II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] AS POLÊMICAS DE ARTUR AZEVEDO NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS Esequiel Gomes da Silva (Doutorando – UNESP/Assis) RESUMO: No ensaio “Crítica a vapor” (1992), Flora Süssekind considera a polêmica como uma forma de discussão privilegiada utilizada por jornalistas que vislumbravam angariar prestígio e exibir cultura com pequenos debates gramaticais e querelas de pouca monta, no Brasil da virada do século XIX. Na seção “De palanque”, do Diário de Notícias, Artur Azevedo, sob o pseudônimo de Eloi, o herói, sustentou algumas pendengas com cronistas do Jornal do Comércio, da Semana, da Gazeta da Tarde e da Gazeta de Notícias. Para essa comunicação privilegiamos, no entanto, apenas o “bate-boca” entre o escritor maranhense e Escaravelho, pseudônimo de Luiz de Castro, responsável pela coluna “Psicologia da imprensa”, no Jornal do Comércio. Numa época em que os jornais tinham um arranjo gráfico bastante sisudo e as notícias eram colocadas em longas colunas, sem muitos atrativos, pode-se dizer que as polêmicas tinham também como função excitar o ânimo dos leitores e, fatalmente, incitá-los a comprar o jornal nos próximos dias. Por essa razão, os oponentes não hesitavam em ridicularizar a figura do outro, tornando-o objeto de riso. No trabalho que ora propomos, nosso interesse é apresentar algumas crônicas, apontando os elementos nos quais os dois folhetinistas em questão se apoiavam para sustentar suas discussões. PALAVRAS-CHAVE: Artur Azevedo; Diário de Notícias; crônicas; polêmicas. Domingo, 7 de junho de 1885, na seção semanal “Microcosmo”, assinada por Carlos de Laet, no Jornal do Comércio, publicava-se o seguinte diálogo: Pela mais estranha das casualidades encontraram-se ontem em um bond do Pedregulho dois excêntricos colecionadores de folhas raras; um deles era assinante do Brasil e o outro da Folha Nova. Nada mais próprio para estreitar relações do que uma viagem de hora e tanto em veículo público. Os nossos dois excêntricos discretearam primeiro sobre a demora do inverno, meteram a medo a colher na questão aberta e acabaram comunicando-se o seu mais recente pesar: – Faleceu hoje o Brasil, um jornal excelente que dera ao país o soberbo exemplo de atirar a política para a segunda página. – E a mim também muito me tem magoado o trespasso da Folha Nova, onde escrevia um sujeito muito habilitado lá da Sapucaia, o homem das Impressões, o Aureliano Campos. – O mais singular é acabarem ambos no mesmo dia... Quem nos diz a nós que não será epidemia? – Enxaqueca, talvez, como na Sociedade em que a gente se aborrece... – Exatamente, observou um terceiro interlocutor, e se os senhores querem vê-los na estufa, é só comprar amanhã uma folha que publicará o seu primeiro número... 481 – Compreendo; fundiram-se: duo in carne una. – Resta saber com qual dos dois mais se parecerá o produto do cruzamento. – Esperemos – disse então eu – assim como em ótica se explica que luz e luz podem dar escuridão, assim também do emperramento e do escravismo pode surgir o progresso! (MICROCOSMO, 07/06/1885). A nova folha sobre a qual falavam os interlocutores era o Diário de Notícias, propriedade de Carneiro, Sena & Cia, com tipografia à rua do Ouvidor, 118, que, de fato, começou a circular em 7 de junho de 1885. No dia seguinte, o público fluminense lia: Diário de notícias – Promete-nos o perfeito serviço comercial do pai e o adiantado noticiário da mãe. Como este nos dará a notícia segura, pronta, minuciosa e como só ele a “notícia imparcial”. Esta notícia imparcial vem preencher uma lacuna que de há muito se sentia no jornalismo. Na redação também há muita novidade. Vejam: “La grande marmiére, de George Ohnet, romance que está tendo aceitação não inferior ao seu célebre Maitre de forges”. O seu repórter há de “ir a toda a parte