A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO VINCULAÇÃO DO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO LICITATÓRIO. Keila Medeiros da Silva [email protected] Resumo: O presente estudo tem com objetivo geral a aplicabilidade do princípio da vinculação do instrumento convocatório no processo administrativo licitatório. Os objetivos específicos são a relativização do presente princípio pelos tribunais em face do rigorismo formal, que conseqüentemente impede a competitividade e a seleção da proposta mais vantajosa para Administração Pública, finalizando com o posicionamento dos tribunais de justiça, do tribunal de contas da união e do tribunal de contas de minas gerais. A justificativa do tema se pauta em posicionar quanto à estrita vinculação do instrumento convocatório, tão discutida pelos doutrinadores e juristas. INTRODUÇÃO O presente artigo intitulado “A aplicabilidade do princípio da vinculação do instrumento convocatório no processo administrativo licitatório”, tem por escopo discorrer sobre a relativização deste princípio no processo administrativo licitatório nos dias atuais, conforme julgados dos tribunais. O processo administrativo licitatório é regido pela Lei 8.666/93, que prevê em seu artigo 3º: “A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para administração e a promoção do desenvolvimento nacional, e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes aos correlatos." Como todo ato administrativo, a licitação é um procedimento formal. A formalização obrigatória eleva a licitação ao patamar de processo administrativo. 2 A Lei de Licitações é a regra no procedimento licitatório, pois trouxe à Administração brasileira grandes avanços, sobretudo quanto ao aspecto da moralização dos processos de aquisição de bens e serviços. Esta lei conferiu ao edital de um procedimento licitatório o status de lei. O Edital da licitação tem força legal e vincula os atos e contratos, devendo o mesmo se respeitado. “O princípio da vinculação ao instrumento convocatório obriga a Administração a respeitar estritamente as regras que haja previamente estabelecido para disciplinar o certame, como aliás, está consignado no art.41 da Lei 8.666.” 1 Este princípio tem sido mitigado pelos tribunais sob a fundamentação de evitar rigorismos formais nos processos licitatórios. 1 .O EDITAL COMO INSTRUMENTO VINCULATÓRIO DAS PARTES. O princípio do instrumento convocatório está consagrado pelo art. 41, caput, da Lei 8.666/93, que dispõe in verbis: “A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital ao qual se acha estritamente vinculada”. O Edital torna-se lei entre as partes tornando-o imutável, eis que, em regra, depois de publicado o Edital, não deve mais a Administração alterá-lo até o encerramento do processo licitatório. Trata-se de garantia à moralidade e impessoalidade administrativa e a segurança jurídica. O §4º do art. 21 da Lei de Licitações prevê a possibilidade de alteração do edital, ao dispor: “Art.21... § 4º Qualquer modificação no edital exige divulgação pela mesma forma que se deu o texto original, reabrindo-se o prazo inicialmente estabelecido, exceto quando, inquestionavelmente, a alteração não afetar a formulação das propostas.” As alterações podem ser por ato da própria Administração como provocadas por terceiros interessados no certame. Se a alteração for após a publicação do aviso do edital, deverá renovar-se a publicação, exceto quando não afetar a formulação das propostas. 1 MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 535. 3 Assim, os licitantes e o Poder Público estão adstritos ao Edital, quanto ao procedimento, à documentação, às propostas, ao julgamento e ao contrato. É o que prevê o artigo 43, V, da Lei de Licitações, que exige que o julgamento e classificação das propostas se façam de acordo com o critério de avaliação constantes do edital. É pacífica na doutrina e na jurisprudência a lição que o edital faz lei entre as partes. A mestre Maria Sylvia Zanella Di Pietro nos ensina sobre o tema: “Quando a Administração estabelece, no edital, ou na carta-convite, as condições para participar da licitação e as cláusulas essenciais do futuro contrato, os