossegue: - Dizem-me fazer poesia e ler muito – Camões, Hildegarda de Bingen, Teresa de Ávila, também Corneille, Horácio ou Racine, Pág 33 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Dante e Pope que eu não conheço. Mas, segundo julgo saber, parece interessar-se sobretudo por autores proibidos… Frente ao olhar desconfiado de Teresa, tenta manter-se amável: - Vê-se que prefere estudar a assistir a missas e a rezas, tanto se entregando às letras como às ciências. É organista, pinta e escreve sermões para os frades quando lhos encomendam. Aprende o inglês, mas também sabe outras línguas, fala com facilidade o espanhol e o francês. Dizem-na interessada no árabe e no latim. D. Josefa de Menezes entusiasma-se, atropela as palavras ciciadas, parecendo até desfiar uma história inventada: - Ao princípio as três choravam muito, afastavam-se de todas nós, hostis e distanciadas. Mas igualmente muito era a animosidade e a má vontade das pensionistas, a maldade e a crueldade que as freiras usavam para com elas, amarelentas e de luto fechado, compostura no desgosto profundo, logo porém assustadas, desprotegidas da sorte. Consciente dos perigos que corria se ficasse ao seu lado, limitei-me a segui-las de longe, a cumprimenta-las com um sorriso. Anos mais tarde, quando a execução dos marqueses de Távora ganhara já um esvaimento da passagem do tempo, tentei aproximar-me. Sobretudo de Leonor que agressiva e acossada me repeliu, recusando a minha companhia de mulher mais velha que com ela simpatizava. Ao afirmar isto tenta sorrir no disfarce do tom ressentido e inclinase a procurar, através da grade, prudente, o ouvido de Teresa, para murmurar num cochicho: - Sabe-se que tem cadernos, diários onde põe os pensamentos mais íntimos. Empolgada, acrescenta acariciando as palavras: Pág 34 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt - O pior são as cartas clandestinas que escreve e passa para fora. Presume-se serem dirigidas não ao Pai, preso no Forte da Junqueira. Desse modo infringe ela a proibição real, o que é crime, além de desrespeitar as regras deste convento. E já esquecida do cuidado a pôr no tom da fala, desabafa: - Mas o que lhe importa isso, afinal, se até parece fazer gosto na desobediência! Já a vi rir sem disfarce da prioresa que, para agradar ao conde de Oeiras, tenta controlá-la e à irmã, que em tudo lhe segue os passos. Tremendo, D. Josefa segreda: - Para enfurecer, o ministro de Estado, os jesuítas levaram as freiras e os padres a convencê-la a tomar votos, a receber o véu negro. Mas ela, depois de ter hesitado, acabou por lhes fazer frente e negou-se a professar. Para tal teve o apoio da mãe e, consta, do seu confessor Frei Alexandre da Silva, que também é poeta. «Não tenho vocação para professar», teria por fim comunicado com desfaçatez á madre prioresa. Neste ponto, como se não lhe fosse mais possível moderar-se, D. Josefa de Menezes exalta-se num atropelo febril de quem tem a alma envenenada pela secura fechada do corpo definhado. Suspirando, aconselha com ansiedade: - Tem cuidado! A companhia de Leonor de Almeida é perigosa. A ambição acabará por levá-la a querer voar cada vez mais alto, custe a quem custar! Escuta o que te digo: ela virá a cair mas também tombará quem andar na sua companhia! Pág 35 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 14 Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira. Ed. Quetzal Categoria – Poesia Grau de Dificuldade – 3 Maria do Rosário Pedreira nasceu em 1959 em Lisboa. É autora de ficção, poesia, crónicas e literatura juvenil, procurando neste último género a transmissão de valores humanos e culturais. É, também, editora e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade de Lisboa. Foi professora de Português e Francês (durante cinco anos), actividade que a influenciou decisivamente a escrever para um público jovem. Na sua Poesia preocupa-se em evocar a casa, o lugar íntimo, com tudo o que perdura, nas memórias e nos sentimentos nostálgicos. Textos a ler O Gato Lembra-se O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera De olhos acesos as histórias que nos contas. Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça O pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas. Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado, as sombras das traseiras na minha pele, o tempo de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu. Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu. Pág 36 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Nesse Verão Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos Andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas, surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram nos corredores e foram perder-se, também elas, na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes proibidos. O sol queimou as páginas do livro interrompido na violência de um poema e revirou os cantos do único retrato que resistira à moldura do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías atrás das estrelas; e os amantes, incomodados com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste: o verão desarruma os sentimentos. Pág 37 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 15 Elogio da Cidade de Lisboa, Damião de Góis. Ed. In folio Guimarães Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 4 Damião de Góis (1502-1574) foi um historiador português do Renascimento. Grande humanista, encarnou, como poucos, a figura do intelectual com conhecimentos muito vastos e variados. Foi um dos espíritos mais críticos da sua época, alicerçando um verdadeiro traço de união entre Portugal e a Europa culta do século XVI. De família nobre, foi educado na corte do rei D. Manuel I, tendo contactado com as mentes mais brilhantes do seu tempo. Em 1523 foi colocado pelo rei D. João III em Antuérpia na Feitoria Portuguesa. Viajou muito em missões diplomáticas e comerciais na Europa entre 1528 e 1531. Em 1533 abandonou o serviço oficial do governo português e dedicou-se exclusivamente aos seus propósitos de humanista. Em viagens pela Europa do Norte, contactou com eminentes humanistas e reformadores, conhecendo pessoalmente Martinho Lutero e tornando-se amigo íntimo do humanista holandês Erasmo de Roterdão. Texto a ler II- História e Local de implantação da cidade A) Origens e sítios - Lisboa: as origens míticas Quem tenha sido o primitivo fundador de Lisboa não nos atrevemos nós a asseverá-lo como certo, em tão grande vetustez de séculos; todavia, qualquer dos escritores mais recuados no tempo atesta que há que colocá-la entre as cidades mais antigas da Hispânia. Varrão chama-lhe Olisiponem; Protemeu, Oliosiponem; Estrabão, por seu lado, dá-lhe o nome de Ulisseam, e parece afirmar, a partir das palavras de Asclepíades de Mirleia, que foi fundada por Ulisses. Efectivamente, o Mirleano esteve à frente de uma escola na Turdetânia e escreveu um livro sobre a gente dessa região onde deu Pág 38 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt a conhecer que em Lisboa, num templo de Minerva, se encontravam suspensas algumas peças, tais como estudos, festões, esporões de navios, que serviam de memória às errâncias de Ulisses. Julgam alguns que deste passo não é suficientemente líquido que Lisboa tenha sido fundada por Ulisses. A nós, todavia, apraz-nos mais dar assentimento ao testemunho de escritor de tão grande prestígio do que comprovar o que dizem outros que, sem qualquer argumento, intentam criar suspeitas sobre ele. Sobretudo porque Solino, que se distingue sobremaneira pelo seu saber, segue a teoria de Estrabão. Também o nosso André de Resende, pessoa de valor comprovado, segundo juízo e por apreciação de todos os homens de saber, em múltiplos passos dos seus escritos, adopta e confirma essa mesma opinião. Pág 39 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 16 A Função do Geógrafo, Rui Cóias. Ed. Quasi Categoria - prosa poética Grau de dificuldade - 4 Rui Cóias nasceu em Lisboa em 1966. É um poeta português contemporâneo. Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Pós-Graduado em Assessoria Jurídica, pelo ISG - Instituto Superior Gestão (Business School), exerce a profissão de jurista. Tem colaborado em várias publicações e os seus poemas estão publicados em diversas antologias. Em Hoje, à Hora que o Sol Descai mostra o seu lado contemplativo, urbano, com personagens que se interrogam em relação ao amor e à paisagem em que estão inseridos. É uma poesia reflexiva e melancólica. Texto a ler Hoje, à hora em que o sol descai… Hoje, à hora em que o sol descai nas hastes secas dos ulmeiros, William sentou-se comigo no paredão do cais. Ajeitou os óculos, virou-se para o prolongamento da costa, mais visível, do ponto em que estávamos, na direcção de rosses point, e falou: “e se te disser que as amamos e elas não sabem?” Deteve-se nos montes, na sua erva rasa que da escarpa acomete ao oceano, e permaneceu a seguir-lhes as sombras, a completá-las com fantasias dóceis, como nas manhãs em que, cabisbaixo, seguia os nevoeiros de drumcliff. “E se te disser que não entregues