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Índice
1 Menina e Moça. Ou Saudades, Bernardim Ribeiro. Sécs. XV XVI
(1482? - 1552?) ............................................................................................. 3
2 O Chapéu das Fitas a Voar, Agustina Bessa-Luís. ........................ 5
3 O Físico Prodigioso, Jorge de Sena ................................................... 9
4 Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Manuel Maria Barbosa
du Bocage .................................................................................................. 11
5 Versos de Luís Vaz de Camões - Escolhidos e prefaciados por
Vitorino Nemésio..................................................................................... 14
6 Poesias Completas, Alexandre O'Neill ............................................ 16
7 A Cidade e as Serras, Eça de Queirós ............................................. 18
8 Amor de Perdição, Camilo Castelo-Branco ................................... 21
9 Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.. 24
10 Odes Escolhidas, Ricardo Reis /Fernando Pessoa ..................... 26
11 Desobediência, Eduardo Pitta ........................................................ 28
12 A Paixão, Almeida Faria.................................................................. 30
13 As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta ..................................... 33
14 Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira .............................. 36
15 Elogio da Cidade de Lisboa, Damião de Góis ............................. 38
16 A Função do Geógrafo, Rui Cóias .................................................. 40
17 Peregrinação, Fernão Mendes Pinto (versão para português
actual) ........................................................................................................ 43
18 Um calculador de improbabilidades, e Tisanas, Ana Hatherly.
..................................................................................................................... 46
19 A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge ............................................ 48
20 Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett ................................. 52
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1
Menina e Moça. Ou Saudades, Bernardim Ribeiro. Sécs.
XV XVI (1482? - 1552?). Ed. D. Quixote
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 4
Bernardim Ribeiro, português, escritor renascentista que frequentou a
corte de D. Manuel I.
Esta novela, sobre uma jovem cujo destino se "vai escrevendo", é considerada
como um texto cabalístico judaico. A linguagem é complexa mas muito bonita
e o interesse pelo que pensa e diz aquela que conta a sua história, vai
crescendo.
Texto a ler
Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito
longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era muito
pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra senão que parece
que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo
quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito
contente fui eu em aquela terra, mas coitada de mim, que em breve
espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para
longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser
triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi
tantas coisas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a
tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do
mal que tinha.
Escolhi para meu contentamento (se entre tristezas e cuidados há
aí algum) vir-me viver a este monte, onde o lugar e a míngua da
conversação da gente fosse como já para meu cuidado cumpria,
porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com
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estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o
descanso que ele não deu a ninguém.
Estando eu aqui só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais
longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo,
nunca, e da outra parte águas do mar, que nunca estão quedas –
onde cuidava eu já que esquecia à desaventura, porque ela e depois
eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada
em que pudesse achar lugar nova mágoa, antes tudo havia muito
tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com razão. Mas parece
que das desaventuras há mudanças para outras desaventuras,
porque do bem não a havia para outro bem. E foi assim que, por
caso estranho, fui levada em parte onde me foram ante meus olhos
apresentadas, em coisas alheias, todas as minhas angústias, e o
meu sentido de ouvir não ficou sem a sua parte de dor.
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2
O Chapéu das Fitas a Voar, Agustina Bessa-Luís.
Guimarães Editora.
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Agustina Bessa-Luis, nasceu em 1922. É autora de inúmeros romances,
biografias, contos, memórias, crónicas, ensaios, peças de teatro, contos
infantis. A sua obra é um marco essencial na Literatura, principalmente a
partir da publicação do romance A Sibila, em 1954. O seu sentido de humor e
a riqueza da sua escrita são amplamente reconhecidos.
Em “As Duas Irmãs Fabianas” a autora conta, em jeito de fábula, a história
de duas irmãs tão diferentes, tão diferentes, que a própria mãe as trata de
uma forma totalmente distinta: uma é perfeita, certinha, bem comportada; a
outra é uma rebelde. Qual das irmãs será a preferida do (a) leitor (a)?
Texto a ler
As duas Irmãs Fabianas, (pgs. 127-129)
Eram duas irmãs, de igual tamanho e quase da mesma idade. Mas
uma era querida da mãe e outra não. A mais velha aprendera a
tecer e a bordar; sabia estrelar ovos e cozinhar bacalhau de
quarenta e seis maneiras. Fazia as camas à inglesa, servia à mesa
à francesa, e dava de comer aos periquitos logo às seis da manhã.
Cozia batatas para os porcos e deitava-lhes uma mão de sal. Assim,
as fêveras ficavam mais saborosas. A mãe andava atrás dela todo
o dia.
- Fabiana, olha o carteiro. Varre a casa, lava a roupa, engoma os
fatos. Fabiana, faz o almoço, escolhe o feijão, traz a água, engarrafa
o vinho, tempera as azeitonas, doba o linho, fecha as galinhas,
recolhe os ovos, pensa o gado, munge as vacas.
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Fabiana corria e suava e nunca tinha tempo para mais nada senão
trabalhar.
A irmã tinha vida regalada. Frisava o cabelo, pintava as unhas,
pregueava a saia, cheirava a alfazema; e comia natas e toucinho do
céu. A mãe chamava-lhe menina, e não sabia mais que laços lhe
pôr, nem que alegrias lhe dar. Ambas eram bonitas, mas Fabiana
andava mal vestida e sempre com um grande avental de
quadradinhos. A outra usava botas de couro e de cetim (às vezes,
quando havia casamentos ou baptizados) e um grosso cordão de
ouro.
Não se podiam comparar.
Cresceram e fizeram-se mulherzinhas. Uma em casa, outra no
caramanchão. Ambas se casaram; uma de preto, outra de branco,
com coroa e grinalda, ramo e dote, tudo isso. Fabiana chorou ao
deixar a casa, os periquitos, as vacas malhadas e a cama de
solteira. Ainda que tivesse muito trabalho e a mãe andasse sempre
a ralhar e a dar ordens, ela tinha saudades.
Foi com o marido para muito longe e escrevia de vez em quando
cartas que a mãe não chegava a ler porque estava ocupada a vigiar
as criadas e a fazer contas com os caseiros.
A outra filha casou muito rica e também foi viver para outro lugar.
Não escrevia porque, depois da escola, nunca mais pegou numa
pena, e esqueceu o que aprendera.
Um dia a mãe pensou fazer-lhes uma visita. Tirou da mala o
lenço de merino e a saia com fitas em redor e pôs-se a caminho.
«Como viverão as minhas filhas?» - cogitava ela. «A minha
menina, já sei: vive como uma rainha e tem pelo menos dez pares
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de meias de renda. É tão delicada que as meias de linho fazem-lhe
calos».