interessados apresentarão suas propostas com base nesses elementos; ora se for aceita proposta ou celebrado contrato com desrespeito às condições previamente estabelecidas, burlados estarão os princípios da licitação, em especial do da igualdade entre os licitantes, pois aquele que prendeu os termos do edital poderá ser prejudicado pela melhor proposta apresentada por outro licitante que os desrespeitou. Também estariam descumpridos os princípios da publicidade, da livre competição e do julgamento objetivo com base em critérios fixados no edital.”2 É o que posiciona a jurisprudência do STJ: “A Administração Pública não pode descumprir as normas legais, tampouco as condições editalícias, tendo em vista o princípio da vinculação ao instrumento convocatório ( Lei 8.666/93, art.41) REsp nº 797.179/MT, 1ª T., rel. Min.Denise Arruda, j. em 19.10.2006, DJ de 07.11.2006)” “Consoante dispõe o art. 41 da Lei 8.666/93, a Administração encontra-se estritamente vinculada ao edital de licitação, não podendo descumprir as normas e condições dele constantes. É o instrumento convocatório que dá validade aos atos administrativos praticados no curso da licitação, de modo que o descumprimento às suas regras devera ser reprimido. Não pode a Administração ignorar tais regras sob o argumento de que seriam viciadas ou inadequadas. Caso assim entenda, deverá refazer o edital, com o reinício do procedimento licitatório, jamais ignorá-las. (MS nº 13.005/DF, 1ª S., rel. Min. Denise Arruda, j.em 10.10.2007, DJe de 17.11.2008).” 2. DA RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO – POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA, DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E DE MINAS GERAIS. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório tem sido relativizado pelos Tribunais, ao argumento de que o rigorismo formal no edital impede a 2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:Altas, 2007, p.357. 4 competitividade no processo administrativo licitatório, frustando o objeto precípuo da Administração com a realização do certame, que é o de selecionar a melhor proposta. De acordo com a Lei de Licitações, os licitantes que deixarem de atender aos requisitos estabelecidos no edital estarão sujeitos a serem inabilitados, recebendo de volta o envelope-proposta, lacrado; se, após admitidas ou habilitadas, deixarem de atender às exigências da proposta, serão desclassificados, ressalvando que na modalidade pregão, as fases são inversas, iniciando com a fase de classificação com a abertura dos envelopes-propostas, após a habilitação dos licitantes vencedores. Todavia, os tribunais em análise as exigências editalícias, vêm julgando a favor do licitante que deixar de apresentar os documentos conforme exigidos no edital, se estes nadam influenciam na demonstração que o licitante preenche os requisitos (técnicos e financeiros) para participar do certame. Privilegiar meras omissões ou irregularidades formais na documentação, em detrimento da finalidade maior do processo licitatório, que é garantir a obtenção do contrato mais vantajoso para a Administração, resguardando os direitos dos eventuais contratados, é motivo desarrazoado para inabilitar o participante. A exemplo julgou o TJMG: “a ausência de identificação no envelope do concorrente não constitui critério objetivo para sua desclassificação e não trouxe nenhum prejuízo para o certame, até porque a proposta poderia ser identificada quanto ao destinatário, através do seu conteúdo. A desclassificação do licitante em razão de defeitos mínimos, privilegiando a forma em detrimento de sua finalidade, frustra o caráter competitivo da seleção pública, objetivo expresso de toda e qualquer licitação.” . A doutrina posiciona nas lições de Marçal Justen Filho: "Todas as exigências são o meio de verificar se o licitante cumpre os requisitos de idoneidade e se sua proposta é satisfatória e vantajosa. Portanto, deve-se aceitar a conduta do sujeito que evidencie o preenchimento das exigências legais, ainda quando não seja a estrita regulamentação imposta originariamente na lei ou no EDITAL. Na medida do possível, deve promover, mesmo de ofício, o