VIII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental Rio de Janeiro, 19 a 22 de Julho de 2015 VOZES DAS MINHAS VOZES: CAUSOS CONTADOS E ENCANTADOS POR MORADORES DO POVOADO DE ALECRIM MIÚDO (BA) EM UM DIÁLOGO COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL Damile de Jesus Ferreira - UEFS Antonio Almeida da Silva – UEFS/UNICAMP Resumo: Tendo em vista a importância da tradição oral em determinadas comunidades, percebe-se que as narrativas orais, como os causos, estão se perdendo no decorrer do tempo. Desta forma, percebemos a necessidade de registrar, potencializar e possivelmente utilizar essas vozes em práticas educativas, como a educação ambiental crítica. Diante dessa circunstância, esse trabalho tem como objetivo à realização de um estudo dos causos contados por moradores do Povoado de Alecrim Miúdo do município de Feira de Santana-BA e sua utilização em uma prática educativa ambiental tentando promover articulações entre o campo teórico e prático da questão ambiental. A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa com coleta de dados realizada a partir de entrevistas aos moradores do povoado, segundo a aplicação de um roteiro elaborado, registro e transcrição das narrativas. Assim, as diferentes memórias trazidas pelos causos evidenciaram novas formas de compreender a natureza e suas representações potencializadoras à Educação Ambiental. Palavras-chave: Narrativas orais, Tradição oral, Educação Ambiental. Abstract: In view of the importance of oral tradition in certain communities, one realizes that oral narratives, such as stories, are being lost over time. Thus, we see the need to record, enhance and possibly use these voices in educational practices, such as the critical environmental education. Given this circumstance, this paper aims to conduct a study of the tales told by town residents Rosemary fair city kid Santana-BA and its use in an environmental educational practice trying to promote links between the theoretical and practical field of environmental issue. The research followed a qualitative approach with data collection performed from interviews with villagers, according to the application of a prepared script, recording and transcription of the narratives. Thus, the different memories brought by the stories showed new ways of understanding the nature and potentiating their representations to the Environmental Education. Keywords: Oral Narratives, Oral Tradition, Environmental Education. 1. Introdução A tradição oral conceitua-se como um agregado de costumes, crenças e práticas que não foram originariamente colocadas na forma escrita, mas contribuem para a continuidade de um grupo social e ajudam na formação de sua visão de mundo (ALBERTI, 2004). Logo, a tradição oral trata-se de um patrimônio que determinado grupo possui e que é uma parte essencial e de extrema importância em sua identidade, 1 Realização: Unirio, UFRRJ e UFRJ sendo assim caracterizada pela sua oralidade, podendo revelar muito sobre a cultura de um povo. A despeito do significado cultural e educativo da tradição oral, em determinados grupos percebe-se que as narrativas orais como histórias, contos, lendas, mitos e, principalmente causos, estão se perdendo no decorrer do tempo estando suscetíveis ao esquecimento. Como ressalta Benjamim (1987), a arte de narrar está em vias de extinção. Além disso, são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente, dificultando assim o intercâmbio de experiências. Esta problemática é devida ao inerente aspecto da tradição oral, que assim como as tradições em geral, serem calcadas na repetição: à medida que as narrativas são transmitidas de geração a geração, ela vive, revive e ressurge de boca em boca, da boca ao ouvido e do ouvido à memória. Com base neste processo, estas acabam se fixando na população e se conservando ao longo do tempo. Porém, Alberti (2004) afirma que os objetos transmitidos pela tradição oral não são imutáveis, logo, ao passo que se repete também se transformam. Nesse âmbito de transformação e mudança, os causos transmitidos estão expostos a influências do contexto histórico, do tempo e espaço, para que se atualizem e se manifestem. Segundo Oliveira (2006), o causo constitui um gênero próprio, com características temáticas discursivas definidas. Trata-se de uma forma particular de se contar um tipo de história, forma de falar o já dito, de recriar o mundo em histórias, fantasias e magias. O causo popular se preocupa essencialmente em agradar e atender ao gosto dos ouvintes, numa relação interativa, estando preso aos ditames do texto falado, ou seja, fortemente marcado pela oralidade. Reconhecendo a importância da oralidade no cotidiano das pessoas, Freire (1984) afirma a possibilidade de que certas áreas rurais, em função do maior nível de oralidade, os grupos populares prefiram ouvir as estórias de seus companheiros da mesma zona em lugar de lê-las. Com isso, a utilização de causos em lugares onde a cultura tem memória preponderantemente oral, tende a possibilitar uma leitura mais precisa do mundo, precedendo sempre a leitura da palavra. A partir desta breve introdução do objeto de estudo, partimos então aos contornos do nosso percurso investigativo com os causos populares, onde percebemos a necessidade de demarcar uma abordagem direcionada a uma perspectiva de meio ambiente e educação que abrisse espaço neste trabalho para dialogarmos com a multiplicidade de saberes existentes. Nesse âmbito, dentre as várias “educações ambientais” existentes, delimitamos uma perspectiva de educação ambiental orientada à emancipação dos sujeitos, sendo estes entendidos como sujeito crítico e reflexivo