Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Graduação em Psicologia
Uiara Guimarães Leoni
A Dinâmica Familiar de Crianças com Doença Crônica
Monografia realizada como parte das
exigências para obtenção do Grau de
Bacharel no curso de Graduação em
Psicologia da Ufscar, sob a orientação da
Profa. Dra. Dóris Lieth Peçanha.
São Carlos
2005
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço à Profa. Dra. Dóris Lieth Peçanha que orientou este
trabalho com disposição, paciência e competência. Foi um grande aprendizado poder
trabalhar e conviver com ela durante esses dois anos.
Ao Murilo Bovo e Silva, meu colega de sala, que teve uma extrema importância na
realização desse trabalho. Dividimos as angústias e as alegrias durante as viagens a
Ribeirão Preto.
Às crianças e suas famílias que participaram desta pesquisa, colaborando não
somente com o trabalho como também com o meu crescimento pessoal.
Às minha colegas de pesquisa (Iara, Laila e Priscila) que durante esses dois anos
compartilharam comigo as supervisões e o nascimento deste trabalho.
Às minha amigas de república (Deborah, Flávia, Mariana, Letícia e Thaís) e ao meu
namorado André que sempre tiveram paciência para me ouvir em todas as horas, e que de
alguma forma, mesmo que indireta, colaboraram para a concretização deste trabalho.
À minha família que me proporcionou a oportunidade de estar aqui e que me apoia
sempre nessa longa caminhada do conhecimento acadêmico e humano.
A todos, que de alguma forma, colaboraram para a conclusão deste trabalho.
2
RESUMO
A DINÂMICA FAMILIAR DE CRIANÇAS COM DOENÇA CRÔNICA
O presente trabalho teve por objetivo estudar o desenvolvimento psicológico de 3 crianças
com doença crônica (câncer) com idade entre 10 e 14 anos, de forma transacional com
características estruturais e psicodinâmicas de suas famílias. Objetivou também auxiliar
esses participantes no enfrentamento da doença e na promoção da saúde. Esperou-se, assim,
contribuir com os poucos estudos sobre o funcionamento dessas famílias, esclarecendo
fatores pouco explorados, como o impacto da doença infantil sobre o grupo familiar e a
permanência desse efeito traumático ao longo do tratamento. As famílias foram avaliadas a
partir dos seguintes instrumentos: a) entrevista com os pais, b) teste do Desenho em Cores
da Família e c) teste das Fábulas realizados pela criança; d) Entrevista Familiar Estruturada
respondida pela família. Foram utilizados os protocolos de avaliação desenvolvidos por
Peçanha (1997). A análise dos dados foi feita de forma qualitativa examinando-se os grupos
do ponto de vista clínico (estudo de caso). Os resultados foram discutidos à luz da teoria
sistêmica psicodinâmica. Dependendo da fase da doença em que a criança se encontrava, e
do funcionamento de cada família, foram encontrados vários padrões de enfrentamento,
desenvolvimento e de redefinição de papéis. Alguns sentimentos foram comuns à todas as
famílias: instabilidade emocional, medo da morte e do futuro, busca de ganhos secundários
(filho), impotência, apoio espiritual, flexibilização dos limites. Concluiu-se que a doença
crônica afeta, diferentemente, a dinâmica de cada família, podendo constituir-se numa
oportunidade de desenvolvimento e de redefinição de papéis no sistema familiar.
Palavras Chaves: Avaliação Psicológica; Câncer; Doença Crônica Infantil; Família;
3
SUMÁRIO
Pg.
1. Introdução......................................................................................................................5
2. A Família como Grupo..................................................................................................6
3. A Abordagem Sistêmica da Família..............................................................................7
4. A Doença Crônica...........................................................................................................8
5. A Importância do Apego no Desenvolvimento Infantil................................................ 10
6. A Doença Crônica Infantil e a Família...........................................................................11
7. O Câncer Infantil.............................................................................................................14
8. O Paradoxo da Cura.........................................................................................................16
9. Metodologia.....................................................................................................................18
9.1 Local e Participantes......................................................................................................18
9.2 Material...........................................................................................................................18
9.3 Procedimentos.................................................................................................................20
10. Estudo de Casos..............................................................................................................21
11. Considerações Finais......................................................................................................35
12. Referências Bibliográficas..............................................................................................37
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INTRODUÇÃO
A família, sociologicamente, é definida como um sistema social no qual podem ser
encontrados subsistemas, dependendo do seu tamanho e da definição de papéis. É através
das relações familiares que os fatos da vida adquirem significado e são absorvidos pela
experiência individual (Sprovieri & Assumpção, 2000). A família também pode ser
definida como um grupo de dinâmicas e especificidade próprias que só pode ser
compreendido dentro de contextos maiores que incluem o seu próprio observador; sendo
uma unidade de crescimento, de experiência, de sucesso, de fracasso, de saúde e de doença
(Fonseca, 2003).
A sociedade vigente vem sofrendo várias transformações nos modos de vida e nos
papéis desempenhados pelos indivíduos. Um dos contextos em que isso vem ocorrendo
com grande intensidade é o familiar (Soares & Carvalho, 2003). Antigamente a família
desempenhava papéis mais rígidos, e hoje, vem passando por uma reconfiguração (Durham,
1983; Kagitçibasi, 1996; Macêdo, 2001 citado por Soares & Carvalho, 2003), seguindo
uma tendência de individualização do ser humano (Soares & Carvalho, 2003).
Atualmente, observa-se que a família vive um processo de transformação em sua
estrutura (Meyer,1983; Ackerman,1958; Minuchin,1982 citado por Nollen, 1998; Rosa,
1998; Santos, 1998; Silva,1998; Fort, 1998), que caracteriza uma fase de transição na qual
os valores e as ações são questionados como um todo, e assim, as inter-relações ficam
comprometidas pela incerteza, dificultando a transmissão clara e objetiva das normas,
regras, direitos e deveres ( Nollen,1998; Rosa,1998; Santos, 1998; Silva,1998; Fort, 1998).
Apesar das mudanças recorrentes na dinâmica familiar, esta continuará a
desempenhar o importante papel de prover cuidados físicos, emocionais e sociais (Silva,
1996 citado por Borges, 2003).
A família sofre a tendência de ser considerada uma instituição natural, existente
primordialmente na natureza, quando na realidade também é constituída culturalmente,
portanto trata-se de uma construção humana mutável (Soares & Carvalho, 2003).
Ramos (1994) levanta a hipótese de que o “desenvolvimento de cada integrante do
grupo familiar está intimamente relacionado com a forma pela qual ocorre a interação entre
os mesmos”; a partir da prerrogativa de que a família é um dos grupos naturais e primários
da sociedade ( Nollen,1998; Rosa,1998; Santos, 1998; Silva,1998; Fort, 1998). Ao
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contrário disso, Durham (1983 citado por Borges, 2003) atenta para o fato de que é
necessário dissolver essa aparência de naturalidade, e passar a ver a família como uma
criação humana passível de mudanças.
A Família como Grupo
Segundo Bleger (1996), o grupo é formado por um conjunto de pessoas que se
relacionam entre si, mas além disso, um grupo é uma sociabilidade estabelecida sobre um
fundo de indiferenciação ou de sincretismo, no qual os indivíduos não existem por si só.
Surge assim, uma relação, ou melhor, uma “não-relação” que se impõe como matriz ou
como estrutura de base de todo grupo, e que persiste de maneira variável durante toda a
vida deste. Tal relação denomina-se sociabilidade sincrética.
Um dos principais autores que realizou trabalhos com grupos foi Bion. Segundo ele,
“a demonstração da função do grupo de trabalho deve incluir: o desenvolvimento de
pensamento projetado para ser traduzido em ação; a teoria em que se baseia; a crença na
modificação ambiental como em si própria suficiente para a cura, sem qualquer mudança
correspondente no indivíduo e, finalmente, uma demonstração do tipo de fato que se
acredita ser ‘real’”( Bion,1970, p.133).
Para Mello Filho (1989), a evolução do grupo está relacionada aos estágios de
desenvolvimento do indivíduo. Tais estágios se resumem basicamente em dependência,
revolta e democracia.
Vários outros autores também deram suas contribuições para o estudo de grupos.
Dentre eles, destaca-se Winnicott, que afirma que o grupo evolui para uma integração com
seus vários componentes ( Mello Filho,1989).
A participação de um grupo familiar num atendimento clínico é motivada pela
intenção de avaliar e aclarar “situações-problema”, e ainda, promover a comunicação e
compreensão entre os familiares ( Mélega,1998).
Segundo esta mesma autora, a avaliação que inclua a observação do grupo familiar,
dá acesso a interações existentes presentes entre seus membros. As interações que surgem
durante os encontros, expressas em linguagem verbal, pré-verbal, lúdica ou por atuação, são
exemplos vivos da história do grupo, e do lugar que cada membro ocupa; história e lugar
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que falam de relações conflitivas que se repetem pela impossibilidade de encontrar
soluções, pela impossibilidade de pensá-las.
Segundo Moreno (1978 citado por Soares & Carvalho, 2003, p. 41), “num
determinado grupo um paciente pode tratar o outro, podendo ser instrumento de diagnóstico
terapêutico dos outros membros do grupo”. Assim, um grupo seria um espaço em que as
pessoas poderiam falar de seus problemas, e então perceberem que ali poderia haver
pessoas com problemas semelhantes ou até mesmo piores que os seus. Deste modo cria-se
um ambiente de ajuda mútua em que os sentimentos são compartilhados e trabalhados.