suprimento de defeitos de menor monta. Não se deve conceber que toda e qualquer divergência entre 5 o texto da lei ou do EDITAL conduz à invalidade, à inabilitação ou à 3 desclassificação". Oportuna, ainda, a doutrina de Hely Lopes Meirelles: "A desconformidade ensejadora da desclassificação da proposta deve ser substancial e lesiva à Administração ou aos outros licitantes, por um simples lapso de redação, ou uma falha inócua na interpretação do EDITAL, não deve propiciar a rejeição sumária da oferta. Aplica-se aqui a regra universal do utile per inutile non vitiatur, que o direito francês resumiu no pas de nullité sans grief. Melhor será que se aprecie uma proposta sofrível na apresentação, mas vantajosa no conteúdo, do que desclassificála por um RIGORISMO FORMAL e inconsentâneo com o caráter competitivo da licitação". Licitação e Contrato Administrativo, 9ª ed., Ed. 4 RT, p. 136). E os tribunais: Posiciona a jurisprudência do TJMG: Relator: Des. ARMANDO FREIRE Relator do Acordão: Des. ARMANDO FREIRE Data do Julgamento: 20/01/2009 Data da Publicação: 06/02/2009 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AÇÃO CAUTELAR LICITAÇÃO - EMPRESA ELIMINADA NA FASE DE HABILITAÇÃO TÉCNICA - CONCESSÃO DE LIMINAR PERMITINDO O SEU PROSSEGUIMENTO NO CERTAME, COM ABERTURA DO ENVELOPE CONTENDO A SUA PROPOSTA - PRESENÇA DO 'FUMUS BONI IURIS' E 'PERICULUM IN MORA' - NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA - RECURSO DESPROVIDO. Na fase de habilitação técnica da licitação, é vedada aos participantes a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originalmente do envelope. Contudo, não se incluem, em princípio, nessa vedação, documentos novos, oferecidos pelo licitante por ocasião do recurso administrativo por ele interposto, visando, tão-somente, esclarecer o próprio conteúdo da documentação original constante do envelope. Número do processo: Processos associados: Relator: Relator do Acórdão: Data do Julgamento: Data da Publicação: Inteiro Teor: 3 1.0000.00.257110-7/000(1) clique para pesquisar Des.(a) CARVALHO Des.(a) CARVALHO 05/11/2002 13/11/2002 ORLANDO ORLANDO JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.São Paulo:Dialética, 2010, p. 230. 4 MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1990, p.136. 6 EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - LICITAÇÃO - INABILITAÇÃO DO LICITANTE - AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO NO ENVELOPE EXIGÊNCIAS DEMASIADAS. A finalidade precípua da licitação é a obtenção da melhor proposta para a Administração Pública, não se podendo privilegiar o RIGORISMO da formalidade, em detrimento da ampla participação dos interessados. É o entendimento do eg. Superior Tribunal de Justiça: "Constitucional e Processual Civil. Licitação. Instrumento convocatório. Exigência descabida. Mandado de segurança. Deferimento. A vinculação do instrumento convocatório, no procedimento licitatório, em face da lei de regência, não vai ao extremo de se exigir providências anódinas e que em nada influenciam na demonstração de que o licitante preenche os requisitos (técnicos e financeiros) para participar da concorrência." (MS 5647-DF, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 17/02/99, p. 00102). "Direito Público. Mandado de segurança. Procedimento licitatório. Vinculação ao EDITAL. Interpretação das cláusulas do instrumento convocatório pelo Judiciário, fixando-se o sentido e o alcance de cada uma delas e escoimando exigências desnecessárias e de excessivo rigor prejudiciais ao interesse público. Possibilidade. Cabimento do mandado de segurança para esse fim. Deferimento. O EDITAL no sistema jurídicoconstitucional vigente, constituindo lei entre as partes, é norma fundamental da concorrência, cujo objetivo é determinar o objeto da licitação, discriminar os direitos e obrigações dos intervenientes e do Poder Público e disciplinar o procedimento adequado ao estudo e julgamento das propostas. Consoante ensinam os juristas, o princípio da vinculação ao EDITAL não é absoluto, de tal forma que impeça o Judiciário de interpretar-lhe, buscandolhe o sentido e a compreensão e escoimando-o de cláusulas desnecessárias ou que extrapolem