Quanto a Fabiana, não chegara a pensar nada. Não se admirou de
a ver limpa e bem penteada, de encontrar a casa dela varrida e a
comida feita. As crianças vestidas e com o nariz assoado. O cão com
o pelo cortado e as vacinas tomadas. Não disse está bem, nem mal.
Abraçou-a à pressa e saiu a correr. Fabiana chorou ao vê-la e
chorou ao deixá-la. Tinha um lenço grande, bem branco e bem
vincado ao ferro, para secar as lágrimas.
A mãe estava com pressa para ver a outra filha. Chegou ao solar,
que estava em ruínas, e vieram à porta dois rapazes sujos e mal
encarados que se riam dela e a ameaçaram de a correr à pedra. A
mãe já ficou desconfiada. Andou mais um bocado e entrou num
pátio sujo onde os porcos grunhiam, à solta. Levantavam as pedras
com o focinho e perseguiram-na como se fossem javalis enfurecidos.
- Credo – disse a mãe. – Ó da casa!
Respondeu-lhe o eco, não havia ninguém por perto. Só se ouvia de
vez em quando uma camélia podre a cair no chão, lá no jardim
abandonado. Mas a maior surpresa esperava-a na cozinha. Montes
de pratos, rodilhas, e ratos que corriam nos armários. A sala ainda
era pior: os tapetes estavam coladas ao chão, de tão carregados de
lama. As aranhas bamboleavam-se nas teias como acrobatas no
circo. Era uma coisa nunca vista. A mãe não sabia se avançar ou
recuar.
– Menina – disse ela -, Menina, onde estás? Venho visitar-se. Uh!
Uh!
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Então ouviu a vozinha meiga e mimosa da sua menina. Ela estava
do outro lado da sala, e a luz da varanda caía-lhe na cabeça.
Vamos lá, tinha posto uma touca para não se ver que estava mais
tinhosa do que formosa.
- Entre, minha mãe, pode entrar. – E bocejou com estrondo. Até as
pombas na varanda levantaram voo. – Venha de pedrinha em
pedrinha para não cair na merdinha.
A tia Amélia ria-se com este desfecho, eu ficava meio embatucada.
A história das Fabianas nunca foi a minha favorita. Eu apreciava
mais contos de horror ou, pelo menos, de magia. Mas isso ela não
gostava muito de abordar. Minha tia Amélia era crente em coisas
estranhas. Penso que essas pessoas nunca contam boas histórias.
Guardam o melhor para elas.
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O Físico Prodigioso, Jorge de Sena. Ed. Edições 70
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Jorge de Sena, (1919-1978) poeta, crítico, ensaísta, ficcionista,
dramaturgo, que se exilou primeiro no Brasil e depois nos EUA onde deu
aulas na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara.
O Físico Prodigioso conta uma história fantástica de um jovem que faz um
pacto com o diabo, oferecendo-lhe o corpo em troca de vários poderes. Na
posse destes poderes viaja de castelo em castelo, ajudando damas doentes.
Um dia, à beira de um rio onde toma banho (excerto a ler) aparecem três
jovens que o levam à rainha. Para saber mais, é preciso ler até ao fim.
(Atenção: é um conto erótico.)
Texto a ler
Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a
encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale
que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstrato,
sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas
e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam,
rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole
imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por
entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a
chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o
cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se
apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. O
manso ruído de águas entre seixos e o suave dançar das folhas do
arvoredo ao sopro de uma brisa ténue fizeram que o cavaleiro
despertasse para o calor que sentia, o cheiro acre de suor e pó, que
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dele e do cavalo era mistura, e um cansaço dos membros e da boca
seca. Ele próprio dirigia a descida, buscando com os olhos uma
sombra que estivesse à beira de onde o rio corresse mais límpido e
profundo. E o seu olhar, agora, já não pervagava, mas fito e
dardejante perscrutava os recantos marginais do rio, que na
verdade pareciam desertos; e os ouvidos, igualmente atentos,
habituados a acompanhar os olhos em tais pesquisas, também não
distinguiam, sob o arrulhar das águas e o restolhar macio do
arvoredo, qualquer ruído que humano fosse. Respirou fundo, no
antegosto do banho prolongado, e do repouso à sombra. Depois
cearia e dormiria até de madrugada, quando as aves e o frio do
alvorecer o acordariam para continuar o caminho. Para onde? E
um sorriso de amarga displicência lhe estava estampado nas
comissuras dos lábios, quando já o cavalo parava e baixava a
cabeça para beber. Apeou-se e, antes de agachar-se para também
beber, movimentou as pernas com o jeito da montada ainda, e
espreguiçou-se em movimentos de ombros e dos braços, para
distender as costas.
Depois ajoelhou-se à beira de água, e abaixou-se com as mãos em
concha. E segurou, num gesto repentino, o gorro que ia cair na
cristalina correnteza. Sempre isto lhe acontecia. Crescera com ele
o gorro, não podia o gorro molhar-se, e sempre se esquecia dele.
Pousou-o cuidadosamente a seu lado, e então bebeu
consoladamente a largos sorvos. A água estava muito fria, bem
mais do que seria de esperar ali no vale, em pleno Verão, e deu-lhe
um arrepio que todo o percorreu.
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Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Manuel Maria
Barbosa du Bocage
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 4
Manuel Maria Barbosa du Bocage, (1765-1805), um dos mais importantes
poetas portugueses. Foi destemperado e desabrido, escrevendo sobre o que lhe
apetecia, com violência verbal, humor e tristeza, por não ver o seu génio
reconhecido. Chegou a ser preso mas nunca parou de escrever. Nasceu em
Setúbal, cidade em que o dia do seu nascimento (15 de Setembro) é feriado
municipal.
Meu ser evaporei na lida insana - Neste soneto, Bocage fala do tempo que
passa e de como ele próprio sente que não tem aproveitado a vida como
devia. Recorda-nos como deixamos passar os dias pensando que somos
"imortais" e como é difícil encarar o fim. Em Olha, Marília, as flautas dos
pastores, revela-se-nos um outro Bocage, alegre e folgazão, atento à beleza
do mundo. Na Fábula O Leão e o Porco - e é possível contestar a ideia de
Bocage - o poeta diz, através de uma alegoria, o seguinte: mesmo que se
cubra "alguém" de honrarias e riquezas, a natureza de cada um mostra-se,
mais tarde ou mais cedo; não é possível disfarçá-la.
Textos a ler
Meu ser evaporei na lida insana
Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
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Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.
Olha, Marília, as flautas dos pastores
Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para
Ora nos ares sussurrando gira.
Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.