como bem ressalta Freire (2000) e onde a questão ambiental não fosse entendida como um problema isolado, mas sim, co-participativo de fatores econômicos, sociais, culturais e políticos na realidade social. Nesse intuito, a Educação Ambiental crítica, diante de multiplicidade de faces que envolvem a Educação Ambiental atualmente, foi escolhida para ser a base e referencial teórico desta pesquisa. E como sinaliza Carvalho (2004): Essa perspectiva de educação vai de encontro com aqueles ideais pregados pelo capitalismo e pela cultura hegemônica, rompendo com uma visão tecnicista, meramente difusora e repassadora de conhecimentos, convocando a educação a assumir a mediação na construção social de conhecimentos implicados na vida dos sujeitos (CARVALHO, p. 18, 2004). Assim, segundo a autora, a educação ambiental acrescenta a possibilidade singular de compreender as dinâmicas relações entre sociedade-natureza e posteriormente intervir sobre as mesmas, tendo como foco os problemas e conflitos ambientais. A partir das representações sociais sobre a interação entre o ser humano – 2 natureza, presente nos causos, que o projeto político pedagógico de uma educação ambiental crítica, possibilita contribuir para uma mudança de valores e atitudes dos sujeitos, capazes de identificar, problematizar e agir em relação às questões sócio ambientais, considerando o sujeito como autor e ator da sociedade, que por sua vez é produzida historicamente. De acordo com Lima (2011), o tecnicismo contido na educação ambiental hegemônica, além de simplificador é deformador, reduz a complexa multidimensionalidade da temática ambiental à unidimensionalidade técnica, pois o mesmo considera que tratar um problema resultante de fatores econômicos, políticos, culturais, sociais e ecológicos como um problema estritamente técnico é no mínimo limitante. Diante dessa reflexão, percebeu-se a importância de realizar uma prática educativa onde os sujeitos tenham capacidade de agir criticamente na sociedade, obtendo uma atitude ecológica dotada de sensibilidades estéticas, éticas e políticas, sensíveis à identificação dos problemas e conflitos que afetam o ambiente em que vivemos. Desta forma, a pesquisa buscou os possíveis pontos de encontro entre o conhecimento popular e os causos contados, estabelecendo intimas ligações com as narrativas e a oralidade local. Com isso, neste trabalho foi realizado um estudo dos causos contados por moradores do Povoado de Alecrim Miúdo - BA, analisando as narrativas e as diferentes representações sobre o seu cotidiano e as relações com o meio ambiente, buscando compreender diferentes abordagens, simbologias, saberes no âmbito da interação entre ser humano-natureza que se pode perceber em alguns causos e, e assim, tentar compreender a relação do sujeito diante de seu contexto social através de seu cotidiano. Desta forma, pretende-se reconhecer a importância da tradição oral, estabelecendo diálogos e (dês)encontros entre os diferentes saberes e práticas de educação ambiental crítica, pensando nas narrativas orais, causos como instrumento de reafirmação e reconhecimento dos saberes populares. 2. Lugar de Memórias e conhecendo as Vozes que Tecem Lá nas bandas do sertão, tem um povoado banhado pelo rio Pojuca a quem o povo deu o nome de Alecrim Miúdo. E é esse pedacinho de chão que abriga estórias, contos, prosas e causos, que definem a riqueza que ali se encontra, guardadas no baú das memórias dos sujeitos. Para o historiador Pierre Nora (1984), locais materiais ou imateriais nos quais cristalizam as memórias de uma nação, e onde se cruzam memórias pessoais, familiares e de grupos, são definidos como “lugares de memória”. Estes lugares fazem parte de um processo rítmico, encadeado por sequências de imagens, sensações, sentidos, sentimentos e vivências individuais ou coletivas, que unidos por uma mesma linha e vários nós, garantem o sentimento de pertença representando a imagem que o povo faz de si mesmo através das memórias. O Povoado de Alecrim Miúdo ou Alecrim como é costumeiramente chamado, é este encantado “lugar de memórias”. Fica localizado na zona rural do município de Feira de Santana (BA), no território de identidade portal do sertão1 (BR 116 Norte) e atualmente faz parte do Distrito de Matinha. Assim, foram escolhidos e ouvidos seis contadores, todos moradores do Povoado Alecrim Miúdo - BA, incluindo dois jovens de 13 anos e quatros contadores com idade a partir de 50 anos. Contudo, neste trabalho optei por utilizar os nomes ou apelidos dos sujeitos, bem como são chamados no povoado, não existindo então nomes fictícios para estes que dão vida para essas estórias. Dona Biú (80 anos), Dona Caciana 3 (73 anos), Dona Pedra (86 anos), Mauricio (13 anos), Emerson (13 anos) e Basílio (63 anos) foram os seis contadores convidados para fazer parte do estudo. Todos os contadores foram informados dos objetivos da pesquisa, bem como de sua possível futura publicação. Além disso, todos estes concordaram em participar ao serem informados inclusive da utilização de seus nomes reais. 