com a atividade de um repórter e a maliciosa e alegre filosofia do diabo coxo: Montaury e Asmodeu”. Sendo assim tão fogoso, vai primeiro ao palanque. (PSICOLOGIA DA IMPRENSA, 08/06/1885). Esse trecho, permeado de ironia e deboche, foi publicado na “Psicologia da imprensa”, seção assinada por Luiz de Castro, com o pseudônimo de Escaravelho, também no Jornal do Comércio. Já nas “Entrelinhas”, da Gazeta de Notícias, Rialto comentava: O Diário de Notícias, o novo colega, fez uma aparição brilhante. Traz novidades, artigos literários, artigos políticos de dois matizes, e promete, de palanque, dizer todos os dias sobre os acontecimentos de todos os dias. Resultado de uma combinação química de dois corpos que não se achavam positivamente em estado de ebulição, o nosso colega vem muito alegre, muito lampeiro e muito catita. Pois venha de lá esse abraço, e diga ao paginador que não repita a pilhéria de ontem, dividindo notícias do Foyer, de modo a fazer com que a opereta do Ricci, D. Inês, entre num processo com o maestro Gounod, obrigando-o a uma multa, e a esquecer a família, pátria e tudo... Fora isso e com franqueza: – parabéns (ENTRELINHAS, 08/06/1885). De ambas as passagens o que importa destacar é a clara referência à seção “De palanque”, inaugurada por Artur Azevedo, com o pseudônimo de Eloi, o herói, no “produto do cruzamento” do Brasil com a Folha Nova. Na edição anterior desse mesmo periódico de Ferreira de Araujo, mais especificamente nas seções “Crônica semanal”, “Balas de estalo” e nas próprias “Entrelinhas” fazia-se o necrológio dos 482 jornais responsáveis pela origem da nova folha matutina. Ao que parece, a referência a uma coluna diária assinada por Artur Azevedo é sintomático do prestígio que o jornalista dispunha na imprensa fluminense. A verdade é que em 1885 ele já não era apenas o jovem vindo do Maranhão com as cartas de recomendação oferecidas pelo pai. Muita coisa havia mudado desde o emprego n’A Reforma, em 1873, até o momento para o qual nos voltamos. Era um homem que estava começando a se consagrar como dramaturgo, visto que já havia escrito Uma véspera de Reis (1875), A filha de Maria Angu (1876), A princesa dos cajueiros (1880), A casa de orates (1882), sem falar nas revistas O mandarim (1883) e Cocota (1884), e também como jornalista. Seu nome era cogitado quando se pensava em formar a equipe de redatores de um novo periódico. Disso daria provas o jornal Novidades: Quando tratamos da criação desta folha, já pelas relações pessoais que nos ligam a Artur Azevedo, já pelo muito em que temos o seu belo talento, franqueamos-lhe as nossas colunas, que desde logo não foram honradas com a colaboração do distinto escritor, por se achar ele no Diário de Notícias, cujas páginas de há muito abrilhantava. Tendo, porém, o nosso amigo, por motivos que lhe são particulares, se retirado do Diário, convidamo-lo a vir colaborar conosco, ao que ele acedeu graciosamente. Transportando, desde amanhã, para as Novidades a sua seção “De palanque”, não privará o festejado literato de seus apreciados trabalhos o grande número de leitores que tanto o consideram e estimam. Quanto a nós, pela nossa parte, só temos que dar-nos os parabéns pela aquisição que acabamos de fazer (NOVIDADES, 25/03/1887). Acreditamos que esse prestígio justifique as duas alusões feitas ao “De palanque” por essas duas importantes folhas (Jornal do Comércio e Gazeta de Notícias) do Rio de Janeiro. Além disso, as idas e voltas à folha matutina também reforçam o significado do nome de um jornalista como Artur Azevedo na redação de um jornal. Apesar dos desentendimentos que o levaram a se retirar do Diário de Notícias com o seu “De Palanque” por duas vezes, o cronista era convidado a voltar: a primeira vez que se desligou dessa empresa foi em junho de 1886, retornando em 25 de outubro do mesmo ano. A segunda, em