Na Fábula O Leão e o Porco - e é possível contestar a ideia de Bocage - o
poeta diz, através de uma alegoria, o seguinte: mesmo que se cubra
"alguém" de honrarias e riquezas, a natureza de cada um mostra-se, mais
tarde ou mais cedo; não é possível disfarçá-la.
O Leão e o Porco
O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
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E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria
Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos.
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Versos de Luís Vaz de Camões - Escolhidos e prefaciados
por Vitorino Nemésio
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 3
Luís Vaz de Camões, (1524 – 1580), é um dos maiores poetas de todos os
tempos, a par de Homero, Vírgilio, Dante, Cervantes e Shakespeare. Para
além de Os Lusíadas, o longo poema épico dedicado aos feitos dos portugueses,
escreveu sonetos, cantigas, peças de teatro, uma enorme variedade de Rimas.
Foi soldado aventureiro, participou em batalhas - onde perdeu um olho cantou o amor como poucos, andou pelo mundo. Era dado a brigas, foi preso
mais do que uma vez, era corajoso, bom companheiro e gostava de se divertir.
Os dramas por que passou, as infelicidades, não lhe abateram o espírito.
Sabia que era um grande poeta, um valoroso soldado e um homem de honra.
Um perfeito renascentista, curioso, inteligente e destemido.
Textos a ler
Do Autor ao desconcerto do mundo
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
anda o mundo concertado.
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Cantiga
A três damas que lhe diziam que o amavam
Moto
Não sei se me engana Helena
se Maria, se Joana,
não sei qual delas me engana.
Voltas
Uma dize que me quer bem,
outra jura que mo quer;
mas, em jura de mulher
quem crerá, se elas não crêem?
Não posso não crer a Helena
a Maria, nem a Joana,
mas não sei quem mais me engana.
Uma faz-me juramentos
que só meu amor estima;
a outra diz que se fina;
Joana, que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
também mentirá Joana;
mas quem mente, não me engana.
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6
Poesias Completas, Alexandre O'Neill. Assírio & Alvim,
Lisboa, 2000
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 4
O'Neill nasceu em Lisboa em 1924 e morreu em 1986. Descendente de
irlandeses trouxe à Poesia portuguesa uma audácia e uma irreverência
invulgares. Foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa.
Corajoso, enfrentou a censura e chegou a ser preso, em 1953, pela polícia
política, em Caxias. O seu humor ácido é bem visível nos seus textos que se
caracterizam por uma intensa sátira a Portugal e aos portugueses.
No Reino da Dinamarca, colectânea de poemas publicada em 1958,
estabeleceu a sua reputação de grande escritor. Em "Que Vergonha,
Rapazes" e em "Cão" mostra toda a sua capacidade para "jogar" com as
palavras, utilizando um tom tristemente cómico.
Texto a ler
QUE VERGONHA, RAPAZES!
Que vergonha, rapazes! Nós práqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no “diz que”
e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)
Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me sorgo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
Bem queria, Snr. O’Neill! E... as varizes?
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CÃO
Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema…
Sai depressa, ó cão, deste poema!
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7
A Cidade e as Serras, Eça de Queirós. ed. Quidnovi
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 4
Eça de Queirós (1845-1900) nasceu na Póvoa do Varzim e morreu em
Paris. Foi o grande escritor português do século XIX que, como ninguém,
recreou a essência da sociedade portuguesa. Criou algumas das mais
espantosas figuras da nossa literatura – e da literatura mundial –
descrevendo, através delas, com humor e fina inteligência, as características
mais humanas de quem viveu uma época de grandes mudanças. Licenciado
em Direito, seguiu a carreira diplomática, tendo viajado muito.
A Cidade e as Serras: Rui Zink escreve no prefácio que o tema deste livro é a
felicidade. E tem razão. Jacinto, o "bom príncipe Jacinto", habituado a todo o
conforto e a todos os prazeres, defensor das comodidades trazidas pelo
avanço tecnológico, aborrece-se de morte em Paris. Resolve regressar a
Portugal e à quinta de Tormes com o seu criado Grilo, para um choque
civilizacional. Será que irá mudar de ideias quanto à vida no campo, longe
do bulício dos grandes centros urbanos?
Texto a ler
(O narrador é o amigo de Jacinto, o Zé Fernandes…),
(pgs. 91 e 92)
(…) Uma noite, no meu quarto, descalçando as botas, consultei o
Grilo:
- Jacinto anda tão murcho, tão corcunda…Que será, Grilo?
O venerando preto declarou com uma certeza imensa:
- Sua Excelência sofre de fartura.
Era fartura. O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de
Paris: - e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta
e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século
XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele
não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social o
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interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia
fácil. Pobre Jacinto!
(…) Se eu nesse Verão capciosamente o arrastava a um caféconcerto, ou ao festivo Pavilhão d' Armenonville, o meu bom
Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramo
de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da
bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que
eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em
abalar, a sua fuga de ave solta… raramente (e então com veemente
arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes,
ao fundo dos Campos Elísios. Não se ocupara mais das suas
Sociedades e Companhias, nem dos Telefones de Constantinopla,
nem das Religiões Esotéricas, nem do Bazar Espiritualista, cujas
cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, donde o
Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda.
(…) Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos móveis
roliços e fofos, todos os seus metais e todos os seus livros, tão
espessamente o oprimiam que escancarava sem cessar as janelas
para prolongar o espaço, a claridade, a frescura. Mas era então a
poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o enfurecia:
- Oh, este pó da Cidade!
- Mas, oh Jacinto, porque não vamos para Fontainebleu, ou para
Montmorency, ou…
- Pra o campo? O quê! Pra o campo?!
E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre
tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no
arrependimento de ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que
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tanto amava. Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro
de Yaka e fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente,
como quem vaga em terra alheia sem afeições e sem ocupações."
(…)
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8
Amor de Perdição, Camilo Castelo-Branco. Ed.
Comunicação
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa em 1825 e morreu em Vila Nova
de Famalicão, em 1890. É, a par de Eça de Queirós, uma das glórias da nossa
Literatura do século XIX. Romancista, cronista, jornalista, crítico literário,
historiador, poeta e tradutor, foi um autor prolífero e marcante, senhor de
uma personalidade complexa. Dado a amores tumultuosos, metia-se em
brigas e esteve preso na cadeia da Relação do Porto por ter seduzido e raptado
Ana Plácido, uma senhora casada. Em 1865 Camilo começou a ficar cego e
acabou por se suicidar, em 1890
Amor de Perdição, inspirado na história de Romeu e Julieta, é um texto
profundamente "romântico". Simão e Teresa vêm-se e apaixonam-se mas as
respectivas famílias, desavindas e intransigentes, não permitem a
aproximação dos dois jovens. Neste trecho, Simão, que fora um rapaz dado a
brigas e a paixonetas, compreende que só pode amar a calma e decidida
Teresa e sofre com o afastamento a que estão condenados.
