Issn 0102-0382 • ano 119 • Nº 358 • abr/mai/jun • 2011 11 de junho: aniversários do clube naval e da batalha naval do riachuelo Nesta edição: 4 editorial • A nova Diretoria para o biênio 2011/2013 6 EM PAUTA • Notas sobre acontecimentos no CN 8 11 de junho As comemorações dessa data histórica no Clube Naval 16 defesa estratégia nacional de defesa. uma brave análise • Alte-de-Esq Mario Cesar Flores estratégia nacional de defesa • Pág 16 • • Como foi tratada a Defesa Nacional, desde 1930 até o atual e complexo documento aprovado em 2008 • Mario Cesar Flores 21 atualidade a nova “união soviética” (islâmica) • Reis Friede 22 atualidade áfrica e oriente médio, da primavera direto para o outono político • CMG Roberto Carvalho de Medeiros 26 atualidade a recuperação japonesa • Fernando Malburg da Silveira 32 direito internacional bin laden e o direito internacional • José Monserrat Filho a recuperação japonesa • Pág 26 • Diante da catástrofe sofrida, o povo japonês dá um bom exemplo ao mundo • Fernando Malburg da Silveira 34 opinião além de bin laden • Claudio Fabiano de Barros Sendin 35 clube naval a praça d’armas da marinha • CMG Paulo de Paula Mesiano 38 odontologia o seu sorriso é a nossa vitória – 75 anos da odontoclínica central da marinha • Marcello José Gomes Loureiro 44 física a crise • CMG Paulo Roberto Gotag 53 marinha do brasil 43º aniversário da estação rádio da marinha (erms) em salvador 54 marinha do brasil jubileu de prata da ermn • Cap-de-Corv Eduardo Rabha Tozzini 56 marinha do brasil comando da força de submarinos completa 97 anos bin laden e o direito internacional • Pág 32 • O episódio do assassinato do líder terrorista, visto pelo prisma legal • José Monserrat Filho 58 direito adequação da legislação militar • Roberto Carlos do Vale Ferreira 62 navios da mb aviso de transporte fluvial piraim • 1º Ten Igor Corrêa 64 personalidade vida e morte do comandante lorena • Luís Severiano Soares Rodrigues 68 segunda guerra recordações de um tripulante especial do cruzador bahia • VAlte Estanislau Façanha Sobrinho 70 ensaio o curumim, visão livre • CMG Sergio L. Y. dos Guaranys 72 histórias navais a boia do magdalena • Cap-Ten Carlos Roberto Continentino Ribeiro 74 última página para que servem os militares • Citação de Barack Obama áfrica e oriente médio, da primavera direto pra o outono político • Pág 22 • Análise dos recentes movimentos sociais no Oriente Médio • CMG Roberto Carvalho de Medeiros No dia 11 de junho passado, foi comemorado o 146º aniversário da Batalha Naval do Riachuelo e o 127º aniversário do Clube Naval. Na ocasião, tomou posse a nova Diretoria para o biênio 2011/2013, composta dos seguintes membros: Presidente: Vice-Almirante (Ref) Ricardo Antônio da Veiga Cabral 1º Vice-presidente: Vice-Almirante (FN) Carlos Alfredo Vicente Leitão. Diretor do Departamento Esportivo: Vice-Almirante (FN-Ref) Paulo Frederico Soriano Sobbin 2º Vice-presidente: Contra-Almirante (RM1) Ricardo Sérgio Paes Rios. Diretor do Departamento Náutico: Capitão-de-Mar-e-Guerra (RM1) Fernando Araújo de Almeida Diretor Cultural: Vice-Almirante (RM1) José Eduardo Pimentel de Oliveira 1º Secretário: Capitão-de-Mar-e-Guerra (FN-RM1) José Joaquim Pires Diretor Social: CF (EN-Ref) Mario Márcio Simões Huguet 2º Secretário: Capitão-de-Mar-e-Guerra (T-RM1) Nilcéa Aparecida Noble Santos.. Diretor Financeiro: Contra-Almirante (IM) Francisco José de Araujo Também tomaram posse o Presidente do Conselho Diretor, Capitão-de-Mar-eGuerra (Ref) Fernando Moraes Baptista da Costa, o Presidente do Conselho Fiscal, Capitão-de-Mar-e-Guerra (IM-Ref) Haroldo Rodriguez da Cunha Fonseca, bem como os respectivos Conselheiros. Diretor da CHI: Vice-Almirante (EN-RM1) Lauro Reis Salgado Diretor da CABENA: Contra-Almirante (IM-RM1) Carlos Henrique Miranda A família naval prestigiou o evento, destacando-se a presença do Comandante da Marinha, dos Ex-Presidentes do Clube, Almirante-de-Esquadra (Ref) Alfredo Karam e Vice-Almirante (Ref) Odilon Luiz Wolstein, dos Almirantes sediados na cidade do Rio de Janeiro e de centenas de Sócios, dentre eles, jovens oficiais, que com suas esposas, noivas e/ou namoradas, respaldaram o propósito de revigoramento do Quadro Social do Clube. Na Sessão Magna comemorativa da data, foram feitas a alocução pelo Contra-Almirante José Carlos Mathias e os discursos do Comandante da Marinha, Almirante Moura Neto e do Presidente do Clube Naval, Almirante Veiga Cabral. O Prêmio Almirante Tamandaré do ano 2011 foi concedido ao Capitão-de-Mar-e-Guerra (RM1) Cláudio da Costa Braga. Registramos, também, no trimestre que se finda, a realização do 19º Salão do Mar, no período de 28 de abril a 13 de maio de 2011. Além das atividades festivas, proporcionamos aos Sócios uma variedade de eventos, o que denota o dinamismo de nossa Instituição. Issn 0102-0382 • ano 119 • nº 358 • abr/maI/jun • 2011 11 de junho: anIversárIos do clube naval e da batalha naval do rIachuelo ••• Clube Naval Av. Rio Branco, 180 • 5º andar Centro • Rio de Janeiro • RJ Brasil • 20040-003 Tel.: (21) 2112-2425 Presidente V Alte Ricardo Antonio da Veiga Cabral Diretor do Departamento Cultural Nossa capa O monumento ao Almirante Saldanha da Gama, inaugurado em 1946 durante a presidência do General Eurico Gaspar Dutra, está localizado no Jardim de Alah, no bairro do Leblon, na zona Sul do Rio de Janeiro. O Projeto é de autoria do escultor brasileiro Antônio Caringi, integrante da Academia de Belas Artes de Munique, Alemanha. Caringi ergueu um admirável obelisco alusivo à vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, utilizando bronze e granito como componentes principais de sua obra memorial dedicada ao herói Saldanha da Gama. V Alte José Eduardo Pimentel de Oliveira ••• Editoria VAlte José Eduardo Pimentel de Oliveira CMG Adão Chagas de Rezende Jornalista Responsável Antônio de Oliveira Pereira (DRT-MT. Reg. 15.712) Direção de Arte e Diagramação AG Rio - Comunicação Corporativa [email protected] (21) 2569-9651 Produção José Carlos Medeiros Atendimento Comercial Tel.: (21) 2262-1873 [email protected] ••• As informações e opiniões emitidas em entrevistas, matérias assinadas e cartas publicadas são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Não exprimem, necessariamente, informações, opiniões ou pontos de vista oficiais da Marinha do Brasil, nem do Clube Naval, a menos que explicitamente declarado. A transcrição ou reprodução de matérias aqui publicadas, em todo ou em parte, necessita da autorização prévia da Revista do Clube Naval. ••• Os artigos enviados estão sujeitos a cortes e modificações em sua forma, obedecendo a critérios de nosso estilo editorial. Também estão sujeitos às correções gramaticais, feitas pelo revisor da revista. As fotos enviadas através de e-mail devem medir o mínimo de 15cm, em jpg ou tif, com 300dpi. ••• 4 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 5 aniversário do presidente DO CLUBE NAVAL • Inauguração do Salão do Mar • A abertura do 19º Salão do Mar, o segundo mais tradicional Salão de Belas Artes do Clube Naval, aconteceu em 28 de abril. Inicialmente, às 18h, com apresentação das obras premiadas, em telão de projeção, no Salão dos Conselheiros, a entrega de troféus e diplomas aos artistas em destaque. Às 18:30h, no Salão Nobre, a abertura da exposição, quando o Presidente, Vice-Almirante Ricardo Antonio da Veiga Cabral e o Diretor Cultural, Vice-Almirante José Eduardo Pimentel de Oliveira, descerraram a fita inaugural, e foram apresentadas as diversas obras de arte, enquanto era servido um coquetel. O prêmio Aquisição, o mais importante do Salão, foi entregue ao artista plástico Roger Vianna, por sua aquarela "Marinha". Na foto, a Comissão Julgadora e membros da Comissão de Organização, em almoço de confraternização no dia 5 de abril, onde estão Mazza Francesco, (professor idealizador e fundador do Salão do Mar), Maria Helena Coelho Curti, Vice-Almirante Pimentel, Diretor do Departamento Cultural, Comte Hugo Bernardi, Comte Ronaldo Machado Cevidanes, Comte Osmar Boavista, Comte Eurico e Comte Chagas. Em 29 de junho, foi comemorado o aniversário do Presidente do Clube Naval, Vice-Almirante Ricardo Antonio da Veiga Cabral, acontecido dia 26 do mesmo mês. Reunidos inicialmente em coquetel no Salão Verde, ás 12:30h, e em seguida em almoço, no Salão Vermelho, os membros da Diretoria e suas esposas felicitaram o Presidente e sua esposa, Sra. Elsa. O tradicional parabéns e o corte do bolo foram momentos de alegria e emoção, somados aos votos de um futuro feliz ao casal e sua família. palestra do pré sal • No dia 12 de abril, no Salão dos Conselheiros, o Assessor Técnico da Gerência Executiva do Pré Sal da Petrobras, Dr. Alberto Sampaio de Almeida, proferiu oportuna palestra para sócios e convidados, entre eles o Presidente, Vice-Almirante Ricardo Antonio da Veiga Cabral. Ao final, foi entregue um diploma em reconhecimento ao palestrante por seu trabalho envolvendo um tema de vital interesse para o Brasil. eventos e comemorações na sede social Turma Bauclair, de 1943, troca de presidente em concorrido almoço • O Comte Marcelo de Lyra assumiu a presidência da "Turma Bouclair", sucedendo o Comte Jorge Manuel da Purificação. Junto à turma de 1943, os oficiais e suas esposas, estava oVice-Almirante Veiga Cabral, Presidente do Clube Naval, participando do almoço do dia 15 de junho e desejando um promissor mandato ao novo dirigente. eleições para presidente 2011 • Os sócios mais antigos representam a memória viva do Clube, suas presenças e relatos retratam fielmente os fatos que, somados, traduzem a sua história. Com muita alegria, o Presidente, Vice-Almirante Veiga Cabral, recebeu o Vice-Almirante EN Abel Campbell de Barros, 98 anos de idade, quando de sua visita à Sede Social, para exercer seu direito de votar. Exemplo da democracia que sempre alicerçou os destinos do Clube, regido desde sua fundação por administrações representativas da vontade dos Sócios. 6 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 7 eventos e comemorações na sede social O11 DE JUNHO NO CLUBE NAVAL 11 DE JUNHO Alocução da Capitão-de-Mar-e-Guerra (Md-RM1) Sheila Aragão de Andrada Cerimônia cívica em homenagem ao Almirante Saldanha da Gama A linha da história nos traz aqui pela primeira vez para enobrecermos um calendário onde datas muito significativas são alinhavadas num tecido que, bordado, exibe monumento a Saldanha da Gama para nossa lembrança a silhueta de homens memoráveis e recebeu expressiva comitiva do Cludesenhos epopeicos dos méritos de nossa Marinha. be Naval, no dia 10 de junho, às 9h, Nesta convergência de comemorações de momentos ocasião em que o presidente do Clube históricos, exaltamos a Batalha Naval do Riachuelo, data Naval, Alte Ricardo Antonio da Veiga CaMagna da Marinha na figura de nosso patrono Alte Tamanbral, fez aposição floral em homenagem daré e, celebramos os 127 anos do Clube Naval, reunidos em ao Alte Luiz Filipe de Saldanha da Gama, frente ao Monumento do Almirante Saldanha da Gama. em comemoração ao 146º aniversário Com honra patriótica e nobres espíritos, enfileiraramda Batalha Naval do Riachuelo e 127º CMG Sheila Aragão fala aos presentes se diversos vultos em nome da Marinha do Brasil, mas aniversário do Clube Naval, do qual foi durante o evento alguns deles são exemplos tão fiéis de inteligência, corafundador e presidente. gem, bravura e lealdade, que representarão sempre essa gama de A praça Almirante Saldanha da Gama, Jardim de Alah, Leblon, homens que marcaram sua época e legaram às seguintes a força de RJ, onde se localiza o monumento tornou-se o local escolhido para suas palavras e de suas ações. a expressiva homenagem, realizada anualmente. O espaço aberto e a Um desses ilustres homens foi Luiz Philippe de Saldanha da beleza natural proporcionam ambiente adequado para a perfeita inGama, nascido em Campos dos Goytacazes no ano 1846. Já na tegração da sociedade civil com os militares da Marinha do Brasil que infância destacou-se por sua inteligência e, aos 14 anos, ingressou por dever e honra patriótica homenageiam esse importante oficial. como aspirante a Guarda-Marinha da Escola da Marinha. O Coro do Clube Naval, sob a regência da Maestrina CMG (S-RM1) Com 18 anos apenas, quando o Alte Tamandaré, durante a CamSylvia da Costa Orazem, interpretou um Hino para o Clube Naval. panha Oriental, iniciou o cerco a Paissandu, o então Guarda-Marinha A cerimônia teve a participação de autoridades civis e militares Saldanha da Gama, embarcado na Fragata Amazonas, dirigiu-se ao da Marinha, Exército e Aeronáutica, de estudantes e do público rio da Prata onde participou pela primeira vez de uma ação militar, habitualmente frequentador do local. A todos foi proporcionada assim recebendo seu batismo de guerra contra o Uruguai. Sua braa oportunidade de estar em convívio com fatos da História do vura nessa guerra foi louvada pelo Alte Tamandaré. Brasil e seus heróis. Casou-se com D. Emília Josefina de Melo e, por um longo períComo tradicionalmente acontece foi proferida alocução, odo, esteve embarcado em diversas ações militares. publicada a seguir, em exaltação às datas históricas e ao Alte Aos 23 anos, quando promovido a Capitão-Tenente, equivalente Saldanha da Gama. hoje a Capitão-de-Corveta, aprimorou-se intelectualmente. O jovem oficial devido a sua fluência em línguas que mais tarde somaram-se diversas, entre elas francês, inglês, espanhol, com conhecimento, também, da língua italiana e alemã, teve gosto pela leitura e, com O 8 Revista do Clube Naval • 358 cartas ao seu pai na campanha paraguaia, abriu um caminho de escritor com diversas obras impressas. Com inteligência aguçada e elegância, atuou como um verdadeiro diplomata quando o Império o escolheu para representá-lo junto à Exposição Internacional de Viena, em 1873. Aos 30 anos foi designado membro da Comissão que representaria o Brasil na Exposição Internacional da Filadélfia nos Estados Unidos. Aos 33 anos, depois de integrar a Missão Especial à China, já como Capitão-de-Fragata, assumiu o comando da Corveta Paraíba e dirigiu-se a Buenos Aires como Delegado do Império na Exposição Continental. Seus conhecimentos foram expandidos até a ciência astronômica e levaram o Imperador a designá-lo para conduzir a Missão do Dr. Louis Cruls, em Punta Arenas no Chile, onde devia assistir à passagem do planeta Vênus pelo disco solar. Como a mente de um homem brilhante não descansa, em busca de componentes que coroem o tempo com novas ideias sempre em prol de seu grupo, sua classe, sua instituição e seu país, Saldanha da Gama vislumbrou a união de pessoas que formariam um clube, o nosso hoje homenageado Clube Naval. Foi um militar obstinado e disciplinado, um comandante vigoroso e reconhecido pelos seus comandados. À frente da Escola Naval que havia passado por períodos de muita indisciplina, seu prestígio aumentou. Foi um diretor exigente que modificou a instrução militar, implantando liderança e, entre outros itens, noções de boas maneiras. Homens assim edificaram uma Marinha como a nossa, na tradicional excelência e no trato. Num momento de transição política do país até a sua derradeira batalha em Campo de Osório, em 24 de junho de 1895, este homem não foi um guerreiro selvagem e intempestivo. Foi sua educação, sua personalidade, suas opiniões pessoais e sua postura política que o endereçaram a conflitos partidários. A Nação continuou seu curso histórico e Saldanha da Gama pertence hoje a esse quadro dinâmico como um representante heroico da Marinha do Brasil. Viveu e morreu deixando ecoar uma existência para além de seu consagrado uniforme. Era um ser humano fiel a seus princípios. Passados 127 anos, quando tomamos conhecimento hoje das iniciativas da atual Presidência do Clube Naval que implanta o ensino da língua mandarim, entre outras atividades que se tornam ferramentas expressivas para um mundo globalizado e contem- Revista do Clube Naval • 358 porâneo, podemos enxergar o passado como uma colcha colorida que nunca acaba de ser costurada pelas ideias daquele Almirante. Podemos ouvir sua voz reverberando na atualidade, ensinando-nos a nos reprogramar e a manter sempre acesa a chama do orgulho de sermos homens e mulheres embarcados no seu mesmo navio, o navio ideológico de Saldanha da Gama, o navio itinerante da nossa história, um navio construído pela Marinha do Brasil. Muito obrigada! Missa em Ação de Graças N a manhã do dia 10 de junho, às 11h, realizou-se na Igreja da Santa Cruz dos Militares, a Missa em Ação de Graças, dedicada à Marinha do Brasil, ao Clube Naval, por seus 127 anos, aos seus sócios falecidos e atuais sócios e administradores. Reconhecendo o dom da vida e o trabalho que dignifica o ser humano, o presidente do Clube Naval, Alte Ricardo Antonio da Veiga Cabral, e sua esposa, os membros da Diretoria e inúmeros convidados, participaram da Santa Eucaristia. O Coro do Clube Naval, regido pela Maestrina Sylvia da Costa Orazem, se apresentou na celebração, pela primeira vez, entoando todos os cantos litúrgicos, emocionando principalmente no canto da comunhão. Após a benção final, exaltando a união pelo amor em Cristo, os homens do mar se confraternizaram, com votos de paz e confiança na construção de um futuro sempre promissor para o Clube Naval. 9 Sessão Magna O Comandante da Marinha, Alte-de-Esq Júlio Soares de Moura Neto, em seu discurso, na Sessão Magna Renovando o compromisso e honrando a tradição. N o dia 11 de junho, às 21 horas, teve início a principal solenidade realizada anualmente no Clube Naval, presidida pelo Presidente do Clube, a Sessão Magna em Homenagem à Batalha Naval do Riachuelo, data Magna da Marinha e ao 127º aniversário do Clube Naval. Neste 127º aniversário do Clube Naval, na presença do Comandante da Marinha Almirante-de-Esquadra Julio Soares de Moura Neto, do ex-Ministro da Marinha Almirante-de-Esquadra Alfredo Karam, do Presidente do Clube Militar General-de-Exército Renato Cesar Tibau da Costa, do Presidente do Clube de Aeronáutica Tenente-Brigadeiro-do-Ar Carlos Almeida Batista e de membros da diretoria do Clube Naval e demais autoridades, civis e militares, sócios e convidados o Presidente do Clube Naval Vice-Almirante Ricardo Antonio da Veiga Cabral renovou seu compromisso de, eleito que foi por mais dois anos de mandato, dedicar sua vida ao Clube, no biênio que se inicia em 2011. Em seu discurso de Posse o Alte Veiga Cabral ressaltou fatos de sua administração anterior e, com orgulho, prometeu uma trajetória de novas conquistas para o Clube. Alocução comemorativa, proferida pelo Contra-Almirante José Carlos Mathias Na foto anterior, a mesa de abertura do Sesão Magna estabelecimento da livre navegação nos rios da região. Nesse tratado, assinado em 1º de maio de 1865, os aliados firmaram que a guerra não seria travada contra o povo paraguaio e sim contra o seu governo, estabelecendo-se que o Comandante-emChefe dos exércitos aliados seria o General Argentino Bartolomeu Mitre e que as forças navais ficariam sob o Comando do VA Visconde de Tamandaré, Comandante-em-Chefe das forças navais brasileiras que já se encontrava na região cuidando da questão uruguaia. Tamandaré estabeleceu um bloqueio naval, no intuito de impedir que a esquadra paraguaia atingisse o Atlântico ou recebesse o reforço de navios contratados junto a estaleiros ingleses. Dividiu suas forças em três divisões: uma sob seu comando direto que permaneceu no rio da Prata, com base em Montevidéu e outras duas que operaram no rio Paraná, apoiando as tropas aliadas em sua reação contra o avanço paraguaio em território argentino. No intuito de recuperar a cidade Argentina de Corrientes, que havia sido tomada pelas forças paraguaias, Tamandaré determinou que o Comandante da 2ª Divisão, o Almirante Francisco Manuel Barroso da Silva, “Chefe Naval” experiente a quem conhecia desde jovem e em quem confiava totalmente, subisse o rio Paraná e apoiasse um ataque à cidade com desembarque de tropas aliadas. Em 25 de maio de 1865, as forças aliadas atacaram Corrientes e, apesar do bom êxito inicial, tiveram que reembarcar as tropas, fazendo com que a força naval brasileira permanecesse fundeada em suas imediações, no rio Paraná, até o dia 11 de junho, quando é atacada pela força naval paraguaia e ocorre então a Batalha Naval do Riachuelo. Solano Lopez percebeu, após o ataque das forças aliadas a Corrientes, que a presença da esquadra brasileira no rio Paraná impedia que suas tropas avançassem para o sul, ameaçando permanentemente seu flanco direito, e planejou pessoalmente o ataque que deveria surpreender, ainda fundeados, os valorosos navios brasileiros: a Fragata Amazonas (Capitânea); as Corvetas Jequitinhonha, Beberibe, Parnaíba e Belmonte e as Canhoneiras Mearim, Araguari, Iguatemi e Ipiranga. Ao final daquele inesquecível domingo de céu azul, quase ao pôr do sol, após mais de nove horas de batalha contínua, a vitória era brasileira. Não há dúvidas de que o grande herói do dia foi Barroso É com muita honra que participo desta Sessão Magna, a convite do Presidente do Clube Naval, para proferir a alocução comemorativa do 146o aniversário da Batalha Naval do Riachuelo, Data Magna da Marinha, neste ano em que nosso Clube, fundado pelo então Capitão-de-Fragata Luiz Philippe de Saldanha da Gama, completa 127 anos de existência. É, pois, com muita satisfação que o faço, não só pela importância desta efeméride para todos os brasileiros e em especial para nós Oficiais de Marinha, mas também por estar neste querido Clube, do qual sou sócio há mais de 30 anos, falando para uma plateia tão distinta. É ocasião oportuna para relembrarmos o que nos levou a participar deste Combate e quem foram os notáveis brasileiros que propiciaram esta primeira grande vitória, resultado de batalha decisiva que marcou uma inversão de expectativas em um conflito que até então nos era amplamente desfavorável. Estamos falando da Guerra da Tríplice Aliança que, entre 1865 e 1870, reuniu o Brasil, a Argentina e o Uruguai contra o invasor paraguaio que, à época, possuía um exército de 77 mil homens, em muito superior às tropas dos aliados disponíveis na região. Em 1864 a República paraguaia, cuja independência só foi formalmente proclamada em 1842, era conduzida pelo ditador Francisco Solano Lopez, sucessor de seu pai que foi presidente por quase 20 anos. Solano Lopez tinha sérias desconfianças em relação aos três países vizinhos devido às questões de limites não solucionadas. Havia por parte dos paraguaios a reivindicação de território no Mato Grosso, parcialmente ocupado por brasileiros; mas o verdadeiro estopim da guerra foi as ações brasileiras no conflito interno do Uruguai. Em novembro de 1864, o governo paraguaio capturou o Navio brasileiro Marquês de Olinda, que se encontrava em Assunção, invadiu com suas tropas o atual estado do Mato Grosso do Sul e posteriormente o território da Argentina, tirando-a de sua posição de neutralidade e possibilitando então a assinatura do tratado da Tríplice Aliança com a finalidade explícita de obter o fim da ditadura de Solano Lopez, a resolução definitiva dos litígios de fronteira, e o 10 Revista do Clube Naval • 358 que, com sua postura ousada, ao utilizar a proa da Amazonas como aríete para afundar os navios inimigos e seu destemor, ao ordenar “Atacar e destruir o inimigo o mais perto que puder”, foi determinante no resultado do confronto. Vale mencionar que, em todos os navios ocorreram fatos heroicos importantes, certamente motivados pela ordem do Comandante-em-Chefe “Sustentar o fogo que a vitória é nossa”. Gostaria de destacar, nesta oportunidade, a atuação destemida O CAlte José Carlos Mathias em sua alucução Revista do Clube Naval • 358 do Chefe do Rodízio da Corveta Parnaíba o Imperial Marinheiro de 1ª Classe Marcílio Dias. Marcílio Dias já tinha experiência em combate, havia sido condecorado com a Medalha Paissandu, pela bravura com que participou da tomada da Vila de Paissandu, durante a campanha oriental quando, ao final de 27 dias de peleja e as tropas brasileiras obtêm sucesso, é ele quem desfralda o pavilhão auriverde no alto da torre da Igreja Matriz. A Corveta Parnaíba viveu um dos momentos mais dramáticos dos combates desse dia. Último navio da coluna brasileira, foi atacada por três navios paraguaios e conseguiu avariar seriamente um deles, porém foi abordada por BB e BE pelos Vapores Taquari e Salto. A partir de então, calaram-se os canhões e passou-se à luta corpo a corpo, contra um inimigo numericamente superior para - em meio a atos de bravura, ousadia e extremo sacrifício pessoal - defender o território brasileiro invadido. O herói Marcílio Dias está na primeira fileira de defesa. Imortalizou-se nesse dia pela bravura e coragem demonstrada ao sustentar uma luta de sabre contra quatro inimigos ao mesmo tempo. Insensível às dores, matou dois dos atacantes mas é ferido mortalmente e perde seu braço direito, vindo a falecer no dia seguinte. Sua ação destemida e de outros heróis desse dia como o Guarda-Marinha João Guilherme Greenhalgh, que morreu defendendo o pavilhão nacional, impediram que o navio fosse tomado pelo inimigo. Mas quem foi esse marinheiro heroicamente morto no cumprimento do dever? Marcílio Dias nasceu na cidade de Rio Grande, em 1838, e aos 17 anos foi enviado, como voluntário, para a Companhia do Corpo de Imperiais-Marinheiros, à época instalada na Ilha de Villegaignon, no Rio de Janeiro, sob o comando do então Capitãode-Mar-e-Guerra BARROSO, onde sentou praça no Corpo de Imperiais-Marinheiros, como Grumete, no dia 6 de agosto de 1855. Permaneceu nesta Escola de Formação de Marinheiros, recebendo instrução militar (entre elas manejo de armas) até 17 de janeiro de 1856, quando embarcou na Fragata Constituição. Em 1863, já Marinheiro de 2ª Classe, foi matriculado na Escola Prática de Artilharia, que então funcionava a bordo da Fragata Constituição. Esse curso constava de uma fase teórica e de uma fase 11 prática, com um “cruzeiro de 45 dias em navio misto com diversos exercícios de tiro real”. Na fase teórica com currículo já bastante abrangente, com 26 matérias, entre as quais noções de aritmética, e conhecimento prático dos princípios de balística, utilizavam o Manual de Artilheiro do então Primeiro-Tenente Henrique Antonio Batista, que mais tarde viria a ser o Patrono dos Armamentistas da Marinha, reverenciado anualmente no dia 15 de maio, Dia do Armamentista. Marcílio Dias terminou o curso com distinção, sendo um dos 15 que lograram êxito em 51 que o iniciaram, e adquiriu o direito de usar o Distintivo de Marinheiro-Artilheiro. Militar exemplar, que jamais sofreu qualquer punição, com espírito no culto da disciplina, obediente, respeitador, exemplo completo de lealdade aos chefes e aos seus companheiros, “a praça mais distinta da Parnaíba”, conforme registrou seu Comandante o CT Aurélio Garcindo Fernandes de Sá. É importante lembrar que até 1836, as guarnições dos navios de guerra brasileiros eram constituídas de alguns marinheiros volun- tários (sem nenhuma capacitação formal), marinheiros estrangeiros contratados e em boa parte por marinheiros recrutados à força, homens que, em sua maioria, não sabiam ler nem escrever. Essa situação começou a mudar a partir do Decreto nº 49, do Governo Imperial, de 22 de outubro de 1836, que criou quatro companhias fixas de marinheiros, compostas de cem praças cada uma, com a tarefa de ministrar instrução primária e aprendizagem nas artes do marinheiro, do artilheiro e do fuzileiro, aos jovens de 14 a 17 anos de idade. Em seguida, é criado o Corpo de Imperiais-Marinheiros e as Companhias de Aprendizes-Marinheiros, destinadas a dar melhor preparo aos jovens que quisessem seguir a carreira naval. Em 1885, essas Companhias passam a se chamar Escolas de Aprendizes-Marinheiros, e são a origem das atuais Escolas, que em número de quatro, localizadas em Fortaleza, Recife, Vitória e Florianópolis, continuam perseguindo o mesmo propósito de formar marinheiros para o Corpo de Praças da Armada, assegurando o preparo intelectual, físico, psicológico, moral e militar-naval de O Presidente do Clube Naval, VAlte Ricardo Antonio da Veiga Cabral, em seu discurso Discurso do Presidente A data que hoje comemoramos, magna da Marinha do Brasil, pelo 146º aniversário da Batalha Naval de Riachuelo, coincide, também, com o 127º aniversário do Clube Naval e, a cada biênio nos anos ímpares, com a posse dos membros da Diretoria, Conselhos Diretor e Fiscal de nossa centenária instituição. Hoje, portanto, é um dia muito especial. Renovaremos o compromisso de bem conduzir os destinos do nosso Clube. Compromisso que, repito, renovamos com muito orgulho por representarmos o desejo do corpo social que nos elegeu dia 31 de maio passado de forma tão expressiva. Por outro lado, cresce a nossa responsabilidade em corresponder aos anseios da classe. Esperamos responder com muito trabalho, determinação e entusiasmo. Novas propostas e realizações se impõem, mas elas só 12 cerca de 2.200 novos marinheiros a cada ano. Por volta de 1850, diante da evolução tecnológica dos navios a vapor e da artilharia, a Marinha Imperial observou a necessidade de formar especialistas e criou a Escola de Exercícios Práticos de Artilharia e em seguida fundou a Escola de Maquinistas. Essas Escolas de Especialistas e as Companhias Fixas de Marinheiros são a origem do nosso atual Centro de Instrução Almirante Alexandrino que com quase 175 anos de existência e organizado em nove Escolas (Armamento e Convés, Máquinas e Artífices, Eletricidade e Eletrônica, Comunicações, Administração, Taifa, Cursos de Formação, Ensino à Distância e Qualificação Técnica Especial) tem a tarefa de formar, especializar e aperfeiçoar cerca de 5.500 praças da Marinha do Brasil por ano. A Batalha Naval do Riachuelo, ocorrida há exatos 146 anos, foi a primeira grande vitória dessa guerra que motivou e impulsionou as forças aliadas a perseguirem o triunfo final, ocorrido cinco anos depois. É, também, um marco inconteste do preparo e até mesmo das tarefas do dia a dia da vida administrativa, estamos dispostos a ajudar e seremos solidários, sensibilizando a opinião pública por meio de palestras e publicações relacionadas à imagem da Força, ressaltando a importância da Marinha para o país, tanto na Amazônia azul, quanto na Amazônia verde e no Pantanal. Por outro lado, sabemos que o componente mais valioso da Instituição é o seu pessoal. Por ele pugnaremos sempre visando à melhoria e ao equilíbrio salarial entre a ativa e a reserva bem como a previdência dos militares. Só se trabalha bem quando se está conscientemente satisfeito com as respectivas famílias felizes e realizadas em seus anseios e projetos de vida. Para tal, continuaremos a assumir posições conjuntas com os demais clubes coirmãos, Militar e de e do brio do marinheiro brasileiro, ainda hoje motivado pelo sinal içado por Barroso ao início da batalha: “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever”. A Marinha do Brasil, ainda hoje motivada pelos feitos heroicos do 11 de junho, busca aperfeiçoar a capacitação de seu pessoal, nosso maior patrimônio, atuando em duas vertentes, na ampliação e na modernização de nossas Escolas. A primeira ação visa atender à necessidade de aumento de nosso efetivo de oficiais e praças, recentemente aprovado pela Lei nº 12.216/2010, que permite à Marinha incorporar cerca de 21 mil homens até 2030, e a segunda para, como diz a Canção do CIAA: “Formar profissionais/ Prontos para guarnecerem/ Os modernos meios navais/ Bravos homens aguerridos/ Com missão em terra, mar e ar”. Homens que guarnecem com eficiência nossos meios atuais e que em breve estarão guarnecendo também nosso submarino nuclear. “Tudo pela pátria – rumo ao mar.” Viva a Marinha! Muito obrigado! Aeronáutica, em assuntos relevantes que afetem nossas Forças Armadas. O biênio