março de 1887, quando foi para o recémcriado jornal Novidades, onde permaneceu por um período de um ano e quatro meses, voltando para o Diário em 1 de agosto de 1888. Aí ficou até 1889, quando a seção foi extinta, segundo nos foi possível averiguar. Voltando a 1885, para a referida seção, o cronista apresentou o programa que ora transcrevemos: 483 Nestas colunas tratarei de tudo, menos do que não entendo, analisando frivolamente quid deceat, quid non. Apreciação ligeira de um quadro que se expõe, de uma peça que se representa, de um fato que se produz, de um livro que se publica; hoje uma frase lisonjeira a este artista; amanhã uma catanada naquele mau poeta; efêmeras impressões, escritas sem pedantismo nem outra pretensão que não seja a de conversar com o leitor durante alguns minutos; orgulhoso propósito de não deixar desaforo sem resposta, parta de onde partir – eis o que sempre foi o Palanque no Diário de Notícias, e o será nas 1 Novidades (DE PALANQUE, 26/03/1887). Com um programa bastante genérico, o cronista contemplaria assuntos ligados à vida comum, como violência, prostituição, falta d’água, enchentes, febre amarela, jogo, mas também os relacionados à arte e à cultura; em aproximadamente 70% de todas as crônicas que compuseram nosso corpus de pesquisa de Mestrado, ele privilegiou o mundo artístico, seja no âmbito do teatro, da literatura, da música, da pintura e da escultura para compor seus artigos. O “De palanque” serviria de palco para algumas polêmicas que Artur Azevedo travou com jornalistas da Semana, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias e Jornal do Comércio, para citar apenas os mais importantes. Flora Süssekind considera a polêmica como uma forma de discussão privilegiada, no Brasil da virada do século, que funcionava então como um meio de angariar prestígio, de, com pequenos debates gramaticais e querelas sobre detalhes de pouca monta, exibir cultura, além de realçar os contornos do próprio perfil intelectual no mesmo movimento com que se procuravam desqualificar os mais diversos oponentes. [...] O que aumentava a confiabilidade de um crítico era sua capacidade retórica nas muitas polêmicas que se sucediam, sob quaisquer pretextos, na imprensa (SUSSEKIND, 1992, p. 357, grifos meus). Os próprios cronistas lembravam os recursos aos quais recorriam para sustentar uma polêmica, como fica claro neste trecho de uma carta de Joaquim de Almeida – conhecido na imprensa fluminense pelo pseudônimo Fétis –, publicada no “De palanque”, a respeito de um “bate-boca” entre ele e Luiz de Castro: É muito trivial entre nós o azedume em questões as mais das vezes fúteis e pueris, e para sustentá-las, mesmo a despeito do público sensato, e só pela ambição de aplausos da galeria, vemos muitas vezes os contendores lançarem mão de meios pouco corteses, ora apontando-se reciprocamente defeitos físicos, a toilette, os costumes, os vícios, e muitas vezes até a idade! 1 Devido à impossibilidade de transcrevermos o programa jornalístico das próprias páginas do Diário de Notícias, uma vez que, na coleção microfilmada do Arquivo Edgar Leuenroth, na UNICAMP, a metade do primeiro número desse jornal se encontra mutilada, retiramos o trecho transcrito do periódico Novidades, para onde o cronista migrou com sua seção em uma das vezes que deixou de colaborar no jornal em que surgiu o “De palanque” 484 Ora, eu tenho para mim, que o pior meio de convencer é exatamente a descompostura, e quem assim procede é porque lhe falta a razão e a justiça de sua causa (apud DE PALANQUE, 27/01/1886). Ao longo da nossa pesquisa, conseguimos identificar aproximadamente quarenta e sete situações não exatamente de polêmicas, mas de provocações, algumas das quais poderiam fornecer elementos para discussões mais sérias e mais longas. A maior parte dessas provocações partia da pena de