Texto a ler
(…) "Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando
o que parecia absurda reforma aos dezassete anos.
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica
herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu
quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não
ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho:
amou-o também, e com mais serenidade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher
aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns
prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O
amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação
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do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o voo fora
do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe que a está, da
fronde próxima, chamando: tanto sabe a primeira o que é amar
muito, como a segunda o que é voar para longe.
Teresa de Albuquerque devia ser, por ventura, uma excepção no seu
amor.O magistrado e a sua família eram odiosos ao pai de Teresa,
por motivos de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças
contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de
Albuquerque tinham sido feridos, na celebrada pancadaria da
fonte. É, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o
dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era
verdadeiro e forte.
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e
falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem
sequer suspeitas às duas famílias. O destino, que se prometiam, era
o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não
tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse
para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património.
Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na
presumível inocência de Teresa em coisas materiais da vida, como
são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho
despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi
arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz
que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de
saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto
como um tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações
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de se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas
daquela noite passou-as em raivas e projectos de vingança. Com o
amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os
cálculos.
Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito
de tal modo desfigurado, que sua mãe, avisada do rosto
amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir
enquanto estivesse febril. Simão, porém, entre mil projectos, achara
melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a
ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a
sua demora agravaria a situação de Teresa."
(…)
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Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos/Fernando
Pessoa. Assírio & Alvim
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 4
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa Fernando Pessoa - O grande poeta
modernista universal, o génio que se desdobrou em múltiplas identidades
(heterónimos) mostra, neste texto, a sua impaciência e desgosto pela vida
banal, pela tentação da maior parte das pessoas se iludirem quanto à sua
importância neste mundo.
É um poeta exaltado e nada condescendente o que nos lança o desafio em
Lisbon Revisited, o texto com a cidade de Lisboa no título, uma cidade que
Pessoa tanto cantou mas cujos habitantes - o seu pendor burguês, o seu
conformismo, as suas ilusões - contribuíam para a sua irritação.
Texto a ler
Lisbon Revisited (1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
(…)
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
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Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço, Quero ser sozinho,
Já disse que sou só sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
(…)
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
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10
Odes Escolhidas, Ricardo Reis /Fernando Pessoa. ed.
Assírio e Alvim, 2013
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 5
Ricardo Reis é um dos heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa.
Na sua biografia (imaginária) consta que nasceu no Porto, no dia 19 de
Setembro de 1887 - não se sabe como morreu mas José Saramago em O Ano
da Norte de Ricardo Reis aponta para a data de 1936 - foi educado num colégio
de jesuítas e formou-se em Medicina, profissão que não exerceu. Por ser
monárquico exilou-se no Brasil, a partir de 1919, na sequência da derrota da
rebelião contra o regime republicano. Assumia-se como discípulo de Alberto
Caeiro. Seguia os preceitos dos antigos gregos e a sua Filosofia, bem patentes
neste texto, em que a voz do poeta exorta à contemplação e à serenidade
necessárias para encarar a vida ( e o amor) na procura de um equilíbrio,
próprio do espírito clássico greco-latino e aqui representado pela corrente de
um rio.
Texto a ler
Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
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E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
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Desobediência, Eduardo Pitta, Ed. D. Quixote
Categoria – Poesia
Grau de dificuldade – 3
Eduardo Pitta – é um poeta, escritor e ensaísta português. Nasceu em
Lourenço Marques, actual Maputo, a 9 de Agosto de 1949. Viveu em
Moçambique até Novembro de 1975. Escreve e publica desde 1967. Entre
1974 e 2013 publicou dez livros de poesia, um romance, uma trilogia de
contos, cinco volumes de ensaio, dois diários de viagem e um livro de
memórias. Mantém desde 2005 o blogue Da Literatura.
Nestes poemas fala da ausência, tanto material (casas, livros, objectos)
como, principalmente, de amigos, de amantes.
Textos a ler
(pg. 103)
Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.
Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os porventura, a mesma nostalgia.
Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.
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(pg. 133)
Mais de que uma casa era um refúgio
forrado de livros, gravuras e mesmo
alguns retratos. O fragor do mar
não colidia com o canto da lareira
e a impaciência de Xavier, o siamês.
Rimbaud andou por lá, voando nas dunas,
os pescadores extasiados
do seu perfil motorizado. Havia quem
roubasse amoras para o serão
e os que em sigilosas noites
chegavam a coberto das escarpas
de Porto Batel. A casa
continua lá, habitada pela memória desolada
de quem partiu. O quintal abriga
peregrinos, o vento, vegetação rasteira
e o jogo ardiloso de dois amantes.
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12
A Paixão, Almeida Faria. Ed. Estampa
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 4
Almeida Faria - nasceu em 1943 em Montemor-o-Novo. É autor de
romances, novelas, peças de teatro e ensaios. É também tradutor. Frequentou
as Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa - é licenciado
em Filosofia.
Viveu como escritor residente (1968-1969) nos Estados Unidos (International
Writing Program, Iowa City) e em Berlim. É um dos mais importantes
romancistas portugueses do séc. XX. Os seus romances foram objecto de
várias teses universitárias.