o coração completamente; aquele que todo o coração ofereceu tudo acabará por perder”. Pág 40 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Inclinou-se, a madeixa caiu-lhe na testa, tal a traçara o pai para o retrato, e os seus vinte e poucos anos escoaram, o rosto desuniu-se, perdeu o ângulo para revelar-se como o ventre ruinoso de uma casa sob a fachada colorida. E à hora em que os quintais se abriam à vizinhança, em sligo, onde por acaso só ao redor da baía o mar adensa as casas, de resto nítidas, william confessou que nada descobrira, que em tudo se enganara e tudo era um logro, por muito que nelas os suaves lábios o desmentissem. Depois estendeu-me a mão e levantou-se. Pediu para caminhar com ele. Levou-se à clareira onde na infância esgravatava a terra à procura das raízes e sentira, sem ninguém ver, um empurrão nas costas, num domingo de tempestade. Conheço quem todo o coração deu e perdeu tudo. Mas elas não sabem, elas não sonham que de beijo em beijo se irão sempre consumindo. Mais tarde, soube-o, partiu. Tal como ela havia partido, ao chegarem as primeiras chuvas de setembro quando por um par de vezes passou no canal e expulsou os quatro pássaros, os quatro beijos dos seus ombros. Pág 41 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Soube-o que jamais seguiu os muros de pedra e a arquitectura das torres, contornou os afluentes e os fortins das ilhas devastadas, sem por um dia deixar para trás, por entre as canções e os prenúncios, os seus olhos bronzeadores dos ulmeiros, os seus pássaros nos ombros. E William, que com os anos se foi tornando distintamente leve, harmonioso, nas vésperas de flanquear a branca porta quadrada sob os gonzos, ao entardecer, voltou a sentar-se comigo como há vinte e poucos anos na baía de sligo, à hora em que do outro mundo de além mar, de sete em sete anos, ela aparecia sob as ondas das ilhas fabulosas, nos areais da terra encantada, e lhe entregava o coração para que nele poisassem os quatro pássaros e os dois pudessem despedir-se com quatro beijos. Pág 42 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 17 Peregrinação, Fernão Mendes Pinto (versão para português actual). Ed. Relógio D'Água Categoria – Prosa. Texto autobiográfico narrativo Grau de Dificuldade - 4 Fernão Mendes Pinto nasceu cerca de 1510, em Montemor-o-Velho. Veio para Lisboa e acabou por partir para o Oriente em 1537. Foi um grande viajante, muitas vezes encarregado de missões diplomáticas em países asiáticos e africanos. No Japão conheceu S. Francisco Xavier de quem se tornou amigo. Em Goa, entregou toda a sua fortuna aos pobres e à Companhia de Jesus, na qual ingressou como irmão leigo, para sair três anos depois. Regressou finalmente a Lisboa em 1558 e retirou-se, com a sua jovem mulher, trinta anos mais nova, para a sua quinta no Pragal, perto de Almada, onde se entregou à escrita de Peregrinação, relato das suas aventuras e desventuras. Em 1583, o então rei Filipe II concedeu-lhe uma tença mas o escritor morreu no mesmo ano. Peregrinação é um dos textos mais importantes da Literatura portuguesa, uma vez que dá uma clara e alargada ideia da vida de um homem corajoso e aventureiro, em pleno século XVI. Texto a ler Do que passei em minha Mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em Pág 43 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos de vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar de remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanto tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chamam chins, siameses, guéus, léquios, chamam em sua geografia a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos os meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei Pág 44 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-oVelho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia, tanto dela como deles, poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de el-rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. (…) Pág 45 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 18 Um calculador de improbabilidades, e Tisanas, Ana Hatherly. Ed. Quimera Categoria – Poesia/ Prosa Grau de Dificuldade - 3 Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929. É escritora e artista plástica. É, ainda, professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa onde co-fundou o Instituto de Estudos Portugueses. É diplomada em Cinema pela London Film School, licenciada em Filologia Germânica, pela Universidade de Lisboa e doutorada em Estudos