Escaravelho, o psicólogo da imprensa – e, portanto, o homem encarregado de estudar a “alma” não apenas humana, mas também da própria imprensa – e se dirigia a Eloi, o herói, indivíduo notabilizado por seus feitos guerreiros e sua coragem. À guisa de ilustração, o “De palanque” de 30 de agosto de 1885 foi inteiramente dedicada à representação da Mariquinhas dos apitos, comédia em 1 ato, em verso, original do brasileiro Anastácio Bonsucesso. Após apresentar ao leitor uma síntese do enredo, o cronista comenta: Aí tem o que é a peça, escrita em versos livres. Há os ali de todos os metros conhecidos... e desconhecidos, desde o monossílabo até o alexandrino, para não dizer alexandre... o grande. Não há em toda a comédia um bom dito, um verso que fique no ouvido do espectador inteligente, um conceito que agrade, um paradoxo que faça sorrir. É um trabalho feito a trochemoche, sem plano, sem espontaneidade, sem intuição artística, sem naturalidade, sem graça, sem entrecho, sem um só dos elementos indispensáveis a uma comédia. *** Os artistas... que diable allaient ils faire dans cette galére?... não tiveram ensejo de mostrar a sua habilidade. O papel da mulata, desempenhado pela Balbina, seria um papelão (deixem passar), se o autor tivesse a ciência do teatro. A Lívia e o Castro nada têm que fazer senão despejar meia dúzia de baboseiras. O Bernardo Lisboa, ator cômico de merecimento, que tem a desgraça de andar sempre metido na pele de uns galãs impossíveis, arranjou um bom tipo. Mal empregado!(DE PALANQUE, 30/08/1885) A partir dessa crônica, na qual Artur Azevedo se vale dos elementos formais para desqualificar completamente a comédia, Escaravelho encontra assunto para a “Psicologia da imprensa” do dia seguinte: Diário de Notícias – para o herói do palanque a comédia Mariquinhas dos apitos é um chorrilho de bernardices sem graça. (O autor dela em outro tempo tinha dito mal do Magalhães, do Pena, do Garrido, do Azevedo). O herói do Foyer registra os “repetidos aplausos que o público lhe (à comédia) dispensou mantendo-se do princípio ao fim em constante hilaridade”. Qual dos dois heróis seguirei? Num a questão é de apreciação no outro de fato. Ora apesar do Sr. Pereira Franco juiz da 1ª vara de 485 órfãos em Niterói, e quejandas, no Diário ainda dou menos pelas apreciações do que pelos fatos. N. B. – o público manteve-se em constante hilaridade. – se não me engano, já li esta frase algures. (PSICOLOGIA DA IMPRENSA, 31/08/1885). Analisando a “alma” do cronista, o psicólogo da imprensa sugere que as impressões de Artur Azevedo foram motivadas por questões pessoais. De fato, no final do artigo citado, o jornalista maranhense relembrou o episódio ao qual alude Escaravelho, e chegou a transcrever os versos satíricos dirigidos por Bonsucesso aos autores dramáticos Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Eduardo Garrido e Azevedo, que segundo Raimundo Magalhães Junior (1966), é o próprio Artur Azevedo. No mesmo dia dessa investida de Luiz de Castro, Rialto, das “Entrelinhas” da Gazeta de Notícias também se envolve na discussão: O colega traz duas notícias sobre a Mariquinhas dos Apitos. Na primeira, dada pelo Palanque, diz: “Não há em toda a comédia um bom dito, um verso que fique no ouvido do espectador, um conceito que agrade, um paradoxo que faça rir”. Na segunda, dada pelo Foyer, diz: “Desempenhada regularmente, a comédia agradou, a julgar pelos repetidos aplausos que o público lhe dispensou, mantendo do princípio a fim em constante hilaridade”. Conceito deste desacordo: o Foyer não é oficial do mesmo oficio... (ENTRELINHAS, 31/08/1885). O cronista se vale de um desacordo de opiniões entre o “De palanque” e o “Foyer” – uma espécie de agenda cultural do Diário de Notícias – para atacar a imparcialidade da crítica de Artur, que só teria apontado defeitos na comédia de Bonsucesso