3. Percurso Metodológico A pesquisa foi pautada nos princípios da abordagem qualitativa. De acordo com Ludke e André (1986), na pesquisa que apresenta essa natureza, a interpretação é tida como foco, ou seja, há um interesse em interpretar a situação em estudo sobre o olhar dos próprios participantes, neste caso, os contadores. Nesse sentido, os processos da pesquisa (construção e o desenvolvimento) são mais importantes do que os próprios resultados. Assim, neste trabalho visamos a busca de explicitar também nossos significados, tentando compreender como os sujeitos dão sentido as suas vidas, tendo o contexto no qual cada individuo está inserido como elemento fundamental, ligado por múltiplas vias ao comportamento das pessoas na formação de sua própria experiência. O trabalho teve uma abordagem etnográfica, que segundo Andre (1995), se constitui de uma pesquisa que busca descrever a situação, compreendê-la e revelar os seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis. Por meio das técnicas etnográficas, é possível documentar o não documentado, isto é, desvelar os encontros e desencontros que permeiam a labuta do dia-a-dia desses contadores, reconstruindo sua linguagem, suas formas de comunicação e os significados que são criados e recriados no cotidiano de sua prática comunitária. Antes de começar a realizar a coleta dos causos, todos os contadores já tinham sido comunicados sobre o trabalho e sua participação no mesmo. Os causos foram coletados no período de 09 a 11 de janeiro de 2014, sempre durante a tarde, pois pela manhã não os encontravam disponíveis sempre ocupados com alguma atividade doméstica ou na roça. Optamos em ouvir os causos na residência dos moradores e posterior a seus afazeres. Foram ouvidos seis contadores, todos moradores do Povoado Alecrim Miúdo – BA. Pensando na obtenção das narrativas, foi utilizado inicialmente um roteiro elaborado que segundo Codes (2011)1 tem o objetivo de resignificar a entrevista, abandonando um possível monólogo para apostar em um possível diálogo. Dessa forma mantivemos uma conversa inicial sobre referências familiares, idade, local de origem, quantidade de filhos, questões sobre o cotidiano, trajetória da profissão e principalmente suas memórias a respeito dos causos que ouviram na sua mocidade, misturando o ouvido e o dito, o visto e o vivido. Os causos foram registrados através de gravação em vídeo juntamente com registros fotográficos feitos pelos pesquisadores, assim possibilitamos a captura dos movimentos corporais e os diferentes cenários onde os causos eram contados. O uso do equipamento audiovisual foi um procedimento importante para o caminhar da pesquisa, pois enfatizamos a importância dos registros da performance dos contadores e seu respectivo ambiente. Desta maneira, o uso das imagens pode revelar certos significados emotivos, gestuais e sonoros que não poderiam transparecer apenas nas vozes. Nossa 1 Roteiro utilizado por Codes (2011), em seu trabalho intitulado: “Me criei no mar, em cima do mar”: Educação Ambiental e memória em São Francisco do Conde. 4 observação vai de acordo com os estudos de Barbosa (2011) sobre as narrativas orais, onde o entendimento dos fatos se faz pela performance do contador, por isso, que se utiliza de recursos capazes de fazer com que o ouvinte, além de entender o que está sendo contado, possa também ter interesse pelo relato, nesse sentido que as expressões faciais, gestos, mímicas, são necessários. Em síntese, são esses recursos que dão “vida” aos causos, que tornam visíveis e bem mais próximos de quem os ouve. Após o término das gravações, a transcrição das narrativas orais foi realizada de forma que o resultado do processo se aproximasse bastante de sua forma original. Utilizamos a mesma metodologia de transcrição referida por Hartmann (2004) onde a autora apresenta alguns pontos importantes para a transcrição dos causos, como: mudança de linha representa separação de sentenças/pequenas pausas de respiração, facilitando a percepção das rimas, repetições; repetição de vogais indicam sílabas alongadas; negrito indica a ênfase dada ao contador á determinada palavra; grafia incorreta de algumas palavras busca maior proximidade com sua pronúncia na oralidade; parêntese com reticência indica edição da fala na transcrição. Esta diagramação, segundo a autora, permite que a linguagem poética que caracteriza muitos causos transpareça de maneira mais evidente, preservando sua musicalidade e ritmo. A análise dos causos transcritos foi realizada de acordo com o referencial de Bardin (1994) sobre a análise de conteúdo. 4. Resultados e Discussão De todos os causos ouvidos pelos contadores, alguns elementos presentes nas narrativas chamaram atenção para início das análises, sendo relacionadas com cotidiano/trabalho, cotidiano/fauna e flora e causos múltiplos. Apenas alguns causos serão trazidos para análise na integra da pesquisa. 4.1. Bicho-Homem ou Homem-Bicho? O ser e estar no mundo Se prestarmos atenção em todas as histórias, desenhos, filmes animados, contos de fada e até mesmo em histórias em quadrinhos, os animais quase sempre aparecem assumindo uma forma humana. Eles sentem, pensam, agem, se vestem, trabalham, comem, ou seja, vivem suas vidas como os humanos. E é neste universo do homem animalizado ou o animal humanizado, que se encontram os causos dos contadores do Povoado de Alecrim Miúdo – BA. Dentre todos os contadores e seus inúmeros causos que foram contados e analisados, a maioria relatava a presença de animais em meio à narrativa, que por sua vez apareceram na sua morfologia natural, porém, possuindo características humanas, como a fala. É neste sentido que o presente estudo pretende apresentar e discutir a relação existente entre os animais e o ser humano, esses causos sempre abordam ou tentam transmitir algum valor ou moral. O causo apresentado a seguir foi relatado por Doba Pedra (86 anos), que mostra a extensão desse imaginário intransponível, bordando cenas, colorindo o ambiente e instigando a imaginação. Durante minha análise sobre os causos, escolhi este particularmente por sua singularidade e representatividade sobre elementos que potencializaria esta discussão. Sentada na varanda em companhia de sua filha, contou um causo, sobre