Hispânicos, pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Leccionou na Escola de Cinema do Conservatório Nacional e no AR.CO, em Lisboa. A sua Poesia é considerada vanguardista e escapa a classificações. A autora destaca-se no grupo da Poesia Experimental Portuguesa e é uma das teorizadoras desse movimento, iniciado nos anos 60 em Lisboa. Textos a ler Um calculador de improbabilidades era assim: queres? queres algo? queres desejar? desejas querer? desejas-me? desejas querer-me? queres desejar-me? queres querer-me? queres que te deseje? desejas que te queira? queres que te queira? quanto me queres? quanto me desejas? ah quanto te quero quando te quero quando me queres... um calculador de improbabilidades Pág 46 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Tisanas Tinha havido uma revolução. No viaduto as letras tinham saído dos livros e lançadas com ardor sobre a cidade a água desaparecera. Não podendo já distinguir entre o rio e a estrada as letras tinham invadido a cidade outra vez e tantas eram que a terra saltava e então compreendeu-se que se tratava de um letramoto e as pessoas apavoradas queriam fugir para o campo mas nas autoestradas tantas eram as letras que já ninguém conseguia saber para onde iam ou onde mudava a direcção e atropelando-se as pessoas enterravam-se em tinta procurando desesperadamente lembrar-se Pág 47 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 19 A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge. Ed. Dom Quixote. Categoria – Prosa Grau de dificuldade – 3 Lídia Jorge - nasceu no Algarve em 1946. É uma romancista portuguesa de enorme importância, autora de alguns dos melhores romances contemporâneos em língua portuguesa. Licenciou-se em Filologia românica pela Universidade de Lisboa. Foi professora do Ensino Secundário e, nessa condição, passou alguns anos decisivos em Angola e Moçambique durante o último período da Guerra Colonial. A ação de A Costa dos Murmúrios (1988) passa-se em Moçambique, imediatamente antes da queda do regime de ditadura em 1974, nos finais da Guerra Colonial, de acordo com as recordações da autora que viveu essa experiência. O romance abre com um conto relatado na terceira pessoa sobre o casamento de Eva e Luís. O trecho a ler é o início, quando se celebra o casamento e se descreve a festa num hotel. O ritmo é importante porque vai marcar todo o livro. A alegria do início irá dar lugar à desilusão e à destruição do amor, abafado pela guerra. Texto a ler O noivo aproximou-se-lhe da boca, a princípio encontrou os dentes, mas logo ela parou de rir e as línguas se tocaram diante do fotógrafo. Foi aí que o cortejo sofreu um estremecimento de gáudio e furor, como se qualquer desconfiança de que a Terra pudesse ter deixado de ser fecundada se desvanecesse. Já não estavam junto de nenhum altar, mas no terraço do Stella Maris cujas janelas abriam ao Índico. No terraço, obviamente, não havia janelas, apenas pilares sobre os quais se estendia uma cobertura suave mas suficientemente protectora para se poder receber um cortejo daquela importância e quantidade. O fotógrafo subiu a cadeiras e desceu até ao chão, de modo a ficar completamente estendido para Pág 48 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt apanhar o beijo em todas as posições. Por isso, o noivo continuava com os olhos fechados, e ela só de vez em quando abria os seus, e o cortejo aplaudia incessantemente como no final duma ária subtil que certamente não se ouvirá jamais. Pressuroso, o fotógrafo pediu que o noivo tomasse a noiva nos seus braços e a levantasse à altura do peito, junto da vedação que impedia que, as pessoas, uma vez debruçadas, caíssem ao Índico. Era majestoso. Ela obedeceu – encostou a cabeça ao ombro do noivo, e o noivo olhou ternamente para o rosto dela. Descidos e lânguidos, os olhos dele tinham alguma coisa líquida de peixe quando abriam e fechavam. Ainda aí o cortejo batia palmas, e havia quem transpirasse e tivesse as mãos enrubescidas de tanto aplaudir. Aquele era um momento cheio de encanto. Então a noiva que tinha chegado apenas na noite anterior, mas a quem todos já chamavam simplesmente Evita, abriu os olhos, e mais do que a quantidade dos convidados, surpreendeu-se com o tamanho exemplar da mesa. As lagostas vermelhas e abertas ao meio estavam dispostas conforme um numeroso cardume. As papaias amarelas estavam cortadas em feitio de coroa de rei e coroavam a toalha inteira. Os ananases formavam uma pinha no centro, como se fosse o leque dum fantástico e emplumado peru. Ela aproximou-se desse peru, pondo o véu