por medo da concorrência. Assim, ambos os cronistas acabam encontrando nesse desacordo o ponto forte para suas críticas contra o autor de O mandarim. No primeiro caso, tratava-se de um ressentimento; no segundo, medo. A resposta de Eloi foi imediata: inicialmente, apela para a consciência do jornalista e, em seguida, tenta desqualificar a acusação do opositor citando dois exemplos de apoios oferecidos durante a estreia de comédias de dois escritores talentosos e, portanto, mais ameaçadores que o autor da Mariquinhas: Da gratuita insinuação de Rialto defende-me o pronto que tenho sido em louvar todas as peças de teatro escritas por autores nacionais, desde que nelas encontre o que não achei na tal Mariquinhas. Quando, naquele mesmo Recreio Dramático, se representou Como se fazia um deputado, de França Junior, eu, que me achava no 486 teatro, tive a ideia de convidar os jornalistas presentes a irmos todos cumprimentar, em cena aberta, o festejado comediógrafo. Anuíram todos, ou quase todos, inclusive o Quintino Bocaiúva, que nesse tempo redigia o Globo. Nunca se fizera no Rio de Janeiro – e creio que em parte alguma – uma manifestação desse gênero. Dois dias depois, tendo aparecido na Gazetinha, que eu então redigia, um artigo laudatório sobre a nova comédia, França Junior enviou-me um bilhete de visita, que ainda conservo, com as seguintes palavras: “Vejo que o nosso melhor amigo é o oficial do nosso ofício”. E Rialto há de convir que França Junior era um concorrente muito mais temível que o Dr. Anastácio. *** Ultimamente, ainda o Recreio Dramático deu a Carta anônima, um ato em verso de Figueiredo Coimbra. Não há notícia de que houvesse nunca em nossos teatros mais auspiciosa estreia; o entrecho da Carta anônima é engenhoso, as redondilhas têm o número de sílabas exigido pela arte, o verso é fluente, o diálogo é gracioso e as situações sucedem-se com tanta naturalidade, que, lendo esse trabalho, ninguém acreditará na inexperiência do autor. Mas como na comédia não entravam urbanos de chanfalho em punho, nem se falava em bilontras e caras duras, o público fez-lhe um acolhimento muito reservado, e, resultado disso, a imprensa passou por ela como gato por brasas (DE PALANQUE, 01/09/1885). Após resgatar episódios para justificar sua crítica, Artur Azevedo lembra que, se se desfez em elogios numa esperançosa produção de um moço de vinte anos, “teria ciúmes de um literato serôdio, que, depois de andar meio século por este vale de lágrimas, impinge ao público a Mariquinhas dos Apitos?!” (DE PALANQUE, 01/09/1885). Porém, ao utilizar o argumento de que Artur fez comentários desfavoráveis à comédia de Bonsucesso, por ser “oficial do mesmo ofício”, Rialto não imaginou a astúcia do acusado para reverter o quadro: “Ela por ela: Rialto, que é doutor, autoriza-me a julgar que, se defende a comédia do Dr. Anastácio, que é médico (e médico distinto, dizem), é movido apenas pelo interesse de ver o comediógrafo arredado de sua verdadeira profissão” (DE PALANQUE, 01/09/1885). Além de rebater a acusação para o redator das “Entrelinhas”, Eloi ainda redige seu artigo de modo a enfatizar que a “verdadeira profissão” de Bonsucesso era a de médico e não a de comediógrafo. Desse modo, sustenta sua opinião sobre a Mariquinhas. Em 2 de setembro, Escaravelho retoma ainda uma vez o assunto, dando outra interpretação às palavras de Artur Azevedo e reiterando o caráter ressentido de sua crítica: Diário de Notícias – o herói do palanque acoima o Escaravelho de não perder ocasião “de lhe ser particularmente desagradável”. Tive 487 de consultar autores franceses para atinar com o sentido de semelhante frase. Desta mania de escrever francês com palavras portuguesas concluo que o herói será algum literato da escola moderna; é a única particularidade que conheço dele. Fique-se, pois, com o seu particularmente