sua vivência singular com a cobra: Da cobra... o lugar mais fino da cauda ela colocou na boca do menino, e mamando no meu peito que era pra o menino pensar que o que tava na boca dela era meu peito. Genteeeee... essa é grande, essa história é muito... eu fiquei com um drama. Quando vi, eu gritei: Socorro! Nesse tempo era de 5 candeeiro, quando acendeu o candeeiro, a cobra dessa grossura, com a bocona (imitando a cobra com a boca e abrindo os olhos), abarcou meu peito todo, meu peito era novo, pequeno ainda... (risos). Ai botou a boca toda, a bicha abriu aboca toda, a boca grandona, que chupando no peito assim, puxandooo... ahhh... chega me arrepia (alisando os braços). Ai eu falei assim: Jesus, vai morrer meu filho. Mas num morreu não... num morreu de jeito nenhum. Num matava não, ela mamava... agora no dia eu tava parida de novo, ela esvaziou meu seio todooo... Uma cobra colocar o rabo na boca do filho e enganar e dizer que ta mamando... é brincadeira? Isso é uma sabedoria terrível de um animal desse né? (risos) É uma sabedoria terrível! No relato acima, a cobra é apresentada em sua respectiva forma animal, apresentando características e comportamento humano, mamando no peito de sua mãe logo que ela nasce. Entretanto, esta cobra que bebe leite não apenas mama no peio de Balbina, ela consegue encontrar uma estratégia para que o bebê não chore ao ser retirado do peio, colocando a ponta de sua cauda na boca da criança, dessa maneira não é descoberta durante a noite. Desse jeito, mais uma vez ação do animal aparece de forma humanizada, pois, somos uma espécie caracterizada por sua capacidade de aprender a pensar reflexivamente e simbolicamente. Diante de toda esta formulação, indagamos: mas qual o papel dos animais nos causos relatados? E porque a necessidade de se aproximar estes do comportamento do homem? Estes são questionamentos que me levaram desde o início a fazer esta análise, voltadas essencialmente para o processo de antropomorfização do animal, conceito este abordado por Lukács (1976) 2. Ressalto que não apresentarei e nem irei adentrar muito na origem e utilização deste conceito, porém tentarei responder os questionamentos utilizando-o para analisar a relação do homem-animal-causo. A íntima relação dos sujeitos com os animais pode ser um fator que influencia na presença constante de animais nos causos. Por se tratar de um ambiente rural, os moradores possuem uma relação muito próxima dos animais: cuidando, criando, alimentando e até mesmo utilizando-os como animais de estimação. Durante o momento dos causos, puderam-se ver muitos animais no terreiro, como cachorros, gatos, porcos e galinhas. Todos estes animais citados fazem parte do ambiente de onde esses contadores falam como também estão presentes no cenário de seus causos. Nesse sentido, a relação entre o animal e o homem, longe de ser muito distante, parece se aproximar muito. O animal, no causo, parece funcionar bem como uma máscara, a qual tenta justificar o ser humano em seu comportamento e ações. Dos animais o homem tira o sustento da labuta da vida, desfruta-se a companhia e a alegria, é fonte de aborrecimentos e de perigos, ou seja, é com eles que se projetam as nossas paixões, nossas relações, servindo como um espelho do humano. Esta ligação intima estabelecida entre esses dois seres que compartilham sua existência na Terra, é o reflexo da relação estabelecida entre o homem e a natureza. O ser humano é relação – com outros homens e mulheres, consigo mesmo e com o ambiente que o circunda (MAKIUCHI, 2005). É de acordo com as lentes que enxergam o mundo, através da cultura, dos sentidos e dos saberes, que estes indivíduos direcionam sua práxis atuando na natureza de maneira consciente e ecológica. 2 Para Lukács (1976, vol.2, p. 636-7) a antropomorfização é entendida como o processo em que os homens dão forma humana àqueles fenômenos da causalidade natural (ou mesmo da causalidade sóciohistórica) que não consegue explicar. Segundo ele, a resposta antropomórfica consiste em dar forma humanamente reconhecível aqueles fenômenos para os quais não se dispõe de um entendimento mais nítido. 6 A contadora, só conseguiu enxergar a cobra como um indivíduo inteligente e misterioso, e dessa forma se projetando nos animais, pelo fato do mesmo reconhecer a existência de ambos, estabelecendo a consciência do outro (neste caso os animais) e assim legitimando a sua existência. Makiuchi (2005) faz uma discussão sobre alteridade remetendo-se ao meio ambiente, realizando uma abordagem ao visualizar o meio ambiente como um “outro”, dialogando com uma alteridade capaz de nos surpreender. Segundo Gomes (2004), os homens e os animais tinham a possibilidade de trocar de identidade, essa identidade humana surgiu simultaneamente à alteridade, pois, o homem sentiu a necessidade da distinção e do experienciar do mundo como algo diferente de si mesmo, como outro, separado e distante. Com isso, Makiuchi (2005) afirma que essa relação entre o homemnatureza, é uma tentativa de cruzar o abismo da separação: aproximar-se do outro, tocar e dialogar com o outro, compreender o outro e unir-se ao outro. Diante do exposto, este trabalho veio buscar uma maneira de aproximar a Educação Ambiental Crítica (EAC)3 com as narrativas orais populares na busca dessa relação, mediada pelos causos e pelas vozes dos contadores. O leitor pode estar se questionando então, que tipo de relação se estabelece entre a teoria crítica que fundamenta a EA com as narrativas orais e suas expressões populares? Fico feliz em afirmar ao mesmo que a EAC é um espaço que possibilita a (re) afirmação desses saberes populares, dando sentido a todo o movimento