A Abordagem Sistêmica da Família
Segundo Peçanha (1997), foi na segunda metade do século vinte que o pensamento
sistêmico começou a ser introduzido no domínio da psicologia, graças a Bateson. Depois,
com a introdução do conceito de “homeostase” no funcionamento familiar por Jackson
(1981, citado por Peçanha,1997), vários profissionais de todo o mundo passaram a utilizar a
teoria sistêmica como fundamento no trabalho com famílias.
Foi através da teoria sistêmica que se pôde conceitualizar e integrar fenômenos
diversos, como: sistema biológico, sistema psíquico e sistema social. Um sistema refere-se,
essencialmente, à interdependência dinâmica de seus elementos (Peçanha,1997).
De acordo com o modelo sistêmico, todo sistema é aberto, governado pela
causalidade circular, dotado de fronteiras e pertencente a um contexto. Esse sistema
organiza-se conforme finalidades e tende para a homeostase (Peçanha, & PérezRamos,1999).
A família, como um sistema, desenvolve-se processualmente e vivencia perdas
constantes. A todo momento emergem novas tentativas de compreensão destas perdas para
que se possa dar continuidade à vida (Fonseca, 2003). “A avaliação da família desloca-se
então do campo do passado e das causas lineares, para o campo das interações e das
finalidades que uma determinada disfunção cumpre no sistema (Peçanha, & PérezRamos,1999, p.19). Desta forma, a causa de uma disfunção é substituída pelo entendimento
de como essa mesma dificuldade colabora para a manutenção do equilíbrio do sistema
(Peçanha, & Pérez-Ramos,1999). Assim, utiliza-se o termo “família disfuncional” e não
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mais “família doente”, dado que o primeiro apresenta critérios objetivos da apreciação da
sua disfuncionalidade ( Peçanha, & Pérez-Ramos,1999).
Ainda, segundo Peçanha e Pérez-Ramos (1999), revisando diversos estudos,
afirmam que o estudo da funcionalidade do sistema familiar inclui diversas dimensões
como a individuação, as características específicas da comunicação, da liderança, do
manejo da agressividade e dos conflitos; e também do desempenho de papéis que
possibilita a configuração de níveis geracionais. Por fim , foi graças à teoria sistêmica que
tornou-se possível entender como e quanto determinada disfunção em um indivíduo afeta
profundamente a estrutura e a dinâmica familiar; contribuindo também para a manutenção
da homeostase desta.
A Doença Crônica
Segundo Black (1996 citado por Santos, 2003), "as condições crônicas são
problemas de saúde a longo prazo devidos a um distúrbio irreversível, um acúmulo de
distúrbios ou um estado patológico latente. Algumas condições crônicas causam alteração
irreversível da estrutura ou função de um ou mais sistemas orgânicos. Outras são condições
crônicas porque ainda não foi encontrada a cura" (p.5)
A doença crônica se caracteriza por seu curso demorado, progressão e necessidades
de tratamentos prolongados (Wasserman, 1992 citado por Castro & Piccinini, 2002). Saber
conviver com uma doença crônica depende das características individuais, da forma como
ela é aceita e das expectativas criadas ao longo da vida; visto que tal enfermidade ameaça a
estabilidade e homeostasia de qualquer indivíduo, associando-se a um processo individual
de adaptação que repercute no meio familiar, profissional e social deste (Santos, 2003).
Bolander (1998 citado por Santos, 2003) sintetizou em seu estudo, sete problemas
típicos enfrentados pelos doentes crônicos, que são:
1. Prevenção e controle de crises: o caráter evolutivo e prolongado da doença crônica
faz com que o doente implante formas de reduzir ou prevenir a ocorrência de crises,
de conhecer os sinais de uma crise eminente e ter planejado formas de atuação em
momentos críticos.
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2. Gestão de regimes prescritos: a necessidade de tratamentos prolongados exige
adaptações da vida que dependem de vários fatores, tais como aprendizagem,
aceitação e fator econômico.
3. Controle dos sintomas: a multiplicidade de sintomas de uma doença crônica obriga
a profundas alterações na vida da pessoa e da sua família. Tais alterações podem ser
desgastantes e prolongadas.
4. Prevenção do isolamento social: a doença crônica pode provocar o isolamento,
conduzindo à solidão e à depressão, as quais podem acarretar ruptura em relações
prolongadas (como o casamento); sendo por isso necessário manter o apoio social e
o aconselhamento profissional de forma a prevenir maior desgaste.
5. Adaptação a alterações: doenças crônicas são imprevisíveis, e as alterações são tão
freqüentes que tornam a adaptação mais difícil. A doença passa a fazer parte da
identidade da pessoa bem como daquelas que lhe são mais significativas.
6. Normalização do cotidiano: com o objetivo de tornar menos visíveis as alterações,
muitos indivíduos portadores de doença crônica tentam controlar os sintomas,
evitando determinados locais ou horas do dia para seus encontros sociais.
7. Controle do tempo: dependendo das alterações provocadas pela doença e suas
implicações, a percepção e gestão do tempo altera-se.
Quando a doença crônica emerge, verifica-se um conjunto de alterações que
dependem do ciclo de vida em que a pessoa se encontra, o que condiciona o tipo de
adaptação que terá que ser feita no campo familiar, profissional e social (Santos, 2003).
O doente e a família, ao tomarem conhecimento da cronicidade da doença, podem
passar por cinco estágios emocionais descritos por Kubler Ross (1987): Negação, Raiva,
Barganha, Depressão e Aceitação. Na primeira fase, a da negação, o paciente não acredita
no diagnóstico, acha que está equivocado, podendo até abandonar o tratamento e passar a
agir como se a doença não existisse, ignorando-a. No início de uma doença crônica, é
comum a necessidade do estágio de negação, sendo que tal necessidade pode ir e vir de
acordo com a evolução da relação com a doença e elaboração desta. Geralmente, a negação
é uma defesa temporária, podendo ser substituída por uma aceitação parcial. Após este
estágio, emerge a fase da raiva, da revolta, do ressentimento, do inconformismo e da inveja,
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com a predominância da pulsão agressiva. Toda a raiva do paciente geralmente é projetada
na equipe de saúde e nos familiares. É neste momento que o paciente precisa ser
compreendido e respeitado para se conscientizar de que é um ser humano normal e que não
precisa se descontrolar emocionalmente para ser ouvido. O terceiro estágio é o da barganha
no qual o paciente tenta negociar a solução para o sofrimento gerado pela doença. Nessa
fase, o doente tenta algum tipo de acordo que adie o desfecho inevitável. O quarto estágio é
o da depressão, a qual pode se apresentar sob duas formas: Depressão Reativa e Depressão
Preparatória. No paciente crônico, o período de depressão preparatória surge não apenas
ligado a situações de morte concreta, mas freqüentemente à morte simbólica, às perdas
impostas pela cronicidade da doença. Em conseqüência disso, o paciente entra no próximo
estágio, que é o da aceitação, no qual lamenta a perda iminente de seus entes queridos, das
coisas e dos lugares que gosta, aceitando tranqüilamente o desfecho que está por vir. No
caso de doença crônica, o processo de aceitação está ligado à própria permanência da
doença.
Segundo Santos (2003), a proposta de Kubler Ross deve ser usada de forma flexível,
sendo bastante útil para a compreensão global dos pacientes portadores de doença crônica.
A Importância do Apego no Desenvolvimento Infantil
Os primeiros anos de vida da criança são de fundamental importância para o seu
posterior desenvolvimento físico e emocional. Nessa fase, estabelecem-se as primeiras
relações que constituem a base para as relações futuras (Castro & Piccinini, 2002).
A teoria do apego desenvolvida por Bowlby (1969/1990 citado por Castro &
Piccinini, 2002) enfoca a função biológica dos laços emocionais íntimos, especialmente
entre a mãe e o bebê; e a influência dos cuidadores principais para o desenvolvimento da
criança. A disponibilidade e a prontidão da mãe para atender às solicitações do filho estão
associadas à capacidade da criança de explorar o mundo e de perceber, tranqüilamente, que
ao voltar será bem-vinda, confortada e nutrida física e emocionalmente. Os estudos sobre o
desenvolvimento do apego têm demonstrado que a qualidade da interação mãe-bebê é de
fundamental importância para os padrões de apego da criança. Castro e Piccinini (2002),
após revisarem vários estudos, afirmam que crianças com apego seguro tendem a ser
confiantes, enquanto crianças com apego inseguro geralmente são mais ansiosas, evitativas
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e desorganizadas. Aquele autores também afirmam que a relação entre a qualidade da
interação mãe-bebê e o apego é influenciada por vários fatores: características da
personalidade da mãe, relação com a própria mãe, características temperamentais da
criança e a própria doença crônica.
Goldberg e colaboradores (1990 citado por Castro & Piccinini, 2002) realizaram um
estudo enfocando a relação do apego com a enfermidade em crianças portadoras de doença
crônica; encontrando como resultado, menos apego seguro em crianças com doença
cardíaca congênita e crianças com fibrose cística de doze a dezoito meses de idade quando
comparadas à crianças saudáveis. Em ambos os grupos, o tipo de apego inseguro mais
recorrente foi o evitativo. Embora os autores tenham evidenciado que a relação mãe-criança
portadora de doença crônica era mais resiliente do que imaginavam inicialmente, eles
sugeriram que possa ocorrer um aumento na vulnerabilidade dessa relação para um apego
menos adequado.
É importante ressaltar que de acordo com Peçanha (1993), a comunicação efetiva e
a reciprocidade na relação mãe-criança são dois aspectos fundamentais para o
desenvolvimento da saúde física e psíquica da criança. Segundo Fonseca (2003) “a
qualidade do vínculo estabelecido primariamente determinará vínculos futuros e recursos
disponíveis para enfrentamento e elaboração de rompimentos e perdas” (p.3).