Em Paixão, (1965) o autor reinventa um lugar, uma paisagem específica, onde
os ciclos da vida e da morte se sucedem, num Alentejo implacável em que o
que se passa na cabeça de uns, as suas vivências e angústias está
intimamente ligado a todos os outros; assim, o monólogo interior de uns
continua nos outros, por exemplo, o de Piedade continua no de João Carlos, o
de este a Arminda, o de esta à Mãe e por aí fora…
Texto a Ler
Arminda
Foi na conferência, poucos dias antes de vir para férias, que aquilo
começou, à lembrança de que não devemos ir a conferências nem
fazer conferências, pelo que disse a Samuel: vamos embora, em voz
alta, que os vizinhos ouviram, olhando sisudos, cheios de
circunspecção, abanando a cabeça, à força levantando-se para nos
dar passagem, enquanto eu ia dizendo, antes mesmo de alcançar a
porta: usam pistolas, estes tipos, não nos deixam descer para a
planície, mas são próximos os dias ou pelo menos já estiveram mais
longe (saíamos à rua, subíamos o passeio a pé, ele assustado
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tentando serenar-me, eu tropeçando a cada instante sobre os
sapatos altos), eis que ela chega, a nossa idade média, tropa de
choques a cavalo, ouves ao longe os cascos dos cavalos, pergunto-te
se ouves os cascos dos cavalos, cavalos de fogo, escuta, repara como
galopam lentos, implacáveis, espumados de branco, repara, dir-seia que ficaram imóveis sobre a chapa do tempo, em movimento
eterno pelo vácuo, as patas pisam a terra, pejados de ameaças,
ouves o choro que fazem os cascos sobre as rochas, são eles, a quatro
e quatro, serenos, certos, crinas e espadas, ah se tu ouvisses,
Samuel, eles que chegam, caminham com as bocas fendidas e, nas
caudas, o sinal de uma vingança escrita, eles vão separar-nos,
Samuel, tu que és o ouvido divino, ouve, não posso consentir que
partas, vês, os vidros do hospital ao pôr e nascer do sol sempre
assim ensanguentados, jactos de sangue esguichado de baixo dos
cascos cinzentos dos cavalos, apressemo-nos, ou chegaremos talvez
demasiado tarde, traze a tua arma, o teu cavalo bravo, vamos para
lá, não vês aquelas brancas sobre as nuvens da tarde, mas que foi,
Samuel, não, não me quero deitar, dormir mais, tenho sono, sim,
imenso, tanto, que se me deito durmo para nunca mais voltar a verte, tenho medo de dormir, tenho tempo depois, demasiado tempo,
não me deixes sozinha à espera de morrer, não te vás, transporta
as tuas coisas para o meu quarto, amplo, antigo e em desordem,
com um espelho de cristal florenfeitado, um guarda-fato enorme em
que até cabe a morte, aquela cruz cheia de merda e madrepérola, o
meu quarto em que tenho frio e deliro, tenho febre, estou cansada,
doente, dorida nas coxas, não me soltes o braço, Samuel, oiço o que
dizes, oiço as tuas palavras, mas fala mais alto, grita, se isso for
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necessário, para que seja verdade, os teus olhos fixam os meus
olhos, os teus olhos cortantes, a tua face abriu-se, faca afiada,
Samuel, não vês como os teus olhos são duros, não gosto dos teus
olhos nem desses punhais surdos, apaga essa luz que nos lambe de
fogo, vermelha luz, agora o quarto penetrou, tu penetraste em
trevas, agora nada oiço senão a tua voz, Arminda dorme, Arminda
dorme, agora estou cansada como se tivesse atravessado a terra,
agora o sol aparece a nascente, agora vou descansar no seio da
terra.
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As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta, Ed. Dom Quixote
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa, em 1937. É uma das maiores e mais
importantes poetisas portuguesas. Estudou na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa e dedicou-se ao cine-clubismo, como dirigente do ABC
Cine-Clube, e ao jornalismo. É uma ardente feminista e co-autora, com Maria
Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, de Novas Cartas Portuguesas (1971),
livro que gerou muita polémica e foi proibido pela censura. Escreve
principalmente romances, contos e poemas.
As Luzes de Leonor é uma biografia romanceada de Leonor de Almeida
Portugal, Marquesa de Alorna, neta dos Marqueses de Távora, uma distante
antepassada da autora que a acompanha sempre, pela sua singularidade e
exemplo. Escritora, diplomata, mãe e mulher, Leonor de Almeida distinguiuse
na
história
literária
e
política
de
Portugal.
Texto a ler
(pgs. 74 e 75)
D. Josefa de Menezes satisfaz com gosto a curiosidade de sua
sobrinha Teresa de Mello Breyner em relação a Leonor de Almeida,
filha mais velha dos marqueses de Alorna:
- Sempre desconcertante e imprevisível, tão depressa um anjo de
doçura como arrebatada pela rebeldia. Ora a imagem da
vivacidade e da alegria, ora esquiva e triste, olhar assombrado pelo
negrume que parece advir-lhe da fraca constituição da alma.
Fazendo uma pausa longa a tomar fôlego, prossegue:
- Dizem-me fazer poesia e ler muito – Camões, Hildegarda de
Bingen, Teresa de Ávila, também Corneille, Horácio ou Racine,
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Dante e Pope que eu não conheço. Mas, segundo julgo saber, parece
interessar-se sobretudo por autores proibidos…
Frente ao olhar desconfiado de Teresa, tenta manter-se amável:
- Vê-se que prefere estudar a assistir a missas e a rezas, tanto se
entregando às letras como às ciências. É organista, pinta e escreve
sermões para os frades quando lhos encomendam. Aprende o
inglês, mas também sabe outras línguas, fala com facilidade o
espanhol e o francês. Dizem-na interessada no árabe e no latim.
D. Josefa de Menezes entusiasma-se, atropela as palavras ciciadas,
parecendo até desfiar uma história inventada:
- Ao princípio as três choravam muito, afastavam-se de todas nós,
hostis e distanciadas. Mas igualmente muito era a animosidade e
a má vontade das pensionistas, a maldade e a crueldade que as
freiras usavam para com elas, amarelentas e de luto fechado,
compostura no desgosto profundo, logo porém assustadas,
desprotegidas da sorte. Consciente dos perigos que corria se ficasse
ao seu lado, limitei-me a segui-las de longe, a cumprimenta-las com
um sorriso. Anos mais tarde, quando a execução dos marqueses de
Távora ganhara já um esvaimento da passagem do tempo, tentei
aproximar-me. Sobretudo de Leonor que agressiva e acossada me
repeliu, recusando a minha companhia de mulher mais velha que
com ela simpatizava.
Ao afirmar isto tenta sorrir no disfarce do tom ressentido e inclinase a procurar, através da grade, prudente, o ouvido de Teresa, para
murmurar num cochicho:
- Sabe-se que tem cadernos, diários onde põe os pensamentos mais
íntimos. Empolgada, acrescenta acariciando as palavras:
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- O pior são as cartas clandestinas que escreve e passa para fora.
Presume-se serem dirigidas não ao Pai, preso no Forte da
Junqueira. Desse modo infringe ela a proibição real, o que é crime,
além de desrespeitar as regras deste convento. E já esquecida do
cuidado a pôr no tom da fala, desabafa:
- Mas o que lhe importa isso, afinal, se até parece fazer gosto na
desobediência! Já a vi rir sem disfarce da prioresa que, para
agradar ao conde de Oeiras, tenta controlá-la e à irmã, que em tudo
lhe segue os passos.
Tremendo, D. Josefa segreda:
- Para enfurecer, o ministro de Estado, os jesuítas levaram as
freiras e os padres a convencê-la a tomar votos, a receber o véu
negro. Mas ela, depois de ter hesitado, acabou por lhes fazer frente
e negou-se a professar. Para tal teve o apoio da mãe e, consta, do
seu confessor Frei Alexandre da Silva, que também é poeta. «Não
tenho vocação para professar», teria por fim comunicado com
desfaçatez á madre prioresa.