que hoje se encerra, marcou a celebração do centenário da nossa sede social, motivo de orgulho de todas as gerações de oficiais. Procuramos mantê-la digna de nosso respeitável patrimônio, iluminando-a como uma joia na avenida mais representativa do Centro do Rio de Janeiro. Obras de recuperação e melhorias das instalações também foram executadas, tanto na Sede quanto no Piraquê e no Charitas. A informatização atualizada interligando os Departamentos, a CHI, a Cabena, e a Secretaria, está em plena execução, assim como o sistema de contabilidade unificado, medida há muito necessária para o correto podem ser postas em prática se contarmos com apoio e a participação de todos. Esperamos, assim, a colaboração do quadro social do Clube, que aliás, oportuno mencionar, nunca nos faltou nos dois anos anteriores. Sempre foi meta primordial trabalharmos em plena harmonia e em estreito relacionamento com os Sócios, visando ao bem-estar de todos, tornando nossas sedes ambientes de agradável convívio, leve e respeitador das diversas correntes de opinião, próprias e naturais de todo ser humano. Nossa intenção é preservar esse clima, não deixando de levar em conta outros tópicos importantes. Entre eles, o empenho em manter um diálogo franco e cordial com o comando de nossa Força, o que, por sinal, temos realizado com muita satisfação e pleno sucesso com o Alte Moura Neto, seu Comandante. Conhecedores das restrições que o orçamento impõe à Marinha, dificultando a realização de suas metas prioritárias Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 13 relacionamento com a Receita Federal. Novos escritórios de advocacia foram contratados para a eficiente defesa dos interesses do Clube. Na área social, o Baile do Marinheiro está, a cada ano, mais se firmando no calendário do Clube, assim como as festas temáticas relativas aos costumes e tradições de nossos estados e de países detentores de características folclóricas mais significativas no cenário internacional. Foram criados, também, o Hino e o Coral do Clube Naval que têm dado um colorido muito especial às nossas solenidades. Os inúmeros encontros promovidos pelo Clube com a oficialidade dos navios e estabelecimentos, bem como dos grupos de interesse, têm procurado atender à meta de difundir nossas atividades no meio naval. As facilidades criadas para a vida do Sócio, como o posto avançado do Serviço de Distribuição de Medicamentos (Sedime), o atendimento médico e de nutricionista na Sede têm sido muito bem recebidas, assim como as implementações efetuadas em nosso restaurante Praça D’Armas e as novas alternativas de estacionamento no Centro da cidade. Tudo isso tem sido feito visando aumentar a motivação e a frequência dos sócios à Sede, principalmente da oficialidade mais jovem. A esse respeito, temos procurado, por meio de palestras na Escola Naval, no CIAW e com a secretaria itinerante aumentar nosso quadro social, divulgando as atividades do Clube e incentivando os jovens a juntarem-se a nós. Junto ao monumento a Saldanha da Gama, que todo ano reverenciamos, como fundador dessa nobre Instituição, assumimos o compromisso de manter suas tradições de valor, coragem moral e descortino. De olhos postos no futuro queremos vê-la moderna e atualizada, compartilhando com a sociedade brasileira seus avanços para o desenvolvimento almejado de nossa nação. O desafio é grande, mas nossa determinação e entusiasmo não serão menores! Agradeço a presença de todas as autoridades, associados e demais convidados e de seus familiares que aqui comparecem, abrilhantando a Sessão Magna e esta cerimônia de posse. Vamos brindar com muita alegria a data de hoje, com a nossa confraternização de gala de 11 de junho de 2011. Honras a Riachuelo! Parabéns ao nosso Clube Naval!! Baile de Gala na Sede Social Entrega do Prêmio Marquês de Tamandaré 2011. Na foto, o vencedor do concurso, CMG Claudio da Costa Braga(esquerda), o Alte-de-Esquadra Alfredo Karam (centro) e o CMG Adão Chagas de Rezende O Presidente do Clube Naval, Vice-Alte Ricardo Antonio da Veiga Cabral, o Comandante da Marinha, Alte-de-Esquadra Júlio Soares de Moura Neto e o Ex-Ministro da Marinha, Alte-de-Esquadra (Ref.) Alfredo Karam cortam o bolo A música emociona e agita, aflora recordações, a gastronomia é de excelente qualidade, a decoração proporciona conforto e beleza. O Presidente do Clube, Alte Veiga Cabral, e o Comandante da Marinha, Alte Moura Neto, percorreram os diversos ambientes, cumprimentando a todos, repetindo o mesmo trajeto de 1910, quando o O prédio da Sede Social do Clube Naval se transforma, torna-se jovem aos 101 anos, recebe convidados em traje a rigor, desperta a atenção do público passante, exala história e cultura, faz acontecer no Corredor Cultural da Cidade do Rio de Janeiro. O Baile de Gala do 11 de Junho, tão aguardado pelos sócios e convidados, é exemplo de organização, alegria e confraternização. Os andares ficam repletos, desde jovens Oficiais até veteranos Almirantes, é a Marinha do Brasil, que se mostra vigorosa, fraterna, unida. presidente da República Nilo Peçanha acompanhado do Presidente do Clube Naval VA J. J. de Proença assim também procederam, após a primeira Sessão Magna. O momento do “Parabéns para você” celebra 127 anos de história e tradição do nosso glorioso Clube Naval.. n Oficiais, em grupos, brindam o 11 de junho, enquanto o Baile de Gala sela com alegria os festejos dessa data tão importante para o Clube Nval, a Marinha e o Brasil. 14 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 15 defesa ESTRATÉGIA NACIONAL DE Uma breve DEFESA análise A provada há mais de dois anos, qual foi até agora a repercussão da END no Congresso Nacional, órgão inerentemente vinculado ao assunto e por ele corresponsável numa democracia? Não houve, ao menos em termos de despertar a atenção da mídia e da opinião pública. Tampouco houve repercussão na intelligenzia nacional (universidades) e em setores econômicos relacionados com o assunto – a indústria de interesse da defesa. Quanto ao próprio Poder Executivo, o decreto que aprova a END contém esse preceito: “os órgãos e entidades da administração pública federal deverão considerar, em seus planejamentos, ações que concorram para fortalecer a defesa nacional”. Em tópico sobre a implementação da estratégia de defesa são citadas recomendações nos campos da energia, transporte e comunicações. Estarão sendo elas praticadas? Dada a tendência histórica brasileira de estanqueidade funcional, não é seguro que isso venha ocorrendo... A END reconhece toda essa deficiência e preconiza sua superação para que “a Nação participe da defesa”. A END foi elaborada por Comissão (Comitê Ministerial) dirigida pelo Ministro da Defesa, coordenada pelo Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos e integrada pelos Ministros do Planejamento, Fazenda e Ciência e Tecnologia, “assistidos” pelos comandantes das três Forças, ouvidos especialistas e pessoas de reconhecido saber no campo da defesa. É no mínimo curiosa a não participação (ao menos a não participação formal, explicitada no documento) de representante do Ministério do Exterior, cuja contribuição seria supostamente fundamental numa estratégia de defesa. A formulação teria de fato ocorrido sem o aporte daquele ministério? Improvável... Apesar da configuração heterogênea da Comissão, é sensível no seu produto a influência singular do Ministério da Defesa, da SAE (de seu titular à época do preparo do documento e seu coordenador) e das próprias Forças, cujos axiomas Mario Cesar Flores * A Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada pelo Decreto no 6.703, de 18 de dezembro de 2008, é um documento complexo e abrangente sobre a defesa nacional em seus vários aspectos e temas interativos, militares e civis. De 1930 até meado dos 1980 tivemos como documento orientador o Conceito Estratégico Nacional, com sua avaliação da situação e suas diretrizes, formulado pelo então Conselho de Segurança Nacional e rigorosamente mantido sob alto grau de sigilo; poucos militares do alto escalão o conheciam! E no pós-Constituição de 1988 tivemos “políticas de defesa”, em geral superficiais e vagas. Todos, documentos de precária (se tanto) utilidade para estimular o interesse nacional no tocante à defesa; no caso do Conceito Estratégico, até porque não havia acesso público a ele. A END, pelo contrário, é aberta ao conhecimento público. Mas está interessando à opinião pública, ou mesmo ao mundo político? Aparentemente não. A despeito da importância do seu conteúdo, é raro encontrar qualquer manifestação sobre ela, na mídia. 16 Revista do Clube Naval • 358 tradicionais, desenvolvidos com autonomia ao longo da história, transparecem no documento. A END pretende orientar a modernização do sistema de defesa nacional, com a reestruturação das Forças e da indústria da defesa, bem como a revisão da “política da composição humana” das Forças – objetivos desenvolvidos em considerações e orientações em geral positivas, ainda que algumas sujeitas a dúvidas ou mesmo discutíveis, como veremos. Seria inviável em artigo como este comentar os inúmeros detalhes da END, que se desdobram e se complementam em muitos tópicos temáticos interativos, distribuídos em dois capítulos: formulação e implementação. O artigo focaliza seletivamente alguns aspectos dos temas tratados no documento, particularmente relevantes e/ou que merecem ponderações sobre suas circunstâncias e realidades. Comecemos com o Ministério da Defesa. A END procura consolidar e prestigiar o ministério – um propósito imposto naturalmente pelo fato de ser o Ministério da Defesa uma inovação colidente com a longa tradição de autonomia corporativa das Forças. Deixa clara a direção do Ministro sobre as Forças – “O Ministro exercerá, na plenitude, todos os poderes de direção das Forças Armadas que a Constituição e as leis não reservarem, expressamente, ao Presidente da República” –, centraliza a “política de compras” e através de seu Estado-Maior Conjunto Revista do Clube Naval • 358 “construirá as iniciativas que deem realidade prática à tese da unificação doutrinária, estratégica e operacional” das Forças. Preconiza até mesmo a formação de quadros de especialistas civis em assuntos relacionados com a defesa nacional, sem os quais o Ministério da Defesa não atingirá sua maturidade. Diz a END: esses especialistas “...permitirão, no futuro, aumentar a presença de civis em postos dirigentes do Ministério da Defesa”. Detalhe importante: a END estabelece que cabe ao Ministro indicar ao Presidente da República os Comandantes das três Forças. Esse preceito aponta caber ao Ministro da Defesa a intermediação da subordinação do sistema militar ao poder político – intermediação que significa uma ruptura com nosso passado. Outro assunto relevante, a que a END se reporta várias vezes: a integração das três Forças. A ideia é correta e vem se aplicando no mundo desenvolvido e de poder militar eficiente, onde está sendo integrado o que é possível integrar, nos campos estratégico, operacional, logístico e tecnológico. Ela preconiza “unificar as operações das três Forças...” e dispõe que “...os instrumentos principais dessa unificação serão o Ministério da Defesa e o ...Estado-Maio Conjunto...”. Em coerência com a ideia integralizante, preconiza até mesmo a coincidência territorial dos Comandos Regionais das três Forças e a existência neles, de Estados-Maiores (regionais) Conjuntos. No Brasil a integração não tem concretização fácil e tranquila, em razão da nossa cultura de autonomia. Ao longo da história brasileira cada uma das Forças cultivou preocupações e prioridades que lhes são peculiares e respondem às suas perspectivas corporativas, à margem de uma escala nacional integrada – prática para a qual concorre há muitos decênios a apatia do poder político pela defesa nacional. A tradição de autonomia corporativa das Forças, além de discutível sob a perspectiva objetiva da defesa nacional, em que a tecnologia vem evidenciando a integração, está em choque com as restrições financeiras. Realmente: quando a relação integrada de prioridades é a soma das relações corporativas singulares de prioridades e tudo é igualmente prioritário, o atendimento racional, com recursos curtos, torna-se impraticável. Esclarecendo: a END define como primeira missão da Marinha a negação do uso do mar (ao eventual inimigo...) – missão estratégica naval consagrada, de 17 defesa do país contra agressão que se manifeste pelo mar – e, para isso, os submarinos nela corretamente enfatizados são eficientes, os convencionais e mais ainda os nucleares. Entretanto se a preocupação nacional maior diz respeito à defesa da Amazônia, essa ênfase naval prioritária se justifica em se tratando de ameaça clássica de grande potência, que inclua o acesso à área pelo mar (atualmente, a única grande potência capaz disso são os EUA...). Se a ameaça mais preocupante for a irregular (guerrilha, criminalidade transnacional em suas diversas modalidades) ou mesmo regular, de Estado regional (hoje inverossímil, embora não impossível), a participação dos submarinos seria respectivamente nula ou secundária. A integração de prioridades é tema crítico e complexo. A END não o aprofunda, talvez (conjectura do autor desse artigo) para não acicatar o ressentimento das visões corporativas das Forças e para não criar embaraços internacionais, já que prioridades hierarquicamente definidas sugerem ameaças também definidas. Essa observação tem a ver com as hipóteses de emprego das Forças, “para resguardar (proteger, defender...) o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras”. Diferente das hipóteses de guerra mais incisivas, do antigo Conceito Estratégico Nacional sigiloso, as vagas hipóteses de emprego da END não estão relacionadas claramente com ameaças específicas e são, portanto, menos objetivas como balizamento da configuração e da distribuição territorial do sistema militar como um todo. O macropropósito definido na END – “...resguardo (proteção, defesa...?) do território, das linhas de comunicações marítimas (até onde isso se aplicaria, estender-se-ia, por exemplo, ao transporte de soja e minério de ferro até a China...?), das plataformas de petróleo e do espaço aéreo” – é em princípio correto, embora talvez fosse preferível “exploração dos recursos no mar sob jurisdição brasileira”, em vez de “plataformas de petróleo”. Mas sem uma razoável ideia das ameaças e seus graus de verossimilidade – se clássicas em que nível, as irregulares se guerrilha ou meramente criminalidade transfronteiriça – é de fato complicado definir tanto a configuração como a distribuição territorial das Forças, particularmente num quadro de escassez de recursos, em que se impõe a lógica das prioridades. Afirma a END que “convém organizar as Forças Armadas em torno de capacidade, não em torno de inimigos específicos. O Brasil não tem inimigos no presente”. Realmente não temos inimigos estatais específicos, embora tenhamos, como têm nossos vizinhos, ameaças irregulares, mas o fato é que a feliz indefinição de inimigos (é preferível não ter, a tê-los...) não ajuda a organizar a defesa nacional. É provável que essas imprecisões venham a ser parcialmente superadas nos desdobramentos propriamente militares da END, que ao menos em parte terão que ser sigilosos, como ocorre em todo o mundo Sobre a distribuição territorial, um comentário sucinto. É curioso observar que a END, ao criticar a concentração do Exército no Sudeste e Sul (concentração coerente com as tensões do passado) e da Marinha no Rio de Janeiro e embora afirmando a indefinição de ameaças (e de inimigos), ela diz que “...as preocupações mais agudas estão... no Norte, no Oeste e no Atlântico Sul...”, sem esclarecer o que justificaria as “preocupações mais agudas”. No contexto dessa ideia, a distribuição indicada na END é lógica: Amazônia e fronteiras em geral, forças dotadas de mobilidade estratégica na região central, para rápido emprego onde necessário e forças no Sul e Sudeste para defesa da concentração demográfica e econômica e da infraestrutura de geração de energia nessas regiões, além do aumento da presença naval no Norte (é citada especificamente a “...região da foz do Amazonas”) e Nordeste. A END aponta “a necessidade de constituição de uma Esquadra no Norte/Nordeste...”. Se isso vier a ser algum dia possível, ótimo; entretanto, mais urgente é o preparo de estrutura de apoio (base naval), porque os navios podem ser para lá deslocados, quando conveniente. Passando a outro tema: a END enfatiza o desenvolvimento científico e tecnológico que libere o Brasil da dependência tecnológica externa. Essa ênfase é absolutamente correta: no Brasil pretendente à presença ativa na ordem internacional a tecnologia tem que ser instrumento fundamental no seu preparo militar. Conviria ter constado uma breve referência ao esforço de desenvolvimento tecnológico particularmente orientado para o que não nos é acessível por parcerias que transfiram conhecimento – orientação que inclui três setores repetidamente mencionados na END como justificando especial atenção e nos quais é difícil ou inviável a cooperação internacional: o espaço, a cibernética e o nuclear onde se insere a propulsão de submarino. A citação de nosso compromisso (TNP e Constituição) com a não proliferação de armas nucleares é complementada pela afirmação da “...necessidade estratégica de desenvolver e dominar essa tecnologia)” – a fórmula semântica (energia nuclear para uso pacífico) usada por alguns países (o Irã é o grande exemplo atual) que querem manter aberta a porta tecnológica para o uso da tecnologia nuclear que vier a ser visto como necessário... O domínio da tecnologia espacial preconizado na END está relacionado com as comunicações, com a tecnologia de localização e posicionamento e com o monitoramento/controle territorial. Esse, associado à ideia da mobilidade militar. Num país como o Brasil é inviável a onipresença militar e para compensar essa inviabilidade a solução é a mobilidade oportuna, propiciada pelo conhecimento da situação. A END associa acertadamente os cuidados com a Amazônia à capacidade de monitoramento da região. Teria sido conveniente acrescentar àqueles três setores críticos (espaço, cibernética e nuclear) a missilística, também incluída na relutância internacional de transferência de conhecimento. É incompreensível que, a 18 Revista do Clube Naval • 358 despeito do atual nível de desenvolvimento industrial brasileiro, o desenvolvimento missilístico do Irã (mísseis estratégicos e táticos) esteja tão à frente do nosso e esse atraso só se resolve por esforço próprio. Talvez (isso não está claro) a END integre implicitamente a missilística no tema espaço – o que não seria exatamente correto porque a missilística militar inclui mísseis que não cabem rigorosamente na rubrica espacial. Complemento natural da ênfase na tecnologia, correta e reiteradamente reconhecido na END, é o estímulo à indústria de interesse militar. Na verdade, mais do que estímulo, o resgate dessa indústria, que já viveu época de razoável sucesso e entrou em melancólico declínio há cerca de 20/30 anos. Embora a END realce a participação da indústria privada, natural em país de economia capitalista, ela atribui à indústria estatal o pioneirismo em tecnologia “que as empresas privadas não possam alcançar ou obter, a curto ou médio prazo, de maneira rentável”. No quadro industrial-financeiro da participação da indústria privada a END menciona um aspecto de grande pertinência, corresponsável pelo declínio das indústrias de defesa: a necessidade de que os orçamentos assegurem continuidade aos projetos, indispensável à sobrevivência dos próprios projetos e até mesmo à sobrevivência empresarial – o que há muito não vem acontecendo (dois casos relevantes: o colapso da Engesa e o eclipse da Avibrás). Essa continuidade tem sido muito prejudicada pela insegurança e insuficiência orçamentária. Basta-nos imaginar, a respeito, a preocupação a que estão sujeitos alguns projetos, imposta pelos cortes orçamentários definidos no início de 2011 – em realce os caças da FAB e o acordo com a França, que inclui submarinos. As parcerias industriais com empresas estrangeiras são corretamente condicionadas à efetiva transferência de tecnologia. Ademais, preconiza a END que “sempre que possível, as parcerias serão construídas como expressões de associação estratégica mais abrangente, entre o Brasil e o país parceiro” – o que é obviamente preferível, desde que possível... Revista do Clube Naval • 358 Quanto à preconização de regime jurídico especial que “...permite a continuidade e o caráter preferencial nas compras públicas” na industria nacional de interesse militar, ele tem realmente sentido racional, mas com limites. Aplica-se ao material que, por sua singularidade, inclusive no tocante à superação de gargalos tecnológicos e à viabilização industrial-financeira em prol da continuidade, convém adjudicar sua obtenção a determinada(s) empresa(s). Mas não deve se aplicar ao material de tecnologia simples, frequentemente similar ao de uso civil, produzido rotineiramente em várias empresas. Essa diferença não está expressa, mas provavelmente não seria diferente disso o pensamento da Comissão formuladora da END. A END procura enaltecer o Brasil no cenário internacional e preconiza (acertadamente no mundo do século XXI) o preparo para a participação de militares brasileiros em forças de intervenção (operações de paz e humanitárias) a serviço da ONU ou de outras organizações internacionais. Afirma que “o Brasil ascenderá ao primeiro plano no mundo sem exercer hegemonia e dominação” e, de fato, o Brasil não tem vocação para uma e outra, mas em sua região geopolítica cabe-lhe destaque estratégico natural, com suas responsabilidades correlatas – condição para a participação permanente no Conselho de Segurança da ONU. A END passa discretamente por esse tema, provavelmente para evitar polêmica e crítica, mas seu exuberante conteúdo no que tange ao preparo militar aparenta corroborar isso – o destaque natural –, sem expressá-lo claramente. A END não cita o conceito de segurança coletiva, como a supostamente propiciada pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca/TIAR, que efetivamente perdeu sua razão de ser com o término da Guerra Fria e de sua ameaça comum, a ex-URSS. Mas tampouco preconiza um substituto regional sul-americano para o TIAR, até porque um tratado de segurança coletiva só tem cabimento se existir a percepção de ameaça comum – que não existe, salvo na concepção bolivariana do presidente Chavez... Embora não explicitamente, a END aparenta sugerir o afastamento dos EUA de 19 atualidade engajados no serviço militar, que incorpora anualmente pequena fração do total de jovens na idade de prestá-lo, a ideia é louvável. Difícil será concretizá-la. Numa primeira e superficial vista do problema, o preferível aparenta ser o emprego de jovens de formação seletivamente adequada – profissionais da saúde, engenharia, agronomia e talvez outras, obviamente uma diminuta minoria do excesso não incorporado – em regiões atrasadas, mas isso deixa de ser aqui desenvolvido por se tratar de assunto além do conhecimento do autor do artigo. Ademais, vale a pergunta: trata-se de assunto de uma estratégia nacional de defesa? Algumas observações sobre as Forças Armadas na segurança interna. A END afirma, com razão, que “o país cuida para evitar que as Forças Armadas desempenhem papel de polícia”. Evidentemente, em situações excepcionais, que exijam a ação militar, ela a admite, é claro que de acordo com o que preceitua a Constituição. A redação um tanto dúbia “cuida para evitar” aparenta aceitar, ainda que a contragosto, o papel de polícia. O caso do “Complexo da Favela do Alemão” (Rio de Janeiro, novembro de 2010) sugere exatamente isso: uma vez cessado o episódio crítico em que realmente se impunha o uso de meios militares, a ocupação de natureza policial continuou a contar com a participação militar – uma participação em princípio imprópria, numa democracia federativa em que a atividade de segurança pública rotineira é encargo dos estados. Essa hipótese de atuação militar está exigindo, como diz a END, “legislação que ordene e respalde as condições específicas e os procedimentos federativos que deem ensejo a tais operações, com resguardo de seus integrantes”. Enfim, que lhe confira a legitimação adequada. Já existem algumas molduras legais, a exemplo da “lei do abate” e do amparo à ação do Exército na faixa de fronteira, mas isso é insuficiente. Ao final, a END especifica uma longa série de providências a serem adotadas (planos, políticas, projetos de lei e outros documentos), com seus respectivos responsáveis, que incluem vários ministérios e órgãos públicos (a essa altura, já devem ou deveriam ter sido formuladas e/ou adotadas, pois todas têm prazos limitados a 2009!). Nesse artigo não há como afirmar que os encargos foram ou não foram cumpridos. A ausência de repercussão na mídia (alguns certamente a mereceriam) sugere insegurança quanto ao cumprimento. Para finalizar: a END é um documento positivo, há muito tempo conveniente, mais ainda com a institucionalização do Ministério da Defesa. Aliás, só o reconhecimento da conveniência de sua existência já é um fato positivo, em país como o Brasil, em que a defesa nacional não é tema que entusiasme o mundo político e a sociedade em geral. Como todo documento multifacetado e complexo como esse, há sempre espaço para aperfeiçoamentos, alguns insinuados neste artigo – insinuações evidentemente sujeitas a controvérsias. Aperfeiçoamentos que deverão acontecer naturalmente no correr do tempo, nas revisões periódicas do documento, sem desmerecimento para o esforço pioneiro, já realizado. Talvez o problema fundamental a ser resolvido seja a compatibilização do ideal desejável (sobre esse ideal, não há o que criticar na END) com o real exequível – o que provavelmente ocorrerá nos desdobramentos propriamente militares da END, no que tange ao preparo militar concreto, quando as limitações da realidade se imporão inexoravelmente. A complexa questão das prioridades integradas evidenciar-se-á então em toda a sua plenitude, como um grande desafio do Ministério da Defesa, das Forças e do mundo político, que não pode continuar a eximir-se da participação no processo. n O Conselho de Defesa Sul-Americano apoiado pelo governo do presidente Lula (ainda não é possível saber se o será pelo governo Dilma Rousseff) não é compromisso de segurança coletiva. E a pretensão mencionada na END de que ele “criará mecanismo consultivo que permitirá prevenir conflitos...” (regionais) é dissonante do funcionamento regular da política internacional: prevenir conflitos cabe às organizações políticas – ONU, OEA e a Unasul se houver a intenção de evitar a influência dos EUA. Como instrumento para “fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases industriais de defesa” o Conselho é útil, embora de utilidade complexa quanto às indústrias, dada a assimetria existente. É sintomática a observação final do parágrafo em que é mencionado o Conselho de Defesa Sul-americano “...sem que dele participe país alheio à região”. A que país a frase se refere, China, Austrália, EUA...? Tema realçado na END: o serviço militar obrigatório. A posição nela defendida é a da continuidade do sistema legal atual, que, em tese, responde ao ideal republicano da responsabilidade de toda a sociedade, pela defesa nacional – em tese, porque sabida e consensualmente escamoteado na realidade brasileira, tanto assim que inexistem recrutas das camadas superiores da pirâmide social. O sistema atual é de fato correto, mas sua realização tem que ser cotejada com o imperativo da tecnologia militar moderna: ela exige um nível de profissionalização dificilmente adquirido em 10/12 meses de serviço militar. É improvável a adequação de recrutas de 18 anos de idade, majoritariamente com grau de instrução modesto – é esse, por ora, o perfil de nossa sociedade – para operacionalizar forças armadas pautadas por tecnologia sofisticada. A respeito, vale citar essa diretriz da END: “...cada combatente deve contar com meios e habilitações para atuar em rede, não só com outros... da sua própria Força, mas também com...das outras Forças”. Será isso viável com recrutas de 18 anos, de instrução precária? O relevo que a END atribui acertadamente e em consonância com os poderes militares mais desenvolvidos, às forças de pronto emprego e às forças de operações especiais, se não as duas simultâneas, reforça a observação sobre a influência da tecnologia na composição dos efetivos militares: é da natureza intrínseca às forças especiais a complexidade e a profissionalização. Seria possível organizar uma força de fuzileiros navais moderna, inerentemente expedicionária (como afirma a END) e para projeção de poder, com recrutas de 18 anos...? Numa menção à mobilização (assunto bem colocado na END), há uma frase no mínimo ambígua: a mobilização “...jamais tratará a evolução tecnológica como alternativa à mobilização nacional...”. Estará a END hierarquizando a quantidade acima da qualidade, na contramão do mundo desenvolvido e de poder militar eficiente? É preciso, portanto, procurar o equilíbrio certo na solução da equação “serviço militar obrigatório x profissionalização naturalmente voluntária” – equilíbrio que promova o ideal republicano sem comprometer a eficácia militar condicionada pela tecnologia. No mundo desenvolvido e de poder militar eficiente, a profissionalização ganha terreno. Não nos convém seguir sem maiores cuidados essa propensão, até porque em país grande e heterogêneo como o Brasil o ideal embutido no serviço militar obrigatório preferenciado na END se impõe como instrumento de solidariedade nacional. Mas tampouco nos convém “ignorar” as injunções da tecnologia moderna, só superáveis no serviço militar obrigatório de perfil republicano se o nível de instrução dos recrutas for suficientemente alto para adequá-los rapidamente à tecnologia – mas não é esse, por ora, o caso brasileiro. A solução da equação é um desafio nacional. Quanto ao serviço civil aventado na END para os jovens não * Almirante-de-Esquadra (Reformado). • Este artigo foi publicado na revista on-line Liberdade e Cultura, nº 12, abril-junho de 2011, da Fundação Liberdade e Cultura. 20 Revista do Clube Naval • 358 A NOVA “UNIÃO SOVIÉTICA” Reis Friede * A ingenuidade irresponsável de Barack Obama – quase em uma compilação histórica do desastroso governo Henry Truman (1945-1952) –, vem logrando reeditar – não obstante as naturais limitações comparativas com supostos paralelos históricos –, as mesmas ações (ou inações) que conduziram, em grande medida, a consolidação do comunismo expansionista, com centro irradiador na extinta União Soviética, e os consequentes 50 anos de Guerra Fria. Trata-se do fortalecimento e consolidação do islamismo radical, com foco na reconstrução do Império Persa que, guardadas as devidas proporções, já sinaliza o ressurgimento de uma nova “União Soviética”, no sentido da caracterização de um novo e indesejado desafio para a paz mundial. Revista do Clube Naval • 358 S (ISLÂMICA) uperados todos os obstáculos para a construção de seu impressionante poderio bélico – tal como sucedeu, no caso da URSS, logo após a rendição alemã –, o Irã será o grande e único beneficiário do vácuo político resultante da degradação dos regimes ditatoriais moderados, em sua maioria pró Ocidente, existentes em grande parte do atual Oriente Médio, mesmo incluído o adversário regime sírio, considerado, por muitos, como aliado ocasional do regime iraniano. Com o iminente isolamento da Arábia Saudita sunita e dos pequenos Emirados que lhe são próximos e com o previsível desastre no Afeganistão – adicionado à capacidade estratégica nuclear de dissuasão iraniana que estará, em breve, plenamente operacional –, não existirá mais qualquer obstáculo ao nascimento de uma nova superpotência militar com extensa projeção de poderio sobre todo o Oriente Médio e com efetiva capacidade de rivalizar, ainda que pontualmente, com o poderio norte-americano, mormente quando as lideranças políticas de Washington continuam preocupadas, quase que exclusivamente, em fortalecer a Índia como possível elemento de contenção à emergência silenciosa, de natureza econômico-militar, da China. Por efeito, é cediço concluir que, tal como ocorreu em 1979, com a queda do regime político implantado por Reza Pahlevi – incentivada pela leviana política de defesa dos direitos humanos do governo Jimmy Carter –, os regimes ditatoriais do Oriente Médio não serão simples e automaticamente substituídos por desejadas democracias pluralistas, até porque a concepção estrutural de soberania destes países é nitidamente teocrática, afastando, por si só, a existência de um pretenso caminho abreviado para a radical transformação dos pilares ideológicos dessas sociedades, mesmo considerando toda a plenitude do poder das novas tecnologias digitais. n * Desembargador federal e ex-membro do Ministério Público. Mestre e doutor em Direito e autor de mais de 30 obras sobre Direito e Segurança Internacional. 