natural e cultural, o qual estamos envolvidos e fazemos parte. Por esta dinamicidade cultural impressa no contexto pesquisado, particularmente expressada pelos causos escutados durante o estudo, pode se perceber a rica base de informações embutidas nas vozes de cada contador, bem como os complexos comportamentos, valores e sentimentos que organizam a relação homemnatureza, essencial a prática da educação ambiental defendida aqui. Em síntese, o causo foi uma maneira singular de estes sujeitos falarem sobre a natureza. A partir dos causos que eles expressam sua forma de compreender a natureza, incluindo nesta os animais, as árvores, os rios e o homem e a mulher. Por exemplo, na forma como a contadora contou o seu causo, fica evidente ao ouvinte o tipo de relação (de medo e de admiração) que a mesma estabelece com a cobra. Nesse âmbito, os causos são uma forma para o cuidado com meio ambiente. Entendemos meio ambiente de acordo com que Reigota (2007) escreve: o lugar determinado ou percebido, onde os elementos naturais e sociais estão em relação dinâmicas e em interação. Essas relações implicam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e sociais de transformação do meio natural e construído. De acordo com a conceituação citada anteriormente, optei por utilizá-la como um conceito central neste trabalho, pois dialoga e aglutina com o que penso. O meio ambiente é fruto das relações tecidas entre os grupos sociais e o meio natural e construído, implicando assim um processo de criação permanente. Nesse sentido, meio ambiente é natureza, é tradição, é estória, é tudo aquilo que é percebido, sentido e construído pela relação dos sujeitos consigo mesmo e com o meio natural. Portanto, os contadores com seus causos, são vistos como essenciais para uma inter-relação harmoniosa. São importantes para o a sensibilização e o respeito com o meio, preservando não somente os animais, plantas e rios, mas também as relações humanas culturalmente enriquecidas. Com isso a EAC é uma educação dos sentidos, dos sentimentos, das sensibilidades e dos saberes. Pois, como aponta Carvalho (2004) o 3 Sigla utilizada para abreviação do termo Educação Ambiental Crítica. 7 ambiente é o conjunto das inter-relações que se estabelecem entre o mundo natural e o mundo social, mediado por saberes locais e tradicionais, além dos saberes científicos. 4.2. Tradição Oral: Memórias, Causos e Gerações Era uma vez um causo... que foi contado por vozes de homens e mulheres, mas não se sabem como surgiu e nem quando, só se conhece que foi há muito tempo. Foi criado para as pessoas deleitarem-se nas lembranças que um dia foi ou imaginar o que poderia ser. Desta maneira, longe de ser algo ilusório, os causos como as outras narrativas orais, atualizam-se e ganham significado para cada momento das sociedades humanas, na ocasião em que são contados. No sentido de perceber a realidade dos causos em seus respectivos contextos, Machado (2002) afirma que as narrativas orais, assim como as lendas, o mito e o conto, não são apenas relatos de um determinado tempo, mas traz na sua própria natureza a possibilidade atemporal de falar das experiências humana como uma aventura que todos os seres humanos partilham, inscrita e vivida em cada circunstância histórica de acordo com as características especificas de cada lugar e de cada povo. Estas características específicas de cada lugar tratada por Machado (2002), reflete no sentido do contador não apenas contar suas histórias, mas contar também histórias do ambiente em que pertence. Segundo Grandesso (2006), o ser humano nasce e vive num mundo historiado, a vida e construída em prosa e verso. Essas narrativas orais são transmitidas de geração para geração, possibilitando a preservação dessas histórias que serão contadas por outras vozes, assim dando continuidade à existência dos relatos familiares, da comunidade e de seu imaginário. Com isso, percebemos nos inúmeros causos ouvidos, a presença desta passagem e perpetuação de causos que um dia foi ouvido e hoje já são contados. Nesse âmbito, Mauricio de 13 anos, um de nossos contadores jovens, mostra como os causos são transmitidos de geração a geração. Um dos causos contados por ele traz um potencial enorme para analisarmos o papel do contador intergeracional e de que maneira a ocorre: “É porque antigamente os povos mais velhos aqui, dizendo antigamente... dizem que antigamente ai, fazia um medo da porra, era zumbi, lobisomem... era tudo que tipo de coisa ai nessas estradas ali... Ali mesmo (apontando para o caminho) naquela estrada ali, na palmeira ali... Tio Basílio disse que ele vinha de noite da casa da avó, da mãe dele... acho que foi da mãe, ai quando... quando ele vinha, acho que foi com um facão na mão, ai a estrada tava toda tomada de um bicho preto assim (abrindo os braços e mostrando o tamanho), ai ele disse que não dava nem pra voltar pra trás e nem pra frente, ai ele falou: Jesus, José e Maria, me proteja Jesus... ai o bicho fez VRUPTT... ai a estrada abriu assim e sumiu da estrada... é sacana (balançando a cabeça) é sério, fica ai pensando (risos)”. Este relato de Mauricio foi contado por Seu Basílio da seguinte forma: “O que aconteceu comigo, aconteceu mesmo. Já que você quer saber disso... Ohhh foi um dia, aconteceu um negocio comigo que eu não sei te contar como foi. Aqui... eu tava na casa de uma namorada (apontando pra o caminho) lá embaixo, tava torrando farinha e paquerando com ela, e tal...e tal... ai ficou tarde e ela disse: Dorme por aqui. Eu falei: não... eu vou embora. A lua bonita e tal... Eu estava desarmado nesse dia e eu disse assim: cadê o facão de teu pai? Ela pegou o facão e me deu... eu