A Doença Crônica Infantil e a Família
Phipps (1995 citado por Santos, 2003) descreve a família como um grupo de
pessoas que se relacionam entre si de tal modo que qualquer alteração em um determinado
membro afeta todos os elementos restantes. A limitação em um componente afeta não
apenas os relacionamentos entre o doente e os demais, mas também entre os outros
elementos do grupo ( Sprovieri & Assumpção, 2000).
A doença crônica na infância apresenta uma prevalência bastante elevada com
implicações para o desenvolvimento da própria criança e também para sua relação familiar
(Castro & Piccinini, 2002). As estimativas sobre essa prevalência indicam que entre 15% e
18% da população infantil americana pode sofrer de alguma enfermidade crônica, incluindo
condições físicas, deficiências no desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem e doença
mental (Perin & Shonkoff, 2000 citado por Castro & Piccinini, 2002). Já no caso da doença
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orgânica crônica, estima-se que sua prevalência seja de aproximadamente 5% nos países
ocidentais (Garralda, 1994). Aqueles autores ainda enumeram as principais doenças
crônicas que surgem na infância: fibrose cística, doenças hepáticas, cardiopatias congênitas,
asma, paralisia cerebral e câncer.
Segundo Romano (1997 citado por Borges, 2003), é indispensável a participação da
família quando um de seus membros adoece, pois o adoecimento interfere no equilíbrio do
sistema familiar. As conseqüentes mudanças, de forma geral, são propiciadoras de crises
que advém principalmente do estresse gerado pela quebra da rotina familiar, das
redistribuições repentinas e forçadas dos papéis familiares, do aumento de custos, das
inseguranças, das culpas, enfim; das exarcebações e atualizações de crises antigas e de
sentimentos antes não manifestados. Walsh e McGoldrick (1998 citado por Borges, 2003),
afirmam que o choque de uma perda ou o diagnóstico de uma enfermidade crônica, ao
atingir uma família, faz exigências urgentes, como uma nova organização que deve ser
estabelecida e que refletirá na identidade, na dinâmica e nos objetivos dessa família, talvez
até mesmo de forma irreversível.
A doença crônica pode ser encarada como um estressor que afeta o desenvolvimento
normal da criança e também atinge as relações sociais dentro do sistema familiar (Castro &
Piccinini, 2002). A rotina da família altera-se com constantes visitas ao médico,
medicações e hospitalizações (Hamlett & cols., 1992 citado por Castro & Piccinini, 2002).
Tanto os pais como toda a família vêem suas vidas envolvidas pela doença, o que
reflete em uma necessidade de atenção especial alterando o ritmo familiar ( Furtado &
Lima, 2003). A família passa a viver em função do doente e de suas exigências, por sua
dificuldade em adquirir autonomia e independência permanente (Sprovieri & Assumpção,
2000). Tais autores ainda afirmam que os recursos da família tornam-se escassos devido à
vivência da perda de outros projetos familiares que a doença acarreta.
Em relação à asma, especificamente, Moliani (2001) afirma que levantar de
madrugada repentinamente, telefonar para pediatras, freqüentar emergência e prontosocorro de hospitais, mudar o estilo de vida tentando evitar que a criança entre em contato
com substâncias que possam desencadear crises; são procedimentos freqüentes numa
família que possui algum filho que sofre de asma. Desta forma, a família passa a conviver
com uma rotina de vida extremamente conflituosa.
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Assim, a enfermidade torna-se um fator de risco para a manutenção da homeostasia
familiar, sendo que o seu reequilibro depende de um conjunto de fatores inerentes à pessoa
portadora da doença, assim como da família onde esta se inclui ( Santos, 2003). Evidências
apontam que as relações familiares são essenciais para o adequado enfrentamento da
doença e do prolongado tratamento que comumente se faz necessário (Castro & Piccinini,
2002).
Segundo Furtado e Lima (2003), a doença crônica consome tempo, energia e
privacidade da família, podendo ocasionar também isolamento social e emocional. O
isolamento social da família em que um dos membros é doente crônico, é um
acontecimento freqüente que pode deixar a pessoa mais vulnerável a transtornos
emocionais, perpetuar o estigma da doença e criar problemas para o enfrentamento da
enfermidade (Góngora, 1998 citado por Castro & Piccinini, 2002).
Os recursos psicológicos dos pais, da própria criança, e a estrutura familiar
interagem e podem contribuir para a adaptação da criança à doença. Algumas vezes o
desajustamento da criança doente pode estar mais relacionado com o modo como a família
lida com a criança do que com os comportamentos da criança em si (Wallander & Varni,
1998 citado por Castro & Piccinini, 2002). Além disso, a dificuldade de mães e pais em
aceitar a realidade podem contribuir para o agravamento do desenvolvimento do filho
enfermo.
A família pode servir como moderadora na atenuação dos efeitos negativos da
doença, promovendo para a criança um ambiente facilitador para o seu envolvimento em
atividades sociais ( Castro & Piccinini, 2002). Quando a interação pais – criança é
inadequada, a criança tem maiores riscos de atraso, de dificuldades no desenvolvimento,
limitações sociais, cognitivas, lingüísticas e até negligência (Leitch, 1999 citado por Castro
& Piccinini, 2002 ).
O contato inicial com a doença gera nos pais a ansiedade e o medo. Muitas vezes,
eles expressam incredulidade frente ao diagnóstico e receio da perda do filho ( Furtado &
Lima, 2003). Mães e pais procuram buscar uma explicação clara a respeito da doença do
filho e de suas conseqüências, e sentem-se frustrados quando isto não é possível (Irvin,
Klaus & Kennel, 1992 citado por Castro & Piccinini 2002). Eles chegam a se questionar
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quanto a suas competências genéticas, o que pode levar a sentimentos de culpa (Castro &
Piccinini, 2002).
As seqüelas emocionais que a enfermidade crônica pode causar na criança são
muitas e complexas, e a relação que ela vai estabelecer com seus genitores é parte
importante no processo de elaboração da doença. As características da própria doença
crônica, a idade em que surgiu, o prognóstico e a assistência médica disponível irão
interagir com inúmeros fatores subjetivos, comportamentais e sociais relacionados aos pais
e à criança; proporcionando uma dinâmica particular em cada caso (Castro & Piccinini,
2002).
A presença de uma doença crônica implica em um esforço por parte da família no
sentido de integrar a desordem em sua organização interna (Santos, 2003). Cada família
encontra o seu estilo próprio de comunicação, as suas regras, as suas crenças, bem como o
modo de manter a sua estabilidade (Enelow et al., 1999 citado por Santos, 2003).
É fundamental que persista o envolvimento das diferentes pessoas que compõem o
grupo familiar, considerando como objetivo prioritário o cuidar do enfermo e
simultaneamente a preservação da instituição familiar. Essas famílias vivenciam uma fase
inicial de desequilíbrio, com manifestações de ansiedade e estresse, até alcançarem a fase
de readaptação (Santos, 2003).
Uma boa relação entre a criança, a família e os profissionais de saúde facilita a
compreensão da extensão e gravidade da enfermidade, bem como a aderência da criança e
da família ao tratamento; especialmente naqueles muito invasivos, dolorosos e prolongados,
mais sujeitos ao abandono ou a uma proteção exagerada da criança (Castro & Piccinini,
2002).
Os pais têm um papel fundamental no restabelecimento de seu filho com doença
crônica. Assim, reduzindo a ansiedade dos pais frente ao conhecimento da doença,
tornando-os capazes de assistir seu filho adequadamente; é possível transformá-los em
multiplicadores de experiências positivas e de melhoria na qualidade de vida dessa criança
(Furtado & Lima, 2003).
" O desenvolvimento de sentimentos de esperança, revalorização e reforço da autoimagem são aspectos fundamentais que permite às famílias perceber o seu valor no presente
e futuro, recompensando-as talvez das dificuldades sentidas ao longo do tempos,
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promovendo o bem-estar e equilíbrio essenciais, não para a "cura" da situação, mas sim
para a adaptação, criando alicerces fortes para superar as crises mais ou menos freqüentes
que possam surgir" (Santos, 2003, p.14).
O Câncer Infantil
O diagnóstico de câncer desencadeia uma situação de crise com conseqüências
consideráveis para o sistema biopsicossocial da criança ( Peçanha & Fernandes, 2004).
Segundo Stuber (1995 citado por Peçanha & Fernandes, 2004) o diagnóstico e o tratamento
de câncer constituem-se como um evento traumático no qual os pais têm maiores riscos de
apresentar sintomas pós-traumáticos a longo prazo do que a própria criança sobrevivente.
Os pais de uma criança com câncer sofrem várias conseqüências desde o início da
doença. Eles vivem preocupados, cansados, amedrontados ou até mesmo um pouco
confusos devido às decisões que eles precisam tomar e à todas as mudanças que o câncer
acarreta. Além disso, os pais ainda têm a responsabilidade de manter a família unida
durante esse período crítico. Muitos são os sentimentos que os acometem, inclusive o de
não ter energia suficiente para realizar todas as coisas que almejam.
O impacto do diagnóstico é amenizado devido às chances de cura que são oferecidas
no início do tratamento. Desde o início a criança sabe o quão grave é a enfermidade, e
consegue falar de seus medos, culpas e dores por não viver mais naturalmente sua vida
(Perina, 2002). Essas restrições diárias a que as crianças são submetidas acabam sendo uma
das piores partes do tratamento, que por si só já é doloroso e invasivo.