21 atualidade África e Oriente Médio, A Primavera Árabe prova que a informação, aliada à capacidade de mobilização das pessoas, agora ampliada pelas redes sociais globais e regionais, representa instrumentos factíveis para a neutralização de regimes ditatoriais. Vale observar que a preservação dos canais de informação será fundamental para a construção de Estados democráticos de direito, em substituição às monarquias absolutistas e às repúblicas ditatoriais do norte da África e do Oriente Médio. É provável que os Estados islâmicos enfrentem enormes desafios após a queda dos regimes ditatoriais, entre eles, o estabelecimento desse Estado democrático de direito, particularmente de caráter da primavera direto para o outono político Movimentos sociais promovidos em diversos países do antigo Magreb1 e no Oriente Médio, a meu ver, por si já podem ser considerados históricos, tanto que a série de manifestações populares está sendo denominada “Primavera Árabe”. Roberto Carvalho de Medeiros * Primavera Árabe representa um anseio popular legítimo, em que se busca alcançar um direito2 reconhecido pelo Direito Internacional outrora, como a Resolução nº 1999/57 das Nações Unidas. Desde os movimentos sociais que derrubaram governos ditatoriais há anos no poder, especialmente o egípcio, até os mais recentes atos de extrema violência na Líbia e na Síria, não se conhece existência de fato capaz de promover tamanha mobilização comunitária. É fascinante observar o poder das redes sociais na contribuição dos valores mais caros ao homem, quais sejam, a liberdade e os direitos fundamentais há décadas sintetizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas (AG-NU) em 1948. N a verdade, trata-se de um movimento democrático, de baixo para cima, associado à globalização da informação e aos novos meios de comunicação, em especial, a internet. Assim sendo, o amplo acesso à informação no mundo atual têm tornado cada vez mais difícil a permanência de regimes totalitários, tendo em vista que a rede global retira dos regimes não democráticos a capacidade de controlar a informação. Além disso, o movimento conhecido como SÍRIA Homs LÍBANO Damasco ISRAEL IRAQUE JORDÂNIA Mapa 2 • A Síria e o entorno Mapa 3 • Regiões turbulentas e o compromisso norte-americano Tunísia Territórios palestinos • Apoio às eleições e incentivos econômicos • Apoio a estado nas fronteiras de 1967 Iêmen Líbia • Pressão pelo cumprimento do acordo para transição de poder • Reconhecimento da legitimidade do Conselho Interino de Benghazi • Pressão pela saída de Kadafi Barhrein • Pedido de diálogo entre governo e oposição e a libertação de dissidentes • Perdão de 1 bilhão da dívida egípcia OCEANO ATLÂNTICO TUNÍSIA MAR MEDITERRÂNEO SÍRIA ISRAEL MARROCOS ARGÉLIA MAURITÂNIA MALI Revista do Clube Naval • 358 TURQUIA laico, que preserve a diversidade de opiniões e opções religiosas, garantindo o diálogo e respeitando a dignidade da pessoa humana, tanto da maioria, quanto da minoria da população. Vivemos outro tempo, radicalmente distinto daquele onde a comunidade internacional aceitava, mesmo de forma velada, a opressão para impedir a liberdade de expressão. As mesmas sociedades amordaçadas pela força do poder reinante local encontraram apoio3 suficiente para externarem indignações há décadas presas em suas respectivas gargantas. Para bem compreender a evolução dos movimentos sociopolíticos internacionais, é justo destacar um conjunto de momentos históricos. O processo de descolonização patrocinado pelos países “vencedores” da Segunda Guerra Mundial e supervisionado pelo recém-criado organismo internacional de alcance global (ONU), Egito 22 Mapa 1 • O Magreb Revista do Clube Naval • 358 NÍGER LÍBIA CHADE 23 EGITO SUDÃO Iraque • Elogios ao país como exemplo de democracia multiétnica Síria • Pressionar Assad por escolha entre transição e renúncia Irã • Crítica ao envolvimento na repressão na Síria IRAQUE IRà ARÁBIA SAUDITA IÂMEN OCEANO PACÍFICO Mapa 4 • Regiões turbulentas e o compromisso norte-americano Alemanha 19% Trapani Birgi • Sicília, Itália Outros 10% Caças canadenses em base militar Caças anorte-mericanos em base militar Mar Mediterrâneo Caças ingleses Suíça 4% Espanha 8% Akrotiri • Chipre Caças canadenses em base militar Caças canadenses em base militar Caças canadenses em base militar França 6% EUA 7% Benghazi • Líbia Caças franceses realizam ataques em área entre 100 e 150 km Mapa 5 • Líbia e seus “clientes” Fadado a mais um fracasso (infelizmente), Abbas sinaliza em usar a Primavera Árabe como instrumento de massa contra Israel. Aliás, a única identidade ainda presente entre árabes e não árabes muçulmanos é o ódio contra Israel. Essa provável manobra palestina em vez de levar à paz desencadeará mais uma nova intifada que, lamentavelmente, concorrerá para mais um conflito armado no Oriente Médio. Cabe mais aos EUA impedir tal demanda do que Israel, pois este está há anos em condições político-militares de prontidão para defender seus Itália interesses estratégicos contra quem os desafie, e as 38% Grécia repercussões serão inevitavelmente pesarosas não 3% só para ambos os atores, mas, sobretudo, apagando o brilho das formidáveis conquistas obtidas pela já ameaçada Primavera Árabe. Ventos contrários a uma solução política em China curto prazo sinalizam a intenção do governo de 4% Barack Obama em articular uma sessão extraordinária do CS-NU para fazer uso de seu poder de veto ali aceito a fim de evitar a ida da Autoridade Palestina à AG-NU com o propósito de forçar a votação do estabelecimento do Estado palestino na Cisjordânia (ver mapa 6), mediante trocas de glebas proporcionais aos assentamentos judaicos ali existentes por parte de Israel. Mesmo com desfechos práticos desfavoráveis Mar Mediterrâneo às pretensões dos palestinos, será Jenin politicamente humilhante para Israel e para os EUA assistirem a um resultado de votação na ONU Tulkerm com ampla maioria favorável ao Estado palestino, ali incluindo Nablus atores de peso global, como a Qualgitya França e o Reino Unido, que já manifestaram seu apoio explicito Salfit ao pleito em questão. Tipicamente associada ao Tel-Aviv reflorescimento da flora e da fauna terrestre, a esperança embutida nessa Primavera vai Jericó sendo substituída pela “queda na Jerusalém –––––––– –––– Jerusalém temperatura e o amarelar das foIsrael pretende ter lhas” em mais um triste outono Oriental toda a cidade como Belém do bom senso humano. n sua capital envolvem direta e indiretamente o Estado sírio no Oriente Médio. Simultaneamente fica nítido e lícito afirmar que todos os eventos políticos ali desenvolvidos passam, sem exceção, pela questão “judeu-palestina”. Tentativas de negociação de paz foram empreendidas sob os auspícios dos EUA junto aos variados representantes dos dois atores em litígio, umas com maior musculatura política e estratégica, outras nem tanto. O que mais aflige os estudiosos é o contrassenso adotado dias atrás pelo líder palestino moderado Mahmoud Abbas ao firmar acordo de reconciliação com o Hamas, recusando a fazer concessões a Israel e desfazendo anos de construção institucional, uma demanda na contramão das negociações bilaterais, prestes a deixar para trás uma paz relativa conquistada na região, com inédita e crescente prosperidade econômica e social Cisjordânia, * Capitão-de-Mar-e-guerra (REF) obtida com o apoio dos EUA. Diretor de Relações Internacionais Mar Hebron O premiê israelense Benjamin Netanyahu do Instituto Sagres. Negro esteve na Casa Branca e foi cauteloso e relutante em aceitar as sugestões propostas por Notas Barack Obama para reiniciar mais um processo 1 de paz entre Israel e os palestinos, defendendo Região do norte da África Mapa 6 • O possível Estado palestino que abrange Marrocos, Saara os variados assentamentos judaicos em terra Ocidental, Argélia, Tunísia palestina. Na mesma ocasião também externou, (“Pequeno Magreb”), Mauritânia e Líbia. agora diante do Congresso dos EUA, que aceita a solução de dois 2 Right to democracy. Estados (Israel e Palestina), inclusive disposto a fazer “concessões 3 Mídia, classes sociais distintas e opinião pública internacional. dolorosas” aos palestinos para atingir a paz na região, mas também 4 Região estratégica para a vigilância e controle local, reafirmou que o retorno para as fronteiras de 1967 e a divisão da e fonte de água potável. capital Jerusalém são questões indefensáveis. CISJORDÂNIA 200 km estipulando fronteiras ilegítimas entre novos Estados, a criação do Estado de Israel e os conflitos armados empreendidos entre este e seus Estados vizinhos, foi determinante para a eclosão de conflitos armados e crises político-estratégicas na Palestina. Os reflexos da Guerra Fria, as duas crises do petróleo, o fundamentalismo islâmico e o advento das ações terroristas a ele decorrente, os impactos da queda do Muro de Berlim e a implosão da antiga URSS, com o desmantelamento dos seus estados-satélites, os ataques terroristas contra sedes da ONU e embaixadas de Estados ocidentais, particularmente dos EUA e seus meios navais, culminando com os ataques simultâneos contra alvos civis no solo norte-americano, promovendo reação imediata daquela nação em diversos pontos no exterior, são fatos de inegável substância que concorreram para uma cinemática semelhante à das peças de um dominó, conduzindo uma após outra à queda de forma normalmente irreversível. Voltando à Primavera Árabe, nenhum movimento ali surgido e ampliado, mesmo sem se consolidar (ainda), foi e é de maior amplitude e profundidade do que o em plena atividade na Síria. Enquanto a Tunísia, o Egito, o Bahrein e a Líbia implodem, os movimentos sociais promovidos pelos sírios concorrem para uma verdadeira “explosão” nas duas regiões. Isso porque a provável democratização do regime sírio repercutirá diretamente no Líbano, onde a Síria possui (ainda) forte controle político e militar, inclusive com apoio velado ao partido Hezbollah xiita. Também no Irã, onde apoia ideias e exporta ações relacionadas com a Revolução Iraniana desde sua implementação naquele país. Na Turquia, um de seus vizinhos, haverá reflexos por compartilhar a diversidade étnica, especialmente os curdos. No Iraque, que também compartilha os levantes cursos por reconhecimento étnico-político, os impactos ocorrerão por servir de passagem para jihadistas suicidas. Em Israel, pelo fato de há pouco tempo desenvolver negociações sigilosas para uso compartilhado das Colinas de Golan;4 e com o Hamas, organização palestina sunita de resistência islâmica radical, cujo líder vive em Damasco. Do outro lado do Mediterrâneo, o governo do ditador Coronel Kadafi procura se manter no poder, apesar do crescente movimento internacional para sua saída imediata, aí incluindo as ações militares empreendidas pela OTAN contra o governo líbio (ver mapa 4), respaldadas por resolução específica concedida pelo Conselho de Segurança da ONU (CS-NU), a fim de proteger a população civil contra as atrocidades promovidas pela parcela fiel, militar e civil, ao seu poder claramente enfraquecido. Por outro lado, apesar de ser a Líbia tradicional fornecedora de petróleo para a Europa (ver mapa 5), tais ataques bélicos contra as forças leais a Kadafi minimizam as fortes medidas internas promovidas pelo governo sírio contra as manifestações populares desencadeadas naquele pais. Não devemos nos iludir e esperar resultados satisfatórios oriundos da crise na Síria. Pelo contrário, existem de fato expectativas em escaladas nas variadas “frentes” que 24 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 25 A RECUPERAÇÃO JAPONESA O atualidade Dois momentos da Segunda Guerra: o ataque japonês a Pearl Harbour (acima) e uma foto rara da bomba atômica devastando Hiroshima Geopolítica do Japão Fernando Malburg da Silveira* O Japão é um dos países do planeta mais afetados por grandes desastres naturais ao longo dos tempos. Além disso, passou pelas amarguras de uma derrota na 2ª Guerra Mundial, na qual foi alvo de duas destruidoras bombas nucleares, mas apesar de tudo jamais deixou de ocupar – depois da era de reestruturação comandada pelo imperador Meiji, em meados do século XIX – lugar de destaque entre as grandes potências. O terremoto e o tsunami de março de 2011 castigaram o Império do Sol Nascente em meio a um persistente esforço de recuperação do crescimento econômico, ainda afetado pela crise causadora da recessão do início dos anos 90. Para melhor compreender quais as previsíveis posturas da combativa sociedade japonesa diante da recente catástrofe sísmica e os caminhos de recuperação que diante dela se apresentam, convém examinar sucintamente a geopolítica do Japão, suas principais dependências externas e as características da sociedade japonesa. 26 Revista do Clube Naval • 358 arquipélago japonês tem como fronteira a leste o imenso Oceano Pacífico, o que justifica o nome Nippon – ou “origem do Sol” – para o país. A oeste estão as grandes terras da massa continental eurasiana, despontando a Rússia, a China e o Sudeste Asiático, enquanto para o sul se situam as Filipinas, a Indonésia, e mais abaixo a Austrália e a Nova Zelândia. Enquanto a leste se descortina o maior oceano integrador de economias fortes, a oeste e ao sul estão ao alcance as mais fortes economias dos continentes asiático e australiano. Remoto, pequeno, distante, montanhoso, possuindo pouca terra cultivável, muito poucos recursos naturais, frequentemente acossado por tufões e terremotos, o Japão não parecia ser um país que reunisse boas condições para ser uma potência, mas a sociedade japonesa não se rendeu a essas dificuldades e construiu um império que, no pós 2ª Guerra Mundial, alcançou o segundo lugar entre as economias mais desenvolvidas do mundo, posto que só recentemente cedeu para a China. Somente uma quarta parte do território japonês é adequada à habitação, confinando a população em estreitas faixas planas de terra ao redor das ilhas principais. Pouco mais de 10% da terra é arável; e cerca de 45% de sua população de cerca de 128 milhões de almas encontra-se nas três cidades principais (Tóquio, Osaka e Nagoya). Os rios são muitos, mas não se interconectam e são pouco navegáveis, praticamente obrigando o povo japonês a desenvolver, Revista do Clube Naval • 358 desde priscas eras, uma cultura ligada à maritimidade. Isso, ligado à necessidade de buscar matérias-primas no continente, levou os nipônicos a construir um notável poder marítimo, energicamente utilizado – inclusive mediante o agressivo uso de forte poder naval – para perseguir objetivos estratégicos além das fronteiras insulares limitadoras do desenvolvimento. A separação física da Eurásia levou o Japão a períodos de isolamento insular e a tentativas de superar as limitações daí decorrentes. Essa circunstância trouxe vantagens e desvantagens. As vantagens podem ser sintetizadas na unidade cultural e linguística, decorrente de uma única corrente imigratória expressiva, ocorrida 300 anos a.C. (gerando uma só etnia predominante); e na ausência de ameaças de invasões por outros povos, embora tenham ocorrido no século XIII tentativas (fracassadas) dos mongóis. A dificuldade de conquistar as ilhas japonesas, aliás, permaneceu nos tempos modernos, tendo sido um dos fatores que levaram os Estados Unidos – após avaliar as grandes perdas de vidas americanas que certamente ocorreriam nas invasões das ilhas japonesas – a recorrer ao uso de bombas atômicas para dobrar os joelhos dos nipônicos na 2ª Guerra Mundial. As desvantagens maiores foram a dependência de acessar externamente o desenvolvimento tecnológico para passar da cultura feudal rural para a industrial; e a necessidade de buscar externamente quase todos os insumos necessários à construção de uma moderna potência econômica, principalmente, entre eles, o petróleo e o aço. Nesse contexto, a península coreana sempre foi o alvo mais próximo, tendo sido objeto de invasões japonesas ao longo dos séculos. Em épocas mais recentes (séculos XIX e XX) não apenas a Coreia, mas também Taiwan, Sibéria, Mandchúria, China e muitos territórios do Sudeste Asiático foram palco de invasões e dominações militaristas nipônicas, só detidas com o advento da 2ª Guerra Mundial, quando o poderio industrial e aeronaval norte-americano, provocado pelo ataque a Pearl Harbour, derrotou o poderio naval japonês no Pacífico. 27 O Problema Energético A geopolítica japonesa desenha alguns imperativos estratégicos que norteiam o comportamento do governo e da sociedade japonesa nos tempos modernos. Entre eles, a preservação de uma unidade e da centralização do poder nas ilhas do arquipélago; a manutenção da soberania sobre os mares e ilhas centrais e periféricos; o controle autônomo dos acessos às ilhas do império japonês e a manutenção das vias marítimas que sustentam seu abastecimento e seu comércio; e a continuidade do acesso às matérias-primas e insumos que alimentam o poderio industrial e econômico do Japão. Este último aspecto, que de fato foi o que levou o Japão à guerra contra os Estados Unidos em 1941, é de crucial importância, dado que o Japão possui uma enorme planta industrial, todavia instalada num país totalmente dependente de recursos minerais alienígenas. As condições naturais para a consecução desses objetivos são bastante adversas, mas a sociedade japonesa é dotada de notável disciplina e extraordinária tenacidade, atributos que viabilizaram chegar ao status sociopolítico e socioeconômico que o país ostenta no mundo, apesar de suas seculares dependências externas e do severo problema decorrente do atual envelhecimento da população, acompanhado de queda da taxa de natalidade. Além das matérias-primas essenciais, das quais existe severa dependência externa, o Japão depende intensamente de energia para manter operacional sua indústria e seus centros financeiros. Essa energia é essencialmente oriunda de duas fontes: o petróleo (praticamente 100% importado) e as centrais nucleares (uma delas destruída pelo tsunami recente). Quanto ao petróleo, o infortúnio do terremoto e do tsunami de março foi acompanhado por simultâneos distúrbios no mundo Em Tóquio, os prédios tremem pela liderança do continente asiático, como ainda no ranking mundial das economias mais poderosas. No presente, o Japão, terceira potência econômica do mundo, luta para retomar níveis de crescimento do PIB (hoje superior a US$ 5 trilhões) compatíveis com os do passado mais pujante, em que pesem as limitações já mencionadas. A natureza, porém, interferiu adversamente, desferindo em março deste ano de 2011 violento golpe contra o arquipélago, representado pelo terremoto seguido de tsunami que arrasou grandes áreas do nordeste do país, afetando inclusive (pesadamente e no longo prazo), a produção de energia de centrais nucleares japonesas. Uma vez mais, a sociedade nipônica será desafiada a se recuperar de uma catástrofe, geradora da maior crise desde a 2ª Guerra Mundial. Não obstante, já deu mostras de que enfrentará com a inquebrantável fibra japonesa o infortúnio. Não há como duvidar. Derrotado na guerra, ressurgiu dos escombros um país que rapidamente se adaptou aos padrões de produção e aos avanços tecnológicos ocidentais, chegando a galgar o patamar de segunda economia do planeta. Basta olhar para as fotos de Hiroshima arrasada pela bomba nuclear americana e a moderníssima Hiroshima de hoje, totalmente reconstruída em apenas 60 anos. Não será a primeira vez que os japoneses, com sua inquebrantável disciplina, tenacidade e grande senso de responsabilidade social, poderão vir a usar o desafio como uma nova chamada à autoafirmação, imprimindo rápidas mudanças políticas internas e revitalizando a sinergia nacional. A vitória dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial constituiu severo golpe nos objetivos estratégicos japoneses, privando temporariamente o Império Nipônico de sua soberania e impondo aos japoneses uma Constituição que limitou o poder militar apenas a forças de defesa, ceifando seu domínio naval sobre o Pacífico. O Tratado de São Francisco, porém, em 1952, reabilitou o Japão nos seus caminhos, embora o poder militar japonês tenha permanecido limitado (todavia sempre contando com o suporte dos EUA, seu ex-inimigo e hoje seu principal aliado). O Japão retomou as vias do crescimento e durante longo tempo sustentou a posição de segunda economia mais forte do planeta, mas a recessão dos anos 80/90 (quando o rápido crescimento, acompanhado por baixas taxas de remuneração do capital, causou crise financeira cujos efeitos ainda não foram de todo superados) e o fantástico crescimento da China levaram os chineses a ultrapassar os japoneses, não só na disputa 28 Revista do Clube Naval • 358 Desabrigados aguardam atendimento, em ordem Revista do Clube Naval • 358 árabe, elevando o preço do barril e os riscos no mercado do ouro negro. A maior parte do petróleo que abastece o Japão é proveniente do Golfo Pérsico, região sempre marcada pelas relações conflituosas entre árabes e israelenses e entre Oriente e Ocidente. Há fontes alternativas para o suprimento de outros recursos minerais para o Japão, como o minério de ferro, obtenível de mais de um país exportador, mas a economia japonesa não pode prescindir do fluxo de petróleo que atravessa o Estreito de Ormuz, choke point cuja possível interdição, seja por minagem ou pelas baterias de mísseis instaladas em terra pelo Irã, constitui permanente dor de cabeça para o mundo ocidental e para o Japão. Se a convulsão política que vem acossando o mundo árabe neste início de 2011 não serenar, ou se as tensões entre EUA e Irã resultarem em conflito armado e em bloqueio – ainda que temporário – de Ormuz, as reservas japonesas de óleo serão rapidamente consumidas e sua economia sofrerá brutal constrição, com sérias consequências para a economia global. Para reduzir (mas sem eliminar) a dependência do petróleo, o Japão conta com duas possibilidades: a geração de energia por usinas movidas a carvão mineral (do qual é o maior importador mundial) e por usinas nucleares (setor em que a planta instalada japonesa é a terceira maior do mundo, abaixo apenas da americana e da francesa). O recente terremoto causou enormes danos a vários reatores nucleares japoneses e levou o governo a paralisar outros por prudência, gerando uma carência de energia que decerto terá longa duração, o que agrava muito os efeitos adversos da catástrofe natural, por si só bastante devastadora. A geração de energia nuclear em larga escala vinha sendo o único componente do problema energético japonês sobre o qual governo e sociedade depositavam grande confiança, por estar sob total controle nacional e por sua menor dependência externa. A vulnerabilidade desse setor, agora evidenciada pelo desastre natural, decerto causou grande choque aos nipônicos. Não é difícil imaginar, portanto, o gigantesco problema a ser enfrentado caso a redução da produção das usinas nucleares (responsáveis por um terço da energia elétrica do país) seja combinada com uma drástica redução no suprimento de petróleo. Essa redução poderá ser causada pelo agravamento de convulsões no Oriente Médio e na Península Arábica, ou pela interdição das vias marítimas que representam as grandes artérias do abastecimento japonês, onde exponenciam as vulnerabilidades de choke points como os Estreitos de Ormuz e de Málaca (este último, ligando o Índico e o Pacífico, contempla o trânsito de cerca de ¼ do petróleo mundial, em mais de 50 mil navios por ano, tendo como destino todos os países consumidores asiáticos do Pacífico, inclusive as poderosas economias da China e do Japão; e situa-se em região de navegação difícil, sujeita a ações de pirataria e terrorismo). Uma conjunção de fatores adversos dessa dimensão teria efeito avassalador sobre a economia japonesa, com terríveis consequências para sua sociedade e para toda a economia mundial. Ainda assim, o governo pode contar com uma certeza animadora: o povo japonês fará sua parte e mostrará novamente sua fibra. 29 Caminhos da Recuperação As características do povo japonês serão, decerto, outro forte ponto de apoio para a recuperação nacional. Sob o ponto de vista sociorreligioso, os japoneses têm a singular característica de ser um povo oriental de pensamento xintoísta e budista, portanto não cristão, mas sem nenhuma dificuldade em conviver, sob o prisma econômico, com padrões éticos e econômicos típicos do capitalismo ocidental (este, como sabido, originalmente motivado ao lucro pela doutrina cristã protestante calvinista). Isso permite identificar no povo japonês uma ascese, uma efetiva busca pela realização da virtude e pela plenitude da vida moral, que concilia a visão filosófica xintoísta e budista do povo com o comportamento econômico de instituições capitalistas sólidas, cujos fundamentos foram transplantados da cultura econômica ocidental para o Extremo Oriente, mas sem abalar as pedras angulares da visão teológica da sociedade nipônica. A Reforma Meiji do século XIX, responsável pela transição do feudalismo japonês para o capitalismo e pela abertura definitiva do Japão ao Ocidente, soube absorver os valores ocidentais que lhe interessavam sem despir o Japão de seus milenares valores filosóficos orientais. Nos momentos de crise, isso se traduz na solidariedade do povo com seus líderes e governantes, todos visando ao interesse comum (razão pela qual não se teve notícias de assaltos, invasões de supermercados e violência entre os milhares de necessitados que se espalharam pelas áreas atingidas). O cenário devastado pelo terremoto é desalentador para os observadores externos, mas os analistas que bem conhecem o Japão e seu aguerrido povo enxergam perspectivas de recuperação em tempo menor do que avaliam os mais pessimistas. O Banco Mundial e a Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean) acenam com o início de expressiva recuperação em poucos meses, ainda em 2011. A capacidade de mobilização e o sentimento de responsabilidade de cada cidadão em relação à sociedade, que os japoneses mais de uma vez no passado já demonstraram possuir (lembremos do pós 2a Guerra e da recuperação do terremoto de Kobe, em 1995), deverão ter papel decisivo nos esforços de recuperação. Não foram poucos os noticiários da mídia mundial que retrataram o heroísmo e o desprendimento dos japoneses no socorro às vítimas; respostas rápidas do governo na recuperação de partes da infraestrutura afetada foram notáveis (estradas arrasadas foram reconstruídas em poucas semanas; um aeroporto totalmente devastado pelo tsunami voltou a operar em sua plenitude em tempo recorde; e muitos outros exemplos continuam a ser a cada dia revelados); e os japoneses não deixarão de, num momento tão difícil, financiar a recuperação, mesmo sabendo que terão baixo retorno, pois o sentimento nacional está acima da ambição na tradição cultural nipônica. Não deverá faltar o apoio do mundo ocidental, principalmente o norte-americano. Afinal, de inimigo dos EUA no último conflito mundial o Japão passou à condição de baluarte dos Estados Unidos no Extremo Oriente, exercendo importantíssimo papel na contenção da expansão do comunismo na Ásia durante a Guerra Fria; e, no presente, mostra-se um aliado relevante dos americanos no permanente jogo estratégico de contrabalançar o crescente poderio chinês na Ásia, que tende a hospedar uma imensa área de livre-comércio capitaneada pela China e capaz de competir com a primazia econômica norte-americana. O Japão, além disso, dá importante suporte à presença da mais poderosa esquadra da US Navy naquele importante cenário estratégico, o que os norte-americanos não podem negligenciar. Há suficientes incentivos econômicos e estratégicos, portanto, para que o Japão seja assistido em mais esse momento difícil. Ao mundo ocidental interessa, tal como interessava ao término da 2ª Guerra Mundial, contar com o Japão no seu lado da economia globalizada, o que tanta relevância teve durante a Guerra Fria para fazer frente ao poderio da URSS, na era da bipolaridade de poderes. Papel similar se configura agora para o Japão diante do crescimento chinês na Ásia, na visão estadunidense. Soma-se a isso a influência do bushido na sociedade japonesa. O período feudal japonês durou do século XII até meados do XIX, e coincidiu com a época de prestígio da classe dos samurais, elite guerreira que exercia o papel de guardiões do poder junto aos senhores feudais. Essa elite observava um rigoroso código de honra e de conduta, o bushido (literalmente, o “caminho do guerreiro”). Com fundamentos em valores do xintoísmo, do budismo e do confucionismo, o respeito e a lealdade aos superiores, a coragem, a justiça, o espírito de autossacrifício, a humildade, a austeridade, a sabedoria e a honra eram os atributos mais valiosos de um samurai no desempenho de suas obrigações e na defesa de sua reputação (e da de seus ancestrais, a serem sempre honrados). A transição japonesa do feudalismo para o capitalismo e as transformações socioeconômicas decorrentes exauriram, como era de se esperar, o poder e o prestígio dos samurais, mas os princípios, os valores, o estilo sóbrio de vida e o modo de pensar disciplinado daqueles guerreiros permanecem influentes, presentes e notáveis nas características do povo japonês, refletindo-se inclusive na educação escolar das crianças, que desde cedo são estimuladas a reverenciar a pátria e o imperador, respeitar o senso de verdade e justiça e valorizar a cultura e as artes (entre elas, as marciais). O autossacrifício é um exemplo que se pode ver com clareza em dois momentos dramáticos, no final da guerra e no desastroso terremoto de março. Na fase final da guerra no Pacífico, diante do incontido avanço do poder naval norte-americano sobre o perímetro defensivo japonês, os pilotos da aviação naval nipônica, após cumprirem um ritual tipicamente samurai a bordo de seus naviosaeródromos, não hesitavam em lançar suas aeronaves em missões suicidas (kamikase, ou “o vento divino”) contra os costados das belonaves americanas. No terremoto de março, diversos trabalhadores (engenheiros e técnicos) das usinas nucleares afetadas dirigiram-se às mesmas, em sucessivas tentativas de minorar o superaquecimento dos reatores e o vazamento de substâncias radioativas, ainda que sabendo que isso os condenava a uma morte sofrida. Acima da pessoa está o sentimento do dever, atributo de origem confucionista enraizado na sociedade. Causa-nos espanto, mas não aos nipônicos, o caso do menino de cerca de dez anos que, disciplinadamente alinhado numa comportada fila de distribuição de alimentos, recebeu de um jornalista estrangeiro algo para comer e, após uma solene reverência de agradecimento, dirigiu-se ao começo da fila para entregar os alimentos à autoridade responsável pela distribuição. Perguntado por que o fizera, respondeu que havia idosos mais necessitados do que ele, e retornou silenciosamente ao seu lugar. Como terceira potência econômica do mundo, o Japão não hesitará em investir imediatamente na recuperação de toda a infraestrutura destruída pelo abalo sísmico e pelas ondas gigantes. Para financiar esse enorme esforço de reconstrução o governo, apesar de já contar com uma dívida pública bastante elevada, contará com a população – que sempre foi a grande financiadora dessa dívida – para investir mais em títulos públicos, mesmo que com baixa remuneração (cerca de 1,5% ao ano, ao passo que em países como o Brasil o retorno pode passar dos 12% anuais!). Não faltarão também as fontes externas de financiamento, embora o governo nipônico prefira evitar a desnacionalização de sua dívida. Há tal confiança na capacidade japonesa de recuperação que o mercado financeiro, mesmo diante das circunstâncias atuais, reduziu as taxas de risco japonesas nas agências avaliadoras de risco. Sobretudo, não faltarão ao Japão a disciplina e a tenacidade do seu povo. É esse conjunto de fatores econômicos e sociais que permitem dar razão aos que enxergam com maior otimismo a recuperação do Japão, que em poucos anos estará de volta ao cenário mais pujante do continente asiático e do planeta. n * Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref). Referências: Carvalho, Hamilton Cesar de Castro. Max Weber e o capitalismo japonês. Poiésis – Literatura, Pensamento & Arte, n. 88, jul. 2003. Costa, Ana Clara. Como o Japão se recuperará de seu maior desastre. Veja, Economia, 11/3/2011. Friedman, George. Japan, the Persian Gulf and Energy. Disponível em: <http://www.stratfor.com/weekly/20110314-japan-persiangulg-energy>. Silveira, F. Malburg. A disputa pela liderança asiática no pós Guerra Fria. Revista Marítima Brasileira, v. 127, n. 10/12 (Parte I) e v. 128, n. 1/3 (Parte II). Silveira, F. Malburg. Choke points – ameaças a estreitos e canais internacionais. Revista do Clube Naval, n. 350, abr./maio/jun. 2009. Vale, Sérgio. Japão. Instituto Millenium, 23/3/2011. Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/ptjapo>. Stratfor Geopolitical Analisys: Japan. Disponível em: <http:// forums.spacebattles.com/showthread.php?t=160251>. “Sobretudo, não faltarão ao Japão a disciplina e a tenacidade do seu povo” 30 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 31 direito internacional direitos e obrigações internacionais universalmente reconhecidos não tem qualquer amparo legal. Guido Fernando Silva Soares, professor da USP, falecido em 2005, frisa que “a Carta [das Nações Unidas] reconhece um direito inerente à legítima defesa, mas, como um direito novo, estabelece condições prévias para seu exercício: além de deixar claro que se trata de um ato provisório, até que o Conselho de Segurança [das Nações Unidas] venha a adotar as medidas que lhe competem, o ato de legítima defesa deve estar motivado como uma resposta à ocorrência de uma agressão por parte de outro Estado”. Como, em tais condições, invocar a legítima defesa para legalizar a eliminação de Bin Laden? Alega-se, também, que se tratou de “uma operação de guerra”. No Paquistão, que não está em guerra contra os EUA, é muito difícil falar de um ato de guerra no sentido usado no Direito Internacional, comenta o jurista suíço Me Phillippe Currat. Proclamou-se que “a justiça foi feita”. Erro crasso. Não existe justiça sem direito definido e sem julgamento imparcial. n José Monserrat Filho * Bin Laden e o Direito Internacional E conclui com uma lição de mestre: “A comunidade internacional prospera quando o direito e o poder são parceiros, e não quando estão em conflito”. Essa parceria, porém, tem sido lograda em poucos momentos da história. Sir Arthur Watts tem consciência das artimanhas: “Os países são capazes de sentir que a importância do direito internacional pode ser facilmente admitida, precisamente porque, em última análise, ele [o direito internacional] é fraco e pode ser ignorado”. É fraco, sim, mas ignorá-lo pura e simplesmente é cada vez mais difícil e não recomendável. Não por acaso, Cesáreo Gutiérrez Espada e Maria José Cervell Hortal, professores espanhóis, perguntam: “Se os Estados não julgassem que deve existir um direito internacional que os obrigue, por que precisariam tentar acobertar suas más ações com base no próprio direito (por via da exceção ou da existência de uma causa justificadora)?” Por tudo isso, a avaliação jurídica dos fatos internacionais marcantes – sobretudo na era de intensa globalização em que vivemos, quando a interdependência e a necessidade de cooperação entre os países atingem níveis sem precedentes – não é simples possibilidade, oportunidade ou opção. É imperativo incontornável. É conquista e exigência da cultura humana, acumulada em séculos de erros e acertos, recuos e avanços, experiências trágicas e triunfantes de toda a sorte. O caso Bin Laden choca a consciência jurídica. Sua execução sumária e extrajudicial e o lançamento de seu corpo ao mar configuram o ápice de uma sequência de atos ilícitos e antiéticos. O homicídio planejado por um governo de uma pessoa desarmada, buscada há dez anos acusado de cometer crimes de lesa-humanidade, não resiste a uma análise baseada nos princípios e normas do Direito Internacional vigente, bem como nos preceitos de justiça consagrados no mundo contemporâneo. Como qualquer criminoso, e mais ainda por ser considerado “A sociedade internacional (…) está longe de ser uma sociedade sem lei.” Oscar Schachter (1915-2003 ), in International Law in Theory and Practice, 1991 “Q uanto mais eficaz for o sistema jurídico internacional, mais incômodo pode ser para os Estados”, observa muito bem Sir Arthur Watts (1931-2007), ex-professor de Direito em Oxford e ex-consultor jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido e da Comnidade Britânica,discorrendo sobre “a importância do direito internacional” em 2000. Ele indaga: “Podemos agir na área internacional, como bem entendemos, certo?” E ele próprio responde: “Não, não podemos. Há um conjunto de regras – o Direito Internacional – que, assim como confere alguns direitos aos Estados, também impõe a eles certas obrigações na condução de suas relações internacionais”. Daí a grande relevância, a seu ver, do Estado de direito internacional. Sua explicação é simples e clara: “O Estado de direito nos assuntos internacionais envolve a existência de um sistema jurídico abrangente, a certeza sobre as regras em vigor, a ausência de poder arbitrário e a aplicação efetiva e imparcial do direito. Os benefícios do estado de coisas em que esses elementos estejam presentes são autoevidentes, e exercem poderosa e positiva influência”. E mais: “O Estado de direito compreende a aceitação de que o direito internacional não é uma escolha à la carte. Aplica-se como um todo e a todos os Estados, inclusive (e na verdade especialmente) aos que detêm poder físico e político para descartar a lei se assim decidirem”. 32 Revista do Clube Naval • 358 * Jornalista e jurista, mestre em Direito Internacional, membro da International Law Association (ILA). E-mail: <[email protected]> especialmente perigoso, Bin Laden deveria ter sido capturado vivo e submetido a julgamento justo com todas as garantias de isenção, como prescrevem as leis de todos os países do mundo. Tal procedimento é conquista irrevogável do processo civilizatório. O tribunal poderia ter sido nacional ou internacional. Mas seria preferível uma corte internacional, mais adequada à natureza dos crimes de alcance global imputados ao criador e chefe do grupo terrorista Al-Qaeda. O terrorismo pode ser uma questão nacional, mas, acima de tudo, é internacional, pois afeta grande número de países, se não todos. Nada justifica introduzir um contingente militar no território de um país soberano, sem sua devida autorização, para buscar e, no caso, matar deliberadamente um criminoso. A alegação de “legítima defesa” para validar a violação de A mansão de Bin Laden. Desenhos como este fizeram parte do plano de ataque norte-americano Revista do Clube Naval • 358 33 Além A opinião de Bin Laden Claudio Fabiano de Barros Sendin * CLUBE NAVAL pesar de Bin Laden ter, sem dúvida, representado uma ameaça para a humanidade, o desfecho do seu caso não deixou de ser um assassinato encomendado. A ação norte-americana assemelhou-se a um filme de cowboy, onde o mocinho pratica justiça com as próprias mãos e o xerife faz vista grossa. Os EUA exerceram sem cerimônia o seu arbitrário superpoder, que lhe é outorgado tão somente por ser a maior força bélica mundial. Fico então, ingênua e utopicamente para muitos, pensando que as disputas, a violência e as guerras, perderiam o motivo de existir na Terra, se nós, seus habitantes chamados de racionais, tivéssemos um nível melhor de compreensão humana, preferindo cooperar a competir. Penso que todo o caos mundial é resultante da educação que vem sendo transmitida de pai para filho, desde o surgimento do Homo sapiens. Todas as civilizações, todas as culturas, sempre educaram seus filhos para a competição, para “serem alguém na vida”, isto é, terem cada vez mais, sejam bens materiais ou não, e conquistarem cada vez mais poder. Da infância à velhice, nas escolas, nas universidades, nas empresas, nas religiões, nos quartéis ou nos partidos políticos, entre analfabetos ou letrados, esportistas, artistas ou empresários, em qualquer sociedade, sob qualquer regime, vivemos competindo uns contra os outros, de forma velada ou explícita. Nem Krishna, nem Buda, nem Sócrates, Jesus Cristo ou outro mestre ou filósofo, conseguiu mudar essa mentalidade e elevar o nível de compreensão humana, a ponto de transformá-la em altruísta. Através dos tempos, esses pensadores criaram os princípios éticos, morais e religiosos, adotados por toda a humanidade. Não há quem não se coloque a favor da paz e da justiça. Os governantes, tanto de pequenos países quanto das grandes potências, se dizem pacifistas, são adeptos de religiões e filosofias que pregam o altruísmo, o amor ao próximo e à humanidade, mas na prática promovem a guerra, até mesmo e absurdamente, como forma de conseguir a paz. Há um abismo entre o que se pensa e o que se faz. Revoluções e mudanças de regimes políticos tampouco tornaram o mundo mais justo. Os ideais de fraternidade e igualdade da Revolução Francesa, por exemplo, não passaram de ideais, pois logo os vencedores se tornaram tão tiranos quanto os vencidos. Na Revolução Russa, a ideia da liderança do proletariado como um regime justo para todos, também foi apenas um pensamento. Na realidade, a ausência de classes sociais não afetou a tirania dos dirigentes nem diminuiu a competição entre todos os cidadãos. Nesse contexto, torna-se perfeitamente natural o vale-tudo da luta político-partidária, e o exercício da imposição de regras dos países dominantes aos dominados. Para colocar rédeas nesse processo de competição desenfreada e de mútua agressão, foi instituído o Direito, com normas éticas de comportamento baseadas nos pensamentos clássicos, filosóficos e religiosos. Criou-se também a ONU, instituição que tem a missão de fazer cumprir, internacionalmente, esse direito. Apesar de a tentativa ser louvável, seu poder é limitado e muitas vezes ignorado, como foi no caso Bin Laden, na medida das necessidades de dominação das potências que a mantêm. A Ética e o Direito, embora imprescindíveis, são um remédio externo, uma espécie de pomada contra a dor, que não cura a doença. Esta só vai sarar quando nós todos, povos e dirigentes, empresários e operários, conseguirmos compreender claramente que habitamos uma minúscula partícula do universo, e somos na verdade uma só nação humana. Quando a humanidade se tornar menos egoísta e mais altruísta, e conseguir trocar o hábito da competição pelo da colaboração, nas relações entre as pessoas, e, consequentemente, entre as nações. Aí não caberão mais guerras nem bin ladens. n * Diretor de arte e Cartunista • [email protected] 34 Revista do Clube Naval • 358 A Praça d’Armas da Marinha Paulo de Paula Mesiano * O que era e o que é uma Praça d’Armas? N a Idade Média, vamos encontrar Praça d’Armas como o grande espaço aberto no centro do castelo ou fortaleza, o local de concentração de tropas para desfechar o contra-ataque. Na Espanha medieval, Plaza de Armas (Praça d’Armas) era a praça principal das cidades fortificadas; na Suíça, Waffenplatz (Praça d’Armas) era a base militar com quartel, paióis e oficinas, utilizada para instruções e adestramento de defesa. Na Marinha, a bordo dos navios, Praça d’Armas é o compartimento de estar dos Oficiais, onde também eram servidas as suas refeições, presididas pelo Imediato, que lidera a oficialidade, onde, informalmente e descontraidamente, os Oficiais trocam ideias, comentam procedimentos, distraem-se e, por vezes, até se insubordinavam; é um local de descontração e privativo da oficialidade. A Praça d’Armas é o único compartimento do navio a que o Comandante não tem acesso franco e só comparece se for convidado pelo Imediato. A Praça d’Armas, para a Marinha, é uma instituição que remonta aos navios a vela, aos corsários e bucaneiros, e aos navios e às Marinhas regulares, que os combatiam. O homem do mar é muito conservador, tanto os Oficiais como os Praças. Admira e cultua o mar, com suas aventuras e perigos, é muito cioso das tradições marinheiras, dos usos e costumes navais, que cultiva e alimenta com devoção; tem um arraigado “espírito de corpo” e, em função disso, costuma, genericamente, considerar o Clube Naval como sua Praça d’Armas. Desde aquela época que nos navios, como na Marinha em geral, em sua tripulação existiam e existem três estratos: a primeira camada é individual, a camada do consagrado, a camada solitária do Comandante, aquele que tudo pode mas que vive a solidão do comando. No tempo da Marinha a vela, dispunha até da vida e da morte dos seus subordinados, sendo seu privilégio enforcá-los no lais da verga de boreste,1 passá-los de um bordo a outro sob a quilha do navio, ou ainda mandar açoitá-los. Na Royal Navy, a Marinha Inglesa, da qual herdamos muitas tradições e costumes, o açoite era Revista do Clube Naval • 358 chamado de gato de nove caudas (the cat of nine tails). Na Marinha do Brasil, à época da chibata, chegou a haver uma revolta devido à aplicação de uma pena de açoite considerada exagerada, e que gerou a Revolta da Chibata.2 Hoje, o Comandante é o juiz em 1ª instância para aqueles que transgridem o Regulamento Disciplinar da Marinha (RDM), e aplica penas de reclusão ou de serviços extraordinários. Se o ilícito cometido for capitulado no Código Penal Militar, a situação se complica. É instaurado, por sua ordem, uma Sindicância ou um Inquérito Penal Militar (IPM), o julgamento sai da esfera administrativa e vai para a da Justiça Militar, se o ilícito for crime militar; ou para a Justiça Civil, se o crime for civil. A segunda camada é a da oficialidade, liderada pelo Imediato, que é a ligação entre o Comandante e a oficialidade, e o verdadeiro administrador do navio. O Comandante raramente se dirige diretamente aos Oficiais, à exceção do Oficial de Quarto, no passadiço, em viagem, ou ao Oficial de Serviço, no porto. Costuma-se dizer, quando o navio vai bem, que tem um bom Comandante, e, quando vai mal, que tem um mau Imediato. A terceira camada é a guarnição. Podemos simplificar dizendo que a guarnição é o resto da tripulação, sem nenhum sentido pejorativo. Sempre tomando os navios a vela como referência, onde o Comandante se alojava num compartimento amplo – a câmara do comando – na parte alta da popa, chamado de castelo de popa, onde também fazia suas refeições sozinho. Os Oficiais, inclusive o Imediato, alojavam-se em camarotes singelos ou duplos, localizados em convés abaixo do da câmara, e tinham as suas refeições na Praça d’Armas. E a guarnição se alojava em compartimentos chamados de cobertas, localizados na proa, e faziam suas refeições nas cobertas de rancho. Foi assim que esse fragmento da sociedade fez as grandes navegações e descobertas, com as caravelas, galeões, naus de guerra, fragatas e corvetas. Neste artigo, estamos enfocando a Praça d’Armas dos navios. Mas, por que Praça d’Armas? Porque era nesse compartimento que armas portáteis, por uma questão de segurança, eram guardadas, pois a marujada3 não era muito confiável, poderia se amotinar, usando as armas para trucidar os Oficiais e o Comandante, e se transformarem em piratas, flibusteiros, bucaneiros e outros tipos. 35 Por similaridade, principalmente para os oficiais que transferiram-se para a Reserva ou foram Reformados,4 o Clube Naval, na sua sede social, na Av. Rio Branco, 180, é considerado como se fora uma Praça d’Armas, congregando seus sócios, Oficiais de Marinha em Serviço Ativo, da Reserva e Reformados, oferecendo atividades culturais, ligadas à literatura, artes plásticas, música, história, estudos políticos e estratégicos, simpósios, conferências, assuntos de interesse naval, assuntos marítimos de interesse geral e de amplitude nacional, dispondo de um local para refeições e acomodações para lazer. Há porém uma enorme diferença: nos navios da Marinha, a presidência da Praça d’Armas é imposta por força dos regulamentos, e a liderança é conquistada ou não, por força da capacidade e atuação do Imediato, uma vez que a ele é designado, por ato administrativo, ao passo que o Clube Naval, tanto a liderança como a presidência, dá-se por escolha dos sócios (Corpo Social), em eleições diretas e livres, às quais podem concorrer qualquer sócio. Porém, o mais importante, que emociona e atrai, é o convívio entre os colegas de turmas de Escola Naval, dos amigos adquiridos nos mais diversos embarques, nos navios da Esquadra, aqueles que atracavam no Cais Norte do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e que a evolução do país, da modernidade e operatividade da Marinha transferiu para a Base Naval do Rio de Janeiro, em Mocanguê, sem esquecer aqueles amigos com os quais os laços de amizade foram forjados fora de sede,5 quer nas antigas Corvetas classe Guillobel,6 como nos Esquadrões de Aeronaves em São Pedro d’Aldeia,7 dos Fuzileiros Navais da Colina8 e da Ilha do Governador, sem esquecer os Intendentes do complexo (porque é complicado) da Avenida Brasil, onde também muitos colegas nossos contribuíram com seus conhecimentos para a Formação do Pessoal da Marinha Mercante, no Centro de Instrução Almirante Graça Aranha, que aliás, são também Marinha e compõem o Poder Marítimo, que, somando-se ao pessoal da Gola,9 compõem o Poder Naval, o braço militar da Marinha do Brasil, a que tanto nos orgulhamos de pertencer, e dos inúmeros amigos que efetuamos ao longo de nossa carreira, com integrantes dos mais variados quadros e corpos, que constituem a Família Naval. O Clube nos proporciona o mesmo ambiente agradável e descontraído das nossas Praças d’Armas. Ousaríamos até dizer que o Clube Naval é a Praça d’Armas da Marinha. Há algum tempo, o Clube era mais frequentado, e entendemos porque hoje a assiduidade é mais fraca. Porque, como antigamente, pouquíssimos Sócios tinham automóvel, vinham apanhar a condução de regresso para casa, ou na Cinelândia, no Castelo ou nas imediações da Igreja da Candelária, pois a Esquadra ficava estacionada no Cais Norte, os navios hidrográficos ficavam no molhe Onze de Junho, a Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN) era na Ilha Fiscal, os que estavam cursando Máquinas o faziam no Curso de Aperfeiçoamento de Máquinas para oficiais (CAMO), no Arsenal da Marinha no Rio de Janeiro (AMRJ), as outras especialidades na Ilha das Enxadas, no Centro de Instrução Almirante Wandenkolk (CIAW), e os que cursavam Eletrônica, na Diretoria de Eletrônica e os de Comunicações na M-50.10 Nessa ocasião, tudo ficava no Rio, de forma que, antes de irmos para casa, vínhamos ao Clube, e, além de usufruirmos das facilidades que ele nos oferecia, havia o principal, que era a confraternização com os “Irmãos d’Armas”, que se encontravam na “Praça d’Armas”. Se hoje tudo é mais facilitado, pois quase todos possuem automóveis, há o problema de onde deixá-los, e o Departamento Social tem uma solução paliativa11 para o parqueamento, mas que nem todos utilizam. Os problemas A Praça d’Armas e a confortável e aconchegante sala de leitura do Clube Naval, a “Praça d’Armas da Marinha” vindos, principalmente os sócios mais modernos e mais jovens. É importante salientar que o Clube não é uma OM, é uma associação civil, sem participação político-partidária, sem fins lucrativos, de Oficiais de Marinha, e a sua representatividade depende, e muito, de sua frequência. Não nos esqueçamos de que o Clube Naval é a nossa Praça d’Armas, com todas as suas tradições. n * Capitão-de-Mar-e-Guerra (AvN-Ref). Notas Lais da verga de boreste: extremidade boreste de uma verga. 2 Revolta da Chibata: revolta ocorrida em 1910, capitaneada pelo Encouraçado Minas Gerais, em que os marujos liderados pelo MN João Candido Felisberto reivindicavam a abolição do uso da chibata como meio disciplinador. Nessa ocasião assassinaram o Comandante, CMG João Batista das Neves. 3 Os marinheiros eram recrutados entre os marginais detidos nas prisões, ou então entre os que necessitavam de medidas correcionais, ou ainda do rebotalho bêbado que estava na sarjeta curtindo sua bebedeira. 4 Os militares ou estão em Serviço Ativo, ou na Reserva ou Reformados. 5 Fora de Sede: a Sede era o Rio de Janeiro, fora de Sede era a referência ao território fora do Rio de Janeiro. 6 Na realidade Classe Imperial Marinheir”, mandadas construir na Holanda, pelo então Ministro Almirante Renato de Almeida Guillobel. 7 Chamada carinhosamente pelo pessoal da Aviação Naval de “Macega”. 8 Colina: onde se localiza o Comando Geral do CFN, o antigo Forte de São José. 9 Como os marujos se referem ao pessoal da Marinha de Guerra, numa alusão à gola azul da gandola usada desde os primórdios da Marinha. 10 M-50 Subchefia de Comunicações do Estado Maior da Armada. 11 O Clube Naval subsidia parcela do pagamento do estacionamento. 12 Base Naval do Rio de Janeiro, Mocanguê. 1 de trânsito se agravaram com tempo de deslocamento para casa, o aumento da distância de casa para a sede do Clube, a ida dos navios para Niterói,12 algumas Organizações Militares (OM) para Brasília, o que explica a diminuição do comparecimento. Quem frequenta diuturnamente o Clube e faz dele a sua Praça d’Armas? Um pequeno grupo de sócios, da Reserva e Reformados. Também frequentam, mensalmente ou em períodos mais espaçados, algumas turmas de Escola Naval e as Confrarias que, como as Turmas, se alternam entre a Sede Esportiva (Piraquê) e a Sede Social no Centro da cidade, para seus encontros e almoços de confraternização. As Confrarias dos Bodes Preto (Maquinistas), Verde (Hidrógrafos), dos Aviadores Navais, e outras como a dos Dentistas Navais, a Praça d’Armas do Cruzador Tamandaré, do CT Amazonas, do CT Mariz e Barros, e do CT Catarina são as mais assíduas. Portanto, frequentemos o Clube, nós somos o Clube. Ele precisa de nós, utilizem as salas de Leitura e de Informática, o Pub, a Biblioteca e o Salão do segundo andar, onde todos são bem36 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 37 ODONTOLOGIA O seu sorriso é a nossa vitória 75 anos da Odontoclínica Central da Marinha E Marcello José Gomes Loureiro(1) m 2010, a Odontoclínica Central da Marinha (OCM) completou 75 anos. Muitas comemorações divulgaram sua instigante história e celebraram um passado que merece ser lembrado. “Vamos ao passado para nos reencontrarmos: trata-se de um ato de reconhecimento.”(2) Grandes datas servem para marcar momentos significativos, que asseguram e afirmam a identidade dos grupos sociais. Na verdade, têm ainda outra importância: permitem refletir sobre o que construímos no passado e o que esperamos para o futuro. Por óbvio, a conexão dessas duas dimensões temporais – passado e futuro – se estabelece pelo presente, que somente pode comportar consciência do valor da trajetória de grupos ou instituições se for perpassado por sua história. As comemorações, então, trazem à tona memórias e histórias. Enchem o presente de significados. Promovem reflexão e perspectivas para o futuro. E, ainda, advertem que as ações que atualmente empreendemos são fundamentais para atingirmos o futuro desejado. O marco de origem da história da OCM é 7 de setembro de 1935. No contexto das comemorações da Independência do Brasil, o VA Protógenes Pereira Guimarães, Ministro da Marinha, inaugurava a Odontoclínica Naval, no edifício do então Laboratório Farmacêutico da Marinha, na Ilha das Cobras. Na verdade, com isso, o Laboratório cedia algumas salas para abrigar quatro consultórios.(3) Com esse ato, suplantando ponderáveis óbices financeiros e técnicos, o ministro satisfazia os antigos anseios de muitos cirurgiões-dentistas, entre eles, o CC (CD) Pedro de Moraes Sarmento. Ele, em última análise, era o grande responsável pela viabilidade dessa inauguração, conseguida graças aos seus esforços junto às autoridades da Marinha, bem como à estima de que gozava entre a oficialidade. Com personalidade cativante, diz-se que costumava entrar nos navios e só sair após receber algum donativo de material, esclarecendo e convencendo incansavelmente as autoridades sobre a necessidade da assistência dentária, de modo que todos cooperassem para sua Odontoclínica.(4) Sarmento entrara na Marinha bem jovem, como dentista con- O Almirante (CD) Zetho Cardoso Caldas, aprovado no primeiro concurso para cirurgião-dentista, em 1933, e Diretor da OCM entre 1955-1956 Foto do prédio da Odontoclínica Naval, instalada pelo Dr. Sarmento, em 1935, na Ilha das Cobras. A foto, no entanto, é posterior à década de 1930 (Acervo OCM) (Acervo OCM) tratado. Tinha experiência militar, já que participou da I Guerra Mundial como segundo tenente honorário, embarcado no Tender Belmonte, que na ocasião integrava a Divisão Naval para Operações de Guerra, a DNOG. Efetivado na Marinha em 1932, acabaria por dirigir a Odontoclínica Naval, depois Odontoclínica Central da Marinha (OCM), desde sua inauguração até 17 de setembro de 1938.(5) Apesar de a OCM ter sido inaugurada em 1935, a questão da saúde bucal no Brasil, por óbvio, era bem mais antiga. Na Marinha, uma das primeiras orientações normativas foi registrada em 1825 e consta no “Regime Provisório para o Serviço e Disciplina nos Navios da Armada Real”. Nessa época, a maior preocupação vinculada à saúde bucal era com o escorbuto, chamado popularmente de “flosedão das gengivas”. Determinava-se, nesse texto de 1825, que: ...haverá na bocca da Escotilha hum barril com vinagre e agoa misturada, para todas as manhaes lavarem a bocca, e huma selha 38 Revista do Clube Naval • 358 em que lancem, ou reponhao as bochechas, que tomarem, sem as lançarem no convez; o Comandante do Navio deve obrigar toda a Guarnição a que use esta providencia, meio tão essencial para a conservação da saúde das Equipagens.(6) Perceba-se que a doença era tratada como um mal contagioso, vinculado estritamente à saúde bucal, sem relação com a ausência de vitamina C. Uma vez detectada a doença, suas vítimas usavam um “babadouro de folha de flandres tendo gargalo com rolha de cortiça, no qual se acumulava a saliva sangrenta de fedor cadavérico, que escorria das bocas gangrenosas, brevemente seladas pela morte”.7 Em 1869, durante a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, houve inúmeros casos. No final do século XIX, a prática da Odontologia no Brasil se formalizava e adquiria certa autonomia dos cursos de medicina. O primeiro Curso Superior de Odontologia foi oficializado em 1884, nas Revista do Clube Naval • 358 Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Antes (desde 1851), para obtenção do título de “dentista” ou de “dentista aprovado”, o candidato fazia exames nessas mesmas faculdades. Mas a Odontologia, na prática, era considerada eminentemente artesanal. (8) Dois anos depois, em 5 de novembro de 1886, fundava-se o primeiro Serviço Odontológico da Armada Nacional e Imperial. Nesse mesmo ano, a Armada Imperial admitia seu primeiro cirurgiãodentista, Francisco da Silveira Gusmão, que se diplomou em 1888 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.(9) Em 1889, Francisco Gusmão recebeu de D. Pedro II a comenda de Cavaleiro da Ordem da Rosa; depois, da República, recebeu a patente de primeiro tenente da Armada. Prestou serviços de forma gratuita e ininterrupta por 24 anos, até ser contratado com as vantagens de capitão-tenente. Faleceu em 1920, acabrunhado pelo veto do Presidente Epitácio Pessoa, em 18 de janeiro de 1921, acerca do projeto de elaboração do Quadro de Cirurgiões-Dentistas.(10) 39 A ideia de se estabelecer um quadro de dentistas militares no Brasil adquiriu força depois da criação de um quadro semelhante na Marinha dos Estados Unidos em 1912. Em 1920, a Missão Naval Americana sugeria, inclusive, tal criação.(11) Nessa época, a prestação de serviços gratuitos por profissionais dentistas na Marinha era algo normal. Em 1919, eram seis contratados e 18 gratuitos, que prestavam serviços já por seis anos. Depois de 1932, os contratados foram efetivados e regularizados na Marinha.(12) Em 1933, no contexto do esforço de formalização por que passou o Estado brasileiro sob a administração do Presidente Getúlio Vargas, ao ingresso de dentistas na Marinha, agregou-se nova dinâmica. Definia-se agora, como requisito, a necessidade de uma Prova de Habilitação, com duas etapas, uma Escrita e outra Prático-Oral. No primeiro concurso, foram aprovados Jurandir de Oliveira Pereira, Zetho Cardoso Caldas (que fora contratado antes, em 1931) e Jose Elias de Moraes Fonseca Portela. No ano seguinte, no Corpo de Saúde da Armada, foi incorporado o Quadro de Cirurgiões-Dentistas, conforme o Decreto n° 24.532, de 7 de junho de 1934. O novo quadro admitia: um capitão de corveta; três capitães-tenentes; oito primeiros tenentes; e 12 segundos tenentes. Em 11 de julho do mesmo ano, foi criado o Serviço Clínico Odontológico da Armada e a Odontoclínica Central da Marinha, que somente seria inaugurada em 1935. A década de 1930 representa, dessa forma, um momento importante, de afirmação inicial, para os cirurgiões-dentistas. Afinal, nesses anos, tornou-se possível ingressar no Quadro de CirurgiõesDentistas; foi-lhes atribuída uma sede, a OCM; e, finalmente, foram submetidos a um conjunto de instruções e normas jurídicas. É preciso sublinhar, entretanto, que a ampliação da importância dos cirurgiões-dentistas nas Forças Armadas não pode ser desvencilhada do próprio significado que a Odontologia – nas suas dimensões práticas, epistemológicas e estéticas – adquiriu nos quadros mentais da sociedade brasileira durante as primeiras décadas do século XX. Estabelecida a sede da Odontoclínica Naval, em 7 de setembro 1935, cedo se verificou, no entanto, a demanda por ampliação do novo Serviço de Saúde, que dispunha, sem dúvida, já de utilíssima valia. As instalações foram então transferidas, em 1937, por iniciativa do próprio ministro, para o segundo andar de um antigo prédio vizinho, localizado na parte sudeste da Ilha das Cobras, próximo à ponte Arnaldo Luz, onde funcionou por muitas décadas.(13) Antes, o prédio já houvera se destinado a abrigar a sede da Patromoria do Arsenal, a Auditoria da Marinha e, por último, destinou-se às guarnições dos navios docados nos diques Santa Cruz e Guanabara. Como afirmou o CMG (CD) Raul Pereira Rangel, diretor da OCM entre 1962 a 1966, “este casarão da Ilha das Cobras (...) orgulha-se de ser para a Marinha o marco de transição entre o empirismo e o conhecimento científico”.