peguei o facão e 8 botei aqui no braço. Rapaz... não foi nada não. Ai quando chegou naquele caminho, que tem uma candeia (árvore) naquele caminho ali, eu vinha tão bem, ai parei... quando chego naquele caminh0, te digo a verdade... tem pouco tempo que eu contasse a qualquer pessoa me saia água do zoi e me arrupiava todo (olhando pra o braço). Quando eu chego de longe assim... me benzi, que eu tenho muita fé me Deus... quando eu chego no caminho, que tem um pé de pau na frente da casa de Eliza ali... eu vi um negócio assim... um negócio assim que tomou minha frente toda (abrindo os braços), deitado no chão assim, aquele negócio... tipo assim... eu não sei o que é monstro... mas tipo assim... eu comparava com um mostro... grandão... cinzento, dessa cor aqui assim (apontando para o chão)... tomou a estrada toda. Naquela hora que eu vi aquele negócio, eu parei em pé... parei de uma vez. Mas vi aquele fogo de baixo pra cima nos pé, o cabelo arrepiou, o corpo todo arrepiou naquela hora... eu sei que minha voz foi tão diferente... que eu não sei como foi que eu falei aquele voz. Mudou na hora. Até quando contava o pessoal me arrupiava todo! Ai eu sei que digo a você, uma coisa eu falei, falei três palavras: Jesus, José e Maria! Na hora que falei. Quando acabei de falar aquilo... assim... tinha um cachorro de aqui, um cachorro branco... e na hora que falei assim: Jesus, José e Maria, o cachorro fez assim: RAU..RAUUUU... (imitou). Ai também eu vim embora... e na hora que eu falei: Jesus, José e Maria; o caminho fez assim... abriu. Pra mim sumiu. Falei: Voltar não vou voltar... vou passar. Abaixei meu chapéu e passei. Passei pelo lugar e num vi mais nada, eu vim embora... quando chegou mais ou menos naquele poste lá embaixo lá (apontando), eu parei... parei e olhei pra trás... quando olhei pra trás, eu vi a luz de Feira, que ta aqui assim nessa direção.... clareando assim meu caminho... clareou tudo aqui... olhei pra trás e sai caminhando... caminhando... ai naquele poste lá, foi que eu vim ver o facão pendurado no meu braço, mas lá na hora não vi facão nenhum. Só que meu corpo inchou. Ficou todo inchado assim... aquela voz tão diferente... que eu não sei como foi aquilo... não sei não. Ai cheguei na casa de um colega aqui e chamei na porta, entrei e dormi. Mas foi verdade...” Comparando o relato de Seu Basílio com o de Mauricio, podemos evidenciar algumas diferenças. Mauricio por ser sobrinho de Seu Basílio, conhece muitos causos que o tio contava e conta para ele. A todo o momento da entrevista de Seu Basílio, Mauricio interferia nas histórias do tio, completando ou relembrando alguma que o mesmo deixou de contar. Com isso, o ato de contar os causos, estabelece uma comunicação interativa: o contador conta seu causo, o ouvinte ouve, mas também pode interagir. De acordo com Barbosa (2011) a narrativa oral é uma comunicação imediata, unindo o contador e o ouvinte num processo de interação bastante intimo e singular. Nesta comunicação, ocorre o que Lada Ferreras (2007) chama de transdução, conceituando da seguinte forma: processo pelo qual acontece a mudança de função de um dos sujeitos: o receptor pode se tornar emissor, apresentando a leitura do que viu ou ouviu, desenvolvendo o que podemos chamar de recriação (LADA FERRERAS, 2007, p. 2). Na comunicação entre os dois contadores ocorreu o processo da transdução. Nela ocorrem duas vertentes: transmissão e transformação. No momento em que Seu Basílio contou o causo para Mauricio, houve a transmissão dessa narrativa oral, que não é apenas contar um relato, mas conseguir dar vida aos fatos e deixar que o ouvinte possa entrar no mundo narrado, com isso a transmissão vem acompanhada da performance do 9 contador. Já a transformação acontece no instante em que Mauricio conseguiu assimilar o causo, internalizá-lo e contá-lo de sua maneira. Mauricio contou o seu causo da forma como isso significa e dar sentido a sua vida, não tão cheio de detalhes como Seu Basílio, pois, este viveu o fato, porém, com a sedução necessária no momento narrado. Os objetos e elementos narrativos transmitidos pela tradição oral, não são imutáveis e nem estáticos. Esse processo de dinamicidade nos causos é importante para que os mesmos se atualizem e se manifestem, de acordo com o seu contexto, tempo e espaço. Com isso, a transdução traduz o fio que liga o passado e o presente, o visto e o vivido, o dito e o ouvido. E desta forma, que as narrativas orais vão se perpetuando no meio popular, calcadas na repetição constante das vozes que estão repletas de memórias, guardando sabedoria e ensinamentos preciosos. Se pensarmos em um ciclo, podemos dialogar com a essência da tradição oral e da passagem de suas narrativas. A cada segundo que os causos são passados de geração a geração, todo conhecimento que estão embutidos neles, são transmitidos juntamente. O mais importante do que contar é aprender com o que se ouve, e ensinar com o que se conta. Segundo Barbosa (2011) para o contador, contar um causo é espalhar sementes por onde sua voz transita, é permitir que a sabedoria se mantenha viva e as memórias de quem um dia souberam lhe entretê-lo. Uma passagem de Walter Benjamim (1994) que traduz todo esse ciclo e processo de transdução é a seguinte: “A relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade de reprodução”. Assim, os causos podem ser utilizados para uma prática educativa, e no caso desta pesquisa, pensamos que a educação ambiental possa ser um espaço de possibilidade, reconhecendo seu potencial de atingir de maneira diferente os ouvintes, obtendo uma forma de dialogar precisamente sobre determinado tema, utilizando o saber popular. O que quero ressaltar na parte deste trabalho é a importância da tradição oral, mostrando que essa prática ainda não está totalmente esquecida e que podemos sim, reafirmá-las enquanto saber popular. 