A rotina do atendimento psicológico da criança com câncer possibilita a
compreensão do seu mundo emocional, através do brincar, do falar e dos desenhos. É por
meio dessas atividades que a criança permite a imersão dos seus conteúdos internos com
estórias de sua imaginação repleta de monstros, cinderelas, príncipes e lobo-maus;
permitindo que a trama do seu inconsciente seja acessada, se revelando nos simbolismos
dos desenhos e das estórias que cria. O discurso das crianças leva o psicólogo a um mundo
de desejos e de sonhos e não tanto à uma realidade. Desse modo, tenta-se decifrar a rede de
significantes na qual a criança está inserida levando em conta sua história individual,
familiar e social, e assim, descobrir os vários significados emocionais que a situação atual
lhe traz ( Perina, 2002).
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Ao fim do tratamento, um grande número de pacientes apresentam dificuldade de
readaptação social. Já foram constatados índices importantes de dificuldades psicológicas
(comportamento anti-social, tendências hipocondríacas, inadaptações) e educacionais
(atraso escolar e dificuldades em matemática) em serviços importantes dos Estados Unidos,
estendendo-se também ao Centro Infantil Boldrini (Perina, 2002).
Dellela; Araújo e Ferreira (2002), em seu estudo, buscaram descrever e
compreender a experiência da sobrevivência para a criança e seus pais, e também avaliar a
desordem de estresse pós-traumático parental, por meio da análise de entrevistas semiestruturadas. Os resultados indicaram que as crianças se adaptam melhor que seus pais, mas
as experiências vivenciadas com a doença possuem significados negativos para ambos. A
idade da criança no diagnóstico, o tipo de câncer e o tipo de tratamento realizado foram
fatores que influenciaram na qualidade da sobrevivência.
Através de um estudo de Phipps e colaboradores (2001) constatou-se que um ano
após o diagnóstico de câncer, mesmo as crianças e adolescentes já curados, ainda
mantinham um estilo repressivo adaptativo como forma de lidar com a situação da doença.
Tal estilo caracteriza-se por um funcionamento altamente defensivo e tem sido associado a
diversas conseqüências negativas para a saúde da criança, incluindo tensão, dores de
cabeça, alergias, úlcera e hipertensão (Castro & Piccinini, 2002).
A aceitação da doença ocorre com o aumento do conhecimento que dela se adquire,
de como cuidar da criança e de como esta pode reagir. Assim, a família passa a se sentir
segura e percebe que está realizando um bom cuidado, contribuindo para a melhora do
estado clínico da criança ( Furtado & Lima, 2003).
O Paradoxo da Cura
A cura física do câncer diz respeito à criança, sendo que o mesmo não ocorre com a
cura psíquica pois esta também implica, prioritariamente, os pais. A cura física e a cura
psíquica não são dissociáveis, mesmo que não ocorram conjuntamente (Brun, 1996). O
diagnóstico de câncer expõe pacientes e familiares às questões da morte possível, do
sentido da vida, da dor insuportável; contudo o fim do tratamento não é suficiente para
distanciá-los dessas questões. Ainda segundo Brun (1996), as pessoas têm reações de
16
incredulidade, que se distingue, em essência, do temor de uma recaída ou de outras
conseqüências desagradáveis.
Quanto aos pais, durante o tratamento, eles se mostram fortes; apesar da dor e do
pesar conseguem agüentar firmes, mas é quando a possibilidade de cura se torna realidade é
que eles descompensam. Tal fato permite supor que essas reações de incredulidade por
parte dos pais, visam muito mais a criança que há neles do que à criança real (Brun,1996).
Após a cura anunciada pelo médico, os pais ainda acreditam que o perigo não está
totalmente afastado e que a reinserção escolar ou profissional do filho está comprometida
(Brun, 1996).
Quando a cura do câncer de um filho é anunciada para o pais, eles experienciam a
sensação de irrealidade. A falta de crença que demonstram diante dessa notícia provém de
mecanismos complexos que estão ligados à emergência de representações infanticidas. Essa
representação infanticida, geralmente está fadada à censura e ao recalcamento, e até à
rejeição, emergindo na relação pais-filho como um lado obscuro de todos os pensamentos
conscientes relativos à morte potencial da criança com câncer. Assim, a cura da criança
cancerosa é que alimenta os desejos infanticidas, sendo que esses fomentam a imagem da
“criança dada por morta”(Brun,1996). Mas, segundo Brun (1996), “aceitar reconhecer a
diferença entre a criança real e a criança dada por morta é, de uma certa forma dispor-se a
realizar um trabalho de decifração numa série de representações arcaicas que se carrega
consigo desde a infância e que, apesar da infinidade de disfarces que assumem para se
manifestar, derivam de questões relativas ao pôr que da presença da criança in utero” .(p.
98)
A cura do câncer é tão difícil de negociar porque logo que o perigo externo é
afastado, a angústia de morte, como um processo interno, não encontra mais respaldo na
angústia de morte que o perigo externo havia suscitado. Assim, diz-se que a forma externa
é a projeção da forma interna; projeção esta que é facilitada por acontecimentos brutais,
que, como a câncer, colocam vida em risco (Brun, 1996).
Conscientemente, todos os pais desejam a cura total da criança, aliás desde o início
da tratamento os pais mantém essa postura esperançosa; mas é difícil encarar o futuro de
uma criança curada de um câncer sem dificuldades e sem conflitos (Brun,1996).
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Metodologia
Local e Participantes
Participaram deste estudo, três famílias nucleares, com pai e mãe biológicos, sendo
uma delas uma família reconstituída. As crianças eram de ambos os sexos, com idades entre
10 e 14 anos aproximadamente, com diagnósticos de leucemia, em diferentes fases de
tratamento no Centro de Hematologia de Ribeirão Preto.
Material
Quanto às técnicas utilizadas, a abordagem metodológica centralizou-se na técnica
de estudo de caso. Foram utilizados instrumentos que vêm se revelando eficazes na
exploração de aspectos relacionados ao desenvolvimento e à percepção infantil acerca dos
psicodinamismos familiares; mediante um termo de consentimento livre e esclarecido
assinado devidamente pelos pais. São eles:
1. Entrevista com os pais da criança (Peçanha, 2004): visa obter dados pessoais
relativos à criança e à família, à gênese e evolução do quadro oncológico, às
situações psico-educacionais a ele relacionadas, aos problemas de comportamento
associados e ao contexto do lar, priorizando-se as inter-relações entre a criança e a
família. Os procedimentos utilizados para a realização desta entrevista são de
natureza semi-dirigida .
2. Teste do Desenho Colorido da Família (TDCF, Maggi, 1970) em versão adaptada
(Peçanha, 1997): possibilita o estudo da representação da criança relacionada à sua
família, e também permite que ela perceba a interação dos membros de sua família
em relação aos seguintes quesitos: comunicação, normas, papéis, liderança,
conflitos, agressividade, afeição, individuação, integração e mudanças que gostaria
de introduzir na família.
3. Teste das Fábulas (TF, Cunha e Nunes, 1993), adaptação do instrumento original
de Düss (1950). De acordo com essas autoras, o teste compreende uma forma verbal
e uma forma pictórica. A forma verbal é constituída de dez pequenas estórias
incompletas que o sujeito deve completar. A forma pictórica compõem-se de doze
lâminas com ilustrações adequadas a cada uma das fábulas, que devem ser
apresentadas concomitantemente à forma verbal. As fábulas são: do passarinho, do
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aniversário de casamento, do cordeirinho, do enterro, do medo, do elefante, do
objeto fabricado, do passeio com a mãe ou com o pai, da notícia e do sonho mau.
Este teste é utilizado para detectar crises situacionais e de desenvolvimento, conflito
neurótico, transtorno neurótico e psicótico, assim como para o entendimento
psicodinâmico da criança. A avaliação foi realizada por meio do protocolo
desenvolvido por Peçanha (1997).
A utilização do Teste da Fábulas, juntamente com o T.D.C.F. (ambos projetivos)
justifica-se pelo fato de que os dois se adaptam às idades das crianças, permitindo a
compreensão de seus psicodinamismos bem como a forma como percebem a si
mesmas e às interações no meio familiar (Peçanha, 1997).
A utilização de testes projetivos podem colaborar para a realização de intervenções
mais adequadas com as crianças e suas famílias. As técnicas projetivas tem por
objetivo destacar a estrutura da personalidade de um indivíduo, o qual é visto como
uma unidade em evolução que contém elementos constitutivos em interação
(Nguyên, 2004).
A dinâmica da projeção ligar-se-á à forma como as respostas das crianças
testemunham seu mundo imaginário inconsciente, as zonas conflitivas mais
exacerbadas, sua atividade psíquica de fantasmatização e de simbolização (Douville,
2004).
4. Entrevista Familiar Estruturada (EFE, Carneiro, 1983)
Segundo Carneiro (1997), a EFE é utilizada com o objetivo de provocar a imersão
dos dinamismos familiares, possibilitando, em um tempo mais curto, uma avaliação
das relações familiares. Ela é composta de seis tarefas, sendo cinco verbais e uma
não verbal. As tarefas, de forma geral, procuram avaliar os padrões básicos de
funcionamento da família. São elas:
Tarefa 1: “Vamos imaginar que vocês teriam de mudar-se da casa onde moram no
prazo máximo de um mês. Gostaria que vocês planejassem agora, em conjunto, com
seria a mudança.”
Tarefa 2: “Quando você está fazendo uma coisa qualquer, mas fica difícil terminar
essa tarefa sozinho, o que você faz?”
Tarefa 3: “Diga de que coisas você mais gosta em você.”
19
Tarefa 4: “Como é um dia de feriado na família?”
Tarefa 5: “Imagine que você está em sua casa, discutindo com uma pessoa
qualquer de sua família, e alguém bate à porta. Quando você vai atender, a pessoa
com quem você estava discutindo lhe dá um empurrão. O que você faz?”
Tarefa 6: “Cada um de vocês vai escolher uma ou vária pessoas da família, pode
ser qualquer pessoa, e vai fazer alguma coisa para mostrar a essa pessoa que gosta
dela, sem dizer nenhuma palavra.”