os ditames da lei de regência e cujo excessivo rigor possa afastar, da concorrência, possíveis proponentes, ou que o transmude de um instrumento de defesa do interesse público em conjunto de regras prejudiciais ao que, com ele, objetiva a Administração." (MS 5418-DF, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 01/06/98, p. 00024). Do Tribunal de Contas da União “6.Também não vislumbro quebra de isonomia no certame tampouco inobservância ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Como já destacado no parecer transcrito no relatório precedente, o edital não constitui um fim em sim mesmo, mas um instrumento que objetiva assegurar a contratação da proposta mais vantajosa para Administração e a igualdade de participação dos interessados. 7. Sem embargo, as normas disciplinadoras da licitação devem sempre ser interpretadas em favor da ampliação da disputa entre os interessados, desde que não comprometam o interesse da Administração, a finalidade e a segurança da contratação” (Acórdão nº 366/2007).” E do Tribunal de Contas de Minas Gerais “Processo Administrativo. Exigências não previstas no edital. “Quanto à licitante fazer exigências não previstas no edital, verificou-se, à fl. 629, que a Comissão desclassificou a única empresa a apresentar proposta, por ter apresentado preço bem superior ao estimado. Em seguida, (...) permitiu que a referida empresa apresentasse nova proposta financeira, dando prosseguimento ao certame. No entanto, a proposta da licitante não atende 7 às exigências feitas no instrumento convocatório (semi-leito, com TV, ar condicionado, vídeo) e a proponente ainda faz novas exigências não previstas anteriormente. Neste caso, o novo prazo para apresentação de proposta não poderia se limitar apenas à licitante que apresentou proposta, pois a alteração das condições editalícias poderia permitir que outras empresas tivessem a mesma oportunidade de participação. Segundo Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos – 8ª edição – Editora Dialética – fl. 477 e 478), se [em uma certa licitação], todas as propostas foram desclassificadas, não há fundamento jurídico para restringir a apresentação de novas propostas apenas aos anteriores participantes. (...) essa restrição é ‘indevida e ofende os princípios da isonomia, da moralidade e da competitividade’. Acrescenta que o princípio da isonomia impede que a Administração dispense alguns licitantes do cumprimento de requisitos [anteriormente] exigidos de outros. Dessa forma, entende-se que houve cerceamento na participação de interessados no procedimento licitatório em tela”.(Processo Administrativo n.º 629667. Rel. Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Sessão do dia 14/08/2007) CONCLUSÃO Diante do exposto, concluímos que o formalismo constitui princípio inerente a todo procedimento licitatório; no entanto, a rigidez do procedimento não pode ser excessiva a ponto de prejudicar a interesse público. A vinculação ao instrumento convocatório não é absoluta, sob pena de ofensa a competitividade, conforme julgados supracitados. A Administração Pública não pode admitir ato discricionário que, alicerçada em rígida formalidade, rejeite licitantes e inviabilize o exame de um maior número de propostas. A desclassificação da licitante recorrente em razão de rigorismos formais, privilegiando a forma em detrimento de sua finalidade, frustra o caráter competitivo da seleção pública. Desta forma não há que se confundir procedimento formal com formalismo. A Comissão de Licitação deverá em suas decisões pautar-se pelo princípio da competitividade, evitando formalismos que sobreponham à finalidade do certame, desde que respeitados os princípios da legalidade e impessoalidade dos atos praticados. 8 REFERÊNCIAS BRAZ, Petrônio. Direito Municipal na Constituição.São Paulo: Leme: J.H. Mizuno, 2010. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Altas, 2007. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.São Paulo:Dialética, 2010. Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1990. MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010. MUKAI, Toshio. Licitações e Contratos Públicos.São Paulo: Saraiva, 2008.