Neste ponto, como se não lhe fosse mais possível moderar-se, D.
Josefa de Menezes exalta-se num atropelo febril de quem tem a
alma envenenada pela secura fechada do corpo definhado.
Suspirando, aconselha com ansiedade:
- Tem cuidado! A companhia de Leonor de Almeida é perigosa. A
ambição acabará por levá-la a querer voar cada vez mais alto, custe
a quem custar! Escuta o que te digo: ela virá a cair mas também
tombará quem andar na sua companhia!
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Poesia Reunida, Maria do Rosário Pedreira. Ed. Quetzal
Categoria – Poesia
Grau de Dificuldade – 3
Maria do Rosário Pedreira nasceu em 1959 em Lisboa. É autora de ficção,
poesia, crónicas e literatura juvenil, procurando neste último género a
transmissão de valores humanos e culturais. É, também, editora e licenciada
em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e
Ingleses, pela Universidade de Lisboa. Foi professora de Português e Francês
(durante cinco anos), actividade que a influenciou decisivamente a escrever
para um público jovem.
Na sua Poesia preocupa-se em evocar a casa, o lugar íntimo, com tudo o que
perdura, nas memórias e nos sentimentos nostálgicos.
Textos a ler
O Gato Lembra-se
O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
De olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
O pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.
Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.
Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.
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Nesse Verão
Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
Andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
o verão desarruma os sentimentos.
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Elogio da Cidade de Lisboa, Damião de Góis. Ed. In folio
Guimarães
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 4
Damião de Góis (1502-1574) foi um historiador português do Renascimento.
Grande humanista, encarnou, como poucos, a figura do intelectual com
conhecimentos muito vastos e variados. Foi um dos espíritos mais críticos da
sua época, alicerçando um verdadeiro traço de união entre Portugal e a
Europa culta do século XVI. De família nobre, foi educado na corte do rei D.
Manuel I, tendo contactado com as mentes mais brilhantes do seu tempo. Em
1523 foi colocado pelo rei D. João III em Antuérpia na Feitoria Portuguesa.
Viajou muito em missões diplomáticas e comerciais na Europa entre 1528 e
1531. Em 1533 abandonou o serviço oficial do governo português e dedicou-se
exclusivamente aos seus propósitos de humanista. Em viagens pela Europa
do Norte, contactou com eminentes humanistas e reformadores, conhecendo
pessoalmente Martinho Lutero e tornando-se amigo íntimo do humanista
holandês Erasmo de Roterdão.
Texto a ler
II- História e Local de implantação da cidade
A) Origens e sítios
- Lisboa: as origens míticas
Quem tenha sido o primitivo fundador de Lisboa não nos atrevemos
nós a asseverá-lo como certo, em tão grande vetustez de séculos;
todavia, qualquer dos escritores mais recuados no tempo atesta que
há que colocá-la entre as cidades mais antigas da Hispânia. Varrão
chama-lhe Olisiponem; Protemeu, Oliosiponem; Estrabão, por seu
lado, dá-lhe o nome de Ulisseam, e parece afirmar, a partir das
palavras de Asclepíades de Mirleia, que foi fundada por Ulisses.
Efectivamente, o Mirleano esteve à frente de uma escola na
Turdetânia e escreveu um livro sobre a gente dessa região onde deu
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a conhecer que em Lisboa, num templo de Minerva, se encontravam
suspensas algumas peças, tais como estudos, festões, esporões de
navios, que serviam de memória às errâncias de Ulisses.
Julgam alguns que deste passo não é suficientemente líquido que
Lisboa tenha sido fundada por Ulisses. A nós, todavia, apraz-nos
mais dar assentimento ao testemunho de escritor de tão grande
prestígio do que comprovar o que dizem outros que, sem qualquer
argumento, intentam criar suspeitas sobre ele. Sobretudo porque
Solino, que se distingue sobremaneira pelo seu saber, segue a teoria
de Estrabão. Também o nosso André de Resende, pessoa de valor
comprovado, segundo juízo e por apreciação de todos os homens de
saber, em múltiplos passos dos seus escritos, adopta e confirma essa
mesma opinião.
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A Função do Geógrafo, Rui Cóias. Ed. Quasi
Categoria - prosa poética
Grau de dificuldade - 4
Rui Cóias nasceu em Lisboa em 1966. É um poeta português contemporâneo.
Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
e Pós-Graduado em Assessoria Jurídica, pelo ISG - Instituto Superior Gestão
(Business School), exerce a profissão de jurista. Tem colaborado em várias
publicações e os seus poemas estão publicados em diversas antologias.
Em Hoje, à Hora que o Sol Descai mostra o seu lado contemplativo, urbano,
com personagens que se interrogam em relação ao amor e à paisagem em
que estão inseridos. É uma poesia reflexiva e melancólica.
Texto a ler
Hoje, à hora em que o sol descai…
Hoje, à hora em que o sol descai nas hastes secas dos ulmeiros,
William sentou-se comigo no paredão do cais.
Ajeitou os óculos, virou-se para o prolongamento da costa, mais
visível, do ponto em que estávamos, na direcção de rosses point, e
falou:
“e se te disser que as amamos e elas não sabem?”
Deteve-se nos montes, na sua erva rasa que da escarpa acomete ao
oceano,
e permaneceu a seguir-lhes as sombras, a completá-las com
fantasias dóceis,
como nas manhãs em que, cabisbaixo, seguia os nevoeiros de
drumcliff.
“E se te disser que não entregues o coração completamente;
aquele que todo o coração ofereceu tudo acabará por perder”.
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Inclinou-se, a madeixa caiu-lhe na testa, tal a traçara o pai para
o retrato,
e os seus vinte e poucos anos escoaram, o rosto desuniu-se, perdeu
o ângulo
para revelar-se como o ventre ruinoso de uma casa sob a fachada
colorida.
E à hora em que os quintais se abriam à vizinhança, em sligo,
onde por acaso só ao redor da baía o mar adensa as casas, de
resto nítidas,
william confessou que nada descobrira, que em tudo se enganara
e tudo era um logro, por muito que nelas os suaves lábios o
desmentissem.
Depois estendeu-me a mão e levantou-se. Pediu para caminhar
com ele.
Levou-se à clareira onde na infância esgravatava a terra à
procura das raízes
e sentira, sem ninguém ver, um empurrão nas costas, num
domingo de tempestade.
Conheço quem todo o coração deu e perdeu tudo. Mas elas não
sabem,
elas não sonham que de beijo em beijo se irão sempre consumindo.