4.3. Os Causos Tecidos no dia a Dia dos Contadores As narrativas orais fazem parte da cultura do povoado de Alecrim Miúdo. São histórias, lugares, juntamente com seus personagens, que compõem o imaginário da comunidade. Contudo, é de suma importância falar das narrativas orais, escrever sobre estas vozes que contam e fazem referência ao lugar onde vivem e coexistem. O Alecrim é a referencia para todos os contadores, pois é lá que estes partilham de muitas experiências com a comunidade e com a vida no campo. É neste lugar que todos os causos são tecidos, onde suas experiências de vida foram costuradas, lugar este, no qual cada indivíduo constrói laços com a natureza e a cultura. Para Barbosa (2011), o lugar poder ser entendido como o palco de encontro entre o passado e presente, história e memória. Desta forma, as histórias de vida como as narrativas orais, são registradas pela memória do lugar. Nos causos contados pelos moradores do povoado, a presença do lugar um dia vivenciado no passado, aparece na totalidade dos causos coletados. Através das lembranças vivas, os contadores reconstroem o ambiente em que um dia viveu, dialogando sempre com o presente. Esse processo de relembrar o lugar e descrevê-lo é uma prática que alimenta suas narrativas, pois possibilita que eles não percam o fio das narrativas. As casas, as árvores, os pastos, os rios, os locais de trabalho, os locais de colheita, as igrejas, os cemitérios e tantos outros lugares que fazem parte de seu 10 cotidiano, aparecem como elementos chaves no decorrer das histórias. Estes elementos representam as configurações e representações do lugar em que um viveu ou ainda se vive. Com isso, os causos se afloram geralmente quando se realiza alguma atividade cotidiana, e esse fator é evidente para nós nas narrativas, porém, para os contadores é algo tão essencial e normal, pois traduz toda sua vida e suas labutas cotidianas. Logo, as narrativas orais traçam o caminho da construção do lugar, das vivências e experiências. E são a partir de suas experiências que os contadores retiram toda a graça e imaginação, colocando-as em suas histórias, como já dizia Walter Benjamim (1987): “Só tem histórias, quem tem experiências”. Assim, todos os elementos os quais fazem parte e participam da vida e das práticas rotineiras dos contadores, passam a possuir valores e significados essenciais, para a garantia da existência, de uma experiência coletiva. Desta forma, a experiência e a relação que alguns indivíduos possuem com a as plantas, animais, com o trabalho e outros componentes, é o produto desta ligação estabelecida na sua vivência. Tentando dialogar com esta afirmação, Dona Caciana nos apresenta a diversidade de plantas que está presente ao redor de sua casa: “Conheço muita planta. Tem candeia, alecrim, miroró, baraúna, essa... calumbi, temcalumbi roxo e o calumbi branco, que dar as florzinhas brancas e os espinhos. Maria preta, pitanga... é tanto nome de mato. Miroró mesmo é bom para pressão, para diabete... as folhas do miroró. Aqui também tem pata de vaca, essa planta ali (apontando para fora de casa)... que é o mesmo miroró, porém ela é pata de vaca... porque o miroró do mato a folha é bem pequenininha e esse daí é grande... ai é bom pra pressão, diabete... é bom pra tudo. Maria preta também ébom para fazer chá. Às vezes você mora no meio das plantas, e as plantas é um medicamento e você não conhece, não sabe o que é. O pau ferro... o pau ferro é bom para doença de garganta. Tem um bocado de pau ai... esse angico branco, assa peixe... tudo isso é remédio”. Como foi contado por Dona Caciana e também, observado de sua janela, as maiorias das plantas que ela tem em seu terreiro e quintal, são utilizadas como medicamentos, ou seja, várias doenças ou problemas de saúde são tratados com as plantas existentes no local. Porém, ela afirma que todo esse conhecimento sobre a função de cada planta na cura de doenças foi aprendido com os seus pais, avós ou pessoas mais velhas da comunidade. Era observando, perguntando e sendo tratada com o uso das plantas, que ela adquiriu todo o saber popular medicinal sobre as plantas, assim, podia tratar dos filhos, marido e vizinhos. Segundo Silva (2010) o uso de plantas medicinais em comunidades tradicionais ou rurais, é uma herança passada de pais a filhos por meio da convivência, da oralidade e da observação. É através desta convivência citada pelo autor, que os moradores obtêm na sua vivência, todo o conhecimento e saber popular sobre os elementos os quais se relacionam diariamente. É no processo da experimentação, que os contadores transformam uma simples planta no mato, como eles mesmos dizem, em um importante componente para suas relações sociais e com a natureza. Pois, é através de suas vivências, que se conhecem as espécies, as suas características e, qual parte das plantas deve ser utilizada para diferentes tratamentos. Desta forma, os conhecimentos populares adquiridos nas práticas cotidianas, na observação e em sua relação com os elementos constituintes do meio, trazem consigo um conjunto de significados, tradições, práticas, , saberes e contribuições sociais e culturais para a sociedade como para a comunidade. Contudo, todo o valor e significado atribuído às plantas, casas e animais, são resultantes justamente da experiência e da 11 vivência, tornando estes elementos simbólicos na memória e no imaginário das pessoas, recheados de valor, de utilidades e de aprendizagens. 