completamente para trás e rindo cada vez mais. Mas de facto, o local que Evita, docemente empurrada pelo noivo, deveria ocupar, não era ao centro – disse o fotógrafo com um gesto amplo – antes na cabeceira, onde havia um bolo de sete andares, com um ramo armado em forma de chuva. Um criado Pág 49 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt extraordinariamente negro, vestido de farda completamente branca, trouxe uma bandeja com uma espada. A espada era do noivo. Evita pegou na espada e fendeu o âmago do bolo até à tábua. Quando a espada bateu na tábua, acorreu de entre as mulheres uma delas de vestido sem costas com duas espátulas de cozinha. O Comandante da Região Aérea, que era marido da mulher das espátulas, avançou em primeiro lugar com o seu pratinho para receber uma trancha e aproveitou para espreitar a mão do noivo. O noivo era só alferes e o longo abraço que se seguiu ao aperto de mão, dado desse modo pelo Comandante da Região Aérea, perturbou-o a ponto de estremecer sob a pressão do punho do coronel, ali de passagem a caminho de Mueda. Nunca pela cabeça dum alferes miliciano tinha passado o sonho de que, no dia do seu casamento, houvesse um Comandante de Região que o viesse abraçar, e tudo isso foi captado pelo fotógrafo que tinha subido agora a uma mesa de apoio com toalha, junto da vedação. Daí até que chegasse a orquestra foi só um breve tilintar de copos. Um chupar de tâmaras. Os convidados de novo irromperam em aplausos. E redobraram ainda as palmas quando a pequena orquestra de instrumentos quase todos de sopro começou a soar, tocados por quatro brancos e um negro. O negro ao tocar tinha as bochechas inchadas como se quisesse explodir. Toda a música era uma explosão que rebentava na tarde. O Comandante da Região Aérea, de passagem para Mueda, abandonou a mulher das espátulas e tornou a noiva, o noivo tomou a mulher das espátulas que havia acompanhado o marido só para conhecer Six-Miles e regressar Pág 50 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt logo no avião da manhã, e seguiram-se os pares rodando à volta da mesa imensa. Pág 51 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt 20 Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett. Ed. Estampa Categoria – Prosa Grau de Dificuldade - 4 Almeida Garrett (1799- 1854) nasceu no Porto e morreu em Lisboa. Foi um grande escritor, poeta e dramaturgo do Romantismo português, ministro e secretário de estado honorário. Grande impulsionador do Teatro em Portugal, foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. Em Viagens na Minha Terra mistura o relato de uma viagem que realmente fez a Santarém com uma narrativa romanceada em torno das figuras de Carlos, Frei Dinis e Joaninha. Texto a ler Capítulo I De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao Terreiro do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os Bordasd’Água: os da calça larga levam a melhor. Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo — entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal. Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até a minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba quer assunto Pág 52 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crónica. Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me as instâncias de um amigo, decidemme as tonteiras de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita. Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me. São 17 deste mês de Julho, ano da graça de 1843, uma Segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que chega em estado. Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos. Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o prémio. (…) É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças. Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crónicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor com um período da Pág 53 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos rasteira do Oriente. Assim o povo, que tem sempre o melhor gosto e mais puro que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido. Já saudamos Alhandra, a toireira; Vila Franca, a que foi de Xira, e depois da restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração caiu, como a todas as restaurações sempre sucede e há de suceder, em ódio e execração tal que nem uma pobre vila a quis para sobrenome. A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis. Pág 54 de 54 Av. de Berna 45-A, 1067-001 Lisboa | Tel: (+351)217823000 [email protected] | www.gulbenkian.pt