Partindo-se do objetivo geral da EFE e dos objetivos específicos de cada tarefa,
foram estabelecidas as seguintes categorias de avaliação: comunicação, normas,
papéis, liderança, conflitos, agressividade, afeição, individuação e integração
(Peçanha, & Pérez-Ramos,1999).
A EFE contribui para o diagnóstico da estrutura e da dinâmica do grupo familiar,
seguindo-se o enfoque sistêmico que permite analisar as inter-relações familiares de
maneira ampla e objetiva ( Peçanha & Pérez-Ramos, 1999). A avaliação da EFE foi
feita através do protocolo de avaliação sistêmica da família (Peçanha, 1997;
Peçanha & Pérez Ramos,1999; Peçanha, Pérez Ramos & Lacharitè, 2003).
As variáveis exploradas na EFE são muito semelhantes às do T.D.C.F., mas é na
aplicação deste instrumento que se torna possível a observação real da família e da
criança (Peçanha, 1997).
A abordagem sistêmica aborda a doença como um fator que afeta a família
enquanto unidade (Sprovieri & Assumpção, 2000), por isso a presença de uma
doença crônica em um dos componentes acaba afetando todo o grupo. Tais autores
citados realizaram um estudo com famílias com pacientes autistas e constataram que
estas são significativamente dificultadoras da saúde emocional dos membros do
grupo; sendo a doença crônica um sintoma que acomete a família de forma
permanente. Isso pôde ser constatado através de algumas categorias mais
comprometidas
avaliadas na aplicação
da EFE, tais como:
integração,
individualização e interação conjugal.
20
Procedimentos
Para a efetivação da avaliação infantil, consideram-se aspectos éticos em relação ao
sigilo na identificação dos sujeitos. As crianças foram recrutadas entre os usuários de um
centro hematológico em Ribeirão Preto.
Em horário combinado, os pais e posteriormente a criança eram recebidos pelos
estagiários em uma sala disponibilizada por um médico desse centro. As entrevistas com os
pais e a EFE foram gravadas em fita cassete e transcritas na íntegra para posterior análise,
bem como as respostas da criança ao TDCF e ao Teste das Fábulas. Ao final de cada
entrevista ou teste, forneceu-se à criança e a sua família um pequeno “feed-back”,
expressando agradecimento e reforçando aspectos da dinâmica familiar capazes de
contribuir na promoção da saúde do grupo.
Após a análise dos resultados, foi realizada uma entrevista devolutiva com as
famílias a respeito dos resultados obtidos, partindo de suas percepções e respeitando o
momento e necessidades emocionais das mesmas. Conforme cada caso foram fornecidas
orientações gerais que favoreçam um melhor enfrentamento da enfermidade que acomete a
criança e mobiliza a família como um todo, favorecendo o desenvolvimento infantil e um
funcionamento familiar mais saudável.
21
Estudo de Casos e Discussão
Nessa sessão serão discutidos os casos a partir dos dados obtidos nas entrevistas
com os pais das crianças e suas inter-relações através da interpretação dos resultados da
EFE (entrevista familiar estruturada) e das técnicas projetivas (Teste das Fábulas e TDCFteste do desenho colorido da família). Foi através desses instrumentos que se tornou
possível a compreensão da dinâmica familiar de crianças acometidas por uma doença
crônica.
1) Estudo Psicológico de F., sexo masculino, 10 anos, filho único.
A gestação de F. foi muito difícil pois não foi planejada e ocorreu num período
complicado do relacionamento dos pais. O pai afirmou: “...não estava tendo aquele
relacionamento normal de um casal então foi meio complicado, tivemos muita discussão,
eu não estava envolvido no casamento, eu estava envolvido com coisas fora do casamento,
então foi muito difícil a gravidez para ela, depois disso continuou essa problemática
toda...depois de um ano ainda pedi a separação, então foi muito complicado” (sic). Essa
fala do pai além de retratar o período conflituoso da gestação de F., também mostra a sua
necessidade de se abster de uma possível culpa em relação à doença do filho pois coloca
que a gravidez “foi muito difícil para ela” como se as dificuldades não fossem do casal e
sim de cada um individualmente, o que mostra as dificuldades emocionais dessa família
(desestruturação) antes e durante a chegada dessa criança.
A mãe atribui algumas características de F. ao conturbado período gestacional: “...a
gente comenta que essa ansiedade do F., essa carência dele foi pelas emoções que eu tive
durante a gravidez, então foi uma gravidez muito complicada mesmo e depois do parto,
quando F. nasceu a gente não tinha mais uma vida conjugal...” (sic).
F. mamou mais ou menos uns dois meses, pois sua mãe não teve muito leite, “ele
não mama” (sic). Essa fala no presente parece indicar que esse fato ainda afeta a vida dessa
mãe, talvez por ela se culpar de não ter nutrido o seu filho. Pode ser que inconscientemente
ela tenha desejado não amamentar esse filho que não foi planejado.
Segundo a mãe, F. sempre foi uma criança ativa, agitada e que gosta muito de
brincar; além de possuir uma carência muito grande, “você vê que ele tem uma carência
22
nata” (sic). Mas ela nega que o filho possa sofrer pela ausência do pai: “quando eu e ele nos
separamos, ele era muito novinho então ele não sofreu esse ato da separação, de perder o
pai e tal, ele não chegou a ter uma convivência familiar” (sic). A mãe talvez se utilize desse
mecanismo de negação como defesa da possibilidade de ter causado algum sofrimento para
o filho, de ter influenciado o seu desenvolvimento. A criança também teve
acompanhamento psicológico durante três ou quatro anos após a separação dos pais.
F. teve problemas com a alfabetização e tem dificuldade em se concentrar, pois segundo a
mãe sua prioridade é brincar. Esse seu anseio em brincar é muito saudável pois mesmo após
intensas sessões de quimioterapia chega em casa e quer brincar, nadar, jogar bola. Segundo
a mãe, uma semana antes de iniciar o tratamento quimioterápico, ele diz: “tenho que
aproveitar, tenho que aproveitar, porque semana que vem eu vou fazer e não sei como que
é” (sic), o que demonstra sua vontade de viver, de aproveitar intensamente cada dia de sua
vida. F. também apresenta questionamentos tipo “por que eu”, inclusive questionando
Deus, o que é esperado na fase em que se encontra da doença. Ao mesmo tempo em que
está sentindo as perdas, F. mostra-se apto a superá-las, como demonstrou no TDCF ao fazer
um desenho livre em que ele próprio está escalando uma montanha, antes de realizar o
desenho da família. Na entrevista com os pais, sua mãe relatou: “quando ele ficou doente,
ele ficou fortão, ele pedia para apagar as luzes”(sic), visto que não o fazia anteriormente,
esse fato demonstra sua capacidade de enfrentamento. No Teste das Fábulas, na F1 ( Fábula
do Passarinho), F. mostra-se impotente na situação de perigo proposta, dizendo: “se vai cair
no chão ele bate um pouco as asas” (sic) e ao referir-se ao sentimento do passarinho diante
disso diz: “parece que eles perderam tudo”(sic), deixando explícito o contexto de perdas
que estava vivenciando naquele momento da doença. Na F4 (Fábula do Enterro), não
conseguiu discriminar o que dizia a fábula e acabou expressando uma ansiedade
confusional, “se ainda mora como é que morreu?” (sic). Aqui percebe-se a reação defensiva
de F., sua negação diante da morte. Na F6 ( Fábula do Elefante), na qual pode-se verificar a
reação à mudança, à perda, à castração, F. diz que o elefante “pode tá doente” (sic), o que
sugere uma alusão à presença do câncer, ao que ele acarreta ou pode acarretar em sua vida.
F., segundo sua mãe, apresenta medo de tudo, de filme, de comercial, de monstro,
de lobisomem, às vezes tem até dificuldade para dormir à noite. A mãe também relata que a
psicóloga que o atendia dizia que era por causa da separação, dos problemas que ela teve
23
durante a gravidez, “ele ficou com esse sintoma de perda, de medo né, ele sempre teve
muito medo”(sic). F. começou a dormir sozinho em torno de nove anos. Através desses
aspectos observados e também do discurso da psicóloga, pode-se dizer que a criança tem
um registro inconsciente de uma possível falta de proteção e de abandono, como o que já
vivenciou na separação. Na F5 (Fábula do Medo), F demorou quase cinco segundos para
responder o sentimento da criança diante da situação de medo proposta pela fábula,
indicando choque. Sua resposta à essa fábula parece ter sido defensiva, pois indicou que a
criança possui medo de circunstâncias ameaçadoras da realidade externa, enquanto que na
entrevista a mãe afirma que F. tem medo da circunstâncias ameaçadoras da realidade
interna (monstro, lobisomem), “ele monta estratégia para o caminho que o monstro vai
passar pra entrar no quarto dele....agora com a doença ele tá com esse medo, mas ele
sempre foi uma criança assim”(sic). De acordo com o tempo de resposta da fábula e com o
depoimento da mãe, pode-se concluir que F, apresentou mesmo uma resposta defensiva,
pois esses conteúdos ainda não foram elaborados conscientemente por ele, agravando-se
ainda mais com a emergência da doença. O conceito de defesa tem sentido e significado
dentro de uma configuração específica de relação objetal, fazem parte de processos
dinâmicos em que sempre estão presentes os vínculos com os objetos (Picollo, 2001). Esta
autora ainda utiliza-se de uma citação de M. Klein para completar a definição desse
conceito, “há, ao nascer, ego suficiente para sentir ansiedade, utilizar mecanismos de defesa
e estabelecer relações primitivas de objeto na realidade e na fantasia”. Ainda de acordo com
Picollo (2001), as defesas são a melhor saída obtida pelo sujeito nas relações com os seus
objetos, estão fixadas na personalidade e presentes em toda forma de perceber e conectar-se
com o mundo (tanto o interno como o externo).