(14) A inauguração do novo domicílio foi revestida de grande prestígio. Contou com a presença do Almirantado e até do Presidente da República, Getúlio Vargas.(15) Na prática, entretanto, o prédio apresentava um grande problema: não estava nada adequado para abrigar um serviço de saúde, nem sequer a proporcionar conforto para os que ali trabalhavam. Por isso, em toda sua história, sempre houve um esforço enorme para se adaptar um imóvel cuja finalidade original não era a prestação de serviços odontológicos. Assim, por exemplo, na década de 1960, foram melhorados os alojamentos, criada uma Praça D’Armas (1967), um refeitório de praças e civis, bem como instituído o serviço de rancho, até então inexistente. Já em 1969, dispunha o prédio de vinte gabinetes odontológicos; mas, nesse mesmo ano, havia a aprovação de uma obra que deveria viabilizar o funcionamento de mais cinco.(16) Outras obras ocorreram ao longo da década de 1970. Perceba-se, portanto, como a ampliação e a valorização da Odontologia Naval podem ser acompanhadas pelo crescimento de suas próprias instalações. Afinal, o contínuo incremento da demanda por esses serviços obrigou transformações prediais praticamente ininterruptas ao longo de mais de 30 anos. E, paradoxalmente, mesmo com todas essas obras, a OCM teve de buscar novo domicílio (de 2.580 m2) na década de 1980, mais precisamente em 15 de outubro de 1983, sob a direção do CMG (CD) Murillo José Soares.(17) Dessa vez, as instalações da “Casa Nova”, como é comumente chamada, foram pensadas cuidadosamente para abrigar os serviços odontológicos: mais de 60 gabinetes foram disponibilizados para atendimento, e constituem apenas uma parcela de toda uma estrutura voltada para o atual desenvolvimento de procedimentos refinados e modernos. Em 1955, sob a Coordenação do CMG (CD) Zetho Caldas, diretor da OCM, foi iniciada a primeira tentativa de especialização profissional, com a criação da Clínica Cirúrgica e Sala de Operações.(18) Mais tarde promovido a vice-almirante, em 10 de abril de 1956, o Dr. Zetho Caldas foi um dos grandes mentores do desenvolvimento da Odontologia Naval nas décadas de 1930 a 1960. Dispondo de uma longa folha de comissões, que incluía, apenas para citarmos algumas, o Hospital Central da Marinha; a Escola de Aviação Naval, o Navio-Escola Saldanha, em circunavegação na América do Sul; o Sanatório Naval de Nova Friburgo; a Base Naval de Salvador; e a Flotilha de Submarinos, recebeu várias medalhas, entre as quais a de Serviços de Guerra, pela sua experiência na Segunda Guerra, sobretudo a bordo do Cruzador Bahia. Em termos técnicos, a grande reformulação da OCM se processou durante a década de 1960. Em 28 de agosto de 1960, foi inaugurada, na direção do CMG (CD) Ovidio Cavalcanti Filho, no Laboratório de Próteses, a seção de trabalhos de prótese amovível em Vitalium, cujo material e aparelhagem se encontravam guardados na OCM desde 1955. Além do Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Jorge da Silva Leite, a inauguração contou também com a presença da viúva do Dr. Pedro de Moraes Sarmento. Também foi criado, em 1960, um sistema de quatro grandes clínicas especializadas: a Clínica Odontológica e Endodôntica; a Clínica Cirúrgica e Parodôntica; a Clínica Protética; e o Laboratório de Prótese. A finalidade de tais incrementos era viabilizar não apenas um maior número de atendimentos, mas, sobretudo atender com melhor qualidade, a partir do grau de especialização dos procedimentos. Na história da OCM, uma constatação recorrente é a preocupação com o ensino e a profissionalização. Um dos instrumentos para isso era a publicação, desde 1953, da Revista Naval de Odontologia, pelo Centro Naval de Estudos e Pesquisas Odontológicas, anexo à OCM.(19) Além disso, as conferências eram frequentes, a exemplo da proferida pelo Dr. José de Lucca, em 1955, sobre “Fundamentos de Pontes Móveis por Attachment”. Os cursos, por sua vez, também agregavam substancial valor ao processo de profissionalização. Em 1955, o CT (CD) Marcelo Borges realizava um curso de Cirurgia de Boca, na Navy Dental Foto da nova instalação da OCM, a partir de 1937, vista do Arsenal de Marinha. Ela ocupava o segundo pavimento desse prédio; o primeiro servia de alojamento para as guarnições dos navios docados no dique Santa Cruz, cujo, nome, inclusive, é possível ler abaixo de uma das escadas. (Acervo OCM) Fachada do novo prédio da OCM, na década de 1980. Sua capacidade de atendimento era sobremaneira superior à do antigo “casarão” que ocupava na Ilha das Cobras, desde 1937 (Acervo OCM) 40 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 School, em Bethesda, Maryland, Estados Unidos. Já em abril de 1956, teve início o curso de enfermagem odontológica, destinado aos auxiliares odontológicos da própria OCM, bem como aos dos diversos consultórios odontológicos de navios e estabelecimentos. As aulas seriam ministradas duas vezes na semana, à tarde, e a duração do curso, de poucos meses. No final da década de 1960, o padrão técnico-profissional que se exigia nos serviços tecnológicos era de excelência. Havia um Departamento Técnico que mantinha um programa quinzenal de reuniões técnicas, quando eram apresentados e discutidos os temas mais atualizados na área profissional. Especialistas, inclusive estrangeiros, foram convidados para disseminar seus conhecimentos.(20) Apesar do constante esforço de ampliação e profissionalização dos cirurgiões-dentistas, havia uma demanda que nem sempre podia ser atendida prontamente. No final da década de 1960, sublinhavase que “não haverá mais fila de espera para início de tratamento em qualquer das Clínicas (sic), e sim marcação de tantas consultas quantas forem necessárias ao bom funcionamento da Clínica”.(21) Mais adiante, falava-se de “limitação de meios, poucos profissionais e instalações insuficientes”.(22) As demandas por atendimento eram bastante irregulares, conforme a movimentação dos navios no porto. Tal problema foi registrado, antes, em um boletim, de 1955: O movimento diário de clientes em nossa clínica aumenta constantemente, desde que a Esquadra esteja no Porto. Observava-se diminuição de trabalho durante os períodos de exercícios, normalmente, porém, com a Esquadra no Porto, cerca de 90 homens passam pelas 8 cadeiras da clínica de praças, diariamente, entre civis e militares.(23) Outra dificuldade recorrente estava no abandono dos tratamentos por parte dos pacientes. Tanto isso é verdade que em diversas instruções havia orientações para encaminhar pacientes novamente para a Semiologia, iniciando-se novo tratamento, caso faltassem a três consultas consecutivas.(24) Em 1972, todo o ideário vinculado à profissionalização ganhava ainda mais força, concretizando-se com o início, na própria Odontologia Central da Marinha, dos Cursos de Aperfeiçoamento de Cirurgia, Periodontia, Prótese Clínica e Endodontia, cujos currículos foram aprovados pela Diretoria de Ensino da Marinha.(25) A OCM assumia agora a responsabilidade de aperfeiçoar os oficiais que integravam o Quadro de Cirurgiões-Dentistas do Corpo de Saúde da Marinha. No dia 10 de abril foram efetivamente inaugurados os cursos, com a presença de várias autoridades civis e militares.(26) Incremento digno de nota, de iniciativa do Alte Maximiano da Fonseca, foi a inclusão de cirurgiões-dentistas do sexo feminino, a partir da criação do Corpo Auxiliar Feminino da Marinha, em 1980. Em 1981, depois de rigorosa seleção e treinamento, estava incorporada a primeira turma. O resultado foi tão positivo que a experiência, pioneira na Marinha, estendeu-se ao Exército, Força Aérea e Forças Auxiliares. Em novembro de 2000, duas oficiais do Corpo de Saúde da Marinha, sendo uma cirurgiã-dentista, a CT (CD) Renata Cabral Borges de Oliveira, participaram da Operação Antártica XIX.(27) Ressalta-se, por fim, a atuação de cirurgiões-dentistas na Antártica, desde a II Operação, em 1984, e no atendimento às populações que vivem em regiões do país onde somente as Forças Armadas são capazes de chegar. Trabalho árduo, posto que realizado sob condições adversas, por vezes em localidades inóspitas, longe do conforto proporcionado pelos consultórios convencionais encontrados nos centros urbanos. Não foi à toa, pois, que a sociedade brasileira aprendeu a valorizar seus dentistas militares.(28) 41 viabilizou esta investigação. Trata-se, na verdade, de uma ampla massa documental diversificada, riquíssima, que traz informações sobre a questão material, de pessoal e técnica referente à OCM. Não houve, necessariamente, um critério lógico para organização dos assuntos, em geral pertinentes ao período compreendido entre as décadas de 1930 a 1970. A dentisteria operatória, por volta de meados dos anos 1950. Interessante porque a proximidade e sequência dos gabinetes odontológicos trazem a sensação de uma prática reiterativa e serial. Perceba-se, também, a inexistência do uso de luvas. O fundador da OCM. Revista Brasileira de Odontologia Militar. Rio de Janeiro: Abomi, v. 8, n. 14/16, p. 4, 1989-1990. (5) Cf. Regimento Provisional para o Serviço e Disciplina das Esquadras e Navios da Armada Real. Apud RANGEL, Raul Pereira. O tratamento dentário do marinheiro e a Odontoclínica Central da Marinha. In: Livro de Estabelecimento, 1965. Nesta citação, foi mantida a forma antiga de grafia na íntegra. (6) (Acervo OCM) Cirurgiões-Dentistas da Marinha do Brasil em ações cívico-sociais. (Acervo OCM) (2.259 atendimentos), Odontogeriatria (1.386 atendimentos), Endodontia (1.258) e Dentística (1.091). Mas essa história não foi feita apenas de transformações. Se ela possui algumas linhas axiais de permanência, uma delas, sem dúvida, refere-se ao esforço incansável pela excelência e pela força de vontade de se construir um amanhã ainda mais prodigioso. Em razão de tudo isso, em todos esses anos, sob a proteção de Santa Apolônia, padroeira dos dentistas, houve a afirmação e consolidação ponderável da imagem e do significado da Odontologia Naval. (29) Seus profissionais, hoje, beneficiam-se de um reconhecimento notável na Marinha e na sociedade em geral. Para tanto, não houve ócio. O trabalho cotidiano foi apenas uma parte – fundamental, sem dúvida – de toda uma miríade de multifacetadas atividades. Congressos, palestras, exposição de equipamentos exclusivos, exibição de documentos, filmes e fotos lembram sobre a importância de se manter a saúde bucal da família naval. Por ocasião de seus 75 anos, comemorados em 2010, esperamos que esses aspectos históricos da OCM possam mesmo contribuir para a reflexão sobre a importância e grande significado dos cirurgiõesdentistas para a Marinha do Brasil. Afinal, datas comemorativas são ótimas oportunidades para pensarmos naquilo que, juntos, construímos.(30) A Odontoclínica Central da Marinha “muito deve a seu passado e espera de seu futuro”.(31) Porque se o presente, encruzilhada de temporalidades, é o desdobramento lógico do passado, indica, simultaneamente, as perspectivas para o amanhã. Agradeço as críticas, comentários e sugestões da CMG (CD) Helena Rosa Campos Rabang, sem os quais não teria sido possível escrever este trabalho. As possíveis limitações das investigações ora apresentadas, contudo, são de minha responsabilidade. Agradeço também ao Exmo. Sr. Almirante Armando de Senna Bittencourt, 42 Revista do Clube Naval • 358 Diretor do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, e ao seu Vice-Diretor, CF (T) Carlos Fernando Corbage Rabello, que permitiram e viabilizaram esta pesquisa. n Notas (1) Capitão-Tenente (IM), doutorando e mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHISUFRJ); concluiu o Curso de Especialização em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e em História Militar Brasileira pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); e é bacharel e licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Este texto é uma versão resumida do artigo intitulado “‘Do idealismo de seus predecessores à contínua busca pela excelência’ – A missão da Odontoclínica Central da Revista do Clube Naval • 358 Marinha sob os aspectos de sua história”, publicado na edição histórica da Revista Naval de Odontologia, 2010, v. 37, n. 1, Rio de Janeiro – RJ. Cf. GUIMARÃES, Manoel Salgado. Balanço das comemorações. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 4, n. 39, p. 98, dez. 2008. (2) BORGES, Guido Brandão. Histórico da OCM. Revista Naval de Odontologia. Edição Comemorativa do Cinquentenário da OCM. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Almirante (CD) Zetho Cardoso Caldas, 1985, p. 8-9. (3) (4) Histórico do Estabelecimento. In: Livro do Estabelecimento. O Livro do Estabelecimento, organizado nas décadas de 1960 e 1970, foi a principal fonte de pesquisa que (22) Cf. Boletim n. 1, de 1955, Livro do Estabelecimento. Um exemplo está nas instruções sobre prótese, cf. Histórico do Estabelecimento, Livro do Estabelecimento, capítulo XVI, fl. 41D. (24) Verificar 7° Despacho n° 0935 de 8 de dezembro de 1971, em continuação do Ofício de n° 0579, de 18 de maio de 1971, da Diretoria de Saúde da Marinha à Odontoclínica Central da Marinha. Já os Programas dos Cursos foram encaminhados pela OCM à DSM por meio do 5° Despacho n° 0073, de 17 de agosto de 1971, em continuação do Ofício n° 0579, de 18 de maio de 1971. (25) Histórico do Estabelecimento. In: Livro do Estabelecimento, capítulo XVI, fl. 41AB. (26) (27) ROSENTHAL, Elias. A Odontologia no Brasil até 1900, op. cit., p. 31-46, especialmente p. 37-46. (28) LOUREIRO, Ivan. A Odontologia nas Forças Armadas. In: ROSENTHAL, Elias. A Odontologia no Brasil no Século XX. São Paulo: Santos Livraria Editora, 2001, p. 266. (9) RANGEL, op. cit e BORGES, op. cit., p. 3. (10) (11) Idem. (12) LOUREIRO, op. cit., p. 266-267. MIRANDA, Wilson Souza de. Aniversário da OCM. Revista NOMAR, n. 151, 20 set. 1969. (13) (14) Cf. RANGEL, op. cit. (15) Idem. (16) Idem. (17) BORGES, op. cit, p. 9. Histórico do Estabelecimento. In: Livro do Estabelecimento. (18) Revista Naval de Odontologia. Edição Comemorativa do Cinqüentenário da OCM. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Almirante Zetho Cardoso Caldas, 1985, p. 58. (19) (20) MIRANDA, op. cit. Cf. Histórico do Estabelecimento. In: Livro do Estabelecimento, (21) 43 Cf. ibidem. (23) (7) Cf. RANGEL, Raul Pereira. O tratamento dentário do marinheiro e a Odontoclínica Central da Marinha. In: Livro de Estabelecimento, 1965. (8) A história da Odontologia Naval é a história da conquista de um espaço, aliás, assim como é a própria história da Odontologia como um todo. O trabalho incansável de personalidades como o Dr. Sarmento, que entrava nos navios explicando sobre a necessidade de haver uma Odontoclínica Naval, bem como os esforços do Dr. Zetho, anos mais tarde, pela especialização são apenas exemplos que evidenciam como tal conquista se revestiu de complexidade. De 1935 aos dias atuais, houve inúmeros acréscimos e reformas prediais no antigo estabelecimento que a OCM ocupou na Ilha das Cobras. A experiência cotidiana, no entanto, explicitou sua insuficiência. Tanto que em 1983 houve a transferência da OCM para as instalações que atualmente lhe servem. Em 2010, um magnífico projeto de expansão está em curso, demonstrando que, cada vez mais, a Odontologia Naval não cessou seu crescimento. Ao fim das obras, haverá significativo incremento no número de consultórios, que passarão de 81 para 112. Serão criados, ainda, um Centro Cirúrgico, com quatro consultórios; três Salas de Raios X Panorâmico; duas de Raios X Periapical; uma Sala de Tomógrafo; e um Centro de Estudos com capacidade para 120 pessoas. Quando se pensa nos recursos humanos, as conclusões são similares. No início do século, os profissionais eram, muitas vezes, voluntários e contratados. Muitos trabalhavam, inclusive, gratuitamente. Hoje, são cirurgiões-dentistas altamente especializados, constituintes de um quadro coeso, perfeitamente integrados ao contexto profissional e cultural da Marinha. As estatísticas de atendimento atual impressionam. Se em 1955, por exemplo, não totalizavam 600, apenas em setembro de 2010, por exemplo, 109 cirurgiões-dentistas, por meio de 81 consultórios, atenderam a 13.036 pacientes, perfazendo um total de mais de 25 mil procedimentos. As Clínicas que mais atenderam foram Prótese capítulo XVI, fl. 41F. Participação militar feminina na Antártica. Entrevista ao CT (CD) Carlos Alexandre Souza de Lima. Revista Naval de Odontologia, n. 1, p. 67-68, 2003. LOUREIRO, op. cit., p. 265-276. Santa Apolônia, virgem e idosa diaconisa, foi martirizada em Alexandria, no Egito, por ocasião de um levante local contra o cristianismo, na década de 240 d.C., provavelmente em 248 ou 249. Teria tido seus dentes arrancados por um torquês; outros quebrados juntamente com seu maxilar, por meio de vários golpes. Talvez para preservar sua castidade, ou para não blasfemar contra Deus, atirou-se no fogo. No século XVIII, foi feita padroeira dos dentistas. SGARBOSSA, Mario & GIOVANNINI, Luigi. Um santo para cada dia. São Paulo: Paulinas, 1983; e PEYRAUD, Albert. Santa Apolônia, benfeitora espiritual dos dentistas. Revista Naval de Odontologia. Edição Comemorativa do Cinquentenário da OCM. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Almirante (CD) Zetho Cardoso Caldas, 1985, p. 52-54. (29) GUIMARÃES, Manoel Salgado. Um futuro para o passado. Texto de abertura da exposição comemorativa dos 70 anos do Curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. (30) (31) Cf. RANGEL, op. cit. A crise física Paulo Roberto Gotaç * As Marcellus would have put it, something was rotten in the state of the theory from Denmark. * Banesh Hoffman in “The Strange Story of the Quantum”, Dover, 1959 E ste artigo é uma continuação de artigos publicados em números anteriores desta revista.1,2,3 Ao fechar o último deles, concluiu-se que o ano de 1924, com as perplexidades da dualidade onda-partícula que emergiu do trabalho de Einstein sobre o efeito fotoelétrico,2 marcaria o início do agitado período de aproximadamente dez anos ao longo do qual a moderna teoria quântica seria estabelecida. Talvez por se sentir ainda um pouco despreparado para apresentar, de maneira acessível, essa nova fase, desafiadora do “senso comum” da época (talvez a noção atual de senso comum seja um pouco diferente), com alta dose de abstração matemática da linguagem associada, decidiu o autor, neste artigo, dentro do contexto do debate Einstein-Bohr, estender-se somente até 1925, por entender ser este o ano no qual a crise conceitual da Física se torna aguda, com os modelos vigentes, provisórios, chegando ao seu limite, sem um rumo a seguir. Forma-se, em consequência, um quadro irremediável que clama por uma solução mais radical. Nomes ainda não citados nos trabalhos anteriores são agora apresentados como uma espécie de grupo precursor do formalismo da moderna Mecânica Quântica que surgiria ao longo dos próximos três anos. Assim, Arnold Sommerfeld, com suas tentativas de salvar o modelo de Bohr, Wolfgang Pauli, introduzindo um quarto número quântico, mais tarde associado ao que veio a ser conhecido como spin do elétron, para contornar as fragilidades cada vez maiores daquele modelo, ao lado do seu fundamental Princípio da Exclusão, e a ideia do príncipe Louis de Broglie colocando mais ruído na questão da dualidade onda-partícula, são alguns dos sinais de que uma nova era se avizinhava e era inevitável. Ao longo do artigo, procura-se também resumir o estado de espírito e o momento histórico marcado pelo final da Grande Guerra. 44 Os físicos são conservadores Ernst Rutherford Revista do Clube Naval • 358 Os fatos experimentais levantados por Ernst Rutherford, publicados em 1911, estabeleceram de maneira indiscutível a forma planetária da estrutura atômica neutra, com um núcleo positivo “orbitado por partículas com carga negativa (elétrons, aceleradas, portanto), desbancando o modelo de J.J. Thomson, até então aceito, apelidado de pudim de ameixa” por causa da imagem associada a elétrons (partículas descobertas pelo próprio Thomson) incrustados numa massa positiva, tornando o conjunto eletricamente neutro.4 Apesar de corroborado pelos experimentos, o modelo de Rutherford contrariava os cânones da Eletrodinâmica clássica que afirmavam que cargas elétricas aceleradas irradiavam energia continuamente, perdendo-a. Tal fato determinaria, pelo princípio de conservação de energia, uma diminuição da velocidade da partícula planetária, provocando um colapso para o centro positivo, instabilizando e inviabilizando a própria existência da matéria. Forçando a analogia com o movimento planetário modelado pela lei da gravidade, tudo se passaria como se a Terra, por exemplo, na sua órbita, perdesse energia continuamente, reduzindo sua velocidade até colapsar com o Sol (o que talvez esteja ocorrendo, felizmente de maneira muito lenta). Diante de tal perplexidade, acreditando na realidade (o quer que isso signifique) do modelo de Rutherford, Bohr, com sua enorme capacidade de sintetizar informações, aliada a um invejável potencial intuitivo, percebeu que os fatos do microcosmo atômico possuíam características tais que sua descrição teria que romper com certos preceitos vigentes na Física, dominada então pela visão clássica, ou Revista do Clube Naval • 358 seja, pelas regras da ciência da escala humana. Mas os físicos são conservadores e pouco dados a rupturas radicais com o passado. São resistentes a quebras de paradigma, para usar um termo muito em moda, como, na verdade, o são os profissionais de qualquer outra área da atividade humana. Mesmo quando as ousadias conceituais constituem a única saída para um impasse, há sempre uma tentativa meio desesperada de, pelo menos nos estágios iniciais, enquadrá-las no esquema tradicional, mediante a formulação de penduricalhos a serem colocados no corpo da velha teoria, com a única finalidade de resolver um problema específico, o que a torna às vezes estruturalmente disforme e pesada. Há ainda o fator humano, muito bem sintetizado por Planck, quando declara: “Uma nova verdade científica não triunfa por causa de sua aceitação por parte dos oponentes, o que os faria enxergar com mais clareza, mas, ao contrário, porque eventualmente eles morrem e uma nova geração surge, mais familiar com a nova verdade (T.A.).5 Bohr, nascido a 7 de outubro de 1885, desenvolveu sua formação no período de ouro da Física clássica durante o qual a mecânica newtoniana e o trabalho de Maxwell, com a unificação da ótica, do magnetismo e da eletricidade, pontuavam sucessos consecutivos no confronto com os experimentos. Era a época da escola de pensamento designada por mecanicismo, quando se achava que não havia mais perguntas sem respostas, tudo sendo somente uma questão de adaptar a teoria. Como um dos símbolos da fé inabalável nos princípios clássicos, cita-se um registro de 1898 do Departamento de Física da Universidade de Chicago, provavelmente firmado pelo físico americano A. A. Michelson (1852-1931), Nobel de Física em 1907, estabelecendo que os futuros fatos físicos deveriam ser descobertos 45 a partir da “sexta casa decimal”.6 O enigma da radiação do corpo negro, explicado dois anos depois por uma hipótese revolucionária devida a Planck, introduzindo uma constante estranha ao mundo clássico, mas fundamental do mundo quântico;1 a teoria da relatividade de Einstein de 1905, ao solucionar as discrepâncias das relações de espaço e tempo, latentes no próprio esquema clássico, e a sua abordagem heurística do efeito fotoelétrico, também de 1905, com a proposta desconcertante da dualidade onda-partícula,3 demonstraram que a “sexta casa decimal” nada tinha a ver com o futuro próximo da Física. Ironicamente, o mesmo Michelson foi o coordenador do famoso experimento destinado a determinar a velocidade relativa da propagação da luz, devida ao movimento da Terra pelo éter (referencial até então aceito para os fenômenos eletromagnéticos) cujo resultado (negativo) constituiu um dos fatores determinantes para o aparecimento da teoria da relatividade.7 de Bohr só previa um número n para cada nível ou órbita circular permitida) e em reavaliar a forma das órbitas, algumas das quais agora passariam a ser elípticas, com o núcleo ocupando um dos focos, para levar em consideração fatores relativistas (relembra-se que o círculo é um caso particular da elipse, assim como a Física newtoniana é um caso particular da relatividade). A figura 1 representa as órbitas elípticas a serem acrescentadas no caso dos números quânticos de Bohr n = 1 e 2. Tais órbitas correspondem a números k que vão de 1 até n. No caso da figura 1, a órbita original de Bohr n = 1, corresponde ao par de números n = 1, k = 1 e de n = 2 corresponde aos pares n = 2, k = 1 e n = 2, k = 2. Cada par n, k é associado a uma órbita (circular ou elíptica) permitida. Observe-se que as órbitas circulares possuem um par de números iguais (n = k). Tais modificações explicaram a multiplicidade das raias. Lança-se, assim, um bote salva-vidas, preservando momentaneamente a teoria. O chamado efeito Zeeman,11 descoberto experimentalmente em 1897, pelo físico holandês Pieter Zeeman (1865-1943), prêmio Nobel de Física de 1902, consiste na divisão das linhas espectrais sob a ação de um campo magnético, fato não explicado pela teoria de Bohr, passando a constituir mais uma fragilidade. As primeiras fissuras Assim, Bohr, extremamente impregnado pela cultura clássica, adotou um compromisso, inovando, sem romper totalmente com o passado. Refletindo sobre o espectro discreto de raias espectrais do hidrogênio, introduziu o quantum no modelo atômico, criando, em 1913, um sistema híbrido de axiomas nos quais misturavam-se regras clássicas com outras revolucionárias.3 O fato de o modelo proposto constituir um conjunto heterogêneo (ad hoc), sem formar uma estrutura teórica sólida, criou, desde a sua concepção, uma fragilidade que, com o tempo só iria agravar-se. Havia também a preocupação evidente de relacionar o movimento dos elétrons a imagens familiares à escala humana, como órbitas, por exemplo, conceito que, com o desenvolvimento posterior da Mecânica Quântica, mostrar-se-ia ilusório. Apesar disso, o modelo de Bohr foi extremamente bem-sucedido na explicação das raias espectrais, tendo determinado com exatidão, em função de parâmetros fundamentais como a constante de Planck, a massa e a carga do elétron, o valor de uma constante conhecida desde meados do século XIX (constante de Rydberg) por meros exercícios de numerologia baseados em observações.8 Foi fundamental também na elucidação da tabela periódica dos elementos químicos e no mecanismo das reações, aspectos que não serão comentados no presente trabalho, mas que são dignos de menção, na medida em que praticamente explicou toda a química através das famosas camadas eletrônicas, conceito até hoje transmitido quase sem alteração nos cursos básicos.9 Há quem afirme que a evolução da Física desde o final do século XIX até as três primeiras décadas do século XX pode ser sintetizada da seguinte forma: A Física do século XIX ajusta-se muito bem aos objetos do dia a dia. A Física de 1923 ajusta-se muito bem à maior parte da Química; e a Física dos anos 30 vai até onde é possível atualmente na elucidação dos fenômenos básicos da matéria, sem grandes progressos ou modificações nos quase 70 anos transcorridos” (T.A.).10 Os primeiros sintomas de que o modelo de Bohr, devido à sua característica ad hoc, deixava a desejar, começaram a aparecer ainda em 1915, com a Grande Guerra já rugindo, quando técnicas experimentais mais refinadas revelaram que determinadas raias do espectro do hidrogênio não eram traços simples mas múltiplos, fato não explicado pelo modelo teórico. Aí entra em cena o físico alemão Arnold Sommerfeld (1868-1951), célebre por suas qualidades de excelente professor e líder com a capacidade de identificar jovens talentos. Sua proposta, apresentada a Bohr e publicada no início de 1916, consistia em corrigir o modelo original, introduzindo um segundo número quântico, k, para cada nível de energia (o esquema da constante de Planck, a intuição de Bohr ao vislumbrar que no micromundo as coisas não se comportavam exatamente como os objetos da escala humana e o, até certo ponto bizarro, elemento probabilístico introduzido por Einstein em 1917, a ser ironicamente questionado por ele próprio anos depois, serviram de trampolim para a revolução que se avizinhava. Por outro lado, o fundo artístico-cultural do final da guerra era caracterizado por uma ruptura de tudo que representava o estabelecido. Era a época do dadaísmo, movimento surgido aproximadamente em 1916, padrasto do surrealismo,13 como protesto pelos horrores da guerra e em contraposição à rigidez dos padrões artísticos e culturais vigentes. Tratava-se, na verdade, de uma antiarte,14 cujo objetivo era chocar e negar todas as conquistas da espécie humana, por considerar que nenhuma delas valia a pena. Sua base niilística era o nonsense e o escândalo. A exibição organizada por um certo Marcel Duchamp, por exemplo, em 1917, em Nova York, num mictório público, qualificada como ready-made art, era uma manifestação típica do espírito do dadaísmo (fotos abaixo).13 Foi dentro desse ambiente que os físicos da nova geração, mais ou menos na ausência de guias, realizaram a grande revolução quântica, marcada, como se verá nos próximos trabalhos desta série, por um rompimento com o passado, o que significa dizer que no mundo atômico as reconfortantes imagens da escala humana deveriam ser definitivamente esquecidas. O físico alemão Arnold Sommerfeld Figura 1. Representação das órbitas elípticas correspondentes ao números quânticos n = 1 e 2 de Bohr. As letras s e p estão relacionadas com as camadas eletrônicas, citadas no texto. Disponível em: <http://www.feiradeciencias.com.br/sala23/23_MA02.asp>. E, mais uma vez, o socorro veio através de Sommerfeld, com a adição de mais um número quântico, m, representativo da orientação espacial das órbitas. Ou seja: as órbitas não mais estariam somente num plano, como mostrado na figura 1, e as permitidas pertenceriam a um número quântico n, original de Bohr, que, por sua vez compreenderiam órbitas elípticas permitidas pelo número k, orientadas no espaço em direções quantizadas pelo número m. Sem entrar em maiores detalhes, menciona-se, por curiosidade, que, para cada n, k = 1... n e m = –n... 0... n. Este trio de números salvou, mais uma vez, o modelo original do naufrágio. Todo o esquema teórico resultante passou a denominar-se modelo de Bohr-Sommerfeld. A situação permaneceu mais ou menos estável até os primeiros anos da década de 20 do século passado. Os três números quânticos serviram de base para a consolidação das ideias relacionadas com a explicação da tabela periódica, ensinada até hoje nos cursos de Química. Mas era cada vez maior a sensação de que o modelo de 46 Revista do Clube Naval • 358 Bohr-Sommerfeld era provisório, constituindo uma tentativa desesperada de manter os vínculos com os confortáveis conceitos da escala humana tais como trajetórias e modelos atômicos planetários, entre outros. O cenário É evidente que a vida nunca mais foi a mesma após a primeira Grande Guerra. Na Física, o conflito provocou uma lamentável interrupção do intercâmbio entre cientistas alemães e seus pares europeus, além da paralisação de importantes projetos de pesquisa. Alguns de seus principais coordenadores foram mobilizados para a guerra e muitos dos jovens talentos promissores, capazes de prosseguir e aperfeiçoar os trabalhos dos físicos já consagrados (Bohr, em 1918, ano do término da guerra, já estava com 33 anos e Einstein, com 38) não voltaram para