para gasto próprio. Afora isto, a sua argumentação é cerrada. Tanto bem já tinha dito de outras peças, que direito lhe sobrava para dizer mal da Mariquinhas dos apitos. Quanto a mim, se se enganou foi a respeito daquelas outras. É que os autores delas não tinham feito daqueles sonetos que nunca se perdoam, e os literatos, além do elogio mútuo, conhecem o vitupério mútuo. (JORNAL DO COMÉRCIO, 02/09/1885, grifos meus em negrito). Na “Psicologia” de 4 setembro o articulista apresenta outras provocações, mas ainda retoma a tão famigerada Mariquinhas: Diário de Notícias – o herói transforma o seu palanque em tímpano harmônico. Começa por queixar-se de que o barulho do público abafasse o do grande concerto sinfônico Beethoven. Artur Napoleão teve “um sucesso retumbante”. São coisas que sucedem, mas não se dizem. Entretanto talvez seja de bom tom no ig-lif. Os olhos da Stahl são os mais belos que nunca brilharam no teatro. Olhe, se em vez de nunca dissesse jamais, talvez a dona dos olhos lho agradecesse. Em suma o grande concerto foi um céu aberto, céu em que apareceu uma única nuvem: às dez horas não havia mais cerveja. Ai, de mim! Desta vez o herói, se não esmagou a hidra, esmagou o Escaravelho. Vejam com que clava. “O herói do palanque, dissera eu, acoima o Escaravelho de não perder ocasião de lhe ser particularmente desagradável. Tive de consultar autores franceses para atinar com o sentido de semelhante frase. Desta mania de escrever francês com palavras portuguesas, etc”. salta o herói com um dicionário na direita e Latino Coelho na esquerda para provar que o advérbio particularmente é muito português. Não disse eu que todas as palavras eram portuguesas? O sentido da frase e só ele foi que tive de ir buscar aos autores franceses. Se em seguida agarrei no particularmente foi por implicar ele referência à pessoa, quando para vergonha minha confesso não conhecer a pessoa de herói. Apenas lhe admiro os feitos, e entre estes o de dizer que considero a Mariquinhas superior a outras peças por ele elogiadas. A minha opinião de que foi no bem que disse destas que ele se enganou, deixa de pé quanto mal disse, diz e poderá dizer ainda da Mariquinhas. Percebe a diferença? Se a não percebe, volte. Há de achar-me pronto, pois faço-lhe a justiça de tê-lo, não particular mas relativamente, dos menos ruins da grei, e disso lhe estou dando aqui mesmo prova. (Grifos do autor) (PSICOLOGIA DA IMPRENSA, 04/09/1885). O texto se volta para o “De palanque” de 3 de setembro, no qual o Artur Azevedo contemplou como assunto um concerto realizado pelo Clube Beethoven, nos salões do Cassino Fluminense, em que tomavam parte artistas de uma companhia 488 lírica italiana que à época estava em excursão no Rio de Janeiro. Antes mesmo de encerrar uma polêmica, Luiz de Castro procura elementos para dar início a outra discussão. Em 15 de novembro de 1885 ele parte com uma provocação ao aspecto físico: Diário de Notícias – o herói tem um gostinho particular em dizer-nos onde jantou na véspera, principalmente se o jantar foi bom. Ficamos sabendo que jantou com o Bernardelli e qual foi o rol dos guisados. Eram todos a este e àquele, mas, quando chegou ao dindon, não sei porque suprimiu à Artur Azevedo. (PSICOLOGIA DA IMPRENSA, 15/11/1885). O jantar sobre o qual Escaravelho se refere havia sido oferecido ao escultor Rodolfo Bernardelli por um grupo de 14 pessoas, dentre eles Artur Azevedo. No dia subsequente ao acontecimento, ocorrido no hotel Novo Mundo, o redator do “De palanque” dedicou metade de um folhetim a esse assunto, transcrevendo, ao final, o cardápio em língua francesa. Daí o remoque de Escaravelho. Enquanto o cronista do Diário tentava dar um ar requintado ao jantar, Luiz de Castro reduzia todas as iguarias a um guisado, que nada mais é do que um simples cozidão. Porém, o que mais irritou Artur Azevedo