A mãe relata que era comum encontrar o filho chorando porque tinha medo que ela
morresse, “ele tem um medo muito grande de ficar sozinho, de ficar sozinho, de ficar sem a
mãe, de ficar sem o pai ou de ele mesmo...isso ele tem medo”(sic). F. também apresenta
essa angústia em relação ao pai, “ó pai, você vai morrer primeiro que eu, quando eu morrer,
como que eu vou fazer para te encontrar?”(sic). Esses questões que F. faz aos pais
demonstra mais uma vez o seu medo de ser abandonado, de ficar novamente sem os pais
por perto já que “perdeu” o pai uma vez. Percebe-se que a ausência do pai ainda não foi
24
compreendida (não que o pai seja ausente) e o desejo da volta desse pai para perto ainda é
bem exaltado.
F. possui uma relação de simbiose com a mãe, pois esta mudou toda a sua vida, seu
trabalho, passando a trabalhar dentro de casa para ficar mais perto dele. Já F., quando a mãe
sai um pouco ele já diz que ela não liga mais para ele, “ele já chegou a falar que ele prefere
quando ele fica ruim porque eu fico em cima dele, né” (sic). Diante disto pode-se tentar
levantar a hipótese de que F. possa ter somatizado toda essa carência, abandono, medo e
manifestado essa doença (de forma inconsciente, claro) para conseguir atenção exclusiva e
reaproximação dos pais, o que ele sempre tentou, segundo a mãe, “ele sempre teve essa
jogadinha com a gente, né, e agora com a doença...raaaa!” (sic).
O medo de abandono e de perda de F. também pode ser verificado no seu
relacionamento com os amigos. Segundo a mãe: “ele se apega muito aos amigos viu, e dá
muita importância, o que o amigo pensa, o que o amigo fala, o que o amigo faz, o que o
amigo acha dele”(sic). Isso demonstra também que devido aos sentimentos de perda e
abandono, ele também se sente uma criança insegura.
A dinâmica dessa família, portanto, caracterizou-se por jogos de perseguição entre o
casal (culpabilização mútua) e aliança simbiótica entre mãe e filho na fase de crise,
evoluindo para uma comunicação mais realista e redefinição de papéis na fase crônica
como foi verificado no TDCF.
Outro aspecto a ser ressaltado da entrevista com os pais é que a mãe afirmou: “eu
tenho anemia desde criança então minha mãe sempre dizia come que senão essa anemia vai
virar leucemia, então eu sempre tive muito medo dessa doença e é até engraçado, né porque
parece que tudo...” (sic). Não há como se afirmar que esse fato tenha causado a doença de
F., mas pode ter causado uma culpa muito grande na mãe; a primeira coisa que eu fiz foi
me culpar, né”? (sic). Por isso também pode ter desenvolvido essa simbiose com o filho,
“comecei a não, não vai levar, não vai sair, porque eu tenho medo dele sair de perto de
mim” (sic); visto que foi meio ausente nos primeiros anos de vida da criança; com um ano
F. já foi para a escolinha. O pai ao saber da doença do filho também se questionou, se
culpou pela separação, mas hoje em dia está mais apegado à religiosidade, “então eu
converso com Deus pra dar uma força pra ele, mas é muito complicado ver” (sic); “eu peço
a Deus para guardar ele das conseqüências disso aí, que hoje graças a Deus ele está indo
25
muito bem mas no futuro eu não sei, então a gente vê assim, você olha para um túnel escuro
e você não sabe se aquilo vai ter uma saída” (sic); então entrego meu pensamento a Deus,
as portas se abrem, a luz desce...”(sic), o que demonstra sentimentos de impotência
despertados na fase crônica. Assim, ao longo da trajetória da doença, essa família utilizou a
espiritualidade como um recurso positivo de enfrentamento. A mãe diz-se evangélica e
afirmou estar vivendo numa “montanha russa”, buscando sempre forças para demonstrar
para F, o que sinaliza para os sentimentos de instabilidade vivenciados na fase crônica da
doença.
A mãe também relata que o pai pesquisou muito sobre o assunto, o que, em
comunicação pessoal feita pela supervisora, caracteriza uma atitude típica de enfrentamento
principalmente por parte dos homens.
Os pais de F. ao saberem de sua doença, decidiram morar todos juntos ( o pai com a
nova mulher e a mãe com o novo marido), mas como essa situação gerou muitos conflitos,
o próprio F. sugeriu que era melhor cada um ficar na sua própria casa, mesmo que
inconscientemente ele já tivesse utilizado estratégias para unir os pais.
No Teste das Fábulas foi possível observar mais alguns dados relativos ao
funcionamento psíquico de F. Na Fábula 7 ( Fábula do objeto fabricado), ele diz que a
criança dá a torre e se sente muito bem com isso, o que sugere um desenvolvimento sócioafetivo adequado, evidenciando sua capacidade de amar. Na Fábula 8 (Fábula do passeio
com a mãe), ele diz que o pai deve ter ficado preocupado e que a criança tem a obrigação
de contar para o pai onde que ele vai. Essa fala comprova que F. está vivendo a etapa
edípica, e que já houve a internalização da figura paterna. O fato de ter a obrigação
demonstra a existência de um super-ego, bem como o trabalho psíquico como uma estrutura
triangular. Na Fábula 9 (Fábula da notícia), ele respondeu que a mãe ama muito a criança,
o que demonstra sua capacidade de amar saudável, sua maturidade e seu desenvolvimento
adequado. Isso também corrobora a resposta amorosa na Fábula 7.
Apesar da doença crônica afetar todo o sistema familiar (as relações sociais, o ritmo,
a perda de projetos, entre outros), verificou-se, na fase crônica, uma maior adaptação dessa
família ao contexto da enfermidade e seus cuidados; e por parte da criança, observou-se o
desejo de preservar ganhos secundários como maior atenção materna.
26
De acordo com os estágios emocionais descritos por Kubler Ross (1987) que o
doente e família podem enfrentar ao tomarem conhecimento da cronicidade da doença, ao
invés da negação estar presente, observou-se sentimentos de estranhamento, um pouco de
raiva, não sendo verificada a barganha.
F. tem um relacionamento muito bom com os pais, apesar de todas as adversidades, de
todas as perdas, ele apresenta um desenvolvimento sócio-emocional compatível com sua
idade, principalmente por ter conseguido preservar o vínculo com o pai e também ter
estabelecido um bom vínculo com o padrasto. É uma criança com muita força, com pulsão
de vida que segundo Laplanche & Pontalis (1970) tendem a conservar as unidades vitais
existentes e também constituir unidades mais englobantes a partir destas. Esta tendência
está presente no indivíduo na medida em que procura manter sua unidade e a sua existência.
2) Estudo Psicológico de G., sexo masculino, 14 anos, primogênito.
O período gestacional da mãe de G. foi bem difícil, ocorreram muitas brigas entre o
casal e inclusive uma mudança de uma cidade pequena para uma grande cidade, bem como
mudança de Estado, que a mãe sentiu muito, “eu morava numa cidadezinha desse tamainho
no P. e vim pra uma cidade enorme sozinha” (sic). Ela chegou grávida, passou muito mal,
emagreceu muito, chegando a desenvolver uma anemia profunda, “não sei se isso tem
alguma coisa a ver” (sic), já protegendo-se da possibilidade de ser a “culpada” pela doença
do filho. Não foi uma gravidez planejada. Teve muito medo do parto, “um medo
horroroso”(sic). G. não mamou no peito da mãe, tomou um pouco do leite materno da
vizinha, depois começou a tomar leite normal, sustagem e também leite de vaca que o pai
pegava em um sítio. Chegou a tomar um pouco de leite da mãe que ela tirava com a
maquininha. Observou-se que em decorrência disso, a mãe passou a dar muita comida para
a criança, “primeiro filho, né...morava com ele sempre sozinha da família assim, e eu dava
muita comida pra ele”(sic). Parece que a mãe estendeu o seu descontrole emocional para o
filho, alimentando-o excessivamente, tanto por não tê-lo amamentado e também por estar
vivenciando um período difícil. G. cresceu comendo bastante, tem uma alimentação pesada
até hoje. Perdeu apenas cinco quilos no início do tratamento e depois recuperou. Parece que
G. alivia as suas tensões, seus medos e ansiedades através da alimentação excessiva;
segundo o pai, “ficava duas hora lá na quimio e saía com fome”(sic).
27
G. foi criado pela avó até por volta dos dois anos de idade. Foi a avó que o ensinou
a usar a privada para fazer xixi pois sua mãe trabalhava. Ao contar isso, a mãe ri, o que
evidencia a expressão de afeto inadequado, como fez ao longo de toda a entrevista. A mãe
contou que ele nunca teve birras, choro, dizendo: “não, ele foi criado até os dois anos
sozinho, né” (sic). Essa fala demonstra que a mãe, na verdade, não sabe exatamente se seu
filho passou por isso ou não; primeiramente porque não participou ativamente de seus
primeiros anos de vida, e depois porque não sabe, não “reparou” se ele teve esse tipo de
crise ou não depois de os dois anos de idade, o que pode acontecer normalmente com todas
as crianças. A qualidade da relação mãe/filho durante toda a vida é determinada desde os
primeiros contatos, as primeiras vivências, sendo fundamental a presença da mãe no
primeiro ano de vida do bebê. As dificuldades ao longo do desenvolvimento da criança,
principalmente em seus primeiros anos de vida, estão diretamente vinculadas à essa relação
(Peçanha, 1993). Segundo Spitz (1979), “a existência da mãe, sua simples presença, age
como um estímulo para as respostas do bebê; sua mínima ação por mais insignificante que
seja, mesmo quando não está relacionada com o bebê, age como um estímulo. Durante o
primeiro ano de vida, experiências e ações intencionais constituem provavelmente a mais
decisiva influência no desenvolvimento de vários setores na personalidade do bebê”.