casa. Assim, a nova geração encarregada de desenvolver o legado dos fundadores, nascida no alvorecer do século XX, ou seja, à época da revolucionária hipótese quântica de Planck,1 estava no auge da capacidade criativa em torno do início da década de 20, com pouco mais de 20 anos de idade (fase da vida no qual a maioria dos físicos faz suas grandes descobertas), sem receber o bastão dos possíveis continuadores, dizimados pela “guerra que deveria pôr fim a todas as guerras”.12 Seria natural esperar, portanto, que esse novo time viesse meio que descompromissado com a manutenção das velhas imagens clássicas que o modelo de Bohr fez tudo para manter. Isso não significava, porém, que os novos talentos iriam despojar-se de toda a base conceitual já formada na incipiente teoria quântica. Fatos como a universalidade Revista do Clube Naval • 358 Marcel Duchamp, Salvador Dali, e duas peças do ready-made art: o dadaísmo e o surrealismo, na segunda década do século passado 47 durante alguns períodos, dificuldades em obter posições de emprego na vida acadêmica, já que estas são quase sempre conseguidas por meio de indicações. A revolução de Sua Alteza Nascido em 1892, o príncipe Louis de Broglie era o mais jovem de quatros irmãos de nobre família. Desde criança, destacou-se pela vivacidade intelectual, sendo visto como esperança para ocupar futuros cargos ligados ao poder, seguindo a tradição familiar, como indica o fato de que seu avô havia sido primeiro-ministro da França. Com a morte prematura do pai, contando o jovem príncipe com 14 anos de idade, tais planos tiveram que ser revistos, na medida em que a condução do clã ficou sob a responsabilidade do irmão 17 anos mais velho, Maurice de Broglie (1875-1960), oficial de Marinha, que conseguiu obter grau de doutor em Física, o que o levou a abandonar a carreira militar para dedicar-se inteiramente à ciência, criando um laboratório para pesquisa, onde trabalhava quase sempre sob o olhar do irmão mais jovem. Aos 20 anos, Louis ingressou na Universidade de Paris, e lá estudou, sem muita motivação, História Medieval. Sua falta de entusiasmo provinha, provavelmente, do interesse despertado pela Física durante os períodos que passou ao lado do irmão em seu laboratório. Suas dúvidas quanto Thomas S. Kuhn, autor de The Structure of Scientific Revolutions Arthur Koestler, auror de The Sleepwalkers. Os sonâmbulos Segundo o historiador da ciência, Thomas S. Kuhn (1922- 1996), em seu famoso livro The Structure of Scientific Revolutions (1962),15 pode-se identificar, ao longo do desenvolvimento científico, dois tipos de atividades: a ciência normal e as revoluções científicas. A primeira baseia-se numa série de paradigmas, com regras estabelecidas, teorias consolidadas e técnicas de cálculo bem aceitas. É a que normalmente se ensina nos sistemas educacionais. As revoluções, por outro lado, surgem quando os paradigmas falham na antecipação ou na explicação de fatos experimentais. Os dois tipos, apesar de poderem coexistir durante algum tempo, são facilmente identificáveis no registro histórico. Embora ambos sejam essenciais para o desenvolvimento da área específica, os cientistas que se destacam nos períodos normais são diferentes dos que se destacam nas revoluções. Aqueles, apesar de se mostrarem muitas vezes imaginativos, caracterizam-se pela grande capacidade de trabalho, pela organização e pela eficiência no emprego dos recursos técnicos; estes, mais raros, são sonhadores ou sonâmbulos, como os apelidou o escritor húngaro Arthur Koestler (1905-1983), no seu livro The Sleepwalkers.16 Nada impede, porém, que existam os que reúnem as duas características. De um modo geral, os da ciência normal descobrem sua vocação via desempenho escolar. São ótimos alunos e, no caso da Física, na sua maioria, destacam-se nas matemáticas e tendem, ao longo da carreira, a valorizar, nos outros físicos, a capacidade de calcular. Já os sonhadores dirigem-se à atividade científica movidos por questões cujas respostas, normalmente, não estão nos livrostexto. Não demonstrando, em muitos casos, grandes habilidades matemáticas, nem sempre são considerados bons alunos, na medida em que, com dúvidas às vezes fora do contexto, constrangem os mestres encarregados de avaliá-los. Com frequência, encontram, Abaixo, o príncipe Louis de Broglie Figura 2. Ondas estacionárias de mesmo comprimento de corda (L) representativas dos três primeiros harmônicos. As respectivas frequências e comprimentos de onda são quantizados (n = 1, 2, 3). Disponível em: <http://www.infoescola.com/fisica/onda-estacionaria/>. na qual o irmão Maurice, já gozando de grande prestígio nos meios acadêmicos por suas pesquisas experimentais ligadas à difração de raios X e espectroscopia, participou como coordenador e interagiu com os pioneiros da fase revolucionária do início do século XX (estavam presentes Planck, Rutherford, Mme. Curie, Henri Poincaré, o jovem Einstein, então com 32 anos e Lorentz, entre outros), Louis, felizmente para o futuro do desenvolvimento conceitual da Mecânica Quântica, mudou de área, obtendo em 1913 um grau de Licenciatura em Física, a partir do qual esperava dar início então à nova carreira. Lamentavelmente, porém, os primeiros passos tiveram que ser repentinamente interrompidos pela convocação para a guerra do jovem príncipe que, apesar da descendência nobre, atuou como mero engenheiro de comunicações, trabalhando durante a maior parte do combate nas proximidades da Torre Eiffel. Seu contato com a Física só foi retomado após a baixa, em 1919. Apesar de estimulado pelo irmão a compartilhar de algumas atividades experimentais no à carreira a seguir foram agravadas pelo fato de ter sido reprovado em exame de admissão em curso de Física. Após, porém, ter assistido à primeira das Conferências de Solvay (1911), (em etapa futura desta sequência de artigos, serão apresentados alguns detalhes relativos a essas conferências, face à sua importância para o crescimento da Física teórica), em Bruxelas, 48 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 laboratório deste último, decidiu escolher, em 1922, o caminho da Física teórica, incorporando a dualidade onda-partícula de Einstein como fato estabelecido. (As notas biográficas aqui apresentadas foram baseadas em Kumar, M, 2010.)17 O maior e, sob certos aspectos, último período revolucionário na Física, com ecos repercutindo até os dias atuais, foi iniciado por Planck, curiosamente uma espécie de revolucionário relutante,1 com a formulação da famosa hipótese quântica, muito bemsucedida na explicação do espectro de radiação do corpo negro. Nas mãos de verdadeiros revolucionários (Einstein, o principal),2 a ideia de Planck, com seus desdobramentos, deflagrou a mais violenta convulsão conceitual da história da Física. Não é surpreendente, portanto, que a esquizofrenia que se seguiu tenha ensejado o aparecimento de uma numerosa sucessão de sonhadores responsáveis pela edificação do corpo teórico da Mecânica Quântica cuja interpretação, na sua forma mais ou menos consolidada, gera debates até hoje. Após Einstein, apresentando ao mundo sua bizarra dualidade onda-partícula para explicar o efeito fotoelétrico,2 Bohr, com seu modelo atômico inspirado nos experimentos de Rutherford, revolucionou a visão clássica, introduzindo algumas hipóteses com ela incompatíveis, capazes, no entanto, de elucidar com sucesso as raias espectrais do hidrogênio, e de modelar as reações químicas por meio da ideia das camadas eletrônicas, aceitas até hoje nos cursos básicos. Apesar de revolucionário, seu modelo, desafiado por novos resultados experimentais, perdeu consistência e, em 1924, aproximava-se do limite. Por outro lado, seu primeiro embate contra a dualidade de Einstein foi perdida diante de evidências experimentais apresentadas por Arthur Compton3 no mesmo ano, o que levou a Física a um impasse sobre a natureza real da radiação.3 Neste momento entra em cena o príncipe de Broglie para deflagrar a sua revolução. Após um longo período de reflexão iniciado em 1923, imaginou uma generalização da dualidade introduzida por Einstein em 1905, consubstanciando sua ideia na seguinte indagação: se ondas eletromagnéticas (luz) manifestam-se em algumas ocasiões como partículas, não seria admissível considerar que partículas, especialmente elétrons, exibam eventualmente características ondulatórias? Assim, a revolução consistiu em associar à partícula uma onda fictícia, com determinado comprimento de onda e frequência, que, no caso do elétron em órbita seria estacionária (onda com nós fixos, semelhantes às cordas de um violão, quando dedilhadas, dando origem aos harmônicos, ver figura 2, com os três primeiros harmônicos – V é a velocidade de propagação da onda ao longo da corda, em sentidos opostos, dando origem à onda y y y estacionária e 1, λ 2 e λ 3, os respectivos comprimentos de onda), só existindo as órbitas se as cordas, de comprimento L, da figura 2 tivessem suas extremidades unidas, sendo seus comprimentos 49 qualquer corpo material possui sua onda associada, sendo, no entanto, sua detecção para corpos do dia a dia, por exemplo, praticamente impossível, em virtude do valor extremamente pequeno da constante de Planck. Assim, o comprimento da onda associada a uma bola de sinuca de 100 g de massa, dotada de uma velocidade de 10 km/h é de ± 2,3 × 10-33 m! (0 seguido de 31 zeros). A tese de doutorado na qual de Broglie expôs suas propostas revolucionárias foi por ele defendida em novembro de 1924, aos 32 anos, bem mais maduro, portanto, que jovens que estavam promovendo a revolução quântica. Recebidas inicialmente por alguns com ceticismo por serem por demais fantasiosas, sua aceitação pela comunidade científica teve que esperar até 1927, quando os físicos americanos Clinton Davisson (1881-1958) e Lester Germer (18961975) obtiveram dados experimentais comprovando a difração de elétrons, com comprimento de onda compatível com o previsto na tese de de Broglie. A revolução deflagrada pelo príncipe lhe valeu o prêmio Nobel de Física de 1929 e a confirmação de Davisson e Germer lhes garantiu o de 1937. Entre as muitas aplicações práticas em cuja base está a dualidade proposta por de Broglie, destaca-se o microscópio eletrônico, com capacidade de magnificação bem superior à dos óticos, importante em trabalhos de pesquisa em Física, Química e Biologia. circulares caracterizados por um número inteiro de nós, dando origem, com outra imagem, às órbitas quantizadas de Bohr. Sua representação possuiria a vantagem de não precisar contar com a hipótese, contrária ao eletromagnetismo clássico, da não radiação do elétron, enquanto partícula, em aceleração (figura 3). O sonhador do spin Aproximadamente na mesma época da defesa de tese de de Broglie, o modelo atômico de BohrSommerfeld, já com o penduricalho de ter que contar, para cada nível de energia, com três números quânticos (n, k e m), Figura 3. Ondas estacionárias com as extremidades unidas formando órbitas quantizadas.17 O trabalho de de Broglie se desdobrou a ponto de ser ele capaz y de prever o valor do comprimento de onda, , da onda associada à partícula, em função da sua quantidade de movimento, p (produto da massa, m, pela velocidade da partícula, v) e da constante de Planck, h, mediante a relação: Clinton Davisson, Lester Germer e, abaixo, um moderno microscópio eletrônico y = h/p A fim de demonstrar a plausibilidade de sua ideia, sugeriu que um feixe de elétrons, mesmo não fazendo parte de órbitas atômicas, ao passar por uma pequena fenda deveria difratar-se como se fosse onda. (O fenômeno da difração, típico de comportamento ondulatório, pode ser facilmente observado quando, ao passar por um tecido tipo rede [filó], a luz de uma lâmpada é vista como vários pontos luminosos dispostos segundo um padrão a partir do qual é possível medir, em princípio, o comprimento de onda da luz que incide no tecido.) A esta altura, se poderia indagar se a imagem ondulatória proposta só se limita a elétrons. Na verdade, 50 Revista do Clube Naval • 358 necessários para explicar resultados experimentais relacionados com a subdivisão de raias do espectro de hidrogênio (efeito Zeeman), defrontava-se com novas dificuldades. Elas estavam relacionadas com o chamado efeito Zeeman anômalo (as particularidades não serão aqui expostas), sem explicação pelo modelo de Bohr. Aí surge outro sonhador-revolucionário cujo trabalho constitui um dos pilares da Mecânica Quântica que emergiria desse confuso cenário. Wolfgang Pauli nasceu em Viena em 1900. Seu pai – médico de formação, mas cientista por convicção – promoveu a conversão de toda a família do judaísmo para o catolicismo, temendo que a crescente onda de antissemitismo interferisse em suas pretensões acadêmicas.17 Aluno extremamente bem dotado, constituía, no entanto, um incômodo para os professores e administradores escolares, por considerar a escola um sistema sem desafios, sendo surpreendido com frequência dormindo durante as aulas ou lendo às escondidas sobre assuntos alheios aos que estavam sendo explicados. Em 1918, com a Áustria derrotada e Viena intelectualmente esvaziada, transfere-se para Munique, onde se torna aluno de Arnold Sommerfeld, que, graças à sua capacidade de identificar os mais brilhantes entre seus alunos, vê no jovem Pauli um raro talento, encarregando-o de redigir um texto sobre a Relatividade de Einstein para uma prestigiada enciclopédia científica alemã. Publicado em 1921 (aos 21 anos de idade), no mesmo ano em que se tornou assistente de Max Born, sobre o qual se falará mais tarde, e em que defendeu sua tese de doutorado em Física, o artigo, transformado mais tarde em livro,18 é ainda hoje uma referência no assunto por seu rigor e abrangência. Ao receber a tarefa de aplicar o modelo de Bohr-Sommerfeld, com seus três números quânticos já mencionados, a estruturas mais complexas que o átomo de hidrogênio, obteve resultados discordantes com a experiência, primeiro sinal de que o modelo, construído com regras ad hoc, estava no limite de aplicabilidade. Em 1922, já com certa visibilidade no meio acadêmico aceitou convite para trabalhar com Bohr por um ano em Copenhagen, período durante o qual dedicou-se, entre outros trabalhos, a elucidar o efeito Zeeman anômalo, sem sucesso, convencendo-se da necessidade de um esquema teórico abrangente e rigoroso, diferente das regras provisórias do modelo vigente. Mesmo assim, usa-o na explicação de determinadas inconsistências ligadas às camadas eletrônicas dos átomos na tabela periódica, chegando à conclusão que teria de haver um critério na distribuição dos elétrons pelas várias camadas. Mas pagou um preço: a introdução de um quarto número quântico, restrito a dois valores, que explicavam o efeito Zeeman anômalo e sanavam os problemas relacionados com a tabela periódica. Os elétrons dos átomos possuíam agora quatro números quânticos a caracterizá-los e este fato, aliado ao critério de distribuição citado acima, levou Pauli a enunciar, no final de 1924, o seu famoso Princípio da Exclusão, peça fundamental dos processos naturais, razão do seu prêmio Nobel de Física de 1945. Seu enunciado: não existem, num átomo, dois elétrons com o mesmo conjunto de quatro números quânticos. Apesar do sucesso emergencial decorrente da proposta de um número quântico adicional, aliada ao Princípio da Exclusão, a situação da Física estava longe de ser confortável. Como o próprio Pauli admitiu em trabalho de 1925, não havia como justificar aquele princípio (We can not give a more precise reason for this rule”).17 Por outro lado, sendo ainda o modelo de Bohr-Sommerfeld o único esquema conceitual existente, com seus agora quatro números quânticos, Revista do Clube Naval • 358 Wolfgang Pauli 51 MARINHA DO BRASIL matéria de de Broglie) bem fundadas e formalmente diferentes, embora matematicamente equivalentes, conforme provado por um dos proponentes pouco tempo após a publicação de ambas. Elas constituiriam os pilares básicos da moderna Mecânica Quântica, fonte de todo o retumbante avanço tecnológico que transformou a atividade humana de maneira nunca vista em período comparável da história (eletrônica do estado sólido, computadores, microprocessadores etc.). Seus criadores foram o alemão Werner Heisenberg (1901-1976), Nobel de Física de 1932 e o austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) (outra exceção etária), Nobel de física de 1933. O corpo conceitual das duas, juntamente com hipóteses relativas a aspectos probabilísticos, constituem o conteúdo ensinado até hoje nos cursos básicos de graduação em Física. Mas aí é outra longa e agitada história. n sendo os três primeiros sugestivos de noções puramente clássicas, como trajetórias e planos onde elas se situavam, ficava a questão de como interpretar o quarto número quântico proposto por Pauli. O trabalho teórico dos físicos americanos George Uhlenbeck (1900-1988) e Samuel Goudsmith (1902-1978) associou-o a um possível movimento de rotação do elétron (spin), semelhante ao movimento de rotação da Terra em torno de seu eixo, com a ressalva de que, ao contrário do spin clássico cujo eixo de rotação poderia ter qualquer direção, este deveria restringir-se a dois valores opostos, compatíveis com o efeito do campo magnético do efeito Zeeman anômalo, um dos responsáveis por todo esse esforço conceitual. As argumentações que se seguiram (não serão reproduzidas no presente trabalho), envolvendo o próprio Pauli, determinaram que o novo grau de liberdade do elétron, de rotação, não possuía correspondente clássico, como os três restantes, sendo um conceito estranho ao modelo de Bohr-Sommerfeld, embora a denominação – spin– permaneça até hoje. Toda essa movimentação estabeleceu de maneira concreta que o modelo havia alcançado o seu limite conceitual, uma vez que o spin não possuía contrapartida clássica, sendo uma representação, pode-se dizer, puramente quântica. * Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref) * Como diria Marcellus, há algo de podre no estado da teoria originária da Dinamarca (T.A.). A crise Referências bibliográficas Assim, chega-se ao ano de 1925 com uma sensação de crise no ar. O dilema da dualidade onda-partícula, longe de ser resolvido, agravou-se com a proposta de de Broglie, associando características ondulatórias às partículas eletrônicas, consolidando um rompimento com o passado representado pela Física clássica. Por outro lado, o único modelo atômico disponível estava no seu limite de aplicabilidade. Havia grande conteúdo de adivinhação e golpes intuitivos desacompanhados de raciocínio científico. A situação da Física, segundo o historiador da ciência Max Jammer19 era, sob o ponto de vista metodológico, de uma lamentável confusão de hipóteses, princípios, teoremas e receitas computacionais ao invés de uma teoria lógica e consistente (T.A.). Ou, como escrevia Pauli, com seu famoso humor ácido, em maio de 1925: “A Física, no momento, está, de novo, turva; de qualquer maneira, para mim tudo está muito complicado e preferiria ser um comediante de cinema ou algo do gênero e nunca ter ouvido nada sobre Física (T.A.).17 Seis meses após ter proposto o Princípio da Exclusão, o mesmo Pauli torcia para que “Bohr venha salvar-nos com uma nova ideia...” (T.A.).17 Este estado de espírito, além de refletir a perplexidade do momento, evidencia o fato, nem sempre identificado por quem não está engajado no trabalho de pesquisa, que o progresso científico, longe de constituir um processo crescente, contínuo e metódico, se dá por saltos ocasionais, ziguezagues, regressões, amnésias e serendipidades (procura por algo e, nesta procura, a descoberta de fatos não relacionados com a pesquisa original). Há quem especule que, se o progresso científico fosse contínuo e crescente, tudo que se sabe sobre teoria dos números ou geometria analítica, por exemplo, seria descoberto no período de poucas gerações após Euclides.16 1. Gotaç, P.R. Revista do Clube Naval, n. 356. 2. Gotaç, P.R. Revista do Clube Naval, n. 354. 3. Gotaç, P.R. Revista do Clube Naval, n. 352. 4. Disponível em: <http://www.algosobre.com.br/fisica/ modelos-atomicos.html>. 5. Disponível em: <www.thinkexist.com/quotes/max_ planck>. 6. Treiman, S. The Odd Quantum. Princeton, 1999. 7. Caruso, F.; Oguri, V. Física moderna. Campus, 2006. 8. Disponível em: <http://www.ufsm.br/gef/Moderna21. htm>. 9. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/3395783/ Quimica-Aula-03-Configuracao-eletronica>. 10. Gribbin, J. Le chat de Schrödinger. Champs-Flammarion, 1984. 11. Disponível em: <http://www.ifsc.usp.br/~lavfis/BancoApostilasImagens/ApEfZeeman/Zeeman-1.pdf>. 12. Disponível em: <http://www.theamericancause.org/ patwilsonswartoendwar.htm>. 13. Hobsbawn, E. The Age of Extremes. Vintage Books, 1994. 14. Disponível em: <http://www.huntfor.com/arthistory/ C20th/dadaism.htm>. 15. Smolin, L. The Trouble with Physics. A Mariner Book - Houghton Mifflin Company, 2007. 16. Koestler, A. The Sleepwalkers. Penguin Books, 1964. 17. Kumar, M. Quantum – Einstein, Bohr, and the Great Debate about the Nature of Reality. W. W. Norton & Company, 2010. 18. Pauli, W. Theory of Relativity. Dover Publications, 1981. 19. Jammer, M. The Conceptual Development of Quantum Mechanics. McGraw-Hill, 1966. Conclusão A confusão a que se chegou, em 1925 na Física, clamava por uma arrumação da casa. Urgia o aparecimento de um corpo teórico abrangente, lógico e dotado até de uma nova linguagem (não se sabia o que era o spin do elétron!), capaz de juntar os cacos. Apesar das reduzidas esperanças de que tal movimento revolucionário surgisse imediatamente, a comunidade da Física assistiu, atônita, ao aparecimento, ao longo dos três anos seguintes, não de uma, mas duas estruturas teóricas (uma delas inspirada pelas ondas de 52 Revista do Clube Naval • 358 N 43o Aniversário da Estação Rádio da Marinha (erms) em Salvador o dia 3 de maio, a ERMS completa seu 43° aniversário. Sua origem remonta a 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, com a instalação da US Naval Suplementary Radio Station em Salinas de Margarida, na Baía de Todos os Santos. Nesse mesmo local, em 1947, por ocasião da transferência de suas instalações para a Marinha do Brasil, foi criada a Estação Rádio Salinas de Margarida. Após alguns anos de estudos, projeto e obras, em 1958, foi ativada a Estação Rádio de Salvador. Finalmente, em 3 de maio de 1968, a Estação Rádio da Marinha em Salvador (ERMS), como hoje é conhecida, teve sua criação consolidada, passando a fazer parte da estrutura do então Ministério da Marinha. A ERMS tem a missão de proporcionar comunicações entre as OM da Marinha do Brasil, ou entre elas e outras de interesse, pela operação de redes e circuitos de comunicações e cumprir e fiscalizar a doutrina e as normas de comunicações na área do Comando do 2° Distrito Naval a fim de contribuir para o pleno exercício do Comando pelas autoridades navais e o controle das comunicações navais, e tem Revista do Clube Naval • 358 como visão de futuro ser referência na área de comunicações entre as Estações Rádio, com reconhecimento das OM por ela apoiadas. , A despeito das dificuldades encontradas ao longo da árdua jornada, a Estação Rádio da Marinha em Salvador mantém seu espírito jovial e empreendedor, adaptando-se perfeitamente aos desafios dos novos tempos, através de um processo de autoavaliação dinâmico, aplicando continuamente os princípios da gestão participativa, meio através do qual, na atualidade, estamos revendo nosso planejamento estratégico, de forma a nos mantermos fiéis aos nossos valores de Prontidão e Excelência. Nessa data em que mais um ano de trabalho é completado, temos a certeza de que nada disso seria possível sem a dedicação e o esforço dos militares que fazem parte da história desta Estação Rádio e que hoje trazem consigo o orgulho de terem aqui servido. Parabéns, Estação Rádio da Marinha em Salvador! PWF-33: sem QRM, sempre QAP! n 53 marinha do brasil JUBILEU DE PRATA DA ERMN Bandeira de faina da ERMN na faixa de HF (High Frequency), principalmente nas Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), já que tais limites são traçados por convenções internacionais, não existindo barreiras físicas para se impedir eventuais invasões. Nesse ínterim, em junho de 1994, a Estação Rádio da Marinha em Natal passou a operar também como Estação Radiogoniométrica de Alta Frequência (ERGAF), em substituição à extinta Estação Rádio Pina (Recife). No entanto, sua denominação para Estação Radiogoniométrica da Marinha em Natal ocorreu apenas em 16 de abril de 2002. Localizada em uma área de aproximadamente 5.700.000 m2, de densa macega, no bairro Guarapes, município de Parnamirim/ RN, a ERMN é subordinada ao Comando do 3o Distrito Naval e tem como principal missão prover apoio de Comunicações às Organizações Militares (OM) da MB e realizar Atividades de Inteligência das Comunicações, a fim de contribuir para o pleno exercício do Comando pelas Autoridades Navais. Atualmente, a ERMN conta com equipamentos no “estado da arte” em transmissão e recepção de sinais em radiofrequência na faixa de HF. Da mesma maneira, destaca-se a operação dos equipamentos e das antenas adequadas ao guarnecimento dos serviços de comunicações ininterruptos. Nesse contexto, o sistema GATEWAY/ ALE em HF se destaca, promovendo uma comunicação confiável e automatizada, visto que identifica a melhor frequência a ser empregada, possibilitando a transferência de arquivos de dados (textos e imagens) entre navio-terra e vice-versa. Vale destacar que na construção da solidez da ERMN, foi imperativo que seu pessoal, qualificado e motivado, tivesse a real compreensão da importância de suas atribuições e procurasse sempre exercê-las com determinação, lealdade e profissionalismo. No dia 17 de maio de 2011, o Comandante de Operações Navais, AE João Afonso Prado Maia de Faria, acompanhado do VA Airton Teixeira Pinho Filho, Comandante do 3o Distrito Naval, em visita à ERMN, descerrou placa comemorativa ao Jubileu de Prata. A cerimônia militar alusiva aos 25 anos da ERMN foi realizada no dia 26 de maio de 2011 e contou com a presença de ex-comandantes, ex-membros da tripulação, autoridades civis e militares, e convidados. Ao longo dos meses de maio e junho, a ERMN desenvolveu várias atividades, dentre elas destacam-se: o Culto Ecumênico, a Campanha de Doação de Sangue para o Hemonorte, na BNN, a “Olimguarapes” (jogos internos), palestras sobre Motivação e Empreendedorismo e o 1o Simpósio de Comunicações Navais do Comando do 3o Distrito Naval. Ao comemorarmos o Jubileu de Prata da ERMN, externamos o nosso reconhecimento a todos os militares, do passado e do presente, que contribuíram e contribuem, com excelência, para o cumprimento de nossa missão, emitindo em sinal “FORTE E CLARO” o lema de nossa tão honrosa Estação Radiogoniométrica: “EM TERRA OU NO MAR, GUARAPES SEMPRE NO AR!” n * CMG Brasil, Comandante da BNN, preside a cerimônia A EDUARDO RABHA TOZZINI * Estação Radiogoniométrica da Marinha em Natal (ERMN) completou, no dia 15 de maio de 2011, 25 anos de existência, período em que o cenário do setor de telecomunicações foi constantemente alterado, devido ao surgimento de inovadoras técnicas, tornando-se mister a modernização e a inserção de novos sistemas para o apoio de comunicações aos meios da Marinha do Brasil (MB). A então Estação Rádio da Marinha em Natal foi criada pela Portaria Ministerial no 1.695 de dezembro de 1983, com a finalidade de atender aos serviços afetos a uma Estação Rádio de primeira classe. Inicialmente, foi criado um Núcleo nas dependências da Base Naval de Natal (BNN) até a sua prontificação. A ativação em sua plenitude ocorreu em 15 de maio de 1986, aprovada por Portaria do Comandante de Operações Navais e com a consequente extinção do Núcleo até então formado. A MB, em sua constante atuação para a Defesa Nacional, verificou a necessidade em monitorar as emissões de radiofrequências 54 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 55 Capitão-de-Corveta • Comandante da ERMN marinha do brasil Comando da Força de Submarinos completa A tradição estabelecida ao longo de seus 97 anos faz com que a Força de Submarinos veja sua doutrina ser difundida, reconhecida e respeitada em toda a MB. Resultado que é fruto do empenho, entusiasmo, profissionalismo e do saudável ambiente de camaradagem entre submarinistas, mergulhadores, mergulhadores de combate e médicos hiperbáricos tanto de hoje como de outrora. Às portas da aproximação do centenário do ComForS, cresce a expectativa da comunidade submarinista da MB, que aponta para um futuro repleto de realizações e excelência nas atividades submarinistas e de mergulho no Brasil. Parabéns ao Comando da Força de Submarinos! Usq ad sub aquam nauta sum! Marinheiros até debaixo d’água! n 97 anos N o dia 17 de julho de 2011, o Comando da Força de Submarinos (ComForS) completa seu 97º aniversário de criação. A celebração reafirma a missão do Comando, que é executar o controle operativo dos submarinos no mar, além de estabelecer normas, procedimentos e efetuar o domínio das atividades de mergulho na Marinha do Brasil (MB), a fim de contribuir para a eficácia do emprego dos meios navais subordinados na aplicação do Poder Naval. O Comando da Força de Submarinos, criado em 1914 e edificado na Ilha de Mocanguê (Niterói-RJ), é uma Organização Militar da MB subordinada ao Comando-em-Chefe da Esquadra (Comemch). Em 97 anos de existência, o ComForS firmou como marca registrada o empreendedorismo de esforços no trabalho em conjunto com as OM Subordinadas – a Base Almirante Castro e Silva (BACS), o Centro de Instrução e Adestramento Almirante Áttila Monteiro Aché (CIAMA), o Grupamento de Mergulhadores de Combate (GRUMEC), os submarinos das Classes Tupi e Tikuna e o Navio de Socorro Submarino Felinto Perry (fotos abaixo). Fator que possibilitou ao Comando o alcance da excelência nas atividades submarinistas e de mergulho. A Alta Administração Naval, no decorrer dos anos, tem empreendido esforços para que o Poder Naval brasileiro obtenha uma alta capacidade de concepção e operacionalização de submarinos no país. O mais recente é o início da construção, em Itaguaí (RJ), do Estaleiro e da Base Naval de Submarinos, que fazem parte do Prédio das instalações da Base Almirante Castro e Silva – BACS Centro de Instrução e Adestramento Almirante Áttila Monteiro Aché – CIAMA Programa de Desenvolvimento de Submarino com Propulsão Nuclear (PROSUB). Nas novas instalações, que ocuparão uma área de mais de 90 mil metros quadrados e deverão estar prontas no início da segunda metade desta década, serão construídos quatro submarinos convencionais, além do primeiro submarino com propulsão nuclear projetado e construído por brasileiros. Essa iniciativa colocará o Brasil em posição de destaque no cenário mundial, como o primeiro país do Hemisfério Sul a atingir tal avanço tecnológico. Fotos do adestramento do GRUMEC 56 Revista do Clube Naval • 358 Revista do Clube Naval • 358 57 direito ADEQUAÇÃO DA LEGISLAÇÃO MILITAR MILITARES FEDRAIS E MILITARES ESTADUAIS JUSTIÇA MILITAR. CONSELHOS DE JUSTIÇA. COMPATIBILIDADE. RECEPÇÃO. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR (CPPM) E LEI DE ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR (LOJMU). ADEQUAÇÃO. APERFEIÇOAMENTO Roberto Carlos do Vale Ferreira * A Legislação penal militar da União e a dos estados têm seu assento constitucional, nos artigos 122 a 125. O artigo 124 tem a seguinte dicção: “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.” O seu parágrafo único diz que “A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.” E Juiz Natural, desde que haja suficientes indícios de autoria, vale dizer, presumida responsabilidade do Indiciado pelo ato infrator, e da materialidade delituosa. É o Princípio “in dubio pro societate”. Esse Princípio, por nós designado também Princípio da Cautela Social, é exigido do “defensor da sociedade” (como tão bem o define o jurista Diogo de Figueiredo), associado á sua condição de “fiscal da lei”, já que, está ele defronte de uma situação que exige aprofundamento maior; um radar e um sonar mais confiáveis. Sua inicial impressão, o possível oferecimento da Denúncia, é posta aos cuidados do julgador para que o juiz possa bem melhor decidir do destino do denunciado. Se a manifestação do Parquet for recebida pelo Juiz Auditor o denunciado passará à condição de Acusado. Esse agir, gerará o contra-dizer e a ampla defesa, o que se dará no decorrer do processo competente, da instrução criminal, cumpridas as exigências processuais, as do CPPM, e consoante a LOJMU. O promotor, nesse primeiro momento, então age na defesa da sociedade, ao contrário do que possa ocorrer ao ser julgado o caso, se a dúvida persistir. Então reina o “Princípio in dubio pro reu”, se prejuízo do acima referido “in dubio pro societate”. O julgador a que vimos nos referindo é o mote deste trabalho, o “ Conselho de Justiça Militar” competente. Tal navegar exige sérios, adequados conhecimentos e cuidados, além da submissão à Hierarquia das Leis, todos atentos às graves conseqüências que podem advir: a uma, aos irretorquíveis, intocáveis e indispensáveis Princípios e Preceitos Constitucionais, valendo aqui destacar os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, do Devido Processo Legal, do Contraditório, da Ampla Defesa, da Presunção de Inocência, da m razão disso, as leis que cumprem tais mandamentos constitucionais, o Código Penal Militar (CPM)- DecretoLei nº 1.001/10/1969 - o Código de Processo Penal Militar- Decreto-Lei nº 1.002, de 21/10/1969 (CPPM) - e a Lei nº 8.457, de 04/09/1992 (LOJMU), foram recepcionadas pela Constituição de 1988. No âmbito da União, a lei que hoje estrutura, que forma o arcabouço da Justiça Militar Federal é a citada Lei nº 8.457, de 04/09/1992, a que “Organiza a Justiça Militar da União e regula o funcionamento de seus Serviços Auxiliares” (LOJMU). O CPPM, Decreto-Lei Nº 1.002, de 21/10/1969, Código de Processo Penal Militar, que navega em águas processuais, informa, determina o rito, os procedimentos que devem ter os processos penais dessa justiça especial, vale dizer, traça o rumo e as pernadas, travessias nas quais devem demandar todos os que comandam as naus, no mar tormentoso do Direito Penal. Esse oceano-legislativo repressivo é aplicável aos militares e aos civis, tendo como atores da Administração da Justiça Militar, em 1ª Instância, os Juízes Auditores e os Juízes de Fato- militares que compõe o Conselho de Justiça, membros do Ministério Público Militar da União (com vistas aos Militares Federais) e membros do Ministério Público Estadual (com vistas aos Militares Estaduais), bem assim os Advogados, LIberais ou Defensores Públicos, a atuar na defesa de seus clientes. A LOJMU, como registrado, somente em parte se aplica aos estados federados, e ao Distrito Federal (este, um Estado sui-generis). Assim, uma conduta reprovável prevista na lei substantiva, a propriamente lei repressivo- o CPM- em regra aplicável aos militares, e eventualmente aos civis, tal fato, em tese tipificado por delito, seu autor será Denunciado pelo representante do Ministério Público ao 58 Revista do Clube Naval • 358 Igualdade de Direitos das Partes (acusação em um bordo e de outro bordo a defesa) e demais princípios, como bem o fez o legislador constituinte, no §2º do artigo 5º da CRF, os que poderão ser pertinentes e coerentes com tais comandos constitucionais. A este Princípio, denominamos “Princípio da Reserva dos Direitos, Garantias e Deveres Individuais e Coletivos Fundamentais”. Segue a grafia deste parágrafo: “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte; “ a duas, obedecidos os ditames legais em sítio penal. Tudo, tendo por propósito, o Princípio exigível a um processo penal, o “ Princípio da Verdade Real”, dentre outros. Inobstante o juiz do foro cível também deva, de forma mais temperada, com esse princípio se reger, em sítio processual penal, bem mais ainda o é. Por outras palavras, é aquele princípio que exige do julgador decidir de acordo com seu livre entendimento, mas calcado no máximo que se possa apurar com vistas ao fato em fase procedimental, tais como, perícias, testemunhos de toda a espécie, análise aprofundada de cada prova ou contra-prova constante dos autos; todos estes cuidados, permeados pelos argumentos do raciocínio lógico-jurídico, este sob o império da Moral, da Ética, com vistas aos documentos escritos, gravados(de forma legal) e depoimentos orais, todos apresentados pela acusação e pela defesa. Portanto, o processo penal há que ser mais acuradamente analisado, porque o que está sub examen, é a vida, a liberdade, a cidadania do réu. E, para que não pairem dúvidas, o representante do Ministério Público Militar, apreciando o desdobramento do que for apurado, concluindo pela inocência daquele que está sendo julgado, pode e deve, de ofício, pleitear a absolvição do acusado, antecipando-se, pois, à defesa, por ocasião do julgamento. UM POUCO DE HISTÓRIA e de ESTUDO COMPARADO O atual Código de Processo Penal Militar, Decreto–Lei n. 1.002/69 é sucedâneo do “Código da Justiça Militar”, Decerto–Lei n. 925, de 2 de dezembro de 1938, época em que ainda não havia sido criado o Ministério da Aeronáutica, o que se deu em 20 de janeiro de 1941, transformado em Comando da Aeronáutica, por força da Lei Complementar n° 97, de 10 de junho de 1999 e que fez nascer o Ministério da Defesa, pela qual os ministérios militares passaram a se denominar Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (art. 20 da citada LC). Também nessa LC se encontram postas, nos artigos 17 e 18, as figuras jurídicas da “Autoridade Marítima” e da “Autoridade Aeronáutica”, ao tratar das “atribuições subsidiárias particulares” dessas Forças. Ela também cuida do disposto no $ 1º do artigo 142 da CRF, que desta forma se expressa: “§ 1º - Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”. Estudo sobre essa Lei Complementar e suas alterações, nos reservamos a apresentar em outro artigo. De se destacar, outrossim, a tradição da Justiça Militar de isentar o jurisdicionado de custas, exemplo de respeito à Cidadania, e ao Princípio da Isonomia, o mesmo que dizer de uma Justiça Irrestrita aos Jurisdicionados. Um belo exemplo, infelizmente não absorvido, ainda, pelos demais ramos da Justiça em nosso país. Ao contrário, em outros setores jurisdicionais, a cada tempo se acrescem mais emolumentos no interesse dos entes responsáveis pela administração da justiça. Revista do Clube Naval • 358 O JURI. JUSTIÇA DO TRABALHO. JUIZ LEIGO nos JUIZADOS ESPECIAIS. JUIZ LEIGO na JUSTÇA MILITAR Considerando que tanto os militares, oficiais federais, quanto os estaduais participam de Conselho de Justiça Militar juízes leigos,que são, decidimos por enfrentar em breve análise a existência da figura do juiz leigo no Judiciário brasileiro. A meu sentir, nessas passagens da CRF, encontramos sérios equívocos como a seguir expomos. O Júri- inciso XXXVIII, do artigo 5º da CF/88- o abriga, mas tem um perfil oposto ao que o inciso XXXVII, do mesmo artigo, inadmite. Seguem as transcrições destes incisos: “ XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção”; “XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos;” Com todas as venias a seus ilustres operadores e aplicadores da lei, o Júri é instituição discrepante do Poder Judiciário, como adiante examinaremos (e mais detidamente em outro exercício jurídico). Seu nascimento com a Revolução Francesa, ela que foi o grande marco do fim da aristocracia decadente, governo autoritário, se dizendo representativo da Divindade, quando não se diziam ser a própria. Nesse momento, de fulgurante emoção, aflorou a Democracia, o Estado Democrático, em que é ínsito que o Poder não é do governante, mas do Povo, por meio de seus representantes eleitos pela vontade suprema da Soberania Popular. No passado, a existência do Júri foi da maior importância, até porque ainda não havia magistrados como passamos a ter ao longo da história, deles sendo exigido elevado senso comum e alto conhecimento da Ciência do Direito. Considerados, em síntese, a realidade atual de países como o nosso, é despropositado legar–se a um juiz leigo julgar, sobretudo decidir do destino do acusado diante do crime mais grave: o homicídio doloso. Sim, porque são os jurados, juízes leigos, que dizem da absolvição ou não do acusado. Disto, a Justiça Militar Federal está livre. Ao contrário, a Emenda Constitucional n. 45, alterou a redação do artigo 125, §4º, da CF/88, que determinou que os militares estaduais, se vierem a praticar crime de homicídio doloso contra civis, tais militares serão processados e julgados pelo Júri, assim albergando a Lei n. 9299/96, que criou o atual parágrafo único do artigo 9º, do C P M. Os juízes militares ainda que sendo juízes de fato, por suas características, e mais pelo que aqui acrescentaremos, os tornam legítimos para atuar como magistrados. E passaram a ter assento constitucional mais reforçado, pela mesma Emenda Constitucional n. 45/2004- a primeira parte da reforma do Judiciário. Mantida está a norma do artigo 124 e seu parágrafo único, como já registrado neste trabalho, na sua Introdução, bem assim as Leis pertinentes. Eis os parágrafos atinentes ao ora analisado: “ § 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” “ § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a 59 competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” “ § 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” Todavia, tal emenda foi feliz em fazer competente a Justiça Militar Estadual nas Ações Judiciais contra punições administrativas aplicáveis aos militares estaduais (também no §4º) . Afastou, o que era guerreada: a atuação da Justiça Federal Comum. A Justiça do trabalho, pela Emenda Constitucional 24/1999, já aboliu os juízes classistas, criação meramente política, a querer o ditador Vargas, que se dizia o pai dos trabalhadores, dar uma demonstração de equilíbrio entre empregados e empregadores. JUIZ LEIGO, expresso na CRF: “ Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: “I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;” O Juiz Leigo, portanto admitido nos Juizados Especiais, inobstante inserido na CF/88, inciso I, artigo 98, de origem, se opõe pela flagrante incongruência a princípios e preceitos superiores da Lei Maior. E vem se tornando, como em outro artigo o dissemos, um mal para a Justiça, minorando o Princípio do Acesso à Justiça e os Princípios Informativos do Poder Judiciário. À guisa de simplificar a atividade jurisdicional, ainda mais a onera, a burocratiza e a desmerece, já que não se submetem às exigências constitucionais a um Magistrado, Aplicador da Lei. Inexperientes; sem a presença do juiz togado, conduzem audiências e formulam “ projetos de sentença”- de se admitir adrede preparadas - restando ao togado Homologar, ao que faz transparecer, muita vez, como se fora um “carimbo”. Na prática, o togado, é o que se nota na maioria dos casos, jamais é visto pelas partes, a lembrar um tipo virtual. Ou um ser soberano. mar, de Imediato e de Juiz de um Conselho Especial (já bacharel em Direito), e a tendo encerrado como professor concursado de Direito da Escola Naval. Associado da Associação dos Juízes Militares Estaduais (AMAJME), tive o prazer de ler em número de nossa revista, o artigo de estudioso colega que questionou da pertinência constitucional do Conselho de Justiça Militar. Adentrando mais ao tema deste estudo, procurarei demonstrar minha posição, considerando o Direito e a experiência forense nessa sede especial, também como advogado. Compartilho, em parte com o colega, sobre seus alevantados estudos quanto a aspectos de tais Conselhos, o que já venho praticando em uma coletânea de trabalhos sobre a revisão das normas penais castrenses, a contribuir para o aperfeiçoamento dessa Justiça, nascida com D. João VI, e altamente respeitada por bem atender aos Princípios ínsitos a um órgão julgador bem assim ás partes litigantes. Quanto ao que me foi dado apreciar, neste momento, sou dos que entendem que a composição desses Conselhos deva ser reformulada. Por tais razões, proponho o que segue: 1º- que os Conselhos sejam compostos apenas por dois-2oficiais (sendo um deles oficialsuperior, militar de carreira) , além do juiz auditor; 2º- que o mais moderno seja um capitão/capitão-tenente, podendo este ser oficial não oriundo de escola militar, federal ou estadual, conforme o caso; 3º- que o Presidente do Conselho seja o Juiz Auditor, o que já vige na Justiça Militar Estadual. A proposta aqui apresentada de alteração na LOJMU e do CPPM, mais ainda se firma por razões concretas, que vêm se registrando, como regra deletéria da justificação do escabinato, vale dizer, por dele fazer parte militar de larga experiência, pela especialidade de que deve se revestir o foro militar, historicamente embasado nessa diretriz. Assim, sinteticamente, é como o sugeri, com a devida motivação, a seguir: Primeiro, porque vem se tornando comum deparar–se com CJM composto apenas por oficiais que não se formaram nas escolas militares; oficiais de muito pouca experiência da realidade militar. Segundo, na mesma trilha de raciocínio, oficiais no início da carreira, é certo que ainda não adquiriram o conhecimento dos meandros da profissão, além do pouco preparo para tão relevante quanto complexa função. A justificativa de oficiais militares comporem os Conselhos de Justiça é o conhecimento e o sentimento que tem por sua atuação na vida castrense. Portanto, há que ser um oficial com razoável tempo de serviço, devendo, sempre que possível, ser oriundo da Escola Naval e de suas congêneres do Exército e da Aeronáutica, além de terem postos mais antigos (o mesmo se diga quanto ao escabinato estadual). E o ideal seria que, sempre que possível, sejam eles bacharéis em Direito o que hodiernamente não é difícil de se ter, sobretudo na justiça estadual (o que sei ocorrer, por ter sido professor da escolas de formação e da de nível superior da Polícia Militar do Rio de Janeiro). CONSELHO DE JUSTIÇA MILITAR, EM TEMPO DE PAZ De início se esclareça que a legislação militar prevê o país em Tempo de Paz e em Tempo de Guerra. Aqui me cingirei ao Tempo de Paz e ao estudo da compatibilidade de quase toda a legislação militar, ou seja, à sua recepção pelo legislador-constituinte. Outrossim, proponho algumas mudanças na estrutura dos Conselhos de Justiça Militar, deixando outras propostas sobre o tema, quando vier a público a minha visão de como o CPPM e a LOJMU, devem ser aperfeiçoadas, de forma mais ampla. O exposto neste artigo, como em outros de nossa autoria, na matéria, é resultante das diversas experiências e estudos a mim proporcionadas como militar federal (Oficial de Marinha) e como profissional do Direito. Dediquei-me, na carreira advocatícia e na do magistério, mais ao estudo do Direito Constitucional, do Direito Administrativo e do Direito Militar. A par disso, trilhei a Carreira das Armas, na Marinha do Brasil, e, quando na ativa, exerci os cargos de Comandante de navio, no 60 Revista do Clube Naval • 358 Ademais, o se retirar um oficial de suas naturais atribuições, sem dúvida, traz prejuízo ao serviço militar. E não sendo ele bacharel em Direito, sua posição em tal Conselho além de fragilizada, por mais que possa ter sido orientado por sua Força e pelo Juiz, é tarefa, para a imensa maioria, desmotivadora, fato natural de se compreender (da qual sou testemunha credenciada ao longo de minha carreira naval, iniciada em 1953). Desta forma o artigo 16, alíneas a) e b) da LOJMU deve ter a dicção ajustada a tais requisitos, bem como todos quantos sejam diversos desta proposição, além dos preceitos atinentes insertos no CPPM, como em obra específica proponho. E que o determinado em lei, no artigo 26 da LOJMU, seja rigorosamente cumprido. “Art. 26. Os juízes militares dos Conselhos Especial e Permanente ficarão dispensados do serviço em suas organizações, nos dias de sessão.” Também entendo que os futuros oficiais, em suas escolas de formação, tenham uma carga horária de Direito ao menos correspondente a dois anos letivos, nos quais aprenderiam, mais do que hoje ocorre, noções básicas da Ciência Jurídica; da Constituição, de Direito Administrativo, da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), a parte geral do Código Civil e a do Processo Civil, seguindo-se o estudo da Legislação Penal Militar. Ademais, proponho, como de há muito o faço, que durante sua carreira, nos cursos regulares a que já são obrigados para nela crescer, fossem oferecidas oportunidades de reciclagem do Direito, bem como, antes de serem nomeados para o exercício de cargos de Direção, devam cursar, em um período razoável, tais ensinamentos, dos quais muito necessitam bem conhecer e melhor aplicar, sejam comandantes ou diretores. DA COMPATIBILIDADE DOS CONSELHOS DE JUSTIÇA Tratando-se de justiça especial, com regramentos tão específicos, sou pela intocabilidade da existência do escabinato. As considerações esposadas, com seriedade e competência pelo colega, sinto- as de forma um pouco diversa. DO CONCURSO PÚBLICO PARA A MAGISTRATURA e OUTRAS QUESTÕES ABORDADAS NO SEU TRABALHO “ II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)” Tal questionamento, não é requisito absoluto, como nada na vida. De acordo com o artigo 94 da CF/88, para os juízes oriundos do “quinto constitucional”, de real valia, inexiste também concurso público, na forma ditada pela primeira parte do inciso II, do artigo 37, acima reproduzido. A cabeça do artigo 37, dispositivo que encerra os Princípios Revista do Clube Naval • 358 Informativos da Administração Pública, assim se expressa: “ Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)” Princípios esses aplicáveis a todos os agentes públicos, o gênero, inclusive aos agentes políticos, excelsa espécie estratégica, previstos na Constituição Federal, e no entendimento do saudoso e sempre referência, Helly Lopes Meirelles. Vale registrar que o consagrado administrativista e constitucionalista além- mar, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em seu “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Forense, 12ª edição, p. 276, na letra da CRF, denomina servidores públicos, o gênero, tendo por espécie os agentes públicos, estes “ ... legalmente intitulados a exercer, em nível decisório, uma parcela do poder público com uma competência especificamente definida na ordem jurídica.” E subdivide os agentes públicos em agentes políticos e agentes administrativos, reservando o título de agentes políticos, também previstos na Lei Magna, aos “ que têm investidura em cargos vitalícios, efetivos ou em comissão, de assento constitucional ”, desde o Chefe do Poder Executivo aos membros do Júri, entre outros. Por derivada, se conclui que os militares enquanto membros dos Conselhos de Justiça Militar, se amoldam à categoria de agentes políticos, amparados nessa função como o previsto aos magistrados em geral. Outro questionamento. A INDEPENDÊNCIA e às GARANTIAS da MAGISTRATURA Jamais se teve notícia de que os eventuais juízes militares no atuar de um Conselho de Justiça, tenham praticado algum deslize e/ou sofrido qualquer tipo de imposição, de desrespeito a seu comportamento. Nomeado Guarda-Marinha em 1955 e tendo colado grau em Direito, no ano de 1966, e ainda hoje atuando como advogado (OAB/RJ, 18.993), somente tenho motivos para tecer loas à Justiça Militar, seja por sua absoluta seriedade, seja por tudo o mais que a caracteriza, como já constante de artigo publicado na Revista da AMAJME, em 2005 e na do Clube Naval, número 332, sob o título “JUSTIÇA MILITAR E AS FORÇAS ARMADAS.” É o que ponho aos que se dedicam a esta seara, já que pelo diálogo, pelo dizer, e quando necessário, pelo contradizer, é que contribuiremos para o incansável dever de sempre mais e melhor obtermos o aperfeiçoamento da Justiça, sua celeridade, e sua marcante missão de ser atora privilegiada para uma sociedade mais justa, “ fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como se lê no espírito da Lei Magna vigente, ou seja , em seu Preâmbulo. Respeitados os Fundamentos Constitucionais, seus Objetivos, em decorrência, os Direitos Individuais e Sociais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, elegendo-os como valores supremos de mossa sociedade, cada Cidadão estará cumprindo com seu Dever, enquanto pessoa humana, e enquanto membro de uma comunidade magna, a Nação, a solidificar de vez o Organismo Social, nossa Pátria, digna, forte e por toda a comunidade mundial, reconhecida e respeitada, a liderar um novo Tempo de Comunhão entre os Homens. n * Capitão-de-Mar-e-Guerra, advogado, professor de Direito Público. Presidente do IBDA, www.ibda.adv.br 61 NAVIOS DA MB AVISO DE TRANSPORTE FLUVIAL O Igor Corrêa* AvTrFlu Piraim foi construído na Holanda em 1950, no estaleiro H. B. Peters, por encomenda do Serviço de Navegação da Bacia do Prata S/A, atual Cinco & Bacia, sendo batizado com o nome de Rebocador Guaicuru. Posteriormente, em 1977, sofreu profundas modificações estruturais, sendo convertido de rebocador para navio de transporte de passageiros. Em 9 de julho de 1981, o Comandante do Sexto Distrito Naval solicitou a sua aquisição para integrar a Flotilha do Mato Grosso, com a finalidade de melhor dotá-la de meios, para o cumprimento de suas missões no cenário ribeirinho. Sua aquisição foi autorizada em 6 de novembro de 1981. No dia 10 de março de 1982, em cumprimento à Portaria Ministerial n° 1.866/81 do Ministro da Marinha, Almirante-de-Esquadra Maximiano Eduardo da Silva Fonseca, foi incorporado à Armada, ficando subordinado ao Comando da Flotilha de Mato Grosso, com sede na cidade de Ladário, no estado do Mato Grosso do Sul. PIRAIM ORIGEM DO NOME O AvTrFlu Piraim foi o primeiro navio da Marinha do Brasil a receber este nome, cujo significado, na língua tupi, é “o rio do peixe”. Foi assim denominado em uma justa homenagem ao feito militar de Augusto Leverger, Chefe-de-Divisão e Barão de Melgaço, que, à margem direita do rio Piraim, em Porto Melgaço, organizou e comandou a resistência que impediu o avanço paraguaio em direção a Cuiabá e a consequente queda da capital, tornando-se, por isso, um grande herói e digno da gratidão de todos os brasileiros. MISSÃO As características de projeto e a configuração do AvTrFlu Piraim permitem o seu emprego em operações no cenário ribeirinho, realizando as seguintes tarefas: transportar tropas, sendo a sua capacidade de até dois pelotões de Fuzileiros Navais, transportar até 10 toneladas de carga, reconhecimento de áreas, operações aéreas de pickup de pessoal e material, com a aeronave IH-6B, e apoio às embarcações de desembarque de viatura e pessoal (EDVP). Secundariamente é empregado em missões de Patrulha Fluvial e Inspeção Naval, Assistência Cívico-Social, missões de socorro e salvamento, transporte administrativo de pessoal e missões de representação. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS • Comprimento total: 25 metros • Boca: 5,5 metros • Calado: 1,2 metro • Deslocamento: Leve: 58,7 t Normal: 74,6 t Plena carga: 91,51 t • Velocidades: Descendo o rio: 12 km/h Subindo o rio: 8 km/h • Tripulação: 3 Oficiais e 19 Praças • Armamento fixo: 4 metralhadoras 0.50 mm • Propulsão: 2 motores MWM TBD 229, 6 cilindros, 4 tempos e 197 HP • Geração de energia: 2 motores MWM D 229, 6 cilindros, 4 tempos e 81 kVA • Equipamentos de auxílio à navegação: o navio dispõe de 1 Radar Furuno 1830, 1 Radar Furuno 1623 (em instalação), 1 agulha giroscópica Giro Compass Standard 20, 2 agulhas magnéticas, 1 GPS GP 500 e 1 GPS GP 35, 1 ecobatímetro fixo SQN e 1 ecobatímetro fixo Furuno LS-4100 (em instalação) e 1 ecobatímetro portátil 150 SX • Equipamentos de comunicação: o navio dispõe de equipamentos para comunicação em HF, VHF e UHF BRASÃO Descrição: em um pentágono formado de cabos de ouro e encimado pela Coroa Naval, em campo de vermelho, Coroa de Barão; cortado de faixa ondada de azul, carregada de sete peixes nadantes e voltados à destra; contrachefe de verde. Explicação: piraim – um dos braços em que se bifurca o rio Cuiabá, logo abaixo de Barão de Melgaço, vulto naval que faz parte da história de Mato Grosso, região onde o navio está vinculado a operar. A faixa ondada carregada de peixes representa o rio Piraim, corruptela do antigo “pirahy” (em tupi, “o rio do peixe”). n * O Piraim camuflado 62 Revista do Clube Naval • 357 Revista do Clube Naval • 357 63 1º Tenente. personalidade Vida e morte do pela Câmara dos Vereadores que mudou o nome da Praça da Constituição, onde se encontra a magnífica estátua equestre de D. Pedro I, para Praça Tiradentes (Gerson, 2000:121). O fato de ter figurado entre os conspiradores da República, não conferiu um status maior para Lorena, conclusão que tiramos de uma passagem de Medeiros e Albuquerque (1933:170), que narra que Aristides Lobo, Ministro do Interior, ao recebê-lo para tratar de uma indicação sua de candidata ao estudo de harpa no Instituto de Música, não deferiu sua indicação, e disse-lhe que isso dependia unicamente do diretor do instituto. Este era Leopoldo Miguez, autor da música do aziago, hoje Hino da Proclamação da República, que à época tentaram impor como Hino Nacional, e que foi escorraçado Comandante Lorena rer Luís Severiano Soares Rodrigues* É um ponto pacífico na história brasileira, que o 15 de novembro de 1889, pegou a Marinha de surpresa, e que esta, por meio de seus membros proeminentes, aceitaria os desdobramentos dessa data, consternada, e permaneceria ainda por muito tempo monarquista e aristocrática. Contudo, fontes maçônicas (GOB), dão como presentes à reunião de 11 de novembro, em casa do Marechal Deodoro, dois marinheiros maçons, o Alte Wanderkolk e o CF Frederico Guilherme de Lorena. N essa célebre reunião, os republicanos aproveitando o renascimento da questão militar, convencem o marechal monarquista a depor o chefe do governo, o Visconde de Ouro Preto. E no 15 de novembro, com as mentiras inventadas pelo Major Solon, convencem o dito marechal a derrubar as instituições que ele jurara defender, e com elas o imperador e sua augusta família, aos quais Deodoro devia não poucos favores. O mal estava feito, mas temos de defender Wanderkolk, que seria Ministro da Marinha do governo provisório, e Lorena, pois o trabalho sujo foi todo do futuro General Solon, pai da mulher que seria a desgraça de Euclides da Cunha, certamente uma característica hereditária. A aparente tranquilidade do advento da República, com o povo assistindo bestializado nas palavras de Aristides Lobo, foi apenas aparência. A consolidação das instituições republicanas não se daria, senão à custa de muito arbítrio, sangue e lágrimas nos anos que se seguiram, e o Comte Lorena figurará no capítulo sangue dessa história. 64 Frederico Guilherme de Lorena nasceu em 31/3/1839 em Rio Grande, província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Provinha de uma família em nada ligada a tradições navais recentes, pois seu pai e avós, todos foram oficiais de linha das tropas de milícias da província, tradição trazida desde os Açores, de onde provêm os Medeiros de Souza, que no Brasil se ramificariam em Lorenas de Souza e Albuquerques, dos ramos dos Medeiros de Souza que ficaram em Portugal (Açores) são seus parentes os barões e viscondes das Laranjeiras e os viscondes, condes e marqueses da Praia e Monforte, todos de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel. Sua família também estava ligada a altos interesses comerciais, seu pai, Delfino Lorena de Souza, exerceu a função de delegado em Rio Grande, foi diretor da Caixa filial de S.P. do Rio Grande do Sul do Banco do Brasil (1853), era acionista da Cia. de Seguros Fidelidade, dedicava-se ao comércio de ferragens em Rio Grande, e também era acreditado como negociante na praça do Rio de Janeiro. Em uma referência de relações de familiares de Lorena com a Marinha, temos que seu bisavô José Rodrigues Barcellos Revista do Clube Naval • 358 Capitão-de-Mar-e-Guerra Frederico Guilherme de Lorena (Cavaleiro da Ordem de Cristo, Oficial e Dignatário da Ordem do Cruzeiro) vendeu à Marinha a Escuna/Canhoneira Capivari em 27/11/1838. Por esse ramo dos Rodrigues Barcellos temos que seu primo Miguel Rodrigues Barcellos (Barão de Itapitocay) exerceu interinamente a presidência da província por ser vice-presidente. Ainda nesse ramo encontramos entre seus ascendentes, João Álvares Fagundes, navegador português dos séculos XV/XVI, descobridor da costa nordeste americana, hoje províncias de Nova Escócia, Terra Nova e Labrador no Canadá. Lorena se casou no seio da alta aristocracia, pois sua esposa Dona Mariana da Fontoura Palmeiro Pereira da Cunha era filha do Alte Manoel Luís Pereira da Cunha e neta paterna do Marquês de Inhambupe. Sua carreira na Marinha começa aos 16 anos como aspirante a guarda-marinha em 1855. A Guerra do Paraguai o encontrará já primeiro tenente, apresentando-se em Montevidéu já em 1865. No ano seguinte, por feitos na passagem do Passo da Pátria, foi elogiado pelo comandante Visconde de Tamandaré. Em 1867 foi licenciado por saúde, mas fixou-se no Rio Grande para não estar longe, caso melhorasse. Nesse momento já era Cavaleiro das Imperiais Ordens da Rosa e de Cristo. Em 1871 foi feito Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro e recebeu a medalha geral da Campanha do Paraguai. Em 1875, capitão-tenente; em 1876, ajudante de ordens e secretário da Força Naval do Rio Grande do Sul. Em 1883, capitão de fragata; e em 1890, capitão de mar e guerra. Na República, Lorena se dedicou à política e foi eleito vereador no Distrito Federal, e foi sua a proposta aprovada Revista do Clube Naval • 358 Marechal Floriano Peixoto por vontade do povo que preferia o antigo. Em tempo, a letra bizarra do tal hino é do próprio Medeiros e Albuquerque. A vida da República, como era de se esperar, não estava fácil. Apesar da Constituição já promulgada em novembro de 1891, o não político marechal presidente eleito indiretamente, frente à forte oposição movida contra o seu governo no Parlamento, tenta um golpe contra o Congresso, pretendendo fechá-lo. Isso provocou forte oposição na Marinha, com a reação do Alte Custódio de Melo contra o ato do presidente, que, frente às circunstâncias, foi forçado a renunciar. O vice-presidente, Mal. Floriano, assumiu o poder, mas os problemas só estavam começando. O governo do Mal. Floriano, certamente inaugurou a maldição do vice, presente ao longo da história republicana brasileira. O Mal. Floriano atraiu contra si grandes animosidades, já que, por dispositivo constitucional, deveria ser realizada nova eleição para a Presidência da República, já que a vacância aconteceu antes de dois anos transcorridos do mandato presidencial. Floriano ignora completamente esse fato, e manteve-se na presidência a ferro e fogo; para se 65 mostrar desentendido assina todos os atos de seu governo, eufemisticamente, como vice-presidente em exercício. Todos aqueles que cobraram o cumprimento da Constituição foram alvo da ira do “vice-presidente”. Como corolário dessa situação, teremos várias prisões, desterros, exílios, governos estaduais sendo depostos e substituídos por amigos e aliados do vice. Essa situação só poderia gerar descontentamento dos legalistas e idealistas, puristas da utopia republicana. Apoiando Floriano só os jacobinos, aqueles que gostam de ver o circo pegando fogo. Nos primeiros momentos do governo Floriano, veremos Lorena como os demais homens de Marinha, como espectadores do desenrolar da normalidade institucional, a título de exemplo veremos Lorena como o 12o signatário da ata de inauguração do bonde para Copacabana em 1891, Floriano é o primeiro, e Custódio de Melo é o quarto (Cintra, 1956:126). Contudo esses homens vinham de um mundo de estabilidade político institucional, consolidado nos últimos 40 anos do reinado do augusto Sr. D. Pedro II. A sucessão de governos dentro de um ambiente político civilizado e estável permeava suas mentes, e, na sua ilusão, era isso o que esperavam para a sonhada República, que no íntimo pensavam ser uma evolução, ao menos na teoria, mas na prática a teoria era outra. Assim não tardou que o Rio Grande do Sul (2/1893) se levantasse contra o governo central. A imposição por Floriano de Júlio de Castilhos como presidente do estado fora o estopim para a revolta liderada pelo grande Silveira Martins e militarmente chefiada pelo Gal. Gumercindo Saraiva. No Rio de Janeiro o Alte Custódio de Melo, temos convicção, não poderia agir de outro jeito. Se opusera à ação inconstitucional de Deodoro e não poderia admitir a ação inconstitucional de Floriano. Aqueles homens por 67 anos de Brasil independente nunca haviam visto um Estado de sítio e viveram num Estado de Direito. Assim a ameaça de Floriano aos membros do Supremo Tribunal, de que não haveria quem lhes desse habeas corpus, se eles continuassem concedendo habeas corpus aos presos políticos, deve ter pesado muito na mente daqueles que se iludiram com a utopia republicana. A Armada se rebela (9/1893) contra o governo, combatendo aquilo que chamavam de militarismo, queriam o governo civil dentro da normalidade constitucional. Era a guerra civil, e seus resultados não poderiam ser outros além da divisão do país, e o sofrimento de muitos pela insanidade de um déspota. No Sul ver-se-iam grandes atrocidades e na baía do Rio de Janeiro uma conflagração intestina de bombardeios recíprocos. Em 6 de julho de 1893, antes mesmo da deflagração no Rio de Janeiro, o Alte Wanderkolk, vindo de Buenos Aires a bordo do Júpiter, tenta auxiliar os revoltosos federalistas, lançando um manifesto aos cidadãos de Rio Grande, onde ele enfatiza: “É tempo de agir em socorro dos irmãos. É tempo de se bater este soldado sem escrúpulos, que fez da traição profissão de fé; que procura por todos os meios, desde a intriga e a calúnia até as armas, reduzir à escravidão sob o regime republicano uma nação que foi sempre mais livre e republicana mesmo sob o regime monárquico”, os grifos são nossos (Thompson, 1934:30-31). Wanderkolk será um dos primeiros presos pelo regime do Mal. Floriano quando da revolta da esquadra em setembro. 