Mais tarde, soube-o, partiu. Tal como ela havia partido, ao
chegarem as
primeiras chuvas de setembro quando por um par de vezes passou
no canal
e expulsou os quatro pássaros, os quatro beijos dos seus ombros.
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Soube-o que jamais seguiu os muros de pedra e a arquitectura das
torres,
contornou os afluentes e os fortins das ilhas devastadas,
sem por um dia deixar para trás, por entre as canções e os
prenúncios,
os seus olhos bronzeadores dos ulmeiros, os seus pássaros nos
ombros.
E William, que com os anos se foi tornando distintamente leve,
harmonioso,
nas vésperas de flanquear a branca porta quadrada sob os
gonzos, ao entardecer,
voltou a sentar-se comigo como há vinte e poucos anos na baía de
sligo,
à hora em que do outro mundo de além mar, de sete em sete anos,
ela aparecia sob as ondas das ilhas fabulosas, nos areais da terra
encantada,
e lhe entregava o coração para que nele poisassem os quatro
pássaros
e os dois pudessem despedir-se com quatro beijos.
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Peregrinação, Fernão Mendes Pinto (versão para
português actual). Ed. Relógio D'Água
Categoria – Prosa. Texto autobiográfico narrativo
Grau de Dificuldade - 4
Fernão Mendes Pinto nasceu cerca de 1510, em Montemor-o-Velho. Veio
para Lisboa e acabou por partir para o Oriente em 1537. Foi um grande
viajante, muitas vezes encarregado de missões diplomáticas em países
asiáticos e africanos. No Japão conheceu S. Francisco Xavier de quem se
tornou amigo. Em Goa, entregou toda a sua fortuna aos pobres e à Companhia
de Jesus, na qual ingressou como irmão leigo, para sair três anos depois.
Regressou finalmente a Lisboa em 1558 e retirou-se, com a sua jovem mulher,
trinta anos mais nova, para a sua quinta no Pragal, perto de Almada, onde se
entregou à escrita de Peregrinação, relato das suas aventuras e desventuras.
Em 1583, o então rei Filipe II concedeu-lhe uma tença mas o escritor morreu
no mesmo ano.
Peregrinação é um dos textos mais importantes da Literatura portuguesa,
uma vez que dá uma clara e alargada ideia da vida de um homem corajoso e
aventureiro, em pleno século XVI.
Texto a ler
Do que passei em minha
Mocidade neste reino
até que me embarquei para a Índia
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes
trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no
princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte
e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso
queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e
empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera
de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que,
não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha
mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em
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pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos de vida, me quis
também levar às partes da Índia, onde em lugar de remédio que eu
ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os
perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes
perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em
segurança, acho que tenho tanta razão de me queixar de todos os
males passados, quanto tenho de lhe dar graças por este só bem
presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer
esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos
(porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles
vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no
decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete
vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China,
Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele
oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores
chamam chins, siameses, guéus, léquios, chamam em sua geografia
a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito
particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os
homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para
deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por
grandes que sejam, com que não possa a natureza humana,
ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao
Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia,
apesar de todos os meus pecados, porque eu entendo e confesso que
deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela
as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida.
E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei
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neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze
anos na miséria da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-oVelho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para
melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao
serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz
ilustres, parecendo-lhe que pela valia, tanto dela como deles,
poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo
em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela
morte de el-rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de
Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de
que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino
me não lembro. (…)
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Um calculador de improbabilidades, e Tisanas, Ana
Hatherly. Ed. Quimera
Categoria – Poesia/ Prosa
Grau de Dificuldade - 3
Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929. É escritora e artista plástica. É, ainda,
professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa onde co-fundou o Instituto de Estudos Portugueses.
É diplomada em Cinema pela London Film School, licenciada em Filologia
Germânica, pela Universidade de Lisboa e doutorada em Estudos Hispânicos,
pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Leccionou na Escola de Cinema
do Conservatório Nacional e no AR.CO, em Lisboa. A sua Poesia é considerada
vanguardista e escapa a classificações. A autora destaca-se no grupo da Poesia
Experimental Portuguesa e é uma das teorizadoras desse movimento, iniciado
nos anos 60 em Lisboa.
Textos a ler
Um calculador de improbabilidades
era assim:
queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...
um calculador de improbabilidades
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Tisanas
Tinha havido uma revolução. No viaduto as letras tinham saído
dos livros e lançadas com ardor sobre a cidade a água
desaparecera. Não podendo já distinguir entre o rio e a estrada as
letras tinham invadido a cidade outra vez e tantas eram que a terra
saltava e então compreendeu-se que se tratava de um letramoto e
as pessoas apavoradas queriam fugir para o campo mas nas autoestradas tantas eram as letras que já ninguém conseguia saber
para onde iam ou onde mudava a direcção e atropelando-se as
pessoas enterravam-se em tinta procurando desesperadamente
lembrar-se
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19
A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge. Ed. Dom Quixote.
Categoria – Prosa
Grau de dificuldade – 3
Lídia Jorge - nasceu no Algarve em 1946. É uma romancista portuguesa de
enorme importância, autora de alguns dos melhores romances
contemporâneos em língua portuguesa. Licenciou-se em Filologia românica
pela Universidade de Lisboa. Foi professora do Ensino Secundário e, nessa
condição, passou alguns anos decisivos em Angola e Moçambique durante o
último período da Guerra Colonial.
A ação de A Costa dos Murmúrios (1988) passa-se em Moçambique,
imediatamente antes da queda do regime de ditadura em 1974, nos finais da
Guerra Colonial, de acordo com as recordações da autora que viveu essa
experiência. O romance abre com um conto relatado na terceira pessoa sobre
o casamento de Eva e Luís. O trecho a ler é o início, quando se celebra o
casamento e se descreve a festa num hotel. O ritmo é importante porque vai
marcar todo o livro. A alegria do início irá dar lugar à desilusão e à destruição
do amor, abafado pela guerra.