Desta forma, supõe-se que a doença tenha sido o meio encontrado por G. para se
aproximar de seus pais, para ter a atenção que parece nunca lhe ter sido realmente
dispensada. A mãe passou a sentir uma necessidade extrema de estar perto do filho, “pra
mim, o G. tava na escola, eu fui, eu fiquei dois dias, três, eu já queria buscar ele, eu queria
ficar com ele perto de mim” (sic). Essa maior proximidade dos pais com G. desencadeou
uma menor atenção para o outro filho (C), dois anos mais novo. Na entrevista, o pai diz: “e
o C. também sentiu um pouquinho de ciúme, né, porque a gente ficou muito em cima dele,
então esquecemos um pouco do C., então é complicado, viu” (sic). Nessa fase de crise,
ocorreu uma desestabilização da família em geral e se C. foi afetado diretamente pelo
contexto disfuncional que sua família estava enfrentando. Na época ele tinha apenas dez
anos, passou a ter tic de arrancar cabelo e engordou, “a hora que nós olhamos nele, ele tava
gordo, entendeu, então é muito...” (sic). Segundo a mãe, “ele ficava muito sozinho, né; se
minha mãe não pudesse ficar com ele, ele ficava sozinho, então ele mesmo tem medo, às
vezes aparece uma pinta nele assim, um sangue; ó mãe o que que é isso?, ele tem medo de
28
ficar igual o G.” (sic). A partir desses fatos, pode-se inferir que G. conseguiu “excluir” o
irmão e obter toda a atenção dos pais para si mesmo. Essa necessidade de exclusão do
irmão pode ser exemplificada através do TDCF, no qual o irmão foi a figura rejeitada no
sistema familiar, e do Teste das Fábulas através da fábula do cordeirinho, na qual
constatou-se uma reação onipotente, evidenciando a rivalidade fraterna.
Na entrevista com os pais, no momento em que o pai afirma que os meninos brigam
muito, a mãe insiste em dizer que eles têm um relacionamento bom, não deixando
transparecer a existência de conflitos, conforme foi verificado na EFE nas tarefas 1 e 5. Os
pais parecem corroborar para a emergência de conflitos entre os dois filhos, “o G. fica meia
hora a mais (no computador) e o C. não pode falar nada” (sic), ou seja, eles permitem que
G. faça isso, não lhe dão o limite necessário. Segundo o pai, “a gente tem que aprender a
falar não também, a gente é difícil falar não, fala não mas depois acaba cedendo” (sic),
“então parece que eles vão montando na gente” (sic). Conforme o TDCF, a liderança é
exercida tanto pelo pai como pela mãe, e pela EFE, pôde-se verificar que a liderança
apresentou-se de forma indiferenciada, autocrática, permissiva e inadequada.
Na fase de crise, os pais acabaram deixando de impor limites, “ é que da época de
tratamento mais ficou revoltado, depois foi se acostumando com o tratamento mas hoje ele
é, ele é um pouco rebelde, acho que até pelo, porque a gente abriu muito, né” (sic), e com
isso, na fase crônica tiveram dificuldade em restabelecer os limites, “se você tratar ele
sempre bem, não falar não pras coisas que ele quer muito, ele é uma criança excelente...só
que às vezes tem umas crises de nervosismo nele, não aceita muito ordens” (sic). Segundo
o pai, “a gente evitou é...é...ficar bravo com ele, é...não ficar muito em cima”; “o G. é...é
complicado, né, dá dor no coração, então você acaba fazendo” (sic). Houve uma
dificuldade na comunicação, e também em lidar com as normas e com os conflitos,
conforme visto na EFE nas tarefas 1, 4 e 5. O pai afirmou na entrevista: “com esse negócio
de briga, eu não sei pra quem eu olho, entendeu?” (sic), “e C. também quando era moleque
era bem nervoso, não sei se é porque ele...não sei....se é porque a gente fica mais do lado do
G., sabe?” (sic); revelando a superproteção que os pais exerceram sobre G. ao longo da
trajetória da doença.
Tanto pelo TDCF quanto pela EFE, verificou-se a repressão da agressividade que
ocorre no funcionamento dessa família. Na tarefa 5, a mãe afirmou: “eu, eu faço de conta
29
que, sei lá, vou deixar pra resolver depois não vamos ficar discutindo não” (sic), e o pai:
“eu peço desculpa...ou eu corto o assunto, sei lá...desculpa e vou atender a pessoa normal”
(sic).
Na época que foi descoberto o câncer de G., também descobriram câncer de seu
avô (por parte de pai), mas segundo a mãe, “mas foi junto assim, não foi nada que abalasse
antes não” (sic). Segundo os pais, a fase da crise desestruturou toda a família,
principalmente emocionalmente, “o emocional da gente cai” (sic). Para o pai, ainda teve o
agravante de descobrir que tanto o seu filho como seu próprio pai estavam doentes e
precisavam dos seus cuidados, “meu coração mesmo arrebentou, por ele, por meu pai e
depois perdi minha mãe também depois de um ano, então foi...” (sic). Além disso, toda a
família se adapta aos cuidados necessários, “é, muda toda a família, você tem que
esterilizar o quarto, tudo, não pode entrar, não pode sair, né...não pode viajar, não pode
receber visita” (sic). Durante a fase de crise, G. se revoltou um pouco com a necessidade de
usar máscara para ir à escola, mas posteriormente já passou a aceitar os cuidados e a se
adaptar às exigências da doença, assim como fez seus pais.
Na fase crônica, observou-se uma certa instabilidade emocional, “é, então eu grito e
falo alto aí me descarrego, pronto, ele já entende isso (risos), então não é nem por eles às
vezes, por mim mesma” (sic mãe).
Como estratégia de enfrentamento, a espiritualidade apareceu como um recurso
positivo, “religiosamente nós mudamo muito, entendeu, porque o que ajudou nós foi isso”
(sic); “eu rezo (risos), eu rezo e peço pra Deus que me ajude” (sic). Uma outra estratégia
utilizada pela família foi a busca por fontes de informação a respeito da doença, “eu peguei
mania de ler tudo” (sic mãe). Isso gera uma certa aceitação da doença no contexto familiar
visando uma normalização do cotidiano.
Na fase de crise, a raiva foi mais expressa por G., sendo que a família foi mais
afetada por sentimentos de incredulidade. Na fábula 10 (Fábula do sonho mau), que tem
efeito catártico, G. expressou seu medo da morte, da doença e seu sentimento de
impotência frente esta.
Na fase de crise, ocorreu uma dificuldade em relação aos papéis. A mãe afirmou na
entrevista: “mas ele também não tem responsabilidade com o tratamento, nunca teve, ficou
tudo em cima de mim, o horário dos medicamento, tudo tudo e lógico que ele também me
30
ajudou” (sic). Apesar de ela ter expressado sua insatisfação pela “ausência” do marido, ela
logo se corrigiu a fim de encobrir mais uma vez a presença de um conflito. Através da EFE,
não constatou-se o papel do casal nas tarefas 2 e 4, sendo que na tarefa 2 o sistema parental
foi exemplificado apenas pela mãe, e na tarefa 4, a individuação e a integração foram
prejudicadas.
De uma forma geral, é importante ressaltar que a maioria das características
surgidas na EFE, não foram condizentes com o TDCF, sugerindo uma certa prevalência de
respostas defensivas por parte de G., visto que pela entrevista dos pais e pelo teste das
fábulas, conjugados à EFE, foi possível atentar para vários aspectos da dinâmica dessa
família que ficaram encobertos no TDCF.
3) Estudo Psicológico de N., 10 anos, sexo feminino, segunda filha.
Segundo o pai, o período gestacional de N. foi tranqüilo, foi a única dos três filhos
que foi planejada. Ela tem um irmão de quinze anos e uma irmã de quatro anos. Nenhum do
três filhos mamou no peito pois a mãe teve problemas em todas as amamentações. Para os
pais, o fato de N. ter sido planejada os abstém da possível culpa de ter prejudicado a filha, “
se a N. fosse uma criança que na concepção, fosse naquela época, na hora errada, será que
isso afetou alguma coisa geneticamente...” (sic).
O quadro de N. é reincidente. O primeiro diagnóstico de leucemia foi em 1999 e a
alta em 2002, mas sete meses depois, em dezembro, ela teve uma recaída e o tratamento
está previsto para terminar ao final de 2005. Antes de ser descoberta a reincidência do
câncer, N. já vinha sentindo os sintomas a dois ou três meses e não contou para os pais,
pois de acordo com o pai ela tinha medo; “parece que é um medo de querer concordar que
era aquilo” (sic), um dos sentimentos que é comumente despertado na fase de crise da
doença. Nessa época em que N. estava sentindo os sintomas, o seu avô, pai de sua mãe,
descobriu que estava com câncer. A mãe de N. enfrentou uma fase muito difícil,
desestabilizando-se emocionalmente, expressando seu sofrimento através do corpo, da pele;
desenvolvendo psoríase. De acordo com o pai, “é um problema crônico, não tem cura,
então ela tem quer ir controlando, é o emocional que sai pela pele” (sic).
Em relação aos antecedentes familiares, o pai teve uma tia que morreu há trinta anos
com leucemia e o pai da mãe tem câncer no rim e já terminou o tratamento.