foi a comparação com o peru (dindon em francês). Situações houve em que, no momento desses insultos, se referiram a Artur como o “gordo do palanque”, o “barrigudo”. Numa clara alusão à origem nordestina de Artur Azevedo, Escaravelho chegou mesmo a prometer umas mangas da Bahia, caso um dia aquele conseguisse “trepar” no palanque sem falar de si mesmo. Há que se ressaltar que Artur não era apenas alvo de ataques, ele também provocava outros jornalistas, vasculhando artigos e criticando formas de escrever. Essa era uma das maneiras utilizadas para exibir conhecimento diante dos leitores, característica dessas polêmicas, como lembrou Flora Süssekind, no ensaio já citado neste trabalho. Apesar de o foco desse artigo ser as crônicas em que Artur Azevedo e Luiz de Castro trocavam insultos, vale a pena destacar um episódio de 1888, ocorrido entre aquele e um outro folhetinista, relativamente à representação do vaudeville Madame Torpille, de Demerval da Fonseca e Soares de Sousa Junior – colaboradores da Gazeta de Notícias – levado ao palco do teatro Sant’Anna pela empresa de Jacinto Heller, em 17 de dezembro de 1888. Em seu folhetim, Artur Azevedo lamenta que os autores tenham pregado ao público uma “estopada” e faz severas críticas a eles. Segundo o jornalista, a peça era um “aborto literário”. Por conta desses comentários, GH, redator da seção “Dia-a-dia”, da Gazeta da Tarde, sugere que Artur falou mal da peça por medo da concorrência. O mesmo argumento utilizado por Rialto em 1885, 489 quando da polêmica acerca da Mariquinhas dos apitos. Cada qual do seu periódico, nos próximos dias eles trocaram insultos, até que GH estabeleceu um júri composto por doze intelectuais incumbidos de ir ao teatro, em 22 de dezembro, assistir ao vaudeville e julgar o mérito literário da peça. Dois dias depois, divulgava-se o resultado. Dentre os indicados, Carlos de Laet, barão de Paranapiacaba, Augusto de Castro, José do Patrocínio e Aluizio Azevedo não compareceram. Apenas foram ao teatro Alcindo Guanabara, Olavo Bilac, Oscar Pederneiras, Urbano Duarte, Ciro de Azevedo, Luiz Murat e Pardal Mallet. Desses sete, apenas Luiz Murat e Pardal Mallet encontraram algum mérito literário em Madame Torpille. O que importa ressaltar de tudo isso, é o empenho desses cronistas para provar suas habilidades sobre um assunto comentado. Certamente, o resultado dessa quizila serviu para “inflar” ainda mais o ego de Artur Azevedo, já que ele conseguiu afirmar seu discurso de autoridade sobre o assunto. Em crônica publicada em dezembro de 1885, a propósito de uma polêmica que se travou entre Artur e Valentim Magalhães por causa do suicídio de um garoto de 13 anos, aquele, através de um discurso ficcional, deixa pistas de que esses debates de ideias alimentavam o ânimo dos leitores, os quais tomavam partido e esperavam o dia seguinte para ver qual dos contendores levava vantagem. Nesse sentido, pode-se dizer que as polêmicas constituíam um importante instrumento de incentivo à compra dos jornais. Com esse artigo nosso interesse era apenas chamar atenção para um tema que merece um estudo mais cuidadoso, visto que por meio dos artigos em que se configuram as polêmicas é possível traçar o perfil intelectual desses jornalistas, bem como as características de um momento da história da imprensa fluminense. Referências bibliográficas DIÁRIO DE NOTÍCIAS. De palanque. Rio de Janeiro, 1885-1888. GAZETA DE NOTÍCIAS. Entrelinhas. Rio de Janeiro, 1885. JORNAL DO COMÉRCIO. Psicologia da imprensa. Rio de Janeiro, 1885. MAGALHÃES, Jr., Raimundo. Artur Azevedo e sua época. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. NOVIDADES. De palanque. Rio de Janeiro, 1887. SÜSSEKIND, Flora. Crítica a vapor – a crônica teatral brasileira na virada do século. In: ______. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. UFJR, 1992. 490