5. O Que Ficam dos Causos? Nos causos escutados durante este trabalho, foram tecidas histórias, relatos e experiências de vida. Cada causo escutado e coletado refletia-se toda uma vida por trás das palavras, pontos e gestos. Na fala de cada contador, sentia-se o prazer, a nostalgia e a vontade de contar estórias e histórias que se reinventam e se atualizam, revivendo desta maneira, todas as lembranças e compartilhando sua memória individual e coletiva. De acordo com Zumthor (1997), o contador ao relatar suas experiências, sua memória se junta à memória popular, integra-se no discurso coletivo, clareando-o e magnificando, ainda que seja modificada aos poucos, a voz segue a tradição. Dessa forma os causos são marcados fortemente pela tradição oral. Seu Basilio e Mauricio evidenciaram, através da transdução, claramente que a tradição ainda está viva e latente em cada contador e ouvinte. Através de seus causos, podemos afirmar o processo da transmissão das narrativas a partir da oralidade, e o quanto é importante o papel do contador intergeracional para a continuação e perpetuação destas vozes. Como lembra Araújo (2013), a tradição não está estacionada e nem se projeta de modo estático, mas se encontra em transito diariamente, com isso, as narrativas orais são dinâmicas, se recriando e se atualizando a cada passo que são transmitidas nesse ciclo geracional, os quais mudam seus atores. De tantas histórias ouvidas abordando diversas temáticas, todas estavam tecidas de alguma maneira, imagens e sentimentos de suas vivências. Os moradores do povoado de Alecrim Miúdo estabelecem uma próxima ligação com as plantas, com os animais, com o rio, com sua família e com sua roça. Por isso, que a tentativa de interpretação das narrativas orais de todos os contadores, se iniciou primeiramente na compreensão da realidade cotidiana da comunidade e de cada contador, para tentarmos entender os seus possíveis significados. Depois de tantas idas e vindas, de costuras e descosturas, de incertezas e anseios em busca do diálogo dos causos com a educação ambiental crítica, percebi a dificuldade que é posta em relacionar conhecimentos populares com certa teorização científica. Por falta de conhecimento sobre a existência, fundamentação e ideologias referente à educação ambiental crítica, ela é posta muitas como algo ilusório e inconcreto, pois, é muito mais fácil a visualização de uma prática da educação ambiental conservadora,como reciclar uma garrafa PET, do que enxergar de imediato uma prática que vise perceber com outros olhos e sentidos os problemas ambientais e sociais. Como lembra Silva (2009), muitos discursos da educação ambiental começam a aparecer destituídos de sabor, soando como vazios. Diante dessas condições, os causos dos moradores do povoado de Alecrim Miúdo, foram essenciais para a reafirmação da educação ambiental crítica. Ela aparece dando suporte para a reafirmação desses saberes populares, pois, dentre tantos jeitos de fazer educação ambiental, é a que proporciona espaço para que estas vozes sejam ouvidas, utilizadas e legitimadas enquanto importância e relevância de seu conhecimento. Foi a partir da análise dos causos, que podemos compreendemos as diferentes formas dos contadores verem a natureza, se relacionarem, atuarem em prol dela e expressarem seus sentimentos. Assim, a educação ambiental crítica reconhece a dinâmica natural e cultural, para que se tenha a capacidade de problematização, transformação da realidade, de nossos valores e de nossas práticas. Somente pelo fato de dialogar com estas vozes 12 traduz a importância de irmos contra o sistema hegemônico, que secundariza a cultura e a tradição popular, o qual é baseado na exploração da natureza e do indivíduo. Reconhecemos que o causo por si só, não traz uma emancipação política e ecológica, porém, a sua utilização e seu reconhecimento, já se trata de um ato político. Desta forma, os contadores além de resgatar a tradição, resgatam conjuntamente as práticas cada vez mais esquecidas, controladas e apagadas de nossa sociedade tecnocientífica. Nesse sentido, o resgate da contação de histórias age contra o fluxo de mercado, do capitalismo e da homogeneização das culturas. Prática esta que elege e se expressa na força do coletivo, que não uniformiza e nem unilateriza o saber, pois, todos podem contribuir, sendo crianças, idosos, jovens, pertencentes ou não da comunidade. Enfim, o que fica das histórias? Ficam registrados aqui neste trabalho e na minha memória todos os causos e histórias de vidas ouvidas. Ficam tecidas as imagens da roça, dos animais, dos cajueiros na beira da estrada, dos sorrisos e gestos de cada contador. Fica o resgate das memórias, histórias e saberes adormecidos, possibilitando o diálogo entre diferentes gerações e a permanência no meio popular das narrativas orais. Fica tecida aqui, a perspectiva de uma educação ambiental crítica que seja multidimensional, menos técnica, mais reflexiva e menos alienada. Que esta possibilite estes contadores e todos outros sujeitos possuidores do conhecimento popular, que vivem a margem da sociedade, serem atores e autores de sua própria história. Ficam costuradas aqui, as diferentes memórias e representações sobre o meio ambiente e as novas formas de compreender a natureza, trazidas pelos causos. Ficam registradas aqui, uma parte das coisas que não foram registradas e nem se quer tecidas, pois, como dizia Antonio Biá, personagem do filme “Narradores de Javé”: no papel não há mão que lhe dê razão; é melhor ficar na boca do povo”. Referências ALBERTI, V. Tradição oral e historia oral: proximidades e fronteiras. 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