31
Na fase de crise, a qual mobiliza a família para desenvolver uma flexibilidade para
se reorganizar frente à doença e aos cuidados imediatos que esta acarreta, (Rolland, 1995),
os pais se questionaram a respeito da causa da doença, “a primeira coisa que a gente vem
aqui perguntar no médico é onde a gente falhou, será que a gente deixou de alimentar
direito, né?” (sic). Além disso, eles têm medo de sentir alguma culpa, procuram
explicações, justificações para alguma possível falha que possam ter cometido durante o
tratamento, “é aquela consciência assim, se acontecer alguma coisa foi por força maior,
como se diz, uma situação que não tinha como, o que dependeu da gente, a gente procurou
fazer o melhor, né, foi além daquilo que a gente podia fazer, aconteceu porque não tinha
como, né, se evitar” (sic).
Na fase de crise também foram constatados sentimentos de superproteção, “a gente
parece que quer botar a criança dentro de uma bolha pra poder isolar ela de tudo” (sic);
principalmente por parte do pai, “a minha esposa até fala que eu to um pouco mais, mas eu
sou, eu sou até meio chato” (sic).
Desde a fase de crise e também durante todo o tratamento, a família toda passou por
transformações, “em casa a gente usa muito álcool, tem que lavar a mão porque ela é uma
entrada de infecção, então lavar a mão o dia inteiro” (sic) e adaptações como a montagem
de uma sala de aula em casa para N. ter aulas com uma professora da rede municipal de
ensino (Cássia – MG) que a visita regularmente. Além disso, N. também freqüenta aulas de
pintura e de computação pois, segundo seu pai, ela não aceita estar doente e por isso eles se
esforçam em preencher o tempo da menina. Esse sentimento de N. caracteriza a fase de
negação descrita por Kubler Ross (1987). Segundo o pai, N. tem se adaptado bem ao
tratamento, já ganhou peso e segundo ele, “ela dá mais força pra gente do que, então nesse
ponto ela, ela é nota 10 assim de...” (sic), não se deixando abater.
Segundo o pai, tanto ele quanto a mãe tentam tratá-la o mais normalmente possível,
mas durante a entrevista, ele relata que quando a menina estava com a resistência baixa e
queria ir ao clube nadar e não podia, eles acabavam comprando uma piscina menor para
que ela pudesse brincar mais individualmente. Nesse tipo de situação, N. sentia-se muito
mal e então seus pais evitavam expo-la, não levando-a a locais em que não podia participar.
Essa atitude dos pais indica uma forma de adaptação ao tratamento e também revela uma
32
superproteção na fase crônica da doença. Essa família também se utilizou da espiritualidade
como um recurso para o enfrentamento da doença durante todo o seu curso.
Ao falar das limitações e restrições impostas pelo tratamento, o pai faz uso de frases
impessoais, revelando uma resposta defensiva frente à essa situação, “é uma criança que ela
fica, o organismo mais suscetível, ela tem que usar uma máscara, né” (sic). No decorrer da
entrevista, ele também revela que N. não teve nenhum medo quando era menor e que ele
tem muitas fobias.
No decorrer da fase crônica da doença, observou-se, por parte da criança, a
necessidade de obtenção de ganhos secundários como a maior atenção paterna, “ele vai
deitar gosta que eu fico assim sentado ao lado da cama dela, ficar conversando, então já são
coisas que ela gosta assim de atenção, né” (sic). Durante a entrevista ele referiu-se à N.
como “minha menina”, sendo que na fase de crise houve um sentimento de trocar de lugar
com a filha, querer estar no lugar dela, enfrentar tudo por ela. Ao mesmo tempo observouse através do TDCF e do Teste das Fábulas que N. apresenta uma certa rivalidade com a
mãe. Na fábula 2 (fábula do aniversário de casamento), N. diz: “acho que ela não queria
ficar com a mãe na mesa” (sic), o que demonstra sua dificuldade em lidar com a situação
edípica pois exclui a mãe da cena, demonstrando sua preferência pelo pai. Na fábula 7
(fábula do objeto fabricado), a primeira fala de N. é : “a mãe, como que é a mãe dele?” (sic)
revela novamente a dificuldade de N. em se relacionar com a mãe. E na fábula 8 (fábula do
passeio com o pai), não há triangulação pois N. não se refere à mãe; e ao responder sobre o
sentimento da criança, ela diz que a criança fica com medo e sorri timidamente. Tal
situação remete a um medo persecutório, à fase esquizoparanóide caracterizada por relações
com o objeto parcial, splitting e projeção, aliadas à confusão sobre as delimitações do eu (
Skinner, 1979). No TDCF, na questão 21, N. não consegue responder ao conteúdo exato da
questão que diz respeito à atitude da mãe frente aos filhos quando estes fazem tudo
corretamente.
Correlacionando o TDCF e a EFE, há uma discordância dos resultados perante o
item “Normas”, pois segundo N. (no TDCF), as normas são omissas, o que geralmente
caracteriza algumas famílias na fase crônica da doença. Mas já em relação a liderança,
ocorreu uma concordância nos resultados, visto que no TDCF, o pai é apontado com figura
principal em relação a este aspecto, o que comprova-se na EFE através da presença de uma
33
liderança indiferenciada. Em relação aos papéis, na EFE, estes são caracterizados como
indefinidos, indiferenciados, rígidos e inadequados, o que não encontrou correspondência
no TDCF.
Através da entrevista inicial e da EFE, notou-se que o relacionamento do casal
parecia estar enfraquecido, o que desfavorece a reestabilização funcional do sistema
familiar. Foram constatados conformismo no relacionamento, conflitos encobertos e
desvalorizados, recusa da agressividade e uma comunicação confusa.
Apesar de N. estar conseguindo lidar relativamente bem com o cotidiano da doença,
ela demonstrou, no teste das fábulas, seus sentimentos negativos frente à esta doença. Na
fábula 1 ( fábula do passarinho), N. diz que ele voa baixo para outro lugar, o que sugere que
mesmo ele conseguindo explorar o ambiente, ele está prejudicado, afetado pela doença,
neste caso. Na fábula 4 (fábula do enterro), a qual possui uma função catártica, N.
responde: “o outro padre porque ele tinha câncer” (sic); fazendo uma alusão direta à
doença, apesar da pessoa afetada ser bem distante de seu núcleo familiar, revelando o
caráter defensivo da resposta.
N. realizou seu desenho (no TDCF) fazendo simultaneamente todas as cabeças em
primeiro lugar, o que indica a presença de conflitos emocionais, normalmente esperados ao
longo da trajetória de uma doença crônica.
34
Considerações Finais
Através do exame da literatura sobre o tema, dos dados obtidos durante o trabalho e
dos estudos de casos, tornou-se possível verificar o desenvolvimento psicológico das
crianças com doença crônica (câncer), e também identificar as características da dinâmica
familiar dessas em diferentes fases da doença.
Conforme foi observado no levantamento bibliográfico, a emergência de uma
enfermidade crônica, inicialmente, gera ansiedade, incredulidade, medo do futuro e da
possibilidade de perda. Nos casos estudados, todos esses aspectos foram observados,
especialmente na fase de crise.
A raiva, um dos cinco estágios emocionais descritos por Kübler Ross (1987), foi
pouca expressa nos casos 1 e 3, ocorrendo uma maior manifestação desse sentimento tanto
por parte da criança como por parte de toda família no caso 2. Já a negação por parte da
criança, foi mais evidenciada no caso 3.
De acordo com a literatura e com os casos, verificou-se o desequilíbrio e o estresse
que a doença gera inicialmente, e também como cada família busca sua própria forma de
reorganização.
Um ponto importante de se destacar nos resultados obtidos nessa pesquisa diz
respeito à busca de ganhos secundários por parte dos filhos. Em todos os casos esse aspecto
foi relevante, especialmente no caso 1, devido, provavelmente, ao histórico de perdas
anteriores sofridas pela criança (separação dos pais). O principal ganho que as crianças
buscavam foi a atenção dos pais (no caso 1, principalmente da mãe). Os pais também
acabam superprotegendo as crianças e flexibilizando os limites anteriormente estabelecidos,
o que, por vezes, acaba atingindo negativamente os irmãos, como foi evidenciado no caso
2, principalmente.
Um fator comum a todas os históricos relaciona-se às dificuldades das mães em
amamentarem seus filhos. Além disso, apenas no caso 3, o pai afirmou que a criança foi
desejada, o que, segundo ele, o abstém de uma possível culpa pela enfermidade da criança.
Segundo a literatura e o depoimento dos pais, a aquisição de conhecimento relativo
à doença colaborou para diminuir a ansiedade e os tornou mais capazes de apoiar e
melhorar a qualidade de vida dessas crianças. O relacionamento das crianças com os pais
35
teve um papel fundamental no processo de elaboração da doença e nas possíveis seqüelas
emocionais que esse tipo de enfermidade pode acarretar.
Com o decorrer do tempo, as famílias mostraram, em diferentes graus, uma maior
aceitação do diagnóstico e dos cuidados, e também uma maior flexibilidade das
expectativas frente à doença e as possíveis conseqüências a médio e longo prazo que esta
pode ocasionar. As famílias também passaram a apresentar uma comunicação mais realista,
partilha de tarefas e uma redefinição de papéis dentro do sistema familiar.
Nas famílias estudadas, a espiritualidade emergiu com um recurso positivo de
enfrentamento ao longo de toda trajetória da doença.
Tanto a literatura nessa área quanto a percepção que se pode ter de cada família,
possibilita a afirmação de que a doença crônica afeta diferentemente a dinâmica de cada
família, podendo constituir-se numa oportunidade de desenvolvimento e de redefinição de
papéis, contribuindo para a nova reconfiguração que se estabelece dentro do sistema
familiar após a emergência da enfermidade .
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