66 Atendo-nos apenas à ação de Frederico de Lorena, temos que este já a 16 e 17 de setembro, comanda uma flotilha, cuja nau capitânia é o Cruzador República, que força a barra sob fogo das fortalezas e dirige-se ao sul, tenta assediar Santos, mas o mar virado e o desencontro com as forças de terra fazem-no prosseguir rumo a Santa Catarina, para alívio dos santistas, que sabiam não poder resistir mais tempo. Sem resistência e sob a complacência das autoridades locais, Lorena ocupa Desterro, e lá estabelece o governo provisório da República e torna-se chefe desse governo. No entanto, o seu poder de ação se mostrou limitado por falta de recursos e entrosamento com os federalistas que quiseram se apoderar do governo provisório, o qual de acordo com Custódio de Melo não cede. No tocante aos recursos, em carta de 4/11/1893, responde a Rui Barbosa, que de Buenos Aires solicitara fundos para a compra de armamentos para os revoltosos, Lorena declara infundadas as notícias de avultados recursos encontrados nos cofres de Santa Catarina, e que são diminutos os rendimentos da alfândega do Desterro (Lopes, 1953:114-115). Muitos foram os reveses dos revoltosos. O ardiloso Floriano, com a conivência estrangeira, armou as encostas da cidade do Rio de Janeiro para bombardear a esquadra. Comprou uma esquadra nos Estados Unidos e, com a intervenção direta dos navios americanos fundeados na baía do Rio de Janeiro, deu o golpe de força, que não deixou outra opção aos rebelados senão pedir asilo político nos navios portugueses, conseguido graças ao comandante Castilho, salvando assim suas cabeças. Indo para o Sul, todos desceram em Montevidéu, muitos se juntariam aos federalistas. No Desterro, as forças governistas também foram exitosas, por terra e pelo mar. Lorena e outros foram presos pelas tropas do Cel. Moreira César. Seu fuzilamento, na Fortaleza de Santa Cruz, na Ilha de Anhato-mirim, foi sumário, sem julgamento. Fuzilados com ele dois sobrinhos: 1T Delfino Lorena e o Aspirante Pedro Lorena e muitos outros. Finda a sua curiosa saga, conspirara pela República, lutou pela legalidade constitucional da República e foi fuzilado pela República. Sua luta certamente foi para provar a si mesmo que não estava errado ao presenciar aquela reunião de 11/11/1889, mas frente ao pelotão de fuzilamento ele teve a sua resposta. Sua morte seria vingada pelos monarquistas de Canudos, em 1898, que carregaram a cabeça do Cel. Moreira César como troféu, mas, mesmo esses, a plácida República de 15/11/1889 mataria com requintes de crueldade. Anos depois, curiosamente, decretos do governo provisório assinados por Lorena, seriam encontrados em uma gaveta do Palácio Itamaraty no Rio de Janeiro (Rodrigo Otávio apud Barroso, 1968:63) e encaminhados para o Arquivo Nacional. Após o martírio do Alte Saldanha da Gama, em Campo Osório, finda-se o último ato dessa tragédia republicana brasileira, coalhada com o sangue de entorno de 10 mil brasileiros. Muitos daqueles que obstinadamente lutaram contra Floriano foram anistiados pela República civil. O próprio Custódio de Melo; Alexandrino de Alencar chegou a ser Ministro da Marinha, entre outros exemplos. Já é tempo de anistiar a memória e a honra desses bravos homens, que sucumbiram, mas jamais desertaram apesar da ingênua utopia de confundir República com liberdade, mesmo que a realidade republicana provasse que eles estavam errados. n Revista do Clube Naval • 358 CF Lorena e família Bibliografia Albuquerque, CMG A. L. Porto e. Aos Perdedores a República. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 dez. 1991. Albuquerque, Francisco Tomasco de. Frederico Guilherme de Albuquerque um escorço biográfico. Niterói, 1997. Albuquerque, José; Medeiros, J. de C. da C. Minha vida (memórias). 2. ed. Rio de Janeiro: Calvino Filho Editor, 1933. Araujo, Joaquim Aurélio Nabuco de. A intervenção estrangeira durante a Revolta de 1893. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1939. Cintra, Alarico J.C. Bisbilhotando o passado – o Rio das vacas gordas. Rio de Janeiro: Editora Brand, 1956. Laemmert. Rio de Janeiro. 1856. Escobar, Wenceslau. Apontamentos para a história da Revolução Rio-Grandense de 1893. Brasília: Ed. UnB, Coleção Temas Brasileiros, 1983. www.portfolium.com.com.br/artigooleone2.htm Gerson, Brasil. História das ruas do Rio. 5. ed. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000. Lopes, CT Murilo Ribeiro. Rui Barbosa e a Marinha. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1953. www2.uol.com.br/historiaviva/conteudo/ materia/materia_23.html www.fortalezasmultimidia.com.br/ novidades/meses_mostra.php //cadete.aman.ensino.eb.br/histgeo/ HistMildoBrasil/conflinRep/ 2RevFedRS.htm www.novomilenio.inf.br/santos/h0205.htm Magalhães, Cel J. B. A consolidação da República. Rio de Janeiro: Ministério da Guerra, s/d. www.bigua.com.br/modules.php Barroso, Gustavo. História do Palácio Itamaraty. MHDI – MRE. Seção de publicações, 1968. Thompson, Alte A. Guerra Civil no Brazil de 1893-1895. Rio de Janeiro: Editora Navarro, 1934. www.geneall.net Carvalho, Mário Teixeira de. Nobiliário sul riograndense. Porto Alegre: Editora Globo, 1937. Outras fontes: Revista do Clube Naval • 358 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros. Typografia Universal de 67 www.gob.org.br/default/museu/ galeria/grao_12.htm * O autor é economista, pós-graduado em história, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Niterói e Conselheiro-Secretário do Instituto Cultural D. Isabel I, A Redentora. segunda guerra RECORDAÇÕES DE UM TRIPULANTE ESPECIAL DO serviço não eram bem- vindos. A marujada tinha de participar para facilitar qualquer prestação de serviço por paisanos. Era louco por licença. Quando o navio estava se preparando para passar a prancha ele ficava impaciente, e mal ela era passada nosso herói se lançava para terra ignorando o registro dos cabos de e até o desembarque do Comandante. Se licenciava antes do Comandante e chegava depois. Durante a guerra nosso regresso de licença era até as 24 horas. Netuno cumpria disciplinadamente o horário. Houve contudo uma ocasião em que ele excedeu a licença e ao chegar ao cais o navio já havia desatracado. Mas não titubeou, lançou-se ao mar e nadou para o navio que evidentemente manobrou para o recolher. Claro que não foi tesado pelo Comandante que, ao contrário, teceu elogios a seu gesto de não perder o navio. Por 19 meses servi no glorioso Bahia quando então desembarquei separando-me de meu companheiro de tripulação perdido com o afundamento de seu berço. Entretanto, com o tempo, voltaremos a nos encontrar nas águas do Atlântico que juntos defendemos. Sendo último Oficial ainda vivo do Cruzador Bahia, fantasma do Atlântico, quando ocorrer meu último desembarque, serei cremado e minhas cinzas serão lançadas ao Atlântico, onde começamos juntos nossa carreira naval. n CRUZADOR BAHIA Estanislau Façanha Sobrinho * É com os olhos marejados que escrevo estas linhas baseadas numa crônica escrita na antiga Marinha em Revista da DPMM de julho de 1949, pelo então CT Oswaldo Pinto de Carvalho, Guarda-Marinha de 1940, já falecido e que era grande entusiasta de nosso velho cruzador. Vou recordar relevante egundo pudemos apurar ele era embarcado até novembro de 1944. Fui, dessa membro da tripulação 50% policial e 50% vira-lata. forma companheiro de tripulação do heroico Dessa mistura racial resultou Netuno por cerca de 19 meses. do saudoso Cruzador imponente estrutura física e Netuno, evidentemente não procedeu de Bahia e perdido com ele bravura. nenhuma de nossas Escolas de Aprendizes Netuno nasceu em fins de Marinheiros. em sua catástrofe em 1941, por coincidência ano de Apresentou-se, ainda recém-nascido, meu ingresso na Escola Naval. Assim, posso como voluntário, sendo inicialmente alijulho de 1945. dizer que fomos calouros no mesmo ano. mentado por mamadeira. Dado o fato de ser Trata-se do cão Netuno Sentou praça no Bahia em 1 de janeiro de o primeiro dia do ano foi recebido a bordo 1942. Mais uma coincidência: foi o ano em com salva de 21 tiros. Seu berço foi portanto o nosso grande mascote que saí Guarda-Marinha, no mês de setembro velho cruzador e todos nós o adorávamos. em virtude do Brasil no conflito mundial. Seu período de adaptação ao navio passou de grande fidelidade Embarquei no Cruzador Bahia em 9 de por cima da Organização Interna. ao seu navio. abril de 1943, já Segundo-Tenente e fiquei Entretanto, com cerca de um mês de S o 68 Revista do Clube Naval • 358 * Vice-Almirante (IM-Ref) embarque, já se havia habituado com a vida de bordo, isto é, balanço do navio, enjoo, apitos e toques de cornetas. Só não se habituou nunca com os exercícios de tiro. Quando percebia que o navio se preparava para atirar tratava logo de se enfurnar nas cobertas abaixo. Teria sido bom Imediato pois embora sem conhecer os planos do navio conhecia todos os compartimentos e instalações do navio que ele vivia inspecionando a tudo e a todos. Seu local preferido sempre foi a proa. Muitas vezes o víamos durante o expediente junto à bandeira do Cruzeiro, ignorando o Revista do Clube Naval • 358 vento, o salpico das águas e o caturro saltitante do navio. Suas correrias e brincadeiras preenchiam a alma daqueles homens dedicados do navio. De quando em vez subia ao passadiço como para quebrar a monotonia dos homens de serviço. Com a Oficialidade Netuno não tomava intimidade. Era respeitoso. Sua intimidade era só com a Guarnição a quem adorava. Paisanos eram detestados. Apenas não agredia alguns que participaram de comboio conosco. Respeitava a tradicional gentileza naval. Civis que vinham a bordo por qualquer razão de 69 ensaio O CURUMIM, VISÃO LIVRE N Sergio L. Y. dos Guaranys * ossa vida é contínua exploração de redondezas, com elevações, aumentos de horizontes e de presenças realizando trocas de coisas definidas por coleções sem nome. Rejeitando perder objeto indefinido em meio a numerosos traços distantes vale a pena selecionar algum ainda desprovido de utilidade indicada, mirar nele desviando de sua vizinhança a atenção. Enquanto a visão percebe formas e cores da figura do objeto, a mente pode associar a vista com funções, histórico e outras imagens onde estaria. Replicamos a opção do curumim ora levando a mente em pala perscrutando a situação de objeto, ora em escudo criando uma atitude dele. Ganhamos tempo tratando antes dos indivíduos as coleções deles, onde mais tarde enxergamos que alguns indivíduos importam mais que as coleções onde estiverem. Situações nocivas criadas por indivíduos notáveis ficam disfarçadas pela massa e pela distância como se aguardassem ser toldadas por clamores de origem ruim. Proclamando semelhança entre União e Estados, pela qual têm Poder Executivo e Legislativo, Ulisses deu aos municípios Poder Legislativo. Não creio que ignorasse falta de senso municipal a exigir Legislativo, mais bem sabia que partidos políticos devem emanar de disputa de opinião pública, antecipando que na falta de disputa entre partidos ficaria mais provável a disputa entre as pessoas, mais fértil quanto mais local fosse. Esse o motivo do Poder Legislativo municipal. Enxerguem o absurdo: um Legislativo que não tivesse nas leis sua motivação, mas tendo motivo na disputa partidária, seria incorrigível devido à impossibilidade de suscitar argumentos contrários à existência dele. Nada a espantar em consequência o enorme número de municípios (5.564), também enorme o de vereadores (57 mil) e o de funcionários das câmaras municipais (837 mil). Nem ladrões nem inúteis, desfrutam a arrecadação e o fingimento partidário entregues a eles. Nem atentam para déficit financeiro de seu município. Sem nada enxergar criaram desfrute irrecorrível do PIB e descompromisso com a coisa pública. Com a mão em escudo diante dos olhos estão livres de ver todas as repulsas dirigidas aos políticos. O custo enorme desse poder contrasta com as carências de ensino primário, de atendimento ambulatorial e de urbanização inicial, deveres municipais mais importantes de modo visível e incômodo a sugerir redução do custo do poder, ao menos por ser mais fácil que atender às carências. Os curumins de verdade, crianças dos municípios nunca enxergarão correção do contraste. A mera sobrevivência do Poder Legislativo municipal é paradigma da categoria política brasileira. Mantém atuação interna dos partidos, é a gênese da participação dos políticos no orçamento e referencial mais acessível por eles que o Congresso. 70 O menino índio quer saber mais, explora as redondezas de sua taba, vai afastando-se seguramente, pois sabe orientar-se bem. Chega ao sopé de um morro que começa a escalar. A cada instante aumenta seu horizonte, vê mais longe mais objetos que ficam pequenos e sem linhas. Já no topo querendo ver melhor põe como pala diante da testa a mão desocupada afastando efeito prejudicial de claridade, por que se a pusesse em escudo diante dos olhos nada veria. A Independência tornou dispensável a Brigada Policial criada por D. João VI para impor a vontade real sobre as províncias, pois o Exército subordinado a D. Pedro não conhecia contestação. Para não desempregar o pessoal da Brigada, ele foi distribuído pelas províncias em milícias especialmente criadas para recebê-lo. Mais tarde com a criação da República, transformando em estados as províncias, as milícias se tornaram Forças Públicas também evitando desempregar o efetivo. Heterogêneas porque algumas eram tropa de combate, outras conviviam com polícia e porque os estados tinham diversidade constitucional, tiveram aturdimento inicial. Essas Forças adotaram modelo e título militar a fim de ganhar permanência sem a obrigação de ser polícias. Ganharam permanência, embora faltando propósito e autenticidade. Assombraram o Exército, pois tinham remuneração maior. A Revolução de 1964 ensejou mediante a Inspetoria de Polícias Militares ingresso de pessoal do Exército nessas polícias coincidente com ambição de poder de alguns estados. Esse arranjo esbarrava na ação policial civil, pois a militar era uma dupla negação nem prevenia mediante policiamento nem investigava mediante diligência. Conseguindo evitar correções inconvenientes, os estados deram situação constitucional às polícias militares, deixando para uma descomprometida regulamentação posterior a norma dessas polícias. Acontece que polícia de qualquer tipo e país precisa impedir que seu pessoal participe do produto de crimes e sentencie infratores. A Polícia Civil, que policia e investiga não aceitou repartir produto, argumento indeclarável, nem adotou sentenciamento, que a converteria em criminosa. Em vez de permanecer o organismo, permaneceu o abuso: não há inteligência porque não há caráter, não há rede dupla de informação porque a informação é indiscreta. Comparando ao curumim no topo do morro, D. João usou primeiro a mão em pala criando a Brigada, depois D. Pedro em escudo dividindo em milícias. Os eventos seguintes aumentaram confusão, inutilidade e permanência, com despesa gigantesca, transformação de muitos policiais militares em milicianos e de segmentos policiais em organizações criminosas. Assunto polícia ficou mostrengo, prenhe de tentativas incapazes de produzir: redução de contravenção, instrução útil de processos e rapidez de coerção policial, como Academia de Polícia e Delegacias Especializadas. Explorando existência de duas polícias, várias organizações adquiriram aspecto policial como a Judiciária e a Rodoviária, outras militar como os Bombeiros Municipais, outras ainda com implicação até penitenciária. E sustentação constitucional. Hoje as polícias militares, voltadas para si mesmas, têm maior importância política que as civis. Sem conseguir entender o que avistar no assunto polícia, o curumim da história deve retornar à taba até o assunto ser reiniciado em termos inéditos em vez de corrigidos. Terminada a Segunda Guerra Mundial militares regressados da Itália depuseram o presidente Vargas, entregaram em 1946 o Distrito Federal a Mendes de Morais como prefeito e Ranieri Mazzilli como secretário de FaRevista do Clube Naval • 358 zenda, que em 1947 não reajustaram salários dos professores primários. Essa atuação da sinistra dupla foi imitada pelos 20 outros secretários de Fazenda dos estados, causando frustração imediata de vocações juvenis para o magistério, destruição do entusiasmo dos professores em produzir futuros pais e mães de alunos orgulhosos de saber e ao fim de uma geração, extinção da formação primária do povo brasileiro. Vinte e cinco anos depois, em 1972 terminou o ensino primário, jamais recriado. Durante os 25 anos outros procedimentos firmaram essa destruição: professores diplomados fugiam da regência de turmas para inspetores, pesquisadores, coordenadores, administradores, cooperadores de ensino, recebiam mais, trabalhavam menos e conseguiram sem querer nem saber, fazer novos alunos chegarem à escola sem serem responsáveis por seus atos, sem saberem propriedade e, pior, sem saberem de onde vinham. Não admira que nenhum ministro, secretário, agente de educação desde 1960 em diante soubesse como atuar para recriar formação do povo. Nenhum sabe que professor é o membro encarregado e remunerado pela sociedade para fabricar pais e mães. Andaram dando aumentos salariais pífios aos professores, além de inferiores em valor aos salários dos “ores”, os fugitivos da regência de turmas. Não é para comprar comida e roupa que os professores precisam de salários aumentados, mas para perceberem a colocação que merecem na classe “B” de consumo. Já não adianta ao curumim contemplar cuidadosamente as escolas primárias, se em qualquer cenário delas vê alunos ameaçando todo mundo, depredando qualquer patrimônio, sem mostrar cara de atenção. Temos que dizer serem meliantes os funcionários operadores de material didático, merenda, impressos sigilosos e medições eivadas de tolerância, tal a frequência de furtos, agressões, desperdícios, perdimentos e fraudes. Com mão em pala ou em escudo o curumim enxerga péssima homogeneidade. Países resolvidos complementam formação primária com mídia e com consumo. O cidadão deles após o primário entra na mídia opinando, explora para opinar a mostra de consumo, pois a formação primária dele serviu para ter critério útil, calcado nos sentimentos básicos de clã (quem somos, quem são os outros), de propriedade (quem é o dono disso e daquilo) e responsabilidade (quem responde por esse ou aquele dano). O cidadão dos não desenvolvidos não tem critério, logo despreza mídia e consumo. Os três maiores colégios do país, a saber: Senac, Senai e Fundação Bradesco passam ao largo dessas mazelas e inspiram o MEC a expandir o ensino profissional. Em 1948 um grupo de cidadãos reagiu à falta de instituição dedicada ao estudo de ações de âmbito nacional, cuja conclusão fosse útil ao governo federal. Naquela época o órgão mais erudito do Exército era a Escola de Estado-Maior, o da Marinha era a Escola de Guerra Naval. A concepção dessa instituição consistiria em congregar os melhores estudiosos do país e encomendar a grupos deles os estudos desejáveis, mesclando aulas de trabalho em grupo com pesquisas dos temas escolhidos, ritual das escolas. A instituição recebeu o infeliz título de Escola Superior de Guerra, infeliz porque associava a ideia de guerra à defesa da nação contra ações estrangeiras, além de ensejar na instituição divisão indesejável entre componentes civis e componentes militares. Até hoje a ideia de defesa Revista do Clube Naval • 358 está circunscrita ao campo militar, como se defesas econômica, cultural e política não fossem necessárias. Imediatamente um grupo de oficiais do Exército passou a conspirar com o propósito de impedir na instituição comparações normais e inevitáveis entre civis e militares. Procuravam o absurdo de, mediante articulação marginal, superar a desvantagem numérica dos militares frente aos civis em um ambiente onde eventuais vantagens não serviam a qualquer propósito. Articulados, preponderaram redigindo e impondo à Escola um Estatuto que mediante semântica impedia debate. A semântica consistiu em atribuir o nome de debate a um ritual autoritário e o de estratégia a um arranjo artístico dos verbetes “recursos e óbices” em vez de técnica de manejar crescimento, assim privando o país de aprender a ciência estratégia. Graças ao Estatuto a Escola nunca produziu para o país um estudo sequer. Houve um instante em que o Mal. Castelo Branco enviou um de seus generais ao Comandante da Escola, Gal. Mamede para trazer o suposto plano de governo, inexistente. Esse instante sucedeu outro em que o presidente Juscelino declarou vir da Escola o Plano de Metas anunciado e adotado por ele. Os militares jamais estudaram governo porque nenhum Comandante da Escola executou essa ideia e o Estatuto dá a ele essa discrição. O valor militar de qualquer tropa é o nível de familiaridade tecnológica ostentado. A familiaridade é adquirida nas escolas de formação e nos centros de aperfeiçoamento mediante exigência de aproveitamento do ensino, que acarreta freio à novidade. Ao rejeitar contribuição discente à inovação, reduz esforço dos instrutores aos aspectos repetitivos, retira das organizações militares a atividade de pesquisa, que não tem nos centros de pesquisa casuística fértil. Quando o militar chega à escola de altos estudos encontra corpo docente viciado em repetição, dando vigor à dependência externa para elevação do valor militar da tropa. Os mais elevados postos são preenchidos por pessoal formado e aperfeiçoado em repetição. Não puderam aproveitar a oportunidade da Revolução para elevar quanto pudessem o país, nem para consolidar a própria atuação como o PT tenta hoje. O pequeno índio permanece espantado com o que avista no campo militar e na Escola. Os militares já sabem como usar a mão em pala para observarem cenário, mas esqueceram como usá-la em escudo a fim de imaginarem a própria recolocação na sociedade. Essa recolocação inclui colegiados consultores, exercício de direção em estatais para clarear a imagem delas em vez de remunerar antigos sicários, situar a remuneração funcional deles em acordo com o restante da administração federal e com o tirocínio deles. Até hoje têm servido como vitrine para orientar cobiças de cabos eleitorais porque essa atuação é exercida sem peias pelos mais diversos dirigentes, em consonância com a baixa qualificação deles, mas com imperdoável assentimento dos militares. Perante o mau desempenho dos civis os militares têm preferido manter-se visivelmente corretos a praticar reprovações aos civis, mas já deveriam ter percebido a inconveniência dessa omissão e descoberto por locutores legais desempenhos defeituosos nos três poderes. n * Capitão-de-Mar-e-Guerra [email protected] 71 histórias navais A BOIA DO MAGDALENA Carlos Roberto Continentino Ribeiro * C orria o dia 25 de abril do ano da graça de 1949, lá na distante Ipanema, verdadeiro éden sobre a face da Terra, onde o bom Deus, na sua infinita bondade, resolveu nos colocar, sabe-se lá por que méritos nossos, nossos e de mais umas 25 mil almas privilegiadas, que por ali também levavam, honestamente, as suas vidas. O lugar era tão bonito, que o próprio Senhor, talvez embevecido com sua obra portentosa, houve por bem colocar lá no alto da montanha, seu filho dileto, com os braços abertos protegendo a todos nós do bairro e, em especial as crianças, nas nossas traquinagens de Jardim de Alah (praça Alte Saldanha da Gama). Naquele dia, no verdor dos meus nove anos de idade, postado no terraço do quinto andar do prédio onde morávamos (R. Epitácio Pessoa, entre a Visconde de Pirajá e a Rua Barão da Torre) e munido do potente binóculo do meu querido pai, assistia à tragédia do navio Magdalena, da Mala Real Inglesa que, por um erro crasso e fatal de navegação do oficial de serviço do quarto d’alva, trepou canhestramente nas pedras das Ilhas Tijucas, às 4:30 horas, na sua viagem inaugural. Lá estava ele, tão lindo, tão jovem, apenas uma criança, que poderia ter um futuro tão brilhante, navegando pelos mares do mundo, mas que por agora apenas engatinhava ainda, no mister de levar lá e cá cargas e passageiros. O binóculo fazendo-o tão perto, mas na realidade tão longe para que se pudesse tomar alguma iniciativa. Como se realmente eu pudesse fazer alguma coisa. Na minha fantasia infantil, corria uma sensação de frustração, como se um menino muito menor do que eu, e da minha rua, tivesse sido também mortalmente atingido e, ainda pedisse socorro, sem que eu nada pudesse fazer para salvá-lo. Um travo amargo de choro engasgou minha garganta, e uma lágrima que insistia em rolar pelo canto do olho se negou finalmente a cair, poupando-me da manifestação de fraqueza (ah, universo masculino!), já no último e derradeiro instante. A entrada do porto do Rio de Janeiro é de navegação fácil e bastante balizada. O Farol da Ilha Rasa, quase nos convida: “Venha cá, meu navegante, estou aqui pra te orientar nessa entrada fácil e bem demarcada, sem muitos baixios perigosos, e de águas bem profundas. “Se quiser ver Copacabana, aproxime-se até uns quatrocentos metros da beira, e nada te acontecerá. O Magdalene, antes do acidente e depois, dividido em dois. Abaixo, o sino, uma escotilha, a bússola e a bitácula do Magdalene “Eu, Rasa, farol experiente nas belezas dessa terra, aconselharia talvez Ipanema, linda; de praias luxuriantes e quase intocadas. “Vá conhecer esta cidade, navegante amigo, verdadeiro paraíso sobre a face da Terra.” Uma “Cidade, realmente, Maravilhosa”. E o era àquela época... Os jornais divulgaram, amplamente, a tragédia do Magdalena, com fotografias e toda a parafernália jornalística dessas ocasiões. O barco, emitiu, imediatamente, sinal de SOS, sendo o Lóide Goiás, o primeiro navio a oferecer ajuda. Após o alívio da carga e dos passageiros, feito por “chatas” e barcos de socorro, que chegaram rapidamente ao local, devido à proximidade da costa. O Magdalena voltou a flutuar, mas com um grande rombo no porão 3. Seu reboque foi conduzido pelos Rebocadores Triunfo e Comandante Dorat. As condições muito difíceis de mar e a quantidade de água aberta acabaram por fazer com que o navio se partisse em dois, num grande estrondo, justo à entrada da barra do porto do Rio de Janeiro, em frente à praia de Imbuí, Niterói. Os rebocadores, se desamarraram do navio o mais rápido que puderam, temendo um naufrágio conjunto, puxados que poderiam ser pelo peso do grande barco. Remadores, durante semanas e semanas, recolheram garrafas de champanhe da primeira classe, da mais fina qualidade, que boiavam, aqui e ali, resultado do navio partido. Mas só a parte de vante do barco submergiu. A seção restante teimou em flutuar. Justamente aquela em que o comandante Douglas Lee, na companhia do prático-mor do porto do Rio de Janeiro, que orientava a manobra, se encontravam com mais um tripulante do navio. Todos, imediatamente, foram resgatados. O comandante, em processo posterior, viu-se condenado a um ano de suspensão do exercício da função. A seção recalcitrante e à deriva teimava em não afundar, e acabou por encalhar na praia de Imbuí, local de onde depois foi rebocada para um estaleiro e vendida como sucata. As instalações termoelétricas do navio, ali adquiridas, alimentaram de energia a cidade de Manaus até o ano 2000. Seu sino e janelas, bem como bússolas de navegação adquiridas no desmonte, até hoje enfeitam o Jurujuba Iate Clube, em Niterói. A metade teimosa – creiam-me senhores, navios têm alma e é com certeza que vos digo – se negava a afundar: ”Eu era novinho em folha! Olhem só o que fizeram comigo, me arrebentaram todo! Logo os ingleses, navegadores experimentados e... na minha primeira viagem!” Mas, enfim, vos digo eu, caro leitor, tragédias marítimas acontecem a navios de todas as bandeiras. No local da barra onde naufragou parte do barco havia até um tempo a boia de alerta de destroços no fundo; a famosa boia do Magdalena, avisando aos navegantes incautos, das catástrofes a que estão sujeitas as navegações mal conduzidas. Poderíamos dizer que a tragédia do Magdalena foi quase como um Titanic tupiniquim. Nos tempos em que exerci a função de Encarregado de Navegação do NAeL Minas Gerais, corria-me sempre um frio à espinha, quando passávamos ao largo da boia que demarcava a derradeira morada do meu velho amigo, se é que o Magdalena vai aceitar que eu tome a liberdade de ser tão íntimo assim, chamando-o por amigo. Como todos no mundo sabem, ingleses, mesmo quando jovens, são reservados e cerimoniosos. n * Capitão-Tenente (Ref). O Farol da Ilha Rasa, um convite aos navegantes para que se aproximem Para que servem os militares “...É graças aos soldados, e não aos sacerdotes, que podemos ter a religião que desejarmos. É graças aos soldados, e não aos jornalistas, que temos liberdade de imprensa. É graças aos soldados, e não aos poetas, que podemos falar em público. É graças aos soldados, e não aos professores, que existe liberdade de ensino. É graças aos soldados, e não aos advogados, que existe o direito a um julgamento justo. É graças aos soldados, e não aos políticos, que podemos votar...” Citação de Barack Obama, no Memorial Day (Dia do Veterano), em 2011, dedicada àqueles que perguntam: “Para que servem os militares?”