Texto a ler
O noivo aproximou-se-lhe da boca, a princípio encontrou os dentes,
mas logo ela parou de rir e as línguas se tocaram diante do
fotógrafo. Foi aí que o cortejo sofreu um estremecimento de gáudio
e furor, como se qualquer desconfiança de que a Terra pudesse ter
deixado de ser fecundada se desvanecesse. Já não estavam junto de
nenhum altar, mas no terraço do Stella Maris cujas janelas abriam
ao Índico. No terraço, obviamente, não havia janelas, apenas
pilares sobre os quais se estendia uma cobertura suave mas
suficientemente protectora para se poder receber um cortejo
daquela importância e quantidade. O fotógrafo subiu a cadeiras e
desceu até ao chão, de modo a ficar completamente estendido para
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apanhar o beijo em todas as posições. Por isso, o noivo continuava
com os olhos fechados, e ela só de vez em quando abria os seus, e o
cortejo aplaudia incessantemente como no final duma ária subtil
que certamente não se ouvirá jamais. Pressuroso, o fotógrafo pediu
que o noivo tomasse a noiva nos seus braços e a levantasse à altura
do peito, junto da vedação que impedia que, as pessoas, uma vez
debruçadas, caíssem ao Índico. Era majestoso. Ela obedeceu –
encostou a cabeça ao ombro do noivo, e o noivo olhou ternamente
para o rosto dela. Descidos e lânguidos, os olhos dele tinham
alguma coisa líquida de peixe quando abriam e fechavam. Ainda
aí o cortejo batia palmas, e havia quem transpirasse e tivesse as
mãos enrubescidas de tanto aplaudir. Aquele era um momento
cheio de encanto.
Então a noiva que tinha chegado apenas na noite anterior, mas a
quem todos já chamavam simplesmente Evita, abriu os olhos, e
mais do que a quantidade dos convidados, surpreendeu-se com o
tamanho exemplar da mesa. As lagostas vermelhas e abertas ao
meio estavam dispostas conforme um numeroso cardume. As
papaias amarelas estavam cortadas em feitio de coroa de rei e
coroavam a toalha inteira.
Os ananases formavam uma pinha no centro, como se fosse o leque
dum fantástico e emplumado peru. Ela aproximou-se desse peru,
pondo o véu completamente para trás e rindo cada vez mais. Mas
de facto, o local que Evita, docemente empurrada pelo noivo,
deveria ocupar, não era ao centro – disse o fotógrafo com um gesto
amplo – antes na cabeceira, onde havia um bolo de sete andares,
com um ramo armado em forma de chuva. Um criado
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extraordinariamente negro, vestido de farda completamente
branca, trouxe uma bandeja com uma espada. A espada era do
noivo. Evita pegou na espada e fendeu o âmago do bolo até à tábua.
Quando a espada bateu na tábua, acorreu de entre as mulheres
uma delas de vestido sem costas com duas espátulas de cozinha. O
Comandante da Região Aérea, que era marido da mulher das
espátulas, avançou em primeiro lugar com o seu pratinho para
receber uma trancha e aproveitou para espreitar a mão do noivo. O
noivo era só alferes e o longo abraço que se seguiu ao aperto de mão,
dado desse modo pelo Comandante da Região Aérea, perturbou-o a
ponto de estremecer sob a pressão do punho do coronel, ali de
passagem a caminho de Mueda. Nunca pela cabeça dum alferes
miliciano tinha passado o sonho de que, no dia do seu casamento,
houvesse um Comandante de Região que o viesse abraçar, e tudo
isso foi captado pelo fotógrafo que tinha subido agora a uma mesa
de apoio com toalha, junto da vedação. Daí até que chegasse a
orquestra foi só um breve tilintar de copos. Um chupar de tâmaras.
Os convidados de novo irromperam em aplausos.
E redobraram ainda as palmas quando a pequena orquestra de
instrumentos quase todos de sopro começou a soar, tocados por
quatro brancos e um negro. O negro ao tocar tinha as bochechas
inchadas como se quisesse explodir. Toda a música era uma
explosão que rebentava na tarde. O Comandante da Região Aérea,
de passagem para Mueda, abandonou a mulher das espátulas e
tornou a noiva, o noivo tomou a mulher das espátulas que havia
acompanhado o marido só para conhecer Six-Miles e regressar
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logo no avião da manhã, e seguiram-se os pares rodando à volta
da mesa imensa.
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20
Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett. Ed. Estampa
Categoria – Prosa
Grau de Dificuldade - 4
Almeida Garrett (1799- 1854) nasceu no Porto e morreu em Lisboa. Foi um
grande escritor, poeta e dramaturgo do Romantismo português, ministro e
secretário de estado honorário. Grande impulsionador do Teatro em Portugal,
foi ele quem propôs a edificação do Teatro Nacional D. Maria II e a criação do
Conservatório de Arte Dramática.
Em Viagens na Minha Terra mistura o relato de uma viagem que realmente
fez a Santarém com uma narrativa romanceada em torno das figuras de
Carlos, Frei Dinis e Joaninha.
Texto a ler
Capítulo I
De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de
ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas
viagens. Parte para Santarém. Chega ao Terreiro do Paço, embarca no vapor de
Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa.
Lorde Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os Bordasd’Água: os da calça larga levam a melhor.
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de
inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo —
entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde
a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier
de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal. Eu
muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até a minha
janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me
enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa
infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas
minhas viagens nem as suas impressões pois tinham muito que ver!
Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba quer assunto
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mais largo. Pois hei-de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém:
e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se
há de fazer crónica. Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção,
que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse
Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental
das nossas vilas. Abalam-me as instâncias de um amigo, decidemme as tonteiras de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar
em desígnio político determinado a minha visita. Pois por isso
mesmo vou: pronunciei-me. São 17 deste mês de Julho, ano da
graça de 1843, uma Segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia.
Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o
Terreiro do Paço.
Chego muito a horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus
companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos
homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando oiço o rodar
grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien régime: é o nosso
chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que chega
em estado. Também são chegados os outros companheiros; o sino
dá o último rebate. Partimos. Numa regata de vapores o nosso
barco não ganhava decerto o prémio. (…) É um barco sério e sisudo
que se não mete nessas andanças. Assim vamos de todo o nosso
vagar contemplando este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa
oriental, que é, vista de fora, a mais bela e grandiosa parte da
cidade, a mais característica, e onde, aqui e ali, algumas raras
feições se percebem, ou mais exactamente se adivinham, da nossa
velha e boa Lisboa das crónicas. Da Fundição para baixo tudo é
prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor com um período da
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Dedução Cronológica, aqui e ali assoprado numa tentativa ao
grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos rasteira do
Oriente. Assim o povo, que tem sempre o melhor gosto e mais puro
que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e
que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus
passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e
Marvila e as hortas de Chelas. A um lado a imensa majestade do
Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um
pequeno mar mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a
sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados a
recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que
se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda
assim, Belém é mais árido. Já saudamos Alhandra, a toireira; Vila
Franca, a que foi de Xira, e depois da restauração, e depois outra
vez de Xira, quando a tal restauração caiu, como a todas as
restaurações sempre sucede e há de suceder, em ódio e execração tal
que nem uma pobre vila a quis para sobrenome. A questão não era
de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um
governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos
possíveis.
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